A “Festa Brasileira” - Morus

Transcrição

A “Festa Brasileira” - Morus
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom
Selvagem”: um estudo sobre o Papel do
índio brasileiro na entrada de Henrique II
em Rouen em 1550
José Alexandrino de Souza Filho
Universidade Federal da Paraíba
Resumo
O artigo estuda a “festa brasileira”, representação de caráter teatral
encenada durante a entrada de Henrique II em Rouen em 1550, cujo tema era a
vida dos índios brasileiros. Num primeiro momento, analisamos a documentação
existente sobre o evento, para em seguida descrever como se deu a encenação,
enfatizando o caráter idealizado atribuído à figura do índio. A “festa brasileira”
articulava-se com outro espetáculo da entrada: a naumaquia, o combate naval
entre franceses e portugueses. Ambas as atrações, por sua vez, fazem parte de
uma todo maior, que inclui as alegorias apresentadas em Rouen intramuros. O
conjunto consistia em criar um grande espetáculo que representasse o triunfo
da monarquia e da civilização francesas em articulação com um projeto de
expansão territorial de além-mar: a conquista do Brasil. Em Rouen, assistiu-se à
encenação de um projeto colonial que pretendia ser diferente daquele praticado
pelos espanhóis e portugueses no Novo Mundo. Os franceses imaginavam um
modelo de colonização que consistia na execução de uma política de aproximação
com os silvícolas, e não na sua eliminação física ou escravidão. A isso chamamos
de “política do bom selvagem”.
Palavras-chave
Henrique II, festa brasileira, bom selvagem.
José Alexandrino de Souza Filho é formado em Bacharelado em Francês pela Universidade
Federal da Bahia, tem mestrado em Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo,
com a dissertação O Riso e o Grotesco na Obra de Charles Baudelaire, sob orientação
de Philippe Willemart, e doutorado na mesma área na Université Michel de Montaigne
(Bordeaux 3), com a tese Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne,
sob orientação de Claude-Gilbert Dubois. A tese foi micro-filmada pelo Atelier National
des Thèses, da Université de Lille 3, sob nº 1842.43080/04. Em 2007, lançou o livro
Projeto “Livraria” de Montaigne – Um passeio ao universo do escritor francês Michel
de Montaigne ( João Pessoa, Editora Universitária), durante a inauguração da 2ª edição
da instalação/exposição de mesmo nome (com apoio financeiro do CNPq). A 1ª edição do
Projeto “Livraria” de Montaigne foi inaugurada em 1999. É autor de artigos publicados
em coletâneas, como Des signes au sens: lectures du livre III des Essais (Paris, Honoré
Champion, 2003), e Jean de Léry et l’Histoire d’un voyage en la terre du Bresil – Journées
d’études (Pessac, Centre Montaigne, 2000). Tem artigos publicados nas revistas Ciência
Hoje (SP), Conceitos (PB), Forum Deutsch (RJ) e Morus (SP). É professor de literatura
e língua francesas na Universidade Federal da Paraíba e dirige o grupo de pesquisa Estudos
franco-brasileiros sobre Civilização e Barbárie, cadastrado junto ao CNPq.
Miniatura nº 9 do manuscrito Y 28
Entrada do rei Henrique II na cidade de Rouen no dia 1º de outubro de 1550. Um dos
espetáculos apresentados na ocasião ficou conhecido como «festa brasileira» e contou com a
presença de um grupo de autênticos índios trazidos à França. Eles podem ser vistos acima, à
esquerda, sobre uma ilha repleta de árvores imitando o pau-brasil, e abaixo, à direita, numa
representação da guerra entre os índios Tupinambá e Tabajarras, com a vitória dos primeiros,
aliados dos franceses. Clichê da Biblioteca Municipal de Rouen.
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
1. Preliminares e documentação
A entrada de Henrique II e Catarina de Médicis em Rouen nos
dias 1° e 2 de outubro de 1550 é um dos exemplos mais representativos
da formação do mito do bom selvagem na França. Existe uma relação
entre a representação do índio mostrada nessa entrada e aquela elaborada
por Michel de Montaigne nos seus Ensaios: são, no século XVI, as duas
mais importantes manifestações dessa legenda que se tornou uma tópica
do pensamento e do imaginário franceses.
Esta entrada foi estudada principalmente por historiadores
franceses e anglo-americanos, mas muito pouco por brasileiros, em que
pese sua relevância histórica1. Esses estudos mostraram a riqueza e as
dimensões desse evento ao mesmo tempo político, social e cultural.
Parece-nos, contudo, que a significação ideológica da participação dos
índios brasileiros no conjunto das atrações da entrada não foi ainda
suficientemente estudada. Não pretendemos preencher completamente
essa lacuna, apenas oferecer ao público brasileiro interessado no assunto
uma visão de conjunto dos acontecimentos, procurando trazer à luz seus
aspectos ideológicos, mostrando como eles se articulam com a encenação
teatral sobre a vida dos índios brasileiros.
Como todas as entradas reais, esta foi estruturada a partir de um
“roteiro”, uma idéia-central que ordenava as partes de um conjunto. A
idéia consistia em criar um espetáculo que representasse o triunfo da
monarquia e da civilização francesas em articulação com um projeto
de expansão territorial de além-mar: a conquista do Brasil. Em Rouen,
assistiu-se à encenação de um projeto colonial que pretendia ser
diferente daquele praticado pelos espanhóis e portugueses no Novo
Mundo. Os franceses imaginavam um modelo de colonização que
consistia na execução de uma política de aproximação com os silvícolas,
e não na sua eliminação física ou escravidão. O objetivo era fazer dos
índios, num primeiro momento, parceiros comerciais (na perspectiva
da exploração econômica do Brasil) e, num segundo, novos súditos
de um rei humanitário e esclarecido (na perspectiva da implantação
da “civilização francesa” em terras americanas). Para obter êxito em
seu projeto, os franceses contavam com a evangelização dos nativos, a
introdução da agricultura e o desenvolvimento de uma sociedade civil.
