Siniel 2010 Anais da 1ª edição do SINIEL

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Siniel 2010 Anais da 1ª edição do SINIEL
ISSN 2178-3292
APRESENTAÇÃO
O Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem (NIEL) e o curso de Letras
da Universidade Federal Rural de Pernambuco tiveram o prazer de receber, no período
de 27 a 30 de abril, em Recife, alunos de graduação e de pós-graduação, professores e
pesquisadores de vários estados do país e do exterior para participar do I Simpósio
Internacional do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem (SINIEL). O tema do
evento foi Linguagem e suas Interfaces. Como um dos propósitos do Núcleo é o
diálogo entre áreas de conhecimento afins, a escolha desse tema buscou privilegiar as
reflexões acerca das interfaces da linguagem na sociedade atual e socializar com as
comunidades científica e acadêmica o que se tem produzido dentro e fora dos Grupos de
Trabalho do NIEL.
Com base nesse eixo temático, o Simpósio promoveu apresentações culturais,
mesas-redondas, minicursos e sessões de comunicações coordenadas e individuais
referentes às linhas temáticas do Núcleo: Linguagem, Identidade & Memória;
Linguagem & Historiografia; Linguagem & Hermenêutica; Linguagem & Sociedade; e
Linguagem & Gêneros/Tradições Discursivos/as. Encontram-se nesta publicação artigos
que representam as linhas mencionadas.
A primeira edição do SINIEL foi um espaço de franca e intensa troca de
experiências e conhecimentos. Agradecemos, em nome dos integrantes do NIEL e
dos(as) Professores(as) e alunos(as) do curso de Letras da UFRPE, aos que contribuíram
para a realização do evento e aos que participaram divulgando os seus trabalhos.
Esperamos, na próxima edição, contar com a presença de todos.
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS E SUA RELAÇÃO COM A LÍNGUA
BRASILEIRA DE SINAIS
Adriana Di Donato1
Elisabeth Cavalcanti Coelho2
Germana Maria Gomes Carvalheira3
RESUMO: As pessoas surdas são sujeitos especialmente visuais no modo de apreensão do mundo. Os
estudos linguísticos nas línguas de sinais trouxeram uma nova perspectiva para as ciências relacionadas à
surdez. Os estudos sobre escrita e sujeitos surdos ainda se mostram insipientes na produção científica
fonoaudiológica. A partir da prática com surdos e de observações empíricas do ensino do português
escrito, acredita-se na importância de os sentidos serem partilhados para que a aquisição da linguagem
escrita seja efetivada, apoiados nos princípios da uma segunda língua (L2). Portanto, este trabalho tem
por objetivo investigar a produção escrita de aprendizes surdos e sua relação com a Língua Brasileira de
Sinais. Para tanto, foi composta uma equipe com docentes e discentes do Departamento de
Fonoaudiologia da UFPE e tradutores/intérpretes de Libras. A metodologia consta em encontros semanais
para: (a) avaliação dos perfis dos surdos; (b) estudos à luz de referenciais teóricos sobre surdez (SKLIAR,
1997, 1998, 1999; STROBEL, 2008; QUADROS, KARNOPP, 2004), gêneros textuais (BAKHTIN,
2006) e ensino de português como L2 (DI DONATO, 2008; GRANNIER 2005; DECHANDTBROCHADO, 2003, 2007); (c) propostas das intervenções; (d) e acompanhamento dos discentes. A
amostra foi constituída por oito surdos atendidos duas vezes por semana na clínica-escola de
Fonoaudiologia da UFPE. Este estudo encontra-se em andamento, todavia, já aponta significativas
conquistas dos surdos na apropriação da escrita do português.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição de L2; surdos; Libras.
ABSTRACT: Deaf people are predominantly visual in the way they understand the world. Studies about
sign languages have brought a new perspective related to the Deaf. Studies about written texts produced
by Deaf people are still insufficient in the literature. Based on empirical observation of written Portuguese
classes with Deaf subjects, we believe in the use of the all senses in order to improve written skills
developing, as it is well documented in the principles of second language learning. Therefore, this study
aims to investigate the written production of Deaf students and its relation to the Brazilian Sign
Language. For that, a group of professors, students and interpreters from the Department of Speech and
Hearing of the Federal University of Pernambuco (UFPE) worked together. Data was collected in weekly
meetings, through the following procedures: (a) Deaf profile evaluation; (b) regular studying of literature
related to the Deaf (SKLIAR, 1997, 1998, 1999; STROBEL, 2008; QUADROS, KARNOPP, 2004),
genres of writing texts (BAKHTIN, 2006) and teaching of the Portuguese as the second language (DI
DONATO, 2008; GRANNIER 2005; DECHANDT-BROCHADO, 2003, 2007); (c) suggestions for
intervention; (d) follow up of the students. Eight deaf subjects enrolled in the Clinic of the Department of
Speech and Hearing at the UFPE participate in this study. The research has already begun and some
significant results were found.
