A especificidade da Psicoterapia experiencial de E. Gendlin José

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A especificidade da Psicoterapia experiencial de E. Gendlin José
A especificidade da Psicoterapia experiencial de E. Gendlin
José Paulo Giovanetti1
Estamos vivendo em um mundo cada vez mais fragmentado, isto é, o
predomínio do especialista é uma realidade. Haja vista que, caso você necessite de um
médico ortopedista, é necessário, em primeiro lugar, saber se o mesmo é um especialista
em ombro ou em problemas do quadril. Isso porque, caso o seu problema seja no braço,
o especialista em quadril não lhe atenderá.
Sem dúvida, esse exemplo pode ser estendido para todos os setores do
conhecimento, não se esquivando, portanto, da psicologia, da fisioterapia e da terapia
ocupacional. Nesse contexto, importa observar que a fragmentação do conhecimento
nos condiciona a uma fragmentação da compreensão do homem. Por outro lado, cada
perspectiva do conhecimento procura afirmar que sua visão de mundo é única e a mais
competente para a compreensão do fenômeno. Por exemplo, se sou médico, entendo
todos os problemas existenciais, como a liberdade, o amor e a fé, só a partir da
dimensão biológica. Assim, sendo, “Biologizo” a vida. O mesmo acontece com o
psicólogo, que procura entender os fenômenos existencialistas a partir da dimensão
psíquica e, daí, “Psicologiza” a vida. Nesses termos, já se pode depreender que a
especialização e a “absolutização” do conhecimento empobrecem a visão de homem.
A fim de verticalizar essas considerações, salienta-se que, na psicologia, o
predomínio dessa visão fragmentada do ser humano se deve ao fato de que as raízes de
sua maneira de perceber a realidade têm como inspiração o modelo das ciências
naturais, os quais apresentam como característica principal a busca da explicação, isto é,
tudo é compreendido dentro da equação causa e efeito. Dessa forma, a superação desse
modo de entender a realidade pode ser obtida se buscarmos compreender os fenômenos
humanos a partir de um paradigma do modelo das ditas ciências do espírito, ou seja, um
modo de entender o ser humano que busque um modelo de ciência que consiga captar a
especificidade do ato humano. É necessário, entretanto, ampliarmos nossa visão em
busca de um conhecimento mais integral do ser humano, mais holístico, onde a
existência humana seja compreendida a partir da articulação de todas as suas dimensões.
1
Doutor em psicologia pela Université Catholique de Louvain, Coordenador da pós-graduação
de Psicologia da Fead. Professor titular da Faje (Faculdade dos jesuítas)
Daí, a necessidade da psicologia buscar uma fundamentação na filosofia, pois o
conhecimento filosófico nos possibilita uma visão do todo e não uma compreensão
compartimentada da vida humana. Neste ponto, percebe-se que o esforço da visão
existencial e da visão humanista é, justamente, o de fornecer essa compreensão mais
global da vida.
Tendo como horizonte essa busca por um novo paradigma, surge uma série de
intervenções terapêuticas denominadas psicoterapias existenciais. Essas mais variadas
abordagens têm como modelos filosóficos a fenomenologia e o existencialismo, o qual,
em alguns casos, é completado pela visão humanista presente de forma difusa em
algumas abordagens existenciais.
Assim, todas as intervenções clínicas, ditas existenciais, procuram olhar mais o
indivíduo, isto é, a pessoa no seu todo, na sua complexidade, e não a perturbação
psíquica específica. Em geral, esses métodos procuram sedimentar a intervenção na
relação interpessoal, que busca “facilitar na pessoa do cliente um autoconhecimento e
uma autonomia psicológica suficiente para que ele possa assumir livremente a sua
existência”.2 É importante ressaltar que todas as abordagens que tem como fundamento
a fenomenologia, o existencialismo e o humanismo estabelecem um novo paradigma na
compreensão do doente, deixando de lado a doença com vistas a entender o homem
enfermo.
I - O lugar da psicoterapia experiencial no quadro das terapias
humanistas, fenomenológicas e existenciais.
Segundo Teixeira, no artigo citado acima, a diversidade de intervenções
terapêuticas é muito grande. Daí, reluz a possibilidade de dividirmos em dois grandes
grupos: a psicoterapia experiencial e a psicoterapia existencial. A primeira surge mais
dentro do contexto americano, enquanto a segunda é mais própria da escola europeia.
Entretanto, a diversidade se deve à compreensão particular das filosofias fundantes.
Nessa direção, deve-se atentar para o fato de que as psicoterapias experienciais têm uma
grande influência do movimento humanista próprio do contexto americano, ao passo
que as terapias existenciais são muito influenciadas pela corrente filosófica, denominada
2
VILLEGAS, M. Hermeneutica fenomenologica del discurso psicoterapêutico (1988), citado por
TEIXEIRA, J.A.C., Introdução à psicoterapia existencial. In: Análise Psicológica, v.24, n.3, ano 2006, p.
289.
fenomenologia. Essa influência verificada em ambas as situações é, às vezes, direta, isto
é, há inspiração de modo preciso nos pressupostos filosóficos da fenomenologia; em
outras ocasiões, é indireta, no sentido de buscar fundamentação em filósofos
existencialistas que, ao estruturarem sua doutrina filosófica, basearam-se nas
contribuições da fenomenologia.
Quanto ao humanismo, cabe esclarecer que se trata de um movimento que tem
como preocupação uma valorização do humano. Ele é tão antigo como a filosofia e,
possivelmente, teve seu apogeu no humanismo renascentista. Todavia, no contexto
cultural americano do século XX, temos um novo ressurgimento dessa valorização do
humano; mais especificamente, há um destaque para valores, como a independência e a
autoexpressão. Aliás, é esse embasamento que sustentará as psicologias de Maslow e a
de Rogers, provavelmente os dois maiores representantes do impacto das ideias
humanistas na psicologia.
