édipo rei à luz da poética e da ética nicomaquéia

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édipo rei à luz da poética e da ética nicomaquéia
Revista Aproximação – 1º semestre de 2014 – Nº 7
ÉDIPO REI À LUZ DA POÉTICA E DA ÉTICA NICOMAQUÉIA
Elisa Dall'Orto Corrêa
Graduanda em Filosofia da UnB
Resumo: O propósito deste trabalho é discutir Édipo Rei à luz dos conceitos
aristotélicos de imitação (mímēsis), catarse (kátharsis), erro trágico (hamartía) e
felicidade (eudaimonía). Neste trabalho, utilizou-se a Ética Nicomaquéia para
aprofundar os desdobramentos éticos dos conceitos de mímēsis, kátharsis e hamartía
explorados por Aristóteles na Poética. Primeiramente, discute-se o papel das emoções
na mímēsis e na kátharsis e o significado educacional desses dois processos por meio de
passagens centrais da Poética. Em seguida, discute-se o conceito de hamartía e a sua
conexão com o conceito de eudaimonía a partir da relação entre ação e acaso exposta na
Ética Nicomaquéia.
Palavras-chave: Catarse (kátharsis). Erro trágico (hamartía). Felicidade (eudaimonía).
Tragédia.
Abstract: The aim of this article is to discuss Oedipus King taking into account the
Aristotelian concepts of imitation (mímēsis), catharsis (kátharsis), tragic fault
(hamartía) and happiness (eudaimonía). In this work, the Nicomachean Ethics was
used to develop the ethical outspreads of the concepts of mímēsis, kátharsis and
hamartía explored by Aristotle in the Poetics. Firstly, the article discusses the role of
emotions in the mímēsis and the kátharsis, as well as the educational meaning of these
two processes through central passages of Poetics. Then, the concept of hamartía and
its connection with the concept of eudaimonía, regarding the relation between action
and chance exposed in the Nichomachean Ethics, is discussed. In this way, the work
aims to contribute to dialogue between tragedy and philosophy as ways of
understanding human life.
Keywords: Catharsis (kátharsis). Tragic Fault (hamartía). Happiness (eudaimonía).
Tragedy.
1. Introdução
As tragédias gregas representam a vida humana através da dança, música e
atuação. Tendo como base um enredo mitológico, as tragédias gregas abordam
questionamentos éticos cujas respostas nem sempre objetivas provocam reflexões sobre
a vida humana. A filosofia, assim como a tragédia, se ocupa do ser humano. Enquanto a
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tragédia pretende educar o público através da imitação (mímēsis) das ações e da catarse
(kátharsis) das emoções, a filosofia busca justificar modos de vida através de
argumentações racionais em sentido restrito. Assim, ao pensar de Édipo Rei à luz dos
conceitos aristotélicos de mímēsis, kátharsis, erro trágico (hamartía) e felicidade
(eudaimonía) pretende-se contribuir para o diálogo entre a tragédia e a filosofia
enquanto modos de entender a vida humana.
Aristóteles examina a tragédia na Poética. Os conceitos de mímēsis e kátharsis,
presentes na definição aristotélica de tragédia, abrem caminho para reflexões de cunho
ético, uma vez que ambos implicam ensinamentos sobre as emoções. Ademais, o
conceito de harmartía vincula a eudaimonía à sorte. Deste modo, neste trabalho,
utilizou-se a Ética Nicomaquéia para aprofundar os desdobramentos éticos dos
conceitos explorados por Aristóteles na Poética. Aristóteles cita diversas vezes Édipo
Rei como paradigma para a aplicação dos conceitos examinados na Poética. Assim,
investiga-se, primeiramente, Édipo Rei considerando os conceitos de mímēsis e
kátharsis tal como expostos na Poética. Nesta primeira etapa, discute-se o papel das
emoções na mímēsis e na kátharsis, e o significado educacional desses dois processos
através de passagens centrais da Poética. Em seguida, o conceito de hamartía é
analisado, bem como os seus desdobramentos na eudaimonía aristotélica, sobretudo, a
partir da relação entre ação e acaso, tal como é desenvolvida na Ética Nicomaquéia.
Deste modo, pretende-se reconhecer a tragédia enquanto meio possível para a
investigação filosófica e promover novas atualizações do conceito aristotélico de
eudaimonía.
2. A mímēsis1 das ações e a kátharsis2 das emoções em Édipo Rei
Segundo Aristóteles, as tragédias são compostas por seis elementos: enredo
(mýthos), pensamento (diánoia), caráter (ḗthos), elocução (léxis), espetáculo (ópsis) e
melopéia (melopoiía) (Poética, 6, 1450a 8-12). Aristóteles define a tragédia do seguinte
modo:
1
A tradução de mímēsis por “imitação” não expressa totalmente o significado do termo grego. Assim,
optou-se por mantê-lo no original.
2
O termo kátharsis não recebe tradução neste trabalho, visto que seu sentido extrapola o significado
hodierno de “catarse”. Como Halliwell observa, o conceito de kátharsis, na Poética, reúne acepções
medicinais e esotéricas sobre o poder da linguagem musical e poética sobre o indivíduo (HALLIWELL,
1998, p.199).
