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PANÓPTICA
DOSSIÊ DIREITOS E MOVIMENTOS SOCIAIS
Ricardo Prestes Pazello
André Filipe Pereira Reid dos Santos
(eds.)
Editorial: Direitos e Movimentos Sociais
Ricardo Prestes Pazello, André Filipe Pereira Reid Santos
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O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas em processo de
construção pela “potência plebeia”
Diego Augusto Diehl
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Poder, violencia y derecho: movimientos sociales e historia social del derecho en México
Daniel Sandoval Cervantes
332
El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria articulación de luchas sociales
Manuel E. Gándara Carballido
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Uma porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”
Marcus Orione, Jorge Luiz Souto Maior, Flávio Roberto Batista, Pablo Biondi
371
Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo
Shirley Silveira Andrade
404
Violência obstétrica e acesso das mulheres à justiça: análise das decisões proferidas pelos
Tribunais de Justiça da região sudeste
Beatriz Carvalho Nogueira, Fabiana Cristina Severi
430
Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao discurso público sobre
o crime
Marília de Nardin Budó
471
Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância durante a
ditadura militar no Brasil
Pádua Fernandes
O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira
Alexandre Bernardino Costa
Educação jurídica estranhada: movimentos sociais, universidade popular e mobilidade jurídica
Ricardo Prestes Pazello, Naiara Andreoli Bittencourt, Igor Augusto Lopes Kobora,
Felipe Balotin Pinto, Ana Cláudia Milani e Silva
Políticas públicas e movimentos sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros
Claudio Oliveira Carvalho, Ariana Ferreira Alencar Moraes
Panóptica, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2016
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PANÓPTICA
Editorial: Direitos e Movimentos Sociais
A revista Panóptica: direito, sociedade e cultura, em parceria com o Instituto de
Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), apresenta à comunidade de
pesquisadoras e pesquisadores, bem como de militantes populares, o dossiê “Direitos e
Movimentos Sociais”, organizado pelos professores Ricardo Prestes Pazello e André
Filipe Pereira Reid dos Santos especialmente para o presente volume.
O campo de investigações em torno da relação entre “direito e movimentos sociais”
vem se consolidando cada vez no Brasil, especialmente nos últimos anos, inclusive por
conta da fundação do IPDMS em 2012 – mas que encontra antecedentes de seus
horizontes já nas décadas de 1970 e 1980, quando a assessoria jurídica popular se
organizava e as teorias críticas do direito se abriam para este debate – que criou um canal
permanente, nacional, plural e de vínculos com a práxis para a sua construção.
Em tempos de revitalização do neoconservadorismo, de ascenso de propostas
político-pedagógicas retrógradas e de achaque à democracia, é fundamental que a
comunidade universitária se debruce sobre temática tão importante e, ao fazê-lo,
extravase seus próprios limites institucional-epistemológicos. Dar vez ao debate sobre
“direito e movimentos sociais” permite elaborar um antídoto para este cenário pouco
promissor da cultura nacional. Neste sentido, a revista Panóptica cumpre papel
insofismavelmente relevante para a difusão científica, lastreada na realidade social, ao
projetar, organizar e divulgar o presente dossiê e, com isso, angaria notável espaço entre
os periódicos científicos, por oportunizar, para além de sua excelência acadêmica já
conquistada, uma mirada crítica a respeito do fenômeno jurídico, a partir de setores da
sociedade não comumente ouvidos.
O dossiê para o qual a presente edição da revista está dedicada contempla vasta
gama de preocupações que envolvem o direito e os movimentos sociais, contando com
mais de uma dezena de estudos de pesquisadoras e pesquisadores de quatro regiões do
Brasil, bem como de outros países.
A problemática social e epistêmica latino-americana dá, desde o início, o tom dos
artigos aqui reunidos. Isto se explicita no texto do professor da Universidade Federal de
Goiás, em Jataí, Diego Augusto Diehl, ao discutir as estruturas jurídico-políticas que
PAZELLO, Ricardo Prestes; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos (eds.). Dossiê: Direitos e Movimentos
Sociais. Panóptica, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2016, 301p.
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grassam em nosso continente. A seu lado, o texto do professor da Universidad Autónoma
de Ciudad Juárez, no México, Daniel Sandoval Cervantes, reflete sobre a relação entre
direito e movimentos sociais, na tradição mexicana.
O dossiê, igualmente, desdobra-se em discussões sobre os vínculos entre
pensamento crítico e lutas sociais, como se pode ler no artigo do venezuelano Manuel
Eugenio Gándara Carballido, professor da Universidad Pablo de Olavide de Sevilla. Da
mesma forma, o artigo dos pesquisadores da Universidade de São Paulo, Marcus Orione,
Jorge Luiz Souto Maior, Flávio Roberto Batista e Pablo Biondi, responsáveis pela
tradução brasileira da obra de Bernard Edelman, A legalização da classe operária.
A problematização deste vínculo entre crítica e luta, visto sob a ótica dos direitos
humanos ou ainda do marxismo, permite novas aberturas para o debate, podendo ser visto
na reflexão crítica sobre o trabalho escravo no Brasil, da professora da Universidade
Federal de Sergipe Shirley Silveira Andrade, assim como na pesquisa envolvendo direito
e gênero, de Fabiana Cristina Severi, professora da Universidade de São Paulo, em
Ribeirão Preto, em coautoria com a pesquisadora Beatriz Carvalho Nogueira.
A questão da violência, ali enfocada no âmbito do trabalho ou do gênero, também
repercute no texto de criminologia crítica da mídia, de Marília de Nardin Budó, professora
da Faculdade Meridional, no Rio Grande do Sul, bem como no resgate histórico feito por
Pádua Fernandes, membro do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e
Justiça de Transição (IDEJUST), da relação entre direito e movimentos sociais ao tempo
da ditadura militar brasileira.
O tema da ditadura também é retomado por Alexandre Bernardino Costa, professor
da Universidade de Brasília, a fim de se demonstrar o quanto a educação jurídica é
tributária deste período. Por sua vez, a educação jurídica, sob chave de leitura dos
movimentos populares, é estranhada pelo professor da Universidade Federal do Paraná
Ricardo Prestes Pazello, conjuntamente com as pesquisadoras Naiara Andreoli
Bittencourt, Ana Cláudia Milani e Silva, e os pesquisadores Igor Augusto Lopes Kobora
e Felipe Balotin Pinto.
Por fim, o volume se encerra com texto a respeito de temática candente, qual seja,
a da relação entre movimentos sociais e a existência de políticas públicas na esfera da
cidade, escrito pelo professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Claudio
PAZELLO, Ricardo Prestes; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos (eds.). Dossiê: Direitos e Movimentos
Sociais. Panóptica, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2016, 301p.
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Oliveira de Carvalho, em conjunto com a pesquisadora Ariana Ferreira de Alencar
Moraes.
A edição que a comunidade universitária tem a sua disposição, portanto, pretende
colaborar com os debates do campo de estudos sobre “direito e movimentos sociais” e é
uma convocação para que iniciativas da mesma índole se espraiem pelo país, permitindo
com que a discussão, que vem se consolidando, aprofunde-se cada vez mais. Boa leitura
a todas e todos!
Inverno de 2016.
Ricardo Prestes Pazello (UFPR)
André Filipe Pereira Reid dos Santos (FDV)
PAZELLO, Ricardo Prestes; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos (eds.). Dossiê: Direitos e Movimentos
Sociais. Panóptica, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2016, 301p.
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“O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídicopolíticas em processo de construção pela “potência plebeia”
Diego Augusto Diehl1
Recebido em 15.4.2016
Aprovado em 21.6.2016
Resumo: Há mais de 30 anos, Darcy Ribeiro Abstract: For over 30 years, Darcy Ribeiro
apresentava um esboço de teoria geral da
estrutura de classes nas sociedades latinoamericanas, incorporando a perspectiva
antropológica e reelaborando categorias
inicialmente formuladas no bojo do
eurocentrismo. Em geral, sua proposta foi
condenada ao ostracismo, mas a “vingança da
história” se materializou na forma da
“potência plebéia”, que de um modo geral
confirmou sua análise política quanto às
classes sociais potencialmente insurgentes no
continente. Trata-se, então, de revisitar a
proposta teórica de Ribeiro a partir da
formação da “potência plebeia” analisada por
Álvaro García Linera, e dimensionar o papel
desta no processo de transformação das
estruturas jurídico-políticas em países latinoamericanos que lograram construir uma tal
correção de forças sociais e políticas.
Palavras-chave: América Latina, Darcy
Ribeiro, potência plebeia, Álvaro García
Linera, movimentos sociais.
presented a general theory that tried to
illustrate the class structure in Latin American
societies, incorporating anthropological
perspective and re-elaborating categories
initially formulated in the wake of
Eurocentrism. In general, his proposal was
ostracized, but the "revenge of History"
materialized it in the form of “plebeian
power”, which in general has confirmed its
political analysis about the potentially
insurgent social classes on the continent. We
propose then to revisit the theoretical analysis
of Ribeiro starting from the formation of the
"plebeian power" analyzed by Álvaro García
Linera, and scale the role this power in the
process of transformation in the legal and
political structures in Latin American
countries that have managed to build such a
situation in the social and political forces.
Keywords: Latin America, Darcy Ribeiro,
plebeian power, Álvaro García Linera, social
movements.
1. Introdução
Darcy RIBEIRO é uma figura política e intelectual até hoje bastante controversa no
cenário latino-americano da 2ª metade do século XX. Sua história de atuação política é
criticada tanto por setores da esquerda como por setores conservadores, da mesma forma
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador
do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
1
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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como sua produção teórica é por vezes tida como excessivamente ligada à sua práxis
política, tida por seus críticos como contraditória.
De fato há certo grau de razão em algumas das críticas direcionadas ao antropólogo
brasileiro em todos os campos apontados. No entanto, ainda que se reconheçam equívocos
políticos e teóricos em sua trajetória – que os há em todos os grandes pensadores, seres
humanos dotados de virtudes e de limitações que são –, ainda assim não há como negar a
sua importância para o pensamento social e político latino-americano.
Apesar disso, na prática pouco se estuda atualmente sobre a teoria histórica e
antropológica formulada por RIBEIRO para delinear o processo sócio-político pelo qual
passaram os povos latino-americanos. Tampouco lhe creditam os méritos por um
delineamento pioneiro sobre a estrutura das classes sociais vigente na América Latina,
que logrou romper de forma definitiva com os esquematismos das ciências sociais
eurocêntricas (incluído aí o marxismo standard).
É verdade que diversos elementos de sua teoria foram tomados como contribuições
de outros autores, além de movimentos e grupos políticos que até então não haviam
sistematizado suas análises da conjuntura política e social em termos acadêmicos (o que
já é em si um mérito do autor). Contudo, é inafastável o reconhecimento de suas
contribuições originais, desde a perspectiva antropológica (mesmo que muitos
antropólogos não o reconheçam como colega de profissão) e dentro da linha crítica da
teoria da dependência, até a análise das tendências históricas que permeiam as lutas
sociais e políticas que ocorrem no continente.
Tais contribuições são claramente o produto de um esforço intelectual que,
conforme o autor sempre alertou, provêm de sua própria ação política. Longe de ser um
defeito (como quer fazer crer a burocracia acadêmica encastelada nas universidades de
hoje), esta é na verdade uma virtude de sua obra, pois, além de se constituir como um
aspecto de sua práxis, também permite aos estudiosos delinear de forma clara os próprios
limites teóricos de sua contribuição.
Exemplo claro disso se verifica em conceitos como o “nacionalismo
modernizador”, configurado no início da década de 1970 como um dos projetos políticos
supostamente alternativos ao capitalismo dependente no qual se encontravam
mergulhados os países latino-americanos. Trata-se evidentemente de um conceito
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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formulado em virtude da própria contraditoriedade com a qual RIBEIRO se relacionava
teórica e politicamente com os projetos nacional-desenvolvimentistas2, cujas limitações
apenas se tornaram evidentes de forma cabal alguns anos depois.
No entanto muitos outros conceitos e análises sociais foram muito mais bem
sucedidos e permanecem em plena atualidade em nossos tempos de crise(s). O que o
presente artigo buscará fazer é, a partir dessa apreensão crítica do monumento teórico
erguido por Darcy RIBEIRO, analisar especificamente a estrutura de classes e as
principais forças insurgentes na América Latina apontadas em suas principais obras, de
forma a comparar com a conjuntura social e política atual, a partir dos processos
instaurados no âmbito dos “governos bolivarianos” instituídos pela “potência plebéia” em
países como a Bolívia, tal como a descreve o marxista e atual vice-presidente boliviano
Álvaro GARCÍA LINERA.
A partir dessa análise, buscaremos fazer uma reflexão ainda inicial sobre as
principais tendências que se inscrevem dentro do processo atual de lenta descolonização
do “campo jurídico” nos Estados latino-americanos. Para tanto, tomaremos como base
teórica a filosofia política de Enrique DUSSEL, que analisa o processo atual de
construção de um poder obediencial e “desde abajo”, conforme disposto pela ação
política da potência plebéia.
2. Revisitando “O dilema da América Latina”
Quando escreveu “O dilema da América Latina – estruturas de poder e forças
insurgentes”, RIBEIRO (1978) já havia realizado um longo caminho de reflexão teórica
e revisão histórico-antropológica que teve de abranger a história da civilização humana
dos últimos 10 mil anos. Para isso, foi necessário rever categorias e mesmo criar novos
conceitos, tendo em vista que, ao longo dos estudos realizados, foi possível perceber um
alto grau de eurocentrismo que colonizava as ciências sociais, e por conseqüência também
a antropologia.
2 É conhecida a admiração que o autor nutria pelo regime egípcio do general Nasser, assim como a
colaboração prestada ao governo de Velazco Alvarado no Peru. Ademais, é impossível não citar nesse
sentido a ligação política histórica com Leonel Brizola e o PDT (Partido Democrático Trabalhista), no qual
RIBEIRO militou desde o regresso ao Brasil até a sua morte.
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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Decorre desse processo de criação teórica conceitos como “aceleração evolutiva”,
“atualização histórica”, “modernização reflexa”, “industrialização recolonizadora”,
“proletariados externos” etc. Essa ampla revisão conceitual e histórica constitui-se como
o primeiro passo da reflexão teórica de RIBEIRO, disposta em “O Processo Civilizatório”
, a partir do qual conclui que “(...) os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos do mundo
moderno não se explicam como representações de etapas distintas e defasadas da
evolução humana. Explicam-se, isto sim, como componentes interativos e mutuamente
complementares de amplos sistemas de dominação tendentes a perpetuar suas posições
relativas e suas relações simbióticas como pólos de atraso e de progresso de uma mesma
civilização”. (RIBEIRO, 2000, p. 19)
Assim, a partir de uma perspectiva antropológica que confere grande importância
ao aspecto tecnológico e cultural – e é apenas nesse sentido que pode ser tida como uma
antropologia “evolucionista” –, RIBEIRO verifica que a formação do capitalismo
mercantil a partir de 1492 teve como conseqüência necessária a formação de um pólo
dependente e dominado política e economicamente, configurado como colônias mercantis
e escravistas (América espanhola e Brasil), ou como colônias de povoamento (Treze
Colônias inglesas).
Como se sabe, longe de ser pacífico ou “cordial”, esse processo foi marcado por
uma extrema violência por parte dos conquistadores europeus, que, com a dominação e
colonização da América (e toda a economia colonial instaurada, que incorporava de forma
crescente a África), lograram obter vantagens econômicas que lhes possibilitaram superar
os árabes e os chineses, figurando como novo centro geopolítico de um recém constituído
mercado mundial.
“Por meio dessas duas faces complementares - a metropolitana e a colonial - o
sistema passa a atuar gerando, numa delas, o capital e os capitalistas contrapostos a
massas crescentes de assalariados, e, na outra, camadas gerenciais subalternas e massas
escravizadas e avassaladas. Estas últimas não representavam para o sistema mais do que
um espécie de combustível humano explorado localmente ou importado da África para
produzir artigos de exportação, metais preciosos e minérios”. (RIBEIRO, 2000, p. 123)
Com a Revolução Industrial, esse processo de interação sócio-econômica evoluiu
para a formação de Impérios industriais dominantes de um lado, e por nações periféricas
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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politicamente independentes mas economicamente subordinadas dentro da estrutura do
mercado mundial capitalista. Longe de serem economias “atrasadas” que deveriam
evoluir ao mesmo estágio dos países centrais, as nações subalternas configuravam-se
como “proletariados externos” e nada mais eram que extensões necessárias da atuação
das potências imperialistas, que dependiam do fornecimento de matérias-primas baratas
para os seus processos produtivos (RIBEIRO, 2000, p. 136).
Resta daí a compreensão do subdesenvolvimento que assola os países periféricos,
resultado de processos de atualização histórica “(...) só explicáveis pela dominação
externa e pelo papel constritor das classes dominantes internas, que deformam o próprio
processo de renovação, transformando-o de uma crise evolutiva num trauma paralisador”
(RIBEIRO, 1983, p. 45).
Trata-se portanto de um processo mundial no qual os povos latino-americanos são
inseridos de forma mais ou menos violenta sob a condição de dependência, subordinação
e exploração, a partir de mecanismos que são:
 econômicos: a tomada dos meios de produção e reprodução da vida e da cultura
(especialmente a terra e o território) etc.;
 políticos: a instituição de “Vice-reinados” coloniais escravistas, ou de
Repúblicas oligárquicas neocoloniais; instituição dos partidos criollos (liberais vs
conservadores) etc.;
 jurídicos: a imposição das formas jurídicas do mercantilismo, do Direito
canônico aplicado pela Igreja Católica, a distribuição de terras por meio de títulos
jurídicos restritos etc.;
 sociais: imposição do estamento social típico da sociedade capitalista-colonial
mercantil, ou da fase dependente (semi-)industrial;
 culturais: catequização dos índios, imposição dos padrões culturais europeus,
difusão dos aparelhos ideológicos da indústria cultural etc.
Há portanto uma larga “colonização do mundo da vida” na qual os povos periféricos
têm sua “vida cotidiana” preenchida pela dominação, e portanto esvaziada de seu “ser
social” autêntico. Contudo, é evidente que não se trata de todo um povo explorado ou
alienado nesse processo, dado que sempre há, em todas as formações sociais periféricas
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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e dependentes, a produção de elites gerenciais que se beneficiam de uma tal estrutura
social.
“Um movimento histórico novo se alça, então, polarizando, de um lado, os povos
prósperos e poderosos e, do outro, os povos subdesenvolvidos. Nestes últimos, polarizamse também as camadas sociais segundo se identifiquem com o sistema vigente, porque
sabem fazê-lo lucrativo para si próprios, ou a ele se oponham, porque se apercebem do
caráter estrutural e desnecessário da penúria que suportam. Explodem, assim, no âmbito
das sociedades subdesenvolvidas, lutas de emancipação do jugo colonial e conflitos
internos pela revolução estrutural”. (RIBEIRO, 2000, p. 141)
Todas as nações latino-americanas se constituem, de forma mais ou menos variada,
sob uma tal perspectiva. Ao analisar as características étnicas das populações latinoamericanas, RIBEIRO (1983) propõe a classificação de 4 grandes categorias étnicas
distintas:
 Povos testemunho: aqueles que pré-existiam à chegada dos colonizadores, e ora
foram massacrados, ora foram integrados de forma subalterna à economia colonial;
 Povos emergentes: aqueles que configuram unidades étnicas próprias que
conseguiram resistir aos ataques externos e conseguiram evoluir enquanto cultura por
meio de uma aceleração evolutiva;
 Povos novos: produto da miscigenação étnica e cultural, sob condições violentas
e de evidente dominação, podendo gerar ora culturas espúrias, ora culturas ricas e
originais;
 Povos transplantados: grupos étnicos provenientes de outras regiões, que trazem
consigo, conservam e difundem seu patrimônio cultural.
O aspecto étnico está então entrecruzado com o aspecto sociológico das classes
sociais que estão dispostas nas sociedades periféricas. Nesse sentido, haveria, então, à
época em que escreveu o autor (ou seja, no início da década de 1970), basicamente 4
grandes “estratos sociais” nas sociedades latino-americanas: “O primeiro deles,
correspondente às classes dominantes, está dividido em três corpos mutuamente
complementares: o patronato de proprietários dos meios de produção, o estamento
gerencial de gestores de empresas estrangeiras e o patriciado de eminências políticas,
civis, militares, que regulam a ordenação social e a regem diretamente. O segundo estrato
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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corresponde aos setores intermédios nos quais se distingue um corpo de autônomos
(pequenos empresários e profissionais liberais) e outro de dependentes (funcionários e
empregados). No terceiro estrato situamos as classes subalternas - no sentido de
submetidas mas integradas na estrutura sócio-econômica e política - nas quais se
destacam dois corpos: o campesinato (assalariados rurais, granjeiros e parceiros) e o
operariado (industrial e de serviços). O quarto estrato corresponde às classes oprimidas porque subjugadas mas não integradas regularmente no sistema produtivo e na vida
institucional - é representado pelas massas marginalizadas do campo e da cidade”.
(RIBEIRO, 1978, p. 14)
Essa disposição se tornou célebre, especialmente por configurar a estrutura social
nos países latino-americanos de forma sensivelmente distinta em relação aos países
europeus e às teorias que lhes eram correspondentes (cuja transmutação mecânica,
eurocêntrica e economicista só permitia ver “burgueses”, “pequeno-burgueses”,
“proletários”, “lumpem-proletários” etc). As diversas matrizes da teoria da dependência,
da teologia da libertação e da filosofia da libertação utilizaram este novo modelo (visto
por muitos como eclético, ou como “abertamente oportunista”), ou então versões bastante
similares3.
A correta disposição teórica sobre a composição real das classes dentro da estrutura
social vigente na América Latina não é uma mera questão acadêmica ou intelectual, mas
sim um problema político concreto, que emana da práxis e que volta a ela como uma
questão estratégica e tática fundamental para os grupos que lutam pela libertação dos
povos latino-americanos. Com RIBEIRO não foi diferente: ele próprio dizia que seu
esforço teórico se dava no sentido de tentar compreender “por que fomos derrotados?”,
ou seja, por que fora derrotado por um golpe empresarial-militar (apoiado pelo
imperialismo estadunidense) o projeto de um capitalismo reformista capitaneado por João
Goulart e que tinha Darcy como Ministro-Chefe da Casa Civil?
3 Compare-se, por exemplo, com a seguinte citação de DUSSEL (s.d., p. 77): "Nas nações periféricas há
então classes dominantes (grupos gerenciais das multinacionais, oligarquias de latifundiários, burguesia
empresarial nacional, patriciado militar ou tecnocrático), setores intermediários (profissionais, pequenos
empresários, funcionários públicos), e classes oprimidas, o povo propriamente dito (o homem do campo,
o proletariado); e grupos marginalizados (bóias-frias, colhedores, empregadas domésticas, mendigos...)".
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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A correta determinação da disposição das classes na América Latina era (e é hoje
cada vez mais) uma condição fundamental para a identificação dos grupos que ao menos
potencialmente possuam condições subjetivas e objetivas para a deflagração de processos
revolucionários de libertação da dependência, e de edificação de sociedades livres e sem
exploração econômica ou opressão de qualquer natureza. As chamadas forças insurgentes
são estabelecidas com base nisso, o que leva RIBEIRO a conclusões que vão em muitos
casos para sentidos bastante distintos daqueles apontados pela maioria dos agrupamentos
políticos da esquerda latino-americana da época – tanto os que aderiram à luta armada,
quanto os que optaram pela via da legalidade.
“Provavelmente, só no corpo de movimentos revolucionários desencadeados por
múltiplas forças e tornados compulsórios como um estado de conflagração social
generalizada podem os setores operários ser chamados à luta insurrecional. Por tudo isto,
se deve admitir que o operariado, incorporado ao sistema embora espoliado, não venha a
representar, por si só, na América Latina, o papel motor da revolução social que tantas
vezes lhe foi vaticinado”. (RIBEIRO, 1978, p. 220-221)
A possibilidade política da constituição de frentes poli-classistas é portanto
afirmada pelo autor, ainda que de forma bastante distinta das propostas de “colaboração
de classes” do nacional-desenvolvimentismo e das “frentes únicas” propostas pelos
partidos comunistas como “condição necessária” à realização da “revolução democráticoburguesa” (suposta “etapa capitalista”, preparatória de uma “etapa socialista” futura) nos
países latino-americanos. As múltiplas forças identificadas nesse processo contrastam
também com as teorias provenientes do marxismo dogmático, que via no operariado fabril
a “verdadeira vanguarda” da revolução socialista no continente (ou então, em versões
ainda mais “ortodoxas”, como a “única classe autenticamente revolucionária” no
continente).
Isso não significa que estejamos diante de uma teorização voluntarista ou
oportunista, que conceda a toda e qualquer classe a possibilidade de ser ativada como o
polo dinâmico da revolução nos países latino-americanos. A condição concreta a qual
cada classe está submetida é plenamente considerada, ainda que não seja tomada enquanto
um elemento determinista que responda, a priori, à questão fundamental sobre onde se
localizaria cada uma das classes dentro da estratificação social latinoamericana: “O fator
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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dinâmico fundamental da revolução latino-americana bem pode estar, por isto, na
ativação política das camadas marginalizadas ao sistema, no campo e na cidade, embora
elas sejam mais dificilmente aliciáveis para a luta revolucionária. Coexistindo como um
subproletariado, ao lado do proletariado que conseguiu integrar-se na força de trabalho
regular, essa mole de deserdados perturba todo o quadro político, provocando as reações
mais desencontradas”. (RIBEIRO, 1978, p. 221)
Conforme opinaremos adiante, esta afirmação corresponde de forma assombrosa ao
papel atualmente desempenhado pelas classes sociais (sobretudo por este chamado
“subproletariado”) nos países que passam por processos mais profundos de transformação
sócio-política. É surpreendente verificar que, há quase 40 anos atrás, contra todo o
dogmatismo “marxista” e as demais ideologias burguesas reinantes, RIBEIRO evoca
como vocação histórica dos movimentos revolucionários latino-americanos o resgate do
bolivarianismo (como em RIBEIRO, 1978, p. 247) e a constituição de Estados multiétnicos (especialmente naqueles de forte composição indígena, como em RIBEIRO,
1983, p. 98), cujo caráter já seria em si socialista, e não “democrático-burguês” como o
“etapismo” propunha.
Nosso objetivo nos próximos itens será ilustrar um pouco o modo essa composição
de classes (com centralidade para o subproletariado) apontada por RIBEIRO se
concretizou no contexto da formação do que Álvaro García LINERA denominara como
a “potência plebéia”, essa frente política policlassista que é a vanguarda do processo de
transformação social e política que o ocorre hoje em países (bolivarianos”) como a própria
Bolívia. Essa é a base social que mobiliza os lentos processos de transformação dos
“campos jurídicos” nestes países, como veremos de forma apenas indicativa na parte final
deste artigo.
3. A potência plebéia: breve análise das forças insurgentes na América Latina ao
início do séc. XXI
Álvaro GARCÍA LINERA é atualmente um dos mais importantes intelectuais
críticos da América Latina. Sua perspectiva da interação entre produção teórica e luta
política é bastante similar à de Darcy RIBEIRO, ainda que as diferenças entre ambos nos
dois campos sejam bastante claras.
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
em processo de construção pela “potência plebeia”. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 309-331, jul./dez. 2016.
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Atualmente vice-presidente da Bolívia, LINERA é um intelectual marxista que
integra desde o início dos anos 90 o grupo “La Comuna”, que produziu ao longo de todo
este período diversos debates e estudos de profundidade sobre o processo político
boliviano e latino-americano, além de realizar uma revisão crítica de fragmentos até então
desprezados da obra marxiana (como os textos etnoólgicos de MARX, 1968).
Assim como ocorre com o antropólogo brasileiro, GARCÍA LINERA procura em
primeiro lugar compreender de maneira profunda os conceitos fundamentais para a
análise da realidade concreta, desmistificando perspectivas eurocêntricas até então
dominantes. Também nele a preocupação em compreender a estrutura social boliviana é
alçada a tarefa fundamental, que não poderia ser realizada sem uma noção correta do
conceito de classe social.
A potência plebéia será buscada nas classes sociais que correspondem largamente
à estratificação proposta por Darcy RIBEIRO. Desse modo, GARCÍA LINERA se volta
contra as concepções dogmáticas e “juridicistas” dos estratos sociais no campo do
marxismo, que em grande parte podem ser atribuídas ao estruturalismo althusseriano.
“(...) las definiciones juridicistas de las classes, tan propias de los manuales y los
panfletos, son una auténtica barrera epistemológica para entender las estratificaciones
sociales no-capitalistas”. (GARCÍA LINERA, 2009, p. 122).
A partir de um resgate do próprio MARX, especialmente de obras deixadas em
segundo plano no período estalinista, o autor verifica que o conceito de classe remete à
"(…) actividad productiva, política y cultural que adquiere ciertas intenciones, que toma
ciertas posiciones respecto a las condiciones de realidad material de esas prácticas
económicas, políticas y culturales" (GARCÍA LINERA, 2009, p. 125).
Seguindo a tradição clássica do marxismo, o autor afirma que a possibilidade social
da revolução, de seu devir histórico, é o próprio processo de construção da classe
proletária (GARCÍA LINERA, 2009, p. 133). Contudo, o proletariado não é nem o único
e nem quiçá o mais dinâmico polo da revolução nos países latino-americanos. O
“subproletariado” de RIBEIRO tem um enorme espaço e papel decisivo na “potência
plebéia”, que no caso boliviano corresponde ao “subproletariado” étnico indígena que
vive nas periferias de La Paz, El Alto, Cochabamba e demais cidades que ademais
possuem fortes organizações indígenas e campesinas, selando então uma aliança política
DIEHL, Diego Augusto. “O dilema da América Latina” revisitado: as novas estruturas jurídico-políticas
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que terá uma participação apenas secundária de parte minoritária do proletariado clássico
do país (que será uma verdadeira classe média privilegiada dentro da estratificação social
boliviana).
Dado que a definição de uma classe social não pode ser “juridicista”, mas baseada
nas relações sociais instituídas, GARCÍA LINERA (2009, p. 134) define o proletário pelo
fato de que “(...) su trabajo ya no se dirige a satisfacer sus propios requerimientos, sino
que debe satisfacer requerimientos externos, debe ser trabajo útil para otros distintos a
él”. São, portanto, alguns dos critérios para a definição do proletariado enquanto classe
(GARCÍA LINERA, 2009, p. 136-138):
 “Que el trabajador pierda soberanía efectiva sobre el fruto de su trabajo. El primer
momento de esta enajenación es que el trabajador produzca algo, no como despliegue
generoso de sus capacidades, sino como sumisión a necesidades externas que fijan el
ámbito del trabajo útil por encima y en contra de la inclinación del trabajador”;
 “Que el gasto de fuerza de trabajo pueda ser considerado en forma abstracta y
luego equiparable por un monto de valor, el equivalente a los medios de consumo para
reponer el esfuerzo desplegado”;
 “Que la utilidad del producto del trabajo se dé sólo y únicamente en tanto genere
un valor excedente en alguno de los escalones del ordenamiento económico de la sociedad
donde desemboca el resultado del trabajo”;
 “En todos los casos, de una manera directa o indirecta, el trabajo ha de
comportarse no sólo como valor de uso que se intercambia por un monto de valor, sino
además como la fuente del valor cuyo consumo, en términos generales, tiene
explícitamente para el capital social la función de generar más valor que el que retribuye
y el de expropiarlo para si”.
Tal como dispuseram MARX e ENGELS no “Manifesto Comunista”, o processo
de expansão do mercado mundial, e portanto da ampliação das relações sociais
capitalistas, leva em todos os países a uma tendência histórica de formação do
proletariado, o que não é, no entanto, uma lei inelutável que esteja acima da história ou
que ocorra dos mesmos modos nas diversas partes dessa enorme cadeia global. Prova
disso é que persistem em sociedades capitalistas (e ainda mais nas sociades “periféricas”)
um conjunto de relações comunais e de formas de organização não-capitalistas (chamados
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pejorativamente “pré-capitalistas”) que não estão deterministicamente condenadas à
dissolução, mas podem perfeitamente resistir e apontar para sentidos históricos distintos
da Modernidade capitalista (LINERA, 2009, p. 142).
Isso significa que o modo como se dá a estratificação social no capitalismo
dependente latino-americano torna o “proletariado clássico” exaltado pelo marxismo
standard como uma classe social intermédia, que acaba por lutar mais para manter sua
situação “privilegiada” do que se envolver em formas de mobilização e de luta social. As
classes que imporiam maior resistência e que se configurariam como decisivas para a
revolução latino-americana seriam os “subproletários” além de outras classes subalternas
tidas como “não-capitalistas”. Essa previsão feita quanto à composição de classes dos
processos insurrecionais latino-americanos, elaborada há 40 anos por Darcy RIBEIRO,
foi confirmada pela História e é especificamente analisada GARCÍA LINERA ao estudar
a composição de classes da “potência plebéia” do caso boliviano (inclusive para situar o
papel – não desprezível, sem sombra de dúvidas – do proletariado boliviano no processo
de descolonização que segue em curso naquele país.
Diante de tais conclusões, GARCÍA LINERA (2009, p. 158) considera que toda e
qualquer determinação meramente teórica (ainda que “tendencial”) sobre qual classe é
“potencialmente revolucionária” ou “vanguardeira” é uma questão puramente escolástica.
Só pode ser revolucionária uma classe que se coloque de forma concreta na luta social, e
é no salto para a luta política que o operariado se transforma, efetivamente, em
proletariado revolucionário. Aliás, tal conclusão refere-se não só ao proletariado, mas a
toda e qualquer classe subalterna que faça parte das forças que compõem a “potência
plebéia”.
O “teoricismo” afeta não apenas o tema dos sujeitos da luta social e política, mas
também as formas como tais sujeitos se organizam e desenvolvem suas lutas. Passado o
tempo do dogmatismo e da glorificação acrítica da chamada “forma partido”, parece que
a nova “tendência” (igualmente acrítica e restrita a um plano teórico) é a apologia da
forma “movimento social”, ou mais especificamente, dos chamados “novos movimentos
sociais”. Ocorre que também aqui podemos ver uma mera transposição mecânica e
eurocêntrica de conceito referente a outros tipos de sociabilidade que não correspondem
ao que efetivamente ocorre no contexto latino-americano.
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É a partir dessa posição que GARCÍA LINERA (2009, p. 353) critica a aplicação
às lutas sociais e políticas da “potência plebéia” boliviana de conceitos como o de “novos
movimentos sociais”: “(...) propuesto por Alain Touraine en los años setenta, no resulta
pertinente para estudiar los movimientos sociales contemporáneos en Bolivia, debido a
que esa teoría se centra en las conflictividades que cuestionan los marcos culturales dentro
de las instituciones sociales, lo cual es importante, pero deja de lado los conflictos
dirigidos contra el Estado, las estructuras de dominación y las relaciones que contraponen
a las elites gobernantes con las masas, que precisamente caracterizan las actuales acciones
colectivas”.
Os “novos movimentos sociais” seriam, em tese, conforme a interpretação
sociológica dominante atualmente (SCHERER-WARREN, 1996), as principais formas
de organização da luta social no contexto do capitalismo neoliberal e da era informacional
e da constituição de redes. Contudo, conforme afirma GARCÍA LINERA com a
autoridade de um dos principais intelectuais e dirigentes do movimento político na
Bolívia (que tanto interesse desperta em diversos autores “pós-modernos”, e que
supostamente seria uma “confirmação” de suas teorias), tal conceito não consegue
reproduzir a situação real dos movimentos sociais organizados no país desde a derrota do
tradicional movimento sindical mineiro em 1985, e a conseqüente implementação do
capitalismo neoliberal naquele país.
O que houve a partir de 1985 na Bolívia, conforme descreve o autor, foi uma
reorganização das classes subalternas a partir de novos formatos, que, ao contrário do que
apregoam os intelectuais pós-modernos, não abandonou em momento algum a
organização sindical ou baseada no aspecto do trabalho. O que houve de fato foi uma
incorporação dessa perspectiva com os demais aspectos culturais, a partir de novas
iniciativas sindicais (criação de sindicatos por territórios, por categorias etc) articuladas
com a constituição de cordinadoras (i.e., coordenações) que articulavam indígenas,
campesinos, trabalhadores urbanos desempregados ou precarizados etc.
A estrutura de classes que se movimenta nesse processo, como foi dito
anteriormente, é bastante similar àquela descrita por RIBEIRO, à diferença de se tratar de
um país majoritariamente indígena, que passava naquele momento pela brutal
implementação do capitalismo neoliberal, chegando-se a entregar 35% do PIB do país ao
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controle direto pelas empresas transnacionais. Dessa forma, houve uma sensível
diminuição dos setores proletarizados e o aumento significativo da massa de miseráveis
no país, que, ao não se referenciar mais apenas no movimento sindical (cuja história de
luta na Bolívia não pode ser desprezada), passou a se organizar a partir de novas formas,
que o autor denomina de forma multidão4.
Trata-se da formação da “potência plebéia”, ou a hiperpotentia conceituada por
Enrique DUSSEL (2007; 2009) em sua Política da Libertação. Essa forma sócio-histórica
nada tem que ver com as “comunidades comunicativas” de um HABERMAS ou um
APEL5, nem tampouco com a forma indeterminada e indeterminável da “multidão” de
NEGRI e HARDT (2005). Trata-se, isso sim, da construção do “bloco social dos
oprimidos” (à la GRAMSCI), da conformação do povo em sentido político crítico, que
não é a mera noção jurídico-constitucional de povo, mas a materialização do popular
enquanto diametralmente oposto às elites dominantes.
“Os movimentos, junto aos setores críticos da comunidade política, entre os quais
podem ser incluídas a pequena burguesia em crise de desemprego e a burguesia nacional
destruída pela competição das transnacionais, vão constituindo um 'bloco' que vem 'de
baixo' cada vez com maior consciência nacional, popular, plena de necessidades não
satisfeitas e de reivindicações que se assumem com clara consciência de suas exigências”.
(DUSSEL, 2007, p. 91)
Ocorre portanto todo um complexo processo de formação dessa hiperpotentia (que
seria em nossa visão a dimensão propriamente política – e crítica – da “potência plebeia”),
que se dá ao mesmo tempo em que se formulam suas bandeiras de luta e seu programa
político. Tal programa, ou projeto político afirmado pela “potência plebeia” em pleno
processo de luta de resistência contra o capitalismo neoliberal transnacionalizado, será ao
mesmo tempo o capiteneador de forças sociais e políticas para a derrocada (insurrecional
4 Apesar do termo coincidir com o famoso termo cunhado por NEGRI e HARDT (2005), aparentemente
não há qualquer ligação entre ambos. Prova disso é que estes autores são citados apenas uma vez ao longo
de todo o livro de LINERA, em outra obra (trata-se de “Império”) e em contexto isolado. Vide LINERA
(2009, p. 415).
5 Para uma crítica destes autores, vide: DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização
e da exclusão. Tradução de Ephraim F. Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. 2 ed. Petrópolis: Vozes,
2002.
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ou por via eleitoral) das forças políticas neoliberais, como será o guia programático para
os novos governos “bolivarianos” que chegam ao governo nacional.
Não é que antes de chegar a uma tal posição, aquilo que tais forças sociais
insurrecionais produziam em termos jurídico-políticos fossem desimportantes, no entanto
a partir de tal “posição” (e lembremos aqui da célebre “guerra de posições” de
GRAMSCI) a “potência plebeia” adquire condições políticas para promover
transformações estruturais dentro do próprio campo jurídico. É o que buscaremos apenas
exemplificar de um modo bastante inicial (um balanço completo ainda será feito
largamente por toda a esquerda latino-americana em breve) analisando alguns elementos
que foram objeto de transformação no campo jurídico a partir da ação decisiva da
“potência plebeia”.
4. A lenta transformação do Estado e do Direito na América Latina: algumas novas
estruturas jurídico-políticas que começam a ser instituídas pela potência plebéia
Cada processo político contém suas pecualiaridades, mesmo em se tratando de
contextos com orientação política mais homogênea como são os casos dos governos
“bolivarianos” da Venezuela, da Bolívia ou do Equador por exemplo. Desse modo, o que
faremos neste item é seguir a narrativa crítica de GARCÍA LINERA e ilustrar, a partir da
conjuntura boliviana, o processo lento de transformação do Estado e também do Direito
deste país latino-americano. Com isso poderemos ver o modo como o campo jurídico é
direta e profundamente afetado pelos processos de transformação político-social.
GARCÍA LINERA (2009, pp. 504-505) descreve o processo boliviano como
contendo 5 momentos fundamentais, quais sejam:
1. “El momento del desvelamiento de la crisis de Estado, que es cuando el sistema
político y simbólico dominante, que permitia hablar de una tolerancia o hasta
acompañamiento moral de los dominados hacia las clases dominantes, se quiebra
parcialmente, dando lugar a un bloque social políticamente disidente, con capacidad de
movilización y expansión territorial de esa disidencia, convertida en irreductible”;
A impossibilidade do capitalismo neoliberal em atender aos interesses e às
necessidades do povo leva este a constituir formas de organização e de luta social, que
vai se situando no campo político como um novo “bloco”, uma nova força política
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dissidente. Essa força tem origem na capacidade de mobilização e na presença em um
largo território, de modo a gerar impactos políticos de caráter regional ou quiçá nacional.
No caso boliviano, essa primeira fase se manifestou a partir de 2000 com a chamada
“Guerra da Água”, que literalmente (e sem trocadilhos) se configurou como a “gota
d’água” depois de anos de políticas privatizantes e neoliberais. A organização popular
voltada a reverter uma política estatal que pretendia privatizar a água na Bolívia fez com
que se lograsse não apenas derrocar tal medida, mas reconstituir núcleos territoriais de
um novo bloco nacional-popular.
2. “De consolidarse esa disidencia como proyecto político nacional imposible de
ser incorporado en el orden y discurso dominante, se da inicio al empate catastrófico,
que ya habla de la presencia, no sólo de una fuerza política con tal capacidad de
movilización nacional como para disputar parcialmente el control territorial del bloque
político dominante, sino además, de la existencia de una propuesta de poder (programa,
liderazgo y organización con voluntad de poder estatal), capaz de desdoblar el
imaginario colectivo de la sociedad en dos estructuras políticas-estatales diferenciadas
y antagonizadas”;
As demandas formuladas por esse bloco político dissidente não podem ser
incorporadas pelo “bloco histórico no poder”, que vai deixando de ter essa posição para
tornar-se um mero bloco político dominante sem poder hegemônico, condenado a uma
luta de mera resistência contra a nova força política, que segue crescendo de forma
exponencial. Isso cria uma situação de “empate catastrófico”, na qual o país pára em
virtude das lutas entre 2 blocos políticos antagônicos conflagrados, e que tem que ter
necessariamente um lado vitorioso ao final deste momento.
O segundo momento, com este “empate catastrófico”, ocorreu na Bolívia em 2003
quando a expansão dessa hiperpotentia se consuma na constituição de um programa de
transformações estruturais que, à cabeça dos movimentos sociais constituídos, conseguiu
se consolidar como “vontade de poder” com projeto político próprio.
3. “Renovación o sustitución radical de elites políticas, mediante la constitución
gubernamental de un nuevo bloque político, que asume la responsabilidad de convertir
las demandas contestatarias en hechos estatales desde el gobierno”;
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O bloco político dissidente vence a batalha e conquista a condição de nova força
política hegemônica, ocupando os cargos e funções públicas que lhes são permitidos pelas
velhas leis e Constituições do período anterior, colonial. Nos processos nacionais que não
passaram por uma grande “concertação de classes” (como foram os casos do Brasil e da
Argentina, por exemplo), toda essa velharia é remetida ao passado e uma nova ordem
jurídico-política começa a ser construída desde a sua pedra fundamental: a Constituição
nacional.
No caso boliviano, o programa político que reuniu a “potência plebeia” sempre teve
uma participação muito forte dos movimentos indígenas, de modo que o programa
formulado pelo bloco dissidente, agora no governo, teria que ser convertido em prática e
em transformações institucionais. Desse modo, a ideia de Darcy RIBEIRO de um “Estado
multi-étnico” se concretiza na Bolívia sob um formato de um Estado “Plurinacional”,
descolonizando a falsa ideia de que Estados seriam sempre “uni-nacionais”.
A nova Constituição boliviana de 2007 será portanto o primeiro passo, com
evidentes e profundos impactos no campo jurídico, que a “potência plebeia” promoverá
desde o governo nacional. A descolonização do campo jurídico começa a tomar uma
feição mais concreta.
4. “Construcción, reconversión o restitución conflictiva de um bloque de poder
económico-político-simbólico desde o a partir del Estado, buscando ensamblar el ideario
de la sociedad movilizada, con la utilización de recursos materiales del o desde el
Estado”;
Não se trata apenas de “chegar ao Estado”, ou mais especificamente ao Poder
Executivo nacional (com todo o peso simbólico que este sempre teve nos países latinoamericanos). Trata-se de utilizar da força do mandato presidencial e da nova Constituição
feita pela nova maioria para, num contexto internacional hostil e pedregoso, atuar no
sentido de fazer melhorar as condições de base da economia (para a melhoria das
condições de vida do povo), para atender às reivindicações históricas dos movimentos
sociais que fizeram parte da construção da potência plebeia, para angariar mais apoio
social em setores oscilantes, indecisos ou que aguardavam um gesto concreto de boa
vontade da parte do novo bloco histórico no poder (na verdade em apenas uma parcela
dele).
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5. “Punto de bifurcación o hecho político-histórico a partir del cual la crisis de
Estado, la pugna política generadora de desorden social creciente, es resuelta mediante
una serie de hechos de fuerza que consolidan duraderamente un nuevo, o reconstituyen
el viejo, sistema político (correlación de fuerzas parlamentarias, alianzas y
procedimientos de recambio de gobierno), el bloque de poder dominante (estructura de
propiedad y control del excedente), y el orden simbólico del poder estatal (ideas fuerza
que guían las temáticas de la vida colectiva de la sociedad)”.
O quinto momento, chamado “ponto de bifurcação”, se inicia após a aprovação do
novo texto constitucional redigido pela Assembléia Constituinte (cujos integrantes eram
em sua maioria absoluta do bloco de apoio ao novo presidente), e aprovado pela
população no referendum de agosto de 2008. A luta passa então a se instituir pela
aplicação plena dos ditames constitucionais, o que passa a gerar uma série de conflitos,
inclusive com a ameaça separatista inflada pela elite branca da chamada “meia lua”
(região rica em gás que ameaçava formar um país independente sob o controle das velhas
forças políticas derrotadas democraticamente), incentivada pelo imperialismo
estadunidense, porém contida com extrema cautela e habilidade pelo presidente Evo
Morales.
Podemos dizer que desde então a Bolívia tem mergulhado profundamente nesta fase
de “bifurcação”, ou seja, de manutenção das velhas relações sociais, formas jurídicas,
instituições políticas etc., ou de descolonização por meio da criação de novos tipos de
relações, de novas instituições, de novas formas jurídicas mais adequadas às
características da sociedade boliviana. Um autêntico processo de descolonização, que será
muito mais lento, difícil de se operar, além de subjetivamente doloroso para os povos
latino-americanos, ao menos em comparação com as descolonizações em curso na África
ou na Ásia.
Uma única razão pode ser considerada como suficiente para ilustrar a maior
dificuldades que os povos latino-americanos terão para descolonizar o poder, o ser e o
saber: é que enquanto os colonialismos na África e na Ásia duraram 200 anos e
submeterem populações milenares que considerar resguardar grande parte de sua história
e de suas tradições; no caso da América Latina essa colonização durou 500 anos e deixou
poucos elementos do que foram os povos ameríndios. Ademais, o povo latino-americano
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é de um modo geral um “povo novo”, fruto da mestiçagem violenta que impôs à mulher
índia ou negra a violência do homem branco, gerando o filho ilegítimo negado pela
cultura do pai, e que ao mesmo tempo renega a cultura da mãe para poder ser socialmente
aceito.
Essa descolonização, no plano jurídico, é ainda mais lenta mas já nos oferece muitos
sinais bastante efetivos e positivos. As novas Constituições inauguraram um verdadeiro
“novo constitucionalismo latino-americano” que tem sido largamente discutido agora nos
meios acadêmicos, mas que ainda exige um balanço crítico mais abrangente. Novos
direitos têm sido afirmados por essas novas Constituições (como os “direitos da natureza”
da Constituição equatoriana, o Direito a organizar jurisdições indígenas reconhecidas
pelo Estado boliviano, o conjunto de direitos que fazem parte do Poder Cidadão
venezuelano etc). Novas instituições jurídico-políticas têm sido criadas para atender às
demandas sociais da potência plebéia (como o Tribunal Agroambiental e o Tribunal
Constitucional Plurinacional na Bolívia, ou a criação da Defensoría del Pueblo na
Venezuela etc). Como dizia Simón Rodríguez (o mestre de Bolívar), “ou inventamos ou
erramos”. A potência plebéia e seus representantes políticos inventam para não errar. E
isso não significa que não errem.
Balanços sobre os avanços reais destes processos ainda serão feitos pela própria
História. No entanto um aspecto fundamental para o – até agora – exitoso processo de
transformação institucional em países como a Bolívia encontra-se na perspectiva do
formato da organização política implementado pela potência plebéia. Sem recair nas
perspectivas culturalistas pós-modernas, nem no ceticismo pequeno-burguês em relação
aos sindicatos, partidos e à luta institucional no âmbito do Estado, os movimentos
conseguiram se articular em torno de um bloco político que realiza tanto a “guerra de
movimento” (como diria GRAMSCI) configurada na transformação insurrecional, quanto
com a “guerra de posição” viabilizada pela transformação institucional canalizada por via
da luta eleitoral (é o que aponta GARCÍA LINERA, 2009, p. 445).
Dado que a força dos movimentos indígenas foi um fator fundamental para a
constituição da “potência plebéia” na Bolívia, a reconstrução institucional da potestas
(como afirma DUSSEL) tem necessariamente que atender aos anseios e às aspirações de
libertação dos povos originários. Isto se dá, ainda que com uma série de tensões
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separatistas por parte de alguns movimentos indígenas, por meio da consolidação de um
Estado plurinacional, do reconhecimento cultural em todos os sentidos das diversas
nações, e da implementação de novas estruturas institucionais de reconhecimento de
autonomias e de pluralismo político e jurídico.
“Estamos, por tanto, ante un nuevo sistema político, donde se están reconfigurando
cinco aspectos: las características clasistas y culturales del nuevo bloque de poder estatal;
las nuevas fuerzas políticas duraderas en el país; los nuevos liderazgos generacionales; la
distribución territorial del poder estatal; y, por supuesto, el nuevo sistema de ideas
antagonizables a corto y a mediano plazo”. (GARCÍA LINERA, 2009, p. 511)
Trata-se, portanto, da reconstituição da potestas (inclusive no campo jurídico) numa
perspectiva que não é mais fetichizada, dominadora, daquele que, nos dizeres do Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), “manda mandando”. Trata-se, isso sim, da
constituição de uma nova potestas baseada no poder obediencial, no “mandar
obedecendo”.
“O poder obediencial seria, assim, o exercício delegado do poder de toda autoridade
que cumpre com a pretensão política de justiça; de outra maneira, do político reto que
pode aspirar ao exercício do poder por ter a posição subjetiva necessária para lutar em
favor da felicidade empiricamente possível de uma comunidade política, de um povo”
(DUSSEL, 2007, p. 40)
5. Conclusão
Longe de se configurar como um caso isolado, o processo político em curso na
Bolívia deve ser analisado com profundidade por todos os movimentos de libertação dos
povos nos países latino-americanos. De fato há grandes diferenças conjunturais e em
termos das dificuldades concretas para a constituição da hiperpotentia, do bloco social
dos oprimidos, nos diferentes países da Pátria Grande.
Contudo, há que se aprender com os próprios erros e assimilar os acertos
demonstrados pelos processos que se mostram mais radicalizados atualmente. Uma
primeira perspectiva é a de não mais reproduzir as estruturas sociais, políticas e
ideológicas do chamado “colonialismo interno” (CASANOVA, 2007), que tem na atual
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fase neoliberal a veiculação das teorias pós-modernas como a sua principal forma de
reprodução (nesse sentido vide CASTRO-GÓMEZ, 2000, p. 246).
Outro elemento fundamental é a crítica da ideologia desenvolvimentista, que apenas
faz reproduzir as estruturas do próprio colonialismo interno (que foi o que Rui Mauro
MARINI criticou nas teorias dos “desenvolvimentistas” cepalinos). Dentro dos marcos
do mercado mundial capitalista em sua fase neoliberal, as possibilidades dadas aos países
periféricos de se “desenvolverem” sem a necessidade de rupturas políticas, econômicas e
sociais, são simplesmente inexistentes.
Longe de se tratar de uma questão de mera repetição do caminho trilhado pelos
países centrais capitalistas, há que se construir em cada país sua própria perspectiva de
desenvolvimento social, econômico, político, institucional, além do jurídico
propriamente dito. No caso boliviano, essas transformações se materializam no Estado
plurinacional, na transformação das instituições vigentes, na afirmação gradual de novos
direitos.
Nenhuma dessas novidades veio de qualquer estudo do Direito alemão ou
estadunidense, mas emergiu das lutas sociais e políticas dos povos oprimidos que
conformaram a potência plebeia. Como diria José MARTI, o verdadeiro “dilema da
América Latina” não é entre o “tradicional” e o “moderno”, mas entre a “falsa erudição”
e o que é naturalmente produzido pelos povos de Nuestra América.
6. Bibliografia consultada
CASANOVA, Pablo González. Colonialismo interno (uma redefinição). In: A teoria
marxista hoje. Problemas e perspectivas. BORÓN, Atilio A.; AMADEO, Javier;
GONZALEZ, Sabrina. 2007.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciencias sociales, violencia epistémica y el problema de
la "invención del otro". In: La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias
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PANÓPTICA
Poder, violencia y derecho: movimientos sociales e historia
social del derecho en México
Daniel Sandoval Cervantes1
Recebido em 10.5.2016
Aprovado em 30.6.2016
Resumen: El presente trabajo propone la
construcción de una metodología
adecuada para analizar, desde una
perspectiva crítica y de totalidad social, la
relación entre poder, violencia y derecho
en
las
sociedades
capitalistas
contemporáneas, a partir de la relación
entre discurso del derecho, estado y
movimientos sociales en México. Lo
anterior tiene como objetivo generar las
categorías y conceptos necesarios para
comprender la relación entre los cambios
en la organización jurídica del poder
público y la violencia y las
transformaciones de las relaciones
sociales en contextos históricos concretos.
Palabras clave: Poder; Derecho; Crítica
Jurídica; Movimientos sociales; México.
Abstract: This essay proposes the
construction of an adequate methodology
to analyze, from critical posture and a
perspective of totality, the relation
between power, violence and law in
contemporary capitalist societies. This
parting from the relation between law,
state and social movements in Mexico. All
of the former has the objective to help
generate the categories and concepts
necessary to comprehend the relation
between changes in the legal organization
of public power, violence and the
transformation of social relations in
concrete historical contexts.
Key-words: Power, Law; Critica
Juridica; Social Movements; Mexico.
1. Introducción
La relación entre derecho, poder y violencia es fundamental para comprender
nuestras sociedades contemporáneas. Sin embargo, en mi opinión, existe un vació en las
explicaciones acerca de su relación, sus transformaciones y su significado desde una
perspectiva socio-histórica. Por un lado, existen explicaciones desde la teoría jurídica
contemporánea que padecen la limitación de no observar el contexto socio-histórico en
que se producen, de manera que están pensadas desde una concepción abstracta del
derecho y del fenómeno jurídico en general. Por el otro lado, existen explicaciones desde
la sociología, la ciencia política y la historia, que eluden, al menos en su parte central, un
1
Profesor en la Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, [email protected].
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
análisis de la especificidad de lo jurídico y su papel en la conformación de nuestras
sociedades.
En este contexto, el presente trabajo tiene como objetivo proponer una
metodológica, desde la historia social del derecho, para comprender las transformaciones
de la organización jurídica de la violencia y el poder público, desde una perspectiva
crítica, que explica al derecho sin abstraerlo de la totalidad de la realidad social. En este
caso, el trabajo propone un análisis histórico de la conformación de la organización
jurídica del poder público y de la violencia en México, tomando como punto de inflexión
la revolución de 1910 y la constitución 1917, así como los procesos de
institucionalización correspondientes.
Para ello el trabajo se dividirá en tres partes: en la primera se planteará, de manera
general, la perspectiva desde la cual se piensa la relación entre violencia, poder y derecho.
En la segunda, se abordarán los aportes metodológicos de la historia social del derecho y
en la tercera, y última, parte se abordará un breve análisis histórico de las
transformaciones en la organización jurídica del poder público y la violencia en México.
2. Derecho, organización del poder y violencia
Sin duda, la relación entre poder y derecho, en estrecha vinculación con el uso
legítimo de la violencia, son temas recurrentes en la teoría jurídica, social y política
moderna. En este sentido, la teoría jurídica dominante se inclina por una perspectiva desde
la cual el poder (entendido como arbitrario e inclusive irracional) es lo opuesto al derecho,
de ahí la ideología del estado de derecho como un sistema dentro del cual el poder no se
ejerce a partir de la voluntad de quien detenta la representación política y jurídica de una
sociedad determinada, sino, a partir del acatamiento de normas jurídicas determinadas y
vinculantes de sus actuaciones.
Ahora bien, esta perspectiva, que, a mi entender permanece en el mundo de la
abstracción, a pesar de que su análisis pueda recaer sobre una sociedad concreta y
determinada (por ejemplo, México como país). En primer lugar, porque no logra explicar
el papel del discurso del derecho dentro de la reproducción del conjunto de relaciones
sociales, pues asume a las normas jurídicas como algo producido e interpretado desde un
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
lugar colocado por encima de los conflictos sociales y la lucha de clases que, en los
hechos, determinan su mismo contenido y significado.
En este sentido, parten de una concepción cosificadora del poder, a través de la cual,
parecería pretenderse que éste es algo que un grupo posee y puede ejercer a su voluntad,
de la misma manera en que otro algo, en este caso el derecho, colocado por encima de la
conflictividad social, puede evitar su ejercicio abusivo. Por supuesto, como recordaba
Kelsen hace tiempo, esta postura pasa por alto que las normas jurídicas y su misma
sistematicidad no son sino productos de la conducta de seres humanos concretos e
históricamente determinados (Kelsen, 1982).2
En otro sentido, esta postura también elude analizar el sentido ideológico que el
discurso normativo del derecho contiene; es decir, concibe a las normas jurídicas,
especialmente aquellas destinadas a regular o controlar el poder, como cosas fuera del
alcance de cualquier contenido de conciencia, de cualquier ideología (Correas: 2005). De
manera que tiene dificultades para explicar algo que parece fácilmente observable desde
el sentido común: la diferencia entre lo que dicen las normas jurídicas (así pensadas en
abstracto) y el poder que real y efectivamente se ejerce a través de su interpretación.
Lo anterior implica un enfoque que parta de dos supuestos básicos. El primero, una
comprensión crítica del derecho, la cual, para efectos de este trabajo, consiste en explicar
al derecho realmente existente a partir de sus condiciones socio-históricas de posibilidad.
Explicación que, si partimos de que vivimos en sociedades divididas en clases, debido a
la propiedad privada concentrada de los medios de producción y a las relaciones de
trabajo basadas en el principio de extracción de plusvalor; requiere, además, de una
apertura a análisis multi e interdisciplinarios.
En este sentido, el presente escrito se basa en una metodología que incorpora
conocimientos provenientes de otros campos del saber social y no solamente del derecho,
pues, por la propia complejidad de la realidad concreta, ningún conocimiento
monodisciplinar puede explicar de manera satisfactoria; sino que, más bien, debe intentar
reconstruir dicha complejidad a través de perspectivas que incorporen saberes
provenientes de otras áreas, como la economía política, la sociología y la ciencia política.
2
La norma como producto de actos volitivos.
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Además de lo anterior, también es importante para nuestra metodología también
parte de la importancia de tener consideración las condiciones concretas de la realidad.
En nuestro caso, un análisis de la organización jurídica del poder público realizada desde
América Latina y, específicamente, desde México, debe tomar en cuenta la especificidad
de las sociedades latinoamericanas y, con relación a ellas, la de la sociedad mexicana.
Esto no quiere decir que deban existir tantas teorías del poder como espacios geográficos
y tiempos históricos, sino que, para construir una perspectiva general sobre el mismo es
imprescindible partir de las condiciones geográficas e históricas particular, para, a partir
de sus semejanzas con otros procesos, sea posible reconstruir una teoría general que sea
útil para dar cuenta de realidades concretas.
Desde esta perspectiva, la relación entre derecho y violencia padece complicaciones
similares. Por un lado, un conjunto de normas jurídicas que, en el plano de la simple
abstracción, parecen controlar la violencia física y de hacerla legítimamente posible,
solamente después de un proceso judicial orientado por principios de interpretación tanto
humanistas como razonables. Mientras que, en los hechos, en la práctica concreta de las
acciones de los representantes políticos de la sociedad (los funcionario públicos del
estado), observamos, se podría decir que de manera sistemática, condiciones arbitrarias e
ilegitimas de la violencia del estado, ya sea para garantizar la aplicación de leyes que no
cuentan con un consenso social activo (por ejemplo, las reformas estructurales,
recientemente la reforma educativa y sus procesos de evaluación docente), ya sea para
reprimir la protesta social, que debe ser comprendida como un derecho de participación
política, sobre todo en sociedades que no cuentan con canales efectivos de expresión
democrática vinculante para el estado (Correas, 2011).
De la misma forma que con relación al poder, observamos que la teoría jurídica
dominante tiene una cierta perplejidad para comprender cómo en un sistema jurídico-
político orientado, en el plano de la abstracción, por normas que limitan y racionalizan el
uso de la violencia legítimamente posible en una sociedad, pueden existir abusos
sistemáticos del recurso a dicha violencia por parte, precisamente, de los funcionarios
públicos. En este sentido, la teoría recurre al carácter contra-fáctico de las normas
jurídicas, en vez de tratar de observar más allá de la apariencia y de la abstracción, con la
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derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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finalidad de problematizar el papel del derecho en la reproducción de relaciones sociales
injustas y desiguales (Luhmann, 1993).
De
lo anterior, la importancia de explicaciones a partir de las cuales se puedan entretejer
relaciones entre la manera en que el discurso del derecho, a la vez que organiza la
violencia legítima, por medio de la organización jurídica del poder público. De manera
que el control del poder a través del derecho y su historia social en nuestro país debe ser
pensado con relación a los conflictos sociales y antagonismos de clase a través de los
cuáles se ha formado. Observando que, detrás del discurso del derecho, visto desde la
abstracción, existen procesos sociales y políticos de los cuales ha emergido la
constitución de nuestro estado nacional y con el formas de organización jurídica del poder
público que permiten controlar los movimientos sociales que disputan la hegemonía. Para
explicar lo anterior, nos parece necesario partir de la historia social del derecho y sus
posibles aportes metodológicos.
3. Historia social del derecho: aportes metodológicos para comprender las
transformaciones en la organización jurídica del poder público
Si uno de los objetivos de la crítica jurídica es analizar el papel del derecho moderno
en la producción y reproducción del sistema de dominación capitalista y si para ello, y en
especial para desenmascarar la manera en que, por medio de lo jurídico, se presentan de
manera invertida, o, mejor dicho, como se construye, por medio de la juridicidad, una
realidad en la cual las relaciones capitalistas no son perceptibles como relaciones de
dominación o lo son de manera difuminada y aforísticamente. Si parte de esta
presentación de la realidad es producida gracias a la manera en que se construye la
ideología del derecho y la ideología jurídica a lo largo de las relaciones sociales.
Entonces, los análisis históricos son de importancia, al menos para una parte de los
objetivos de la crítica jurídica.
Si
n embargo, al igual que lo que ocurre con la construcción de lo que conocemos y
reconocemos como derecho, en los análisis históricos también es necesario determinar
cuáles perspectivas o cuáles enfoques metodológicos son los adecuados para el desarrollo
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derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
de análisis críticos. En este sentido, al igual que lo que sucedía con el derecho, la disputa
por el concepto mismo de historia y su método es, también un campo más de la lucha de
clases. Al igual que en el campo de lo jurídico, los objetivos de la lucha no son la negación
de la existencia de lo histórico, de que exista un proceso histórico o hechos que puedan
ser considerado y analizados históricamente, sino, por el contrario, partiendo de la
existencia de estos hechos, de su acontecer, la disputa se presente en torno a la forma de
interpretarlos, a la manera de ordenarlos dentro de una explicación global y acerca de sus
capacidades explicativas (Thompson, 2001).
En mi opinión hay tres aspectos que distinguen el concepto de historia que servirá
de punto de partida para la presente investigación, en los cuales se disputa la concepción
misma de historia. El primero se presenta en los hechos relevantes y su interpretación
adecuada, en este sentido, si bien, la historia dominante se construye a través de los
hechos y personajes más vistosos y ofrece una explicación cuya coherencia se funda en
éstos, lo cierto es que lo anterior implica un descuido tanto de las relaciones sociales
dominantes en cuyo contexto esos hechos fueron producidos y el papel que la estructura
global de dominación tiene sobre la producción de esos (Marx & Engels, 1974; Braudel,
1997).
De esta manera, la presente investigación, teniendo como objetivo analizar las
relaciones reales sobre las cuáles se ha producido y aplicado el discurso del derecho, debe
atender a estas relaciones y a ese sistema dominación como aspectos de especial
relevancia para la adecuada explicación de los sucesos históricos. Sin duda, de una u otra
manera los acontecimientos de la revolución no puede ser negados –no se puede negar la
promulgación de la constitución y su proceso de aplicación—, pero sí pueden
interpretarse de manera distinta a partir de la comprensión de la correlación de fuerzas
existentes en el momento de su promulgación y a lo largo de su existencia (Thompson,
2001).
En
relación estrecha con lo anterior, se presenta el tema de la relación entre la política y el
conocimiento histórico. Sin duda, una perspectiva histórica como la mencionada en el
párrafo precedente implica que la aproximación histórica no está separada de una
valoración política de los sucesos: si existe el objetivo de analizar críticamente la historia
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
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de las sociedades en las cuales el sistema capitalista es el dominante, es, precisamente,
porque se valora a éste como inherentemente injusto.
Sin embargo, partir de dichas valoraciones morales –y políticas— no implica una
pérdida de rigurosidad o de capacidad explicativa. En primer término porque la
explicación histórica partirá de hechos reales; en segundo lugar, porque su estructura de
inteligibilidad y explicativa se intentará construir por medio de categorías y conceptos, si
bien estrechamente relacionados con una postura política, tienen una capacidad
explicativa que proviene de su adecuación para analizar la realidad y no simplemente de
una postura política (del Barco, 1979). En todo caso la politicidad de los análisis
históricos existe en todos los casos, sea reconocida explícitamente o no.
Por último, la cuestión de la interdisciplinariedad se encuentra estrechamente
vinculada con un sector del materialismo histórico. Por un lado, bajo la idea de que la
cualidad económica, política o jurídica de un fenómeno no significa que dichas cualidades
puedan ser aislables en la realidad, es decir, no hay un fenómeno simplemente económico,
sino fenómenos explicados desde la disciplina económica, pero que también pueden ser
explicados desde la política o el derecho (Braudel, 1999). De tal manera que el proceso
histórico, cuya explicación es el objetivo principal de la disciplina de la historia, no puede
ser explicado de manera total sino por medio de acercamientos interdisciplinarios. La
presente investigación tratará de relacionar el uso del discurso del derecho con las
relaciones sociales en su sentido amplio, es decir, desde su perspectiva económica,
política y jurídica.
Ahora bien, en cuanto al papel del uso del derecho en la dominación capitalista, al
igual que el resto de los hechos históricos y las categorías con que éstos son analizables,
podemos adelantar que su relación es contingente y cambiante (del Barco, 1979;
Thompson, 2001). Sin embargo, la tarea es establecer ciertas continuidades en el uso del
discurso del derecho que hacen que dicho uso y dicho derecho puedan ser caracterizados
como capitalistas, y que esta caracterización tenga vigencia a lo largo de todas las épocas
históricas analizadas. En este sentido, una de las tareas es presentar al uso del discurso
del derecho como un fenómeno histórico de larga duración (Braudel, 1997), como un
conjunto de fenómenos cuya unidad mantiene una relación de complementariedad con la
dominación económica y la política.
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PANÓPTICA
Dicha complementariedad no es lineal ni tampoco unilateral, en el sentido de que
el papel del uso del derecho en las sociedades capitalistas sea un mero reflejo de las
relaciones económicas (Correas, 2004). En todo caso, creo que la discusión de dicha
relación está erróneamente planteada cuando se hace de esta manera. En cuanto al
enfoque de la presente investigación, dentro pero desde otra perspectiva de la relación
entre estructura y superesctructura, sería el siguiente: si bien es cierto las relaciones
productivas, la forma en que se organizan los individuos para producir y cubrir sus
necesidades, son parte importante, fundamental, para entender las relaciones sociales y el
sistema de distribución, de dominación, que se impone (Marx & Engels, 1974).
También es cierto que sus circuitos políticos, jurídicos e ideológicos no son algo
ajeno a dichos procesos, sino parte integral de éste, de manera que ni la política, ni el
derecho, ni la ideología son simples reflejos de las relaciones de producción, así como
tampoco cambiándolas se transforma la realidad (Thompson, 2001). Al contrario, la
realidad se conforma tanto de la estructura como de la superestructura y los análisis
materialistas de la historia deben de dar cuenta de los puntos en que estas confluyen y de
la manera en que se complementan dentro del sistema global de dominación capitalista.
En estas condiciones, el uso del derecho y la juridicidad en la modernidad capitalista
resulta un tema de importancia para explicar la manera en que su dominación y su
construcción de hegemonía ha sido posible, reconociendo al uso del derecho un papel
activo en su producción y su reproducción, y no un simple papel de acto reflejo de las
relaciones productivas, aquí nos referimos al problema de la autonomía relativa de lo
jurídico (Poulantzas, 2007).
Por un lado, pensar la autonomía relativa de lo jurídico nos ayuda a entender porque,
a pesar de que el discurso del derecho y el discurso jurídico, al menos desde la segunda
mitad del siglo XX, parecen, al menos parecían durante las últimas décadas, adoptar un
discurso formalmente cada vez más igualitario y humanista, este discurso no puede ser
considerado, de ninguna manera, como un contra-poder o como un discurso colocado
frente y en contra de la marginación y la desigualdad inherentes al sistema capitalista.
Sino por el contrario, la posibilidad de la profundización, de la consolidación a largo plazo
de la explotación capitalista ha sido solamente posible gracias a la humanización, y la
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aparente posibilidad de contradicción, del discurso del derecho y del discurso jurídico
moderno.