KEYWORDS: Second language learning; deaf; sign language.
1
Professora do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Tradutora/intérprete de Libras. Mestre e doutoranda em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Professora do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Pernambuco e da
Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
3
Professora do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Pernambuco e da Fundação
de Ensino Superior de Olinda. Mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de
Pernambuco.
1. Introdução
Durante quase um século, a proposta de reabilitação/educação de pessoas surdas
esteve apoiada pelo Oralismo, como corrente filosófica que impunha o modelo da
aquisição da fala oral, a partir de pressupostos da normalidade. Sobre essa temática,
Larossa e Skliar (2008, p. 153) afirmam que a normalidade inventa a si mesma para,
logo, massacrar, encarcerar e domesticar todo o outro. As línguas de sinais foram
proibidas nos espaços clínicos/educacionais, no evento que ficou conhecido como
Congresso de Milão, em 1880 (SKLIAR, 1997, p. 16), sob alegação de ser uma
linguagem inferior e pela defesa da pretensa normalidade do modelo ouvinte. A
contribuição dos estudos linguísticos em língua de sinais, pelo linguista William
Stockoe, em 1960, nos Estados Unidos, trouxe para as ciências relacionadas à surdez,
uma nova perspectiva. Quadros e Karnopp (2004, p. 30) atestam que Stokoe percebeu e
comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua
genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de
sentenças. Portanto, as línguas de sinais devem ser compreendidas como artefato sóciohistórico e cultural de um grupo de falantes, na qualidade de minoria linguística. A
opção pela nomenclatura surdo, ao invés de deficiente auditivo ou outra similar, se
encontra apoiada pela concepção de cultura e identidade desta comunidade,
independentes dos fatores de classificação da perda auditiva. Segundo a pesquisadora
surda Strobel (2008, p. 31) se uma língua transborda de uma cultura, é um modo de
organizar uma realidade de um grupo que discursa a mesma língua como elemento em
comum, concluímos que a cultura surda e a língua de sinais seriam uma das referências
do povo surdo. Assim sendo, trata-se de uma questão política e ideológica das
comunidades e dos povos surdos.
Desconstruída ao longo das décadas vindouras, a filosofia Oralista deixou de ser
o modelo da verdade da ciência e passou a ser uma possibilidade aos que dela desejarem
usufruir, isto é, aos surdos e seus familiares que optarem pela exclusiva reabilitação da
fala oral. Ao surgir como nova filosofia para a área da surdez, o Bilingüismo veio
atender às expectativas de aproximação de dois universos linguísticos e culturais, o da
língua oral-auditiva e o da língua espaço-visual, onde ambos se complementam, tendo
seus tempos de aquisição/aprendizagem respeitados. Têm-se, então, duas modalidades
de língua: oral-auditiva e espaço-visual. A primeira como língua majoritária, em que a
recepção se dá pelo canal oral e a emissão pelo aparelho fonatório e a segunda
modalidade é aquela na qual a sua realização ocorre por meio da visão (canal receptor),
em um determinado espaço, associando-se a este as expressões faciais/corporais e a
direção do olhar (canal emissor) (QUADROS, 1997, p. 46).
A visualidade consta na principal característica inerente às pessoas surdas. Podese afirmar, então, que o surdo é um sujeito visual. O seu modo de apropriação de mundo
parte, principalmente, da essência dos aspectos perceptíveis através deste sentido, além
dos elementos proprioceptivos.
Grannier (2005), concordando com pressupostos chomskianos, sustenta que a
exposição de uma criança a uma língua é suficiente para a sua aquisição, pois, na
infância, a capacidade cognitiva inata para a aquisição de línguas é ativada
naturalmente, no/pelo contato com a língua ao seu entorno, desse modo, desenvolverá
sua competência linguística. Cabe esclarecer que a autora compreende que, para as
crianças surdas, a língua de sinais se apresenta como L1, portanto, desde a infância,
devem ser expostas a ela.
Em uma sociedade letrada, a importância da escrita para as pessoas surdas
extrapola os muros do litterati e illitterati, relacionava-se à autoridade, à razão e ao
poder que aos letrados era imputada, isto é, uma forma de regular o comportamento
social (Di Donato, 2008(b), p. 16). De fato, ela representa o diálogo entre duas culturas.
Menezes (2007, pp. 139-140) postula ser consenso entre os surdos que o uso da língua
na modalidade escrita (o português), além de ser caracterizado como ícone de
desenvolvimento e intelectualidade, o saber ler e escrever representa também o fazer
parte da cultura de seu país. A sociabilização entre sujeitos bilíngues surdos e sujeitos
ouvintes se fará funcional, a partir da inserção em práticas comunicativas
prioritariamente escritas, uma vez que este é um canal possível para a maioria dos
surdos.