Em tempo, a Psicologia humanista não se refere “a uma teoria específica, ou
mesmo a uma escola, mas sim ao lugar comum onde se encontram (ainda que com
pensamentos diferentes) todos aqueles psicólogos, insatisfeitos com a visão de homem
implícita nas psicologias oficiais disponíveis”.3 Nesse sentido, Rogers foi o que teve
maior destaque internacional, ao aplicar os princípios da psicologia humanista na
elaboração de uma intervenção clínica, a psicoterapia centrada no cliente. Com isso, foi
um revolucionário no sentido de estruturar a relação de ajuda, isto é, a relação
terapêutica a partir de uma relação humana mais autêntica, abandonando as técnicas e os
procedimentos padronizados vigentes na época. Inclusive, é esse clima que Gendlin
respira e coloca no seu trabalho, com vistas à relação terapêutica baseada na empatia, na
aceitação incondicional e na congruência. Portanto, está, aqui, o ponto de partida para a
elaboração do que mais tarde virá a ser a psicoterapia experiencial.
É evidente que Gendlin não aceita, de forma não crítica, todos os pressupostos
da psicologia humanista. Tanto que, em um artigo4 de 1994, explicita as dificuldades da
psicologia humanista e o que se tem por avançar, por melhorar. Dessa maneira, afirma,
3
AMATUZZI, M. Por uma Psicologia Humana. Campinas: Editora Alínea, 2001, p. 19.
Celebrations and problems of Humanistic Psychology na coletânea feita por Alemany, C. Psicoterapia
Experiencial y Focusing. La aportación de E.T. Gendlin. Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, 1997, p.
425-437.
4
com clareza, que “o que realmente importa não é o conteúdo, nem as formas, nem as
definições, mas a maneira e a qualidade da experiência que está em marcha”5.
Em seu turno, Rogers realizou um ponto de partida completamente novo, pois
propunha que a “experiência orgânica de um ser humano fosse uma fonte interna de
direção vital, de criar sentido e de valores”6. A partir desse pensamento, é possível
compreender que o mais importante é a experiência imediata, sendo o papel do
terapeuta um participante fundamental na relação que brota, e não um observador que
utiliza de procedimentos científicos tradicionais. Então, o que fica como ponto de
partida é a visão positiva do ser humano, destacando suas potencialidades e
possibilidades. Esse destaque significa afirmar o valor único da pessoa, já que “trata-se
de olhar o ser humano (pessoa, comunidade, humanidade) com um senso de respeito,
cujo olhar para ele não é algo útil, mas como ser portador de um valor próprio”.7
O outro pilar na construção do pensamento de Gendlin foi o Existencialismo,
cujo movimento teve sua estruturação nas entre guerras, isto é, solidificou-se entre a 1ª.
e a 2ª. guerras mundial, mas só alcançou ressonância mundial após a 2ª. Guerra,
principalmente por meio dos escritos de Sartre, Heidegger, Buber e muitos outros. Um
dos pontos centrais do movimento é perceber o homem como um ser-no-mundo, ou
seja, entender que o homem só pode ser compreendido em uma relação intrínseca com o
seu contexto cultural.
O segundo ponto do pensamento de Gendlin, voltado para uma identificação
com os existencialistas, aponta para o fato de que o homem deve ser compreendido
como um ser-com, isto é, sempre em relação com os outros humanos. Ora, essa máxima
é de que o humano dentro do homem só brota se esse homem estiver engajado em uma
comunidade humana. Nesse contexto, ser-no-mundo e ser-com são características da
existência humana. Logo, o existencialismo retrata a natureza humana como um viver
que se desdobra do “em” e do “com”.
Esse movimento filosófico vai se difundir nos Estados Unidos a partir dos anos
50 e, talvez, possamos mencionar que um dos seus
principais representantes na
psicologia tenha sido Rollo May. Vale destacar que a psicologia existencial americana
também recebeu uma influência das ideias de Martin Buber. Podemos lembrar, aqui, o
5
Gendlin, E. In: Alemany, C., op. cit, p. 426.
Idem, p. 427.
7
Amatuzzi, M. Rogers. Ética humanista e psicoterapia. Campinas, Editora Alínea, 2012, 2ª. Ed., p. 21.
6
famoso diálogo entre Rogers e Buber, que foi bastante interessante. Nesta oportunidade,
assistimos ao Rogers buscando estabelecer uma relação entre suas posturas clínicas de
uma terapia centrada na pessoa com a teoria do Eu-Tu de Buber. Assim, Rogers
discursa: “Eu tenho me perguntado se seu conceito, que você denominou relação EUTu, é similar com o que eu vejo como momentos efetivos na relação terapêutica?”8 Esse
diálogo expressa a presença de um importante existencialista no trabalho da
Psicoterapia centrada na Pessoa, no qual Gendlin estava engajado. Entretanto, o impacto
do existencialismo no pensamento de Gendlin se faz por meio de leituras não só de
Buber, mas de Heidegger, Sartre e Jaspers. Para tal compreensão, o próprio esclarece
que: “O pensamento existencial não avança de conceito a conceito mediante
implicações lógicas. Mas avança mediante o detalhe experiencial, mediante
diferenciações que produzem sensação experiencial e que habilitam experiências
posteriores”.9
Antes de entrarmos na terceira fonte do pensamento de Gendlin, vale destacar
um comentário do próprio autor sobre a importância da fenomenologia, com destaque
para a especificidade do existencialismo: “O existencialismo é fenomenológico, isto é,
trata de explicar e analisar em detalhe o que somos, vivemos e experienciamos em
concreto”.10 Em face disso, é importante observarmos que a fenomenologia criada por
Husserl foi anterior ao nascimento do existencialismo como uma doutrina filosófica.