O culto das letras, das artes e das ciências, além da observância às regras
da civilidade e das boas maneiras, fazia implicitamente parte desse
projeto de civilização.
A entrada de Rouen foi também um acontecimento diplomático,
como normalmente era esse tipo de evento, graças à presença de
embaixadores estrangeiros. Os embaixadores da Espanha e Portugal,
adversários da França na colonização do Novo Mundo, estavam
presentes às festividades. Naquele mesmo ano, acontecia uma polêmica
intelectual em Valladolid, Espanha, opondo o dominicano Bartolomeu
de Las Casas e o jurista Juan de Sepúlveda, em torno da questão da
Ver bibliografia. O estudo
mais conhecido sobre esta
entrada foi publicado por
DENIS (1850). O mais
completo dói publicado
por POTTIER (1835),
conservador dos arquivos
da cidade, na Revue de
Rouen. Um extrato do texto
de Pottier foi publicado,
em forma de brochura, no
“Programa das Festas de
Rouen dos dias 12, 13 e 14
de junho de 1880, seguido de
uma notícia historiográfica
sobre a entrada de Henrique
II em Rouen em 1550” (p.
1-26). A entrada de 1550 foi
re-encenada na mesma cidade
trezentos e trinta anos depois,
mas sem algumas das atrações
originais, como a naumaquia
e a “festa brasileira”. Outros
estudos franceses importantes
são o de MERVAL
(1868), CHARTROU
(1928), DESCHMAPS
(1973), MASSA (1975) e
DIERICKX (1986). No
domínio anglo-americano, há
estudos relevantes, como o de
McGOWAN (1968) e o de
WINTROUB (1999). Entre
os brasileiros, poderíamos citar
MELO FRANCO (1937),
que deteve-se brevemente
sobre esta entrada, assim como
PERONE-MOISÉS (1996).
1
223
José Alexandrino de Souza Filho
Ver bibliografia. O estudo
mais conhecido sobre esta
entrada foi publicado por
DENIS (1850). O mais
completo dói publicado
por POTTIER (1835),
conservador dos arquivos
da cidade, na Revue de
Rouen. Um extrato do texto
de Pottier foi publicado,
em forma de brochura, no
“Programa das Festas de
Rouen dos dias 12, 13 e 14
de junho de 1880, seguido de
uma notícia historiográfica
sobre a entrada de Henrique
II em Rouen em 1550” (p.
1-26). A entrada de 1550 foi
re-encenada na mesma cidade
trezentos e trinta anos depois,
mas sem algumas das atrações
originais, como a naumaquia
e a “festa brasileira”. Outros
estudos franceses importantes
são o de MERVAL
(1868), CHARTROU
(1928), DESCHMAPS
(1973), MASSA (1975) e
DIERICKX (1986). No
domínio anglo-americano, há
estudos relevantes, como o de
McGOWAN (1968) e o de
WINTROUB (1999). Entre
os brasileiros, poderíamos citar
MELO FRANCO (1937),
que deteve-se brevemente
sobre esta entrada, assim como
PERONE-MOISÉS (1996).
2
3
Trata-se de um volume
oblongo medindo 18,5 cm
de largura por 26,0 cm de
comprimento.
224
“bestialidade” dos índios. O projeto francês de colonização, tal qual
podemos deduzir a partir da análise da entrada, aponta teoricamente
na mesma direção daquele proposto por Las Casas, posto que ambos
tem por fundamento a ocupação pacífica do continente americano e um
certo respeito à alteridade cultural, ainda que isso possa camuflar, no
caso da política imperialista francesa, interesses comerciais e ambições
geopolíticas.
Os organizadores da entrada de Rouen procuraram mostrar
como era vida dos índios nas terras que os franceses pretendiam ocupar.
A teatralização mostra uma imagem positiva do indígena brasileiro,
representado tanto como guerreiro dotado de grande força física e
coragem, em cenas de guerra, quanto como membro de uma comunidade
justa e solidária, em cenas bucólicas. A encenação põe em cena, pela
primeira vez, o personagem do bom selvagem. Humanistas franceses,
como Jodelle, Ronsard e Montaigne, dão continuidade a esta tradição e
projetam literariamente uma imagem positiva dos índios. Vale lembrar
que o autor dos Ensaios também denunciou os métodos violentos
empregadas pelos portugueses na ocupação do território brasileiros
e a “barbárie” perpetrada pelos espanhóis no restante do continente
americano, no ensaio “Das carruagens” (Des coches, II, 6).
Existem pelo menos quatro documentos impressos em função da
entrada de Rouen. Normalmente, as entradas reais não suscitam tantos
registros. São duas “relações” em prosa (publicadas, respectivamente,
em 1550 e 1551), uma em verso (1552) – Epithome en rhitme françoyse
sur l’entrée... (A Rouen, pour Robert le Hoy, 1552) – e outra apenas
com ilustrações e dizeres da entrada (1557) – Les poutres et figures du
somptueux ordre... (Rouen, Par Jean Dugort, 1557). A primeira das
“relações” em prosa foi publicada pelo impressor Robert Masselin,
em Paris, pouco depois do evento, e nela se faz uma descrição sucinta
dos acontecimentos – L’entrée du Roy nostre Sire... (Paris, par Robert
Masselin, 1550). Em contrapartida, a segunda, publicada por Robert
Le Hoy no ano seguinte, na própria Rouen, faz uma narração detalhada
dos acontecimentos, ilustrada com numerosas imagens, algumas de
página inteira. Este documento, ao qual doravante nos reportaremos
freqüentemente, chama-se a Dedução – C’est la deduction du sumptueux
ordre... (Rouen, chez Robert le Hoy Robert & Jehan dictz du Gord,
1551). Seu autor não assinou a obra, mas é certo que se trata de um
humanista erudito, versado em história antiga e literatura clássica. É
provável que seja Claude Chappuys, cônego do capítulo de Saint Ouen,
em Rouen. Ele já havia publicado um relato da sagração de Henrique II
na catedral de Reims, em 1547. É ele quem faz a arenga ao rei ao final
da entrada, na catedral de Rouen2.
