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7faces caderno-revista de poesia Natal – RN, Ano 3. Edição 6. Jul-Dez. 2012 ISSN 2177 0794 Obra da homenageada Poesia Andanças (1970) Uma via de ver as coisas (1973) Menina seu mundo (1976) Jardins (esconderijos) (1979) Talhamar (1982) Retratos da origem (1988) Poemas da estrangeira (1996) Poemas em fuga (1997) Poesia Reunida (1999) Hídrias (2005) O leque (2007) Appassionata (2008) Transpoemas (2008) Ensaio Tauler e Jung: o caminho para o centro (escrito em parceria com Hubert Lepargneur) (1997) Cartografia do imaginário (2003) 7faces caderno-revista de poesia Natal – RN Sucumbo a essa linguagem que ultrapassa palavra, silêncio e é vida. Dora Ferreira da Silva, Appassionata sumário Apresentação A poesia, uma via de ver as coisas 11 Por Pedro Fernandes O lirismo dos afetos e da memória na poesia de Dora Ferreira da Silva 22 Por Alexandre Bonafim Felizardo Vias de ver as coisas 1 Ricardo Dantas 40 Davi Araújo 47 Tiago Duarte Dias 60 Adriano Winter 62 Guerá Fernandes 71 Joice Berth 78 Marco Polo Guimarães 81 Dora Ferreira da Silva: recortes 1 89 Entremeio O projeto criador em Dora Ferreira da Silva 99 Por Euryalo Cannabrava Vias de ver as coisas 2 117 Ianê Mello Pedro Belo Clara 119 Rosane Carneiro 125 Carina Carvalho 129 Paulo Lima 134 Natalia Turini 137 Luís Garcia 148 Estudos e devaneios 152 Por Jordny Um caderno para Dora 161 Vias de ver as coisas 3 Paula Cajaty 172 Nuno Júdice 174 Amosse Muscavele 183 Carlos Margarido 188 Amélia Luz 192 Paulo Vitor Grossi 196 Renata Bomfim 200 Dora Ferreira da Silva: recortes 2 207 Dora Ferreira da Silva: inéditos 225 O mundo em poesia 241 Por Inês Ferreira da Silva Bianchi apresentação A POESIA, UMA VIA DE VER AS COISAS No começo de tudo, quando a palavra e o mundo estavam fundidos e as linhas entre um e outro, portanto, não se difundiam, a poesia estava na matéria do gesto, no pulso do corpo em êxtase, no lugar do divino, numa dimensão, por isso, dada a poucos. Todo poeta, é por essa razão primordial, um geômetra do universo, e o seu exercício escritural nunca poderá está reduzido ao movimento da letra desdobrada uma após outra no espaço amplo do branco da página. Se assim ocorre o universo será estrutura opaca, um defeito, uma mancha dispersa presa no papel. Aliás, a poesia não pode está reduzida ao desenho da forma informe ou do sentido invertebrado do texto. Ela deve conspirar e ter pulso para saltar da superfície lisa da folha e ser matéria pulsante, suspensa, atmosfera capaz de atuar no desempenho do corpo humano, pela lágrima, pelo riso, pelo gozo. É nesse instante que ganha, a palavra, seu real lugar no complexo sistema a que pertence e se ilumina a ponto de refundar o sujeito e o ser. O poeta enquanto feitor do poema, instante em que primeiro se prime em suas fronteiras as possibilidades da poesia, é somente aquele capaz de conviver no limiar de uma epifania constante que lhe permita está cercado do tempo primordial; epifania que é um fenômeno do espírito e diz uma maneira de estar locado e simultaneamente deslocado. Um pulso de iluminação. Não há, para isso, leis próprias, fórmulas prontas de se ensinar. Há para isso a necessidade do poeta ser feito pela vivência da palavra e seu denso universo fulgurativo. 7faces – Pedro Fernandes │ 11 Não é poeta aquele que se derrama pelos cantos, que faz histórias de histórias pintando o papel de ponta leste a oeste de berros de amor, de factoides vazios, porque o amor e as vivências são coisas moventes, sentidas mas impossíveis de sua partilha como cópia fiel pelo dorso da palavra. Nunca o poema será mímesis se o poema é sempre criação. Também não é poeta o que quer ser qualquer coisa que o valha, inclusive poeta; poeta não é profissão, é modo de estar no mundo. A busca cega pela forma, fruto de um encantamento pela palavra e uso inadequado das maneiras do tecnicismo que suprime o próprio pulso da letra, da voz que lhe antecede, é vã; terá e tem levado muitos por descaminhos que nada tem do poeta e da gesta do poema. A busca do poeta que deve se dá pelo dorso da palavra é a de se reaproximar do estágio genesíaco do universo e os únicos guias nessa empreitada são ele próprio e sua vontade de experimentar-se pela boca dos seus antepassados, aqueles que fundaram e ultrapassaram a esfera do tempo comum e se fizeram eles mesmos tempo. Por motivos como estes, ninguém melhor que Dora Ferreira da Silva para ser homenageada neste caderno-revista. Não é que a poeta tenha uma obra alheia a si e ao mundo empírico, mas ela é o constante estágio de epifania entre este e o lugar genesíaco. Sua poesia parte das dissonâncias existenciais, e só este instante já é de natureza poética, para ultrapassá-las e alcançar um instante único na extensa rede de vozes dos seus antepassados. Alimenta-se de um teor estético e renova o diálogo esquecido pelos estetas da forma, o que não quer dizer que esse trabalho de elaboração esteja ausente na sua obra; do contrário, talvez até esteja mais que em outros, porque a poesia de Dora se guia pela experimentação e refiguração do simbólico que ora se manifesta no poema através da composição linguística, ora através do corpo estrutural do texto. Sente-se, que sua poesia é muito estudada e talvez por isso consiga cumprir o seu papel no universo da linguagem e fora dele: que é o de promover o reencontro do sujeito com outros lugares e a partir daí seja encorajado pela descoberta do universo primordial reencontrado por Dora. Pedro Fernandes Poeta e editor da ideia Dora Ferreira da Silva (1918-2006) Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles a homenageada “Acho que o papel do poeta é parecido com o daqueles que levam a tocha na Olimpíada. Mesmo que o mundo esteja dessacralizado, temos que acreditar que a vida é forte, transforma-se e cria novas saídas. Penso na imagem de uma flor brotando nos interstícios de uma pedra. Acredito nas diversas manifestações do divino, no anima mundi. Temos que viver este não-ser, esta noite, esta dor como uma passagem. A fidelidade de cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que se tem, ser fiel à sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de suprir essa carência dos deuses.” Dora Ferreira da Silva. Entrevista a Donizete Galvão publicada na Revista Cult, maio de 1999. Dora Ferreira da Silve teve, dos 87 anos que viveu, mais de 50 deles dedicados à poesia. É autora de uma voz única na literatura brasileira e, por esta razão, está ao lado de grandes nomes, como o do amigo de correspondências Carlos Drummond de Andrade, poeta que, na sua grandeza é matéria única de comparação na nossa cena literária. Além de poeta, foi ensaísta e tradutora, devendo, nós os leitores brasileiros, o contato direto com nomes com Rilke, T. S. Eliot, D. H. Lawrence, Hölderlin e Jung. Como editora coordenou juntamente com o seu marido, Vicente Ferreira da Silva, a revista Diálogos. Em sua casa, coordenou o Centro de Estudos de Poesia Cavalo Azul, nome que lhe servirá para um periódico editado a partir do grupo. Sua obra foi premiada três vezes com o Prêmio Jabuti e em 2000 recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio pelo conjunto da obra, representado na antologia Poesia Reunida. © Vicent Van Gogh. Almond Blosson. 1890 Nascimento do poema É preciso que venha de longe do vento mais antigo ou da morte é preciso que venha impreciso inesperado como a rosa ou como o riso o poema inecessário. É preciso que ferido de amor entre pombos ou nas mansas colinas que o ódio afaga ele venha sob o látego da insônia morto e preservado. E então desperta para o rito da forma lúcida tranquila: senhor do duplo reino coroado de sóis e luas. Dora Ferreira da Silva, Andanças O vento Na palma do vento pouso a fronte. Nele confio. A quem confiaria senão a ele este rude labor? Abandono-me à tormenta (lumes mastros gaivotas do mar próximo). Enreda-me a noite. Mas dele são os dedos leves que me fecham os olhos. E é manhã. Dora Ferreira da Silva, Jardins (Esconderijos) Capa de Poesia Reunida, de Dora Ferreira da Silva publicado em 1999. Imagem: Arquivo 7faces Órfica Não me destruas, Poema, enquanto ergo a estrutura do teu corpo e as lápides do mundo morto. Não me lapidem, pedras, se entro na tumba do passado ou na palavra-larva. Não caias sobre mim, que te ergo ferindo cordas duras, pedindo o não-perdido do que se foi. E tento conformar-te à forma do buscado. Não me tentes, Palavra, além do que serás num horizonte de Vésperas. O lirismo dos afetos e da memória na poesia de Dora Ferreira da Silva Por Alexandre Bonafim Felizardo Dora Ferreira da Silva, em parte considerável de sua obra, rendeu grande importância às temáticas da finitude da vida, do transcorrer do tempo, da força pulsante da memória, força essa capaz de resgatar experiências mortas e de desafiar a inexorabilidade da morte. Com efeito, pode-se afirmar que a sensibilidade poética de Dora sempre esteve atenta ao furor do tempo, à efemeridade da existência humana. Dessa forma, em muitos de seus poemas, o tempo torna-se fonte de seu lirismo, a matéria poética essencial de sua escrita. Em decorrência disso, a memória também assume grande importância na obra da escritora paulista. Em muitos poemas, a reminiscência é responsável pelo resgate do que já não mais existe. O eu lírico dos textos de Dora tem uma sede imensa de passado, um desejo de resgatar o que se esfacelou na poeira do tempo. Há, portanto, na obra de Ferreira da Silva, um embate do ser contra o tempo, do ser contra o próprio nada. Ante o vácuo das ausências, ante os escombros do vivido, a poeta intenta instaurar a totalidade 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 24 da vida, ou seja, a poesia. Dessa forma, em muitos textos, o lirismo delineia as forma do não vivido, do inexistente, e fixa, na malha da escrita, instantes reveladores da existência, instantes de plenitude e iluminação. Uma aguda consciência do instante delineia essa busca pelo passado e emoldura o momento, revelando-lhe toda a carga lírica e a beleza. Dessa forma, o passado irrompe no presente como uma verdadeira fulguração, como um rasgo de luz que ilumina, por pouquíssimo tempo, o presente. O passado torna-se símbolo, linguagem, revelação. Ele conduz o presente e norteia-o, revelando-lhe significados e sentidos. O pretérito torna o agora fecundo, transforma a existência em um reservatório de experiências. Com efeito, o eu lírico da poesia de Dora adquire uma grande sabedoria, uma vivência aguda da condição humana. Conforme aponta Arrigucci Júnior, o esquecimento transforma o vivido em sombra passageira, em símbolo instantâneo do viver do homem: O presente pode então ser apreendido na forma de um momento poético, convertendo-se em símbolo: síntese de uma totalidade ausente que, no entanto, se presentifica por um resgate da memória numa súbita iluminação do espírito, numa imagem fulgurante e instantânea, que se vai perder em seguida. O que passa se faz símbolo. E na breve fulguração dos símbolos, se recobra o que se esfumava na zona de penumbra da memória ou jazia de todo adormecido no esquecimento. Plenitude passageira do que foi ou está indo e agora vira imagem [...]. Contra o fundo de sombras da memória, que é também da morte e do esquecimento, brilham por um instante as imagens simbólicas. As imagens, passageiras como as sombras. (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.32) A memória sempre resgata um instante iluminado, epifania viva do passado a se incrustar no presente, aprofundando as vivências existenciais do agora. Entretanto, a acompanhar esse prazer do agora, ou melhor, do passado presentificado no presente, há sempre a corrosiva consciência da efemeridade de tudo o que existe. Conforme aponta Arrigucci Júnior, a “memória épica recupera para a contemplação lírica o que passou, trazendo de volta à consciência e à luz do presente um instante dissolvido na corrente do tempo [...]” 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 25 (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33). Esse senso de transitoriedade fará com que Dora passe a perceber o agora com maior afinco. A percepção do momento presente torna-se aguçada, intensa. Dessa maneira, o eu lírico de muitos poemas da autora paulista passa a usufruir o presente, esgotando-lhe as possibilidades de vivência. O instante é desfrutado com todo o furor, com toda a intensidade, pois em breve ele se tornará cinza morta, ruína perdida. A velha temática do carpe diem ressurge nos poemas de Ferreira da Silva, imprimindo um senso de aventura ao agora. Eis o que novamente pontua Arrigucci Júnior: “[...] a necessidade de gozar o presente antes que a vida fuja parece adquirir [...] a dimensão materialista do velho tema pagão do carpe diem, pois se liga diretamente ao prazer material dos sentidos, numa espécie de negaceio erótico que torna o instante presente inadiável.” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33). Há um livro de Dora, sobretudo, em que a temática da memória é essencial, é o próprio cerne da escritura. Referimo-nos à bela obra intitulada Retratos da origem. Nesse volume, Dora faz uma escavação não apenas de sua memória pessoal, subjetiva, mas de toda a sua linhagem familiar, indo ao tempo mais remoto, instante fecundo e originário de onde irrompeu o primeiro homem, o ser primevo universal que gerou a humanidade inteira. Esse limiar originário, intraduzível, é metaforizado por uma porta onde o eu lírico bate, na busca do enigma da existência: “Arco etrusco/ lanterna alta/ aldrava/ Bato à porta da origem/ lá/ onde nenhum passo ressoa/ vindo ao encontro/ lá/ onde nenhuma voz ecoa/ no alegre dialeto/ que ri” (SILVA, 1999, p. 187). O resgate desse passado longínquo desvela por sua vez o tempo auroral das origens, instante forte da cosmogonia, em que tudo é nascimento, esplendor, regeneração. Esse instante zero do existir de tudo, conforme Mircea Eliade, é reatualizado pelos mitos, reincerindo tal plenitude das origens no agora morto e envelhecido. Assim, o tempo mítico, tal como o tempo dos textos de Retratos da origem, é cíclico, não linear. Daí a consciência sacra desse momento primevo e a percepção da degenerescência de nosso mundo atual, capitalizado e conspurcado: “Sinto no ar o odor de um fogo arcaico/ sacro/ estou com frio/ nesse mundo pós-atômico de cinzas” (SILVA, 1999, p. 187-188). Tal livro, portanto, inicia-se com o mergulho, enfim, pelo interior além dessa porta, numa metáfora pela qual a busca da perenidade encontra uma simbologia de sensível plasticidade e lirismo: “e entro/ na Origem solar/ aquém (além)/ do mundo em trevas” (SILVA, 1999, p.188). 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 26 A partir de então, nos poemas que se seguem, Dora irá narrar a saga dos Bulliarattis, família arcaica de suas origens genéticas, até atingir o momento de sua infância, em Conchas, e de sua vida madura, em Itatiaia. No ínterim dessa longa travessia de uma memória iluminada pela imaginação, a poeta de Retratos da origem lega-nos momentos de altíssima poesia, em que os antepassados mortos surgem resgatados pela força nomeadora da palavra lírica, palavra essa capaz de fazer renascer os que já não mais existem, tornando-os poesia. Com efeito, cenas da infância do eu lírico (fulgurações biográficas da própria autora), irrompem da página, em instantes de iluminação, em metáforas configuradoras do fluir do tempo e da busca da perenidade: O rio de Conchas Sua margem de conchinhas corre descuidado Nele flutuou uma pluma mínima que a Menina viu chorando por esse destino incerto à deriva com saudades de lá e de cá Ela corria seu avô dizia: “Pra que chegar à estação antes do trem?” Mas quem - Luigi Locchi – não quer voltar à concha de um princípio qualquer seu próprio fim?” (SILVA, 1999, p.215) A pluma a correr pelo rio serve como correlato objetivo da saudade, nesse poema tão ao estilo de Eliot, em que imagens díspares são justapostas num mosaico fluido como a própria memória afetiva. A pergunta final entrecruza os tempos primordiais do existir, metaforizados pela concha, e o instante da morte expresso pela palavra fim. No princípio está o início e vice-versa, na exposição daquilo que Ivan Junqueira intitulou de pantempo, instante epifânico em que a poesia desvela a agudeza do existir humano. Junqueira chama a atenção para a mistura temporal que marca o início do poema “Four quarterts” de Eliot. De acordo com o poeta 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 27 brasileiro, nesse poema de Eliot, o passado, o presente e o futuro embaralham-se, quebrando a linearidade cronológica da existência. Tem-se, dessa forma, no poema de Eliot, aquilo que Junqueira (1998, p.84) chamou de pantempo. O pantempo seria um momento totalizador, em que se aglutinam, em um único bloco, as sequências temporais: futuro-presente-passado. Evidentemente, o pantempo não acontece na realidade objetiva, mas sim na imaginação lírica. Trata-se de um mito poético capaz de aliviar a angústia ante a finitude humana. Eis o início do poema de Eliot, na tradução de Junqueira: O tempo presente e o tempo passado Estão ambos talvez presentes no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado. Se todo tempo é eternamente presente Todo tempo é irredimível. (ELIOT, 2000, p.199) Dora, portanto, em seu livro, cria uma obra circular, em que tempos díspares se consubstanciam, formando um tempo privilegiado, o tempo da poesia. O ciclo de poemas que encerra Retratos da origem, os “Cantares do Itatiaia”, possui um tom erótico eloquente, em que o passado amoroso é configurado como um carpe diem, um idílio bucólico vivido no seio da natureza. Dessa forma, toda a palpitação, todo o frêmito desse instante regresso irrompe, com grande plasticidade, pela força pictórica da palavra lírica: As estradas eram vazias nasciam súbitos jardins ao passarmos abraçados Nos entrançados da mata ferias ramos e folhas com espada de prata para abrir-me caminho Gritavas (tua voz ecoava): - Dai-lhe passagem é minha Amada e Origem! Numa clareira pousaste (eu me lembro) um cravo Entrancei estranha melodia 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 28 © Joshua Sam Frank ao canto das rolas ao murmúrio dos rios e o timbre mais cálido suscitava amoras Tudo o que foi parece mais forte que esta hora [...] (SILVA, 1999, p. 222-223) O apelo da memória presentifica o passado, dando uma concretude viva e plena à experiência pregressa. Dessa forma, nos três versos finais do excerto citado, o que se perdeu na vacuidade do passado torna-se mais forte que o agora. O passado configura-se amplo, agudo, como um fato que se dá no instante já. Conforme José Paulo Paes: [...] na parte final do livro Cantares de Itatiaia, presente e passado se misturam intimamente, como o dá a perceber a constante alternância do imperfeito e do perfeito da rememoração com o presente do indicativo da sensação. Selando essa unidade, que faz do “foi” um “ainda é” indistinguível do “é” puro e simples, está o Amor, no entanto celebrado como ausência do Outro e incompletude por falta dele [...] (PAES apud SILVA, 1999, p.412) Retratos da origem, portanto, é o livro em que Dora mais esmiúça sua memória, numa elaboração poética de fina arquitetura, em que tempo e espaço flutuam no embaralhamento dos versos, quebrandose, assim, a linearidade histórica e a imanência concreta dos espaços. Assim, passado, presente e futuro consubstanciam-se numa mesma unidade, da mesma forma que os mais diversos espaços pretéritos são presentificados, como cenários vivos de uma escrita a arder o passado como um presente perene. Daí a configuração do eu lírico como uma “mendiga de lembrança”: Uma flecha trespassa a manhã de brumas mendiga da lembrança (nada se perdeu de música e vento!) 