Assim sendo, é absoluta verdade que os quatro maiores representantes dessa corrente
filosófica – Sartre, Heidegger, Jaspers e Marcel – utilizaram o método fenomenológico
para elaborarem suas reflexões sobre o ser humano.
Numa percepção mais específica, observa-se que Husserl, em seu livro “As
Investigações Lógicas” (1900-1901), faz uma crítica à psicologia positiva e
experimental, buscando nova abordagem para uma possível compreensão mais eficiente
dos fenômenos psíquicos. A influência desse pensamento desdobrou-se em vários
ramos, uma vez que, como método de investigação, podia ser utilizado por vários ramos
do saber. Podemos citar, inclusive, Max Scheller na elaboração de sua antropologia
filosófica. Contudo, são as concepções de Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty que vão
influenciar, diretamente, o pensamento de Gendlin.
8
Carl Rogers. Dialogues. Diálogo entre Carl Rogers e Martin Buber, in: Revista da Abordagem
Gestáltica, v. XIV, n.2, jul./dez. 2008, p. 236.
9
Gendlin, E. Existencialism and Experiential Psychotherapy, no livro de Alemany, C., op. cit. p. 31-56,
aqui especialmente p. 33.
10
Gendlin, E., op. cit. p. 47.
As ideias fenomenológicas geraram uma grande revolução no pensamento
tradicional, uma vez que, como método, a ênfase era colocada na descrição do
fenômeno, naquilo que aparece, e não nas teorias que buscavam adaptar os fatos aos
seus conceitos. Desse modo, era necessário suspender, colocar entre parênteses esses
conceitos para se atingir a realidade como ela é. Em verdade, um dos primeiros campos
de influência que tiveram uma maior repercussão nas ciências humanas desse tipo de
pensamento foi a Psiquiatria, por meio das reflexões de Karl Jaspers (1883-1969) e
Ludwig Binswanger (1881-1966).
Sobre a importância de Husserl no pensamento de Gendlin, podemos destacar as
próprias palavras do autor, quando considera que: “Para Husserl e fenomenologia, o
termo básico é a intencionalidade. Essa palavra significa que “a experiência, tal como a
temos sempre é em direção a algo, sobre algo, como reação a algo, de algo, com algo;
nunca, simplesmente, uma entidade dentro de nossas mentes ou corpos”11. Por sua vez,
a fenomenologia rechaça teorias e busca, diretamente, a experiência dada.
Nessa circunstância, queremos, aqui, destacar um pensador francês que teve uma
influência direta no trabalho de Gendlin, o filósofo fenomenologista Merleau-Ponty. A
saber, esse pensador é reconhecido como o filósofo que resgata para a reflexão
filosófica a importância do corpo. Até então, a filosofia não tinha se debruçado sobre o
significado da dimensão corpórea para a compreensão do ser humano. Então, MerleauPonty traz de volta esse aspecto ao introduzir o conceito de corpo próprio. Evidente que
não podemos esquecer que Husserl, já nas Ideias II, havia explicitado o conceito de
corpo próprio. Porém, Merleau-Ponty, tendo contato com esses escritos inéditos de
Husserl, desenvolve toda uma filosofia que tem como destaque o corpo. Gendlin, por
sua vez, percebe com tal ênfase a importância desse conceito que toda a sua psicoterapia
experiencial se fundamenta no corpo vivido, conforme asseguram suas próprias
palavras: “Se se redefine o corpo como uma interação inerente, quando esse corpo se
sente a si mesmo é evidente que contém uma grande quantidade de informações sobre
sua situação”.12
Assim, o corpo vivido é o corpo que está em interação permanente com o seu
contexto e o sentir é o reflexo dessa interação. Em virtude disso, a psicoterapia
experiencial terá como objetivo fundamental explicitar essa sensação sentida.
11
12
Gendlin, E., idem, p. 42.
Alemany, C., op. cit. p.428.
II- A Psicoterapia experiencial de E. Gendlin
Em um texto do próprio Gendlin, onde apresenta as características de sua terapia
em um compêndio que reúne as mais importantes abordagens de psicoterapia, temos
uma clara definição de sua teoria. Gendlin, primeiro, mostra a especificidade da
psicoterapia existencial para, em seguida, apresentar sua compreensão do que seja a
psicoterapia experiencial. Em seus próprios termos, afirmar que “ a terapia existencial é
uma terapia relacional, paciente e terapeuta, vivem para além das estruturas. As pessoas
são existências, não definições”.13 Completa, ainda, salientando que a busca das
soluções entre o cliente e o seu terapeuta não está no passado nem no interior da pessoa,
mas em “viver radicalmente aberto às alternativas”14 da existência.
Logo em seguida, Gendlin apresenta a definição da sua abordagem, destacando
que a psicoterapia experiencial trabalha com algo mais concreto, isto é, não busca as
emoções nem as palavras, mas sim se preocupa em explicitar “um sentimento direto da
complexidade das situações e de suas dificuldades”.15
A partir dessas duas abordagens, podemos concluir que Gendlin está preocupado
em localizar, no ser humano, e trabalhar com isso, um aspecto pré-verbal da vivência.
Logo, seu trabalho é com o pré-conceitual, o pré-verbal, o corporal, pois o que lhe
provoca a mudança é ajudar o cliente a entrar em contato com essa realidade mais
concreta, e não com as elaborações conceituais.
No mesmo artigo, Gendlin anuncia uma lista grande de precursores de sua
compreensão e elaboração da psicoterapia. Vamos destacar, aqui, somente os principais.