Além da Dedução, principal fonte impressa para o estudo da
entrada, nós iremos nos servir de um manuscrito que hoje se encontra
conservado na Biblioteca Municipal de Rouen3. Ele é composto de
cerca de 700 versos franceses acompanhados de dez miniaturas de
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
grande qualidade artística, pintadas sobre papel rígido e liso (vélin)4.
No século XIX, o historiador Stéphane de Merval publicou este
precioso documento cujas miniaturas foram copiadas por seu irmão
Louis de Merval, em água forte (L’ENTREE DE HENRI II..., 1858).
Elas mostram toda a evolução do desfile: a ordem e a indumentária de
cada membro do corpo social – eclesiásticos, parlamentares, artesãos,
militares, comerciantes etc. – os carros alegóricos, além dos espetáculos
e alegorias apresentados naquela ocasião.
O conjunto das miniaturas permite identificar determinados
modelos que inspiraram os organizadores do desfile, a saber: 1) o livro
Hipnerotomaquia ou Discurso do Sonho de Polifilo, do italiano Francesco
Colonna (1433-1527), cuja tradução francesa, por Jean Martin, foi
publicada em 1545 (Hypnérotomachie ou Discours du Songe de Poliphile).
A obra continha descrições detalhadas de monumentos da Antiguidade,
ilustrada com ricas imagens de arcos do triunfo, edifícios públicos,
fontes etc.; 2) o “Triunfo de César”, série de nove quadros pintados
pelo italiano Andrea Mantegna (1430-1506); diversos elementos do
desfile (os Elefantes, a deusa Flora, os Cativos, etc.) foram inspirados
nessas pinturas; 3) os Triunfos de Petrarca: os carros alegóricos foram
criados a partir dos versos do poeta italiano e das ilustrações do seu
livro5.
Apenas a miniatura n° 9 interessa aos nossos propósitos, porque
oferece uma visão de conjunto da entrada, mostrando os espetáculos
encenados fora dos muros da cidade, como a “festa brasileira” e a
naumaquia ( Ilustração nº 1). A primeira das atrações exibida fora
dos muros de Rouen ficou conhecida na historiografia francesa como
“festa brasileira”6. No século XVI, este tipo de espetáculo era conhecido
como “schiomaquia”, nome de origem grega que significava “combate
com a sombra”, luta simulada. Consistia em espetáculos de caráter
teatral, encenados em grandes espaços ao ar livre, com a participação de
centenas de figurantes, a partir de temas extraídos da mitologia grecolatina. A naumaquia era outra atração tradicional das entradas reais,
especialmente nas cidades banhadas por rios; era uma encenação cujo
palco eram as águas e que consistia em simulacro de combate naval,
com a participação de barcos e personagens mitológicos marinhos, como
Netuno, sereias, cavalos do mar, tritões, etc.
2. A “festa brasileira”
Esta encenação permite visualizar em imagens, como nenhum
documento escrito poderia fazê-lo, como se dava a ação dos franceses
nos primeiros tempos da colonização do Brasil. Por seu caráter teatral,
o espetáculo é uma representação das atividades dos traficantes
normandos de pau-brasil, embora seja claramente uma representação
ideologicamente orientada.
As miniaturas medem 12 cm
de altura por 22 cm de largura.
4
Cf. CHARTROU,
1928, p. 92-95.
5
Graças, sobretudo, ao livro
de Ferdinand Denis Une fête
brésilienne célébrée à Rouen en
1550, publicado em Paris
em 1850.
6
225
A «festa brasileira»
Encenação representando a vida dos índios brasileiros. Cerca de 50 índios, trazidos à França pelos comerciantes de
pau-brasil, participaram do espetáculo, juntamente com cerca de 250 franceses, nus e pintados à moda indígena.
Vê-se, em primeiro plano, a cena da guerra. Assiste-se a uma batalha entre Tupinambás e Potiguaras, com a
vitória dos primeiros, aliados comerciais dos franceses no tráfico de pau-brasil. Em segundo plano, à esquerda, vêse o abate e transporte das toras de madeira para os barcos franceses. Clichê da Biblioteca Municipal de Rouen.
José Alexandrino de Souza Filho
7
André Thevet diz que os
colonos da França Antártica
foram acolhidos por um
chefe indígena, chamado
Morbichaouassoub, na língua
dos nativos. A Dedução
mostra que seu autor era
bem informado a respeito
dos costumes indígenas e
de algumas palavras do seu
idioma. Thevet descreve
assim a recepção feita pelos
índios aos franceses: “Tendo,
portanto, permanecido muito
pouco tempo no primeiro
local onde tocamos a terra
(...), içamos vela outra vez até
Cabo Frio, onde os selvagens
da região nos receberam muito
bem, demonstrando ao seu
modo muita alegria (...).
Eles saudaram cada um de nos,
segundo seu costume, dizendo
a palavra “Caraiubé”, que
significa “longa vida” ou “seja
bem-vindo”. E a fim de melhor
nos fazer entender, quando
da nossa chegada, sobre as
maravilhas do lugar, um de
seus grandes Morbichaouassoub,
ou seja, rei, nos recepcionou
com uma farinha feita a partir
de raízes e com cauim”
(1997, p. 113).
8
Thevet registra a mesma
palavra para a moradia dos
índios: “As casas onde eles
moravam eram pequenas
habitações chamadas, na língua
deles, de mortugabes, as quais
eram agrupadas em vilarejos
ou aldeias, da mesma maneira
como vemos em alguns lugares
daqui.” (1997, p. 174).