O ingresso dos surdos nas séries iniciais do nosso sistema educacional, salvo
exceções, ocorre sem o domínio de qualquer modalidade de língua. Outros tantos
ingressam já na adolescência ou mesmo na fase adulta. De um lado, os ouvintes
desconhecem a língua de sinais e, por outro, os surdos apresentam dificuldades
significativas no uso da modalidade escrita da língua portuguesa. Dada a relevância da
escrita no contexto de nossa sociedade, busca-se analisar as relações entre a escrita do
surdo e a Língua Brasileira de Sinais e as possibilidades de intervenções terapêuticas
fonoaudiológicas otimizarem este aprendizado, através do uso dos gêneros textuais.
Partindo dessas inquietações, esta pesquisa se posiciona, buscando conhecer para propor
alternativas apoiada em favorecer qualidade de vida aos nossos pares.
A proposta deste estudo visa a organizar uma dinâmica de estudos que venha a
facilitar e acompanhar as intervenções fonoaudiológicas na produção escrita de pessoas
surdas, relacionando-as à Língua Brasileira de Sinais, assim, propiciando maior nível de
independência aos mesmos na interação com o mundo letrado. Como objetivos
secundários: verificar os níveis de conhecimento dos pacientes surdos em relação à
Língua Portuguesa escrita e à Libras; reproduzir experiências do uso efetivo da língua
escrita, a partir dos diversos gêneros textuais; avaliar as contribuições da Libras na
atividade terapêutica da Fonoaudiologia com pacientes surdos; subsidiar e fomentar
novas investigações para o corpus desta pesquisa.
2. Marco teórico
As línguas de sinais se apresentam como língua natural das pessoas surdas. A
Língua Brasileira de Sinais, Libras, foi reconhecida e regulamentada através da Lei
Federal nº 10.436, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2003) e do Decreto nº 5.626 de 22
de dezembro de 2005 (BRASIL, 2006). Esses artefatos legais representam avanços
históricos para a comunidade surda, sendo uma das mais relevantes, na regulamentação
da Lei de Libras, capítulo II, a obrigatoriedade da disciplina Libras no currículo dos
cursos de Fonoaudiologia e em todas as licenciaturas do território nacional. Dessa forma
se proporciona aos graduandos dos referidos cursos, a apropriação de discussões
relativas à surdez e às pessoas surdas e seus desdobramentos em prol de uma sociedade
da diferença. Outro item a ser destacado na referida regulamentação, consta no capítulo
VII “Da garantia do direito à saúde das pessoas com deficiência ou com deficiência
auditiva”, inciso VII, sobre as ações integradas da Fonoaudiologia com a área da
educação, de acordo com as necessidades terapêuticas do aluno na educação básica.
A Fonoaudiologia, como ciência da comunicação, possui um leque de atuações
que contemplam toda a diversidade de expressão humana. Para a Fonoaudiologia, a
escrita do surdo ainda se apresenta como um aspecto pouco investigado. A produção
escrita em língua portuguesa pelas pessoas surdas deverá deixar de ser compreendida
com um distúrbio, para ser investigada na perspectiva da diferença linguística, uma vez
que esta parcela da sociedade compõe uma minoria linguística. O modelo escrito da
língua oral-auditiva pelos surdos se circunscreve em uma especificidade em diversos
aspectos linguísticos (sintático, morfológico e semântico). Esses sujeitos apresentam um
modo de apropriação de mundo que parte fundamentalmente da visualidade e, desse
modo, constroem em sua lógica visual a estrutura de organização da língua escrita.
Como aprendizes de segunda língua (L2), isto é, da língua oral-auditiva (escrita
ou falada e escrita) de seu país, as pessoas surdas evidenciam um aspecto singular frente
a outras minorias linguísticas, por se tratar de uma parcela da sociedade oriunda de
falantes de uma língua majoritária, no caso do Brasil, a língua portuguesa. De acordo
com os estudos de Skliar (1997, pp. 128-129), só 4% ou 5% das crianças surdas –
segundo as estatísticas internacionais – nascem e se desenvolvem em seus primeiros
anos de vida dentro de uma família com pais surdos. O último censo realizado pelo
IBGE (2007) em 2000, afirma que 14,5% da população total nacional possuem algum
tipo de incapacidade ou deficiência; desse total, 3,37% possuem deficiência auditiva.