Em primeiro lugar, o filósofo Dilthey teve um papel preponderante, já que o
pensamento desse autor foi o objeto de sua tese de doutorado.16 Em termos mais
específicos, o pensamento de Dilthey (1833-1911) trouxe para Gendlin o
questionamento de que a compreensão dos fenômenos humanos não poderia ser feita
pelo método científico naturalista. Era necessário, então, um novo paradigma. Em razão
13
Embora o texto apareça no livro Corsini, R. (ed.) Current Psychotherapies, 2ª. Ed., Itasca, Peacock,
1973, p.317-352, nós vamos utilizar o texto que, junto com outros escritos de Gendlin, forma uma
coletânea em espanhol feita por Carlos Alemany, um dos primeiros divulgadores em língua espanhola do
pensamento de Gendlin. O livro é: Psicoterapia experiencial y Focusing. La apostación de E.T. Gendlin,
Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, 1997, p.143.
14
Gendlin, E., in: Alemany, C. op. cit, p. 143.
15
Idem, p. 143.
16
Wilhelm Dilthey and the problem of comprehending human significance in the science of man.
Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago em 1950.
disso, Dilthey afirmava a importância de uma psicologia compreensiva e não uma
psicologia explicativa.
O segundo pensador que merece destaque é Husserl (1859-1938), que teve como
objetivo, por meio de sua especulação filosófica, desenvolver uma teoria que fosse
capaz de captar a experiência, que proporcionasse, também, uma fundamentação para as
ciências particulares. Essa teoria recebeu o nome de fenomenologia. A propósito,
segundo o próprio Gendlin, “os conceitos surgiriam diretamente da maneira de
experienciar das pessoas”.17 Entretanto, na última parte de seu pensamento, Husserl
elaborou o conceito de mundo da vida, que está implícito na maneira como as pessoas
experimentam a realidade. Dessa forma, para a psicologia, estava aberta uma nova
possibilidade de compreensão da realidade psíquica. A partir daí, Husserl vai criar uma
psicologia fenomenológica no seu curso de 1925.
Outro pensador que podemos destacar como alguém que marcou o pensamento
de Gendlin foi Heidegger, discípulo de Husserl, que desenvolveu uma reflexão
filosófica pautada no entendimento do homem em sua situação histórica. Para o filósofo
em questão, o ser humano já se encontra jogado e condicionado pelo contexto cultural.
E o mais importante é que a existência humana só se desenvolve dentro de uma
comunidade humana, na relação com os outros, no ser-com.
Gendlin, também em seu artigo, reconhece a influência de Buber e Sartre, mas
deve ser constatada, nesta situação, a importância de Merleau-Ponty, o qual marcou
profundamente Gendlin. Haja vista que a relevância dada à corporeidade é fundamental
para entendermos todo o processo criado por Gendlin e denominado “focusing”. Em
tempo, o corpo não é compreendido como os fisiólogos entendem, mas como uma
referência do que se vive internamente. Daí que os franceses dizem “corps vecú” e os
alemães “Leib”. Sendo assim, “o que mais se deve recordar na obra de Merleau-Ponty é
sua afirmação de que a experiência é “confusa” e “ambígua”, entretanto não tão nítida
como os conceitos científicos”.18 Com isso, entende-se que tudo parte da vivência
corporal, sendo o corpo, portanto, o primeiro lugar por meio do qual expressamos a
nossa experiência.
De certo, esses filósofos estão na base do pensamento de Gendlin, mas é a figura
de Rogers que abriu caminho para o seu trabalho prático terapêutico.
17
18
Gendlin, E. Psicoterapia Experiencial, in: Alemany, C., op. cit., p. 144.
Idem, p. 146.
Logo depois de terminar o seu doutorado, Gendlin se sentiu atraído pelo trabalho
de Rogers e, em 1953, engaja-se no curso de formação de terapeutas e em um programa
de investigação terapêutica com pessoas esquizofrênicas. Essa colaboração com Rogers
durou até 1964 e lhe proporcionou bases para a construção de sua psicoterapia
experiencial.
2.1. A Revolução paradigmática de E. Gendlin
O contato com Rogers foi decisivo para que Gendlin se tornasse terapeuta.
Filósofo em Chicago, começou a trabalhar com Rogers em um programa de pesquisa
terapêutica com pessoas esquizofrênicas A preocupação que havia surgido de sua tese
doutoral era de como se dava o processo de simbolização da experiência interna e
“depois de ler por mera causalidade alguns artigos de Rogers, que tratavam sobre as
emoções e os efeitos da empatia”,19 pensou consigo que esse tipo de trabalho poderia
ajudá-lo em suas preocupações filosóficas.
Nessas condições, queremos, agora, destacar alguns pontos que, a nosso ver,
sustentavam a afirmação de que o pensamento de Gendlin trouxe, para a psicologia,
uma contribuição revolucionária, a ponto de podermos afirmar que se trata de uma
revolução paradigmática.
O primeiro ponto refere-se à aceitação da posição rogeriana de que existe, no ser
humano, uma tendência atualizante, da qual brotariam forças para um processo de
superação do sofrimento. Nesses termos, a preocupação fundamental de Gendlin não é a
compreensão teórica seguida da elaboração de conceitos que conseguissem dar uma
definição do que fosse essa tendência, preocupação legítima para um filósofo. O que
realmente mobilizava Gendlin era estudar o funcionamento dessa tendência atualizante.