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 30 Mas o timbre de vozes agora soa estranho ao som de outras manhãs que tempo e espaço quiseram separar de um tecido eterno (SILVA, 1999, p. 225) Apesar do tempo e do espaço apartarem as manhãs do “tecido eterno”, o poema, contraditoriamente ganha a alta tarefa de justamente fazer o contrário, ou seja, de tecer as manhãs pretéritas num instante perene. Escrever para Dora, portanto, é um gesto que rastreia o sagrado, na procura de uma permanência capaz de resguardar o vivido da voracidade do tempo. O poema, assim, não é apenas um registro da memória, é, antes, uma escritura que desafia a contingência e a caducidade da condição humana. A palavra, para além de sua limitação, ganha corporalidade na página, como um registro vivo, pleno, a resgatar o instante de sua precariedade. Com efeito, conforme podemos notar, o tempo é uma das forças temáticas de Dora e ela faz da condição humana o motivo central de sua poética. Confirmando, assim, as palavras de Weisskopf, para Ferreira da Silva, o mistério do tempo revela-se como algo instigante e, a despeito de sua natureza incompreensível, serve-lhe como fonte de questionamentos: O ser humano, supostamente vinculado aos trilhos do tempo, questiona e interroga sem cessar. A dor e a alegria são as companheiras que fermentam suas expectativas, suas descobertas e ilusões. A necessidade de conhecer, no entanto, de penetrar o âmago do mistério, é maior e mais forte do que todas as vicissitudes que nos acompanham. Vivemos no tempo e não sabemos o que ele é. As especulações vêm de muito longe, de antigamente, no tempo de sempre ser. Da Antigüidade Clássica à Idade Média, do alvorecer do pensamento científico aos paradoxos inconciliáveis da ciência dos nossos dias, o tempo permanece hierático, como o maior de todos os mistérios, maior que os mistérios do amor e da morte, porque o mistério do tempo é da mesma estirpe do mistério de Deus. (WEISSKOPF in HOISEL, 1998, p.56) Todo saber, sistemático ou não, apenas roça a superfície desse grande mistério que é o tempo. Por isso todo conhecimento sobre o tempo, acumulado pela humanidade desde a era clássica, nunca se torna ultrapassado. O saber sobre o tempo é um saber autocentrado, 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 31 que se multiplica, nunca havendo um desvendamento total da natureza da temporalidade. O que o filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso afirmou sobre o tempo persiste, ainda hoje, como uma verdade. Da mesma forma, a concepção existencialista do tempo encontra guarida em nossa era e não ultrapassa nada do que foi afirmado sobre o tempo anteriormente. Eis o que afirma Weisskopf: O mistério do tempo é tão profundo e sério, que nem mesmo aquilo que já foi pensado antes sobre ele pode ser refutado ou substituído por idéias novas que tornem obsoletas as mais antigas: tudo o que já se disse sobre o tempo continua válido – ou não tem validade alguma. Suspeita-se que o estudo do tempo seja como um novelo sem pontas, uma meada sem começo nem fim: podese iniciar sua abordagem por qualquer ponto e o final, se houver, talvez seja o mesmo lugar por onde começamos. Os pássaros voam no ar e não o vêem, os peixes vivem na água e não a percebem, o espírito do homem está inserido no tempo, mas tem sido incapaz de compreendê-lo. (WEISSKOPF in HOISEL, 1998, p.56-57) Dessa forma, a preocupação com o tempo é arquetípica. Ela pertence à mesma natureza das indagações sobre o mistério do amor, do ódio e da morte. É um tema metafísico que está no cerne da vida, mas que ao mesmo tempo mantém o homem à margem de sua verdade. Dora, assim, aguçando sua perplexidade, a surpresa sempre viva diante dos fenômenos da existência, legará à preocupação existencial sobre a efemeridade da vida parte considerável de sua escrita, num permanente questionamento sobre a condição do homem, num arrebatado jogo corpóreo com o próprio mistério do tempo. Há um poema, sobretudo, dentre vários, em que a questão do mistério do tempo é esboçada com ênfase. Trata-se do terceiro poema de um ciclo intitulado “Ribeirão das Conchas, minha cidade”. Nesse texto, o tempo é desvelado no seu avassalador mistério, em sua alteridade intransponível. Ele é de certa forma espacializado, ganhando uma dimensão concreta. Dessa forma, pela memória arrebatada de um regresso à sua cidade, o eu lírico se percebe além do próprio tempo, no cerne do incognoscível: Desci a ladeira da rua principal 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 32 olhos semicerrados. Sol do meio-dia despejava luz e sombra nas calçadas. Não sei para onde eu ia, acho que te procurava por toda a parte e não te via. Conchas não é passado presente futuro. Conchas é todo mistério: ruas claras cemitério. Conchas é amor reencontrado mudada a fisionomia de outra tarde outro dia outra noite com estrelas. Não sei o que foi então aquela taquicardia – meu coração galopava em alguma direção. (Houve um tremor de terra em escala bem modesta). Era Conchas refletida num pequeno coração? E nós duas abraçadas chegamos ao fim da ladeira uma sentindo na outra o tremor da mesma vida. (SILVA, 1999, p. 288) A memória da voz lírica, perante a cidade do passado, plasma um tempo sem tempo, instante vivo da memória, em que o mistério se insinua como uma verdade plena. Essa constatação do tempo entranhado no espaço, da memória viva a vertê-lo como uma aparição mágica, exerce sobre o eu lírico um sentimento sísmico, de violenta comoção. Tal epifania nasce da perplexidade de se reconhecer o passado ainda vivo, palpitando na carnadura das ruas da cidade natal. Para Dora, portanto, perceber o transcurso temporal é intrigante, é uma fonte viva de perplexidade e encantamento. Com efeito, invisível, o tempo marcha suas horas sobre os corpos humanos, transformando faces límpidas em rostos repletos de sulcos e tristezas. Silencioso, ele invade os objetos, danificando, pulverizando o que existe. O tempo parece estar sempre ausente da 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 33 vida humana, como se fosse um companheiro que, por sua constante presença, torna-se imperceptível; um companheiro invisível que, no entanto, repentinamente, grita a todos os ouvidos a sua existência. A ampulheta é a representação cabal do tempo. Como os grãos da areia, o tempo transcorre plácido e calmo. Entretanto, cada grão é um pedaço da vida que se despede. Atenta a tal realidade, Dora faz dessa vivência um manancial de inspirações, um instigante tema sempre aceso no centro de suas preocupações. Dessa forma, podemos chamar a autora de Poemas da estrangeira de poeta da memória e do tempo, pois para Dora a existência humana em toda sua amplidão é a fonte de sua escrita. Por sua vez, também os filósofos indagam sobre a capacidade do homem de perceber o tempo, questionam se os seres humanos seriam dotados de algum órgão especial, capaz de detectar a presença temporal. Nesse aspecto, o filósofo Robert Hooke, em pleno século XVII, já pontuava suas indagações sobre a proeza humana que é perceber o tempo: Eu gostaria de saber qual o sentido que nos dá informação sobre o Tempo; pois todas as informações que recebemos dos sentidos são momentâneas, mantêm-se apenas durante as impressões causadas pelo objeto. Portanto, falta ainda um sentido para apreender o Tempo; nós temos uma Noção, mas nenhum de nossos sentidos, nem todos juntos, nos dão a idéia do Tempo, porém nós o concebemos como uma Quantidade... Considerando isso, temos a Necessidade de imaginar algum outro Órgão para apreender a Impressão feita do Tempo. E isso, creio que não passa do que geralmente chamamos de Memória; e imagino que essa Memória seja um Órgão como o ouvido, o Olho ou o Nariz, e que tenha sua Situação em algum ponto próximo ao Lugar onde os nervos de outros Sentidos coincidem e se encontram. (HOOKE apud WHITROW, 2005, p.35-36) Hooke, portanto, coloca a memória em situação de prestígio: é ela que capta o tempo, é ela que nos faz perceber o transcurso das horas. A memória é, portanto, a aptidão essencialmente humana que nos faz sentir a duração temporal. Sem memória, nós não teríamos a consciência do tempo e nem da morte. Hooke coloca a memória 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 34 como um atributo mais importante que a percepção do futuro. O futuro só pode ser apreendido pela imaginação ou por previsões, pois ele é, sobretudo, o desconhecido, o imponderável. Já o passado registrado pela memória é o tempo adentrado, encravado no cerne do humano, é o tempo íntimo das recordações, tempo demasiadamente humano. A memória dá ao homem a noção de profundidade que o tempo possui. Dora simplesmente explora tal questão, numa entrega arrebatada a reminiscências vivas, plenas de um sentido fecundo, de uma compreensão clarividente de nossa realidade física e espiritual. Por isso a memória ganha tanta expressão em sua obra, é por ela que a poeta, portanto, recorta-se no fluxo do tempo, para expressá-la no congelamento de instantes simbólicos, repletos de emoção e arrebatamento. Nesse aspecto, muito semelhante à escrita dos simbolistas, os cenários de Dora, em alguns textos, ganham a expressividade dos apelos sinestésicos, como se a memória precisasse arder pelos cheiros, pelo olhar, pelo som. A poesia da escritora paulista é, portanto, densamente plástica, pictórica, conforme podemos antever no Poema “O aroma...”, texto no qual a memória ganha viva expressão plástica graças aos apelos sensoriais: O aroma circunda pessegueiros em meio à chuva. Lembranças sopram mais que o vento e a Criança desata os cabelos. Rostos esparsos sorrisos afagos de mãos tão leves que a neblina pesada parece e tudo se avizinha de um espaço talvez sonhado. Os nomes revoam pássaros; pareciam esquecidos mas em curvas aéreas se revelam tão belos e lembrados. (SILVA, 1999, p. 301-302) No poema, o aroma, a profusão de cores, as texturas e os sopros formam um tecido sensorial de grande imagismo. Nesse sentido, a memória, tão proustiana, ganha ímpeto avassalador: “Lembranças/ sopram mais que o vento”. Os nomes, por sua vez, com a força de pássaros, adejam pelo ar, numa metáfora de grande beleza plástica. A memória está no mundo e o mundo está no eu lírico, formando, 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 35 dessa forma, entre ser, espaço e tempo um rendilhado uníssono, inconsútil. Conforme apontam Jean-Yves e Marc Tadié, “é a memória que faz o homem”, (TADIÉ, 1999, p.9). A memória dá identidade ao homem, é ela que lhe molda a vida, dá nuanças que individualizam o sujeito. Sem memória não há ser, não há paixões, não há amor. A memória torna o mundo habitável, pois ela familiariza os espaços para o homem, permitindo-o identificar o aconchego da casa, do quarto, dos lugares aprazíveis. Sem memória não há amizade, pois sem ela não se poderia identificar e singularizar o rosto querido em meio à multidão. A memória, portanto, é fundamental para o funcionamento da lucidez e da consciência humanas. No poema “O aroma...”, Dora singulariza tais particularidades da memória, ao torná-la cósmica, universal. Com efeito, para Dora, a memória permite, ao homem, encontrar-se enquanto ser; ela agrega os vários eus, as várias personas que tresmalham a subjetividade, permitindo a harmonia, o equilíbrio necessário para a formação do indivíduo. O eu lírico do poema “O aroma...” só se torna possível porque ele se reconhece no passado, porque ele tem na memória elementos que lhe afirmam a própria personalidade. Se não existisse a memória também não existiria a natureza humana, o ser do homem. A dispersão dos acontecimentos o tragaria para uma inconsciência total, para um verdadeiro nada. O ser só pode se confrontar com a morte, com a sua finitude, porque ele pode lembrar-se, pode encontrar-se no mundo enquanto ser. Um outro aspecto da memória dos poemas de Dora seria as suas relações com a imaginação. A memória também se associa ao devaneio, transfigurando o real, imiscuindo no passado um toque de ficção. Nesse aspecto, lembrar é inserir poesia na vida. O passado transfigurado pela imaginação torna-se uma realidade poética. Basta lembrar a importância que a imaginação teve para Baudelaire, que chegou a chamá-la de “rainha das faculdades”. Sem imaginação não há poesia e também não há memória. Nesse sentido, a memória é emoção, sentimento a germinar no espírito de quem lembra. Todo homem possui “uma memória apaixonada que chora, treme e ri, ou que se prende num ódio por ela mesma » (TADIÉ, p.15, 1999). A literatura irá explorar essas relações entre memória e imaginação, fazendo da memória poética (ou da poesia memorialista) uma das suas linhas de força. Conforme aponta Le Goff, é no romantismo que os escritores tomarão consciência do poder artístico da memória: 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 36 O romantismo reencontra, de um modo mais literário que dogmático, a sedução da memória. Na tradução do tratado de Vico, De antiquissima Italorum sapientia (1710), Michelet pôde ler este parágrafo Memoria et phantasia: ‘Os latinos designam a memória por memoria quando ela reúne as percepções dos sentidos, e por reminiscentia quando os restitui. Mas designavam da mesma forma a faculdade pela qual formamos imagens, a que os Gregos chamavam phantasia, e nós imaginativa, e os latinos memorale... Os Gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da memória’. [...] Ele encontra aí a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia. (LE GOFF, 1996, p.463) A memória é, com toda certeza, uma imagética. Nesse aspecto, o ato mnemônico torna-se muito semelhante à própria poesia, discurso pautado, sobretudo, pela imagem. Conforme aponta Bosi, “a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico puro [...], mas de um passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente. A épica e a lírica são expressões de um tempo forte (social e individual) que já se adensou o bastante para ser reevocado pela memória da linguagem” (BOSI, 2000, 131132). Alfredo Bosi irá colocar a busca pelo passado, a força poética da memória, como uma das linhas de força da lírica do Ocidente. A memória, na lírica moderna e contemporânea, simboliza uma recusa ao tempo atual, massificado, tempo em que a reificação do homem torna-se um imperativo. Para o autor de O ser e o tempo da poesia, ao retomar as obras poéticas de Manuel Bandeira e Jorge de Lima, a memória é “uma forma de pensamento concreto e unitivo, é o impulso primeiro e recorrente da atividade poética. Ninguém se admira se a ela se voltarem os poetas como defesa e resposta ao ‘desencantamento do mundo’ que, na interpretação de Max Weber, tem marcado a história de todas as sociedades capitalistas” (BOSI, 2000, p.177). Memória, portanto, é para Bosi, o cerne da própria atividade poética. 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 37 Referências ARRIGUCCI Jr., David. "Braga de novo por aqui". In: BRAGA, Rubem. Os melhores contos. 7 ed. São Paulo: Global, 1997. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991. ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. HOISEL, Beto. Anais de um simpósio imaginário: entretenimento para cientistas. São Paulo, 1998. SILVA, Dora Ferreira. Poesia Reunida. Rio de Janeiro. Topbooks, 1999. TADIÉ, Marc; Jean-Yves. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999. WHITROW, G. J. O que é o Tempo? Uma visão clássica sobre a natureza do tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 7faces – Alexandre Bonafim Felizardo │ 38 Vias de ver as coisas 1 Ricardo Dantas Itabuna – BA Ricardo Santos Dantas nasceu em Itabuna – Bahia, em 1967. Graduado em Letras pela Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI, atual UESC. Especialista em Língua Portuguesa, em Alfabetização e em Educação em História e Cultura Africana e Afrodescendente. Autor do livro de poesias Lembranças de uma infância, publicado em 2004 pela FICC: Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania. É professor de Língua Portuguesa, Artes, Teatro e LIBRAS. Cândido O prisma da tua pele candeia o meu velejar em teu corpo. Apego-me às ternuras frívolas, toscas e irreverentes do prazer. Não enxergo o vagão da razão e deixo-me, propositalmente, ser o foco da tua luz insana, vil e desumana. 7faces – Ricardo Dantas │ 41 Fé Acendi a luz aos pés da terra, conclui oferendas, entreguei palavras e, súbito, vi milagres de uma lança que, como quilha, rompeu o oceano entre dois mundos. 7faces – Ricardo Dantas │ 42 Tecer prazer uma fenda uma renda no corpo... o vestido e o nu pincelam do olhar peniano o prazer Disritmia O passo sem compasso quebrou a vértebra da língua malsã. Vitae O líquido cardíaco jorrou, milimetricamente, a vida. 7faces – Ricardo Dantas │ 44 © Ian Crawford (detalhe)/ Reprodução. Criação Se grilos e argila fundissem sonhos teríamos a terra, essa dona senhora, imaculada em música e herança ancestral. 7faces – Ricardo Dantas │ 46 Davi Araújo São Paulo – SP Poeta, ficcionista, tradutor, ghostwriter e conselheiro editorial. Autor do blog Não Fique São; traduziu Natureza, de Emerson, e Caminhada, de Thoreau (Dracaena, 2010). Atualmente, conclui dois livros de poemas, continuações da trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal. . © Robinson Machado. Eunoia 1. Técnica mista sobre canson. 7faces – Davi Araújo │ 48 Eunoia Piso, benevolente, dentro da Boa Vontade e o reino inteirinho arde em meus olhos quando acendo a luz. Metade dos quinze pedreiros guilhotinados volta para o cândido céu de azul e neve madura de algum fevereiro futuro, mas a obra em fúria continua de cima para baixo já que de tão raso só o teto há longe. Temos vertigem o bastante para mim e o gordo rei xadrez que se joga uma casa por vez. Sou novo, belo e forte. Sou o que eu quiser ser e tudo roço naquela que me endurece. Estou de frente para o meu lado de fora e transaparece que esse castelo vem rubro em minha direção. Tiro da cabeça uma toalha molhada de óptica tinta e o toureio. Ele passa espiralado aos gritos de “olé” dos não-numes. Fantasia fétida, quente, de pedra mesmo. Merda de dragão. É de um bonito dos mais grandes. Tem no meio um roseiral em chamas perfumadas; e em baixo sabe-se de árvores cujas tranças-raízes se tocam comunicantes na superfície, alertando-se em tempo de fugir de tudo o que não é iminente; e, o que é muito natural, modernos bobos parados, aos milhares ao redor do que é tudo. Não? Vai às mil maravilhas o restauro, informa desde o futuro a propaganda rupestre daquela indústria ideal que já fora a menos finita fortificação de que se tem remembrança em cada coração do centauro. E certo deus, aquele que engenha, que por hobby faz filosofias, sai para almoçar justamente quando chego (ou me evita); vai agora quente e apetitoso, na garupa do cavaleiro negro, ser entregue à Senhora Pizza, as bordas de ouro inca emoldurando a circunferência meia banguela, meia burguesa. Um acidente inesperado os atrapalha, e acabam por despencar da minha orelha direita; mas se dou de ombros é que por coincidência não os conhecia e por ter muita caspa, simultaneamente. E por mais normal que isso possa parecer, tive fome quando meio dia. Escalo a flor mais baixa e me estendo deitado sobre a maior de suas treze delicadas pétalas, para, glutão, sorver o pólen. Não sem luta contra o grupo terrorista de abelhas muçulmanas com planos maniqueístas de “bem me quer, mal me quer”, e eu “foda-se”. Foram três vírgula quatorze rounds do meu mais puro fundamentalismo contra os heróis. Depois a sobremesa sem pressa e o café expresso, cem por cento integrais, é lógico. E então um repouso necessário para reatrelar o esqueleto por cima desta minha alma que dura. Desafio-me. Não me amoles. Isto pois estão a reprisar o Tédio no canal 5, com intervalos comerciais e ainda dublado em ornitorrinquês. Defeco um figo inteiro na penúltima parte. Desarvoro aquela maldição. Não é este o mundo do imediato? Faço de conta que entendo tudo o que vejo, mas apenas para ser do contra. É uma era que se ainda não foi, será desistida. Sei-o; saco! Como não desconfiar de tantos tempos instantâneos e lugares logo ali? Refugos fugazes. Em poder de um remoto controle sobre o que me entra pelas vistas, deixo-me possuir. Vendido, vou às últimas consequências dos meus atos falhos, subliminarmente mental, sedentário sem sequer piscar, até que afinal me dou por ligado aos telefonemas sem fundos. Vocálicos, meus dedos da mão sentidos como se cinco cores desde a laringe. Vibração. Oníricos, uns pássaros a despertar acordes. Então, passo a tarde em busca do fantástico, a visitar bibliotecas, museus e zoológicos. Desconfiado, descortino os números e ingresso no espetacular: esquinas de ângulos retos, chãos aprumados pelos ires e vires do devir, tragédias aéreas e velórios fosforescentes, definições de amor de dicionário, conexão rápida e segura como um genital plastificado, a cura para a ruga e a fuga para o nunca, águas de colônia, colônias de férias, voto nulo, as casas próprias e os carros usados, sorteios milionários com dez chances de ganhar, tanques de pesca e diversões eletrônicas, viagens parceladas, sucessos de bilheteria, todo o porvir que conheço de longa data, todo o todo o todo o todo, todas as igrejas do deus único funcionando trinta horas por dia. A vida não acontecendo. Não sei nada disso de cor, digo-o cordialmente. Eis tudo que me é caro demais, desmascarado. Seja obra de mão de barata, seja massa de manobra pacata, “Consumir é comparecer!” “Faça isso!” “Venha conosco!” Antes de se matar, experimente fumar pedra e saltar sem paraquedas! Um lê: o fim da saciedade é a felicidade comum da sociedade. Os outros aplaudem felizes. É o começo. Cópias do que apenas parece original, nenhuma metamorfose nem defeitos especiais. Sonha-se em série na velocidade do verossímil. Supersim, megaé, hiperjá. Por que não? É quando quebro a máquina na quina da queda. E apenas não vomito o que não comi. Dado meu hálito ruim demais, recomenda-se aos nobres limparem muito bem os narizes. Aos plebeus já não se recomenda coisa alguma, por já não serem medievais o suficiente. Há tecnologias como magias. Várias parafernálias ferrosas com estrondos silenciadores. Precipito-me em câmera lenta. Vou indo andar de pé, no que há passos e giro o caminho-verbo. Distancio-me dos cansativos trabalhos que deixo ao léu aberto do próprio andamento. O céu franze a testa em tempestade sobre mim e sobre o que é mais telúrico sob mim. Rendo culto úmido aos campos cultivados pelas centenas de milhares de minhocas que me saúdam sem que eu saiba diferenciar se o fazem com a boca ou o cu. E é uma dúvida recíproca. A paisagem é tão salutar que até tem certo ar de oxigênio. Intangível, porém tragável. Tanto que, de repente, de forma estranha chego a respirar quase que involuntariamente. Um gesto sutilíssimo que não passa despercebido por ela, uva que passa: a Mulher Magenta. Está vestida apenas com a poeira da vinda, os cabelos se embaraçando no vento, linda. Ser de carne, muita. Reconheço em sua mirada sanguinolenta o dom de tocar cachimbo. Veio de não sei quando até o onde exato. Sou ali entre ela, que claramente se aproxima, e a sombra que cresce atrás de mim a cada passo seu. [Atrás de mim, andei quilômetros]. Com olhos novos a cada piscada, ela pisa displicente [sente] sobre o que ainda nos separava. Aprofundando-se em meu espírito, acha graça por eu me perder em seu tão pequenino sorriso. Toma-me pela mão de escrever (a de colar), que lava com as lágrimas mais quentes de carinho e dó. Não se pronuncia, mas cala em mim. Corta-me os dois dedos de prosa e, sem fazer doer, tampa com eles os meus ouvidos. Então empunha seu instrumento, o grande cachimbofone. Preenche-o com suas grossas sobrancelhas que um raio mergulha do alto para acender. Traga com demora a mais longa nota e assopra no ar a turva melodia esfumaçada que apenas vejo. E logo o entorno enlouquece e toma as cores daquele som, as nuvens, o sol e o céu. Faz treva com intensidade e estamos sós. Beija-me, então, em silêncio sem paixão, pois tampouco tem língua. Toda a construção em andamento resumia-se à minha ereção, que ato contínuo ela afaga para introduzir em si com a delícia morna daquela sucção. Há então os movimentos [os movimentos], para ela e para mim, de pé e sobre o chão. Até o improvável, quando todo o corpo da Mulher Magenta é ejaculado para dentro do meu sexo atônito. Mais impossível ainda se dá quando, ao tomar meu próprio pulso, já agora dobrado, percebo não estar mais sozinho. Destapo os ouvidos e ouço-a, ríspida, dizer desde o meu ser: “não ouse morrer, pois nascerá de novo!” Depois do que a sua voz apenas silencia, pelas próximas milhões de horas esparsas em que envelheci em companhia do Nada, cantando este relato, mentalmente. “Aprisione-me fora de mim”, meu último desejo, era a frase que dava início ao término disso aqui, uma confissão de culpa derradeira. Para só em seguida se dar a verdadeira perda de contato com quaisquer das realidades, inclusive aquelas das quais eu ainda me orgulhava um pouco, apesar de tudo. Era um erro. Aconteceu que, por falta de outra saída, fui obrigado a recorrer àquilo ainda verde em mim, que em seu egoísmo encarnava tudo ao que eu mesmo estava indissoluvelmente suscetível. E afinal a voz, já então velha, sem antes me chamar, apenas a atender o meu Eu terminal, ressurge desde o meu interior nunca esquecido e já arrependido a me dizer “siga-me”. E então ando trôpego tateando o vazio, tateandando através do que já não era Eu em mim, na absoluta escuridão a lutar contra o luto do que já fui por uma chance além do alcance, em meio a incerteza de cada penúltimo e último passo adiante, só no meu próprio plano, humano, maníaco. Até que um medo por não estar só outra vez me levou de novo ali, àquela dúvida de infinitos pontos finais. E a desconfiar até dos meus pensamentos, pensei estar sendo seguido. Foi quando bati a cabeça contra algum vazio mais sólido, tão denso de Nada quanto o resto Dali, e igualmente tenebroso. Eu terminava bem ali. A li. Nada me restava, e fartava. E sem qualquer vontade que não fosse um ato de automisericórdia, invoco o que me resta de vida com a intenção de expulsar da cabeça essa mesma vida. E por um instante, ao longo do gesto fatal, duro toda uma nova juventude e há experiânsia. Uma morte completa, mera aniquilação do ser que investe de cabeça contra si mesmo rumo a tão sonhada e senhada ataraxia encontra meu fim sem meios de não recomeçar, pois, assim que piso lá, [de si, dó] ascendo à Luz. Parque Novo Mundo - Outono de MMXII 7faces – Davi Araújo │ 58 © Robinson Machado. Eunoia 2. Técnica mista sobre canson 7faces – Davi Araújo │ 59 Tiago Duarte Dias Niterói – RJ Tiago Duarte Dias tem vinte e dois anos, morador de Niterói, RJ. Atualmente cursa Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense. Escreve com alguma regularidade em seu blog pessoal desde 2007, e tem a paixão pela literatura e pela poesia desde a sua adolescência. Estou vivo há vinte e dois anos. Estou vivo há vinte e dois anos, formado em frustrações, decepções e ilusões. Com um diploma em incertezas, e uma série de promessas não cumpridas, além de paixões e amores de capricho. Tenho a frustração de minha época: como a flor de uma árvore infrutífera, cuja a vida é apenas beleza e aparência. E que se o Tempo, apesar de lento, nos consome, nós zombamos do Tempo, o ignorando... Carrego as decepções de meus pais e avós: metodologia empírica da impotência humana. Todas as suas tentativas de um paraíso, levaram a um inferno um pouco mais palatável, com rancor e tristeza pelo passado perdido. Sou feito de ilusões e de sonhos. Sou mais de um em um só, levado por desejos, que eu mesmo não consigo compreender, e eu, vendo a vida vir verde e veloz: tomo decisões que não consigo mensurar. Tenho vinte e dois anos, e com sorte, mais de meia década de vida anos em que estarei dividido entre dúvidas de ocasião, e recriações em um passado romantizado. 