En este sentido, es especialmente importante analizar las relaciones entre la
juridicidad moderna y el sistema de dominación capitalista no desde la comprensión de
la diferencia entre el idealismo del derecho moderno y la brutal realidad del segundo
como polos contrapuestos, sino desde su complementariedad. Dicha complementariedad
puede ser reconstruida analíticamente desde el reconocimiento de la relación entre el
sentido deóntico del derecho, la ideología del derecho y la ideología jurídica, y el uso del
derecho como forma de reproducir la dominación capitalista, de interiorizarla y de
construir su hegemonía (Correas, 2004; Tapia, 2008).3
En esta relación, la ideología jurídica y del derecho y su sentido deóntico, con
características cada vez más humanistas, sirven a la construcción de la conciencia del
dominado, a la interiorización y naturalización de las relaciones sociales capitalistas,
mientras que, ciertos usos del discurso del derecho y ciertos sectores de la ideología
jurídica y del derecho, vehiculizan una parte de los mecanismos de dominación
capitalista: por ejemplo la desigual distribución de la propiedad de los medios de
producción y, por tanto, la desigual distribución de lo producido socialmente; una
democracia formal que profundización la división de trabajo especializada y la
desposesión en contra de las clases subalternas del control de la resolución de los
conflictos sociales.
La relación que se plantea entre la juridicidad moderna y la dominación capitalista,
para tener cualquier capacidad explicativa que vaya más allá de una relación ideal y
abstracta entre ambos, precisa de un análisis histórico mediante el cual se muestre dicha
relación en cada proceso histórico concreto y, a partir de estas relaciones reales entre
juridicidad y dominación capitalista, puedan integrarse o construirse categorías y
conceptos, un sistema de inteligibilidad, cada vez más general que no pierda su relación
final con lo concreto y lo real. En este sentido, la historia del derecho es un apoyo
necesario para un sector de la crítica jurídica (Correas, 1995).
En este sentido, la dominación del proceso productivo tiene siempre un correlato en la dirección política.
De manera que hay que considerar a la hegemonía como la conjunción de la dominación con una dirección
ético-política, en la cual existe, también una dimensión epistémica, desde la cual se observa y percibe el
mundo y sus interpretaciones éticas y morales.
3
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PANÓPTICA
Sin embargo, al igual que lo mencionado en los puntos anteriores, no cualquier
historia del derecho es útil para la crítica jurídica, de manera que se reproducen los
antagonismos que, en el fondo, se presentan con el trasfondo de la lucha de clases. De
esta manera, las características y los antagonismos que se anotaban entre la historia oficial
o dominante y la historia crítica, la historia desde la concepción materialista, son
igualmente aplicables en torno a la historia del derecho. En este sentido, nos encontramos
ante la necesidad de replantear la historia del derecho, no desde la negación de que haya
existido algo que podríamos denominar lo jurídico, sino de construir una forma contrahegemónica de interpretar el papel de lo jurídico en la dominación capitalista y, así, de
contribuir a una nueva manera de concebir lo jurídico, de manera distinta a la concepción
moderna capitalista.
En cuanto a las relaciones generales de la juridicidad –en su sentido capitalista-
moderno— y la dominación capitalista. Si bien, desde Marx, se ha analizado el papel
fundamental que el uso de la violencia física, legitimada por la vía jurídica, tuvo para el
proceso histórico de la acumulación originaria para la conformación de las grandes
propiedades privadas sobre los medios de producción, por medio del despojo violento
legalizado, en la región conocida como Europa occidental, en especial para Inglaterra y
Escocia. Así como también, él mismo describió las maneras en que el colonialismo
salvaje y la explotación esclava (Marx, 1999). En este sentido, y retomando la
caracterización realizada por la misma teoría jurídica de principios del siglo XX, existió
una relación directa entre la violencia extrema ejercida a través del derecho y el despojo
capitalista durante la etapa de la acumulación originaria.4
Uno de los retos de la historia crítica del derecho es observar la manera en que esta
relación entre la violencia, el derecho, organización jurídica del poder público, el despojo
y la dominación capitalista se ha mantenido a lo largo de los procesos históricos. Lo
anterior resulta un reto, puesto que, en pocas ocasiones, esta relación es presentada por el
discurso del derecho y por el discurso jurídico como realmente es, sino que, al contrario,
sobre todo a partir de la segunda mitad del siglo XX –en la cual se transforma el
Por ejemplo, resulta interesante comparar este papel del derecho en el despojo violento de la tierra con la
importancia que se le otorgaba, por la teoría jurídica dominante a principios del siglo XX, a la coacción
física y al ejercicio del poder como fundamentos para la existencia de los sistemas jurídicos (Kelsen: 1982;
Weber: 2002).
4
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paradigma de organización jurídica se transforma y se judicializa— y hasta nuestros días,
el discurso del derecho –en su concepción moderna-capitalista— es presentado como una
forma de controlar el poder, de controlar la arbitrariedad y, así, de arribar a una igualdad
formal y material.
De manera que se oscurece la importancia de la violencia, de la coacción física, en
la existencia misma del derecho y, con ello, también se oscurece la relación entre el
derecho moderno y la dominación capitalista. En este sentido, para reconstruir la relación
permanente entre violencia, derecho y capitalismo es necesario un análisis histórico que,
yendo más allá de los textos legales, analice el uso del discurso del derecho dentro de las
relaciones sociales de dominación capitalista (2012). Estos análisis, si bien no intentan
afirmar que lo jurídico no existe dentro del capitalismo, si afirman una aproximación
antagónica a los enfoques histórico-jurídicos dominantes y, en este sentido, se puede
denominar como contra-historia del derecho moderno.
4. Las transformaciones del derecho y la correlación de fuerzas en México
En esta ocasión trataré brevemente el proceso constituyente de México, tratando de
explorar la forma en que el uso del discurso del derecho –con todo y su carácter
transformador— acompañó la transformación de la dominación capitalista, la emergencia
de una especie de estado social de bienestar y la recomposición de la clase capitalista que
termina con los gobiernos neoliberales actuales. En este sentido, el proceso constituyente
–que para su época y la sociedad mexicana—abrió sin duda horizontes transformadores
y de posibilidad de usar el discurso del derecho de una forma anti-capitalista, terminó
cercado dentro de los límites del capitalismo desde sus primeros momentos.
En este sentido, la constitución de 1917, mejor dicho la revolución de 1910, marco
una transformación fundamental en el uso del discurso del derecho, pues se pasó de una
legalidad liberal autoritaria que, al mismo tiempo afirmaba un estado liberal que no
intervendría en la mediación de los conflictos que, como los conflictos en las relaciones
laborales entre el capital y los trabajadores, eran considerados como relaciones de derecho
privado. Sin embargo, ese mismo estado mínimo era utilizado para reprimir e ilegalizar a
todos aquellos que buscarán transformar sus relaciones de existencia, como ejemplo de
lo anterior tenemos la ilegalización de los paros de trabajadores que, buscando mejores
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derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
condiciones de trabajo, a los ojos del gobierno impedían la libertad de empresa y la
libertad de trabajo (Basurto, 1975; Leal & Woldenberg, 1988).
En estas condiciones, la insurgencia de los ejércitos populares del sur y del norte,
con Zapata y Villa como sus personajes más conocidos, obligó a los futuros gobiernos a
incluir dentro de sus programas los derechos sociales y colectivos en el campo y en las
fábricas que habían sido la base de las reivindicaciones y demandas populares. Ahora
bien esta constitucionalización de las demandas sociales no fue producto de una síntesis
de las fuerzas sociales revolucionarias, sino el producto de la resolución violenta de sus
diferencias de clase. De manera que el triunfo del ejército constitucionalista –en conflicto
directo, sobre todo para finales de la década de 1910, con los ejércitos zapatistas y
villistas— implicó la derrota militar de los ejércitos populares y la victoria del la pequeña
burguesía terrateniente en emergencia con Venustiano Carranza y Álvaro Obregón (Gilly,
2007; Córdova, 2003).
En este sentido, hay que recordar que el proceso constituyente no fue el campo de
la unidad revolucionaria sino un espacio para la lucha de clases entre diversas facciones
de los ejércitos revolucionarios. De manera que la juridicidad, más que funcionar como
un medio de solución del conflicto armado y una finalidad de la revolución como una
unidad de fuerzas, fue un escenario y un instrumento más de esta lucha, de la cual
finalmente la clase pequeño burguesa logro triunfar y constitucionalizar las demandas
sociales dentro de los límites del capitalismo y de manera que no perjudicarán, sino que
beneficiarán a la facción pequeño burguesa emergente (Gilly, 2007; Córdova, 2003).
Ahora bien, debido a que durante el primer gobierno constitucional de Venustiano
Carranza (1917-1920) convergieron dos condiciones políticas básicas: la permanencia de
fuertes organizaciones combativas, organizadas y movilizadas dentro de la revolución y,
la segunda, la permanencia de una política liberal y autoritaria de Carranza que hacía
pensar más que en una ruptura con la dictadura porfirista en una continuidad de ésta. De
estas condiciones se puede comprender la emergencia de una nueva forma de hacer
política y de usar el discurso del derecho para mantener la dominación capitalista: el
bonapartismo de Álvaro Obregón (Tamayo, 1987; González Casanova, 1996).
Es a partir del gobierno de Álvaro Obregón que se comienza, lentamente, a
institucionalizar las demandas revolucionarias y a generar los marcos legales secundarias
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que le darían aplicabilidad al texto constitucional de 1917 tanto en el ámbito de la reforma
agraria como en el caso de los derechos sociales, sobre todo, de los trabajadores. Sin
embargo, al mismo tiempo que se daba dicha institucionalización se comenzaba el
ejercicio de una nueva forma de contención y control social: el corporativismo. Lo que
marco la alianza entre el gobierno obregonista y las organizaciones obreras y campesinas
más importantes, una alianza que, más que pensada en hacer avanzar las transformaciones
sociales necesarias y exigidas por las bases revolucionarias, estaba basada en la necesidad
de desmovilizar a los movimientos sociales a través de su inclusión política dentro del
estado pero subordinada. En este sentido es que se crearon tanto la primera central obrera
(C.R.O.M) como los partidos de los trabajadores y nacional agrario, aliados decididos del
gobierno y en combate con las fuerzas oligárquicas y conservadoras, pero también con
las fuerzas comunistas y anarquistas del país (Basurto, 1975; Tamayo, 1987).
En este contexto la legalidad emergente, al mismo tiempo de contener un discurso
del derecho con una perspectiva social transformadora, en sus textos, también contenía,
dentro de sus mismas posibilidades de aplicación por parte del aparato burocrático, las
vías para corporativizar a los movimientos sociales y para incluirlos de manera
subordinada dentro del estado. En estas condiciones el gobierno contó con el apoyo de
buena parte de los movimientos sociales, las cuales fueron fundamentales para el triunfo
de Obregón sobre Carranza (Tamayo, 1987; Gilly, 2007). A su vez, es dentro de estas
condiciones históricas que el uso de la legalidad adquiere el carácter mediador de las
luchas de clases, el cual con el tiempo resultó inescapable para cualquier movimiento
social, bajo la pena de ser reprimido con violencia de no recurrir a la mediación del estado.
De manera que la transformación del estado liberal autoritario a un estado mediador y
social no fue, como se pensaría, un proceso pacífico y de liberación progresiva, sino, al
contrario un proceso de inclusión política y social subordinada a través de algunas
concesiones que no impedían, sino que mejoraban la expansión del capitalismo en nuestro
país (Córdova, 2003).
En los gobiernos posteriores y hasta el gobierno de Cárdenas, el desarrollo de la
legalidad siguió, con sus altas y bajas, el proceso de institucionalización a paso lento.
Durante el gobierno de Cárdenas se presenta tal vez el período histórico más paradójico
de la historia de nuestro país, pues, en el mismo periodo en que las demandas
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revolucionarias básicas: reparto de tierras y derechos de los trabajadores, son apoyados
de manera más decidida por el gobierno, el apoyo de los movimientos sociales, que fue
fuerte e importante para la consolidación del gobierno de Cárdenas, fue realizada, sobre
a finales de su gobierno con la transformación de partido oficial y su consolidación, en la
inclusión más subordinada políticamente (Rivera, 1996; Rivera, 1985; Betanzos &
Montalvo, 1985).
En este sentido, el gobierno cardenista marcó el punto más alto de la revolución
mexicana con la organización de un frente popular, con la profundización del reparto
agrario y sendos procesos de nacionalización –el caso del petróleo es el más
paradigmático— y, también es importante mencionarlo, con el apoyo más amplió de los
movimientos sociales, de las organizaciones sindicales y campesinas al gobierno. Sin
embargo, el uso del discurso del derecho y la inclusión política de la sociedad movilizada
en el estado se realizó de manera subordinada y manteniéndola dentro de los límites del
capitalismo. Así fue, pues, el cardenismo y ningún gobierno posrevolucionario
cuestionaron los pilares de la producción capitalista sino que los promovieron: el caso de
la pequeña propiedad es un testimonio de ello, también la postura frente a las inversiones
extranjeras, tampoco se cuestionó el horizonte industrializador impuesto por el sistema
capitalista (Rivera, 1996; Rivera, 1985; Betanzos & Montalvo, 1985).
Sólo comprendiendo las condiciones de existencia y de utilización del discurso del
derecho revolucionario y la construcción de los derechos sociales y sus andamios de
aplicabilidad podemos comprender el giro conservador de la política y el derecho
mexicano no como una ruptura sino como una continuidad y comprender el desarrollo de
la legalidad como un proceso paralelo de las transformaciones del capitalismo en nuestro.
Para ello, evidentemente, hay que colocar la emergencia de las normas jurídicas –
incluidas las socialmente más progresistas— dentro de sus condiciones históricas de
aparición, recordando que el derecho, como todo fenómeno social, se da dentro de la
historia y, por tanto, al menos en las sociedades modernas-capitalistas, dentro y como
parte de las luchas de clases.
En este sentido, el estado social que se vivió en México fue, desde esta hipótesis,
una condición de posibilidad para el proceso de industrialización capitalista y,
posteriormente, para la formación de las políticas neoliberales, pues, a pesar de significar
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
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una legalidad de inclusión social, esta fue de baja intensidad y, sobre todo, fue paralela a
una inclusión política fuerte y violentamente subordinada. Resultando ser más un proceso
de contención y desmovilización social que facilitó la emergencia de las políticas más
represivas posteriores.
El primer proceso represivo comenzó inmediatamente después del gobierno
cardenista y tuvo su máxima intensidad durante el gobierno de Díaz Ordaz –recordado
por la brutal represión de estudiantes del 2 de octubre de 1968. El proceso estuvo marcado
por una política de endurecimiento frente a las organizaciones sindicales que, en contra
de la central oficial, no se alineaban a las políticas de austeridad y sacrificio de los
trabajadores impuestas como estado de emergencia durante la segunda guerra europea.
Durante este periodo de retroceso de la fuerza de los sindicatos combativos, irónicamente,
se presentaron las grandes reformas en el tema de la seguridad social, utilizadas, más bien,
para no conceder ni mayores salarios ni mayor participación política a los trabajadores.
Así también, de la misma forma irónica, fueron procesos paralelos a la profundización
definitiva de la industrialización urbana y en el campo de nuestro país, lo cual generó
grandes cantidades de capital para los empresarios que se negaban a subir salarios
(Basurto, 1984; Reyna & Trejo, 1985).
Después del gobierno de Díaz Ordaz y, buena parte, como una respuesta a las
movilizaciones populares y estudiantiles reprimidas durante su gobierno, surgió una
renovación en la forma de legitimar la actuación del gobierno que implicó un nuevo
proceso o intento de proceso de inclusión social, que puede ser denominado como
neocardenismo (Warman, 1998). Sin embargo, debido a las crisis económicas mundiales
y nacionales esta etapa tuvo corta vida y sirvió más bien para contener una ola de
ocupaciones campesinas, profundizando aún más el carácter corporativo de la acción del
gobierno frente a los movimientos.
La historia más reciente de nuestro país gira en torno a la imposición de las políticas
neoliberales que implicaron un proceso de privatización creciente y oleadas, que hasta
hoy se han cristalizado en la reforma laboral recientemente aprobada, de retrocesos en el
tema de los derechos de los trabajadores, así como en el tema de la reforma agraria, con
el hostigamiento privatizador de las propiedades ejidales que se ha intensificado a partir
de 1994. En los últimos 6 años la problemática se ha agravado con políticas de
SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Poder, violencia y derecho: movimentos sociales e historia Del
derecho social en México. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 332-350, jul./dez. 2016.
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militarización –con el pretexto de la guerra contra el narcotráfico— y la intensificación
tanto de las estrategias criminalizadoras como represoras de las protestas y
movilizaciones sociales. Todo lo cual no habría sido posible si no hubieran existido las
condiciones de desmovilización y de cooptación/represión de los movimientos sociales
tan característica de la acción gubernamental frente a éstos y su relación dialéctica
(Favela, 2006).
5. Conclusiones
La relación entre violencia, derecho y poder es, sin duda, un elemento esencial para
comprender las condiciones de reproducción de nuestras sociedades actuales. Explicarla
desde una perspectiva histórico-social crítica resulta una tarea compleja, de manera que
estas aproximaciones son solamente iniciales y necesitan ser profundizadas,
especialmente a través de análisis históricos concretos. El objetivo será, precisamente,
encontrar la relación entre las formas de organización jurídica del poder público y de la
violencia y sus modificaciones, y las condiciones de reproducción de las relaciones
sociales y sus transformaciones. Tarea esencial para comprender el papel de lo social en
la producción de lo jurídico y el papel de lo jurídico en las relaciones sociales. Explicar
el papel de los movimientos sociales que disputan o resisten al poder hegemónico y la
respuesta del estado resulta algo importante para comprender lo que el derecho es, y no
solamente lo que dice ser
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PANÓPTICA
El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria articulación
de luchas sociales
Manuel E. Gándara Carballido1
Recebido em 4.6.2016
Aprovado em 17.7.2016
Resumen: El trabajo aborda el necesario
aporte que el pensamiento crítico en
derechos humanos debe brindar a una
práctica de diálogo de saberes y de
articulación
de
luchas
sociales,
identificando para ello la urgencia por
superar la fragmentación del conocimiento
sobre la realidad en que ha incurrido la
modernidad occidental, condenando así
tanto a los intelectuales como a colectivos
de activistas que luchan por la
transformación social, al empobrecimiento
de sus prácticas y al desperdicio de sus
experiencias y aportes, con un
significativo
costo
para
las
luchasemancipatorias.
Palabras clave: pensamiento crítico,
derechos humanos, heterarquía, luchas
sociales.
Abstract: This paper deals with the
necessary contribution that critical
thinking about human rights should
provide towards practical dialogue of
knowledge and articulation of social
struggles, overcoming the fragmentation
of knowledge about reality realized by
Western modernity, thus condemning
both groups of intellectuals and activists
fighting for social transformation, to the
impoverishment of their practices and
waste their experiences and contributions,
with a significant cost to the emancipatory
struggles.
Keywords: critical thinking, human
rights, heterarchy, social struggles
1. Introducción
Necesitamos nuevos horizontes teóricos que acompañen las luchas que se vienen
llevando adelante en nombre de los derechos humanos. De esta necesidad da cuenta el
progresivo distanciamiento con el discurso hegemónico (liberal) de los derechos por
partede muchos de los actores que protagonizan estas luchas. De resolver o no este
conflicto depende no sólo la coherencia teórica de muchos activistas y el potenciamiento
Miembro de la Red de Apoyo por la Justicia y la Paz y del Instituto Joaquín Herrera Flores. Profesor en
el Programa Oficial de Máster en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo” de la Universidad
Pablo de Olavide de Sevilla, España; Profesor en el Postgrado de Psicología Social en la Universidad
Central de Venezuela. Correo electrónico: [email protected]
1
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
351
PANÓPTICA
de sus prácticas, sino también la misma recuperación del potencial político del discurso
de los derechos humanos, y por tanto su pertinencia histórica.2
No deja de crecer entre diversos actores sociales el malestar ante la ambigüedad en
el uso del discurso de los derechos humanos, toda vez que este discurso es utilizado tanto
por quienes intervienen a favor de los intereses del sistema de relaciones sociales
organizado en función de la lógica de acumulación capitalista, como por los grupos que
llevan adelante diversas luchas en contra de ésta lógica y de sus efectos sobre vastos
sectores de la población. Así, si por una parte se reconoce a los derechos humanos el valor
que tienen en diversos procesos de liberación, al mismo tiempo es necesario afirmar que
éstos sirven también discurso a favor de los intereses del capitalismo globalizado.
Sin desconocer la legitimidad que el discurso que los derechos humanos ha
alcanzado, y su capacidad de convocatoria y movilización social a favor de las luchas por
una vida digna, la ambigüedad antes mencionada, que puede ser denunciada como el
secuestro de la narrativa de los derechos en función de los intereses de las clases sociales
que detentan el poder y de la ideología y la cultura dominantes, hace necesario un proceso
de reapropiación de la narrativa de los derechos que permita recuperar todo su potencial
emancipador.
1. La lucha por los derechos incluye la lucha por la forma de enunciarlos
En el análisis que nos proponemos es necesario prestar atención a los derechos
humanos como artefacto discursivo, atendiendo a los modos en que dicho discurso es
usado con diferentes propósitos, bien para potenciar la indignación y las luchas, bien para
legitimar el orden asimétrico imperante. Más allá de su uso formal como instrumento
jurídico destinado a garantizar las conquistas, los derechos se constituyen también en un
referente simbólico que brinda orientación y da marco a múltiples luchas a nivel mundial,3
sirviendo, por tanto, de herramienta discursiva legitimadora. Sin embargo, este uso que
podemos denominar de estratégico, requiere de discernimiento. En general, podemos
De Sousa Santos, B. (Julio 1997). Una concepción multicultural de los Derechos Humanos. En:
RevistaMemoria. Nº 101.
3
Cfr. SANTOS, A. Direitos humanos e movimentossociaisem Portugal:apropriação, ressignificação e
des/politização. En A Mobilização transnacional do direito. Portual e o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos (CecíliaMacdowell dos Santos, Org. Coimbra: Almedina, 2012, p. 193. Traducción propia.
2
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
afirmar que “los derechos humanos son pasivamente asumidos como significante
compartido y culturalmente aceptado, contribuyendo así a un imaginario social difuso
de la categoría de derechos humanos entendida como homogénea.” Así, aun cuando los
4
movimientos sociales hacen uso del discurso de los derechos humanos evidenciando su
potencial político emancipador, ello no niega la necesidad de someter a discernimiento
crítico dicho concepto. Al respecto, Helio Gallardo describe la manifestación de este
fenómeno en el contexto latinoamericano en los siguientes términos: “Las instituciones
jurídicas latinoamericanas y las lógicas que las animan, así como la enseñanza académica
del Derecho y la práctica, con el inevitable sentido común que las acompaña, de las ONGs
interesadas en derechos humanos, están fuertemente permeadas por ideologías de
Derecho natural, ya sea el de inspiración clerical, o clásico, por provenir del Mundo
Antiguo, ya sea del iusnaturalismo o derecho natural moderno. Para estos imaginarios
ideológicos, conceptos/valores como el de justicia poseen un carácter metafísico, es decir,
flotan por encima de las tramas sociales y las deshistorizan como función de la
reproducción de las dominaciones vigentes y necesarias y de sus instituciones e
identificaciones grupales e individuales inerciales, estas últimas como dispositivos
internalizados o subjetivos imprescindibles para esa reproducción”.5
Se hace necesario, por tanto, analizar los usos ideológicos de la narrativa de los
derechos, realizando así una crítica del discurso hegemónico liberal que conforma a
nuestras sociedades. Una concepción de derechos construida a partir del ocultamiento de
los procesos de lucha, que niegue la dimensión socio-histórica en su forma de
comprenderlos, invisibiliza a los actores sociales y sus causas, construyendo una
compresión de los derechos despolitizada. Igualmente, una concepción de derechos
descontextualizada impide comprender las interrelaciones entre las dimensiones social,
política, económica, cultural, etc.
Debe entenderse que, dado que a nuestra práctica siempre le subyace una
formulación teórica, y que la política es la administración de las expectativas del futuro,
la acción política busca controlar el lenguaje sobre el cual se construyen dichas
Ibídem, p. 203.
GALLARDO, H. Lucha Social, Pinochet y la Producción de Justicia. En: Teoría crítica dos Direitos
Humanos no século XXI. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 429.
4
5
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
353
PANÓPTICA
expectativas. Las palabras construyen mundo, construyen subjetividades y definen
programas de comprensión e intervención en la realidad. Implican, por tanto, una
construcción política. Sin este discernimiento crítico no hay posibilidad de autonomía ni
de futuros alternativos. De cara a los retos que se nos presentan, es necesario despensar y
repensar las cosas, las palabras, los conceptos que utilizamos para apropiarnos de esa
realidad que queremos transformar. No nos sirven los discursos construidos desde los
centros de poder, pues quien controla los nombres y las categorías, quien controla el
discurso, está en capacidad de construir e imponer su comprensión de la realidad.
Al mismo tiempo, para un correcto análisis del contexto, es necesario comprender
la cultura como constitutiva de la sociedad. Dado que la cultura configura la dimensión
simbólica de la práctica social, funcionando en un circuito estructural que relaciona lo
político, lo económico y lo simbólico, será importante atender a su potencial
emancipador. Los distintos enfoques en el análisis del contexto, aun cuando no versen
explícitamente sobre su componente cultural, dejan claro que sin una transformación a
este nivel se hace inviable un cambio en las relaciones de poder y una superación de la
postura hegemónica. Este aspecto resulta significativo dada la capacidad de influencia
que tienen en la dimensión cultural los actores alternativos al modelo dominante.
De esta manera, una teoría crítica de los derechos humanos debe atender a los
contextos, a los discursos, a las representaciones desde las cuales la realidad es
comprendida, analizada e intervenida; ha de preguntarse por las formas de hacer viable
este cambio cultural; procurará construir herramientas teórico-prácticas capaces de
desmontar las narrativas desde las cuales la globalización neoliberal coloniza las
concepciones de ser humano, de mundo, de sociedad y de Estado, desde las cuales esta
nueva cara del capitalismo define un horizonte de (sin)sentido. Al mismo tiempo, la teoría
crítica en derechos humanos ha de asumir una tarea propositiva capaz de visibilizar,
provocar, convocar y articular otros modos de ser, de significar y de transformar la
realidad, poniendo a dialogar las múltiples formas socio-culturales desde las cuales se
intenta hacer posible un mundo más justo y digno para todos y todas. La transformación
de la hegemonía cultural exige intervenir en el sistema de creencias, en el lenguaje, en el
conocimiento.
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
354
PANÓPTICA
Se parte de unas condiciones concretas que conforman la realidad social que nos
demanda una respuesta, y sobre la que la acción tiene un potencial transformador. Frente
a ello, el desafío cultural, tal y como propone Herrera Flores, es el desarrollo de
subjetividades rebeldes capaces de confrontar el sentido común imperante “irrumpiendo
intempestivamente en lo real.”6 Para esta tarea, “lo más urgente es contar con una nueva
capacidad de espanto y de indignación que sustente una nueva teoría y una nueva
práctica de inconformismo desestabilizadora, es decir, rebelde.”7 Todo ello apunta a la
configuración de un nuevo imaginario social inconformista y creativo, crítico y lúcido.8
Pero este proceso deberá necesariamente superar la reductiva concepción propia de la
racionalidad abstracta moderna, incorporando los afectos, las sensaciones, las pasiones y
la búsqueda de sentido: “Se trata de nuevas constelaciones donde se combinan ideas,
emociones, sentimientos de espanto y de indignación, pasiones de sentidos inagotables.
Son monogramas del espíritu puestos a la disposición de nuevas prácticas rebeldes e
inconformistas”.9
La práctica social a favor de los derechos humanos exige no sólo una formulación
teórica atractiva, una idea convocante y movilizadora, requiere también tener sustento en
los afectos y emociones de la gente, sostenerse en la capacidad para apasionar y vincular
desde los quereres, convocando a la totalidad de la persona. El reto consiste en ser capaces
de ofrecer propuestas lúcidas, lúdicas y sabias.
A partir de la necesidad de reconocer el discurso como ámbito de disputa en la
construcción de la realidad social, desarrollaremos en seguida algunas críticas a
elementos que subyacen a la teoría liberal de los derechos humanos y que requieren
particular atención por parte de los actores implicados en procesos de liberación.
HERRERA FLORES, J. Irrumpiendo afirmativamente en lo real. En: Irrompiendo no real. Escritos de
teoría crítica dos direitos humanos. (Organizador: Marcelo de Moura). Pelotas: Educat, 2005. (pp. 1745).
7
SANTOS, B. La caída del AngelusNovus: Ensayos para una nueva teoría social. Colección En Clave
de Sur. 1ª ed. Bogotá: ILSA, 2003, p. 57.
8
Al respecto, pueden consultarse HERRERA FLORES, J. El proceso cultural: Materiales para la
creatividad humana. Sevilla: Aconcagua, 2005. También HERRERA FLORES, J. O nome do Riso.
Breve tratado sobre arte e dignidade. Traducción Nilo Kaway. Porto Alegre: movimiento; Florianópolis:
CESUSC; Florianópolis: Bernúncia, 2007.
9
SANTOS, B. La caída del AngelusNovus: Ensayos para una nueva teoría social. Colección En Clave
de Sur. 1ª ed. Bogotá: ILSA, 2003, p. 66.
6
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
2. Superar la fragmentación de lo social para seguir pensando críticamente
A continuación nos proponemos dar cuenta de un aspecto que consideramos central
para la praxis de los derechos humanos; nos referimos a la necesidad de estructurar una
forma de pensar la realidad y, por tanto, de asumir las luchas por transformarla, que haga
posible superar la fragmentación a que ha conducido la perspectiva cognitiva hegemónica
en la modernidad occidental. Tal y como señala el sociólogo Edgardo Lander, miembro
del grupo de investigación modernidad/colonialidad, tal fragmentación de las estructuras
cognitivas, que él asigna concretamente al pensamiento liberal, subyace a las
separaciones que operan en nuestra forma de entender los ámbitos de la realidad y en los
mismos saberes disciplinarios con que nos acercamos a ella.10
El pensamiento crítico tiene por delante el desafío de ser capaz de develar, discernir,
visibilizar y desestabilizar el sistema de dominación múltiple (hablamos de relaciones de
dominación en diversos ámbitos de la vida, pero que existen de manera interconectada:
de clase, de etnia, de género, etaria, de dominio sobre lo libidinal y de la naturaleza) que
define a nuestras sociedades y que, como parte de su configuración de poder, logran
presentarse como racionales, naturales, necesarias e inmodificables.11
El pensamiento crítico debe enfrentar el desafío que implica superar la
fragmentación de las formas de saber y la artificiosa separación de los ámbitos de la
realidad; ello le ayudará a comprender las interrelaciones entre las distintas formas de
opresión, exclusión, subordinación y explotación que operan en nuestras sociedades,
favoreciendo de esa manera el trabajo de articulación y traducción de las distintas luchas
contrahegemónicas que se vienen adelantando en el mundo. En este sentido, como es
sabido, apunta el concepto de interseccionalidad formulado desde el feminismo
anglosajón para evidenciar las diversas formas de discriminación a que son sometidas las
mujeres a partir de los múltiples ejes de identidad y opresión, impactando sobre la
posibilidad de su acceso a derechos y oportunidades.12
Cfr. LANDER, E. Pensamiento crítico latinoamericano: la impugnación del eurocentrismo. En:
Desarrollo, eurocentrismo y economía popular. Más allá del paradigma neoliberal. Caracas:
Ministerio para la Economía Popular, 2006, p. 59.
11
Cfr. SOLÓRZANO, N. ¿De qué hablamos cuando hablamos de pensamiento crítico? II Encuentro
Internacional de Pensamiento Crítico. Heredia, Costa Rica, 8-10 de diciembre de 2010, p. 8.
12
Cfr. AWID-, Association for Women’s Rights in Development.“Intersectionality: A Tool for Gender and
economic Justice”, Women´s Rights and Economics Change, 9, 2004, pp. 1-8 (Disponibleen
www.awid.org/Library/Intersectionality-A-Tool-for-Gender-and-Economic-Justice2).
10
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Según muestra Lander, el pensamiento hegemónico occidental representa lo
sociohistórico a partir de una visión “compartimentada” del mundo; se conciben así las
dimensiones política, social y económica como si éstas fuesen dimensiones autónomas,
asignándole además a cada una de ellas una disciplina del saber encargada de su estudio:
la economía se encarga del mundo de la producción de mercado, la ciencia política de lo
político y el estado, y la sociología de lo social13. A partir de esta separación de ámbitos
es posible el mecanismo que supone la autonomía teórica e ideológica de las decisiones
políticas con respecto de la economía.14
La fragmentación de los ámbitos de vida actúa y se refuerza desde la segmentación
disciplinar que opera en el campo de los saberes, y hace necesario transitar hacia enfoques
realmente interdisciplinarios y transdisciplinarios que hagan frente a los moldes que rigen
la organización dominante del conocimiento; sólo así será posible avanzar hacia un saber
social que rompiendo con los actuales parámetros ideológicos, teóricos y metodológicos,
se aventure por nuevos caminos.15 Por eso resulta particularmente significativa la
denuncia que Atilio Borón dirige a la manera en que esta estrategia de control del
conocimiento social se encuentra instalada en el mundo académico: “La academia
rechaza, por lo tanto, al intelectual, es decir, a quien traspasa con su pensamiento
universal las absurdas y caprichosas fronteras disciplinarias que separan la sociología, la
ciencia política, la antropología, la economía y la historia, como si en la vida real de los
pueblos y las naciones la sociedad, la política, la cultura, la economía y la historia fuesen
"cosas" separadas o compartimientos estancos que pudieran ser inteligibles en su
espléndido aislamiento. Desoyen, de este modo, el consejo de Gramsci cuando advertía
sobre los riesgos de hipostasiar lo que no son, ni pueden ser, otra cosa que distinciones
meramente metodológicas. ¿Qué más artificial y artificioso que la separación en
"departamentos" disciplinarios que terminan por des-educar a nuestros estudiantes,
convirtiéndolos en nuevos bárbaros del conocimiento? A pesar de las apariencias, existen
Cfr. LANDER, E. Universidad y producción de conocimiento: Reflexiones sobre la colonialidad del
saber en América Latina. En América Latina: Los desafíos del pensamiento crítico (Irene Sánchez
Ramos y Raquel Sosa Elízaga, coordinadoras). México: Siglo XXI, 2004, p. 171.
14
SAUL, R. A nova economia e o déficit institucional dos direitos humanos. En Revista Crítica de
Ciencias Sociais N° 57/58, junho/novembro 2000, p 109.
15
ZEMELMAN, H. Debate sobre la situación actual de las ciencias sociales, p. 7. En línea:
http://www.archivochile.com/Ideas_Autores/zemelmanh/zemelman0007.pdf. Consulta realizada el 19 de
septiembre de 2012.
13
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
grandes diferencias entre un académico y un intelectual. Este rechaza por completo la
validez de las fronteras disciplinarias, inclusive de la "multidisciplinariedad" porque cree,
por el contrario, en la "unidisciplinariedad", es decir, en un saber integral y unificado que
es lo único que permite reproducir, en el plano del pensamiento, la totalidad compleja y
siempre cambiante de la vida social”.16
Esa nueva perspectiva epistemológica que reclama Borón se hace urgente ante la
constatación de que la fragmentación disciplinaria funciona como mecanismo de
“naturalización de la realidad,”17 imposibilitando aquellas “otras” realidades que por su
carácter fronterizo desbordan a la racionalidad disciplinar.18
Según hacen ver Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel, al analizar los
aportes de determinadas corrientes críticas de innegable significación, los propios
teóricos poscoloniales anglosajones, así como los estudiosos del sistema-mundo, incurren
en este centramiento en alguna dimensión de la realidad en desmedro de otras,
inclinándose a favor de lo cultural, los primeros (aun reconociendo como hacen la
importancia de prestar atención a las estructuras económicas), y a favor de la dimensión
económica, en el segundo caso (aunque asuman los discursos racistas y sexistas como
propios del discurso capitalista).19 Esa misma crítica es realizada por Payne en los
siguientes términos: “Dado que esos diversos movimientos longitudinales dentro de los
estudios culturales proceden a demostrar un sexismo, colonialismo, etnocentrismo o
BORÓN, A. Las ciencias sociales en la era neoliberal: Entre la academia y el pensamiento crítico. En
Mundialização e sociología crítica da América Latina. José Vicente Tavares dos Santos, organizador.
UFRGS. Porto Alegre, 2009, p. 130.
17
LANDER, E. Pensamiento crítico latinoamericano: la impugnación del eurocentrismo. En Desarrollo,
eurocentrismo y economía popular. Más allá del paradigma neoliberal. Caracas: Ministerio para la
Economía Popular, 2006, p. 59. Ver también SANTOS, B. Desigualdad, exclusión y globalización: Hacia
la construcción multicultural de la igualdad y la diferencia. En El milenio huérfano. Ensayos para una
nueva cultura política. Madrid: Trotta, 2005.
18
Cfr. FORNET-BETANCOURT, R. Transformación intercultural de la filosofía. Bilbao: Desclée de
Brouwer, 2001, p. 57.
19
Cfr. CASTRO-GÓMEZ, S y GROSFOGUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento
heterárquico. En Prólogo de El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá
del capitalismo global. (Compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel). Bogotá: Siglo del
Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia
Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 15. También Boaventura de Sousa Santos observa esa
ausencia de una crítica de la economía política en los estudios poscoloniales, a los que subyace un fuerte
énfasis en el componente cultural; al respecto se puede ver SANTOS, B. Entre Próspero y Calibán:
Colonialismo, poscolonialismo e interidentidad. En Un epistemología del Sur: La reinvención del
conocimiento y la emancipación social. México: Siglo XXI – CLACSO, 2009, p. 289.
16
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articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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racismo predominante dentro de las diversas disciplinas de las humanidades y las ciencias
sociales, cada uno a su vez presenta su proyecto crítico como el medio más efectivo o
legítimamente universal de exponer un etnocentrismo método-lógico que opera en la
producción del conocimiento”.20
De igual manera, desde el pensamiento feminista se acusa a la teología de la
liberación, y al propio pensamiento decolonial, de no prestar la atención necesaria a la
perspectiva de género en sus análisis sobre las formas de opresión social.21
En este contexto, y frente al desconocimiento de las diferencias raciales, sexuales,
étnicas, etc., que caracteriza al capitalismo global, Santos llama la atención sobre la
importancia de atender a la relación de reforzamiento mutuo entre la materialidad de las
relaciones sociales y políticas, y los discursos, ideologías y prácticas simbólicas, siendo
necesario asumir análisis complejos que integren las diversas dimensiones de la realidad,
y desarrollar criterios analíticos que permitan comprender y empoderar las luchas
económicas, sociales, políticas o culturales, sin establecer prioridades entre ellas.22
Además, a propósito de la referida invisibilización de las diferencias y desigualdades,
propia de la comprensión hegemónica de nuestras sociedades, este mismo autor advierte
del papel que en tal ocultamiento juega el Estado moderno: “La supuesta
inconmensurabilidad entre diferentes formas de desigualdad y de dominación está en la
base del Estado monocultural moderno, pues torna creíble la igualdad jurídico-formal de
los ciudadanos: como las diferencias son múltiples (potencialmente infinitas) entre los
ciudadanos y no se acumulan, es posible la indiferencia con relación a ellas”.23
Ante
este
panorama,
el
giro
decolonial
propuesto
por
el
grupo
modernidad/colonialidad plantea la necesidad de que el proceso de segunda
descolonización (luego de la muy limitada primera experiencia que fue restringida a lo
PAYNE, M. Introducción. Algunas versiones de teoría crítica y teoría cultural. En Diccionario de Teoría
Crítica y Estudios Culturales. (MicahelPayne, compilador) (Traducción Patricia Willson). Buenos Aires:
Paidós, 2002, p. XXIV.
21
Cfr. MENDOZA, B. La epistemología del sur, la colonialidad del género y el feminismo latinoamericano.
En Aproximaciones críticas a las prácticas teórico-políticas del feminismo latinoamericano. Volumen
I. (Yuderys Espinosa Miñoso, coordinadora). Buenos Aires: En la frontera, 2010, pp. 24 y 30.
22
SANTOS, B. Conocer desde el Sur. Para una cultura política emancipatoria. Buenos Aires:
CLACSO, 2008, pp. 59-60.
23
SANTOS, B. Refundación del Estado en América Latina. Perspectivas desde una epistemología del
Sur. Buenos Aires: Antropofagia, 2010, pp. 86-87.
20
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articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
jurídico-político), se dirija a “la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas,
sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó
intactas.”
24
Precisamente por ello, en lugar de hablar de “sistema-mundo capitalista”,
como hiciera Wallerstein25, prefieren hablar de “sistema-mundo europeo / euronorteamericano capitalista / patriarcal moderno / colonial.”26
Este llamado de atención sobre la necesidad de una comprensión “heterárquica” de
las estructuras de poder-dominación nos parece sumamente valioso para el desarrollo de
un pensamiento crítico en derechos humanos. Más allá de la clásica jerarquización de los
ámbitos de la realidad entre estructura y superestructura, se propone entender que la
articulación entre los regímenes de poder conforma lo que el sociólogo
KyriakosKontopoulos denomina una “heterarquía”;27 de esta forma, se conciben las
estructuras sociales desde un pensamiento heterárquico que posibilite una comprensión
de la realidad en la que no prime una sola jerarquía de poder. En los términos de CastroGómez y Grosfoguel: “Necesitamos un lenguaje capaz de pensar los sistemas de poder
como una serie de dispositivos heterónomos vinculados en red. Las heterarquías son
estructuras complejas en las que no existe un nivel básico que gobierna sobre los demás,
sino que todos los niveles ejercen algún grado de influencia mutua en diferentes aspectos
particulares y atendiendo a coyunturas históricas específicas. En una heterarquía, la
integración de los elementos disfuncionales al sistema jamás es completa, como en la
jerarquía, sino parcial, lo cual significa que en el capitalismo global no hay lógicas
autónomas ni tampoco una sola lógica determinante ‘en última instancia’ que gobierna
sobre todas las demás, sino que más bien existen procesos complejos, heterogéneos y
múltiples, con diferentes temporalidades, dentro de un solo sistema-mundo de larga
duración. En el momento en que los múltiples dispositivos de poder son considerados
CASTRO-GÓMEZ, S y GROSFOGUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico.
En Prólogo de El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. (Compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel). Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana,
Instituto Pensar, 2007, pp. 16-17.
25
WALLERSTEIN, I. Geopolitics and Geoculture. Cambridge/Paris: Cambridge University Press and
Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1991.
26
GROSFOGUEL, R. The Implications of Subaltern Epistemologies for Global Capitalism:
Transmodernity, Border Thinking and Global Coloniality. En: Critical Globalization Studies.(Richard P.
Appelbaum and William I. Robinson, editores). New York /London: Routledge, 2005.
27
KONTOPOULOS, K. The Logics of Social Structures.Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1993.
24
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articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
como sistemas complejos vinculados en red, la idea de una lógica ‘en última instancia’ y
del dominio autónomo de unos dispositivos sobre otros desaparece”.28
Se pretende así dotarnos de herramientas de análisis que permitan una comprensión
de la realidad sociohistórica capaz de articular las diversas relaciones de poder: las
relaciones coloniales y postcoloniales, la explotación de clase propia del sistema
capitalista, el sexismo y el racismo, entre otras.29 Esa complejización del análisis,
repetimos, es una de los aportes fundamentales que se hace desde el giro decolonial, al
poner en evidencia cómo “el proceso de incorporación periférica a la incesante
acumulación de capital se articuló de manera compleja con prácticas y discursos
homofóbicos, eurocéntricos, sexistas y racistas.”30 Repetimos que éste es un aporte que
consideramos fundamental para el desarrollo del pensamiento crítico en general y para un
pensamiento crítico en derechos humanos en particular.
El énfasis que hacemos en esta propuesta tiene como base el entendido de que hoy
en día nos encontramos en el momento propicio para la producción de otros discursos,
fruto de las luchas que han llevado adelante los distintos sectores sociales históricamente
oprimidos, y ahora emergentes, quienes gracias a su historia de resistencia y al saber que
subyace a su experiencia de organización y movilización, pueden hoy dar forma a tales
discursos.
3. Un pensamiento y una forma de pensar que permita articular las luchas
Necesitamos construcciones teóricas que nos permitan comprender el conjunto de
desafíos que se nos presentan en los procesos emancipadores; construcciones que sin
pretender una teoría total o universal, nos permitan superar la fragmentación de los
CASTRO-GÓMEZ, S y GROSFOGUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico.
En Prólogo de El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. (Compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel). Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana,
Instituto Pensar, 2007, p. 10.
29
Cfr. SANTOS, B. Entre Próspero y Calibán: Colonialismo, poscolonialismo e interidentidad. En: Una
epistemología del Sur: La reinvención del conocimiento y la emancipación social. México: Siglo XXI
– CLACSO, 2009, pp. 287-288.
30
CASTRO-GÓMEZ, S y GROSFOGUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico.
En Prólogo de El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. (Compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel). Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana,
Instituto Pensar, 2007, pp. 18-19.
28
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
ámbitos de la realidad social y de las luchas que buscan su transformación. Es necesaria
una reconstrucción teórica que contribuya a la constitución de una base de convergencia
de las luchas, las iniciativas, de los movimientos sociales. En palabra del sociólogo
Edgardo Lander: “Es esto lo que define hoy los mayores retos políticos de las resistencias
anticapitalistas, y la reivindicación de las emancipaciones humanas: las articulaciones
múltiples entre esta diversidad de comunidades, sujetos, organizaciones y movimientos
que hoy se incluyen bajo la denominación de movimiento en contra de la globalización
neoliberal. El reconocimiento de esta diversidad humana exige igualmente el
reconocimiento de la rica multiplicidad de formas y regímenes del saber humano y la
imposibilidad de postular la primacía o privilegio epistemológico de cualquiera de estos,
sea a nombre de la ciencia o a nombre de la vanguardia”.31
Como consecuencia concreta de no intentar invisibilizar o subordinar ninguna
dimensión de la realidad dando prioridad a algún factor específico de ella, el pensamiento
crítico estará en mejores condiciones para brindar su aporte a la necesaria articulación y
traducción entre las distintas luchas emancipatorias. Pero, para ello, es necesario, como
decíamos, dejar atrás la pretensión de encontrar un principio particular de transformación
social y un determinado colectivo como el agente o sujeto de liberación total.32 Tal
principio único no existe y la pretensión de ofrecer una explicación total que estructure y
organice el conjunto de las resistencias no sólo resulta errónea sino sumamente peligrosa
para las propias luchas sociales, por impedir a los distintos actores reconocerse en sus
propias prácticas y, desde ahí, poner en común sus formas de resistencia y las aspiraciones
desde las que dotan de sentido su realidad.33 Tal y como plantea Santos: “Ninguna teoría
unificada puede, eventualmente, traducir el inmenso mosaico de movimientos, luchas e
iniciativas de una manera coherente. Bajo el paradigma revolucionario moderno, la
creencia en una teoría unificada estaba tan afianzada que los diferentes movimientos
revolucionarios tuvieron que adherirse a las descripciones más simples de su realidad
empírica, a fin de que encajaran con las exigencias teóricas…
LANDER, E. ¿Reinventar el socialismo? En: Alternativas. Revista de análisis y reflexión teológica.
Año 19, N° 43, enero-junio 2012. Managua: Editorial Lascasiana, pp. 41-42.
32
Cfr. SANTOS, B. Porque é tão difícil construir umateoria crítica? En Revista Crítica de Ciencias
Sociales N. 54. Junho de 1999, p. 201.
33
Cfr. Ibídem, p. 203.
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PANÓPTICA
“En lugar de una teoría que unifique la inmensa variedad de luchas y movimientos,
lo que necesitamos es una teoría de traducción, es decir, una teoría que en lugar de
dirigirse a crear otra realidad (teórica) por encima y además de los movimientos, intente
conseguir crear un entendimiento mutuo, una mutua inteligibilidad entre éstos para que
se beneficien de las experiencias de los otros y para que se interconecten entre ellos”.34
Se pretende, pues, un quehacer teórico que facilite la traducción de las luchas, que
haga puente entre los saberes que desde esas luchas se construyen, que posibilite
aprendizajes compartidos. Este quehacer se nos presenta como desafío a un pensamiento
crítico que hasta ahora no ha sabido ofrecer ese servicio a la emancipación social,
posibilitando que las tensiones y contradicciones entre los diversos colectivos que luchan
sean trabajadas favoreciendo la articulación entre los movimientos de distinta índole,
promoviendo alianzas en las que ningún actor se sienta excluido o subordinado a las
lógicas, necesidades e intereses de otros actores o de identidades diversas.35
Más allá de las dudas en torno a la posibilidad de formular un modelo explicativo
de la realidad y su construcción histórica, el pensamiento crítico se enfrenta a desafíos
muy significativos en torno a la manera de estructurar y articular las luchas. Es necesario
un modo de pensar que permita confrontar las formas de control biopolítico impuestas
desde el capital globalizado, y construir alternativas que, reconociendo las múltiples
formas de hacer posible la vida digna, generen un proyecto amplio e inclusivo de mundo
en el que quepan muchos mundos. El método de trabajo debe permitir pensar las prácticas
sociales creando lugares de encuentro y debate donde cada uno de los actores implicados
pueda hacer ver su mundo y horizontes de sentido y hacer valer sus necesidades e
intereses. Si bien es cierto que la capacidad de articulación entre las alternativas a la
globalización neoliberal se han incrementado, un análisis materialista de los derechos
humanos no puede desconocer la brutal asimetría de fuerza y capacidad de control
simbólico existente entre las propuestas subalternas y el poder hegemónico.
Todo lo planteado sobre la necesidad de superar una concepción fragmentada de
los ámbitos de la realidad y la segmentación disciplinaria del saber, tiene claros correlatos
SANTOS, B. Sociología jurídica crítica. Para un nuevo sentido común del derecho. Madrid: Trotta,
2009, p. 571.
35
Cfr. SANTOS, B. Interrogando al pensamiento crítico latinoamericano. En Cuadernos del Pensamiento
Crítico Latinoamericano. N° 43. Clacso, septiembre 2011.
34
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en la forma de concebir la lucha por los derechos humanos, toda vez que éstos son, de
hecho, una realidad pluridimensional,36 por lo que requieren de análisis complejos, de
definiciones transdisciplinarias y de luchas articuladas que respondan a los diversos
mecanismos en que las dinámicas de subordinación se posibilitan y retroalimentan. Tal y
como plantea la profesora Fariñas Dulce, es necesario acercarse a dichas luchas por los
derechos considerándolos no como mero objeto cognitivo, sino como campo cognitivo;
aproximación que los hace susceptibles de distintas perspectivas de análisis y diferentes
métodos de comprensión.37
Pensar los derechos humanos desde este nuevo marco contribuirá a enfrentar las
trampas teóricas e ideológicas que subyacen a la concepción hegemónica que sobre estos
derechos ofrece el pensamiento liberal, apoyando de esta manera las luchas por
transformar las relaciones de poder que constituyen nuestro momento sociohistórico; esto
es, relaciones de explotación, racismo, patriarcado, fetichismomercantil, colonialidad,
exclusión, subordinación, marginación, etc.38
La consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz heterárquica
de poder encuentra desarrollos posibles con una concepción de derechos humanos que
no limite las luchas a un ámbito específico de lo social, sino que formule una noción capaz
de acoger la diversidad de procesos. Al fin y al cabo, como bien dice Herrera Flores:
“Bajo la convención terminológica derechos humanos lo que subyacen son los diferentes
y plurales procesos históricos de lucha por la dignidad humana. Siendo el contenido de
ésta, toda forma de acción antagonista contra la división social del trabajo y de los roles
cotidianos que coloca a unos en posiciones privilegiadas en relación con los bienes
necesarios para la vida y a otros en marcos de desigualdad, de subordinación y de falta de
medios para llevar al debate público sus pretensiones de vida digna. Es decir,
paralelamente a nuestra denuncia de los procesos de división social del trabajo y del
acceso a los bienes, hay que reflexionar sobre cómo ir actuando política, social y
teóricamente para hacer visibles esas otras dominaciones (la creación de espacios de
FARIÑAS DULCE, M. Los derechos humanos: desde la perspectiva sociológico-jurídica a la
“actitud postmoderna”. Madrid: Dykinson, S.L., 1997, p. 57.
37
Cfr. Ibídem.
38
Cfr. SANTOS, B. Interrogando al pensamiento crítico latinoamericano. En Cuadernos del Pensamiento
Crítico Latinoamericano. N° 43. Clacso, septiembre 2011.
36
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PANÓPTICA
visibilidad) que no son más que otras formas –junto a la dominación de clase y la
constatación de que unas y otras se entrelazan sistemáticamente- de secuestrar la
capacidad humana de hacer y de actuar con el objetivo de transformar el mundo (la
creación de espacios de lucha)”.39
El discurso liberal sobre los derechos humanos desmoviliza a los actores sociales
simplificando los fenómenos, fragmentando y aislando las luchas, a la vez que
homogeneiza los modos de entender a la humanidad; así mismo, invisibiliza a los sujetos
sociales arrebatándoles el protagonismo en la construcción histórica de los derechos, en
un claro intento por contrarrestar la construcción de poder que esas luchas les permite
construir.
4. Para ir concluyendo…
Son amplias y lamentables las consecuencias de una aproximación ingenua por
parte de los actores sociales con respecto a los instrumentos con los que comprenden la
realidad y a partir de los cuales definen los modos de intervención en ella. Consideramos
que los costos de tal ingenuidad pueden ser demasiado altos en términos prácticos y de
contradicción ideológica.
Las teorías no son meros conjuntos de relaciones entre conceptos; ellas funcionan
como marco de comprensión, condicionando nuestra aproximación a la realidad, nuestra
valoración de ella y la manera en que entendemos si podemos o no transformarla. Por
ello, cuando se plantea la necesidad de una opción teórica específica, se hace apuntando
más allá de esa misma teoría, atendiendo a sus consecuencias prácticas en los distintos
ámbitos de acción. La crítica de la teoría liberal de los derechos humanos, y de la
concepción liberal del derecho en general, puede servir a los actores sociales
comprometidos con la transformación social para repensar el horizonte de su práctica, de
manera que la misma no quede atrapada en los límites que establece esta concepción de
lo jurídico. Si bien es necesario mantener la lucha en el plano del derecho, es igualmente
necesario ir creando otras formas de garantía de tipo político, social, económico y
HERRERA FLORES, J. De habitaciones propias y otros espacios negados. Una teoría crítica de las
opresiones patriarcales. Cuadernos Deusto de Derechos Humanos N° 33. Bilbao: Universidad de Deusto,
2005, p. 151.
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PANÓPTICA
cultural, que sirvan para anclar los logros que se van alcanzando en el marco de la lucha
social.
Las claves ofrecidas por el pensamiento crítico pueden resultar de particular
significación en los procesos de lucha por una vida digna, en la medida en que buscan
ofrecer a los colectivos que emprenden tales luchas herramientas que contribuyan al
discernimiento crítico de las teoríassubyacentes a sus prácticas, y de los efectos que tales
teorías acarrean. Consideramos que éste puede ser un aporte a ser considerado por los
sujetos implicados en procesos de transformación social, quienes frecuentemente dan
cuenta en su discurso de diversas concepciones de derechos humanos, que en ocasiones
llegan a ser contradictorias. Esta diversidad de concepciones, más que a una opción
teórica explícita por parte de los colectivos y movimientos sociales, responde con
frecuencia a la inercia propia de cierto activismo, en la que los diferentes discursos se van
sobreponiendo sin que exista el conveniente debate en torno al marco teórico que los
alimenta.
Para quienes están implicados en las diversas luchas por la emancipación social,
resulta de particular importancia determinar hasta qué punto su práctica se ha visto
frenada por un análisis de la realidad y por un marco teórico que no se corresponden con
sus objetivos de transformación social, ni sus opciones éticas, políticas e ideológicas.
Así, de manera coherente con lo que entendemos debe ser la labor de una teoría
crítica de los derechos humanos y con sus claves epistemológicas, cuestionamos el marco
conceptual de los derechos humanos que ha venido imperando, por considerar que éste
dificulta las necesarias prácticas sociales de promoción y defensa de los derechos en el
actual contexto histórico. En este mismo sentido, asumimos los derechos humanos como
el resultado de procesos de lucha sociales y colectivas, en la búsqueda por construir
espacios que hagan posible el empoderamiento de los sujetos, de manera tal que puedan
formular y llevar adelante una vida digna, a partir de sus diferenciados horizontes
socioculturales.
Frente a los postulados que sostiene el discurso liberal hegemónico, el concepto de
derechos humanos ha de asumirse siempre en proceso de construcción y necesitado de
contextualización e historización, de complejización y de atención a la pluralidad
humana. La reinvención de los derechos humanos estará así inscrita en los diversos
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel E. El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 351-370, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
contextos socio-históricos en los que desarrollan sus prácticas quienes pretendan llevar a
cabo las diversas formas de lucha emancipatoria; será, por tanto, una producción
contextualizada que supere las lógicas fragmentadas y de razonamiento lineal. Esta
historización del quehacer teórico asegurará que la misma, evitando ejercicios de
idealización, pueda entrar en diálogo y enriquecerse con las formulaciones surgidas desde
otros contextos y prácticas.
En este marco, la consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz
heterárquica de poder contribuye con los posibles desarrollos de una concepción de
derechos humanos que no limite las luchas necesarias a un único ámbito de lo social, sino
que formule una noción capaz de acoger los diversos procesos en curso en los distintos
campos de la realidad.
El ejercicio realizado en este trabajo ha querido dar cuenta de la posibilidad y de la
necesidad del diálogo de saberes y de prácticas; además de identificar la urgencia por
superar los compartimientos estancos en las formas de concebir y actuar a que la
fragmentación del conocimiento sobre la realidad social ha condenado tanto a los
intelectuales como a los colectivos de activistas que luchan por la transformación de la
realidad; todo ello ha llevado tanto a unos como a otros a un empobrecimiento de sus
prácticas y a un desperdicio de sus experiencias y aportes, con un significativo costo para
sus luchas.
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Uma porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da
classe operária”1
Marcus Orione2
Jorge Luiz Souto Maior3
Flávio Roberto Batista4
Pablo Biondi5
Recebido em 15.4.2016
Aprovado em 21.5.2016
Resumo: Partindo do objetivo de
apresentar ao público a primeira tradução
brasileira de “A legalização da classe
operária, de Bernard Edelman, este artigo
busca introduzir a crítica marxista do
direito aos leitores interessados em
questões de direito do trabalho e apresentar
o aspecto específico da crítica do direito
aos leitores marxistas. O objetivo final é
demonstrar a atualidade da obra e sua
estreita ligação com algumas das mais
relevantes questões político-jurídicas da
contemporaneidade.
Palavras-chave: Marxismo, Direito do
trabalho, Classe operária, Crítica do
direito.
Abstract: Starting from the aim of
presenting to the public the first Brazilian
translation of Bernard Edelman’s
“Legalization of the working class”, this
article seeks to introduce the Marxist
critique of the law to readers interested in
labor law issues and present the specific
aspect of critique of law the Marxist
readers. The ultimate goal is to
demonstrate the relevance of this book
and its close connection with some of the
most relevant contemporary political and
legal issues.
Keywords: Marxism, Labor law,
Working class, Criticism of law.
1. A crítica marxista do direito no século XX
Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito “ocupa
posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em primeiro plano
“a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes
Os autores são tradutores da obra de Bernard Edelman, “A legalização da classe operária”, Editora
Boitempo, 2016.
2
Professor da Faculdade de Direito da USP.
3
Professor da Faculdade de Direito da USP.
4
Professor da Faculdade de Direito da USP.
5
Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP.
1
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34). Em Marx,
portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim, mesmo tangenciando
o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as indicações necessárias para uma
compreensão científica e materialista do direito, sobretudo em “O Capital”. Isto porque a
crítica da economia política, ao consistir numa crítica do cerne da sociedade burguesa, de
sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47), permite um vislumbre mais acurado sobre os outros
aspectos da vida social do capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.
A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e
Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia
jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou
a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais
importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.
Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma
ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique.
Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se
materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da
burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é,
de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para os
marxistas como um tema a ser aprofundado.
Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica
entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um
rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição
pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao
esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive,
custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que
O momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny
Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se põe a
identificar a específica relação social que dá base à manifestação jurídica. Para além de
Stutchka – que, se identificava o direito à luta de classes, não lhe apontava os mecanismos
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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íntimos –, Pachukanis se põe a identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009,
p. 48)
Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou
ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e
tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de
produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito
seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa
forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.
Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma
sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o valor,
a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um determinado
modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim, imaginar que os
traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em sociedades muito distintas
entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-se a classe dominante
favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma maneira de se eternizar
a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas características peculiares. Eis a
ponderação de Pachukanis contra a formulação de Stucka: “O conceito de direito é aqui
considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma
jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria
marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas
diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a
regulamentação jurídica como forma histórica determinada” (PACHUKANIS, 1988, p.
21).
As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o
marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito
na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui elementos
próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se confunde
com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes específicos do
capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes dão conotação
específica. A forma social somente é possível, dadas determinações históricas,
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo de produção
distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as especificidades do
capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é moldada por aquele. A
respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito acoplamento da forma jurídica
ao capital, trataremos no decorrer do artigo.
Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito,
algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias.
A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo
econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os
economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único
meio de produção capaz de valorizar o valor.
Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor
de troca.
O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de
que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para
se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de
uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente, mas
o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma.
O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de
que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas pela
exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não bastam as
qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais de que
passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para a sua
produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada a
quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas cadeiras,
e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e cadeiras
para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o
equivalente universal: o dinheiro.
Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que
então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
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exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como
central na teoria de Marx.
Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a
grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios de
produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho
enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou
a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith
(“A riqueza das nações”). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de
acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é obra
do engenho de Marx.
Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.
Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida
de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a jazida
ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se trata de uma
ingenuidade.
Sem o trabalho de alguém que, devidamente preparado, descobrisse as propriedades
daquela jazida ou mesmo sem a descoberta, pelo trabalho humano, das formas de
processamento, aquela jazida seria, na natureza, uma como tantas outras. Mas não apenas
o trabalho intelectual é importante aqui. Esse de nada valeria sem o esforço de operários
que realizam, com a força de seus músculos, o processamento.
Portanto, nem matéria-prima e nem máquinas, como se costuma pensar, produzem
a riqueza do capitalista. O que produz a sua riqueza é a apropriação do trabalho alheio,
para gerar valor (mais-valia). Assim, detendo os outros meio de produção, o capitalista
quer agregar valor a esse capital e somente pode fazê-lo por meio da exploração do
trabalho alheio.
O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com “O Capital” em seus três
livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações
sociais de produção e reprodução da vida material.
Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a
apropriação da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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como mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de
produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras
expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o
possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer
proprietário, para operar no mercado a sua troca.
Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma
sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova
dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a
mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como
se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.
Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto
forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da
subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade;
da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o
direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas tradicionais,
ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra, qualquer que
seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do sujeito de direito,
a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de vinculações
estamentais.
Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante
determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o
entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade
burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao
capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do
trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa
perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração do
trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico
pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito
profícua a este respeito: “Ao revestir-se da forma de um sujeito – nas condições de um
modo de produção especificamente capitalista, isto é, sob as condições da subsunção real
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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do trabalho ao capital –, o indivíduo se transmuta em vontade pura, abstraída de qualquer
determinação. [...] Assim, a constituição do sujeito de direito está vinculada ao processo
de abstração próprio da sociedade do capital, de tal modo que podemos dizer que ao
trabalho abstrato vai corresponder à abstração do sujeito, ou seja, o processo de
equivalência mercantil derivado do caráter abstrato que toma o trabalho em certas
condições sociais determina o processo de equivalência entre os sujeitos, que só é possível
se as pessoas perderem qualquer qualidade social que possa diferenciá-las”.
Como se nota, a linha de raciocínio apresentada por Pachukanis, e que está centrada
no papel distintivo do princípio da subjetividade e do nexo necessário entre capitalismo
e direito – tanto no sentido de que não há capitalismo sem direito quanto no sentido de
que só pode haver direito, em sua expressão mais acabada, sob o capitalismo –, é a que
melhor diferencia o fenômeno jurídico de outras instâncias da vida social. Aliás, como
bem identificou o jurista soviético, esta diferenciação é condizente com um processo
histórico real que, com o advento da ordem social burguesa, separou a forma jurídica da
moral, da religião6, dos costumes etc., permitindo um desenvolvimento singular de suas
categorias: “Não devemos nos esquecer que a evolução dialética dos conceitos
corresponde à evolução dialética do próprio processo histórico. A evolução histórica não
implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das
instituições jurídicas, mas também um desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta,
depois de haver surgido num estágio determinado da civilização, permanece, durante
longo tempo, num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem
delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi apenas
desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo apogeu, a sua máxima
“O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da
humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da
humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (...), a sua convergência com a noção de
religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era determinado pelo
chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que governasse determinasse a solução
do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento posterior, as ordálias ou juízos de deus eram
também um bom exemplo de como a prova estava (...) ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse
as limitações impostas (como passar incólume por um chão de brasas, por exemplo) contava com a
aquiescência divina, já que a verdade estaria ao seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova
legal (...), (que) corresponde a uma necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da
legalidade em seu sentido estrito. “ (CORREIA, 2013, p. 556).
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diferenciação e precisão. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a
relações econômicas e sociais determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-
se pelo aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o
sistema jurídico como totalidade orgânica” (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).
Por conta da repressão stalinista, a teoria pachukaniana foi brutalmente
interrompida no seu desenvolvimento. Pachukanis foi executado em 1938, no contexto
dos famigerados Processos de Moscou7. Desse modo, a produção teórica marxista sobre
o direito sofreu um revés muito grande. Sob o stalinismo, inclusive, predominou a
doutrina de Andrei Vichinsky, que identificada o direito à legalidade posta e fazia a mais
completa apologia ao regime stalinista e à deformação burocrática do Estado nascido com
a revolução de outubro.
E com o trágico desfecho da revolução russa, que acabou enterrada pela
degeneração stalinista, o impulso teórico que colocou em foco o problema do direito se
perdeu. A transição socialista na URSS foi abortada, de modo que a ditadura
revolucionária do proletariado, o regime dos soviets, foi substituída pela ditadura
burocrática de um partido bolchevique irreconhecível, dirigido por uma camarilha que
aniquilou moral e fisicamente a vanguarda e as lideranças da revolução. No campo de
estudo do direito, esse retrocesso colossal se manifestou no fim das pesquisas mais
profundas. O fenômeno jurídico voltaria a ter uma dimensão marginal nas obras
marxistas.
Com efeito, encontramos considerações sobre o direito em autores clássicos do
marxismo do século XX, como, por exemplo, Louis Althusser em seu “Sobre a
reprodução” (1995). Todavia, faltavam estudos de fôlego que se debruçassem direta e
prioritariamente sobre a questão do direito. Faltava um sopro renovador que pudesse
retomar o caminho trilhado por Pachukanis e avançar nas elaborações. Este sopro não foi
Em 1938, a pretexto do assassinato de Kirov, um quadro do partido bolchevique, desencadeou-se na
URSS uma onde de perseguições contra antigos militantes do partido, e que consistiu num recrudescimento
da burocratização e da repressão política que assolavam o país desde o final da década de 1920. Figuras
históricas do partido bolchevique como Kamenev, Zinoviev, Bukharin e muitas outras foram forçadas a
confessarem crimes que não cometeram, o que resultou em sua condenação e execução - muitos desses,
inclusive, haviam integrado blocos com Stalin antes de serem renegados. A maioria da antiga direção
bolchevique foi fisicamente eliminada nos Processos de Moscou. Trotsky foi condenado, mas se encontrava
no exílio. Em 1940, foi assassinado por um agente da GPU.
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ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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dado por Althusser, mas alguns de seus seguidores tomaram para si, de certa maneira,
esta tarefa. Dentre eles, Bernard Edelman mostrou-se o mais brilhante.
2. A obra de Bernard Edelman
A denúncia dos crimes de Stalin e a poderosa vaga revolucionária de 1968, a última
em solo europeu, enfraqueceram o prestígio e a hegemonia do aparato stalinista na
esquerda francesa. Desenhou-se, assim, um cenário de oportunidade para uma renovação
do marxismo, tanto em relação à dogmática oficial patrocinada por Moscou quanto em
relação a algumas tendências reformistas.
Não houve na França, como na Rússia de 1917, uma insurreição proletária que
culminou com o início de uma transição socialista. Contudo, a vaga revolucionária de
1968 colocou a classe operária em movimento, num ascenso fortíssimo que se enfrentou
não apenas com o governo conservador de Charles De Gaulle, mas também com a linha
política do PCF, que canalizou a força espetacular do levante operário e popular para o
terreno reformista das negociações econômicas – o que deu sobrevida a um governo que
estava prestes a cair, e que de fato poderia cair se houvesse uma decidida direção
revolucionária à frente do movimento de massas.
A frustração de um ascenso revolucionário que terminou em negociações
econômicas conduzidas por uma direção política conciliatória colocou a questão do
“terreno” da luta de classes, ou seja, do espaço social em que ela se realiza. Provou-se
novamente na prática a tese leninista de que, no confronto econômico, prevalece a
consciência sindicalista, “tradeunionista”, “uma convicção de que é preciso reunir-se em
sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis
necessárias aos operários etc.” (LÊNIN, 2010, p. 89), mas sem se colocar em causa a
dominação do capital e a questão do poder. Isso porque a luta econômica e sindical se
limita a barganhar o preço da força de trabalho, deixando intocado o problema da sua
comercialização, é dizer, o cerne do modo de produção capitalista.
Ora, um conflito que se encerra na sua pauta econômica, que não ultrapassa as
determinações mercantis do capitalismo, é um conflito que se dá no interior da arena do
direito, e com pleno respeito às suas linhas de demarcação. Prevalecem, nessas condições,
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tanto a forma jurídica em sua generalidade quanto o seu arcabouço institucional sindical,
o qual instrui e dá sustentação à permanência da relação capital-trabalho. Não se pode
esquecer que a estrutura sindical é um componente necessário de um regime social em
que a força de trabalho é uma mercadoria, e que, como tal, precisa passar por foros de
negociação do seu preço. E dado o liame intrínseco entre direito e mercadoria no
capitalismo, como bem demonstrou Pachukanis, a forma jurídica demonstra todo o seu
peso ao envolver e disciplinar o mercado de trabalho.
Na conjuntura inaugurada em 1968, portanto, restou escancarada a influência do
direito sobre a luta de classes. Apesar do ímpeto revolucionário inicial, o movimento de
massas se viu prisioneiro das armadilhas do terreno jurídico, as quais necessariamente o
conduziriam à conciliação de classes, à restauração da ordem e à reprodução da
sociabilidade do capital. Discutir o direito sob um ponto de vista marxista, então, tornou-
se uma necessidade urgente naquele contexto. Neste contexto é que surge o marxismo
que assenta bases nas proposições de Louis Althusser, em sua posição de afastamento
contínuo do stalinismo e de crítica implacável ao reformismo, logrou produzir obras de
enorme importância para a crítica do fenômeno jurídico. E é exatamente no contexto da
crítica althusseriana que se deve conceber a obra de Bernard Edelman.
Em 1973, Edelman inicia esse movimento de crítica radical do direito com a obra
“O direito captado pela fotografia” (2001). Três anos depois, Michel Miaille lança a sua
“Introdução crítica ao direito” (2005), igualmente partindo das premissas pachukanianas.
E, em 1978, outras duas obras desses autores foram publicadas: “O Estado do direito”, de
Michel Miaille (1980), e “A legalização da classe operária”, de Bernard Edelman (2016).