228
A miniatura n° 9 representa o espetáculo de outra maneira. Os
índios são vistos sobre uma ilha verdejante, coberta de árvores de paubrasil. Foi a solução plástica encontrada pelos artistas para representar o
conjunto das atrações exibidas fora dos muros da cidade. Na realidade,
os participantes da encenação teatral ocupavam uma das margens do
rio Sena, espalhados ao longo de vasta área do arrabalde Saint-Sever,
conforme se pode ver na “Cena dos Brasileiros”, uma das ilustrações da
Dedução. (Ilustração nº 2). Na miniatura, vê-se até crianças indígenas
ao lado dos pais. De certa maneira, as duas imagens se complementam,
pois permitem conceber uma idéia aproximativa da “schiomaquia” com
tema brasileiro. Pode-se identificar pelo menos três grupos temáticos:
a guerra, o abate de pau-brasil e aquilo que chamaremos de “cenas do
bom selvagem”.
A guerra opunha duas nações indígenas: os Tabajaras
(“Tabagerres”) e os Tupinambás (“Toupinabaulx”), duas etnias tupis que
viviam freqüentemente em guerra, antes mesmo da chegada dos europeus.
Cada uma delas fizera alianças políticas contrárias: os Tabajaras com os
portugueses, descobridores e donos das terras, e os Tupinambás com os
franceses, armadores e navegadores atraídos pelo lucrativo comércio do
pau-brasil e produtos exóticos. A encenação se dá da seguinte maneira:
um grupo de guerreiros Tabajaras (conhecidos também como Marjagás)
se reúne em conselho para ouvir a exortação, “em língua brasileira” (en
langaige Bresilien), do “Morbicha”, seu chefe, lhes incitando à guerra7.
Logo em seguida, “sem contestação” (sans repliques), todos se levantam e
investem contra os Tupinambás, tomados de assalto. Uma violenta batalha
estoura com “fúria e força” (fureur et puissance). O desfecho do combate é
previsível: os “Tupinambás desbancaram (desconfirent) e puseram a correr
(mirent en route) os Tabajaras”. Não satisfeitos, os aliados dos franceses
foram incendiar as casas (Mortuabes) de seus inimigos8. Esta cena pode
ser vista no primeiro plano, à direita, da miniatura n° 9, e no fundo, à
direita e à esquerda, da gravura “Cena dos Brasileiros”. O espetáculo fez
grande sucesso, conforme relata o autor da Dedução:
A dita encenação (schiomaquia) foi representada com grande realismo,
tanto em razão da participação de verdadeiros selvagens quanto de
marinheiros, os quais haviam vivido muito tempo entre os selvagens,
graças às freqüentes viagens para traficar pau-brasil, de tal forma que a
encenação parecia verdadeira, e não simulada. Isso mereceu a aprovação
de várias pessoas do reino da França que freqüentavam há muito tempo
o país do Brasil e dos canibais (C’EST LA DEDUCTION..., 1551, fol.
K iv (f )).
Como se sabe, os franceses freqüentavam o litoral brasileiro desde
as primeiras décadas do século XVI. No início, o tráfico de pau-brasil era
financiado por ricos e poderosos armadores normandos, principalmente
Jean Ango, interessados nos lucros do comércio da madeira. Em troca
de toneladas do produto extraído da mata atlântica e transportado nos
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
ombros às vezes por longas distâncias até os barcos, os franceses davam
instrumentos de trabalho e quinquilharias aos indígenas. Eles tinham
interesse em manter relações amistosas com os nativos; para tanto,
aprendiam sua língua e não lhes censuravam, como os missionários
religiosos, certos costumes, como a poligamia e o canibalismo.
Ser francês no Brasil do século XVI significava geralmente ter relação
de amizade com os índios. Nesse sentido, o exemplo de Hans Staden é
emblemático, pois o marinheiro alemão pretendeu se fazer passar por
um francês, a fim de escapar ao “moquém” canibal do qual seria o prato
principal (STADEN, 1979, p.104).
O abate do pau-brasil é o tema da segunda cena da “festa
brasileira”. Ela mostra a atividade extrativista dos franceses no Brasil.
Na encenação de Rouen, uma parte da madeira abatida é embarcada
nos navios e outra é destinada à construção de uma fortaleza onde os
estrangeiros residiam durante sua estadia brasileira:
Os outros [índios] cortavam madeira, que era carregada por alguns
deles até um forte construído para esse fim junto ao rio, assim como os
marinheiros dessa região [Normandia] têm costume de fazer quando
negociam com os brasileiros. Essa madeira era trocada e permutada
pelos selvagens com os marinheiros acima citados por machados, foices e
moedas de ferro, de acordo com seu costume e maneira de fazer (C’EST
LA DEDUCTION..., 1551, fol. K iii (v)-K iv (f )).
Nas “cenas do bom selvagem”, mostraram-se aspectos da vida
quotidiana dos índios brasileiros (Ilustração nº 3). Uns caçam com arco
e flecha, ao passo que outros colhem frutos em cima das árvores. Alguns
dançam em grupo, enquanto casais apaixonados passeiam pelos bosques
ou parecem trocar segredos de amor, comodamente sentados à sombra
das árvores. O “rei” local repousa com sua esposa em uma rede estendida
entre troncos de árvores. Estas cenas compõem um retrato simpático da
vida dos índios: além de serem parceiros comerciais no tráfico do paubrasil e bravos guerreiros a serviço dos interesses franceses, eles eram
também um povo inocente e amoroso vivendo em um paraíso natural.
Embutida nos aspectos lúdico e pitoresco da “festa brasileira” existe uma
ideologia imperialista inspirada em uma mística nacionalista. Assim, o
processo de idealização do “bom selvagem” consiste, por um lado, em
ocultar os aspectos da cultura indígena que chocavam os princípios
morais e religiosos dos europeus, tais que a poligamia, o nudismo e
sobretudo o canibalismo, e por outro, em exaltar aqueles aspectos que
interessavam aos franceses.
Os versos que acompanham as miniaturas do manuscrito da
Biblioteca de Rouen reafirmam a ideologia subjacente à entrada: os
índios são apresentados em pé de igualdade com os franceses (“Vocês os
verão de coração ao nosso igual”):
229
José Alexandrino de Souza Filho
Não vês, sob vosso nome & porto,
Brasileiros ancorados em nosso porto?
