caleidoscópio policiário março

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caleidoscópio policiário março
 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO MARÇO M. Constantino [email protected] CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO MARÇO Março já foi o primeiro mês do ano na Roma Antiga, quando marcava o começo das campanhas militares. O seu nome deriva de Martius, o deus da guerra entre os romanos. A poesia tem lugar no tema policiário. De Natércia Leite, No Silêncio da Rua. No céu de breu vai navegando a lua e há um silêncio sepulcral na rua Abre‐se, range uma porta, um vulto que desliza, e lá dentro a vítima que agoniza… 2 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Tão fácil, afinal… Uma pancada forte, certeira; cruel, brutal, É um pacto com a morte. E, depois, a saída à socapa; um vulto, uma sombra envolta em capa… Vingança por fim cumprida, ceifada mais uma vida. No céu de breu vai navegando a lua e há silêncio sepulcral na rua… 3 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 1 DE MARÇO EFEMÉRIDES Estelle Blackburn (1950) – Nasce em Perth, Austrália. Jornalista com formação nas áreas de psicologia e antropologia trabalha como repórter para jornais, rádio e televisão. Investiga casos criminais polémicos e erros judiciais australianos. Escreve dois livros baseados em situações reais Broken Lives (1998) e The End of Innocence (2007). Autora galardoada com vários prémios, com destaque no policiário para o atribuído pela Crime Writers’ Association of Australia em 2001 – Ned Kelly Award para Best True Crime, pela obra Broken Lives. CRIMINOLOGIA – AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA Estudiosos da matéria dão por certo que a agressividade e a violência se alicerçam em motivações de ordem individual. É opinião ajustável ao conceito comum de causa – efeito. Já que o comportamento pré‐criminal não é fisicamente identificável, quanto muito conhecendo de perto determinado indivíduo e a prática dos seus actos, poder‐se‐á caracterizar o seu carácter, o que não significa classificá‐lo. Estudos latos e credíveis reconhecem esta dificuldade de método e descrição técnica na generalidade, porque 4 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO nem os actos individuais nem os seus atores revelam qualquer unidade. Encurtando razões: a agressividade é uma componente humana e sugestivamente o homem nasce com raízes de violência no próprio sangue. Este Portugal de brandos costumes, dos quais nos orgulhamos, está presentemente a pedir comparação com outros mundos (países) tradicionais no crime e na violência. Esse é o testemunho credível da comunicação social escrita e oral. Portugal tornou‐se num país violento. Não apenas pelo delito em si, parece não bastar a agressão à propriedade alheia, conseguido esse objectivo não se descortina a necessidade de agressão física ou morte dos materialmente ofendidos. O acordo de livre‐trânsito fronteiriço celebrado ara a Europa cria condições para a introdução de profissionais do crime, grupos organizados nacionais ou estrangeiros estão a marcar terreno numa perspectiva preocupante de insegurança, violência é medo individual ou colectivo. É preciso punir duramente os prevaricadores, aspiramos que sejam repostas a ordem e a segurança social. 5 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 2 DE MARÇO EFEMÉRIDES Jonathan Ross (1916) – Pseudónimo de John Rossiter, detective chefe reformado que vive em Wiltshire, Inglaterra. Em The Blood Running Cold, cria o Inspector George Rogers, protagonista da série com o mesmo nome, com 21 livros publicados entre 1968 e 1997. Escreve também sob o seu nome 7 livros de espionagem com o herói Roger Tallis. David Goodis (1917‐1967) – David Loeb Goodis nasce em Filadélfia, Pensilvânia, EUA. Estuda jornalismo, escreve o primeiro livro em 1939 Retreat from Oblivion, ao qual se segue um número indeterminado de contos (mais de 400) para Pulp magazines, sob diferentes pseudónimos David Crewe, Lance Kermit, Logan Claybourne e Ray P. Shotwell. A partir da década de 40 trabalha como argumentista na rádio e no cinema. Publica 19 livros de mistério/detective, o mais conhecido é Dark Passage devido à sua adaptação ao cinema. Goodis retrata com frequência ambientes marginais, sórdidos e carregados de pessimismo, parecem reflectir o seu próprio percurso, e tornam‐no num escritor maldito e um dos mais admirados do romance policial negro do século XX. Em Portugal estão editados alguns livros de David Goodis: Brigada Nocturna (1964), Nº 139 Colecção Xis, Editorial Minerva. Título Original: Night Squad (1961) 6 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Beco Sem SaÍda (1966), Editorial Minerva Obsessão (1968), Nº 18 Colecção Clube do Crime, Bertrand Editores. Título Original: Cassidys Girl. Disparem Sobre o Pianista (1985), Nº 14 Colecção Policial de Bolso, Editorial Caminho. Título Original: Down There (1956) A Lua na Valeta (1986), Nº 4 Colecção Estórias, Teorema. Título Original: The Moon In The Gutter (1953) Detenham Essa Mulher (1988), Círculo de Leitores. Título original: Behold This Woman. O Ladrão (1992), Nº 152 Colecção Policial de Bolso, Editorial Caminho. Título Original: The Burglar (1953) Uma Loira na Esquina (1993), Círculo de Leitores. Título original: The Blonde On The Street Corner (1954). Fernando Luso Soares (1924‐2004) – Fernando Augusto de Freitas Mota Luso Soares, nasce em Alenquer. Advogado, dramaturgo, ensaísta, tradutor, crítico e ficcionista. Na área do policiário dirige a revista Investigação – Revista mensal de ciência e literatura policial (1953‐1958) onde publica textos sobre a obra policial de Pessoa. Destaca‐se ainda Crime a Três Incógnitas (1953), O Crime de um Fantasma (1954), Crimes e Criminosos na Divina Comédia de Dante (1954) e A Novela Policial‐Dedutiva em Fernando Pessoa (1976). FICÇÃO CIENTÍFICA – OS OUTROS Conto de Hélia Sotta E os outros? Também seriam? As interrogações eram tremendas e agoniavam‐na na sua persistência… Ele…, era‐o de certeza. Não tinha provas reais e concretas mas vira o suficiente e adivinhara o resto. 7 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Continuou maquinalmente a mudar a fralda ao bebé. Que seria dela…, das filhas… e do resto da aldeia… talvez até do resto do mundo? Aconchegou a criança e suspirou. Mas porquê, Santo Deus, porquê? Tudo começara naquela manhã em que o carro avariara e de dento da floresta lhe surgira um jovem atraente e de aspecto trocista que em minutos lhe resolvera o problema mecânico. Tinham conversado, trocado cartões, e tinham acabado por ir tomar uma bebida à aldeia mais próxima… aquela mesma onde agora, passados quatro anos se encontrava. Houvera encontros, ideias trocadas e o amor irrompera. Tinham casado e tinham duas filhas. Naquele ano ela insistira para irem passar férias na aldeia onde se tinham conhecido. Ele esquivara‐se mas a suave teimosia dela prevalecera. Nos primeiros dias tinha sido maravilhoso, porém… houve o piquenique. Ela organizara‐o para o local onde tivera a avaria no carro e foi com surpresa e desgosto que ao chegar lá o marido não teve senão um encolher de ombros aborrecido. Comeram e ela estendendo‐se na caruma perfumada deixou‐se adormecer. Acordou de repente com a assustadora sensação de um silêncio pesado e absoluto. O ruído do bosque cessara e a vida parecia ter parado. Levantou‐se e chamou o marido. Correu hesitante por entre as árvores, pro‐curando vê‐lo. O medo começou a crescer dentro dela. De repente, estacou. Uma cena arrepiante saltou aos seus olhos. E em segundos todo um conjunto de pormenores estranhos acerca dele que deliberadamente tentara sempre abstrair, envolveram‐lhe o cérebro num turbilhão de loucura… Aqueles olhos estranhos e dourados que fitavam e pareciam emitir luz, aquela língua estranha e de sons incríveis que ele falava enquanto dormia, aquelas mãos que tinham passado num esfolão e o tinham sarado instantaneamente, aquele gato que sempre que o via se eriçava e miava de modo arrepiante… Santo Deus! O que via ultrapassava tudo quanto a sua mente podia conceber. Ele encontrava‐se no centro de uma clareira com dois homens vestidos de fatos brilhantes. Falavam mas a tal língua estranha, absolutamente impossível de ser reproduzida por gargantas humanas. E junto a eles um objecto esférico pousado aguardava. O suor escorria‐lhe pelas faces. Apeteceu‐lhe gritar, correr para o marido e suplicar‐lhe que desmentisse todo aquele pesadelo. Porém não conseguiu mover‐se. De súbito voltaram‐se na sua direcção e viram‐na. Trocaram sons excitados e os dois homens estranhos e diferentes entraram apressados para o esquisito veículo e numa nuvem escaldante elevaram‐se, desaparecendo vertiginosamente. O marido encaminhou‐se para ela. Calmo e seguro. Ela retrocedeu. Ela sabia que o horror ainda não terminara. Ele fitou‐a intensamente e uma paz quente envolveu‐a. Deixou de ter medo. Ele sorriu‐lhe. Estendeu‐lhe a mão. Uma mão que curava, que irradiava amor… Ele não era humano… sabia‐o agora. Qual seria a sua missão? 8 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Qual seria o seu futuro? E das filhas? E do mundo? Teria que se calar. Amava‐o muito mas a maior razão, aquela que a emudeceria para sempre é que as suas filhas tinham os olhos dourados… e algumas crianças da aldeia também. O CRIME NA LITERATURA POLICIÁRIA – O ROUBO Extracto de Novelas do Minho de Camilo Castelo Branco Em uma dessas noites, o chefe, com uma dúzia de escolhidos, entrou na Congosta de Enxiras, onde morava Bento de Araújo. Ele, com mais dois, acercaram‐se da porta; os outros postaram‐se de atalaia nas extremidades da viela. O pedreiro estava ainda sentado à lareira. Desde que lhe disseram que o filho pernoitava às vezes em casa do Meirinho, velava até ser dia claro. O receio de ser assaltado era tamanho que já três vezes, em noites tempestuosas, gritara à d'el‐rei. Os vizinhos, à primeira, acudiram vozeando das janelas com invulnerável intrepidez, e viram dessa feita que um porco vadio, atraído talvez pelo cheiro de pocilga, foçava contra a porta de Bento. Depois, ainda que ele gritasse ninguém se mexia, atribuindo ao porco as agressões incómodas ao avarento. Foi o que aconteceu naquela noite de novembro. O pedreiro sentiu o abeirar‐se gente da sua porta, e deu tento do raspar de ferro entre a ombreira e o batente. Gritou: mas parecia gritar já com os colmilhos apertados. A língua da fechadura estalou, e a porta foi diante de dois possantes ombros tão rapidamente que os homens, como duas catapultas, entraram de roldão, e só pararam filando‐se à garganta do velho empedrado. Por entre eles, e à luz do canhoto que flamejava, o pedreiro viu lampejar o aço de uma navalha e ouviu, através dos lenços com que os hóspedes cobriram as caras, uma voz disfarçada: – Se grita, você morre aqui já. Se quer viver, entregue as três mil peças que herdou, e ande depressa. Não nos conte lérias, nem faça lamúrias. É decidir: o dinheiro ou a vida. 9 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 3 DE MARÇO EFEMÉRIDES Nicolas Freeling (1927‐2003) – Nicolas Davidson nasce em Londres. Trabalha como chefe de cozinha em vários países da Europa. É o criador do Inspector Piet Van der Valk, da polícia de Amesterdão e do Inspector Henri Castang da polícia francesa. O seu primeiro livro é Love in Amsterdam (1962) que também é publicado com o título Death in Amsterdam tem como protagonista Van der Valk. O autor escreve 13 livros para esta série, alguns dos quais têm também como personagem principal Arlette Van der Valk, mulher do inspector. A série Henri Castang tem 16 livros e Freeling, que também usa o pseudónimo F.R.E. Nicolas escreve ainda mais 8 romances policiários. É nomeado em 1963 para o Gold Gagger da British Crime Writers Association com Gun Before Butter (1963) e é também com este livro que recebe em França o Grand Prix de Roman Policier, em 1965. Recebe ainda o Edgar Allan Poe Award para Best Novel, em 1967, pelo romance King of the Rainy Country. Em Portugal estão editados vários livros de Nicolas Freeling, a maioria na Colecção Vampiro da Editora Livros do Brasil. Max Allan Collins (1948) – Nasce em Muscatine, Iowa, EUA. Repórter jornalístico, professor de inglês, músico, argumentista, autor de banda desenhada publica em 1973 10 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Bait Money, o primeiro romance policiário da série Frank Nolan, um ladrão profissional, que protagoniza mais 8 livros. Em 1976 cria um novo personagem, Quarry, com 10 títulos editados. Em 1983 cria Mallory, um antigo combatente do Vietname que se torna num escritor pacifista e resolve mistérios no Iowa: 5 livros já publicados. No entanto o melhor personagem criado por este autor é sem sombra de dúvida, Nathan Heller, um polícia de Chicago dos anos 30 que se torna detective privado por causa da corrupção policial e política vigente. Esta série, conta com 17 livros, é iniciada em 1983 com True Detective e o último título publicado em 2012 é Triple Play, onde estão reunidas algumas histórias de Nathan Heller. Max Allan Collins é autor, e co‐autor, de várias séries televisivas conhecidas, como Mentes Criminosas, Ossos, CSI; a sua graphic novel (quadradinhos) On Road To The Perdition (1998) é adaptado ao cinema por Sam Mendes e protagonizado por Paul Newman,Tom Hanks, Jude Law e Daniel Craig. Na área da literatura policiária Collins escreve thrillers históricos, a biografia de Jim Thompson e um estudo sobre Mike Hammer, famoso personagem de Mickey Spillane. É um único autor com 10 nomeações para o Shamus Award da Private Eye Writers of America e 2 vezes vencedor com o já referido True Detective (1983) e com Stolen Away (1991). É nomeado pelo Mystery Writers of America para Edgar Award: em 1985, na categoria de biografia por One Lonely Knight: Mickey Spillane's Mike Hammer; em 1993 na categoria melhor short story com Louise; em 2002, na categoria de melhor ensaio critico com The History of Mystery; e em 2005, na categoria de melhor peça com Eliot Ness: An Untouchable Life. Max Allan Collins usa os pseudónimos Barbara Allan e Patrick Culhane. A ARTE DE DECIFRAR Recomendável é o método que o grande escritor Fernando Pessoa põe na boca do seu personagem, o investigador Dr. Quaresma. A investigação depende, essencialmente, da plena segurança dos raciocínios; e plena segurança dos raciocínios depende essencialmente de três coisas: 1ª a determinação primária de quais são, no caso de que se trate, os factos, isto é, aqueles detalhes da realidade que, sendo absolutamente nítidos, sejam de todo incontroversos; 2ª a determinação secundária de qual o facto de conjunto, isto é o facto formado pela relação entre si desses factos primários; 3ª partindo desse ponto, qual a história inteira do caso, isto é, indo de indicação em indicação, eliminando, comparando, joeirando, qual a conclusão que vai dando de si o facto conjunto quando devidamente, e progressivamente, analisado. 11 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 4 DE MARÇO EFEMÉRIDES T. S. Stribling (1881‐1965) – Thomas Sigismund Stribling nasce em Clifton, Tennessee, EUA. Advogado de formação, abandona a carreira em 1907 para se dedicar à escrita. Escreve contos de aventura, ficção científica e policiária para revistas juvenis. Cria o Doctor Henry Poggioli, um psicólogo detective. O autor tem uma obra literária fora do policiário – romance, poesia – e recebe o Prémio Pulitzer em 1933. Kenneth Benton (1909‐1999) – Kenneth Carter Benton nasce em Wolverhampton, West Midlands, Inglaterra. Entre 1937 e 1968 faz parte do M16 – Serviços Secretos britânicos e é diplomata. Quando se reforma, em 1969, inicia‐se na escrita, com particular destaque para a ficção histórica, crime e espionagem. Ao primeiro livro, Twenty‐Fourth Level, protagonizado por Peter Graig, perito em contra terrorismo, seguem‐se mais 5 da mesma série; escreve ainda mais 6 thrillers, dois dos quais assinados com o pseudónimo James Kirton. Jean‐Pierre Ferrière (1933) – Nasce em Châteaudun, França. Aos 17 anos parte à aventura para Marrocos onde trabalha na rádio. Regressa a França e começa por escrever peças radiofónicas. A pedido do editor da colecção La Chouette, o autor escreve 12 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO o primeiro livro policiário: Cadavres en Solde (1957), um sucesso com duas solteironas detectives, Blanche e Berthe Bodin, que protagonizam no total 7 romances policiários humorísticos. Jean‐Pierre Ferrière publica nesta colecção mais 12 livros. A partir de 1962 inicia um rumo de escrita mais ligado ao policial negro, com cerca de 50 livros editados. Escreve 40 peças para rádio que são emitidas nos programas Les maîtres du mystère e L'heure du mystère. As obras do autor têm várias adaptações à televisão e ao cinema. James Ellroy (1948) – Lee Earle James Ellroy nasce em Los Angeles, Califórnia, EUA. Considerado o verdadeiro sucessor de Hammet e Chandler tem um passado marcado pela violência, álcool e droga. Brown’s Requiem, de 1979 marca o início de uma carreira fulgurante que culmina com o reconhecimento geral em 1987, altura em que é publicada a sua primeira obra prima. Escreve 17 livros, dois dos quais de short stories. Em Portugal estão publicados pela Editorial Presença, na Colecção Fio da Navalha; os três primeiros compõem a triologia de Lloyd Hopkinse e os quatro últimos pertencem à série L.A. Quartet, que se desenrola entre os finais da década de 40 e 50 e têm como personagens Dudley Liam Smith e Edmund Jennings Exley. James Ellroy tem várias obras adaptadas ao cinema e é considerado o melhor escritor contemporâneo de romance negro. 1 – Sangue na Lua (1999), Nº 17; Título Original: Blood On The Moon (1984) 2 – No Escuro da Noite (2000), Nº 23; Título Original: Because The Night (1984) 3 – A Colina dos Suicídios (2002), Nº 44; Título Original: Suicide Hill (1985) 4 – A Dália Negra (2006), Nº 91; Título Original: The Black Dalia (1987) 5 – White Jazz (2010), Nº 107; Título Original: White Jazz (1992) 6 – Sangue Vadio (2010), Nº 110; Título Original: The Big Nowhere (1988) 7 – L.A. Confidential (2011), Nº 111; Título Original: L.A. Confidential (1990) 13 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO FICÇÃO CIENTÍFICA BIBLIOTECA ESSENCIAL DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA (4) Volume 6 – The Ship of Ishtar (1924) de Abraham Merritt Abraham Merrit (1884 – 1943), repórter autor dos géneros fantástico e Ficção Científica escreveu a sua primeira novela The Moon Pool em 1919, seguindo‐se‐lhe The Metal Monster e The Ship of Ishtar. Esta é uma obra representativa do tema espadas e bruxarias, uma das primeiras que influenciaria autores futuros, preparando, ao mesmo tempo, o posterior desenvolvimento da fantasia heróica. O enredo mostra‐se um tanto romântico mas, Merrit, um poeta da linguagem épica, arrasta‐nos na confrontação com um jovem arqueólogo dos princípios do século passado, que se vê projectado no tempo, a mil anos antes, aparecendo na coberta de um navio onde se encontra a sacerdotisa Ishtar, uma mulher de rara e enigmática beleza. Nasce um amor alucinante, perturbado por toda a classe de malefícios próprios desta classe de narrativa. Volume 7 – The Skylark of Space (1928) de E. E. Smith Edward Elmer Smith (1890‐1965) um dos pioneiros da Ficção Científica americana ainda na Universidade, onde cursou engenharia química, dai o designativo simpático de Doc. Começou a escrever narrativas do género, tendo concluído em 1915 The Skylard of Space, só publicada porém em Agosto e Outubro de 1928 no Amazing Stories Quarteley. De imediato foi considerada uma das obras fundamentais do space opera, género em que foi considerado indiscutível. O entusiasmo suscitado levou o autor a seguir a série: Skylark Three (1950), Skylark of Valeron (1934) e Skylark DuQuesne (1965). A saga das galáxias terá continuidade, relevando as séries: Lord Tedric, Lensman e Family D'Alembert. Com The Skylark a conversão total da matéria energética descoberta pelo cientista Seaton, o herói protagonista, abre‐lhe a oportunidade de lançar no espaço o 14 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO primeiro veículo interstelar. Depara‐se‐nos uma aventura alucinante, inclusive a descida num planeta de humanóides. 15 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 5 DE MARÇO EFEMÉRIDES Charles Barbara (1817‐1866) – Louis‐Charles Barbara nasce em Orléans, França. Estuda em Paris onde se liga a um grupo de autores e artistas inconformistas; começa a carreira de jornalista e escritor. Nos seus contos e romances livros Charles Barbara mistura habilmente o género realista, fantasia e policial. Na Ficção Científica o autor é considerado um precursor de Júlio Verne com Le Major Whittington (1858), onde surgem arranha céus, robôs, máquinas de calcular e o telégrafo. No Policiário destacam‐se Romanzoff (1846) um texto que retrata um caso criminal, a sua pesquisa e julgamento em tribunal e especialmente L'Assassinat du Pont‐Rouge (1855) que é considerado por muitos especialistas o primeiro romance policial francês. VAMPIROS – LENDA OU REALIDADE? Não, não nos referimos àqueles animaizinhos repelentes – morcegos – sugadores de sangue que, na América Central, são conhecidos por esse nome. Referimo‐nos aos vampiros homens ou pseudo‐homens que o Larousse distingue com o conceito: Vampiro: do alemão Vampir, derivado do eslavo Upuri. Cadáver que sai, 16 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO de noite, da sua sepultura e vai sugar o sangue dos vivos. Como se chega a vampiro? Dizem os entendidos: Depois de uma vida de infâmia, o pecador é recuperado pelas forças obscuras que o alistam no exército dos vampiros. Estes podem, por sua vez, recrutar e vampirizar mesmo criaturas inocentes, se conseguirem cravar os seus dentes caninos salientes no pescoço das vítimas. Lenda ou realidade? ROLAND DE VILLENEUVE, um dos poucos especialistas em vampirismo, remonta a crença nos vampiros à própria formação do mundo. Representa o temor que o homem das cavernas experimentava em relação ao Além. Refere muitos textos que falam de vampiros desde o ano 600 a.C., na China, outros deixados pelos assírios e sumários. Os gregos antigos falavam de Striges (mulheres que se transformavam em aves de rapina e se alimentavam de sangue humano), e Lamies, vampiros especializados em crianças. É, porém, na Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, que os vampiros começaram a pulular. Ingleses, escoceses, suecos etc., têm os seus vampiros, mas o palco preferido situa‐se na Valáquia, Hungria, Polónia ou Rússia, onde teria sido o seu berço, segundo CHARLES NODIER. DON AUGUSTIN CALMET, um beneditino que viveu de 1675 a 1757 a quem se deve uma notável Dissertations sur les apparitions des esprits et sur les vampires et revenants, publicada em 1749, revela curiosos e diversos factos confirmados de vampirismo em datas designadas de sua época. Em todos os casos suspeitos ouviam‐se testemunhas e os cadáveres eram examinados em busca de sinais reveladores de vampirismo, ou sejam as articulações flexíveis, a liquefacção do sangue e a incorruptibilidade da carne. Se se encontravam esses sinais, os cadáveres eram exumados e queimados. Em alguns casos os cadáveres gritavam como loucos, agitando os braços e as pernas, como se estivessem vivos. Afirma‐se que esta é a forma de acabar com o morto vivo, outra, mais eficiente recomenda que se atravesse o coração com uma estaca, se separe a cabeça do corpo e reduza tudo a cinzas. BRAM STOKER, em determinado passo d sobre o assunto, descreve do modo seguinte a extinção de uma vampira: Pegue nesta junção com a mão esquerda, apoie‐o sobre o peito dela à altura do coração e com o martelo na mão direita, bata fortemente, enquanto nos oramos pelo repouso da morta. Depois de uma dilacerante luta interior, Artur tomou subitamente uma decisão implacável. Sem hesitar, sem tremer, colocou a ponta aguda do comprido punção à altura do coração de Lucy e bateu com todas as suas forças. A "coisa" no caixão torceu‐se em pavorosas convulsões, um uivo que nada tinha de humano saiu‐lhe dos lábios de onde se escapava uma espuma avermelhada, e os dentes agudos cravaram‐se na própria carne. O sangue jorrava em jactos vermelhos do coração trespassado. Depois as convulsões cessaram, a face perdeu a expressão selvagem e o corpo imobilizou‐se. Certamente, como sabemos, é possível a incorruptibilidade de um corpo. Existem 17 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO inúmeros casos de pessoas que se acreditava mortas e que voltaram à vida depois de serem enterradas. Há doenças que mantêm os pacientes largamento em estado cataléptico, em morte aparente e reanimáveis após largo período nesse estado. Mas como sairiam das tumbas? Como e porquê voltar a elas? É algo que nunca se explicou e nunca se explicará. Dizer que o diabo desmaterializa os corpos, é fácil e irracional por não provado. Lenda ou realidade? Lenda ou realidade foi, e é, fonte de inspiração literária. Inúmeras obras sobre o tema têm sido dadas à publicidade. Provavelmente, todavia, nenhuma outra iguala ou igualará o famoso DRÁCULA (sem dúvida o mais notável dos vampiros, a pontos de quase se abandonar este termo em favor daquele) de BRAM STOKER, nome literário de ABRAHAM STOKER, nascido na capital irlandesa em 1847. DRÁCULA beneficiou, aliás, de todas as lendas na pessoa de VLAD TEPES ou TSEPECH, conde DRAKUL – o empalador – poderoso senhor voiévola que reinou sobre a Wallachia de 1448 a 1476. DRAKUL (DRÁCULA) significava filho do dragão ou filho do diabo e pelas práticas de crueldade, de que existem numerosos documentos, bem merece este último epíteto. Valha a verdade dizer‐se que ser vampiro seria o menor dos seus crimes, já que o método favorito da sua crueldade consistia no empalamento. Inúmeros infortunados, sem distinguir mulheres, homens e crianças, foram espetadas de pernas para o ar ou de cabeça para cima, pelo umbigo, órgãos genitais ou através do coração. Estrangulados uns esfolados e desmembrados em vida, outros. Num só dia sangrento massacrou 30 000 pessoas, na aldeia de AMLS, cortando‐as como couves. Escreveu o seu romance a partir de factos históricos atribuídos a TEPES, investigando crónicas vampíricas existentes nos recônditos do Museu Britânico e através de correspondência com sábios romenos. DRÁCULA, publicada em Londres em 1897, forma com Carmilla (a mulher vampiro) do irlandês JOSEPH SHERIDON LE FANU, publicada pouco antes daquela (1872), a mais famosa parelha de relatos de ficção sobre o assunto. Assim o afirmou recentemente o erudito francês TONY FOIVRE, autor de Os Vampiros, aturado estudo no domínio do real e fictício. VOLTAIRE, no Dicionário Filosófico alcança que: não se ouviu falar senão de vampiros, desde 1730 a 1735; espreitaram‐nos, arrancaram‐lhes o coração, queimaram‐