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É, pois, a tragédia uma mímēsis de caráter elevado, completa e de
certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies
de ornamento distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação
que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o medo (phóbos) e a piedade (éleos), tem por efeito a
catarse (kátharsis) dessas emoções. (Poética, 6, 1449b, 24-28).
O elemento que conduz a tragédia é o enredo – entendido como a totalidade das
ações ocorridas em uma tragédia. As ações são fruto da combinação entre o caráter e o
pensamento de quem realiza o ato (Poética, 6, 1450a, 1-7). Para uma ação ser imputada
a alguém, é preciso que o indivíduo tenha a realizado voluntariamente. Um ato é
considerado voluntário quando o agente tem consciência de que age e seu ato não é
fruto de coações externas (EN, III, 3, 1111a 21-23). Aristóteles considera que as ações
são a origem da boa e da má sorte dos homens, visto que a vida humana é desenvolvida
através de ações. Deste modo, o elemento mais importante do enredo não é a mímēsis de
homens, mas de ações (Poética, 6, 1450a, 16-22). Mais do que simples imitação, a
mímēsis é uma fonte de conhecimento que produz representações relativamente
autônomas de maneira prazerosa sobre a fonte de imitação3. Assim, a função da mímēsis
é permitir que o ser humano aprenda sobre o mundo através da verossimilhança com a
realidade.
As emoções despertadas pelas tragédias conduzem o público à autocompreensão
sobre os seus próprios valores e os valores mostrados na tragédia. Todavia, como
Trueba (2004, p.92) observa, as tragédias não comunicam a mesma mensagem para
todos. Assim, as tragédias favorecem múltiplas interpretações devido à complexa
natureza do discurso poético, aos diferentes gostos e experiências pessoais que
aproximam ou distanciam o público dos personagens e da trama e ao contexto de
recepção da obra. Édipo Rei, em especial, é uma das tragédias gregas mais debatidas ao
longo do tempo, favorecendo, assim, múltiplas interpretações sobre os seus
acontecimentos. Neste trabalho, cabe observar que a história de Édipo enfatiza a zona
cinzenta entre o acaso (tykhé) e o domínio da razão na vida humana. Édipo
constantemente tenta conhecer aquilo que o cerca: ele busca o oráculo para saber se é
adotado ou não (ER, vv.780-790); salva Tebas da esfinge (ER, vv.35-39); procura o
assassino de Laio (ER, vv.840-850); e, por fim, descobre a sua verdadeira identidade
3
Acerca do papel da mímēsis no processo de aprendizagem do homem sobre o mundo, consultar:
HALLIWELL, 1998, pp.62-81; NUSSBAUM, 2009, pp.331-345; TRUEBA, 2004, pp.80-96. As
considerações subsequentes estão profundamente em débito para com esses estudos.
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(ER, vv.1180-1185). A vontade desmedida de Édipo de conhecer conduz ao seu fim.
Seria possível Édipo agir diferentemente4? Édipo frequentemente proclama que ele é a
causa de suas ações (ER, v.1415), todavia, também reconhece que as suas ações são
resultados da vontade de Apolo5 (ER, vv.1329-1330). Ao enfatizar os frágeis limites do
poder do homem nas suas ações, Édipo Rei desperta empatia no público. A empatia é
responsável por conectar as emoções, sobretudo o medo e a piedade, à cognição,
constituindo, por conseguinte, aspecto fundamental da mímēsis enquanto processo de
aprendizagem sobre o mundo (Política, VIII, 1340a 12-14).
Ademais, as emoções são manifestações do lado irracional da alma, mas
participam da razão na medida em que a faculdade desiderativa está subjugada à razão
(EN, I, 1102b, 13, 27)6. Além de serem acompanhadas por uma crença, as emoções
possuem um substrato fisiológico (PUENTE, 2002, p.22). Por exemplo, o medo surge
de ameaças iminentes que podem nos afetar (Retórica, II, 5, 1382a 1-2). O medo e a
piedade são maximizados se os eventos trágicos ocorrem de maneira inesperada, mas
aparentam estar interconectados (Poética, 10, 1452 a 5). Este efeito é alcançado através
de dois recursos: a peripécia e o reconhecimento. A peripécia (peripéteia) é a inversão
das ações que ocorrem considerando a probabilidade ou a necessidade na trama. Em
Édipo Rei, a peripécia ocorre quando o antigo pastor de Laio afirma que entregou o
suposto filho recém-nascido do casal real ao mensageiro, que, por sua vez, entregou o
bebê a Políbio e Mérope (ER, vv.1116-1180). O reconhecimento (anagnōrisis), por sua
vez, é a passagem da ignorância para o conhecimento (Poética, 1452, 10, a 22-32). As
revelações do pastor e do mensageiro conduzem ao grande reconhecimento da tragédia:
o momento em que Édipo descobre ser filho de Jocasta (ER, vv.1182-1185). A respeito
4
O comportamento de Édipo, de certo modo, representa o comportamento humano de naturalmente
tender ao saber. Para Vernant (1990, p.139), a capacidade de Édipo questionar é a sua maior qualidade.