Assim, sua preocupação central não se pautava em definir o que era essa tendência,
senão de como funcionava nas pessoas essa dimensão interna e esse poder
transformador capaz de modificar as posturas na existência que impulsionasse o
crescimento pessoal e a autorealização. Mesmo porque, “essa tendência ao crescimento
não forma parte exclusivamente do âmbito da moral, mas tem a ver com o
desenvolvimento biológico e com a capacidade de adaptação nas satisfações da própria
19
Barceló, Tomeu. Carl R. Rogers y Eugene. T. Gendlin: la relación que configuró un paradigma. In:
Alemany, Carlos (Ed.) Manual práctico del focusing de Gendlin, Sevilla, Desclée de Brouwer, 2007, 2ª.
Ed., p.81.
necessidade”.20 É um impulso intrínseco ao indivíduo. Em face disso, podemos até fazer
uma aproximação com o pensamento de Winnicott, quando este afirma que, no mais
profundo do ser humano, existe uma tendência inata à integração. Acreditamos que,
nesse aspecto, tanto Rogers como Winnicott são profundamente humanistas. Porém,
Gendlin quer ver como essa tendência se explicita no dia a dia da existência humana.
Por sua vez, Barceló é bem claro quando afirma que a preocupação principal de Gendlin
“não era definir o que era essa tendência senão como ela funciona nas pessoas”.21 Desse
modo, Gendlin se propôs a compreender mais esse processo interno da experiência para
descobrir condições que possibilitariam as pessoas a viverem de maneira mais coerente
e mais conectada com o seu interior.22
Gendlin, partindo do ponto de vista da contribuição de Rogers para a terapia,
quando este elaborou as três condições necessárias para que o terapeuta pudesse ajudar
o ser humano que sofria, aceita a empatia, a aceitação incondicional e a congruência ou
a autenticidade, ressaltando, porém, que a última exigência se tornou para si a mais
importante no trabalho terapêutico. Essa valorização da congruência leva Gendlin a
desenvolver ferramentas para facilitar sua vivência. Daí, surgirá a construção da
psicoterapia experiencial.
O segundo ponto que revela essa mudança de perspectiva provocada pelo
pensamento de Gendlin é o conceito de experienciar. O aspecto a ser destacado, aqui, é
o predomínio do processo sobre o conteúdo. O que interessa é o que se está sentindo,
“são os sentimentos imediatos que importam, pois eles emergem do fluxo experiencial
que o cliente vive naquele momento”.23 Em virtude disso, se os sentimentos são o que
estruturam os comportamentos, o que está em jogo é o processo subjacente. A atenção,
então, deve se deslocar dos conteúdos para o fluxo experiencial. Sendo assim, Messias é
muito feliz quando estabelece a relação entre o fluxo experiencial e os conteúdos,
afirmando que “uma analogia pode trazer mais clareza: se o fluxo experiencial fosse
uma massa de argila, a conceitualização simbólica, no outro extremo, corresponderia às
formas esculpidas a partir da massa”.24
20
Barceló, T., op. cit. p.88.
Idem, p. 91.
22
Idem, p. 86.
23
Messias, J.C., Psicoterapia centrada na Pessoa e o impacto do conceito de Experienciação. Tese de
mestrado inédita, PUC Campinas, p. 64
24
Messias, J.C. op. cit.. p. 65.
21
Essa virada de perspectiva vem sedimentar o novo paradigma proposto por
Gendlin. Para conceitualizar todo esse novo modo de ver o que é o mais importante para
a clínica, Gendlin cria o conceito de “experiencing”. De fato, trata-se de um termo de
difícil tradução, que entendemos como sendo o processo, o que está acontecendo no
momento. Porém, a discussão está em se traduzir esse termo por experienciação ou
experienciando. Acredito que o segundo termo, um verbo no gerúndio, traduza melhor a
ênfase dada por Gendlin. Com fins didáticos, coloca-se que o verbo geralmente expressa
uma ação, algo em movimento, enquanto o substantivo dá, muitas vezes, a ideia de algo
que já terminou. Inclusive, penso que é o mesmo caso para o conceito de existência e o
de existir. Quanto ao segundo termo, sendo verbo, dá uma ideia de que o viver seja uma
ação que está em contínua evolução, embora o conceito de existência queira traduzir
algo que se desenvolve. Entretanto, compreendo que o verbo no gerúndio seja mais fiel
ao pensamento de Gendlin. Talvez, em português, fosse mais apropriado se utilizar, para
a tradução, o verbo experienciar, como é utilizado na língua espanhola. Sobre o
conteúdo do experienciar, Gendlin explica o seguinte: “O experienciar não é a
reconstrução de eventos, mas inclui seu significado sentido pessoalmente. Não é uma
bateria de conceitos ou operações lógicas, melhor, é a referência interna usada para
fundamentar conceitos”.25 Está, dessa maneira, evidenciada a importância do processo
sobre o conteúdo.
O terceiro destaque que aponta a revolução paradigmática do pensamento de
Gendlin é a importância que este filósofo dá ao corpo, a qual é caracterizada de
sabedoria corporal. Esse destaque para o lugar do corpo na vida humana aproxima
Gendlin da abordagem psicossomática, onde tudo se inscreve no corpo. É oportuno
explicar que, aqui, o mais importante não são os pensamentos nem os sentimentos, mas
a sensação sentida pelo corpo. Até porque, “vivemos nossas situações com nosso corpo.
Tais sensações-ações, o uso das palavras e o pensamento, todos eles, são também
processos corporais. As ações, as palavras e os pensamentos estão implicados no
corpo”.26 Com estas palavras, Gendlin ensina que tudo passa pelo corpo, que no corpo
tudo fica registrado. O segredo, portanto, é termos acesso a este registro. Daí, surgirá o
grande esforço de Gendlin de criar uma terapia que seja capaz de acessar esses registros.
Será o “focusing”.