Em que pese a importância dos textos de Miaille, colocaremos nosso foco no
trabalho de Edelman. Neste autor, encontramos uma teoria do direito que parte
decididamente dos pressupostos pachukanianos, e que se propõe a sofisticá-los por meio
da teoria do sujeito – e de sua interpelação ideológica – em Althusser. Segundo Louis
Althusser (1995, p. 23), “não há ideologia que não seja pelo sujeito e para sujeitos8”, no
sentido de que o indivíduo é “sempre já” (isto é, desde sempre) sujeitado pela ideologia,
constituído por ela concretamente por meio das práticas materiais que a instituem e dos
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Todas as citações de obras em idioma estrangeiro serão traduzidas por nós livremente.
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aparelhos ideológicos que cuidam da sua reprodução. Em uma apertada síntese, desde o
instante em que qualquer sujeito vem ao mundo já se encontra sujeito a uma ideologia na
qual estará inserido, sendo que, individualmente, não terá condições de superá-la. Na
realidade, mais do que isto há aparelhos que reforçam esta ideologia, tais como a escola,
o sindicato, a mídia (para usar um exemplo mais atual) e outros.
Em seu livro “O direito captado pela fotografia”, Bernard Edelman mostra-se
caudatário desta concepção althusseriana, indicando um caminho de diálogo com a linha
teórica de Pachukanis: “Os ‘indivíduos’ são interpelados como sujeitos pelo direito. Essa
interpelação é constitutiva de seu ser jurídico mesmo, no sentido de que é esta
interpelação ‘tu és um sujeito de direito’ que lhes dá o poder concreto, que lhes permite
uma prática concreta. ‘Já que tu és o sujeito de direito, tu és capaz de adquirir e de (te)
vender’” (EDELMAN, 2001, p. 26).
Coerentemente com a crítica pachukaniana, Edelman identifica o mercado como o
espaço de realização das práticas materiais que ensejam a figura do sujeito de direito. A
forma mercantil engendra um indivíduo à imagem e semelhança do portador de
mercadorias, um sujeito formalmente livre, igual aos outros e potencialmente
proprietário. E dentre os três aspectos centrais desse sujeito de direito, destaca-se a
propriedade, ou seja, a sua característica de ser “um proprietário de mercadorias abstrato
e transposto para as nuvens”, para usarmos a expressão pachukaniana (1988, p. 78). É
com referência na propriedade que as categorias jurídicas de liberdade e igualdade se
estabelecem. Uma vez que a liberdade e a igualdade são categorias derivadas da esfera
mercantil do valor e da troca, elas se colocam em função dos proprietários de mercadorias.
É por meio da realização contratual delas que a propriedade se transfere de mãos em mãos
no processo incessante de permutas. Edelman (2001, p. 110) conclui que “a
movimentação da propriedade privada cria, de fato, uma liberdade e uma igualdade, mas
esta liberdade e esta igualdade são aquelas mesmas da propriedade privada”. Na
perspectiva do mercado, o trabalhador deve estar apto para vender a sua força de trabalho,
como proprietário dela. Não pode ser tratado de forma distinta dos que possuem o capital,
que da força de trabalho extraem o principal elemento de concentração de suas riquezas.
Caso contrário, não passaria de um escravo ou de um servo. No entanto, como não
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estamos mais na antiguidade ou na idade média, a expropriação da força de trabalho
precisa contar com a aquiescência do próprio trabalhador. Portanto, ao se conceber a
figura do sujeito de direito como homem livre, igual e proprietário, para a circulação da
principal mercadoria que deve ser expropriada pelo capital, a força de trabalho, há a
consolidação concomitante de uma ideologia jurídica – a que qualquer indivíduo se
encontra submetido, e que corresponde a categorias estudadas por Althusser, como a de
que o sujeito é interpelado pela ideologia, no sentido de que não tem condições,
individualmente, de a ela resistir, nela já se inserindo desde o instante em que passa a
existir como ser vivente.
Assim, consagra-se uma imagem abstrata do homem na sociedade burguesa, um
indivíduo que é nivelado pelo mercado, e que dele participa independentemente da sua
ascendência social. Os indivíduos se apresentam como portadores não apenas das
mercadorias que oferecem, mas também das relações sociais que dão base às trocas.
Personificando a equivalência do trabalho abstrato, eles são postos como “equivalentes
vivos”, de tal sorte que “o processo do valor-de-troca torna-se o processo do sujeito, e o
processo do sujeito, o processo do valor-de-troca” (EDELMAN, 2001, p. 111).
Esmiuçando a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Edelman explicita
as funções concretas e ideológicas do direito, postulando que ele, em sua vivência, “fixa
as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna eficaz, no mesmo
momento, a ideologia jurídica, que é a relação imaginária dos indivíduos com as relações
sociais em geral”, assumindo a “dupla função de fixar concretamente e ‘imaginariamente’
– e seria melhor dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o
conjunto das relações sociais” (EDELMAN, 2001, p. 104). E nisto, inclusive, se vê mais
uma apropriação do pensamento de Althusser acerca da ideologia, concebendo-a como
uma “relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”.
Como síntese da crítica de Edelman à forma jurídica em sua generalidade, vale citar
a seguinte passagem: “O que me proponho a demonstrar ao deixar voluntariamente de
lado o que se passa ‘alhures’, no ‘laboratório secreto da produção’, é que o direito toma
a esfera da circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em si como absoluta,
não é nenhuma outra senão a noção ideológica que porta o nome hobbesiano,
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rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que o direito, ao fixar a
circulação, não faz senão promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; que
ele escreve sobre a fronte do valor-de-troca os signos da propriedade, da liberdade e da
igualdade, mas que estes signos, no secreto ‘alhures’, lêem-se como exploração,
escravidão, desigualdade, egoísmo sagrado” (EDELMAN, 2001, p. 107).
Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o direito,
introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração capitalista e seus
desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções como liberdade e
igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como um dos maiores
marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor seria levar esta
concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua contribuição ao
marxismo a um novo patamar.
3. A crítica do processo de legalização da classe operária
Em “A legalização da classe operária”, Edelman apresenta uma crítica do direito do
trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele
demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos
em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza
dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de
análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo: as
formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição
fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje.
O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina
jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade. Na contramão desta
tradição que vê no ramo juslaboral apenas um inventário de conquistas obreiras históricas,
ou mesmo um sinal de triunfo da dignidade humana, Edelman (2016, p. 18) alerta que “a
classe operária pode ser 'desviada', precisamente por suas próprias 'vitórias', que podem
apresentar-se também como um processo de integração ao capital”, lembrando, ainda,
que “a 'participação' nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há veneno em
seus 'presentes'”.
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Edelman não despreza as medidas de bem-estar que foram obtidas sob pressão do
movimento operário. Contudo, seu esforço é o de salientar o outro lado da moeda, ou, se
quisermos, o “preço” que foi pago por essas concessões do capital. Esse preço, por certo,
não foi a supressão da luta de classes. Em sua filiação althusseriana, Edelman
seguramente entende que “a luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma
coisa”, uma vez que a divisão da sociedade em classes “não se faz post festum; é a
exploração de uma classe por outra e, portanto, a luta de classes que constitui a divisão
em classes. Pois a exploração já é luta de classes” (ALTHUSSER, 1978, p. 27). É por
isso que nosso autor fala em desvio desse conflito, e não na sua abolição. Ocorre que,
com as conquistas econômicas da classe operária e sua integração política (e jurídica, pelo
reconhecimento de direitos) à sociedade burguesa, o enfrentamento entre capital e
trabalho desloca-se para o âmbito institucional dos partidos da ordem e do sindicalismo
oficial, ou seja, para o campo do Estado em sua concepção ampliada, de maneira que “as
próprias lutas operárias são travadas nesses aparelhos, elas se desenvolvem nessas
estruturas e essas estruturas provocam efeitos sobre o combate” (EDELMAN, 2016, p.
19).
Eis aí o cerne da questão. O terreno sobre o qual se realiza o embate está longe de
ser indiferente para o seu resultado. Enquanto uma forma, o direito envolve o seu
conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução
da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela classe
operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da ordem
social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e trabalho é uma
relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num liame entre
contratantes.
Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente são
concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o
direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe
operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista.
Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia de
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poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua
estruturação capitalista.
Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas. Visto
como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo como
o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da ordem
jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à
inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio
burguês. Transcrevamos as palavras do autor em toda a sua crueza: “Devemos nos livrar
de uma vez por todas da ilusão tenaz de um ‘direito operário’ que manteria distância do
direito burguês, que seria um tubo de ensaio em que se elaboraria um ‘novo direito’.
Tradicionalmente, os especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É
necessário, dizem esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus
títulos, reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um
direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos – a ver com
o direito ‘comum’, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu o ‘socialismo dos
juristas’, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e técnicas das relações entre
direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do trabalho/direito comercial, direito do
trabalho/direito público…”.
Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o “direito
operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se, enfim, milagrosamente,
o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente “protegida”!
Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao
trabalho, ponto final (EDELMAN, 2016, p. 19).
É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman não
se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre estrutura
e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais e de suas
consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção que as
engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem
existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho
como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como um
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ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à exaustão
que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo direito
coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a forma
jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a partir da
“captura” do movimento operário, do seu enredamento.
Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou
que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em geral,
Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o
caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não podendo
prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo de
contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que “o
aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou
quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas
novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão
“das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o
socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do
valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o direito
do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em sua
compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade burguesa.
Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu
modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da
classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente
revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao
capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de classe
se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem delimitados,
impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância das relações de
produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária “uma língua que
não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se exprime gaguejando,
com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de 1968 na França)”
(EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é um fatalista, que
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ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A diferença é que,
contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa possibilidade nos
processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos institucionais do
capitalismo.
A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da
legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras da
sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe operária e
de sua luta contra o capital.
O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto dimensionamento
da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética desse par, pondo em
relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se determinam mutuamente. Esta
unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção capitalista, e não há um único conflito
trabalhista que coloque em causa a natureza desse vínculo. Ao contrário, o direito do
trabalho reproduz as condições sociais da produção capitalista e conforma a exploração
de classe: “Podemos compreender agora como o contrato de trabalho reproduz o direito
de propriedade, e como o direito de propriedade reproduz o contrato de trabalho. De um
lado, o contrato de trabalho aparece como uma técnica de venda do ‘trabalho’, que só dá
direito a um salário; de outro, o proprietário dos meios de produção compra a força de
trabalho sob a forma de salário e a incorpora juridicamente a sua propriedade”.
No final das contas, a relação capital/trabalho resolve-se numa relação de título:
título de trabalho em oposição ao título de propriedade.
Assim, quando combinam contrato de trabalho e propriedade privada, os tribunais
reproduzem de fato a separação do trabalhador de seus meios de produção (EDELMAN,
2016, p. 31).
Há, pois, uma simetria entre o contrato de trabalho e o direito de propriedade, ou
melhor, uma correlação necessária, e que instrui o que Edelman chama de poder jurídico
do capital. A dominação do capital sobre o trabalho é exercida sob a forma de um vínculo
contratual que atribui direitos e deveres para as partes envolvidas num arranjo
aparentemente igualitário, destoante do perfil estamental da sociedade feudal, por
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exemplo. Mas é essa igualdade entre polos contratantes que abriga a coleta do mais-valor
e que dá a dinâmica da exploração capitalista.
A incidência da igualdade jurídica sobre a relação capital-trabalho traz efeitos sobre
o modo como esse antagonismo imanente se desenvolve, e Edelman faz uma imersão
nessas implicações. O teórico francês aponta, primeiramente, a contratualização das
greves: o confronto entre as classes é enquadrado como um confronto entre sujeitos
munidos de direitos, de sorte que os antagonistas guardam obrigações entre si mesmo
quando entram em choque. E mesmo o alcance e a intensidade desse choque são
submetidos a uma disciplina jurídica, a uma avaliação de licitude e ilicitude dos atos
praticados. Dessa maneira, “a greve é lícita na medida do contrato de trabalho; quando há
abuso contratual, há greve abusiva”, o que significa dizer que “a greve, quando se torna
extracontratual, torna-se, por consequência, ilícita ou ilegal, segundo sutilezas que não
nos interessam por ora” (EDELMAN, 2016, p. 38).
O intuito último dessa contratualização é a defesa da produção. O critério aferidor
da abusividade ou não da greve é o seu potencial lesivo à normalidade da produção
capitalista. Não sendo dado à classe burguesa, em condições de normalidade política,
simplesmente proibir as greves – ao menos não na época de maturidade do capitalismo –
, a política oficial para essas formas de luta proletária é a de contenção segundo regras
dedicadas a poupar a produção capitalista de maiores abalos. Nesse sentido, admite-se a
prática grevista, mas com a condição de que o empregador seja avisado previamente, que
um mínimo do processo produtivo seja mantido em funcionamento, que a posse do capital
sobre os meios de produção não seja afrontada e que as reivindicações do movimento
paredista não ultrapassem o âmbito sindical, quer dizer, a seara econômico-profissional
da categoria mobilizada.
Com tudo isso, a forma jurídica não só preserva a fluidez da produção, como
também pretende forçar os trabalhadores a adotarem uma estratégia de luta previsível e
admissível, tolerável para os padrões capitalistas. Merece destaque, dentre os requisitos
usuais para a licitude da greve, o perfil econômico-profissional que se espera das
reivindicações do movimento operário. Trata-se simplesmente de se reproduzir a
separação formal entre Estado (política) e sociedade civil (interesses econômicos) que
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caracteriza o capitalismo, além de se interditar a politização da luta operária e a formação
de mobilizações que superem a divisão do proletariado em categorias profissionais. Pois
é da superação desse fracionamento em interesses profissionais que depende a unificação
do proletariado na sua oposição inconciliável perante o capital. Somente assim a luta de
classes pode atingir um patamar superior, comportando uma disputa não mais em torno
do preço de venda da força de trabalho, e sim das relações de propriedade que
transformam a força de trabalho em mercadoria.
Pelo aspecto ideológico do direito estudado por Edelman, logo se percebe que a
forma jurídica conspira contra qualquer tentativa de se por em causa as relações de
produção capitalistas. Ela se empenha, ao revés, em naturalizar tais relações e dissimular
seu caráter de classe por meio de um discurso humanista muito difundido pelos juristas,
e que, apropriado pelos tribunais, fundamenta decisões repressivas contra os
trabalhadores em greve, exercendo uma disciplina férrea contra eles sempre que suas
mobilizações ameaçam sair da esfera sindical-profissional. Daí se entende a visão do
autor quanto à impossibilidade de uma ordem jurídica admitir, a título ilustrativo, as
greves políticas ou as ocupações dos locais de trabalho.
Tendo em vista todas essas circunstâncias, Edelman não exagera em nada ao
sintetizar suas reflexões sobre o direito de greve, tido como um triunfo absoluto da classe
operária pelos juristas progressistas e humanistas, da seguinte maneira: “O direito de
greve é um direito burguês. Entendamos: não digo que a greve é burguesa, o que seria um
absurdo, mas que o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer, muito
precisamente, que a greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições
são as mesmas que permitem a reprodução do capital” (EDELMAN, 2016, p. 48).
4. A atualidade d’ “A legalização da classe operária” perante o direito coletivo do
trabalho brasileiro
Como visto nas seções anteriores, “A legalização da classe operária” pode ser
considerada a principal obra de Edelman do ponto de vista teórico, uma vez que consuma
seu projeto crítico do direito e consubstancia o momento em que ele dá o passo decisivo
além da elaboração pachukaniana. Por isso, é com estranhamento que se constata que a
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obra permaneceu por quase quatro décadas inédita em língua portuguesa, sequer tendo
recebido traduções em outros idiomas latinos como espanhol ou italiano. Entretanto, sua
publicação no Brasil pela Editora Boitempo, em 2016, não poderia se dar em
oportunidade melhor: o país encontra-se em momento político ímpar para que o público
leitor possa verificar em sua própria vida cotidiana a insuperável atualidade da obra. Mais
do que isso, como o próprio Edelman, a despeito de ter abandonado o projeto d’ “A
legalização da classe operária”9, reconheceu no prefácio que elaborou a pedido dos
tradutores para a publicação no Brasil, a obra pode ser considerada quase profética, depois
de ter sido rejeitada à época de sua publicação:
Devo dizer que esta abordagem suscitou verdadeira revolta. Lembro-me que
quando expus minhas teses na Escola Normal Superior, onde lecionava na época, a
companheira de Althusser, antigo membro da resistência e cegetista ardorosa, interpelou-
me violentamente e me chamou de reacionário, de traidor e de mercenário da burguesia...
Louis Althusser manteve prudentemente o silêncio. Em resumo, este livro foi retirado de
cena, e apenas um jornal anarquista lhe fez apologia. Então, o que se pode dizer dele hoje?
Que ele era premonitório, mas que a realidade o ultrapassou? Sim e não. Sim, porque o
desmoronamento do comunismo se produziu com uma rapidez que me surpreendeu. (...).
Mas, sobretudo, parece-me que minha decodificação jurídica da realidade políticoeconômica conservou todo o seu valor (EDELMAN, 2016, pp. 9-10).
Com efeito, em 1978, no momento de sua publicação original, a obra talvez não
fizesse tanto sentido deste lado do Atlântico. Naquele instante, depois de uma década e
meia de uma violenta ditadura militar, em que o movimento sindical foi sufocado de todas
as formas possíveis pelo direito e pela força e substituído por uma atuação meramente
assistencial sem qualquer conteúdo de classe10, o operariado retomava suas lutas a partir
A esse respeito, é interessante notar que o original em francês trazia como subtítulo a indicação “Tomo
I”, sugerindo que haveria continuidade da obra em outros tomos, que, entretanto, jamais vieram a existir.
A leitura do prefácio à edição brasileira é bastante elucidativa das razões de tal abandono, já que a rejeição
à obra foi bastante frustrante ao autor, que a viu realizar-se anos mais tarde, como se pode verificar na
transcrição que segue.
10
“Os instrumentos já estavam dados pela própria CLT, que facultava ao Ministério do Trabalho o poder
de intervir nas entidades sindicais, destituindo diretorias eleitas e substituindo-as por interventores. (...). A
cassação dos direitos políticos e a instauração de inquéritos policiais militares contra os principais dirigentes
sindicais cassados criaram, para os que conseguiram escapar à prisão imediata, a alternativa da
clandestinidade e do exílio. (...). Após nova leva de intervenções, a ditadura, em inícios dos anos 1970,
9
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
de uma organização de base totalmente independente da organização sindical oficial:
“Mas nem só de adesismo vivia o movimento. Se as greves por categoria e a chegada de
grupos políticos de esquerda às direções sindicais eram impossíveis dado o alcance da
repressão, os ativistas mais combativos não desistiram do trabalho de organização dos
trabalhadores nas empresas” (MATTOS, 2009, p. 113).
O paciente e clandestino trabalho de base efetuado ao longo de toda a década de 70,
auge da repressão, começou a mostrar seus resultados na fábrica da Scania, em São
Bernardo do Campo, em 12 de maio de 1978: ali irrompia uma greve, organizada
inicialmente sem a presença do sindicato, que desencadearia uma onda de greves que
varreria a região do ABC paulista até 1980. Há inúmeros relatos disponíveis, entre os
quais o de Mattos, acima citado, o brilhante trabalho de Antunes (1988) e o estudo de
Abramo (1999). Em todos eles, com variados níveis de detalhamento, é possível perceber
inúmeras características do movimento operário de que já falava Lênin em seu clássico
“Que fazer?” (2010): o espontaneísmo, a vanguarda operária e sua relação com a base, a
consciência “tradeunionista” em contraposição à consciência social democrata, o ganho
organizativo da greve por vezes superando os ganhos materiais para os trabalhadores e o
ganho individual de consciência pelos operários a partir de seu engajamento na luta.
Tratava-se, em suma, de um período de “ilusão”, para dialogar com Edelman, que já
noticiava em 1978 terem sido as “ilusões perdidas”, especialmente a ilusão da existência
da classe operária (2016, p. 145).
A história do “novo sindicalismo”, nome que recebeu o movimento inaugurado em
1978, e de sua captura pelo Estado, consumada pela Constituição de 198811 e cada vez
mais aprofundada desde então, é a crônica da legalização da classe operária brasileira e
justifica o crescente ganho de interesse da obra de Edelman a partir de então.
tratou de valorizar um ‘novo’ modelo de atuação sindical, pautado pela ação exclusivamente assistencial e
afinado com as ideias de crescimento econômico como pré-requisito para uma posterior política
redistributiva” (MATTOS, 2009, pp. 101-111).
11
“A redemocratização do país, com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de
1989 encerra, em certo sentido, a ‘era’ do novo sindicalismo brasileiro. O fim do controle do Ministério do
Trabalho sobre os sindicatos, do ‘estatuto-padrão’ e da proibição de sindicalização do funcionalismo
público foram conquistas inscritas naquela carta. Porém, a manutenção da unicidade sindical, do monopólio
da representação, do imposto sindical e do poder normativo da Justiça do Trabalho indicou que o programa
do novo sindicalismo não se concretizou completamente na legislação, pois a estrutura oficial, com a
herança corporativista, continuou pesando” (MATTOS, 2009, p. 125).
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Com efeito, não se pode esquecer a inarredável contribuição de Althusser no sentido
de que, na sociedade capitalista, a dominação de classe é exercida por meio de uma
multiplicidade de aparelhos, repressivos e ideológicos, que conjuntamente formam o que
se convencionou chamar de Estado12. O que permite a Edelman apontar o sindicato como
um aparelho ideológico de Estado (2016, p. 123) no sentido althusseriano é uma estratégia
de controle que deve ser exercida de acordo com a configuração do aparelho repressivo
de Estado13. Com o enfraquecimento do aparato militar do Poder Executivo a partir da
redemocratização em 1988, desenhou-se a estrutura para que o controle sobre o aparato
sindical no direito brasileiro fosse exercido na modalidade de um controle judicial
(CORREGLIANO, 2013). As elaborações críticas de Edelman a decisões judiciais e
manifestações da doutrina francesa sobre diversos aspectos do direito sindical ajustam-se
perfeitamente ao processo observado no Brasil pós-1988.
Um primeiro ponto interessante diz respeito à questão da representação sindical. A
Constituição de 1988 fez-nos persistir convivendo com o modelo oriundo do Decreto n.
19.770, de 19 de março, de 1931, integrado, posteriormente, à CLT de 1943, que, embora
tivesse sido revogado em duas ocasiões, foi revigorado, sobretudo, por iniciativa dos
governos militares de Dutra e do golpe de 64, modelo este em que, de maneira atrelada à
unicidade sindical, é atribuída ao sindicato a exclusividade da representação de sua
categoria nos limites territoriais em que ele estiver constituído. A exclusividade de
representação resolve um problema antigo da organização do movimento operário na
forma sindical, e que Edelman ironicamente aborda na forma de uma pergunta: a quem
pertence a classe operária? (2016, p. 109). Sua resposta a esta questão, ao mesmo tempo
em que aponta a representação sindical como solução jurídica apresentada pelo Estado,
expõe seus limites e tece sua crítica: “A burguesia contaminou a organização operária,
intimou-a a transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo do poder
“No entanto, teremos de nos dar conta um dia de que a hegemonia burguesa somente triunfa por seu
recorte social, que lhe permite governar por aparelhos interpostos” (EDELMAN, 2016, p. 148).
13
Nesse contexto, é importante apontar que Edelman vê nos sindicatos instrumentos de colaboração entre
as classes e não de luta: “Dito de outro modo, quanto mais fora o sindicato está de sua base, mais ele é
descentrado das lutas, mais escapa da ‘espontaneidade’ operária e mais é eficaz. A institucionalização da
negociação supõe uma ‘máquina’ sindical ‘concentrada’ no mesmo modo da concentração estatal ou
capitalista. (...). Quando substituímos a luta de classes por uma negociação, conduzida por um ‘poder’
concretizado em aparelhos que funcionam com base na representação, na hierarquia, na disciplina, não há
dúvida de que estamos em plena colaboração de classe” (EDELMAN, 2016, p. 140).
12
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2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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burguês; intimou-a a ‘representar’ a classe operária segundo o esquema burguês da
representação; impôs-lhe uma língua, um direito, uma ideologia do comando da
hierarquia que fariam das massas um sujeito submisso, sensato e ‘responsável’. (...).
Entretanto, as coisas não são tão simples. Investidos do poder legal de representar a classe
trabalhadora, os sindicatos são excedidos por sua própria legalidade. Por quê?
Simplesmente porque a classe operária não é ‘representável’: não constitui um corpo –
como o eleitorado, por exemplo –, não constitui uma soberania abstrata – como a nação
ou o povo –, é uma classe que conduz a luta de classes. Sua existência de classe é
‘extralegal’, ‘inapreensível’. Ela não pertence a ‘ninguém’, senão a ela mesma, ou a sua
própria liberdade” (EDELMAN, 2016, pp. 111-112).
O problema da representação sindical no Brasil é especialmente sensível porque,
como já constatado em outra oportunidade (BATISTA, 2012, pp. 245-255) ocorre em um
duplo nível. Além de o sindicato, por si só, operar por meio de dirigentes eleitos, atraindo
o problema apontado por Edelman de buscar adequar ao esquema burguês de
representação a classe operária, que não é passível de tal submissão, o sistema de
exclusividade de representação organizado em torno do sindicato único por categoria
pressupõe a existência de uma configuração uniforme dos membros de tal categoria.
Embora esta questão não se coloque da mesma maneira na França, Edelman também
debruçou-se sobre ela ao investigar as restrições impostas pelo Poder Judiciário francês à
prática de atividades políticas no seio da empresa. Sua percepção elucida o que se
encontra por trás da exclusividade de representação da categoria: “Isso quer dizer que, do
ponto de vista da empresa, a comunidade de trabalhadores é uma comunidade ‘social’,
cuja homogeneidade encontraria seu sentido no humano. Isso quer dizer também que a
empresa capitalista aparece como o único lugar onde os homens são ligados pelo humano,
o único lugar onde não se opera nenhuma discriminação, já que o trabalho torna os
homens iguais; portanto, o único lugar onde eles realizam sua liberdade de trabalhador”
(EDELMAN, 2016, p. 96).
É claro que há um sentido para que a crítica do autor francês, debruçando-se a tema
diverso, caiba tão perfeitamente à exclusividade de representação do direito sindical
brasileiro. Em nenhum dos casos, não se está diante de um ato de vontade arbitrário do
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
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Estado, mas de uma disposição essencial da própria função do direito na ordem
capitalista, em seu duplo viés de mascarar a exploração do trabalho e assegurar a
continuidade da reprodução. Revelando o pano de fundo desta elaboração, Edelman
profere algumas de suas mais fortes palavras: “Apenas a ordem jurídica coloca,
concretamente, o homem no lugar das classes, o ‘trabalho’ no lugar da força de trabalho,
o salário no lugar do mais-valor; apenas a ordem jurídica considera a exploração do
homem pelo homem o produto de um livre contrato, o exercício da liberdade; e somente
ela considera o Estado de classe a expressão da ‘vontade geral’” (EDELMAN, 2016, p.
87).
Eis a questão da representação sindical descortinada. O assim chamado “interesse
da categoria”, tido como dado e, por isso, considerado unitário, é tratado juridicamente
na mesma chave rousseauniana de uma vontade geral da nação que moveria a atuação do
Estado. Se, entretanto, seria cabível imaginar que a política seja a forma adequada de
encontrar a vontade geral em meio à multiplicidade de vontades no Estado como pensado
por Rousseau, o mesmo não se dá em relação à categoria profissional – colocando-se a
questão nestes termos apenas para dialogar com o aspecto normativo do direito brasileiro,
já que Edelman entende que o raciocínio estende-se à classe operária de forma geral – em
que a política não teria espaço, reeditando-se na organização sindical a separação entre
Estado e sociedade civil na forma de uma oposição entre o âmbito profissional e o âmbito
político: “Os juristas forjaram uma arma extremamente eficaz: o trabalho, dizem, é
profissional. À primeira vista, o termo parece bem anódino, e é antes uma tautologia. Não
se deixem enganar: ele exprime, de fato e apesar das aparências, a própria estrutura do
poder político burguês. Com efeito, quando dizemos que o trabalho é profissional,
exprimimos a simples ideia de que ele se manifesta numa relação estritamente privada. E
exprimimos também essa outra ideia de que, por esse motivo, ele não tem nada a ver com
a política. Aqui, profissional se opõe ao político. O resultado é que a noção de trabalho
está ela própria sujeita a uma distinção tão velha quanto a burguesia, a uma distinção da
constituição do poder político burguês, a saber, a distinção sociedade civil/Estado”
(EDELMAN, 2016, p. 48).
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2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
O principal efeito dessa separação entre âmbito profissional – em que estão
colocadas as relações de classe entre capital e trabalho – e âmbito político – em que não
há coletivos, mas cidadãos operando enquanto indivíduos perante o Estado – é o
mascaramento do caráter de classe do Estado, que, no modo de produção capitalista,
assume a aparência de um terceiro imparcial que media a relação entre as classes
(MASCARO, 2013). Assim, o capital pode, ao mesmo tempo em que exerce sua
dominação por meio do conjunto de aparelhos de Estado, colocar-se no nível das
aparências como mais um ator da disputa de interesses que ali se trava, exclusivamente
por meio dos indivíduos que o personificam, os capitalistas. Na fina ironia que caracteriza
a obra de Edelman, lê-se uma formulação poderosa desta questão: “Lindo, não? O capital
não é ‘responsável’ por sua política, não é ‘responsável’ por ‘seu’ Estado! De um lado, a
extorsão de mais-valor, de outro, o Estado, e se pode ver, concretamente, a eficácia da
separação sociedade civil/Estado” (EDELMAN, 2016, p. 52).
Ou, de forma ainda mais sintética: “Em nome do direito, os trabalhadores não
podem vincular sua luta contra o capital a sua luta contra o Estado” (EDELMAN, 2016,
p. 57).
A separação, por assim dizer, “filosófica” entre o profissional e o político
desemboca, do ponto de vista prático, em trabalho que, na França como no Brasil, foi
elaborado pela reiteração de decisões judiciais tratando dos limites de conteúdo a animar
o exercício do direito de greve. Tais limites passam por diversos aspectos. No Brasil, tem
ganhado proeminência em tempos recentes a questão do atendimento às necessidade
inadiáveis da comunidade em caso de greve em serviços essenciais, nos termos definidos
pelos artigos 9º, § 1º, da Constituição, e 10 e 11 da Lei nº 7.783/89, tema este abordado
apenas de passagem por Edelman, quando registra que o prejuízo inerentemente causado
pela greve é um dos pontos a ser levado em conta na discussão de sua contratualização
promovida pelo direito. Edelman aponta, a esse respeito, a moralização inerente à
imposição de limites materiais ao exercício da greve14.
Esta moralização é pressuposta ao conceito do direito brasileiro de necessidade inadiável da comunidade,
uma repaginação sindical do antigo brocardo romano alterum non laedere. Edelman também percebeu essa
relação entre os modelos de comportamento pressupostos no direito de forma bastante perspicaz: “A luta
de classes, de acordo, mas ‘com lealdade’. Como se a luta de classes fosse leal! E o que é a ‘lealdade’? A
ideologia contratual, a boa-fé, o respeito das convenções etc. É por isso que o operário não deve aproveitar14
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2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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Uma das principais preocupações de Edelman no que tange aos limites do direito
de greve é a possibilidade do uso deste meio de ação sindical em defesa de interesses
políticos. O problema também se coloca aqui no Brasil, tendo sido inclusive objeto de
recente pesquisa de pós-graduação (BABOIN, 2013) que aponta por aqui fenômeno
semelhante ao descrito por Edelman: a construção jurisprudencial de um conceito de
direito de greve, moldado na forja da oposição entre profissional e político, que exclui
por si só qualquer pauta de reivindicações que extrapole a relação imediata entre capital
e trabalho e o conteúdo do contrato de trabalho peculiar aos grevistas. Confira-se:
No interior mesmo do direito de greve, o trabalho dos tribunais traçou as linhas
demarcatórias que lhe permitem tê-lo bem na mão. Releia o leitor o acórdão da Corte de
Cassação: o direito de greve é uma “modalidade de defesa dos interesses profissionais”.
Está tudo aí. Isso permitirá distinguir as greves lícitas – entenda-se aquelas que
respondem à defesa dos interesses profissionais, isto é, que têm em vista apenas uma
melhoria das cláusulas do contrato de trabalho (salário, condições de trabalho etc.) – das
greves ilícitas ou abusivas – entenda-se aquelas que excedem o bom funcionamento do
contrato de trabalho, as greves políticas, ditas “políticas” (EDELMAN, 2016, p. 42-43).
A consequência jurídica de uma greve ser tida como política e, portanto, ilícita ou
abusiva, é bastante simples: o peso da força do Estado se abate contra o movimento
operário. O aparelho repressivo será movimentado e recolocará tudo em seu devido lugar,
como convém ao direito, de modo geral. Por isso, interessam mais de perto a Edelman, e
também às reflexões deste texto, as consequências teóricas do eventual aspecto político
de uma greve. Como se verá, este debate recolocará a questão com que foi aberta esta
seção, demonstrando o limite, bastante estreito, das possibilidades de legalização da
classe operária.
“E a greve política? Muito simples. Uma vez que a greve é usada para fins de poder,
ela se torna política. Em poucas palavras, a classe operária ‘não tem o direito’ de usar seu
poder fora dos limites da legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder
se de sua posição na produção para trapacear patrão. Não. Ele deve comportar-se como um parceiro
responsável, ‘fair play’. (...). O ‘grevista normal’ é a tradução ‘ousada’ do ‘bom pai de família’, e eis aí a
moral burguesa transferida para o direito de greve!” (EDELMAN, 2016, p. 44). Como nota de curiosidade,
não é incomum encontrar em manuais didáticos destinados ao ensino do direito sindical a informação de
que os sindicatos carregariam uma “função ética” (BRITO FILHO, 2009, p. 140).
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de classe da burguesia. Como podemos ver, não se trata mais, de modo algum de um
conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um lado, o direito, inclusive o direito
de greve; de outro, o ‘fato’ das massas, isto é, a greve; de um lado, um poder legal; de
outro, um poder bruto, elementar, inorganizado” (EDELMAN, 2016, p. 56).
A greve política, portanto, devolve à classe operária seu caráter “de fato”, seu
aspecto de “massa”, sua desorganização. Retira-a do direito, em que foi mutilada, para
colocá-la de volta a seu lugar de origem: a luta de classes. Outro fenômeno que voltou a
ocupar a pauta de preocupações do movimento de trabalhadores, recentemente apresenta
um desafio ainda maior ao direito: a questão das greves conduzidas espontaneamente a
partir da base, sem a participação dos sindicatos, que Edelman apelida de greves
selvagens (2016, p. 116). Sua preocupação com este tema assume, também, um tom
premonitório, antecipando o problema em que se enredam hoje os tribunais brasileiros.
Em termos althusserianos: como interpelar o grevista não organizado em sindicato como
sujeito? Em termos jurídicos: quem representa a coletividade de trabalhadores em greve?
A tática tem animado o movimento de trabalhadores brasileiro desde o bem sucedido
movimento grevista dos trabalhadores de limpeza urbana do Rio de Janeiro, em março de
2014, em razão da catatonia que atingiu os operadores do direito que, atônitos, ainda não
sabem como reagir ao fenômeno.
Muito ao contrário de se animar com as greves selvagens, Edelman identifica que
o descolamento entre base e representação sindical é o que permite que a classe burguesa
atue para dividir a classe operária, incentivando parte dos trabalhadores a não aderir ao
movimento e, com isso, enfraquecendo-o. Sua sentença, embora controversa, é
categórica: “Ora, uma representação sindical de todos os grevistas derrotaria essa tática”
(EDELMAN, 2016, p. 117).
5. A recuperação das ilusões perdidas
Edelman encerra sua obra fazendo a ponte para o jamais desenvolvido tratamento
da legalização da classe operária sob a perspectiva do Estado - que constaria de volume
posterior da obra que, como vimos, nunca veio à lume. Ele atribui à conclusão o título de
“ilusões perdidas”. Parafraseando-o, este texto será encerrado com outra leitura sobre a
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
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atualidade de sua obra, que buscará transbordar suas poucas indicações sobre a direção
do tratamento da questão do Estado para refletir um fenômeno recente e bastante relevante
no Brasil: a multiplicação de movimentos sociais reivindicativos de direitos.
Antes de tudo, é importante observar que os movimentos sociais reivindicativos de
direitos vêem recair sobre si várias das estratégias de legalização discutidas por Edelman
em seu texto. Para ficar em apenas dois exemplos, pode-se observar como o Movimento
Passe Livre, embora difuso e horizontal, é interpelado pelo Estado a tornar-se sujeito de
direito por meio da submissão à estapafúrdia obrigatoriedade de informar previamente à
polícia o trajeto de suas manifestações, sujeitando-se à severa repressão policial em caso
de recusa ou de alteração imprevista do trajeto; ou a recente declaração do Governador
do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que buscava desqualificar o movimento de
ocupação de escolas por estudantes secundaristas com a observação de que seu
movimento apresentava “nítido cunho político”. Assim, bastaria aplicar ipsis litteris as
ideias da obra a tais realidades, para constatar que tudo faz parte de uma mesma luta de
classes, empreendida com as mesmas armas pelo lado da burguesia e do Estado. É
possível, entretanto, ir além da pura e simples justaposição das reflexões sobre os
sindicatos aos movimentos sociais reivindicativos.
É que está cada vez mais claro que tais movimentos recuperaram as duas ilusões
mencionadas por Edelman: a ilusão da existência da classe operária – em tempos de
discursos “pós-modernos” que apontam o fim da luta de classes, os integrantes de
movimentos sociais que constituem uma das últimas trincheiras de resistência
capitularam apenas parcialmente ao se crerem a expressão contemporânea do que é a
classe trabalhadora – e a ilusão jurídica, “a crença obstinada de que a liberdade se
transforma em direitos” (EDELMAN, 2016, p. 149). É essa recuperação das ilusões que
coloca duas questões, diferentes mas complementares, que se relacionam diretamente
com a conclusão de Edelman e demonstram a manutenção de sua importância: as tais
ilusões mantêm seu caráter ilusório mesmo após serem contemporaneamente retomadas?
É negativo que tais ilusões sejam retomadas?
A resposta, a partir de Edelman, parece ser afirmativa para ambas as questões.
ORIONE, Marcus; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; BATISTA, Flávio Roberto; BIONDI, Pablo. Uma
porta de entrada para a crítica marxista do direito: “A legalização da classe operária”. Panóptica, vol. 11, n.
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Quanto à primeira, basta retomar seu já mencionado prefácio, em que sustenta que
“minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o seu
valor” (EDELMAN, 2016, p. 10). Seria possível acrescentar que esta decodificação não
somente conservou seu valor como o conservará enquanto a humanidade viver sob a égide
do modo de produção capitalista. Isso significa que a ilusão da existência da classe
operária não perde seu caráter ilusório nesta retomada, antes o aprofunda. A pulverização
dos movimentos sociais em pautas específicas, normalmente orientadas em torno do
acesso a bens como saúde, educação, moradia, transporte etc., afasta ainda mais a
possibilidade de existência concreta da classe operária – que jamais operará como classe
enquanto estiver organizada em torno de demandas tão restritas – e sua aparência de
existência, consubstanciada nesta já consagrada expressão, sempre utilizada no plural,
“movimentos sociais”. Ao lado da ilusão da existência de uma “classe trabalhadora” onde
operar a legalidade burguesa, é possível antever a ilusão da existência de um “movimento
negro” ou de “um movimento feminista” e assim por diante. Aliás, é difícil constatar
mesmo, se a legalidade burguesa continuar a reger os fatos, a noção do que seja negro ou
do que seja gênero – na medida em que a raça e o gênero, por exemplo, têm a sua
conformação indicada por este sistema legal. De certa forma e de maneira premonitória,
este fato se emerge, através do espelho, da frase que encerra “A legalização da classe
operária” de Bernard Edelman.
A segunda questão, especialmente no que toca à retomada da ilusão jurídica já havia
sido objeto de reflexão crítica de Edelman: “Este é o sonho da burguesia: um capitalismo
garantido de uma vez por todas pelo direito. Este é também o sonho de um certo
‘socialismo’: um socialismo de uma vez por todas garantido pelo direito” (EDELMAN,
2016, p. 61)15. A retomada da ilusão jurídica parece fazer bastante sentido num momento
histórico em que uma terceira ilusão, não abordada por Edelman, vem sendo perdida: a
ilusão da transformação social revolucionária.
Duas advertências de Edelman parecem ter sido escritas para serem lidas pelos
movimentos sociais de quatro décadas mais tarde. De um lado, sua crítica pontual e
Muito ilustrativo de tal situação é o mote utilizado recentemente por uma manifestação de rua que
aglutinou diversos movimentos sociais: “Contra a direita, por mais direitos”.
15
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poderosa, derivada de Lênin, à reivindicação de direitos como estratégia da classe
operária: “Hegemonia burguesa, isso sim, pois, uma vez que a ‘liberdade’ se transforma
em direitos, esses direitos são reapropriados no sistema dos espaços” (EDELMAN, 2016,
p. 150).
Sua segunda advertência é bem mais profunda. Antes mesmo que ela fosse
cogitada, coloca em xeque a recuperação das ilusões perdidas como horizonte estratégico
da atuação da classe operária na luta de classes e aponta o caráter revolucionário da perda
de tais ilusões. Sua colocação como palavras finais deste texto deve ter muito menos o
sentido de uma citação e muito mais o sentido de sua nova enunciação com a mesma
força, mas em um outro momento político e jurídico. São também essas palavras que
parecem demonstrar que, ao contrário do que possa sugerir uma leitura apressada, seu
prefácio à tradução não representa uma negação de suas convicções, mas uma sólida
manifestação de sua revolucionária desilusão:
O fim da grande mitologia política se anuncia no horizonte. A “esquerda” está
morta, seguindo de perto o “socialismo”. Nossa herança foi dilapidada. As velhas
aspirações políticas estão morrendo. Quem lamentaria? As doenças do marxismo
devoraram a si mesmas, e o marxismo hoje, e talvez pela primeira vez, pode ser liberado
de seu triunfalismo. E o “impossível” revolucionário, o impossível de todas as revoluções,
pode começar a nascer de nossas ilusões perdidas (EDELMAN, 2016, p. 147).
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2, pp. 371-403, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo
Shirley Silveira Andrade1
Recebido em 15.5.2016
Aprovado em 1.6.2016
Resumo: Este trabalho parte da problemática Abstract: This study of the issue of the
da relação entre o modo de produção e a
utilização
do
Trabalho
Escravo
Contemporâneo (TEC). Ele surgiu do debate
realizado na tese de doutorado da autora, cuja
pesquisa de campo fora realizada no estado do
Tocantins. Surgiu a discussão se há base
teórica para sustentar que o TEC é compatível
com o modo de produção capitalista, já que
esse se sustenta através do trabalho livre. Para
estudo do objeto realizamos o método do
materialismo histórico e dialético. Fizemos
uma pesquisa bibliográfica, como analisamos
dados quantitativos fornecidos pela Comissão
Pastoral da Terra no Tocantins as respeito do
trabalho escravo na região, pois foi nosso foco
da pesquisa de campo na tese de doutorado.
Ao longo do trabalho, depois de analisarmos o
trabalhado escravo em diversos modos de
produção, concluímos que ele sempre foi
fundamental para a aumulação da propriedade
privada e no sistema capitalista é um dos
instrumentos do acúmulo do capital.
Palavras-chave:
Trabalho
escravo
contemporâneo; Capitalismo; Propriedade
privada.
relationship between the mode of production
and the use of Slave Labor Contemporary
(SLC). He emerged from the debate on the
doctoral thesis of the author, whose field
research carried out in the state of Tocantins.
Came the discussion is no theoretical basis to
support the SLC is compatible with the
capitalist mode of production, as this is
sustained by free labor. To object of the study
performed the method of dialectical and
historical materialism. We did a literature
search, we analyze quantitative data provided
by the Pastoral Land Commission in the
Tocantins about slave labor in the region,
because it was our focus from field research in
the doctoral thesis. Throughout the work, after
reviewing the slave worked in various
production methods, we conclude that he has
always been fundamental to acumulation of
private property and the capitalist system is
one of capital accumulation instruments.
Keywords: Contemporary slave labor;
Capitalism; Private property.
1. Introdução
Este artigo surgiu como parte das reflexões realizadas na tese de doutorado da
autora pela Universidade de Brasilia. O objeto aqui analisado faz parte da preocupação
dos estudos com a formação da consciência dos trabalhadores rurais escravizados. Na
Doutora pela Universidade de Brasília; Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe
(UFSE). E-mail: [email protected]
1
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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tese, investigamos as razões que influenciam o reconhecimento da condição de
escravizados ou a sua negação. Mas ao nos aprofundarmos com nosso objeto da tese,
observamos a necessidade da análise da esturtura em que esse tipo de trabalho se realiza.
Isso foi muito importante para compreendermos as razões da utilização do trabalho
escravo em nossos dias. Debate relevante para compreender as relações de trabalho e a
organização econômica de uma sociedade.
Na Ideologia Alemã (MARX, ENGELS, 2001), já há a categorização dos tipos de
propriedade e sua relação com a divisão do trabalho. Com a Propriedade Tribal, a
produção e a estrutura social se limitavam a uma extensão da família. Depois, a
Propriedade Comunal Antiga, resultante da união de várias tribos, formou a cidade. Já
havia a propriedade privada, e as relações de produção ocorriam através de cidadãos livres
e escravos.
Na
Feudal, a produção da vida material estava condicionada à agricultura
rudimentar e ao artesanato. No campo, as relações de produção se davam entre o servo,
preso à propriedade fundiária e ao senhor; e, nas cidades, entre mestres, oficiais,
aprendizes e plebe de jornaleiros, pouca foi a divisão do trabalho. Na Propriedade
Burguesa, o aumento da divisão do trabalho veio com a criação de um intermediador da
produção: o comerciante. Isso proporcionou um alargamento comercial que ultrapassou
os limites locais. Assim, percebemos uma relação íntima entre a maneira em que uma
sociedade se organiza economicamente e como se dá a divisão social do trabalho. No
momento em que nos encontramos, em uma fase de domínio do capital nos perguntamos
da necessidade ainda da utilização da mão de obra escrava nos moldes contemporâneos.
Esse é o foco de análise desse trabalho: pensar essa relação entre o modo de produção
capitalista e a utilização do Trabalho escravo Contemporâneo (TEC) na área rural.
Precisamos esclarecer o que estamos chamando de Trabalho Escravo
Contemporâneo (TEC) antes de prosseguirmos na análise.Ricardo Rezende (Figueira,
2004, p. 35) defende que como a escravidão de hoje não é exatamente a modalidade da
escravidão da antiguidade, ela vem acrescida de vários termos, como: semi, branca,
contemporânea, por dívida ou, como prevê o código penal brasileiro, condição análoga à
de escravo. Ele também mostra como nas entidades governamentais o termo escravidão
e trabalho escravo são utilizados pelos setores do governo. O Ministério do Trabalho e
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Emprego (MTE) criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). Em 2003 foi
criado, pelo então presidente Lula, o Programa Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo.
Pois bem, Esterci (2008) demonstra que a categoria escravidão se tornou política,
fazendo parte de um campo de lutas que é utilizada para designar toda sorte de trabalho
não-livre, da exacerbação da exploração e da desigualdade entre os homens. Sob a
designação de escravidão hoje se vê maus tratos, péssimas condições de trabalho, má
remuneração, alimentação precária, transporte não condizentes com leis e costumes. Ela
passou a designar situações ultrajantes de desumanização. É uma espécie de metáfora do
inaceitável que afeta, de forma ampla, os segmentos até os que não estão envolvidos na
luta por Direitos (ESTERCI, 2008, p. 31). Portanto, TEC é um trabalho em condições
desumanas.
A previsão legislativa também vai nesse sentido, apesar dos debates conceituais. A
partir de 2003, a nova redação do artigo 1492, do Código Penal Brasileiro (CPB), fechou
o tipo penal e passou a exigir quatro situações principais em que se caracteriza o delito:
trabalhos forçados; a jornada exaustiva; restrição, por qualquer meio, da locomoção da
vítima em razão de dívida contraída pelo empregado; e condições degradantes de
trabalho. Além das formas equiparadas: retenção no local de trabalho, por cerceamento
do uso de qualquer meio de transporte, de manutenção de vigilância ostensiva ou retenção
de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador.
TEC é um trabalho realizado tanto de forma obrigatória como denigrente ao ser
humano. É um trabalho humilhante, onde o trabalhador é tratado igual ou pior que um
animal. Há casos de trabalhadores que moram nos currais junto com os bois, ou ainda são
Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois
a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
2
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impelidos a comer carnes podres em fazendas do Tocantins, nossa área de estudo. Pois
bem, nosso foco nesse artigo é pensar a utilização desse tipo de trabalho no modo de
produção capitalista.
Escolhemos o materialismo histórico e dialético como método de análise, devido a
avaliação entre a utilização do TEC e a organização do modelo econômico introduzido
no estado brasileiro. Nossa pesquisa de campo foi em Tocantins, por isso, ao final,
aparecem dados dessa unidade federativa.
2. O Trabalho escravo a serviço da propriedade privada
Há aproximadamente 40.000 anos surgiram os primeiros grupos de seres humanos.
A comunidade primitiva era basicamente nômade, com meios de trabalho rudimentares,
baixa produtividade, e tinha dificuldades de alimentar o grupo através de caça, pesca e
vegetais (NETTO, 2010). Com a domesticação de animais e o desenvolvimento da
agricultura surgiram os elementos para sua dissolução. A maior intervenção na natureza
por parte do ser humano impeliu-o pela busca do aperfeiçoamento dos meios de produção.
Com isso, a produção começou a se configurar como acima das necessidades imediatas
das comunidades, gerando o excedente e criando condições para a exploração dos seres
humanos.
Essas ideias são bem desenvolvidas em A origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado, Engels (1985) esclarece que referente obra, escrita após a morte de
Marx, é um testamento deste autor, pois se desdobrou das anotações feitas por ele a
respeito do livro de Morgan - A sociedade antiga - que discute a organização dos índios
iroqueses norte-americanos. A importância dos escritos de Morgan, para os dois autores,
é de ter descoberto e reestabelecido nos seus traços essenciais esse fundamento préhistórico da nossa escrita, o de ter encontrado nas uniões gentílicas dos índios norte-
americanos a chave para decifrar importantíssimos enigmas a respeito de nós mesmos.
Essas reflexões são importantes para compreendermos que o trabalho escravo surgiu para
cumprir uma função. Ele tem forte relação com a propriedade privada. Não havia
fundamento da permanência do escravo entre as famílias sem o objetivo de produzir o
excedente.
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A partir da divisão de Morgan (ENGELS, 1985), a pré-história é formada por três
momentos. Primeiramente, pelo Estado Selvagem, onde predomina a apropriação de
produtos da natureza prontos para serem utilizados, tais como: os frutos, nozes e raízes,
que serviam de alimento. Posteriormente, com a introdução do fogo, os alimentos são
cozidos em buracos no chão. Esta maior iniciativa do ser humano veio sendo
desenvolvida com a invenção do arco e flecha, que vão possibilitar a prática regular da
caça. Segundo, o Estado da Barbárie, onde aparecem atividades mais criativas, como a
criação de gado e agricultura. Estas práticas tornaram possível o sedentarismo. Por fim, a
civilização. Nesse momento, tivemos a fundição do ferro, que proporcionou a criação de
vários instrumentos para serem utilizados na agricultura e na criação de animais.
Encontramos a presença do arado de ferro, do machado e da pá, que possibilitou lavrar a
terra em larga escala. A partir disso, houve a transformação dos bosques em pastagens e
terras cultiváveis, com a fixação de centenas de pessoas em uma mesma região, dando
condições do surgimento das gens. A gens é “um grupo que se constitui de uma
descendência comum, formando uma comunidade particular” (ENGELS, 1985, p. 155).
Portanto, começamos a nos reunir a partir da família, tendo por base a consanguinidade.
Até esse momento, a base da organização era a propriedade coletiva, apesar de cada gen
já delimitar sua propriedade.
O surgimento do Estado vem junto com o desmoronamento da comunidade
gentílica. Os atenienses já estavam iniciando o período de civilização, diferente dos
iroqueses que permaneciam no período bárbaro, mas muitas das instituições gentílicas
ainda existiam em sua organização. Neste período, a produção se realizava dentro de
limites, mas aquilo que se produzia era consumido pelos donos. O comércio individual e
a transformação dos produtos em mercadorias deram origem à propriedade privada das
terras e dos rebanhos. Assim, os produtores deixaram de consumir diretamente seus
produtos, desfazendo-se deles. O objetivo da produção não era mais a satisfação das
necessidades, mas a comercialização, produção para aquisição da propriedade privada.
Foram essas condições que direcionaram para a utilização da mão de obra escrava.
A exploração humana, nesse patamar, trazia vantagens no acúmulo do excedente, porque
até então os escravos presos eram liberados. A utilização dessas relações trabalhistas
ocorre substancialmente entre os atenienses. Os índios iroqueses somente chegaram à fase
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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da civilização quando entraram em contato com os europeus, até então eles viviam na
barbárie ou na fase selvagem.
Como consequência da compra e venda de terras, e da crescente divisão do
trabalho entre agricultura e ofícios manuais, comércio e navegação, logo se confundiram
os membros das gens. Fixaram-se residentes que não tinham relação consanguínea com
a gens das tribos. Isso causou um desequilíbrio na organização gentílica, ocasionando
mudanças. A principal delas foi a criação de uma administração central. Houve a divisão
do povo em três classes: os eupátridas ou nobres; os geomoros ou agricultores; e os
demiurgos ou artesãos. Aos nobres foi garantida a exclusividade das funções públicas.
Essa divisão teve uma importância grande para a consolidação de posições privilegiadas.
“[...] começa a se formar, fora das suas gens, uma classe privilegiada especial; isso
demonstra que a divisão de trabalho entre camponeses e artesãos tinha se tornado
suficientemente forte para que se disputasse a primazia em importância social à antiga
divisão em gens e tribos. É a proclamação nítida do inconciliável antagonismo entre a
sociedade gentílica e o Estado, o primeiro sintoma da formação do Estado consiste na
destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e
não privilegiados, e dividindo esta última em duas classes, segundo os seus ofícios e
opondo-os uma à outra” (ENGELS, 1985, p. 157).
Diante dessa realidade, a população foi dividida quanto às suas ocupações e aos
seus interesses. Cresceu muito o número de escravos. As gens desconheciam escravos e,
portanto, não sabiam manter, sob o seu jugo, uma massa de pessoas não livres. Até por
que não tinham nenhuma serventia que ficassem aprisionados. O comércio atraiu muitos
estrangeiros com objetivos lucrativos. Todas essas mudanças não comportavam a
organização gentílica.
Como organizar a participação desses estrangeiros se a
comunidade gentílica era baseada no parentesco? Havia a necessidade dos escravos para
corresponder a todos esses interesses. “O trabalho escravo aparece quando as tarefas
começam a ser cada vez mais diferenciadas e torna-se possível acumular excedentes”
(PÈTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 61).
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
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2.1. O Trabalho Escravo no mundo grego
Para compreendermos essa forma de organização social, predominante na
antiguidade ocidental, é preciso olhar para a pólis grega. A Antiguidade greco-romana
centralizou-se nas cidades. Foi de alto nível a qualidade de produção que se chegou à
filosofia, ciência, história, à economia, ao direito, voto, debate e etc. Mas o contraponto
disso é que quem sustentava toda a riqueza material e intelectual da cidade era a produção
dos escravos no campo. A agricultura representou, através de sua história, o setor
predominante de produção, fornecendo as principais fortunas das cidades. Por isso a
necessidade de transporte para áreas tão distantes. A produção feita no campo precisava
ser transportada para as cidades. A Antiguidade greco-romana era predominantemente
costeira, o transporte marítimo era o único meio viável para a troca de mercadorias, daí
termos uma localização bem exata dessas trocas: o mar mediterrâneo proporcionou esse
encontro entre campo e cidade, articulando a velocidade do transporte com a proteção
terrestre dos ventos. Mas essa riqueza foi possível devido ao fato de que o escravo se
tornou mercadoria.
O modo de produção escravista foi invenção do mundo greco-romano. Como
vimos, o trabalho escravo veio a existir com a dissolução das comunidades gentílicas,
mas isso ainda de forma excepcional. O que os gregos fizeram foi torná-lo instrumento
de acumulação de excedente de forma generalizada. É importante salientarmos que
Anderson (2007, p. 22) chama a atenção de que a escravidão não era vigorante em toda a
Antiguidade, na verdade, ela se concentrava em algumas cidades gregas, e depois foi
perpetrada por Roma. O mundo antigo nunca foi ubiquamente marcado pelas relações
escravistas, mas nas suas épocas clássicas, na Grécia, séculos V e VI A.C., e em Roma,
II A.C. a II D.C., esse tipo de trabalho foi maciço e generalizado. O trabalho escravo era
utilizado pelo Estado na manufatura, na agricultura, na indústria e nos serviços
domésticos.
A questão é a relação da importância dessa mão de obra para a produção da riqueza.
No mundo antigo, ela era a base da produção da riqueza material na Grécia e em Roma.
As monarquias pré-helênicas não se baseavam no trabalho escravo e seus sistemas
jurídicos não tinham nitidez sobre a regulação da propriedade de bens móveis. Foram
algumas cidades-estados gregas que tornaram a escravidão absoluta na forma e dominante
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
na extensão. Transformaram-na de um sistema auxiliar para um modo sistemático de
produção.
Foi essa maneira de produzir que garantiu a própria democracia grega. Através de
uma classe sem liberdade a outra pode exercer sua cidadania. O trabalho escravo
incorporava dois atributos contraditórios: por um lado, simbolizava a degradação do
trabalho, a conversão de seres humanos em meios inertes de produção, já que eles eram
propriedade do senhor. Na teoria romana, o escravo da agricultura estaria um grau acima
da vaca. Por outro lado, ele sustentava a riqueza e o conforto da classe urbana através da
produção do amplo excedente. O trabalho agrário sustentava as cidades.
A ruptura das comunidades gentílicas ocorreu por volta de 650 a 510 A.C. e junto
com ela adveio a dominação dos tiranos. Eram proprietários de terra mais novos e riqueza
mais recente. Foi através da tirania que se passou à pólis como centro da produção
intelectual. Entre os séculos VII e VI A.C. houve uma intensificação na cultura de vinho
e de oliveiras, proporcionando à Grécia um período importante de acumulação através de
intercâmbios comerciais na zona do mediterrâneo (ANDERSON, 2007, p. 30-31). Isso
fez surgir uma classe de proprietários agrários recentemente enriquecidos. Esses novos
ricos passaram a ter prestígio na cidade, com vitórias a partir de manipulação dos
interesses das classes populares. As tiranias foram fases intermediárias que preparam a
vinda da pólis helênica.
Para consolidar-se, a Grécia Antiga trouxe o trabalho escravo como bem móvel em
massa. Comunidades camponesas puderam congregar-se em cidades, mas elas não
poderiam ser uma civilização citadina sem a produção do superávit através das relações
escravistas. A escravidão foi fundamental para a civilização grega no sentido de que ela
tornou possível o ócio das classes sociais em Atenas e Esparta. Se o trabalho livre não
tivesse sido abolido isso teria desviado as atividades intelectuais de Grécia para o trabalho
dos escravos. Sua utilização tornou-se generalizada a ponto de os mais humildes artesãos
ou pequenos agricultores poderem possuí-los.
Foi a utilização desses trabalhadores escravos na mineração, na agricultura e na
manufatura que permitiu o florescer da civilização grega. Através da transformação do
escravo em mercadoria é que a pólis grega foi possível. Atenas foi uma das cidades que
se destacou. Primeiramente, por possuir ricas minas de prata, lavradas por um grande
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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número de escravos, o que permitiu o financiamento da construção da frota ateniense.
Ainda ela tornou possível a utilização de moeda. A superioridade monetária e naval deu
margem ao imperialismo ateniense, promovendo a democracia. Tudo isso através do
trabalho escravo.
A ascensão do poder ateniense no mar Egeu criou uma ordem política cuja função
real era a de coordenar e explorar costas e ilhas já urbanizadas através de um sistema de
tributo monetário cobrado para a manutenção de uma marinha permanente, instrumento
principal do domínio ateniense. Em 454, o tesouro central da Liga de Delos, criado
originalmente para quem combateu a Pérsia, foi transferido para Atenas. A partir daí
várias construções são realizadas na cidade, entre elas destaca-se o Parthenon
(ANDERSON, 2007, p. 41).
“Roma levou o escravo como base central de sua economia, mas de uma forma mais
ampla que a grega. A ascensão de Roma marcou o ciclo de expansão imperial urbana, que
reassentava não somente um deslocamento geográfico para a Itália, mas um
desenvolvimento do modo de produção escravista. A grande inovação romana foi a
introdução do latifúndio escravo em larga escala. A agricultura grega empregava o
escravo de forma generalizada, mas confinada a pequenas áreas, com uma população
escassa, pois a civilização grega sempre permaneceu costeira e insular, além de as
propriedades cultivadas serem entre 12 e 24 hectares” (ANDERSON, 2007, p. 57).
Foi a República Romana que primeiro uniu a grande propriedade agrícola com o
trabalho escravo de grupos no interior em maior escala. Isso ocorreu devido a alguns
fatores: primeiramente, a expansão do poder romano foi organizada por uma aristocracia
urbana que já gozava de amplo domínio; depois, as presenças das guerras fragilizaram os
camponeses. As guerras constantes envolviam mobilização incessante, os cidadãos eram
chamados aos milhares para participarem das legiões. Quando não morriam, ficavam
incapazes de tocarem suas propriedades, absorvidas pela nobreza. Eram essas mesmas
guerras fontes de obtenção dos escravos.
Anderson (2007) mostra que uma característica importante deste modo de produção
era o seu pouco avanço tecnológico. O autor chama a atenção para o fato de nenhum
modo de produção estar desprovido de progresso material em sua fase ascendente, e o
escravista tinha pouco avanço tecnológico. Podem-se citar culturas mais lucrativas de
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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vinho, a introdução de moinhos rotativos para cereais e a melhoria na qualidade do pão,
mas não ocorreram grandes invenções que impulsionassem a economia grega e o
desenvolvimento das forças produtivas. Anderson (2007) defende que havia uma
contradição entre a vitalidade cultural e superestrutural do mundo antigo grego e sua
pouca infraestrutura. Uma vez tonando-se o trabalho manual profundamente associado à
perda da liberdade, não havia muito espaço para a livre imaginação. Isso demonstra bem
a distância entre trabalho manual e intelectual. Apesar da produtividade de ambos não
serem diferentes, os gregos repudiavam o trabalho manual.
A análise das Comunidades Primitiva e Antiga permitiu-nos perceber o trabalho
escravo como alicerce da produção de riquezas, e como o surgimento e a expansão desse
trabalho estão associados à propriedade privada. Hoje não vivemos esse tipo de
organização social, mas o TEC é utilizado dentro de outro modo de produção hegemônico
com o objetivo de acumular riqueza. Dentro de uma análise dialética da história, esses
modos de produção predominantes convivem com outras formas anteriores e, até, como
revela Sakamoto (2007), eles necessitam delas para sua reprodução. Foi assim quando a
Europa começou a utilizar o trabalho escravo na colonização, dando surgimento ao
trabalho escravo moderno.
O modo de produção escravista tem uma delimitação histórica e precisa na
dissolução das comunidades gentílicas, quando surge a propriedade privada, tendo sua
expansão na Antiguidade Greco-romana. Somente a partir desta sociedade é que haveria
condições e necessidades do surgimento do trabalho escravo para a produção do
excedente. Mas ela ressurgiu com forças na colonização no século XVI. Não da mesma
forma, mas com suas especificidades, assim ocorre no modo de produção capitalista
brasileiro que temos hoje. Nele predomina o trabalho assalariado; mas a utilização do
TEC é feita como instrumento de expansão do capital. Essas complexidades fazem parte
da história brasileira, discussão que faremos a seguir.
3. Desenvolvimento desigual e combinado
Gorender (1992) defende que o modo de produção colonial brasileiro era o da
plantagem escravista. A primeira característica dessa organização social foi o
direcionamento mercantil desta produção. Não se preocupava em fornecer produtos para
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
o consumo imediato, mas em função das necessidades do mercado. Todavia, é possível
encontrar, junto a estas grandes produções, outros produtos agrícolas complementares. A
colônia viveu essa dualidade de abastecer seu mercado interno e produzir para o mercado
mundial.
A característica de que a plantagem implica a produção em grande quantidade,
transformada para o mercado e transportada para longas distâncias, requer instalações e
instrumentos especiais e todo um ciclo complexo de operações. O caso típico é do açúcar,
que já chegava à Europa pronto para o consumo. Essa produção, de certa forma complexa,
implicou uma ampla divisão de trabalho, tanto do ponto de vista quantitativo, pelo fato
de vários grupos realizarem a mesma tarefa, como qualitativo, pela diversidade dos
trabalhos. Havia a moagem, sucessivos cozimentos, purificações, purgas, cristalização,
secagem e prensagem. Além de toda essa divisão de trabalho na fabricação, havia ainda
o processo de transporte.
O engenho era caracterizado por uma produção sofisticada, não possuía ainda os
dois conteúdos básicos da fábrica moderna - a mão de obra assalariada e a mecanização mas estava longe da produção artesanal. À medida que transformava matéria-prima em
larga escala, havia uma divisão de trabalho bastante acentuada quanto à qualidade e
quantidade. Prado Júnior (1994) ressalta que o Engenho era uma verdadeira indústria. A
forma como a organização para a implementação dessa indústria se deu foi pelo sentido
da colonização.
Esse autor destaca que o Brasil nasceu monocultor, latifundiário e escravocrata,
pelo fato de que o sentido da colonização portuguesa foi explorar os recursos naturais de
um território virgem em proveito do comércio europeu. Esse tipo de organização é
consequência natural e necessária desse sentido da colonização. Colaborou para
surgirmos como grande propriedade o fato do nosso colonizador ser um empresário. Pela
experiência de Portugal, segue Prado Júnior (1994), já adquirida da colonização dos
trópicos e dos processos adotados neles, estabelece-se aqui a plantation: grande
propriedade de terra trabalhada pelos escravos. A monocultura está correlata à grande
propriedade e ao fato da agricultura servir como produção de certos gêneros de grande
valor comercial e altamente lucrativos. O trabalho escravo moderno foi o instrumento
humano para isto. Portanto, o trabalho escravo moderno foi o resultado da necessidade de
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
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PANÓPTICA
atender aos interesses internacionais e o caminho escolhido para o acúmulo de capital.
Ele não foi uma exceção, ele foi um instrumento, utilizado naquele momento histórico,
para o acúmulo de capital.
Oliveira (1985) mostra a necessidade de compreendermos a lógica do sistema
implementado no período colonial para entendermos essa forma de organização. É
preciso compreender a articulação das relações de produção para desvendar a lógica do
sistema. É preciso descobrir a relação social de produção que articula o conjunto de
relações em uma dada formação social.
Quando os portugueses chegaram aqui precisaram integrar o Brasil ao sistema
econômico mundial através da produção de mercadorias, que não era realizado pelos
índios. O objetivo da empresa colonial foi essa produção. Devido às características do
solo e do clima, e a experiência dos portugueses nas ilhas do Atlântico, o açúcar era a
mercadoria que encontrava condições de cultivo. Entretanto, faltava a força de trabalho.
O trabalho escravo foi o meio encontrado para levar a produção de açúcar a custos baixos
com a geração de altos lucros.
O objetivo da colonização foi atender à lógica do capitalismo. Era uma formação
capitalista em base de relações sociais pré-capitalistas, pois tínhamos o escravo e a relação
senhor e camponês. Todavia, isso não pode ser analisado somente a partir das relações
internas. Oliveira (1985) lembra que a economia brasileira era integrante do sistema
econômico mundial, cujo centro, até o final do século XIX, era a Europa. Somente
podemos entender o sistema brasileiro como elemento desse sistema mundial. Por outro
lado, apesar de aquele ser parte deste, não significa que deva reproduzi-lo completamente.
A diversidade de formas de organização do processo de trabalho, no interior de uma
sociedade, condiz com as condições particulares de produção de cada parte desse sistema.
A produção econômica é, portanto, determinada pelo exterior, pelos interesses comerciais
da metrópole, e isso não somente em sua gênese, mas também no decorrer de seu
funcionamento. A produção era determinada pelo sistema econômico mundial europeu
de base capitalista, do qual o Brasil fazia parte como área periférica (OLIVEIRA, 1985,
p. 58). O trabalho escravo moderno foi o meio mais eficiente para atender a esses
interesses.
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PANÓPTICA
Com a independência política pouca coisa referente a isso mudou. A estrutura
econômica permaneceu a mesma, fundada na grande lavoura escravista, subordinada ao
capital comercial externo, que deixa de ser português para ser inglês, com a progressiva
entrada de outros capitais europeus e norte-americanos. Do ponto de vista estrutural, o
período imperial formou um único conjunto com o período colonial, apesar das mudanças
ocorridas (OLIVEIRA, 1985).
Não almejamos fazer uma profunda análise do que foi o modo de produção no
período colonial brasileiro, objeto já de intenso debate acadêmico. Nosso objetivo é
apenas levar à reflexão questões acerca da possibilidade, ou mesmo da necessidade, de
certas características de um modo de produção em outro e, com isso, analisar o Trabalho
Escravo Contemporâneo. O fato é que nós tínhamos um sistema, de certa forma,
sofisticado de produção do açúcar ao lado da utilização de escravos. Uma ampla divisão
do trabalho ao lado de uma mão de obra escrava. A história brasileira tem sido, em grande
parte, esta mistura de coisas tão diferentes. Foi assim quando conquistamos a
independência política e seguimos com o império, com o filho do antigo imperador, além
de subsistir o trabalho escravo.
Francisco de Oliveira (2013), quando analisou o nosso subdesenvolvimento,
afirmou que somos uma mistura de tantas coisas, uma combinação tão esdrúxula, que nos
denominou de ornitorrinco. Em seu livro Crítica à razão dualista3, o autor defende que
no Brasil o desenvolvimento do capital foi desigual e combinado. A partir da década de
1930 nosso país passou por um novo modo de acumulação. Deixou de haver uma
centralização na agricultura para a indústria, mas isso não se deu com rupturas bruscas no
processo, e sim com a inserção do arcaico no novo e do novo no arcaico, através do que
o autor chama de pacto estrutural.
A partir de 1930 a agricultura começa a sua centralidade. É o fim de uma hegemonia
agrário-exportadora para o início da estrutura de base urbano-industrial (OLIVEIRA,
2013). Isso vai ocorrendo, em primeiro lugar, pela regulamentação dos fatores da oferta
e da demanda no conjunto da economia. As leis trabalhistas demonstram muito bem esta
questão. O autor revela consequências importantes do surgimento do salário mínimo
Intitula-o, assim, como uma forma de crítica à visão cepalina do distanciamento entre os setores “atrasados
e modernos”.