Das pessoas com deficiência auditiva, 0,6% são categorizados como incapazes de ouvir
ou com grande dificuldade permanente de ouvir, totalizando a marca de 1.036.956
brasileiros. Destarte, em 2000, havia aproximadamente uma população de 51.848 de
surdos, filhos de pais surdos, que tem a Libras como sua primeira língua (L1) e uma
população de 985.108 de surdos, filhos de pais ouvintes, os quais não terão, via de
regra, a Libras como língua natural. No Brasil, não há uma política de apoio às famílias
com crianças surdas e elas ficam à mercê da ideologia de cada profissional da saúde que
as atendem, posteriormente, aos profissionais da educação. Nesse percurso, a criança
continua seu desenvolvimento sem a devida atenção à promoção da sua saúde em um
contexto ampliado deste conceito, isto é, qualidade de vida.
A perda auditiva em crianças que acarretem alterações na aquisição e
desenvolvimento da linguagem responderá em seu desenvolvimento cognitivo, escolar,
social e emocional, afirma Lichtig (1997), considerando apenas a linguagem oral. Esta
lógica aponta a uma implicatura decorrente de uma não-aquisição da língua de sinais
por crianças surdas filhas de pais ouvintes: atraso de linguagem em Libras. Assim
sendo, em consonância com a constatação relativa à língua oral-auditiva, o atraso de
linguagem na L1 sugere um comprometimento encadeado nos diversos aspectos do
desenvolvimento da criança, por conseguinte, maior dificuldade na aprendizagem da
modalidade escrita da L2. A estrutura da escrita das pessoas surdas se diferencia de
todas as outras formas de aprendizes de segunda língua (L2) ou língua estrangeira (LE),
pois apresenta peculiaridades de ordem da influência da visualidade.
O universo linguístico das pessoas surdas deverá ser bilíngue, conforme ajuíza
Quadros (1997, p. 46), contemplando a língua espaço-visual ou primeira língua (L1) e a
língua oral-auditiva ou segunda língua (L2). A língua de sinais, como língua natural das
comunidades surdas, deve ser adquirida em um ambiente rico em qualidade e
quantidade de estímulos linguísticos, a partir de modelos variados, preferencialmente,
surdos. Quanto à língua oral-auditiva ou segunda língua (L2), esta deverá ser aprendida,
podendo ser trabalhada tanto nos aspectos da oralidade e da escrita, ou apenas da forma
escrita, dependo das escolhas feitas pela família e pela pessoa surda, assim que houver
condições desta opinar.
Entretanto, a realidade vivida pela maioria dos surdos em nosso país se apresenta
de modo não satisfatório, repercutindo em um desgaste de todos os que figuram nesta
cena: os surdos, as suas famílias, os educadores, os fonoaudiólogos. Tal realidade se
deve a não-aquisição da Língua Brasileira de Sinais (Libras) em tempo hábil. Essas
crianças se encontram em um panorama linguístico pouco estimulante, geralmente, em
famílias de ouvintes que não falam a língua de sinais. As crianças surdas, em muitos
casos, só terão acesso à Libras na escola, o que refletirá em um complicador no
processo de aquisição da escrita do português. Trazendo os elementos que compõem
esse quadro, Di Donato (2009, pp. 01-07), apresenta algumas inquietações voltadas aos
profissionais da saúde (fonoaudiólogos e afins), familiares e profissionais da educação.
Profissionais da saúde compreendem o atraso em linguagem (L1) na criança ouvinte,
todavia, o mesmo não ocorre em relação à Libras (L1) para a criança surda. Aqui há
dois aspectos a serem postos: o primeiro consta no desconhecimento ou escassa reflexão
sobre as línguas de sinais, enquanto língua plena em todos os seus aspectos linguísticos,
cognitivos, culturais, sociais, neurofuncionais, dentre outros, e o segundo, a resistência
ante as diferenças. Skliar e Quadros (2004, p. 04), afirmam que o processo da exclusão
não se compreende apenas como “uma fronteira de discursos e silêncios
permanentemente removidos e reposicionados, (...) é também um processo cultural, um
discurso de verdade,(...) a negação do espaço/tempo/lugar em que vivemos os outros”.
A Fonoaudiologia já indica um processo de mudança, a partir de diversas
reflexões e discussões deste ser surdo, dentre elas Machado (2005), em Santa Maria
(RS). Em sua pesquisa, 100% dos participantes do grupo dos estagiários da Clínica de
Fonoaudiologia consideram necessário o aprendizado do português, 100% consideraram
importante o uso da Libras para a inserção do surdo na sociedade, 20% utilizam a Libras
em terapia e 60% informam que seus pacientes surdos se comunicam em Libras no
atendimento fonoaudiológico.
Estudos neurofuncionais foram realizados por Vallado, Delgado, Souza et al.