Vê-se assim que por vós todo perigo
É afastado vendo todo estrangeiro
Que em segurança nossos portos freqüenta
Assim como nós nos deles traficamos.
Vós os vereis de coração ao nosso igual,
Banir o inimigo Portugal.
Assim como o fez o país da Guiné
Para glória de sua grande reputação,
Senhor, até mesmo no país dos canibais,
Ilhas a todos, exceto a nós, traiçoeiras
Estamos em tranqüila segurança,
Graças à vossa autoridade. (L’ENTREE DE HENRI II..., 1858,
p.XVIII, grifos nossos)
Passemos à outra atração da entrada, que complementa e dá
continuidade à “festa brasileira”. No contexto da política imperialista
francesa, representada alegoricamente durante a entrada, a naumaquia
ou combate naval aparece como encenação prévia da França Antártica,
ou seja, o que se vê em Rouen em 1550 prenuncia o que iria realmente
acontecer na Baía de Guanabara cinco anos depois.
3. Naumaquia e França Antártica
O maior rival da França no século XVI era a Espanha e Carlos
Quinto, indiscutivelmente, o mais poderoso monarca europeu. Imperava
sobre a Alemanha, a Áustria, a Sicília e outras regiões da Itália, os Países
Baixos e todo o continente americano, com exceção do Brasil. No
cenário da rivalidade franco-espanhola, Portugal se alinhava ao lado da
Espanha, com quem dividia o “direito” de propriedade sobre as terras
americanas. Já vimos que o francês Guillaume Postel buscava encontrar
uma solução “genealógica” a fim de quebrar o monopólio luso-espanhol
sobre o Atlântico. Portugal, proprietário das terras brasileiras, era um
adversário menos temível. Era verdade que este pequeno país do extremo
ocidental da Europa havia se distinguido por suas façanhas marítimas e
pela possessão de vastas regiões na Ásia, África e América, mas era ainda
assim um reino menos poderoso que a França. Nesse cenário, era natural
que os franceses tivessem escolhido o Brasil como alvo de seu projeto
de implantação da primeira colônia no Novo Mundo, além do fato de
que o tráfico do pau-brasil representava um importante negócio para a
economia francesa.
A naumaquia tinha tudo para criar um embaraço diplomático,
pois um dos convidados de honra da entrada de Rouen era o embaixador
de Portugal. O da Espanha, o flamengo Simon Renard, também estava
230
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
presente9. O “Triunfo do Rio” punha em cena um combate naval, opondo
franceses e portugueses, sobre as águas do rio Sena, transformado
em mar brasileiro10. O desfecho do afrontamento foi naturalmente o
mesmo daquele opondo “Tabagerres” e “Toupinabaulx”. Os marinheiros
franceses conseguem tomar a caravela inimiga e incendeiam-na, para
desespero dos marinheiros portugueses que se atiram às águas, em fuga
desesperada (Ilustração nº 4).
As primeiras tentativas francesas de ocupação e colonização
do Novo Mundo foram apadrinhadas por membros de famílias que
ocupavam altos cargos políticos. As três viagens de Jacques Cartier ao
Canadá, entre 1534 e 1540, foram apoiadas pelo conetável Anne de
Montmorency11. Seu sobrinho, o futuro almirante Gaspard de Coligny,
membro do conselho do rei, foi o patrono político da França Antártica.
Villegagnon lhe prestou homenagem batizando com seu nome o forte
construído na “ilha dos franceses”, posteriormente rebatizada como ilha
de Villegagnon, onde hoje se encontra a Escola Naval da Marinha, na
Baía de Guanabara.
No século XVI, as relações diplomáticas entre França e Portugal
eram tensas, devido ao interesse francês pelo Brasil. Em 1546, o
embaixador veneziano Marino Cavalli disse que havia uma “guerra
surda” entre os dois países12. A hegemonia ibérica sobre o oceano
Atlântico suscitou represálias por parte de alguns membros de famílias
francesas politicamente ou militarmente importantes, como os Gourgues
e os Monluc. Em 1556, Peyrot de Monluc, filho do marechal Blaise
de Monluc, comandou uma expedição que pretendia desafiar o poderio
marítimo português, mas a empresa não obteve êxito, pois Peyrot foi
morto nas ilhas Madeira. Seu pai, cujo pesar foi contado por Montaigne
no ensaio “Da afeição dos pais pelos filhos” (II, 8) (MONTAIGNE,
1999, p. 395), disse nos seus Comentários (1592), citado por Lestringant
(1990, p. 158), que o objetivo do seu filho “não era disputar nada com os
espanhóis”, mas que “era impossível que ela não acabasse por fazê-lo, ou
com o rei de Portugal, pois, a se ver e ouvir essas pessoas, dir-se-ia que
o mar era somente deles”. Em 1568, outra expedição comandada por
Dominique de Gourgues, filho de uma importante família de magistrados
de Bordeaux com a qual os Eyquem de Montaigne mantinham relações
cordiais partiu em direção à Flórida com o intuito de vingar a morte
dos franceses massacrados pelos espanhóis entre setembro e outubro de
1565. Um sobrevivente do massacre, o carpinteiro Nicolas Le Challeux,
contou a tragédia no seu Discours de l’histoire de la Floride (Discurso sobre
a história da Flórida, 1566), que foi publicado, em 1579, pelo protestante
Urbain de Chauveton em apêndice à sua tradução da História do Novo
Mundo, do italiano Girolamo Benzoni.
A querela diplomática em torno das pretensões francesas sobre
o novo continente era intermitente. Alguns meses após a morte de
Francisco I (1547), João III, rei de Portugal, enviou à França o embaixador
Fernão de Noronha com a missão de pedir ao novo rei francês, Henrique
II, a supressão das “cartas de corso, contra-corso e represálias” que seu
“Para acompanhá-los [o rei
e sua comitiva], se alinharam
os embaixadores do Papa,
da Espanha, da Alemanha,
de Veneza, da Inglaterra, de
Portugal e de outros países
estrangeiros, junto aos quais
estavam os arcebispos, bispos e
prelados da França”.