Romilly (1998, p.79), por outro lado, identifica a vontade desmedida de Édipo desvendar todos os
enigmas que o cercam com o “problema do heroísmo” presente em todas as tragédias sofocleanas.
Segundo Romilly (1998, p.72), o principal tema das tragédias de Sófocles é o homem, representado pelo
herói trágico, que vivencia obrigações e condutas éticas conflitantes. Os heróis de Sófocles são
excessivamente obstinados, pois buscam seus objetivos apesar de, frequentemente, perceberem que suas
lutas os levarão à própria morte ou ao abandono pelos seus entes queridos. Para ressaltar a coragem e o
sofrimento dos seus heróis, Sófocles mostra o problema do heroísmo – ceder ou não ceder em relação aos
outros - através de diálogos entre dois personagens que apresentam condutas éticas diferentes, por
exemplo, entre Édipo e Tirésias (ER, vv.320-460), e entre Édipo e Creon (ER, vv.533-677) (ROMILLY,
1998, pp.78-79).
5
Aristóteles não discute a influência dos deuses na tragédia. Segundo Stinton, a omissão dos deuses na
Poética revela uma grande falha na abordagem aristotélica caso leia-se a Poética como um manual para
escrever e interpretar tragédias. Todavia, o objetivo de Aristóteles, na visão de Stinton, é capturar a
essência da tragédia refletindo sobre os seus principais elementos (STINTON, 1975, p.254).
6
Conforme exposto na Ética Nicomaquéia, a alma humana possui três faculdades: a vegetativa, a
desiderativa e a racional. A faculdade vegetativa e a desiderativa participam da parte irracional da alma. A
faculdade vegetativa é responsável pela nutrição e crescimento, sendo comum a todos os seres vivos. A
faculdade desiderativa é responsável por todos os impulsos da alma, também está presente nos animais e
pode submeter-se à faculdade racional da alma. Aristóteles atribui dois aspectos à faculdade racional: o
aspecto pensante e o aspecto deliberativo – quando a faculdade desiderativa está subordinada à racional
(EN, I, 13, 1102b 13-30).
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do conteúdo que as tragédias devem retratar para despertar o medo e a piedade,
Aristóteles declara:
Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas
complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam medo e
piedade (porque tal é o próprio fim desta (mímēsis), evidentemente se
segue que não devem ser representados nem homens muito bons que
passem da boa (eutykhía) para a má fortuna (dustykhía) – caso que não
suscita medo nem piedade, mas repugnância -, nem homens muito
maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há coisa menos
trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito. O enredo
também não deve representar um malvado que se precipite da
felicidade (eutykhía) para a infelicidade (atukhía). Se é certo que certa
semelhante situação satisfaz o sentimento de humanidade, também é
certo que não provoca medo nem piedade; porque a piedade tem lugar
a respeito do nosso semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que
acontece não parecerá terrível nem digno de compaixão. Resta,
portanto, a situação intermediária. É a do homem que não se distingue
muito pela virtude e pela justiça, se cai no infortúnio, tal acontece, não
porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro (hamartía), e
esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação
e sorte, como Édipo e Tieste ou outros insignes representantes de
famílias ilustres. (Poética, 13, 1452b 31- 1453a 12).
Para Aristóteles, os personagens intermediários, ou seja, aqueles que não se
destacam nem pela virtude nem pela justiça, facilitam a aproximação com o público,
pois caso os personagens fossem extremamente bons de caráter, as catástrofes
vivenciadas por eles provocariam o sentimento de injustiça, e caso fossem perversos,
provocariam a sensação de revolta, não permitindo, então, a aproximação com o
público. A situação intermediária provoca medo, uma vez que o medo refere-se ao
semelhante. A situação intermediária provoca piedade, por outro lado, porque a piedade
diz respeito ao sofrimento imerecido. Ademais, a piedade pressupõe distanciamento,
uma vez que surge a partir da identificação de um agente inocente dentro de uma ação
trágica compreendida na sua totalidade. Destarte, a piedade também é sentida em
relação ao que os homens temem por eles mesmos (Retórica, II, 8, 1382b 27). Ou seja:
a piedade é precedida pelo medo. Acerca do uso da piedade e do medo para fins de
persuasão, Aristóteles afirma:
Quando for vantajoso para um orador que os ouvintes sintam temor,
convém adverti-los no sentido de que pode acontecer-lhes mesmo
alguma coisa de mal (sabendo até que outros mais poderosos que eles
também sofreram); convém ainda demonstrar-lhes como é que a gente
da mesma condição sofre ou já sofreu, tanto por parte de pessoas de
quem não se esperaria, como por coisas e em circunstâncias de que
não se estava à espera. (Retórica, II, 5, 1383a 8-12).
