Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás

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Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás
Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás - Estadão
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Os filhos da garapa, dez anos
depois
As três famílias que aparecem no documentário de José Padilha ainda vivem na
extrema miséria de um Brasil esquecido
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A vida de Vitória passa toda em preto e branco, como os seus sonhos e os seus
pesadelos. Ela tem 12 anos de idade, é doce, articulada, investiga o mundo antes
de falar e possui uma sensibilidade capaz de banhar o inferno com poesia. Seus
olhos guardam medo, um pavor daqueles de fazer mexer as paredes de casa e
conectar os vivos com os mortos. O último que apareceu ela não sabia bem se
estava vivo ou morto. Apenas sentiu que não estava bem. Era seu pai. No
momento em que estou falando com Lúcia, a mãe, ela me chama de lado com
educação para contar uma história que parecia querer estourar o peito para sair
de lá.
A noite começa cedo na favela do Patativa, subúrbio de Fortaleza, Ceará. Um pouco
depois da luz partir e deixar os becos à sorte das lamparinas, por volta das 19h, Vitória
sentiu os joelhos querendo dobrar. Ela foi ao canto do quarto, ajoelhou-se, ergueu as
mãos e rezou de um jeito diferente. Sem saber o motivo, usou com Deus a frase que
anuncia as tragédias: “Oh, meu Senhor, por que me abandonastes?” Quando voltou a si, a
vizinha chegou com a notícia. Seu pai, Flávio, estava morto. Uma morte que há anos o
esperava na esquina. Flávio era daqueles homens que ou nasceram embriagados ou
desistiram da sobriedade por ser ela prejudicial à saúde. Na tarde em que sua filha sentia
todo o medo que poderia suportar, ele tomou suas cachaças e se jogou embaixo de um
caminhão. Ninguém da família jamais viu o corpo.
“Nós bebe demais, nós bebe igual americano, igual inglês. Nós bebe demais”,
dizia Flávio, orgulhoso, sabendo que estava sendo filmado pelas câmeras de José
Padilha. Seu sorriso saía sem controle e sua expressão alternava o ódio e a pureza
em segundos. Ele ameaçava matar a mulher, dizia que o pai morreu assassinado,
brincava carinhoso com a filha mais nova, paquerava a vizinha enquanto a
esposa buscava comida com amigos e mostrava para o cinegrafista as marcas de
tiros que supostamente havia levado. Vivia em um mundo cambaleante que não
duraria muito para desaparecer. A profecia é feita, cinco anos depois de Flávio e
sua família aparecerem em preto e branco no documentário Garapa, de Padilha.
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Garapa é o leite de quem não tem. Uma água levada ao fogão de barro logo pela manhã,
quando as crianças sentem a dor da primeira fome. Água morna, adoçada com açúcar, o
mel que as deixará vivas por mais um dia. Há dez anos, Padilha e sua equipe começaram
a colocar suas câmeras nas casas de três famílias que resistiam nas situações da miséria
mais aguda que um brasileiro pode suportar. A família de Flávio foi uma delas. As outras
ficam a quatro horas de viagem de Fortaleza, na cidade de Choró. O interior do interior
que, quando parece perto, é preciso andar mais um pouco. Casas que existem como
demarcações de terra, não como lar. Homens que vivem o papel de protetores, não o de
pais. Mulheres que determinam as leis da sobrevivência fora dos padrões estabelecidos
da maternidade e crianças que brincam dentro dos padrões estabelecidos da infância
como se nada fosse tão importante assim. Até que a dor se aproxime.
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