(2004, 207-210) e Rocha (2009). No primeiro estudo, analisaram sujeitos surdos na
correlação entre hemisfericidade e a Libras. Buscaram responder a como a
predominância hemisferial se realiza em falantes da Libras, se ela se dá pelo hemisfério
direito (HD), pelo esquerdo (HE) ou bi-hemisféricos (BH), isto é, em igualdade de
participação dos HD e HE Concluíram que, quando não é realizada a comunicação
oralmente, mas através dos sinais com conotação emocional, cuja competência é mais
pertinente ao HD, ainda assim, a Libras apresenta uma prevalência para os sujeitos com
hemisfericidade esquerda, apontando para a completude das línguas de sinais. Rocha
(2009) realizou um estudo pioneiro em Libras sobre a sua organização neural,
afirmando que os resultados obtidos mostram que seu o processamento envolve além de
atuarem as áreas cerebrais clássicas, Broca e Wernicke, participam componentes
específicos de análise visual diferentes daqueles usados durante a análise auditiva,
além de circuitos comuns de processamento linguístico. Segundo o autor (2009), em
falantes da Libras como L2 com aprendizado tardio, observou-se ativação das áreas
frontais bilaterais de memória verbal e visual com áreas temporais de processamento
linguístico, sugerindo um processo de tradução Libras/Português. Este dado reforça o
pressuposto da necessidade de se aprender uma língua de sinais na infância, para que
ela seja diretamente decodificada pelo seu próprio padrão neural (Neville et al, 1997
apud Rocha, 2009).
Devido à ausência de um código linguístico constituído socialmente, famílias
com pessoas surdas lançam mão de uma estratégia bastante comum, principalmente
entre a mãe e a criança, a qual consiste no uso dos sinais caseiros, isto é, um conjunto
restrito de signos utilizados para comunicação não compreendida por outras pessoas
fora desse núcleo. Esse conjunto de estruturas semânticas possui algumas características
peculiares a esse modo de comunicação, que se seguem discutidas por Dalcin (2006, p.
196): faz referência ao tempo presente; apresenta quantidade limitada de vocabulário;
refere-se a situações isoladas; comunicação fragmentada; possui signos únicos para
objetos e pessoas. Vorcaro (1999 apud Dalcin, 2006, p. 197) pontua que os sinais
caseiros “não promovem a possibilidade de deslizamento metonímico e de
ultrapassamento metafórico e impossibilitando a construção de uma rede significante e
o estabelecimento de laços sociais.” Embora esse seja um recurso utilizado pelas
famílias de surdos, Dalcin (2006, p.196) afirma que a língua oral permanece como
prioritária para a comunicação. Para a pesquisadora surda Stumpf (2008, p. 25), “uma
família ouvinte bem orientada e que tenha acesso à aprendizagem da Língua de Sinais,
junto com o seu bebê, não vai necessitar de recursos extraordinários para dar-lhe uma
boa educação.”
O último grupo proposto para esta reflexão trata-se do grupo educacional. Esse
grupo consiste em um dos importantes elementos do tripé desta discussão de
acessibilidade do sujeito surdo na sociedade. Nele, há importantes questões a serem
discutidas, todavia, serão abordados com brevidade para estes fins. Via de regra, a
fluência em Libras dos professores de educação especial apresenta sérios problemas,
que vão do conhecimento elementar ao português sinalizado, isto é, uma espécie de
pidgin. Além de estabelecer a comunicação com o aprendiz surdo desse modo, o pidgin
passa a constituir um modelo “metodológico” para o ensino do português. De fato, o
pidgin equivale a uma composição entre línguas, neste caso, entre a Libras e a Língua
Portuguesa, com fins limitados de comunicação, sem constituir-se como uma língua,
consoante Grannier (2005). Quanto aos professores do ensino regular, quando dispõem,
comunicam-se por meio de um intérprete de Libras. Quando não o dispõem,
estabelecem estratégias com gestos naturais, desenhos, escrita e linguagem oral,
insipientes à aquisição do português por aprendizes surdos. Entretanto, os professores
elencam uma série de dificuldades na apropriação da língua de sinais, tais como: o
órgão gestor não oferece o curso gratuitamente e em turno compatível com a sua
disponibilidade; quando os cursos de Libras são oferecidos, sempre são básicos;
ausência de modelos surdos adultos em sua região que dominem a Libras; ausência de
instrutor/es surdo/s; dentre outras.