nos mas, tal como os antigos mártires, quantos mais se queimavam mais apareciam. Lenda ou realidade? A crença dos antigos gregos no retorno dos espíritos desaparecidos não era mais racional que a crença em fantasmas e vampiros. A ignorância, o temor, alimenta a fantasia, daí que muitos dos casos nos parecem pueris. No cinema, o assunto é inspiração para fartos filmes. E aí sim, parece não ser 18 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO possível acabar de vez com o macabro e terrorífico personagem, porque, não importa quantas vezes seja espetado ou queimado, acaba sempre por se erguer de novo. Lenda ou realidade? Questão que deixamos às mentes destacadas e animosas para resolver. Será prudente não obstante, prevendo um mau encontro, o uso de um colar de alhos ou ferraduras, a defesa com as bolas marcadas com uma cruz, ou ter em casa um crucifixo de pau de espinheiro ou abrunheiro. CRIME PERFEITO O investigador mandou acender os reflectores apontados paro os olhos do preso e deu início ao interrogatório. – Poderia ser um crime perfeito – disse ao pálido acusado – mas o senhor cometeu um pequeno engano. Só um… O acusado passou um dedo no colarinho, sufocado pelo suor. Quis responder, mas o detective prosseguiu implacável, apanhando a faca que estava sobre a mesa: – Não há impressões digitais, nem marcas de sangue, nem cabelos reveladores. Só sabemos que o senhor odiava o velho; é ou não é? O senhor seguiu‐o até ao apartamento, cheio de ciúmes porque ele acompanhava a sua garota. Naquele momento o seu ódio era intenso por saber que ele era rico e lhe roubava a mulher amada. Ruminando crimes seguiu os dois. Entrou no apartamento às 8h e 10m. Cinco minutos depois, precisamente às 8 horas e 15 minutos, foi apanhado na rua com a tal sua namorada, tendo nas mãos uma garrafa de Porto da reserva do velhote, dois quadros de nu artístico que cobiçava há muito tempo e – envergonhe‐se ladrão! – três camisas e um maço de cigarros turcos! Finalmente, esta faca, melhor, este punhal de cabo ricamente dourado, estava nos seus bolsos! Confesse, canalha! – Confesso, confesso! – balbuciou o acusado horrivelmente pálido. – Sim – continuou o investigador – poderia ter sido um crime perfeito. Mas o senhor 19 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO cometeu um velho esquecimento: Por que raio de motivo não matou o idiota do velho? Porquê? Foi a única coisa que esqueceu! ENIGMA POLICIÁRIO – INVESTIGAÇÃO EM CINZENTO Publicado em 25 de Fevereiro – Solução a) Vindo da terra lamacenta e encharcada onde brincava, nenhum dos rapazes poderia ter entrado na sala sem ali deixar nítidas pegadas. Sala que o investigador encontrou “impecavelmente encerada...” Na hipótese (remota) de se descalçar, seria pormenor que Rafael não deixaria de focar, por evidente. De resto, para tal procedimento, era indispensável conhecer antecipadamente que o pai e o guardião dormitavam, o que seria difícil, se não inviável, dada a obscuridade da saia, mesmo que tivesse espiado pela janela. b) Na obscuridade da sala não era possível distinguir o nome em “letras cinzentas mais escuras sobre outro cinzento”. Dificilmente também se “diferenciaria uma letra”, em dois nomes tão semelhantes – Marta; Marco. c) A erva‐bezerra é vulgarmente conhecida por “boca‐de‐lobo” – vide dicionários. Ora, conhecendo que Rafael é também Lobo de nome, aliando os contrastes das suas declarações expostas em a) e b) com o seu “resmungo” ao ser interpelado por Rosa, podemos concluir que teria sido o autor do desaparecimento do diamante e o modo como o transportou ‐ na boca. Aquela “boca” de lobo praticou – pelo menos! – duas asneiras numa mesma tarde: roubou e… falou demais! 20 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 6 DE MARÇO EFEMÉRIDES Thomas B. Dewey (1915‐1981) – Thomas Blanchard Dewey nasce em Elkhart, Indiana, EUA. Professor e editor, em 1944 escreve a sua primeira obra Hue and Cry; seguem mais 34 livros e um total de 50 contos. Cria três séries diferentes: Siger Batts, um proprietário de hotel que resolve mistérios, Mac, um detective privado de Chicago, que soluciona os casos com a ajuda da mulher e Pete Scholfield um detective privado compassivo. Este autor, que é Director da Mystery Writers of America em 1960, usa também os pseudónimos literários Gord Wainer e Tom Brandt. William F. Nolan (1928) – William Francis Nolan nasce em West Hills, Califórnia. É mais conhecido como co‐autor, com Bradbury, Beaumont e Richard Matheson forma o núcleo duro do Southern California Group. Torna‐se escritor a tempo inteiro só em 1956, mas desde 1951 até agora já produziu mais de 1500 artigos, contos e livros. Os seus contos de mistério, terror e ficção científica são seleccionados para dezenas de antologias e livros didácticos e estão adaptados ao cinema e televisão. Este autor é um dos maiores especialistas em Dashiell Hammett, a sua obra Dashiell Hammett: A Casebook (1969) recebe um Special Edgar Award em 1970 e Hammett: A Life On The Edge (1983) é considerada a melhor biografia escrita sobre o criador de Sam Spade. 21 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Wessel Eberson (1940) – Wessel Schalk Ebersohn nasce na Cidade do Cabo, África do Sul. É um autor reconhecido internacionalmente. Escreve uma dezena de livros, alguns dos quais thrillers. Na série Yudel Gordon estão publicados A Lonely Place to Die (1979), Divide the Night (1981), Closed Circle (1990), The October Killings (2011) e Those Who Love Night (2012). BREVE HISTÓRIA DA LITERATURA POLICIÁRIA – 3 A tradição chinesa não conhece pré‐história no sentido arqueológico, a evolução deve‐se a San Huang e Wudi, os três soberanos, e cinco imperadores que parecem ter reinado 647 anos a partir de 28 a.C.. A Idade Média fez‐se sentir diferentemente no Oriente. O culto dos heróis, a perfeição e a justiça, sempre tiveram um papel cimeiro na vida e costumes de celeste império. Durante três mil anos, de madrugada e ao fim da tarde promoviam‐se audiências. Cedo, as ordens e história, arte e literatura eram gravadas em placas de bambu ou bronze depois em pergaminho, documentos valiosos cuja existência comprovam o sentido da história da civilização chinesa. Durante um período de evolução conturbado de lutas internas, destruiu‐se, pela queima, muito do pacientemente arquivado, mas os manuais e guias foram resguardados e, posteriormente, também outros acabaram por ser reconstruídos. Não admira pois, que a China, diferentemente de outros povos em que só tardiamente se levou à escrita a tradição oral, ofereça maior fortuna de recolha para o assunto em causa. As aventuras de Hsuch Hsuam, um hábil observador e inteligente personagem, protótipo de um inteligente detective, são‐nos revelados por Ying‐Shao, um chinês que terá vivido em 178‐197 da Era Cristã, recordados num livro o Fengshu’surig, de que se conhece a sua existência mas do qual não se sabe o actual paradeiro. 22 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Conta‐se que em Linhuai, um vendedor de sedas, levou uma peça desse tecido impermeável, para a vender na cidade. Tendo entretanto começado a chover, abriu‐a sobre a cabeça para se abrigar e, em breve, um outro homem veio proteger‐se sob a peça. Ao parar a chuva, ambos começaram a disputar sobre a posse da seda. Hsuch Hsuan, que passava, aproximou‐se e disse: – Essa peça de seda impermeável vale apenas algumas centenas de moedas. Por que brigar por causa dela? De seguida cortou‐a em dois pedaços e deu um deles a cada um dos contendores. Depois, continuou a olhá‐los e viu que um dos homens protestava que tinha sido enganado, ao passo que o outro parecia satisfeito. Assim, deduziu a quem pertencia a seda. O verdadeiro dono protestava. Só aquele a quem não pertencia poderia estar satisfeito pois saíra a lucrar. Ele acabou, pois, por ser declarado culpado e condenado. Lu Tchi‐Chen, cujo nome chinês significa profunda sabedoria, demonstra perfeitamente o cognome a fazer sombra a um Dupin do Século XIX, na história de Ying Shao, já referenciado, que pelos vistos, conhecia personalidades de destaque. Transcrevemos a conclusão no caso do roubo das moedas a um garoto vendedor de bolos. Lu Tchi‐Chen falou vagarosamente: – A justiça não é unia dádiva para conceder somente àqueles que são suficientemente sábios e profundos para a merecer. Quando se pede justiça, o simples pedido é o bastante. Capitão Ting vamos dar o passeio em que fazes tanto empenho. Distinguiremos uma moeda do cobre de outra moeda de cobre e descobriremos o ladrão no meio de um milhar de homens. Segue‐me. Tu, disseste, capitão Ting, ser impossível distinguir uma moeda de cobre de outra moeda de cobre. Mas isso não era verdade. As moedas de Ah Tchuan podiam ser identificadas. Durante algum tempo, tinham estado metidas num saco juntamente com bolos fritos de fresco. Portanto, deviam estar sujas e gordurosas, tal como as mãos e roupa do garoto. O teu desejo de ir ver o cortejo, Capitão Ting, deu‐me uma ideia para suscitar a curiosidade do gatuno de modo a atraí‐lo ao tribunal juntamente com a multidão. Depois, arranjei um pretexto para que todos deitassem uma moeda de cobre no meu jarro de água. Quando vi aparecer gordura à superfície da água, fiquei sabendo que a pessoa que deitara aquela moeda era a que eu procurava. E Lu Tchi‐Chen finalizou: – Nunca se deve negar justiça, Capitão Ting, nem mesmo considerá‐la impossível. O Dr. Robert Hans Van Gulik (1910‐1917), um erudito holandês que desde a infância 23 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO viveu no Extremo Oriente, designadamente na China, onde se apaixonou pelas letras e artes locais, traduziu numerosos textos, entre os quais o Tang‐Yin‐Pi‐Slu uma espécie de manual de detecção reportado aos primeiros séculos da nossa Era e até ao séc. XIII, composto por dezasseis volumes e cento e quarenta e quatro casos, constituindo um reportório excepcional para a história da criminalidade. Van Gulik começa por traduzir um romance policial chinês do Século XVIII, mas reportado a 630‐670, o Wu‐Tse‐Szu‐Tu‐Chi‐An, publicado como Dee Goung An, Three Murder Cases Solved by Judge Dee, a partir do sucesso deste livro, aproveita tais relatos para ficcionar alguns dos muitos casos ali expressos com excepção de alguns, poucos, como o ocorrido no anode 950 com a descoberta de um cadáver decapitado da esposa de um vendedor, cuja investigação está a cargo de um cidadão curioso e sagaz, na generalidade, e ao juiz (uma antecipação de Perry Mason elevado à magistratura) a quem compete investigar e punir, sendo, por vezes, mais detective que juiz. No rol de magistrados constantes dos referenciados dezasseis volumes, reportado a várias épocas, mencionam‐se Yen Tsun, Sun Pao e, sobretudo Ti Yen‐Tsie (na tradução inglesa, Dee Yen‐
Diejh). As histórias que proporcionam exercícios de dedução, muito próximas das narrativas policiárias clássicas, sempre tiveram extrema tradição quer, na Índia, Pérsia, ou entre árabes e judeus. São fontes e datas que, nem sempre, é possível apurar e nem sempre correspondem aos autores das recolhas. É de uma data intermédia entre 858‐932 d.C. período da vida do árabe Abou Diafar Mohammed ben Djenn ai Tabori, a narração cujos traços lembram Zadig, de Voltaire – a referenciar – e ainda que em versão muito mais curta, consta de "Talmude" e também do Alekezwara Kathara, traduzido do sânscrito, impossibilitando uma indagação real sobre a prioridade da origem. Um ateniense que viajara até Jerusalém para estudar, ali permaneceu três anos recolhendo sabedoria. Por fim, comprou um escravo zarolho e levantou‐se em voz alta: – Depois de três anos não consegui mais que comprar um escravo zarolho! O comerciante respondeu: – No entanto é um homem muito inteligente, acredita. Quando saíram da cidade, o escravo disse‐lhe: – Apressemo‐nos e teremos companhia. E a conversa continuou – Há então alguém que nos procede neste caminho? – Sim. E vai com eles um camelo zarolho que leva dois meninos e duas cargas, uma de vinho e outra de vinagre. Está a quatro milhas de nós…e o cameleiro é um pagão. – Pela coroa de Cristo. Com um só olho podes ver que esse camelo é também zarolho? – Porque não vai pastando a erva de mais que de um lado do caminho. 24 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO – E como sabes que leva meninos? – Porque se apearam e deixaram rastos no chão; são pegadas pequeninas. – Como sabes que leva cargas de vinho e de vinagre? – As gotas de vinho são submergidas pela terra com o sol, as de vinagre causam efervescência. – Mas então como sabes que o cameleiro é um pagão? – Porque urinou no caminho e um judeu sempre se afasta dele para esse efeito. – E como sabes que estão a quatro milhas de nós? – Porque não se reconhece a pisada de um camelo a mais do que a essa distância. ARMAS – CALIBRE É importante conhecer as diferenças de calibres das armas. Em Portugal e França usam‐se os milímetros, em Inglaterra e Estados Unidos, a polegada. Inglaterra EUA Portugal 250 25 6,25 280 28 7 300 30 7,65 320 32 8 350 35 9 410 41 10 440 44 10,6 450 45 11,25 25 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 7 DE MARÇO EFEMÉRIDES Michael Ridpath (1961) – Nasce em Devon, Inglaterra. Trabalha na área bancária como corrector na City londrina; o seu primeiro livro, Free To Trade é escrito aos fins de semana e depois da sua publicação o autor abandona a City e dedica‐se à escrita. É autor de thrillers que têm como cenário o mundo da alta finança: Free to Trade (1994), Trading Reality (1996), The Marketmaker (1998), Final Venture (2000), The Predator (2001) e Fatal Error (2003); na série Alex Calder: On The Edge (2005) e See No Evil (2006). Cria ainda a série Fire & Ice, passada na Islândia: Where the Shadows Lie (2010), 66° North (2011), Edge of Nowhere (2011) – um conjunto de short stories, só disponíveis em formato digital e Meltwater agendado para Junho deste ano. Em Portugal estão editados os seguintes livros de Michael Ridpath: 1 – Negociações Perigosas (1995), Editorial Caravela. Título Original: Free To Trade (1994) 2 – Realidade Capital (1996), Editorial Caravela. Título Original: Trading Reality (1996) 3 – O Suspeito Principal (2001), Nº 36 Colecção Fio da Navalha, Editorial Presença. Título Original: Final Venture (2001) 4 – Onde Moram as Sombras (2011), Nº33 Colecção Minutos Contados, Editorial Presença. Título Original: Where the Shadows Lie (2010) 26 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO ESPIONAGEM – ESCOLA DE AGENTE SECRETOS – 2 Codificar e descodificar uma mensagem, ainda que os serviços criptográficos possuam sofisticado equipamento para o efeito, atingindo um plano alto sem paralelo e cresce constantemente, de tal modo que hoje o objectivo da criptografia não é ocultar a existência de uma mensagem, mas sim o seu significado ininteligível. Se o inimigo interceptar uma mensagem esta será ilegível e impossível recrear o conteúdo sem conhecer a cifra. Por exemplo o microponto é uma forma de criptografia que se tornou popular durante a 2ª guerra mundial. Usada pelos agentes alemães que reduziam fotograficamente uma página de texto até um ponto com menos de um milímetro de diâmetro, para desespero dos americanos que em 1941, através do FBI, descobriram o primeiro microponto, por intermédio da contra‐espionagem. A arte criptográfica é extraordinariamente antiga. Dos Lancedemónios a Júlio César, S. Bonifácio, Napoleão, passando pela obscura Idade Média, através dos religiosos, aos tempos presentes, existe uma história apaixonante. Na longa distância do tempo a comunicação através de fogueiras no alto das montanhas, ao costume dos índios, cartas escondidas nas sandálias e brincos das dançarinas que acompanhavam os exércitos, crânio rapado dos escravos onde se escrevia a mensagem e se deixava crescer o cabelo, pombos correio aetc. Até se chegar ao telégrafo e à rádio. Os métodos antigos e processos manuais de escrita eram: 1 – Processo de substituição em que as letras reais do alfabeto são substituídas por falsas letras (código), como o usado por Júlio César, em que cada letra era substituída pela 3ª seguinte. As letras podem ser substituídas por números ou sinais de qualquer ordem. Estes últimos são mais difíceis de decifrar e mais perigosos, porque o expedidor e o receptor têm de possuir cópias do código. Voltando ao código de substituição por letras de César, temos: 27 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO A = D B = E C = F D = G E = H F = I G = J H = K … Exemplificando com a palavra HONRA = KRQUD Está fora de questão apresentar uma visão técnica, ainda que sumária de todos os códigos dada a complexidade do tema. Registamos, no entanto um simples método geométrico. Suponhamos que a mensagem a transmitir é TROPAS ATACAM HOJE Transcrevemos a mensagem verticalmente de modo a formar um quadrado T A A H R S C O O A A J P T M E Encriptando resulta: TAAHRSCOOAAJPTME CONTO DO VIGÁRIO – À SENHORA PORTEIRA De Gustavo Barosa O nosso trabalho de hoje é‐lhe dedicado a si, simpática porteira de um prédio anónimo numa cidade algures. É uma história, talvez divertida, de um dos cada vez mais vulgares casos de burla. Já lhe aconteceu, por certo, receber na portaria encomendas para um locatário ausente em férias. Um armário, por exemplo. O que faz, normalmente? Se calhar… vai buscar a chave do apartamento do tal senhor, guia os homens encarregados da colocação do armário, abre‐lhes a porta, assiste à descarga do material e, por fim, fecha cuidadosa e profissionalmente a porta, quando saem os funcionários da casa que vendeu a peça de mobília. Atenção… pois! Se faz só isto – não chega. E para lhe provarmos que, efectivamente, deve fazer algo mais, vamos contar‐lhe a tal história que aconteceu a uma colega sua. Certa manhã, a sua colega recebeu a visita de 4 homens que transportavam um armário. Diziam eles que se destinava a casa do Senhor X, do 1º esquerdo, ausente em férias mas que, antes de partir para a praia, tinha encomendado na loja “tal” armário que 28 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO hoje vinham entregar. A porteira fez, exactamente, o que acima descrevemos e regressou a sua casa a tratar do almoço. Por volta do meio da tarde, os mesmos homens e a mesma camioneta voltaram, e com as suas desculpas, comunicaram‐lhe que tinha havido um engano. O armário que tinham trazido para o 1º esquerdo estava trocado. Aliás, via‐se logo que tinha havido um erro, pois ele até contratava com o estilo de decoração da bela casa. Se fazia o favor, voltava a acompanhá‐los, pois precisavam de levar de novo o tal armário que teriam de entregar no mesmo número mas na rua paralela. O do Senhor X viria dentro de dois dias. Ã senhora porteira nem hesitou. Acompanhou “as visitas”, assistiu à recuperação do armário trocado, verificou, cuidadosamente, se tudo estava em ordem, regressou a casa e nem pensou mais no facto. Nem sequer os empregados não voltarem, já que dois dias para o entregar de uma encomenda duram, muitas vezes, dois meses. O pior é que, quando o tal senhor X, do 1º esquerdo, voltou, o prédio andou em bolandas. A sua casa tinha sido assaltada e tinham levado os objectos mais valiosos. Por certo já descobriu como foi, não é verdade? Foi assim mesmo. Dentro do armário ia um 5º ladrão que, durante as poucas horas que permaneceu, calmamente, na habitação deserta, teve tempo de seleccionar e embalar (para não fazerem barulho) os haveres mais caros que, pelas suas dimensões, podia transportar. No regresso, armário, ladrão e valores passaram ao pé da porteira sem que ela desconfiasse do clandestino e do contrabando. E esta? Vá lá a gente confiar nos outros! Por isso, em situação semelhante, não hesite. Peça identificação, confirme junto da casa ou do inquilino, veja notas de encomenda. Em resumo – faça o que puder… mas faça mesmo. Olhe que “eles” estão cada vez mais espertos! 29 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 8 DE MARÇO EFEMÉRIDES John Burke (1922‐2011) – John Frederick Burke nasce em Rye, Sussex, Inglaterra. Escritor e editor, dedica‐se à escrita em 1966. Usa diferentes pseudónimos: J F Burke, Jonathan Burke, Jonathan George, Joanna Jones, Martin Sands, Owen Burke, Robert Miall, Roger Rougiere, Russ Ames e Sara Morris. Nos 3 livros de mistério/detective passados na época vitoriana, que escreve com a mulher, Jean (Williams) Burke, utiliza o pseudónimo Harriet Esmond. Tem uma extensa obra publicada, em especial contos de mistério, de suspense, de terror e de ficção científica. Na sua bibliografia destacam‐se os 31 romances policiários escritos sob John ou Jonathan Burke com o personagem Dr. Casian, um investigador da Época vitoriana. O escritor tem várias obras adaptadas ao cinema e televisão. Leif Silbersky (1938) – Leif Silbersky nasce em Malmö, Skåne, Suécia. É um dos advogados suecos mais conhecidos, em especial por defender casos polémicos que envolvem personalidades famosas. Escreve com Olov Svedelid, uma parceria prolífica que entre 1974 e 2002 publica mais duas dezenas de livros policiários. O romance mais conhecido é The Last Witness editado no Reino Unido em 1979 e com o título original Sista Vittnet (1977). 30 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO CONTO POLICIÁRIO – MORTE NO CAIS De A.M. Breda in XYZ Magazine Naquela noite o cais era tranquilidade e escuridão. Os barcos quase quietos, dormitavam despreocupados. Só lá ao longe, no fim da doca, um candeeiro emanava uma fraca luz de presença. Num certo ponto da doca, três homens de pé, tácitos, olhavam para o mar. – Que raio! – exclamou baixinho um dos homens. – Se ao menos pudéssemos fumar. – Chiu! – interrompeu outro. – Sinto alguém aproximar‐se. Calaram‐se. Lentamente, um vulto ia emergindo da escuridão. Deu mais alguns passos, e parou: – Está aí alguém? – perguntou sussurrando. – Até as gaivotas voam… – responderam do grupo. – Se não lhes cortarem as asas – concluiu o recém‐chegado. – É ele! – concordaram no grupo. – Trazes a mercadoria? – Está no “Boa Esperança”. – Então, vamos ao negócio. Caminharam ao longo do cais. Habituados à escuridão, as feições dos homens e os seus movimentos, tornavam‐se mais reconhecíveis. –Eh!, alto aí, seu canalha! – bradou um do grupo apontando urna arma ao visitante. – Você não é o “Sobe e Desce”. Ele é coxo e você anda correctamente. – E daí? – interrogou com naturalidade o interpelado. – Foi substituído por mim. Não houve tempo para vos avisar. – Não me levas com essa. Conheço todos os elementos da organização, e a tua cara é a primeira vez que a vejo. Pensavas que estavas protegido pela escuridão, não era? – Ora, não sejam loucos. Venham ver… Não acabou a frase. Alguém aproximara‐se pelas costas, e cravou‐lhe um punhal. – Que fazemos com este tipo? – Espera. Está aqui um bote amarrado ao cais. Deitamo‐lo lá dentro e largamos o bote. Como a maré está a vazar, levá‐lo‐á para o mar alto. Se alguém o encontrar nunca o relacionará com este local. – Apoiado. Mãos à obra. – E a droga? – Ainda acreditas nisso? Era urna cilada para nos encurralar no pesqueiro. E afastaram‐se rápidos. Caminho cauteloso pela doca. Tudo é silêncio e escuridão. Apenas o soluçar das águas quebradas se fazem ouvir na noite. Avança alguns metros e… silêncio. Um silêncio que começa a causar‐me preocupação. 31 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Estou agora no local combinado. De novo, silêncio, água e os espectros de alguns barcos pesqueiros ao longe, balançando docemente, como encantados por não haver faina nessa noite. Não. Não era só silêncio que eu esperava encontrar. Isto é presságio de que algo correu mal. Sim, a esta hora, três da manhã, com um silêncio perturbador, só duas coisa poderiam ter acontecido: ou a operação ainda não se realizou, mas neste caso deveria encontrar‐se aqui o meu colega de ofício, o que não acontece, ou então, a operação efectuou‐se mais cedo e ele foi descoberto. Se isto aconteceu, nem quero acreditar. Estava tudo planeado até ao mais ínfimo pormenor. De repente, lá vem o último telex: o intermediário é coxo. Não, não acredito nesse desfecho. Continuo andando. Agora sinto a água mais agitada, num dos lados da doca. Curioso, abeiro‐me da margem do cais. Está escuro. Num gesto rápido, acendo a lanterna. Surpresa!! Um bote dançava desgovernado. A corda que servira de amarra, mergulhava verticalmente na água. Não perco tempo. Procuro uma vara com a extremidade em foice, própria para puxar embarcações. Sei que costuma haver algumas nestes sítios. Puxo o bote de encontro ao cais. Salto para dentro e tento puxar a corda que está presa ao fundo. Acendo novamente a lanterna. Um fogacho de luz ilumina o interior do bote, ao mesmo tempo que solto uma exclamação. Reconheço a letra do meu colega. Uma das tábuas dizia o seguinte: “os traficantes são cadastrados. Os códigos são: 33A, 4B1 e Z24E. Intuitivamente puxo com força a corda, que vai cedendo a pouco e pouco. Tristemente, já adivinho o que vou encontrar: o corpo do meu colega. É verdade! “Malditos”, pensei. Descobri o golpe nas costas. Compreendi tudo. O meu amigo sentindo a morte aproximar‐se, e sabendo que o bote se afastava devido à baixa‐mar, atou à corda uma barra de chumbo que estava no bote, e utilizando a mesma corda, atou‐a de seguida à perna, e atirou‐se à água. Servira de âncora. O CRIME NA LITERATURA POLICIÁRIA – CIÚME QUE MATA Texto de Rosa do Adro de Manuel Maria Rodrigues Por volta da meia‐noite… – Mas, meu amigo, isto não são horas de ir ver doentes, além disso, o filho do nosso amo está, talvez, a dormir, e ir agora acordá‐lo… – Não será necessário esse trabalho – exclamou Fernando, aparecendo subitamente junto do grupo. 