25
Alemany, C. De la psicoterapia experiencial al Focusing: historia evolutiva, contenidos y aplicaciones,
in: Alemany, C. (Org.). Manual práctico del focusing de Gendlin, Sevilla, Publidisa S.A., 2007, 2ª. Ed.,
p.29.
26
Gendlin, E. The client’s client: the edge of awareness. In: Alemany, C. op. cit. p. 288.
Para Gendlin, existe uma sensação corporal que é diferente dos sentimentos e
das emoções. Ela é anterior a eles e, por isso mesmo, mais difusa e não tão clara.
Imaginem que, normalmente, não temos muita clareza sobre os nossos sentimentos, daí
que é mais difícil nos conectarmos a essa sensação. Em seu livro que trata do “focusing”
Gendlin, versa que “dá-se tão pouca atenção a essa forma de percepção que não existem
palavras prontas para descrevê-la, de modo que tive de criar um termo: Felt Sense”27,
que poderíamos traduzir por sensação sentida.
Nesse sentido, deve-se compreender que os sentimentos e as emoções não
constituem toda a globalidade situacional. Eles são já registros específicos de como o
ser humano internaliza, em termos emocionais, o impacto da realidade. Por isso, a
sensação-sentida aparece como um novo registro. O adjetivo novo tem, neste caso, o
sentido de que nunca havíamos nos dado conta, porém já existindo desde que o homem
dialogue com o seu contexto. Dessa forma, para Gendlin, o corpo vive implicitamente
toda a situação. A atenção está em que o Felt Sense (sensação sentida) se altera se você
abordá-lo de maneira correta e muda até mesmo quando você entra em contato com ele.
Quando o seu Felt Sense de determinada situação muda, você muda e, portanto, a sua
vida muda.28 Por isso, na teoria do Gendlin, a atenção do terapeuta não deve estar no
conteúdo, mas nesse processo vital experiencial que é o responsável pelas mudanças.
Como contribuição argumentativa, Tomeu Barceló, sobre essa mudança de
perspectiva que inaugura uma nova visão sobre o desenrolar do viver, descreve que “o
que produz a mudança efetiva, o desenvolvimento não é o que pensa ou o que diz o
indivíduo, mas o processo vital experiencial que conduz alguém a pensar ou a sentir de
um determinado modo”.29 A partir disso, Gendlin buscará uma técnica que seja capaz de
captar essa sensação sentida e, com isto, provocar uma modificação na existência.
2.2. A Teoria Experiencial
Em 1973, Corsini30 organizou uma espécie de manual das principais correntes de
psicoterapias, que serviria de referência aos psicólogos clínicos. Nesta ocasião,
convidou Gendlin para expor, de forma sintética, os principais pontos que eram
necessários para se entender a sua abordagem terapêutica (história da abordagem com
seus precursores, a teoria que sustentava o trabalho clínico, a teoria da personalidade, a
27
Gendlin, E. Focalização. Uma via de acesso à sabedoria corporal. São Paulo: Gaia, 2006, p. 51.
Idem, p. 51.
29
Barceló, T. op. cit. p. 92.
30
Corsini, R. (Org.). Current Psychotherapies. Itasca, Peacock, 1973.
28
teoria da psicoterapia, etc.). É nesse artigo que vamos encontrar as linhas de força da
teoria experiencial, ou seja, o que se denominou de filosofia do implícito, a filosofia que
sustentará toda a concepção de homem de Gendlin.
Essa teoria é composta de quatro conceitos chaves. O primeiro deles é o conceito
de Existência, para o qual, de forma bem clara e sintética, Gendlin aponta que “a
existência é preconceptual, internamente diferenciada e sentida corporalmente”.31 O
conceito criado pra exprimir toda a riqueza da definição é “experiencing”, que já
destacamos acima, principalmente a dificuldade de sua tradução. Nesse sentido,
podemos entender que, diferentemente dos filósofos existencialistas, as estruturas e
unidades dessa existência se fazem a partir da experiência, motivo pelo qual não se pode
partir de uma definição de existência. Para Gendlin, o preconceptual é uma palavra que
significa preontológico, pretemático e prerreflexivo. Ainda em seu texto, completa: “os
conceitos “preconceptual e internamente diferenciável” aclaram juntos o que realmente
se quer dizer de que a existência precede a definição”.32 A radicalidade da afirmação
vem justificar uma das máximas da filosofia existencialista de que a existência precede
a essência.
O outro traço da existência que é afirmado, o qual, a meu ver, tem relação com a
fenomenologia, é a importância que se dá ao corpo, tendo em vista a tese de que a
existência é sentida corporalmente. Isto significa que, por meio do corpo, tem-se acesso
à experiência da existência. Por essa razão, somente através do corpo, a pessoa tem
acesso direto à complexidade de sua experiência visceral.
Pelo termo preconceptual, Gendlin sugere que esta diferenciação da experiência
acontece de muitas maneiras, não podendo, portanto, ser determinada de forma lógica e
conceptualmente.33 O termo em inglês para significar toda a complexidade dessa
conceituação é “experiential felt sense”.
O segundo termo utilizado para designar outra característica de sua compreensão
do humano é o termo inglês “interaction”, isto é, que a experiência é uma interação.
Nessa oportunidade, verificamos, também, uma máxima da filosofia existencial de que
o homem é um ser-no-mundo. Como observamos acima, o humano só se desenvolve em
31
Estamos utilizando tanto a versão em inglês de Gendlin, já citada acima, como a tradução espanhola de
Alemany, que é um pouco mais explícita em alguns conceitos. Esta última se encontra no livro de
Alemany, C., op. cit., p. 150-162.
32
Gendlin, E. in: Alemany, C., op. cit., p. 151.
33
Idem, p. 152.
uma comunidade humana, sempre estando mergulhado em uma situação concreta.