Muitos autores vêm contribuindo para os estudos sobre o ensino de português
como segunda língua para surdos, dentre eles Grannier (2005), Grannier e Silva (2005),
Di Donato (2007, 2008 (a), 2008 (b), 2009), Dechandt-Brochado (2003, 2007) e alertam
para uma questão recorrente na educação de surdos: o ensino simultâneo das duas
línguas, ou seja, o ensino de L1 e L2, em um mesmo tempo pedagógico. Como
abordado anteriormente, aprender uma segunda língua implica na aquisição de uma
primeira, o que não ocorre com as crianças surdas, em sua maioria. Todo processo de
alfabetização reporta a um momento particular para o aprendiz, por serem os primeiros
contatos na produção formal da língua escrita veiculada socialmente. Ao sobrepor o
ensino destas línguas, as estruturas entram em conflito por possuírem características
próprias. Silveira e Rezende (2008, pp. 57-79) discutem que a presença de
professores/instrutores surdos é imprescindível neste processo. Todo e qualquer
aprendiz necessita de diversos modelos para aquisição/aprendizagem plena de uma
língua, caso contrário, torna-se apenas um repetidor do seu modelo. Consoante
Grannier, ao se adotar uma perspectiva interacionista, pode-se partir da afirmação que
“a aquisição de uma língua resulta da interação entre as habilidades mentais do aprendiz
e o ambiente lingüístico em que ele se encontra. Em outras palavras, a aquisição é o
resultado da interação entre o que acontece dentro do indivíduo e o que acontece fora do
indivíduo”. (GRANNIER, 2005a, p. 01)
Os equívocos nos procedimentos metodológicos aplicados aos aprendizes surdos
encontram-se apoiados em representações de incompletude cognitiva, linguística e
cultural. Dechandt-Brochado (2003, p. 19) remete-se a Quadros quando ela afirma “que
o ensino da Língua Portuguesa para surdos sempre foi baseado no processo de
alfabetização de crianças ouvintes e que, por essa razão, os resultados foram
considerados um fracasso.”
Grannier e Silva (2005) atentam para uma questão por vezes subestimada no
ensino de língua estrangeira, que neste caso também se aplica ao ensino de segunda
língua para surdos, refere-se ao tratamento dado na produção dos materiais didáticos: o
ponto de vista do aprendiz. Para a autora, tanto o professor, como o elaborador dos
materiais didáticos, habitualmente usuários nativos da língua fonte, não conseguem
perceber a língua ensinada pelo olhar dos aprendizes. Fazer uso de estratégias para a
reflexão sobre os “erros” do aprendiz, associando-se a “análise contrastiva das línguas
envolvidas (língua-alvo e língua do aprendiz) podem ajudá-lo. Os melhores resultados,
entretanto, são obtidos com a participação de usuários das línguas dos aprendizes nas
pesquisas e na elaboração das sistematizações gramaticais”. (GRANNIER, 2005, p. 12).
Como exposto anteriormente, o comum na prática do ensino da língua escrita
com o aprendiz surdo é aplicar metodologias grafofônicas, isto é, modelos voltados para
a consciência fonológica, o que implica em um elemento complicador ao aprendizado
do português como segunda língua. Algumas experiências fazem uso da mesma
metodologia, associando-se o alfabeto manual, também conhecido como datilológico ou
dactológico, e/ou itens lexicais da Libras. O que, de fato, permanece nas mesmas
condições de desvantagem para as crianças surdas.
As metodologias adotadas para o ensino do português a surdos, segundo Di
Donato (2009) constituem-se em: (a) metodologia de L1 para ouvintes; (b) metodologia
de L1 para ouvintes com o uso de datilologia e/ou sinais da Libras; (c) metodologia de
L2 para surdos, português-por-escrito proposto por Grannier (2005) e Grannier e Silva
(2005):
(a) Metodologia de L1 para ouvintes – A metodologia de L1 para ouvintes é a
mais comum entre todas. O desenvolvimento da consciência fonológica se dá nas
crianças ouvintes, através do processo de apropriação das estruturas sonoras da
linguagem, em sua interação com os falantes de sua língua, desde as cantigas de ninar
até as expressões mais elaboradas do discurso. O professor desconhece o surdo
enquanto sujeito da diferença. Reproduz a mesma metodologia adotada para ouvintes,
tanto em salas exclusivas de surdos, como nas salas inclusivas com ouvintes. Com a
ampliação do processo da educação inclusiva a partir da educação infantil, torna-se
quase uma regra a não atenção às especificidades lingüísticas da criança surda. Segundo
dados de 2006 da SEESP/MEC (2009, 4), das 62.524 escolas comuns com estudantes
especiais, 38.006 não contavam com apoio pedagógico especializado. Esse dado sugere
que esses estudantes não dispunham de qualquer metodologia voltada ao seu segmento.
(b) Metodologia de L1 para ouvintes com o uso de datilologia e/ou sinais da
Libras – Uma parcela dos educadores de surdos desconhecem metodologia de português
escrito como L2, para tanto, fazem uso da metodologia de L1 para ouvintes, associada
ao uso da datilologia e/ou sinais da Libras, sem constituir a língua de sinais de fato.