(C’EST LA DEDUCTION...,
1551, fol. J ii (f )).
9
“Os conselheiros municipais
de Rouen tinham mandado
equipar dois navios, um com
o trevo de quatro folhas,
como o desse país [França],
sustentando dois cestos de
gávea redondos, guarnecido
com o pavilhão e com diversos
tipos de armas; o outro
tinha dois mastros, como
nas caravelas portuguesas.
Esses navios representaram
então uma bela naumaquia,
notavelmente bem planejada
e executada. Quando estavam
frente a frente, enfrentaramse furiosamente, durante
algum tempo, pela popa e pela
proa, com lanças, alabardas,
partasanas, alhetas, artilharia,
granadas e baldes de fogo,
avançando sobre as águas, de
tal maneira que se poderia
pensar que se enfrentavam até
a morte, não sem provocar nos
espectadores grande apreensão
acompanhada de incontida
alegria, quando viram a
caravela portuguesa atingida,
partida, as velas e os cutelos
consumidos pelo fogo que
se alastrava pela frente e por
trás, porém sem que nenhum
marinheiro fosse ferido.
O navio com o trevo de quatro
folhas saiu-se vitorioso, embora
levemente avariado, tendo se
desembaraçado da caravela.
Os marinheiros desta se
jogavam desesperadamente
na água com suas armas e
bandeiras, tropeçando uns
sobre os outros, na esperança
de se salvar a nado até a ilha
mais próxima”. (C’EST LA
DEDUCTION..., 1551, fol.
M ii (f )).
10
231
Naumaquia
Combate naval entre franceses e portugueses. Em primeiro plano, à esquerda, um barco francês bombardeia outro
português; os marinheiros portugueses fogem à nado, enquanto sua embarcação é incendiada. No centro da imagem,
Netuno desfila em sua carragem puxada por cavalos do mar, sendo escortado por outras entidades mitológicas, como
sereias, nereidas etc. Homens fantasiados de tritões se jogam da ponte Mathilde nas águas do Sena. O espetáculo
representa as pretensões francesas sobre o território americano, especialmente o Brasil. Cinco anos depois, os franceses
puseram em prática seu plano, com a fundação da França Antártica por Nicolas Durand de Villegagnon, no Rio de
Janeiro. Clichê da Biblioteca Municipal de Rouen.
José Alexandrino de Souza Filho
11
Cf. DECRUE, 1885, p.394,
em que o autor observa, a
esse respeito : “Montmorency
favoreceu os empreendimentos
marítimos dos franceses na
Índia e no Brasil. Era uma
ameaça ao rei de Portugal,
aliado do Imperador [Carlos
Quinto]. No verão de 1540,
ele encorajou Jacques Cartier
a ir às Terras Novas, com um
destacamento de soldados, o
qual foi posto sob as ordens de
Clément Marot”.
12
Niccolo Tommaseo registra
a observação de Cavalli, em
suas Relations des ambassadeurs
vénitiens: “Com Portugal, não é
possível ter bom entendimento,
uma vez que continua a haver
uma guerra surda entre os dois
paises: os franceses pretendem
navegar até a Guiné e o Brasil,
coisa que os portugueses não
aceitam de nenhuma maneira”.
Citado por McGOWAN,
1968, p. 223-224.
Cf. HEULHARD,
1897, p. 90.
13
234
finado pai, Francisco I, houvera assinado contra as embarcações lusas. O
pedido é deferido e os franceses proibidos de “ir às navegações do rei de
Portugal” bem como a “nenhuma terra descoberta pelos portugueses”13.
A naumaquia de Rouen demonstra claramente que havia intenção dos
franceses em ocupar parte do território americano.
4. “Política do bom selvagem”
Conforme já foi assinalado, o projeto francês de colonização
do Novo Mundo pretendia ser melhor do que o dos espanhóis e
portugueses. Seu principal argumento era a própria superioridade da
“civilização” francesa. Tal pretensão era o produto de uma política de
auto-afirmação da identidade nacional impulsionada pelo dinamismo
cultural característico do Renascimento francês. No contexto das disputas
políticas, diplomáticas, intelectuais e militares em torno da colonização
das terras americanas, a entrada de Henrique II em Rouen adquire a
consistência de um programa de ações e os contornos de uma peça de
propaganda política. As alegorias desta entrada mostram que havia um
projeto de expansão geopolítica fundamentado no culto às origens e ao
gênio nacional. A “política do bom selvagem” procurava promover uma
imagem redentora da civilização francesa, a única que não fazia de sua
superioridade cultural um argumento para justificar a exterminação ou
a degradação humana dos povos nativos do continente americano, ao
contrário, esse era justamente o elemento diferenciador em relação aos
modelos ibéricos de colonização. Estas são, ao menos teoricamente, as
bases ideológicas do projeto colonial francês para o Novo Mundo e mais
particularmente para o Brasil.
Dizemos projeto no duplo sentido da palavra: uma “filosofia” de
ação e a antecipação de um programa de atividades. Este programa foi
exibido pública e solenemente durante a entrada de Rouen, não sem
alguma audácia e provocação. O acontecimento se deu cinco anos antes
da execução do programa, com a fundação da França Antártica, na baía
de Guanabara, a cargo de Villegagnon. Havia a intenção de pôr em
prática uma política expansionista “politicamente correta”.