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Observa-se, então, que a piedade implica medo e o medo refere-se,
simultaneamente, a um objeto vivido na tragédia e a algo possivelmente vivido pelo
indivíduo. Assim, a tragédia desperta piedade na medida em que há empatia entre o
personagem trágico e o público: o público reconhece a inocência do personagem trágico
e o público teme a possibilidade de viver uma tragédia semelhante a dos personagens
trágicos (HALLIWELL, 1998, p.176).
Ao definir a tragédia, Aristóteles afirma que o medo e a piedade provocam a
kátharsis das emoções. O que é a kátharsis trágica7? O uso do conceito não é
suficientemente esclarecedor na Poética. No entanto, Aristóteles também discute a
kátharsis nos seus tratados biológicos e na Política. Nos tratados biológicos, Aristóteles
identifica a kátharsis com o processo natural ou artificial de eliminar resíduos corporais
que atrapalhem o bom funcionamento do organismo. Por outro lado, na Política,
“kátharsis” aparece na discussão sobre a importância do ensino da música na cidade.
Segundo Aristóteles, há três tipos de música: a ética, a prática e a entusiástica8. Os três
tipos de música provocam emoções fortes, entretanto, apenas a música ética é capaz de
ensinar, uma vez que solidifica a virtude da moderação através das emoções despertadas
(Política, VIII, 1342b 18-20). Assim, Aristóteles conclui que as emoções despertadas
pela música auxiliam processos cognitivos, uma vez que a música produz “um alívio
acompanhado de prazer” (Política, VIII, 1342a 15). Na Poética, por sua vez, Aristóteles
afirma que a imitação de atos terríveis ou piedosos provoca um prazer próprio da
tragédia (Poética, XIV, 1453b 11). Assim, o prazer advindo da tragédia também permite
o alívio acompanhado de prazer. Deste modo, a kátharsis indica uma experiência
decorrente do envolvimento psicológico por parte do público com o drama trágico. A
kátharsis possui uma dimensão ética, portanto, na medida em que harmoniza a piedade
e o medo com a reflexão da audiência sobre o mundo. Assim, a kátharsis finaliza o
processo de aprendizagem iniciado pela mímēsis.
Com efeito, cabe observar que o medo e a piedade são suscitados pela tragédia
não só enquanto espetáculo cênico (Poética, 6, 1450b 17-20; 26, 1462a 12). Para
7
Acerca do conceito de kátharsis trágica, consultar: PUENTE, 2002, pp.10-24; e HALLIWELL, 1998,
pp.184-201. As considerações subsequentes estão em profundo débito para com esses estudos.
8
Segundo Aristóteles, os tipos de música são classificados de acordo com a melodia. Apesar de não
explorar essa classificação, Aristóteles observa que as melodias musicais possuem finalidades diversas. A
música ética é adequado ao ensino, a música prática e a entusiástica, por outro lado, são adequadas às
performances. Todavia, considerando os limites deste trabalho, abordou-se somente a música ética
(Política, VIII, 1341b 25- 1342a 3).
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Aristóteles, a tragédia não é primordialmente um espetáculo, uma vez que o enredo
deve ser composto de tal maneira que quem escute, mas não assista a história de Édipo,
possa sentir medo e apiedar-se com os acontecimentos narrados9. Deste modo, percebese que o medo e a piedade surgem, principalmente, da conexão bem estabelecida entre
as ações ocorridas na tragédia (Poética, 14, 1453b 3-7). Em Édipo Rei, a kátharsis do
medo e da piedade surge a partir da articulação entre (i) a representação da vida de um
homem cujas ações são resultantes do poder dos deuses e do poder da razão; (ii) o
reconhecimento e a peripécia, que revelam enigmas da trama para o público e para os
próprios personagens; (iii) o desencadeamento do medo e da piedade a partir da
representação de situações com as quais o público se identifique. Assim, a mímēsis e a
kátharsis, em Édipo Rei, provocam a reflexão sobre a vulnerabilidade da vida humana a
partir do envolvimento psicológico por parte público com a história de Édipo,
transformando o olhar do público sobre si e o mundo que lhe cerca. Os versos finais de
Édipo Rei corroboram essa leitura:
Olhai o grão-senhor, tebanos, Édipo,
decifrador do enigma insigne. Teve
o bem do Acaso – Týkhe -, e o olhar de inveja
de todos. Sofre à vaga do desastre.
Atento ao dia final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor
- sem nunca ter sofrido – o umbral da morte. (ER. vv. 1524-1530).
Os dois últimos versos, em especial, levantam um questionamento também
presente nas lições éticas de Aristóteles: a eudaimonía é possível somente após a morte?
Segundo Aristóteles, a eudaimonía é o objetivo final da vida humana (EN, I, 7, 1097a
36-37). Na Ética Nicomaquéia, Aristóteles caracteriza a eudaimonía como o bem viver
e bem agir (eû zēn kaì tò práttein) (EN, I, 4, 1095a 20). Para conquistar a eudaimonía, o
ser humano deve praticar constantemente as virtudes, tal como a coragem, a moderação,
a prudência e a sabedoria sem sofrer grandes reveses do acaso. Deste modo, o indivíduo
9
Calame (1998, p.18) observa que é interessante Aristóteles escolher Édipo Rei como modelo de história
oral, uma vez que problemas concernentes à visão atravessam toda a peça. Já no prólogo, o sacerdote
pede a Édipo que este veja o sofrimento causado pela praga com seus próprios olhos (ER, vv. 15-22).