3
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PANÓPTICA
como instrumento de criação do exército de reserva para a indústria. Ao se estabelecer
um valor padronizado, por um lado libertou o empresário de um mercado flutuante e, por
outro lado, reduziu o preço da força de trabalho. Ao padronizar o salário, converteu-se o
preço da força de trabalho de trabalhadores especializados à situação de desqualificados.
Depois, com a intervenção do Estado na esfera econômica, criando a estrutura para
a acumulação industrial através de políticas, fixando preços no gasto fiscal com fins
reprodutivos, com subsídios nas atividades produtivas e construindo uma infraestrutura
de estradas para o desenvolvimento industrial, o Estado transferiu recursos para a
atividade industrial, transformando-a em atividade principal.
Mas é na relação indústria e agricultura que observamos mais de perto o
ornitorrinco. A agricultura deixa de ser central nos anos pós-30, mas não perde sua
importância. Na verdade, ela vai ser fundamental para a acumulação capitalista. A
agricultura será responsável pela produção do consumo interno, atendendo às
necessidades básicas de alimentação dos trabalhadores e ao fornecimento de matérias-
primas para a indústria, para não obstaculizar o processo de acumulação urbanoindustrial. Com isso foi impedido o aumento nos custos de reprodução da força de
trabalho urbana e ainda se possibilitou a formação de um proletariado rural, porque a base
das atividades agrícolas era a expropriação da propriedade e da produção de excedente.
Tanto os trabalhadores foram perdendo suas terras como aquilo que produzem é passado
aos proprietários. Uma combinação entre larga oferta de mão de obra e de terras
proporciona uma acumulação primitiva. Com isso, o autor conclui: “Se é verdade que a
criação do ‘novo mercado urbano-industrial’ exigiu um tratamento discriminatório e até
confiscatório sobre a agricultura, de outro lado, é também verdade, que isso foi
compensado até certo ponto pelo fato de que esse crescimento industrial permitiu as
atividades agrícolas manterem seu padrão primitivo, baseadas em uma alta taxa de
exploração da força de trabalho” (OLIVEIRA, 2013, p. 30).
Portanto, a agricultura fornece contingente populacional para as cidades, alimento,
matéria-prima e aumento do acúmulo do capital através de uma acumulação primitiva,
fortalecendo a indústria através de um baixo custo na reprodução da força de trabalho.
Por outro lado, a indústria estabelece na agricultura novas relações de produção, através
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de um proletariado rural. É a partir disso que Oliveira (2013) conclui que vai haver um
pacto estrutural entre o crescimento industrial e o agrícola.
Até 1930, os proprietários rurais eram hegemônicos no sentido de manter o controle
das relações externas da economia. Com o colapso dessas relações, em virtude das guerras
mundiais, essa hegemonia decaiu. Então, seria necessário encontrar outro caminho para
a expansão do capital no Brasil, daí o investimento na indústria. Essa mudança no
acúmulo do capital foi feita através de um pacto de classes. A burguesia industrial passa
a ser central, sem excluir os proprietários rurais nem da estrutura do poder nem dos
ganhos da expansão capitalista. E nisso, Oliveira (2013) aponta que esta expansão no
Brasil ocorreu sem a destruição por completo do modo de acumulação anterior. É o novo
no arcaico e o arcaico no novo. Portanto, é marcante na história brasileira a mistura de
modos de produção e pacto de classes que nos transforma nesse ornitorrinco.
4. Realidade Amazônica
Precisamos inseriri esse debate, pois nosso objeto é refletir o debate teórico dentro
de um campo prático. Nossa área de pesquisa é o estado do Tocantins, como ele fica na
região amazônica é necessário esse caminho teórico do item 3. Predomina como atual
modelo da agricultura brasileira o agronegócio. A palavra agronegócio foi adaptada no
Brasil a partir do conceito de agribusiness, que teve origem na School of Business
Administration, da Universidade de Harvard, com o estudo The Concept of
Agribusiness,de John Davis e Ray Goldberg, publicado em 1957. Agronegócio é uma
junção de operações de produção e distribuição de suprimentos agrícolas, processamentos
e distribuição dos produtos agrícolas. A agricultura passa a ser considerada como parte
de uma extensa rede de agentes econômicos (MATTOS, 2013).
Mendonça (2013) revela que houve a difusão mundial de que os processos de
Reforma Agrária e os modos de produção dos camponeses são ineficientes, e isso facilitou
os negócios de grandes empresas multinacionais na agricultura. Na América Latina, o
agronegócio se caracterizou pela concentração de capitais multinacionais, principalmente
no setor de maquinário, insumos químicos e processamento de alimentos, combinado com
grandes extensões de terra e exploração do trabalho. O referido modelo está sendo
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PANÓPTICA
implementado através de financiamento estatal, padronização de alimentos, concentração
de rendas e a utilização da universidade como espaço de pesquisa.
O agronegócio no Brasil é o processo de industrialização da agricultura, com o
objetivo de agregar atividades agroquímicas, industriais e comerciais aos seus cálculos
econômicos, através das cadeias produtivas (MENDONÇA, 2013). É a junção do
capitalismo comercial, industrial e financeiro. Grandes empresas multinacionais se
interessam pela produção agrícola. Indústria e agricultura seguem se unindo. Isso, com
base em monopólios internacionais ligados ao mercado financeiro que controla a
produção, a tecnologia e a distribuição das matérias-primas, como no caso da soja, em
2007, em que 60% do financiamento da produção era controlada pela Adm, Cargill e
Bunge (SAKAMOTO, 2007, p. 105).
Oliveira (2012) destaca que no final do século XX, o modo de produção capitalista
sofreu mudanças com a crise e o fim do socialismo no leste europeu. O capitalismo
mundial assumiu características básicas do capitalismo monopolista, produzindo em
qualquer lugar do mundo onde as possibilidades de redução de custo e acesso ao patamar
tecnológico fosse acessível. O globo passava pela mundialização da economia, bem
diferente da internacionalização. Esta era resultado do fluxo de conhecimentos técnicos,
matérias-primas, bens, produtos. Já a mundialização é a transformação de empresas
nacionais em internacionais através da abertura de filiais. É a transformação do mercado
financeiro nacional para a economia mundial.
Para a reconstituição da Europa e do Japão, vários planos foram elaborados para
estabelecer a regulação para o movimento internacional de capitais. Depósitos em bancos
estrangeiros, investimentos no mercado europeu e japonês, e investimentos no capital
acionário de empresas multinacionais, estimularam o crescimento de finanças
internacionais. Depois, os monopólios de pesquisas e de tecnologia geraram controle da
força de trabalho, dos mercados e da fonte de matérias-primas nacionais. Importante
registrarmos que a maior parte da força de trabalho estava fora de seus países. Isso tudo
foi possível graças à cooperação das empresas nacionais com as estrangeiras, ao avanço
tecnológico e a ação das organizações governamentais internacionais. Através de
organizações como o MERCOSUL, os governos nacionais se empenharam em uma
economia internacionalizada para compor o capitalismo que se tornava mundial.
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PANÓPTICA
A agricultura, nesse modelo, passou a se estruturar sob três bases. A centralidade
da produção de commodities, que transformou toda a produção agropecuária, silvicultura
e extrativista em produção de mercadoria para o mercado mundial;as bolsas de
mercadoria e os monopólios mundiais que se tornaram os centros reguladores dos preços
mundiais de commodities. Na bolsa de Chicago, decide-se o preço da soja, do milho, do
trigo, do farelo e do óleo de soja. Na de Londres, o do açúcar, cacau, café. No Brasil, na
Bovespa, o boi gordo, o etanol, café, milho e soja (OLIVEIRA, 2012).
Na monopolização, o que ocorre é que as empresas controlam a agricultura sem
participar do processo de produção no campo. É o controle de camponeses e capitalistas
do campo pelas empresas de comercialização através da subordinação sem produção.
Podemos citar, como exemplo desse modelo, a empresa Agrifirma. Trata-se de um grupo
brasileiro que trabalha na aquisição e desenvolvimento de terras agrícolas e tem entre seus
investidores o britânico Jacob Rothschild. Essa empresa possui 60 mil hectares de terras
no Estado da Bahia e pretende chegar a 100 mil antes da abertura do capital. Aplica em
média US$ 2.300 para aquisição de um hectare para transformá-lo em terra cultivada
(OLIVEIRA, 2012, p. 11).
Para sustentar todo esse aparato, que demanda altos investimentos, é necessário
reduzir os custos com a mão de obra para que possa se manter competitiva no mercado
internacional. E é através da precarização, flexibilização e utilização do trabalho escravo,
que tem conseguido manter seus lucros. O papel do Estado é fundamental nisso, pois a
concentração de mercado e o processo de formação de monopólios entre empresas do
agronegócio têm como função central garantir acesso dessas empresas aos recursos
estatais.
Portanto, o agronegócio é uma resposta que a elite brasileira tem dado à crise sofrida
pelo latifúndio sob o desenvolvimento da indústria. Para tanto, utiliza-se de
superexploração da classe trabalhadora, dos investimentos estatais e do capitalismo
financeiro. O TEC é uma possibilidade da garantia da competitividade dos produtos
agrícolas brasileiros no mercado internacional. É necessária a utilização de maquinário e
técnicas avançadas para a produção em larga escala no campo, exigindo altos
investimentos para tornar possível a produção. A utilização do TEC garante a redução de
custos com a força de trabalho.
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PANÓPTICA
E essa não é mais uma prática específica da América Latina ou dos chamados países
“não desenvolvidos”. O Trabalho Escravo Contemporâneo tem se alastrado pelo mundo
todo. Kevin Bales (2001), em sua pesquisa, encontrou trabalhadores escravizados tanto
em países como Índia e Paquistão quanto em Londres e França. Ele revela que isso tem
ocorrido, primeiramente, porque há um grande contingente populacional. No mundo pósguerra, a população cresceu de forma progressiva, sendo grande fonte de trabalhadores
escravos. Mas ao mesmo tempo, um fator decisivo foi que a modernização trouxe grande
enriquecimento às elites e empobrecimento à classe trabalhadora.
O barateamento dos custos com a força de trabalho ocorre direta ou indiretamente,
interferindo nos custos da cadeia produtiva. Bales (2001) exemplifica como o carvão,
produzido no Brasil, com TEC, é fundamental para a produção de aço, cujo material, em
grande parte, vai para a produção de automóveis e outros artigos de metal. Mas o
barateamento não se limita à produção. Isso vai ter consequências nos mercados
internacionais, atingindo as lojas da Europa e da própria América. Com preços menores,
os países escravocratas podem concorrer no mercado internacional. Portanto, o TEC não
é visto como exceção ou aberração do capitalismo, ao contrário, funciona como um
instrumento a mais no processo de acumulação do capital.
No Tocantins, temos encontrado fortemente a presença de siderúrgicas de Minas
Gerais, que estão dentro da cadeia produtiva, mas não são as proprietárias das fazendas.
Todavia, é para elas que a produção já sai diretamente. São grandes siderúrgicas de Minas
Gerais, principalmente, que se apropriam e financiam essa produção.
5. O Agronegócio no Tocantins
Pelos dados que iremos analisar abaixo, fornecidos pela Secretaria de
Desenvolvimento da Agricultura e da Pecuária no Tocantins (SEAGRO-TO), no modelo
de desenvolvimento, no âmbito rural, predomina a presença de grandes propriedades com
objetivos de atender ao mercado internacional. Em 2011, foram registrados US$
486.316.321 em exportações, em 2014 já chega a US$ 838.777.852 (TOCANTINS,
2014a). Dentre a produção de grãos (soja, milho, arroz) o que mais se destacou foi o da
soja. Os indicadores, abaixo, demonstram que ela tem ficado em destaque nos últimos
anos.
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Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Tabela 1- TOCANTINS - Percentual da exportação de soja em relação à produção de outros grãos
Ano
Percentagem
2012
69,3
2011
72,3
2013
66,7
2014
74,7
Fonte: SEAGRO-TO, 20154
Essa produção é originária das grandes propriedades. Pelos dados desta Secretaria:
13,04% da área cultivada de soja no estado são de propriedades que vão de 3000 a 4999
hectares e, 36,23%, são de 1000 a 2999 hectares. Portanto, cerca de 50% das propriedades
que realizam esse plantio, no Tocantins, estão dentro da lógica dos grandes
empreendimentos (TOCANTINS, 2014b).
Essa produção de soja, além de exportada, é também muito utilizada para a
alimentação do gado na região, outro produto em destaque nas exportações, conforme a
tabela 2. Essa informação é bem importante quando objetivamos analisar a relação entre
o agronegócio e o TEC. Há informações precisas sobre o tipo de atividade em que são
encontrados os trabalhadores que são escravizados na região. 51,4% estão na atividade
da pecuária, uma das atividades elencadas pela SEAGRO, conforme tabela 2, de
importância para o estado e dentro dos moldes do agronegócio.
Tabela 2 – TOCANTINS - Exportação de carne bovina desossada em relação aos produtos que lideram as exportações
Importante registrar que todas as tabelas apresentadas neste trabalho foram organizadas pela autora, a partir
de dados obtidos nas fontes, conforme registro.
4
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Ano
Percentagem
2012
22,6
2011
Fonte: SEAGRO-TO, 2015
A instalação de
2013
2014
24,5
26
19,5
grandes
multinacionais tem sido feita ainda com atividade sucroalcooleira e extração de eucalipto.
Na cidade de Pedro Afonso já está operando a usina da Bunge, instalada em junho de
2011, e localizada em uma área de 94 hectares da zona rural. Ela deverá produzir álcool,
açúcar e energia elétrica de alta eficiência. A Cargil, ADM e André Maggi já vêm
realizando o financiamento e a comercialização da produção de grãos no Tocantins. Essas
empresas atuam em todos os segmentos da cadeia produtiva: compram, fornecem,
processam e financiam o cultivo de soja (MATTOS, 2013, p. 232). Sem contar com a
presença da agência de cooperação internacional japonesa, também financiando a
produção de grãos através do Programa Nipo Brasileiro para o Desenvolvimento dos
Cerrados (PRODECER).
Um crescimento que vem ocorrendo nas terras é do plantio do eucalipto. Os dados
na tabela 3 demonstram como a monocultura dessa árvore vem crescendo na região. Em
2006, existiam 16.656 hectares de eucalipto; em 2009 passou para 44,3 mil; em 2010,
52,7 mil hectares; e a projeção para 2016 é de 530.000 hectares (TOCANTINS, 2014c).
Esse crescimento ocorre em razão da lucratividade dessa atividade, principalmente para
as empresas de produção de papel, exploração de madeira, bem como para a produção de
carvão vegetal. Essa expansão do eucalipto é preocupante, porque isso tem sido feito
baseado na destruição ambiental e no uso do TEC.
Tabela 3 –TOCANTINS - Plantação (e projeção) de Eucalipto
Ano
2006
Área
plantada/hectares
de eucalipto
16.656,00
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PANÓPTICA
2007
25.994,60
2009
44.309,16
2008
2010
2011
2012
Fonte: SEAGRO-TO, 2015
2016
36.590,10
52.783, 60
83.204, 40
197.450,5
530.000,005
O plantio do eucalipto já é uma realidade em vários municípios do Tocantins. Já há
o funcionamento da empresa Viveiros Tocantins, localizada em Miracema, que implantou
um viveiro de mudas para a produção. Esse plantio é muito importante para as empresas,
não somente porque é a matéria-prima do papel, mas também porque gera o ferro gusa,
fonte de energia. Isso tem sido um foco importante no estado. Em 2011, foi criado o
Departamento de Agroenergia, com o objetivo de incentivar e estruturar a produção
agroenergética. O governo do estado reconhece que o Tocantins tem um grande potencial
para o plantio de florestas, principalmente, eucalipto e seringueira. De 2011 a 2013, houve
um acréscimo de 60% da área plantada com floresta (TOCANTINS, 2014c).
Estes grandes empreendimentos têm sido incentivados por políticos locais. O Vice-
governador do estado, da gestão anterior, em entrevista concedida a pesquisador, revelou
a prioridade que o agronegócio tem na atuação do governo com infraestrutura, incentivos
fiscais, facilidade de aquisição de terras e outros benefícios, para que as grandes empresas
consolidem o Tocantins. A economia do Tocantins é ligada a grandes grupos
empresariais, cujo interesse é o acúmulo do capital.
“O governo está empenhado com o agronegócio, porque é através dos
investimentos nesse setor e na indústria que o Tocantins vai se desenvolver, queremos
fazer desse Estado um grande celeiro e por isso o governador Siqueira Campos tem
investido em estrutura de transportes, pois tudo isso vai ser revertido em geração de
emprego e renda para nossa população. O número de investidores interessados em fazer
negócios com o estado tem aumentado, em razão da prioridade e incentivos que a atual
5
Projeção
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gestão tem dado ao agronegócio. [...] na produção de soja, houve um crescimento de
850% na última década e ao mesmo tempo grande produtividade. A agricultura passa por
um momento muito bom e o nosso estado tem ganhado cada vez mais visibilidade nesse
cenário, o que tem atraído muitos investimentos” (ARAUJO, 2012, apud MATTOS,
2013, p. 250).
Quando percebemos esses dados e os comparamos com a situação de TEC no
tocantins, podemos perceber a relação entre o acúmulo de capital e esse modelo de
desenvolvimento. Necessita do trabalho assalariado para se sustentar, mas tem na
utilização de TEC um de seus alicerces para o acúmulo de capital.
Mapa 1 - BRASIL - Trabalhadores Libertados - 2003 a 2014
Fonte: CPT, 2003-20146
Parte do crescimento do agornegócio no Tocantins tem sido realizado através do
TEC. Observem no mapa acima que nos últimos 11 anos o Tocantins está entre os cinco
estados onde mais se libertam trabalhadores escravizados na área rural. Um dos
indicadores é que mais de 50 % da libertação de trabalhadores se dá em uma das principas
atividades econômicas do Tocantins que é a pecuária.
Dados obtidos através de planilhas de dados e dos cadernos de conflitos no campo da comissão pastoral
da terra.
6
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PANÓPTICA
60,00%
50,00%
Gráfico 1 – TOCANTINS- Trabalhadores Libertados por Atividade - 2003 a 2014
51,4%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
19,6%
18,7%
6,2%
2%
1,2%
0,9%
0%
Fonte: Base de dados CPT Araguaia/Tocantins, 2003 a 2014
6. Conclusões
As políticas de liberalização do mercado têm beneficiado a concentração dos
oligopólios, dificultando a competitividade internacional. E é na precarização da mão de
obra que se tem mantido os lucros e assegurado a acumulação para o investimento no
mercado financeiro. O que esse novo momento histórico revela é uma tendência à
precarização e à flexibilização das relações de trabalho para atender a dinâmica
internacional. Isso é feito tanto de maneira formal, através da criação de leis e da retirada
de direitos7, quanto ilegal, como é o caso do Trabalho Escravo Contemporâneo.
O Trabalho Escravo Contemporâneo não é uma exceção dentro do modo de
produção capitalista. É preciso refletirmos que há uma ligação entre as necessidades dos
modos de produção e as relações de trabalho advindo delas. E, no caso brasileiro, de que
seu desenvolvimento foi desigual e combinado. O Trabalho Escravo foi uma constante
nas relações de trabalho brasileiras. Ele faz parte de uma cultura histórica. O fim da
escravidão legal, em 1888, não extinguiu esse tipo de relação no século XXI. Na região
7
Um exemplo importante de lembrar é a votação do projeto de lei que regulamenta a terceirização no Brasil.
ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo.
Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 404-429, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
norte, o TEC esteve sempre presente com o objetivo de viabilizá-la economicamente para
enriquecer a classe dominante. Esteve presente no período colonial, no início da
República, na Era Vargas, nos planos dos militares, ainda como forma de proteger a
segurança nacional, e, hoje, viabilizando o agronegócio. Essa investigação demonstrou
que não há contradição no capitalismo na utilização desse tipo de trabalho, o TEC segue
a lógica da acumulação de capital. A visão dialética das relações de trabalho no modo de
produção capitalista proporciona concluir pela possibilidade da convivência de formas
primitivas de acumulação com meios de produção altamente desenvolvidos para a
geração de mais-valia.
7. Referências
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PANÓPTICA
Violência obstétrica e acesso das mulheres à justiça: análise das decisões
proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste
Beatriz Carvalho Nogueira1
Fabiana Cristina Severi2
Recebido em 13.4.2016
Aprovado em 15.5.2016
Resumo: Neste artigo, apresentamos os
resultados de nossa pesquisa, que teve
como objetivo discutir os dados relativos a
um conjunto de acórdãos dos Tribunais de
Justiça da região sudeste do país
relacionados à violência obstétrica.
Buscamos traçar o perfil das demandas
componentes da amostra de acordo com as
variáveis: Tribunal de Justiça, momento
processual, polo ativo, polo passivo,
resultado em relação ao polo ativo,
assunto do acórdão e violência sofrida
pelo polo ativo. Com base em tal perfil,
procuramos analisar as respostas dos
membros dos tribunais de modo a perceber
a permeabilidade do debate realizado por
diversos movimentos sociais e políticas
públicas brasileiras de humanização do
parto, que reconhece a violência obstétrica
como um tipo de violência institucional e
de gênero. A partir daí, nosso objetivo foi
fornecer subsídios para que o sistema de
justiça possa analisar os casos
judicializados de violência obstétrica sob
uma perspectiva que garanta os direitos
humanos das mulheres, em especial os
direitos sexuais e reprodutivos, e sob um
enfoque de gênero.
Abstract: In this article, we present the
results of a research, which has the
purpose to discuss the data concerning set
decisions of Brazilians Courts of Justice
on the southeastern region that related
issues with obstetric violence. We draw
the profile of the decisions according to
the following variables: Courts of Justice,
procedural time, complainant, defendant,
results, judgment matter and violence
suffered by active polo. Based on this
profile, we analyze the responses of the
courts aiming to understand the
permeability of discussions by various
social movements and Brazilian public
policies birth humanization recognizing
obstetric violence as a kind of institutional
violence and gender. From there, our
interest was to provide subsidies to the
justice system can analyze the judicialized
obstetric violence in a perspective that
guarantees the human rights of women,
especially sexual and reproductive rights,
and under a gender focus.
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP/RP. E-mail:
[email protected]
2
Professora Doutora do Departamento de Direito Público e do Programa de Mestrado da Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto da USP/SP. Membro do IPDMS. Coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica
Popular de Ribeirão Preto - SP (NAJURP). E-mail: [email protected]
1
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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Palavras-chave: Violência contra a
Mulher. Direitos da Mulher. Direitos
Sexuais
e
Reprodutivos.
Parto
Humanizado. Acesso à justiça.
Keywords: Violence Against Women.
Women's
Rights.
Sexual
and
Reproductive
Rights.
Humanizing
Delivery. Access to justice.
1. Introdução
De modo geral, as mulheres em situação de violência que buscam o sistema de
justiça lidam não apenas com a violência já sofrida, mas também com o “labirinto
androcêntrico do Direito” (VARGAS, 2011). Tanto os relatórios e informes da
Organização dos Estados da América (OEA) sobre a implementação da Convenção de
Belém do Pará pelos países signatários, quanto os diversos estudos nacionais e latino-
americanos, dedicados ao tema da violência de gênero, enfatizam as graves dificuldades
que as mulheres, em todo o continente, experimentam para conseguir uma tutela efetiva
de seus direitos. Uma dessas dificuldades estaria associada aos padrões socioculturais
discriminatórios que têm influenciado, de forma decisiva, na atuação das/dos
funcionárias/os do sistema de justiça (CIDH, 2007).
Em regra, os agentes do sistema de justiça estão ainda pouco familiarizados com
protocolos e mecanismos que possam garantir a devida diligência e favorecer o
tratamento integral às mulheres em situação de violência. Ainda persistem, mesmo nos
órgãos ou serviços especializados do sistema de justiça, por exemplo, procedimentos
processuais tendentes a desqualificar as vítimas e seus relatos, bem como a ênfase nas
provas físicas e testemunhais. Tais elementos tendem a perpetuar os padrões e percentuais
de prevalência da violência de gênero e a sensação de insegurança e desconfiança das
mulheres em relação ao sistema de justiça. Isso pode ser ainda pior quando consideramos
outros eixos de desigualdade, como: raça-etnia, orientação sexual, idade, classe social ou
origem territorial das mulheres.
Há, também, diversos trabalhos que apontam para as dificuldades do Estado e da
sociedade em geral em perceber que a melhoria do acesso à justiça das mulheres passa
pelo reconhecimento de que a violência e a discriminação contra elas não são fenômenos
isolados, mas sim produtos de uma violência imbricada em todo o tecido social. Por
consequência, qualquer processo judicial ou diligência realizada pelos agentes do sistema
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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de justiça diante de caso de violação de direitos humanos das mulheres, quando não adota
uma perspectiva de gênero (e também étnico-racial e de classe), dificilmente consegue
garantir o tratamento integral às vitimas, da forma como é preconizado pelos tratados
internacionais (VARGAS, 2011).
No presente estudo, enfatizamos um tipo específico de violência contra as mulheres,
a violência obstétrica ou violência institucional, praticada em instituições prestadoras de
serviços públicos (hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, judiciário, assistência
social, entre outros) e perpetrada por agentes que deveriam proteger as mulheres em
situação de violência (equipe médica e equipe de saúde, especialmente), no contexto de
assistência ao parto, em suas três fases (pré-parto, parto e pós-parto). Nosso objetivo
principal foi construir o perfil das decisões judiciais de tribunais do sudeste do país
envolvendo situações de violência obstétrica, por meio de variáveis como: Tribunal de
Justiça, momento processual, polo ativo, polo passivo, resultado em relação ao polo ativo,
assunto do acórdão e violência sofrida pelo polo ativo.
Com tais dados, buscamos oferecer subsídios para que o sistema de justiça possa
aprimorar as práticas jurídicas que favoreçam a efetivação do direito das mulheres de
receberem uma sentença adequada, livre de estereótipos ou elementos discriminatórios e
eficiente em termos de prevenção, punição e erradicação desse tipo de violência.
2. Violência obstétrica como violência de gênero
A humanização da assistência ao parto no Brasil está na agenda de diversos
movimentos sociais, em âmbito nacional e internacional, como parte da luta pela
assistência integral à saúde das mulheres, especialmente, nas duas últimas décadas. Os
tratados internacionais de direitos humanos das mulheres também contribuíram para
impulsionar a adoção de políticas de saúde sexual e reprodutiva no Brasil e o debate sobre
a necessidade de se revisar a legislação e as políticas públicas de assistência ao parto no
país sob uma perspectiva de gênero e de direitos humanos das mulheres (DINIZ, 2005).
A Convenção para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher (CEDAW), em seu artigo 1º, conceitua a discriminação contra a mulher,
definindo-a como: “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela
mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da
mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
A violência contra a mulher, por sua vez, é definida pela referida convenção como
“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Ainda
de acordo com a convenção, a violência contra a mulher abrange as violências física,
sexual e psicológica ocorridas no âmbito doméstico e público, inclusive as perpetradas
pelo Estado ou seus agentes.
Tomando tais conceitos como referência, a violência obstétrica tem sido
interpretada como um tipo de violência institucional e de gênero, pois corresponde à
utilização arbitrária do saber por parte de profissionais da saúde no controle dos corpos e
da sexualidade de suas pacientes, o que inclui a negligência, a discriminação social, a
violência verbal, a violência física, a medicalização e a utilização de procedimentos
inadequados e/ou desnecessários na gestação, incluindo o momento pré-parto, do parto e
do pós-parto (DINIZ; CHACHAM, 2006; AGUIAR, 2010). Ela está diretamente
relacionada à história do parto na medicina ocidental e se fez mais recorrente, sobretudo,
após a inserção da prática obstétrica na medicina.
2.1. Histórico do Parto na Medicina Ocidental
O parto enquanto atividade médica teve início na Europa nos séculos XVII e XVIII
e chegou ao Brasil com a criação de escolas de Medicina e Cirurgia na Bahia e no Rio de
Janeiro, em 1808. Antes disso, a prática obstétrica era exercida prioritariamente por
parteiras (WOLFF; WALDOW, 2008). A atuação exclusiva de parteiras na realização do
parto ocorria, principalmente por razões morais: acreditava-se que os homens não
poderiam entrar nos aposentos da parturiente, inclusive devido ao tabu de que as mulheres
não podiam mostrar os seus genitais. Nesse momento, o parto era considerado como
fenômeno natural, sendo a figura masculina apenas convocada nos casos de extrema
gravidade, para a realização de suturas e drenagens (OSAVA, 1997; BRASIL, 2010).
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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De acordo com Odent (2003), assim como na industrialização da agricultura, a
invenção de aparelhos e de técnicas de anestesia e a entrada do médico obstetra na cena
do parto foram essenciais para o surgimento do fenômeno denominado de
“industrialização do parto”. Osava (1997) destaca, por exemplo, que a utilização do
fórceps não foi inicialmente popularizada entre as parteiras, pois estas eram vistas como
intelectualmente inferiores aos homens, incapazes de utilizar as novas tecnologias. Além
disso, as parteiras não viam com simpatia a utilização do fórceps como modo de
intervenção no parto e, a maior parte não dispunha de recursos financeiros para a compra
do material.
Ao explicar as origens do parto ocidental, Helman (2009) argumenta que o
estabelecimento da ciência como elemento principal da sociedade fez com que o corpo
passasse a ser visto como uma máquina, dissociada da alma e da religião. O modelo dessa
“máquina” foi baseado em características masculinas, sendo o corpo feminino visto como
imperfeito, anormal, sob influência de elementos da natureza, exigindo constante controle
e manipulação pelos homens e, no caso do parto, da figura do médico obstetra.
Assim, a possibilidade do exercício da atividade obstetrícia por médicos alterou a
própria natureza do parto, que deixou de ser considerado como fenômeno natural e passou
a ser visto como fenômeno controlado pela vontade humana (OSAVA, 1997).
Conforme explica Helman (2009), a medicalização de fenômenos naturais fez com
que eventos fisiológicos, como a menstruação, a gravidez e a menopausa, fossem
transformados em doenças e o parto passasse a ser entendido como evento cirúrgico. De
acordo com o pesquisador, a medicalização é explicada, por muitos sociólogos médicos,
como uma crescente forma de controle social das mulheres, tornando-as dependentes de
equipes médicas e da indústria farmacêutica.
A institucionalização não alterou apenas a visão sobre o parto, mas também o seu
protagonismo. Se antes a mulher possuía o papel de destaque no momento de dar à luz, a
ideia de parto como fenômeno humano fez com que o médico passasse a ser considerado
como o protagonista, pois este seria o único detentor das informações técnicas
supostamente essenciais a esse momento.
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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Essa institucionalização levou à crescente perda da autonomia da parturiente no
controle de seu corpo e do parto, uma vez que tornou o momento do nascimento
“desconhecido e amedrontador para as mulheres e mais conveniente e asséptico para os
profissionais de saúde” (BRASIL, 2001, p. 18). No parto industrializado, a mãe não tem
um papel ativo definido, ela é uma simples “paciente” (ODENT, 2003).
Até mesmo as parteiras, figuras essenciais ao parto até o século XX, tiveram seu
trabalho desvalorizado após o fenômeno da institucionalização do parto. De acordo com
Odent (2003), diferentemente da Europa, onde foram estabelecidos vínculos entre o
trabalho das parteiras e o dos médicos, nos Estados Unidos, com pretextos de melhoria
na assistência, o trabalho das parteiras foi sendo paulatinamente desvalorizado e
associado às mulheres imigrantes. O autor, porém, faz a ressalva de que o real motivo
dessa desvalorização foi econômico, relacionado aos interesses da classe médica.
Ressaltamos que a industrialização do parto não é apenas verificada em relação ao
profissional responsável pelo nascimento do bebê, mas também pela utilização de
técnicas que possuem o objetivo de tornar todos os partos os mais semelhantes possíveis.
Além disso, o ambiente hospitalar, cada vez mais eletrônico, a concentração em grandes
hospitais e a utilização de “rotinas” e “protocolos” fazem com que o parto esteja, cada
vez mais, parecido com uma verdadeira linha de montagem (ODENT, 2003). Alguns
autores, inclusive, acreditam que o uso crescente da tecnologia no parto fez com que a
atenção do médico fosse direcionada apenas ao feto, secundarizando a atenção à mãe
(Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, 2002).
Esse fenômeno pode ser facilmente visualizado no Brasil. O excesso de realização
de cesáreas no país corresponde a uma das mais evidentes formas de violência obstétrica
e está intrinsecamente ligado à perda da autonomia da mulher durante a sua gestação e,
principalmente, no momento do parto. Assim como a perda de autonomia, a falta de
evidências de que o modelo atual, baseado na medicalização e na patologização do parto
também geram dúvidas de que a gravidez e o parto estejam mais seguros no país.
Com o propósito de atingir o objetivo 5 do desenvolvimento do milênio, qual seja,
a melhoria da saúde materna, o Brasil lançou diversos programas para a redução da
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
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mortalidade materna e neonatal. Entretanto, o investimento no acesso aos serviços não
tem causado grandes impactos na mortalidade materna (DINIZ, 2009).
De acordo com Diniz (2009), esse problema é denominado de “paradoxo perinatal”,
pois consiste no reconhecimento de que a habilitação dos profissionais de
acompanhamento ao parto é essencial. Contudo, o excesso da medicalização
acompanhado pela ausência da utilização de métodos e procedimentos baseados em
evidências não é suficiente para a ampliação da segurança da mãe e do bebê. Nesse
sentido, a pesquisadora destaca que “no Brasil, na assistência ao parto podemos conviver
com o pior dos dois mundos: o adoecimento e a morte por falta de tecnologia apropriada,
e o adoecimento e a morte por excesso de tecnologia inapropriada”.
Como crítica ao modelo tecnocrático de assistência ao parto, mulheres e
profissionais da saúde passam a se organizar para exigir a implementação de políticas
públicas que estimulem e respeitem o parto humanizado, tanto de forma hospitalar, como
domiciliar, inclusive com a valorização e a capacitação de parteiras profissionais e doulas
nos períodos pré-parto, do parto e pós-parto e com o consequente resgate do parto como
atividade essencialmente feminina.
O parto humanizado possui uma vasta gama de interpretações que variam,
inclusive, de acordo com o momento histórico em que se inserem. De modo geral,
atualmente, o parto humanizado é entendido como aquele realizado com a menor
quantidade de intervenções médicas e farmacológicas desnecessárias possível,
respeitando-se o tempo físico e psíquico de cada mulher para parir, ocorrido em um lugar
aconchegante e com o consentimento informado para todos os procedimentos que possam
ser realizados, sempre com observância da medicina baseada em evidências
(CARNEIRO, 2011).
Nesse contexto, com o objetivo de estimular o parto humanizado, surgem diversos
movimentos sociais de mulheres. De acordo com Odent (2003), nos Estados Unidos e na
Europa, durante o século XX, vários movimentos já se manifestavam contra a
“industrialização do parto”, principalmente após a década de 20. A mobilização foi mais
expressiva após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento de diversas associações
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
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de âmbito local ou nacional com o objetivo de propor alternativas ao parto
institucionalizado.
Como exemplo, o autor cita a National Childbirth Trust (NCT) no Reino Unido,
associação fundada por mães que acreditavam que a ausência de informações disponíveis
sobre a gravidez e o parto geravam medo e dor às mulheres. Movimentos semelhantes e
com o objetivo de devolver à parturiente o papel ativo no parto surgiram não somente no
Reino Unido, como também na Itália e na Alemanha (ODENT, 2003).
Outro exemplo de movimento pela humanização do parto pôde ser visualizado
dentro do movimento hippie e da contracultura, com a valorização do parto normal, cuja
principal experiência foi verificada na comunidade conhecida como The Farm nos
Estados Unidos (GASKIN, 2003 apud DINIZ, 2005).
O movimento feminista foi responsável pelo surgimento do Movimento de usuárias
pela Reforma no Parto nos Estados Unidos na década de 1950 e pela criação de centros
de saúde feminista e de Coletivos de Saúde das Mulheres nas duas décadas seguintes.
Posteriormente, houve o enquadramento, por parte das feministas, da assistência ao parto
na categoria de direitos reprodutivos e sexuais (DINIZ, 2005).
No Brasil, como alternativa à violência institucionalizada sofrida pelas mulheres no
ambiente hospitalar, foi iniciado o movimento social pela humanização do parto e do
nascimento, o qual tem como principal objetivo a atenção humanizada e respeitosa. Esse
movimento possui diversas formas de atuação.
Cabe destacar que, de acordo com Diniz e Duarte (2004), os movimentos pelo parto
humanizado ganham respaldo da chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE),
movimento internacional surgido na década de 1980. De acordo com o movimento, a
medicina é baseada em muitas pesquisas tendenciosas e que, às vezes, acabam
estimulando a prática de procedimentos desnecessários e danosos. Dessa forma, foi
organizada uma iniciativa internacional, denominada de Colaboração Cochrane, como
forma de sistematizar o conhecimento menos tendencioso. Esses estudos são realizados
com base em uma metodologia que consiga verificar se o procedimento ou medicamento
é de fato seguro.
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
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No parto, tem-se como exemplo de procedimento realizado sem o respaldo da MBE
a prática reiterada da episiotomia, uma vez que não há evidências sólidas de benefícios
do procedimento para a mãe e para ao bebê. Na verdade, a evidência que temos é de que
as pesquisas utilizadas pelos defensores do procedimento apenas eram relacionadas ao
seu modo de realização e não à sua eficácia ou segurança (DINIZ, DUARTE, 2004). A
medicina baseada em evidências tem sua importância também pela exposição dos poderes
econômico e corporativo na definição das políticas de saúde e no financiamento de
pesquisas (DINIZ, 2005).
A Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa) surgiu em 1993 e teve
como inspiração o trabalho de atenção mais humanizada ao parto realizado pelos médicos
José Galba de Araújo, professor da Universidade Federal do Ceará - que implantou um
sistema misto de atenção ao parto, com destaque às parteiras tradicionais, ao parto
domiciliar e às casas de parto – e Moysés Paciornik e seu filho Cláudio Paciornik – que
divulgaram o parto de cócoras com base nos costumes dos índios caingangue (BRASIL,
2014).
De acordo com o caderno do Ministério da Saúde “Humanização do parto e do
nascimento” (2014), após mais de vinte anos de atuação da supramencionada rede, podem
ser visualizadas diversas contribuições do movimento do parto humanizado, tais como a
difusão de conhecimentos à sociedade, a contribuição para a formulação de políticas
públicas, a resistência na imposição de procedimentos não humanizados à mulher e o
estímulo na formação de profissionais para atenção humanizada ao parto.
Além da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento, destacam-se diversos
projetos que possuem o objetivo de estimular o parto humanizado, com a valorização de
doulas e parteiras tradicionais, dentre os quais incluem-se o “Projeto Doula Solidária”,
desenvolvido no Hospital Sofia Feldman em Belo Horizonte (BRASIL, 2014), e os
movimentos das parteiras tradicionais, impulsionados por órgãos internacionais e
nacionais a partir da década de 70, com intensa participação do Ministério da Saúde
(BESSA, FERREIRA, 1999).
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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Em termos de marcos legislativos, os movimentos sociais pela promoção do parto
humanizado e pelo consequente fim da violência obstétrica obtiveram resultados
importantes em dois países da América Latina, a Venezuela e a Argentina.
Na Argentina, a Lei nº 25.929/04 estabeleceu os direitos das mulheres em relação à
gravidez, ao trabalho de parto e ao pós-parto. Referida lei representa um avanço em
termos de conquista de direitos das parturientes argentinas, pois estimula a participação
da mulher como protagonista do parto e ainda assegura como direitos da mulher o
recebimento de informações, a escolha sobre as possíveis intervenções realizadas e o
acompanhamento, dentre outros, conforme se observa no rol de direitos das mulheres
estabelecido no artigo 2º: “Artículo 2º - Toda mujer, en relación con el embarazo, el
trabajo de parto, el parto y el postparto, tiene los siguientes derechos: a) A ser informada
sobre las distintas intervenciones médicas que pudieren tener lugar durante esos procesos
de manera que pueda optar libremente cuando existieren diferentes alternativas; b) A ser
tratada con respeto, y de modo individual y personalizado que le garantice la intimidad
durante todo el proceso asistencial y tenga en consideración sus pautas culturales; c) A
ser considerada, en su situación respecto del proceso de nacimiento, como persona sana,
de modo que se facilite su participación como protagonista de su propio parto; d) Al parto
natural, respetuoso de los tiempos biológico y psicológico, evitando prácticas invasivas y
suministro de medicación que no estén justificados por el estado de salud de la parturienta
o de la persona por nacer; e) A ser informada sobre la evolución de su parto, el estado de
su hijo o hija y, en general, a que se le haga partícipe de las diferentes actuaciones de los
profesionales; f) A no ser sometida a ningún examen o intervención cuyo propósito sea
de investigación, salvo consentimiento manifestado por escrito bajo protocolo aprobado
por el Comité de Bioética; g) A estar acompañada, por una persona de su confianza y
elección durante el trabajo de parto, parto y postparto; h) A tener a su lado a su hijo o hija
durante la permanencia en el establecimiento sanitario, siempre que el recién nacido no
requiera de cuidados especiales; i) A ser informada, desde el embarazo, sobre los
beneficios de la lactancia materna y recibir apoyo para amamantar; j) A recibir
asesoramiento e información sobre los cuidados de sí misma y del niño o niña; k) A ser
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
informada específicamente sobre los efectos adversos del tabaco, el alcohol y las drogas
sobre el niño o niña y ella misma”.
Após o advento de referida lei, a Argentina já expediu nova legislação que coíbe a
violência obstétrica. A Lei nº 26.485/2009, responsável por prevenir, sancionar e
erradicar a violência contra as mulheres nos âmbitos em que se desenvolvem suas relações
interpessoais, traz a violência obstétrica como uma das formas de manifestação da
violência contra a mulher. Devemos destacar que o fato de a legislação Argentina
reconhecer a violência obstétrica como violência contra a mulher obriga o Estado a
implementar políticas públicas voltadas ao combate desse tipo de violência e ao
acolhimento das mulheres violentadas.
A Venezuela, em novembro de 2007, promulgou a Lei Orgânica sobre o Direito das
Mulheres a uma Vida Livre de Violência. Referida lei traz um conceito ainda mais
completo de violência obstétrica: “Violencia obstétrica: se entiende como violencia
obstétrica la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal
de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y
patologización de los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y
capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando
negativamente en la calidad de vida de las mujeres”.
Ainda de acordo com a lei venezuelana, consideram-se atos constitutivos de
violência obstétrica os executados pelo profissional de saúde consistentes no não
atendimento de forma oportuna e eficaz às emergências obstétricas; na imposição de que
o parto seja realizado em posição deitada e com as pernas levantadas, quando existirem
meios necessários para a realização do parto vertical; na obstaculização do contato
precoce da criança com sua mãe, sem motivo médico justificado, negando a possibilidade
de a mãe carregá-la e amamentá-la imediatamente ao nascer; na alteração do processo
natural do parto de baixo risco, com a utilização de técnicas de aceleração, sem o
consentimento voluntário, expresso e informado da mulher, e, por fim, na prática do parto
cesariano, quando existirem condições para o parto natural, sem obtenção do
consentimento voluntário, expresso e informado da mulher. Nessas situações, há previsão
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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PANÓPTICA
de aplicação de multa ao responsável pelo ato (entre 250 U.T. e 500 U.T., sem prejuízo
de condenação pela responsabilidade civil - indenização ou reparação).
Observamos que ambas as legislações trazem em seu texto o termo “violência
obstétrica” inserido no contexto de violência de gênero. A utilização de referida
denominação serve para destacar que a violência obstétrica deve ser tratada pelos juristas
e profissionais da saúde sob uma perspectiva de gênero.
Conforme explica Franzon (2015), o termo “violência obstétrica” obteve
reconhecimento internacional no campo das ciências da saúde a partir de publicação no
editorial International Journal of Gynecology and Obstetrics que deu conhecimento à
comunidade científica da supramencionada legislação venezuelana. Todavia, a própria
autora salienta que o termo foi cunhado pelos movimentos de mulheres, especialmente
nos países latino-americanos, Portugal e Espanha, sendo difundido e fortalecido por meio
da internet e das redes sociais.
No Brasil, não há uma legislação ordinária conceituando ou tipificando violência
obstétrica. Mas, a ausência de lei específica não impede que ela seja abordada pelos
aplicadores do Direito como violação de direitos fundamentais e delimitem estratégias de
prevenção e reparação, ou mesmo a responsabilização civil ou penal de profissionais da
saúde, dos hospitais, planos de saúde e do próprio Estado brasileiro, de acordo com cada
caso.
Exemplificativamente, além dos marcos normativos, nacional e internacional, dos
direitos humanos das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos, há uma série de
textos normativos (legislação ordinária, portarias, decretos etc) e políticas públicas que
estabelecem diretrizes e princípios para a atenção integral à saúde da mulher, podem ser
utilizados para fundamentar o dever de uma assistência humanizada e que respeite os
direitos das mulheres e seus familiares.
A Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes,
prevê, em seu artigo 2º, § 1º, o dever do Estado de garantir a saúde, assegurando o acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e
recuperação. Ela também estabelece como princípios e diretrizes dos serviços públicos
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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PANÓPTICA
de saúde e dos serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema
Único de Saúde (SUS), entre outros: a integralidade de assistência; a preservação da
autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; a igualdade da
assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; direito à
informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; a divulgação de informações quanto
ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; a utilização da
epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a
orientação programática; e a participação da comunidade.
3. Procedimentos metodológicos da pesquisa realizada
Nossa pesquisa teve como foco analisar as respostas do Poder Judiciário brasileiro
em processos judiciais movidos em razão de algum tipo de violência obstétrica. Para
construirmos nossa amostra, fizemos uma busca exploratória na base de dados de
jurisprudência de todos os Tribunais de Justiça do Brasil, no período entre 03.02.15 e
13.02.15, com as palavras “episiotomia” e “violência obstétrica”.
A busca com o uso do termo “violência obstétrica” não nos trouxe nenhum
resultado. Ou seja, não havia nenhum processo judicial de segunda instância em que a
expressão “violência obstétrica” tenha sido utilizada no acórdão, seja na ementa ou no
seu inteiro teor.
Isso não significa, porém, que não haja casos em que lesões, violências ou outros
danos às mulheres e crianças durante o parto não tenham sido objeto de discussão em
processos judiciais nas cortes brasileiras, mas sim que tais tipos situações ainda não foram
nomeadas ou compreendidas a partir da categoria “violência obstétrica”.
Por esta razão, fizemos também a busca pelos termos “episiotomia”, “cesárea e
consentimento”, “direitos reprodutivos”, “parto humanizado”, “cesárea e lesão e mulher”,
pois são palavras-chave que aparecem com frequência nos estudos e documentos sobre
violência obstétrica. Como resultado, os tribunais da região sudeste apresentaram 110
ocorrências, seguidos pelos tribunais da região sul (96) e centro-oeste (25). Nas regiões
norte, foram encontrados quatro julgados, e na região nordeste a busca resultou em cinco
julgados.
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justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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PANÓPTICA
Em razão da maior quantidade de julgados (110) e do nosso interesse em ampliar a
amostra utilizando outros termos para a busca, resolvemos delimitar a pesquisa à região
sudeste. Desse modo, fizemos a busca com o uso dos termos “episiotomia”, cesárea e
lesão e mulher, cesárea e consentimento, “direitos reprodutivos”, “parto humanizado” e
violência e obstétrica na base de dados de jurisprudência dos Tribunais de Justiça dos
estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, em dois períodos
(entre 16.02.15 e 26.02.15 e entre 20 e 24.08.15), utilizando a opção “ementa” e “inteiro
teor”. Na busca, não realizamos nenhuma delimitação de data dos acórdãos. Cabe
destacar, também, que a busca, em geral, não fornece os dados de casos que estão sob
segredo de justiça. Os resultados obtidos seguem na tabela abaixo:
Tabela 1 - Especificação dos julgados que compõem a amostra
Palavras-Chave/
ES
MG
RJ
SP
Total
Estados
Episiotomia
1
13
19
44
77
Cesárea e Lesão e
0
7
0
18
25
Mulher
Cesárea e
0
3
12
21
36
Consentimento
“Parto Humanizado”
0
0
2
1
3
Violência e Obstétrica
0
0
5
2
7
Total
1
23
38
86
148
Fonte: Autoras, 2015
A partir dos resultados acima apresentados, construímos nossa amostra apenas com
aqueles julgados que consideramos pertinentes ao tema da violência obstétrica. Também
retiramos da amostra os embargos de declaração, em razão da ausência de debate sobre o
conteúdo/mérito dessa espécie de impugnação processual. Apenas consideramos dois
instrumentos processuais do mesmo caso nas situações em que ambos possuíam
elementos diferentes e relevantes. Destacamos que apenas foram analisados os processos
em 2º grau, uma vez que pela metodologia aplicada não é possível analisar os processos
em 1º grau.
Nossa amostra, portanto, é composta de 148 julgados e foi organizada, inicialmente,
considerando-se as seguintes variáveis: palavra-chave utilizada na busca, Tribunal de
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justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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443
PANÓPTICA
Justiça, momento processual, polo ativo, polo passivo, resultado em relação ao polo ativo,
assunto do acórdão e tipo de violência em debate.
Na variável do momento processual, os acórdãos foram classificados em
conformidade com o instrumento jurídico analisado: apelação cível, apelação criminal,
agravo, mandado de segurança, embargos infringentes, habeas corpus, recebimento de
denúncia e recurso em sentido estrito.
No tocante às variáveis do polo ativo e do polo passivo, para que fosse mantido o
sigilo das partes e para a facilitação da organização dos dados, optamos pela adoção de
padrões. É válido destacar que essa classificação utilizou como base os polos das ações
em primeiro grau e não em grau recursal. Optamos por essa classificação porque, em
muitos casos, tanto o polo passivo como o polo ativo da ação originária recorreram
judicialmente, sendo mais oportuna a análise dos polos na ação em primeira instância.
Para a identificação, utilizamos os dados constantes nos acórdãos.
Em relação ao polo ativo, diferenciamos os autores da ação conforme a relação com
o nascituro/recém-nascido. Os autores foram classificados do seguinte modo: mãe, pai,
criança e avós, de forma individual ou em conjunto. Ademais, em alguns casos, o polo
ativo foi representado pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública.
Para a classificação do polo passivo, foi analisada a natureza da entidade contra a
qual o polo ativo ajuizou a ação. Desse modo, houve classificação em hospital,
profissionais da saúde, Fazenda Pública, plano de saúde, farmácia e laboratório, de forma
individual ou conjunta. Cabe ressaltar que o conceito de hospital foi utilizado no sentido
amplo, abarcando as clínicas e hospitais-escolas das universidades/faculdades públicas e
particulares. Já a categoria dos profissionais da saúde abrange os médicos e/ou
enfermeiros responsáveis pelo procedimento. O conceito de Fazenda Pública abrange os
municípios, estados e as respectivas fazendas, não abarcando os hospitais-escolas das
universidades/faculdades públicas.
A organização dos dados pela variável “resultado da ação em relação ao polo ativo”
teve como interesse avaliar a frequência de acórdãos que concederam totalmente
(favoráveis), parcialmente ou não concederam (desfavoráveis) o bem/direito pleiteado.
Assim, quando apenas havia, por exemplo, redução do valor da indenização requerida
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PANÓPTICA
pelo polo ativo, consideramos que o acórdão foi favorável. Nos casos em que algum dos
pedidos do polo ativo foi rejeitado ou nos quais houve exclusão de algum dos integrantes
do polo passivo, classificamos a decisão como parcialmente favorável.
Para a organização dos dados quanto ao tipo de violência que aparecia em discussão
na petição inicial, utilizamos como referência a classificação e os conceitos dispostos no
artigo 2º da Convenção de Belém do Pará: violência física, sexual e psicológica. Assim,
por exemplo, quando a autora/autor requeria danos morais, entendemos que o pedido foi
decorrente de violência psicológica. Quando o pedido envolvia indenização por danos
estéticos ou o Tribunal, ao fazer o relatório, utilizava expressões que demonstrassem
danos físicos, classificamos o pedido em violência física. Ainda, em razão da grande
quantidade de pedidos envolvendo danos materiais, também incluímos esse tipo na
análise, em referência aos danos financeiros sofridos pelo polo ativo. Cabe destacar que,
nessa classificação, não separamos a violência sofrida pela mãe da violência sofrida pelo
bebê.
Na variável “assunto” dos acórdãos, classificamos as decisões em danos
permanentes à mãe, danos temporários à mãe, danos permanentes ao bebê, danos
temporários ao bebê, omissão de socorro, óbito fetal, óbito materno, laqueadura sem
consentimento, negativa de cobertura, desrespeito à escolha do parto, ausência de médico,
negativa ao direito de acompanhamento, intervenção sem consentimento e danos ao
períneo. Ao analisarmos essa variável, muitos acórdãos se enquadravam em mais de uma
categoria. Desse modo, o número de resultados (172) é superior ao total de acórdãos.
4. Resultados
O termo “violência obstétrica” tem sido utilizado amplamente por diversos
movimentos sociais e políticas em saúde de humanização pelo parto, tendo recebido
tratamento jurídico em leis específicas em alguns países, como Venezuela e Argentina
(FRANZON, 2015). Mas ele ainda não aparece em uso, seja pelas partes ou pela Justiça,
como forma de categorizar as violências ou violações de direitos sofridas pelas mulheres
na assistência ao parto nos casos que são processados na Justiça. Da mesma forma, a
fundamentação dos pedidos ou decisões judiciais não tem se baseado na análise dos casos
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PANÓPTICA
nos marcos dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, ou mesmo dos direitos
humanos das mulheres. Outro dado que nos chamou atenção foi a ausência do
enquadramento dos atos de violência obstétrica nos “direitos reprodutivos”, uma vez que
a busca por essa expressão também não encontrou nenhum resultado pertinente ao tema
da presente pesquisa.
No tocante ao polo ativo das demandas, conforme observamos nos gráficos abaixo
(Gráfico 1), mais da metade das demandas analisadas foi ajuizada exclusivamente pela
mãe da criança (60,1%). Se somarmos essas ações aos casos nos quais as ações foram
propostas pela mãe em litisconsórcio com outros membros da família, o resultado é de
84,4%. As crianças representam as segundas maiores autoras das ações analisadas (6,8%).
Contudo, a diferença das porcentagens com relação às mães é bem expressiva, ainda que
somados os casos em que as crianças figuram individualmente no polo ativo com os casos
em litisconsórcio (21,7%).
Todavia, conforme já mencionado, nossa amostra não contempla casos em segredo
de justiça. O Código de Processo Civil, em seu art. 189, estabelece que os atos processuais
que devem seguir em segredo de justiça são aqueles em que exigir o interesse público ou
social, que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união
estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes, em que constem dados
protegidos pelo direito constitucional à intimidade ou que versem sobre arbitragem,
inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada
na arbitragem seja comprovada perante o juízo. Desse modo, considerando que em muitos
casos que envolvem crianças há a decretação do segredo de justiça devido ao interesse
público e social, é possível que os resultados obtidos (21,7%) sejam bem menores em
relação ao total de processos com o mesmo perfil dos aqui analisados.
A participação dos pais no polo ativo dos acórdãos analisados ocorre em apenas
0,7% das ações ajuizadas de forma individual. Mesmo quando analisamos as ações
ajuizadas pelos pais em litisconsórcio com outros familiares, o resultado é bem inferior
ao das mães (17,6%).
Cabe ainda salientar que, em alguns casos (3,4%), não foi possível identificarmos
todos os integrantes do polo ativo. Nesse ponto, ressaltamos que foram utilizadas apenas
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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PANÓPTICA
as informações constantes nos acórdãos da amostra, justificando-se a não identificação
do polo ativo quando não houve a completa indicação pelos Tribunais.
As ações ajuizadas pelo Ministério Público corresponderam a 5,4% da amostra.
Esse resultado será mais bem analisado no tópico referente ao momento processual, pois
veremos que a maior parte das ações ajuizadas são cíveis.
Apenas 0,7% das ações foi ajuizada pela Defensoria Pública Estadual (DPE). Essa
porcentagem se refere a uma apelação cível proposta pela Defensoria Pública do Estado
De São Paulo em face da Fazenda do Estado e do Município de Tremembé com o objetivo
de contratação e manutenção de médico ginecologista e pediatra na Penitenciária
Feminina Tremembé II3. De acordo com a alegação da DPE em tal caso, ao menos 20
mulheres do total de 1.100 presidiárias eram gestantes ou lactantes e, mesmo diante desse
alto número, não havia nenhum médico ginecologista ou pediatra na unidade. Além disso,
apenas havia a assistência de cirurgiões dentistas e enfermeiras, razão pela qual as
consultas ginecológicas eram realizadas no município de São Paulo. A simples ausência
de profissionais da saúde para assistência às mulheres na referida penitenciária configura
violência obstétrica.
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 3000651-68.2013.8.26.0634. Relator: Des.
Sidney Romano dos Reis. São Paulo. J. em: 22 jun. 2015.
3
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justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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447
PANÓPTICA
70
60
50
40
30
20
10
0
Gráfico 1 - Sujeitos no polo ativo dos acórdãos (%)
Fonte: Autoras, 2015
Os dados do gráfico acima reforçam a ideia já apresentada de que a violência
obstétrica corresponde a uma forma de violência de gênero, ou seja, compreende as
condutas ou omissões perpetradas pelos profissionais de saúde no controle do corpo e da
sexualidade das mulheres.
Sobre a variável polo passivo das demandas, de acordo com o gráfico abaixo
(Gráfico 2), 23,6% das ações de nossa amostra foram ajuizadas apenas em face dos
hospitais. Se somadas essas ações com as intentadas em face de litisconsórcio passivo do
hospital com alguma das outras categorias, o resultado corresponderá à maior parte das
ações (55,3%).
Essa escolha, por parte das vítimas, em grande parte pode ser justificada pelo
reconhecimento, por parte do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 14,
de que a responsabilidade do hospital em relação às pacientes é objetiva. Já a
responsabilidade da equipe médica, em regra, é subjetiva.
Um percentual expressivo das ações (9,5%) foi proposto apenas em face de
profissionais da saúde. Quando somamos esse valor ao número de ações nas quais há
litisconsórcio passivo de referidos profissionais com outras categorias, chegamos ao
percentual de 40,6% dos casos. Assim, apesar da responsabilidade subjetiva dos
profissionais liberais, uma quantidade expressiva de ações foi proposta contra os
profissionais de saúde. Esse dado pode ser justificado em razão da proximidade da equipe
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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PANÓPTICA
de saúde com a mulher e em termos de estratégia processual, pois seria mais interessante
inserir no polo passivo tanto os hospitais como os profissionais de saúde envolvidos no
caso.
A Fazenda Pública dos estados e municípios também foi frequentemente acionada
(15,5%) nos casos analisados. Na soma desses casos com as ações nas quais ela
representou o litisconsórcio passivo juntamente com as demais categorias, o resultado
obtido foi de 25,7%. Os casos nos quais a Fazenda Pública figurou como ré representam
aqueles nos quais o atendimento ocorreu por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) ou
em hospitais municipais ou estaduais.
Os Planos de Saúde figuraram no polo passivo das ações analisadas em 12,2% das
vezes. O total de ações ajuizadas contra os planos de saúde, individualmente ou em
litisconsórcio, representou 18,3%.
Gráfico 2 - Sujeitos do polo passivo dos acórdãos (%)
Não identificado
Fazenda Pública e Laboratório
Outros
Hospital, Fazenda Pública e Profissionais da Saúde
Hospital, Plano de Saúde e Profissionais da Saúde
Plano de Saúde e Profissionais da Saúde
Hospital e Plano de Saúde
Hospital e Fazenda Pública
Fazenda Pública e Profissionais da Saúde
Profissionais da Saúde
Plano de Saúde
Fazenda Pública
Hospital e Profissionais da Saúde
Hospital
0
5
Fonte: Autoras, 2015
10
15
20
25
É possível observar, a partir dos dados expostos, principalmente no tocante às
informações quanto aos hospitais (55,3%) e aos profissionais de saúde (40,6%), que a
violência obstétrica está associada ao fenômeno da institucionalização do parto,
responsável pela modificação do protagonismo e da natureza desse processo. Essa
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
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PANÓPTICA
institucionalização faz com que o papel de destaque deixe de ser a mulher e passe a ser
do médico ou da médica obstetra. Além disso, o parto deixa de ser considerado como um
fenômeno natural e passa a ser considerado como algo patológico. A medicalização desse
processo natural ensejou a perda do papel ativo da mulher durante a realização do seu
parto. Por isso, nossos dados parecem reforçar a necessidade de se compreender a
violência obstétrica como uma violência institucional.
Com relação aos tipos de violências sofridas, buscamos analisar quais foram as
violências que fundamentaram os pedidos realizados pelo polo ativo na judicialização dos
casos de violência obstétrica analisados no presente estudo, seguindo a classificação
constante na Convenção de Belém do Pará, em seu artigo 2º (física, sexual e psicológica).
Ressaltamos que esse critério utilizou como base apenas o pedido realizado pelo polo
ativo e não as nossas percepções sobre os fatos alegados. Assim, nas hipóteses em que se
requeria indenização por danos morais, consideramos que a violência efetuada contra a
mulher foi psicológica, uma vez que esses danos correspondem a tudo o que afeta a honra,
o afeto, a liberdade e o bem-estar da vítima sem que cause prejuízos de ordem material.
Nos casos em que o acórdão fez referência expressa à violência física ou aos danos
estéticos, consideramos que a violência ocorrida foi física. Não houve nenhum caso em
que visualizamos o pedido de indenização por violência sexual.
Na mesma variável, além dos três tipos de violência previstos na Convenção de
Belém do Pará, acrescentamos a categoria danos materiais, em razão da prevalência de
desse tipo de dano nos pedidos de indenização da nossa amostra. Os danos materiais são
considerados como aqueles que afetam a esfera patrimonial da vítima, ou seja,
correspondem aos gastos efetuados com medicamentos e/ou cirurgias reparadoras ou
mesmo ao ressarcimento do período no qual a vítima não pôde trabalhar devido ao dano.
A partir do gráfico apresentado a seguir (Gráfico 3), observamos que a maior parte
das demandas analisadas teve como causa de pedir exclusivamente a violência
psicológica (31,8%) sofrida pela parturiente ou pelo bebê. Esse número se torna ainda
mais expressivo se somado aos casos em que o pedido por indenização da violência
psicológica foi cumulado com o pedido por danos materiais e/ou com a violência física
(87,7%).
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
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450
PANÓPTICA
Conforme destacado na metodologia, ressaltamos que não diferenciamos os danos
sofridos pela mãe e pelo bebê, uma vez que, além de essa escolha poder representar uma
estratégia processual, em muitos casos, o acórdão não realizava essa distinção.
O segundo pedido mais recorrente foi o relacionado à violência física. Apesar de
apenas 5,4% dos pedidos serem exclusivamente relacionados a esse tipo de violência,
quando analisados os casos de cumulação de pedidos, esse índice sobe para 47,1%. O
pedido exclusivo em decorrência de danos materiais corresponde a apenas 1,4% das
ações, porém esse número se torna mais expressivo quando somado às ações nos quais o
pedido foi cumulado com outras formas de violência (45,4%).
Gráfico 3 - Violência sofrida pelas mulheres (%)
Violência psicológica
1,4% 1,4%
5,4%
4,7%
31,8%
12,8%
Violência psicológica e danos
materiais
Violência física, psicológica e
danos materiais
Violência física e psicológica
Violência física
14,9%
27,7%
Violência física e danos
materiais
Danos Materiais
Fonte: Autoras, 2015
O gráfico apresentado (Gráfico 3) demonstra que a violência obstétrica implica,
para a maior parte das vítimas (87,2%), um grande sofrimento psicológico. Para
exemplificarmos a violência psicológica verificada na amostra, destacamos o seguinte
trecho constante em um dos acórdãos analisados: “Trata-se de ação ordinária na qual a
apelada alega, em síntese, que, em setembro de 2002, aos 30 (trinta) anos de idade,
engravidou do seu primeiro filho e, após passar por uma gravidez que transcorreu dentro
da normalidade gestacional, no dia 11/06/2003 foi internada na UNIDADE
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
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451
PANÓPTICA
INTEGRADA DE SAÚDE HERCULANO PINHEIRO para realização do parto e que,
após os procedimentos protocolares de praxe, por já apresentar “perda de líquido,
resultante do rompimento da bolsa”, foi encaminhada para a sala de pré-parto por uma
enfermeira, onde permaneceu por longo período sentindo muitas dores até que outra
profissional da saúde a encaminhou para outra sala e iniciou as manobras do parto, sem a
presença de um médico, dobrando o seu tronco para frente e orientando-a a fazer bastante
força no ato das contrações até que, após várias tentativas sofridas e infrutíferas, apareceu
outro profissional que, sem identificar, passou a pressionar violentamente todo o seu
peso contra a sua barriga, numa situação de tamanha brutalidade e agressividade que
lhe causou dores insuportáveis que perdurou até que finalmente a criança nasceu (Grifo
Nosso)”4.
Nesse caso, a própria reconstrução do relato da mulher já explicita toda a violência
sofrida, não somente psicológica, mas também física. Após o nascimento da criança, a
mãe sofreu um intenso sangramento, o que fez com que ela permanecesse em estado de
coma por cinco dias. Todas as intervenções realizadas resultaram em danos físicos como
“incontinência urinária, ausência de elasticidade do ânus e impossibilidade de manter
relações sexuais, por conta do fechamento do canal vaginal”. Em razão das violências
sofridas pela mulher, foi requerida a condenação pelo pagamento de danos morais e das
cirurgias estéticas corretivas dos danos físicos. A ação foi julgada parcialmente
procedente e condenou o polo passivo ao pagamento de danos morais, mas excluiu a
responsabilidade pelo pagamento de cirurgias estéticas para correção dos danos físicos.
Em outro acórdão, a mãe integrou o polo ativo e requereu a condenação do
município do Rio de Janeiro e da Associação de pais e amigos dos excepcionais (APAE
Rio - laboratório) por danos morais e materiais, devido aos diversos prejuízos causados à
autora em razão de resultado equivocado do exame de HIV realizado durante o seu pré-
natal. Apesar de o exame ter identificado que a autora da demanda possuía a doença, o
hospital não realizou novos exames para confirmação antes de submeter a mãe e a criança
a diversas intervenções: “Alega a autora, em síntese que, ao tomar conhecimento de sua
RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação cível n.º 0122777-09.2005.8.19.0001.
Relator: Des. Gabriel Zefiro. Rio de Janeiro. J. em: 07 mar. 2012.
4
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
452
PANÓPTICA
gravidez, iniciou seu prénatal, sendo solicitado pelo médico uma bateria de exames,
dentre os quais o exame de HIV. Realizou o teste no Hospital Maternidade Alexandre
Fleming, de administração municipal, em 12/02/2003 e obteve a resposta em 02/05/2003,
onde se afirmou ser a autora soropositivo. Em virtude de tal comunicação, a pressão da
autora chegou a 20x10, sendo imediatamente internada, mas não pode realizar a cesariana
em virtude de seu quadro clínico. No dia 06/05/2003 foi realizada a cirurgia, sendo que o
feto passou por rigorosos exames, já ingerindo os primeiros medicamentos para a suposta
doença. Ao nascer, a criança ainda tomou outros medicamentos contra o vírus durante um
mês e meio. Alega que, apesar de ser jovem, foi submetida a laqueadura das trompas por
indução dos médicos do Hospital que lhe informaram dos riscos de uma nova gravidez
em razão da doença constatada. Afirma ainda que: a) sofreu inúmeras discriminações por
parte de pacientes e curiosos enquanto permaneceu internada, não podendo amamentar
seu filho, sendo até mesmo isolada dos outros pacientes pelo hospital; b) durante todo o
tempo de internação foi medicada diariamente com AZT e outra substância para secar o
leite; c) foi solicitado novo exame para a autora em 07/05/2003 e de seu marido; d) o
resultado negativo obtido com o segundo exame da autora somente foi divulgado em
02/08/2003, ou seja, três meses depois do primeiro; e) o exame do marido com resultado
negativo foi entregue dois meses antes que o da autora, o que ocasionou a separação do
casal diante das desconfianças ocasionadas”5.
Referido caso foi julgado parcialmente procedente, tendo condenado apenas o
hospital ao pagamento dos danos morais. Os danos materiais não foram julgados
procedentes com o argumento de que não foram comprovados.
Apesar de os casos não terem sido categorizados como sendo casos de “violência
obstétrica”, ao analisarmos as violências relatadas pelas autoras dos dois processos que
ensejaram os acórdãos acima citados, é possível perceber que realmente as práticas dizem
respeito ao que conceituamos anteriormente como violência obstétrica. Há uma utilização
arbitrária do saber por parte de profissionais da saúde no controle dos corpos e da
sexualidade de suas pacientes, o que inclui a negligência, a discriminação social, a
RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação cível n.º 2008.001.28159. Relator:
Des. Roberto de Abreu e Silva. Rio de Janeiro. J. em: 05 ago. 2008.
5
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
453
PANÓPTICA
violência verbal, violência física, a medicalização e a utilização de procedimentos
inadequados e/ou desnecessários na assistência ao parto, incluindo também os momentos
pré e pós-parto.
A análise da variável instrumentos processuais nos pareceu importante, pois
permite que observemos a principal responsabilidade imputada ao polo passivo, se penal
ou cível. Conforme já mencionado, não há no Brasil legislação formal específica no
tocante à violência obstétrica, nem no âmbito cível, nem no âmbito criminal, como ocorre
em outros países, como a Argentina e a Venezuela. Assim, a maior parte das ações
pertencentes à amostra corresponde às apelações cíveis (88,5%), enquanto as apelações
criminais representam apenas 3,4% dos acórdãos analisados.
Acreditamos que a baixa incidência de processos criminais referentes à violência
obstétrica ocorre devido à ausência de um tipo penal próprio, havendo dificuldades na
tipificação dos delitos cometidos contra a mulher, em razão da gestação, nos períodos
pré-parto, do parto e pós-parto. Essa é, também, uma hipótese que norteia parcela de
movimentos sociais pela humanização do parto pela criação de uma Lei tipificando
violência obstétrica, lastreada em outras experiências legislativas, entre as quais, a Lei
Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) e a Lei contra o Feminicídio (Lei nº 13.104/15). As
duas leis resultaram de mobilizações nacionais e internacionais realizada por
organizações de Direitos Humanos e movimentos feministas. Elas se configuram como
resposta às recomendações da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher) e da Convenção da ONU
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW),
das quais o Brasil é signatário.
Com relação ao resultado em relação ao polo ativo, a maior parte dos acórdãos
analisados (41,9%) foi desfavorável ao polo ativo das ações. A quantidade de acórdãos
favoráveis representa 40,5% das ações. As demandas parcialmente favoráveis
corresponderam a 15,5% dos acórdãos analisados. Em 1,4% dos casos houve anulação da
sentença e em 0,7% dos acórdãos a decisão foi convertida em diligência.
Conforme mencionado, no julgamento dos acórdãos constantes na amostra objeto
da pesquisa não houve o enquadramento das violências relatadas na categoria de violência
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
454
PANÓPTICA
obstétrica, nem considerada como violência institucional ou violência de gênero. Em
regra, a justificativa para a concessão ou não dos pedidos pleiteados pelo polo ativo das
demandas se baseou na ausência/presença de elementos que comprovam os requisitos da
responsabilidade civil subjetiva: dano, nexo causal e/ou culpa (negligência ou
imprudência) ou da responsabilidade civil objetiva: dano e/ou nexo causal (CC/02, art.