Acerca disso, Gendlin esclarece que “uma pessoa em um momento dado é interaçãocom, é um medo-de, uma esperança-de, um sensibilizando-se-por, um tratar-de, um
afastamento-de... Por isso, a experiência que sentimos é tão complexa, é a vida em toda
sua complexidade de situações”.34
De modo a verticalizar as reflexões em curso, apresentamos outra ideia que
aponta para uma radicalidade do ser humano, pois a interação é mais significativa que o
aspecto subjetivo. Assim, “a experiência não é “subjetiva”, senão interacional, não é
intrafísica senão interacional. Não é interioridade senão interioridade-exterioridade”.35
Ora, o que se está afirmando, aqui, é o encontro, conceito muito caro para os
existencialistas. Isto significa que qualquer ato que pratiquemos é sempre baseado na
interação. Logo, “a experiência funciona como interiormente sentida e situacionalmente
vivida e está sempre referida como interação”.36
O terceiro conceito que exprime sua concepção de homem é o conceito básico de
autenticidade. Se os dois conceitos anteriores exprimiam duas características essenciais
do ser humano, ou seja, a sua unidade de corpo e alma e, no segundo conceito, a ligação
do homem com o seu contexto (o mundo, as situações), agora, Gendlin vai buscar
articular as três dimensões da temporalidade, isto é, qual a importância do passado, do
presente e do futuro no nosso quotidiano. Novamente, identificamos a influência do
pensamento existencialista, que busca compreender o presente articulado com o que “já
foi” (passado) e com o que “ainda não é” (o futuro). Em outras palavras, a pessoa vive o
presente junto com o seu passado e com o futuro que projetou para si. Embora esses
momentos sejam compreendidos de forma articulada, Gendlin dá mais importância ao
futuro, pois este guia o presente.
Nessa mesma direção e diferentemente de algumas teorias em que o presente é
guiado pelo passado, aqui, se aposta na perspectiva do futuro. Para exprimir essa
conotação da existência, Gendlin cunhou o termo “carring forward”, para o qual a
melhor tradução talvez seja “levando adiante”. A implicação antropológica desse
conceito é que essa característica é própria da continuidade corporal, isto é, que existe,
na interioridade corporal, um dinamismo que está sempre levando a experiência sentida
34
Idem, p. 153.
Idem, p. 154.
36
Idem, p. 154.
35
para frente. Aliás, “essa continuidade-na-mudança característica dos processos corporais
a denominamos “levar adiante” para distingui-lo de uma mudança brusca e daquilo que
não é mudança”.37
Ora, essa característica da existência é que postula o conceito de autenticidade
que, para Gendlin, pode ser resumido como o processo de levar adiante, no presente, o
passado atraído pelo futuro.
O quarto conceito que vem fechar sua concepção de homem é o conceito de
“differentation”, isto é, de que a experiência é valorativa. Destaca-se, aqui, que a
experiência tem sempre uma finalidade; “a experiência tem uma direção. Esse aspecto
teleológico, direcional e valorativo é o quarto conceito básico de nossa teoria”.38 Nessa
perspectiva, entende-se que o processo de ir adiante não se faz de qualquer maneira.
Caso tomemos um caminho diverso, o ir adiante é bloqueado. Portanto, reluz a
informação de que a existência tem uma diretividade que é a integração, sendo que essa
diretividade não é caótica. Então, temos de saber cultivar, dentro de nós, essa
perspectiva para podermos nos integrar cada vez mais. Nesse cenário, Gendlin está
nomeando uma qualidade, ou melhor, a característica mais fundamental da tendência
atualizante; que ela tem uma finalidade e que essa finalidade está inscrita no corpo.
2.3. Teoria da Psicoterapia experiencial
Quando se pensa a respeito da Psicoterapia, vêm sempre duas questões. A
primeira é sobre a teoria que sustentará o encontro interpessoal entre o profissional de
psicologia e a pessoa que busca ajuda desse profissional. A segunda questão refere-se
aos procedimentos práticos para que esse encontro aconteça da melhor forma possível.
Aqui, vamos procurar tratar da primeira questão, deixando para outra oportunidade a
segunda questão.
Analisar a teoria da psicoterapia é se defrontar com dois pontos bem específicos.
Um deles é a busca por elucidar a natureza da psicoterapia e a outra é discutir a
finalidade da psicoterapia. Estes dois aspectos nos colocam de frente com as questões
cruciais do desenvolvimento de uma teoria psicoterápica. Nesse mesmo artigo de
Gendlin, onde buscamos explicitar a sua concepção de existência, encontrar-se,
37
38
Idem, p. 155.
Idem, p. 157.
também, a sua reflexão sobre a teoria da psicoterapia. Sobre a natureza da psicoterapia
experiencial, vamos, agora, desenvolver algumas reflexões.
O primeiro ponto diz respeito ao projeto do trabalho terapêutico. Evidente que a
teoria terapêutica de Gendlin está fundamentada na sua filosofia explicitada no item
anterior. Apesar disso, é importante, neste momento, ainda que de modo resumido,
observar que a terapia experiencial tem como objeto a experiência corporal sentida.
Tudo deve ser orientado e tudo deve ser praticado a partir desse horizonte. Em vista
disso, todo o trabalho, aqui, tem de ser fundamentado na premissa de que “a experiência
é um processo de interação, estar com os outros e estar no contexto situacional”.39
Assim, toda a atenção deve ser dada a essa interação e, mais, estar atento ao impacto da
interação no fluxo corporal, pois, para Gendlin, a maneira de viver afeta fisicamente o
corpo. Com efeito, tem-se a tese de que a qualidade da interação seja importante para o
avanço do projeto terapêutico.