Posteriormente, ao descobrir que é filho de Jocasta e Laio, Édipo declara: “Tristeza! Tudo agora
transparece! Recebe, luz, meu derradeiro olhar!” (ER.vv.1182-1183). Outra importante passagem
destacada por Calame (1998, pp.22-23) é o auto-cegamento de Édipo. Segundo Calame, a cegueira
simboliza o domínio sobre a verdade, e consequentemente, a participação do saber divino (ER, v.356;
v.369). Através da cegueira, Édipo aniquila, portanto, a sua própria identidade ao se transformar em uma
nova espécie de Tirésias.
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será considerado eudaímon se viver uma vida duradoura e bem sucedida em todos os
seus aspectos.
3. Hamartía e eudaimonía em Édipo Rei
Aristóteles considera que a passagem da boa para a má sorte em uma tragédia
ocorre por causa da harmartía10 do personagem, assim como as histórias de Édipo e
Tieste exemplificam (Poética, 13, 1453a 11). Além disso, as histórias de Édipo e Tieste
exemplificam outra condição exigida para a excelência de uma tragédia: as ações
trágicas devem desenrolar-se necessariamente entre amigos, inimigos ou indiferentes.
Se as ações trágicas ocorrem somente entre inimigos ou estranhos, o público não tem
com o que apiedar-se além do aspecto lutuoso dos acontecimentos. Todavia, se as ações
trágicas ocorrem entre amigos ou familiares, por exemplo, irmão que mata ou quase
mata o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe um filho, ou um filho a mãe, o medo e a
piedade provocados são muito mais impactantes (Poética, 14, 1453b 15-20).
Com efeito, para compreender o conceito aristotélico de hamartía, é preciso
compreender os exemplos de Tieste e Édipo. Tieste é irmão gêmeo de Atreu 11. Ambos
são filhos de Pélops e Hipodamia. A pedido de Hipodamia, Tieste e Atreu, quando
jovens, matam o meio-irmão Crisipo. Depois fogem e conquistam Micenas. Tieste,
então, se torna amante de Aérope, esposa de Atreu. Para se vingar, Atreu mata os filhos
de Tieste e prepara uma refeição com as crianças. Após servir a refeição para Tieste,
Atreu mostra-lhe os braços e as cabeças dos filhos. Em seguida, Tieste, foge para Sícion
onde sua filha, Pelópia, mora. Por intermédio de um oráculo, Tieste descobre que é
possível vingar-se de Atreu através de um filho nascido de um incesto não consentido
com a própria filha. Este filho, Egisto, mata Atreu. Após a morte de Atreu, Tieste
conquista o poder de Micenas. Édipo, por sua vez, na versão de Sófocles, foi
10
O termo hamartía engloba múltiplos significados, variando entre erros voluntários frutos da maldade e
erros causados por ignorância. Aristóteles mantém a acepção ampla de hamartía, uma vez que não define
expressamente qual é o tipo de erro que implica a mudança da sorte (HALLIWELL, 1999, p.221).
Stinton, por sua vez, observa que o significado de hamartía depende do contexto em que o termo é usado
(STINTON, 1975, p.226). Apesar de Stinton e Halliwell possuirem visões ligeiramente diferentes sobre o
que é a hamartía, Halliwell reconhece seu profundo débito para com Stinton. Diferentemente de Stinton,
Halliwell não concorda que a análise de Aristóteles é vindicada de algum modo pela descoberta de
múltiplas hamartiai em determinadas peças (tese abordada por Stinton em 1975, pp. 245-252). Ademais,
Halliwell discorda que há semelhanças entre o conceito aristotélico de hamartía e a acepção religiosa de
atē. Ver HALLIWELL, 1998, nota 29, p.222.
11
A história de Tieste resumida aqui teve como base a versão de Grimal, 1997, p.448.
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abandonado imediatamente após o seu nascimento pelos seus pais biológicos, Laio e
Jocasta, reis de Tebas. Laio decide abandonar Édipo, pois o oráculo previu que seu filho
lhe mataria. O pastor responsável pelo abandono de Édipo entrega o recém-nascido para
outro pastor, que entrega a criança para Mérope e Políbio – reis de Corinto. Assim,
Édipo cresce em Corinto, sem contato com Laio e Jocasta, acreditando que é filho de
Políbio e Mérope. Um dia, quando jovem, descobre que é adotado e pergunta ao oráculo
de Delfos sobre sua verdadeira identidade. O oráculo lhe responde que irá matar seu pai
e desposar sua mãe. Assustado, Édipo foge de Corinto. Numa encruzilhada, após sair do
oráculo, Édipo briga com os viajantes de outro veículo, pois eles não lhe deram
passagem. Édipo mata todos os viajantes, dentre eles, Laio. Édipo vai para Tebas e salva
a cidade da Esfinge. Recebe como prêmio Jocasta e o governo de Tebas. Dez anos se
passam até que a peste assola Tebas. O oráculo de Delfos revela que a peste não
desaparecerá até que o miasma da cidade seja expulso. Este miasma é o assassino de
Laio. Édipo, então, procura o culpado, amaldiçoando-o com a expulsão da cidade.