7faces – Tiago Duarte Dias │ 61 Adriano Winter Porto Alegre – RS Nasceu e reside em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Foi vencedor do Femup 2010 e integrou sua antologia. Tem outras coletâneas publicadas nas revistas Germina, Aliás, Eutomia, La Gioconda, Sibila, Separata (México), Triplov (Portugal), Cinosargo (Chile) e Experimenta (Argentina), além de poemas no Jornal Poesia Viva e na série Alfa (Espanha). O açúcar é fúsil se alumens diluem sua armadura mascava acro se cáustico ataque parte a mandíbula frágil albino se fios de refino esfolam aminoácidos inviso, líquido, místico se luz ou amor destilam gotas etílicas de seus átomos 7faces – Adriano Winter │ 63 A roca vara ou cana, tira estreita, rocha, fabuloso pássaro, penhasco marítimo, tala em torno de um mastro, armação de madeira sob imagens sacras 7faces – Adriano Winter │ 64 Meu câmbio melhor moeda é o fogo remunera o amor e a arte tanger o maravilhoso custa caro e ávido é o imposto da felicidade queres ser milionário? arde 7faces – Adriano Winter │ 65 © Hélio Jesuíno Filmagem (tempestade) brisas esgrimam gramas frondes como ondas panos flanam em arames trovões temblam ao longe temporal repercute no pote de plástico (bonança) longo pássaro dos fachos pousa em penínsulas de lajes aragens lantejoulam águas (passeio) sumiço do gris gotas grifam as flores veleiro de aves à deriva na íris (19h) roxo colosso da noite estrelas detêm desesperos 7faces – Adriano Winter │ 68 Reconciliação exilado num relâmpago atiro cabos em teu corpo ponta de língua borda de boca qualquer laço que reconecte meu ser ao teu num fio de fogo mas só o amor (atrátil força) põe cumulus nimbus de acordo eu te perdoo – tu me perdoas cintilo livre beijo-estouro Visão beatífica se a treva despisse seu mistério morreríamos de luz conforme Eliot: “o gênero humano não pode suportar tamanha realidade” 7faces – Adriano Winter │70 Guerá Fernandes Durandé – MG Guerá nasceu em 1968, em Durandé, Minas Gerais. Em 2001 lançou olivro Na Antessala da Fala, um trabalho independente. Do encontro com Editora Multifoco: Mares de ilhas e cores se chove (2008) e Infinito berrante (2009) fechando uma trilogia poética. Em 2010, experimentou um trabalho em prosa, o romance O poço. Em 2012, a nova poesia do poeta está em Pedra de ser canto. lágrima cara tenho essa lágrima levo esse jeito sem jeito de olhar pro chão do meu pai de olhar de lado da minha mãe e a minha gente se gaba de não ter medo de gente se o papo é reto é olho no olho no tato meu povo é gente do bem cara tenho essa lágrima pra chorar depois das palavras 7faces – Guerá Fernandes │ 72 o vermelho do charme tenho jogado tinta nas coisas cantado aos extremos de mim e terrivelmente por pouco não solto ribanceiras poéticas dos meus rasantes indomáveis nossos guerreiros e suas guerras somos todos bem quixotescos em inconfessáveis batalhas e ainda cumpre se preocupar com cartão de apresentação! eu não reconheço esse baralho silêncio às vezes é o atalho deixo esse verso sobre a mesa e mais uma vez saio à francesa 7faces – Guerá Fernandes │ 73 casal moderno ela fala alto ele usa salto simulacro trans porte - se parte par arte ou ímpar 7faces – Guerá Fernandes │ 74 ©Hélio Jesuíno paisagem o meu barco tem um arco o seu lábio tem um mato capim com íris nossos matizes mergulho o tiro seu hálito de pás saro ferido o seu voar descalço no ar de vidro no fruto o gosto porque o tempo quis assim sol lá no sem-fim sem fim buscar nas folhas esquecidas o amor com seu flautim assaltar rente à flor a cor da cor e a voz do que diz verde o que sente na raiz madurar a luz que pulsa apurar no fruto o gosto no seu movimento lento sede nua no doce da coisa pele que salta e rosa no alvorecer das vertentes mapear montanhas no Saara 7faces – Guerá Fernandes │ 77 Joice Berth São Paulo – SP É arquiteta e urbanista, poeta e escritora amadora, colaboradora de dois blogs sobre literatura além de ter seu próprio blog de poesias e contos; está em fase de revisão de seu primeiro livro de poemas e trabalhando em projeto de poesia e artes visuais em parceria com alguns artistas plásticos e fotógrafos. Ladainha A mesma reza e meus excessos não se medem Ao contrário das virtudes da conveniência: imensuráveis. Quando todos oferecem o riso sincero, a leveza mete o pé na porta A vida como uma obra expressionista, Não permite conter afetos Como numa cena de novela antiga, as verdades esperam beijos finais Estive também esperando um sinal No final dos tempos A ventania inaudível da angustia Meu tempo calou-se, de tanto eco que fez, Não percebi tua partida Ainda aprecio teu fel Na ânsia de indeterminar tua subida Da última vez que estivemos de frente Eu, arrefecida pela tua verdade, estremeci. Minha coragem expirou-se, criou asas! Desculpe dizer, mas tua inocência é uma farsa Do mesmo lugar de onde sai Vou plantar minhas decadências Com dúzias de crianças, vou sentar na terra. Esperar brotar o que produz saudade Dentro da minha insanidade A alegria do teu irretocável retorno Beirando o contorno do meu incrédulo sorriso. 7faces – Joice Berth │ 79 Inverso Da lágrima salgada que umedece a lápide Ao desconforto da contração do útero O retorno absoluto Ao mundo reincidente no pecado A voz do perdão me pariu Um pedaço em cada esquina A cada anjo lúcido que me escolheu Minha divina inspiração Nos quartos sombrios do ego A memória traída O que derrota O que acolhe O que questiona O que apodrece Em cada certeza uma agonia Em cada luz o dissimulado acaso Do fim ao início O doce caminho da morte E de certo só a esperança Que ainda sustenta ofegante O peso da vida 7faces – Joice Berth │ 80 Marco Polo Guimarães Recife – PE Nasceu no Recife. É jornalista, escritor e compositor. Trabalhou no Diário da Noite, Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Jornal da Tarde (SP), Editora Bloch (RJ) e revista Continente. Publicou os livros: Voo, Subterrâneo, Brilho, Palavra clara, A superfície do silêncio, Caligrafias, Sax Áspero, Corpointeiro e Oficina do avesso, todos de poesia. Como compositor gravou o disco Ave Sangria e participou das coletâneas Asas da América – Frevo I e II. Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Teca Calazans e Zezé Motta, entre outros. Atualmente é superintendente de produção editorial da Companhia Editora de Pernambuco, CEPE. Recife Recife, cidade pantera, fera de lata e latão, gume de foice, severa esfera de ferro, ferrão. Recife, cidade minério, rios, vento, luz e chão, poço cavado no aéreo areal da imaginação. 7faces – Marco Polo Guimarães │ 82 A Anunciação, de Botticeli O anjo tenta acalmá-la de joelhos, menos por reverência que para mostrar submissão; mas ela foge, quase tropeçando, está profundamente assustada e o quadro em que o pintor a vê é pequeno para ela. Seu gesto também é cortês como se dissesse: Muito obrigada, é muita distinção, fico grata, mas ser mãe de um Deus é demasiada responsabilidade. O anjo insiste, insidoso, insinuante. Apesar de todo o pânico, ele sabe que ela vai conceder. A firme árvore que se vê pela janela e o rigoroso ladrilho vermelho que se estende pelo chão confirmam a realidade e o irrevogável transcurso dos fatos predeterminados. Sob o luar que vem das tuas duas luas altas há uma pausa é nesta fresta é nesta fenda é nesta senda é nesta sombra por onde entro seta para fora do tempo 7faces – Marco Polo Guimarães │ 84 Noturno árabe Se a nádega clara sobre a seda escura retém um tom de rosa. Se a penugem da coxa doura a pele. Se a carne rosa e fina da virilha guarda um perfume quente. Se a cova da clavícula detém o sal do suor. Se a onda dos pelos reluz seu sol negro. Se o dente branco rasga a polpa da canela. Se o perfume quente umedece as coxas duras da menina. Se a nádega clara treme ao toque da língua. Se o suor escorre pela espinha fina onde os pelos. Se a virilha rosa. Se a ponta dos peitos brilha como estrela. Se a noite se move sob o corpo alvo. 7faces – Marco Polo Guimarães │ 85 Lázaro Não acordem Lázaro ele não quer está livre do mundo. Suas irmãs não sabem é puro egoísmo desejá-lo vivo. Não acordem Lázaro ele está feliz. Seus instantes de febre sua gula e jejum tudo está ultrapassado. Lázaro só pensa em campos de neve em disneylândias em sorvetes de araçá. Acordar Lázaro seria suprema desumanidade. Ainda assim acordaremos Lázaro. 7faces – Marco Polo Guimarães │ 87 Litania Lá vai a procissão do Santo Sangue Velas roxas, seda roxa, roxas feridas de dor Lá vai a procissão do Santo Sangue Santo Sangue do Senhor Lá vai a procissão do Santo Sangue Muita pedra, muita queda, muito perdão por favor Lá vai a procissão do Santo Sangue Santo Sangue do Senhor Sobe ladeira, desce ladeira, onde for Lá vai a procissão do Santo Sangue Serpente de fé, emblema da dor Do homem na terra caminhador Lá vai a procissão do Santo Sangue Bang bang de fogos, flores, palmas, cânticos de amor Lá vai a procissão do Santo Sangue Santo Sangue do Senhor Lá vai a procissão do Santo Sangue Pelo mangue, pela praia, pela praça, pela rua, pela avenida Pela vida Lá vai a procissão com seu andor Lá vai a procissão do Santo Sangue Santo Sangue do Senhor 7faces – Marco Polo Guimarães │ 88 Dora Ferreira da Silva recortes 1 Órfica Não me destruas, Poema, enquanto ergo a estrutura do teu corpo e as lápides do mundo morto. Não me lapidem, pedras, se entro na minha tumba do passado ou na palavra-larva. Não caias sobre mim, que te ergo, ferindo cordas duras, pedindo o não perdido do que se foi. E tento conformar-te à forma do buscado. Não me tentes, Palavra, além do que serás num horizonte de Vésperas. Quatro poemas em rosa I ROSA-MOURO Peço-te novas, amor, da Criança que gerámos um dia junto a um canteiro de rosas. Era de noite, mal víamos as cores de nosso filho antigo. Rosa-mouro, seu nome: sua alcunha, o Cigano. Num carroção o levámos a passear pelo mundo. Na aurora era lindo, Rosa-lindo o apelidámos e nunca o vestimos. Rosa-nu, chamaram-no meninos que caçavam pássaros. De noite, escurecia tudo: Rosa-escuro fremindo em nosso abraço. Rosa-noite, segredámos sem que ninguém ouvisse. E num aro de criança o rodamos, tangendo com varas finas nosso Menino. Mal sabíamos que se afastaria. No canteiro de rosas – seu berço – a geada pousou dia incerto um beijo mais frio. Rosa-mouro, gritámos! Cigano! Ecos se foram em muitas direcções. Rosa-lindo e Nu e Noite, gritámos! Ninguém respondeu. Não se fora, aéreo, nem morrera pétreo de desentendimento, nem sufocara em lágrimas, nem morrera de rir. Desconfio das rosas, das rosas de todos os caminhos. Nosso filho sincrético em tudo que é rosa parece dormir. 7faces – Dora Ferreira da Silva │ 92 II ROSAMOR Nem mesmo o Angélico achou tal cor em asa ou manhã. Nenhum acorde tocou tal cor. Nas palmas dos recém-nascidos dizem que pode ser encontrada se a estrela for propícia. Em pétalas, se a Natureza doar-se, amando a flor dilecta. Um Poeta a descobriu na hora mais tardia e ofertou-a em silêncio à visão derradeira. Temerária, a procuro; interrogo os sentidos: o tacto, em pêssegos pousando e amando; o gosto confuso e escuro aprofundando a carne da romã; o olhar, demasiado à superfície das rosas que têm nome, e escapam; o ouvido, ébrio de vinho róseo esquecendo a música. Interrogo os sentidos. Nenhum responde a meu chamado. Despeço o poema à porta, é inútil tentar dizer tal rosa, estando viva e incerta em tantos caminhos por onde começar. III ROSALÉM Ajoelhada, num gesto simples de colher flores, rósea. O alvo abrigou-se além e deixou-a no jardim das rosas. NO LI ME TANGERE. Colhe o que quiseres na campina rasa, essas folhas e ramos e aromas. Enlaça-te em teus xales, descansa de soluços e sustos. Recolhe teu gesto aéreo. Volta ao róseo da aurora. Do Amado, era a hora madura; não a tua, Amorosa. 7faces – Dora Ferreira da Silva │ 93 IV ROSADEUS Num escrínio de vidro levavas a rosa. Os caminhos eram vazios, depois de chuvas prolongadas. Contra o peito apertavas o tesouro frágil; ria-me de teus cuidados, de teu medo. “Somos os últimos. dizias, aos que foi confiada a rosa.” Eu cantava tudo que nascia e em nossas bocas os frutos se acendiam. Debatia-se o sol em teus cabelos; abraçados na clareira fria, ouvia em teu peito o rio escuro. E de lágrimas me vestia, na extrema nudez que só tu viste e velaste entre a rosa e o vazio. Esse tempo existiu, de sendas tão secretas? Que delírio o retém? Partiu-se o vidro, perdeu-se a rosa, o atalho na floresta? 7faces – Dora Ferreira da Silva │ 94 Vivem os ventos... Vivem os ventos o puro viver fuga incessante dos elementos. Abrem-se pétalas de ar gritam nuvens arrastadas riem gostas de luz na altura límpida: o branco novilho – cascos de ouro – escarva entre céu e terra. Dissipa-se o impuro. Dilata-se a luz que incita o desencadear constante e nas flâmulas do éter – rubra – floresce a rosa distante e presente pétalas abertas ao duplo viver: raízes na terra e odor que no alto se dissipa em viagem além de porto ou ilha ao sabor do saber ou não-saber das quilhas. Doada e casta em seu prumo das altas transparências às grotas de obscuros corações (sôfregas raízes). A rosa: farta e indigente entregue aos rios de vento e de carência. 7faces – Dora Ferreira da Silva │ 95 A Euryalo Cannabrava Sem lápide pesada à beira de águas fluentes – rápidas palavras – roladas ao fio dos pensamentos que fundamente habitaste mas principalmente à beira do livro de imagens do teu Fabulário – homem forte habitado pela Criança dos inícios – eu te evoco ao sol da nítida lembrança (foi o Início teu porto aberto à descoberta) à beira de águas sempre renovadas configuradas na líquida flor dos pensamentos do homem divinamente criador a imagem teu instante perene e as fibras do Imaginado. O hausto do silencioso sentimento em tudo se torna e se derrama e contigo permanece. Os poemas aqui publicados nesta sessão aparecem em edições de 1972 (n.10) e 1978 (n.44) da Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian e foram cedidos para reprodução nesta edição D entremeio O projeto criador em Dora Ferreira da Silva* Por Euryalo Cannabrava 1 Dizer que certo soneto de Rainer Maria Rilke é existencialista significa o mesmo que atribuir-lhe determinada relação temática não substancial. Na obra de Dora, porém, o existencialismo não comparece, porque a sua trama foi urdida na base de vivências pessoais e intransferíveis, de contactos imediatos e direto com as vicissitudes da “humana natureza”, no dizer de Zurara. Nem seria possível, na base de teses existencialistas, analisar a riqueza desbordante da poética Doriana. Os fundamentos da crítica existencialista ou fenomenológica de poesia, por outro lado, são vacilantes, como se verifica através de Alessandro Pellegrini na sua monumental obra sobre Hölderlin. O que acontece com o crítico existencialista ou fenomenologias é que ele parte de uma perspectiva doutrinária para examinar o que sòmente pode ser encontrado no poema. A posição do Existencialismo ou da Fenomenologia é fundamentalmente problemática. Em primeiro lugar, são filosofias exortativas que costumam substituir, em certas oportunidades, a reflexão crítica pelo É assim tanto Heidegger como os seguidores de Husserl proclamam ser a poesia nada mais ou nada menos do que disciplina filosófica. Esta confusão básica entre mensagem especulativa e mensagem poética torna-se evidente no ensaio de Heidegger sobre Hölderlin. Ora, tal exegese retira, de início, a originalidade do poema, considerado como subproduto da atividade filosófica. A distinção básica, porém, entre Poética e Filosofia decorre, como se verifica a propósito do poema “Metafísica”, precedentemente comentado, de que toda construção filosófica é problemática, ao passo que todo poema autêntico pode conter problemas, embora não seja problemático em si mesmo. A natureza do método filosófico seria transformar soluções em problemas. A Matemática interessa ao filosófico precisamente no sentido de que as suas soluções, transmutadas em problemas, constituem a base do progresso na rainha das ciências. Nada disso se verifica com a obra de arte: enquanto ela se manifesta apenas como projeto criador, a sua essência é a aleatoriedade. A transição do objeto estético (programação criativa) para a obra de arte (produto necessário) constitui a base da realização artística. A necessidade da obra de arte consiste precisamente no faço de que do teatro de Shakespeare, da fuga de Bach ou da estátua de Michelangelo nada se pode retirar ou acrescentar. Ao passo que na teoria cientifica, como a relatividade einsteiniana, as amputações e os acréscimos se tornam inevitáveis. Há, portanto, uma necessidade estética tanto ou mais rigorosa do que a necessidade lógica. Esta necessidade estética permeia os poemas de Dora, em que o famoso “sentido” direto, referencial e simbólico sofre a coação do fundo imagístico no repertório das palavras. Assiste-se, ao vivo, ao conflito entre os ingredientes simbólicos e imagísticos que, contrapondo-se, geram tensão conotativa de ressonância estética profunda. É o que se observa, depois de “Metafísica”, nos versos fala da alma que me desabita do meu corpo ausente quanto não estás e em cega li teu nome em meu sangue e as estrelas confirmaram 7faces – Euryalo Cannabrava │ 100 seguidas por no escuro divinatório reconheço o perfil da tua origem E, a propósito do Sol: clara divindade nua a carnação sob o manto escarlate. Mais adiante, em “Manhã I”: Esqueço os hieróglifos da alma, há campânulas azuis, ânforas, pássaros. há campos a percorrer. Em todos esses paradigmas líricos, as violações semânticas do “sentido” dicionarizável atingem o seu objetivo de coarctar o obvio e o prosaico, nas referências simbólicas, para atingir o inusitado e o insólito da expressividade poética. Em “Manhã II”: No espelho do lago semeado de folhas ondulam os corpos entre hastes de trigo o sentido literal e léxico não representa o objetivo, dissimulado pela neutralidade da descrição natural. Esta dissimulação do incomunicável, sob a aparência da forma intuitiva e espontânea, manifesta-se em Nos grãos do vento partiram pombos em tumulto e brancura que explicita raízes intersensoriais de inspeção sensível, denunciando no poeta contacto interno dos sentidos com a realidade do mundo exterior. Aos “grãos de vento”, distribuídos em partículas minúsculas, corresponde a revoada dos “pombos” que confunde “tumulto” e “brancura”. Pensamento poético, de raízes sensoriais, pressupõe análise discriminativa, pelo conhecimento inspectivo, ingredientes psicodinâmicos ativo, que sublinham a vida ao mesmo tempo 7faces – Euryalo Cannabrava │ 101 contemplativa e nostálgica em que se integram elementos de presença e ausência em síntese secreta: nos vales da distância rumina em silêncio teu rebanho tranquilo. Nestes dois versos de “Noturno II”: A noite já desfere seu punhal de trevas, nota-se o mesmo artesanato, que impregna a imagem de sensorialidade concreta, para torná-la drástica até o ponto da visualização direta. Os versos acima atuam como projetor, criando a ilusão eidética dos braços da noite desferindo golpes de treva. Mesmo neste exemplo, como em outros anteriormente citados, não há metáfora, nem tropo, pois o sentido figurado no uso das palavras seria o máximo de realização antipoética. A drasticidade desta imagem provém diretamente do seu poder galvanizador e energizante. A figura de retórica é abstrata, atua como símbolo, em que a palavra transfere o seu sentido para outra, como por exemplo a relação entre “flor” e “mulher”. Ora, “a noite já desfere” “seu punhal de trevas” nada figura ou compara, mas simplesmente, através da carga imagística, suscita a presença da “noite”, densa e concentrada, vibrando o “punhal” feito de “trevas”. 2 A experiência concretista de Dora, incorporada em “Lunimago”, coletânea de poemas de vanguarda, tem a significação de imprimir à sua obra feitio experimental em matéria de linguagem. Os poemas breves e incisivos, valorizam a palavra isolada por meios mecânicos de técnica tipográfica no espaço em branco. Ora, em Mallarmé, no poema Um coup de dês, a riqueza da expressividade lírica consiste precisamente na variedade da distribuição de palavras no texto poético. As distribuições obedeceram a uma programação rigorosa, em que o poeta procurou obter, segundo suas palavras, “esta conjunção suprema com a probabilidade”. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 102 Os objetivos mallarmeanos eram complexos, como demonstra a leitura de Igitur. A realização, porém, como poesia pura, ultrapassou o projeto criador no sentido de poemas absoluto, sem condições restritivas. Os concretistas, porém, daqui e do estrangeiro, são de méritos desiguais, pois a sua programação, muitas vezes ingênua, empobrece o poema de valores estéticos, circunscrevendo o seu raio de ação a um mínimo de interações de palavra para palavra. Além disso, observa-se uma espécie de desestruturação do espaço poético pelo estrangulamento das imagens nas palavras, que passam a atuar, simbòlicamente, como veículo de ideias ou de conceitos. Na eliminação do sentido conceitual da palavra no poema consiste precisamente a tarefa do artesanato poético que o concretismo abole por completo. É verdade que Dora consegue, em alguns de seus poemas concretistas, a transfiguração do substrato simbólico, nos vocábulos, em pura imagem concreta. Mas estes acertos são relativamente raros. No poema concretista em que as palavras “infância”, “ânsia”, “distância” são colocadas em diagonal à direita, tenho a impressão de que o coeficiente simbólico, puramente conceitual, desses termos sobreleva, vantajosamente, o seu repertório imagístico. Mas, seja como for, a inserção de poemas concretistas em Andanças indica, na autora, virtuosidade artesanal que valoriza o livro em vez de diminuílo. De “Lunimago” transita-se, sem tropeços, para a sutil e difusa “Elementária”, rapsódia lírica de elementos e objetos, congérie de átomos verbais, cortejo de formas e de ritmos, teoria de sons e de figuras. Confesso que “Elementária” representou, para mim, experiência entrópica no mundo da desagregação e do caos. A desordem impera, nestas regiões mágicas, em que Dora faz surgir de furna esconsa trasgos e duendes, com letreiros na testa. Trata-se de um polipeiro de imagens saltitantes: saltos quânticos e acrobacias verbais que lembram pantomima de circo. A experiência atinge todos os seus objetivos, com centelhas, fulgurações, enredos, cipós bracejantes, parasitas, conglomerados, partículas e ondas. O poema é polivalente, tumultuário, cresço e rugoso na superfície, com estratos inacessíveis à inspeção armada de microscópio. É certo que ao verso final SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI corresponde, em “Elementária”, a obra realizada, o fecho e o remate de uma tarefa ciclópica, em que o mágico, o telúrico e o lúdico se associam em comum empreitada. Depois de “Elmentária” plenamente realizada, vem “Tapeçarias”, onde são entretecidos poemas em prosa. Não há nada que me faça compactuar com este monstro bifronte: o poema em prosa. É evidente que a poesia, excluindo a sua paráfrase em prosa, com os elementos lógico-racionais, inerentes à exposição oral ou escrita, não se adapta ao tratamento prosaico. A prosa, sendo simbólica, não evade o sentido senão em determinados trechos, como acontece com Proust, em que o estilo, galvanizando a expressividade temática, adquire certo teor poético inconfundível. A imagem, entretanto, em Joyce, Malcolm Lowry, Guimarães Rosa, adquire tonalidades descritivas, funciona como epítome ou resumo dos traços de personagens, exercendo função drástica como no poema, embora eriçada de ingredientes simbólicos. Esta economia interna do repertório imagístico, no romance, se explicita em Proust, ao afirmar de Albertine: “Ela era única e, portanto, inumerável.” Este poema em miniatura, quando isolado, perde seu conteúdo poético pela função que exerce no romance proustiano. O leitor já se sente saturado de informações vagas ou precisas sobre Albertine, figura caleidoscópica, cujas metamorfoses ovidianas excedem o número de estrelas nas galáxias. Mas, de repente, tudo que foi dito ou ficou subentendido acerca de Albertine – o seu temperamento de lésbica ou de heterossexual, ou seus impulsos, os seus passos rítmicos pela praia, as suas alegrias incontidas de jeune fille em fleur, os seus retraimentos, as suas traições, os seus subterfúgios – se condensa na imagem esplêndida: “Ela era única e, portanto, inumerável.” O que distingue a imagem poética do símbolo prosaico reside no caráter autotélico (que tem o fim em si mesmo) da primeira, e o feito heterotélico (que tem o fim fora de si mesmo) do segundo. Eis porque a imagem poética, sendo espontânea e natural, surge no poema com os atributos flagrantes da presença física, da densidade, do volume, do peso especifico. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 104 Ela é auto-referencial, concentrada e não hetero-referencial, desconcentrada, centrípeta como o símbolo. A confusão entre imagem e símbolo, perpetrada por Cassirer, como endosso posterior de Suzanne Langer, está na base dos tortuosos tramites das doutrinas estéticas. Em Andanças, as imagens proliferam como enxames de abelhas. Entre inúmeras delas, citarei estratègicamente “águas taciturnas”, como exemplo vivo de propriedades interativa, em que o dissílabo “águas” atua sobre o quadrissílabo “taciturnas”, com efeito reversível. É claro que as “águas”, não sendo humanas, não podem ser “taciturnas”; no máximo seriam escuras ou sombrias. Se o sentido dicionarizável tivesse importância em poesia, a autora poderia ter dito “águas silenciosas”, o que não atinge o alvo, nem se enleva até o nível da expressividade poética. Mas “águas taciturnas”, embora represente expressão semanticamente imprópria, traz, no seu bojo, suficiente lastro de carga imagística, audiovisual, para suscitar o surto da evidência heurística que serve de suporte ao juízo estético. O poema autêntico, como “Metafísica”, tem na força das imagens, na sua drasticidade como sensações condicionadas, os dados intuitivos, as evidências de natureza criativa que a linguagem lírica explicita e veicula. Vejam bem: a “águas taciturnas” nada pode corresponder no mundo exterior. O coeficiente de realidade desta expressão decorre exclusivamente da representação visual de “águas” que, por serem “taciturnas”, nada ou pouco comunicam. O repertório visualizante de “águas” aglutina-se ao repertório auditivo de “taciturnas” e, através de contínuas interações, surge a imagem luminosa, rítmica e musical, ao mesmo tempo. O estudo da estratégia da decisão, em Dora, do seu sistema de preferências, dos seus critérios seletivos, constitui o cerne do juízo crítico como arte de penetração analítica. É esta estratégia da decisão, explicitada nos poemas em prosa, que será investigada nos seus variados aspectos. Em primeiro lugar, ainda a propósito do poema “Metafísica”, o paradoxo que ele gera decorre de que o seu título, prometendo uma temática que não será nem sequer tocada em qualquer dos versos, se torna, por isso mesmo, “metafísica”. A táctica Doriana de decisão consiste em fraude ou dolo consumado, que começa por enganar o leitor, desviado de seu rumo, à procura do “sentido” nas palavras, embaído nas suas expectativas, 7faces – Euryalo Cannabrava │ 105 com promessas que não se cumprem e intentos que não se realizam. E, com isso, Dora põe a nu a essência mítica do poema, a sua quididade ou natureza interna: o ludíbrio, o artifício, a deformação do real, o jogo lúdico, a trama caleidoscópica, embora conserve intactas as raízes sensoriais na base das imagens. Este jogo entre o concreto e o abstrato, entre a sensibilidade e a inteligência, entre o empírico e o racional consubstancia a técnica de decisão Doriana na factura equívoca e polivalente do poema. Surpreendê-la na ação mesma de elaborar seus artefatos líricos constitui tarefa da crítica, orientada por princípios técnicos, embora mantendo o seu privilégio de exercício livro nos domínios estratégicos da decisão. Em cursos sobre “Tecnologia e Decisão Estética”, procuro reivindicar para a crítica todas as características da Operação-Cultura. O método crítico, como o instrumento tecnológico, fornece aquilo que Matthew Arnold denominou a “atmosfera da atividade criadora”. Ora, a atividade criadora, sendo estética por sua natureza, investigada pelo crítico, transforma-se em arquitetônico estilística. Criação, em Arte, é expressão da forma, modulada pelo ritmo. Daí os liames apertados que ligam a Tecnologia à Arquitetônica Estilística e esta à construção da forma, gerada através de galvanização da expressividade temática pelo estilo. Receio muito que haja excesso de “programatismo” nas afirmações anteriores, apesar de poder alegar que não disponho de espaço para a podagem das arestas, amplificando as considerações sob aspectos relevantes. Fixando-me, porém, na estratégia de decisão do artista, complementada pela estratégia de decisão do crítico, certos pontos fundamentais devem ser esclarecidos. O primeiro diz respeito à situação singular dos poemas em prosa de Dora que pretendem ocupar posição intermediária no complexo de relações entre prosa e poesia. A autora, entretanto, até neste ponto faz obra original, porque esta parte de Andanças destoa de todas as experiências já feitas neste sector. A originalidade de Dora, que constitui a marca de Andanças, consiste precisamente em atingir, nestes poemas, certa posição que, participando do lirismo romântico exacerbado até o ponto de fusão, 7faces – Euryalo Cannabrava │ 106 faz poesia transfigurada em prosa, e prosa metamorfoseada em poesia. Tais metamorfoses, porém, preservam o clima poético através das imagens que, por não serem simbólicas, acabam eliminando, na textura lírica, o coeficiente prosaico de referências e de informações precisas. O clima comunicativo de “Tapeçarias”, que nada informa através de referências prosaicas, transmite o inefável, termo insubstituível para traduzir o que, no poema, não se pode veicular por outras palavras. O absurdo de se considerar o poema como um sistema cibernético, com seus mecanismos, auto-regulações e retroações, consiste precisamente em se admitir que ele veicule unidades informativas. Mesmo porque as unidades informativas do poema seriam elementos ou processos, por ele construídos, que não figuram explìcitamente no seu contexto. Ora, tudo que não figura no poema, nas suas palavras transfiguradas em imagens, seria completamente espúrio e inoperante, simples resíduos referenciais e simbólicos. Esses remanescentes simbólicos constituiriam a parte dicionarizável das palavras que o poeta elimina, pelo menos parcialmente, com a sua decisão metamorfoseante. É o que acontece em “Tapeçarias”, escrita provàvelmente com a intenção de mostrar a impossibilidade do monstro bifronte: poema em prosa. As rimas repetidas e cruzadas, o elance da textura lírica, o tom romântico de balada medieval, os motivos, arabescos e desenhos na tecelagem das tapeçarias, tudo isso, congregado na decisão de eliminar o supérfluo para reter o essencial, resulta na comunicação do inefável. Esta comunicação do incomunicável, através de estratégias de decisão, que criam vias de acesso ao inacessível, constitui o cerne e o núcleo da realização estética. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 107 © Arcangelo Ianelli. Vibrações em vermelho 200-2001 © Arcangelo Ianelli. Vibrações em azul 200-2001 © Arcangelo Ianelli. Vibrações em branco 200-2001 3 A poética de Dora, assediada pelo mistério, pelo apelo inaudível das forças telúricas, expande-se, nesta última parte de Andanças, intitulada “Margens”, através do verbo concentrado em estruturas densas de tensão interior, de vivências sôfregas de libertação e de desafogo. É esta contínua necessidade de libertar-se de si mesma, de ir além de seus próprios limites, que impregna os poemas de Dora do vigor dramático da litania, do canto litúrgico, do rito mágico nas aras de um templo pagão. Em “As palavras partiram”, a sua técnica artesanal, enriquecida de sutileza e de subintenções, explora o aleatório, o contingente e o acidental nos vocábulos para extrair a necessidade da ordem estética. Eis porque a estratégia de decisão, na base destes poemas, se transfigura em atividade criadora no arranjo, no ajustamento, na sequência concatenativa das palavras. O domínio exercido por Dora sobre as palavras explica a sua arte de convertê-las em evidencias heurísticas do seu artesanato, trabalhado interiormente por processos psicodinâmicos, que transformam crises e conflitos em serenas renúncias e abdicações. A calma e o repouso, em Dora, apesar do intenso fervor dramático de suas vivências, são aquisições do seu espírito filosófico, firmemente ancorado no porto existencialista. No primeiro poema de “Margens”, apesar da incerteza do rumo que as “palavras” poderiam tomar, ocorrem versos como estes: É preciso partir. A dúvida aborrece, enlanguesce com suas sábias indicações. Não há caminho preestabelecido. Nosso mapa é confuso. Nossa boca, uma pobre coisa para enumerar perigos, as boas ocasiões, os caminhos e descaminhos... E diante de nós, essa grande proa, um corpo de mulher com seus panejamentos encharcados. O traço básico de versos como estes, que têm qualquer coisa de goetheano, na sua serenidade olímpica, parece resultar da árdua conquista de uma quietude feita de desalento e de profunda renúncia. Renúncia diante de tudo, do seu próprio ser, de alegrias primeiras na infância, de revelações na adolescência, de exultado alvoroço na mocidade. Renúncia e fidelidade ao verbo lírico, ao ato 7faces – Euryalo Cannabrava │ 111 de criar, plasmando a forma densa na plástica e no modelo do poema absoluto, liberto de restrições. É o que Dora realiza em Essa alma que lavra em nossos peitos com suas garras sem piedade, essa alma equina, do Mar, neptuniana terá um dia seu porto de chegada? onde se observa a sua técnica de pôr entre parênteses o “sentido” direto e imediato das palavras para explorar a sua imagem de indeterminação no mundo do discurso poético. Mais adiante, em outros poemas, Dora introduz Logo a manhã nascerá sacudindo o seu manto crivado de pássaros e páginas depois: De novo semeamos a amanhecida messe e ainda: semente da infância, lírio da primeira aurora, campo onde o arado da dor não se imprimiu. Depois, em “Igreja de Ouro Preto”, adverte: Se entrares, verás no bojo escuro de vísceras sinuosas anjos de sexuada forma, de sorriso enigmático e nestes, como em outros versos, Dora projeta a igreja ouropreteana no emaranhado de suas impressões subjetivas: Lasciva torna-se a doçura das imagens que dançam na matéria alada. Aqui é registrada com a marca e a garra da gravura lírica, o misto de luxúria e de sentimento místico que a escultura e a talha do Aleijadinho misturaram com incomparável virtuosidade. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 112 O juízo crítico que os versos citados transmitem se evola na forma intencionalmente drástica e, ao mesmo tempo, saturada de expressividade poética através do seu realismo intersensorial. O achado “Lasciva [...] doçura”, a que se acrescentam “imagens [...] dançam na matéria alada”, exprime, ao vivo, o barroco religioso, não através de símbolos prosaicos, mas sim através de transfigurações e de metamorfoses. O poema “Hölderlin”, embora não seja o último do livro, deverá fechar estas considerações sobre a poética Doriana, multifacetada, rica de aspectos, versátil em matéria de recursos e de técnicas. A versatilidade, característica da verdadeira poesia, as mutações bruscas, o imprevisto da combinação verbal, o inusitado e o predomínio dos “valores de choque” sobre os “valores de repouso”, segundo Valéry, tudo isso representa a essência da linguagem lírica. Mas o poema autêntico, como este sobre Hölderlin, nos faz defrontar, na base do realismo sensorial de imagens concretas, a figura do poeta alemão na força de sua presença física e na plenitude do seu estro: Onde não há chão tua raiz se adentra sugando a terra – seio apojado de tudo que será. Sòmente a leitura acurada das odes, dos hinos e das grandes elegias faz perceber o que há de profundamente hölderliniano nos versos citados. Dora adentra-se em Hölderlin, penetrando em seus mananciais, bebe o mesmo líquido que embriagou o poema germânico, despertando as suas visões. Comunga da mesma hóstia e, com sutileza e engenho, apreende a natureza última da mensagem hölderliniana: Sobre ti o Éter inclina, paterno, a fronte pensativa, tocando-te. E Hölderlin, tocado pelo Éter, dissolve o seu espírito conturbado em exaltações líricas: Tu, feito fonte, colina, ou rio corrente em meandros sussurrantes, tu, rocha, arquipélago, água oscilante das cisternas, ou disperso nas flores da campina, fruto e mão que o recolhe, criança dedilhando velha cítara no centro de um paraíso inviolado, cercado de muralhas e pássaros cantantes nas ameias. É certo que Dora só extrai poesia da linguagem hölderliniana, sem aludir à formação filosófica do Poeta através da amizade de Hegel e de Schelling. O que interessa à autora de Andanças é o verbo lírico em plena efervescência, o surto do canto heroico em plena madrugada, o pean entoado por hordas dispersas, o destino trágico do Poeta ao mergulhar na loucura: Feriu-te o raio a fronte na invisível tormenta dos caminhos dispersos, das sendas, setas desferidas em confusos voos sem destino. Scardanelli curvo e lasso entre a poeira dos livros indistintos – amável, melancólica sombra ofuscada por seu próprio ser – sol desmesurado. Nestes versos, Dora feriu a tónica hölderliniana, majestosa e selvática ao mesmo tempo, o pathos helênico, a textura lírica impregnada de exaltação dionisíaca, através de hexâmetros e pentâmetros. Conseguiu o timbre inimitável do verso hölderliniano, o sentido plástico da forma, a estilística e o trajeto interplanetário. Em Hölderlin, o gosto pela Filosofia foi incutido por Hegel, que recebeu do seu amigo, em retono, o influxo da inspiração poética. Na obra de Alessandro Pellegrini acerca do autor de Patmos e de Brot und Wein, é assinalada a influência da dialética hegeliana sobre a dialética lírica de Hölderlin. Verifica-se, porém, que Hegel atou muito mais na poética hölderliniana como teólogo do que como filósofo ou dialética. O pensador germânico, na sua juventude e na sua maturidade – assinala Pellegrini –, pretendeu conciliar os dogmas cristãos com as imagens dos deuses da mitologia grega. O curso da dialética hölderliniana não era conceitual, nem demonstrativo, como em Hegel, pois se baseava nos mitos, nas apoteoses e nas alegorias. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 114 Admite-se, entretanto, que a dialética hölderliniana seja psicodinamizada por processos, enquanto a dialética hegeliana é logicizada por operações. Seja como for, Hölderlin era um pensador, nem Hegel, apesar de ter escrito poemas, era um poeta. Apesar disso, há nos problemas hölderlinianos o jogo diabético, haurido em Hegel, mas completamente transfigurado pela carga sensorial das imagens. Ainda mais: embora o autor de Hyperion não desenvolvesse, na sua poética, o pensamento sistemático, como observa o ensaísta Hoffmeister, torna-se evidente que ele soube transformar a “ideia profunda em criação viva”. Ora, esta rara aptidão de retirar da ideia ingredientes sensíveis, que lastreiam o corpo da imagem, parece ser o núcleo mesmo do pensamento poético. É o que se observa nos versos hölderlinianos, extraídos de Sokrates und Alcibiades: Wer das Tiefste gedacht, liebst das Lebendigste (Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivo) em que o Poeta, segundo Haering, “não exprime a ideia, mas encarna a própria ideia”. Não há expressão mais clara do que as palavras, no poema, como forma simbólica: veiculam conceitos ou ideias, mas através de seu repertorio imagístico coarctam o seu poder referencial, até o ponto de quase eliminar-lhes o sentido. a ideia, portanto, integra o poema, através da tensão conotativa entre símbolo e imagem, de que resulta o clima poético e o processo comunicativo do dialeto lírico. É o que se observa em Andanças, onde os nexos ideativos se diluem na carga imagística, condensada até o ponto crítico da irrupção através dos interstícios das palavras. O que Dora conseguiu realizar – em matéria de virtuosidade técnica – coloca-se na primeira linha da poesia feminina em nosso país, entre Cecília Meireles, a maga, e Henriqueta Lisboa, a sacerdotisa. * Este texto aparece publicado pela primeira vez na Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, edição 9, em setembro de 1972 e foi cedido pela Fundação para esta edição. 7faces – Euryalo Cannabrava │ 115 Vias de ver as coisas 2 Ianê Mello Rio de Janeiro – RJ Nascida no Rio de Janeiro. É educadora e pós-graduada em Pedagogia. Identificada com as diversas propostas em textos literários, escreve também com resultados diversificados. Seus textos incluem contos, crônicas, aforismos, haicais e poesias. Alguns deles são publicados na internet, em sites, blogs e revistas eletrônicas. Dentre os blogs que mantém estão Labirintos da alma, Outros poemas de expressão, Diálogos poéticos. Encontro predestinado Assim quando me quedo em sonhos desfalecida em murmúrios inaudíveis me vem a ânsia de tudo querer Assim quando a espera se faz tarde sombreada nas palavras que se vestem numa esperança inquieta Assim quando me ponho a pensar, vestígios de um dia em sobressalto, assoladas incertezas se aquietam, desejos em vontades transformados Assim, somente assim, vislumbro numa luz difusa o fim do caminho, em passos percorridos outrora, sementes que plantei sem aviso. 7faces – Ianê Mello │ 118 Pedro Belo Clara Lisboa– Portugal Pedro Belo Clara, nascido em Lisboa, Portugal, é autor dos livros de poesia A Jornada da loucura e Nova era. Além de colunista, membro de portais artísticos e prelector de sessões literárias, participou ainda, com suas poesias, em várias exposições de pintura e em coletâneas do gênero. Atualmente, é colaborador nas revistas literárias Fantástica e Amanhã ou Depois. CIDADE I. A Neblina A neblina, em translúcidas caravelas, Para si reclama os domínios nocturnos, Assomando aos telhados e às janelas Num leve bulir de sussurros soturnos. Dormitando ao sabor de um cansaço, Jazendo em firmes colunas de betão, Num tempo em que o futuro é baço E o passado uma indisfarçável solidão, Encontro-te, cidade de melancolia, Covil de vultos ignóbeis e ardilosos Que anseiam pelo homicídio do dia Em recantos sombrios e silenciosos; E respiro o teu esboço progressista, Uma indefinição desprovida de viço, Uma palavra de inverosímil conquista Em elegia digna de povo submisso. São filhos teus essas sombras vadias, Essas brisas abatidas em final de revolta, Esses incontáveis corpos e almas vazias Toscamente cintilando à minha volta – Os homens, mudos como peregrinos Das estradas dos infindáveis caminhos, Na convergência dos pesarosos hinos Carpem as doridas mágoas sozinhos; As mulheres que, nas desertas vielas, Se vendem a quem as quiser obter, Das esquinas são pertinazes sentinelas Perdidas e entregues a um falso prazer. Cidade, morada de valores degradados, De Homens livres em rotineiras prisões, És presa fácil sob os olhares depravados Das rudes e desalinhadas habitações… 7faces – Pedro Belo Clara│ 120 II. Os Caminhos Embrenho-me no labirinto urbano. Como se fugindo da sombria investida, Atravesso as longas galerias do profano Na perene presença da luz desvanecida. Sem rumo algum, levado pelo instante, Estendo a mão ao que é indistinguível, Deixando que me guiem, hesitante, À mais oculta e pura verdade possível. Tanto pulsar e sentir contraditório! Estagnada ideia entre partir e ficar… Pobres cobaias – lívidas! – do ilusório Ideal aludido em prol de um governar, Espectros de tempo nenhum errando Por lugares só por eles conhecidos, Ávidos sem porquê, assim lamentando Todos os lamentos já esquecidos. Sem permitir que a fadiga me vença, Decidido vou, como transporte fiel Da tocha que atiçará a vital crença, Trilhar as rotas dos caminhos do fel. Compadeço-me pelos rostos quietos Que por detrás das pálidas vidraças Miram o absurdo, de ânsia repletos, Embora reféns das próprias carapaças. Há mais do que a simples e traiçoeira Realidade que aqui vive aparenta… Assim, entre nós, na noite marinheira, Nasce uma conversa que acalenta, Em sua mudez, cada chama singela Que, de novo, parece brilhar viçosa. Talvez esta tocha tenha sido vela, Presença amiga na mágoa silenciosa. 