O segundo ponto sobre a natureza do trabalho terapêutico é a posição clara de
Gendlin de que o trabalho tem de ser com o implícito, pois o que leva adiante o
processo da experiência já está implícito nela.40 Dessa maneira, a mudança será possível
se o terapeuta for capaz de colocar em movimento esse sentimento ainda confuso que
sobrejaz a toda experiência.
O terceiro ponto que nos ajuda a entender a natureza do trabalho terapêutico
refere-se ao fato de que a atenção do clínico deve estar voltada para o processo e não
para o conteúdo. Segundo Gendlin, esse processo tem um caminho, isto é, devem-se
respeitar os passos da experiência. Como mencionado acima sobre a diretividade essa
implicação deve ser respeitada, visto que “os passos de um processo terapêutico não se
podem determinar por decisão, seja por parte do terapeuta ou do paciente”.41 Da mesma
forma, a hierarquia da experiência não pode ser submetida a qualquer decisão lógica. É
necessário, simplesmente, desencadear a sensação sentida e, assim, a sabedoria corporal
se encarregará de fazer com que essa sensação sentida encontre o seu desenrolar,
provocando as mudanças.
Sendo a característica essencial do trabalho terapêutico a sensação sentida e não
os conteúdos psíquicos, é importante consolidar que, segundo Gendlin, o processo é
39
Idem, p. 170.
Idem, p. 171.
41
Idem, p. 172.
40
mais importante que o conteúdo. Definitivamente, esses conteúdos são secundários ao
viver. Por isso, a atenção deve ser dada à maneira de viver, ao fluxo corporal.
Dessa forma, Gendlin nos adverte sobre os quatro tipos de trabalhos terapêuticos
para, então, situar o seu. Em termos específicos, temos aquelas terapias que trabalham
com o corpo, com o aspecto físico, cujos exemplos podem ser a Yoga e as terapias
reichnianas. Essas terapias corporais trabalham mais o desbloqueio dos músculos, da
respiração, etc. Evidentemente, não deixam de constituir um trabalho corporal
importante, porém sem atingir o nível mais profundo do ser humano, que é a sensação
sentida. O segundo plano de intervenção são as terapias que trabalham as mudanças nas
condutas. Para Gendlin, este trabalho terapêutico é desenvolvido pelas terapias
comportamentais. Em terceiro lugar, a grande maioria dos trabalhos terapêuticos se
pautam por se estruturarem em cima de uma relação interpessoal. Neste caso, a
interação dialogal é o suporte para que o cliente tenha condições de reorganizar sua
vida. Entretanto, existe um quarto nível de trabalho, que dá atenção à experiência
dinâmica imediata, pré-verbal.42, no qual se encontra o objeto do trabalho terapêutico de
Gendlin, que definirá a natureza da terapia.
A última questão que merece uma observação é decorrente da análise anterior
sobre a natureza da terapia. A pergunta que surge é a seguinte: qual a finalidade da
terapia?
Para respondermos a essa questão, relembremos a posição central de Gendlin de
que o incômodo das pessoas se encontra no corpo, sendo, portanto, física. À luz desta
condição, tem-se que todo o objetivo da terapia será se preocupar em criar mecanismos
de acesso a esse incômodo físico e provocar o desbloqueio desse incômodo.
Ora, se a preocupação do terapeuta experiencial é a sensação sentida (felt sense),
faz-se necessário criar um caminho diferente para se atingir essa sensação. A esse
processo Gendlin dá a denominação de focalização (focusing). Em suas próprias
palavras, “se quiser mudá-la, será preciso recorrer a um processo de mudança que
também seja físico. Esse processo é a focalização”.43
Diante de todas essas observações, chega-se ao entendimento de que o caminho
que percorremos nos mostrou a grande originalidade do pensamento de Eugene
42
43
Gendlin, E. Experiential Psychotherapy. In: Corsini, R. op. cit. p. 254.
Gendlin, E. Focalização, op. cit. p. 56.
Gendlin. Isso, certamente, explica o fato de se tratar de um filósofo muito reconhecido
nos Estados Unidos e em alguns países de língua espanhola, como Espanha, Chile,
Argentina e Equador. Infelizmente, é pouco divulgado no Brasil. Acreditamos, porém,
que, talvez num futuro próximo, a partir da repercussão do seu livro sobre a técnica de
focalização, já traduzido em língua portuguesa, possamos assistir a um desabrochar
desse novo e contundente paradigma para o trabalho terapêutico.
Bibliografia:
ALEMANY, Carlos. De la psicoterapia experiencial al Focusing: história evolutiva,
contenidos y aplicacciones. In: Alemany, Carlos (Org). Manual práctico del focusing de
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AMATUZZI, Mauro. Por uma psicologia humana. Campinas: Editora Alínea, 2001.
__________. Rogers. Ética humanista e Psicoterapia. Campinas: Editora Alínea, 2012,
2ª ed.
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________. Existentialism and Experiential Psychotherapy. In: Alemany, Carlos ______,
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________. Psicoterapia Experiencial. In: Alemany, Carlos. ______. p. 143-195.
________. The Client’s Client. The Edge of Awareness. In: Alemany, Carlos. ______.
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MESSIAS, J. Carlos. Psicoterapia centrada na pessoa e o impacto do conceito de
experienciação. Tese de mestrado inédita. PUC Campinas.
ROGERS, Carl. Dialogues. Diálogo entre Carl Rogers e Martin Buber. In: Revista da
Abordagem Gestáltica, vol. XIV, n.2, jul./dez. 2008,p. 233-243.
TEIXEIRA, J.A. Carvalho. Introdução à psicoterapia existencial. In: Análise
Psicológica, vol. 24, n. 3, ano 2006, p. 289-309.

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