Jocasta percebe antes de Édipo quem ele é e enforca-se. Édipo trespassa seus olhos com
os fechos de ouro do vestido de Jocasta. No fim de Édipo Rei, Édipo transforma-se em
um pária, mas sua expulsão de Tebas é apenas sugerida12.
O que as histórias de Édipo e Tieste revelam sobre a hamartía? Ambos os
personagens cometem ações terríveis13, mas desconhecem elementos envolvidos nas
suas ações. Suas hamartíai não são falhas morais, pois caso os heróis trágicos
cometessem erros voluntariamente teriam caráter duvidoso, impossibilitando a
aproximação com o público e, consequentemente, a kátharsis das emoções. As histórias
de Édipo e Tieste mostram que a hamartía exige reconhecimento, pois caso este não
12
Édipo declara: “E quanto a mim, enquanto eu vivo, a pólis pátria jamais me julgue digno dela. Que eu
parta para o monte cujo nome se liga a mim: Cítero – meu sepulcro! -, como meu pai e minha mãe
queriam” (ER, vv.1449-1453). Em seguida, Édipo pede para Creon lhe expulsar da cidade. Creon afirma
que Édipo terá o que deseja, mas suas filhas, Antígone e Ismênia, devem permanecer em Tebas (ER, vv.
1516-1524). Segal, autor filiado à corrente estruturalista antropológica, interpreta Édipo Rei através da
dicotomia entre “civilização” e “barbárie” (SEGAL, 1999, p.3). Readaptando a definição aristotélica de
cidade exposta em Política, I, 1253a 1-19, Segal afirma que a cidade é um meio termo entre o espaço dos
deuses, seres que não são limitados pelas leis humanas (nómos), e o espaço habitado pelos animais
selvagens, que não são dotados de razão. Assim, nesse contexto, a volta de Édipo para o monte Cítero
representa a sua volta à barbárie. Para Segal, o conceito de civilização envolve a autonomia e a
independência do herói trágico perante a sociedade, bem como as capacidades morais e intelectuais do
homem em geral, e as relação entre o ser humano e a ordem divina (SEGAL, 1999, p.3). No entanto, a
leitura de Segal é questionável, uma vez que o conceito de civilização enquanto entidade que transcende a
esfera cultural não parece possuir respaldo histórico-filosófico na Antiguidade.
13
Stinton observa que Aristóteles, no entanto, não especifica se a hamartía sofrida por Tieste é o incesto
com Pelópia, o caso com Aérope ou a ingestão dos próprios filhos (STINTON, 1975, pp.226-227).
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ocorra, o herói trágico permanecerá feliz no seu estado de ignorância. Édipo, por
exemplo, permaneceria feliz cometendo incesto com sua mãe. O reconhecimento da sua
própria ignorância desperta aflição e arrependimento no herói trágico - reviravolta que
provoca piedade e medo no público. A importância do reconhecimento para o impacto
provocado pela tragédia é explicitada por Aristóteles no seguinte trecho:
É possível que uma ação seja praticada do modo como a poetaram os
antigos, isto é, por personagens que sabem e conhecem o que fazem,
como a Medeia de Eurípides, quando mata os próprios filhos. Mas
também pode dar-se que algum obre sem conhecimento do que há de
malvadez nos seus atos, e só depois se revele o laço de parentesco,
como no Édipo de Sófocles (esta ação é verdade que decorre fora do
drama representado, mas, por vezes, o mesmo se dá na própria
tragédia, como a de Alcméon, na homônima tragédia de Astidamas, e
a de Telégono no Ulisses Ferido). (Poética, 14, 1453b 26-34).
A hamartía provoca a passagem do acaso favorável para o acaso desfavorável na
vida do herói trágico através da ação, que também é responsável pela alternância da
eudaimonía para a infelicidade (Poética, 6, 1450a 18-23; 13, 1453a 10). Ademais, a
partir das histórias de Édipo e Tieste observa-se que a hamartía envolve ações causadas
por uma transgressão desmedida (hýbris14) do herói trágico para com alguém. De um
modo geral, a hýbris pode ser entendida como a subestimação do outro que é objeto da
hýbris do herói trágico e a superestimação do herói trágico em relação a si mesmo.