As diferentes etapas e a variedade de atrações dessa entrada
descrevem um processo evolutivo que vai da “barbárie” brasileira até a
“civilização” francesa. Da floresta tropical aos jardins “à francesa”, aos
espectadores da entrada de Rouen em 1550 se apresenta um modelo de
evolução histórica. A civilização “à francesa” pretende se distinguir das
suas congêneres européias pela doçura de seus costumes, a organização
de sua sociedade e o brilho de sua cultura. Enquanto outros se impõem
pela força e pela violência, os franceses querem convencer pela sua
eloqüência, civilidade e sabedoria. A auto-afirmação nacional estava a
serviço de um projeto de expansão colonial onde o Brasil aparece como
alvo privilegiado. A exaltação da civilização “à francesa” não se faz,
porém, em detrimento da “barbárie” brasileira. Ao contrario, esta é vista
«Cenas do bom selvagem»
Representação idealizada da vida dos índios brasileiros, composta de cenas bucólicas mostrando uma existência simples
e feliz. Nenhuma alusão ao canibalismo. A imagem edulcorada atendia aos interesses do Estado francês, cuja política
em matéria de relações internacionais consistia em difundir outro modelo de colonização para o Novo Mundo, diferente
dos métodos «bárbaros» empregados pelos espanhóis e portugueses. Ao contrário desses, os franceses não pretendiam
escravizar nem eliminar os «selvagens», mas aliar-se com eles, a fim de explorar economicamente as novas terras. A
«doçura» do método simbolizava, nesse caso, a superioridade da civilização francesa sobre as outras nações européias.
José Alexandrino de Souza Filho
com um olhar simpático, e não se procura eliminá-la, mas a superála. Trazer os “selvagens” à “civilização”, tal é a ideologia subjacente à
entrada, mas respeitando-se a humanidade dos índios.
A “política do bom selvagem” encenada durante a entrada de
Rouen será posta em prática no Brasil, alguns anos depois. Villegagnon
cuidou de formar alianças com as tribos locais, através de Cunhambebe,
o poderoso chefe indígena. Confiante na sua amizade com os índios,
Villegagnon instala uma parte dos colonos no continente, para que
começassem a cultivar a terra e prover as necessidades da colônia. A
amizade lhe teria facilitado o trabalho de conversão de índios ao
cristianismo. A exigência de Villegagnon, rigorosamente cumprida, de
que a união carnal entre colonos franceses e índias tupinambás fosse
previamente legalizada era uma maneira de lançar as bases para a
formação de uma sociedade civil. Com esse fim, ele trouxe consigo um
escrivão. O tratamento humanitário dado aos índios por Villegagnon
foi percebido pelos portugueses, como testemunha essa passagem de
uma carta escrita por Mem de Sá, o comandante da expedição que,
juntamente com seu sobrinho Estácio de Sá, finalmente expulsou os
franceses do Rio de Janeiro, cinco anos depois de sua instalação.
Ele trata os selvagens de uma maneira muito diferente da nossa. Ele se
mostra extremamente liberal com eles e lhes da razão em tudo; ele manda
enforcar, sem nenhum tipo de julgamento, os franceses que cometeram
falhas, o que o faz ser muito temido pelos seus e muito querido pelos
selvagens. Ele manda ensinar-lhes uma profissão e a utilizarem todo
tipo de arma e os ajuda em todas as suas guerras (HEULHARD, 1897,
p.202)
Consideradas em seu conjunto, as colônias que os franceses
tentaram fundar na América ao longo do século XVI e início do XVII
(a França Equinocial, no Maranhão, entre 1612 e 1614) parecem ter
seguido a mesma política de tolerância em relação aos costumes dos
povos nativos e de assimilação dos índios ao projeto de construir uma
nova sociedade. Depois do primeiro fracasso no Canadá, representado
pela existência efêmera da Nova França, sob o comando de Roberval,
entre 1535-1543, os franceses desenvolveram uma ideologia de caráter
místico-nacionalista destinada a fazer vingar seu projeto político de
expansão territorial, de crescimento econômico e de influência geopolítica.
Nesse contexto, a entrada de Henrique II em Rouen em 1550 vale como
manifesto de propaganda oficial no campo das relações diplomáticas.
A França Antártica representa a execução desse projeto, mas circunstâncias
ligadas às disputas religiosas entre católicos e protestantes minaram
a “política do bom selvagem” que Villegagnon tentava implementar.
Dos três principais concorrentes à colonização do Novo Mundo –
Espanha, Portugal e França -, esta última foi quem mais sofreu por
causa dos conflitos religiosos: nos países ibéricos, a Reforma provocou
menos divisões e rivalidades. Essa pode ser uma explicação plausível
para o fato de que, apesar de ter um projeto de ação bem definido,
236
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
a França Antártica não vingou. Os colonos franceses foram contaminados
pelo “vírus” das controvérsias religiosas que acabaram por dividi-los
e enfraquecê-los. Apesar da “boa consciência” e da “humanidade” do
projeto imperialista francês, o fracasso no Novo Mundo mostrou que
a “civilização à francesa” não tinha ainda condições de se impor sobre
seus rivais colonizadores, pois ela estava às voltas com uma profunda
revisão de seus valores espirituais, o que a enfraquecia interiormente,
ao passo que a relativa estabilidade da consciência religiosa entre os
ibéricos os tornava mais capacitados para obterem êxito na colonização
da América, além do fato de eles serem os “legítimos” proprietários do
novo continente. Os franceses fracassaram não por falta de estratégia
e de firmeza na aplicação de uma política previamente estabelecida,
mas por sua própria culpa, na medida em que se deixaram suplantar
por questão de natureza religiosa. Os espanhóis e portugueses, apesar
de sua “barbárie” e de sua pretensa inferioridade cultural em relação
aos franceses, tiveram mais sucesso em suas empresas coloniais porque
eram duas civilizações mais estáveis, do ponto de vista religioso, e mais
habilitadas a se instalar no Novo Mundo. O fracasso na implantação das
colônias francesas no Novo Mundo pode ser atribuído, ironicamente, aos
aspectos humanitários do projeto imperialista francês. Não tendo sido
os descobridores e não tendo, portanto, direitos, no contexto político
internacional da época, sobre as imensas terras americanas, os ideólogos
da monarquia francesa estavam à vontade para fabricar uma ideologia
“humanitária” que justificasse a reivindicação francesa em também
colonizar parte do novo continente.