32 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO –É de algum doente que se trata, não é verdade? – É sim, meu bom senhor – respondeu o velho, curvando‐se mais – a minha pobre mulher foi à pouco atacada por um infeliz acidente ou coisa que o valha, e jaz sem sentidos há já bastante tempo. Fui procurar o Dr. Resende, mas ele negou‐se a ir vê‐la. Como sabia que o senhor tinha vindo há dias de concluir os seus estudos, lembrei‐me de recorrer ao seu bom coração e é o que venho fazer… Oh meu senhor, por que é, minha mulher morre à míngua de socorro. … O moço doutor montou e picou a égua, que desfilou a trote… Enquanto Fernando caminhava por aquelas veredas, retrocedamos um pouco e vejamos o destino que tomou o velho logo que daquele se despediu. Depois de ter caminhado alguns passos vagarosos, afastando‐se da herdade, parou, e, olhando para trás. como para se certificar se alguém o seguia, endireitou‐se, deixando ver uma figura de formas vigorosas. Traçou o capote debaixo dos braços, como para melhor poder caminhar, e, dirigindo‐se pelo mesmo itinerário que tinha marcado a Fernando, com passos mais apressados, exclamou de si para consigo: – Desta me saí eu bem; agora vejamos o resto. Passou a azenha, desceu a encosta e, no meio da bouça, parou para responder com um assobio a outro que lhe chegara aos ouvidos. Afastou‐se depois do caminho, deitou à direita e parou próximo de um vulto que estava encostado a um pinheiro bravo. – Então? – perguntou o outro. – Tudo às mil maravilhas: tanto ele como os criados engoliram a pílula como um torrão de açúcar. … Os dois avançaram precipitadamente para mais próximo do caminho que cortava a bouça e encobriram‐se um tronco de um velho carvalho. Passados momentos, distinguiu‐se um ponto negro caminhando vagarosamente. Era Fernando que, embuçado na sua capa de oleado e montado na égua, atravessava pausadamente e à vontade do animal, a embrenhada bouça. A poucos passos do lugar em que estavam embuçados, a égua estacou, amedrontada pela detonação de um tiro. – Ah! seus canalhas! Eu vou já ensiná‐los a fazer melhores pontarias… Ainda bem não tinha terminado estas frases, quando um segundo tiro se fez ouvir, indo a bala ferir‐lhe o ombro direito… Passados momentos, os dois vultos acercaram‐se do corpo que jazia inanimado, e um deles baixou‐se a ouvir‐lhe o bater do coração. – Se ainda não está morto – exclamou ele –pouco faltará para isso; a bala creio que lhe foi direita ao coração; podes gabar‐te da boa pontaria… 33 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 9 DE MARÇO EFEMÉRIDES Frank Arnau (1894‐1976) – Heinrich Karl Schmitt nasce Viena, Áustria. Filho de pais suíços inicia a carreira literária em 1912 como jornalista especializado em assuntos criminais e judiciários. Em 1920 adquire a cidadania alemã e em 1934 vê‐se privado dela devido à sua oposição firme ao regime nacional‐socialista. Após a tomada do poder pelos nazis emigra para Suíça, França, Inglaterra, América Latina e Brasil. Regressa à Alemanha em 1960 e fixa‐se Lugano na Suiça em 1970. Utiliza o pseudónimo literário Frank Arnau. Além de obras consagradas à criminologia, escreve duas dezenas de romances policiários, passados muitas vezes em locais exóticos – Brasil, Caraíbas, Tanger. O primeiro livro Der Geschelossene Ring é escrito em 1933 e é considerado uma obra notável com várias adaptações ao cinema. No período pós guerra, cria duas séries: David Brewer, um inspector chefe de Nova Iorque e Walter Reyder, um comissário de Hamburgo que protagoniza três livros e aparece ela primeira vez em Der Perfekte Mord (1960) – O crime perfeito. Frank Arnau tem alguns livros editados no Brasil. William C. Gault (1910‐1995) – William Campbell Gault nasce no Milwaukee, Wisconsin, EUA. É considerado um dos melhores autores de ficção de desporto para jovens. No policiário escreve cerca de 300short stories e romances. Cria a série Joe Puma, 34 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO um detective privado, que surge pela primeira vez em Shakedown (1953), protagoniza mais 6 romances e vários contos e a série Brock Callahan, um ex jogador de futebol americano que se torna detective privado na Califórnia do Sul. Os detectives privados Sandy McKane de Honolulu, Pierre Apoyan de origem arménia e Mortimer Jones de Los Angeles são alguns dos mais conhecidos personagens das short stories de Gault, que usa também os pseudónimos Roney Scott e Will Duke. William Gault é galardoado em 1952 com o Edgar Award para Best First Novel com Don't Cry for Me. Entre nós a Editorial Minerva edita, em 1963, County Kill (1962), O Mistério de San Valdesto, o Nº 132 da Colecção Xis. Edward Grierson (1914‐1975) – Edward Dobbyn Grierson nasce em Northumberland, Inglaterra. Advogado, escreve vários livros, entre os quais os seguintes policiários: Reputation For a Song (1952), The Second Man (1956), The Massingham Affair (1962) e A Crime of One's Own (1967). Reputation For a Song é um clássico da narrativa invertida (ver: Arquitectura e Contexto da Narrativa Policiária; 14 de Janeiro) é adaptado ao cinema em 1970 numa co‐produção anglo americana com o título My Lover My Son. O livro The Second Man recebe em 1956 o Gold Dagger, prémio atribuído anualmente pela britânica Crime Writers Association ao melhor romance. Edward Grierson usa os pseudónimos Brian Crowther e John P. Peterson e é considerado por muitos analistas um autor subestimado. Mickey Spillane (1918‐2006) – Frank Morrison Spillane nasce em Brooklin, New York City, EUA. Começa a sua carreira de escritor em 1935 nos famosos comics americanos. É um autor que com outros escritores, como Dashiell Hammett e Chandler marca a história da literatura policiária ao introduzir um novo estereótipo de investigador/detective que desencadeia o chamado policial negro. O seu primeiro romance policiário I, the Jury (1947) apresenta Mike Hammer, que protagoniza mais 16 romances; cria ainda a série Tiger Mann, com 4 títulos. Criticado por muitos, escreve um total de 30 livros policiários e 35 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO estima‐se que as vendas internacionais atinjam mais de 225 milhões de cópias. Em Portugal a Editora Livros do Brasil tem publicado 23 livros na Colecção Vampiro e reúne em 6 volumes na Colecção Obras Escolhidas de Mickey Spillane 11 títulos do autor. FICHA CRIMINAL – CRIME NUNCA DESVENDADO Têm sido vários os autores que se têm tentado por casos conhecidos como o crime num quarto fechado e, qualquer dia, quando tivermos mais espaço e tempo, daremos uma pequena súmula… Para já, quase todos os autores mais conhecidos o tentaram — e os menos conhecidos também, visto que o caso acorrenta sempre os bons detectives! Entretanto, muitas vezes a realidade suplanta a fantasia e o poder criativo do escritor. E aparece‐nos um crime perfeito – o tal de o crime num quarto fechado. E se não, leiam o que o grande repórter do crime da cidade de Nova Iorque – Bruce Dobbs – escrevia a esse propósito em Março de 1949: Dizem que não existe o crime perfeito. Pode ser que não. No entanto… lsadore Fink, um homem de pouco mais de 30 anos, era uma espécie de ermitão, na rua 132, em New York, onde em 1929, explorava uma lavandaria. O estabelecimento, que lhe servia também de residência, estava localizado numa grande divisão, num andar térreo perto da Sétima Avenida. Fink, que era russo e viera de sua pátria poucos anos antes, parecia viver num temor mortal de ser assassinado. O aposento tinha três janelas altas e uma porta. As janelas e a porta permaneciam sempre fechadas, mesmo nos dias quentíssimos de Julho e Agosto. Nunca permitiu que alguém pusesse os pés na lavandaria, recebendo ou entregando a roupa na porta, que abria sempre que batiam. Certa noite, em Fevereiro de 1929, uma senhora idosa, que morava atrás da lavandaria, ouviu através da parede, três tiros, um grito e o ruído dum corpo caindo ao solo. Quando a polícia chegou, poucos minutos depois, não pode penetrar na lavandaria. A porta e as janelas estavam fechadas, por dentro. Não somente isto, como também as janelas tinham barras de ferro, com a separação de apenas 10 centímetros, o que tornava impossível a entrada por qualquer uma delas. Um agente da polícia subiu nos ombros de outro, alcançando a bandeira, no alto da porta, o único meio aparente de entrada. Encontrava‐se, também, fechada por dentro. O homem forçou‐a, conseguindo abri‐la. Mas não permitia a passagem do corpo dum adulto. Encontrou‐se um menino de oito anos de idade, que foi introduzido pela abertura. Ouviram‐no mexer numa corrente, do lado de dentro. A porta, não somente fora fechada à chave desse lado, como tinha, ainda, um cadeado. Quando o menino, finalmente, conseguiu abrir a porta, a polícia encontrou o corpo de Isadore Fink, na parte traseira do aposento. Recebera três tiros, dois no coração e um na mão. Todos os ferimentos apresentavam queimaduras de pólvora, o que indicava que 36 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO os tiros haviam sido disparados a pequena distância. Os médicos foram unânimes em afirmar que Fink morrera instantaneamente. A ausência da arma afastava a ideia de suicídio. A lavandaria tinha o comprimento de 10 metros, e o corpo foi encontrado a nove metros da entrada. Parecia impossível ter Fink caminhado tão longe, depois de receber dois tiros no coração, dado o caso de terem sido estes disparados ao abrir a porta para o assassino. E, ainda por cima, ter parado, não somente para fechá‐la à chave, como para lhe colocar o cadeado. Por outro lado, o assassino não poderia ter atirado em Fink, onde este foi encontrado e a seguir deixado a lavandaria, fechando a porta pelo lado de dentro, uma vez que se encontrava do lado de fora. E não poderia ter saído por qualquer das janelas, que eram protegidas por barras de ferro. A bandeira da porta, como já foi notado, não permitia a passagem dum adulto. Fink sangrara profusamente. No entanto, em nenhum lugar havia, sequer, uma gota de sangue, excepto onde caíra. O assassínio de lsadore Fink nunca foi solucionado. O delegado Edward O. Mulrooney, em cuja gestão foi cometido o crime, considera‐o o caso mais difícil da sua longa carreira. – A questão primordial – dizia ele – não era saber quem matou Fink, mas “como” foi ele morto! Não há dúvida que esta é verdadeiramente uma história de “crime num quarto fechado” que não passou pelo poder criativo do Grande Mestre JOHN DICKSON CARR! 37 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 10 DE MARÇO EFEMÉRIDES Sam Ross (1912‐1998) – Sam William Rosen nasce em Kiev, Russia. Emigra para os EUA onde se torna jornalista. Escreve episódios para conhecidas séries de televisão como The FBI, Mannix e Naked City. Publica cerca de vinte livros entre 1947 e 1973. Destaque para He Ran All the Way (1947), Someday, Boy (1948), The Sidewalks Are Free (1950), The Tight Corner (1956), The Hustlers (1956), Ready For The Tiger (1964), Hang‐Up (1968), The Fortune Machine (1970), The Golden Box (1971) e Solomon's Palace (1973). Boris Vian (1920‐1959) – Boris Vian nasce em em Ville d’Avray, França. Escritor, poeta, ensaísta, tradutor, cenógrafo, músico, compositor actor… escreve romances, ópera, peças de teatro num total de 40 livros. Em 1944‐45 publica textos, sob os pseudónimos Bison Ravi, um anagrama de Boris Vian, e Hugo Hachebuisson. No entanto o seu pseudónimo mais conhecido é Vernon Sullivan com o qual escreve romances policiários. Boris Vian é tradutor de escritores clássicos do policial negro americano – Raymond Chandler, Dashiell Hammet – e de acordo com o seu editor decide apresentar‐
se como tradutor do autor americano Vernon Sullivan, um escritor inexistente, que é ele próprio. O primeiro livro J'Irai Cracher Sur Vos Tombes (1946) é um sucesso de vendas, mas acaba por ser proibido por ser considerado demasiado violento; mais tarde é 38 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO adaptado ao cinema. Seguem‐se Les Morts Ont Tous La Même Peau (1947), Et On Tuera Tous Les Affreux (1948) e Elles Se Rendent Pas Compte (1950). Estes livros estão editados em Portugal; o primeiro tem o título Irei Cuspir‐vos Nos Túmulos (1973), Nº 28 Colecção Livros de Bolso Clube do Crime, Europa‐América. Os três seguintes são publicados pela Regra do Jogo, na Colecção Série Negra, respectivamente com os Nº 15, 10 e 13 e com os títulos Os Mortos Têm Todos a Mesma Pele, Morte aos Feios e Elas Não Dão Por Ela. Mais recentemente a Editora Relógio d'Água também tem vindo a publicar alguns livros nas Obras Escolhidas de Boris Vian. Åke Edwardson (1953) – Nasce em Eksjö, Småland, Suécia. Pertence à nova geração de escritores policiários escandinavos. Jornalista, assessor de imprensa nas Nações Unidas publica o seu primeiro romance em 1995 Till Allt Som Varit Dött (Para todos os que morreram em tradução literal). Tem alguns livros traduzidos para inglês: Death Angels (2009) – Dans med en angel (1997), The Shadow Woman (2010) – Rop FråN LåNgt AvståNd (1998), Sun And Shadow (2005) – Sol Och Skugga (1999), Never End (2006) – LåT Det Aldrig Ta Slut (2000) e Frozen Tracks (2007) – Himlen ÄR En Plats På Jorden (2001). Os seus romances são protagonizados pelo Inspector Erik Winter, o Inspector Chefe mais jovem da Suécia. Åke Edwardson é por três vezes o vencedor do prémio para melhor romance atribuído pela Swedish Crime Writers' Academy. ENIGMA POLICIÁRIO Estamos no fim‐de‐semana, um dia de descanso se for esse o caso. Apresentamos um enigma policiário, da autoria de Jartur Mamede (João Artur Mamede) confrade radicado no Porto que se tem destacado na problemática policiária, como solucionista, produtor e contista de relevante mérito, seccionista e actualmente o melhor e maior coleccionador de secções policiárias, empenhado em conseguir instalar o Arquivo 39 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Nacional de Problemística Policiária. Alô, Jartur, força! O MISTÉRIO DAS PANTUFAS O telefone tocou no gabinete particular de Marcos Dias, e eu atendi. Do outro lado do fio uma voz trémula perguntou pelo jovem detective. Como este estivesse a meu lado, passei‐lhe o auscultador. A conversa foi breve, e a avaliar pelas expressões faciais do meu amigo algo de extraordinário se passara. Quando desligou, Marcos agarrou‐me por um braço e, sem qualquer explicação, arrastou‐me para a saída. A escada foi galgada num ápice, e entrámos no Mercedes de Marcos, estacionado junto do edifício. O carro arrancou velozmente e fomos deixando para trás ruas e avenidas. Sem atender às leis da prudência, Marcos conduzia como um doido, não atendendo os sinais do tráfego e assustando os peões, dos quais por sorte se desviava. Eu fechava os olhos amiúde e começava a adivinhar tragédia quando ele, na realidade, pareceu ter chegado. Embraiagem e travão foram pisados simultaneamente, e com um golpe de volante que envergonharia Carraciola, o meu amigo tentou estacar o veículo para não atropelar o pobre homem. Conseguiu‐o milagrosamente, tirando uma impecável tangente ao indivíduo, que mal se apercebera do perigo. O carro galgou o passeio e iria amachucar‐se na parede de um edifício se o pé de Marcos não continuasse pisando o freio. O homem que por pouco não fora vítima do excesso de velocidade de Marcos aproximou‐se do carro e esboçou um sorriso amarelo ao notar a nossa atrapalhação. Em boa verdade, nós estávamos mais desconcertados do que ele. O homem balbuciou algo que não lográmos perceber e afastou‐se, gingando o corpo sobre as pernas, uma das quais era mais curta, apesar da suplementar altura de cortiça que lhe guarnecia o sapato. O funcionamento dos nossos corações normalizou‐se, e o sangue, que por momentos desaparecera; voltou‐
nos o rosto. O susto passara para dar lugar a uma tremenda vontade de rir. E gargalhámos ruidosamente, enquanto Marcos dirigia o carro pela via. O término da viagem aproximava‐se e Marcos foi reduzindo gradualmente a marcha, até imobilizar o veículo junto dum luxuoso edifício. À porta esperava‐nos uma mulher idosa. Entrámos no elevador e nele ascendemos ao quarto andar. A mulher fez‐nos atravessar um comprido e estreito corredor e deteve‐se junto de uma porta entreaberta, pela abertura da qual se nos oferecia à vista um quadro pouco agradável: deitado na cama estava um homem com o pescoço ferido e coberto de sangue já coagulado, que também manchara as roupas do leito. Imediatamente nos atirámos ao trabalho. A nossa primeira preocupação foi procurar no aposento qualquer indício revelador, o que não conseguimos. Seguiram‐se as investigações da praxe. Elevador e escada foram cuidadosamente examinados, e desse estudo resultou o nosso primeiro êxito. Em cada degrau da escada, estavam, lado a lado, as marcas de qualquer género de calçado, que logo deduzimos tratar‐se de pantufas de quarto. Porém, aquelas marcas não estavam 40 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO impressas em todos os degraus da escada, porquanto na véspera a mulher a dias somente encerara o lance que unia o terceiro andar ao quarto, e neste precisamente é que as pegadas eram visíveis. Este era um pormenor valiosíssimo, mas deixou de o ser quando soubemos que, dias antes, um vendedor ambulante havia fornecido daquelas pantufas a todos os inquilinos do prédio. No entanto ficámos sabendo que o culpado residia ali, ou então se servira das pantufas de qualquer dos inquilinos. D. Rosa, assim se chamava a mulher que nos acompanhava. Informou‐nos que a porta principal fora, de manhã, encontrada aberta, e só os inquilinos possuíam chaves. Pelas janelas, o acesso só seria possível no primeiro piso. Todavia, aí as janelas não tinham sido violadas. Também de manhã, o ascensor estacionava no rés‐do‐chão, o que vinha provar ter sido utilizado depois das duas da madrugada, hora a que voltara a energia eléctrica, que a central cortada às vinte e três horas do dia anterior. Nada mais soubemos que pudesse conduzir‐
nos à decifração do enigma, e então procurámos averiguar quais os inquilinos que teriam interesse na morte do milionário Casqueira. Eram seis os suspeitos. Naquela mesma tarde, eu e Marcos fomos interrogá‐los. A primeira porta em que batemos foi‐nos franqueada por Benilde, uma jovem modelo, que em tempos fora noiva de Casqueira. Os aposentos da rapariga situavam‐se no terceiro andar, e foi aí que a interrogámos. Disse‐
nos que se havia recolhido cedo, e que não mais saíra do quarto. No mesmo piso interrogámos os irmãos Sousas, que nos afirmaram ter estado a trabalhar até ao momento em que faltara a luz, pelo que se haviam deitado. Em seguida, descemos ao andar de baixo, e aí falámos com o Aníbal, que nos disse ter recolhido a casa cerca das vinte e três horas, e logo se deitara, tendo sido “como averiguámos", o último a servir‐se do elevador antes de faltar a corrente. Interrogámos, depois, o Sr. Saul, aquele que quase íamos atropelando horas antes. Garantiu‐nos que se tinha deitado logo após o jantar. No primeiro piso vivia também o Afonso, que, segundo nos disse, recolhera a casa já depois de a luz ter faltado, pelo que subira as escadas às escuras, como não podia deixar de ser. D. Rosa dissera‐nos que acabara de encerrar aquele lance pouco antes das vinte e três horas, e que se preparava para prosseguir quando faltou a energia. Ouvimos ainda as declarações de outros inquilinos não suspeitos, embora nada mais necessitássemos saber para que atinássemos com a decifração do caso. Utilizando‐se apenas dos elementos colhidos, Marcos Dias logrou desvendar o mistério que envolvia aquela morte. Pouco depois, o Mercedes voava pela estrada e atravessámos a povoação a toda a brida. Recomendei a Marcos um pouco de calma, mas ele não me quis ouvir. Súbito, uma derrapagem e uma lavagem brusca quase me fizeram levantar do banco. Desta feita não fora um despreocupado peão a causa de tal… nem tão pouco uma miragem feminina… – “Há leitão” – dizia o letreiro, encimado por um ramo de louro… Quem foi o culpado? 41 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 11 DE MARÇO EFEMÉRIDES Elizabeth Linington (1921‐1988) – Barbara Elizabeth Linington nasce em Aurora, Illinois, EUA. É considerada a primeira mulher a escrever romances policiários do género procedimento policial que retrata diversas vertentes da acção das forças policiais: investigação, recolha de provas, interrogatórios, análise forense, etc como sucede, por exemplo, nos livros de Ed McBain ou George Simenon. Elizabeth Linington publica o seu primeiro livro em 1955, é uma escritora que utiliza diferentes pseudónimos. Como Elizabeth Linington escreve 16 livros; como Anne Blaisdell cria a série Ivor Maddox e escreve 12 livros; sob o pseudónimo Lesley Egan cria as séries Vic Varallo (14 títulos) e Jesse Falkenstein (13 títulos); sob o pseudónimo Dell Shannon cria a série Lieutenant Luis Mendoza, que protagoniza perto de 40 livros. Esta autora tem diversas nomeações para o Edgar Awards: como Dell Shannon para Best First Novel em 1961 com Case Pending, que apresenta o Lieutenant Luis Mendoza e em 1963 Knave of Hearts, para Best Novel, também com Mendoza; como Anne Blaisdell é nomeada em 1962 para Best Novel com Nightmare. 42 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO NARRATIVA DE TERROR – SEMPRE PRESENTE Ontem à noite à saída do cinema encontrai o Zé Maria, amigo de velha data. Olhamo‐nos sem palavras, porque se falássemos seria para lembrar algo de estranho e sobre o qual prometemos guardar segredo. Na verdade, se o fizéssemos, algumas pessoas teriam rido, outras pediriam detalhes ou sugeririam hipóteses para explicar o que para nós não tem explicação. Ao conhecer o Zé em Botafogo, estávamos na mesma escola, eu com 18 anos, ele com 19. Um dia perguntou‐me se gostava de acampar. Nunca acampara mas respondi afirmativamente para não parecer ignorante. Foi no acampamento que conheci Rosa, sua irmã e também Raul, Ivete, Julião, Ari e Maura que estavam presentes. Acampar era a paixão de todos eles, a que aderi também, não sei se por gosto sincero ou porque era o meio mais fácil de ficar perto de Rosa. Sou tímido, nunca tive jeito de dizer alguma coisa que pudesse dar a impressão de que estava apaixonado. Sei… Dizem que as mulheres sempre percebem. Mas juro que a Rosa nunca me disse coisa alguma, nem fez qualquer brincadeira que deixasse os outros perceberem que tinha consciência do meu interesse por ela. A não ser o de simples amizade. Tornamos muito amigos. Eu, ela, o irmão e todo o resto da turma. Estávamos sempre presentes em toda parte: cinema, festas, praia e, principalmente, nos acampamentos das férias, quando a aventura estava em descobrir um lugar ainda selvagem de mar ou de montanha, juntar a barraca e os mantimentos e andarmos para lá. Para “desvendar a natureza”, como dizia Julião, poeta da turma. Acampámos em tanto lugar diferente que até perdi a conta. Só me como aquele, numa praia deserta, perto de Parati, quando fazia uma lua cheia, daquelas enormes, e o Ari havia levado o violão. Houve muitos outros momentos assim, depois… mas o que mais lembro ainda é o rosto macio e claro de Rosa, iluminado por aquela lua enorme… Durou quase três anos aquela vida feliz. Três anos pode ser muito pouco, para mim foi uma vida inteira. Nunca mais fui o mesmo. Quando recebi a notícia do acidente estava em Brasília. Poderia ter voltado ao Rio no mesmo dia, mas preferir ficar. Queria que minha última lembrança da Rosa fosse cheia de vida, assim como ela estava quando a vi pela última vez, parecia rir com o corpo inteiro, parecia dançar quando fazia qualquer movimento, nunca conheci ninguém tão cheio de vida… queria conservá‐la assim, na minha lembrança. Uma semana depois, voltei. Procurei o pessoal, aos poucos fomos vencendo a fossa. Logo começaram as férias de fim de ano e Zé Maria insistiu para que a gente acampasse como antes. Nada poderia ser como antes, mas ele recusava aceitar. Os outros também. Havíamos planejado acampar em Itatiaia. Zé Maria estudava fotografia, havia comprado uma máquina nova, estava todo animado. Concordei em ir, mas só para não estragar a alegria da turma. Foi horrível. O tempo estava lindo, os riachos estavam transparentes, as montanhas ensolaradas. Mas o tempo todo a gente lembrava a ausência de Rosa. Bastava alguém rir 43 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO para todos se lembrarem dela. “Onde houver riso a Rosa estará presente”, disse Julião, na volta. Acho que essa frase foi a melhor poesia que ele já conseguiu fazer. Três dias depois, Zé Maria apareceu lá em casa. Estava pálido como um defunto. Não falou nada. Tirou um monte de fotos de um envelope e espalhou sobre a mesa. Fotos do nosso acampamento, em Itatiaia. É, a Rosa estava em todas. Rindo, brincando, dançando, só ela parecia estar viva, em contraste com todas aquelas caras tristes e desanimadas. Vê‐la foi um choque tremendo. Chorei enquanto rasgava furiosamente as fotografias. Rosa nunca se fora, estava sempre presente no meu coração. Poderia haver outra explicação? FICÇÃO CIENTÍFICA – RIFIFI De Fernando Saldanha Elevou a voz ao céu e pôs‐se a cantar enlevadamente. As estrofes eram belas e comoventes – a voz maviosa e bem modulada. Cantava, cantava – cantava com amor a sua amada. Talvez Rififi fosse belo, tolerante, firme, de bom e doce carácter. Talvez no seu mundo Rififi fosse um chefe na nobre acepção da palavra. E talvez não. Talvez fosse um ser comum. Quem era Rififi? Quem era a amada de Rififi? A quem era que Rififi tão concentradamente cantava? E como cantava ele? Seria formosa a tema amada de Rififi? Que encantamento o prendia? Talvez Rififi não soubesse. Era noite – a noite de muitas luas de Andrómeda. E Rififi cantava, cantava – cantava a sua amada. As estrofes eram belas – a voz maviosa. A quem era que Rififi cantava? Cantava a sua amada. Ninguém lhe respondia. Rififi desesperava. E cantava, cantava — cantava com amor a sua amada. Seria coerente cantar assim? A quem cantava Rififi? Quem era a sua amada? Subitamente o belo canto de Rififi calou‐se. Pusera‐se a lua no céu do seu mundo. Era a amada de Rififi. Mas Rififi quem era? Era belo, forte, firme, de bom carácter. Mas não – Rififi não era humanóide. Rififi era um esquilo. Era belo, forte, firme, de bom carácter. Só que naquele mundo de Andrómeda todas as espécies eram suas iguais. 44 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Deus Pai lhe dera voz — doce, maviosa, bem modulada. Naquela madrugada de Primavera no seu mundo ele pedia ao Pai uma lei protectora das espécies. 45 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 12 DE MARÇO EFEMÉRIDES Gordon Gordon (1906‐2002) – Gordon Gordon nasce em Anderson, Indiana, EUA. É repórter, editor, publicista em Hollywood e agente de contra espionagem do FBI durante a 2ª guerra mundial. Em conjunto com a mulher, Mildred Nixon Gordon (1905‐1979), forma uma dupla – The Gordons que escreve duas dezenas de romances de suspense e argumentos para filmes, com os personagens Gail e Mitch, D.C. Randall (The Cat) e o agente do FBI John Ripley. As obras de The Gordons recebem vários prémios e algumas são adaptadas ao cinema. O autor torna a casar em 1980 com Mary Dorr (1918‐2004) e juntos escrevem Race For The Golden Tide (1983), The Hong Kong Affair (1998) e It Could Happen (2000) protagonizados ainda por John Ripley. Carl Hiaasen (1953) – Nasce em Plantation, Florida, EUA. Jornalista de profissão, no início da década de 80, começa a escrever thrillers em parceria com William D. Montalbano: Powder Burn (1981), Trap Line (1982) e Death in China (1982), todos da série Black Lizard. O seu primeiro romance a solo é Turist Season (1986). Publica mais 14 romances de mistério e thrillers, oito dos quais são bestsellers. O autor, que também escreve livros infantis, está traduzido em 34 línguas. Um dos seus livros mais conhecidos é Strip Tease (1993) que foi adaptado ao cinema em 1996 com a direcção de Andrew 46 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Bergman e a actriz Demi Moore. FICÇÃO CIENTÍFICA BIBLIOTECA ESSENCIAL DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA (5) Volume 8 – Last And First Men: A Story Of The Near And Far Future (1930) de Olaf Stapledon William Olaf Stapedon (1886 ‐ 1950) autor britânico, foi de mestre de escola a leitor de filosofia, psicologia, literatura de história da indústria na Universidade de Liverpool. Foi uma das mais profundas e entranhas imaginações da época, não menos entranho e profundo um criador de mitos ímpar. Em Last And First Men estabelece um paralelo entre a formação dos planetas, dois mil milhões de anos antes e os novos dois mil milhões futuros em que o homem desaparecera, transformando‐se dezoito vezes, incluindo o aspecto que hoje apresenta para se converter num ser de amplos poderes cerebrais. Neste ponto, a morte perde todo o drama individual. É absolutamente inimaginável a influência deste livro sobre os autores posteriores. Volume 9 – Brave New World (1932) de Aldous Huxley Aldous Huxley (1894‐1963) escritor inglês que, no conjunto da sua produção, se situa entre os mais interessantes da literatura contemporânea no que tem de meditação filosófica e de intento de investigar e eliminar a crise espiritual da época Brave New World – Admirável Mundo Novo é um relato de antecipação, da classe das anti‐utopias, condenando o materialismo da ciência como uma ameaça para os valores humanos. A acção desenrola‐se no século VI DF (depois de Ford), onde o Estado tecnológico condiciona o comportamento individual desde a geração, por engenharia genética ao tratamento do feto, para fins distintos futuros. A vida processa‐se à base de drogas, 47 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO diversões, isenta de sexo, feliz, com excepções evidentemente. O livro trata de uma delas. Na mesma linha: Brave New World Revised, Island, After Many a Summer. Ficha Técnica Admirável Mundo Novo Autor: Aldous Huxley Ano da Reedição: 2007 Editora: Livros do Brasil Colecção: Dois Mundos Páginas: 260 ISBN: 9789723828184 Volume 10 – Triplanetary (1934) de E. E. Smith. Triplanetary começou a ser publicada no Astounding Science Fiction. É o primeiro livro da série dos Lensman, portadores da jóia de Arísia, uma arma fabulosa que permite aos terrenos tomar parte activa na luta que desde o principio dos tempos opõe Arísia a Eddore. A Triplanetary seguem‐se: First Lensman, Galtic Patrol, Gracy Lensman, Second Stage Lensman, Children Of The Lens e Manters Of The Wortex. 48 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Ficha Técnica Triplanetária Autor: E. E. "Doc" Smith Ano da Edição: 1979 Editora: Livros do Brasil Colecção: Argonauta, Nº259 Páginas: 260 ISBN: 9789723828184 Volume 11 – The Legion Of The Space (1934) de Jack Williamson Jack Williamson (1908‐2006) cujo verdadeiro nome completo é Jack Stewart Williamson, autor norte‐americano de Ficção Científica, professor de Inglês, é um dos mais perfeitos cultivadores do género Space Opera, entre todos os que iniciaram a sua carreira nas revistas populares norte‐americanas, tendo sido distinguido com o Grand Master Nebula Award e o Science Fiction Writers of America. Tem uma obra vasta, da qual é de realçar: The Legion Of The Space, The Cometeers e One Against The Legion. Com mais de cinquenta anos ao sobre a sua primeira publicação, a presente obra mantém uma actualidade surpreendente. Uma raça extraterrestre consegue raptar uma jovem terrena, única possuidora de um segredo de uma arma fabulosa que pode ser utilizada contra a Terra até a sua completa aniquilação. Uma missão da Legião do Espaço capitaneada pelo jovem cadete John Star e outros três companheiros, tenta encontrar e 49 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO resgatar a jovem das garras dos captores, tarefa nada fácil que os leva a percorrer uma multidão de mundos. 