Alguns o fazem simultaneamente, caracterizando o português sinalizado. Mesmo que
fluentes na língua de sinais, a fluência em Libras, não se atrela ao domínio de uma
metodologia de L2 para surdos, todavia, o contrário se faz necessário. Pode-se ter uma
educação bilíngue nesse modelo, apenas não se constitui a partir de uma metodologia de
L2. O uso da datilologia pode ser usado como um recurso metodológico, mas, em si
mesmo, não equivale a língua espaço-visual. O alfabeto manual é usado para fins
específicos, não configurando na língua em si. O ensino dos sinais associados à escrita
do português em uma mesma atividade consiste em L1 e L2 simultaneamente, o que
poderá ser conflituoso para o aprendiz surdo nas fases iniciais. A análise contrastiva
possibilita a um educador bilíngüe facilitar a compreensão por parte do aprendiz surdo
em etapas mais avançadas de sua escolaridade, como proposto em Di Donato (2007 e
2008(a)).
(c) Metodologia de L2 para surdos: português-por-escrito – Como proposta
bilíngüe de segunda língua para aprendizes surdos, na qual a Libras deverá ser a L1, o
português-por-escrito pauta-se em uma abordagem interacionista, a qual prevê a
competência comunicativa, a contextualização, a variação lingüística e a consideração
do erro do aprendiz como parte do percurso da aprendizagem; prioriza situações
comunicativas autênticas; propõe a exposição aos aspectos pragmáticos,
sociolingüísticos e culturais da L2; uso de diversos gêneros textuais a partir do syllabus
(plano de estudos); uso prioritariamente do português escrito. O português-por-escrito
prevê um período anterior a aquisição propriamente dita da L2, denominada por préportuguês. O aprendiz passa por três fases (GRANNIER; SILVA, 2005, p. 3), de modo
gradual e com superposições: fase 1 – interação com o pré-português. Pode-se fazer uso
da tradução para a Libras: combinação de tiras e figuras; fase 2 – introdução progressiva
no português-por-escrito: desenho de letras e a escrita; fase 3 – uso exclusivo do
português-por-escrito na interação com falantes nativos de português: digitação e a
comunicação em salas de bate-papo ou outras atividades interativas por escrito. Um dos
recursos metodológicos adotados nesta proposta, consta no uso das “máscaras”. As
máscaras são estratégias baseadas no princípio linguístico do foco-na-forma, onde a
palavra apresenta uma linha que a circunda, definindo a sua forma. Deste modo, a
criança surda focaria no desenho da palavra e sua representação por imagem, sempre a
significando pelo contexto. Este recurso será utilizado apenas na fase inicial do préportuguês. A autora (2005) contempla a educação bilíngue como a mais adequada para a
criança surda e sugere a associação da intervenção fonoaudiológica.
3. Metodologia
A realização da pesquisa ocorre no Laboratório de Linguagem da Clínica-Escola
do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
será realizada no período de 2010-2012. A pesquisa “Análise das Intervenções
Fonoaudiológicas na Produção Escrita de Surdos e sua Relação com a Língua Brasileira
de Sinais” se encontra registrada no SISNEP sob número FR- 290950 e aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.
A equipe de trabalho conta com a participação de professores e graduandos do 1º
ao 7º períodos de Fonoaudiologia da UFPE (estes últimos, responsáveis pelo
atendimento aos surdos, sob supervisão), graduandos do Letras/Libras UFSC pólo
UFPE, pós-graduandos da UFPE; professores ouvintes especialistas na área da surdez
da rede pública de ensino e profissionais tradutores/intérpretes de Libras. Há um braço
da pesquisa que ganha suporte com o grupo de estudos sobre os estudos surdos e a
surdez, realizada na Escola Governador Barbosa Lima, contando com os docentes
especialistas na área e um professor/pesquisador surdo, além de outros colaboradores.
Todos os participantes ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE), que apresenta os objetivos e procedimentos do estudo,
assim como seus riscos e benefícios. Os voluntários deste estudo totalizam 08 sujeitos e
apresentam o seguinte perfil: conhecimento ou fluência em Libras; 04 do gênero
feminino (F) e 04 do masculino (M); faixa etária dos 09 aos 42 anos; escolaridade do
Ensino Fundamental I ao Ensino Médio completo; surdez bilateral do tipo
sensorioneural de grau severo ao profundo; a aprendizagem da Libras após os 6 anos de
idade. A identificação dos participantes será feita com o uso de três letras maiúsculas.