Édipo, por exemplo, se considera o primeiro entre os homens e o melhor dos mortais,
uma vez que o acaso lhe é extremamente favorável (ER, vv. 33, 46). Por isso, Édipo se
declara filho do acaso favorável, da sorte (ER vv. 1080-1082). Todavia, por causa da
busca irrefreável pelo assassino de Laio que conduz à revelação de que é filho do casal
real de Tebas, Édipo, se torna o mais vil e odiado dos homens (ER, vv.1344-46, 1433,
334). Observa-se, então, que o acaso que tornou Édipo grande também o tornou
pequeno e infeliz (ER, v.442). A respeito do vínculo entre acaso, ação e eudaimonía,
Aristóteles declara:
A eudaimonía pressupõe não somente virtude perfeita, mas também
uma existência completa, pois muitas mudanças e vicissitudes de
todos os tipos ocorrem no curso da vida, e as pessoas mais prósperas
podem ser vítimas de grandes infortúnios na velhice, como se conta de
14
Dependendo do contexto, a hýbris pode ser entendida enquanto arrogância, insolência, um ato de
violência contra alguém ou um grave tipo de transgressão de valores. Tendo em vista os múltiplos
significados do termo, neste trabalho, optou-se por mantê-lo no original.
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Príamo na poesia heroica. Ninguém pode considerar feliz uma pessoa
que experimentou tais vicissitudes e teve um fim tão lastimável. (EN,
I, 9, 1100a 1-11).
Segundo Aristóteles, apesar de a eudaimonía exigir bens exteriores, tais como
boa estirpe, bons filhos e beleza (EN, I, 9, 1099a 15-20), ela é “algo permanente e não
facilmente sujeito à mudanças” (EN, I, 10, 1100a 6-8). Como é possível manter a vida
virtuosa perante a força caótica do acaso? Para Aristóteles, a sorte influencia a
eudaimonía na medida em que possibilita condições externas favoráveis para o
exercício das virtudes éticas e dianoéticas15. Por exemplo, a paz política permite que os
cidadãos desenvolvam o caráter corretamente (EN, I, 9, 1099b 30-35). Os bens
exteriores não são, portanto, uma ameaça à integridade da eudaimonía, uma vez que
facilitam o exercício das práticas virtuosas que conduzem à eudaimonía. Por fim,
Aristóteles articula eudaimonía e acaso da seguinte maneira:
Embora a boa sorte ou o infortúnio em pequena escala não mudem
evidentemente o curso completo da vida, grandes e frequentes
sucessos tornam a vida mais feliz, pois eles, por sua própria natureza,
realçam a beleza da vida e também podem ser usados nobremente e de
conformidade com a excelência; grandes e frequentes reveses, ao
contrário, aniquilam e frustram a felicidade, seja pelos sofrimentos
que causam, seja por constituírem óbices a muitas atividades. Isto não
obstante, mesmo na adversidade a galhardia resplandece, quando
alguém sofre grandes e frequentes infortúnios com resignação, não por
insensibilidade, mas por nobreza e grandeza da alma. (EN, I, 10,
1100b 20-32)
Segundo Aristóteles, o homem será considerado eudaímon caso pratique hábitos
virtuosos constantemente e por toda a sua vida. Ademais, o homem não poderá sofrer
grandes reveses na vida, pois fracassos frequentes atrapalham o desenvolvimento das
virtudes. Príamo, por exemplo, era membro de uma boa família, de uma boa cidade,
tinha amigos leais e era um bom rei. Ele podia exercitar as virtudes éticas, tais como a
temperança, a justiça, a moderação, e as virtudes dianoéticas, como a prudência e a
sabedoria. Todavia, por causa da guerra contra os gregos a roda da fortuna girou para
Príamo e o tornou desgraçado (EN, I, 9, 1100a, 5-10; 1100b 8-10). Após a guerra,
15
As virtudes éticas, tal como a moderação e a coragem, surgem através da prática constante de hábitos
virtuoso (EN, II, 1, 1103a 16-18). As virtudes dianoéticas, por sua vez, surgem através da educação.
Aristóteles considera que há dois tipos de virtudes dianoéticas: a sabedoria (sophía) e a prudência
(phron sis) (EN, II, 1, 1103a 14-16).
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Príamo não tinha amigos e nem reino para exercitar suas virtudes. Por isso, o homem
que viver desgraças como as de Príamo jamais poderá ser considerado eudaímon (EN, I,
10, 1101a 5-8). A eudaimonía, portanto, não é fruto do acaso, mas pode se beneficiar
dele.
Com efeito, cabe observar que o herói trágico é caracterizado pela reputação e
boa sorte. Édipo, por exemplo, aparentemente é bem afortunado durante boa parte de
sua vida: sobrevive ao abandono de Laio e Jocasta, é adotado por um casal real, ganha o
trono e a rainha de uma cidade após desvendar um enigma. Essa maré de boa sorte
permitiu que Édipo desenvolvesse, em certo grau, algumas virtudes, por exemplo, a
coragem. Todavia, Édipo equivocou-se em relação a sua própria história - erro
irreparável que lhe conduziu à infelicidade. Após esse erro, Édipo não pode mais
exercitar suas virtudes, uma vez que, assim como Príamo, perdeu tudo o que tinha.