7faces – Pedro Belo Clara│ 121 © Arcangelo Ianneli. Geometric composition III. As Vidas Vidas a ti chegaram e partiram, cidade, E muitas continuarão ainda sua jornada – Intrépidos viajantes de generosidade Pela frivolidade da alucinação quebrada, Em busca do que todos, por fim, almejam. Foste casa para quem em ti se abriga? Ou foste veneno das ervas que verdejam, Foice implacável de cada vida inimiga? Senhor de rosto enrugado e cansado, Vós que fostes um emigrante na fantasia, Vós que rejeitaste o vosso próprio fado, Dizei-me se espera pelo nascer do novo dia; Jovem de olhar alienadamente perdido, Que cheiras ao labor que aqui plantaste, Teu nome foi extinto e teu querer rendido? É ele que ecoa nas muralhas que criaste? Atravesso bairros, subo e desço colinas: Onde está a centelha que outrora brilhou? A pronta canção nos lábios das varinas, O saudar de cada rosto… Quem os furtou? Quem se esqueceu do sabor daquele vento, Aquele jeito tão singelo das altivas gentes, Aquele rio, desafiador a cada momento, A crença que cativava até os indiferentes? Suspiro, ainda que em efémero desânimo. Os raios da lua, brilhando por toque divinal, Trespassam a neblina. Que súbito ânimo! Benditos dedos de reflexos em puro cristal! Por ti me compadeço, triste cidade minha, Por teu doce olhar de azul tão profundo Que, agora, cansado de sonhar, definha. Ainda és quem abriu as portas do mundo? 7faces – Pedro Belo Clara│ 123 IV. O Renascer Ornada pela luz das constelações míticas, Outrora as guias de gloriosas epopeias, Pareces – benditas essas forças místicas! – Querer tocar de novo as delicadas areias Das praias cujos aromas por ti pairaram Em tempos tão imensamente queridos – Padrões que os memoriais evocaram Em memórias de brilhos desvanecidos. Mas que se soltem as recordações antigas E se pronunciem esses nomes admiráveis! Que se quebrem barreiras, cantem cantigas De tempos verdadeiramente memoráveis! Navegadores, Poetas, Príncipes, Soberanos, Estadistas, Militares, Filósofos, Cientistas – Haverão outros modelos supra-humanos? Que valiosas e incontáveis conquistas! Ah, cidade que beija o rio, como desejaria Que hoje despertasses da noite eterna!... Em teu âmago tens a chave, a única via, Que de novo te incitará, capital fraterna. Mas, pelo forte e húmido vento da cidade, Uma guitarra vai, suavemente, tocando, Como um lágrima de imensa saudade Que por seu rosto se vai derramando… Das muralhas deste castelo observo eu Lisboa em pranto deveras silencioso, Como quem esquece o que outrora viveu E se entrega ao receio mais tenebroso. Não vês a nova manhã a querer romper? Que possa banhar esta Deusa, esquecida Na letargia de que agora está a perecer! Chegou a hora da missão ser cumprida… 7faces – Pedro Belo Clara│ 124 Rosane Carneiro Londres – Reino Unido É autora de Excesso (edição da autora, 1999), Prova (Ibis Libris, 2004), Corpo estranho (Editora da Palavra, 2009) e Vate (Selo Orpheu, 2012). Editora e redatora com formação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente doutoranda e pesquisadora em Letras do King’s College London. Participante de antologias e publicações impressas e virtuais diversas. Transmissão pelo rádio chegam novas aladas de ti microfonia wireless de um provável irresistível estranhamento há muito não mais em voga por aqui misto de onda e alta frequência captação inequívoca de alguns bens do querer amplitudes moduladas pelo que não vejo mas percebo – de novo a longínqua e máxima voz a voz a voz a voz de um desejo 7faces – Rosane Carneiro│ 126 Faltou a palavra pulou a cerca livre das amarras da lógica dicionária Escapou a palavra daquela frase vã e enfática a servir à rotina reacionária Foi-se a palavra escorregou escapuliu – e está certa: 7faces – Rosane Carneiro│ 127 Dama de espadas na fronte Não é plausível olhar – examinar apenas Técnica e tecnologicamente o amor é para ases velozes Esgrima sobre gelo, a dama vive exata sobre saltos altos de racionalidade: naipe de valetes a seu dispor, maquinariamente sexy e só emociona-se no entanto quando chamada rainha ─ sua meta é o rei do xadrez 7faces – Rosane Carneiro│ 128 Carina Carvalho São Paulo – SP Carina Carvalho mora em São Paulo; é formada em Letras e trabalha com livros. Dança pelos dias e escreve desde que acreditou ser feita da matéria dos sonhos. Tem textos publicados no Portal Cronópios e nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Trevo e Um Conto. Boa parte do que produz pode ser lida no seu blog Desastres Líricos. floreios bem servem ao campo . caatinga o tipo de vegetação, me perguntas quando a íris fica amarela de sanidades e pende para o solo. afundei, digo. penso ser pedra interrompendo placidez, lançada com duas mãos e um coração úmido, tamanha a pancada no vão dos musgos. escorrego em cada desejo flutuante e escapa às falanginhas o mato rasteiro nas margens para ajudar a travessia. se minha boca se enche em verde, admito lascas nos dentes; a tua alegria sai aos borbotões pelas frinchas da arcada, e sob controle (para que na poça formada caibam dois apenas, isto decidi). mas baixo os olhos... é tão cristalina esta água! e a posse abranda. em corredeiras tudo se engole. a pergunta foi por conta do bom dia fechado em espinheiros, atinei. tudo era seco, e sobre isso que faria eu? 7faces – Carina Carvalho│ 130 . maritacas desisti dos pêssegos por medo aos ferimentos. pesam muito à natureza as dores que os homens carregam em sacolas abafadas. às outras frutas fiz buracos na casca, e me movi branca pela polpa. pela manhã descobri que cantava com coragem: há no sumo quando desce a goela um quê de amor pelos que viajam. este dia quis sumir-se sonoro-suculento nas montanhas antes que lhe viesse o podre pelos maus-tratos. ou que maltratasse a si: o bico descendo forte no tórax, arrancando as penas desde o cálamo. 7faces – Carina Carvalho│ 131 . esturricado quisera ele, do focinho pontudo à coda, um todo intacto. (de corpo quis perto o teu, para o lamento pelos que desconhecem estrada.) éramos perigo em zigue-zague nas duas vias do sonho imenso. carimbaram-no em vermelho, pois, no fim de um raio de sol. pudesse antes, pulularia: veja, cidadã, um gambá é isto! 7faces – Carina Carvalho│ 132 . para não calejar ao fim e ao cabo, eram-me fortes as marcas nos pés. mapas da calmaria impressa: ficou gravado teu equilíbrio nas pedras. era o verde vasto, e era tanto, que a carne em contraluz pareceu esmaecer. quando não éramos fato, e éramos pouco, fiquei com ideia de títeres: de cada membro sairiam galhos finos cujo controle da outra ponta a alegria desconhece e sobre ele não se aflige. tanto ofereço para que escrevas... à minha sola e à palma chamo papiro. 7faces – Carina Carvalho│ 133 Paulo Lima Aracaju – SE Paulo Lima estudou economia, mas cedo desistiu do equilíbrio dos números e preferiu o desequilíbrio das palavras. Tornou-se jornalista. Escreve poesia e contos. acaso o inseto traça o traço como uma seta meu braço é sua meta miro o mistério que me visita meu braço é sua pista um inseto que cai da árvore é coisa banal mas se tal criatura me toca o braço eis que pedra filosofal mistério etéreo 7faces – Paulo Lima│ 135 inventório escrevinhar poemares palavrárias registrário caminhares estradárias arfãs cotidianário percepçãs 7faces – Paulo Lima│ 136 Natalia Turini Londrina – PR Artista visual multimídia. Natural de Jaú, interior de São Paulo, sempre transitou entre os diversos meios de expressão artística, mas foi após sua mudança para Londrina - cidade onde reside desde 2006 - que começou a relacionar-se mais intensamente com outras linguagens, sobretudo depois de ingressar no curso de Artes Visuais Multimídia. Dentre suas produções estão fotografias, poesias, ilustrações, instalações artísticas e objetos de arte. © Natalia Turini. Solúveis - Passagem SOLÚVEIS I - Passagem Restituindo-me do real. Vou ali sonhar. Sou o estado de entrega fora da normalidade. Desvanecendo lentamente a carne em vigília passagem introspecção diária-noturna. Despeço-me. 7faces – Natalia Turini│ 139 © Natalia Turini. Solúveis - Devaneio II – Devaneio Frames de um modo imaginoso. O ato de devanear em sublime estado da alma extra-sensorial. Fluidos inorgânicos solventes utópicos. Lugares completamente cheios de imagens são pixels sobrepostos na liquides da tinta transparências com gosto o passado já vivido encontro-me. 7faces – Natalia Turini│ 141 © Natalia Turini. Solúveis - Pesadelo III – Pesadelo Ruídos depararam-me eles estavam ali e dali não saíam. Marasmos cascos, cacos e restos estagnados progressivos transitórios. Sinto-me desconfortável aonde estou. Despeço-me 7faces – Natalia Turini│ 143 © Natalia Turini. Solúveis - Memória IV – Memória Incorporação das brumas: nevoeiro, fumaça e incertezas. Reminiscências armazenadas pela existência, mesmices vitais desgastadas pelo tempo agora reconhecida. Vejo imagens despercebidas, arquivos esquecidos. Tenho lembranças de palavras palavras que nunca foram pronunciadas. São nuvens liquidas em transe. Perco-me em memória. 7faces – Natalia Turini│ 145 © Natalia Turini. Solúveis - Despertar V – Despertar A despedida o inarmônico do despertar na profundidade da coisa imaginada. Lembro do gosto daquilo que não vi. Escuto o som daquela manhã, sinto cheiro de realismos. Dissolvo –me em impressões efêmeras. A flor que murchou no mesmo dia em que desabrochou. 7faces – Natalia Turini│ 147 Luís Garcia Tomar – Portugal Natural de Linhaceira, Luís Garcia nasceu em 1973 na cidade de Tomar. Mestre em Informática Educacional pela Universidade Portucalense é Consultor de Informática e Formador nas áreas de Informática e Formação de Formadores. Premiado em diversos concursos literários nas categorias de Prosa e Poesia entre 1989 e 2011, publica o primeiro livro de ficção em 2008, A lenda contada de uma vida escondida. Tem prosa e poesia publicadas em Revistas Culturais e Coletâneas no Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai e Colômbia. Publica em 2010 O encenador de vidas, um romance que obtém o 3º lugar no I Concurso Literário Best Seller Bubok. Sentidos Queimei a ponta dos dedos, passei a mão pelas tuas palavras e o tapete preencheu-me a desenho de fumo e outras cores! Os meus olhos saíram e correram daqui para fora, o chão mexe-se com demasiada insensatez, se eu pudesse segurava-me nas tuas mãos. Dei por mim a calar um sorriso ridículo, teimava em assaltar-me, um exército de concertinas, um sabor antigo enche-me de surrealismo. Sou o estranho que me observa. Os cães ladram ao fundo da rua. Acordei a pensar numa arma e fui lavar as janelas da sala. Deste lado posso espreitar-te nos meus ouvidos. Agachei a tua imagem e adormeci. Que sobra afinal para lá do pavor? Os outros amaram-se na estrada mas agora já ninguém sabe… O herói da máscara envelheceu e existe um aplauso para a nossa ficção. Está frio agora, mas daqui a nada a verdade é do avesso. Sou eu de certeza, mas também não sou! 7faces – Luís Garcia│ 149 Meia dúzia de coisas podem deprimir uma pessoa feliz Perdeu os lábios entre a pele e a carne. Levantou paredes para contornar uma pergunta. Não se fazem diálogos sem sinais de pontuação! Ouviu o segredo e desembrulhou o sotaque, depois engoliu o sabor a nada de um trago apenas, como se soubesse tudo de cor. Inventou um futuro e entrou nele, daqui a pouco tocam as doze, mas podiam ser três. As mãos foram lá e voltaram. Puxaram a porta com força e desfilaram vaidades do tamanho de uma noz moscada. Ficou a sensação de doce, bem fechada, talvez seja tudo o que se guardou. 7faces – Luís Garcia│ 150 In-somnia A sala do tempo enfeitada. Esquecido pelas paredes vai o pormenor; abafado num ritmo crescente, seco, de quem corre, ainda, com um sentido! No aumento produzem-se insónias! Talvez demore menos a contagem dos lugares. Somos tão poucos quando fugimos do sono. Turva a mente, aquela sequela de momentos em que se percebe exatamente, qual a fatia de realidade que nos calhou. Bate a porta do frigorifico, a madrugada já se soltou. Adoça os lábios e conforta o apetite, acontece uma pequena viagem no tempo e no chão frio até me abraçar de novo, na cama podiam ser equações quânticas. Desdobrei os dedos, invencíveis companheiros do medo, quantas foram as vezes que me encontrei assim? 7faces – Luís Garcia│ 151 Estudos e devaneios por Jordny Jordny. Artista nascido em 1988 em Planaltina, uma cidade satélite de Brasília DF. Aprendeu a desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado com essa que considera um dos pilares para seu desenvolvimento pessoal , como pensador e humano. Atualmente o último de Arquitetura e Urbanismo nasceu emcursa 1988 em ano Planaltina, uma cidadee continua a produzir suas obras pintadas e desenhadas." Jordny satélite de Brasília, Distrito Federal. Aprendeu a e peço que me mande o link para conhecer seu trabalho. desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado com essa que considera um dos pilares para seu desenvolvimento pessoal , como pensador e humano. Atualmente cursa o último ano de Arquitetura e Urbanismo. Para esta edição do caderno-revista 7faces, o autor cedeu um conjunto de trabalhos já apresentados publicamente no seu blog Jordny Art. A esse conjunto o próprio Jordny intitula por Estudos e devaneios, seja pela marca do traço inacabado, seja pelo tom simbolista e surreal dos desenhos. © Jordony. Sem título. Fev. 2011. © Jordony. O artista e sua quimera. Abril 2011. © Jordony. Girassol menor. Abril 2011. © Jordony. Árvore musical. Março. 2011. © Jordony. Jornada ao subconsciente com nuvens invertidas. Março. 2011. © Jordony. Devaneios n.5 Fev. 2010. © Jordony. Devaneios n.15 (de baixo para cima). Março. 2010. Um caderno para Dora O cavalo azul Por Alexandre Bonafim à memória de Dora Ferreira da Silva Um cavalo corta o corpo de meus ancestrais perdidos um cavalo corta o peito, fere o coração ferido Lara de Lemos Et beaucoup n'ont pas la chance De le voir passer un jour Le cheval bleu Gilbert Becaud Um tropel de silêncio e eternidade desdobra o ar em acordes levíssimos, feitos de orvalho e bruma. As crinas vão desatando o infinito, as estrelas, a solidão mais aguda. Eis o instante do cavalo azul. Eis a sagração do céu em nós. De seu dorso nascem os desastres. Procelas tatuam o seu plexo. Nos seus flancos levitam violinos de água, teclas de pólen, sinfonias de esquecimento. Jamais a morte poderia nos assaltar com maior doçura, com mais bela música. Jamais o sofrimento teve olhos tão dóceis, cílios de mel e vinho. Nunca o instante teve essa luz raríssima, desenhada pelas puras formas de um relâmpago cego, diamante vivo a deslumbrar a noite. A rutilância dos segundos galga nossa pele, a terra olorosa do corpo. Em chamejante espiral de nuvens, o cavalo azul nos enlaça em seu fulgor, na ternura de uma violência incontida, dança de galáxias e sóis delirantes, vórtice febril, iluminado. Ao toque do seu pêlo de súbitos incêndios, Na década de setenta, Dora Ferreira da Silva consagrou à sua importante revista o nome Cavalo Azul. Tal título ela extraiu dos mitos etruscos. De acordo com esses mitos, o cavalo azul era o ser mágico responsável por levar a alma dos mortos à morada celeste. Em homenagem à grande poeta, à criadora da revista Cavalo azul, Alexandre Bonafim escreveu este poema. queimamos nossa alma no eterno, aderimos nossa pele ao infindável. Festa múltipla, embriaguês da febre, somos a celebração dessa sonâmbula magia, pulsar sagrado desnudando-nos para as tempestades, para a decantação dos mares selvagens. Eis o instante da morte aguda. Eis o êxtase do tempo soberano. O cavalo azul nos visita com sua aparição de lanças desnudas, de lâminas agudas, mil raios a trespassarem nossas feridas. Quando suas patas arpejam a terra, as sementes fecundam os sonhos, despontam do pó ramos e milagres, frutos abençoam a encantação do amor: a cavalo marinho e os oceanos, o cavalo turquesa e os mares, o cavalo de âmbar e os corais ardentes. Reluz na noite um fulgor de adaga desnuda, fulgente aparição a cortar o sonho dos mortos, o sono das estrelas marinhas: cavalo azul a relampejar pelos caminhos o tempo das cicatrizes. Sua crina flamejante, seu ígneo peito, seduzem o luar, ampliam pelo infinito a cintilação das marés. Espectro de labirintos vazios, ele galga a espuma das praias, a agonia dos condenados à morte. Ele dardeja a dança dos barcos, o bordado das ondas, a solidão dos marinheiros em febre. Os náufragos, os miseráveis, os afogados, clamam pela salvação desse sopro de chuvas, desse maremoto de coices ardentes. Serenamente soa pela brisa seu pulsar de sândalo, o seu galope de prismas, delicado aroma do vinho a incendiar os crepúsculos. Ele adeja sobre o desespero, salvando-nos da carne, do medo, do tempo. Ele nos resgata do pó humano, soerguendo-nos à sagração das searas fecundas. Quando seu resfolegar nos arrebata, nos resgata de nossos pulsos, ressuscitamos no clarão dos rubis, na magnitude da aurora boreal. Desde o nascimento estamos consagrados a essa epifania de silêncio e mel: o cavalo andaluz e o eclipse lunar, o cavalo cigano e os cometas partidos, o cavalo de absinto e o mercúrio dos astros. Galopo no dorso das marés, meu corpo costurado nos ciclones, meu torso cravado em tua pele, em teu pelo lunar. Galopante aridez, eu só sei pulsar no teu plexo, na fecundidade dos abismos. Corpos em sôfrega transpiração, corpos em uníssono, rios a confluírem num delta de vertigens, foz de enchentes desvairadas, de correntezas alucinadas. Possuído pela lâmina dessa fúria, transmuto-me na energia a cegar as lanças, os ocasos, os labirintos. Sou o ser pleno a exaltar-te, és o que sou, o que fui e serei. Consagro-me à graça dessa comunhão, pela qual sou o universo e o nada. Nessa terra me deito, navego, nessa pedra me enterro, respiro, perco-me nesse instinto, nesse espasmo, para ser o fogo dos corais, azul febril de infinita iluminura. Cavalo marinho, dardejante quartzo, em tuas crinas de ágata, de prata, queimo a palavra da última estrela, rasgo o fulgor do teu transe, da tua clarividência, pois a morte se fez para os eleitos, para os profetas, os que sabem da finitude pelo íntimo do fruto, pelo cerne da chuva. Eis o pulsar da fúria e das catástrofes: o cavalo opalino e as estrelas, o cavalo candente e a poeira dos astros, o cavalo de vidro e os veleiros incendiados. Soou a hora derradeira e primeira. Eis o momento dos vendavais, do estertor dos cataclismas. Eis o que em nós germinou antes do nascer das sementes: nossa morte, cavalo azul a cortar o céu, a lançar nosso destino aos astros, onde a infância nos abraça novamente; nossa morte, corcel cravejado de safiras, noite mais densa que as rochas, onde o azul é harpa de cristais partidos, batel de marinhas esmaecidas. A sombra extrema desenha nosso rosto no vazio de outro rosto. A sombra extrema, fruto túmido, pleno, explode nosso íntimo, dissolvendo-nos na fulguração do eterno. Eis o momento do cavalo azul. Eis a hora da ressurreição das marés. Um tropel de sinfonias e plumas dardeja nossa carne, rasga nosso sêmen. O cavalo azul aflora dos abismos, submerge dos desastres, germina das montanhas. Em sua sede bebemos nosso avesso. Em sua fome sorvemos nosso mistério. Eis a travessia impossível, onde todo homem não caminha, porque não tem pernas, nem pés. Eis a travessia amputada, pasto de enigmas, partitura dos sonhos, onde somos cegos em nosso destino cego. Do fecundo nada, do absoluto silêncio, nasce essa música cristalina, puríssima: o cavalo celeste e as enchentes, o cavalo etrusco e os anéis de saturno, o cavalo de água e os arquipélagos selvagens. Cumplicidade Por Soares Feitosa para Dora Ferreira da Silva Chamar pássaros com alpiste de amá-los livres, procuradores eles serão, ad juditia, ad negotia, pleni, plenipotenciários, procuradores meus, asas livres aos meus azuis. Eles me pousam os parapeitos: uma sombra, tem que haver uma sombra cúmplice: seja de aproximar, seja de chegar bem perto – parece que é. o que garante o medo é o gesto das duas mãos, as duas, conchadas de pegar em quase... a alma do pássaro – não, não: "avoe, meu bichim", que não lhe devo... – A intimidade é sutil (dos pássaros), não só o deles: é sutil quando estremece e pousa. Sempre. Tzvietáieva e o céu do poeta Por Donizete Galvão Para Dora Ferreira da Silva Aproveite agora que o filho bateu a porta e saiu a trabalhar para seus senhores: arme a forca com precisão e calma de poeta. Que país ouvirá sua voz dissonante, sempre em vigília, a quem nada contenta? Que o corpo seja jogado na vala-comum, sem necessidade de qualquer cerimônia. A poesia - corpo que ganha espírito espírito em corpo encarnado entrará inteira, imaculada, no reino onde não existe julgamento. Último outono Por Donizete Galvão à Dora Ferreira da Silva A acácia insiste em derramar seus cachos amarelos. O verão já passou e deixou os estragos de uma ventania. Em vão, espalmei as mãos em busca de um contato. Choveu forte em seu jardim nestas últimas semanas. Nenhuma mensagem ultrapassou a barreira dos tijolos, nem impregnou os tubos e metais de sua cama fria. Não peço um outono a mais para você. Só mais um pedido: Átropos, que tanto hesita e demora, corta logo o fio que se esgarça em agonia. Este poema tem uma história estranhíssima como tudo o que envolve a Dora. Eu escrevi no dia da sua morte, dia 6 de abril de 2006. Acabei lá pelo meio dia e uma hora ou duas depois soube de sua morte. Ela estava em coma há vários dias. Eu não acredito muito nessas coisas de comunicação, mas ela sim. Tentei, então, me comunicar com ela. Pedia para sonhar alguma coisa. Não aconteceu nada. Nossa ligação sempre foi através da poesia. Eu fiz um plaquete para a missa de sétimo dia e acho que li na homenagem na própria casa dela, em primeiro de julho, rua José Clemente. Eu ainda acho doloroso recordar a minha amizade com a Dora. Comecei a frequentar a casa dela em 96. Ela saía pouco. Dos poetas que conheci, ela era o único que respirava poesia permanentemente. Estava sempre com a mente aberta para a poesia. Diferente de nós, que temos sucessivas crises com a palavra, ela tinha verdadeira convicção do poder da palavra poética. De uma certa maneira, não era moderna. Era eterna. Não tinha a negatividade que o poeta moderno traz consigo. Era solar. Estava muito ligada aos poetas românticos alemães como Hölderlin, a poetas difíceis como Rilke e Saint John Perse. A poesia dela é sempre de alto voo, sublime, mas nunca parece forçada. Às vezes, penso que uma parenta dela é a Sophia de Mello Breyner-Andresen. Ambas têm a mesma paixão pela Grécia, pela natureza, pela luz mediterrânea. Dora nunca perdia tempo com frivolidades ou fofocas. Sempre ensinava muito, mas sem ter um jeito professoral. Bastava entrar na casa dela, rodeada de verde, e a realidade da rua parecia ficar distante. Ela sempre trabalhando, sempre traduzindo. Da última vez que a vi traduzia os líricos gregos. Sempre animada, vitalista, cheia de energia criativa. Quem conviveu com a Dora sabe o privilégio que isto significava. Um tanto aérea para vida prática, mas ligadíssima e intensa nas questões da poesia. Nas cartas para ela, Drummond a chamava de “Dora Poesia”. Dozinete Galvão em Entrevista a Antônio Donizete Pires e Solange Cardoso Yokozawa. Revista Texto poético, out. 2010. Vias de ver as coisas 3 Paula Cajaty Rio de Janeiro – RJ Paula Cajaty, escritora carioca nascida em 1975, é advogada por formação acadêmica, mas desde cedo se assumiu escritora. Em 1995 venceu o “Por um poema de amor – concurso de poemas: coletânea”, organizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, com Ferreira Gullar e Suzana Vargas no corpo de jurados. Em 2008, publicou pela Editora 7Letras seu livro de estreia Afrodite in verso; depois, em 2010, lança Sexo, tempo e poesia, pela mesma editora. É, hoje, colaboradora da Revista Aliás e da Revista MundoMundano, parceira da agência Shahid Produções Culturais e colabora no Jornal Rascunho. o corpo sobre tudo o corpo sobretudo limite e fronteira filtro pó estrada caminho trincheira o corpo sobre o corpo novo onde se alcança outro onde suporta chão onde se cala fogueira silêncio. sobretudo quando o corpo jaz sobre a poeira sobre a chama toda sobre a aurora silenciosa alvissareira de uma madrugada de junho. 