Ratos e Homens

Transcrição

Ratos e Homens
Para recordar o dia internacional da pessoa com deficiência
Uma narrativa de um Nobel da Literatura
As Nações Unidas, em 1998, dedicou o 3 de Dezembro como dia
Internacional da Pessoa com Deficiência, com o objectivo de promover uma
maior compreensão dos assuntos concernentes à deficiência e para mobilizar em
defesa da dignidade.
Na linha dessa causa, partilho a leitura de uma narrativa exemplificativa
da vida de um deficiente e das implicações na vida de pessoas próximas.
A narrativa leva-nos aos tempos da década de 30 do século passado,
quando a pessoa com deficiência ou incapacidade mental ou défice cognitivo
ainda era designada de idiota.
No desenrolar dos episódios, convivemos com uma forte ligação entre
duas pessoas, uma com deficiência e a outra dotada de uma sublime entrega, um
amigo que, sem interesses nem compensações, responde a um pedido de um
familiar, assumindo a protecção de um homem grandalhão, mas com
comportamentos infantis. Uma criança percorre a obra.
A narrativa começa assim: Caminhavam um à frente e o outro um pouco
atrás. Vestiam ambos calças e casacos do mesmo pano. Ambos usavam chapéus
pretos já coçados pelo uso e levavam às costas cobertores, num rolo apertado.
O homem da frente era pequeno e vivo, moreno de rosto, olhos inquietos
e penetrantes e de traços bem marcados. Tudo nele era definido: mãos pequenas
e fortes, braços delgados, nariz fino e ossudo. Era o Jorge.
Atrás dele, o seu oposto: um homem enorme, de cara sem forma, grandes
olhos pálidos que olhavam mas em nada se fixavam, ombros largos e caídos,
umas mãos enormes, caminhava pesadamente, arrastando os pés. Os braços não
oscilavam, mas caíam frouxos e moles ao longo do corpo. Era o Lino.
Chegados a uma ribeira, o Jorge estacou, tirou o chapéu, com um dedo
limpou o suor que lhe corria, sacudiu no ar em gestos firmes e rápidos.
Já o companheiro quase o abalroou por não dominar sua massa corporal,
deixou cair o rolo dos cobertores e deixou cair o seu enorme corpo, meteu as
manápulas na água e começou a beber em grandes goles no charco estagnado.
As descrições marcam as diferenças físicas, mas são as diferenças de
adaptação social, de compreensão e de autonomia as determinantes, as que
interessam.
O homem grande não dominava o seu corpo, compreendia pouco,
esquecia tudo e não era senhor de cuidar das coisas pessoais. Não sabia para
onde ia, deixava-se levar. Não atingia as causas dos acontecimentos, não
relacionava acontecimentos, informação. O seu protector tinha de lhe repetir,
com muita insistência, o que devia fazer e como devia fazer. Esforçava-se para
imitar o Jorge. Puxava conversas e o assunto eram as suas necessidades básicas,
como as alimentares.
Dirigiam-se a uma herdade onde iam trabalhar na colheita de cereais.
Na apresentação ao proprietário, o Jorge respondia por ele e pelo seu
protegido. Sabia que o Lino, se abrisse a boca, poderia comprometer o trabalho.
A solicitude do Jorge despertou desconfianças no patrão da herdade, que viu
nessa dedicação intenções de apropriação do ordenado do protegido.
- Vou ficar de olho em você! – Ameaçou.
Para os outros trabalhadores, o Lino era bom no trabalho, a carregar
sacos de cereais, mas:
- “É uma criança!” – diziam.
Uma criança que sem protector seria levada a um “hospício, atado pelo
pescoço como um cão”, atirou-lhe um companheiro.
Mas são as suas obsessões que mais marcam a deficiência. Obsessões
que são necessidades, dependências.
E são essas dependências que marcam a sua desadaptação social. É a
inadaptação social que levou a narrativa a um desfecho triste.
A necessidade de acariciar coisas macias era a sua grande obsessão.
Acariciar veludo, sedas, a penugem de um rato.
Até um rato morto alimentou sua obsessão, o que veio a dar contributo
para o título do livro.
Os sonhos de cuidar de coelhos, as carícias a um cãozinho que lhe
morreu nas mãos impreparadas para movimentos delicados, são desadaptações.
Arrastado pela necessidade de acariciar, já embalado e sem consciência
do mundo exterior, esquecido das recomendações do seu protector, dominado
pela obsessão, levado pelas insinuações de uma mulher sedutora, que lhe puxou
a mão para a levar à cabeça para lhe acariciar o cabelo, incapaz de pensar em
outra coisa, deixou de ouvir os gritos da mulher, centrado no que fazia, as suas
mãos enormes e pesadas apoderaram-se da cabeça. A mulher ficou-se.
Pescoço quebrado.
Começou uma perseguição. Era para um linchamento, uma humilhação.
Para o livrar da humilhação, do linchamento, o seu protector fez aquilo
que a amizade e a dedicação mandou fazer.
O fim da narrativa é triste.
O livro: “Ratos e Homens”, 1937, narrativa levada ao teatro e ao cinema.
O Autor é John Steinbeck, prémio Nobel da Literatura em 1962.
É a vida de uma pessoa sem autonomia para uma vida independente em
sociedade.
Para educar e desenvolver a autonomia, deixo aqui a sugestão do livro
“Autonomia para a inclusão – A importância da educação”.
Manuel Miranda
[email protected]

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