186, 187 e 927; CDC, arts. 14, § 4º).
Portanto, foram comuns as seguintes justificativas: “ausente, portanto, nexo causal
a fixar responsabilidade, no tocante ao atendimento médico prestado, cumpre a
improcedência da ação6”; “constata-se a ocorrência do nexo causal entre o fato e o dano,
encontrando-se delimitada a responsabilidade objetiva do Ente Municipal em razão da
má prestação do serviço, na pessoa de seu preposto7”; “no caso, a prova dos autos não
logrou demonstrar o nexo causal entre a realização do parto normal com auxílio de
fórceps, o atendimento prestado no hospital corréu e a infecção sofrida pela autora,
afastando a ocorrência do alegado erro médico8”.
O enquadramento na legislação sobre responsabilidade civil para a apreciação dos
casos de danos e violências sofridas por mulheres durante a assistência ao parto, acaba
por permitir aos tribunais de justiça apurarem apenas uma das dimensões dessa questão
tão complexa: a ocorrência ou não de danos ocorridos em razão de erro médico ou
profissional. A dimensão da violação de direitos sexuais e reprodutivos e outros direitos
das mulheres são, comumente, silenciados.
Muitas vezes, o que está em questão, nos pedidos, relacionam-se a violações de
direitos sofridas pelas mulheres durante a assistência ao parto, materializadas como
violências institucionais e de gênero. Ainda que a obrigação da equipe médica seja de
meio e não de resultado, ou seja, que a equipe médica tenha empregado todos os esforços
para que a criança nasça com vida, é preciso analisar, também, se os meios empregados
não violaram os direitos das parturientes. É preciso analisar se os profissionais adotaram
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível com Revisão nº 585.600-4/0-00. Relator:
Elcio Trujillo. J. em 23 set. 2009.
7
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Reexame Necessário nº 009197120.2007.8.19.0001. Relator: Mauro Dickstein. J. em 06 dez. 2011.
8
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0003382-42.2009.8.26.0533. Relator: Paulo
Eduardo Razuk. J. 11 nov. 2014.
6
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
os procedimentos e condutas prescritas em protocolos de saúde sobre parto e atendimento
à saúde da mulher, de modo a garantir a elas uma atenção humanizada, preventiva e
reparadora de danos. Ainda, se os serviços de saúde, durante a assistência ao parto,
garantiram privacidade, sigilo, acesso à informação e atendimento de qualidade e sem
discriminação.
Nos julgados analisados, como os casos eram analisados à luz da teoria clássica da
responsabilidade médica, percebemos que houve, por parte dos tribunais, uma grande
ênfase nas provas documentais e testemunhais que pudessem servir para apurar a
ocorrência ou não do erro médico: “Compreende-se os aborrecimentos da parte autora e
dos familiares, mas não se pode imputar ao plano de saúde, ao hospital e à médica
qualquer responsabilidade. Observa-se, outrossim, a existência de muitas alegações sem
respaldo em prova documental ou testemunhal, razão pela qual agiu bem a douta juíza,
Dra. Cristina Inokuti, ao julgar improcedente a demanda”9.
Em alguns casos, foi possível verificar fundamentos distintos da responsabilidade
civil. Foi o caso, por exemplo, de alguns julgados relacionados às laqueaduras realizadas
sem consentimento, nos quais o Tribunal baseou sua decisão na violação ao direito ao
planejamento familiar: “Presente, pois, o dever de reparar o dano moral experimentado
pela autora, decorrente do abalo de ver frustrado o livre exercício do seu direito de
planejamento familiar e de não se submeter a procedimento médico sem a devida
informação e o necessário consentimento”10.
Nos casos relacionados à cobertura dos planos de saúde, apesar de, em regra, as
decisões serem baseadas no dever de atendimento de emergência dos referidos planos,
independentemente de carência, em alguns casos verificamos o reforço da argumentação
com o argumento da supremacia do direito à saúde: “O Direito do Consumidor resgatou
a dimensão humana do consumidor na medida em que passou a considerá-lo sujeito
especial de direito, titular de direitos constitucionalmente protegidos e vida, saúde e
segurança são bens jurídicos inalienáveis, indissociáveis do princípio universal maior da
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0009953-48.2009.8.26.0462. Relator: Jayme
Martins de Oliveira Neto. J. em 03 de setembro de 2013.
10
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9058757-19.2009.8.26.0000. Relator: José
Carlos Ferreira Alves. J. em 11 dez. 2012.
9
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
intangibilidade da dignidade da pessoa humana (...)Vivemos em um Estado Social e
Democrático de Direito, que desloca a sua atenção, fundamen-talmente, para a pessoa
humana e não mais para o patrimônio do indivíduo. A luta da sociedade contemporânea
é por liberdade com igualdade (substancial), ou seja, por solidariedade, por justiça social.
Estamos deixando a era dos “direitos declarados”, para ingressarmos na dos “direitos
concretizados”. Nesse novo contexto, as pedras angulares do novo Direito contratual são
a equidade e a boa-fé. Daí, o recrudescimento e a valorização do aspecto sinalagmático
da relação jurídica. Não mais se conforma a sociedade com a igualdade formal dos
contratantes, pura e simplesmente. Ao contrário, deseja muito mais do que isso; pretende
o reequilíbrio, o balanceamento total da relação, inclusive no que respeita a seus aspectos
éticos”.11
Observamos, contudo, que referidas justificativas foram apenas pontuais e que, em
regra, os Tribunais buscam as soluções dos casos na legislação civil, sem o enfoque na
violência obstétrica, na violência de gênero ou mesmo no direito fundamental à saúde.
A partir da tabela abaixo (Tabela 2), é possível observar quais foram os casos em
que os julgamentos foram favoráveis, desfavoráveis, parcialmente favoráveis ou
relacionados à anulação da sentença ou conversão em diligência, de acordo com a
violência sofrida pelo polo ativo da ação.
RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 032794209.2012.8.19.0001. Relator: Des. Werson Rêgo. J. em mai. 2014
11
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
457
PANÓPTICA
Tabela 2 – Resultados dos julgados em relação às violências sofridas (em número)
Parcialmente Anulação/ Total
Violência/Resultado Favorável Desfavorável
Favorável
Diligência
0
2
Danos Materiais
0
2
0
0
8
Violência Física
4
4
0
Violência Física e
0
2
0
2
0
Danos Materiais
Violência Física e
0
19
6
8
5
Psicológica
Violência
Física,
0
22
Psicológica e Danos
8
8
6
Materiais
Violência
0
47
25
16
6
Psicológica
Violência
3
41
Psicológica e Danos
15
17
6
Materiais
0
7
Não identificado
2
5
0
3
148
Total
60
62
23
Fonte: Autoras, 2015
Sobre os principais assuntos e temas que foram suscitados nos acórdãos,
destacamos que, muitas vezes, no mesmo acórdão, foi possível visualizarmos mais de um
tema. Desse modo, no gráfico abaixo (Gráfico 4), a quantidade de assuntos, em números,
supera a quantidade de acórdãos analisados.
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Gráfico 4 - Principais assuntos dos acórdãos (%)
25
20
15
10
5
0
Fonte: Autoras, 2015
Observamos que o assunto mais recorrente foi o relacionado aos danos ao períneo
(22,1%). Os danos ao períneo correspondem aos danos ocorridos na musculatura ao redor
da vagina e do ânus, sendo comumente utilizados os termos fístula reto-vaginal e fístula
reto-perineal. Esses danos são decorrentes, na maior parte das vezes, da realização de
episiotomia, procedimento que, conforme já mencionado, não é baseado em evidências
médicas.
Destacamos que não classificamos os julgados que tratavam dos danos ao períneo
em permanentes ou temporários à mãe, devido à grande incidência desse resultado, razão
pela qual ele foi tratado de forma específica. Ademais, acreditamos que a individualização
dos danos ao períneo é também importante, porque são permanentes e deixam, muitas
vezes, sequelas que impedem ou prejudicam a vida sexual das pacientes.
A segunda maior recorrência se refere aos danos permanentes ao bebê (16,9%).
Cabe destacarmos que consideramos os danos como permanentes quando eram
mencionados os seguintes termos no acórdão: sequelas, irreparáveis, permanentes,
aquisição de determinada doença e danos estéticos.
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
459
PANÓPTICA
Quanto aos casos relacionados aos danos permanentes ao bebê, destacamos o
seguinte julgado, no qual os pais da criança e a criança ingressaram com ação de
indenização em face do médico responsável pelo nascimento e do hospital, tendo em vista
que a criança nasceu com Síndrome convulsiva de West, “com conseqüente atraso em seu
desenvolvimento, perda de visão, impossibilidade de fala e de ingestão de alimentos
sólidos, além de incapacidade para a deambulação”: “Os autores, nesse diapasão, relatam
que: "(...) O trabalho de parto desenrolou-se com muito sofrimento à mãe, que pediu
novamente que fosse realizado com cesariana. O pedido não foi atendido, e a mãe foi
submetida a parto normal extremamente difícil, sendo certo que o médico e a equipe do
Hospital realizaram fortes pressões sobre a barriga da paciente e fizeram uso do
'FORCEPS', em método doloroso, antiquado e não condizente com a medicina atual...
Algumas horas após o pai foi chamado ao berçário e teve encontro com a médica
pediatra plantonista conhecida como Dra. Eliza. A frente do pai a Dra. Eliza repreendeu
o Dr. Carlos e perguntava, insistentemente, o que ele havia realizado na operação (...) O
pai, pessoa de limitada cultura, foi afastado e nada lhe foi dito até que, mais tarde, foi
procurado por uma atendente que o informou que a criança nascera com problemas
médicos, ou seja brocopneumonia, naxia neomental e síndrome convulsiva...” (Grifos no
original)”.12
Nesse caso, é possível observarmos que, apesar da descrição de intenso sofrimento
à mãe, o pedido foi relacionado apenas relativamente aos danos causados ao bebê após o
seu nascimento. Ademais, observamos que, além de o pedido da mãe em relação ao parto
não ter sido atendido pela equipe de saúde, durante o parto foram realizadas fortes
pressões sobre a barriga da paciente e houve a utilização do fórceps, o que pode estar
associado aos problemas médicos da criança, conforme alegação das partes.
Em primeiro grau, foi afastada a responsabilidade da equipe de saúde, sendo
condenado apenas o hospital no qual foram realizados os procedimentos. Apesar de os
pais da criança e a criança terem apelado, insistindo na responsabilização também da
equipe de saúde, o TJSP manteve a decisão de primeiro grau, com os fundamentos de que
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 455.553-4/1-00. Relator: Des. Sebastião
Carlos Garcia. São Paulo. J. em 11 dez. 2008.
12
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
460
PANÓPTICA
não há comprovação da culpa de que os procedimentos realizados foram causadores dos
referidos problemas, tendo em vista que a responsabilidade é subjetiva. Além disso, o
TJSP justificou que: “Como quer que seja, como sabido e consabido, o parto com o
auxílio de fórceps não é método antiquado, eis que destina-se, exatamente, a abreviar o
período de expulsão do bebê, sendo utilizado, principalmente, em casos de sofrimento
fetal, puxo ineficaz ou exaustão da parturiente. Assim, o médico, diante das condições do
parto, verificando a necessidade de tal método não só pode, como deve utilizá-lo de forma
a preservar a saúde e a vida da mãe e do bebê. No caso em tela, não restou demonstrado,
como referido, que a utilização do fórceps se deu de forma imperita, razão pela qual deve
ser afastada a responsabilidade do co-réu Carlos Roberto”13.
Aqui é possível observarmos que, conforme já apontado, a mãe é considerada como
mera paciente, não tendo o poder de escolha durante o seu parto. Além disso, todas as
experiências vividas pela mãe durante o período do parto foram negadas no acórdão,
justificando-se a utilização de procedimentos dolorosos pelo resultado do parto: o
nascimento do bebê.
O óbito fetal foi considerado como a terceira causa (12,8%) dos assuntos
mencionados pelos acórdãos.
Os danos permanentes à mãe correspondem à 11% dos acórdãos analisados. Em um
dos acórdãos no qual o pedido de indenização decorrente dos danos causados à gestante
foi improcedente, a fundamentação do Tribunal de Justiça foi a de que, apesar de
comprovado que a equipe de saúde do hospital, por meio do exame de toque impróprio,
teria causado abertura dos pontos da episiotomia, os danos psicológicos da gestante
seriam decorrentes do “estresse natural provocado pelo parto”: “No entanto, não há prova
de que tal circunstância, por si só, seria capaz de causar todos os males descritos na inicial,
quer sejam os físicos (sangramento vaginal intenso e retirada de grande quantidade de
coágulos pela médica), quer sejam os morais (sofrimento, angústia, constrangimento e
outros sentimentos narrados), lembrando-se, quanto a estes últimos, que a autora passava
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 455.553-4/1-00. Relator: Des. Sebastião
Carlos Garcia. São Paulo. J. em 11 dez. 2008.
13
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
por difícil situação pessoal no momento do parto, além do sofrimento causado pelo
próprio parto em si, cujo estresse é do conhecimento ordinário”14.
Os danos temporários à saúde da gestante corresponderam a 7,6% dos acórdãos
analisados. Destacamos que muitos dos danos temporários decorreram de esquecimento
de materiais no interior do corpo da mulher (gazes, agulhas).
Observamos que, somados os danos diretos (temporários e permanentes) à gestante,
obteremos o resultado de 18,6% dos acórdãos analisados, resultado bem expressivo e que
pode reforçar a tese de que a violência obstétrica é uma espécie de violência de gênero.
As laqueaduras realizadas sem o consentimento da gestante correspondem a 7% dos
acórdãos analisados. Por muito tempo, a escolha de cesáreas pelas mulheres ocorria em
razão da possibilidade de que fosse realizada a laqueadura. Em 1999, o Ministério da
Saúde expediu a portaria nº 48, na qual proibiu que a laqueadura fosse realizada nos
períodos do parto, aborto ou até o 42º dia do pós-parto ou aborto, exceto nos casos de
comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores, ou quando a mulher for
portadora de doença de base e a exposição a segundo ato cirúrgico ou anestésico
representar maior risco para sua saúde. Apesar da normativa do Ministério da Saúde e do
direito ao planejamento familiar como decisão dos casais, previsto no artigo 226, §7º da
CF/88, foi possível identificarmos expressiva ocorrência desse fenômeno (7%).
Observamos que, na maior parte dos casos, a laqueadura ocorrida sem consentimento era
descoberta anos após sua realização. Nos casos nos quais o pedido da autora foi
considerado improcedente, as principais fundamentações foram no sentido de que não
houve comprovação do nexo de causalidade, ou seja, não comprovação de que a
laqueadura tenha sido realizada pelo polo passivo e, quando comprovada, que havia a
necessidade de se comprovar que ela não era necessária, pois poderia haver hipóteses em
que sua não realização representaria risco maior à saúde da gestante.
O desrespeito à escolha do parto correspondeu a 6,4% dos acórdãos analisados.
Esse dado foi obtido pelas informações constantes nos acórdãos de que a mulher não
queria que fosse realizado determinado tipo de parto. A negativa na cobertura do parto
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0333802-04.2009.8.26.0000. Relator: Des.
Silvia Sterman. J. em 3 jun. 2014.
14
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
462
PANÓPTICA
ocorreu em 5,2% dos casos e foi visualizada nos casos em que o plano de saúde, por
razões de carência, não cobriu determinados procedimentos essenciais ao parto. Em regra,
esses casos foram julgados procedentes, uma vez que os procedimentos de urgência ou
emergência devem ser cobertos pelos planos de saúde. O óbito materno foi verificado em
3,5% dos acórdãos. Cabe destacar que a redução da mortalidade materna está incluída no
quinto objetivo do milênio, consistente na melhoria da saúde materna. O relato da
ausência do médico no hospital durante os períodos do parto correspondeu a 2,9% dos
acórdãos analisados. Em regra, a ausência do médico acompanhou algum outro tipo de
dano à mãe ou ao bebê. A omissão de socorro foi visualizada em 1,7% dos acórdãos e
ocorreu quando, apesar de presente o médico, houve negativa de atendimento. A negativa
ao direito ao acompanhamento, apesar de proibida pela lei nº 11.108/05, compreendeu
1,2% dos casos analisados. Essa mesma taxa (1,2%) foi observada nos casos relacionados
aos danos temporários ao bebê. Por fim, as intervenções sem o consentimento da mulher
corresponderam a 0,6% da amostra analisada. Cabe aqui destacarmos trechos de um dos
acórdãos, nos quais a mãe da criança teve seu útero retirado sem o seu consentimento:
“Alega a autora que, em 18 de março de 2000, foi internada às pressas no Conjunto
Hospital do Mandaqui, sendo submetida à cesariana.
“Relata que teve complicações em seu quadro clínico - em decorrência da não
cicatrizaçao do corte - tendo sido submetida a outras cirurgias e recebido alta somente no
dia 17 de abril do mesmo ano, mas ainda em péssimo estado de saúde. Assim, em 13 de
julho foi submetida a cirurgia de correção estética das anomalias causadas pelas cirurgias
anteriores. Desconfiada de que algo não corria dentro da normalidade, submeteu-se a
exame de ultrassonografia em 30 de novembro de 2000, constatando que seu útero fora
retirado sem seu consentimento”15.
Destacamos que, nesse caso, a ação foi julgada improcedente com o argumento de
que não houve comprovação da culpa do profissional de saúde, sendo o procedimento
necessário à vida da paciente.
SÃO PAULO, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 296.280-5/0-00. Relatora: Des. Vera
Angrisani. J. em 11 set. 2007.
15
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
5. Conclusões
Como nossos dados sugerem, os casos de violência obstétrica judicializados não
aparecem, pelas próprias autoras do processo, categorizados como violência obstétrica ou
violência institucional. Na maior parte das vezes, as ações processuais são de natureza
cível por danos provocados por equipe médica durante a assistência ao parto. O foco
principal da demanda não parece estar na violação dos direitos das mulheres, mas na
combinação entre danos à criança e à mulher. E as chances em se obter uma sentença
favorável estão associadas à natureza/gravidade da lesão e a sua abrangência (mulher e
bebê). Nesse quadro, os tribunais estudados tendem a concentrar seus esforços analíticos
na apuração da ocorrência do erro profissional do qual decorreu a lesão e, neste recorte,
na escolha da técnica (mais adequada ou não) para o caso, focando-se, para isso, no
resultado da intervenção: nascimento do filho com vida ou não; danos irreparáveis à
mulher que são decorrentes do próprio parto, por ser um evento de risco, ou se em razão
da imperícia ou negligência.
Em outros termos, se o procedimento adotado pela equipe de saúde viabilizou o
nascimento do bebê com vida (ainda que com algumas sequelas), as respostas judiciais
tendem a menosprezar as violações de direitos humanos sofridas pelas mulheres durante
a assistência ao parto, entendendo-as como “mal necessário”, a descaracterizar a conduta
da equipe de saúde como erro médico (imperícia ou negligência) e a associar a ocorrência
aos danos (físicos ou morais) às mulheres mais ao “evento parto” e menos à conduta
profissional. Essa perspectiva fundamenta-se, em geral, menos na literatura científica ou
protocolos já existentes sobre assistência ao parto humanizado e mais nos sensos comuns
que circulam atualmente com relação ao parto, que o compreendem como um evento
médico-cirúrgico de risco.
De modo geral, esse olhar dos tribunais de justiça nos casos em debate, pautado no
senso comum e sem o esforço em compreender a violência obstétrica como violência
institucional e de gênero tende a reproduzir problemas comuns àqueles que as mulheres
enfrentam quando buscam acessar a justiça diante de outros casos de violência de gênero.
Entre esses problemas, podemos citar: a tendência a diminuir ou menosprezar a gravidade
dos casos relatados, a demora na resposta, a ausência de capacitação dos agentes do
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
sistema de justiça para a devida diligência em tais casos, o descrédito com relação à
palavra das mulheres e a suposição de neutralidade das normas. Esses problemas
favorecem a reprodução de um subtexto de gênero que aprofunda os traços sexistas, já
presentes no Direito e nas práticas médicas de assistência ao parto.
Ao judicializarem as demandas por reparação de danos decorrentes da assistência
ao parto, as mulheres parecem contrariar o senso comum disseminado de que o respeito
à autonomia da mulher é algo secundário no processo do nascimento, importando apenas
o produto final: o nascimento do bebê. Entendemos que, além da demanda por reparação
dos danos sofridos, pode haver uma expectativa por parte das autoras das ações judiciais,
de que seja reconhecido que os danos sofridos durante a assistência ao parto são
decorrentes da má-conduta de profissionais da saúde e não do parto em si.
De acordo com o Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da
Violência Contra as Mulheres, em 2012, a dor do parto, no Brasil, comumente é relatada
como “a dor da solidão, da humilhação e da agressão, com práticas institucionais e dos
profissionais de saúde que criam ou reforçam sentimentos de incapacidade, inadequação
e impotência da mulher e de seu corpo” (Rede Parto do Princípio, 2012, p. 7).
O processo judicial traz uma oportunidade à mulher vítima de violência obstétrica
de reinscrever sua experiência traumática em que se sentiu agredida, desrespeitada e
violentada pelas pessoas que deveriam estar lhe prestando assistência em uma experiência
como sujeito de direito. Nesse sentido, a própria sentença que reconheça as violências
sofridas já constitui uma forma de reparação, ou seja, possui força simbólica capaz de
esclarecer, formalmente, que a violação de direitos humanos observada no caso é
importante ao Direito e que gerará consequências.
Analisar os danos relatados pelas vítimas e que fundamentam os pedidos
processuais como uma forma de violência de gênero é compreendê-los como resultantes
de uma relação hierárquica de poder, que reduz a capacidade das mulheres de exercerem
seus direitos durante as etapas do parto (pré, durante e pós-parto) e resulta em um
conjunto variado e articulado de danos físicos, emocionais, estéticos, psicológicos e
morais a elas e seus familiares. É, também, entendê-los como um tipo de violência
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
institucional, ou seja, aquela praticada nas instituições prestadoras de serviços públicos
responsáveis pela assistência humanizada, preventiva e reparadora de danos.
Ainda que as partes processuais não se utilizem da categoria violência de gênero
para se referir aos danos ou violações de direitos sofridas no contexto da assistência ao
parto, consideramos fundamental que, em tais casos, os próprios agentes do sistema de
justiça, em especial, os integrantes da Magistratura, busquem realizar tal enquadramento
e, também, analisar tais processos sob uma perspectiva de gênero, conforme preconizado
por tratados internacionais.
Entendemos que a abordagem da violência obstétrica como uma violência
institucional e de gênero por parte do sistema de justiça decorre dos deveres do Estado
brasileiro em assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos das
mulheres, em especial suas demandas contra inúmeras formas de opressão, discriminação
e exploração baseadas nas diferenças de gênero. Isso significa, por exemplo, o dever de
atuação do sistema de justiça, com toda diligência, na prevenção, investigação, punição e
reparação de todos os casos de discriminação e violência de gênero. Também, significa a
criação mecanismos de acesso fácil e célere das mulheres à justiça (interna e
internacional) em casos de violação de direitos das mulheres, bem como a garantia do
acesso à justiça sem discriminação pautada em gênero.
Nesse sentido, a CEDAW reconhece que o compromisso dos Estados-partes em
assegurar a efetivação do princípio da igualdade entre homens e mulheres, se faz mediante
o estabelecimento da proteção jurídica dos direitos da mulher e de um sistema de justiça
apto à realização da igualdade de gênero. Nos termos artigo 2º desta Convenção: “Os
Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas,
concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política
destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem
a: (...) c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade
com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras
instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação; d)
abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para
que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação”.
NOGUEIRA, Beatriz Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência obstétrica e acesso das mulheres à
justiça: análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste. Panóptica, vol. 11, n. 2,
pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
A Recomendação Geral n. 19 do Comitê pela Eliminação de Todas as formas de
discriminação contra a mulher (Comitê CEDAW) chamou a atenção para a relação entre
violência e discriminação, ao entender que a violência de gênero é uma forma de
discriminação capaz de inibir a capacidade de as mulheres gozarem seus direitos e
liberdades em uma base de igualdade com os homens. Também, que a discriminação é
responsável por provocar ou perpetrar novas situações de violência de gênero.
Da mesma forma, a Convenção de Belém do Pará reconhece, como direitos
humanos das mulheres, o direito a uma vida livre de violência e o direito a que se
respeitem e protejam seus direitos humanos. Também prevê como deveres dos Estado
signatários, em seus arts. 7º e 8º, entre outras coisas: a) assegurar o estabelecimento de
procedimentos jurídicos justos e eficazes para as mulheres (dever de devida diligência);
b) e promover a educação e o treinamento de todo o pessoal judiciário, policial e de todos
os responsáveis pela aplicação da lei para que haja a prevenção, punição e erradicação da
violência contra a mulher; e c) levar em conta, em suas ações, a situação da mulher
vulnerável a violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante, de refugiada
ou de deslocada, entre outros motivos.
Por fim, a Recomendação do Comitê CEDAW nº 33/2015 sobre o acesso das
mulheres à justiça traz uma série de diretrizes aos Estados parte da Convenção para que
eles exerçam a devida diligência para prevenir, investigar, punir e prover reparação a
todos os crimes cometidos contra mulheres, sejam por atores estatais ou não estatais.
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pp. 430-470, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime
Marília de Nardin Budó1
Recebido em 1.4.2016
Aprovado em 5.6.2016
Resumo: O acesso ao discurso através dos
meios de comunicação tem sido
historicamente obstruído pela maior parte
das pessoas destituídas de poder
econômico e político. Em razão disso, a
utilização de fontes oficiais pelo
jornalismo possui a tendência de
conservação do status quo. O mesmo se
pode afirmar em relação às notícias sobre
crimes que reproduzem cotidianamente o
estereótipo do criminoso perseguido pelo
sistema penal: pobre, negro e periférico. A
crítica dos meios de comunicação pelos
criminólogos críticos não pode vir, porém,
destituída de estratégias que busquem
romper com esse processo. Nesse
contexto, este trabalho busca, através de
pesquisa
bibliográfica
exploratória
interdisciplinar, questionar diferentes
meios através dos quais deve a academia
atingir o público. As principais estratégias
estudadas são a busca por rupturas nas
velhas mídias; a luta pela democratização
dos meios de comunicação e o uso das
novas mídias como instrumento de
publicação
de
discursos
contrahegemônicos sobre o crime, sempre na
interação com os movimentos sociais.
Palavras-chave: Criminologia; Meios de
comunicação;
discurso
midiático;
democratização
dos
meios
de
comunicação; novas mídias.
Abstract: The access to the speech
through the mass media has historically
been obstructed to most people deprived
of economic and political power. Because
of that, the use of official sources by
organizational journalism has the trend of
conservation of the status quo. The same
can be said for the news about crimes that
daily reproduce the stereotype of the
criminal pursued by the criminal justice
system: poor, black and marginal. The
criticisms about the mass media by critical
criminologists cannot come, however,
devoid of strategies that seek to break with
this process. In this context, this work
aims,
through
interdisciplinary
bibliographical research, to question
different ways in which the academy
should reach the public. The main
strategies studied are: to search for breaks
in traditional mass media; the struggle for
the democratization of the media; and the
use of the new media as a tool for
publishing counter-hegemonic discourses
on crime, always in interaction with the
social movements.
Keywords: Criminology; mass media;
media discourse; democratization of the
mass media; new media.
Doutora em Direito pela UFPR, Mestre em Direito pela UFSC. Professora do PPGD da Faculdade
Meridional.
1
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
1. Introdução
A produção da notícia pelos veículos de comunicação hegemônicos passa por um
processo repleto de escolhas a serem feitas pelo próprio jornalista, pelos editores, e
mesmo pelos seus proprietários. Essas escolhas perpassam questões como: pauta,
enquadramento, fontes das notícias, léxico, ordem, entre outras, e têm como critérios
questões organizacionais, ideológicas, econômicas, políticas etc. Tudo isso para dizer que
o produto desse processo não é um resultado necessário; não é um espelho da realidade;
é um constructo social.
Isso não significa, porém, que os veículos que se dizem jornalísticos possam
legitimamente criar uma realidade que se afasta completamente dos fatos, pois, por detrás
dessa mercadoria que hoje se tornou a notícia, o jornalismo possui uma história que deve
ser lembrada e cobrada. A liberdade de imprensa, junto da liberdade de informação e do
acesso à informação são direitos que, a despeito de sua base política liberal, traduzem
uma mensagem bem mais profunda do que pretendem os defensores do liberalismo
econômico: a regulamentação dos meios de comunicação, antes de buscar qualquer tipo
de censura estatal, tem o condão de garantir o pluralismo, o acesso, a diversidade, todos
eles princípios fundamentais da democracia.
É muito em razão da oligopolização do mercado das comunicações no Brasil e no
mundo que se vê cotidianamente a legitimação discursiva, através da mídia hegemônica,
dos mais profundos preconceitos enraizados nas culturas locais, nacionais e mesmo
internacionais. No que tange ao crime, que é o objeto central deste trabalho, o resultado
do processo descrito acima tem como consequência a delimitação política dos inimigos
da sociedade, sempre na interação com a ação seletiva do sistema penal, controlado por
poucos detentores de poder político e econômico. Aquelas pessoas que serão os bodes
expiatórios tornam-se facilmente o foco tanto do recrutamento de clientela para as prisões,
quanto de personagens para os espetáculos midiáticos. Elas servem, ainda, para auxiliar
no ocultamento dos crimes de maior danosidade social provocados pelos poderosos.
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
O marco teórico deste trabalho é a criminologia crítica, entendida como a
construção de uma teoria materialista, isto é, econômico-política, do desvio, dos
comportamentos socialmente negativos e da criminalização. A criminalidade, nesse
marco, não possui status ontológico ligado a certos comportamentos de indivíduos cujo
estudo específico determinará as causas do desvio, mas é, isso sim, uma qualidade
atribuída aos mesmos, mediante uma dupla seleção: a criminalização primária - “seleção
dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos
nos tipos penais” – e a criminalização secundária – “seleção dos indivíduos
estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente
sancionadas” (BARATTA, 2002, p. 61). Desse modo, a seleção operada pelo sistema
penal e repercutida pelos veículos de comunicação hegemônicos não constituem
tampouco o resultado necessário da busca aos “criminosos”, mas uma etapa do processo
de construção social do crime, que, simultaneamente à rotulação dos grupos mais
vulneráveis da sociedade como desviantes/criminosos/ perigosos, imuniza os poderosos.
Diante da necessidade de se buscar alternativas a essa realidade tão denunciada por
pesquisas científicas no âmbito da criminologia no mundo inteiro, este artigo busca
avaliar algumas dessas possibilidades. Através de pesquisa exploratória bibliográfica
interdisciplinar, trata-se inicialmente sobre o problema do acesso na construção das
notícias (1), para, em seguida, partir para a análise das estratégias de ação midiática
contra-hegemônica que hoje já trazem redefinições do que é crime e de quem são os
criminosos. Trata-se de analisar tanto as possibilidades de explorar os meios de
comunicação tradicionais (2), na pequena margem em que se pode mover dentro da
ausência de regulação que existe hoje (2.1), mas, ao mesmo tempo, lutar pela
democratização dos meios de comunicação (2.2) e, claro, utilizar as novas mídias como
instrumento de contra-hegemonia (2.3).
2. A construção das notícias sobre crime e o interesse (do) público: o “quarto poder”
em xeque
A passagem da fase político-literária do jornalismo, no período das revoluções
burguesas, à sua fase comercial, foi acompanhada de mudanças fundamentais na sua
estrutura. Para independer-se dos sindicatos e dos partidos políticos, outro tipo de
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
financiamento passou a ser necessário: a publicidade (TRAQUINA, 2004). Na busca pelo
lucro, o número de leitores também deixou de ter um caráter direto de influência política
e adesão a determinados movimentos, mas sim, passou a se converter em cifras e
conformismo político com o status quo. Não romper com pontos de vista tradicionalmente
aceitos passou a ser uma praxe, determinando diretamente a linha editorial dos jornais, o
que potencialmente veio a agradar, a uma só vez, o público e os anunciantes. Também
para angariar o maior número de consumidores, a isenção ideológica e a credibilidade das
notícias se tornaram valores fundamentais da prática jornalística. O caráter revolucionário
do jornalismo desapareceu da maior parte dos veículos, tendo permanecido apenas nos
pequenos jornais, panfletos, fanzines, entre outros produtos dos movimentos de
resistência e contracultura, dentro da chamada “mídia radical” (DOWNING, 2004).
Com a transformação do jornalismo, alguns valores passam a ser exigidos na sua
prática, como “a procura da verdade, a independência, a objetividade e uma noção de
serviço ao público” (TRAQUINA, 2004, p. 34). A crescente comercialização dos jornais
trouxe também a profissionalização dos jornalistas, atividade a qual antes era realizada
pelos intelectuais em geral. Através de diversas técnicas, a opinião será cirurgicamente
ocultada das matérias informativas, e exposta claramente em outros gêneros jornalísticos
como a coluna, o artigo, a entrevista, o editorial, a carta ao leitor etc. Trata-se do
coroamento do famoso princípio da objetividade jornalística: nega-se o sujeito que
instrumentaliza a linguagem.
Trata-se, porém, de uma construção fundamental para a legitimação do discurso
jornalístico como verdadeiro. No contexto do liberalismo revolucionário, a ideia de uma
imprensa livre e independente se fundamentava na própria teoria da separação dos
poderes: caberia, então, ao jornalismo, o papel de controle e fiscalização do Executivo,
Legislativo e Judiciário (MORETZSOHN, 2007, p, 116). É o que se convencionou
chamar de o “quarto poder”. Porém, o mercado de notícias, ao contrário de forjar a
liberdade de imprensa, trouxe muito mais comprometimento da mídia com a busca
desesperada por lucros, longe, portanto, da preocupação com o republicanismo. Como
nota Moretzsohn, “no mundo das grandes corporações da Idade Mídia, a imagem do
jornalismo como mediador associada à idéia de ‘quarto poder’ só pode sobreviver como
nostalgia de um tempo que talvez jamais tenha existido” (MORETZSOHN, 2002).
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
A simultânea naturalização da ideia do “quarto poder” e da notícia como mercadoria
é um evidente paradoxo. Enquanto o primeiro imprescinde de uma independência dos
órgãos de comunicação tanto em relação ao Estado quanto em relação às empresas
privadas, o segundo necessariamente atrela a produção noticiosa aos interesses do
mercado. Assim, a ideologia da objetividade surge como forma de legitimação de um
discurso que é, preponderantemente, comprometido com o setor privado.
“Em outras palavras, a mídia movimenta-se e nutre-se desse ambiente indefinido
constituído pelo interesse e pela opinião privados mas que se manifestam como públicos.
Por mais que possam também atuar em uma perspectiva pública, sempre estarão presos
os meios de comunicação privados a interesses e compromissos privados e mercantis e,
o que é essencial, desprovidos de controles efetivos por parte da sociedade e do Estado”
(FONSECA, 2004, p. 19-20).
Para garantir o fortalecimento e enraizamento dessa ideologia, além de conferir
credibilidade às notícias produzidas como mercadoria, são várias as estratégias adotadas
no campo jornalístico. Algumas das técnicas seriam “a reunião de provas suplementares,
a apresentação de pretensões de verdade que entre si estão em conflito, a ilusão de fatos
mediante a familiaridade com os procedimentos policiais e a utilização das aspas”
(TUCHMAN, 1983, p. 174). Todas elas, porém, apontam para a manutenção do status
quo, para a pregação do consenso.
É o que, a partir da 1970, a communication research, encontrou como principal
resultado: a notícia é uma forma de controle social (BERGER; MAROCCO, 2006). Se,
em palavras simples, só é visto o que é mostrado, então as escolhas realizadas diariamente
pelos veículos de comunicação importam e muito na compreensão que se tem da
realidade. Para Ericson et al. (1991, p. 286), “As notícias envolvem controle através dos
processos rotineiros de seleção e classificação dos jornalistas e suas fontes, através da
influência das notícias nas fontes, e através da maneira através da qual as notícias
articulam e influenciam a opinião pública sobre as relações saber/poder na sociedade”.
As notícias que tratam sobre a violação da lei tratam também de como se deve agir
“corretamente”. Daí a eficácia das notícias como forma de controle.
“Mesmo quando autoridades particulares são mostradas trabalhando arduamente –
a polícia investigando, os juízes julgando, os legisladores legislando – é a autoridade,
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
475
PANÓPTICA
mais do que uma autoridade particular desses atores, que é reproduzida. A autoridade
define como ver o mundo, incluindo o que é justo. Autoridade e justiça não mais
incorporam relações sociais particulares, mas mitologias culturais sobre essas relações.
Através dessas mitologias culturais o direito e a mídia representam a ordem” (ERICSON
et al., 1991, p. 344).
Tanto a opção editorial da maior parte dos veículos de mídia, baseados, sobretudo,
em uma lógica empresarial e de profundas relações com os setores políticos mais
conservadores, quanto as características de que se reveste a produção organizacional das
notícias auxiliam na construção da realidade como um consenso. Por mais que a ideologia
da notícia leve à veiculação prioritária de fatos que estão fora do lugar, ou seja, o
desviante, o equívoco, o imprevisível, eles são apresentados de maneira a reduzir essas
características, representando, de alguma maneira, a ordem: “o conhecimento do senso
comum disponível nas notícias não fornece instruções sobre ‘como as coisas são’, mas
sim ‘onde elas cabem’ na ordem das coisas” (ERICSON et al., 1991, p. 4). Nesse sentido,
as notícias lidam com três aspectos da ordem: a avaliação moral, uma concepção de
procedimento e a hierarquia. Se um fato está dentro da ordem, ele será avaliado como
bom, saudável, normal, eficiente; se está fora, será visto como mau, insalubre, anormal,
ineficiente (ERICSON et al., 1991).
Um dos resultados mais interessantes dessas pesquisas é aquele que sistematizou
um conjunto de conhecimentos da prática jornalística, não escrito, mas empregado
diariamente para definir quais acontecimentos são noticiáveis e quais não são. Trata-se
dos critérios de noticiabilidade ou valores-notícia. Galtung e Ruge buscaram determinar
as tipificações, os hábitos que demonstram quais as condições os acontecimentos devem
satisfazer para se tornarem notícias (GALTUNG; RUGE, 1981)2.
Os critérios sistematizados por esses autores se dividiram em: critérios substantivos, critérios relativos ao
produto, critérios relativos ao meio, critérios relativos ao público e critérios relativos à concorrência. Nos
critérios substantivos, foram relacionados o grau e o nível hierárquico dos indivíduos envolvidos, o impacto
sobre o interesse nacional, a quantidade de pessoas envolvidas, a possibilidade de evolução futura do caso,
o interesse do público. Nos critérios relativos ao meio, foram incluídos a boa imagem do material captado,
o formato etc. Nos critérios relativos ao produto, encontram-se a brevidade, a atualidade, a qualidade e o
equilíbrio. A capacidade de o fato interessar e entreter são critérios relativos ao público, assim como a
estrutura narrativa e a importância do fato. A importância dada ao fato pela concorrência também é um
critério de noticiabilidade: as expectativas recíprocas e a possibilidade de um furo de reportagem são
considerados na construção da notícia (GALTUNG; RUGE, 1981).
2
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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Para Hall et al., o primeiro e mais básico de todos os critérios seria a singularidade,
o fora do comum, além de outros, como acontecimentos que envolvem pessoas ou países
de elite, acontecimentos dramáticos, que podem ser personalizados, demonstrando
tristeza, sentimentalismo e tenham consequências negativas. “Desastres, dramas, a vida
dos ricos e poderosos, todos eles encontram lugar nas páginas de um jornal” (HALL et
al., 1981, p. 225). Quanto maior for a pontuação de determinado fato, mais noticiável ele
será. Na prática, “[...] quanto mais negativo, nas suas consequências é um acontecimento,
mais probabilidades tem de se transformar em notícia” (WOLF, 2006, p. 183)3. É claro
que esta negatividade depende também dos outros critérios: um desastre quando ocorrido
em uma potência econômica, vitimizando pessoas de status social mais alto, é muito mais
noticiável do que um desastre com mortes mais numerosas, mas em um país marginal,
vitimizando pessoas de reduzido poder social, político e econômico.
Nesse processo de definição é escolhido o que será visto e o que permanecerá
oculto. Como nota Fishman (1988), o poder da mídia está justamente nesse processo de
definir para onde as atenções do público irão se voltar, afinal “[...] o que está ‘realmente
acontecendo’ é idêntico ao que as pessoas prestam atenção”.
Para além das manipulações mais evidentes e cotidianas veiculadas pelos meios de
comunicação hegemônicos, eles também podem representar os pontos de vista
dominantes da sociedade, sem necessariamente que isso seja consciente. Através das
técnicas jornalísticas antes descritas para conferir profissionalismo e credibilidade, a
cobertura de acontecimentos pré-agendados pelas instituições, assim como a dependência
de fontes oficiais, os jornais se conformam à posição de reprodutores da ordem social, a
partir da veiculação prioritária das vozes de quem tem poder: representantes de
instituições sociais importantes garantem a necessária máscara objetiva e imparcial às
afirmações dos veículos de comunicação hegemônicos.
As fontes das notícias são partes essenciais da coleta de informações, tendo em vista
que na maior parte das vezes o jornalista não está presente no momento dos
Apesar de grande parte desses critérios continuar válida para definir a noticiabilidade de um fato, autores
como Jewkes procuram atualizá-los, de modo a adaptá-los ao desenvolvimento dos meios de comunicação
ocorrido nos últimos quarenta anos. Para a autora, doze valores-notícia costumam ser utilizados como
critérios de noticiabilidade atualmente. São eles: “entrada, previsibilidade, simplificação, individualismo,
risco, sexo, celebridade ou pessoas de status elevado, proximidade, violência, imagem ou espetáculo
gráfico, crianças, ideologia conservadora e diversão política” (JEWKES, 2004, p. 40).
3
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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acontecimentos, além de não ter conhecimento suficiente para tratar das especificidades
inerentes aos diferentes assuntos abarcados pela notícia. Mas os critérios utilizados na
escolha das fontes é que garantem a elas o caráter de “segredo profundo e obscuro do
poder da imprensa” nas palavras de Michael Schudson (2003). A chamada hierarquia das
fontes garante o acesso das pessoas e organizações que, para além de seu poderio político
e econômico, atendem às exigências técnicas e políticas. Em função disso, também há
fontes, principalmente as não oficiais, que são sub-representadas nas páginas dos jornais:
a rede de fontes “[...] reflete, por um lado, a estrutura social e de poder existente e, por
outro, organiza-se a partir das exigências dos procedimentos produtivos” (WOLF, 2006,
p. 198).
Nas notícias sobre crimes, essa representação da ordem social permite uma
determinada construção da realidade que não apenas legitima a seletividade do sistema
penal vigente, garantindo a posição de bodes expiatórios aos jovens negros das periferias,
como produz a necessidade de ainda mais controle através da espetacularização de casos
criminais4. A fonte utilizada na maior parte das notícias sobre crimes é a polícia, a qual
atua prioritariamente contra os crimes de rua, contra as pessoas mais vulneráveis
(ANIYAR, 2005; BARATA, 1998; BUDÓ, 2013; BUSTOS, 1981; ZAFFARONI, 1991).
As notícias sobre crimes aparecem então como a maior potência do controle social.
É nelas que o certo e o errado, o normal e o patológico, entre outras dualidades irão se
expressar. E é a partir das repetições cotidianas dessas construções que é possível em
determinados períodos a execução de campanhas midiáticas punitivistas a partir de
espetáculos tendentes à modificação da legislação vigente contra os mesmos bodes
expiatórios: é o que se convencionou chamar de pânicos morais (COHEN, 2002).
Mais do que reféns das fontes, os diferentes veículos de mídia possuem recursos
fundamentais que os colocam em uma posição de poder: “[...] o poder de negar qualquer
acesso a uma fonte; o poder de produzir uma cobertura que contextualiza a fonte
negativamente; o poder da última palavra; e o poder de tradução do conhecimento
especializado e particular para o senso comum” (ERICSON et al., 1989, p. 378).
Quando, na análise dessa disputa de poder por espaços de definição da realidade na
4
Sobre a representação social do crime na mídia, cf. Budó (2013).
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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mídia, parte-se para o campo da propriedade dos meios de comunicação, o poder dos
próprios veículos de comunicação fica ainda mais evidente. Diversos estudiosos não se
cansam de denunciar o quanto as empresas de comunicação no mundo estão concentradas
nas mãos de poucos proprietários, os quais são ligados a outras das mais rentáveis
indústrias mundiais. A falta de marcos regulatórios, a omissão dos poderes públicos e a
liberalização econômica desenfreada permitiu uma oligopolização da comunicação
mundial, a ponto de se poder falar na difusão de um “pensamento único” (RAMONET,
1999): o consumo enquadrado como valor universal, as desigualdades sistematicamente
ocultadas, os direitos reduzidos a questões de mercado (MORAES, 20013).
Essa realidade define em grande parte os conteúdos selecionados para serem
noticiados, bem como seu enquadramento e a escolha das fontes autorizadas a quem será
dada voz. Se isso for trazido para o Brasil, a situação parece ainda mais dramática em
função do paradoxo: as mais avançadas tecnologias informacionais e ideologias
neoliberalizantes acompanham as grandes empresas norte-americanas, mas caminham
lado a lado com o surgimento da nova roupagem de uma arcaica realidade muito
brasileira: o poder dos coronéis (LIMA, 2011)5.
A prática de barganha política para a obtenção de concessões de rádio e televisão
vem sendo intitulada de coronelismo eletrônico, um coronelismo de novo tipo, que desde
a metade do século passado, com a chegada da televisão, vem fazendo com que interesses
privados se sobressaiam em relação ao interesse público na exploração do serviço de
radiodifusão. Nesse fenômeno, o novo coronel, ao controlar as concessões, “promove a
si mesmo e aos seus aliados, hostiliza e cerceia a expressão dos adversários políticos e é
fator importante na construção da opinião pública, cujo apoio é disputado tanto no plano
estadual quanto no plano federal” (LIMA, 2011). Assim, por mais que seja de uma
maneira diversa, o coronelismo eletrônico mantém a mesma moeda de troca do velho
coronelismo: o voto. A diferença é que a base não está na posse da terra, mas no controle
da informação, na capacidade de influir na formação da opinião pública. No coronelismo
Apesar de o uso do termo coronelismo para designar esse processo ser polêmico no campo das ciências
sociais os autores continuam usando-o pelo fato de que, a despeito de não se estar tratando sobre as relações
rurais da República Velha, mas sim de um mundo urbano e pós- Constituição Federal de 1988, o termo
guarda características e mantém traços comuns com o sistema originalmente estudado por Victor Nunes
Leal.
5
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discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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eletrônico de novo tipo, o que se percebe é, agora, uma descentralização do poder, de
modo que os municípios têm conseguido concessões de rádios comunitárias em troca de
favores com membros do Legislativo ou Executivo estadual ou federal. Em estudo
realizado por Lima, o autor conclui que a metade das concessões de rádios comunitárias
outorgadas no Ministério das Comunicações entre 1999 e de 2004 tinham vínculos
políticos. Desse modo, além dos interesses econômicos facilmente identificados na
formação dos oligopólios de mídia, os interesses políticos vinculados à mídia
regionalizada também ficam evidentes.
Porém, por mais que o Estado e suas agências devam estar no centro de qualquer
análise da competição pela atenção midiática, é essencial reconhecer que outras forças
organizadas podem ter a capacidade de intervir com vários efeitos no domínio público
(SCHLESINGER et al., 1995). Existe, então, uma luta permanente por espaços
discursivos na mídia, e, por mais evidente que possa parecer a ideia de que as definições
que reforçam o senso comum e que provêm de fontes institucionais e poderosas
estruturalmente sejam mais facilmente reproduzidas pelos meios de comunicação, essa
relação não se dá de maneira tão simplificada. Não é possível desconsiderar os processos
que estão por detrás da escolha e reprodução das fontes e nem o papel dos movimentos
sociais e grupos de pressão ao traçar estratégias de publicização de suas atividades e
definições da realidade (ERICSON et al., 1989). Se não forem levadas em conta possíveis
rupturas nessa bolha interativa sistema penal-mídia hegemônica-mercado, será difícil
propor alternativas.
3. Estratégias de ação contra-hegemônica: a criminologia da produção de notícias
Uma das questões que vem incomodando os criminólogos críticos mundo afora,
dos mais pessimistas aos mais otimistas é a quase impenetrabilidade dos resultados de
suas pesquisas tanto no campo da produção de políticas públicas quanto no próprio
discurso público sobre o crime. Este é um tema de profundos debates nas revistas
científicas, tendo sido cunhado o termo criminologia pública (public criminology) para
tratar sobre as estratégias a serem utilizadas para reverter esse processo (CHANCER;
McLAUGHLIN, 2007).
Chancer e McLaughlin (2007) observam que se até a década de 1970 as políticas
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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públicas sobre o crime eram fortemente influenciadas pelo saber produzido por
criminólogos na Europa, a partir de então houve um sintomático afastamento entre
academia, política e público. O avanço do neoliberalismo e as mudanças nas sociedades
europeia e norte-americana trouxeram desafios tanto à academia quanto à percepção
pública sobre o crime. Assim, as categorizações que uma geração de criminólogos do
pós-guerra davam por garantidas foram marginalizadas pela politização dos medos do
crime; pelo deslocamento das políticas de justiça criminal em direção às vítimas; pela
extensão do envolvimento do setor privado no controle do crime e na execução de
serviços da justiça criminal. “O raciocínio criminológico é agora mediado e contestado
por uma série de grupos de interesses, ativistas e uma multidão de atores institucionais e
opiniões públicas vociferadores. E os criminólogos estão alienados da cultura política
moderna porque crime, policiamento e punição definem questões eleitorais”
(CHANCER; McLAUGHLIN, 2007, p. 157).
Essa percepção não é unânime dentre os criminólogos, sendo que alguns mais
otimistas demonstram, por exemplo, a importância dos estudos das criminólogas
feministas na adoção de políticas públicas sobre a violência doméstica e o estupro. Além
disso, há aqueles que julgam haver a possibilidade de as percepções sobre o crime serem
influenciadas pela academia, desde que uma série de estratégias de visibilidade sejam
adotadas. Por outro lado, as críticas a essa aproximação também são várias, já que se pode
cair na armadilha de culpabilizar os cientistas sem uma análise mais profunda sobre a
questão institucional6. Os meios de comunicação de massa, nessa busca pela
popularização do discurso acadêmico sobre o crime, exerceriam papel central. Contudo,
são vários os desafios em jogo.
No contexto do ápice da guerra contra as drogas nos Estados Unidos, Barak
escreveu, em 1987, o artigo intitulado Newsmaking criminology: reflections on the media,
intellectuals, and Crime. Nesse texto, o autor cunha o termo Newsmaking criminology
para designar “[...] os esforços e atividades conscientes de interpretar, influenciar ou
configurar a apresentação de itens noticiáveis sobre crime, buscando desmistificar as
Para algumas das críticas cf. as resenhas do livro Public criminology? Publicados pela revista British
Journal of Criminology (2011, n. 51 p. 707-738), com contribuições de Nils Christie, Elliott Currie, Helena
Kennedy, Rod Morgan, Gloria Laycock, Joe Sim, Jacqueline Tombs e Reece Walters.
6
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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imagens do crime e da punição através da localização das descrições de casos de crimes
“graves” no contexto de todas as atividades ilegais e lesivas; esforça-se para afetar as
atitudes do público, pensamentos e discursos sobre o crime e a justiça de modo a facilitar
uma política pública de “controle do crime”, com base em análises estruturais e históricas
de desenvolvimento institucional; permite aos criminólogos levarem adiante seus
conhecimentos e estabelecerem-se como vozes credíveis na arena de formação política
da comunicação de massa; e pede dos criminólogos que desenvolvam linguagens de base
popular e competências técnicas de comunicação para fins de participação na ideologia
do crime e da justiça consumida em massa” (BARAK, 1994, p. 238).
Partindo do pressuposto de que a construção social do crime e do desvio faz parte
da socialização política e ideológica envolvida na legitimação cultural da lei e da ordem,
tendo por resultado final a conformidade e o controle social, o autor identifica como
próximo passo a ser considerado a necessidade de desconstrução social e reinterpretação
do crime e do desvio. Desse modo seria possível construir uma alternativa de oposição à
ordem jurídica dominante (BARAK, 1994). Na esteira do interacionismo simbólico, notase que a influência entre, de um lado, o pensamento e a ação da sociedade e, de outro, as
representações da mídia, é recíproca e que, se ambos estão sujeitos à interação, cabe aos
criminólogos se esforçarem para influenciar nesse processo em vários pontos. A ideia
principal é a de propiciar uma quebra com os diálogos exclusivamente entre acadêmicos
em revistas científicas, de modo a atingir o público com seus conhecimentos sobre o crime
e o desvio. Torna-se, então, necessário “expor a natureza cultural e político-econômica
do problema criminal, e mostrar as conexões necessárias entre essa natureza e a maneira
pela qual o crime costuma ser definido, como um tipo particular de patologia individual
ou problema social” (BARAK, 1994).
Para concretizar essa possibilidade, Barak (1994) faz um chamado aos criminólogos
para engajarem repórteres, editores e produtores em uma dupla missão. Em primeiro
lugar, o autor convida os criminólogos a exporem “convenções jornalísticas e
preconceitos sociais, exporem como esses formaram a cobertura (seleção e apresentação)
de notícias sobre crimes (crime stories)” (BARAK, 1994). Em segundo lugar, chama os
mesmos criminólogos a irem além da crítica, de modo a se envolverem com os discursos
populares mediatizados, “mas com visões alternativas, baseados mais em pesquisas
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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científicas do que em tratados moralistas sobre o crime e o desvio” (BARAK, 1994).
A questão colocada diante desse chamado é o “como”. Que métodos podem ser
usados para que de fato os espaços midiáticos possam ser ocupados por um discurso
crítico sobre o crime e a justiça penal? Os desafios são vários. Em primeiro lugar, a
comunicação de massa é liderada por empresas, as quais têm no lucro com publicidade –
e, portanto, com audiência – o seu sustento. Vende-se o que é demandado pelo público.
Mas está o público interessado em um discurso crítico? Além disso, na medida em que se
busca tratar de uma ruptura com a ideologia dominante, não são os próprios meios de
comunicação representantes desse pensamento e interessados na manutenção do status
quo?
3.1 A busca pelo espaço nas mídias tradicionais e a luta pela democratização
Ciente de que tanto jornal impresso como televisão são dominados por empresas, é
óbvio que conquistar espaços de ruptura com o discurso tradicional sobre o crime
demanda paciência e, sobretudo, muito esforço. No que tange aos programas televisivos
e aos jornais impressos, o uso de fontes oficiais estatais, em grande medida no caso de
crimes, permite que o Estado como sociedade política intervenha na sociedade civil, de
modo a manter sua hegemonia (BUDÓ, 2012). A preponderância da persecução estatal
aos crimes de rua leva a que sejam estes os apresentados nos veículos de comunicação,
dependentes que são das fontes oficiais, e interessados que estão em desviar a atenção das
criminalidades cometidas pelos poderosos. Esforços devem ser feitos, contudo, para que
isso seja modificado, de modo que outros temas sejam apresentados, como crimes do
Estado, a questão da definição, o controle, os crimes corporativos etc. Chegando a esses
temas, a consequência é de que as estratégias de prevenção do crime vão requerer políticas
públicas que não envolvam meramente as atividades do sistema de justiça criminal, mas
aquelas que envolvam também os setores político, econômico e social (BARAK, 1994,
p. 255).
Conquistar o papel de fonte de veículos de comunicação como especialista,
entretanto, é uma tarefa árdua. Mesmo que se chegue a essa posição, isso não garante a
repercussão adequada dos depoimentos. São frequentes os cortes estratégicos nas falas de
criminólogos críticos, garantindo-se a permanência dentro do enquadramento tradicional
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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sobre o crime. Ainda, quando duas fontes igualmente credíveis trazem depoimentos
opostos, os veículos tendem a optar pela que mais lhe agrada, normalmente dentro de uma
lógica organizacional tendente à manutenção da ordem.
Alguns estudos ainda apontam que o papel ocupado pela voz do ou da especialista
criminólogo/a nas notícias sobre crimes é a de “acadêmico/a”, no sentido de que ele/a só
é chamado/a para fazer análises abstratas sobre causas do crime, nunca para se
posicionarem e defenderem diferentes formas de controle. Reforça-se, assim, a imagem
do/a pesquisador/a como vivendo em uma “torre de marfim” (WELCH et al., 2006).
Por outro lado, a despeito da grande mídia hegemônica na atualidade, existem
veículos alternativos que incentivam uma perspectiva crítica e humanista sobre os mais
variados temas. Este é um espaço jornalístico que jamais deve ser desconsiderado na
tentativa de mudança do pensamento sobre o crime, ainda que os leitores sejam mais
selecionados e provavelmente já adeptos do pensamento crítico.
Para não se limitar ao papel de fonte, outra possibilidade de participação é na
produção de temas criminais. O fato de o intelectual buscar popularizar um contradiscurso
sobre o tema do crime não significa a iluminação de uma elite sobre a massa, mas deve
vir acompanhada de mobilização também com os movimentos sociais que se afinem
ideologicamente com essa perspectiva crítica. Numerosos grupos sociais possuem o
mesmo interesse, especialmente aqueles constituídos pelos mais afetados pelo senso
comum do crime, os que sentem na pele a discriminação.
Outro papel fundamental dos e das estudiosos/as da criminologia é o de
provocador/a: um/a agente que utiliza os meios de comunicação de massa para, através
deles, apresentar os problemas relacionados à cobertura realizada sobre o crime. Assim,
a mídia torna-se tanto o sujeito do estudo quanto o objeto da crítica. É necessário,
contudo, na criação das mensagens, a fuga dos temas previamente agendados pela mídia
hegemônica, através da construção de pautas originais e críticas. Do contrário, ocorre uma
“ibopização”, nas palavras de Machado (2004, p. 12): “[...] a aceitação acrítica do
pressuposto de que só vale a pena falar daquilo de que todos já estão falando, só vale a
pena ver aquilo que todos já estão vendo”. Ao mesmo tempo, não é possível, a uma mídia
que se pretenda crítica, a adoção de atitudes radicais que se choquem diretamente com o
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senso comum. Como nota Moretzsohn (2014), isso pode provocar a rejeição do público,
frustrando-se o esforço de comunicação na origem.
Afora essas estratégias pontuais de ocupação de espaços nas mídias tradicionais,
em especial no jornalismo, o caminho que efetivamente conduz a mudanças na cobertura
do crime na mídia é o da democratização dos meios de comunicação.
Para além dos consagrados direitos individuais subjetivos relacionados à liberdade
de expressão – como a liberdade de manifestação pública de pensamentos, opiniões,
juízos de valor, críticas, crenças (religiosas ou não) – a Constituição Federal de 1988
trouxe a garantia da liberdade de comunicação, disposta a partir dos três elementos
constitutivos do processo de comunicação – emissor-mensagem-receptor. Daí que o
âmbito de proteção da liberdade de comunicação compreenda a faculdade de investigar,
o direito de informar e a faculdade de receber ou não informação (FARIAS, 2004).
Se o direito de informar, há bem pouco tempo, era exercido, sobretudo, por
jornalistas profissionais através de meios de comunicação comerciais, hoje é possível
afirmar que ele atinge a sua quase plenitude, quando os meios técnicos de comunicação
livre através da internet se tornam uma realidade. O “cidadão digital” aparece como figura
central da chamada “cibercultura”, ainda que haja muitos questionamentos a respeito seja
da exclusão digital, seja da real participação esclarecida dos indivíduos na internet.
Por outro lado, os meios de comunicação tradicionais seguem sendo
preponderantes, ainda que o consumo de internet seja elevado. É, ainda, a grande mídia
comercial que continua pautando, na maior parte das situações, as preocupações públicas,
bem como a agenda política em várias áreas.
Outra questão fundamental é a tendência à oligopolização da comunicação, através
da compra de veículos por grandes corporações transnacionais, consagrando os valores
do mercado em seus produtos midiáticos, além dos grupos locais que exercem poder
determinante na política e são, muitas vezes de propriedade de políticos7. Segundo
Görgen (2009, p. 63), no Brasil a oligopolização “é fenômeno relativamente recente, fruto
do binômio político de segurança e soberania nacional desencadeado pela ditadura
Para uma radiografia das concessões de rádio e TV no Brasil, cf. a plataforma “Donos da Mídia”, criado
pelo FNDC e vem sendo constantemente atualizado. Lá, é possível identificar a distribuição de concessões
de acordo com região do país, acionista, vinculação dos acionistas a cargos políticos etc. (FNDC, 2013).
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militar, a partir de meados dos anos 1960, e das reacomodações mundiais do capitalismo
financeirizado”.
No caso da televisão brasileira, essa concentração aparece especialmente no número
de grupos afiliados. Poucas empresas conseguem inserir conteúdos em todo o território
brasileiro, graças aos canais de distribuição, que têm alcance nacional.
“Isoladamente, redes como SBT (37), Globo (35) e Record (30) relacionam-se com
pelo menos 30 conjuntos de entidades cada uma. Ou seja, as três somadas agregam 102
grupos, mais da metade do total de 183 existentes no País. Acrescentando os dados de
Bandeirantes (22) e Rede TV! (21) chega-se ao percentual de 80% dos grupos ligados às
cinco maiores redes comerciais. Por consequência, este resultado se reflete também na
quantidade de veículos controlados de forma direta e indireta. Metade dos 2.422 veículos
ligados às redes possui ligação com alguma das cinco maiores redes de televisão ou das
três maiores redes de rádio” (GÖRGEN, 2009, p. 86).
Numerosos grupos da sociedade civil organizada mundo afora, em conjunto com
autores que denunciam diariamente a lógica perversa de que se reveste a comunicação na
atualidade vêm lutando pela alteração dos marcos jurídicos que (des)regulamentam as
concessões e o conteúdo dos meios de comunicação, em especial a radiodifusão e a
televisão. No Brasil, um importante movimento foi criado com o objetivo de implementar
a previsão constitucional relacionada à garantia institucional da comunicação social, já
construída com dificuldades e muita luta na época da Constituinte, e que se concretizou
nos arts. 220 a 224 da Constituição Federal de 1988 (GÖRGEN, 2009). Essa previsão
constitucional, apesar de ser eficaz por possuir igual valor jurídico e poder ser aplicada
para solucionar casos concretos, na prática costuma ser violada, mostrando-se evidente a
necessidade de uma regulamentação legal dessa garantia institucional.
Ocorre que regulamentar a comunicação social implica em desafiar poderosos
interesses econômicos, e com frequência resulta em ataques, com o uso da própria mídia,
sob o – falso – argumento da censura. O ideal do “livre mercado de ideias” povoa o
discurso dos proprietários de veículos de comunicação, representados, no Brasil, por
associações como, por exemplo, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Associação
Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional dos Editores
BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
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de Revista (Aner) e o Grupo de Diários América (GDA)8. Contudo, trata-se de uma
liberdade restrita à capacidade econômica, o que enfraquece um dos princípios essenciais
da liberdade de comunicação: o pluralismo.
É em nome do pluralismo, contra a formação de monopólios e oligopólios de mídia,
bem como pela qualidade das mensagens transmitidas especialmente através da televisão,
que um importante movimento vem se desenvolvendo no país nos últimos anos (FARIAS,
2004). Criado ainda nos anos 1990, o Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação (FNDC) é uma entidade que, junto com numerosos órgãos da sociedade
civil, vem encabeçando a luta pela democratização da comunicação. O projeto de lei pela
Mídia democrática e a campanha “Para expressar a liberdade” são os mais recentes
campos de sua atuação, além da pesquisa divulgada sobre a propriedade dos meios de
comunicação no Brasil, intitulada “Donos da mídia” (FNDC, 2013).
Em 2009, os movimentos sociais envolvidos com a questão em pauta, além de
donos de jornais, jornalistas e o poder público participaram da I Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom). Dentre os seus resultados está a construção da Plataforma para
o Marco Regulatório das Comunicações, baseada nas mais de 600 proposições aprovadas
no encontro, a partir da qual a campanha “Para expressar a liberdade” foi construída,
sobretudo diante da não implementação da plataforma aprovada na Confecom. As
diretrizes da campanha e que coincidem com as propostas contidas no projeto de lei, bem
como em leis já aprovadas na América Latina, como a Argentina, são: 1. Arquitetura
institucional democrática; 2. Participação social; 3. Separação de infraestrutura e
conteúdo; 4. Garantia de redes abertas e neutras; 5. Universalização dos serviços
essenciais; 6. Adoção de padrões abertos e interoperáveis e apoio à tecnologia nacional;
7. Regulamentação da complementaridade dos sistemas e fortalecimento do sistema
público de comunicação; 8. Fortalecimento das rádios e TVs comunitárias; 9.
Democracia, transparência e pluralidade nas outorgas; 10. Limite à concentração nas
Um bom exemplo é o do editorial do jornal “O Globo” do dia 07 de setembro de 2013, especialmente nos
trechos que seguem: “O próprio mantra da “democratização da mídia” não tem qualquer sustentação na
realidade. Pois não há falta de pluralidade nos meios de comunicação num país em que existem 521
concessões de televisão — das quais, 317 comerciais e 204 públicas e educativas”. “Resta provado que os
melhores agentes do “controle social da mídia” são o leitor, o ouvinte, a autorregulamentação e o controle
remoto. É assim que funciona nas democracias, ainda mais em mercados competitivos como o brasileiro”.
(O QUE, 2013). Para uma importante apreciação crítica da transformação ideológica da “regulação das
comunicações” em “censura”, cf. PIERANTI (2008).
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BUDÓ, Marília de Nardin. Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao
discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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comunicações; 11. Proibição de outorgas para políticos; 12. Garantia da produção e
veiculação de conteúdo nacional e regional e estímulo à programação independente; 13.
Promoção da diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de classes sociais
e de crença; 14. Criação de mecanismos de responsabilização das mídias por violações
de direitos humanos; 15. Aprimoramento de mecanismos de proteção às crianças e aos
adolescentes; 16. Estabelecimento de normas e códigos que objetivem a diversidade de
pontos de vista e o tratamento equilibrado do conteúdo jornalístico; 17. Regulamentação
da publicidade; 18. Definição de critérios legais e de mecanismos de transparência para a
publicidade oficial; 19. Leitura e prática críticas para a mídia; 20. Acessibilidade
comunicacional (FNDC, 2013).
Na América Latina já existe um precedente de regulamentação democrática dos
meios de comunicação, a Ley de medios argentina, apesar de estar sendo ameaçada pelo
novo governo neoliberal do presidente Macri. Segundo Moraes, a lei argentina acolheu a
reivindição de que haja, em igualdade de condições, prestadores de serviços de
radiodifusão sob concessão pública, a gestão estatal, a privada sem fins lucrativos e a
privada com fins lucrativos. Dessa maneira, torna-se possível “[...] reverter a
predominância do setor privado-comercial no sistema de mídia, pois estabelece
equanimidade em termos de acesso, participação, prerrogativas e representatividade entre
as três instâncias envolvidas” (MORAES, 2013). A lei vem sendo elogiada por diversos
organismos internacionais, até mesmo a ONU, que a vê como um modelo a ser seguido9.
A ideia é, portanto, a partir da construção de uma legislação que regulamente os
meios de comunicação, permitir o acesso aos meios de comunicação por parte de
movimentos sociais, ONGs, e garantir, sobretudo, a pluralidade das mensagens
transmitidas pelos meios de comunicação, assim como as representações sociais. A
imagem do negro, do pobre, do índio, dos grupos LGBT, costuma ser estereotipada e
reproduzir as relações de dominação, além da questão da desigualdade, o que, em parte,
é de responsabilidade da concentração da mídia. Da mesma maneira, o preconceito contra
A referida lei provocou enormes protestos por parte dos grandes veículos de comunicação, em especial o
gigante Clarín. Apesar das pesadas acusações – por parte, evidentemente, dos setores oligopolistas mais
atingidos – de que o governo estaria intervindo demais na esfera da liberdade de expressão, mostrando-se
antidemocrático, em outubro de 2013 a lei foi declarada constitucional pela Suprema Corte da Argentina.
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discurso público sobre o crime. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 471-501, jul./dez. 2016.
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adolescentes acusados de atos infracionais corresponde a esse pensamento hegemônico,
cuja quebra passa, necessariamente, pela democratização dos meios de comunicação.
3.2. As novas mídias: um estratégico espaço de luta
Os veículos hegemônicos sempre foram desafiados na prática por mídias
alternativas com o objetivo de ressignificar a visão dominante de mundo. Essas mídias
surgiram e se desenvolveram antes e independentemente da internet. Daí que, falar hoje
em mídia radical, em jornalismo contra-hegemônico etc., não é exatamente uma
novidade. Downing (2004, p. 22) explica que, com a expressão mídia radical se quer
referir “à mídia – em geral de pequena escala e sob muitas formas diferentes – que
expressa uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas”.
Para Downing (2004, p. 22), muitos dos meios de comunicação radical alternativa
pertencem ao modelo gramsciano de tentativa de contestar as estruturas ideológicas e
suplantá-las com uma visão alternativa, além de em algumas circunstâncias também
terem o papel de “quebrar o silêncio, refutar as mentiras e fornecer a verdade”, no modelo
da contrainformação (DOWNING, 2004, p. 49). Um dos seus principais papéis é aquele
de questionamento de pensamentos tão arraigadamente ligados à estrutura hegemônica
que levam à chamada “autocensura”, especialmente aquela que chega a ser instintiva e
inconsciente. Sua relação com os movimentos sociais é dialética, na medida em que
muitas vezes surgem a partir deles, outras vezes precedem a sua fundação. Com as novas
mídias, porém, a mídia radical encontra um meio fundamental de empreender as suas
lutas.
Ainda que já tenha se expandido e se desenvolvido durante vários anos, segundo
Castells (2007, p. 442) “a comunicação mediada pela Internet é um fenômeno social
recente demais para que a pesquisa acadêmica tenha tido a oportunidade de chegar a
conclusões sólidas sobre seu significado social”. Essa dificuldade se sobressai nas rápidas
transformações que o próprio uso da web sofre (LÉVY; LEMOS, 2010)10.
Na definição de Moraes (2007), a internet é “[...] um ecossistema digital
Em razão das várias mudanças que a web sofreu desde o seu surgimento, hoje é frequente encontrar o
uso do termo web 2.0 para designar o seu desenvolvimento atual, em razão da possibilidade de
interatividade, com o surgimento dos chats, blogs, redes sociais etc. (LÉVY; LEMOS, 2010).
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caracterizado por arquitetura descentralizada, multiplicação de fontes de emissão,
disponibilização ininterrupta de dados, sons e imagens, utilização simultânea e interações
singulares”. Trata-se de um novo lugar de embate de discursos e práticas, com a
característica de ser naturalmente plural, ressalvada, é claro, a realidade ainda presente da
exclusão digital. A internet aparece, todavia, nesse contexto, como uma arena na qual
lutas e conflitos pela hegemonia são travados, com a facilidade do acesso público e
gratuito. E, por isso, ela aparece como uma ferramenta essencial na batalha cultural
contemporânea pela produção de uma percepção alternativa sobre o sistema penal.