7faces – Paula Cajaty│ 173 Nuno Júdice Lisboa – Portugal Nuno Júdice nasceu em abril de 1949. Licenciou-se em Filologia Romântica pela Universidade de Lisboa, doutorado pela Universidade Nova. É Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e Diretor do Instituto Camões em Paris (França). Estreou na poesia em 1972 com A noção de poema. Em 1985 recebeu o Prêmio Pen Clube, e cinco anos mais tarde, o Prêmio D. Dinis da Casa Mateus; em 1994, recebeu o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores pela publicação de Meditação sobre ruínas, livro que também foi finalista no Prêmio Europeu de Literatura Aristeion. Como tradutor, verteu ao português autores como Corneille e Emily Dickinson. Tem extensa obra, com mais de três dezenas de títulos em poesia, mais de dezesseis livros de ficção, uma dezena de ensaios e quatro peças de teatro, entre outras publicações esparsas em revistas e antologias. O conjunto de poemas enviados à 7faces é inédito. À noite, a cabeça é um quarto escuro À noite, a cabeça é um quarto escuro para quem entra nela sem uma luz acesa, e sente os travesseiros a voarem pelo ar, as portas a baterem sem se saber porquê, e gritos que vêm de dentro de quartos e salas que ficam lá para o fundo, onde só os sonhos se passeiam. Adormeço e acordo, à noite, e a cabeça não muda, com sombras a correrem de um lado para o outro, mascarados a espreitarem por trás de velhas cortinas, e palavras que andam à volta das mesas, à espera que alguém as apanhe, e faça com elas bolas de sabão que se desfazem de encontro aos pensamentos. À noite, fecho à chave a porta da cabeça, e ninguém lá entra, nem eu próprio, para não tropeçar em tudo o que lá tenho. 7faces – Nuno Júdice│ 175 © Hélio Jesuíno Enigma quotidiano Avanças lentamente ao longo do muro da estação, já na rua. Fumas um cigarro que deixas durar, para que possa chegar ao fim do passeio que dá para a estrada. O vento entra pelas mangas da blusa sem botões na manga, e abre-as como se fossem velas, transformando o teu corpo em barco. O dia de sol cai sobre ti, e quase poderia ouvir a tua voz sem atravessar a rua, para te perguntar quem és, porque andas tão devagar, porque fazes o cigarro durar até ao fim do caminho. Mas o vento levaria para longe as tuas palavras, e a única resposta seria a inquietação dos teus olhos perante um desconhecido, a querer saber o que nem tu, alguma vez, saberás. Volto-me, então, e sigo o meu caminho para não te ver chegar ao fim da esquina, e voltar atrás, como se quisesses saber quem eu sou, e porque andei tão devagar, do outro lado da rua, a olhar para ti como se te conhecesse, e soubesse o que querias de mim. 7faces – Nuno Júdice│ 177 © Hélio Jesuíno Marcadores de livro De dentro de um livro há muito arrumado, caíram dois bilhetes para o segundo balcão de um cinema que já não existe, e para um filme que não sei qual foi. O que sei é como se subia para esses balcões, de mão dada, já com a sala às escuras, e o que se fazia enquanto o filme corria, e talvez visse melhor o rosto de quem estava ao meu lado, à luz que vinha do ecrã, do que o próprio filme. Vendo a data do bilhete, o que vejo é a sombra de quem me acompanhou nessa ida ao cinema, e a queixa por o filme ter acabado demasiado depressa, com a corrida para o autocarro e o regresso a casa. Assim, volto a meter os dois bilhetes de cinema dentro do livro que andava a ler na altura, e ao ver as páginas que ficaram por ler, posso contar cada minuto da vida que ganhei ao poupar nessa leitura, que só hoje recomeço, para novamente a interromper quando me tiras o livro da mão. 7faces – Nuno Júdice│ 179 Uma imagem do ser Na sua última, na sua mais completa visão, traçou o que lhe pareceu ser um retrato do fundo do seu espírito, onde lhe parecia ter apercebido uma sombra do que seria a própria alma. Queria provar a sua existência, demonstrar claramente que não era embuste, crença, simples ilusão, o que outros consideravam ser o reflexo do divino no homem, ou seja, aquilo que do corpo se distingue não por ser outra coisa, mas a sua verdade. No entanto, quando olhou para o papel, estava em branco. Distraíra-se. Escrevera no vazio; ou esquecera-se de encher a caneta. 7faces – Nuno Júdice│ 180 © Hélio Jesuíno O piloto da barra Tinha o ar distante e austero de quem recebe no rosto os ventos do mar, e se dizia uma palavra só ele a ouvia. No canto da mesa onde estava, olhando para as conversas e sacudindo a cabeça por nada ouvir, fazia parte de outro mundo. «Foi o rio que o pôs surdo», disse alguém; «foram os gritos das gaivotas», corrigiu a mulher que saiu de ao pé dele e atravessou a sala, com o olhar dos homens a persegui-la. «Faz versos», disse-me o amigo, «e guarda-os só para ele». A noite continuava o seu caminho. A mulher não voltou. E ele segurava o copo ainda cheio de bagaço, como quem segura o leme e não sabe quando, nem onde, irá chegar. 7faces – Nuno Júdice│ 182 Amosse Muscavele Maputo – Moçambique Amosse Eugenio Mucavele nasceu aos 8 de julho de 1987 em MaputoMoçambique; membro fundador do Movimento Literario Kuphaluxa, sonha em ser poeta, cronista, e contador de sonhos. Faz parte da equipe editorial da Revista Literatas – Revista de literatura moçambicana e lusófona, colabora no Pavilhão Literário Singrando Horizontes, Academia de Letras do Paraná, Jornal Coruja. Organizou a antologia da nova poesia moçambicana publicada na Revista Zunai. Tem poemas publicados na Revista Eutomia e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco. É membro correspondente da Academia de Letras Teófilo Otoni, Minas Gerais. Atravessar o Silêncio Ao Cláudio Daniel A memória é um inferno provisório onde os nossos dias visitam constantemente. na penumbra de um mar de esquecimento ladeado de flores que brilham ao som do silêncio. e ao entardecer. a neve embarca no murmúrio da água que bate nas pálpebras das pedras na solene viagem do nada.e para além do sal derramado nas margens, não via-se mais nada, pois o cinzento abacanhou a melancolia do céu que outrora fora azul. e difícil é, descortinar este lado invisível da distância que nos assiste. A ilha que nos espera é feita de papel que baloiça livremente nos olhos do mar-mil uma visões espalhadas no útero do passado, uma música embalada de presentes toca incansavelmente na febre do navio-onde é minha casa? E no colo do futuro procuraremos acender as nossas identidades com o anzol que perdeu-se nas ondas da tempestade. 7faces – Amosse Muscavele│ 184 Lembrança Ao Rui Knopfil ڻ Havia uma pétala vermelha que crescia no fumo de um cigarro. onde um homem puxava incansavelmente na esperança de querer vencer o medo que se instalava na porta dos seus devaneios E Dentro da casa onde os sonhos eram Guardiões . Havia uma pedra encostada a janela onde sussurrava nos ouvidos de Inhambane (quando lembra-se de alguém de olhos abertos deve-se sonhar de boca fechada). Mas Ninguém deu ouvidos ao sussurro da pedra. Encostado a inocência da pedra um sujeito levantou a mão no meio da multidão que pescava predicados e outros silêncios na sala da casa. ( Eu quero aprender a doutrina das cores que se manifestam nas pedras). ڥڦ A pincel a saudade relampeja no arquipélago da insónia do meu poema (quando durmo sinto a sensação de acordar no terceiro dia ,e quando morro passa-me pela cabeça a ideia de acordar no anoitecer das manhãs) ڥ Na corda da lembrança há um mar que desagua os incensos das suas ilhas , há uma cegueira que se assiste o suicido do arquipélago na insónia dos mangais. Há uma L A G R I M A que cai. nos solavancos das ondas que ondulam na sepultura onde jaz a flor murcha de abandono. 7faces – Amosse Muscavele│ 185 ©Malangatana. A Noiva da Ilha. (Reprodução) Poegrafia a Malangatana A ilha ao acordar escuta sempre a monotonia que a solidão do mar canta. Assiste com os olhos dos xipocos que a namoram sem tréguas a uma velocidade da luz. A luz acende o amor que se esconde no poente das mãos do homem que está aborto do xitarutaru a caminho da ilha. Nos remos transborda um sonho vulcânico que explodirá quando atingir o núcleo do destino. Onde flores tomam o brilho do sol que clareia as margens de um sentimento que sobrevoa no dócil olhar dos ilhéus. Onde a bravura do mar transformar-se-á num paraíso construído pelas sombras do amor, alegria, sob a alçada dos ramos do embondeiro que dão mel e maça (não proibida). No cais da ilha os homens e os animais esperam eufóricos pelo brilho da aliança. Cantam, dançam a mesma música agora com retoques do sopro do mosquito, e do árduo trabalho de fabricar prazer a cor do mel das abelhas. Batuques acompanham as ovações da multidão, com crianças no colo das mulheres que preservam a beleza com os lenços na cabeça. A noiva já não sente os pés no chão, mas vê o barco que se aproxima. Sente o futuro e a cor do vento do matrimónio a beijarem a sua face, e por último a mulher diz: É hoje que o carvão que arde no meu corpo. O mel que derrama na minha boca terá dono. Amor até que o mar nos separe. xipoco: fantasma xitarutaru: barco artesanal da zona sul de Moçambique 7faces – Amosse Muscavele│ 187 Carlos Margarido Torres Novas – Portugal Carlos Manuel Alves Margarido nasceu 24 de Fevereiro de 1970; cresceu e vive em Torres Novas. Tem predileção e escreve poesia desde pequeno. Idade Demorei a minha idade Para acordar hoje. Levantei-me, já velho. Espreguiço os dias Honrada roupa que visto Bilhete, palco vazio do tempo Jamais, bati no mal da porta Ato os atacadores, Calço os segredos. De quem, dei tantas vezes à sola. Caminho lento, e demorado Tão bem, tão mal passado Lavo a cara, penteio O rosto no espelho Desta idade. 7faces – Carlos Margarido│ 189 Chave Embato em paredes maciças Esconderijo que te esconde Nas traseiras dos meus olhos Nestas grades do tempo Onde me sinto prisioneiro De braços amarrados Resta-me tirar esta mordaça Para te poder dizer Que mais um igual a tantos outros Os dias que em mim esperam por ti Nestes barcos de papel Que se afundam no ensopar da água Ou este anjo de papel e entusiasmo Que o ar faz bater no chão Neste brilho que te olha Num sorriso nunca visto Nesta chave que não abre o sonho De um momento sequer Desabitado Não são lágrimas Os instantes em que choro Na transparência que recebemos No fogo que faz o luar Transpiro neste corpo despido Sem braços ou dedos Que se perdem No silêncio das paredes Nas sombras que habito No morrer iludido Que o passo deixa passar Sem andar Há muito que a minha nuvem Se esvaziou em chuva Nas lágrimas Que molham o corpo já nu Desvanecido sem sentido Desabito-me 7faces – Carlos Margarido│ 191 Amélia Luz Pirapetinga – MG Nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata, Minas Gerais. Escreve poemas, trovas, crônicas e contos, com várias premiações. Poesia para a anciã A mulher como palha seca o banco frio da praça O xale de lã o coque, os grampos, os cabelos brancos... O velho casaco o vestido de bolso os sapatos gastos de tantas caminhadas! O rosto, as rugas, o sorriso costumeiro. A idade, a face, o desenlace, o “rouge”, o pó de arroz, a vaidade apesar do tempo! O coração cansado se despedia, Maria ria, ria...De tudo ria... Da vida nada mais temia esperando o vento forte que a levaria para sempre naquele marcado dia! Soltava-se com leveza De tudo que vivera. A cigarra não mais cantava a canção da juventude. O corpo voltava solitário para o ventre escuro da terra mas a sua alma segura, com o Pai encontrava-se no jardim da eternidade... 7faces – Amélia Luz│ 193 Ventos da Infância Pião, xadrez, gamão Pula-carniça, cabra-cega, Boneca de pano, peteca, Perna-de-pau, pau-de-sebo, Festa de jeca, paçoca, pipoca, Amendoim, coisas assim, Que lembram a infância! Palhaço, circo, picadeiro, Espetáculo verdadeiro, O engole-fogo, o joga-facas, O leão domado, o cão ensinado, O elefante dançando valsa! “E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher”! Doce de leite, quindim, Puxa-puxa, chocolate, pudim, Batata frita, a turma grita: - Quero mais! Quero mais! Jabuticaba, manga madura, Amor em pedaços, ternura, Goiaba ou goiabada, Carambola ou carambolada, Marmelo ou marmelada! Picolé, sorvete de limão, Pão com manteiga, requeijão, Leite quente e beijo de mãe, Acordando a gente! Escola, brincadeiras, Uniforme, carteiras, Livros e quadro de giz, Não levo pau por um triz! Recreio, pátio, alvoroço! Pula corda: um, dois, três! “Rosa branca”! “Macarronada”! Cada um na sua vez! Ciranda, todos na roda, Sem saber que assim girando, Rodando, rodando o tempo levava, Os doces anos da meninice! 7faces – Amélia Luz│ 195 Paulo Vitor Grossi Rio de Janeiro – RJ Paulo Vitor Grossi nasceu no Rio de Janeiro em novembro de 1985; é formado em Turismo e escreve poesia, contos, pequenos romances entre outros gêneros. Os Sonhos, Nicolas; Volume II: Adiós, Lite de Ratura; Santa Cruz; Carne Viva; Rara (Volume três), o hotel m tá infestado de pragas & “A Faca e o Queijo na mão” são seus livros. É o autor, e ilustrador de suas obras. cura: poema “I” Um teor de intimidade Reminiscências com odores Via-se o pássaro violador Sempre dentro de você Por vezes a te lembrar Cálida como incestuosa Essa figura ideal Desfaz-se ante o presente Encerra em si o divino 7faces – Paulo Vitor Grossi│ 197 cura: poema “IV” A Questão do Equilíbrio das Coisas poema cláusula, ou prosa solidária. depende de como maneja A frase é móvel, quebradiça depende da entonação. A noção de união move blocos. A todos que acreditarem nos desafios. Razão e princípios Razão e princípios ao povo brasileiro. Conhecimento e força. Valores Que venham pelos ventos. 7faces – Paulo Vitor Grossi│ 198 cura: poema “XIV” Teu ato e sangue pois fotos são eternas Estrela da apresentação Escrevo uma nota Gosto tanto, ouço mais sinto pura Moira Te juro, merda Melhor seria dizer Que enrolada está! cura: poema “XXIV” A guitarra exala microfonia Em bloco, vem a canção ao fundo Poupar é pros medrosos 7faces – Paulo Vitor Grossi│ 199 Renata Bomfim Vitória – ES Renata Bomfim nasceu na Ilha de Vitória, capital do Espírito Santo, Brasil. Poeta, Artista plástica, ativista socioambiental, a escritora é mestre em Letras e, atualmente, desenvolve uma tese de doutorado na qual dialoga as poéticas de Rubén Dario e Florbela Espanca. Membro da Academia Feminina EspíritoSantense de Letras. Publicou as obras Mina, Arcano Dezenove, e seu terceiro livro de poemas, Colóquio das árvores, encontra-se no prelo. Autora do Blog literário Letra e Fel. Joana D’arc Joana, precisas ser marginal, Ser santa te fará igual a tantas. És diferente, Joana! O fato é que incomoda O teu existir, a potência de tua fé. És mulher, Joana, não esquece! Tira essa armadura, essa calça feia, Veste-te de luz e de prazer. Talvez fosse isso o que as vozes queriam te dizer. Liberta-nos, libertando a ti mesma. Vejo que queimas, ainda, em agonia, Sob a ira dos homens da igreja. Pelejaste contra as injustiças, Teu alimento: entradas e bandeiras, Do povo, foste guia. Em retribuição te prepararam uma fogueira. E foste linda morrer, de vestido branco e chapéu. Teu corpo virgem foi macerado como um lírio, um cardo, O sol, envergonhado, se pôs ao meio dia. E eu gritava: ─Pula daí, Joana. Cai fora! Mas, minhas mãos estavam atadas Não pude te ajudar. Àqueles que amam a maldade, O poder, e se alegram com a crueldade Precisam saber: Tudo perdeu a cor e ficou cinza Quando você se foi, mas, Puída, a tua bandeira tremula ainda. Só não vê quem não quer! 7faces – Renata Bonfim│ 201 O prazer de Salomé Depois de dançar Ao som da lira negra A réptil inviolada Fez amor pela primeira vez. Seu corpo era todo um jardim Recé- nascido da paleta de Moreau Dos seus seios fatais brotavam Safiras, ágatas, pérolas e rubis. Salomé trazia no sangue a fúria De Herodíade e a morte Nos olhos de prata. Naquela noite Feita de angústias estéreis (e solitárias) Dois homens perderam A cabeça. © F. Markham Skipworth. Salomé. 1897. Campos desconhecidos Dentro de mim há paisagens Voam livres e barulhentos os corvos de Van Gogh sobre os campos de trigo. Me persegue uma nostalgia do não vivido Os rios, sempre inéditos aos olhos de Heráclito, aos meus são um tédio. Há ainda, nos meus confins, canyons, mangues, Matas e cerrados, por onde caminham os lobos e suas crias e outros animais. Este espaço é ambíguo, as vezes me amedronta. Há também muitos penhascos, Há céu azulado, há prazer, dor, fome, mágoa, histórias sórdidas e livros que não ouso ler. A Morte, mocinha refinada, mora bem perto de todos os meus descampados é possível ouvir o som, rouco, do seu riso. Até aonde alcança a vista Eu quero chegar, e ir mais longe ainda. Quero explorar esse território estranho. Sou nômade! Desse mundo pouco sei, dizem que é meu, mas duvido, me pertence apenas a poeira no sapato Que trouxe das terras por onde andei. Conto com a benevolência da memória que não me deixa esquecer as alegrias e nem as desgraças vividas. Talvez seja por ela, ou por isso, que eu ainda esteja aqui, assim, sonhando com a falácia da unidade. 7faces – Renata Bomfim│ 204 Campo comum Nada nos é alheio, Dentro de mim e de ti há um amor irrestrito o ódio dos assassinos os atos dos santo a covardia dos bandidos. a poeira da primeira estrela e resquícios das águas: do grande dilúvio do mar da Galiléia do rio Benares do Tietê do mar japonês imantado pela radioatividade. Um mundo de caos iludido por imagens edênicas nos convidam para viagens ilusórias e paradisíacas. Há no âmago do nosso ser a videira vinho e pão a ceia inteira, e santa o ódio o perdão Tudo isso nós compartilhamos mas, leitor, há dentro de mim uma angústia que desconheces: o assombro de estar viva contemplando a beleza bruta e há o desejo incontido de desabrochar, qual rosa mística, no coração do Cristo. 7faces – Renata Bomfim│ 205 A neta de Mery Wollstonecraft Herdei de minha avó O gosto por homens instáveis e A fibra de quem não tem nada a perder Lembro ainda dos seus olhos Profundos e suicidas De como ela gostava de se sentir asfixiada Pelo trabalho e por coisas dolorosas Quanto prazer lhe dava mergulhar os dedos No abismo do tinteiro para depois Macular as folhas sedosas e carentes de papel Mulher de côrte e de cais A sua pena traçou a minha sina As bancas das esquinas, hoje, vendem exemplares Do seu livro de miséria e solidão (A preços populares) Ah! Se minha avó me visse agora Quanto orgulho teria da sua linhagem Mulheres mais rotas que alinhavadas Condenadas a nunca se juntar Irremediavelmente cindidas e secas E orgulhosas como bestas que pastam Em terrenos baldios. 7faces – Renata Bomfim│ 206 Dora Ferreira da Silva recortes 2 Epidauro O ensinamento básico de Thoreau era o de carregar nada ou pouca coisa ao abandonar a própria casa em chamas. És um americano pobre, Henry Miller, não estranharás minhas sapatilhas meu cabelo preso e o rosto limpo. Serei a solidão a teu lado. Katsímbalis mal notará uma mulher a caminho de Epidauro. Sabes, és o único hóspede de sua pátria e coração. Grega nas mais antigas ramagens do sangue, acaso depare comigo, pensará que sou uma pequena coluna, ou um perfil apagado de hídria e não me dará atenção. Teu gosto de ser só, Miller, não o perturbarei, também o conheço e a paisagem conspira: poucos arbustos, pedras e o pó. O carro alugado avança com as hesitações de um inseto. O tempo voa no espaço. Dessa máquina sacolejante encaramos a mesma paz de um mundo quieto e parado. Que luz etérea! Epidauro anuncia o céu? Há mais Mozart aqui do que em qualquer outro lugar. Estamos a caminho da Criação, basta ouvir o sussurro de princípios misteriosos, se falarmos seremos melodiosos: nada a esconder, capturar ou preservar, ruíram muros que aprisionavam o espírito, instalou-se a paisagem nos campos do coração. Não passamos pela natureza – digamos – somos a debandada das forças da ambição, maledicência, inveja, egoísmo, despeito, intolerância, orgulho, arrogância, mesquinharia, duplicidade and so on. É a manhã do primeiro dia da grande paz, a paz do coração, porque nos rendemos. Isto não é o oposto da guerra, porque a morte também não é o oposto da vida. A linguagem, que pobreza! Pobreza da imaginação 7faces – Dora Ferreira da Silva│ 208 do homem, de sua vida interior com seus trastes inúteis. A paz que encontramos em Epidauro ultrapassa a compreensão da maioria: um cessar de hostilidades, uma pausa negativa. A paz do coração que encontramos – Miller e eu – (Katsímbalis a possuía) é positiva, invencível, nada requer, nem pede proteção. É. Só. Vitória? Se o for, muito especial, baseada numa rendição especificamente voluntária. Ah, grande centro terapêutico do mundo antigo – EPIDAURO! – Aqui, o próprio curandeiro se curava – início de uma arte, não médica, mas religiosa. A Natureza – ensinam os grandes curandeiros – é a maior das curandeiras. Mas é preciso, Dora (diz Miller) que o homem reconheça seu lugar no mundo e este não é a Natureza (domínio do animal) mas o reino humano, ligação entre o animal e o divino. “Epidauro” foi publicado na Revista Brasileira da Academia Brasileira de Letras, Edição 28 do trimestre julhosetembro de 2001. Epidauro? Pura charlatanice, dizem os cientistas. Progredimos assustadoramente. Nossos progressos conduzem à mesa de operação, aos manicômios, às trincheiras. O culto médico funciona mais ou menos como o Ministério da Guerra – os triunfos escondem morte e desastre. A alegria de viver vém através da paz, que não é estática, mas dinâmica. Não há alegria sem paz e sem alegria não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros, seis mordomos, um castelo, uma capela particular e um abrigo anti-aéreo. Ao que quer que nos apeguemos – seja esperança ou fé – eis a doença à espreita! Rendição absoluta, é isso. Quem agarrar-se à mínima migalha estará nutrindo o germe prestes a devorá-lo. Quanto a agarrar-se a Deus, Ele nos abandonou há tempos para descobrirmos a alegria de alcançar o Bem. Todo esse barulho, toda essa súplica pela paz crescerá à medida em que dor e miséria crescerem e a nada levará. Onde encontrar a paz? Imaginas que ela é algo a ser estocado como trigo ou milho? Algo para ser preso e devorado, carcaça entre lobos famintos? Os que falam de paz têm semblantes carregados de raiva, ódio, desprezo, orgulho, arrogância. Enquanto o assassinato não for arrancado da mente e do coração não haverá paz. O assassinato é o cume da pirâmide, cuja base mais larga 7faces – Dora Ferreira da Silva│ 209 é o Ser. O que está de pé ruirá. Tudo aquilo pelo que o homem lutou, deve ser posto de lado, se