Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás
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Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás
Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás - Estadão http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,os-filhos-da-garapa--dez... Os filhos da garapa, dez anos depois As três famílias que aparecem no documentário de José Padilha ainda vivem na extrema miséria de um Brasil esquecido 1 de 3 11/07/16, 13:25 Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás - Estadão http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,os-filhos-da-garapa--dez... A vida de Vitória passa toda em preto e branco, como os seus sonhos e os seus pesadelos. Ela tem 12 anos de idade, é doce, articulada, investiga o mundo antes de falar e possui uma sensibilidade capaz de banhar o inferno com poesia. Seus olhos guardam medo, um pavor daqueles de fazer mexer as paredes de casa e conectar os vivos com os mortos. O último que apareceu ela não sabia bem se estava vivo ou morto. Apenas sentiu que não estava bem. Era seu pai. No momento em que estou falando com Lúcia, a mãe, ela me chama de lado com educação para contar uma história que parecia querer estourar o peito para sair de lá. A noite começa cedo na favela do Patativa, subúrbio de Fortaleza, Ceará. Um pouco depois da luz partir e deixar os becos à sorte das lamparinas, por volta das 19h, Vitória sentiu os joelhos querendo dobrar. Ela foi ao canto do quarto, ajoelhou-se, ergueu as mãos e rezou de um jeito diferente. Sem saber o motivo, usou com Deus a frase que anuncia as tragédias: “Oh, meu Senhor, por que me abandonastes?” Quando voltou a si, a vizinha chegou com a notícia. Seu pai, Flávio, estava morto. Uma morte que há anos o esperava na esquina. Flávio era daqueles homens que ou nasceram embriagados ou desistiram da sobriedade por ser ela prejudicial à saúde. Na tarde em que sua filha sentia todo o medo que poderia suportar, ele tomou suas cachaças e se jogou embaixo de um caminhão. Ninguém da família jamais viu o corpo. “Nós bebe demais, nós bebe igual americano, igual inglês. Nós bebe demais”, dizia Flávio, orgulhoso, sabendo que estava sendo filmado pelas câmeras de José Padilha. Seu sorriso saía sem controle e sua expressão alternava o ódio e a pureza em segundos. Ele ameaçava matar a mulher, dizia que o pai morreu assassinado, brincava carinhoso com a filha mais nova, paquerava a vizinha enquanto a esposa buscava comida com amigos e mostrava para o cinegrafista as marcas de tiros que supostamente havia levado. Vivia em um mundo cambaleante que não duraria muito para desaparecer. A profecia é feita, cinco anos depois de Flávio e sua família aparecerem em preto e branco no documentário Garapa, de Padilha. 2 de 3 Garapa é o leite de quem não tem. Uma água levada ao fogão de barro logo pela manhã, quando as crianças sentem a dor da primeira fome. Água morna, adoçada com açúcar, o mel que as deixará vivas por mais um dia. Há dez anos, Padilha e sua equipe começaram a colocar suas câmeras nas casas de três famílias que resistiam nas situações da miséria mais aguda que um brasileiro pode suportar. A família de Flávio foi uma delas. As outras ficam a quatro horas de viagem de Fortaleza, na cidade de Choró. O interior do interior que, quando parece perto, é preciso andar mais um pouco. Casas que existem como demarcações de terra, não como lar. Homens que vivem o papel de protetores, não o de pais. Mulheres que determinam as leis da sobrevivência fora dos padrões estabelecidos da maternidade e crianças que brincam dentro dos padrões estabelecidos da infância como se nada fosse tão importante assim. Até que a dor se aproxime. 11/07/16, 13:25 Os filhos da garapa, dez anos depois - Aliás - Estadão 3 de 3 http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,os-filhos-da-garapa--dez... 11/07/16, 13:25