Para Lévy, a transformação da esfera pública ocorrida com as novas tecnologias de
informação e comunicação afeta positivamente quatro domínios da democracia: as
capacidades de aquisição de informação, de expressão, de associação e de deliberação
dos cidadãos (2010, p. 14). De fato, a grande conquista dessa mudança essencial no acesso
ao discurso é o que os autores chamam de liberação da palavra. A liberação da emissão,
um dos maiores princípios da assim chamada cibercultura ocorre de maneira ampla,
através de sons, imagens, textos, produzidos e distribuídos livremente. “O novo médium
é então particularmente favorável a uma superação do espaço público clássico e à
liberação do polo da emissão, controlado na economia política clássica por grandes
empresas monopolistas” (LÉVY; LEMOS, 2010, p. 88). Dessa liberação de qualquer
dependência técnica ou econômica, decorre, para os autores, a máxima: “libera-se a
emissão, conecta-se a interesses comunitários e reconfigura-se a esfera pública” (LÉVY;
LEMOS, 2010, p. 88).
A cibercultura é, então, um contraponto à cultura de massa tão atacada pelos
teóricos frankfurtianos: se eles denunciavam a mercantilização da esfera cultural, a
indústria cultural homogeneizante, empobrecedora, limitadora das potencialidades
libertárias, padronizadora, ligada ao poder totalitário, à imposição do gosto, presa à lógica
do capital, certamente se entusiasmariam com os produtos da cibercultura, que supre
nichos esquecidos e negligenciados pela massificação cultural (LEVY, 2010, p. 93).
Qualquer pessoa pode divulgar produções originais, garantindo a pluralidade, a diferença
e a liberdade. Trata-se, assim, da constituição de uma nova era para a mídia alternativa,
dentro da chamada “Internet radical” (FORD; GIL, 2004).
O momento mais revolucionário da internet é o que está sendo vivido na atualidade
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com o surgimento dos blogs. Trata-se do chamado “jornalismo participativo”, através do
qual discursos antes jamais ouvidos passam a ameaçar o monopólio da informação por
parte das empresas. Como nota Juan Varela, “diferentemente do que ocorreu em outras
épocas, a opinião pública já não se reflete apenas na opinião publicada” (VARELA, 2007,
p. 54), sendo que a própria desconfiança em relação às empresas jornalísticas e seus
interesses permitem o surgimento do chamado “Jornalismo 3.0”, pautado no
desenvolvimento de um “sentido de comunidade e a conexão com a realidade na
informação” por meio da utilização da Internet (VARELA, 2007). Também a mídia
tradicional vem sendo assaltada com críticas contundentes por parte de blogueiros, sendo
que muitos se transformaram em “observatórios da imprensa” (FOLETTO, 2009, p. 205).
Assim, seja na relação entre novas mídias e mídias tradicionais, seja na relação entre
governo e sociedade, o ambiente virtual vem revolucionando a possibilidade de debates
públicos para a discussão de assuntos relevantes e polêmicos (OLIVEIRA, 2013).
Dentre as novas mídias é interessante destacar, ainda, o surgimento e expansão das
redes sociais, como o Facebook, e os microblogs, em especial o Twitter, apontados na
atualidade como importantes ferramentas jornalísticas. Essa nova mídia vem sendo
utilizada pelos veículos tradicionais como meio de divulgação de matérias expostas em
seus websites, o que demonstra que, apesar de serem uma inédita e importante alternativa
à mídia tradicional, as novas mídias não se opõem necessariamente a ela (ESCOLBAR,
2009, p. 269).
Numerosos criminólogos têm construído seus próprios blogs ou mesmo atuado
como colunistas em revistas online alternativas no intuito de divulgar suas pesquisas,
tecer comentários sobre fatos, ou mesmo criar espaços de debate. O empecilho que surge
é o de chamar o público para acessá-lo, tendo em vista que a maioria de seus visitantes
costuma ser composta por alunos, colegas ou mesmo pesquisadores interessados nos
temas debatidos. Além disso, há o problema das “bolhas” do Google e do Facebook, ou
seja, a tendência de que, a partir dos algoritmos utilizados pelas duas ferramentas, o
internauta fique cada vez mais adstrito aos interesses demonstrados anteriormente durante
o uso dessas ferramentas, comprometendo a liberdade e o pluralismo no acesso à
informação (GODOY et al., 2011). Percebe-se, porém, que o uso das novas mídias não
substitui o espaço a ser conquistado nas mídias tradicionais, das diferentes formas
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apresentadas acima.
Além dessa questão, é necessário considerar a crítica de Moretzsohn (2007) ao
chamado jornalismo participativo, devido ao fato de que as coberturas dos chamados
“cidadãos digitais”, por estarem descompromissadas com o objetivo de esclarecimento,
não corresponderiam às responsabilidades arraigadas ao ideal iluminista dessa atividade.
Para a autora, esse “cidadão digital”, o blogueiro, por exemplo, não é um jornalista, na
medida em que não assume compromissos com a reflexão, nem possui a credibilidade
que a mediação jornalística propicia, de maneira que não é possível abandonar a
necessidade de inserir o discurso crítico no jornalismo tradicional (MORETZSOHN,
2007).
A partir da crítica ao próprio processo produtivo ao qual estão submetidos os
veículos tradicionais da mídia, algumas fissuras podem surgir para a entrada desse
discurso crítico, de maneira a propiciar um trabalho criador: “trabalho resultante do
processo de suspensão da cotidianidade, capaz de levar à reflexão e fornecer, no
movimento de retorno ao cotidiano, elementos que contribuam para um novo senso
comum” (MORETZSOHN, 2007, p. 286).
Como nota Genro Filho, “trata-se, fundamentalmente, de criar as mediações e os
canais adequados para que os conteúdos sociais (o plural aqui é indispensável) que, antes
eram desprezados na comunicação, passem a ter hegemonia no processo. O que é
diferente de manipular o meio de comunicação diretamente” (GENRO FILHO, 1986).
Outras críticas, contudo, devem ser levadas em consideração em relação às novas
mídias. A internet, por mais acessível que seja, se comparada às mídias tradicionais,
também é atravessada por ambiguidades, sobretudo no que tange aos direitos humanos.
Assim como ganham espaço ativistas defensores desses direitos, é difícil imaginar como
nas modernas democracias os discursos de ódio alcançariam tanta repercussão se não
fosse através da internet.
Além disso, observa Moraes que “é um erro supor que as aberturas na Internet
possam sobrepujar o cenário de transnacionalização da comunicação, inclusive no campo
virtual, onde corporações midiáticas fincam seus tentáculos com agressividade,
controlando os sites mais populares e com isso atraindo crescentemente anúncios e
patrocínios” (MORAES, 2007). A própria restrição do acesso à Web em países periféricos
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é um importante óbice no caminho da democratização, o que, contudo, reflete as relações
desiguais de poder e dinheiro que existem entre as nações.
Outra questão fundamental a ser avaliada é a dificuldade de as “webmídias”
interferirem no conjunto da sociedade civil, como se os discursos fossem dirigidos a
grupos especializados, geralmente já convencidos das posições defendidas. Os prováveis
motivos dessa segmentação seriam, para Moraes: “inadequação de linguagens ou de
formatos, excessiva instrumentalização político-ideológica dos discursos informativos,
escassa penetração da Internet nas zonas populacionais carentes, ausência de políticas
coordenadas de comunicação eletrônica” (MORAES, 2007). Daí a necessidade de se
pensar estratégias que possibilitem a atuação nas duas frentes: de um lado, na
democratização das mídias tradicionais, freando, assim, a participação do capital na
produção cultural; de outro lado, na elaboração de táticas de uso das novas mídias,
buscando atingir públicos não iniciados no discurso crítico.
Apesar de entusiastas dos potenciais da Internet na produção de uma nova era da
mídia radical, Ford e Gil (2004) também encaram com ceticismo o seu desenvolvimento,
especialmente se considerado o fato de que os avanços tecnológicos introduzidos no
campo das comunicações, a despeito de todas as expectativas utópicas que os envolveram,
acabaram se desenvolvendo como tecnologias manipuladas para gerar lucros à indústria.
Entram aí também a exclusão digital, as questões relativas a algumas formas de censura,
e a espionagem através da Internet.
Também se torna necessário evitar a tendência a certa ingenuidade que reveste o
discurso daqueles que compreendem a tecnologia como possibilidade de mudança da
sociedade, quando, na verdade, a tecnologia é instrumentalizada através das mesmas
relações de poder e dominação características dessa sociedade. Os mesmos conflitos que
a caracterizam na vida concreta, irão caracterizar a esfera virtual. Como nota Moretzsohn
(2012, p. 319), “É assim que se pode afirmar o fetiche da internet, que se apresenta como
o que não é. Em tese – mas apenas em tese – trata-se de um vasto campo propício ao
diálogo e à participação política, mas não se pode jamais esquecer de que, justamente por
isso, a internet reflete as contradições e hierarquias que estão na sociedade. Não é possível
elidir a questão do poder: não só quem manda ou quem controla, mas quem tem
autoridade ou prestígio para falar e ser ouvido. Essas hierarquias não se rompem
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simplesmente com a chegada de um novo aparato tecnológico”.
Daí que, com frequência, os blogues se limitem a reproduzir conteúdos produzidos
pelos grandes grupos econômicos de comunicação; até mesmo as mídias alternativas
sejam agendadas pelas mídias hegemônicas; os discursos de ódio de todos os tipos
repercutam com grande velocidade e abrangência11. Entre “ciberotimistas” e
ciberpessimistas”, cabe destacar, sem sombra de dúvidas, a importância dessa nova base
material para o contradiscurso sobre o crime; mas a estrutura não se modificará se a luta
não transcender o espaço virtual a ocupar as mídias tradicionais e as ruas. Além disso, é
fundamental o retorno a Gramsci e o reconhecimento de que o senso comum jamais deve
ser desconsiderado na busca pelo bom senso.
4. Conclusão
O acesso ao discurso através dos meios de comunicação é uma das temáticas mais
debatidas no campo científico do jornalismo: como enfrentar o poderio dos meios
hegemônicos e produzir discurso crítico que atinja o público e que tenha o propósito de
informar e garantir o debate, o pluralismo, a informação? No tema da criminalidade, não
há como pensar a ultrapassagem da ação seletiva, estigmatizante e reprodutora do sistema
penal vigente sem buscar novas representações sociais e novas definições sobre os
processos de criminalização em um nível discursivo.
Em razão disso, foram explorados, ainda que preliminarmente, três necessários
caminhos a serem seguidos: o da busca pela ocupação dos ainda que reduzidos espaços
de ruptura nos meios hegemônicos; a necessária luta pela democratização dos meios de
comunicação; o uso das novas mídias para a propagação de mensagens alternativas ao
discurso comum sobre o crime.
A respeito dos conflitos sociais que se expressam na web, é interessante a análise realizada por
Moretzsohn (2014) nos comentários de uma notícia que relatava a degola de sete pessoas por um homem.
Os 376 comentários foram na sua absoluta maioria destinados a manifestações do “[...] senso comum
criminológico, traduzidas em prescrições legislativas e sugestões de penas corporais de sabor medieval, ao
mesmo tempo em que deploram a ineficácia ou a lentidão do Judiciário e o consequente apelo à ação direta,
com o apoio ao linchamento. Não faltaram, claro, a condenação aos direitos humanos, o clamor pela pena
de morte e, até, pela tortura. Apenas o último comentário aqui relacionado expressa a necessidade de
respeito à lei e a um julgamento justo”. Essa realidade é já bastante comum nas notícias, inclusive naquelas
que relatam espancamentos, torturas e outras formas de violência policial, legitimando-as.
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Não são poucas as dificuldades enfrentadas em todos esses campos. O excessivo
uso de fontes oficiais na produção jornalística sobre o crime facilita a reprodução e
legitimação da construção social do crime como ação típica dos grupos mais vulneráveis
da sociedade. Daí a fácil imunização dos grupos mais poderosos, o que se pode ver nas
notícias sobre os crimes de colarinho branco, em geral enquadrados editorialmente como
temas de política e de economia, nunca de crime. Desconstruir o crime da forma como o
senso comum o representa, e reconstruir as definições a partir de novas bases não podem
ser ações tomadas apenas no nível abstrato das ideias acadêmicas. Partir para a ação
significa não apenas teorizar, mas formar parte em movimentos sociais que estão lutando
já há muitos anos por essa causa.
A principal conclusão é a de que, ademais de produzir discursos críticos e de tentar
modificar as representações sociais sobre o crime, é fundamental aos acadêmicos
ingressarem no embate político para as mudanças legislativas necessárias à
democratização dos meios de comunicação. É uma exigência também a aliança com os
movimentos sociais interessados como estão na divulgação de percepções contrahegemônicas sobre o desvio e a criminalidade. Ultrapassar os muros das universidades e
das revistas científicas certamente é o primeiro passo para se alcançar a o público e
auxiliar na mobilização por uma outra percepção social sobre o crime.
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Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e
vigilância durante a ditadura militar no Brasil
Pádua Fernandes1
Recebido em 15.4.2016
Aprovado em 26.5.2016
Resumo: O artigo tem o objetivo de
verificar como os movimentos sociais
eram considerados suspeitos pela ditadura
militar brasileira, com base na análise de
documentos sigilosos do sistema de
informações, de relatórios de comissões
da verdade e de pesquisa bibliográfica. A
legislação da ditadura, fundamentada na
doutrina de segurança nacional, permitia a
vigilância e a repressão aos movimentos
sociais. A estratégia de criminalização dos
movimentos reprimia os direitos de
reunião e de associação, e manteve-se
após a democratização do país como uma
continuidade da ditadura.
Palavras-chave: Justiça de Transição;
Movimentos Sociais; Ditadura Militar;
Doutrina de Segurança Nacional.
Abstract: The article aims to verify how
the social movements were considered
suspect by Brazilian military dictatorship,
based on the analysis of classified
documents from the information system,
of the truth commission reports and
bibliographical research. The law of the
dictatorship, based on the doctrine of
national security, allowed the surveillance
and repression of social movements. The
strategy of criminalizing the social
movements repressed the rights of
assembly and association, and remained
after the democratization of the country as
a continuity of the dictatorship.
Keywords: Transitional Justice; Social
Movements;
Military
Dictatorship;
Doctrine of National Security.
1. Introdução
A desconfiança da ação coletiva popular e dos direitos que a fundamentam (direitos
de associação, reunião, manifestação, protesto) e a postura contrária à produção do direito
de baixo para cima foram alguns dos elementos no campo jurídico da chamada doutrina
de segurança nacional no Brasil, tal como foi pensada na Escola Superior Guerra desde o
fim da década de 1950 e formalizada em normas escritas oficiais e colocada em prática
pelos órgãos de repressão durante a ditadura militar. Esses elementos mantiveram-se dos
Doutor em Direito pela USP; Pesquisador do IPDMS e do IDEJUST; foi Professor Visitante da École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS); autor de “Para que servem os direitos humanos?”.
1
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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1950 aos 1980, mesmo levando em conta as transformações por que essa doutrina passou
e as diferenças entre o nível das ideias e o da aplicação prática.
A doutrina de segurança nacional foi formulada e empregada para, entre outros fins,
controlar movimentos sociais e o repertório de ação coletiva desses movimentos, como
criação de associações, reuniões e declarações públicas, passeatas, panfletagens (TILLY;
WOOD, 2009), de forma que não pudessem contestar o poder. No período da Guerra Fria,
isso significou a repressão a movimentos de vinculação marxista (e a proibição do Partido
Comunista do Brasil já em 1947, depois de ter participado da Constituinte de 1946), mas
também aos de demanda por direitos que não tinham necessariamente vinculação com o
PCB ou com as esquerdas marxistas.
A preocupação em vigiar e controlar o associativismo popular estava explícita em
documentos dos órgãos de informação e de repressão. Entre os principais temas da
documentação do Serviço Nacional de Informações (SNI), estavam o “Movimento
Estudantil; Movimento Sindical (Petrobrás, Bancários, Professores); Movimentos Sociais
(Trabalho Conjunto, Movimento Contra a Carestia, entre outros)” (COMISSÃO
ESTADUAL DA VERDADE BA, 2014, p. 28). Nos boletins sobre Comunismo
Internacional preparados pelo SNI no início da década de 1970, destacam-se o
“movimento religioso”, com as ações da Igreja Católica consideradas “subversivas” pelo
regime (como a defesa de índios e de camponeses contra as violências da ditadura e a
denúncia das torturas), o movimento camponês, o movimento sindical e o estudantil, que
seriam, segundo o órgão de informações, todos úteis para ou participantes do “Movimento
Comunista Internacional” (MCI). Os próprios comunistas eram considerados um
movimento (doc. 5)2, o que servia para lançar suspeita sobre o associativismo popular.
Esses movimentos só usariam a legalidade de maneira instrumental, segundo o
próprio SNI: “A usual contradição das esquerdas nos países que procuram conquistar:
querem que as Forças Armadas sejam ‘legalistas’ para não se oporem a seus movimentos
e criticam o povo por não ser radical na implantação do marxismo.” (doc. 5). Segundo
É possível que em Marx, embora ele anteceda as teorias contemporâneas sobre movimentos sociais, possa
se encontrar esteio para essa compreensão, inclusive no Manifesto Comunista, com o apelo inicial para uma
união do proletariado, e com as passagens que comparam os movimentos históricos anteriores pelas
minorias com o movimento proletário, que seria o da maioria.
2
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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esse arrazoado oficial, o governo estaria eximido de seguir a legalidade, ao reprimir esses
movimentos, pois eram ilegais...
O artigo, que parte de pesquisa documental e bibliográfica, busca analisar
documentos produzidos pelos órgãos de segurança e informações, muitos deles não
referidos na Comissão Nacional da Verdade (CNV), e se referir a trechos dos relatórios
de comissões da verdade brasileiras, inclusive a CNV.
Não serão referidos neste breve estudo exploratório os casos dos movimentos
armados contra a ditadura, que merecem estudos específicos, pois têm um perfil muito
distintos dos movimentos que exerceram outras formas de resistência, não militaristas.
Também não serão referidos os movimentos de apoio à ditadura, que foram mais
expressivos na época do golpe – que foi civil-militar, diferentemente do regime por ele
fundado, uma ditadura militar, que afastou os conspiradores civis dos principais centros
de decisão (e cassou alguns deles, como Ademar de Barros e Carlos Lacerda), impediu
que políticos civis chegassem ao poder (o vice de Costa e Silva, o jurista Pedro Aleixo,
foi um exemplo notório) e manteve, como demonstram os documentos sigilosos, as
principais decisões sobre o país nas mãos das autoridades militares.
2. A doutrina de segurança nacional e a restrição da ação coletiva
Antes mesmo do golpe de 1964, e de a Escola Superior de Guerra criar cursos
específicos sobre doutrina de segurança nacional, as forças policiais brasileiras vinham
defendendo a criação de normas que restringissem os direitos que garantem a ação
coletiva dos movimentos sociais, com o pretexto do combate aos marxistas e suas
associações no âmbito da Guerra Fria.
A ideia de que os direitos fundamentais deveriam ser restringidos porque estavam
sendo usados para a esquerda propagar suas ideias já estava presente em tese aprovada
no a 1ª Conferência Nacional de Polícia, que ocorreu no Rio de Janeiro em dezembro de
1951, com a presença do então Presidente da República, Getúlio Vargas. A Conferência
foi organizada pelo Departamento Federal de Segurança.
A tese “Dos atos ilícitos perante os direitos de reunião e de associação, medidas
policiais que os previnem”, apresentada pelo Secretário de Segurança Pública do Estado
da Bahia, Laurindo de Oliveira Regis Filho, propunha, na verdade, repressão dos atos
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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lícitos praticados com base nos direitos de reunião e associação, previstos na Constituição
de 1946: “à polícia não deve escapar que a mais forte arma contra a estabilidade do
governo, a manutenção do regime político, e a perenidade mesma do Estado, se forja e se
reforça sob a capa da liberdade de reunião, isoladamente esta, ou como ponto nuclear do
direito de associar-se” (doc. 1, p. 21), com a possibilidade de “obstar quaisquer passeatas,
desfiles ou cortejos que por elas não tenham sido licenciados e desde que não sejam
promovidos por sociedade legalmente constituída” (doc. 1, p. 36).
A tese apresentada pelo Chefe de Polícia do Estado de Minas Gerais, Geraldo
Starling Soares, intitulava-se “A propaganda de teses aparentemente legais, mas em
consonância com a diretriz de associações ou partidos ilegais e com a política exterior de
nações estrangeiros [sic]. Sua equiparação à propaganda de doutrinas contrárias ao regime
democrático, para os efeitos de repressão legal; intervenção do poder de polícia” .
Partindo da proibição do Partido Comunista pelo STF, que o considerou incompatível
com o regime democrático, a polícia de Minas fechara diversas entidades e associações,
como a Liga Juvenil de Minas Gerais, as Associações Femininas, Movimento Nacional
de Interdição das Armas Atômicas, Centro de Estudos de Defesa do Petróleo e da
economia Nacional, “Federação das Mulheres do Brasil”, entre outras. Essas ações,
manifestamente contrárias aos direitos de associação e de reunião, teriam se baseado em
uma “metamorfose” da sociedade brasileira: “A metamorfose tão integral afetou
visceralmente as normas jurídicas, as quais, se antes eram de flagrante amparo à
associação e ao partido, em virtude de seu registo, converteram-se em forças coercitivas
que viriam a impedir os seus passos solífugos pelas veredas tortuosas da oposição ao
regime democrático.
“A própria sociedade que, pelas suas instituições, havia franqueado garantias para
o exercício de suas faculdades de ação e de trabalho, investiu-se de todo o poder para
limitar esses direitos, até a sua absoluta extinção”. (doc. 2, p.37)
A extinção de direitos constitucionais com fundamento em meras teses policiais foi
abertamente praticada nesse período após o Estado Novo, no entanto considerado
democrático. A imprensa operária foi alvo de repressão policial, apesar da garantia
constitucional da liberdade de imprensa, como “jornalismo revolucionário” (KOSSOY,
2003).
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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Em 1959, em curso da Escola Superior de Guerra (ESG), “Introdução ao estudo da
guerra revolucionária”, do então Coronel Augusto Fragoso, foi realizado um estudo da
doutrina francesa da guerra revolucionária, elaborada a partir das guerras colonialistas
com que a França tentava ainda manter sua dominação sobre povos não europeus na
África e na Ásia (especialmente a Argélia). Segundo o curso, a “Guerra Revolucionária”
(GR) tem “aspecto de guerra civil, guerra interna” [doc. 3, p. 2] “é, antes de tudo,
ideológica. Ela exclui, salvo caso de extrema necessidade, a guerra militar clássica –
atômica ou não – como fator principal da decisão, e reconhece a luta psicológica como
modo de ação essencial e permanente.” Ademais, “As contradições internas dos meios
sociais são a origem de todas as guerras revolucionárias”, e o Brasil já estaria no “estado
pré-revolucionário” [doc. 3, p. 48].
Já estão nesse documento, portanto, diretrizes que informariam a repressão aos
movimentos sociais durante a ditadura: a ideia de que o inimigo é interno, de que se trata
de uma guerra já presente, de caráter ideológico ou psicológico (agitprop), o que
justificaria a censura o cerceamento às manifestações públicas, e que as demandas e
denúncias contra as injustiças sociais deveriam ser tratadas como subversivas.
No curso, defendia-se que era fundamental para a persecução desse inimigo
também a rejeição às garantias constitucionais e às Convenções de Genebra, que não
permitiriam um combate adequado ao inimigo revolucionário: “Urge, pois, que se
disponha, para combater a subversão, para enfrentar a guerra revolucionária, desde o seu
período clandestino, de uma legislação adequada. Não se pode manter, em relação ao
militante da guerra revolucionária, o respeito das liberdades individuais e asseguradas aos
demais cidadãos e as medidas de proteção que beneficiam, na ação judiciária, os
delinquentes do direito comum”. [doc. 3, p. 23]
Esse inimigo não mereceria as garantias tampouco do inimigo de guerra, embora os
militares dissessem que se tratava de uma guerra, tampouco as dos criminosos para o
Direito Penal comum, conquanto também fossem considerados criminosos. Tratava-se,
portanto, de uma postura punitivista frontalmente contrária aos direitos humanos, que
encontraria uma previsão normativa após o golpe de 1964, que instaurou um regime
essencialmente oposto a esses direitos.
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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Nesse regime, a reivindicação de direitos, civis (como o direito ao voto), sociais
(direito à greve), ou culturais (demandas indígenas por sua identidade) era considerada
suspeita. A criação de direitos de baixo para cima era reprimida. Não à toa, Boaventura
de Sousa Santos, em seu estudo clássico sobre pluralismo jurídico na Favela do
Jacarezinho no Rio de Janeiro, teve de omitir os nomes das lideranças comunitárias e até
mesmo da própria favela (renomeada como Pasárgada), por motivo de segurança: “O
trabalho de campo foi realizado em 1970, em plena ditadura militar brasileira, e a
repressão contra militantes políticos de esquerda estava no auge. Ora, eram esses
militantes que animavam a vida associativa na favela.” (SANTOS, 2015, p.20).
Os juristas engajados na ditadura defenderam a criação de “em paralelo com o
Estado de sítio e dentro do espírito do Estado de Direito, um regime de legalidade especial
aplicável às situações que, dentro de um processo de guerra revolucionária, escapam à
normalidade sem, no entanto, configurarem a comoção interna grave que justifica o sítio”
(FERREIRA FILHO, 1976, p. 72).
Com efeito, a ditadura militar soube usar instrumentos jurídicos para vigilância e
repressão de movimentos sociais sem jamais ter decretado estado de sítio: os instrumentos
do direito de exceção eram suficientes para dispensá-los, e ela mesma os dispensou,
quando agiu fora de qualquer legalidade, em nome da segurança nacional. Em nome do
velho pretexto hobbesiano da segurança, sufocavam-se as liberdades.
3. A instauração da ditadura e a imposição de uma legislação hostil aos movimentos
sociais
A Constituição de 1946 foi mantida em um primeiro momento pela ditadura militar,
mas apenas porque, desde abril de 1964, criou-se um instrumento para formalizar todo
um sistema de normas de exceção, que foram os atos institucionais, inspirados nas “leis
constitucionais” do Estado Novo3. Esses atos restringiram e suspenderam garantias
constitucionais, além de terem fundamentado a diversos outros atos normativos com que
O curioso nome era contraditório em mais de um sentido, pois elas não eram leis, visto que não vinham
do Legislativo, tampouco eram constitucionais, já que não encontravam previsão na Constituição de 1937.
Francisco Campos, que havia sido o ministro da justiça de Getúlio Vargas, foi quem propôs aos militares
golpistas de 1964 a antiga solução de criar um ato do Poder Executivo ditatorial que tivesse hierarquia
constitucional, e escreveu o preâmbulo do primeiro AI; o nome “ato institucional” veio do jurista Vicente
Ráo e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S.Paulo (FERNANDES, 2007).
3
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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o novo regime buscava legitimar a si mesmo e às intervenções que buscou realizar no
direito e na realidade brasileira.
As primeiras normas sobre crimes contra a segurança nacional da ditadura militar
foram criadas por decreto-lei, um dos instrumentos do direito de exceção dessa época.
Desde o decreto-lei 314, de 13 de março de 1967, a legislação de segurança
nacional, incorporando a doutrina de segurança nacional “possibilitava a perseguição de
pessoas que se manifestavam contra o Governo, por fatos que nada tinham a ver com a
segurança do Estado” (FRAGOSO, 1983, p. 60). Com efeito, já que essa legislação tinha
como finalidade impedir a expressão de “tensões sociais” e de reivindicações dos
movimentos sociais, como veremos, tratava-se antes de assegurar o regime autoritário.
Logo após a Constituição de 1967, promulgada em 24 de janeiro, prever no artigo
89 que “Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites
definidos em lei”, o que significa nada menos do que afirmar que todas as pessoas são
suspeitas, o Decreto-lei n. 314, de 13 de março de 1967, partia dessa mesma suspeição
generalizada no seu artigo 1º para instituir os crimes contra a segurança nacional. Vários
deles atingiam o repertório de ação dos movimentos sociais, como “incitar publicamente”
“à desobediência coletiva às leis” (art. 33, II), “Perturbar ou tentar perturbar, mediante o
emprego de vias de fato, ameaças, tumultos ou arruídos, sessões legislativas, judiciárias
ou conferências internacionais realizadas no Brasil” (art. 35), “Fundar ou manter, sem
permissão legal, organizações de tipo militar, seja qual for o motivo ou pretexto, assim
como tentar reorganizar partido político cujo registro tenha sido cassado ou fazer
funcionar partido sem o respectivo registro ou, ainda associação dissolvida legalmente,
ou cujo funcionamento tenha sido suspenso” (art. 36), realizar “propaganda subversiva”
(art. 38), e cometer o tipo penal juridicamente indeterminado (uma aberração jurídica) do
artigo 23: “Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva. Pena
- reclusão, de 2 a 4 anos.”
No entanto, o propósito anunciado na década anterior, na ESG, de reformar o direito
brasileiro para atender aos propósitos da segurança nacional não estava consumado.
Tendo em vista as repetidas dificuldades no campo jurídico por que a ditadura passou,
com derrotas mesmo na Justiça Militar e com mudanças frequentes de normas, é de
perguntar se a arbitrariedade reivindicada pelos militares poderia ser abrigada pelas
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
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formas jurídicas de um estado de direito, que a ditadura buscava simular, tendo em vista
que o golpe foi dado em nome da democracia, contra uma suposta transformação, por
João Goulart, do Brasil em “república sindical” ou até mesmo em um regime socialista.
A instabilidade normativa da ditadura estava ligada às disputas de poder entre os
militares; o grupo de Costa e Silva estava à direita de Castelo Branco, e foi aquele governo
que editou o AI-5 em 13 de dezembro de 1968, intensificando a repressão. O decreto-lei
n. 510, de 20 de março de 1969, alterou o decreto-lei 314 nesse mesmo espírito, trouxe
mais previsões normativas e aumentou a duração das penas (por exemplo, o tipo de
reorganizar partido político cassado ou associação dissolvida legalmente passou de pena
de detenção de 1 a 2 anos para 2 a 5 anos). Costa e Silva preparava em 1969 uma reforma
constitucional feita em seu gabinete, quando ficou incapacitado de governar em agosto.
No dia 31, um triunvirato militar4 deu novo golpe, impediu o vice-presidente, Pedro
Aleixo, um político civil, de tomar posse, e instituiu penas ainda mais severas, em um
retrocesso secular do direito brasileiro: o AI-13, de 5 de setembro de 1969, previu o
banimento sem processo judicial: “O Poder Executivo poderá, mediante proposta dos
Ministros de Estado da Justiça, da Marinha de Guerra, do Exército ou da Aeronáutica
Militar, banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar
inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional.” (art. 1º), que não poderia ser
revisto pelo Judiciário, assim como acontecia com os atos praticados com fundamento
em atos institucionais.
O AI-14, também de 5 de setembro, alterou o parágrafo 11 do artigo 150 da
Constituição para permitir a “pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou
confisco” nos “casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou
subversiva nos termos que a lei determinar.”. Ainda nesse mês, surgiu a nova norma de
crimes contra a segurança nacional, o decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969, muito
mais severo do que os anteriores (seria o mais drástico do regime), prevendo aquelas
penas. O habeas-corpus foi suspenso para os crimes políticos. O Congresso Nacional
ainda estava fechado nesse momento, a imprensa, censurada, e os direitos de reunião,
associação e manifestação, feridos pelo AI-5, impedindo o debate público sobre essas
O triunvirato era formado por representantes das três Forças: Aurélio de Lyra Tavares, ministro do
Exército, Augusto Rademaker, ministro da Marinha, e Márcio Melo, ministro da Aeronáutica.
4
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medidas.
Todo esse quadro dificultava muito o trabalho dos advogados de presos políticos.
Sobral Pinto dirigiu carta a Costa e Silva ainda em 1966, quando o militar ainda não havia
sucedido a Castelo Branco, contestando os métodos de punição da ditadura: “desejo saber
se o Sr., na Presidência da República, vai continuar a desrespeitar, como o atual Governo,
os processos comuns de punir, mantendo o atual sistema de punir sem ouvir os acusados
nem lhes permitir ampla e segura defesa.” (PINTO, 1977, p. 91). Não só o desrespeito
continuou, como foi aprofundado, e o próprio Sobral Pinto seria preso logo após a edição
do AI-5.
Em 1969, ainda durante o governo de Costa e Silva, foi elaborado um documento
ultrassecreto (o grau mais alto de sigilo), o Conceito Estratégico Nacional, importante
síntese das diretrizes do sistema de informações e de repressão, bem como da política
externa e da defesa do país, o que incluía medidas de cunho econômico e
desenvolvimentista. Entre os riscos à segurança, estava o que o governo, inspirado pela
doutrina de segurança nacional, entendia como “pressão socioeconômica”, que
“3.3.2. Atua nos campos Psicossocial, Econômico e Político, manifestações e
reivindicações de toda espécie, notadamente de
“– classes sociais e profissionais assalariadas, insatisfeitas com seus atuais níveis
de remuneração e coma desigualdade no que respeita a distribuição de benefícios e
oportunidades;
“– sindicatos e grupos de pressão, que desejam manter privilégios em bases
prejudiciais à coletividade;
“– grupos estudantis, insatisfeitos com as falhas estruturais da sociedade moderna
e aspirando mudar os atuais padrões de conduta.
“3.3.3. Ameaça em particular os Objetivos Nacionais Permanentes de Integração
Nacional, Paz Social e Prosperidade Nacional. É uma pressão atual e potencial, cujo
estágio, no momento, já demonstra uma possibilidade de atuação acentuada e que
apresenta potencialmente, um elevado grau de periculosidade, mercê do baixo nível
intelectual e de vida de grandes parcelas do povo brasileiro, passíveis, por isso mesmo,
de serem arregimentadas para defesa de interesses legítimos de sobrevivência, em um
clima perigosamente emocional, favorável à infiltração de caráter político-ideológico,
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contrário aos verdadeiros interesses nacionais. Assim, enquanto predominarem os
aspectos atuais de nosso desenvolvimento, haverá o perigo de perturbações sociais
violentas, por ser essa Pressão facilmente explorável no sentido subversivo”. [doc. 4, p.
13-14]
Este documento, assim como outros desse tempo, reconhecia a existência do que
era chamado de “tensões sociais”. Elas eram encaradas, no entanto, como pretextos para
a esquerda realizar a guerra revolucionária. Embora admitindo as más condições de vida
do povo brasileiro, não se lhe reconhecia a possibilidade de organizar-se e reivindicar-se,
pois isso poderia levar a um uso das tensões sociais pelo inimigo interno. Também nesse
ponto, a doutrina de segurança nacional era essencialmente contrária à soberania popular,
além de paternalista.
Além da formalização por meio de normas jurídicas, ocorreram os préstimos dos
juristas engajados na ditadura para a legitimação da repressão política em nome da
segurança nacional. Um exemplo foi Hely Lopes Meirelles, que fora secretário de
segurança do Estado de São Paulo justamente no momento da implantação da Operação
Bandeirante (Oban), um sistema paralegal de repressão financiado pelos empresários
paulistas, e que foi o laboratório do sistema do DOI-Codi (Destacamento de Operação de
Informação – Centro de Operação de Defesa Interna). O jurista, nome tradicional do
Direito Administrativo brasileiro (apesar do óbvio desrespeito da Oban ao princípio da
legalidade administrativa, entre várias outras normas ali violadas) e juiz aposentado,
concedeu em 1972 palestra na ESG na qual, explicitamente submetendo a toga à farda,
afirmou que a melhor definição da segurança nacional havia sido dada pela própria Escola
Superior de Guerra, e traçou os contornos teóricos do conceito desta forma: “[...] tem o
Estado o poder e o dever de acionar o seu mecanismo de polícia administrativa ou
judiciária para conter os excessos da liberdade individual e aplicar as penalidades legais
aos que atentem contra a Nação, a coletividade e o próprio indivíduo como membro da
comunidade estatal.
“Assim é no campo dos espetáculos públicos, em que se justifica a censura e outras
medidas de polícia administrativa, preventivas ou repressivas, para impedir ou coibir a
divulgação da ideia ou da imagem atentatória da moral ou incitadora da desordem que
afeta a segurança nacional.
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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“Assim é nas reuniões públicas em que o calor do debate pode gerar polêmica e esta
degenerar em conflito social perturbador da ordem interna.
“Assim é nas greves nos serviços públicos e atividades essenciais à comunidade,
em que a sua paralisação ou atraso no atendimento da população pode provocar danos
irreparáveis e reação popular de consequências imprevisíveis, pelo que se impõe a adoção
de providências de polícia administrativa e judiciária, com a intervenção do Estado para
restabelecer a normalidade em prol da segurança nacional.
“Assim é, enfim, em todas as ações ou omissões individuais ou coletivas de
repercussão na ordem interna, na paz social, na saúde pública, na economia popular e no
bem-estar da comunidade. Ocorrendo perturbação em qualquer desses setores há interesse
público no seu restabelecimento, o que justifica e requer o emprego do Poder Nacional
através do poder de polícia administrativa ou judiciária como medida assecuratória ou
restauradora da normalidade na vida da Nação, que é o objetivo último da segurança
nacional”. (MEIRELLES, 2006, p. 723-724)
Trata-se de evidente cerceamento ao associativismo popular, “caloroso” demais
com suas reuniões públicas para o gélido poder de polícia, hipertrofiado pela ditadura. A
segurança nacional, com esses contornos ao mesmo tempo totalizantes da vida social e
conceitualmente indefinidos, tanto no pensamento de seus ideólogos e justificadores
quanto na sua formalização como norma, enfrentou compreensíveis dificuldades no
Judiciário. Tratava-se de um conceito jurídico quase indeterminado, que o Supremo
Tribunal Federal, antes do AI-5, tentou circunscrever. Mesmo após a edição do AI-5, o
Ministério Militar deixou de apresentar denúncias, em razão das acusações sem provas e
o entendimento demasiado extensivo dos tipos penais pelos órgãos policiais, e a Justiça
Militar continuou a absolver réus.
No entanto, apesar de a Justiça Militar ter absolvido réus em casos muito flagrantes
de denúncias inconsistentes, deve-se lembrar que grande parcela dos atos da repressão
política não chegava ao Judiciário, e a judicialização de parte da repressão (ela não
ocorreria para os índios, e muito pouco para os camponeses) não impediria os
desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais, já não legitimados
juridicamente no direito de segurança nacional (nem mesmo a tortura era juridicamente
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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permitida, tampouco nos atos institucionais), mas fundamentados politicamente na
segurança nacional como doutrina.
Com efeito, a judicialização da repressão, embora maior na ditadura brasileira do
que nas demais do Cone Sul, conforme demonstrou o trabalho de Anthony W. Pereira
(2005), encontrou expressivos limites, com a opção do regime pelas execuções
extrajudiciais, embora a pena de morte estivesse juridicamente institucionalizada; a
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” destacou essa ilegalidade
sistemática dos órgãos de repressão: “No caso dos guerrilheiros rurais, houve a execução
sumária, e em alguns casos, depois de longos meses no cativeiro ou em campos de
concentração como o que ocorreu na região do Araguaia, sem nenhum processo legal.
Outros guerrilheiros, como o Capitão Lamarca, Zequinha Barreto, Otoniel Barreto e Luis
Santa Bárbara foram mortos sumariamente, no sertão baiano, pelo então Major Newton
Cerqueira, em ação articulada com o delegado paulista, Sérgio Paranhos Fleury. Houve a
execução sumária, sem nenhum julgamento legal embora vigorasse a pena de morte,
conforme o Ato Institucional nº 14, de 05/09/1969, que estabeleceu a pena de morte, de
prisão perpétua, de banimento e de confisco aos militantes políticos contrários a ditadura
considerados “revolucionários e subversivos”. Nem os guerrilheiros rurais, sequestrados
no campo, foram submetidos ao devido processo legal ou chegaram a ser apresentados ao
Conselho de Justiça da Justiça Militar. Na Justiça Militar, em muitos casos, a violação
desses direitos foi consolidada”. (COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO
PAULO “RUBENS PAIVA”, 2015, capítulo A Atuação dos advogados na defesa dos
presos políticos, p. 36)
A fundamentação extralegal das práticas repressivas na doutrina de segurança
nacional era realizada não de forma aberta, mas numa cultura cínica em relação ao direito:
a ditadura militar, embora exigisse ser chamada de uma “democracia social”, ou de uma
democracia adequada para as condições brasileiras, não cumpriria nem mesmo as normas
de exceção, instituídas para fugir ao direito constitucional que, no entanto, ela mesma
criou.
Atos institucionais, até o número 4, foram criados para o governo fugir da
Constituição de 1946, porém a mantendo; depois, com a troca de Constituição pela de
1967, imposta ao Congresso Nacional (não houve assembleia constituinte), ainda viriam
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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o AI-5 e outros atos institucionais e complementares para escapar à de 1967, no entanto
sem revogá-la. A Constituição de 1969, criada de forma anômala (envergonhada, talvez,
diante da incapacidade dos militares e seus juristas de criarem uma Carta adequada para
o regime) por meio de emenda, não impediu a criação dos atos institucionais subsequentes
que dela fugiam... Ao mesmo tempo à margem e subjacente a todo esse disparatado
aparato jurídico, encontrava-se a sistematização da ilegalidade em nome da segurança
nacional, e infundia toda a cadeia de comando das graves violações de direitos humanos,
dos ditadores que ocuparam a presidência da república (e que encabeçam a lista da
Comissão Nacional da Verdade de 377 autores dessas graves violações) aos executores
de crimes contra a humanidade.
Recorrendo ora a uma faceta ora à outra da segurança nacional, seja como norma
excepcional para fugir às outras normas, seja como ideologia para fugir ao direito, o
governo refugiou-se e fomentou uma cultura cínica em relação ao direito. Nesse sentido,
não era viável para os movimentos sociais, nessa época, fazerem uso do ativismo judicial
(que somente após a Constituição de 1988 pôde realmente ser empregado por alguns
movimentos) para avançar suas pautas reivindicatórias: o momento era de luta pela
sobrevivência. Após o AI-5, os movimentos sociais entraram em recesso.
4. O pretexto das tensões sociais e as diversas formas de limitação dos direitos de
associação e de reunião
O associativismo popular, depois do ano de 1968, em que milhares foram às ruas
protestar contra a ditadura, sofreu uma abrupta queda após o AI-5. A escolha pela ONU
de 1975 como Ano Internacional da Mulher ajudou as mulheres a atuarem como
vanguarda do retorno dos movimentos às ruas; as militantes políticas que fizeram o
combate à ditadura “Foram, ainda que nem todas estivessem conscientes disso, as
pioneiras do feminismo dos anos de 1970 no Brasil” (TELES, 2014, p. 18). Na segunda
metade dessa década, outros movimentos retomariam o espaço público, aproveitando-se
da lenta Abertura do regime e acelerando-a, como os dos negros, trabalhadores urbanos,
camponeses, contra a carestia e o custo de vida, dos homossexuais, contra a violência
policial, dos povos indígenas etc.
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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A pauta dos movimentos sociais incluía em geral, nos anos 1970, a própria
possibilidade de mobilização e protesto, e incorporava solidariamente reivindicações de
outros movimentos, o que reforçava o combate à ditadura. Por exemplo, no “Programa
Mínimo do Comitê brasileiro pela Anistia”, de 1978, podemos ler como reivindicação a
revogação da Lei de Segurança Nacional e “Lutar, por meios jurídicos e políticos, contra
todas as normas coercitivas e punitivas, excepcionais ou não, que impeçam o livre
exercício do direito de palavra, reunião, associação, manifestação e atuação política e
partidária.”, bem como “Apoiar as lutas de todo o povo por melhores condições de vida
e de trabalho, por melhores salários, contra o aumento do custo de vida, por melhores
condições de alimentação, habitação, transporte, educação e saúde.” (doc. 8). Os
movimentos estudantis incorporavam pautas como a liberdade de associação e reunião, e
também a liberdade sindical e a reforma agrária.
No entanto, apareceram também muitas tensões entre os movimentos. A socióloga
e ativista negra Lélia Gonzalez, por exemplo, de um lado denunciava o “discurso
estereotipado” sobre as negras nos “movimentos das mulheres brancas”; de outro, a
“postura muito machista do homem negro” (GONZALEZ, 1991, p. 9). João Silvério
Trevisan, um nome histórico dos movimentos homossexuais do Brasil, criticava a
“esquerda ortodoxa” que não sabia como lidar, dentro de sua visão determinada pela luta
de classes, com os movimentos negros, feministas, homossexuais e com os ambientalistas
– questões de “minorias” segundo essa esquerda, e “para nós, das minorias, a sensação
era de estar prensados num círculo de ferro, à direita e à esquerda” (TREVISAN, 2000,
p. 338). A discriminação tem seus reflexos ainda hoje, conforme aponta Renan Quinalha,
nas experiências de justiça de transição, resultando na “invisibilidade” das questões de
orientação sexual e de identidade de gênero e, com um pouco mais atenção, das questões
de gênero ligadas à condição feminina (QUINALHA, 2014, p. 262).
Os documentos dos órgãos de informação e de repressão mostram que a ditadura
acompanhava atentamente o retorno do associativismo popular e buscava reprimi-lo. Ela
se ocupava também dos avanços jurídicos dos movimentos. Os órgãos de repressão, tendo
sido informados de que “elementos de esquerda, radicados na Europa, estariam se
movimentando para apoiar as teses que seriam apresentadas na V Conferência Nacional
dos Advogados do Brasil” (doc. 6, p. 1), que ocorreu no Rio de Janeiro em agosto de
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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1974, a acompanharam de perto e constataram, no mesmo documento, que “a OAB –
Seção São Paulo prestigiava movimentos estudantis orientados por subversivos. A
vinculação entre a OAB – Seção São Paulo e CDPP – Comitê de Defesa dos Presos
Políticos, esteve patente em várias ocasiões” (doc. 6, p. 1). Uma das teses aprovadas foi
a defesa da liberdade de associação, com as recomendações, propostas por advogados de
presos políticos do repúdio ao abuso do conceito de segurança nacional (sugerida por
Heleno Cláudio Fragoso) e à instituição das penas de morte e de prisão perpétua (por
Flora Strozenberg e Rosa Cardoso, que se tornaria, décadas depois, membro da CNV;
doc.6, p. 3).
Neste capítulo, relataremos alguns exemplos da vigilância e repressão dos
movimentos sociais.
4.1. Monitoramento da criação de movimentos sociais
Esse tipo de monitoramento era empregado para impedir a formação de
movimentos considerados indesejáveis pelo governo. Ailton Krenak conta como a Funai
(Fundação Nacional do Índio) foi usada para tentar impedir encontros entre lideranças
indígenas, o que atrasou a formação da União das Nações Indígenas (UNI). Esta
organização logrou constituir-se, no entanto, e teve papel importante na Assembleia
Nacional Constituinte, durante o governo Sarney, para a criação de um capítulo dos índios
na Constituição de 1988 (KRENAK, 2015).
Pode-se considerar que o marco inicial do movimento pela anistia dos presos
políticos, exilados e banidos da ditadura militar brasileira ocorreu em 1975 com o
Movimento Feminino pela Anistia, criado por Therezinha Zerbini, que era advogada e
esposa do general cassado Euryale Zerbini, e outras lideranças, poucos anos antes do
Comitê Brasileiro pela Anistia (LEITE, 2012).
O sistema de informações e vigilância estava atento para essa movimentação;
relatório secreto com origem no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), relatou
palestra de Zerbini na cidade de Porto Alegre em setembro de 1975, e o considerou um
movimento contestatório: “O ‘Movimento Feminino em Favor da Anistia dos Presos
Políticos’ tem se caracterizado pela participação de um pequeno e bem organizado grupo,
comprometido com ideologias e políticos afastados pela Revolução de 64.
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“Explorando o lado sentimental da mulher, procuram, através de manipulações
escusas, conscientizá-las da necessidade se integrarem ao Movimento de Anistia aos
Presos Políticos.
“Essa arregimentação de forças de pressão contra o Governo, embora ainda sem
expressão e apoio popular, representa mais um desafio e uma contestação aberta aos
princípios defendidos pelo movimento revolucionário”. (doc. 7)
“Movimento revolucionário”, no curioso jargão denegatório empregado pelos
órgãos oficiais, era a própria ditadura militar.
No governo Figueiredo, a vigilância e a repressão sobre os movimentos sociais
continuaram, apesar da revogação do AI-5 no fim de 1978 (o que não fez, evidentemente,
cessar a ditadura – entender o contrário seria hipertrofiar o direito em detrimento da
política) e a continuidade do lento processo de abertura. O Movimento dos Sem-Terra
formou-se nesse período, a partir das experiências da luta camponesa e da Comissão
Pastoral da Terra. Stedile faz notar que, nos governos de Geisel e de Figueiredo,
realizaram-se algumas desapropriações para reforma agrária para “amainar os conflitos
sociais e evitar reações mais vigorosas dos camponeses”, o que não deu certo e “o que
vimos no período de 1979-1983 foi a eclosão de muitas lutas de posseiros da Amazônia
e o ressurgimento da luta ‘massiva’ pela terra em todo o território nacional.” (STEDILE,
2012, p. 152). No entanto, os movimentos populares rurias foram impedidos de mobilizarse “no período entre 1968 e 1978” (HOUTZAGER, 2004, p. 97).
Apesar do sigilo que cercou a criação do MST, os órgãos de informação perceberam
o que acontecia no campo. O Ministério do Exército, em agosto de 1982, emitiu um
Pedido de Busca confidencial com o assunto “MOVIMENTO DOS SEM-TERRA –
MEDIANEIRA/PR”, para investigar a criação do Movimento. O Pedido foi difundido
para as Delegacias de Ordem Política e Social, a Polícia Militar, o II Exército e o SNI.
1. DADOS CONHECIDOS
De um Info A-1:
– Com a finalidade de estruturar em âmbito nacional o “MOVIMENTO DOS SEM-
TERRA”, realizou-se de 9 a 11 Jul 82, em MEDIANEIRA/PR, um “Encontro
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Preparatório” com cerca de 70 (setenta) participantes, da área, e vindas dos Estados de
SÃO PAULO, RIO GRANDE DO SUL, SANTA CATARINA E MATO GROSSO DO
SUL.
– O “Encontro” não teve divulgação na imprensa local e foi realizado sob condições
de máximo sigilo.
– Os locais utilizados foram: o Centro Social Urbano e o Salão Paroquial da Igreja
Matriz em MEDIANEIRA/PR.
– Os trabalhos foram conduzidos por 3 (três) advogados de SÃO PAULO/SP (cujas
identidades não foram apuradas) [...]
– Estiveram presentes representantes do MASTRO, da Pastoral da Terra (PR e SC),
do PDT/RS e um médico de MS. (doc. 11)
O Mastro era o Movimento do Agricultor Sem-Terra do Oeste Paranaense,
organizado a partir das condições iníquas das remoções e desapropriações de agricultores
para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu (que também levaria a remoções
forçadas e genocídio dos povos indígenas da região), e foi uma das mobilizações no
campo que originaram o MST (BRENNEISEN, 2004).
Os dados solicitados eram a identidade desses advogados, do grupo a que
pertenciam, informes sobre a segunda reunião, ocorrida em São Miguel do Iguaçu/PR, e
“outros dados” úteis.
4.2. Monitoramento das ações dos movimentos sociais
Os arquivos das polícias políticas revelam que o monitoramento dos movimentos
era realizado até mesmo sobre grupos de direita, como o Tradição Família e Propriedade
(TFP), que apoiou o golpe de 1964 e tem pasta no DEOPS/SP.
O exercício de vigilância poderia ser determinante para a prisão de militantes. No
caso da UNE, o monitoramento foi fundamental para a prisão coletiva no Congresso de
Ibiúna, em 1968, como lembrou a Comissão Nacional da Verdade: “Um caso
emblemático de prisão coletiva foi a realizada no XXX Congresso da UNE – União
Nacional dos Estudantes, em Ibiúna (SP), no mês de outubro de 1968. Desde a
movimentação pela organização do Congresso da UNE, o DOPS de São Paulo criara uma
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operação, em conjunto com as polícias da Guanabara, de Minas Gerais, do Paraná e do
Rio Grande do Sul, entre outros estados, para acompanhar e desmobilizar o evento
estudantil. Assim, foi lançada a chamada Operação Ibiúna, que ocorreu em três fases:
monitoramento, repressão e judicialização. Na primeira fase, o DOPS, por meio de um
agente secreto, mapeou toda a produção de jornais e panfletos do movimento estudantil e
acompanhou as discussões entre os estudantes sobre o congresso. Segundo o relatório
sobre a Operação Ibiúna, assinado pelo delegado titular do DOPS, Italo Ferrigno, as
forças policiais paulistas sabiam desde o fim de setembro de 1968 que o congresso
ocorreria na região de Sorocaba. Assim, mobilizaram todas as autoridades da região, no
intuito de comunicarem ao DOPS qualquer movimentação estudantil”. (CNV, 2014, vol.
I, p. 310)
Os estudantes foram denunciados com base no artigo 36 do Decreto-Lei no 314/67,
já mencionado neste trabalho, pois a organização havia sido proibida pela chamada Lei
Suplicy de Lacerda (que foi ministro da educação de Castelo Branco), lei n. 4464 de 9 de
novembro de 1964, o que foi mantido pelo decreto-lei n. 228, de 28 de fevereiro de 1967.
A tentativa de reorganizá-la correspondia a um crime contra a segurança nacional.
Contra os estudantes, que haviam sido um dos grupos mais mobilizados em 1968,
ainda viria o decreto-lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969, no governo de Costa e Silva,
que proibiria, entre outras condutas previstas no artigo 1º, aliciar ou incitar à “deflagração
de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe
nesse movimento”; praticar “atos destinados à organização de movimentos subversivos,
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados”; conduzir, realizar, confeccionar,
imprimir, ter em depósito, distribuir “material subversivo de qualquer natureza’; usar
“dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à
moral ou à ordem pública”.
O rito de apuração era sumário e, se o agente era aluno, poderia ser desligado da
instituição de ensino e proibido de matricular-se em outra por três anos. A severidade da
norma, segundo Rodrigo Patto Sá Motta, correspondia ao temor das autoridades “em
relação à capacidade de mobilização estudantil, e mesmo após a edição do AI-5” (2014,
p. 154); embora ela se referisse aos professores e aos outros funcionários, o ativismo dos
estudantes era seu alvo principal.
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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4.3. Subestimação da organização popular
O trecho antes citado do Conceito Estratégico Nacional, documento ultrassecreto
de 1969, defende que o “baixo nível” intelectual do povo brasileiro o tornaria suscetível
de “arregimentação” pela subversão. Com efeito, um dos pretextos para a vigilância e o
controle dos movimentos sociais era a ideia de que o povo não seria capaz de se
organização autonomamente. Se havia uma associação, ela provavelmente seria obra do
inimigo interno, o subversivo. Além de criminalizar os movimentos, esse tipo de
concepção sobre o povo tinha como efeito negar a legitimidade das reivindicações
populares.
A Comissão da Verdade do Rio verificou o mesmo em relação aos movimentos dos
moradores de favelas no Rio de Janeiro: “Em fins dos anos 1970, a Federação de
Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), esvaziada após as prisões de seus
dirigentes em 1969, passou por um processo de rearticulação, que foi intensamente
acompanhado e monitorado pelos órgãos da ditadura. A participação do Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e,
posteriormente, do Partido dos Trabalhadores (PT) no curso da reorganização da FAFERJ
geraram uma grande preocupação para o regime. Destaca-se que na documentação
analisada pela CEV-Rio, emerge com muita clareza um conjunto de afirmações pautadas
na ideia de que os favelados não poderiam ‘estabelecer nenhum tipo de mobilização
política, a não ser que fossem objeto da ‘manipulação’ de terceiros’”. (COMISSÃO DA
VERDADE DO RIO, 2015, p. 123)
O documento citado é um pedido de busca do 1º. Exército para o DOPS/RJ em
1979, já no governo de Figueiredo. Com o fracasso inegável das políticas econômicas da
ditadura militar, embora sempre bem-sucedidas, para o regime vigente, no efeito de
aumentar a concentração de renda, as condições de vida pioraram progressivamente,
dando novo fôlego para os movimentos das periferias e das favelas, e também os relativos
à carestia e ao custo de vida.
No tocante ao movimento contra a carestia, que era nacional, pode-se lembrar, em
agosto de 1981, ocorreu uma série de depredações em Salvador; o prefeito Mário Kertész
(que terminava seu mandato de prefeito indicado pelo governador Antônio Carlos
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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Magalhães, do PDS, partido de sustentação política da ditadura) se recusara a receber uma
comissão de representantes do movimento, que apenas puderam entregar suas
recomendações a um assessor, e mais de trezentos ônibus forma danificados pela
multidão. Em documento confidencial oriundo da Secretaria de Segurança Pública da
Bahia, acentuou-se a importância do papel do movimento estudantil na articulação dos
protestos, que acabaram saindo do controle: “As depredações ocorridas em SALVADOR
nos últimos dias do mês de agosto/81, mostraram o grau de eficiência das organizações
adversas que militam nesta Capital. Não apenas o grau de eficiência, mas também o
estreito relacionamento existente entre elas e o engajamento dos estudantes nas atividades
e manifestações.
“[...]
“Por outro lado há a insatisfação popular com os constantes reajustes dos preços
dos bens e serviços que atendem às principais necessidades básicas, talvez o primeiro
aliado de ativistas de organizações clandestinas, que estão sempre à procura de espaços
para tornarem públicas e simpáticas as suas atividades”. (doc. 10, p. 36)
Seguindo o léxico da doutrina de segurança nacional, esses movimentos são
caracterizados como “organizações adversas”.
Este tema não foi objeto do relatório citado da Comissão da Verdade do Estado da
Bahia, apesar da relevância das violações de direitos sociais para a justiça de transição e
a memória social.
4.4. Infiltração nos movimentos sociais
A tática da infiltração de agentes de segurança ou de informantes servia para o
monitoramento e a sabotagem das ações dos movimentos. Em nossa experiência de
pesquisa, os documentos relativos à infiltração não são assinados, ou o são com
codinome.
Tendo em vista abordagem geral das questões sociais como problemas de polícia, a
moradia urbana era vista pela ditadura militar não como direito social (o que ocorreu, em
nível constitucional, só com a Emenda Constitucional no 26 de 2000), e sim uma questão
relativa ao binômio segurança e desenvolvimento, o que norteou os programas e
instituições criados pela ditadura militar para essa área, como o Banco Nacional da
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Habitação. A solução oficial para as favelas era, em regra, a criminalização dos moradores
e a erradicação das comunidades.
A expansão da periferia urbana levou a diversas controvérsias com os moradores de
loteamentos: muitas vezes, as empresas imobiliárias deixavam de implementar a
infraestrutura urbana, contando com a conivência de cartórios (que deveriam registrar os
planos de loteamento) e prefeituras, que deixavam de fiscalizar o processo de
urbanização, em um jogo em que “Formal e informal nas grandes cidades brasileiras são
[...] faces da mesma moeda”; “tendo a massa trabalhadora provado sobejamente que pode
enfrentar as piores condições de vida e, apesar de tudo, reproduzir, por conta própria, as
suas condições de existência, o Estado está reconhecendo isso e lavando as mãos.”
(SANTOS, 1980, p. 36-37).
Se o poder público deixava de cumprir suas obrigações no campo urbanístico, o
interesse que os movimentos por habitação despertavam para os órgãos de segurança não
pode ser menosprezado. Um exemplo foi a infiltração no Movimento de Loteamentos na
cidade de São Paulo, com participação da Prefeitura de São Paulo: “Informamos que por
Determinação Verbal de Vossa Senhoria, nos dirigimos ao Gabinete do Sr. Prefeito de São
Paulo, no Parque do Ibirapuera, onde estava havendo uma concentração popular (Dos
Movimentos dos Moradores dos loteamentos clandestinos), chegando lá entramos em
contato com o Major Couto, Chefe de Segurança do Gabinete, que nos informou que o
seu pessoal estava à paisana e infiltrado no meio do Pessoal”. (doc. 9)
O documento relata reunião do movimento com o Secretário das Administrações
Regionais Francisco Nieto Martins, político malufista, em 1979, época do governo do
prefeito Reynaldo de Barros. Os prefeitos das capitais ainda eram indicados pelos
governadores dos Estados; neste caso, a indicação foi realizada pelo governador, eleito
indiretamente, Paulo Maluf (as eleições diretas para governador de Estado só voltariam
em 1982).
A prática de infiltração de policiais pelo governo de Maluf e de funcionários
municipais de Reynaldo de Barros, para repressão dos movimentos sociais, já era
denunciada na época pela imprensa, embora negada pelo então governador
(BRIGUGLIO, 1980).
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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Este documento, assim como outros da mesma época, mostra a articulação entre o
governo do Estado e a prefeitura da capital na repressão política.
4.5. Criminalização dos movimentos
O intento de criminalizar os movimentos está subjacente a todas as ações aqui
referidas. Desde o primeiro momento do golpe de 1964, o movimento sindical foi um dos
alvos preferidos da criminalização, por meio da nomeação de interventores em diversos
sindicatos, e a prisão e a condenação de várias lideranças sindicais, repressão às greves,
o que acabou por reduzir a influência do PCB no sindicalismo brasileiro.
Marcelo Godoy, em seu livro furto das entrevistas com agentes do DOI-Codi de
São Paulo, conta como eles “filiaram-se a sindicatos, onde votavam e participavam de
reuniões, como no caso dos Bancários e da Construção Civil”, defendiam com força física
as “direções pelegas” e fraudavam eleições (GODOY, 2014, p. 504).
Entre as comissões que se ocuparam do tema (a CNV tinha um grupo de trabalho
específico sobre o assunto, o GT 13), esteve a de Volta Redonda. Os trabalhadores da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) tentaram resistir ao golpe por meio de greve, de
ações no sindicato e de transmissões da “Cadeia da Legalidade”, de apoio a João Goulart,
na Rádio Siderúrgica Nacional, que era o “principal meio de comunicação na cidade”; a
Cadeia manteve-se até a tarde do 1º de abril (COMISSÃO MUNICIPAL DA VERDADE
D. WALDYR CALHEIROS – VOLTA REDONDA, 2015, p. 47). Vários operários foram
demitidos e presos.
Com as eleições de 1968 para o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias
metalúrgicas, Mecânicas e Material Elétrico de Barra Mansa, Volta Redonda, Resende e
Barra do Piraí, o Cel. Armênio Pereira Gonçalves, Comandante do 1º Batalhão de
Infantaria Blindada (BIB) identificou em relatório novo perigo para o governo: “‘As
eleições sindicais têm tido aspecto puramente político e não sindicalista. Após a
Revolução de 64, as votações primam pelo objetivo de atingir mais ao Governo. O
candidato oposicionista, identificado como tal, é aquele que vence. As lideranças
proscritas continuam atuando. O que dita a posição dos trabalhadores são suas
reivindicações, principalmente salariais. Quem agita sua bandeira, consegue apoio e irá
liderar.
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
“Essas palavras do Comandante do 1º BIB, em relatório para o Iº Exército, são
reveladoras das razões autoritárias da intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos de Volta
Redonda no Ato Institucional Nº 5 (AI-5). O poder ditatorial considerava a democracia
sindical uma arma não somente contra a CSN, mas principalmente contra o Governo
Militar e a ordem social vigente. Além disso, identificou uma rearticulação das antigas
lideranças operárias, banidas autoritariamente do movimento sindical pelo Golpe de 64
com suas prisões, demissões e perseguições, com as novas lideranças progressistas pós-
golpe”. (COMISSÃO MUNICIPAL DA VERDADE D. WALDYR CALHEIROS –
VOLTA REDONDA, 2015, p. 186-187)
Com efeito, o AI-5 deu aos militares amplos poderes para intervenção nos
sindicatos e prisão de lideranças; em Volta Redonda, ocorreu a chamada “Operação
Gaiola”, descoberta pela Comissão Municipal, para prisão, pelo 1º BIB, de 40
sindicalistas, trabalhistas, comunistas e católicos progressistas.
Os metalúrgicos voltariam a ser uma força importante de contestação do regime no
governo Figueiredo e, dessa vez, na região do ABC paulista, com as greves em que se
sobressaiu a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva.
5. A permanência da opção pela criminalização dos movimentos sociais
O processo de transição política no Brasil e sua longa abertura foram largamente
controlados pelos militares; em muitos casos, os nomes que detinham posições
estratégicas na ditadura permaneceram no poder na chamada “Nova República”. Entre as
diversas continuidades, creio que se pode ressaltar a permanência da doutrina de
segurança nacional nos órgãos de segurança.
Essa permanência recalcada manifesta-se ainda em hoje em momentos como o da
edição da Portaria da Garantia de Lei e Ordem, para o uso das Forças Armadas no
policiamento, Portaria Normativa no 3.461/MD, de 19 de dezembro de 2013. Essa
Portaria, aprovada em um governo que teve origem na esquerda, e cuja chefe veio da
esquerda armada clandestina, reproduz a lógica da guerra revolucionária e do inimigo
interno, caracterizando os movimentos sociais como “forças oponentes”:
“4.3
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Forças Oponentes
4.3.1
Em Op GLO não existe a caracterização de “inimigo” na forma clássica das
operações militares, porém torna-se importante o conhecimento e a correta caracterização
das forças que deverão ser objeto de atenção e acompanhamento e, possivelmente,
enfrentamento durante a condução das operações.
4.3.2
Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como
F Opn:
a) movimentos ou organizações;
b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de
armas e munições, grupos armados etc;
c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos
autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em
OSP [órgãos de segurança pública], provocando ou instigando ações radicais e violentas;
e
d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da
vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial”.
Essa Portaria foi editada especialmente como reação às Jornadas de Junho de 2013:
em resposta aos protestos, o fantasma de Costa e Silva foi invocado, como se fora a
verdadeira face do Estado brasileiro. É impressionante a analogia dos movimentos sociais
com organizações criminosas e quadrilhas de narcotraficantes, em explícita intenção
criminalizadora.
A Portaria suscitou diversos protestos e foi revogada em janeiro de 2014. A nova
Portaria deixou de referir-se a “forças oponentes”. No entanto, se deixou de existir
formalmente, ela permanece em espírito: as práticas de repressão a movimentos em 2014
e 2015 parecem demonstrá-lo, e a própria retirada da norma criminalizadora talvez seja
uma aplicação dela mesma, paradoxalmente: pois uma das “ações psicológicas”
(retomando a doutrina de segurança nacional e a noção de guerra psicológica) é
justamente melhorar a imagem das Forças Armadas...
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
A Portaria parece ecoar, entre outros exemplos da ditadura, documento confidencial
de 1984 do Ministério da Justiça sobre “Áreas de tensão social”, que eram as “invasões
urbanas”, “questões fundiárias’, “questões indígenas”, “questões trabalhistas” e
“distúrbios populares e ações de massa” (doc. 12). Tratou-se de grande levantamento
nacional sobre conflitos sociais: “Os problemas sócios-econômicos [sic] da população
brasileira vêm sendo agravados, já há algum tempo, em função de um sistemático e ativo
trabalho desenvolvido pelas organizações subversivas e pelo “clero progressista”, que
têm se aproveitado da situação para acirrar os ânimos das diversas classes e categorias
sociais, propiciando o aparecimento de áreas de forte tensão social” [grifo do original], o
que foi “uma das principais causas da agitação do período anterior a 1964” (doc. 12, p.
1), imaginando um clima para um novo golpe interromper a abertura. Os movimentos são
chamados no documento de OS, “organizações subversivas”.
No campo das “invasões urbanas”, insiste-se na ideia de que a população mais pobre
é incapaz, e somente pela ação de subversivos consegue organizar-se: “A intensificação
dessas invasões só veio a ocorrer a partir de 1982, com as campanhas eleitorais, ocasião
em que os partidos de Oposição, juntamente com organismos da Igreja “progressista” e
as OS, incitaram a população carente e menos esclarecida a criar associações de
moradores para, organizada, reivindicar “os seus direitos de propriedade”, a par da
promessa de resolverem os problemas da casa própria, se eleitos”. (grifos do original;
doc. 12, p. 2)
A desqualificação das reivindicações sociais é manifesta, bem como da atuação dos
partidos de oposição ao regime em sua atuação política.
O mesmo espírito se revela na análise das questões trabalhistas: “Desde o
surgimento das duas ilegais Centrais Sindicais, no segundo semestre de 1983, a CUT, por
duas vezes, tentou mobilizar, não só os trabalhadores, mas também outros segmentos da
sociedade, para uma greve a nível nacional, contra a política econômica do Governo e,
mais especificamente, a favor de eleições diretas para Presidente da República. Os
esforços, no entanto, não atingiram os resultados esperados, no que tange à mobilização
a classe trabalhadora”. (doc. 12, p. 6)
“[...] observa-se [sic] nos Movimentos Sindical e Trabalhista focos de agitação, que
interessam, diretamente, às organizações subversivas, já que, para elas, ‘quanto pior,
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durante a ditadura militar no Brasil. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 502-533, jul./dez. 2016.
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melhor’. Assim é que, no meio rural, vem se observando saques, depredações, incêndios,
envolvendo ‘bóias-frias’, trabalhadores rurais e garimpeiros, liderados pelo clero
‘progressista’, Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido dos Trabalhadores (PT) e
PMDB.” (grifos do original; doc. 12, p. 7)
Neste caso, a legislação sindical era providencial para o governo, mantendo as duas
grandes centrais da época, a CUT e a CGT, à margem da lei. Novamente, os partidos de
oposição são apontados como responsáveis pela situação do campo.
O documento volta a apontar que se estaria em uma situação revolucionária: em
relação ao campo, afirma-se que, comparando-se com a época da Guerrilha do Araguaia,
“não havia [...] um trabalho das esquerdas tão intenso quanto este realizado na atualidade,
em que o próprio nativo da região está sendo preparado para a luta” (doc. 12, p. 8).
O estudo do Ministério da Justiça aponta, como solução contra o “trabalho de
massa” e o “emprego da violência”, que não passaria de forma de luta dos comunistas, a
criminalização dos movimentos pelo governo: “O ‘trabalho de massa’ e o ‘emprego de
violência’, que ora vem acontecendo, são as duas principais formas de luta dos
comunistas. Mas a segunda só costuma ocorrer quando há visíveis sinais de
enfraquecimento do Governo e do regime, aliados a fortes dificuldades econômicas,
provocando uma insatisfação generalizada do povo, para com a situação reinante.
“A legislação vigente, se aplicada no sentido de minimizar as questões sociais que
estimulam a ação adversa voltada contra o Governo e o regime, constituir-se-ia em
importante elemento na busca da normalidade institucional. Se, por outro lado, a norma
legal for empregada, também, na direção daqueles que buscam desestabilizar o Estado,
atribuindo-lhes responsabilidade criminal por seus atos, julga-se possível o retorno da paz
social nas áreas de tensão identificadas”. (grifos do original; doc. 12, p. 9)
A expressão ação adversa pertence ao vocabulário da doutrina de segurança
nacional e está ligada ao inimigo interno. Note-se que o anseio de “paz social”, em uma
sociedade tão desigual quanto a brasileira, não é compatível com a democracia: trata-se
da paz do medo ou dos mortos.
6. À guisa de conclusão: pautas para a construção social da justiça de transição
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A doutrina de segurança nacional, da forma como foi institucionalizada
juridicamente pela ditadura militar, e como serviu para legitimar as práticas criminosas
dos órgãos de informações e de repressão, era contrária ao associativismo popular.