quiser viver humanamente. Até agora não passou de uma besta sanguinária e mesmo suas divindades não prestam. Mestre de muitos mundos é um escravo no seu mundo. O que comanda o universo não é a mente, é o coração. Em Epidauro, na quietude que sobre nós três baixou ouvimos bater o coração do mundo. Então sabemos qual é a cura: desistir, renunciar, render-se para que nossos pequenos corações batam em uníssono com o grande coração do mundo. NOTA DA AUTORA. Poema inspirado no livro de Henry Miller (O Colosso de Marússia). Refizemos juntos a viagem a Epidauro, Henry Miller e eu, com o poeta grego Katzímbalis, que se manteve silencioso, mas não descontente. © Chagall. A sua (detalhe) Reprodução A sibila Nas praças, nos templos e olivais um grito de louvor à Terra, dançai! Vim sem esplendor da aurora, mendiga, não como as musas de outrora, dadivosas Diotimas, vim mendigar o que há muito vos ofertei, Poetas: sopro-vos à garganta dilatada, vossos olhos ceguei para que o fundo olhar se liberte. Sibila em agonia, há tanto silenciada, falarei por vossas bocas, em vossos versos, arquejará minha voz embriagada, rouca – sustos e soluços, gritos, silvos, neblinas de esgares, mares de canto e pranto. No tempo além do tempo meus lábios murmuram por ti e perto dos templos derruídos, a respiração do velho Mar, seus haustos e gemidos. Mostra-me o silêncio o lacre escarlate, verbo indigente dos mitos que sempre me uniram às setas de Apolo. Há tanto minha palavra foi calada, os deuses recuavam... Mas os poetas mantiveram-me viva. O mais ínfimo deu-me de beber e em sua hídria refresquei meu rosto. Sensíveis a meu sopro, os maiores coroaram-me de folhas verdes. O nascimento do Poema é o silvo que Apolo harmoniza e Orfeu faz cantar. Rompendo as cisternas escuras vim, raiz coleante por entre as pedras e a secura. Dilacerada, arquejante, acolhe-me Apolo em seus braços de névoa. Gemidos rasgam mil caminhos na gruta: Ai, ai, oh... A Sibila arrasta-se no pó, soluça, seus lábios deliram, traça no ar os gestos incertos dos agonizantes, colhe flores na neblina. Ai, ai, oh... Foram-se os deuses da Grécia, só espelhos refletem espelhos, o eterno assim se dá e esconde. Onde Afrodite, a de rosáceos tornozelos, ungida de óleo incorruptível, com seus perfumes, colares e pulseiras cintilantes? Onde Ártemis, a doçura selvagem? Foram-se as ninfas e hamadríades! Nunca mais a vida estuante dos bosques, suas flores e clareiras, onde Zeus e Hera adormeciam ao calor do dia. Ai, ai, neblina da neblina, o que enlaçarão agora nossos braços? Não mais que névoa e vento. Apolo, assim te afastas, e me deixas presa à teia indecifrável destes sons selvagens? Aaa, Oooo... Em teu ombro dourado me apoiava, inventando poemas que ditavas a meu secreto entendimento. Infeliz de mim! Agora só posso tocar névoa e memória. Dissiparam-se Mundo e Palavra. A Sibila chorou. Nesse momento as coisas cessam, silenciosas, atemorizadas. Os ventos param de soprar, nas árvores as folhas não se move. Os rios adormecem e gigantesco Mar é liso e sem ondas. Paira sobre tudo um SANTO SACRO SILÊNCIO Perde-se na neblina a medida do Tempo, tudo se abisma no silêncio, à espera do alto Deus, meta dos séculos. A Sibila abre os grandes olhos e vê o Deus que nasce. “A Sibila” foi transcrito por Constança Marcondes César num texto publicado na Revista do Instituto de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, edição 16, de dezembro de 1997. A Mãe, junto ao menino, parece uma vinha e enquanto a Lua surge, clara, ela adora o Filho em seus braços. De ouro vivo é a Criança e em resplendores toda a gruta se ilumina. Luz nascida como o orvalho descendo do Céu à Terra e em torno, suavíssimo aroma. Anjos perpassam, alígeras borboletas e cantam: Amém. A Sibila sorri. Um cântico novo brota em seus lábios, mas não é seu, o infinito o modulou: O aroma de teus perfumes é delicado e teu nome, óleo que se derrama. Serás nosso júbilo e alegria... Não repares em minha tez morena, que o sol queimou. Irados, meus irmãos fizeram-me guardas as vinhas, eu, esquecida da Vinha! Ouço a voz do meu Amado batendo à porta Lentos são meus pés e ao abrir a porta o Amado já se foi. Corre minha alma e o busca por toda a parte. Não respondes, Amor, ao meu chamado? Eu vos suplico, filhas de Jerusalém, se o encontrardes dizei-lhe que estou doente de amor. O que tem ele – elas perguntam – o que tem o teu Amado mais do que os outros para que assim o busques, quase morta? Meu Amado é róseo e brilhante, meu Amado vermelho. Sua cabeça é de ouro puro, seus cachos, negro-azulados. Seus olhos são duas rolas perto de um lento riacho. Destila mirra o lírio de seus lábios. Sei que habita um jardim, companheiros, ouvem sua voz... Oh, faze que eu também te escute! Quem é essa que vem do deserto como um cântaro apoiado a um peito amoroso? Ele é um selo sobre seu coração, sobre seu braço moreno, pois o Amor é forte como a Morte, suas centelhas são de fogo: uma chama divina! Dissipa-se na névoa um rosto efêmero, mas a face do Amado permanece. 7faces – Dora Ferreira da Silva│ 214 Fac-símile da capa de 1ª edição do primeiro livro de Dora Ferreira da Silva, “Andanças” publicado em 1970 e reunindo poemas escritos entre 1948 e 1970 numa edição custeada pelo própria autora. Imagem: Arquivo Vilém Flusser. Noturno I Estrelas pendem da noite, videira delirante. Coroada de espelhos e ametistas transmutas a carne em nudez guardiã, sacerdotisa, nos vales da distância rumina em silêncio teu rebanho tranquilo. 7faces – Dora Ferreira da Silva│ 216 Noturno II Nossos olhos nos pertencem – não o dia. Amor não nos pertence nem a morte. Apenas pousam na pérola mais fina. Desce o luar no flanco de rios precipitados folhas se alongam caules estremecem. A noite já desfere seu punhal de trevas. Noturno III Pétala da noite pálpebra fixa dos que olham para sempre a morte nave perdida e sem memória pérola marinha arremessada às águas. Rosa intranquila pólen do amor sem pouso mênade errante, os longos cabelos torturados, tu, sublevada, que me prendeste em teu anel de insônias e que desfias no espaço o claro colar de águas: por que acordas no meu peito a sede dos desertos e me aprisionas, pássaro, em teu arco de prata? Transpoema De onde vens, quem sabe, quem te sopra ao meu ouvido? É o transpoema e seu ressaibo é lembrança e olvido. É um fruto oriundo de algum ser – o mais profundo – entre mim e tudo o mais. É a curva de um caminho é a urze, o rosamaninho é o amor mais esquecido que sabe o mais querido. É a flauta muito doce é a canção de sempre e agora é a carência e a pletora a vida me fez assim. O transpoema serpenteia na minha alma-lua-cheia e transborda tantos frutos... Mas quem sopra em meu ouvido? É lembrança e é olvido. 7faces – Dora Ferreira da Silva│ 219 Capa da edição de Transpoemas. O livro é uma publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. Imagem: Arquivo 7faces O leque (variações) Linha oblíqua oculta desoculta o instante breve cores exalta do negro ao escarlate. Ela e o leque: a aragem esconde em poço de sombra a curva do pescoço o colo branco. Capa da edição de O leque. Assim como Transpoemas o livro é uma publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. Imagem: Arquivo 7faces Appassionata (fragmento) É preciso desdobrar asas de amor conhecimento liberar o tato de todas as coisas que esperam, pois o eco fugiria das palavras vãs. Sem pólen, os pássaros voltariam aos ninhos de sombra se teu coração recuasse e os cabelos não soltasses Appassionata Capa da edição de Appassionata. O livro é uma publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles juntamente com Transpoemas e O Leque . Imagem: Arquivo 7faces Dora Ferreira da Silva inéditos © Edmar José de Almeida. Dora Ferreira da Silva (retrato) Detalhe de um quadro óleo. Manuscrito do poema que abre o livro Transpoemas, de Dora Ferreira da Silva, publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. Escrito entre 2005 e 2006, o livro “nos surpreende com uma reflexão delicada sobre o poema. Toda a sequência é uma interrogação sobre o fazer poético e o papel reservado ao poeta. Numa clave metalinguística, Dora mostra o poeta como um vaso comunicante por onde o poema se transporta.” – afirma Dozinete Galvão. Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem autorização responsável. Manuscrito do poema II do livro Appassionata de Dora Ferreira da Silva, publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. “Uma noite me ligou [Dora Ferreira da Silva] especialmente feliz e leu o poema que considerou seu trabalho mais importante – Appassionata. Eu fiquei sem palavras, era o poema mais lindo que jamais ouvira... Ele havia nascido de um mergulho incondicional na Sonata n.23 de Beethoven, e o que ela queria era que as palavras se tornassem música.” – Inês Ferreira da Silva Bianchi. “Appassionata é uma obra de puro arrebatamento, calcada naquele enthousiasmós (ou transporte divino) de que nos falam os antigos gregos. É também, como se vê no orfismo, uma tentativa no sentido de que as palavras posam transformar-se em música, embora a música da poesia, como entendia T. S. Eliot, seja definida a partir de critérios bastante distintos, os quais ensinam que ela não seria que existisse à margem do significado. Mas a verdade é que, nos poemas de Appassionata, cumpre-se à risca aquele conceito eliotiano de que a música de uma palavra está, por assim dizer, num ponto de intersecção, já que ela ‘emerge de sua relação, primeiro, com as palavras que imediatamente a antecedem e a ela se seguem, e indefinidamente com o restante do contexto; e de outra relação, a de seu imediato significado nesse contexto com todos os demais significados que haja possuído em outros contextos, com sua maior ou menor riqueza de associação’.” – Ivan Junqueira Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem autorização responsável. “Dora foi uma das pessoas mais luminosas que conheci. A casa da Rua José Clemente foi um dos corações intelectuais do Brasil. Corrijo: a palavra intelectual acaba de me incomodar. Aquela casa era a casa do ser. Uma clareira aberta. Uma realização plena do que possa vir a ser a experiência do desvelamento. Havia algo de muito especial naquele lugar. Nunca consegue identificar o quê. Continuo tentando. Mas ainda não consigo. Convivemos todas as semanas durante os últimos três ou quatro anos de sua vida. Coordenávamos juntos o centro de estudos que ela fundou, o Cavalo Azul. Os encontros eram justamente na biblioteca, antigo escritório de trabalho de Vicente Ferreira da Silva. Estávamos sempre a um passo de cruzar o umbral. É essa a impressão mais forte que guardo dos encontros com Dora e da casa e que tentei fixar em um depoimento: entrar em sua casa e em sua poesia era cruzar um umbral. Tudo às costas se dissolvia, como na descida de Orfeu. É difícil falar dela. São muitas coisas. Desde conversas que tínhamos sobre poesia e arte até sinuosos devaneios sobre a vida após a morte, a imortalidade, a alma e visões e presságios em sonho. A sua poesia era ela e apontava na direção de tudo o que ela conseguiu mobilizar ao seu redor. No modo de falar, nos grandes olhos redondos, na palma da mão sempre elevada como uma sacerdotisa. A poesia de Dora, a obra de Vicente e aquela casa persistem em mim como um sonho continuado. E vez por outra me apalpo pra saber de fato de que lado estou desse limiar.” – Rodrigo Petrônio. “A poesia é o paraíso do paradoxo. In: Revista Texto poético. Imagem. Dora Ferreira da Silva. Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem autorização. Vilém Flusser e Dora Ferreira da Silva mantiveram durante larga data, desde que se conheceram estreitos diálogos entre poesia e filosofia. Parte desses diálogos se deram no grupo formado por Dora, “Cavalo Azul”, e se estenderam pela obra; tanto Vilém escreveu sobre Dora quanto Dora escreveu sobre Vilém. Nesse intercâmbio de conhecimentos, os dois também mantiveram a largo sua ponte de correspondências por escrito. Imagem Carta de Vilém Flusser para Dora Ferreira da Silva e resposta de Dora para ele. Arquivo de Vilém Flusser Studies. Cópia. Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles Dora Ferreira da Silva encostada em pedra, na praia de Mongaguá, São Paulo, 1940. O mundo em poesia Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os fatos cotidianos, sua própria história familiar, os poetas que ela admirava, pintores, a natureza, mitos, todos esses elementos se transfiguravam em matéria poética, e o poema era o resultado dessa experiência, ou melhor, desta vivência. Inês Ferreira da Silva Bianchi fala sobre si e a relação com sua mãe, Dora Ferreira da Silva. Inês por Inês “Nasci em 1953 em São Paulo, e fui uma filha temporã, uma vez que meu irmão Luiz Vicente, falecido no ano passado, já tinha 12 anos quando cheguei. Segundo minha mãe falou, foi uma gravidez de alto risco, fruto de sua teimosia diante das recomendações médicas em contrário. Até os 10 anos de idade estive muito próxima de meu pai, uma pessoa essencialmente solar, que me levava em sua romizeta para todos os lugares. Costumava ficar sentada no braço de sua poltrona enquanto ele escrevia páginas e páginas de filosofia, num papel finíssimo e colorido. Sua letra era incompreensível, e só minha mãe conseguia decifrá-la. Ela batia a máquina e fazia a revisão. Desde cedo, percebi que a minha casa e minha família eram bem diferentes das de minhas amigas. Durante a noite aconteciam reuniões e meu pai dava aulas para muitas pessoas. Dos degraus da escada, escondida, eu não ouvia muito bem o que se falava, mas mesmo que ouvisse não entenderia nada. Havia música, e um clima de grande entusiasmo nas discussões. Depois de adulta, vim a saber que esses encontros filosóficos foram inesquecíveis para todos os que estiveram lá. Meu pai morreu de forma trágica em 1963, num acidente de carro, e foi muito difícil para mim sua perda. Nessa época, minha tia, irmã de minha mãe me chamou para uma conversa, daquelas que nunca se esquece na vida. Disse-me que eu teria uma grande responsabilidade dali em diante, cuidar de minha mãe. Falou que ela era uma pessoa sensível, com pouco senso de realidade - uma poetisa - e que caberia a mim a tarefa de ser seu fio terra. De certa forma, esse foi meu papel por muitos e muitos anos. Como meu irmão se casou logo após a morte de meu pai, ficamos só nós duas, e nossa relação foi marcada pela não ortodoxia, em todos os aspectos. Ser mãe ou filha era uma condição variável, determinada pelas circunstancias e pela maior ou menor habilidade de cada uma frente à tarefa. O universo prático, via de regra, cabia a mim. Fomos muitas vezes para Itatiaia, e a convivência naquele chalé no alto da montanha sempre foi repleta de aventuras: enfrentamos aranhas caranguejeiras, cobras, banhos gelados de cachoeira, e passamos a noite perdidas numa trilha no meio do mato. Também em Itatiaia ela realizou um grande sonho meu – ter um cavalo. Passávamos as tardes pintando pedras, e numa vitrola a pilha ouvíamos Mozart e Bach. Ainda hoje o chalé de Itatiaia se mantém intacto, assim como a capela de São Francisco, que minha mãe construiu ao lado da casa, feita com a ajuda de muitos amigos, com pedras e telhas de demolição. Quando entrei na faculdade, em 1973, pensava fazer o curso de Letras, e me tornar, quem sabe, uma escritora. Na PUC, o primeiro ano era integrado para todos os cursos, e apenas duas matérias eram específicas. Ao final do ano conversei com uma professora, e como não estava gostando nada de latim e de linguística, e não pretendia ser professora de Português, ela me aconselhou a fazer uma reopção para outro curso. A Psicologia me pareceu um caminho interessante, pois reunia uma atividade prática que me atraía (o atendimento clínico), e um espaço criativo bem abrangente que me permitiria desenvolver a literatura. Psicologia não havia sido nenhuma das minhas opções no vestibular, e por isso precisei fazer uma prova especial para conseguir a vaga. Escolhi montar uma peça de teatro: A prostituta respeitosa, de Jean Paul Sartre. Foi uma experiência fantástica, que não só me valeu a vaga na Psicologia como também algumas reapresentações para o público no teatro da PUC. Minha vivência como psicóloga foi longa: após a faculdade, fiz um curso de especialização em Gestalt no Instituto Sedes Sapientiae, e uma formação completa em Psicodança com seu criador, Rolando Toro. Trabalhei duas décadas como psicoterapeuta em consultório particular, dei cursos de Gestalt-terapia, de Psicodança, fui perita judicial em Varas de Família e atuei na Casa da Mulher (instituição que apoia mulheres em situação de risco doméstico). Fiz também revisões de texto em capítulos de livros de psicologia e também na Revista Cavalo Azul, editada por minha mãe. Em 1998 dei uma guinada radical em minha vida. Junto com meus dois filhos e meu marido me mudei para Ilhabela. Estávamos morando todos juntos na casa da José Clemente, e a relação familiar não era harmoniosa. Eu estava cansada de tentar resolver os problemas que surgiam a todo o momento. Sentia-me angustiada, prisioneira de uma situação incômoda, e com um desejo imenso de me libertar. Por outro lado, tinha compromissos, trabalhos em andamento, e o sentido de responsabilidade me dizia que era uma loucura largar tudo e ir embora. O grande responsável pela tomada de decisão foi meu filho mais velho, Gabriel, que na época tinha 15 anos. Sua única preocupação era não conseguir voltar para São Paulo quando chegasse a hora. Curiosamente, ele foi o único que voltou para fazer História na USP, trabalhar como professor e morar na capital. O desligamento com minha mãe – em função dessa mudança - foi extremamente conturbado. De imediato ela se sentiu abandonada, mesmo reconhecendo as dificuldades de relacionamento que existiam no contexto familiar. Como se tratava de uma decisão tomada, e irreversível, nos anos seguintes fomos desatando os nós que essa revolução causou. Eu demorei um ano para realizar internamente a mudança, sentir que de fato morava em Ilhabela. Como tinha construído uma casa para veraneio, era muito presente a sensação de que depois do fim de semana nós voltaríamos para São Paulo. Procurar trabalho como psicóloga, no único Centro Médico da cidade, foi a primeira medida concreta para me enraizar, além de colocar os filhos numa escola. Mas, meu rumo profissional seria em breve alterado para uma nova direção que eu nem imaginava. Um Festival de Dança num palco montado no centro de Ilhabela foi o elemento que deflagrou o processo de mudança. Por isso posso garantir – por tudo o que se sucedeu – que a arte da dança é mágica. Fui tocada profundamente pelo espetáculo, senti uma emoção que há muito tempo não experimentava, e como escrevia semanalmente artigos num jornal da cidade, fiz um texto enaltecendo a iniciativa de se promover um evento com aquela qualidade artística em nossa pequena cidade. Era época de eleições municipais, e como sempre acontece nas mudanças de gestão, joga-se fora tudo o que o antigo prefeito construiu, principalmente o que ele fez de melhor. O resultado é que o grupo responsável pelas ações culturais da antiga gestão foi demitido. Esse baque fez com que eu me aproximasse dessas pessoas, e juntos fomos em busca de um local onde se pudesse dar andamento às atividades de dança de um grupo de alunas, ainda pequenas, que integravam o projeto de arte-educação Pés no Chão. Nessa procura, chegamos uma manhã a um imenso galpão, um boliche desativado. Ao entrarmos, raios de luz invadiam o espaço. Todos nós ficamos mudos e tomados por sonhos: era preciso criar ali um espaço cultural, um teatro, o primeiro em nossa cidade. Sem dinheiro algum, tivemos 24 horas para achar um doador maluco que se dispusesse a dar R$ 1000 reais por mês, para pagar pelo período de um ano o valor do aluguel. O proprietário, outro doido, rasgou o contrato que iria assinar com uma mecânica de motores de barco e embarcou em nossa empreitada delirante. Um mês depois o Espaço Cultural Pés no Chão estava criado, com CNPJ, uma conta bancária quase vazia no Banco do Brasil, e centenas de crianças inscritas nas atividades oferecidas. Por dois anos, todos que trabalharam na instituição foram voluntários. Hoje o Pés no Chão tem quase 12 anos e cresceu muito. Ele conquistou sua sede própria (um teatro-escola) a custo de muito trabalho, do respeito da comunidade e de dezenas de projetos realizados. Profissionalmente ele fez com que me desenvolvesse na área de elaboração de projetos, como professora de cursos de poesia, e como redatora de um modo geral, uma vez que a escrita da organização está sob minha responsabilidade. Participo desta iniciativa desde sua fundação, e aquele Festival de Dança que me fez mudar de rumo já está em sua 16ª edição, agora dentro de nosso teatro e também espalhado pela cidade inteira. Conta com o patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e da Prefeitura Municipal de Ilhabela. Estou prestes a completar 60 anos. Sinto-me profundamente enraizada em Ilhabela. Da janela de meu escritório vejo árvores, gaivotas e roseiras – descendentes de roseiras da minha mãe. Guardo comigo objetos preciosos, como a placa do número da casa da Rua José Clemente, os Prêmios Jabuti conquistados pela minha mãe, e as Obras Completas de meu pai que infelizmente minha mãe não chegou a ver publicadas.” A relação de Dora Ferreira da Silva com a escrita, sobretudo, com a poesia e sobre as influências na formação de Inês “Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os fatos cotidianos, sua própria história familiar, os poetas que ela admirava, pintores, a natureza, mitos, todos esses elementos se transfiguravam em matéria poética, e o poema era o resultado dessa experiência, ou melhor, desta vivência. Em uma entrevista à TV Cultura em 2005, ela disse que o mundo era uma fome das coisas serem percebidas. Neste sentido, tudo tinha o potencial de se transformar em substancia de sua poesia. Quando viajamos para a Grécia, em 1972, ela sentou-se nas pedras do Parthenon, tocou-as com as mãos como se estivesse buscando absorver a memória aprisionada nessas pedras. Em Itatiaia, todos os seus sentidos bebiam as forças da natureza, numa perspectiva de comunhão profunda. Cenas do cotidiano, como as do vendedor de rosas nos faróis de São Paulo, também a comoviam, sendo tema de um de seus poemas.” Há uma nova profissão... Há uma nova profissão nesta cidade: o mendigo das rosas. Investe perigosamente, na engrenagem do trânsito, em pé de vento, bailarino, atrás dos automóveis. Bate no vidro fechado quando há chuva. E em troca da nota esquálida faz a oferenda das rosas. “A casa da Rua José Clemente 324 sempre teve como vocação ser um centro de estudos, desde a época do meu pai. Essa tarefa foi retomada por minha mãe com um foco maior no campo da poesia e da psicologia. Entre os anos 60 e 70 alguns poetas da geração dos beatniks lá se reuniam, e liam poemas e filosofia até altas madrugadas. Lembro-me de Roberto Piva, Lindolf Bell, Claudio Willer, Rodrigo de Haro, Celso Paulini, Alan Mayer, e muitos outros. A partir Arquivo do