50 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 13 DE MARÇO EFEMÉRIDES Bill S Ballinger (1912‐1980) – William Sanborn Ballinger nasce em Oskaloosa, Iowa EUA. Consultor de rádio e televisão, argumentista, escritor é considerado um autor com uma linguagem e narrativas únicas. Escreve 160 peças para televisão: The Mice, Outer Limits, para as séries Ironside, I Spy, Mickey Spillane's, Mike Hammer, etc. Escreve ainda 27 romances, 2 com o personagem Barr Breed, um investigador privado de Chicago e 5 com o agente Joaquin Hawks. Bill S Ballinger usa os pseudónimos B. S. Sanborn e Frederick Fryer. O seu livro de 1950 The Deadlier Sex, também editado com o título Portrait In Smoke recebe o prémio Les Grands Maîtres Du Roman Policier; The Longest Second (1958) é galardoado com Edgar Allan Poe e Ballinger é premiado ainda com um segundo Edgar em 1961 pelo seu trabalho para a televisão. O escritor tem vários livros publicados em Portugal. NARRATIVA POLICIÁRIA – COM UM POUCO DE SORTE De Severina Fortes A jovem jazia nua, sobre a cama desfeita. Deitada de costas, vista da entrada do quarto, dir‐se‐ia adormecida no conforto do 51 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO aquecimento ligado. Poderia, até, julgar‐se que respirava pausadamente – o rosto delicado caído de lado sobre o almofadão. Não era verdade. Estava morta, tão morta corno fora abandonada horas atrás. Depois de breve contemplação, o seu assassino entrou devagar no compartimento, ainda iluminado, do que faria se quisesse evitar despeitá‐la; embora já nada a conseguisse acordar. Foi‐se aproximando da cama desejoso que a jovem estivesse viva, que a anormalidade que recordava não passasse de pesadelo. A evidente quietude da morta retirou‐lhe qualquer ilusão. E só então, verdadeiramente temeu as consequências! “Afinal, porque a matara?”, pensava em desespero, “Porquê?”. Não sabia. Após o crime refugiara‐se no escritório da sua residência, ia eufórico, empolgado pelo feito inesperado; assim como estaria se acabasse de vencer um inimigo no campo de batalha. Todavia à medida que se ia acalmando (e moderando, em resultado da chamada telefónica de negócios a que fora preciso atender) a euforia abrandara e dera realce à sensação atávica do prazer de matar em liberdade – a defrontar; afoita, o condicionalismo relativo de toda a vida. Logo o instinto de defesa, no intuito de lhe fornecer o escape a uma situação sem controlo imediato – que no fundo o horrorizava – tornara‐o confuso e duvidoso. Já não se queria acreditar, não se vendo a roubar a existência a quem quer que fosse. E porquê a ela? Por isso voltara ao apartamento – apesar do risco – a fim de se certificar; e, sendo verdade o que agora recusava aceitar, tentaria descobrir o que o arrastara a tamanha loucura. Quando chegara à capital, na véspera, soube pela empregada doméstica que a esposa se encontrava era visita na casa dos pais, nos arredores, só viria no dia seguinte. Tinha jantado antes de entrar em casa. Ainda se encerrara no escritório, mas o cansaço não lhe dera paciência para se entregar aos assuntos pendentes. Aguardava uma chamada telefónica de fora, necessária; contudo não esperara. Saíra directamente pela porta exterior do gabinete e encaminhara‐se para a casa da jovem, carente de calor humano. Divertido, vira os artigos de artesanato criados pela jovem, que os venderia nas lojas da especialidade. Achara graça aos últimos arranjos dela para se deitar e tivera a surpresa de saber que dormia sempre nua. Observara o medicamento que andava a tomar para dormir e entretivera‐se a vê‐la mergulhar no sono, a seu lado, até que dormirá também. Ao acordar, vendo‐a profundamente adormecida e indefesa – a oportunidade que não pedira, mas em consciência desejara, agigantou‐se. Algo de bestial o movera e incentivara, pois nem esboçara uma tentativa de superar o impulso assassino. Com súbita resolução apoiara almofadão no rosto da jovem, antes de se arrepender, não de matar mas de ter coragem para o fazer, cedendo à tentação do momento. 52 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Tinha sido fácil – tão fácil… – impedi‐la de respirar sem empregar a força, mantendo‐se firme até ao ligeiro espasmo final, com a vítima imersa no sono. Se de algum modo vinha a encarar essa morte como desejável, estava feita. Mas nunca dera por tal! Olhando‐a, já morta, despida de tudo que por direito tivera ao nascer, não sentira compaixão; nada se animou em si por ela, nem houve a turbação que seria natural pelo relacionamento. Mesmo reconhecendo o mal que lhe fizera – e o que se aproveitara – estava seco, quase indiferente. Quem sabe se porque somente vira nela uma fêmea cheia de vivacidade, de rosto de criança e corpo de mulher, ignorando‐lhe a personalidade – talvez por não lhe interessar… A virgindade que lhe trouxera lisonjeara‐o, claro, sem contudo apreciar demasiado tê‐la conseguido sem se bater por ela. As vezes dava consigo a pensar porque motivo aquela quase criança se dera ao homem casado há muito, começando a ser abandonado pela força da vida, em vez de escolher um parceiro da sua idade. Tinha a certeza de que pouco a requestara, e nem teria insistido se se tivesse negado. Em verdade talvez nem se importasse tê‐la, ou conservá‐la muito mais. Ia arrastando a ligação naquela de “não gosto muito, mas deixa andar”, pelo comodismo supérfluo tão ao gosto dos machos endinheirados, ou apenas para a assistir, retribuindo‐
lho o que lhe devia. Admirava‐se ainda dela não mostrar ciúmes da mulher dele, nunca lhe ter pedido para se divorciar, nem lhe exigir mais do que lhe dava. Limitava‐se a estar disponível, a ser como coisa dele, predisposta a alcançar um fim. Descortinava essa determinação no fundo dos seus olhos, ao fitarem‐se seriamente de vez em quando. E ele não gostava! Tratava‐se da mesma determinação que a esposa, se tivesse sido perspicaz a quando do noivado, teria vislumbrado nos seus olhos. E também não teria gostado! Para se casar mentalizara‐se que se apaixonara. Inventara naquela frágil menina rica a beleza e os dons para se prender a uma união proveitosa: Mais tarde confessava‐se que o casamento enganara ambos. No entanto, ele tivera o lucro! Era isso que lhe desagradava, e por vezes odiava, na jovem mulher: a ambição do amanhã alcançado a pulso por ser útil, sem outro sentimento sincero: Via‐a igual a si, na faceta que desprezava. O relacionamento de ambos, psicologicamente, estivera errado à partida: Existe a lei da atracção dos opostos; para dois egos iguais, é o choque! Seria essa identidade o bastante para, no subconsciente, querer desembaraçar‐se dela! Não ousou contrapor. Afinal, não há efeito sem causa… Considerou se devia telefonar à Polícia, não deixar o corpo, decerto ainda tépido devido ao aquecimento ligado, abandonado de novo, facultando‐lhe a decência de se decompor em dignidade; contudo tratou de limpar as suas impressões digitais nos sítios em que poderia ter tocado, logo voltado a construir a sua defesa. Chegara o momento de partir. O elo, de algum modo afectivo, que o prendera à 53 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO morta, ausente a essência vital do corpo, tornara‐se nulo e ficava para trás. Pensaria em si! “Se por excepção – monologava – desta vez não se cumprisse essa espécie de regra que faz colocar um indivíduo desconhecido que nos conhece, no nosso caminho quando queremos passar despercebidos, e que pode testemunhar…” Viera ali para ter uma certeza, talvez para se julgar: Todavia, apesar do crime, não estava disposto a passar o resto da vida como criminoso. Tivera a sua razão! Com cuidado, desligou o aquecimento – a hora da morte não seria determinada com exactidão. E havia a chamada que atendera no escritório! Com um pouco de sorte… HUMOR NEGRO – VINGANÇA AO PEQUENO‐ALMOÇO Pelo ténue zumbido, Rita pressentiu o perigo, antes mes mo de o descortinar. Com o peito oprimido, incapaz de ousar respirar, tremendo pelo imprevisto, tímida e ansiosamente olhava o marido do outro lado da mesa. Matias espalhava satisfação no rosto corado e bolachudo. Mastigava devagar e ruidosamente a torrada extremamente barrada de manteiga, enquanto os olhos seguiam em leitura atenta as notícias. Lambeu guloso os dedos molhados e procurou, sem desviar o olhar, nova torrada. A mosca saltitou ligeiramente à aproximação dos dedos disputativos interrompendo a inspecção gustativa, para logo continuar, entretanto, entre a chávena de leite e a restante torrada. Rita rolava os olhos hipnotizada pela manobra do insecto, em impotente expectativa. Demais conhecia a aversão mórbida do marido pelas moscas. Assistira e fora parte integrante das invectivas violentas quanto a sua pessoa e seu zelo em particular, e as moscas em geral. Tinha consciência do comportamento ordeiro, limpo, constante, duma boa dona de casa. A sua luta esbatia‐se, porém, na incompreensão do marido. O verão era a época crítica. Apesar dos cuidados, da multiplicidade de armas usadas, havia sempre um exemplar obstinado, como que nascido do próprio vácuo, a romper o cerco. A acrimónia do marido, sem vislumbre de desculpa, não tardava, azeda. A mosca continuava as suas deambulações exploratórias indiferente ao martírio que proporcionava. Matias dobrou o jornal e estendeu a mão. Inesperadamente enrubesceu. Num ímpeto de raiva, olhos esgazeados, atirou‐se mosca, vociferando esganiçado, violento, bateu e bateu sem ordem, insensível e insensato. Rita quedou‐se de olhos baixos e lacrimosos. Os bocados de louça fina, resultado do desigual combate, espalhavam‐se pela mesa e caídos no chão. 54 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Sacudiu com raiva incontida o vestido manchado de leite, peganhoso da manteiga dispersa. Desta vez, enfim, verdadeiramente revoltada pela atitude desabrida do marido. Vingança, vingança – uma palavra a mexer, a impor‐se‐lhe no cérebro. Dias depois, a velha cena do início do dia. Rita, prenhe de medo, ainda que satisfeita consigo própria. O marido, sempre ruidoso, trincava a torrada loura. – Tem um sabor estranho! – comentou. Rita quase desmaiou. Deus! Iria ele descobrir o seu crime? A vingança, a sua terrível, terminante vingança de eterna ofendida? O homem, o “seu homem” acabou a derradeira torrada. Arrotou grosseiramente, grunhiu um “óptimas” saciado. Acabara de engolir duzentas e quatro moscas, esmagadas em papa gordurosa, trituradas, passadas ao coador e misturadas na manteiga. Duzentas e quatro… 55 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 14 DE MARÇO EFEMÉRIDES Algernon Blackwood (1869‐1951) – Algernon Henry Blackwood nasce em Shooter’s Hill, Londres. O fascínio que tem pelo hipnotismo e pelo sobrenatural leva‐o ao estudo de filosofia e ocultismo. A sua escrita reflecte estes interesses: escreve centenas de contos de fantasmas/terror/sobrenatural e é reconhecido como um mestre deste género literário. The Empty House and Other Ghost Stories é publicado em 1906 e depois segue‐
se uma série de contos com John Silence, um investigador extraordinário. Em 1914 escreve Incredible Adventures, a primeira colectânea do género sobrenatural alguma vez publicada. Showell Styles (1908‐2005) – Frank Showell Styles nasce em Four Oaks, Birmigham, País de Gales, R.U. Explorador, montanhista escreve o primeiro livro policiário, Traitor’s Mountain, em 1946. Publica perto de 150 livros de aventuras históricas, parte na série Midshipman Quinn e na série Lieutenant Michael Fitton. Entre 1951 e 1969 utiliza o pseudónimo Glyn Carr para a escrita de ficção policial, escrevendo um total de 15 livros, todos da série Abercrombie Lewker. O autor usa também o pseudónimo C.L. Inker para as narrativas humorísticas. 56 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO BREVE HISTÓRIA DA LITERATURA POLICIÁRIA (continuação) A colectânea designada por As Mil e Uma Noites, só foi conhecida na Europa a partir de 1701, não obstante traduza a recolha de épocas bem remotas, verdadeiramente impossíveis de detectar. Os estudiosos têm concluído entretanto, que sua primeira tradução árabe teria sido feita em Bagdad no Século III, do Livro persa Hazar Efsanch que, por sua vez, teria origem indiana. Cabe aqui perfeitamente a afirmação dos filósofos de que a luz de todo o conhecimento procede do Oriente. Terão razão? De qualquer modo, representam um grupo de episódios muito antigos e de proveniências diversas, como se depreende da variedade de lugares em que se situam, muitos dos quais envolvem características que as definem como fortes raízes que sustentam a formação da grande árvore narrativa policiária. Vejamos a história do mercador de Bagdad, Ali Cogia (uma entre outras): No reinado do califa Harun‐al‐Raschid, um mercador chamado Ali Cogia, como bom muçulmano, resolveu ir em peregrinação a Meca. Vendeu os móveis e a loja e, da posse de mil moedas de ouro conseguidas, preocupado se as levasse consigo: escolheu uma vasilha de bom tamanho, meteu‐as lá e acabou de encher o recipiente com azeitonas. Depois que a fechou muito bem, levou‐a a casa de um mercador amigo a quem pediu que guardasse a vasilha. Esse mercador respondeu delicadamente: – Aqui está a chave do meu armazém. Levai a vasilha, pondo‐a onde quiserdes e prometo‐vos que lá a encontrareis quando voltardes. Ali Cogia assim fez. Carregou depois um camelo e partiu. De tal modo lhe correu bem a viagem que, depois de Meca, visitou Cairo, Damasco, Alepo, Xiraz e, sete anos depois resolveu voltar. Entretanto, o seu amigo em Bagdad resolveu comer as azeitonas e, dirigindo‐se ao armazém deparou com elas todas podres, mas encontrou as moedas de ouro que se apressou a tirar, enchendo a vasilha de azeitonas que foi comprar. Ao voltar, o assunto foi posto na justiça. Nas vésperas do julgamento, o califa, com o grão‐vizir Giafar e Mesrur, o chefe dos eunucos, fez o seu giro habitual pela cidade. Em determinado ponto deparou com uns rapazes que brincavam aos julgamentos e ficou a escutar. Estava em causa o caso das azeitonas de Ali Cogia. O rapaz que fazia de juiz perguntava: – Sabeis por quanto tempo se podem conservar as azeitonas em condições de se poderem comer? 57 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO – Senhor – responderam‐lhe – por muito cuidado que haja ao prepará‐las e conservá‐las, se se guardam por muito tempo, ao fim do terceiro ano já não valem nada: deixam de ter sabor, de ter cor, só servem para deitar fora. – Se é assim – volveu o que fazia de juiz – se Ali Cogia esteve ausente sete anos, alguém mexeu na vasilha, pois posso garantir que as azeitonas que foram encontradas são deste ano. Mas não se julgue que o Oriente tenha o exclusivo de histórias imaginariamente geradoras de espécie em causa. Pedro Afonso ou Petrus Alphonsi, efectivamente Mose Sefardi, um judeu espanhol nascido em 1062 convertido ao catolicismo e médico do Ren Afonso, deixou em Disciplina Clericalis vasta obra de carácter filosófico e exemplos, nos quais se encontra desde anedotas puras a histórias inteligentes de observação e investigação, muito próximo das embrionárias histórias policiais. Passamos por Samaveda, com a colecção de contos indianos Kathasaritsagora onde algo se poderia desfrutar, poeta, autor do livro Alif Ba com a bem concebida história deconta dos pães com versões diversas segundo autores, Nuzhetol Udeba ou Giraldo Cint Ecatormiti (1354‐1426) um jurisconsulto e gramático que chegou a Kadi de Granada e deixou uma extensa colecção de anedotas, provérbios e contos da época, para nos fixarmos nas Histórias de Sinbdan, atribuídas a um sábio sírio desta última época. Com as referências anteriores aproxima‐se a Época das Literaturas Modernas. Citam‐se, não obstante, o Novellino uma colecção de cem contos dos finais do século XIII, cuja exploração aduz um novo elemento em busca da identidade pré‐policiária. A escolha recai sobre a resolução de um famoso litígio num tribunal de Alexandria e, como acontece com muitas outras narrativas aludidas, também ela de duvidosa proveniência. Transcreve‐se não na exacta medida constante do Novellino, mas a que, reportada ao mesmo período, se afigura mais popular e melhor enroupamento na contextura. Cansado e de garganta a arder, Jemal‐ed‐Din, alegrava‐se por ser este o último caso do dia que requeria a sua atenção, pensando, não obstante, na melhor maneira de lidar com Nasr‐et‐Din (traduza‐se por “a vitória da Fé”), o arguto professor e “dirigente das preces”, oficialmente protegido pelo Imperador Tamerlão, que apreciava as suas graçolas e ironias e o dignificara com o título de “Hoja”. Este estivera toda a tarde no Tribunal, mascando ruidosas pastilhas goma e apontando falhas nos julgamentos de Jemal‐ed‐Din. Réu e autor aproximaram‐se da mesa do Cadi, um baixote, gordo, feio e sujo trazendo na mão um saco com dinheiro, o outro, um homem alto e condescendente. Um dos dois tinha mandado subornar o juiz. Jemal‐ed‐Din solicitou levemente: – Sou Bedi‐ud‐Din. Este homem combinou cortar cinquenta carradas de lenha para 58 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO um nobre… por cem moedas de ouro. Ofereci‐me para ser seu sócio. Concordou. Agora depois que a lenha foi cortada e entregue e o pagamento feito, guarda o meu quinhão. O outro homem, que enrubesceu explodiu: — Ele é um trapaceiro e tenta roubar‐me! – Declare o seu nome na forma da lei, réu – disse Jemal‐ed‐Din asperamente – depois o caso. – Isso não Cadi – atalhou o outro. Eu fiz a minha parte e, por isso, reclamo o meu quinhão. Fez um sinal ao oficial de diligências do Tribunal que arrancou o saco da mão de Abnur Ago. Este mugiu como um touro: – Fui EU quem cortou, quem enfeixou, carregou o burro, o conduziu e descarregou… Cinquenta vezes! Ele não fez nada! – Nada disso! – repetiu Bedi‐ud‐Din – ajudei‐o! – De que forma? Diga de que forma! – berrou Ahmet Ago a ferver. – Certamente – replicou Bedi‐ud‐Din. – Eu gemi com força, cada vez que ele levantava o machado. Lamentei‐me a valer cada vez que ele ergueu uma carga. Encorajei‐o. Teve muita sorte em ter um sócio como eu! Está claro Cadi, fiz a minha parte. – Está louco – bramiu Ahmet Ago. – Nada disso, Cadi. Por acaso não lhe poupei o fôlego que precisava para gemer, queixar‐se, não foi por minha causa que teve mais forças para concluir o trabalho? O auditório agitou‐se e Jemal‐ed‐Din congratulou‐se por poder meter o Hoja no embrulho. – Nasr‐ed‐Din – chamou. Como sois entre nós o mais sábio dos homens, peço o vosso precioso auxílio para proferir a sentença neste caso… O Hoja adiantou‐se. – O autor – disse o juiz – foi certamente sócio do réu. Concordais? O Hoja acenou sabiamente, – Fez parte do seu trabalho – continuou Jemal‐ed‐Din a questão é… qual é o seu quinhão? Vocês estão loucos! – gritava Ahmet Ago. – Não tanto – adiantou o Hoja – o tribunal de Jemal‐ed‐Din é um tribunal de justiça, não de loucura, se me permitis Cadi, farei a divisão justa das moedas. – Era o que eu tencionava! – afirmou o juiz. O Hoja pediu que trouxessem uma bandeja e entregou‐a a Bedi‐ed‐Din, dizendo‐lhe: – Eu mesmo contarei as moedas. Bedi sorriu, Ahmet encolheu‐se com fatalismo. O Hoja tirou a primeira moeda do saco de Ahmet Ago e deixou‐a cair na bandeja. – Soa bem... não é? –disse o Hoja – e, metodicamente, prosseguia, inclinando a cabeça a cada moeda que caia, fitando o radiante Bedi‐ud‐Din. Quando acabou de contar 59 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO a quinquagésima moeda Ahmet Ago fechou os olhos. O Hoja virou o saco vazio… – Cadi – perguntou o Hoja – mantive os altos padrões de justiça e equidade deste tribunal? Jemal‐ed‐Din fitando a pilha de moedas de ouro sobre a bandeja, fez um sinal afirmativo. Então o Hoja pegando nas moedas voltou a colocá‐las no saco e entregou‐o a Ahmet Ago. – As moedas – disse – foram agora divididas igualmente. – Você deu todas as moedas a Ahmet Ago, eu não recebi nada! – gritou Bedi‐ud‐Din. – Nada disso – contestou o Hoja. – Ouviu quando fiz cair as moedas na bandeja, não foi? Esse foi o seu pagamento. E a lei: Bedi‐ud‐Din contribuiu com os sons do trabalho, em pagamento recebeu o som do dinheiro. 60 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 15 DE MARÇO EFEMÉRIDES Lillian de la Torre (1902‐1993) – Lillian de la Torre Bueno McCue nasce em Manhattan EUA. Contista exímia, publica o primeiro romance Elizabeth Is Missing em 1945. Cria uma série de contos Dr. Sam: Johnson, Detector, com os personagens Samuel Johnson e James Boswell. É eleita presidente da Mystery Writers of America em 1979. Lawrence Sanders (1920‐1998) – Nasce em Brooklyn, New York City, EUA. Jornalista durante 20 anos começa por publicar em 1968‐69, na revista Swank, um conjunto de contos protagonizados pelo investigador de seguros Wolf Lannihan, mas torna‐se célebre com o livro The Andersen Tapes (1969) que inicia a série Edward X. Delaney com um total de 5 títulos, ganha o Edgar para Best First Novel em 1971 e é adaptada com sucesso ao cinema; o segundo livro desta série The First Deadly Sin (1973) é também um filme de sucesso onde Frank Sinatra interpreta o papel de Delaney. O autor escreve mais 16 romances entre 1971 e 1998 e cria ainda a série Peter Tanget (2 livros), Commandement (4 livros), Timothy Cone (2 livros) e escreve a série Archy McNally, com 13 títulos metade dos quais com Vincent Lardo como co‐autor. O escritor usa os pseudónimos Lesley Sanders e Mark Upton e tem três dezenas de livros editados em Portugal. 61 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO OS GRANDES TEMAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA – CYBORGS Um dos temas evidenciados na ficção científica diz respeito à estreita conexão homem – máquina. O designativo de cyborg (ciborgue) para tais casos, resulta da combinação das palavras cybernetic e organism, reflectindo, na prática, a aplicação ao organismo da ciência da cibernética, já que esta, no seu conceito e em breves termos é a ciência do controle e comunicação no homem e na máquina. O princípio básico do cyborg não é novo para o homem que, durante séculos, se tem modificado a si mesmo, progressivamente, com dentes de matéria não humana, membros artificiais, válvulas cardíacas, etc… Novo será a retro‐alimentação e auto‐regulação em perfeita simbiose, e tão perfeita para que entre a carne e o metal não haja destrinça. Em síntese, um cyborg seria um sistema humano – máquina auto‐regulado (homeostase), cujas partes mecânicas estariam unidas às biológicas de um modo tal, integral e sistemático, como o coração humano está para o resto do corpo. Ocorre, naturalmente, uma inquietante pergunta: será humano ou máquina? Na medida em que a humanidade se vai modificando à sua vontade ou necessariamente, e pode comunicar conhecimentos às gerações futuras, a perspectiva clássica acerca da evolução humana mudará dramaticamente. Pode mesmo dizer‐se que, com o advento dos cyborgs, o homem terá cumprido o ciclo completo da sua existência. Vanguardista de ideias e proposições, a temática não poderia ficar estranha à literatura de ficção científica e aparece mesmo antes de o termo obter enquadramento. Os casos de The Cybernetic Brains e Wolfbane, respectivamente de Raymond F. Jones e C. M. Kornbluth em colaboração com Frederik Pohl. Mais interessantes e mais recentes, Gray Matters de William Hjortsberg e Catchworl de Chris Boyce. No entanto, aponte‐se, o termo nem sempre tem sido entendido na sua verdadeira dimensão: osciberhomens da série televisiva Doctor Who, são apenas e tão só robôs; bem diferente e imaginariamente plausível é a série também da T.V., The Six Milion Dollar Man extraída da novela de Martin Caidin, Cyborg. Em Moderan, do bem pouco conhecido mas muito interessante David R. Bunch (1925‐2000) num planeta devastado e envenenado pela guerra, resta recorrer aos armazéns de componentes importantes onde os homens recebem substitutos orgânicos, até que, para alguns, ocorra os Novos Processos – a transformação da espécie. A um jovem rei entre os demais, é‐lhe dada a prorrogativa de observar a própria adaptação a cyborg. …bisturis na cavidade ocular esquerda; bisturis na cavidade ocular direita. Agora extraem o globo ocular esquerdo… o direito… há sangue… enquanto as enfermeiras de aço, esterilizadas, dinâmicas, ocorriam eficientes e frias… 62 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Na maior parte dos casos há tácita aceitação. É o caso da bailarina da um conto de C. L. Moore (1911‐1987), uma personalidade admirável, a quem nem os obstáculos físicos ou técnicos, nem a presença de amigos de outros corpos, podem impelir prosseguir o destino reservado a uma bailarina – cyborg. Para Flaccus, o cyborg de Jack Dann (1945), é símbolo de confiança e força, a nova condição… Flaccus recordou que tinha posto a armadura. Podia sentir que estava fortemente envolvida em redor do corpo, aguardando o sinal que transmitia aos músculos. Era a sua própria força. A armadura, dermo‐esquelética de metal ligeiro provida de sensores que antecediam todos os movimentos e os transmitiam aos músculos artificiais. Com ela Flaccus podia sustenta nos braços mais de mil quilos, mil quilos em cada mão, ou… Quentin, personagem de um conto Henru Kuttner (1915‐1958), reduzido a cérebro, sente‐se bem com a sua situação. Não é um super‐homem, mas um rapaz comum, com um bom físico, e que teve que adaptar‐se a um novo corpo. Faltam‐lhe alguns atributos, mas em compensação… Leio literatura de evasão, embebedo‐me mediante uma irritação eléctrica, tenho paladar ainda que não para comer. Vejo espectáculos da T.V.. Tento conseguir todos os prazeres sensitivos puramente humanos que posso... sim, agora pode resolver problemas infinitamente mais complicados,'com os cálculos que exigem reacções em fracções de segundo, como conduzir uma nave espacial..." Nem todos os autores são positivos a este ponto. Damon Knigt (1922‐2002) que em Ask Me Anything, Four in One desenvolve problemas patéticos a alto nível, em Masks aborda o efeito psíquico de alguém perder o corpo. Este homem foi mutilado integralmente. Só um impacto mental geral pode compensar uma perda tão catastrófica. Perdeu a base fisiológica de todas as emoções humanas. Carece de coração que acelere as suas batidas, de glândulas… Não Pode sentir o amor, temor, ódio, afecto. Porém pode e deve aceitar um funcionamento limpo e uniforme como norma. Quando olha a carne suada de outras pessoas, a única emoção que pode sentir, repugnância… este homem é um eunuco. Sabido que é inteligente, ocultará a verdade a si mesmo? A tecnologia ciborg abarca a engenharia biológica, as próteses, a tecnologia espacial e dezenas de campos diversos. Poderia desenvolver ampla variedade de seres humanos com adaptações especializadas para explorar o espaço ou viver nos oceanos. A relação entre a técnica ciborg e as viagens espaciais, assunto primariamente 63 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO abordado por Thomas N. Scortia, tem lugar próprio assegurado. O impacto psicológico no espécime humano revela‐se, com dramática estrutura – é uma opinião pessoal – na narrativa de Frederik Pohl, Man Plus. Um ser humano está em causa, um ser humano não parece particularmente importante, quando existem oito biliões vivos. Não é mais importante, por exemplo, do que uma partícula microscópica numa memória. Mas uma única partícula pode ser decisiva quando transporta um pedaço essencial, e a importância de Terraway era precisamente esta. Era um belo homem, como o é a maioria das pessoas. Famoso também. Ou tinha sido. Roger Torraway, coronel (aposentado) da Força Aérea dos Estados Unidos, bacharel em Arte, Licenciado em Arte, doutorado em Ciências (honoris causa), casado, uma mulher linda, que adorava, que andara no céu duas a três semanas juntamente com outros cinco astronautas, tornara‐se famoso. Agora era preciso conquistar Marte, manter uma colónia em Marte antes que a Rússia o fizesse. E Roger era parte integrante desse projecto. Nenhum ser humano pode viver em Marte. Mas se se remodelar um ser humano? Nada há que respirar em Marte; tiram‐se os pulmões do corpo humano e substituem‐se por sistemas de renovação de oxigénio em miniatura. O sangue do corpo humano ferveria; muito bem, elimina‐se o sangue. O corpo humano precisa de alimento: substitui‐se por máquinas e o alimento diminui. Apenas o cérebro é que deve ser alimentado. Elimina‐se a água do ciclo de beber, circular, evacuar ou transpirar, revista‐se o corpo com uma pele especial anti‐radiação, ore lhas de morcego, olhos infra‐vermelhos. O homem transforma‐se num organismo cibernético: um cyborg. Não tinha aspecto humano. Os seus olhos eram brilhantes, globos facetados de vermelho. As narinas dilatavam‐se com pregas de carne, como o focinho de uma toupeira, em forma de estrela. A pele era artificial; a cor era muito bronzeada, mas a textura era a da pele de um rinoceronte. Nada naquilo que se podia ver tinha a ver com o aspecto com que nascera. Olhos, orelhas, pulmões, pele – tudo fora mudado ou aumentado. No meio das pernas não havia nada. Nem pénis, nem testículos, nem escroto; nada a não ser carne artificial, brilhante, com uma ligadura transparente sobre ela escondendo as cicatrizes. Era como se nunca lá tivesse existido nada. Dos sinais diagnósticos de virilidade… nada. Terminara a insignificante operação e aquilo que restava não era nada. As últimas alterações visíveis eram a ponta do iceberg. O que tinha sido feito dentro dele era muito mais complexo e muito mais importante. Fechava os olhos mas não dormia. O cérebro corria invocando pensamentos de sexo, de comida, ciúme raiva, filhos, nostalgia, amor. Os psicólogos tentavam compreendê‐lo em testes tortuosos, mas dentro de si manteve uma cidadela de privacidade que não permitia que invadissem. 64 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Tudo em ordem para a grande missão. O problema que não solucionara era o que faria se por qualquer razao, quando estivesse concluída a missão, não o pudessem reconstituir logo de seguida. O que não era capaz de decidir era se se suicidaria ou mataria tantos quanto pudesse dos seus amigos, superiores e colegas. 65 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 16 DE MARÇO EFEMÉRIDES Margot Arnold (1925) – Petronelle Marguerite Mary Cook nasce em Plymouth, Devon, Inglaterra. Em 1948 emigra para os EUA e em 1953 adquire a cidadania norte‐