Tanto a eudaimonía humana quanto a eudaimonía dos heróis trágicos dependem da
ação. Através da abordagem sobre o acaso na Poética, observa-se que caso um
personagem trágico cometa um ato catastrófico, ele não poderá mais ser eudaímon, pois
não conseguirá mais exercitar as suas virtudes. Todavia, segundo a Ética Nicomaquéia,
caso o indivíduo tenha sofrido grandes e frequentes vicissitudes, ele poderá, após um
longo lapso de tempo durante o qual ele tenha tido chances de alcançar muitos e belos
sucessos, voltará a ser eudaímon, apesar desta possibilidade ser de difícil alcance, uma
vez que requer muitos anos ainda a serem vividos (EN, 1, 10, 1101a 1-5). A diferença
dessas abordagens reside no objetivo de cada discurso: enquanto a tragédia é um
discurso poético cuja finalidade é educar o público através da mímēsis das ações e da
kátharsis das emoções, a ética busca justificar modos de vida por meio de
argumentações racionais em sentido estrito.
Ademais, considerando o texto de Édipo Rei pode-se concluir que a tragédia
sempre busca ressaltar o abismo entre o conhecimento humano e o divino da vida
humana16. Tal observação é exemplificada na fala do coro após Édipo descobrir a
verdade sobre sua origem:
16
Segundo Romilly (1998, p.89), os deuses, nas tragédias de Sófocles, estão associados à luz, a
perenidade e a serenidade. Os homens, por outro lado, representam a instabilidade, a efemeridade. Os
heróis de Sófocles, entretanto, são menos instáveis que os homens comuns, uma vez que são
extremamente obstinados e não cedem nos seus objetivos. Ademais, Romilly (1998, pp.92-93), observa
que a estrutura de Édipo Rei é comandada pela “ironia trágica” - definida como “o fato de um
personagem utilizar-se de fórmulas de duplo sentido, que o seu interlocutor não está em condições de
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Estirpe humana,
o cômputo do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu do demo um bem
não limitado a aparecer e a declinar
depois de aparecer?
És paradigma,
o teu demônio é paradigma, Édipo:
mortais não participam do divino. (ER, vv. 1188-1195).
No fim de Édipo Rei, o coro enfatiza, novamente, a ignorância do ser humano
sobre o seu futuro ao declarar que ninguém pode ser considerado feliz antes de morrer
(ER. vv. 1528-1530). Como visto anteriormente, o objetivo da tragédia é emocionar o
público através das histórias contadas. Édipo Rei destaca a fragilidade da vida humana,
ao mostrar a história de um homem cujo desejo de conhecer o passado se transforma na
realização do seu futuro. Sob esta perspectiva, Édipo Rei retrata a tentativa de um ser
humano lidar com o espanto advindo do desconhecido – que assume a forma dele
mesmo. Observa-se, então, que assim como a filosofia, a tragédia é uma maneira de
abordar problemas humanos. Todavia, a tragédia e a filosofia são discursos que operam
em níveis diferentes apesar de múltiplos aspectos poderem ser conciliados. Por
conseguinte, neste trabalho, procurou-se mostrar como é possível interpretar Édipo Rei
à luz dos conceitos de mímēsis, kátharsis e hamartía expostos na Poética e do conceito
de eudaimonía desenvolvido na Ética Nicomaquéia, contribuindo, assim, para o diálogo
entre a tragédia e a filosofia enquanto modos de entender a vida humana.
4. Considerações finais
A tragédia resulta da mímēsis – forma de conhecimento que “recria” a realidade
através da transformação de seus diferentes elementos e subsequente transposição para a
dimensão ficcional. O processo de reflexão sobre a vida humana desencadeado pela
mímēsis é completado pela kátharsis do medo e da piedade – emoções suscitados pela
tragédia através dos artifícios da peripécia, do reconhecimento e da empatia entre o
público e a representação trágica. Todavia, Aristóteles salienta que o medo e a piedade
devem ser provocados pela tragédia não só enquanto espetáculo cênico, mas também
enquanto produção oral e escrita, uma vez que o principal elemento da tragédia é a
conexão bem estabelecida entre os acontecimentos, ou seja, o enredo. A tragédia de
compreender, mas que podem ser percebidas pelo espectador”. A função da ironia trágica é ressaltar a
ignorância do ser humano perante os deuses.
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Édipo é deflagrada por uma espécie de hamartía – tipo de erro irrevogável com
consequências catastróficas. A hamartía de Édipo impede que este seja considerado
eudaímon, uma vez que ele, assim como Priamo, não poderá exercer suas virtudes da
melhor maneira possível. Analogamente, o homem que viver infortúnios como os de
Príamo e Édipo dificilmente poderá ser considerado eudaímon – a não ser que viva
virtuosamente ao longo de muitos anos após a tragédia sofrida. Deste modo, conclui-se
que a tragédia de Édipo afeta o espectador na medida em que provoca reflexões,
sobretudo, a respeito da fragilidade da felicidade humana e da vulnerável posição do
homem perante o acaso, contribuindo, assim, para o processo de autoconhecimento e
crescimento espiritual proposto pela filosofia grega clássica. Por fim, conclui-se que a
interpretação do personagem Édipo, de Édipo Rei, à luz dos conceitos aristotélicos de
mímēsis, kátharsis, hamartía e eudaimonía, pode auxiliar a interpretar Aristóteles sob
um novo olhar, além de reconhecer o estatuto da tragédia enquanto tipo de discurso
dotado de importância filosófica.
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