Acervo Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles. dos anos 90 minha mãe formou um grupo de estudos com o qual trabalhou até o fim de sua vida.” Dora fazendo leitura pública de poesias, em frente e Livraria Brasiliense, na Barão de Itapetininga. São Paulo, década de 1970. Os Encontros na Casa de Dora Por Raïssa Cavalcanti A lembrança e a saudade desses encontros me vêm a memória com nitidez. Os alunos iam chegando aos poucos e sendo recebidos na biblioteca pela calorosa amizade de Dora Ferreira da Silva. Sentávamos todos, em seguida, em volta da grande mesa da sala de jantar Dora nos transportava ao tempo poético, mítico e filosófico, o qual Dora conhecia bem os caminhos. As reuniões se estendiam ao longo da noite e perdíamos a noção do tempo, já que Dora não costumava transitar no tempo cronológico e profano. Ela era uma frequentadora do tempo sagrado, dos meandros desconhecidos. Dora realizava o seu ministério calmamente, fazendo reflexões em torno das questões essenciais da filosofia, do mito da arte e da psicologia. O seu público era de pessoas jovens curiosas e interessadas pelo conhecimento e pela cultura. Nos encontros na casa de Dora, os jovens tinham a oportunidade de encontrar a mestra que os podia guiar pelos trajetos de outros mestres, poetas, místicos e sábios. Dora não somente nos levava a conhecer o conteúdo das obras analisadas, mas ensinava, sobretudo a ter amor, respeito e admiração pelo saber dessas pessoas que dedicaram a sua vida em prol do desenvolvimento e da ampliação da consciência humana. Era visível e manifesta a sua alegria em poder compartilhar com pessoas interessadas em conhecer, tudo o que conhecia, amava e valorizava. A nossa anfitriã era uma entusiasta das ideias de Carl Gustav Jung, Mircea Eliade e Joseph Campbell. Mostrava respeitosa reverência pela filosofia de Sócrates, Platão, Plotino, Spinoza e Martin Heidegger. A mesma consideração demonstrava pela obra do marido, o filósofo e escritor Vicente Ferreira da Silva, já falecido, cuja obra enfileirada nas prateleiras da sua biblioteca, nos causava grande admiração. Dora possuía uma alma mística, por isso, a sua perfeita afinidade com as ideias dos filósofos e poetas místicos. Com a concepção do universo como uma criação divina e o relacionamento e interdependência entre todas as coisas. Com Hildegard von Bingen compartilhava a ideia da natureza ser a obra criativa de Deus e existir uma interrelação entre a alma do homem, a natureza e Deus, dentro de um perfeito equilíbrio. “O mundo todo foi acariciado pelo beijo do criador.” “Deus beija a alma Bem seu íntimo. Graça e Bênçãos São concedidas, Quando há ardente desejo interior.” Seguindo os passos de Mestre Eckhart concebia o coração como o lugar de encontro entre a alma e o Espírito que deve ser purificado das impurezas do ego. Todas as doenças do ego, o egocentrismo, todas as afirmações egóicas são impedimentos para o reconhecimento da alma e de Deus, que habitam o interior do coração. Escreveu sobre Johann Tauler e compartilhava com ele a defesa do envolvimento com a vida cotidiana e com a natureza para o alcance da união da alma com Deus. Com a poesia de Santa Tereza D’Ávila sobre a alma se emocionava. A alma como criação divina que foi colocada no coração do homem. “Foste por amor criada formosa, bela e assim em meu coração pintada; se te perderes, minha amada alma, buscar-te-ás em Mim.” Escreveu ainda sobre San Juan de la Cruz e comungava com o seu sentimento de que é através do amor que a alma se une a Deus. “O amor une a alma à Deus E, quanto mais amor ela possui Com mais força se funde com Ele E nele está concentrada.” Dora demonstrava amor e perfeita familiaridade com os seus escritores, poetas e artistas preferidos. Juana Inês de la Cruz, Jan Van Ruysbroeck, Jacob Böehme, Angelus Silesius e William Blake eram frequentadores da intimidade da sua casa há bastante tempo. Muitos dos temas e autores examinados foram apresentados pela primeira vez, aos jovens presentes, que tiveram oportunidade de os conhecer através da mestra. Dora era o exemplo vivo do verdadeiro mestre, daquele que ama o conhecimento porque reconhece o seu valor para a formação do homem. Transmitia o seu saber com grande entusiasmo e alegria. Somente podia se entusiasmar, porque a sua sensibilidade transcendia a visão comum e porque a sua busca do conhecimento havia lhe trazido a descoberta do significado maior da vida. O seu entusiasmo e alegria eram inspiradores, tinha o poder de insuflar na alma dos alunos o desejo, o amor pelo conhecimento. Dora Ferreira da Silva era uma amante do conhecimento, no sentido platônico. Ela era uma filósofa, aquela que ama e busca a sabedoria, a verdade. A sabedoria procurada por Dora era a inspirada pela alma, por isso, podia ser chamada de sophia e Dora podia ser chamada de filósofa. Acreditava que para obter o verdadeiro conhecimento é necessário eliminar a visão aparente, afastar tudo aquilo que impede de ver a realidade como ela é e ter a coragem de ir mais fundo nas coisas. O maior impedimento para a apreensão da verdade é a percepção superficial e convencional, determinada pelos condicionamentos sociais e culturais. A inspiração e a aspiração para os encontros ela encontrava em Platão. A finalidade dos encontros na casa de Dora era preencher a necessidade da filósofa de comunhão. Era oferecer alimento para a sua alma e para a de seus ouvintes. O seu desejo como anfitriã era compartilhar a sabedoria de sophia. Era oferecer um banquete com as mais ricas iguarias do conhecimento, o saber que alimenta a alma e a transforma. Nesses encontros, Dora convidava os participantes a uma reflexão profunda sobre as questões humanas. Com a atitude não convencional, estimulava os alunos a sair da periferia da vida, a olhar para além da superfície das coisas, a penetrar na profundidade da alma, para se autoconhecerem, para apreenderem a verdade que reside por trás de todas as aparências. A verdade buscada era aquela que só pode ser percebida segundo a perspectiva espiritual da alma, pois habita na interioridade e profundidade de cada um. Inspirada pelos seus mestres de alma, Sócrates e Jung, Dora considerava que o verdadeiro mestre é aquele que sabe suscitar no aluno a necessidade da autoinvestigação, o desejo pela busca da verdade interior e o amor por essa prática. Dora fazia do seu anseio de saber, do seu amor pelo conhecimento uma prática de vida, um exercício diário que acreditava ser benéfico para a saúde espiritual da alma. O seu modo de vida era fundamentado por uma visão de mundo e de homem inspirada nos grandes mestres, ela se nutria de modelos exemplares, como Sócrates e Platão. Eram eles quem motivavam a sua busca especulativa e reflexiva, por que realizaram a condição humana, de uma forma exemplar. Deixaram um modelo de homem, de excelência humana e de humanismo. Acreditava que o conhecimento torna o homem melhor, e que aquele que conhece, no sentido mais profundo, pode contribuir para a construção de um mundo mais humano. Dora Ferreira da Silva era uma humanista, acreditava na capacidade de transformação do homem. Como admiradora de Heidegger, o seu humanismo também buscava nele a sua inspiração. Consistia em refletir e cuidar para que o homem se tornasse humano e não desumano, um bárbaro, que nega a sua própria essência. O humanismo de Dora estava baseado na necessidade de reflexão e também, no cuidado, no velar pela essência da natureza humana para que essa não se perca ou se deturpe. O seu desejo de cuidar era motivado pela percepção da crise ética e humanística pela qual o mundo estava passando e que afeta, principalmente os jovens em formação. A finalidade do humanismo de Dora Ferreira da Silva era restaurar a ideia de homem que foi reduzido em sua humanidade, pelas concepções racionalistas. Recuperar a concepção humanista era essencial para preservar o entendimento profundo sobre o homem e manter a sua integridade. Nos seus “symposium”, Dora procurava transmitir a crença inspirada em Joseph Campbell. O homem é, potencialmente, o herói que procura vencer a banalidade e realizar a sua transcendência, a sua excelência, a sua virtude, a sua aretê. A necessidade do homem é cumprir com plenitude a sua potência, as suas possibilidades e potencialidades. O homem se transforma e transforma o mundo, através da ação criativa. A natureza humana é essencialmente criadora, e aí está a sua liberdade e a sua força de transformação. Mas, como dizia Spinoza, em cuja fonte Dora também se alimentava, esse caminho só se realiza através do “Magnum Labore”, através do esforço pessoal e da introdução no mundo da medida humana, de um universo de sentido e de valores. Dora é a representante de uma época que parece ter terminado. Uma época na qual o conhecimento profundo era valorizado e o saber e a experiência dos que conhecem profundamente, daqueles que amam a sabedoria, os verdadeiros mestres. Uma época de pessoas devotadas ao amor pelo conhecimento, que percebiam a vida como plena de significado, de possibilidades de realização do homem em harmonia consigo mesmo e com o mundo. O que observamos, atualmente é a banalização do conhecimento. O saber buscado é o aparente, superficial, ou o conhecimento rápido que instrumentalize tecnicamente, com a exclusiva finalidade profissional. O homem vive atualmente em um universo despido dos valores fundamentais e carente de sentido. O que se assiste hoje é a inversão dos valores humanos, uma crise do humanismo com o reinado da objetividade e da tecnificação. Na vida contemporânea, a atividade prática e utilitária é prioritária, não sobra espaço para o cultivo da humanidade do homem. Não existe mais espaço para o humanismo, nem para o cuidado das humanidades, consideradas sem objetividade. Os lugares de encontros, para a reunião de pessoas com interesses culturais e humanísticos se esvaziaram, o público se tornou escasso. Não existem mais encontros como os da casa de Dora. As identificações que levaram Inês você a compartilhar com Dora a escrita. As cumplicidades estéticas de mãe para filha. Ser filha de Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva, duas pessoas excepcionais, evidentemente é motivo de orgulho, mas também gera certo peso, em função das expectativas das pessoas em relação a mim. Meu caminho foi diferente do deles, e tenho essencialmente para com os dois um sentimento de filha, de tê-los amado como pais e de ter sido muito amada por ambos. Sistematicamente minha mãe lia seus poemas para mim, e queria saber minha opinião. Eu me identificava com os menos eruditos. Gosto muito de “Praça com árvore”. Na praça Jorge de Lima há uma árvore sozinha; em seus ramos vê-se o vento movendo as folhas; e os pássaros movendo as folhas e o vento. Jorge de Lima no centro era excessivo na sala. Por si se abriam janelas para seus poemas passarem. A voz macia abrigava as penas de muitos poemas nascidos de alma e vento. Quem passa na praça agora vê um círculo pequeno; no centro, ergue-se a árvore, em seus ramos vê-se o vento movendo as folhas; e os pássaros movendo as folhas e o vento. Dora Ferreira da Silva. Reprodução O texto que escrevi para o Appassionata foi um depoimento sobre o período em que estava profundamente envolvida na publicação dos três últimos trabalhos inéditos de minha mãe. Após o lançamento de Transpoemas, o que se seguiu foi um sentimento de desamparo, e de falta absoluta de interlocução. O IMS tornou-se uma instituição cultural distante e despersonalizada com a saída do Franceschi, e quanto à publicação do meu livro, mencionada também no depoimento a que você se refere, é uma promessa sem prazo para ser cumprida. Com certeza ela era minha maior incentivadora, e nunca mais encontrei alguém que se dispusesse a me ajudar, seja na seleção dos poemas, na sua organização, dando opiniões ou quem sabe se dispondo a ler o material para escrever um prefácio ou uma apresentação do trabalho. Fiz uma tentativa, mas a resposta foi negativa. Não tentei novamente. Como também não disponho de recursos para fazer uma edição, parei. Entre 2006 e 2008 o Instituto Moreira Salles deu ao público três inéditos de Dora. Inês revela que há entre os manuscritos inéditos e fala sobre o que vem sendo feito para ampliar a divulgação da obra da poeta. Há uma série ainda inédita chamada Pássara. Encontrei, num pequeno caderno artesanal, um conto ilustrado por ela mesma, chamado A Casa e a Tenda, e existem alguns poemas dispersos. Em minha opinião, está mais do que na hora de fazer uma publicação sobre Dora Ferreira da Silva, nos moldes dos Cadernos de Literatura que o IMS fez. É inegável a qualidade dessa coleção, que além de textos reúne diversos outros materiais como fotografias, depoimentos e correspondências. Há muito material disponível de minha mãe espalhado em revistas, no próprio acervo do IMS, jornais, mas o que falta é uma iniciativa para reunir e produzir essa edição. Existem teses de mestrado e doutorado sobre Dora Ferreira da Silva em andamento, em Minas Gerais e em Campinas. Ela recebeu premiações de destaque como três Jabutis e o Prêmio Machado de Assis, mas esse reconhecimento a que você se refere, talvez esteja mais ligado a uma disseminação de sua obra, ou até mesmo, a sua popularização. Alguns poemas seus foram inseridos em coletâneas, como a da Boa Companhia/Poesia, da Companhia das Letras, e na coleção Como e Por Que Ler – A Poesia Brasileira do Século XX, da editora Objetiva. Um de seus trabalhos foi selecionado para compor o volume Os cem melhores poemas brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, também da editora Objetiva. Essa forma de divulgação é bem interessante, no sentido de fazer com que o trabalho do poeta atinja um público maior. Mas em minha opinião, esta é uma tarefa demorada, que será realizada através de muitas mãos, muitos amigos e admiradores de sua obra. Quem sabe através das universidades e editoras surjam outras oportunidades... De minha parte, estou sempre aberta e interessada em tornar minha mãe uma “poeta conhecida”. Dora Ferreira da Silva. Reprodução. O Centro Cultural São Paulo promoveu em 2007 "Lilás - Mulheres de Todas as Artes", um ciclo de conversas sobre o papel da mulher na produção cultural brasileira. Em sua abertura foi feita uma homenagem à Dora Ferreira da Silva e eu fui convidada a dar um depoimento. Transcrevo abaixo um trecho do texto que li, e que divertiu bastante o público presente, principalmente os que me conheciam e também à minha mãe. Tínhamos nossas diferenças, porque em certos aspectos éramos de fato, muito diferentes. Minha mãe sempre foi muito vaidosa, e adorava sedas. Eu sou uma adepta contumaz do algodão. Quando íamos ao Shopping, eu ficava indignada com os preços das lojas em que ela entrava. Certa vez, eu disse em alto e bom som que deveria ser colocada uma bomba numa loja em que ela estava experimentando uma blusa. A vendedora ficou perplexa. Depois que saímos de lá, demos boas risadas de minhas fantasias terroristas. Dora Ferreira da Silva em foto de estúdio. São Paulo, 26 março de 1946. De certa maneira, este fato ilustra não apenas nossos gostos, mas nossa forma de viver. É importante destacar que sempre nos respeitamos, e jamais quisemos convencer uma à outra de qualquer coisa. A riqueza de nossa relação residia justamente nessas diferenças, que eram compartilhadas com riso e amor. Inês poeta, um inédito Baía de Castelhanos Canoas atentas vigiam. É hora de ganhar o peixe, garimpar a vida furtiva sob a jazida do mar. Há cardumes de peixes-galo, lulas, cações e espadas, há cercos cravados nas pedras e redes na urgência da espera. Gaivotas chamam: lancem as garateias – venham brincar! No mato, o legado agarra-se ao musgo o monjolo soca o milho ébrios, os náufragos cantam respondem bem-te-vis e um coro de sabiás. Longe do rugido da cidade gira a roda da farinha floresce a paina da mata, a infância, o que vem da terra, as crias..... ©Rubem Bianchi OS CONVIDADOS Alexandre Bonafim Belizário Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (2001). É especialista em Fundamentos da Crítica Literária (2002) e mestre em Estudos Literários, ambos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Araraquara (2006). É doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando principalmente nos seguintes seguimentos: poesia portuguesa, literatura portuguesa, literatura brasileira, poesia brasileira. Donizete Galvão Nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, Brasil, em 1955. Publicou Azul navalha (T.A. Queroz, Editor, 1988), As faces do rio (Água Viva Editores, 1991), Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o tempo (Nankin Editorial, 1997), Ruminações (Nankin Editorial, 1999), Mundo mudo (Nankin Editorial, 2003). Tem trabalhos publicados nos principais jornais e revistas do Brasil, entre eles Folha de S. Paulo, Poesia Sempre, Dimensão, Inimigo Rumor e Cult. Publicou também nas revistas Babel (Venezuela), Blanco Móvil (México), Matérika (México), tsé-tsé (Argentina), Anto (Portugal) e Helicóptero (México/USA), entre outras. Soares Feitosa Nasceu em 1944, Ipu, Ceará. Foi jornalista na juventude, em Fortaleza; caixeiro-viajante no Piauí; depois funcionário do Banco do Brasil. Viveu no Recife de 1980 a 1994. Transferido para Salvador, divide hoje residência entre as três grandes capitais nordestinas. Em 1993, às vésperas do meio século de vida, escreveu seu primeiro poema. Em 1996 iniciou a publicação artesanal do livro Réquiem em Sol da Tarde. Ainda em 1996, fundou, na Internet, o Jornal de Poesia. Em 1997 publica o seu primeiro livro. Inês Ferreira da Silva Bianchi Nasceu em São Paulo em 1953. Formada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem especialização em Gestalt no Instituto Sedes Sapientieae e trabalhou por duas décadas como psicoterapeuta em consultório particular. Foi perita judicial em Varas de Família e atuou na Casa da Mulher, instituição que apoia mulheres em situação de risco doméstico. Editou com sua mãe, a poeta Dora Ferreira da Silva a revista Cavalo Azul. Atualmente mora em Ilhabela onde conduz o espaço cultural Pés no Chão. AGRADECIMENTOS Ao Instituto Moreira Salles pelo acesso ao arquivo de Dora Ferreira da Silva e pela parceria para esta edição. À Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian pela cessão do texto de Euryalo Cannabrava reproduzido neste número na sessão entremeio e dos poemas de Dora Ferreira da Silva. À Inês Ferreira da Silva Bianchi pela disponibilidade e acompanhamento no processo de informações sobre o acervo de sua mãe Dora Ferreira da Silva e pela cessão dos arquivos reproduzidos na sessão inéditos. Ao Alexandre Bonafim Belizário pelo texto inédito sobre a obra de Dora Ferreira da Silva e pelo poema publicado na sessão Um caderno para Dora; nesse mesmo rol, ao Donizete Galvão e ao Soares Feitosa. À todos que enviaram material para o caderno-revista. 7faces caderno-revista de poesia set7aces.blogspot.com O caderno-revista de poesia 7faces é uma produção semestral independente projetada, diagramada e editada pelo poeta Pedro Fernandes. Organização desta edição Pedro Fernandes Convidados para esta edição Alexandre Bonafim Felizardo Donizete Galvão Soares Feitosa Inês Ferreira da Silva Bianchi Colaboradores (por ordem de apresentação) Ricardo Dantas Paulo Lima Davi Araújo Natalia Turini Tiago Duarte Dias Luiz Garcia Adriano Winter Paula Cajaty Guerá Fernandes Nuno Júdice Joice Berth Amosse Muscavele Marco Polo Guimarães Carlos Margarido Ianê Mello Amélia Luz Pedro Belo Clara Paulo Vitor Grossi Rosane Carneiro Renata Bomfim Carina Carvalho Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia e em especial a Claudicélio Rodrigues da Silva e Ítalo Meneghetti que se dispuseram a escrever sobre Salgado Maranhão. Contato Pelo correio eletrônico do editor, [email protected], ou através do correio eletrônico da redação [email protected] 7faces. Caderno-revista de poesia. Natal – RN. Ano 3. Edição n. 6. Jul.-Dez. 2012. ISSN 2177-0794 Licença Creative Commons. Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos. Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com O editor deste caderno-revista é isento de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema 7faces. Capa/Contracapa: Cláudio Cretti. Sem título. 35×45 cm – Tinta óleo e grafite em pó sobre pergaminho – 2012 Claudio Cretti nasceu em 1964 em Belém, PA. Com menos de um ano, muda-se com a família para Pirassununga, interior de São Paulo, cidade onde vive até os quinze anos Em 1979, vai morar em São Paulo. Dois anos depois, ingressa na escola técnica IADE — Instituto de Arte e Decoração, iniciando um período de formação que vai determinar a sua escolha definitiva pela arte. Nessa época, estabelece frutíferas relações com professores como Lenora de Barros, Guto Lacaz e Cássio Michalani, entre outros. Principiou Artes Plásticas na Escola de Belas Artes, mas abandonou o curso antes do término do primeiro ano. Em 1985 realizou trabalhos com o Grupo Ponkã, encabeçado por Paulo Yutaka. Atuou no espetáculo O próximo Capítulo e concebe a performance Criptoprismática, apresentada no III Salão Paulista de Arte Contemporânea, no qual recebe o Prêmio Estímulo, na Pinacoteca do Estado e na Funarte, em São Paulo. Depois, trabalhou no espetáculo Bodas de Sangue, de García Lorca, com o grupo Dramáticos. Paralelamente, começou a desenhar com regularidade, enviando trabalhos para salões. Além disso, estudou medicina oriental e formou-se massagista na Associação de Massagistas Orientais. Depois de várias mostras e da exposição individual Luz de ouvido foi ser professor na Escola da Vila, em São Paulo, onde se mantém até hoje. Arte interna a partir de Maurício Nogueira. Sem título Maurício Nogueira Lima nasceu no Recife (PE) em 1930 e morreu em Campinas (SP) em 1999. Pintor, arquiteto, desenhista, artista gráfico, professor. Estudou Artes Plásticas entre 1947 e 1950 no Instituto de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em Porto Alegre. Frequentou os cursos de comunicação visual, desenho industrial e propaganda no Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP. Em 1953, integrou o Grupo Ruptura. Estuda arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, entre 1953 e 1957. EM 1960, realiza as primeiras grandes instalações ambientais para indústrias automobilísticas no Salão do Automóvel. A partir de 1974, leciona, entre outras escolas, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU/USP, onde conclui mestrado e doutorado na área de estruturas ambientais urbanas. Nas décadas de 1980 e 1990, realiza diversos trabalhos em espaços públicos, como a praça Roosevelt, largo São Bento, estações de metrô e no elevado Costa e Silva, todos em São Paulo. As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos, mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que tomarmos conhecimento da notificação. Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar ao editor através do contato [email protected] o envio das regulagens. é preciso que venha o impreciso inesperado como a rosa ou como o rio o poema necessário Dora Ferreira da Silva, Andanças Selo Letras in.verso e re.verso