americana. Diplomada em arte, arqueologia e antropologia, depois de escrever alguns romances históricos estreia‐se na literatura policiária em 1979 com Exit Actors Dying. Este livro é o primeiro de uma série de 12, editados entre 1979 e 1985, que têm como personagens principais a antropologista Penny Spring e o arqueólogo Toby Glendower. A autora escreve ainda 4 livros de intriga diplomática. ESPIONAGEM – CRIPTOGRAFIA NAS DUAS GUERRAS MUNDIAIS Em aditamento ao artigo sobre criptografia, referimos abaixo quatro momentos em que esta arma silenciosa e eficaz foi decisiva. 1 – O telegrama Zimmermann, contado centenas de vezes, evitaria citá‐lo se não fosse, talvez, o que maior consequência teve em toda a história da informação. Diz respeito a um telegrama enviado, no dia 16 de Janeiro de 1917, pelo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Zimmermann, ao seu embaixador no México, pedindo‐lhe que 66 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO tentasse envolver o México e o Japão numa guerra contra os Estados Unidos. Este telegrama foi enviado por diversas vias, entre as quais a rádio, e interceptado e decifrado pelo Serviço de Informações naval britânico. O texto descodificado foi transmitido ao presidente Wilson, que apesar das exacções cometidas pelos Alemães no mar, e até no seu próprio território, se recusava a fazer entrar o seu povo num conflito. Quando teve a certeza de que o texto era verdadeiro, Wilson declarou guerra à Alemanha (6 de Abril de 1917). 2 – O uso da rádio generalizou‐se no seio dos exércitos, e os serviços de descodificação empenharam‐se em decifrar as mensagens estratégicas do adversário. Um êxito espectacular e da maior importância foi conseguido neste domínio por um oficial francês, o capitão Painvin, que decifrou em vinte e seis horas o telegrama que anunciava a data e a direcção da grande ofensiva do marechal Hindenburgo, em Julho de 1918. Esta informação segura, que vinha confirmar e precisar informações anteriores, permitiu ao marechal Foch alterar à pressa os seus planos e entregar ao general Mangin as divisões suplementares graças às quais bloqueou a ofensiva alemã e contra‐atacou de forma decisiva. 3 – A máquina Enigma, que os Alemães puseram ao serviço no início das hostilidades e da qual se serviram para codificar todas as suas mensagens estratégicas. O Serviço de Informações polaco havia conseguido reconstituir esta máquina, por um lado, graças às indicações fornecidas por operários de origem polaca que trabalhavam na fábrica onde ela fora construída e, por outro lado, com a ajuda das informações recebidas da Segunda Divisão francesa; os seus extraordinários especialistas criaram, em 67 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO seguida, um método de descodificação. Pouco tempo antes de ser declarada a guerra, em 1939, o Serviço de Informações polaco entregou uma máquina aos Ingleses e outra aos Franceses. Além desta, os Ingleses obtiveram verdadeiras Enigma encontradas uma dentro de um avião abatido, outra num carro de transmissão, a terceira com o código junto — num submarino inimigo. Os Alemães confiavam de tal maneira na inviolabilidade do código da Enigma que continuaram a utilizá‐la durante toda a guerra apesar destes incidentes. O Special Intelligence Service (SIS) britânico descodificou milhares de telegramas da Enigma. Esta fonte de informação, baptizada com o nome de Ultra, era considerada por Churchill a melhor e a mais secreta; a propósito dela, escrevia o general Eisenhower, em Julho de 1945, ao general Menziès, director do SIS: Essas informações (da Ultra) foram para mim de um valor inestimável. Simplificaram imenso a minha tarefa de comandante‐chefe. Salvaram milhares de vidas britânicas e americanas e contribuíram em parte – que não foi pequena para a celeridade com que o inimigo foi derrotado e, finalmente, obrigado a render‐se. 4 – Desde 1941 que os Americanos eram capazes de ler o código diplomático e militar dos Japoneses. Isto não impediu, porém, o desastre de Pearl Harbor, porque nesta operação os Japoneses só utilizavam a rádio quando rodeados de enormes precauções e talvez também porque houve negligências deploráveis por parte dos Americanos. Em compensação, permitiu que a frota americana se concentrasse em tempo e lugar oportunos para repelir o ataque sobre Midway e ganhar em seguida a batalha do mar de Coral. 68 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 69 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 17 DE MARÇO EFEMÉRIDES Patrick Hamilton (1904‐1962) – Anthony Walter Patrick Hamilton nasce em Hassocks, Sussex, Inglaterra. Actor, assistente de palco e novelista, escreve também peças de teatro e para rádio. É classificado como um dos autores mais dotados e mais admirados da sua geração. Publica 4 livros de mistério/detective, 3 deles com o personagem Ernerst Ralph Gorse. O livro Hangover Square (1941), em termos de percepção psicológica e realismo, é considerado pela crítica como uma das melhores e das mais emocionantes obras escritas sobre um assassino esquizofrénico. A peça de teatro Rope (1929), baseada no caso verídico Loeb‐Leopold, é mais tarde um filme de Alfred Hitchcock. Outra peça notável do autor é Gas Light (1938), ou Angel Street nos EUA, com o detective Rough, adaptada duas vezes ao cinema e que estreia no Teatro da Trindade em 28 de Setembro de 1949 com o nome A Luz do Gás. Richard Martin Stern (1915‐2001) – Nasce Fresno, Califórnia, EUA. Começa por escrever contos policiários na década de 50. É autor de 26 romances, 6 dos quais da série Johnny Ortiz. O livro The Bright Road to Fear (1959) ganha o Edgar Award para Best First Novel desse ano. A sua obra mais conhecida é The Tower, de 1973, um dos livros que está na base do filme The Towering Inferno – A Torre do Inferno (1974) com Steve McQueen e 70 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Paul Newman. A Torre do Inferno foi editado em Portugal em 1976 pelas editoras Civilização e Círculo de Leitores. Está também editado Tsunami! no volume 9 da colecção Livros Condensados das Selecções do Reader's Digest. FICÇÃO CIENTÍFICA – O HOMEM QUE NÃO NASCEU Original de Ane Revis À medida que os anos passavam e se tornava adulto, mais se robustecia em si o curioso desejo de viajar no Tempo, de poder ir livremente ao passado, a fim de conhecer a mãe, quando ainda viva, já que fora assassinada antes de ele nascer. Nunca se descobrira o criminoso; e, amiúde, pensava como gostaria de desmascará‐lo. Também, de si para si, considerava injusto e limitado o período da vida humana compartimentada num lapso do largo espaço abrangido pela história da Humanidade; achava, igualmente, que, do mesmo modo que se pode compulsar qualquer compêndio de história clássica, deveria ser possibilitada – àqueles que tivessem motivos fortes para ter perfeito conhecimento de determinado facto – a capacidade de o verificar ao vivo. No entanto, apesar de querer desesperadamente e de se interessar pelo muito pouco que encontrava descrito de forma vaga, não tinha a mínima esperança de realizar tal façanha; todavia, conseguiu‐o! Ao emergir no passado precisamente na época desejada, mal queria acreditar no que fizera, e assim: com tamanha facilidade. Pareceu‐lhe mesmo insignificante o esforço final, quase sem valor, como se apenas despertasse um simples dom latente. Com notável precisão e rapidez, passou para o local exacto do momento escolhido pelo subconsciente, sem entender muito bem como fora, possível: e, agravada pela náusea e mal‐estar naturais, não pode deixar de sentir urna ponta de medo. Sim, era então verdade: o homem podia vencer o Tempo! O homem – essa máquina 71 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO potencial e estranha – tinha em si os dados para responder a todas as questões equacionadas claramente e no verdadeiro sentido. Bastava haver um objectivo forte – e o seu, para si, era‐o! Atordoado pelo que conseguira, sem esperar tão cedo ter êxito, e pela sorte de acontecer no seu quarto – vizinho daquele onde se dera o drama a que tanto queria assistir –, tomou consciência, desde logo, da atmosfera diferente que o envolvia, da mudança do ambiente geral. E, duma forma indefinida, sentiu saudade desse tempo que não conhecera, do aconchego que nunca verificara ali, na mesma casa, indo ao ponto de apreciar a agradável fragrância feminina que perfumava o ar. No lugar da cama um berço armado à espera duma vida a sua. Comoveu‐se. Foi tomado de violenta emoção e deu‐se conta de não estar emocionalmente preparado. Compreendeu que, assoberbado pela ânsia da sua vontade e enganado pela falta de confiança no feliz resultado, não pensara em fazer o ponto das possibilidades a enfrentar, nem calculara as reacções possíveis perante o inesperado. Agora, a profundidade do que encontrava mostrava‐lhe como se precipitara, considerando‐se irresponsável. Quis voltar atrás. Não houve tempo! Algo, no quarto ao lado, o alertou – foi ver. Junto à jovem mulher, grávida (a mãe), dormitando em repouso sobre o largo leito, apenas o marido (o pai): mais ninguém. Mas o crime ia acontecer na hora certa, impressionando‐o extraordinariamente. Assistiu, petrificado pelo espanto e horror, ao instante em que o pai feria de morte, a sangue frio, com ódio no olhar, a vítima adormecida, sem parecer haver motivo. Numa fracção de segundo, avaliou a verdadeira razão dos silêncios do pai sobre o acontecimento e o porquê de não se lhe arrancar uma descrição completa da morte da mulher e, até, porque nunca se encontrara o assassino. Percebeu como ele achara o álibi quase perfeito – que resultara – ao correr a chamar o médico que fizera nascer a criança, ainda viva, mas não pudera salvar a mãe. Esqueceu que lhe devia duplamente a vida; não pôde dominar‐se. Atacou o criminoso, não querendo saber quem era, sem atender às circunstâncias especiais da sua estada ali, com fúria e raiva, utilizando o cinzeiro de alabastro, levado pela dor de se ver lesado do bem que nunca haveria de ter: o carinho de mãe. No ímpeto da surpresa, o pai deixou‐se dominar, aterrado pelo imprevisto; e ele bateu com força, loucamente, sem piedade e sem parar. Só quando o viu inerte, correu para junto da mulher que morria. Lágrimas de desespero e mágoa não o deixaram ver os movimentos convulsos da criança, ainda viva. Perdeu então, subitamente, a vontade de viver, a noção do Tempo a que pertencia, ignorando as regras a cumprir, a respeitar, dispondo‐se a ficar ali, segurando as mãos da mãe, que iam arrefecendo. Absurdamente, quis assistir ao próprio nascimento, sabendo, em consciência, que não devia. Começou a sentir‐se fraco, muito fraco. Perguntou‐se como seria possível estar 72 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO dividido, se poderia ver‐se a si mesmo, achando importante entender, esforçando‐se por se concentrar. Ectoplasma, talvez… Quis reagir, afastar a lassidão. Ocorreu‐‐lhe, num lampejo, que o médico não viria para o fazer nascer, já que impedira o pai de o ir chamar (quando o matara) e a criança (que era ele) nunca veria a luz. Os pensamentos esvaíam‐se, tornavam‐se difusos na sua mente, careciam da convicção que já não tinha. O fim ia chegar, provocado levianamente por si mesmo. E antes de deixar de ser aquele em que se tornara (porque vivera), e perder a forma actual (já que não viveria por estar a morrer no útero materno), por instinto, e na ânsia de protecção, achou ainda forças para se abraçar ao corpo que o encerrava e onde ficaria, levando consigo a vaga sensação de haver vingado a mãe – talvez o verdadeiro objectivo… O CASO DO DIA – TODOS DIZEM O MESMO Parece anedota, mas não é! Quanto mais esquiva e fechada em si, maior o desejo do Don Juan das Milhariças em quebrar os cadeados da beldade e entrar na sua intimidade. O homem não é louco nem ajuizado, só procurava o melhor e, por conta dos seus créditos o fato de riscas verticais, bem penteado, perfumado, olhos melosos e piscadeiros como as asas de um beija‐flor, já ultrapassara dúzias de altos muros e janelas ainda mais altas, apertando a si opulentos e macios seios a poucos passos das camas apetecidas, onde as vítimas descuidadas, surdas às virtudes, desatinadas de espírito e insaciáveis de corpo, se abandonavam até ao êxtase. Saída entre vãs promessas, lençóis arrefecidos e trocados, o Don Juan, herói de muitas batalhas, deleitado de vaidade, busca outra porta por abrir. Alda, a belíssima esposa do chefe da polícia, guardada a sete chaves, não disfarça um estremecimento quando os olhares beija‐flor a atingem mas… uma vez por todas, num descargo de consciência, telefona ao marido. Eis que o galã, ainda não dobrara a esquina próxima, um veículo da polícia, ruidosamente, pára a seu lado e três possantes guardas da lei atiram‐no para o fundo do carro. Aguarda‐o o chefe, a que se juntam os captores. – Entra homem. A casa é tua; está à vontade! – Perdão chefe – responde Don Juan das Milhariças, cabisbaixo, isto é, parecendo humano. Continuou: – Perdão, sou um louco, um louco! O chefe nada diz. Pensa. Sai, telefona. Cerca de vinte minutos depois, dois alentados enfermeiros seguram‐no e enfiam‐lhe a camisa‐de‐forças com que entrará no hospício. Ainda grita: Mas eu não sou doido doutor… Mas o director do hospício, pensando na 73 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO sua desprotegida, linda e airosa esposa, responde: – Todos dizem o mesmo… O chefe encolhe os ombros, tira da estante o Código Penal e enfia‐o no cesto dos papéis velhos. 74 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 18 DE MARÇO EFEMÉRIDES Richard Condon (1915‐1996) – Richard Thomas Condon nasce na cidade de Nova Iorque. Publicitário e produtor teatral é assessor de impressa dos maiores estúdios da época – Walt Disney, Hal Horne, 20th Century Fox. Num total de 27 obras, escreve 12 romances policiários protagonizados pelo Captain Colin Huntington, com enredos intricados onde a sátira tem uma forte marca. As obras mais conhecidas são: The Manchurian Candidate (1959), prenúncio dos assassinatos do Presidente John F. Kennedy e do irmão Robert; An Infinity of Mirrors (1964) tem como pano de fundo o terror nazi; a série bestseller Prizzi, 4 romances, entre 1982 e 1994. Richard Condon tem várias obras adaptadas ao cinema. ACTUALIDADE – PLANETA EM PERIGO A terra tem 4,5 mil milhões de anos de existência. Neste período sofreu transformações estruturais, físicas, químicas e surgiu vida. Todas estas mudanças ocorreram lentamente, prolongando‐se por centenas de milhões de anos. Não faltam vestígios de catástrofes mais ou menos profundas: a separação dos continentes, erupções vulcânicas, glaciações, dilúvios, desaparecimento dos dinossáurios etc. Michael J. Drake, recém‐falecido em Outubro de 2011, director do Lunar and Planetary Laboratory da University of Arizona, não escondia a hipótese da extinção 75 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO terrestre. A comunicação social e revistas científicas não esquecem a existência de um asteróide 1999 RQ36 de 560 metros e diâmetro, que se aproximará perigosamente da terra entre 2169 e 2199, não sendo o único, já que no início do presente ano se conhecia um outro asteróide de 840 metros de diâmetro e com mais de 1 quilometro de extensão que periodicamente se aproxima da terra. Para Drake era essencial o projecto da NASA, que já gastara 800 milhões de dólares na sonda OSIRIS‐Rex que irá estudar a estrutura dos asteróides de modo a serem bombardeados e desviar a sua trajectória. Resta saber se resultará, já que o mais próximo asteróide poderá roçar o planeta em 2029,faltam poucos anos, um espaço muito curto para obter uma solução salvadora. CONTO POLICIÁRIO – O AVISO De Victor Dimas Quando acordou, já sabia o que tinha de passar‐se na noite seguinte E desta vez deixaria a bestialidade à solta, não lhe travaria o ímpeto à custa de um esforço titânico de auto‐domínio. Só porque não podia mais. Nem queria repetir a mais um neurologista, depois a outro e outro, a mesma história. Não, porque era absolutamente inútil. O remédio era só um, inevitável: matar. Nunca o tinha tomado mas sabia – no certo e necessário como o ar que respirava. E já o conhecia há muito, estava recomposto do choque que aquela revelação lhe provocara. Enquanto não destruísse uma vida de mulher, enquanto não sentisse fluir‐lhe entre os dedos enclavinhados um sopro essencial, a sua angústia cresceria todos os dias, olhando os homens como inimigos até deixá‐lo prostrado de ânsia, doente de esmagadora impotência. Porque a lei… Ah! Mas agora estava resolvido e não poderia viver sem satisfazer esta necessidade imperiosa. Vital, Inalienável. O projecto era bom. Tinha a oportunidade e o local. Mas não a vítima. O rapaz era alto e de boa presença. Tinha mesmo um ar de distinção. E uma ruga de preocupação na testa elevada. Mesmo assim, não devia ser grande problema. Os jovens não têm grandes problemas. E ela sorriu‐lhe, aproximou‐se coleando entre as mesas. Ele tinha pedido uma bebida que lhe acalmasse a inquietação. E olhava‐a, hesitando ainda. Sabia que, se saíssem juntos, ela não voltaria. Ela estava já sentada, sorrindo sempre, insinuando. E talvez nem fosse crime libertar a sociedade de urna mulher. Uma mais, que diferença faz? A mulher que sorria representava a solução. Ou a demência. 76 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO O local, o motivo, tinha‐os. A vítima inconsciente sorria outra vez, cada vez mais perto os lábios sanguíneos. Levantou‐se. O hotel numa rua tranquila era muito acanhado. Escuro e pouco frequentado. Mas tinha uma saída lateral para outra pequena rua. E o recepcionista, do seu nicho ao fundo do corredor, não podia vigiá‐la sem torcer o pescoço. Nem estaria interessado. “Senhor e senhora qualquer coisa” – escreveu em letra de imprensa. – Bagagem? – Não. É só por esta noite. Pagou. O homem estava habituado. Mirou‐os. – Bem. Não queremos fitas, hein? – Tirou a chave. “22”, dizia a pequena etiqueta adjunta. Subiram calmamente. Já não era possível retroceder. Ela iria prodigalizar‐lhe carinhos, estandardizados mas que o são. E umas mãos, um corpo vibrante de mulher completa, excitante, dão sempre resultado. Quase sempre, aliás. Porque com ele... bem, ela rir‐se‐ia quando descobrisse. Talvez lhe voltasse as costas, simplesmente. Ou lhe exigisse compensação. “Pelo tempo que perdemos”…. O costume. Era a situação, a humilhação que faria dele o assassino Inexorável, avizinhava‐se o momento. Depois seria livre, humano e igual a todos os outros. Um homem, enfim. Sem complexos. Ela pareceu surpreendida com a sua lentidão. Tirou o fato, calmo, meticuloso. Depois, puxou a carteira do bolso interior e abriu‐a. Ela compreendeu e estendeu a mão aberta, com os dedos a falarem. Sem uma palavra, ele tirou duas notas e, suavemente, deixou‐as cair sobre a cama. Ela, com uma perna em ângulo agudo, apanhou‐as maquinalmente e estendeu‐se para a malinha. Sobre a mesinha oval, no centro do quarto, a carteira dele com o monograma, com os documentos, ficou à espera. Ela abre muito os olhos. Ri histericamente. Esforça‐se em vão. No peito, ele sente uma torrente de fogo a desfazer‐lhe os últimos resquícios de prudência. É a sua oportunidade de destruir o demónio que o inibe. Frustração psicopática, ou lá o que é. A morte como recurso, na guerra de que não tem culpa. A lei do mais forte. Pronto. A mulher parece dormir, de cara para baixo. Ele voltou‐a. Sente‐se despersonalizado. É um assassino agora, mas um homem, acima de tudo. E vai prová‐lo, embora ela não possa sentir. Mas é a ele que interessa saber se não foi inútil. 77 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO É um animal, pois. Mas os homens são animais. Monstros, até. E vencem. Agora, é preciso ponderação. Não dar largas à euforia, à sensação de vitória que o percorre. Tapa a mulher, mete no bolso os papéis que encontra na malinha. Deixa o dinheiro. Passeia a vista pelo círculo do quarto. A mesinha, ao centro é apenas uma oval perfeita com uma jarra de flores artificiais que fazem sombra no centro. Encaminha‐se para a porta, tranquilizado. Antes de apagar a luz, os olhos afloram um aviso rectangular. Mas não lêem, não percebem que as letras formam palavras. Nem lhe interessa o que possa dizer um letreiro de hotel. Desce a escada com cuidado. Rápido, vê‐se na rua. Em casa. E dorme, tranquilo pela primeira vez em muitos anos. Até ao meio do dia seguinte. Quando abre os olhos, estúpida, inexplicavelmente, o aviso no quarto do hotel, na face interior da porta, salta‐lhe na memória: “Por Favor, Verifique Se Não Esqueceu Nada. Obrigado”. E soube então que na mesinha oval tinha esquecida a sua sentença de morte. 78 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 19 DE MARÇO EFEMÉRIDES Patrick Quentin (1912‐1987) – Hugh Callingham Wheeler nasce em Hampstead, Londres, Inglaterra. Tradutor, poeta, dramaturgo fixa‐se em 1934 nos EUA e naturaliza‐se americano em 1942. Usa os pseudónimos Patrick Quentin, Q. Patrick e Jonathan Stagge. O escritor tem várias obras publicadas em colaboração com outros escritores Richard Wilson Webb, Martha Mott Kelley e Mary Louise White Aswell. Desta co‐autoria destaca‐
se Richard Wilson Webb. Entre 1936 e 1960 são editados 39 romances policiários com os personagens Peter Duluth, Iris Duluth e tenente Timothy Trant; 8 policiários sob o pseudónimo Q. Patrick protagonizados também pelo tenente Timothy Trant; 9 policiários sob o pseudónimo Jonathan Stagge com o personagem Dr. Hugh Westlake e 1 colecção de short stories The Ordeal of Mrs.Snow and Other Stories (1961) premiada com o Special Edgar Award atribuída pelo Mystery Writers of America. Joe L. Hensley (1926‐2007) – Joseph Louis Hensley nasce em Bloomington, Indiana, EUA. Jornalista, advogado, juiz e procurador, começa a escrever ficção científica e policiários sob os pseudónimos de Joe L. Hensley e Louis J. A. Adams, este último em parceria com Alexei Panshin. Muitos dos seus livros são protagonizados por advogados que solucionam crimes. Entre 1971 e 2001 publica 13 livros da série Donald Roback. 79 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Escreve ainda mais 7 romances e 2 colecções de contos Snowbird's Blood (2008) é o último livro editado deste autor. Angus Ross (1927) – Kenneth Giggal nasce em Dewsbury, Yorkshire Inglaterra. Usa o pseudónimo Angus Ross na escrita de romances de espionagem. Publica o primeiro livro em 1970, The Manchester Thing, também editado com o título The Manchester Connection, o início da série Marcus Aurelius Farrow que tem um total de 18 livros. Escreve ainda mais 3 romances: A Bad April (1984), Doom Indigo (1989) e Last One (1992). FICÇÃO CIENTÍFICA BIBLIOTECA ESSENCIAL DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA (6) Volume 12 – Odd John (1935) de Olaf Stapledon Odd John, pode sintetizar‐se no tema de uma raça de super‐homens perseguida pelos normais, o que significa legitimar a paternidade de um dos temas mais típicos da Ficção Científica. Neste livro narra‐se a história de um mutante superior que com alguns da sua classe intenta fundar uma colónia numa ilha do Pacífico, com toda a oposição dos homens normais. 80 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Volume 13 – Válka s mloky (1936) de Karel Čapek Com humor e ironia, narra‐se em Válka s mloky, título original – War With The Newts em inglês – o descobrimento da utilidade das salamandras como mão‐de‐obra, a sua rápida aprendizagem e aquisição de conhecimentos intelectuais capazes de rivalizar com os homens. Capek relata o esforço e progresso dos sáurios, os confrontos com os homens até à obtenção dos direitos de cidadania, por fim a rebelião e luta entre as duas raças inteligentes do planeta (homens e salamandras) com o simples argumento de que não há na Terra espaço suficiente para os dois grupos. War With The Newts, A Guerra das Salamandras entre nós é uma novela clássica de excelente temática, que mantém viva a sua frescura ao longo do tempo. 81 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Ficha Técnica A Guerra das Salamandras Autor: Karel Čapek Ano da Edição/reedição: 2009 Editora: Europa‐América Colecção: Grandes Clássicos do Século XX Páginas: 240 ISBN: 9789721059771 Volume 14 – Star Marker (1937) de Olaf Stapledon O autor tinha uma concepção própria das leis físicas e biológicas que regem o Universo. Star Maker descreve o Cosmo, a aparição da inteligência no universo, o desenvolvimento e união das diversas raças cósmicas de que resultará a inteligência galáctica que se converterá, finalmente, no espírito universal, supremo momento do cosmos. É uma concepção evolucionista gigantesca na escala cósmica e temporal que não parece, entretanto, ao alcance das dimensões dos humanos. 82 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 83 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 20 DE MARÇO EFEMÉRIDES Ernest Bramah (1868‐1942) – Ernest Bramah Smith nasce em Hulme, Manchester, Inglaterra. Jornalista e editor, inicia a carreira de escritor em 1900 com The Wallet of Kai Lung,o primeiro da série Kai Lung um chinês contador de histórias, protagonista de 7 livros. Cria Max Carrados, um detective cego, coleccionador de moedas – reflexo do interesse em numismática do autor; este personagem, que é mais tarde adaptado à rádio e à televisão, surge em 1914 no livro de short stories: Max Carrados. Ernest Bramah escreve diversas short stories e um total de 21 livros. CRIMINOLOGIA – MÓBIL DO CRIME O elemento impulsionador do delito, seja contra ou património ou delito de sangue – homicídio – é, em regra considerável, o detonador que revela o autor do crime. Sem dúvida que, também em regra, um quebra‐cabeças para o investigador, mas uma vez encontrado, é como ter descoberto a placa identificadora de uma rua que se procura. Com os motivos assegurados, os indícios e as provas dos delitos surgem com naturalidade fora do comum. 