Movimentos sociais eram vistos como potencialmente perigosos, por reivindicarem
direitos e tornarem visíveis o que se chamava de tensões sociais.
O direito penal da segurança nacional servia para criminalizar os movimentos e seus
repertórios de ação coletiva, com o cerceamento dos direitos de associação, de reunião, e
a suspensão do direito ao protesto.
O AI-5 representou um grande golpe contra os movimentos sociais. A retomada das
ruas pelos movimentos, com a abertura política, não extinguiu as práticas de vigilância e
de repressão, no entanto.
O processo de construção social da justiça de transição no Brasil foi impulsionado
pelos movimentos sociais. Foi a ação política do movimento dos Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos que levou à aprovação da Lei dos Desaparecidos, de número
9.140, de 4 de dezembro de 1995 que “Reconhece como mortas pessoas desaparecidas
em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período
de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências”, criando a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Sem essa atuação, não haveria Comissão de Anistia no Ministério da Justiça, por
meio de medida provisória convertida na Lei n. 10.559, de 13 de novembro de 2002.
Por meio desse mesmo grupo, o Estado brasileiro foi condenado, tanto pelo
Judiciário nacional quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a encontrar
os desaparecidos políticos.
Sem essa condenação, apoiada por outros movimentos, como o Levante Popular da
Juventude, não teria existido a Comissão Nacional da Verdade, tampouco as outras
comissões que foram criadas para o direito à memória, à verdade e à justiça.
Resta a ver como as recomendações das comissões da verdade para a efetivação
desses direitos serão seguidas, o que deve ser objeto de novos estudos; provavelmente,
assim como para a criação das próprias comissões, será necessário o ativismo dos
movimentos.
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Outro assunto a ser pesquisado é o emprego dos conceitos e instrumentos de justiça
de transição para as pautas de movimentos que lutam contra o genocídio da juventude
preta e periférica, contra a violência policial e as associações indígenas e indigenistas, o
que pode representar um passo a frente na luta pelos direitos humanos desses grupos.
7. Referências
7.1. Referências documentais (em ordem cronológica)
Doc. 1: 1ª. CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍCIA. Tese “Dos atos ilícitos perante
os direitos de reunião e de associação, medidas policiais que os previnem”. Secretário de
Segurança Pública do Estado da Bahia, Laurindo de Oliveira Regis Filho. Dez. 1951.
DOPS/Paraná. Pasta 01667. Projeto Memórias Reveladas.
Doc. 2: 1ª. CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍCIA. Tese “A propaganda de teses
aparentemente legais, mas em consonância com a diretriz de associações ou partidos
ilegais e com a política exterior de nações estrangeiros [sic]. Sua equiparação à
propaganda de doutrinas contrárias ao regime democrático, para os efeitos de repressão
legal; intervenção do poder de polícia”. Chefe de Polícia do Estado de Minas Gerais,
Geraldo Starling Soares. Dez. 1951. DOPS/Paraná. Pasta 01667. Projeto Memórias
Reveladas.
Doc. 3: ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). “Introdução ao estudo da guerra
revolucionária”. Coronel Augusto Fragoso. 1959. Documento reservado. Arquivo Ana
Lagôa.
Doc. 4: CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Conceito Estratégico Nacional.
Encaminhado pelo Aviso n. 27 do Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional,
de 13 de março de 1969. Documento ultrassecreto. BR DFANBSB N8.0.PSN, EST.21
Arquivo Nacional.
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
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Doc. 5: SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES (SNI). Comunismo Internacional:
Sumário de Informações. N. 10, out. 1971. Documento reservado. 20-C-43-3565. Acervo
DEOPS/SP. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Doc. 6: DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO DE
MINAS GERAIS (DOPS-MG). Informação n. 062/AA/DOPS/MG-74. 19 dez. 1974.
Documento confidencial. Pasta 4387. Acervo DOPS/MG. Arquivo Público Mineiro.
Doc. 7: MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA. Informação n. 410/A2/IV COMAR. 24 set.
1975. Documento confidencial. 50-Z-08-1850. Acervo DEOPS/SP. Arquivo Público do
Estado de São Paulo (APESP).
Doc. 8: COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA – SÃO PAULO (CBA/SP). Carta de
Princípios e Programa Mínimo de Ação. Jul. 1978. 50-Z-00-14860. Acervo DEOPS/SP.
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Doc. 9: DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL/SP. Informe ao Delegado
Adjunto à Delegacia de Sindicatos e Associações de Classe. 1979. 50-Z-00-15411.
Acervo DEOPS/SP. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Doc. 10: SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DA BAHIA.
Informação n. 0504/1981-CIOp. 1º out. 1981. Documento confidencial. OS 034. Acervo
DEOPS/SP. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Doc. 11: MINISTÉRIO DO EXÉRCITO. Pedido de Busca n. 257. 19 de agosto de 1982.
Documento confidencial. 50-Z-09-48057. Acervo DEOPS/SP. Arquivo Público do
Estado de São Paulo (APESP).
Doc.
12:
MINISTÉRIO
DA
JUSTIÇA/
DIVISÃO
DE
SEGURANÇA
E
INFORMAÇÕES. 20 jun. 1984. Documento confidencial. 11.0.QUF.AVU.45. Arquivo
Nacional.
FERNANDES, Pádua. Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância
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PANÓPTICA
O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira
Alexandre Bernardino Costa1
Recebido em 30.6.2016
Aprovado em 1.8.2016
Resumo: O artigo trata da educação
superior brasileira, em especial da
educação jurídica após o Golpe de Estado
de 1964. O regime autoritário instalado no
Estado brasileiro estabeleceu como um de
seus pilares a modificação do sistema de
ensino para que fosse reproduzido o
ideário conservador e anti-comunista. A
modificação ocorreu no sistema de
alfabetização, no ensino primário, no
ensino secundário, e no ensino superior.
Foram desmobilizados os professores e os
estudantes. Foi feito o acordo MECUSAID para que fosse realizada a reforma
do ensino superior. Houve a primeira
grande expansão do ensino superior
privado no país, alinhada ideologicamente
com o regime. Os cursos jurídicos foram
centrais na reforma pelo número de alunos
e pelo papel social e político
desempenhado pelos bacharéis.
Abstract: The article discusses the Higher
Education, especifically the Legal
Education after the coup that took place in
1964. The authoritarian regime which was
installed had as one of its basis the
modification of the educational system
oriented by the conservator and
anticommunist thinking. The modification
of the educational system happened in all
levels:
literacy
studies,
primary, secondary and tertiary education.
Teachers
and
students
were
demobilised. An agreement MEC-USAID
was signed to implement the Higher
Education reformation. It happened the
first huge expansion of the private
business related to the Higher Education,
aligned ideologically with the political
regime. The law courses were strategic for
the reformation, considering the high
quantity of students and the importance of
the bachelors' social and political roles.
Palavras-chave: Ensino jurídico. Ensino Keywords: Legal education. College
Superior. Reforma. Regime ditatorial.
education. Reform. Dictatorship
Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1986), mestrado em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (1992) e doutorado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2005). Foi Decano de Extensão da Universidade de Brasília. Atualmente é professor adjunto
da Faculdade de Direito da UnB. Membro fundador do Instituto de Pesquisa em Direitos e Movimentos
Sociais, e editor chefe da revista InSURgência. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino jurídico, direito, estado democrático
de direito, reforma curricular e novos movimentos sociais. Professor do curso de Pós graduação em direito
da Faculdade de Direito da UnB. É membro do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da
Universidade de Brasília, onde ministra aulas das disciplinas de Direito Achado na Rua e Métodos de
Técnicas de Pesquisa no Mestrado em Direitos Humanos. É coordenador do Grupo de pesquisa
“Movimento Direito” e integra outros grupos de pesquisa no país.
1
COSTA, Alexandre Bernardino. O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira. Panóptica, vol.
11, n. 2, pp. 534-545, jul./dez. 2016.
534
PANÓPTICA
1. Introdução
Torna-se cada vez mais importante refletir sobre o período de ditadura que ocorreu
no Brasil apos o Golpe de Estado de 1964. Foram vinte anos de domínio que causaram
muitas mazelas à sociedade e à democracia brasileira. Mas pouco se falou sobre as
conseqüências em relação ao ensino superior brasileiro, e muito menos foi dito sobre as
conseqüências do golpe e da ditadura em relação à educação jurídica. De que maneira a
formação dos bacharéis após 1964 afetou e afeta até os dias de hoje a democracia
brasileira é uma lacuna na pesquisa jurídico-política.
O objetivo deste trabalho é justamente fazer uma análise sobre como e de que forma
o Golpe de 64 atingiu a educação jurídica no País. É importante ressaltar que, embora
esta análise compreenda o ensino superior, especificamente o ensiino jurídico, ao ser
implementada a reforma foi extensiva a todos os níveis educacionais. No propósito de
adequar o sistema educacional ao projeto político econômico, os vários níveis de ensino
se entrecruzavam: primeiro grau, ensino fundamental, alfabetização, ensino médio,
supletivo, ensino técnico, vestibular, ensino superior, ensino de pós-graduação, extensão
universitária e pesquisa.
2. O projeto de educação do regime ditatorial para o Brasil
Um exemplo claro da adequação de todo o sistema educacional ao projeto
desenvolvimentista e à ideologia do regime pode ser verificado no sistema de
alfabetização de adultos. O MOBRAL - movimento brasileiro de alfabetização -
implantado após 64, veio como uma resposta ao processo de alfabetização em curso, que
utilizava o método Paulo Freire. Gilberta Jannuzzi (1974:64-69) sintetizou bem as
contradições existentes entre os dois projetos, bem como a ideologia que dava sustentação
a cada um. Ao confrontar as duas práticas, ficam expostas as diferenças radicais, nos
métodos, material, preparação e técnicas de alfabetização, mas, principalmente, na
concepção de educação, que comportam visões do homem e do mundo diferenciadas:
"Em Paulo Freire, educação é conscientização, práxis social, isto é, momento de reflexão
radical, rigorosa e de conjunto sobre a realidade em que se vive, de onde surgirá o projeto
de ação a ser executado… Para o MOBRAL, a educação é adaptação, investimento sócioeconômico, prepara a mão de obra para o mercado de trabalho. (…) Paulo Freire constrói
COSTA, Alexandre Bernardino. O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira. Panóptica, vol.
11, n. 2, pp. 534-545, jul./dez. 2016.
535
PANÓPTICA
sua pedagogia baseando-se na crença da igualdade ontológica dos seres humanos,
enquanto seres capazes de crítica, autêntico, finitos, inacabados, históricos. O Mobral
constrói sua proposta pedagógica baseado na crença de que a elite é capaz elaborar
projetos, os melhores possíveis, que devem ser executados obedientemente pelo povo ".
Como percebemos, o antagonismo entre o projeto de sociedade que se formava e o
que foi imposto pelo regime, alcançava todos os níveis educacionais, até na educação
jurídica. Segundo Carlos Benedito Martins: "… parece mais promissor abordar um ensino
superior, que emergiu no processo de expansão, como um campo complexo, no qual as
instituições universitárias e os novos estabelecimentos surgidos a partir da década de
setenta, geralmente faculdades isoladas privadas, estabelecem não só relações luta e
concorrência visando a maximização de uma rentabilidade simbólica, mas também de
complementaridade em termos de divisão do trabalho intellectual.” (1988:26)
O projeto de reforma do ensino superior compreende duas fases: a primeira de
destruição de um projeto que ia tomando corpo, "O projeto de construção de universidade
crítica de si mesma da sociedade, que vinha absorvendo uma parcela crescente corpo
discente docente do ensino superior, durante período populista” (1988:15); a segunda
que iria compreender uma disciplinarização do ensino superior, dentro da perspectiva
desenvolvimentista e de segurança nacional. Como expressou José Eduardo Faria
(1987:17), ao falar sobre ensino jurídico, diz que sobre os requisitos eficácia econômica
e do avanço tecnológico, a reforma buscava "…negociar a lealdade e a solidariedade
política das novas gerações estudantis ao regime ditto revolucuonário em troca de um
diploma desmoralizado.”
Os primeiros passos para o desmantelamento do projeto que até então se delineava
ocorreram logo após instauração do novo regime político e econômico: a Lei número
4.464, de 9 novembro de 1964, incidia diretamente sobre a organização do movimento
estudantil. Subordinando o corpo discente ao controle e disciplina do Estado, foram
extintas as formas anteriores de representação, especialmente a União Nacional dos
Estudantes - UNE, que teve sua sede invadida ainda em 64 pelo aparelho repressivo
militar, com inúmeras prisões, desaparições violências físicas e intimidações contra os
líderes estudantis em todo país. Foram extintos também os Centros Acadêmicos e as
Uniões Estaduais dos Estudantes, que possuíam autonomia e grande força política de
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coordenação do corpo discente. As antigas forma de representação e organização foram
substituídas por Diretórios Acadêmicos, Diretórios Centrais, Diretórios Estaduais e pelo
Diretório Nacional de Estudantes, todos ao atrelados ao controle da burocracia estatal.
A legislação disciplinava como objetivos das novas entidades estudantis impostas:
"a) promover a solidariedade entre os corpos discente, docente e administrativo; b)
preservar as tradições estudantis, a probidade da vida escolar, o patrimônio moral das
instituições de ensino e a harmonia entre os diversos organismos da estrutura escolar; c)
organizar reuniçoes de caráter cívico, cultural e científico, visando a complementação da
formação universitária; e) lutar pelo aprimoramento das instituições democráticas."
Em seu artigo 14, a lei dizia expressamente: "É vedado aos órgãos de representação
estudantil qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter politico-partidário, bem
como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares."
Buscava-se dessa forma, anular qualquer participação política dos estudantes que
fosse contra o regime instaurado, ao mesmo tempo que se tentava a cooptação através dos
novos órgãos criados e subordinados ao poder estatal.
Mas a aplicação da primeira legislação nâo foi suficiente, mesmo na ilegalidade, a
UNE e demais representações estudantis mantiveram seu caráter combativo, como
quando se dá a realização do XXXVII Congresso Nacional, que aprovou resolução de
boicote sistemático àquela lei. O poder central então, através do decreto-lei número 228,
de 28 fevereiro 1967, extinguiu as representações no nível estadual e nacional, criadas
pelos seus próprios dirigentes através da Lei anterior, deixando tão somente a existência
dos diretórios em cada estabelecimento de ensino superior.
Diante da política excludente que repressora movimento estudantil adotava uma
postura cada vez mais radical. Em 1968, realizou-se o XXX Congresso Nacional da UNE
em Ibiúna, interior de São Paulo. Este momento foi particularmente importante, por
significar uma tentativa de reorganização do movimento estudantil clandestino e illegal,
que desembocou em uma quase completa aniquilação do mesmo. As principais lideranças
foram presas, e frente à repressão ostensiva pouca coisa pode ser feita em oposição ao
autoritarismo vigente.
O resultado jurídico da repressão imposta pelo regime foi traduzido no Ato
Institucional número 5 e, particularmente para ensino superior, pelo Decreto número 477,
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de 26 de fevereiro 1969, que dispunha sobre as punições a serem aplicadas a docentes,
alunos ou funcionários que: “ A) incitasse a deflagração de movimentos que tivessem a
finalidade de paralisar as atividades escolares; B) atentasse contra pessoas ou bens dentro
de estabelecimentos de ensino; C) praticasse atos destinados à orgnização de movimentos
subversivos, desfiles, ou que deles participasse ; D) confeccionasse, imprimisse, ou
distribuísse material subversivo de qualquer natureza; E) usasse dependência escolar para
fins de subversão ou praticasse atos contrarios à moral pública.”
O processo de repressão ainda foi ampliado através do Decreto número 809, de
1969, que instituiu obrigatoriedade do ensino de Educação Moral e Cívica nos três níveis.
Buscava-se consolidar o arcabouço ideológico que estava por detrás da reforma do ensino
"através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana do amor
à liberdade com responsabilidade, sob inspiração de Deus " ainda, " cultura da
obediência à lei ". No ensino superior, a disciplina chama-se EPB - Estudo de Problemas
Brasileiros. Muitos dos professores encarregados desta matéria eram ligados a
instituições militares como a Escola Superior de Guerra - ESG. Buscava-se assim
reproduzir no ensino de terceiro grau a ideologia que sustentava o regime.
A cadeia disciplinar iria ser fechada com a criação de uma Divisão de Segurança e
Informação - DSI, vinculada ao SNI, no Ministério da Educação Cultura, com a finalidade
de vigiar as atividades de professores, estudantes, e funcionários, transformando sistema
de ensino em estrutura de vigilância e disciplina. Como bem sintetizou Bárbara Freitag:
"As intenções explícitas da política educacional enfatizam a necessidade de formação de
recursos humanos altamente qualificados; de fato, se queria assegurar a disciplina e a
ordem entre os estudantes, inconformados com o novo regime militar. " (1986:90)
3. Reforma do ensino superior e os cursos jurídicos
Pode-se resumir a reforma universitária em seu aspecto jurídico- formal à Lei
5540/68, mas uma decisão jurídico-política encerra embates maiores e mais complexos
do que o texto da lei. A partir do quadro estabelecido sobre a situação política e
educacional do país ao tempo que precedeu a reforma, tem-se um pouco da dimensão do
“problema” do ensino superior, foco da emergência das lutas democráticas e centro de
atenção especial do regime em busca da manutenção do poder.
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O processo de reforma propriamente dito tem seu balizamento através de um
modelo importado de convênios ou acordos os quais uma elite intelectual tradicional,
inclusive com elementos estrangeiros, procedeu à análise da crise educacional propondo
respostas a serem adotadas como solução para a inserção da Universidade no projeto
desenvolvimentista.
Diversos acordos foram celebrados entre o MEC (Ministério da Educação e
Cultura) e a USAID (United Agency for International Development), dentre os quais dois
foram dirigidos especificamente para o ensino superior, um a 23 junho 1965 em outro a
9 de Maio de 1967. Além destes, foi também idealizado um plano para reforma pelo
professor Rudolph Atcon, que de forma direta não chegou a ser implementado, mas
certamente, como os acordos anteriores, norteou a posterior reformulação. Para se ter uma
idéia da análise feita por Atcon vale destacar uma recomendação: "Um planejamento
dirigido à reforma administrativa brasileira, no meu entender, tem que implementar um
sistema tipo empresa privada. Porque é inegável que universidade autônoma é uma grande
empresa e não uma repartição pública. "
Outro documento foi o Relatório Meira Mattos, elaborado por uma comissão
presidida pelo general e geopolítico que deu nome ao documento publicado 1967. O que
vale ressaltar aqui são as convergências na formação das comissões, com uma
compreensão da Universidade destacada da realidade, e o entendimento da educação
como fator estratégico no processo de desenvolvimento econômico, a partir uma visão
empresarial de maiores lucros e menores custos. Este relatório também seguia o
direcionamento anterior de disciplinarização do ensino superior, o que pode ser observado
em um trecho no qual é tratado o conteúdo das aulas: "Não há como, praticamente, no
contexto da legislação citada, fiscalizar-se as pregações em aula, anti-democráticas e
contra a moral, e em consequência coibir-se os abusos dela decorrentes. Recaímos assim,
como solução na necessidade de fortalecer-se o princípio da autoridade no sistema
educacional. "
Finalmente foi constituído o Grupo de Trabalho para a Reforma Universitária,
através do Decreto de 2 julho de 1968, com a obrigação de apresentar o relatório final do
prazo trinta dias. Dentro da contradição dos príncípios de “racionalização das estruturas
e dos recursos e a democratização do ensino", as modificações seguiram o modelo
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americano: ensino básico e profissional com dois níveis de pós-graduação; sistema de
créditos; avaliação por menções ao invés de notas; extinção da cátedra;
departamentalização; cursos de pequena duração; adoção de formas jurídicas múltiplas;
regime de tempo integral e dedicação exclusiva; participação assegurada dos estudante
nos grêmios universitários e a constituição de diretórios estudantis.
A expansão do sistema educacional fazia parte do discurso do regime, mas a
priorização do ensino como fator de desenvolvimento não estava associada à ideia de que
este fosse patrocinado diretamente pelo Estado e estendido a todas as camadas da
população. Nesse sentido foram suprimidos da Constituição Federal os índices mínimos
de dispêndio da receita de impostos a serem investidos em educação pela União pelos
Estados. Dessa maneira a participação do Ministério da Educação e Cultura no orçamento
da União foi drasticamente reduzida nos anos que se seguiram ao Golpe de Estado. A
expansão do ensino superior era prevista na política do regime instaurado, disciplinada e
organizada para o desenvolvimento econômico. Isto seria realizado não pelo Estado com
o controle da sociedade, mas através de das Instituições privadas de ensino, retirando o
onus financeiro do Estado e a responsabilidade pela qualidade do ensino superior que iria
se expandir.
A participação do Conselho Federal de Educação – CFE, órgão do Ministério da
Educação e Cultura, foi decisiva para tipo de expansão que ocorreu. Como órgão
responsável pela autorização e credenciamento de novos cursos superiores, o CFE
permitiu e fomentou a criação de inúmeros cursos pelo país, a maioria deles
precariamente instalados sem recursos humanos necessários, sem desenvolvimento de
pesquisa, de extensão, e de qualidade de ensino muito baixa. Em 1967 o CFE decidiu,
através do parecer número 365/67, ser "Impossível a recusa à autorização para
funcionamento, quando se trata de um estabelecimento particular e não se comprometam
fundos públicos". Abrindo assim um precedente, depois do qual se tornaria muito difícil
a recusa à autorização.
Percebe-se a esta altura que a desconstrução do projeto anterior de Universidade já
estava no fim, iniciava-se a fase de construção do modelo adotado pelo regime, conforme
os acordos MEC-USAID, os relatórios, e principalmente as metas propostas na lei número
5.540/68. O ponto fundamental nesta passagem é que as novas faculdades privadas que
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surgiam serviram de base para o projeto de racionalização e disciplinarizção. Segundo
Carlos Benedito Martins (1988:67): "As ciências humanas na década de 60, nunca é
demias relembrar, passavam a desenvolver uma indagação e reflexão crítica sobre
sociedade brasileira, sendo que esta produção ocorria de modo intenso no interior dos
centros universitários. Estas faculdades constituem uma ruptura decisiva lcom esse
cultivo de saber crítico, passando adotar cursos, currículos, práticas informais, tais como
conferências, solenidades etc…, que ajustavam-se sem ambiguidades aos interesses
educacionais do novo regime."
Paradoxalmente, a expansão do ensino superior, calcada na Lei elaborada
autoritariamente pelo regime vigente, realizada através do Conselho Federal de Educação,
que também era um órgão burocrático e autoritário, tinha no seu discurso a retórica da
"democratização do ensino”.
O ensino privado que se expandiu buscava sua justificação nos princípios
“democráticos” do regime, como demonstram os depoimentos dos representantes de
instituições de ensino superior privado na Comissão Parlamentar de Inquérito no
Congresso Nacional sobre Ensino Superior: "…nós não participamos politicamente da
Revolução de 64, mas a nossa instituição estava dentro do regime atual, no sentido das
linhas que o governo estava adotando de desenvolvimento e de atividade. " (MARTINS
1988:75)
Seria impossível conciliar a expansão do ensino superior através da empresa
educacional privada, fazê-lo tão rápido e tão intensamente, adequar o novo sistema as
regras do regime político econômico vigente, obter os maiores lucros possíveis com os
menores gastos, e ao mesmo tempo manter o ensino de qualidade. Como bem observou
Bárbara Freitag (1986:89): "Ao tentar introduzir racionalidade se cai, porém, na
irracionalidade. As medidas tomadas tanto no interesse econômico quanto no político
trocam quantidade por qualidade. A racionalização do ensino superior vai em detrimento
da qualidade de ensino e, portanto, da capacidade dos futuros profissionais."
Como era um dos cursos tracionais: direito, engenharia e medicina, o curso jurídico
sofreu os efeitos da disciplinarização da expansão privada. De um anterior curso de elite,
vinculado aos quadros da burocracia estatal, o ensino jurídico viu-se destituído deste
status para ser jogado na vala comum dos cursos de final de semana, que possuíam
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menores custos com maior demanda.
A reforma universitária de 1968 encontrou nos cursos jurídicos um campo fértil
para o engajamento do ensino superior com os ideais do regime estabelecido. Dentro da
tradição conservadora, os cursos de Direito eram os mais propícios a assimilar a ideologia
da ordem, do cumprimento à lei, da hierarquização, da disciplina, da não contestação,
quando não da participação ativa em favor do regime estabelecido. Historicamente
isolados do contexto social brasileiro, os cursos jurídicos expandiram e aprofundaram
esta situação após 1964.
Dois exemplos de vinculação do ensino jurídico com o regime podem ser
destacados: o Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do direito - CEPED; e o primeiro
seminário de ensino jurídico. O CEPED teve como figura central então consultor jurídico
da Agência do Desenvolvimento da Internacional do Governo dos Estados Unidos –
USAID - o professor David Trubek. Tendo seu financiamento patrocinado pela própria
USAID e pela Fundação Ford, o CEPED contou com vários professores visitantes norte-
americanos. Conforme Alberto Venâncio Filho: "A atividade principal do CEPED
centrou-se na organização de cursos de advogados das empresas, o primeiro realizado em
1967, que foi precedido pela viagem de um grupo de professores do CEPED realizou os
Estados Unidos, para visitar as escolas de Direito norte americanas.” (1982:325)
O tema central do curso ministrado eram os problemas da grande empresa, "… como
a forma mais adequada de trabalho organizado, capaz de atender às exigências e
complexidades da vida contemporânea." A assimilação se compltetava com a elaboração,
por parte dos alunos, de um projeto de associação empresarial, onde "… se previa a
associação de interesses distintos, geralmente capitais brasileiros e estrangeiros." O
CEPED cumpria a missão de estabelecer as ligações essa entre o ensino jurídico e o
projeto desenvolvimentista do regime. (VENÂNCIO FILHO 1982:327)
O Primeiro Seminário de Ensino Jurídico foi realizado também com a colaboração
da USAID, e propugnava a reforma do ensino jurídico dentro das linhas que vieram a ser
adotadas posteriormente pela reforma universitária.
A reforma do ensino jurídico imposta pelo regime autoritário repetiu os passos
seguidos na reforma do ensino superior. Através da portaria número 235, o professor
Newton Sucupira, então diretor do Departamento de Assuntos Universitários do MEC,
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designou uma comissão para elaborar o novo currículo mínimo do curso de direito.
Contudo, aquilo que deveria ser o currículo mínimo terminou por ser, na maioria das
instituições de ensino, o máximo a ser realizado pelos alunos.
Na justificativa da reforma pode ser verificada a insatisfação com a situação na qual
estavam os cursos jurídicos, e o intuito de voltar atrás na história: "Há que se reconduzir
as Faculdades de Direito ao seu legítimo papel de liderança e a promover a formação
de bacharéis devidamente aparelhados às novas missões profissionais." (VENÂNCIO
FILHO 1982:335). Mas a intenção de voltar na história e colocar os cursos de direito em
posição de liderança, privilégio, de formação exclusiva do estamento burocrático
nacional, se revela impossível de realização pela expansão do ensino superior como todo,
particularmente do próprio ensino jurídico.
4. Considerações finais
A expansão do ensino jurídico privado ocorrido após 1964 veio a determinar novas
funções a serem cumpridas.
Como resultado das modificações impostas pelo regime autoritário vigente após o
golpe de 64, tivemos uma grande e rápida expansão do ensino superior privado fundada
sobretudo nos cursos de menor custo, dentre eles o curso de direito. O ensino privado que
cresceu não possuia a mesma qualidade dos estabelecimentos públicos, não se realizava
pesquisa, nem extensão. Dessa forma, os cursos jurídicos deixaram de ser formadores de
elite burocrática nacional e passaram a ser os formadores de um exército de reserva para
esta mesma burocracia, além disso, passaram a cumprir funções de formação política e
ideológica sob a égide de uma teoria do direito que estivesse adequada às necessidades
do regime vigente.
A teoria do direito, ou melhor, o senso comum teórico dos juristas reproduzido
desde então fez com que os bacharéis separassem o direito da política, não questionando
sua legitimidade democrática e sua justiça, além de somente verem no Estado a produção
normativa. Sem ler os autores do positivismo era reproduzido um arremedo teórico que
pensava ser neutro na aplicação do direito, fazendo assim o que o regime desejasse. No
máximo, eram aprendidas nas primeiras lições um tridimensionalismo que terminava por
ser novamente positivista.
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Esses bacharéis reproduziram na sociedade um direito autoritário e uma prática
excludente, que não era reflexo da vontade popular e não era trabalhada
democráticamente. Os ideais de justiça social passaram a ser assunto de outras áreas do
conhecimento, cabendo ao direito somente as normas postas.
O maior problema decorrente desse período é que não houve uma ruptura direta e
clara com esse senso comum teórico, ao contrario, se aprofundou a reprodução de um
saber que não se reconhece ideológico. Boa parte do que vivenciamos hoje, com
aprendizado calcado na memorização de textos de lei, decorre do período autoritário e
ainda é reproduzido como se neutro fosse. Uma visão de monismo estatal, e de separação
da democracia e da justiça permanence, inclusive para convalidar a ditadura. Chama a
atenção a decisão do STF sobre a Lei de Anistia.
Necessitamos conhecer o legado da ditadura em relação à teoria e à prática do
direito para entender as dificuldades ainda existentes em superarmos o período
autoritário.
5. Bibliografia
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Advogado e mercado de trabalho. São Paulo:
Julex, 1988.
COSTA, Cláudia Marcia. Universidade de Brasília - ensino jurídico, profissões
jurídicas: um estudo de caso. Florianópolis: UFSC, 1991.
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FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo:
Alfa Omega, 1975.
FREITAG, Bárbara. Estado, Escola e Sociedade. São Paulo: Moraes, 1986.
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JANNUZZI, Gilberta Martino. Confronto pedagógico: Paulo Freire e MOBRAL. São
Paulo: Cortez e Moraes.1979.
MARTINS, Carlos Benedito. O Ensino pago: um retrato sem retoques. Segunda edição,
São Paulo: Cortez, 1988.
_____. Ensino superior brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1980
PRANDI, Reginaldo. Os favoritos degradados. São Paulo: Loyola, 1962.
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Ensino jurídico: saber poder. São Paulo: acadêmica,
1978.
SINOPSE Estatística de ensino superior - graduação. Brasília: MEC-SAG-CPS.1989.
VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. Segunda edição. São
Paulo: Perspectiva, 1982.
COSTA, Alexandre Bernardino. O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira. Panóptica, vol.
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Educação jurídica estranhada: movimentos sociais, universidade popular e
mobilidade jurídica1
Ricardo Prestes Pazello2
Naiara Andreoli Bittencourt3
Igor Augusto Lopes Kobora4
Felipe Balotin Pinto5
Ana Cláudia Milani e Silva6
Recebido em 1.4.2016
Aprovado em 12.5.2016
Resumo: Este artigo visa ao estudo crítico
das características da educação jurídica na
universidade brasileira a partir da
metodologia
antropológica
do
estranhamento da academia, com o
objetivo de afirmar a necessidade de sua
transformação. Para tanto, problematizarse-á a construção pedagógica da faculdade
de Direito, buscando desvelar seu
significado político e social por meio da
defesa de uma alteração das estruturas
Abstract: This article aims at the critical
study of the legal education characteristics
in the Brazilian university, making use of
the methodology of estranging the
academy. The objective is to affirm the
necessity of its transformation. Therefore,
the pedagogical construction of the Law
School will be problematized, aiming at
unveiling its political and social meaning
through the defense of an alteration of the
academic structures, so as to propose a
Versão atualizada de artigo apresentado no III Congresso da Associação Brasileira dos Pesquisadores em
Sociologia do Direito, realizado em Curitiba, em 2012.
2
Professor de Antropologia Jurídica na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Direito das
Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná
(PPGD/UFPR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela UFPR. Pesquisador do
Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Cultura
(FDV/ES). Secretário geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Integrante
da coordenação do Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani (Santos-Milani), do Centro de
Formação Urbano-Rural Irmã-Araújo (CEFURIA) e do Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL).
Presidente do Conselho de Representantes da Associação dos Professores da Universidade Federal do
Paraná-Seção Sindical do ANDES-SN (CRAPUFPR). Coordenador dos projetos de extensão popular
reunidos no Movimento de Assessoria Jurídica Universitária Popular – MAJUP Isabel da Silva, junto à
UFPR. Colunista do blogue assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br
3
Mestranda em em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Advogada. Como estudante da UFPR, integrou o
Programa de Iniciação à Docência – 2012, disciplina de Antropologia Jurídica.
4
Advogado no Paraná e em São Paulo. Bacharel em Direito pela UFPR. Como estudante do Curso de
Direito da UFPR, integrou o Programa de Iniciação à Docência – 2012, disciplina de Antropologia Jurídica.
5
Estudante do Curso de Direito da UFPR e integrou o Programa de Iniciação à Docência – 2012, disciplina
de Antropologia Jurídica.
6
Advogada. Como estudante do Curso de Direito da UFPR, integrou o Programa de Iniciação à Docência
– 2012, disciplina de Antropologia Jurídica.
1
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
acadêmicas de modo a propor um modelo
que conjugue Universidade Popular e
Universidade Itinerante. A partir da
experiência das escolas itinerantes
fundadas por movimentos sociais do
campo afirma-se a possibilidade concreta
da aplicação de métodos pedagógicos de
libertação e coletivos. Por fim, em
contraposição ao modelo de educação
posto, sugere-se, como faísca de abalo e
transformação da universidade, a
implementação de uma turma específica
para assentados e beneficiários da reforma
agrária, problematizando os possíveis
estranhamentos e choques culturais,
sociais e pedagógicos com a academia
jurídica tradicional.
Palavras-chave: Educação jurídica;
universidade
popular;
movimentos
sociais; beneficiários da reforma agrária;
pedagogia da alternância.
model
which
combines
Popular
University and Itinerant University. From
the experience of the itinerant schools
established by field social movements, it
is asserted the concrete possibility of
applying libertarian and collective
pedagogic methods. At last, in opposition
to the education model in force, it is
proposed, as a spark of shock and
transformation of the university, the
implementation of a specific class for
settled and beneficiaries of the land
reform, problematizing the possible
strangeness and cultural, social and
pedagogical clashes with the traditional
Law academy.
Keywords: Legal education; popular
university;
social
movements;
beneficiaries of the land reform; pedagogy
of alternation.
1. Introdução
O estudante de direito certamente se depara com um espelho a cada dia que
frequenta os bancos universitários: enxerga-se em seus professores e ao enxergar-se
estranha seu mundo. Desde as vestes e a linguagem até a posição social, muita coisa muda
a partir do primeiro dia de aula. No entanto, não basta percebê-lo, é preciso problematizálo.
No texto coletivo que apresentamos aqui, resultado das discussões que envolveram
professor e estudantes durante as atividades do curso de “Antropologia Jurídica” no
Programa de Iniciação à Docência de 2012, na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná, percepção e problematização se conjugam, tendo por fio condutor uma
metodologia de estranhamento daquilo que nos é mais natural no ambiente acadêmico de
direito: a educação jurídica.
Buscando uma apreciação crítica sobre seu desenvolvimento histórico e sua
caracterização em termos epistemológicos e pedagógicos, nossa reflexão se volta para a
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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análise da experiência da turma de direito para beneficiários da reforma agrária, lastreada
pelo legado educacional dos movimentos sociais. Daí o resgate das obras de Álvaro Vieira
Pinto, Paulo Freire e Roberto Kant de Lima, as quais podem nos servir de uma espécie de
“antropologia da academia”. Por outro lado, as escolas itinerantes, nesse sentido, serão
nosso principal apoio de referência interpretativa, com a finalidade de erigir uma
consequente reflexão acerca da necessidade de uma universidade itinerante que, de um
lado, ponha a nu as contradições de nossa educação superior e jurídica, em especial,
apresentando a plausibilidade da superação destas por meio do horizonte de uma
universidade popular, construída pelo protagonismo das classes hoje despossuídas do
poder político, econômico e cultural, em nossa realidade social.
Estranhar o que conhecemos e nos estraharmos por não conhecermos aquilo que
pode nos colocar ante a superação de nossas contradições é o grande objetivo deste texto.
2. A educação jurídica e sua pouca estranha história
A reforma universitária é questão antiga na América Latina, na qual – embora
eventualmente nos esqueçamos – o Brasil se inclui. Sobre o tema, cabe relembrar as
reflexões suscitadas por Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, as quais, embora da década
de 1960, permanecem gravemente atuais. Ainda que o objeto e o objetivo de suas
propostas sejam mais amplos que o do presente trabalho, é de se notar o quanto suas
críticas podem contribuir para nossas ponderações. Sobretudo em dois pontos, quais
sejam, o acesso à universidade e o modo como as faculdades de direito, às quais
restringiremos nossa análise, reproduzem seus conhecimentos.
Detenhamo-nos em Álvaro Vieira Pinto. No tocante aos estudantes, Vieira Pinto
não trata somente daqueles que estão na universidade. A reforma deve se preocupar com
os alunos que não puderam ingressar nela, mais do que com aqueles que compõem o
quadro discente. Reflete sobre os que “não-são-ainda”, que historicamente não são,7 mas
que em breve o serão. E se, como defende o autor de A questão da universidade, são os
7 Nas palavras de Darcy Ribeiro, a universidade traz “seu caráter ‘elitista’ expresso na limitação das
oportunidades de ingresso, [...] através da política de numerus clausus, vigente em algumas universidades”
(RIBEIRO, 1969, p. 93).
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PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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estudantes os principais responsáveis pelas mudanças, indispensável que haja, portanto,
uma maior abertura das instituições neste sentido.
Quanto à problematização do modo de ensino, nos é difícil avaliar outras realidades.
Mas, especificamente no curso de graduação em direito, as críticas de outrora
permanecem, razão pela qual nos ocupamos de um estranhamento deste centro de
reprodução de conhecimento. E não se pode aceitar que nossas faculdades de direito
estejam caminhando de maneira impecável. Muito embora partamos de nossa realidade
na UFPR, sem qualquer óbice nossa reflexão, que tratará de uma possibilidade de
mudança local, poderia ser generalizada para os demais cursos jurídicos.
Desde uma perspectiva mais ampla, Álvaro Vieira Pinto explica como os objetivos
das universidades brasileiras, no início, são (ou deveriam ser) diferentes dos objetivos
atuais, quando elas já não se justificam como apenas um local para manutenção dos
interesses de um pequeno grupo. O objetivo não é perpetuar o conhecimento que se
legitima porque “posto”. E uma reforma em maior escala teria uma inevitável finalidade
política(PINTO, 1986, p. 14-19). (À medida que não temos pretensão de adentrar em uma
discussão tão ampla, limitamo-nos a uma questão que pode servir de centelha para a
transformação em nossa faculdade de direito.)
E isso porque, em sua explicação, é uma virtude da classe dominante, no Brasil, ter
forjado a idéia de universidade no século passado. Todavia, não é por isso que este projeto
deva ser mantido intacto. Pelo contrário, este instrumento de “comando ideológico da
classe dirigente”(PINTO, 1986, p. 25) deve hoje servir a outros fins.
Tais críticas no sentido de reforma vêm de décadas, o que não significa dizer que
haja muita mudança ocorrendo. As faculdades de direito, ou de ciências jurídicas, fazem
parte desse bloco que não recebe alterações. Empreendendo o estranhamento da
“pedagogia” adotada, se é que (em muitos dos momentos) se pode chamar assim,
constata-se que não houve muita mudança.Tradicional (e supostamente indefectível) é o
relato de professor que entra na sala com um código e uma lista de chamada nas mãos. O
mestre abre o código e os alunos, os cadernos (atualmente, os computadores). O professor
começa a ler os artigos propostos para aquela aula, fazendo comentários “doutrinários”
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sobre cada um deles. Os alunos, por sua vez, anotam detalhadamente as palavras do
professor – afinal, estas serão as únicas respostas consideráveis no momento da avaliação.
São apresentadas aos alunos questões puramente abstratas, de um direito que é
descolado da sociedade. Com esta abordagem, teórica e especulativa, na qual não há
menção a estatísticas e pesquisa de campo, o direito, que deveria surgir do social – para
então o servir –, quase sempre se mostra surgindo do próprio direito.
Na contramão da lição de pedagogia de Paulo Freire, não há qualquer esforço de
trazer “palavras”, no caso, situações, do próprio universo dos alunos. Ao contrário,
preferem-se situações pensadas em abstrato que deslindem de modo a justificar um ponto
de vista.
Aparenta ter sido assim nos últimosmais de cem anos, nos quais existiu nossa
faculdade de direito. O bacharel, para portar este título, tem como obrigação estar presente
às aulas (afora quando se institui o ideário do ensino livre) e responder as provas conforme
as narrações de seus eloquentes lentes, hoje professores.
Mormente, a apresentação que se dá nas salas de aula reduz o direito à pura
legalidade, o que, segundo Roberto Lyra Filho, já representa a dominação ilegítima. Além
disso, a “identificação entre Direito e lei pertence (...) ao repertório ideológico do Estado,
pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessariam as
contradições (...) não havendo Direito a procurar além ou acima das leis” (LYRA FILHO,
1986, p. 09-12).
Os relatos de que a “educação jurídica” se dá dessa forma, portanto, não são
recentes – e não dão indícios de uma mudança drástica e próxima. Entretanto, como uma
mudança não vem unicamente de dentro, parece-nos que existem possibilidades de que
forças “exteriores” criem faíscas, resultando ebulição. Ao menos é o que se espera para
que saiamos de uma inércia secular.
Serve como exemplo, também, o relato do antropólogo Roberto Kant de Lima, que,
comparando suas experiências acadêmicas, assim descreveu o ensino na sua graduação
em direito, cursada de 1964 a 1968: “no curso de Direito a didática se resumia a aulas
expositivas dadas pelos professores de maneira bastante formal, sendo bastante claro para
todos os meus colegas que a profissão de advogado, sua técnica, deveria ser aprendida
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em estágios, à época informais, em escritórios de advocacia, obtidos mediante
recomendações pessoais. À faculdade restava o papel de formar bacharéis, constituindose o diploma em requisito necessário mas não suficiente para a prática da advocacia. O
verdadeiro aprendizado ficava por conta de mecanismos, processos e práticas informais
a serem socialmente (e não tecnicamente) aprendidos. Assim, opunham-se relações
distantes e formais com os professores à interação intensa e informal com colegas de
curso e com profissionais da área” (LIMA, 1985, p. 16-17).
Ora, não parece ter havido muita mudança de metodologia nas últimas quatro
décadas. O ensino continua sendo encarado, predominantemente, como meio para que se
obtenha o fim, a prática, e não como meio de reflexão e crítica.
É próprio desta “valiosa” tradição “alienar-se” o tripé (hoje constitucionalizado!)
que não permitiria dissociar a extensão e a pesquisa do ensino. Este último o qual se
restringe às exposições monológicas e leituras de textos que trazem, mais
detalhadamente, o que foi reproduzido pelo professor em sala. Em outras palavras, trata-
se de uma faculdade que se baseia unicamente no “ensino”, renegando (quando se analisa
o todo) o tripé, ou seja,secundarizando “pesquisa” e “extensão”.
Este ensino “aulista” parece se ajustar, tal qual chave e fechadura, no conceito de
“educação bancária” de Paulo Freire, para quem este modelo tradicional – ao qual se deve
ter aversão – faz com que os professores encarem os alunos como consciências vazias,
como vasilhas a serem completadas. Resta aos alunos, nestas condições, receber,
memorizar. Chegado o momento de avaliação, caberia aos alunos repetir o que foi
“depositado”. O “conhecimento”, no momento em que é necessário reproduzir o que lhes
fora narrado, não é buscado em livros ou revistas, mas sim nos mesmos cadernos nos
quais consta cada vírgula do discurso do “educador” (FREIRE, 2005, p. 78).
A análise de Paulo Freire parece nos fazer uma crítica direta, no sentido de que resta
aos estudantes, já bastante passivos, serem ainda mais apassivados e adaptados ao mundo:
“Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais “educados”, porque
adequados ao mundo. Essa é uma concepção que, implicando numa prática, somente pode
interessar aos opressores que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os
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homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o mundo estejam
os homens” (FREIRE, 2005, p. 73).
Ou ainda, conforme retomou em outro livro, apenas para cristalizar a idéia, esta
técnica de ensino revela “uma falsa concepção do como do conhecimento, que aparece
como resultado do ato de depositar conteúdos em ‘consciências ocas’. Quanto mais ativo
seja aquele que deposita e mais passivos e dóceis sejam aqueles que recebem os depósitos,
mais conhecimento haverá” (FREIRE, 1985, p. 46).
3. Por que os movimentos sociais são estranhos à universidade?
É importante, ainda que sucintamente, salientar os motivos pelos quais a
universidade, especialmente seu braço jurídico, se manteve, e ainda se mantém, tão
distante de promover mudanças sociais significativas. Podemos começar a pensar através
da seguinte pergunta: qual a função da universidade na sociedade brasileira? Afinal, está
consumado o belo discurso do saber universitário que emancipa? Ou que, pelo menos,
traz proveito para o cidadão? Ressalta-se que tal discurso tem consequências ainda mais
candentes quando se trata das universidades públicas, financiadas com dinheiro do
contribuinte. Por fim, indaga-se: a quem serve a universidade brasileira?
Sabe-se que neste país grassa de modo ainda pungente uma grotesca concentração
de renda na mão de poucos enquanto que o grosso da população luta por condições de
vida que contemplem algum conforto. Outros tantos, menos afortunados, engalfinham-se
contra o status quo pelos elementos básicos de subsistência. Estranhamente, as
reivindicações desses cidadãos, principalmente os que se encontram em situação mais
periclitante, ainda que organizados através de associações e entidades das mais diversas,
não encontram ressonância no meio universitário para o seu grito por visibilidade e
mudança. Vale dizer, percebe-se nas universidades, e notoriamente nos cursos jurídicos,
uma total falta de eco para as reivindicações dos movimentos sociais. Uma
impenetrabilidade tal que os relega não dificilmente de um mero farfalhar oriundo de
realidades incômodas para uma invisibilidade absoluta. A questão, somando-se à aludida
anteriormente, nos leva a uma nova indagação: como explicar este perfil da universidade
brasileira frente aos movimentos sociais?
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Segundo Álvaro Vieira Pinto, em sua obra A questão da universidade, em que pese
ter a universidade brasileira surgido tardiamente em comparação com os países da
América espanhola, ela surge com um papel bem definido: perpetuar o poder da classe
dominante no Brasil (PINTO, 1986, p. 25). Seu escopo, ao contrário do que poderia
parecer, não é produzir conhecimento que aproveite à sociedade e sim servir de
instrumento de manutenção da posição social privilegiada de uma determinada classe
social. A benesse social, destarte, seria mero efeito colateral de uma ação voltada para a
alimentação do status quo.
Todavia, para o bom andamento de nossa reflexão, é necessário tornar nítido o
modus operandi universitário, ou seja, o que constitui o seu verdadeiro quefazer. Diz
Vieira Pinto que, para manter a dominação de classes, a universidade cria teorias,
instrumentos argumentativos, institui uma pedagogia especialmente para adular as
aspirações da classe dominante enquanto que, em troca, esta apóia as universidades
financeiramente de modo ativo (PINTO, 1986, p. 25). Nesta seara, o corpo docente, ao
menos em uma perspectiva de conjunto, seria um grupo de intelectuais produtores de um
saber que não visa a melhorias para a condição de vida da sociedade; tais intelectuais
produzem um conhecimento que justifica o poderio de sua classe de origem ao passo que
permanece silente diante dos desmandos dela (PINTO, 1986, p. 27).
Mas ainda há mais: de acordo com o autor, há de se prestar especial atenção quanto
ao discurso de que a universidade não produz; de que nela não se trabalha ou não se estuda
o suficiente. Ledo engano, adverte Vieira Pinto. Sob a aparência de ociosidade, a
universidade consegue escamotear justamente a sua real produtividade; esta sim, muito
menos evidente e muito mais funcional, que é a de colaborar com a dominação. A
universidade também apresenta uma “função cartorial” (PINTO, 1986, p. 28) ao
monopolizar o direito de dizer quem é realmente o detentor de um conhecimento
publicamente reconhecido, tal qual se dá com a outorga do grau de doutor. Também, diz
o autor, a instituição em comento não se furta de usar concessões como válvulas de escape
para os “surtos de consciência” (PINTO, 1986, p. 29) da classe dominada. Isto quer dizer
que, para arrefecer os ânimos de uma população historicamente oprimida, a universidade
facilita a entrada daqueles que, normalmente, jamais teriam condições de frequentar os
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bancos do ensino superior, sem, entretanto, deixar de cooptá-los para a ideologia
dominante. Aqui, podemos fazer um paralelo com os ensinamentos de Paulo Freire, para
quem o desafio brasileiro não é simplesmente emancipar o oprimido. Isto porque a
emancipação, tal como se pensa comumente, está ligada à ideia de ser como o dominador.
Emancipar-se, neste contexto, significa nada mais que tornar-se opressor, passar
simplesmente para o outro lado (FREIRE, 2005, p. 35). Assim, a verdadeira libertação é
acabar com esta contradição, rompendo a lógica que alimenta as relações sociais
predatórias que lhe são subjacentes.
Por fim, retornando a Vieira Pinto, a universidade é quem cria homens e mulheres
para ocupar a elite política do país (PINTO, 1986, p. 31)e procede àquilo que talvez seja
um dos mais importantes elementos de alienação social que é ditar o que é válido em
termos de cultura e o que não é. Neste último ponto, o autor frisa o fato de os intelectuais
valorarem positivamente um saber, que não por coincidência é o seu próprio, em
detrimento de outros saberes, estes ditos populares. Por meio dessa distinção, destacam-
se entre os componentes da sociedade através do monopólio de um saber específico e tido
como o melhor, ao mesmo tempo em que relegam ao ostracismo cultural o saber das
massas oprimidas (PINTO, 1986, p. 37).
Podemos concluir com Vieira Pinto dizendo que o principal objetivo da
universidade não é pedagógico e sim político; trata-se de justificar a dominação; e a
solução deste problema passa longe das discussões sobre reformas de caráter pedagógico,
entendidas pelo autor como embusteiras, mas sim pela mudança da essência universitária
alienante (PINTO, 1986, p. 15). Como salienta ele, a primeira pergunta que se deve fazer
para refletirmos sobre uma mudança de postura universitária é para quem serve a
universidade (PINTO, 1986, p. 71) e neste ponto podemos voltar nosso percurso teórico
para os movimentos sociais: diante de todo o exposto fica evidente o porquê de a
universidade se portar de modo indiferente à insurgência dos movimentos sociais. Estes
são fundamentalmente anti-hegemônicos. Resta explicada, portanto, a invisibilidade dos
movimentos sociais e sua impenetrabilidade na universidade.
E é assim de modo mais cruento na faculdade de direito. Reacionária quase que por
natureza, em alguns casos com seu campus isolado de todos os outros cursos da
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universidade, a faculdade de direito ostenta a insígnia do conservadorismo e do elitismo.
Como lugar de estudo das normas postas e impostas, é um celeiro de retroalimentação do
status quo. E neste instante podemos recuperar os ensinamentos de Roberto Kant de Lima,
quando desenvolve uma “antropologia da academia”. Em seu estudo, já lembrado acima,
o autor compara sua vivência acadêmica em solo estadunidense com a que teve em terras
brasileiras. Sua análise é sobre como se estuda em Harvard, mas pode ser facilmente
transposto para a realidade de uma faculdade de direito brasileira, na qual grassa
fortemente uma padronização que não visa a somente acometer a forma do trabalho
acadêmico e o pensar, mas também a padronizar a ideologia disseminada de acordo com
a mentalidade da classe dominante. Trata-se, mutatis mutandis, do que Boff e Hathaway
– e junto deles muitos outros –, em relação à expansão desmedida do pensamento
cartesiano ocidental, chamaram de monocultura do saber (BOFF; HATHAWAY, 2009,
p. 50).
Não é trabalhoso perceber que os movimentos sociais são a antítese do que se prega
na universidade brasileira. Suas aspirações colidem de modo violento com a política que
lhes é imposta como um tijolo atirado em suas cabeças. Suas culturas possuem diferenças
marcantes, suas experiências são diversas, suas gêneses oriundas da opressão e da
indiferença plasmaram uma consciência de si próprios e de mundo peculiares; sua
necessidade de emancipação é premente e, quando sobe as escadarias da universidade, é
vista como uma verdade incômoda cuja solução mais comum é a de se “fingir que não
viu”. Hemos, então, de pensar que tipo de universidade podemos conceber quando a
imaginamos, por óbvio de modo não exclusivo, para os movimentos sociais. E neste
ponto é oportuno nos voltarmos para o que eles têm para nos ensinar. Neste sentido, a
experiência dos movimentos sociais pode nos ajudar a compreender melhor a
universidade que buscamos.
4. Familiarizando-se com o estranho: a experiência das escolas itinerantes e sua
pedagogia da alternância
Ao tratarmos da Universidade Popular e da necessidade da superação da educação
relacionada à reprodução dos mecanismos de dominação socioeconômica, temos que
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conceber como uma perspectiva de sua transformação e de seu questionamento a própria
relação com os movimentos sociais e com as classes trabalhadoras. Levantamentos que
hoje são colocados principalmente a partir do protagonismo estudantil e da criação de
formas insurgentes dentro da universidade, justamente através do estreitamento dos laços
com os movimentos populares (NOVAES, 2012).
Tais focos de resistência e contestação, representados principalmente pela iniciativa
estudantil por meio da pesquisa crítica e da prática transformadora em projetos
extensionistas, além da ampliação de mecanismos (ainda limitados) de democratização
do ensino superior, como as cotas sociais e raciais, determinam a visualização concreta
das contradições da universidade nutrida pela luta de classes e impulsionam as iniciativas
dialógicas com a classe trabalhadora organizada em movimentos, absorvendo seus
elementos pedagógicos e seus acúmulos potenciais transformadores.
Isto porque, segundo Caldart, os movimentos sociais são autênticos sujeitos
coletivos pedagógicos por produzirem sujeitos sociais e políticos a partir do “estar em
movimento”na luta pela própria humanidade, gerando a dialética educativa e sua relação
com a dinâmica social. Ou seja, fazem educação com base nos elementos materiais da
vida e da formação humana, em que “o princípio educativo por excelência está no
movimento mesmo, no transformar-se transformando a terra, as pessoas, a história, a
própria pedagogia, sendo essa a raiz e o formato fundamental de sua identidade
pedagógica” (CALDART, 2004, p. 328).
Assim, cabe retomar a reflexão de Paulo Freire de que a produção do ser humano
como sujeito se potencializa quando o oprimido percebe sua condição através do processo
de consciência educativa e determina seus esforços para tentar deixar de sê-lo (FREIRE,
2005). E nessa luta incessante pela libertação e humanização, os movimentos sociais
populares – e aqui se destaca o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
– percebem que a prática sem reflexão e formação libertária não solidifica um novo
sistema de sociedade que ultrapasse as conquistas pontuais para uma real emancipação
coletiva. Para tanto, novas bases educacionais, fundadas em novos valores pedagógicos,
sociais e políticos surgem como uma necessidade de apreensão da realidade da totalidade
e de sua transformação.
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Nesse contexto histórico, precisamente em 2004, são construídas as primeiras
experiências educativas do MST em escolas básicas próprias nos acampamentos de
ocupações rurais, as chamadas escolas itinerantes. As condições materiais instáveis
presentes num acampamento e a proximidade da localização das moradias implicam
necessariamente uma maior integração do trabalho para a superação dos conflitos e
resolução dos problemas (BAHNIUK, 2009). Assim também se fez necessário avançar
na consciência social e pedagógica baseada na coletividade e solidariedade das crianças,
jovens ou qualquer trabalhador acampado, excluídos e expropriados não somente da terra
e trabalho, mas principalmente dos direitos educacionais. As escolas itinerantes não
dependem de um espaço físico, mas são fundadas na construção cultural do povo que a
construiu, acompanhando-o independentemente do processo contínuo de expulsão da
terra (GEHRKE; GREIN, 2008).
Entretanto, a formação de escola popular do MST, para cumprir com seus objetivos
previstos, não poderia simplesmente reproduzir o sistema educacional bancário, em que
os homens são vistos como seres de adaptação e ajustamento com fim de dominação
(FREIRE, 2005, p. 69). Deveria, portanto, revolucionar concretamente a base de
aprendizado através da “educação popular problematizadora” proposta por Freire, de
concepção dialógica e dialética, assumindo um compromisso de classe e renegando a
pretensão de neutralidade.
Dessa forma, a escola itinerante é composta por uma série de princípios, matrizes e
métodos pedagógicos que possibilitam a superação das relações e compreensões
fragmentadas e almejam a construção de sujeitos sociais e políticos críticos e
transformadores, através da junção de prática e teoria.
Por isso, como primeiro e central fundamento da escola itinerante está sua relação
e incorporação com a vida concreta. São as práticas cotidianas das vivências dos
educandos que funcionam como temas geradores para a percepção da totalidade,
utilizando dos elementos materiais, refletindo teoricamente sobre eles e retornando para
o concreto propondo uma ação prática transformadora. Consequentemente, a vida real
dos trabalhadores tem como aspecto fundamental o trabalho, e é a partir daí que a escola
se estrutura, vez que é o trabalho que condiciona a existência humana e estabelece as
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relações com o mundo e com outros homens de forma a conformar determinado modo
produtivo. Assim, o trabalho não alienado e cooperativo é potencialmente educativo e
serve de fator estrutural para as modificações das relações de dominação,8 exigindo
profunda reflexão sobre como se organiza o trabalho atualmente e questionando sobre
outro modo organizativo que seja socialmente útil e democraticamente dividido.
Outro aspecto derivado das relações conceituais e teóricas com a realidade é a
interdisciplinaridade do conhecimento, em que não há uma fragmentação artificial que
compartimentaliza o aprendizado e cerceia a capacidade de compreensão da completude.
Ou seja, na prática não existem divisões disciplinares que tratam do mesmo objeto de
forma isolada, desconsiderado seu aspecto total, mas sim a partir do objeto concreto se
extraem simultaneamente todas as informações e problematizações teóricas que dele
surjam, analisando-o num contexto que o abrange. Na mesma toada estão as formas
avaliativas não punitivas, mas de impulso ao aprendizado coletivo e cotidiano, em que o
educando não deve “provar” que adquiriu ou decorou determinada informação, mas sim
sua capacidade de interpretação e compreensão para a resolução de problemas diários.
É possível ainda elencar e relacionar outros três princípios da gestão da escola
popular: a coletividade e solidariedade pautadas na auto-organização dos estudantes e a
participação e intervenção dos acampados (comunidade) em sua perene construção. A
coletividade, segundo Makarenko, “é um grupo de trabalhadores livres, unidos por
objetivos e ações comuns, organizados e dotados de órgãos de direção, de disciplina e
responsabilidade. A coletividade é um organismo social em uma sociedade humana
saudável” (ITERRA, 2004). Dessa forma, a coletividade exige simultaneamente
disciplina, unidade e participação democrática que possibilitam a eficácia da resolução
de desafios e demandas sociais. Na escola, entretanto, para que haja a real democracia
participativa e o interesse dos educandos pela escola e sua construção, a auto-organização
estudantil autônoma torna-se pressuposto para a formação de sujeitos sociais que se
reconheçam como protagonistas da história (CAMINI, 2009, p. 130), aprendendo a
coordenar, ser coordenado, criticar, autocriticar-se e propor uma real alteração
8Como eixos teóricos fundamentais nessa construção são utilizadas as pedagogias russas de Anton
Makarenko e M. M. Pistrak.
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pedagógica e estrutural da escola (GEHRKE; GREIN, 2008), bem como seu conteúdo e
seu método. Consoante a essa percepção, Pistrak afirma que a revolução nesse modelo
escolar é a de que “as crianças não se preparam para se tornar membros da sociedade,
mas já o são, tendo já seus problemas, interesses, objetivos, ideais, já estando ligadas à
vida dos adultos e do conjunto da sociedade” (PISTRAK, 2000, p. 42-43).
Por fim, ressaltamos o caráter que exalta a pluriculturalidade, o reconhecimento e
a aceitação dos educandos e educadores. Isso porque não implica uma tentativa de
homogeneização cultural através da massificação de conteúdos, mas sim através da
igualdade substancial e do poder decisório coletivo em que se respeitem as diferenças e
se acolham as crianças e trabalhadores que já foram marginalizados ou discriminados no
sistema educacional tradicional, seja por sua classe, cultura camponesa, etnia ou mesmo
pela representação midiática hegemônica que banditiza a luta social.
O
bviamente que todos os princípios anteriormente destacados ainda encontram limitações
na aplicação da totalidade da escola, a qual ainda se depara com entraves de
implementação por diversos motivos, como: a ingerência do poder público regulador que
domina o campo e os moldes da educação brasileira e cerceia tais iniciativas; a
propositividade de novos valores ainda não realizáveis em sua completude justamente
pelo império do sistema político e econômico desigual; as dificuldades materiais e de
financiamento; dentre outros.
Entretanto, buscamos trazer esses pontos de uma concepção educacional do campo
proporcionada pelas lutas organizadas dos movimentos sociais essencialmente por
evidenciar a possibilidade concreta e palpável de um modelo de educação libertadora, a
fim de contrapor, estranhar e desnaturalizar o modelo de educação tradicional
hegemônico, aqui focado no ensino universitário, principalmente a educação ofertada nas
faculdades de direito.
Como anteriormente travado, pode-se perceber o embate explícito de princípios e
valores pedagógicos, como a coletividade da educação popular frente o individualismo e
a competitividade do ensino bancário e mercantilizado, a aproximação com a realidade
social totalizada frente à abstração teoricista e compartimentalizada, o saber crítico e
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questionador frente à reprodução vazia de informações desconectas, a democracia
participativa e a auto-organização dos educandos frente às instâncias não participativas,
burocratizadas e a negação da intervenção estudantil presentes na universidade
tradicional.
Mesmo reconhecendo que a educação tem profunda reciprocidade e papel de
manutenção do status quo hegemônico, de forma que seu caráter atual é fundado
especificamente para moldar a internalização e legitimação de hierarquias sociais, não se
pretende anunciar uma reforma universitária sem a respectiva alteração estrutural,
econômica e política que a subordina. Contudo, faz-se necessário um conjunto de
iniciativas de protagonismo estudantil vinculado com as classes populares que fomentem
o questionamento e o abalo do modelo de educação posto, fazendo do “uso alternativo da
universidade” a evidenciação de suas contradições e sua constante apropriação pelo povo.
Propomos, então, que a implementação de uma turma de direito específica para
beneficiários da reforma agrária pode atuar como uma faísca contra-hegemônica na
universidade. Daí questionarmos: quais serão os impactos, confrontos pedagógicos e o
choque cultural que sofrerá a educação bancária, unitária e massificada a partir da
contraposição dos princípios libertários, coletivos e pluriculturais propostos pelos
movimentos sociais?
5. Estranhando o familiar: o caso da turma de direito para beneficiários da reforma
agrária
Contestando o modelo de educação superior tradicional, que sustenta a manutenção
das relações de dominação existentes na nossa sociedade e as relações jurídicas que
servem ao sistema econômico capitalista, os movimentos sociais têm proposto formas de
ampliação do acesso à universidade. Entre essas propostas localizam-se as turmas para
beneficiários da reforma agrária, que traduzem o reconhecimento e a tentativa de
superação da desigualdade de acesso à educação para as populações do campo.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), política que
possibilita a criação destas turmas, é uma conquista dos movimentos populares na busca
pela concretização do direito à educação dos povos do campo, resultado da articulação
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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desses movimentos na luta pela valorização da realidade específica do meio rural. A partir
desse projeto se configura uma nova abordagem da relação entre o campo e a educação,
de modo que o essencial passa a ser a transformação da lógica do acesso ao conhecimento
no campo brasileiro, tendo em conta as especificidades desse espaço.
Nesse sentido e atendendo a essas especificidades, são princípios que regem os
projetos relacionados ao PRONERA o diálogo, a práxis, a transdisciplinaridade e a
equidade (GONÇALVES, 2011, p. 101). As turmas daí decorrentes devem levar em conta
a diversidade cultural relativa ao campo e o acesso ao conhecimento sistematizado e ao
avanço técnico e científico para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária. Faz-se
necessária, portanto, a utilização de um modelo pedagógico alternativo, diverso daquele
aplicado pelo ensino superior tradicional e que resgate as formulações dos movimentos
sociais quanto a um projeto de educação popular.
Tal projeto de educação carrega em si um horizonte de transformação da realidade,
o que exige uma nova maneira de se produzir conhecimento, em que se reformulem
criticamente os conteúdos e a forma dessa produção. Essa busca passa necessariamente
pelo questionamento/denúncia do velho ensino “bancário”, em que o aluno é tido como
um recipiente vazio onde deverá ser depositado o conhecimento, e proposição/anúncio de
uma relação dialética de aprendizagem, de troca de conhecimentos entre um educador-
educando e um educando-educador.9 Uma tal educação libertadora permite que o aluno
camponês atue na transformação da realidade ao invés de se adaptar e se acomodar a ela,
o que ocorreria num modelo tradicional de educação, que possui conhecidamente um
papel de moldar mentes, enquadrando-as à forma de pensamento da ideologia dominante.
Nas palavras de Paulo Freire, “o homem deve ser sujeito de sua própria educação. Não
pode ser o objeto dela. Por isso ninguém educa ninguém” (FREIRE, 1981, p. 14). Esse é
o desafio a que se propõem as turmas para beneficiários da reforma agrária: fazer dos
camponeses sujeitos da sua própria formação.
9Essa relação dialética fundada na troca de saberes parte do pressuposto de que o conhecimento de todos é
incompleto e, portanto, há a busca constante pelo aprendizado. Nesse sentido, aquele que se encontra na
posição de educador também aprende e aquele que se encontra na posição de educando também ensina, um
educando e sendo educado na relação com o outro.
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
Como forma de alcançar o objetivo a que se propõem, os cursos de formação
profissional ligados ao PRONERA devem ainda utilizar a chamada “pedagogia da
alternância”, que se caracteriza pela “alternância entre etapas de estudos desenvolvidos
nos centros de formação (‘tempo-escola’) com tempos de estudos desenvolvidos na
comunidade, ou seja, nos assentamentos (‘tempo-comunidade’)” (GONÇALVES, 2011,
p. 101). A primeira etapa corresponderá a 70% da carga-horária do curso, enquanto a
segunda corresponderá a 30%. Dessa maneira, alia-se – de modo complementar – o
aprendizado técnico e teórico da Universidade à formação adquirida no interior da
comunidade, evitando que os estudantes deixem de ter contato com a realidade do campo
e permitindo o retorno dos conhecimentos adquiridos ao assentamento (GONÇALVES,
2011, p. 101).
O processo de formação baseado na utilização da pedagogia da alternância se
orienta por três princípios: o uso da alternância e de suas ferramentas pedagógicas, a
consideração da realidade de vida destes estudantes como fundamento da formação e
participação das famílias nesse processo (GONÇALVES, 2011, p. 39). Tanto a técnica
dos especialistas quanto a prática dos camponeses são consideradas manifestações
culturais relevantes, o que permite valorizar os conhecimentos e a capacidade criadora
dos camponeses, que a princípio não são contemplados pela educação formal. Deste
modo, torna-se possível aplicar a esse processo de aprendizagem aquilo que Paulo Freire
chamava de “síntese cultural”, ação dialógica fundada na investigação de temas geradores
e pela qual “os camponeses iniciam uma reflexão crítica sobre si mesmos, percebendo-se
como estão sendo” (FREIRE, 1981, p. 29).
A proposta da pedagogia da alternância em sua essência leva a cabo uma radical
equidade entre os conhecimentos dos povos do campo e o conhecimento técnico e
científico da universidade, proporcionando um redimensionamento da união entre teoria
e prática, um quase entrelaçamento, e consequentemente um repensar sobre a divisão
intelectual do trabalho. Ao reconhecer como importantes e necessários os conhecimentos
advindos da realidade específica do campo, a universidade não pode deixar de apreender
também tais conhecimentos e de aprender com as experiências e vivências das
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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comunidades e movimentos, apesar de seu papel formal enquanto difusora do
conhecimento científico.
Inclusive, a alternância possibilita uma real implementação extensionista e
pesquisadora dos estudantes da turma, que aliada ao ensino pode concretizar de fato o
chamado tripé universitário. Assim, questiona o saber produzido na academia, distante,
abstrato e recorrentemente inaplicável na realidade do campo e cego aos abismos gerados
pela desigualdade econômica, social e de distribuição do poder. Por isso possivelmente
aproximará a teoria da realidade social e fomentará a produção de conhecimentos
acadêmicos socialmente úteis e relevantes para a transformação libertadora.
Além da evidente contraposição entre um padrão individualista e um padrão
comunitário de formação e de aprendizado – pois em suas turmas se preza pela comunhão
e pela comunicação – ocorre aqui também, como já apontado, a crítica e proposta de
reformulação dos conteúdos. Assim, há o esforço constante de superação de uma visão
focalista da realidade (que subjuga os detentores do conhecimento técnico a uma
representação estreita dos problemas) na medida em que se almeja uma compreensão da
totalidade. Da mesma forma, em relação à educação jurídica, da qual aqui tratamos, a
proposta de uma turma para beneficiários da reforma agrária produz impacto sobre o seu
modelo
central,
principalmente
no
que
concerne
às
características
de
“descontextualização, dogmatismo e unidisciplinaridade” (MORAIS, 2011, p. 67-69). Ou
seja, uma turma de direito como esta leva ao estranhamento: do tão famoso
encastelamento do ensino jurídico, que, autorreferenciado, mostra-se praticamente
apartado da materialidade e da realidade social; da acriticidade e ausência de
problematização com que se apresenta o saber jurídico; e da ausência de diálogo entre a
ciência jurídica e outros campos do saber, o que se apresenta até mesmo quanto aos
próprios ramos do saber jurídico e resulta em uma visão particularizante/focalista do
conhecimento.
Aliando a educação jurídica à educação do campo, as turmas especiais contestam
as bases fundantes daquele modelo central de educação jurídica, pois tornam imperativo
o intercâmbio entre o ensino tradicional e a perspectiva de uma universidade popular.
Esses dois modelos deverão necessariamente dialogar e, consequentemente, o saber
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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tradicional sofrerá os questionamentos trazidos do contexto dos educandos, de modo que
se coloca em xeque o próprio direito. Está em disputa, portanto, não só o modelo de ensino
jurídico, mas também os próprios direitos, bem como as concepções acerca do que se
entende por direito e por justiça, não cabendo mais a afirmação de um monolitismo
jurídico nesse contexto.
A experiência de uma turma de direito para beneficiários da reforma agrária é, ao
mesmo tempo, meio de democratização do saber jurídico e do acesso à justiça, implicando
para a universidade e para o saber acadêmico uma melhor compreensão da realidade do
campo brasileiro. Busca-se romper com o enclausuramento da instituição “faculdade de
direito”, geralmente alheia à realidade social, trazendo esta realidade para o interior da
própria universidade. Causa-se assim um choque cultural neste espaço que sempre foi
destinado às elites e que agora deverá ser popular, em forma e conteúdo. O grande saldo,
nesse sentido, é para a própria universidade.