Pode-se notar que, em geral, os franceses têm uma relação de
empatia com os chamados selvagens. André Thevet, por exemplo, apesar
das críticas à “barbárie” e à falta de civilização dos índios brasileiros,
não deixa, porém, de incluir um retrato de Cunhambebe na sua galeria
dos Homens Ilustres (1584) e de se referir aos índios como “nossos
amigos” e “nossos aliados”. Marc Lescarbot fez a defesa da “política do
bom selvagem”, em sua História da Nova França (Histoire de la Nouvelle
France, 1609). Antigo companheiro de Champlain na expedição que
relançou, no Canadá, a primeira tentativa de colonização francesa
no Novo Mundo, o historiador protestante falou sobre as causas dos
repetidos fracassos franceses na América. Ele expõe assim seu modelo
de colonização “à francesa”, citado por Bideaux (1998):
Eu não gostaria de exterminar os povos daqui, como fizeram os
espanhóis com os das Índias Ocidentais, tomando como pretexto
as ordens outrora dadas pelo povo de Deus a Josué, Gideão e Saul
e outros combatentes. Nós vivemos sob a lei da graça, lei da doçura,
da piedade e da misericórdia. Nela, nosso Salvador disse: “Aprendam
comigo a serem doces e humildes de coração”. E também: “Vinde a
mim, vós que estais cansados e atarefados, e eu os aliviarei”. Além do
mais, esses pobres povos indígenas não tinham como se defender diante
daqueles que os arruinaram, e não resistiram, como os povos aos quais
as Santas Escrituras fazem menção. Aliás, se para conquistar os povos
237
José Alexandrino de Souza Filho
fosse preciso aniquilá-los, teria sido em vão que o mesmo Salvador teria
dito aos apóstolos: “Ide mundo afora e pregueis o Evangelho a todas as
criaturas.14
O estudo da “festa brasileira”, como uma das atrações da entrada
de Henrique II em Rouen em 1550, pretendeu demonstrar que devemos
recuar um pouco mais no tempo para ver como se deu a formação do
“mito do bom selvagem” na França. O “bom selvagem” de Rouen difere
dos seus congêneres literários pelo fato de ser não uma criação individual
de um escritor, mas uma encenação coletiva criada pelos ideólogos da
política imperialista da monarquia francesa.
Entre os humanistas, como Jodelle, Ronsard, Montaigne e,
em certa medida, Jean de Léry, a exaltação do personagem do índio
brasileiro vivendo num paraíso tropical em liberdade, igualdade e
fraternidade, serve de argumento para denunciar a “barbárie” dentro da
civilização (a violência das guerras de religião, a injustiça social etc). Na
“política do bom selvagem” elaborada durante o reinado de Henrique
II, ao contrário, a integração dos “selvagens” à civilização “à francesa”
é o argumento utilizado para justificar a colonização do Brasil. Ambos
os “bons selvagens” têm em comum a idealização do índio real, mas
suas motivações não são as mesmas. O “bom selvagem” dos humanistas
é um crítico feroz das mazelas da civilização, enquanto que o da
política colonial é o diferencial do modelo de civilização difundido pela
monarquia francesa.
Bibliografia
Fontes primárias
EPITHOME en Rhitme Françoyse sur l’entrée, du tres puissant, & tres victorieux
Roy de France, Henry Second de ce nom, en sa ville & cité de Rouen, le premier jour
d’Octobre, mil cinq cens cinquante, & presentée audict Seigneur.Avec privilege. A
Rouen, pour Robert le Hoy, librairie demourãnt en la rue sainct Nicolas, 1552.
Cota Bibliothèque Nationale de France: Ye 423 Rés.
14
Ver também
LESTRINGANT,
1990, p. 226-270.
238
C’EST LA DEDUCTION du sumptueux ordre plaisantz spectacles et magnifiques
theatres dresses, et exhibes par les citoiens de Rouen ville Metropolitaine du pays
de Normandie, A la sacree Majesté du Treschistien Roy de France, Henry secõd
leur souverain Seigneur, Et à Tresillustre dame, ma Dame Katharine de Medicis,
La Royne son espouze, lors de leur triumphant joyeulx & nouvel advenement en
icelle ville, Qui fut es jours de Mercredy & ieudy premier & secõd jours d’Octobre,
Mil cinq cens cinquante, Et pour plus expresse intelligence de ce tant excellent
triumphe, Les figures & pourtraictz des principaulx aornementz d’iceluy y sont
apposez chascun en son lieu comme l’on pourra veoir par le discours de l’histoire.
Avec privilege du Roy. On les vend a rouen chez Robert le Hoy Robert & Jehan
dictz du Gord tenantz leur boutique, Au portail des Libraires, 1551. Cota
Bibliothèque Municipale de Rouen: N 112-6.
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
L’ENTREE DU ROY nostre Sire, faicte en sa ville de Rouen le mercredy premier
de ce moys d’Octobre, pareillement celle de la Royne, qui fut le jour ensuyvant.
Avecques privilege. A Paris, Par Robert Massellin, Imprimeur demourant
aux trois trenchoirs rouge devant saincte Geneviefve du mont. 1550. Cota
Bibliothèque Nationale de France: Lb 31.24.
L’ENTREE DE HENRI II, roi de France, à Rouen au mois d’octobre 1550. Imprimé
pour la première fois d’après le manuscrit de la Bibliothèque de Rouen, orné
de dix planches gravées à l’eau forte par Louis de Merval, accompagné de note
bibliographique et historique par S. de Merval. Rouen, Imprimerie de Henri
Boissel, M.DCCC.LXVIII. Cote Bibliothèque Municipale de Rouen: N
274 (18).
L’ENTREE DU TRES MAGNANIME, tres puissant et victorieux roy de France
Henry Deuxiesme de ce nom en sa noble cité de Rouen ville métropolitaine de
Normandie qui fut au jour de mercredy premier d’octobre mil cinq cens cinquante
en rithme françoyse. Manuscrito Y 28 da Bibliothèque Municipale de
Rouen.
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Techener Libraire, 1850.
DESCHAMPS, Philippe. Les Entrées Royales à Rouen. Connaître Rouen –
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