84 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Na lista das motivações, relacionada com maior frequência: 1 – Lucro (roubo, burla, peculato, corrupção, herança, partilha, etc.) em delitos materiais acompanhados ou não de assassínio; 2 – Vingança, ciúme e traição muitas vezes ligadas, que nos parece impossível apontar com infalibilidade, cada um deles (o crime passional irreflectido, também emocional ou ponderado); 3 – Eliminação, que também pode ser enquadrado no ponto anterior (sempre que se trate de eliminar um marido ou esposa que se tornou indesejável, a remoção de um amante pelo marido ou cônjuge), um chantagista ou uma testemunha que sabe demais etc.; 4 – Convicção, exemplo de um rival politicamente perigoso por qualquer circunstância; 5 – Prazer de matar, o criminoso nato, o psicopata, que se satisfaz no acto ou na vaidade de ver o assunto na comunicação social; 6 – Sexo (violação, orgia tortura, sadismo, etc., às quais se segue a morte — para esconder os actos ou pelo caso de ser abrangido pelo ponto anterior). Outras hipóteses seriam de aludir, o mundo é vasto e as motivações parecem ainda maiores. CASOS E CASOS – O DILEMA DO PISTOLEIRO Eddie Simpson era chamado o Houdint Louco por causa do brilho selvagem dos seus olhos e da sua extra‐ordinária habilidade para fugir, mesmo quando trancado numa cela. Como membro da infame quadrilha Kilgallen, em Boston, Eddie havia adquirido a fama de ser o melhor atirador do bas‐fond. Entretanto, embora a sua especialidade fosse assassinar os concorrentes, guardava seu mais acerbo ódio para a polícia. Mais de uma vez havia sido encurralado, mas depois que o fumo dos tiros se dissipava, Eddie havia desaparecido. Mesmo quando a polícia o prendeu em 1923, acusado de tentativa de assassinato contra um polícia escapou facilmente. Traiu os amigos e livrou‐se da pena. Em 1937 era um bandido solitário, odiado no seu meio, evitado pelos seus antigos amigos e perseguido desesperadamente pela polícia que o agarrou e encarcerou na Cadeia da Rua Charles, em Boston. Entretanto, alguns dias mais tarde, o Houdint Louco tinha desaparecido. Usando um fio humedecido com saliva e coberto com esmeril em pó, abriu passagem cerrando as barras da janela do seu cubículo. Novamente em liberdade, furtou um carro, roubou alguns restaurantes e arranjou dinheiro para comprar roupas vistosas. Queria a companhia das mulheres, mas sabia que qualquer das suas antigas conhecidas entregá‐lo‐ia à polícia na primeira oportunidade. 85 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Assim, no carro roubado e bem vestido fez uma conquista. A moça manifestou o desejo de aprender a guiar Eddie, ansioso para agradar à sua nova namorada, entregou‐‐lhe o volante. Alguns minutos depois ela avançou num sinal vermelho. Dois polícias do trânsito, Henry Bell e William Phelan, obrigaram o carro a encostar. Ser preso, mesmo por violação do regulamento do tráfego, era uma coisa que Eddie não podia sofrer. Tentou subornar os policiais, o que foi um erro, pois fez William Phelan ir ao café da esquina e telefonar ao distrito. – Há qualquer coisa esquisita neste negócio – disse Phelan ao colega, antes de partir. Vigie esse sujeito. Não tem boa cara. Logo que Phelan partiu no carro da polícia, Eddie perdeu a cabeça, Pôs a moça fora do carro, sacou uma arma, e obrigou Bell a entrar. – Vá guiando – ordenou – e depressa! Este foi o segundo erro. A moça, gritando que um polícia tinha sido raptado, chamou a atenção de outro, Lawrence Murphy, que partiu velozmente em perseguição, na sua motocicleta. Eddie percebeu então que tinha avançado muito para recuar. As balas da sua mortífera pistola abateram Murphy. Bell soltou o volante e atracou‐se com o homem ao seu lado. Eddie disparou contra ele, depois saltou do carro e começou a correr. Murphy, embora mortalmente ferido, levantou‐se e disparou contra o fugitivo. O homem cambaleou, porém não caiu. Um instante depois tinha desaparecido. Uma vez mais estava livre. Mas… O tiro de Murphy tinha‐o atingido nas costas. A bala alojara‐se numa vértebra do pescoço. Havia nela as marcas balísticas que a identificariam como disparada pela arma de Murphy. Durante dias ficou de cama no seu esconderijo, tratado empiricamente e servido por um homem com quem travara amizade na prisão. O ferimento o atormentava e em vez de sarar, estava dando sinais de infecção. Eddie viu‐se pela primeira vez, numa situação contra a qual nada podia fazer. Pior do que isso, encontrou‐se nas portas de um dilema como poucas pessoas se têm encontrado. Se mandasse extrair a bala por um médico, a polícia saberia e a bala condená‐lo‐ia à cadeira eléctrica. Se não a mandasse extrair, morreria de infecção. Ainda permanecia indeciso quando a polícia invadiu o seu esconderijo. Mesmo no leito do hospital da prisão, delirando de febre, ele não tomou uma resolução. E a lei não podia intervir. Em Massachussetts nenhuma pessoa encarcerada pode ser submetida a uma operação sem seu próprio consentimento. Somente quando percebeu que ia morrer cedeu. Uma rápida intervenção cirúrgica salvou‐lhe a vida. E a mesma operação revelou a bala de Murphy e condenou‐o à morte. 86 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 21 DE MARÇO EFEMÉRIDES David Alexander (1907‐1973) – Nasce em Shelbyvill, Illinois, EUA. Jornalista e romancista prolífico, publica muitas short stories nas revistas da época. O primeiro livro, Most Men Don't Kill (1951), também editado com o título The Corpse in My Bed. Cria os personagens Tommy Twotoes e Bart Hardin, um editor do The Broadway Times, que surge em Terror On Broadway em 1954 e é a personagem central de 8 livros. O autor usa os pseudónimos Kyle Maning e John Sievert. Michael Dibdin (1947‐2007) – Michael Dibdin nasce em Wolverhampton, West Midlands, Inglaterra. O primeiro romance The Last Sherlock Holmes Story, é publicado em 1978. Michael Dibdin muda‐se para Itália e vive em Perugia durante 4 anos, o que lhe fornece os dados políticos e sociais para criar o ambiente do seu personagem principal, o polícia veneziano Aurelio Zen que protagoniza 11 livros. Fora desta série o autor publica mais 8 romances e edita 2 antologias The Picador Book of Crime Writing em 1993 e Vintage Book of Classic Crime em1997. Recebe o Grand Prix de Littérature Policière em 1994 e da Crime Writers' Association o Macallan Gold Dagger para Ficção em 1988. Em Portugal estão editados 2 livros deste escritor: 1 – Jogos Sujos (1992), Nº 8 Colecção Bolso Negro, Editora Puma; Título original: 87 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Dirty Tricks (1991). 2 – Lagoa Morta (2001), Colecção Noites Brancas, Asa Editores; Título original: Dead Lagoon (1994), o 4º livro da série Aurelio Zen. TESTE DE RACIOCÍNIO 1 Uma mulher percorreu as ruas de determinada zona. Chegou esfalfada. No entanto ainda lhe restava fazer algo. Suspirou. Não havia nela deliberação para os seus actos; ela nem sequer conhecia, ao que se lembrava, os três indivíduos a quem destinava uma comunicação séria. Um mexicano turista, um ladrão de bancos, produto nacional que fazia parte de uma quadrilha e tinha um papel específico no assalto planeado, e um padre. Escreveu os três bilhetes iguais a estas pessoas diferentes. O tal ladrão ao recebê‐lo riu‐se e atirou‐o fora, o turista teve igual atitude, somente o padre ficou triste, deveras preocupado ao receber o bilhete. Quem era essa mulher? Como explicar a atitude dos três homens? Raciocine com calma. Não tenha pressa. Bom raciocínio. CONTO DE TERROR – O RELÓGIO FATÍDICO De F.S.P. Algum dia se saberá qual a relação que existia entre o coração e o relógio de parede herdado da sua bisavó. Por que no dia em que este parou, o seu coração deixou de palpitar. Uns, pobres de espírito, diziam que o relógio era um irmão siamês que havia sido separado por artes médicas. Outros, desembaraçadamente, contavam que o defunto realizara experiências com o tempo utilizando o relógio e que havia morrido durante umas dessas experiências, vítima de uma falha técnica. Todavia um grupo dos mais cépticos, que pensam e dizem para quem quer ouvir, que o dito defunto era maníaco, hipocondríaco e a sua obsessão pelo relógio, no dia em que deixou de trabalhar, o seu coração pararia para sempre. Apesar de tudo, a mim nenhuma destas explicações me parece conveniente. Continuo a pensar que entre o coração do morto e o relógio existia uma estranha relação. Poderia analisar os factos e talvez um dia chegar a encontrar a relação. Entretanto, conformamo‐nos em assistir ao enterro do desditoso defunto. 88 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 22 DE MARÇO EFEMÉRIDES Dutra Faria (1919‐1978) – Francisco de Paula Dutra Faria nasce em Angra do Heroísmo, Açores. Figura fortemente ligada ao Estado Novo. Com o pseudónimo Patrick Al‐Cane publica em folhetins no Diário da Manhã O Mistério da Serra Interdita, que é posteriormente editado pela Tipografia Olegário Fernandes em 1945, é Nº 1 da Colecção Biblioteca da Aventura e do Mistério. Ella Griffiths (1926‐1990) – Nasce em Oslo, Noruega. Usa diferentes pseudónimos: Ella Griffiths Ormhaug, Ella Griffiths Hytten, Ella Ormhaug e Ella Hytten. Escreve livros para crianças, jovens, contos, ficção científica e romances desde 1957. Inicia‐se na narrativa policiária com Hun Møtte en Fremmed, (Ela conheceu um estranho, em tradução literal) e até 1988 publica um total de 16 livros nesta temática. Está traduzida em várias línguas. O seu livro Hilsen Lucifer (1970) recebeu vários prémios. As suas obras mais conhecidas são as que têm como personagens principais os detectives e irmãos Rudolf e Karten Nielsen: Murder On Page Three (1984), The Water Widow (1986) e ainda Dead Men Don't Steal, um livro de short stories, algumas incluídas na conhecida série britânica Contos do Imprevisto. 89 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO James Patterson (1947) – Nasce em Newburgh, New York, EUA. É um dos escritores mais conhecidos e com mais vendas de sempre, o autor de alguns dos bestsellers da última década. Estima‐se que se tenham vendido 220 milhões de cópias dos seus livros em todo o mundo. O autor tem uma vastíssima obra literária, com livros para crianças e jovens, ensaios e ficção, mas o destaque vai para o thriller. O primeiro livro escrito por Patterson é The Thomas Berryman Number (1976), vencedor do Edgar Award para Best Fist Novel em 1977. Cria a série Alex Cross, o detective/psicólogo que surge pela primeira vez em Along Came a Spider (1992) e tem hoje um total de 20 livros; a série Women's Murder Club, com 11 títulos; e a série do detective Michael Bennett, escrita em parceria com Michael Ledwidge, com 5 livros. O autor tem adaptado diversos trabalhos ao cinema e televisão, o mais conhecido é A Conspiração da Aranha com Morgan Freeman no papel de Alex Cross. Em Portugal estão editados vários livros do escritor pela Editorial Presença e Quinta Essência, esta última com a série O Clube das Investigadoras. NARRATIVA POLICIÁRIA – TRAIÇÃO DA AMNÉSIA De Susana Raposo O orvalho da manhã deslizava suavemente pelas folhas das escassas plantas rasteiras que revestiam aquele bom pedaço de terra batida. A espessa bruma matinal quase que ocultava o simpático aglomerado de pinheiros, e alguns eucaliptos. O indivíduo, estendido como que ao abandono, espreguiçava‐se mergulhado numa atitude despreocupada, totalmente absorto do mundo que se estendia à sua volta. O seu olhar perdia‐se, talvez deslumbrado, por todo aquele espaço desconhecido; sentia‐se perfeitamente tonto, como se tivesse despertado de um sonho esquecido e incontável, do qual a sua existência emergisse e renascesse simultaneamente, não se recordando assim de qualquer passado que tivesse deixado repousado num tempo antecedente. 90 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Estes seus pensamentos confusos e inseguros, foram estridentemente interrompidos por uma sirene barulhenta. Instintivamente ergueu‐se. Era irremediavelmente dominado por algo que tomava conta do seu ser… sim, era a sua própria amnésia que lhe coordenava os movimentos. Cortava a bruma, desviando‐se frequentemente dos obstáculos que eram os ingénuos pinheiros. Dirigia‐se a uma mancha de pessoas que se avistava ao longe. Do local brotavam murmúrios e lamentações. Uma mulher de meia‐idade inundava‐se em lágrimas, debruçada sobre um corpo moribundo e ensanguentado. – Foi ele! Ainda tem o ódio escrito na face! – exclamou a mulher, de um modo agressivo mas triunfante, assim que reparou no primo do seu marido, que acabara de chegar ao local do massacre. O homem não ofereceu qualquer resistência. O seu estado tornara‐se ainda mais obscuro. Dois dias depois, já atrás das grades, a sua memória voltou a assumir a sua posição. Vinham‐lhe as imagens da forma como tinha espancado o seu primo… mas em sua auto‐
defesa. O primo não lhe perdoara o facto de ter regressado ao seu país natal, pois uma saborosa herança estava em jogo. Apesar de seu pai ter deixado a fortuna em testamento ao parente mais próximo, o primo que já não vivia, ele podia reivindicá‐la caso aparecesse com tal intento. A amnésia traiu‐o. Fora ela que o conduzira ao local onde tinha deixado o defunto. Sim, de facto ele tinha morto um homem… um parente, mas naquela noite o primo tinha‐
o procurado para matá‐lo a ele, só que a situação invertera‐se. E o seu carro? O que seria feito dele depois de se ter esmagado, contra o poste à beira da estrada? A sua própria amnésia tinha sido a sua condenação. Talvez um dia pudesse voltar ao estrangeiro e esquecer tudo aquilo, como outrora esquecera também o passado. FICÇÃO CIENTÍFICA – PARA ALÉM DO TEMPO De J. F. T. Gonçalves A nave passou zumbindo a rasar as copas das árvores verdejantes que rodeavam o vale, onde, algures no tempo, ficava a base‐mãe. Tangor, oficial da Esquadrilha Temporal do planeta Beta 5 do sistema de Centauro, dominou finalmente a angústia que o atormentava, depois da quinta evolução em torno do planeta. Estava no seu planeta natal, mas totalmente deserto dos milhões de seres, que algumas horas atrás o habitavam. 91 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Tangor regressara de uma missão de rotina, e encontrara o planeta sem quaisquer vestígios de civilização. Apenas um templo, que observava pelo visor e ia agora inspeccionar. A sua grande preocupação era o inexplicável não funcionamento do medidor de efectividade espaço‐temporal, impedindo‐o de viajar no espaço‐tempo. Também o medidor de efectividade de tempo normal estava parado. Piorando a situação, o robot‐
mecânico tinha “enlouquecido” e agitando os braços metálicos dizia coisas sem nexo e sem qualquer utilidade prática. A nave volteou e aproximou‐se do vale. Numa colina que dominava toda a depressão, erguia‐se o estranho Templo. O detector iónico seguiu a nave, e o computador biológico – Guardião do Templo – melancolicamente constatou que há mais de 20 números Aleth nenhum sábio ou monge visitara o templo sem ser em estado de profunda meditação, em viagem pelo irreal e pelo fantástico. Tangor preparou a manobra de aterragem. Verificou a aparelhagem e ficou pensativo a olhar o medidor que continuava sem funcionar. A nave poisou com um suave e quase hipnótico balanço. Saiu, depois de carregar a arma de fusão e deixar os robots‐
guardas em estado de alerta. Aproximou‐se da escadaria do templo verificando que era imponente, de um estilo muito antigo. Mas em tal estado de conservação que parecia que o tempo não tinha feito sentir a sua acção. A meio da escadaria, uma sensação de medo fê‐lo voltar‐se. A algumas dezenas de metros a sua nave cintilava e o robot‐guarda assobiou em sinal de que estava atento. Quase lhe deu a impressão que o robot tinha piscado o olho! Mas não, tal não era possível. Nunca tinha visto uma “coisa” daquelas piscar o olho a um ser humano. Ainda pensando nisto deu‐se consigo no patamar superior. Ao pisá‐lo o portão abriu‐se, ao mesmo tempo que uma voz fria e sem emoção, dizia: “Sê bem vindo, humano, ao Templo onde é guardado o segredo do Tempo Efectivo de Normalidade Geral, regulado na mesma intensidade universal. “Saberás que qualquer gesto ou acção de agressividade, ainda que intencional, te trará imediatamente a morte. Deixarás a arma à entrada ou não chegarás a dar três passos no interior do templo. Acompanhar‐te‐á um andróide que te vedará a visita à zona interdita. Estarei de vigia e basta que fales se pretenderes qualquer informação”. O computador estranhou o comportamento da criatura que ali ficou parada, olhando espantado o interior escuro para além da entrada, sabendo que olhava para além do tempo… Tangor nada disse. Deu meia volta e desceu as escadas. Sabia que estava perdido, condenado a não voltar mais voltar ao seu planeta. Os sábios do seu Sistema já tinham visitado o templo há muitos milhares de unidades de tempo, apenas espiritualmente. De outra maneira era quase impossível, mas ele estava ali! Agora sabia que tinha entrado no chamado “buraco intemporal”, que era por assim dizer a porta para um tipo de “universo paralelo”. Para entrar, uma hipótese num milhão. Para sair, talvez nenhuma… Procurar a 92 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO saída para o seu Universo era pouco mais ou menos procurar uma esfera infinita, cujo centro está em todo o lado e o círculo limite em parte nenhuma! Entrou na nave e os reactores de activação dimensional começaram a zunir. Lembrou‐se dos heróis que morriam nas suas “vimanas”, na grande batalha do “Armagedon”, no longínquo planeta dos homens da Terra, dos quais falava o “Livro dos Deuses”. Lembrou‐se ainda da sua companheira, afastada dele... apenas uma eternidade! Já a nave subia no espaço azul, quando o portão do Templo se fechou. O Guardião meditava para com os seus componentes electrónicos, sem saber como elaborar o relatório do estranho acontecimento. Tangor, 1º Oficial Graduado da Esquadrilha Temporal, acelerou a sua "vimana" na ordem do factor inverso do módulo de gravidade, com rumo ao infinito. O robot‐
mecânico fitava um ponto que não existia. A nave tremeu ligeiramente e o humanóide de metal, começou a cantarolar baixinho. Tangor ligou o sistema de auto‐desintegração da nave, e entrou na câmara de suspensão de vida! Lá em baixo, o Guardião tentava ainda detectar a nave que perdera já de vista. Entretanto, um robot‐móvel procedia à substituição de um filtro biológico, que se decompusera. Velava assim pelo bom estado do seu Mestre e Senhor, Guardião do Templo, por todos os séculos sem fim… 93 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 23 DE MARÇO EFEMÉRIDES Philippe Bouin (1949) – Philippe Bouin nasce em Bruxelas, Bélgica. Trabalha na área de marketing e comunicação até se iniciar na escrita em 2000 com Les Croix de Paille, vencedor do Prix Océanes 2001. O livro é um sucesso editorial, passado na época de Luís XIV e onde o autor põe em cena o jovem Dieudonné Danglet, um dos seus personagens principais. O segundo livro, Implacables Vendanges (2000) tem como protagonista Soeur Blandine, uma religiosa nada comum; este livro recebe o prémio Prix Métier et Culture 2001. Philippe Bouin está publicado em vátios países e tem até agora duas dezenas de obras. Destaca‐se: Mister Conscience (2006), considerado o primeiro thiller do escritor e vencedor do Prix Lgm Lire 2007 e Comptine En Plomb, que se insere na escrita do romance negro e recebe o Prix Polar Cognac 2008. Philippe Bouin é o criador e o organizador do Raisin Noir, um salão de literatura policial e de mistério, um encontro de autores em Bourgogne‐França, local onde o escritor vive. Steven Saylor (1956) – Nasce no Texas, EUA. Diplomado em história e literatura antiga, inicia com Roman Blood, em 1991, a série Roma Sub Rosa, um conjunto de 12 romances policiários históricos com o protagonista Gordianus, passado na Roma de Cícero, César e Cleópatra. As short stories sobre Gordianus aparecem no Ellery Queen’s 94 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Mystery Magazine e em antologias, mas estão reunidas em 2 livros: The House Of The Vestals (1997) e A Gladiator Dies Only Once (2005). O primeiro conto de Gordianus, A Will Is a Way ganha em 1993 o Robert L. Fish Award que Mystery Writers of America atribui anualmente à melhor primeira short story de mistério de um autor. Ainda nesta série o autor tem agendado para Maio deste ano o 13º volume, The Seven Wonders. Steven Saylor escreve 2 livros cuja acção decorre no Texas, A Twist At The End (2000), baseado no registo americano mais antigo de crimes em série que aterrorizaram Austin, Texas em 1885; o protagonista é o jovem William Porter, que seria mais tarde o famoso escritor O’Henry; o outro livro Have You Seen Dawn? (2003), um thiller contemporâneo. No entanto as obras mais célebres deste autor são as da série Roma: The Novel of Ancient Rome (2007) e Empire (2010), ambos best‐sellers internacionais. O autor tem obras traduzidas em 21 línguas e em Portugal estão publicados 16 livros pela Quetzal Editores e pela Bertrand Editora. Em 23 de Março de 1999 o célebre escritor Thomas Harris entrega finalmente (com anos de atraso) um manuscrito de 600 páginas aos seus editores, Delacorte Press. Este novo romance Hannibal, a segunda parte de um contrato, com mais de 10 anos, celebrado com a editora e pago antecipadamente é lançado três meses depois, Hannibal é o terceiro romance do serial killer Hannibal Lecter, que apareceu pela primeira vez em 1981 em Dragão Vermelho. O segundo livro O Silêncio dos Inocentes (1988), vendeu cerca de 10 milhões de cópias e foi adaptado ao cinema por Ridley Scott. 95 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO CASOS E ACASOS DO CRIME – A CAVEIRA REVELADORA – Se alguém lhe mostrar uma caveira com um buraquinho no crânio lembre‐se que é dessa forma que seu crânio ficará, se falar. Esta ameaça silenciou todas as testemunhas possíveis e completou o último passo de um crime perfeito. Até a vítima tinha cooperado com o assassino. Durante trinta anos residira numa fazenda próspera no Rio Bow. Guardava o seu dinheiro em jarros de vidro, escondidos na fazenda, em vez de depositá‐lo nos Bancos. Usava o nome de Tucker, mas o seu verdadeiro nome era Peach. Nunca foi visto sem o chapéu puxado sobre os olhos e usava uma barba que lhe mascarava a parte inferior do rosto. Falava pouco e quando lhe dirigiam a palavra dava respostas lacónicas. Não tinha amigos: Um dia de Março de 1910 anunciou na agência do correio de Glays que tinha entregado a sua fazenda a um rapaz chamado Tom Robertson e ia voltar à sua pátria, a Inglaterra. Depois ninguém mais o vira. O assassino fora um homem chamado Jack Fisk, conhecido ladrão de cavalos. Se algum fazendeiro protestava, Fisk ameaçava matá‐lo, mas sabia que não podia manter o seu império de terror se não matasse alguém para exemplo da comunidade do Rio Bow. Tucker era candidato natural. Tucker desejava apenas que Robertson tomasse conta da fazenda enquanto ele ia a Inglaterra; contudo, escreveu o que Robertson ditou e isto foi um documento de venda. Fisk então matou Tucker com um tiro na cabeça e levou os mil e quinhentos dólares que sua vítima guardava em jarros de vidro. O cadáver foi atirado ao Rio Bow e Fisk não se importou que o vissem. Depois de cumprida uma das suas ameaças, sabia que todos guardariam silêncio. Dois meses mais tarde um cadáver decapitado foi encontrado no rio. A decomposição estava tão adiantada que o Chefe da Polícia Montada de Calgary foi 96 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO incapaz de fazer outra identificação, excepto que se tratava de um homem de cerca de 60 anos de idade e de estatura mediana. Em Novembro, quando o rio congelou, um homem, ao atravessá‐lo, viu uma caveira brilhando como uma pedra branca. Havia um orifício de bala na testa, no centro de uma depressão causada pelo afundamento do frontal, com rachas que irradiavam. A longa submersão fizera as rachas parecerem ter sido feitas pela bala, porém um cientista, Dr. Revell, verificou que a depressão e as rachas eram resultado de uma antiga fractura de crânio. Um detalhe interessante: embora a carne tivesse desaparecido inteiramente, encontravam‐se nos ouvidos dois tufos de algodão. – O homem era provavelmente surdo – declarou o Dr. Revell. A causa da surdez foi o ferimento na cabeça, resultante de um coice de cavalo. Deane, o chefe da Polícia, percebeu que, por medo, ninguém queria falar. Soube, que o único homem desaparecido era Tucker. O seu hábito de usar o chapéu puxado sobre a testa interessou, o investigador. Um homem com um defeito no rosto procura ocultá‐lo. O detective foi à antiga fazenda da vítima e falou com Robertson. Este apresentou o documento de compra da propriedade. – Era surdo? – Sim, era. – Recebeu há tempos um coice? – Sim, de um cavalo – explicou o homem. Deane pensou em prendê‐lo mas desistiu, pois Robertson não era capaz de aterrorizar uma comunidade inteira. Os agentes policiais mantiveram‐se em constante vigilância. Com o tempo verificaram que apenas um homem não participava do terror dos demais. Esse homem era Jack Fisk. Investigações revelaram que Fisk trazia Robertson sob o seu inteiro domínio e tinha um estábulo na cidade próxima. Os animais eram obtidos sem fontes misteriosas. O investigador mandou prender os dois suspeitos. Robertson fraquejou e confessou, porém Fisk não. Durante o inquérito policial, quarenta e três testemunhas, vendo o olhar cheio de ódio do acusado, recusaram depor contra ele. Entretanto a sua habilidade para aterrorizar testemunhas foi um tiro pela culatra — o júri considerou‐o culpado. Foi enforcado no dia 27 de Abril de 1911. O crime perfeito arruinado pela caveira de um surdo encontrada no gelo. Robertson foi condenado a prisão perpétua. Com a morte de Fisk, o terror dissipou‐se na comunidade, e toda a história se tornou conhecida. 97 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO O CONTO DO VIGÁRIO – VIGARISTA DESDENTADO Carl Erbe o famoso chefe de relações públicas, ocupou um escritório do Brill Bulding, na Broadway, quando dirigia o Singapore Club, que funcionava em baixo. Uma tarde um sujeito entrou no escritório de Carl, abriu a boca para dizer algo, porém não se ouviu nenhum som. – Que foi que houve, companheiro? – perguntou o prestativo Erbe, reparando nas roupas maltrapilhas do estranho, bem como na sua palidez e no olhar de fome. – Deseja um pouco de comida, ou coisa que o valha? O homem finalmente falou, com os olhos húmidos: – Eu não o conheço, e o senhor não me conhece – murmurou – estou desesperado e dizem que o senhor é homem direito. Se eu não conseguir um empréstimo de 250 dolares a minha mulher, e meus cinco filhos serão postos na rua e morreremos de fome. Erbe comoveu‐se. – Gostaria de ajudá‐lo – respondeu com bondade – mas olhe, duzentos e cinquenta bagarotes um bocado de dinheiro. Quer saber de uma coisa? Dou‐lhe cinquenta e com isso talvez ajude um bocadinho. Nesta altura o sujeito rebentou em lágrimas. – O senhor, é uma pessoa excelente, maravilhosa – soluçou – mas não posso receber os cinquenta dólares sem lhe dar uma garantia qualquer. Espere um momentinho. Com estas virou as costas a Carl, tacteou nos bolsos e depois entregou ao seu benfeitor um pequeno pacote embrulhado em papel, dizendo em voz quase inaudível: – Fique com isso como garantia até eu devolver o que me emprestou. E logo saiu porta afora, tão silenciosamente quanto entrara. Carl quase caiu ao abrir o embrulho e ver o conteúdo: uma dentadura completa, superior e inferior. Sentindo a necessidade de um trago, tomou o elevador e entrou bamboleante no Turf Restaurant, do andar térreo, juntando‐se a um grupo de editores musicais do mesmo edifício, a quem contou a história. 98 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO – Ora, és idiota – riram – se investigares um pouco por aí vais ver que foi o décimo pato a quem esse sujeito abordou. Trabalha com mais pontes do que as autoridades do porto de Nova Iorque, e a polícia daria um dente para lhe deitar as unhas! Erbe sacudiu a cabeça e jogou a garantia dentro de um cinzeiro. – Bem, mas é preciso admitir que tal sujeito descobriu uma vigarice original – sorriu ele sem vontade. 