Como o modelo de universidade popular não pode acomodar um ensino “bancário”
e tecnicista, há de fato uma ressignificação da educação, pois esta não poderá ser encarada
como formadora de mão-de-obra para o mercado de trabalho. Não cabe aqui o velho
modelo de educação voltado à satisfação dos interesses do capital. A educação deverá
sim ser libertadora e conscientizadora, tendo o educando o papel de sujeito da ação para
a transformação.
O estranhamento provocado no espaço da universidade, em especial da faculdade
de direito, é evidenciado pelo depoimento de José Ferreira Mendes Junior, um dos
integrantes da Turma “Evandro Lins e Silva”, turma para beneficiários da reforma agrária
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás: “Eu digo que nossa
experiência introjetou em muita gente, senão na maioria, ainda que não aceite, a idéia de
que esse papo de diversidade do público da Universidade é real, isso existe. Mas eu vejo
que houve uma grande transformação em nós também, e em relação a diversas coisas: na
participação universitária, no envolvimento das pessoas com o meio universitário. (...)
Foi notável a transformação de alguns professores. O professor que entrou ignorando todo
mundo, agora diz: ‘eu não gostava de vocês, mas eu aprendi muito com vocês e vou
defender essa idéia’” (MENDES JUNIOR, 2010, p. 51)
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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Essa fala demonstra o quão rica é a troca de conhecimentos entre a realidade do
campo e a realidade da academia e o quanto esse intercâmbio deve favorecer uma
mudança do ensino superior tradicional, além de apontar para o sentido ético que o
estranhamento permite alcançar. Se por um lado busca-se o acesso coletivo e não
concentrado ao conhecimento formal, colocando-o a serviço dos povos do campo, por
outro, permanece a tarefa de tentar transformar a educação formal, ocupando-a e fazendo
com que essa atenda aos anseios da sociedade, não mais fechando-se em si mesma.10
6. Considerações acerca da uma universidade itinerante
O estranhamento empreendido neste artigo coletivo é, a um só tempo, uma proposta
metodológica de análise da educação jurídica e uma necessidade política e prática para a
compreensão deste campo do saber. Se é certo que a implementação de turmas para
beneficiários da reforma agrária democratiza (ainda que não universalize) o acesso das
classes populares à universidade pública, elas também têm o condão de desestabilizar a
harmonia tácita que o ambiente universitário evoca. Desse modo, conseguimos nos
familiarizar, mesmo que relativamente, com a educação popular camponesa ao mesmo
passo em que estranhamos a educação tradicional ao nível superior.
O resgate da crítica de Álvaro Vieira Pinto à universidade brasileira sedimenta o
entendimento de que não superamos os obstáculos primeiros para uma democratização
do saber que deve estar necessariamente acompanhada de uma reapropriação do poder e
da produção pelas amplas maiorias da população. E esta reapropriação deve se dar,
obrigatoriamente, no movimento histórico de luta por direitos bem como por um a nova
sociedade, efetivamente justa e solidária. Eis que nos encontramos diante da problemática
de como interpretar a organização popular, ainda tão distante da “universidade
constitucional de direito” que nossa sociedade instituiu. Hoje, a dinâmica social permite
encontrar nos movimentos sociais e em suas práticas pedagógicas um paradigma de
enfrentamentos que oscila entre a reivindicação e a contestação.
É de se ressaltar que as experiências de turmas do PRONERA no direito, hoje, já chegaram, além de à
graduação (com cinco em pelo menos quatro universidades pública), também à pós-graduação, como é o
caso do Programa de Pós Graduação (latu sensu) Direitos Sociais do Campo – Residência Agrária, na
Universidade Federal de Goiás. Ver MOREIRA, 2015, p. 32-56.
10
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
A itinerância das lutas entre o que se demanda do estado brasileiro e o que se
questiona em sua conformação leva à conclusão, com tom intuitivo próprio dos que não
se comprazem com o higienismo da racionalidade formal moderna, de que necessitamos
de uma universidade itinerante. Suas veredas devem transitar do conhecimento oficial aos
saberes populares da mesma forma como nossa realidade não pode se satisfazer apenas
com as promessas da burocracia estatal em detrimento da construção da soberania
popular.
É assim que no seio da universidade itinerante, transição possível de um uso
alternativo da universidade para uma universidade popular,11 faz sentido germinar uma
nova compreensão acerca do fenômeno jurídico. O direito, como elemento histórico e
relacional, não terá suas estruturas questionadas se não trouxer novos atores para o cerne
de sua própria produção e interpretação. Se o estado brasileiro não permite, já que isto é
de sua natureza, uma apropriação popular de seu comando, os movimentos sociais devem
continuar reivindicando e contestando esta expropriação estrutural e engajar-se nos meios
a partir dos quais podem ter avanços significativos: dentro da ordem, ainda que não sem
subvertê-la parcialmente, a tomada da universidade pública é ponto nodal.
Esta nova compreensão sobre a juridicidade, justamente porque esculpida por uma
concepção transitória de universidade, permite descobrir, criticamente, a faceta móvel do
direito. Móvel não porque flexível, mas porque dialeticamente suprassumível. Quer dizer,
a mobilidade jurídica não é uma característica de sua dinâmica intrassistêmica, à Kelsen
– esta é mais inerte do que aparenta. A mobilidade jurídica é possibilidade e capacidade
histórica de construção de uma cultura do direito que possa superar a si mesma,
fulminando concepções naturalistas, normativistas e decisionistas, mas também
reconstrutora dos escombros a que se reduziram as teorias críticas do direito e seus
pluralismo/alternativismos apontando para a novidade que uma realidade pós-jurídica
aporta.
Uma nova geração de juristas pode refazer esta crítica, captando em sua essência a
mobilidade jurídica. Só uma pedagogia problematizadora a alcançará e não haverá
Para a compreensão de tais expressões, ver PAZELLO, 2014, p. 30-45.
11
PAZELLO, Ricardo Prestes; BITTENCOURT, Naiara Andreoli; KOBORA, Igor Augusto Lopes;
PINTO, Felipe Balotin; SILVA, Ana Cláudia Milani e. Educação jurídica estranhada: movimentos
sociais, universidade popular e mobilidade jurídica. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 546-570, jul./dez. 2016.
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qualquer ensaio de educação libertadora senão pela ocupação dos bancos universitários
pelos movimentos sociais, ou seja, pelo povo.
Há vários limites a serem apontados nas experiências que tiveram vez entre nós,
inclusive no âmbito das primeiras turmas de direito para beneficiários da reforma agrária.
Talvez, o central deles seja a dificuldade de se trabalhar na itinerância entre o reivindicado
e o contestado, entre o direito e o não-direito, entre a universidade tradicional e a
universidade insurgente. Ainda assim, o não enfrentamento, pela experiência, de tais
limites é um óbice intransponível para a realização de sua superação mesma.
Das escolas itinerantes à universidade popular há um longo trajeto a se percorrer;
do direito ahistórico à mobilidade jurídica, outro tanto. Mesmo assim, vale a pena pensar
no colorido novo que ganhará a educação jurídica com a consolidação destas turmas de
direito. Oxalá não só Goiás, Bahia e Paraná (lugares onde as atuais turmas do PRONERA
do direito se dão) conheçam esta revitalização pedagógica; oxalá os demais estados em
breve também a recepcionem Como podemos ler em um dos importantes registros acerca
da experiência da UFG, por nós anteriormente retomada: “a Turmas Evandro Lins e Silva
foi constituída porque os movimentos sociais, que lutam pela reforma agrária, sabem que
as mudanças na estrutura agrária brasileira devem ir além do simples assentamento nas
glebas rurais” (FON; SIQUEIRA; STROZAKE, 2012, p. 7).
Se os movimentos sociais já compreenderam todo o potencial libertador do
estranhamento ao perceber que as mudanças no campo brasileiro passam pelas mudanças
que não são restritas à realidade agrária, por que não ensinar isto à universidade e ao
“campo” jurídico?
7. Referências em movimento
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Políticas públicas e movimentos sociais no planejamento e gestão
urbanos brasileiros
Claudio Oliveira Carvalho1
Ariana Ferreira Alencar Moraes2
Recebido em 8.6.2016
Aprovado em 3.8.2016
Resumo: O presente trabalho pretende
resgatar o histórico do planejamento
urbano brasileiro e as lutas sociais em prol
da Reforma Urbana para compreender as
possibilidades de concretização do novo
marco jurídico-urbanista inaugurado pela
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto
da Cidade, bem como a aplicação de
políticas públicas que garantam a
participação social no planejamento e
gestão urbanos. Nesse sentido, será
discutido o papel do Direito na regulação
das cidades, a função social da
propriedade e da cidade, a instituição do
plano diretor urbano como principal
instrumento de desenvolvimento das
cidades e as demais diretrizes gerais da
política urbana. Discutirá, ainda, O
exercício da cidadania numa sociedade
marcada pelo patrimonialismo e enormes
desigualdades sociais, e a influência
dessas marcas na implantação de um
planejamento
e
gestão
urbanos
democráticos e participativos e na garantia
do Direito à Cidade.
Palavras-chave: Planejamento urbano.
Democracia. Gestão urbana. Políticas
públicas.
Abstract: This paper intend to rescue the
history of the Brazilian urban planning
and social struggles for Urban Reform to
understand the achievement possibilities
of the new legal – urbanist paradigm
inaugurated by Federal Constitution of
1988 and the City Statute and the
implementation of policies public to
ensure public participation in urban
planning and management. In this sense, it
will discuss the role of law in regulating
the cities, the social function of property
and the city, the institution of the urban
master plan as the main instrument of
development of cities and other general
guidelines for urban policy. Discuss also
the exercise of citizenship in a society
marked by patrimonialism and huge social
inequalities, and the influence of these
brands in the implementation of planning
and democratic and participatory urban
management and ensuring the right to the
city.
Keywords: Urban planning. Democracy.
Urban management.
Doutor em Desenvolvimento Regional e Planejamento Urbano. Mestre em Direito. Docente na
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica
Alternativa (NAJA) e coordenador do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade (GPDS). Advogado.
2
Graduanda em Direito pela UESB. Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa (NAJA) e do
Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade (GPDS).
1
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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Na encosta da favela tá difícil de viver
E além de ter o drama de não ter o que comer
Com a força da natureza a gente não pode brigar
O que resta pra esse povo é somente ajoelhar
E na volta do trabalho a gente pode assistir
Em minutos fracionados a nossa casa sumir
Tantos anos de batalha, junto com o barro descendo
E ali quase morrer é continuar vivendo (PSIRICO, 2012).
1. Introdução
O Brasil do século XX tem como palco principal a cidade. E torna-se o principal
local das vivências, da troca material e imaterial, da produção do espaço e da vida. Assim,
analisar como se dá as relações nas cidades e a construção dessa é essencial para
compreender o modo que vive a população brasileira.
O país passou por um rápido e intenso processo de urbanização. A população
brasileira que na década de trinta era majoritariamente rural, apresenta-se na década de
sessenta como primordialmente urbana. Essa rápida expansão e crescimento urbano,
caracterizados pela segregação e exclusão socioespacial, provocou e provoca graves
problemas no modo de viver da população brasileira.
O planejamento urbano aplicado no Brasil passa por diversos influências. A
primeira delas refere-se aos planos de embelezamento, marcado por uma visão higienista.
A segunda refere-se ao ideário técnico/positivista de que problemas das cidades decorrem
da falta de planejamento e essas precisam ser eficientes. E com a Constituição Federal de
1988 há a possibilidade de implantação de um planejamento democrático e participativo.
A Constituição de 88 inaugura um novo marco jurídico-urbanista propondo uma
mudança paradigmática nos conceitos da propriedade e da cidade, reconhecendo que elas
possuem uma função social, e prevê, ainda, a implementação de um planejamento e
gestão urbana democráticos, que garantam a participação social. Dentro desse escopo de
mudanças há ainda a instituição do Estatuto das Cidades que instrumentalizará os
objetivos constitucionais e as diretrizes gerais estabelecidas pela nova ordem
constitucional.
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
572
PANÓPTICA
Não obstante, ao estudar o planejamento urbano é necessário ressaltar a ação de
organização popular que reivindica a resolução do caos urbano, bem como propõe a
possibilidade de construir e a necessidade de reconstruir o espaço urbano. Assim, os
movimentos sociais figuram como agentes importantes na garantia de políticas publicas
urbanas, efetividade dos preceitos constitucionais e conquista de novos direitos.
2. Reforma urbana: as lutas sociais na construção da democracia brasileira
2.1 Breves apontamentos sobre a urbanização brasileira
O Brasil passou por um intenso processo de urbanização. A população brasileira
que na década de trinta era majoritariamente rural, apresenta-se na década de sessenta
como primordialmente urbana. Essa rápida expansão e crescimento urbano,
caracterizados pela segregação e exclusão socioespacial, provocou e provoca graves
problemas no modo de viver da população brasileira.
Villaça (1999, p. 192-193) afirma que do período colonial até a década de 30, o
modelo de planejamento utilizado no Brasil é caracterizado pela expressão
“embelezamento urbano” e “foi sob a égide dos planos de embelezamento que nasceu o
planejamento
urbano
(lato
sensu)
brasileiro”.
Esse
modelo,
de
caráter
higienista/sanitarista, possibilitou a ressignificação do centro das cidades e, com isso, a
retirada dos trabalhadores das áreas centrais. Pois, agora, as cidades deveriam se tornar
civilizadas, visando o atendimento das demandas especulativas, através de grandes obras
de melhoramento de suas paisagens. Neste momento, é expresso um projeto de classe que
foi essencial para a imposição da dominação do Estado e das classes burguesas no país.
E é nesse sentido que Carlos (2007, p. 76) ressalta que: “Convém sublinhar que as
estratégias que percorrem o processo de reprodução espacial são estratégias de classe e
referem-se a grupos sociais diferenciados, com objetivos, desejos e necessidades
diferenciadas, o que torna as estratégias conflitantes. O Estado, por sua vez, desenvolve
estratégias que orientam e asseguram a reprodução das relações no espaço inteiro
(elemento que se encontra na base da construção de sua racionalidade)”.
Com os desdobramentos da Primeira Guerra Mundial, o Brasil e, em especial a
cidade de São Paulo, tem formado rapidamente um proletariado urbano e uma extensa
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
malha urbana. Nesse período, desenvolve-se um forte movimento sindical operário que,
consoante Rolnik (1999, p. 10), tem como reivindicações a questão da moradia e demais
consumos básicos.
Nesse ínterim, é formado também um novo grupo social, as classes médias,
compostas por pequenos comerciantes, funcionários públicos, entre outros. Esse sujeito
aliado com o movimento operário são determinantes na conjuntura e modo de gerir as
cidades. Pois, até o momento, devido a política de segregação, esses grupos sociais
encontravam-se à margem da cidade legal onde o Estado não se responsabilizava pelo
atendimento das suas necessidades, mesmo que básicas.
Ainda sobre a década de 30, Rolnik (1999, p. 12) expressa que: “Depois dos
sucessivos ensaios, se encontra a fórmula de incorporar aquilo que deve ser incorporado
na nova ordem, porém com o filtro da escolha e do arbítrio de quem está sentado na
cadeira do poder e que do alto desta poderá conceder. Inaugura-se assim a era da
cidadania consentida: a condição de legalidade urbana, fundamenta para a incorporação
de vastas massas urbanas como objeto das políticas públicas é uma concessão, seletiva,
do Estado”.
A Constituição de 1934 e a legislação da época sobre o uso do solo permite afirmar
que há uma nova dinâmica entre as elites dominantes e os grupos emergentes, pois a
cidade ilegal passa a ser enxergada como possível destinatária das políticas estatais.
Porém, consoante Rolnik ressalva (1999, p. 13) “as maiorias clandestinas entram assim
na cena da política urbana devedoras de um favor de quem as julgou admissíveis”.
A partir da década de 30, é desenvolvido no Brasil o ideário de que o problema das
cidades é resultante da sua desregulamentação e crescimento desordenado, e para a
resolução desses problemas haveria a necessidade de instrumentos de planejamento
urbano. É necessário que as cidades sejam eficientes. Então, ganha força a ideia de
desenvolvimento dos planos diretores como instrumento de regulação das cidades,
fortemente influenciado por ideias modernistas e, posteriormente, positivistas sobre o
planejamento urbano, no qual, atribuía ao Estado o papel de regulamentação e
manutenção do equilíbrio econômico e social.
Maricato (2000, p. 138) ressalta que neste momento “a elite brasileira não era
suficientemente hegemônica para divulgar e impor seu plano. Os problemas urbanos
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
ganhavam novas dimensões.” Assim, devido ao aumento da classe operária urbana e do
crescimento da consciência social e organização, eclode a impossibilidade de se ignorar
os conflitos urbanos. É nesse momento que os planos diretores acabam alcançando grande
ineficácia, pois quando torna-se necessário atender às demandas sociais o que fora
planejado transforma-se em plano-discurso e, então, neste contexto, segundo Villaça
(1999, p. 204) “não há como anunciar obras de interesse popular, pois estas não serão
feitas, e não há como anunciar as obras que serão feitas, pois essas não são de interesse
popular”.
Nas décadas de 40 e 50, expande-se a população urbana, fortemente marcada pela
autoconstrução de suas moradias nas zonas periféricas das cidades. E a contínua
conformação dessa realidade exige do Estado providências. Rolnik (1999, p. 20) resgata
que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) iniciou um trabalho de organização popular
através do fomento de diversos Comitês Democráticos e Progressistas (CDP) nos bairros
e esses comitês assumiram uma configuração de um instrumento reivindicatório de
soluções aos problemas comuns face ao Estado. Esse trabalho é suspenso pelo regime do
Estado Novo. E somente em 1953, as áreas periféricas retomam o centro das denúncias e
reinvindicações através de vereadores da cidade de São Paulo.
2.2 As lutas pela Reforma Urbana: a cidade como palco das contradições sociais
A cidade é o palco da luta de classes e, assim, o local principal onde se dá a
reprodução da força de trabalho. E é nesse sentido que Maricato (2000, p. 155-162)
caracteriza o processo de urbanização brasileira calcado na industrialização com baixos
salários, na tradição de investimentos regressivos e na aplicação arbitrária da legislação.
Ao falar sobre a industrialização com baixos salários no Brasil, é necessário
ressaltar que a questão da moradia é central para a reprodução da força de trabalho e
nunca esteve inserida na fixação dos salários. Assim, o processo de crescimento da
urbanização brasileira passa pela moradia precária, caracterizada pela autoconstrução e
ilegalidade. A cidade à margem é ignorada pela cidade legal.
A tradição de investimentos regressivos refere-se à política de gestão urbana
utilizada pelos governos municipais e estaduais, nas quais, a aplicação das verbas públicas
é seguida pela lógica do mercado imobiliário, atendendo, assim, a interesses privados em
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sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
detrimento do caráter público e social dos investimentos. Esse modelo de gestão
aprofunda a desigualdade social e a concentração de renda.
Já a aplicação arbitrária da legislação é demonstrada quanto a aplicabilidade ou não
das normas regulatórias seja sobre uso e ocupação do solo, seja sobre os vetores de
desenvolvimento estabelecidos nos planos diretores, seja sobre normas de edificação. A
partir disso, Maricato (2000, p. 161) afirma que o mercado se impõe sobre as normas
jurídicas determinando onde a lei será aplicada ou não. Assim, temos, ainda, segundo
Maricato (2000, p. 125) “planejamento urbano para alguns, mercado para alguns, lei para
alguns, modernidade para alguns, cidadania para alguns...”.
Na década de 60, durante o governo de João Goulart discutia-se no país sobre as
Reformas de Base. E dentre tais, aparece no Seminário de Habitação e Reforma Urbana
em 1963, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, as formulações iniciais sobre
Reforma Urbana, que consoante o disposto no documento do seminário e resgatado por
Bassul (2008, p. 4) significava “o conjunto de medidas estatais visando à justa utilização
do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao
fornecimento de habitação condigna a todas as famílias”.
A proposta da Reforma Urbana ratifica a necessidade do Estado atentar-se para as
questões problemáticas das cidades. Porém, Bassul (2005, p. 37) ressalta que: “[...]
embora se voltasse para a ideia de que as cidades deveriam oferecer condições de vida
socialmente mais justas, predominava nos documentos produzidos nessa época o enfoque
do planejamento calcado na boa técnica urbanística, sem menção a processos
participativos que incorporassem, à formulação e à implementação das políticas públicas,
as demandas e opiniões dos diferentes segmentos da população urbana, princípios que
fundamentariam a proposta da reforma urbana vinte anos mais tarde”.
A instauração do golpe militar em 1964 interrompe as reivindicações por quaisquer
tipos de mudanças sociais. E é no período da ditadura militar, década de 70, que o
planejamento urbano ganha novo impulso. São desenvolvidas políticas nacionais para
resolver o caos das cidades, em especial, a questão da moradia.
A ideia de que a regulação irá solucionar os problemas urbanos é fortalecida e
inúmeras cidades avançam na elaboração de planos diretores, todos marcados com
características técnico/positivistas e distantes da materialidade das cidades. No intenso
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desenvolvimento de planos diretores é possível perceber que a cidade ilegal, aquela à
margem da regulação e da lei, tem um enorme crescimento. Assim, Maricato (2000, p.
140) ressalta que: “Boa parte do crescimento urbano se deu fora de qualquer lei ou de
qualquer plano, com tal velocidade e independência que é possível constatar que cada
metrópole brasileira abriga, nos anos 1990, outra, de moradores de favelas, em seu
interior. Parte de nossas cidades podem ser classificadas como não cidades: as periferias
extensas, que além das casas autoconstruídas, contam apenas com o transporte precário,
a luz e a água (esta não tem abrangência universal, nem mesmo em meio urbano)”.
2.3 Plataforma em Defesa da Reforma Urbana e a Constituição de 88
Após anos de dura repressão, no final da década de setenta, o regime militar começa
a apresentar sinais de esgotamento político e econômico. Os movimentos sociais
continuam enfrentando o governo autoritário e também se organizam para propor saídas
a esse modelo. E, então, nesse período, são criados novos partidos políticos, movimentos
e entidades sociais e operárias, e também sindicais. A Igreja Católica lança um documento
importante para a luta urbana que é o “Ação Pastoral e Solo Urbano”, apresentando um
diagnóstico sobre a formação e reprodução das cidades e sua consequência que é a
exclusão sócio-espacial da maior parte da população.
(Re)surge, então, uma Plataforma de Reforma Urbana, que reúne inúmeros
movimentos e entidades sociais, resgatando e ampliando as pautas elaboradas desde os
anos 60.
A fundação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) é essencial
para a articulação de inúmeros sujeitos sociais na luta pela democracia e para a
incorporação da agenda urbana na Constituição de 1988.
O processo Constituinte de 88 foi marcado por uma intensa participação social que
culminou na inserção das demandas apresentadas pela Emenda Popular pela Reforma
Urbana, subscrita por 131 mil eleitores, na Constituição. Dessa Emenda resultou inúmeras
conquistas legislativas sobre a política urbana brasileira, como o reconhecimento da
função social da cidade e da propriedade urbana, instituição do princípio da gestão
democrática e de instrumentos de regularização fundiária, além do estabelecimento de
competências municipais quanto a questão urbana.
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sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
A
Carta Cidadã de 1988 dá a agenda política urbana a esperança de uma garantia
constitucional ao direito à cidade, inaugurando um novo marco jurídico-regulatório.
Porém, dentro da correlação entre as classes sociais, o texto constitucional já apresentava
limitações claras aos anseios dos que lutavam pela Reforma Urbana ao remeter alguns
dos principais instrumentos urbanos à regulamentação infraconstitucional.
2.4 Construindo a Democracia e Criando Novos Espaços de Participação
O estabelecimento do princípio da gestão democrática das cidades possibilita
modificações nas relações entre Estado e Sociedade, público e privado, soberania do
interesse público e interesse do mercado. Assim, passa a ser necessário a inserção da
população nas discussões sobre o planejamento e gestão urbanas, assunto que até o
momento era exclusivo dos técnicos.
Na década de 90, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) organiza-
se no Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU), que é o principal porta-voz da
bandeira da Reforma Urbana no país, garantindo a defesa da instituição de uma legislação
federal que regulamente texto constitucional; a criação de um Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social; e a criação de um aparato institucional de promoção à
política urbana a nível nacional. Obtendo como resposta, consoante Maricato (2015, p.
34-35), a conquista de importantes avanços institucionais, como: a promulgação do
Estatuto da Cidade – norma que regulamenta os artigos constitucionais; a criação do
Ministério das Cidades e diversas secretarias nacionais de aporte a uma política urbana
integrada e democrática; e a realização das Conferências das Cidades, espaço de
participação direta nas formulações sobre políticas urbanas.
A morosidade na regulamentação do capítulo constitucional sobre a política urbana
gerou inúmeras dificuldades na implementação do novo paradigma jurídico-urbanista. O
Estatuto da Cidade só é sancionado em 2001, mais de uma década após a promulgação
da Constituição de 88. Essa legislação federal é fruto de um intenso embate social e
político e tem como importante característica o reconhecimento do “Direito à Cidade” e
a atribuição aos municípios de novas diretrizes quanto à política de desenvolvimento
urbano. Ao estabelecer uma função social da propriedade e da cidade, o Estatuto modifica
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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interpretação civilista tradicional-liberal do direito à terra e uso do solo enquanto
absolutos, sendo necessários, agora, atender a função social da propriedade e da cidade.
Em 2003 é criado o Ministério das Cidades (MCidades) que reúne as Secretarias
Nacionais de Habitação, Saneamento Ambiental, Transporte e Mobilidade, e Problemas
Urbanos. Sobre esse momento, Maricato (2014, p. 35-36) afirma que a criação do
MCidades impulsionaria a construção de um Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano
para além do arcabouço governamental e serviria como canal de articulação daqueles que
debruçaram sobre os problemas urbanos para a proposição de soluções e enfrentamento
à correlação de forças.
Ainda em 2003, o governo federal convoca a população brasileira para elaboração
de propostas sobre diversos temas, entre eles a política urbana e habitacional, que seriam
orientadora do MCidades e realizadas através de Conferências municipais, estaduais e
nacional. Essa última elege os componentes do Conselho Nacional das Cidades que terão
um mandato de dois anos para acompanhar, fiscalizar e propor deliberações ao Ministério.
Avaliando os avanços institucionais obtidos, Maricato (2014, p. 38-39) afirma que
ao tempo em que os governos Lula, período de 2003 a 2011, retoma os investimentos em
habitação e saneamento, que há mais de vinte anos estavam estagnados, um dos pilares
da Reforma Urbana – a questão fundiária – pouco avançou. Complementa dizendo que
as reestruturações dos Ministérios, inclusive do Ministério das Cidades, influiu na perda
das possibilidades de reais mudanças quanto a questão urbana brasileira, na qual, grande
parte da política urbana brasileira foi gerenciada pela Casa Civil, a exemplo do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC) e Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV),
em detrimento de uma política urbana que refletisse os compromissos do PNDU. E ainda
ressalta que: “As conquistas institucionais não lograram mudar as principais forças que
conduzem as cidades brasileiras para a condição de tragédia social e ambiental: a forma
desigual e especialmente a forma ambientalmente predatória do mercado fundiário e
imobiliário cuja atitude especulativa foi potencializada pela introdução de investimentos
maciços dos programas federais” (MARICATO, 2014, p. 84).
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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PANÓPTICA
2.5 A institucionalização da Participação Popular e a Voz das Ruas
As rupturas democráticas deixaram profundas marcas no modo de fazer e viver a
política, fruto também do legado colonialista, de um capitalismo periférico e um Estado
com práticas clientelistas.
A partir de 2003 foram construídas diversas políticas de participação social, como
os Conselhos Nacionais e Conferências, a construção de uma Política Nacional de
Participação Social e, ainda, o Sistema Nacional de Participação Social. Porém, é
percebido que institucionalização da Participação Social, por si só, não resolveu, nem
resolverá os problemas da população. É necessário vontade política para a implementação
efetiva desses instrumentos. As diretrizes e deliberações dessas ferramentas precisam se
transformar em políticas públicas concretas. Bordenave (1983, p. 26) alerta que:
“Concebida a participação social como produção, gestão e usufruto com acesso universal,
põe-se a descoberta a falácia de se pretender uma participação política sem uma
correspondente social equitativa: com efeito, na democracia liberal os cidadãos tomam
parte nos atuais eleitorais e escolhem seus representantes, mas por não possuírem nem
administrarem os meios de produção material e cultural, sua participação macrossocial é
fictícia e não real”.
É sabido que a democratização da política, da gestão e planejamento urbano não é
desejado por todos. Harvey (2013, p. 28) assevera que “[...] existem numerosas forças
que militam contra o exercício de tais direitos, que querem inclusive impedir que
reconheçamos, pensemos sobre e ajamos em relação a eles”.
A produção capitalista do espaço, logo, das cidades revela os constantes conflitos
entre as classes sociais. E, analisando a realidade brasileira, na qual, a intensa urbanização
intensificou a desigualdade social e a concentração de renda, a questão urbana continua
latente. A moradia precária não foi resolvida, a concentração fundiária foi aprofundada,
o transporte priorizado é o individual.
Em junho de 2013, jovens das maiores capitais do país reivindicaram – dentre tantas
pautas – a questão urbana. O motim é apresentado através da reivindicação de um
transporte público de qualidade para todas as pessoas, o chamado Passe Livre. Essas
mobilizações conseguem reunir milhões de pessoas, em sua maioria jovens de classe
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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média, que não se referenciam nos tradicionais Movimentos Sociais de luta urbana ou
rural. Reivindicam uma nova forma de fazer política e um novo modo de viver a cidade.
Essas manifestações foram duramente reprimidas e pouco compreendidas quanto
as pautas e motivações. Vainer (2013, p. 37) resgata que a mídia brasileira criminalizou
os protestos e o Estado colocou à disposição Força Nacional para reprimir as ações
reivindicatórias.
As mobilizações de Junho de 2013 forçaram ao Estado reconhecer a legitimidade
de formas diretas de participação. Nesse sentido, Cunha Filho e Guimarães Filho (2015,
p. 115) afirmam que “houve [...] um momento de desestabilização da ordem jurídica, em
que se evidenciou que a estrutura jurídico‐política do país não mais correspondia aos
anseios da população”.
Em resposta às manifestações, ainda em 2013, a presidente Dilma Rousseff propõe
cinco pactos em favor do país, que versavam sobre: a responsabilidade fiscal, buscando
apontar medidas para garantir a estabilidade econômica; a realização de um plebiscito
para a convocação de uma constituinte temática sobre a reforma política; sobre a saúde
foi apresentada a proposta de realização de novas contratações de médicos; para a
educação teria a destinação dos royalties da exploração do petróleo do pré-sal; e para a
mobilidade, a previsão de investimento de cerca de cinquenta bilhões. Posteriormente,
em 2014, a presidente institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema
Nacional de Participação Social através do Decreto nº 8.243/2014.
Dentre as medidas anunciadas, a Reforma Política torna-se essencial para a
superação de práticas políticas abusivas e retrógradas que reforçam o analfabetismo
urbano e a alienação do povo sobre o exercício de poder nas cidades. Nesse mesmo
sentido, Maricato (2013, p. 26) alerta que “o primeiro item necessário à política urbana
hoje é a reforma política”.
A partir dessas medidas, diversos setores sociais se mobilizam para inviabilizar a
aplicação dessas propostas e, em especial, do Decreto 8.243, demonstrando claramente
que a elite brasileira é contrária a radicalização da democracia, uma vez que, isso
possibilitaria a descentralização do poder político.
Se, o atual regime democrático não reconhece as ruas como interlocutor das
necessidades e vontades do povo, nem permite um efetivo espaço de participação popular
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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institucional deve-se questionar qual o modelo de democracia está se construindo, bem
como qual o modelo de cidade o povo brasileiro pode e irá viver.
3. Novo marco jurídico-urbanista para o Brasil: Constituição Federal, Estatuto das
Cidades e Planos Diretores Urbanos
3.1 A Política Urbana na Constituição de 88
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu diversas diretrizes sobre o
desenvolvimento urbano, preservação ambiental, planos urbanísticos e a função social da
propriedade. Inclui um capítulo, art. 182 e 183, especificamente sobre a política urbana
no título da Ordem Econômica e Financeira.
Dentre os dispositivos constitucionais, estabelece no artigo 21, inciso XX, a
competência da União para elaboração de diretrizes gerais para o desenvolvimento
urbano, saneamento básico, habitação e transporte público. É com base nesse dispositivo
que a União estabeleceu o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/11.
Já no artigo 30, inciso VIII, estabelece a competência exclusiva dos municípios no
ordenamento territorial. Aqui, então, reside o fundamento constitucional dos planos
diretores
municipais
constante
como
principal
desenvolvimento e expansão urbana (art. 182, §1º).
instrumento
da
política
de
A propriedade urbana deverá submeter-se ao processo urbanístico, conforme o art.
182, §2º, no qual, a função social será cumprida quando atendida as exigências de
ordenação expressas nos planos diretores. Assim, esses planos visam a ordenação do solo
que, consoante Silva (2006, p. 58), será qualificado “como urbano quando ordenado parar
cumprir destino urbanístico, especialmente edificabilidade e o assentamento de sistema
viário”. Ressalta-se, ainda, que a função social da propriedade está prevista ainda no art.
170, inciso III, como princípio orientadores da ordem econômica para alcançar a justiça
social.
Fernandes (2005a, p. 8) complementa que a Constituição insere a definição de
função socioambiental no processo político, no qual, tal função será definida pelo
processo político de elaboração da legislação urbanística e ambiental, e dos planos
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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diretores municipais, uma vez que, esses estabelecerão as condições e medidas que a
propriedade cumpre sua função.
A nova ordem jurídico-urbanista estrutura-se primordialmente a partir da função
social da propriedade e da cidade. E, nesse sentido, Fernandes (2005a, p. 10-11) afirma
que: “[...] ao inserir no processo político a definição da função social da propriedade, a
Constituição o fez de forma qualitativa, porque propôs não apenas um processo político
descentralizado (na medida em que enfatizou a competência municipal para
enfrentamento da questão do desenvolvimento urbano) mas também um processo político
democratizado, com a reformulação de uma ordem urbanística que possibilita a
participação popular e o controle social. O direito de participação popular no processo
decisório das questões urbanas foi reconhecido através de uma série de mecanismos e
processos que possibilitam a ampliação da democracia no Poder Executivo (participação
popular em conselhos, comitês, plebiscitos e orçamento participativo); no Poder
Legislativo (audiências públicas, iniciativa popular em matéria de lei urbanística - tal
como ocorreu com a importante lei federal que cria o Fundo Nacional da Moradia
Popular); e no Poder Judiciário (ação civil pública para defesa da ordem urbanística,
concebida como um interesse difuso, e reconhecida a legitimidade ativa de ONGs,
movimentos sociais e do Ministério Público)”.
Assim, consoante as modificações estabelecidas pela Constituição e demais
legislações urbanísticas é necessário avaliar constantemente a aplicação das normas
jurídicas e das garantias de participação popular, bem como a disputa em torno do modelo
de cidade a ser construído.
3.2 Tradição Civilista da Propriedade e a Função Social da Cidade e da Propriedade
O novo marco jurídico-urbanista, afirmado pela Constituição Federal e pelo
Estatuto da Cidade, modifica a estrutura do direito de propriedade, na qual, consoante
Silva (2012, p. 273), a “função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da
propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no conteúdo do
direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito”.
A Constituição modifica, ainda, complementa Silva (2012, p. 274), a disciplina
sobre o direito de propriedade que antes era tratado exclusivamente pelo Direito Civil, e
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agora deve ser enxergado como uma instituição das relações de ordem econômica, logo,
consoante
as
normas
administrativas,
urbanísticas,
cíveis,
empresariais,
e,
fundamentalmente, as normas constitucionais, afastando-se de um direito puramente
individual e devendo-se atentar a justiça social.
Esse novo paradigma jurídico, ressalta Fernandes (2005a, p. 6) que, ao afirmar o
princípio da função socioambiental da cidade e propriedade atribui ao urbanismo o caráter
de função pública que deve ser refletida em direitos coletivos e inter-relacionados, como
“o direito ao planejamento urbano; direito social de moradia; direito à preservação
ambiental; direito à captura da mais-valias urbanísticas e direito à regularização fundiária
de assentamentos informais consolidados”.
De diferente modo, a tradição civilista encara o direito a propriedade como
absoluto, no qual, a função social coloca-se somente como limitação ao exercício do
direito do mesmo modo que as restrições, servidões ou desapropriação se opunham ao
caráter absoluto, exclusivo e perpétuo da propriedade, respectivamente. E é a partir desse
ideário que a configuração da urbanização brasileira se deu e ainda se dá, reiterando a
tradição civilista no planejamento e gestão urbanos ao afirmar o direito de propriedade
como absoluto.
Alfonsin (2001, p. 311-312) acrescenta que a combinação do Direito Civil com o
Direito urbanístico demonstra-se perversa, pois acomete grande parte da população das
cidades à condição de subcidadãos, uma vez que, esses não possuem uma relação
titularizada com a propriedade e a ocupação dessa se dá em desconformidade com os
preceitos urbanísticos. Ressalta ainda que desse fato decorre a profunda desigualdade nos
investimentos públicos, que, em regra, são destinados às regiões bem-estruturadas da
cidade e tidas como regulares. Conclui que “a irregularidade jurídica/urbanística da
ocupação serve como uma espécie de ‘escudo’ para justificar o abandono dos territórios
‘fora da lei’ pelo Poder Público e a lei serve como instrumento de acumulação de riqueza
e concentração da renda nas cidades”.
Fernandes (2005a, p. 5) corrobora com a visão de Alfonsin ao afirmar que a
informalidade urbana e a exclusão socioespacial é alimentada pelo urbanismo
tecnocrático aliada a visão tradicionalista da propriedade, no qual, o direito exerce uma
função essencial na produção da ilegalidade urbana. E complementa que mesmo com a
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
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proposição de uma nova ordem pública calcada na justiça social, sustentabilidade
ambiental e integração territorial, tais diretrizes não são refletidas nos princípios de gestão
administrativa e institucional.
A negação do Direito Urbanístico enquanto ramo autônomo do Direito, bem como
a leitura de direitos coletivos a partir de uma ótica de direitos individuais e a negação de
uma nova ordem jurídica-urbanística apresentam-se como óbice a garantia dos direitos e
objetivos constantes na Constituição Federal.
Assim, percebe-se que mesmo com um texto constitucional que persecute a justiça
social existem diversos fatores que impedem a real concretização do Direito à Cidade,
bem como do cumprimento da função social da propriedade e da cidade, elementos
fundantes do Direito Urbanístico. Lassalle (2001, p. 41) provoca uma reflexão acerca da
efetividade das normas constitucionais: “Esta é, em síntese, em essência, a Constituição
de um país: a soma de fatores reais do poder que regem uma nação. Mas que relação
existe com o que vulgarmente chamamos de Constituição com a Constituição Jurídica?
Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Juntam-se
esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem
expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples
fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar
contra eles, atenta contra a lei, e, por conseguinte é punido. Ninguém desconhece o
processo que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder,
transformando-os dessa maneira em fatores jurídicos. Está claro que não aparece neles a
declaração de que os senhores capitalistas, o industrial, a nobreza e o povo são um
fragmento da Constituição, ou de que o banqueiro X é outro pedaço da mesma. Não, isto
se define de outra maneira, mais limpa, mais diplomática”.
Rolnik (2012, p. 77) ressalta que “o poder urbano funciona na cidade capitalista
como uma instância que controla os cidadãos, produz as condições de acumulação para o
capital e intervém nas contradições e conflitos da cidade.” Assim, é preciso compreender
a centralidade da propriedade privada na formação econômica brasileira e o
desenvolvimento do capitalismo periférico para perceber os fatores reais de poder na
apropriação e democratização ou não da terra, bem como do espaço urbano e
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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desenvolvimento das cidades, uma vez que, o mero texto legal – ainda que constitucional
– não garante a aplicação das boas intenções do discurso democrático liberal.
É possível, ainda, compreender o pensamento de Lassalle aplicando-a a análise de
Maricato (2000, p. 135) sobre o planejamento urbano brasileiro, no qual, percebe-se a
distância entre o real e o ideal, ao afirmar que: “A história do planejamento urbano no
Brasil mostra a existência de um pântano entre sua retórica e sua prática, já que estava
imerso na base fundante marcada por contradições: direitos universais, normatividade
cidadã – no texto e no discurso versus cooptação, favor, discriminação e desigualdade –
na prática da gestão urbana”.
Consoante as considerações acima, pode-se concordar com as afirmações de
Fernandes ([2009], p. 16), em que, ele sustenta que a experiência brasileira tem
demonstrado a necessidade de alterações institucionais que incluem uma profunda
reforma jurídica, e fundamentalmente de uma perseverante mobilização social para
alcançar a Reforma Urbana.
Nesse sentido, as alterações estruturais que visam a garantia de uma cidade mais
justa só poderão ser alcançadas a partir das modificações nos reais fatores de poder da
sociedade, que se dará na alteração da correlação de forças através da mobilização social.
3.3 Estatuto da Cidade
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/11, regulamenta a execução da política urbana,
prevista nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Essa lei é fruto da luta dos
movimentos pela Reforma Urbana e devido a interesses de camadas da sociedade ligadas
ao empresariado urbano tramitou no Congresso Nacional por doze anos até ser
sancionada.
O planejamento urbano com o Estatuto da Cidade, consoante Alfonsin (2001, p.
315), “passa a ser uma função pública que deve ser compartilhada pelo Estado e pela
sociedade – corresponsáveis pela observância dos direitos humanos e pela
sustentabilidade dos processos urbanos”. Ela complementa, ainda, que a gestão
democrática é o meio proposto pela legislação para a condução da política urbana. Nesse
sentido, Fernandes (2005a, p. 8) aduz que: “O Estatuto da Cidade promoveu uma
mudança estrutural do planejamento urbano brasileiro, que passa a ser não apenas o
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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planejamento regulatório tradicional, mas também um planejamento indutor de processos
territoriais e urbanísticos que tenham um impacto direto na dinâmica dos preços do
mercado imobiliário, processo esse que pode levar à ocupação de vazios urbanos e à
distribuição mais justa dos ônus e dos benefícios da urbanização. É fundamental que o
poder público local ocupe e assuma a liderança desse processo, seja indicando o que pode
acontecer onde e como, mas também impondo obrigações de que certos comportamentos
aconteçam, como e quando – ou mesmo dizer que o comportamento não pode acontecer.
Trata-se de mais uma mudança qualitativa do planejamento urbano brasileiro”.
Saule Junior e Uzzo ([2009], p. 266) afirma que com a instituição do Estatuto da
Cidade, a luta pela reforma urbana atinge novos desafios. Um deles refere-se a
capacitação dos agentes sociais sobre as novas perspectivas da reforma urbana. E o outro
a popularização do Estatuto através, em especial, dos Planos Diretores Participativos.
3.3.1. Plano Diretor Urbano
A Constituição de 88 e o Estatuto da Cidade estabelece o Plano Diretor como
instrumento básico de desenvolvimento da política e expansão urbana, no qual, integra o
planejamento municipal ao estabelecer prioridades para o orçamento anual, o plano
plurianual e demais diretrizes orçamentárias.
Souza (2005, p. 85) afirma o plano passa a ser visto nessa nova ordem constitucional
não somente como instrumento normativo e regulador, mas principalmente como
instrumento político de transformação socioespacial. Assim, o Plano Diretor é afirmado
como instrumento principal da política urbana tendo um caráter democrático e
participativo. Ressalte-se que a função social da propriedade e da cidade será observada
consoante as diretrizes expostas nesse instituto. E desse será decorrente, ainda, os Planos
Municipais de Mobilidade, Habitação, Transporte, Preservação do Patrimônio, diretrizes
de regularização fundiária, entre outros.
Lago (2010, p. 184) afirma que no processo constituinte o plano foi defendido pelos
setores empresariais e aceito a contragosto pelos defensores da Reforma Urbana, uma vez
que, esse poderia apresentar-se como óbice aos ânseios da Reforma. Afinal, esse não é
um instrumento novo no ordenamento brasileiro. No capítulo I deste trabalho é resgatado
o histórico do planejamento urbano que passa pelos planos de embelezamento ao planoCARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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discurso, que tem como principal instrumento os planos diretores. Rolnik (2012, p. 61)
provoca uma reflexão: “Uma das características distintivas da estratégia e modo de ação
do Estado na cidade capitalista é a emergência do plano, intervenção previamente
projetada e calculada, cujo desdobramento na história da cidade vai acabar desembocando
na prática planejamento urbano, tal como conhecemos hoje”.
Maricato (2000, p. 174) ao retomar o processo Constituinte e a apresentação da
Emenda Popular pela Reforma Urbana reitera o pensamento de Rolnik e de Villaça ao
afirmar que as elites dominantes respondem aos problemas urbanos com a proposição do
plano diretor, uma vez que, os defensores da Emenda apresentavam a necessidade de
construção de instrumentos específicos para a garantia da função social da propriedade.
Maricato (2014, p. 101) apresenta que: “[...] não há que se criar ilusões sobre o Plano
Diretor instituído por lei municipal. Sua elaboração permite aos participantes conhecer a
cidade,entender as forças que a controlam. Seu processo participativo permite incorporar
sujeitos ao processo político e ao controle – sempre relativo – sobre a administração e as
câmaras municipais. Mas é preciso não perder de vista a natureza do poder municipal,
que tem a especulação imobiliária (nem sempre capital, mas patrimônio) entre suas
maiores forças”.
Villaça (2005, p. 10) complementa ao dizer que: “Nossa sociedade está encharcada
da ideia generalizada de que o Plano Diretor (na concepção ampla) é um poderoso
instrumento para a solução dos problemas urbanos, na verdade indispensável, e que, em
grande parte, se tais problemas persistem é porque nossas cidades não tem conseguido ter
e aplicar esse miraculoso Plano Diretor”.
Numa perspectiva de utilizar os meios disponíveis para alcançar os objetivos
democráticos a favor da população pobre, Coelho (2015, p. 10) coloca que a disputa em
torno do plano diretor se dá a partir da tentativa de tornar visíveis os sujeitos
historicamente invisibilizados, disputando uma concepção do direito à cidade e a
afirmação da cidade de direitos. Assim, o plano diretor é central na disputa de um projeto
de cidade, principalmente, por caber a ele a delimitação da noção da função social da
propriedade.
Diante do exposto acima, é necessário avaliar as reais condições de aplicação de
um plano diretor que promova os mandamentos constitucionais de alcançar a justiça
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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social e garantir a dignidade da pessoa humana, objetivos que concretizam o Direito à
Cidade frente os interesses contraditórios encontrados no seio da sociedade, no qual, há
a reivindicação de setores populares por melhores condições de vida e garantia de direitos,
e setores do capital imobiliário que lucram em cima da construção ilegal da cidade e
especulação imobiliária. Assim, é preciso ressaltar que as críticas ao plano diretor não se
manifestam na recusa ao planejamento urbano, mas, sim, a real possibilidade de
efetivação deste instrumento com os propositos que a ele foram atribuídos.
3.3.2. Gestão Democrática das Cidades
A Constituição Federal estabelece no art. 1,º, parágrafo único, que “todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. No
citado artigo reside a compatibilidade entre a democracia representativa e a democracia
participativa dentro do ordenamento juridico brasileiro. Estabelece, ainda, no art. 14,
inciso III, prevê a possibilidade de manifestação da soberania popular através da
propositura de lei de iniciativa popular. E no art. 29 institui, também, a iniciativa popular
para a apresentação de projetos de planejamento municipal.
Já o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, prevê no artigo 2°, inciso II, a gestão
democrática a partir da participação popular como diretrizes para o desenvolvimento da
política urbana preconizando, assim, um novo modelo de gestão urbana. E, ainda, institui
no art. 43, incisos I, II, III e IV, diversos instrumentos buscando alcançar tal objetivo, tais
como: a instituição de órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual
e municipal; realização de debates, audiências e consultas públicas, e também de
conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e
municipal; além da previsão de iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas
e projetos de desenvolvimento urbano. Consoante com o exposto, Oliveira Filho (2009,
p. 117) afirma que “O planejamento e a gestão urbanos participativos estão juridicamente
positivados e possuem fundamentalidade constitucional, determinando a participação
popular nos processos políticos decisórios e em quase todos os processos de gestão.
Constituem-se em regras de cumprimento obrigatório, materializando um tipo de
planejamento democrático e participativo com pretensão de eficácia administrativa”.
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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Fernandes (2005a, p. 10) ressalta que o princípio da gestão urbana desdobra-se em
três principais consequências quanto a reforma jurídico-política, no qual, um deles refere-
se a modificações na estrutura democrática ao garantir o direito a participação social no
processo de gestão das cidades; outro, a descentralização política, essa vai além da
competência municipal no processo decisório, mas alcança também a necessidade de
cooperação entre os entes estatais na proposição de soluções aos problemas urbanos; e,
por último, a instituição de novas formas jurídico-administrativas que consigam refletir e
coordenar as ações do Estado e sociedade, as parcerias entre o público e privado. Sobre
esse último ponto, Fernandes (2005b, p. 26) complementa que é necessário modificações
administrativas para que essas consigam articular a segurança jurídica, transparência,
controle social, além de garantir a supremacia do interesse público frente as estruturas
administrativas já existentes e os novos modelos propostos pela legislação urbanística.
Assim, a gestão urbana precisa ser encarada não somente pelas regras administrativas,
mas precisa ser inclusa e vista dentro do âmbito do Direito Urbanístico.
Na década 90, mesmo anterior ao Estatuto das Cidades, alguns governos de
esquerda alçaram o executivo municipal e iniciaram práticas tidas como democráticas e
participativas instituindo o Orçamento Participativo como instrumento de gestão urbana.
Esse consistia na inversão de prioridades do investimento público, possibilitando o
combate a especulação imobiliária e alterando a lógica hegemônica do planejamento e
gestão urbana para o atendimento da população pobre.
Outro desdobramento importante desse princípio diz respeito a realização das
Conferências da Cidade e a instituição de Conselhos municipais, estaduais e nacional
sobre a questão urbana. Tais espaços de participação, podendo ter caráter consultivo e
deliberativo, fortalecem o controle social sobre o Estado e podem possibilitar o
enfrentamento direto ao desperdício de dinheiro público.
Enfim, o princípio da gestão democrática propiciou importantes experiências no
avanço da construção mais justas das cidades. Sendo necessário a constante avaliação da
efetividade da participação, uma vez que, consoante a preocupação de Alfonsin (2001, p.
316): “Tudo isso é muito novo para as cidades brasileiras, territórios que - vistos como
mercados e oportunidades de negócio pelos donos do capital imobiliário – nunca foram
geridos pelo conjunto de seus cidadãos/atores sociais. Pelo contrário, a história de gestão
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sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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urbana no Brasil é uma história de promiscuidade e troca de favores entre as elites locais
e os ocupantes de postos de governo na administração pública. Assim, o desafio envolve
dimensões jurídicas, sociais, políticas e culturais. Estamos diante de uma rara
oportunidade de modificar uma matriz de gestão secularmente construída e que foi
incapaz de colocar os direitos humanos e/ou o direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado no centro da agenda e das preocupações governamentais”.
4. Planejamento e Gestão Urbana Democráticos e Participativos numa Democracia
em construção
Pra resistir a remoção
É necessário manifesto e opinião
A natureza chorou, chorou, chorou, chorou
A propriedade é a prisão do trabalhador
Hoje a terra tem um preço
Bem difícil de pagar
Pra sair do cativeiro
A solução é se juntar.3
4.1 Direito à Cidade
A Carta Mundial pelo Direito à Cidade, construída por inúmeras organizações e
entidades sociais em defesa de um novo modelo de sociedade, retoma a afirmação do
conceito de Direito à Cidade, que se apresenta como integrador dos demais direitos
humanos garantidos e que se baseia nos princípios de sustentabilidade e justiça social.
Nessa perspectiva, é cabível lembrar as lições de Lefebvre (2001, p. 134) ao afirmar “o
direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à
individualização na socialização, ao habitat e ao habitar”.
Ribeiro (2008, p. 23) afirma que os constituintes ao submeterem a política urbana
à função social da propriedade “expressaram neste princípio a demanda por um direito à
3
UNIDOS DA LONA PRETA. Povo do Campo e da Cidade: Tamo junto e misturado.
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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cidade, correspondente aos ideais republicanos de justiça distributiva, proteção social e
democracia participativa”. No mesmo sentido, Harvey (2013, p. 33) aduz que: “O direito
à cidade [...] não é apenas um direito condicional de acesso àquilo que já existe, mas sim
um direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas
necessidades coletivas (por assim dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente
ser humano. Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado
e refeito”.
Lo
go, a reivindicação e afirmação do Direito à Cidade dentro de um marco jurídicourbanístico garantidor da função social da propriedade urbana e da função social da
cidade, além de ressaltar a gestão democrática e a participação popular, torna-se essencial
para a defesa e propositura de novos modos de sociabilidade urbana.
4.2 Participação efetiva numa Democracia em construção: a cidadania diferenciada
A partir do século XX a democracia tornou-se o principal modelo de organização
da dominação política. No entanto, ao longo desse período seu significado foi
constantemente modificado. Apresentando-se como um conceito em disputa, no qual,
consoante Santos e Avritzer (2002, p. 44) a concepção hegemônica restringe sua acepção
a garantias procedimentais e formais, tida como a democracia-liberal, e a contra
hegemônica que tem base marxista que compreendia a autodeterminação dos indivíduos
como sustentáculo do exercício da soberania. Nesse sentido, Schumpeter (1942 apud
SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 242) afirma que a concepção hegemônica concebe que
“o processo democrático é [...] um método político, isso é, um certo tipo de arranjo
institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas”. Sobre a concepção
não hegemônica da democracia, Santos e Avritzer (2002, p. 51) afirmam que essas
apresentam a “ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural e o entendimento
da inovação social articulada com a inovação social, isto é, com a procura de uma nova
institucionalidade da democracia”.
O Brasil passou por diversos momentos de expressão do autoritarismo como
modelo de Estado e, por isso, apresenta uma cultura política democracia ainda em
construção e aperfeiçoamento. Avritzer (2002, p. 569) faz um breve histórico do sistema
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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político brasileiro demonstrando os períodos de instabilidade e rupturas democráticas na
história brasileira, que demonstra o período de 1930 – 1945 como um período de
intenções democráticas, mas que apresenta-se ao final traços autoritários; entre 1945 a
1964, o regime político é marcado pelo populismo; de 1964 a 1985, o Brasil vivencia o
período da ditadura militar, com a suspensão dos direitos políticos e violenta repressão.
E somente a partir de 1985 a democracia começa lentamente a se instalar como modelo
de Estado. Santos (2002, p. 458) contribui ao falar que: “O Brasil é uma sociedade com
longa tradição de política autoritária. A predominância de um modelo de dominação
oligárquico, patrimonialista, burocrático resultou em uma formação de Estado, um
sistema político e uma cultura caracterizados pelos seguintes aspectos: a marginalização,
política e social, das classes populares, ou a sua integração através do populismo e do
clientelismo; a “artificialidade” do jogo democrático e da ideologia liberal, originando
uma discrepância entre o “país legal” e o “país real””.
A redemocratização do Brasil é realizada num contexto de continuidade do sistema
político vigente, no qual, o Congresso Nacional era composto em sua maioria por
parlamentares que apoiaram o regime ditatorial. Sendo assim, o novo ordenamento
jurídico reitera diversas práticas retrógradas e antidemocráticas. Ao mesmo tempo que
inova ao garantir a participação da sociedade através da propositura de Emendas
Populares, a exemplo da Emenda Popular pela Reforma Urbana. Essas foram
responsáveis pelos avanços democráticos constantes na Constituição.
Lembre-se aqui que o novo ordenamento jurídico garante a participação popular e
estabelece o princípio da gestão democrática das cidades como orientador da construção
de políticas urbanas, como já tratado no item anterior. Porém, agora discute-se a
efetividade de tais normas frente aos desafios decorrentes da formação socioeconômica
brasileira que apresenta uma sociedade com uma marcante desigualdade social e com
histórico político autoritário à consolidação de uma democracia com efetiva participação.
Holston (2013, p. 22) ressalta que “a cidadania brasileira se caracteriza [...] pela
sobrevivência de seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas”.
Maricato (2014, p. 143) resgata que as experiências democráticas na administração
municipal se iniciam na década de 90 com a chegada ao executivo municipal de prefeitos
de esquerda. Resgata, ainda, o Orçamento Participativo como a política mais significativa
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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no controle social das verbas públicas. A partir dos anos 2000, em especial no governo
Lula, o Brasil passa por um processo de ampliação de espaços de participação, como as
conferências e conselhos, fruto da reivindicação dos movimentos populares. Porém,
Maricato (2014, p. 147) afirma que mesmo com a instituição dos governos democráticopopulares a situação das cidades brasileiras não passou por profundas mudanças. E
complementa (2014, p. 154) que “um dos objetivos mais perseguidos pela luta
democrática – controle social sobre o Estado por meio de conselhos participativos –
parece não ter mudado a política brasileira”.
Holston (2013, p. 156) resgata uma característica importantíssima que afirma e
distingue a cidadania do povo brasileiro que é o acesso à terra. Consoante esse
pensamento, o acesso restrito à propriedade fundiária expeliu a maior parte da população
brasileira para a moradia ilegal. E essa condição de ilegalidade, por sua vez, cerceia
também os direitos civis, na medida em que, estabelece-se que os despossuídos são
subcidadãos e em decorrência disso esses têm seus direitos violados. Holston (2013, p.
400) complementa que: “Essas condições são uma perpetração e não uma omissão de um
tipo específico de cidadania, que as elites brasileiras consolidaram ao longo do século
XIX como resposta à formação da nação brasileira e ao fim da escravidão, uma cidadania
desde o início universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na
distribuição. Entre seus aspectos chaves [...] a ilegalidade tem sido indispensável tanto
para sua formulação como para seu exercício, e portanto para a constituição da própria
política do Brasil. A ilegalidade não é só uma condição difundida de vida residencial que
muitos cidadãos são obrigados a sofrer, com todas as consequências que observei para a
cidadania. É também uma técnica política dominada pelas elites, que a usam para
construir um poder legítimo, na qual atos ilegais têm em vista uma legalização confiável
e previsível. Longe de manter o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o público e o privado,
e o político e o doméstico, esse regime de cidadania se baseia na administração de suas
interseções”.
Holston (2013, p. 401) afirma, ainda, que os elementos que provocam a
diferenciação na cidadania provocam também a mobilização de uma insurgência de
cidadãos, no sentido que, esses subcidadãos lutam pela vida digna na arena dos cidadãos
plenos. Assim, “esses cidadãos que, no processo de construir seus espaços residenciais,
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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não apenas constroem uma grande e nova cidade como, sobre essa fundação, a constituem
como uma pólis com uma diferente ordem de cidadania”.
É no sentido da inovação propiciada pelos novos atores sociais e sua ação
insurgência a ordem estabelecida que a participação popular pode ter sua vez dentro de
um sistema político retrógrado e uma democracia em construção. Segundo Santos e
Avritzer (2002, p. 54-55), os países da América Latina demonstram uma característica
diferenciada quanto a democracia devido ao processo de reestruturação após os períodos
ditatoriais ao conseguir “inserir novos atores na cena política, instaurar uma disputa pelo
significado da democracia e pela constituição de uma nova gramática social”. Assim, a
participação popular é recolocada no debate democrático sendo necessário remodelar a
relação Estado e sociedade, no qual, há uma possibilidade de intensificação dos papéis
dos movimentos sociais. A partir disso, então, provocou-se novas formas de solucionar
os problemas, bem como uma grande diversidade entre os atores sociais.
4.3. Planejamento e Gestão Urbanos Democráticos e Participativos: qual tipo de
desenvolvimento urbano é desejado para as cidades brasileiras?
As atividades de planejamento e gestão urbana são complementares na medida em
que referem-se a momentos temporais distintos. O primeiro diz respeito a antecipação
dos possíveis cenários que virão a ser encontrados e enfrentados pela gestão. Assim,
Souza (2003, p. 46) apresenta que: “O planejamento é a preparação para a gestão futura,
buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é
a efetivação, ao menos em parte (pois o imprevisível e indeterminado estão sempre
presentes, o que torna a capacidade de improvisação e flexibilidade sempre
imprescindíveis), das condições que o planejamento ajudou a construir. Longe de serem
concorrentes ou intercambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares”.
Souza (2003, p. 73) complementa ainda que o planejamento e gestão da cidade tem
como finalidade apresentar soluções para os problemas de injustiça social e buscar
melhoria na qualidade de vida, que serão expressas em estratégias de desenvolvimento
urbano. Costa (2011, p. 33) complementa que: “Se o direito à cidade representa em termos
concretos intervenções urbanas e provisão de serviços sociais nos espaços ocupados pela
população, com prioridade legal dada aos segmentos tradicionalmente desfavorecidos dos
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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benefícios sociais, o planejamento urbano passa a representar uma importante referência
como um direito social. Por meio da democratização do planejamento das cidades,
viabiliza-se o amadurecimento político da sociedade”.
O planejamento não é uma ação necessariamente conservadora, mas numa
sociedade de classes e com enormes desigualdades sociais, a influência das elites
dominantes sobre a ação de planejar será explicitada e, na maioria das vezes,
predominante. No entanto, os setores progressistas da sociedade disputam o planejamento
sob o ideário da Reforma Urbana. Nesse sentido que Souza (2003, p. 161) coloca que a
esquerda se reapropria do planejamento urbano com a propositura e (re)significação da
Reforma Urbana.
Souza (2003, p. 335) afirma que a participação não é apenas um instrumento ou
acessório na vida política, “participar, no sentido essencial de exercer a autonomia, é a
alma de um planejamento e de gestão que queiram credenciar para reivindicar seriamente
o adjetivo democrático”. Logo, é a participação que propiciará o exercício pleno da
cidadania e buscará melhorias na qualidade de vida. Assim, Carvalho e Rodrigues (2016,
p. 71) afirmam que “quanto mais a população citadina se conscientizar das causas das
mazelas urbanas, quanto mais se apropriar das diversas instâncias de participação
popular, mais a cidade será um reflexo de suas perspectivas”. Souza (2003, p. 53)
complementa, ainda, que: “A democratização cada vez maior da ação coordenadora do
Estado, abrindo-se para incorporar elementos de democracia participativa tanto na gestão
como no planejamento, é uma alternativa à submissão acrítica ao mercado – submissão
essa que é fonte de crescente esgarçamento do tecido social – e aos “facismos societais”
discutidos por Boaventura de Sousa Santos (1999)”.
É cabível o questionamento sobre qual modelo de desenvolvimento é pensado para
as cidades brasileiras. E nesse sentido, Maricato (2014, p. 158) afirma que “enquanto o
processo de urbanização for uma máquina de produzir favelas, urbanizar as existentes não
assegura um futura melhor para o conjunto da cidade”. Fica colocado, então, que o
processo de desenvolvimento urbano calcado num sistema capitalista não produzirá
cidades mais democráticas, na qual, os cidadãos tenham acesso equitativo aos serviços
públicos, pois na concepção da cidade do capital, o desenvolvimento é sinônimo de
modernização da sociedade. Já Souza (2003, p. 60-61) entende o desenvolvimento como
CARVALHO, Claudio Oliveira; MORAES, Ariana Ferreira Alencar. Políticas públicas e movimentos
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uma mudança social positiva, na qual, busca alçar uma melhoria de qualidade de vida e
um aumento de justiça social.
Maricato (2015, p. 68) indaga sobre as reais possibilidades do exercício de um
planejamento territorial democrático que se baseie na participação social dentro do
contexto de uma economia globalizada, no qual, a ação do Estado e das elites dominantes
são subservientes ao imperialismo e ao capital financeiro, além de apresentar um sistema
política fundamentado no patrimonialismo.
A realidade brasileira tem demonstrado que o planejamento e gestão urbana são
tidos de forma desvinculada, no sentido que, tem apresentado um “discurso pleno de boas
intenções, mas distante da prática” (MARICATO, 2015, p. 86). Ressalta-se ainda,
segundo Maricato (2014, p. 160), que “a tradição dos PDs no Brasil é marcada pela
afirmação do projeto de elite, expulsão dos pobres das áreas mais valorizadas, alienação
em relação à realidade social”.
Nakano (2015, p. 22) afirma a urgente necessidade de proposições para os
problemas estruturais das cidades brasileiras, visto que, esses têm se agravado. Assim,
ele alerta que “As cidades brasileiras estão se tornando verdadeiras camaras de ar
comprimido que apertam e esgarçam os limites de tolerância das pessoas. As multidões
parecem estar se movimentando para ganhar impulsos cada vez mais fortes para exigir
aquelas soluções para os problemas urbanos estruturais de modo a melhorar as condições
de vida e promover o desenvolvimento humano, social e territorial. No entanto, no atual
contexto recessivo e de crise econômica, não se vê o despontar de respostas consistentes.
E a história das cidades na era moderna mostra que essas situação é o prenúncio de uma
explosão que pode ganhar contornos descontrolados”.
4.4 Perspectivas para a democratização do planejamento e gestão das cidades
A luta por cidades socialmente mais justas não se esgotou com a aprovação do
Estatuto da Cidade e demais
instrumentos urbanísticos. A interpretação e aplicação das normas urbanísticas estão em
constante disputa. O planejamento e gestão precisam ser encarados como ações políticas,
no qual, os sujeitos, em especial, a classe trabalhadora precisa incidir diretamente para
alcançar um novo modelo de sociabilidade urbana. E, por isso, é cabível resgatar o papel
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do Direito como regulador das legalidade e ilegalidade nas cidades, e afirmar que o
Direito está constantemente em disputa, pois será a correlação de força das classes sociais
o real impulsionador das transformações sociais.
Nesse sentido, é necessário proporcionar mudanças estruturais no ensino jurídico,
uma vez que, os cursos de Direito, em regra, ainda fortalecem a propagação de uma
prática e discurso que reiteram a noção da propriedade privada como superior aos
interesses coletivos, negando, assim, o novo aparato jurídico-urbanista vigente no Brasil,
bem como as lutas sociais pela democratização da cidade. Faz-se mister que os juristas
compreendam os desafios propostos para a implementação de uma sociedade mais justa
desde a sua formação acadêmica e, assim, possam enquanto profissionais colaborar com
proposituras sobre a Reforma Urbana.
Fernandes (2010, p. 66) resgata que o controle sobre o uso, ocupação e
parcelamento do solo são centrais no desenvolvimento das cidades e não podem ser objeto
somente dos interesses individuais e do mercado. E afirma que é necessário estabelecer
uma relação de combate a especulação imobiliária e sua principal consequência que é a
exclusão socioespacial. Nesse ínterim, Fernandes (2005a, p. 69) complementa que:
“Defender o paradigma inovador da ordem jurídica contido no Estatuto da Cidade é
fundamental para que novos avanços da reforma urbana possam acontecer — com
políticas públicas, processos sociopolíticos, ações judiciais e decisões jurisprudenciais
cada vez mais comprometidos com o princípio das funções sociais da propriedade e da
cidade e com a bandeira do direito à cidade”.
Frente aos desafios colocados para a realização de um planejamento urbano
democrático, Maricato (2015, p. 92-97) aponta a necessidade de implantar diversas
medidas, como: atribuir a cidade real, a tida como ilegal, a devida visibilidade; construir
um espaço democrático que exponha os diversos interesses sociais; realização de uma
reforma nas estruturas administrativas, possibilitando o rompimento com a velhas
práticas políticas e o enfrentamento aos problemas da cidade real/ilegal; a eliminação da
distância entre planejamento e gestão, buscando a capacitação dos diversos atores sociais;
e, finalmente, o enfrentamento ao principal gargalo da Reforma Urbana que é a Reforma
Fundiária. Por fim, Maricato (2015, p. 97) complementa que “o direito à cidade, [...], será
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sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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dado menos por instituições formais, normas legais de política urbana ou de planejamento
urbano, e mais pelas lutas sociais”.
Por fim, é necessário ressaltar que para alcançar uma Reforma Urbana é urgente a
realização de uma profunda Reforma Política impulsionada e construída pela classe
trabalhadora de modo que modifique a relação entre Estado e sociedade, bem como do
Estado com o poder econômico para possibilitar aos pobres, àqueles possuidores de uma
cidadania diferencia, a vivência do espaço político e a autonomia na decisão sobre suas
vidas, bem como no modelo de cidade que querem viver, materializando, assim, o direito
à cidade.
5. Considerações finais
As cidades brasileiras, com o desenvolver de uma modernidade marcada por um
processo tardio e intenso de urbanização, se depararam com um inchaço urbano devido a
migração das pessoas do campo para as cidades, nas quais, essas não possuíam uma
infraestrutura que suportasse a nova demanda.
Consoante aos problemas de falta de estrutura, o modelo de planejamento urbano
aplicado às cidades aprofundou as desigualdades sociais e promoveu a exclusão
socioespacial da maior parte da população. Assim, desde os projetos de embelezamento
ao planejamento técnico/positivista, a população foi excluída das decisões sobre a
construção das cidades.
Os avanços na propositura de novas formas de vivenciar as cidades foi e é alcançado
através da reivindicação dos movimentos sociais organizados e demais setores da
sociedade. Assim, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana consegue exprimir o
desejo de milhares de brasileiros ao colocar a cidade dentro de um ordenamento jurídico
que produz e reproduz a ilegalidade urbana.
A Constituição Federal de 88 apresenta como objetivos fundamentais a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, no qual, haja a garantia do desenvolvimento
nacional, além da erradicação da marginalização e redução das desigualdades sociais.
Esses objetivos não poderiam e não podem ser alcançados sem uma efetiva participação
popular no planejamento e gestão das cidades, nos quais, os citadinos possuam o direito
de modificar, propor e realizar novas formas de sociabilidade urbana.
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sociais no planejamento e gestão urbanos brasileiros. Panóptica, vol. 11, n. 2, pp. 571-605, jul./dez. 2016.
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O Estatuto da Cidade dispõe dos instrumentos para a materialização dos princípios
democráticos do novo modelo de pensar e vivenciar as cidades.
No compasso do avanço, a conquista de um novo marco jurídico-urbanista
representa um importante passo na afirmação que a cidade é um direito de todos e, por
isso, há um direito à cidade. Proporciona, ainda, uma mudança paradigmática no cerne
dos conflitos urbanos que é a noção de propriedade privada. Assim, é necessário utilizar
e aprimorar todos os instrumentos disponíveis para buscar a democratização da cidade.
Mas um marco jurídico, por si só, não basta. É preciso estar vigilante na defesa de
alterações do exercício do poder político e econômico, nos reais fatores de poder que
manifesta-se, também, na produção do espaço urbano.
É nesse ínterim que a propositura de uma Reforma Urbana continua extremamente
atual, pois a questão urbana tem se agravado e torna-se, cada vez mais, inviável ignorar a
realidade de milhões de brasileiros. Não obstante, torna-se urgente, também, a realização
de uma profunda Reforma Política, protagonizada pelo povo, para que sejam alterados os
alicerces de uma política patrimonialista e clientelista e, assim, a participação da
população seja efetiva nos espaços de decisão.
A realização de um planejamento e gestão urbanos democráticos e participativos se
dará na medida em que a população brasileira consiga alterar os reais fatores de poder,
ou seja, altere a correlações de forças e oriente o processo de construção e reconstrução
das cidades a partir das necessidades do povo brasileiro, alçando, então, a concretização
de uma sociedade mais justa e solidária.
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