99 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 24 DE MARÇO EFEMÉRIDES John K. Butler (1908‐1964) – Nasce em San Francisco, Califórnia, EUA. Autor de dezenas de contos publicados entre 1935 e 1942 nas revistas Black Mask, Detective Fiction Weekly, Double Detective e especialmente Dime Detective. Os seus personagens mais conhecidos são: Steve Midnight taxista em Los Angeles, Rex Lonergan detective da polícia, Tricky Enright um polÍcia à paisana e Rod Case investigador da General Pacific Telephone Company. Butler é ainda conhecido como um dos mais prolíficos argumentistas de filmes da classe B, westerns, mistério e suspense. Na década de 50 muda‐se para a televisão onde escreve para as séries The New Adventures of Charlie Chan, The Adventures of Dr. Fu Manchu e 77 Sunset Strip, a primeira série de detectives privados na televisão, exibida entre 1958 e 1964. Donald Hamilton (1916‐2006) – Donald Bengtsson Hamilton nasce em Uppsala, Suécia e emigra em 1924 para os EUA. É escritor e fotografo a tempo inteiro, começa a carreira literária em 1946 em revistas de ficção e em 1947 publica o primeiro livro Date With Darkness, um romance de espionagem. No campo da literatura policiária escreve um total 27 romances de detective/espionagem. O seu personagem mais conhecido é Matt Helm, um assassino profissional com o nome de código Eric, que trabalha para uma 100 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO agência governamental e mata sem remorsos é muito mais pragmático e implacável do que o colega britânico, o famoso James Bond. Os romances desta série, The Retaliators (1976) e The Terrorizers (1977) são nomeados para o Edgar Award para Best Paperback em 1977 e 1978. Lene Kaaberbøl (1960) – Nasce em Copenhaga, Dinamarca. A autora pertence a nova vaga de escritores escandinavos de policiário, embora seja mais conhecida internacionalmente pelos seus livros de fantasia passados na Idade Média e destinados a jovens. Em parceria com Agnete Friis escreve o thriller Drengen I Kufferten / Boy In The Suitcase (2008) proposto para o Glass Key Award, um prémio sueco que distingue anualmente o melhor romance de crime escrito por um autor nórdico. ENIGMA POLICIÁRIO DE TRAJECTÓRIA Este tipo de enigma tem muitas afinidades com a investigação e técnica policiais correntes. A direcção ou trajectória, ponto material no seu movimento ou linha descrita ou percorrida por um corpo em movimento, revela de imediato, e na generalidade dos casos, os x e y correspondentes ao arremesso e impacto investigados, corrigidas naturalmente, as perturbações ou desvios ocasionais a que houver lugar. Em balística, diz‐se trajectória, à curva descrita pelo centro de gravidade de um projéctil no seu movimento de transladação através da atmosfera. Tem o seu ponto de origem a boca da arma e o limite ou termo, o ponto atingido. Dos caprichos de uma trajectória de um projéctil nos dá conta um texto mundialmente conhecido, Mostly Murder, de Sir Sidney Smith, professor de Medicina Legal da Universidade de Edimburgo. É evidente que, para um estudo profundo em matéria de balística remetemos os interessados para os vários compêndios existentes, para os efeitos da problemística 101 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO lembramos, tão só, das vantagens em fixar pontos de movimento. Também a altura do agente que origina a trajectória, a distância e a posição em relação ao atingido, quando não a instantânea identificação daquele, são os resultados extraídos da observação da trajectória. ENIGMA PRÁTICO – UM CASO SINGULAR De Gustavo José Rodrigues in Quem Foi? (1959) O meu carro seguia em marcha moderada, o mesmo acontecendo com os dois veículos que me precediam – um carro baixo, de linhas aerodinâmicas e um camião de mudanças; que dir‐se‐ia absorver com a sua altura o carro da frente. A meu lado, o inspector Machado criava uma atmosfera alegre com as suas curiosas observações. De súbito virei a cara, espantado, para a direita, onde, no passeio, um homem alto e bem vestido, que seguia na mesma direcção do automóvel, depois de dar duas voltas sobre si mesmo, caiu redondo por terra, como que fulminado. Instintivamente, e logo que o inspector Machado se apeou lesto, ao mesmo tempo que me dizia para seguir os outros dois carros. Assim fiz; e se depressa alcancei o camião, já o mesmo não aconteceu com o outro veículo que, mais veloz que o meu, cada vez se distanciava mais. A certa altura começou a abrandar e eu pude, então, ver a matrícula. Anotei‐a rapidamente, sob a do camião, e voltei a grande velocidade para o local do acidente. O inspector Machado, rodeado de alguns curiosos, poucos, pois a rua era pouco concorrida, debruçava‐se sobre um corpo, assim como um polícia de giro. Aproximei‐me. Da cabeça da vítima o sangue brotava abundantemente. Indisposto com tão triste espectáculo, afastei‐me um pouco. As janelas das casas próximas eram todas altas e não tinham persianas – o género de habitações antigas. Começava a sentir‐me um pouco melhor quando o inspector me fez um sinal e se encaminhou para o automóvel. Entrámos e afastámo‐nos do local em silêncio. Naquele instante passavam alguns peões? – perguntei ao inspector, mal nos acercámos do edifício policial. – Sim. Um que seguia um pouco atrás do pobre homem e que se preparava para o ultrapassar. – Viu‐o? – Absolutamente. Seguia colado à parede, pois o passeio é bastante estreito. No outro não reparei porque ia muito à frente, quase no outro extremo da rua. Entretanto, tínhamos chegado ao gabinete do inspector. Ali, depois de atirar o casaco para uma poltrona, o polícia perguntou‐me: – E por que esperas, meu rapaz? Tomaste conta da ocorrência? – Claro – disse eu, ligeiramente perturbado. – Aguardemos, porém, o relatório 102 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO médico. Decorrida quase uma hora, uma ordenança entrou no gabinete, portadora do relatório pelo qual eu tanto ansiava. O inspector leu‐o rapidamente. Finda a leitura, acendeu um cigarro e pôs‐se a passear de um lado para o outro. – Toma, meu rapaz – disse, estendendo‐me o relatório. – É fácil, mesmo muito fácil. A bala alojou‐se à direita, junto à sutura do parietal com o temporal. Foi disparada à distância de quatro a seis metros. A sua trajectória fez‐se na oblíqua ascendente. Não tive necessidade de ler o relatório, O meu amigo inspector poupara‐nos esse trabalho. Na verdade, o caso era fácil. – Exacto ‐disse o inspector, após ter escutado as minhas deduções. Exacto… Quem matou? Pense um pouco. HUMOR – EM LOUVOR DO MÉTODO DEDUTIVO Felix da Picota, um dos grandes do Policiário dos anos 50, honrou‐nos com uma paródia dos excessos de confiança de Sherlock Holmes Li uma vez, num romance policiário, uma coisa que me fez rir: o detective tinha, deduzido que tal personagem era procedente da Escócia porque tinha reparado numa pequena mancha de lama seca, cor de rosa ou com tons violáceos, na dobra da calça… Ninguém poderá negar que Sherlock Holmes tem muito disto, e é aí que reside o seu maior mérito. Mas agora encontro‐me em condições de provar, com uma experiência pessoal, o valor e a eficácia do método dedutivo. Foi um livro, cujo nome esqueci, que me deu o gosto de experimentar. Encontrei‐
me, assim, em frente a um par de sapatos, analisando‐os. As pasmosas conclusões a que cheguei – afirmo‐o – são absolutamente verdadeiras, nos seus mais pequenos pormenores. A primeira dedução que fiz poderá parecer irrisória a qualquer espírito menos prevenido mas revela de forma inequívoca o método seguido: o dono dos sapatos era um homem, porque aquele era um par de sapatos para homem! Tinha de altura precisamente 1,74 metros, e pesava 72,300 kg. Era pessoa remediada, porque tinha podido comprar aqueles sapatos — se já os tivesse pago, é claro. E era desleixado, sem personalidade e sem a mínima percentagem de bom gosto, porque os sapatos eram impossíveis, duma cor impossível, e estavam sujos e por engraxar... Trabalhava num escritório, porque a sola interior estava colada com cola tudo. E era patriota, porque a cola‐‐tudo era nacional. Chamava‐se Epaminondas (na realidade, só uma pessoa chamada Epaminondas era capaz de comprar sapatos como aqueles). Tinha 43 anos e três meses, e era casado: o cabedal da parte superior estava riscado, com marcas que só podiam ter sido feitas por uma vassoura de varrer a casa. E era casado com uma morena, 103 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO porque encontrei, caído sobre um dos sapatos, um longo cabelo loiro. Tinha um calo no pé esquerdo, no sítio em que vi, pela parte de dentro, uma reentrância. Não usava o tónico capilar “Foi um ar que lhe deu”, porque o exame microscópico revelou a presença de caspa caída nos sapatos, e só tem caspa quem não usa o tónico capilar. “Foi um ar que lhe deu”… Outros objectos que encontrei dentro dos sapatos (um pequeno seixo, uma ferradura, uma luva de boxe, um bilhete de carro eléctrico e fragmentos duma caneta esferográfica) conduziram‐me às seguintes conclusões: o nosso homem era gago, supersticioso, de espírito prático mas acanhado, e com o sistema nervoso avariado. Ainda desta vez exporei a maneira como cheguei a tais resultados: 1) Gago – em virtude do seixo; lembremo‐nos de Demóstenes e de como curou a sua gaguez; 2) Supersticioso – por causa da ferradura (diga‐se, em abono da verdade, que se tratava duma pequena miniatura em latão; 3) De espírito prático – a luva de boxe estava desenhada num bocado dum jornal, que ele tinha a tapar uma fenda do sapato; 4) Acanhado – hábito, ou defeito, que adquire toda a gente que anda de carro eléctrico. 5) Sistema nervoso avariado – caneta esferográfica… e não é preciso dizer mais nada! Direi ainda alguns outros resultados a que cheguei, embora omita o processo dedutivo, que é sempre o mesmo, por me parecer que apresentei já exemplos em número suficiente. Insisto, porém, em que as minhas conclusões, embora possam surpreender pelo inesperado, são absolutamente verdadeiras. Assim, soube que ele morava num 5º andar com elevador; que o porteiro do prédio se chamava Baptista; que tinha um tio rico na Venezuela, dono duma fábrica de pavios para velas e que não havia meio de morrer; que nas horas vagas se dedicava a fazer escritas por fora; e, para finalizar por agora (se relatasse toda a minha observação, nunca mais acabaria), a mais estranha e incompreensível de todas as deduções no género, jamais feita por um ser humano: o nosso homem tinha espirrado três vezes seguidas, em dia e hora que fixei rigorosamente, na sala de jantar de 2ª classe de um navio para o Brasil, com escala pelo Funchal, onde ele desceu para visitar um primo que estava com a varicela e que lhe pagou a passagem! Aqui fica uma ligeira amostra do muito que se pode conseguir empregando simplesmente um pouco de dedução e raciocínio. É com entusiasmo que recomendo a toda a gente este método. E oxalá a minha experiência desperte a curiosidade do leitor. Você, que me está a ler, analise hoje mesmo um par de sapatos. Verá as admiráveis mas verdadeiras conclusões a que chega. Principalmente se pegar nos seus próprios sapatos, que foi o que eu fiz! 104 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 105 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 25 DE MARÇO EFEMÉRIDES Lionel Black (1910‐1980) – Dudley Raymond Barker nasce em Londres, Inglaterra. Jornalista, repórter e editor, escreve sob os pseudónimos Anthony Matthews e Lionel Black, este utilizado nos livros policiários. Escreve 17 romances deste género literário, o primeiro publicado em 1960 A Provincial Crime. Cria as séries Emma Greaves Mystery (3 títulos), Kate Theobald Mystery (7 títulos) e Superintendente Francis Foy (3 títulos). PEQUENAS GRANDES JÓIAS DO CONTO – O HÓSPEDE De Lúcio Mendonça (1854‐1909), jornalista e escritor brasileiro Ele aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar azul, que viajou como caixeiro de cobranças, "cometa", e hoje é repórter. Por sinal que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão horrorizado mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada meu. Ao cair de uma tarde chuvosa de Março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai de Alfenas ao Machado, no sul de Minas. 106 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Junto à venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português, que ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas terrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança. Pousada, não era costume dar‐se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa diziam despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o caso era especial: trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de carrapato, e depois, com tanta carga de água, não havia meio de continuar viagem. Pediu pousada e ceia, pagando eu – acrescentou. – Ceia, arranja‐se‐lhe – disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que está mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir. E com o olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para dentro do balcão. – Não, por isso não seja – opinou ela; dá‐se‐lhe o quarto do Jequim. – Bem lembrado – concordou o vendeiro; – temos ali assim um quarto agora desocupado, que é o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem cama e colchão, que é o preciso para dormir… Se lhe serve… – Serve, serve – aceitou logo o Oliveira. – E dêem‐me alguma coisa que se coma; estou morto de fome! Enquanto se punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe destinaram, contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o animal ao pasto, um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si. Antes, porém, de sentar‐se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a canjiquinha, pediu que lhe trouxessem uma peneira. – Uma peneira! Ora essa! – É cá para uma precisão! Trouxeram‐lha, e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada de notas húmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as cédulas grandes, de duzentos, de cem, de cinquenta mil réis, uma boa meia dúzia de contos. Passou a peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e entrou a servir‐se da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro. Ao levar à boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que entrava com uma garrafa de vinho. Tão cobiçoso era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um clarão de pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar‐se, arrependido da imprudência de ter mostrado tanto dinheiro. Acabando de cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por isso deixava paga a hospedagem; deram‐lhe a boa‐noite e recolheu, com uma vela de sebo, ao quarto do Joaquim. Mal se viu só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá‐las 107 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO no bolso, e apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da meia‐noite, saltou pela janela com os arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado, selou a besta e tocou para a cidade, ao belo clarão da lua que despontava. Nem bem se perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo tropel de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão nos beiços apinhados tocou‐o para o campo. – Diacho! A minha janela aberta! – murmurou consigo. – Melhor! Entro sem precisar bater e acordar os velhos a esta hora. E, agarrando‐se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro, levando na outra o lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a janela, que o frio não era graça. À alta madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos, cautelosos, sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o mais alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto. Da cama, ao fundo, ouvia‐se a respiração compassada e forte de um bom sono ferrado. Aproximou‐se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela ténue claridade que vinha da saleta, onde o outro vulto, agachado e trémulo, sustentava e velava com a mão encarquilhada um candeeiro de azeite. Súbito, no silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma, duas, três, muitas, regulares a princípio depois desatinadas. – Anda! Traz a luz! – estertorou uma voz estrangulada. Entrou no quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa. Apenas a luz bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensangüentadas, dois gritos sufocados misturaram o seu horror: – O Jequim!!! – O filho!! O meu rapaz!! Fora, na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas. 108 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 26 DE MARÇO EFEMÉRIDES Castelo de Morais (1882‐1949) – José Gabriel Correia Castelo de Morais nasce em Lisboa. Jornalista, contista e escritor policial colabora com a revista Orpheu, Ilustração Portugueza e outras publicações da época. No policiário destacam‐se: Côreo (1910), Avé Eva (1916) e Sangue Bárbaro (1924). FICÇÃO CIENTÍFICA BIBLIOTECA ESSENCIAL DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA (7) Volume 15 – The New Adam (1939) de Stanley G. Weinbaum Volume 16 – The Black Flame (1939) de Stanley G. Weinbaum Stanley Grauman Weinbaum (1902‐1936), engenheiro químico americano, morreu muito novo, deixando ficar obras cuja fama só viria a verificar‐se posteriormente The New Adam e The Black Flame estão nesse caso. The New Adam é um estranho e sinistro relato, no qual um génio, dotado de um cérebro duplo deve assumir o governo da raça que, sucederá ao homem vulgar. Esse 109 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO homem, Edmond Hall, é uma nova espécie de Homo Sapiens, tem, porém, os seus problemas para encontrar a felicidade, os seus amores êxitos e, à semelhança de outros, este homem aperfeiçoado até ao último grau, a criatura que representa o super‐homem, tem insucessos. Em Portugal o livro foi editado em 1970. Ficha Técnica O Novo Adão Autor: Stanley G. Weinbaum Ano da Edição: 1970 Editora: Galeria Panorama Colecção: Antecipação Páginas: 205 The Black Flame é uma das primeiras novelas a tratar o tema do holocausto atómico, anos antes de Hiroxima. Articula‐se em duas partes: a primeira, a história de Margot, “A Negra",e de seu irmão, convertidos em seres imortais graças a um complicado processo biológico, que reinam despoticamente sobre um grupo de homens sobreviventes ao holocausto; a segunda, começa pela aparição de um homem do passado que conseguira sobreviver em estado cataléptico e modificar o destino da civilização pós‐atómica. 110 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Volume 17 – Slan (1939) de A. E. Van Vogt Alfred Elton Van Vogt (1912‐2000), filho de pais holandeses nasceu no Canadá, afeiçoado leitura, com especial predilecção pelos pulps, publicou o seu primeiro conto no Astounding Science Fiction criando desde logo uma instantânea reputação. Além dos escolhidos, citam‐se entre a sua vasta produção – Destination:Universe, The Mind Cage, The Twisted Men, Rogue Ship, Children of Tomorrow, The Darkness on Diamondia, Future Glitter e Cosmic Encounter. Ficha Técnica: Slan Autor: A. E. Van Vogt Ano da Edição: 1955 Editora: Livros do Brasil Colecção: Argonauta 23 Páginas: 241 111 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 112 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 27 DE MARÇO EFEMÉRIDES Joan Fleming (1908‐1980) – Joan Margaret Fleming nasce em Horwich, Lancashire, Inglaterra. Inicia‐se como escritora de livros infantis e publica o primeiro policiário em 1949, Two Lovers Too Many. É autora de um total de 32 livros – thillers e novelas góticas. Cria o personagem Nuri Bey Izkirlak, um detective filósofo turco que protagoniza os livros com que vence por duas vezes o Gold Dagger: When I Grow Rich (1962) e Young Man I Think You're Dying (1970). René‐Charles Rey (1934‐2011) – Nasce em Tunes onde vive até 1964, fixando‐se depois em Chilly‐Mazarin nos arredores de Paris. Apaixonado por história, ficção científica e banda desenhada inicia‐se muito jovem na escrita. No entanto só publica o seu primeiro livro policiário, Descente En Torche em 1974 com o pseudónimo Emmanuel Errer (iniciais R R do nome) que passa a utilizar nos romances negros com temas de espionagem ou ficção política. Utiliza ainda o pseudónimo Charles Nécrorian na escrita de alguns romances de terror notáveis. Sob o pseudónimo Jean Mazarin publica vários policiários onde os problemas da sociedade são tratados com humor e onde se destacam os seguintes personagens: Esope Mazonetta, um napolitano que depois de uma passagem por Tunes se instala na Côte D’ Azur; Lucien Poirel, o mais jovem comissário de 113 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO França; Max Bichon, um repórter de assassinatos; Julien Jendrejeski, um agente especial em missões delicadas no estrangeiro; e Frankie‐Pat Puntacavello, detective privado em Nice. O autor escreve 50 romance e em 1983 recebe o Le Grand Prix De La Littérature Policière pelo livro Collabo Song (Jean Mazarin). CONTO – A CONFERÊNCIA PEDAGÓGICA De René‐Charles Rey foi publicado na revista Les Amies do Crime Nº14 (1983?),como “Conto Inédito” escrito em 1956, e aqui se apresenta numa tradução de DJ&JOTA. Era uma conferência pedagógica como as outras, com essa atmosfera particular que cheirava a passatempo e a tinta violeta. Olhei em volta para tentar deslindar os rostos nas caras atentas. Cada um tinha a sua própria forma para se fazer notar pelo senhor inspector, demonstrado aos colegas o pouco interesse das palavras do homenzinho gordo que se agitava diante do quadro negro Num canto, as professoras mais jovens às vezes galhofavam como estudantes de bancos universitários, desmamadas cedo demais. Na primeira fila, o jovem loiro sonhava, pensando na sua companheira com quem faria amor durante a tarde sobre o sofá do seu apartamento, como todas as quintas feiras. Soltou uma palavra mais alta e corou como se os colegas, de repente detentores de poderes mágicos, pudessem adivinhar os segredos dos seus sonhos. Diante do quadro negro, o homenzinho procurava penetrar nos segredos de uma psicologia infantil que lhe fugia constantemente. Era um homenzinho bem vestido, com o nó de gravata impecável, cujos sapatos encarniçados contrastavam de forma enervante com o azul marinho do fato. Falava com uma voz clara e por vezes cantante, utilizando palavras simples ou pedantes, por vezes, que denunciavam o antigo professor. Tinha essa aptidão um pouco sisuda que as pessoas de um círculo bem definido adquirem. Partiu cuidadosamente um pedaço de giz, para o impedir de chiar no quadro, sorrindo: – O importante é o giz. Parti‐lo é uma arte. As primeiras filas fizeram um riso forçado para mostrar que gostavam de piadas. O 114 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO homenzinho traçou linhas direitas, bem paralelas, de que se orgulhava e preparou‐se para inserir um quadro sinopse. – Tomem notas, porque não encontraram isto em nenhum manual. Todos se atarefaram e traçaram linhas sobrepostas, procurando inserir o que lhes restava de poesia pessoal. Uma das professoras terminou‐as em caracol e mostrou‐as às colegas que se divertiram novamente. De repente senti uma pressão no peito e tive vontade de vomitar. Lembrei‐me então da mousse de chocolate, que engoli à pressa antes de me vir sentar, como em todas as quintas feiras, no banco negro e sujo desta escola comunal onde se jogava o meu futuro. Tenho então vontade de me levantar e de gritar, não insultos aos meus colegas nem mesmo contra o homenzinho, mas coisas sem pés nem cabeça, idiotices, só para provar a mim mesmo que, além do mais, eu ainda existia. O inspector virou‐se e o nosso olhar cruzou‐se. Ele olhou‐me fixamente e eu olhei‐o fixamente, imaginando que tivéssemos, talvez, os mesmos pensamentos no mesmo momento. Eu acreditava ter descoberto nos olhos dele uma censura muda, uma desculpa. – Eu sei que tu não acreditas, nenhum de vocês acredita, mas isso não é da minha conta. Depois virou‐se e consultou uma lista que descobriu na sua agenda: – Menina Dupréaux, venha apresentar‐nos as suas meditações sobre a leitura na escola primária. Houve sorrisos. A jovem corou e levantou‐se, aparentando indignação, mas dentro de no fundo, estava feliz por ir encontrar sua verdadeira juventude diante de um quadro negro. Em qualquer outro lugar, a sua atitude teria sido encantadora, mas aqui pareceu‐
me inoportuna e irritante. Começou a ler um resumo austero que deve ter encontrado num livro velho com cheiro a mofo e a escola primária. A sala estremeceu. Cada um parecia de repente estar entusiasmado com alguma coisa que desprezara durante toda a semana. Alguns já preparavam os comentários, não parecendo viver senão para dar luta à jovem, como se o que alcançassem nela fosse seu próprio medo. Ela resmungou, procurando incentivo silencioso no olhar paternal do Sr. Inspector. Enfiei a mão no fundo do bolso interno do fato e os dedos crispados reconheceram o frio metálico da arma. Não sabia como estava no meu bolso, ou porque é que os meus dedos a acariciavam, como se acaricia a anca de uma apaixonada. Deve tê‐la guardado inconscientemente esta manhã antes de sair de casa. A jovem ficou em silêncio e um murmúrio de desaprovação encheu a sala. Alguns ansiosamente levantaram o dedo, mas o inspector fingiu não os ver, saboreando devagar o súbito interesse deles pelas coisas em que ele se forçava acreditar. Sorriu inocentemente para a jovem professora e num tom voz condescendente, para tentar marcar o fosso que os separava, declarou: – Sim menina, mas… 115 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO O “Mas” do Sr. Inspector parecia ser o sinal de incentivo que a morte esperava. Não existiu contenção nesta explosão de arrivismo mesquinho. Levantei‐me e caminhei em direcção ao Sr. Inspector que não parecia prestar‐me atenção, porque iniciava uma longa acusação. Quando passei perto dele, levantou o sobrolho, e em seguida continuou a declamar: – O Sr. Errer tem provavelmente vontade de mijar… pensou ele provavelmente entre duas palavras. Parei em frente do estrado e, lentamente, tirei a arma, então disparei sem pressa, com calma, olhando para os impactos sobre o fato azul‐marinho onde apareciam manchas mais escuras. Quando a arma ficou vazia, deitei‐a fora e sai para o pátio, sem sequer ouvir os gritos que sobrevieram o silêncio dos disparos. Foi uma derrota de crianças, que privadas de repente dos pais procuravam agarrar‐se a algo que conseguissem entender. Saí para a rua e dei uns passos na calçada. Estava bom tempo e sol espirrou fachadas. No passeio, à minha frente, uma rapariga veio ao meu encontro. Uma rapariga com traços vulgares com andar de prostituta. Retribuiu o meu sorriso e acentuou o balançar das ancas que me tocaram, mas não a segui. Avancei em passo lento. Os gritos irromperam. – Parem‐no… o assassino… o assassino. Parecia que estava a sonhar com uma daquelas histórias de ladrões que haviam feito as minhas delícias durante as aulas de leitura no curso superior. Encolhi os ombros e voltei para trás. Tinha perdido, Eles tinham encontrado um novo mestre. 116 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 28 DE MARÇO EFEMÉRIDES Day Keene (1904‐1969) – Gunard Hjerstedt nasce em Chicago, EUA. Começa uma carreira de actor, mas em 1940 desiste optando pela escrita, primeiro short stories em publicações como a Dime Mystery, Black Mask e Dime Detective. Usa os pseudónimos Day Keene e William Richards; escreve um total de 45 livros, duas dezenas de contos, teatro e rádio. Cria o personagem Jonny Aloha um ex‐marine de ascendência havaiana que se estabelece em Los Angeles como detective privado. Day Keene é responsável por um programa de rádio – episódios com a duração de 15 minutos – que se manteve no ar entre 1937 e 1941, Kitty Keene, Inc, a única rádio‐novela a ter como heroína uma mulher detective privado. Em Portugal estão editados os seguintes livros: 1 – O Perigo Bateu À Porta (1961), Nº 1 Colecção Escorpião, Edições F.B.C.; Título Original: Wake Up For Murder (1952) 2 – O Eterno Triângulo (1957), Nº 120 Colecção: Os Melhores Romances Policiais Livraria Clássica Editora 3 – Payola (1966), Nº 44 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: Payola (Pyramid) (1960) 4 – Perseguição Implacável (1969), Nº 111 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: Mrs Homicide (1953) 5 – O Beijo da Morte (1969), Nº 122 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: To Kiss or To Kill (1951) 6 – Procurado Por Homicídio (1969), Nº 127 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: Hunt The Killer (1951) 7 – Culpado Por Medida (1970), Nº 132 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: Framed in Guilt, também editado com o título Evidence Most Blind (1949) 8 – Os Mortos Não Falam (1970), Nº 135 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: Dead Dolls Don't Talk (1959) 9 – Curvas Perigosas (1970), Nº 140 Colecção Rififi, Editora Íbis 10 – Homens em Fúria (1970), Nº 143 Colecção Rififi, Editora Íbis 11 – Matar É Pecado (1971), Nº 146 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: It's a Sin to Kill (1958) 117 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 12 – O Homem Que Voltou (1971), Nº 151 Colecção Rififi, Editora Íbis; Título Original: The Big Kiss‐Off (1954) 13 – A Testemunha (1972), Nº 3 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Strange Witness (1953) 14 – Mulher Marcada (1973), Nº 10 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Notorious (1954) 15 – O Álibi Perfeito (1973), Nº 19 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Carnival of Death (1965) 16 – Paixão Homicida (1974), Nº 24 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Homicidal Lady (1954) 17 – O Grande Ídolo (1974), Nº 27 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Love Me and Die (1951) 18 – Cidade Em Fúria (1974), Nº31 Colecção Círculo Negro, Livraria Bertrand; Título Original: Bring Him Back Dead (1956) Lucille Fletcher (1912‐2001) – Violet Lucille Fletcher nasce em Brooklyn, New York, EUA. Escritora e argumentista de rádio, televisão e cinema escreve 9 livros, 4 peças de teatro e 8 de rádio todos no género suspense ou policial psicológico. Na sua obra destacam‐se The Hitch Hicker, um sucesso na rádio (1941) e Sorry, Wrong Number, também um êxito como peça radiofónica, transmitida em 1943, 1952 e 1959, editada como romance em parceria com Allan Ullman em 1948 e, mais tarde, base de um conhecido filme negro. A autora recebe em 1960 o Edgar Award para o melhor drama de rádio por Sorry, Wrong Number na versão produzida pela CBS em 59. 118 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO CASOS E ACASOS DO CRIME – FALSO SUICÍDIO O homem estava agitado quando entrou precipitadamente na Esquadra da Polícia, entregando dois papéis ao agente de plantão. – Acabo de recebê‐los pelo Correio – disse, trémulo. – Corri imediatamente… – Um minuto – interrompeu o agente, inspeccionando os papéis. Um deles estava assinado: “Renée, tua esposa, que te ama verdadeiramente” Por cima, recitava: “Desde que não me amas, decidi terminar com a vida. Deixo‐te tudo o que possuo. O meu testamento vai junto”. O outro papel era o testamento, feito em forma legal e testemunhado. No momento em que a autoridade ergueu o olhar, o visitante não se conteve: – Chamo‐me François Gormer. Renée é minha mulher. Separámo‐nos há alguns meses. Quando recebi esta carta, corri à sua casa, bati bastantes vezes à porta, porém não obtive resposta. Quero que um agente me acompanhe. Depressa, por favor! O agente mandou chamar o detective Dulage, a quem rapidamente informou do que acontecia. Quando Dulage chegou a casa da mulher não perdeu tempo. Com o auxílio de dois agentes precipitou‐se escadas acima. A senhora Gormer jazia sobre a cama e na mesinha de cabeceira via‐se um frasco cheio de xarope de cloro. O detective verificou que a mulher estava morta há diversas horas, devido, obviamente, a uma dose excessiva de cloro que ingerira. Notou, porém, algo que não combinava com a versão do marido. Gormer afirmara que correra para casa da mulher e que batera insistentes vezes à porta. A primeira coisa, porém, que Dulage vira ao chegar, fora uma campainha, em perfeito estado. Depois de chamar o médico legista, começou a examinar o tapete, em torno da cama. Perto da mesinha de cabeceira estava um pedaço de arame muito fino, que reconheceu como um dos usados para desentupir agulhas de injecção. Quando o médico da polícia chegou, nada lhe disse do achado, propositadamente, a fim de não influenciar 119 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO as suas conclusões. Não se surpreendeu, portanto, quando o médico anunciou: – Esta mulher não morreu de envenenamento por cloro. Deram‐lhe uma espécie de injecção narcótica. Dulage sentiu‐se agora seguro do terreno para interrogar o marido…, e usar de um pequeno ardil. Depois de lhe ter falado sobre a campainha e sobre a descoberta do desentupidor de agulhas, acrescentou com veemência: – Não adianta mentir. O senhor disse que não via a sua esposa há meses. Como explica, então., a existência das suas impressões digitais no braço dela, onde lhe aplicaram a injecção? – Impressões digitais? – inquiriu, atónito, o marido. – Sim. Descobrimos um método de tirá‐las dos corpos. O truque provocou a confissão de um dos mais estranhos crimes ocorridos em França. Gormer não gostava da esposa, porém, não desprezava os bens consideráveis que ela possuía, por herança. Quando viviam juntos, tinham um criado, Fernand Maran, em que ambos depositavam grande confiança. Quando o casal rompeu, Maran procurou outro emprego. Decidido a livrar‐se da esposa e a entrar na posse dos bens, Gormer procurou o antigo empregado, que concordou em tomar parte no plano, por dinheiro. Sabia que madame Gormer estava inconsolável por ter sido abandonada pelo marido, e que tudo faria para recuperá‐lo. Maran sugeriu‐lhe, pois, que escrevesse a carta suicida e a mandasse, com o testamento, para o marido, tomando a seguir uma dose do soporífero. – Ele correrá para aqui, encontrando‐a na cama, aparentemente morta. Ficará tão satisfeito quando os médicos a tiverem ressuscitado, que, estou certo, voltará para a sua companhia! A mulher concordou. Gormer entrou na casa às quatro horas da madrugada, mas estava tão nervoso que as suas mãos tremiam ao injectar a dose letal. Despercebidamente deixou cair o pequeno arame, que o levou à guilhotina e mandou o seu cúmplice, Maran, para a prisão, por longo tempo. 120 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 29 DE MARÇO EFEMÉRIDES Jo Nesbø (1960) – Nasce em Oslo, Noruega. Futebolista, músico e vocalista de uma banda rock, jornalista e economista inicia‐se na carreira de escritor em 1997. Escreve também livros infantis e tem publicados cerca de uma dúzia romances policiários. Cria o personagem Harry Hole um detective brilhante que recebeu treino do FBI e reside em Oslo. Está traduzido em 40 línguas e na Noruega os seus livros vendem meio milhão de cópias. O autor tem uma longa lista de prémios e nomeações; o destaque vai para The Glass Key Award 1998, prémio sueco para o melhor romance nórdico de crime e é nomeado em 2010 para o Edgar Award para melhor romance com Nemesis. Em Portugal estão editados o 3º, 4º e 5º livros da série Harry Hole, o 1º e o 2º Flaggermusmannen/The Bat e Kakerlakkene/The Cockroaches ainda não foram publicados. 1 – O Pássaro De Peito Vermelho (2009), Editora Dom Quixote; Título Original: Rødstrupe (2000), Título da edição inglesa: The Redbreast (2006) 2 – Vingança A Sangue‐Frio (2010), Colecção Ficção Policial, Editora Livros d'Hoje; Título Original: Sorgenfri (2002), Título da edição inglesa: Nemesis (2008) 3 – A Estrela do Diabo (2011), Editora Dom Quixote; Título Original: Marekors (2003), Título da edição inglesa: The Devil's Star (2005) 121 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO RECORDAR O PASSADO – NEM O DIABO RESISTE… No final dos anos setenta do anterior século passado exercia funções de Agente do Ministério Público nos Tribunais de 1ª Instância instalados na Rua Braamcamp em Lisboa, no caminho do escritório de Amigo de longa data, Artur Varatojo em Campo de Ourique. Telefonava‐me, quase sempre a uma quarta‐feira para almoçarmos “Contas do Porto” porque o Varatojo — jeito que lhe ficou da mocidade cheia de dificuldades, não largava moedas em vão. O “poiso” habitual do repasto era um restaurante da Rua da Conceição*, pouco antes da Travessa da Glória, a do elevador. Sentados, consultada a lista e discutido o prato, entravamos na cavaqueira – interrompida de quando em quando, por uma pergunta subtil, invariavelmente sobre imposto sucessório, que ele considerava‐me um “ás” ao lado de uma carta branca; aliás tinha a gentileza de nunca abordar as minhas funções – retomava com arte de mestre, que era, a conversa interrompida. Era um “orador” admirável, um conversador de excepção, entusiasta e encantador, acreditem. A propósito de Alcobaça, melhor, dos pêssegos expostos na vitrina com a indicação da origem, contou, com a graça que lhe era inerente, uma crónica que acabara de enviar para a Capital que, de ordinário eu não lia, porquanto Victor Dimas, jornalista do Expresso na rua adjacente ao tribunal, me enviava todos os dias um Diário Popular. Tentarei reproduzir o caso, tal como me lembro trinta e tal anos depois. Ali para oeste, numa aldeola do concelho de Alcobaça, ia um rebuliço tremendo com um menor de 13/14anos possuído pelo demónio há várias semanas. Dominado por uma força incomum, ninguém o podia segurar. Batia, clamava, saltava, e, com velocidade diabólica rolava pelo chão, rasgando as roupas sujas… pedras, de origem desconhecida, caíam frequentemente no telhado e as janelas ostentavam as marcas dessas armas voadoras. Os factos eram do domínio dos vizinhos que suportavam receosos que o diabo lhes pedisse contas dos prejuízos nas casas e quintais anexos, A intervenção do pároco, aparamentado, água benta e cruz, pronto a exorcizar a “perversa criatura”, rendeu‐se incapaz. Um certo espírita de Lisboa fez uma peregrinação, mulheres de virtude, espíritas, nada resultou. O rapaz, de olhos esbugalhados, assusta e a tudo resistiu. O pai, internado no Hospital, não assistia ao domínio do “bode chifrudo” sobre o filho, a avó materna, de avançada idade refugiava‐se de rosário nas mãos entre as paredes do quarto, morrendo um pouco todos os dias. A mãe, cansada, consumida pelo mau rumo da vida, sentiu‐se um dia eufórica de coragem. Mal o rapaz começou a rasgar‐
se, saltou sobre ele com a força da determinação, pegou‐lhe pela orelha e não mais a largou. De nada valeram os berros e a tentativa de se soltar. E assim se manteve qual lapa presa à rocha: Mãe, filho e diabo seguros pelos dedos enérgicos da primeira. A noite chegou, o rapaz adormeceu e o diabo não buliu… poços há que nã resistam a um bom puxão de orelhas: nem o diabo resiste! *Rua Conceição da Glória 122 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO FICÇÃO CIENTÍFICA – O JOGO DO TEMPO E DO DESTINO De Severina Fortes Quando os Caminhos do Tempo ficaram abertos e se pode controlar as distâncias a alcançar, permitindo o regresso, ninguém qualificado para essas viagens. Fora a época romântica do Projecto, de muita abnegação e pioneirismo, criando raízes a uma especialização necessária para melhor cumprir no futuro. Por fim gerou‐se entre os viajantes uma espécie de cansaço, levando‐os a não achar assim tão importante a procura que por vezes os compelia a executar, com as suas próprias mãos – no material certo, no local de origem – objectos vários que traziam, enriquecendo o Museu do Homem, na ala dos remotos. Na verdade tornara‐se numa fase dura de labor intenso. Perante o desgaste físico de toda equipa. Jorvas, responsável pelo Projecto, suspendeu as últimas viagens para merecido repouso. Pessoalmente o ócio cansava‐o mais do que o trabalho normal. Sentia necessidade de qualquer ocupação agradável para preencher o lazer. Lembrou‐se então da sua paixão pela História da velha Europa do século. XVIII, especialmente durante a corte do Rei‐Sol, passatempo que só verdadeiramente deixara quando aceitara o Projecto dos Caminhos no Tempo. Ainda guardava essa secção da colectânea histórica e decidiu revê‐la. Colocou‐a no leitor especificando o tipo de leitura colhido; mas deu‐se conta que não Ihe apetecia ler. Sem contrariedade, deu preferência ao som, passando a escutar o que, afinal, já conhecia tão bem. Contudo, não estava com muita atenção naquele dia. O seu espírito libertou‐se, seguindo uma ideia insidiosa. A ideia bailou feliz, afastou‐se e voltou mais firme. Evitou pensar nela e tornou‐se ideia fixa. E porque sentia particular fascinação por todo aquele fausto, sobrepondo‐se a uma gama extraordinária de sentimentos – dando lugar às mais nobres e também torpes potencialidades humanas – aquela ideia tornou‐se obcecante. Quantas vezes já depois dos caminhantes do tempo serem uma realidade, sonhara ir, ele próprio ao encontro de tais emoções. Arredava‐se, porém esse sonho – estava‐lhe vedado viajar no Tempo. Mas, novamente a tal ideia cativante surgiu mais audaciosa: enviar alguém competente, capaz de trazer relatos verídicos, o dia a‐‐dia desses tempos de aparato. Porque não? Geo foi o escolhido. Robusto, versátil, culto, frequentara Altas Ciências e o seu entusiasmo pelas viagens fora factor de escolha. No entanto, Jorvas, na sua euforia, conseguiu que Geo compartilhasse do seu 123 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO interesse, com igual intensidade, estudando ambos qual o melhor momento a escolher. Tudo correu bem à partida. As possíveis implicações só seriam avaliadas, não depois da partida de Geo, mas quando este não respondeu ao contacto e não voltou. Foram semanas de tensão em que nada havia a fazer. Começaram estudos para a nova fase de trabalhos, sem qualquer entusiasmo, até que Geo, já quase inesperadamente, foi recuperado. Havia uma constante nos Caminhos do Tempo, conhecida e não explicada, em que o viajante era recuperado quando em perigo de vida. Jorvas não estava presente aquando da sua chegada. Embora alertado de imediato, só pode vê‐lo, por instantes, no visor do seu gabinete, antes de seguir para a Regeneração. Vinha doente; o seu aspecto demonstrava‐o bem. Todavia, voltara – o alívio de Jorvas foi enorme. Agora ficaria na Regeneração. Normalmente, precisaria de três dias para se restabelecer; depois, falariam certamente, de tudo quanto haveria a saber. Mas Geo não pensava do mesmo modo! Na noite do segundo dia, fugiu da Sala da Convalescença. Ainda fraco, conseguira chegar e abrir a porta da sala de comandos. Dominando‐se, tentando não perder o sangue‐frio perante a agitação que o tomou, colocou‐se rapidamente no passadiço de acesso, mantendo o neutralizador de barreiras a funcionar. Não queria surpresas! Sabia que passaria; mas a ânsia de não errar ordenava‐lhe cuidado. Já dentro da sala, junto ao painel do computador, não se deteve, agindo automaticamente, mecanizando gestos com precisão sem deixar de se admirar com a facilidade encontrada. Essa admiração alertava‐o para a necessidade de urgência. Trazia já programadas as coordenadas a introduzir na Alimentação de Programas, com dados específicos, que não mostrara a ninguém. Queria voltar ao passado! A experiência feita durante os longos anos que, por uma curiosa distorção do Tempo, passara noutra época – nas poucas semanas que mediaram entre a sua ida e a recuperação temporal – causara‐lhe inefável prazer. Estar à frente, saber mais, atordoar pelo nunca visto, sentir a força da certeza provada, enchera ‐o de felicidade. E o curioso fora que nade fizera, na verdade, além de ocupar um lugar que, dir‐se‐ia esperava por si. As circunstâncias existiam e eclodiram à sua chegada, envolvendo‐o como uma teia. E era isso que não se atrevia a contar a Jorvas! Como lhe poderia dizer que afinal aquele personagem de lenda, de que tanto tinham falado — apontado por uns como um mistificador, e por outros como um homem 124 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO de poderes fantásticos era Geo? Qual a reacção de Jorvas quando soubesse que, por o ter enviado para aquela época, fizera o jogo do Destino e do Tempo, colocando‐o no exacto momento e local para a vivência histórica que, doutro modo, não existiria? O Tempo recolhera‐o no preciso instante da grave doença, em que a maioria das pessoas o considerava morto. A volta deprimira‐o… Em plena actividade, todo o complexo mecanismo vibrava suavemente. Aqui e ali, pequenas luzes surgiam e desapareciam num ritmo alucinante, em contraste com outras fixas, mais esparsas. O painel foi perdendo luminosidade, sussurrando tenuemente, intensificando outros sinais até aí parados. Subitamente, tudo se mostrou como que suspenso, assustando‐o, temendo não saber tanto como julgara. Enganara‐se. Radiante viu surgir um vazio cinzento, semelhante a uma névoa, qual sugestão de nada, que era o princípio do Caminho. Verificou se as coordenadas aparecidas no visor maior do computador coincidiam com o desejado. Assim era. Sem hesitar, apagou os dados com as características pessoais, precaução tomada para o retorno dos viajantes. Não queria voltar! Como mensagem a Jorvas deixou em lugar bem visível uma delicada miniatura sua Com o trajo da corte, de cabeleira, em seu poder quando fora recuperado, para descobrisse a verdade – se pudesse… E sem pena, consciente de seguir a sua vontade e destino, penetrou na névoa cinzenta e desapareceu. 125 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 30 DE MARÇO EFEMÉRIDES Edgar P. Jacobs (1904‐1987) – Edgard Félix Pierre Jacobs nasce em Bruxelas, Bélgica. Desenhador, argumentista, e escritor, tem duas paixões: ópera e banda desenhada. Depois de uma carreira de quase 20 anos, como barítono, abandona o palco em 1940 e começa por ilustrar contos. Em 1943 é desafiado a criar uma série na linha de Flash Gordon (proibida na Bélgica pelas forças de ocupação alemãs) e publica Rayon U (O Raio U), originariamente em tiras simples a preto e branco e caixas de texto, mais tarde (1974) reformatada pelo autor com utilização cor e inserção de balões – hoje um álbum clássico da banda desenhada de ficção científica. Ainda em 1943 conhece Hergé, o criador de Tintim, e iniciam uma colaboração e amizade para sempre. Edgar P. Jacobs é responsável pelo novo aspecto cromático das aventuras de Tintin e também pela inclusão de alguns temas, como a ópera e a figura de Bianca Castafiore. Em 1946 é lançado o Journal de Tintin e Edgar P. Jacobs, colaborador desde o início, cria Blake & Mortimer, uma série que junta aventura, espionagem e ficção científica. O autor escreve e desenha os primeiros oito títulos, editados entre 1947 e 1970: O Segredo do Espadão (3 volumes), O Mistério da Grande Pirâmide (2 volumes), A Marca Amarela, O Enigma da Atlântida, S.O.S. Meteoros, A Armadilha Diabólica, O Caso do Colar, As Três Fórmulas do Professor Sato (2 volumes; o 3º é de Bob de Moor). 126 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO MEDICINA FORENSE Sir Sidney Smith professor da Universidade de Edimburgo expõe factos sobre a sua experiência. O sucesso ou insucesso de uma investigação depende, muitas vezes, das observações iniciais e dos actos dos oficiais da polícia que, primeiramente, apareceram no local do crime. Eles são também responsáveis pela protecção contra o dano de tudo quanto possa ser de interesse útil para o perito médico‐legal. Para ele, um caso começa, muitas vezes, com o pedido para ver um cadáver. A polícia pode não saber quem é o morto e, portanto, pretende saber qualquer pormenor que contribua para a sua identificação. Quererá conhecer a causa e o modo da morte se foi devida a causas naturais ou a violência; e, neste último caso, se se trata de acidente, de suicídio ou de homicídio. Como morreu a pessoa? Quando ocorreu a sua morte? Isto pode ser muito importante, se se tratar de homicídio, e um suspeito tiver um álibi. O corpo pode ter sido deslocado após a morte? Porque aconteceu? Geralmente, apenas esta última pergunta. Ora o motivo está fora do alcance profissional do perito médico‐legal – mas, em certos casos, tais como assassínio, após violação também pode explicá‐la. Para achar a resposta para todas estas perguntas, têm de ser descobertos vários factos e relacionados entre si: o grau de arrefecimento do corpo, o adiantamento da rigidez (rigor mortis), a descoloração post‐mortem (hypostasis), o estado dos alimentos no estômago e intestinos, o estado e composição do sangue, e muitos outros pormenores deste género. Apenas a hypostasis, embora se tenha escrito menos a respeito dela do que do rigor mortis, pode fornecer uma variedade de informação interessante. Esta descoloração post‐mortem ou lividez cadavérica é causada pela passagem do sangue, sob o efeito da gravidade, para os vasos mais baixos do corpo, fenómeno que se começa a processar logo que o coração deixa de bater. Os diminutos capilares distendem‐
se com sangue e manchas lívidas aparecem à superfície do corpo. A descoloração começa pouco depois da morte, a princípio em pequenas manchas que gradualmente se vão fundindo em grandes áreas. É muito distinta, passadas doze horas. Normalmente a cor é, a princípio, um cor‐de‐rosa azulado e depois arroxeado; mas, tratando‐se de um envenenamento por monóxido de carbono é cor‐de‐rosa; por ácido prússico, vermelho vivo; por certos (outros venenos, cor‐de‐chocolate; e tratando‐se de morte por queimaduras ou frio pode ser nitidamente vermelho. É bem patente em casos de asfixia, mas menos evidente no caso de morte por hemorragia. Se o corpo for deslocado antes do sangue coagular as manchas podem mudar de posição, mas quando se verifica a coagulação dos capilares as manchas fixam‐se definitivamente: diz‐se então que se fixaram os livores. Isto ocorre geralmente em cerca de seis horas; mas, no caso de morte por sufocação ou por estrangulamento pode demorar muito mais horas. A distribuição das manchas depende da posição do corpo. Se estiver estendido de 127 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO costas, estas ficarão completamente descoloridas excepto nas partes em que se apoia directamente — porque qualquer pressão, por ligeira que seja, impede que os capilares se encham e tais zonas não ficam descoloridas. A posição de qualquer faixa apertada, como um colarinho ou liga, ou rugas duma camisa, ficará assinalada pela ausência de descoloração. Tais zonas lívidas são por vezes confundidas com marcas resultantes de pancadas ou estrangulamento. As manchas post‐mortem não devem ser confundidas com contusões, com que muitas vezes se assemelham e, em casos duvidosos, é necessário retirar algumas secções para submetê‐las a exame microscópico. A descoloração é apenas um dos sinais importantes do estado post‐mortem, através dos quais é possível descobrir uma informação vital acerca da morte. Por vezes, tais dados médicos vêm simplesmente confirmar outros factos e deduções já concluídos pela polícia. A POESIA E O CRIME Por Natércia Leite Onde está Isabel? Estará ela perdida? Houve alguém que a levou contra vontade sua? As janelas fechadas as portas chaveadas… Seu perfume que paira ainda ali na rua onde um dia morou Cheia de cor, de vida Uma graça de Deus. Tanta pergunta, tanta! Quando as respostas, sei! … Onde está Isabel? Num ermo dum pinhal sob o mato escondida! Tenho um nó na garganta na cabeça, um tropel Quanta amargura, quanta! Fui eu. Eu, que a matei! 128 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO Quando a senti perdida. Quando me disse adeus. 129 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO 31 DE MARÇO EFEMÉRIDES Lionel Davidson (1922‐2009) – Lionel Davidson nasce em Hull, Yorkshire, Inglaterra. Jornalista, repórter, editor e escritor conceituado. Publica o primeiro livro The Night of Wenceslas em 1960 e com ele ganha o Gold Dagger, o prestigiado prémio da britânica Crime Writers Association para o melhor romance de espionagem. No total o autor escreve 6 livros policiários, a maioria com elemento forte, uma descrição precisa dos locais onde decorre a acção – Praga, Alemanha Oriental, Tibete, Israel – consequência da profissão de repórter internacional do autor. Volta a ganhar o Gold Dagger em 1966 com A Long Way to Shiloh e em1978 com The Chelsea Murders. Escreve também 4 livros de aventura/suspensepara jovens com o pseudónimo David Line. PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA – A QUESTÃO DO “COMO?” A clássica apresentação de problemas, por mais engenhosas que sejam na forma, termina, com pouca mutabilidade, pelo clássico desafio: Quem? Porquê? No quem pretende‐se um elemento identificador, em geral do suspeito ou criminoso; no porquê, a justificação da afirmativa ou negativa proposta para o quem. A 130 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO narração, em sequência, havia já informado como foi cometido o crime ou, noutros casos, descrito a sua execução. Não é diferente, no seu conjunto, do sistema tradicional na novela ou romance de tema policiário. Um outro elemento pode, em determinadas condições, entrar em causa: o como? Conhecemos o quem, o porquê, ignoramos o como. Para esta hipótese, o puzzle (enigma) contém crime, criminoso, ou só um deles, motivo, oportunidade, etc. Carece de uma única peça: como foi praticado. Como encaixar essa peça no conjunto geral? Como pode a vítima apresentar um buraco de bala se não existe, nem poderia existir, arma? Como passar, invisível, na presença de atentos observadores? Os exemplos da necessidade de encontrar o como? são múltiplas, mesmo na vida real não faltam situações que podem pôr à prova os mais apetrechados detectives. São imensos os casos da vida real que nos podem pôr a questão do como? Não resistimos, antes de transportarmos a acção para a problemística, em citar um dos grandes mistérios do como? Certo dia, o professor de uma universidade de Calcutá, descobriu escandalizado que alguém, constante e sistematicamente, fornecia aos alunos, com antecipação, as perguntas dos exames (caso não inédito em Portugal).Uma cuidadosa investigação não conseguiu desmascarar o culpado. Providências sem conta foram tomadas para impedir a repetição deste facto, mas nenhuma delas obteve sucesso. Finalmente um prelo manual foi instalado numa sala cuidadosamente vigiada e a impressão dos questionários das provas foi confiada a um único impressor, de carácter e reputação inatacáveis. O impressor era auxiliado por uni jovem nativo, vestido apenas com uma tanga e um turbante, que era despido e revistado quando deixava o recinto. Apesar de todas essas precauções, os questionários continuavam a ser divulgados com toda a regularidade. Por um processo de eliminação chegou‐se a conclusão de que o ladrão só poderia ser o ajudante, e uma constante vigilância foi organizada em torno dele. A questão era como? Como conseguiria o ajudante; apesar de despido e revistado, sair do compartimento fechado e extremamente guardado com o questionário subtraído? Como? No entanto, fazia‐o facilmente. Pensou? Descobriu? Vejamos: Depois da composição do exame o ajudante, aproveitando‐se de uma momentânea ausência do impressor, tirava a tanga e sentava‐se sobre a página de tipos de metal. A impressão assim obtida não era visível na sua pele escura e, mais tarde, quando chegava 131 CALEIDOSCÓPIO POLICIÁRIO a casa, bastava sentar‐se sobre uma folha de papel branco para ter as questões reproduzidas numa cópia quase perfeita. Copiava essa cópia, lida por meio de um espelho por estar invertida, que a seguir policopiava e vendia entre os alunos... ENIGMA PRÁTICO – O TESOURO ESCONDIDO De Austin Ripley (EUA) Trabalhando secretamente num caso de audacioso roubo de jóias e dinheiro, Fordney, disfarçado de escritor excêntrico, alugou um chalé na pequena aldeia de Mumset, até onde o levava uma pista que aí desaparecia. No bar Phoenix o criminalista meteu conversa com um homenzarrão de nome Abner Wren, cujas fanfarronadas o intrigavam. Fingindo‐se embriagado, pagou várias bebidas a Wren, e veio a saber que este era fazendeiro numa região próxima. Seguiu‐se um momento de emoção. Piscando os olhos, o camponês, já inteiramente tonto, falou num mapa secreto, que trazia no bolso, num esperto parente da cidade e num tesouro enterrado. Disse que precisava apressar‐se a pôr mãos à obra. Habilmente, Fordney revistou‐lhe os bolsos, tirou o mapa, anotou os seus pormenores essenciais e tornou a colocá‐lo no lugar. Não havia dúvida de que indicava o esconderijo do produto do roubo que ele andava a investigar. Mas, que fazer? O mapa mostrava o tesouro enterrado entre duas grandes pedras, distantes dez pés uma da outra, situadas num campo a cinco milhas da aldeia. Não havia tempo para pedir auxílio. Ele não possuía instrumentos a não ser uma faca. Além disso, era seu intuito prender o cérebro da quadrilha: Reggie Arden. Afinal, resolveu o problema! Mas precisava chegar ao local antes de Wren. Três horas mais tarde, no chalé de Fordney: Xerife Wedgeon – Quer dizer, Fordney, que viu Wren cavar quinze pés no local indicado no mapa, depois em volta do buraco, mas que ele não encontrou nada? Você não cavou em lugar algum e, no entanto, sabe que o tesouro ainda está no mesmo sítio… Wedgeon estava furibundo. Fordney – Exactamente. O dinheiro e as jóias estão no lugar onde foram enterrados originariamente. Venha, xerife. Vamos buscá‐los, e é bem possível que deitemos a mão a Ardell no local, tão boquiaberto como o senhor… Pergunta‐se: Qual o ardil que Fordney empregou para vencer Wren e Ardell? Qual a solução? Puxe pela cabeça, o caso poderia dar‐se consigo e com algo que tivesse escondido e encontrar‐se na situação de Fordney. Que teria feito? Como resolveria? A resolução depende do seu próprio engenho. 132 

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