A coleta de dados segue as seguintes etapas: (a) análise dos prontuários; (b)
avaliação da fluência na modalidade espaço-visual; (c) avaliação da escrita na
modalidade oral-auditiva; (d) acompanhamento dos discentes. A análise dos prontuários
busca verificar informações relevantes, afins às da pesquisa, analisando a evolução dos
participantes. Quanto às avaliações das modalidades espaço-visual e da oral-auditiva
(escrita), ambas seguem os princípios sociointeracionistas, através do uso de gêneros
discursivos/textuais (BAKHTIN, 2006). As diagnoses foram organizadas em três
etapas, cada uma com um tipo de gênero e pautadas no aspecto cultural da modalidade
avaliada. A diagnose de linguagem em Libras contou com os gêneros bate-papo, fábula
e piada, sendo este último voltado à temática da cultura surda. Já a diagnose da
linguagem português escrito para surdos foi composta pelos gêneros: lista, tira e filme
(curta), também de conotação cultural da língua. O acompanhamento aos discentes se
faz através das supervisões in loco e nas reuniões de aprofundamento e estudos de
casos.
Os critérios de cada um dos instrumentos avaliativos pautaram-se na
característica da visualidade do sujeito surdo (DI DONATO, 2008; STUMPF, 2008). Os
aspectos da produção e compreensão das duas modalidades de língua são analisados,
objetivando propor um instrumento que possibilite averiguar as etapas do
desenvolvimento linguístico na qual o aprendiz surdo se inscreve. O referencial da
diagnose em Libras abrange desde a análise dos gestos caseiros até as questões
inferenciais. A diagnose em português escrito pauta-se no sistema grafossemântico, isto
é, desconsidera os aspectos fonológicos em detrimento restrito à representação escrita
de determinado dado semântico imagético.
As sessões são filmadas, para fins de análise e memória da avaliação, e,
posteriormente, transcritas para o português por um profissional tradutor/intérprete de
Libras. Antes de cada sessão filmada, mesmo com a autorização prévia, tem sido
solicitado o consentimento do procedimento a cada participante, buscando o conforto do
voluntário frente à câmera.
Os materiais utilizados são: Filmadora digital Sony HandyCam DCR-SX40
Digital; Notebook Evolute SFX35 Processador Intel Core 2 Duo T5550 1,83 GHz, 3 GB
de memória RAM, HD de 160GB; Windows Vista; vídeo TV Escola com a fábula A
Águia e o Esquilo narrada por Bernard Braga (1994); o curta da Disney/Pixar A Banda
de um Homem Só (2006), sem texto; Diagnose de linguagem em Libras: gênero lista de
supermercado (DI DONATO, no prelo); tira do Maurício de Sousa (1999), Cascão e
Cebolinha.
Os gêneros utilizados para Diagnose da Linguagem em Libras nos aspectos da
produção e da compreensão foram: (a) bate-papo - usou-se o material humano,
levantando as seguintes temáticas: cores prediletas, time de futebol, amigos, escola
(atual ou anterior), residência, trajetos (orientação espacial e perspectiva), motivo pelo
qual frequenta a clínica de fonoaudiologia, inclusão educacional, oralização/sinalização;
(b) fábula – a escolha da fábula A Águia e o Esquilo se deu pelo fato dela ser sinalizada
basicamente com gestos naturais, o que possibilita a compreensão dos participantes com
menor fluência em língua de sinais. Essa fábula foi colhida da narração realizada pelo
ator e contador de historias surdo Bernard Braga, produzida em vídeo (1994); (c) piada
– A Árvore Surda é uma piada de domínio público, que compõe o repertório de surdos
de diversas partes do nosso país, possível de ser vista em diversas postagens de vídeos
na Internet.
A Diagnose da Linguagem em Português Escrito para Surdos contemplou na
produção e compreensão os seguintes gêneros: (a) lista – a elaboração da Diagnose de
Linguagem em Libras: gênero lista de supermercado (DI DONATO, no prelo)
considerou três princípios: grafossemântico, extensão da palavra (monossílabas a
polissílabas) e frequência no vocabulário escolar (do mais ao menos presente). O
primeiro propõe vocábulos concretos a partir de imagens. O critério da extensão deve-se
a pesquisas apontarem para maior dificuldade das pessoas surdas na escrita de palavras
de maior extensão (DI DONATO, 2007). A atividade é realizada em um notebook, em
formato de slides. Consta em um contexto de compras de alguns itens no supermercado
junto com a mãe do avaliado, onde só se visualizam as imagens no monitor a partir do
toque no teclado. Para efetuar a compra, é necessário escrever a lista em um papel
numerado. Cada item comprado é colocado em um envelope com a imagem de um
carrinho de compras. Importante ressaltar que o participante tem o controle das figuras
apresentadas na tela e do seu ritmo de produção, podendo, inclusive, retomar algum
item que deseje; (b) tira – trata-se de uma tira (também conhecida por tirinha) do
Cascão e Cebolinha do Maurício de Sousa (1999). A tira é composta por quatro quadros
e não apresenta texto escrito. Uma das principais características desse gênero é o
humor/ironia, o que suscita um maior nível de complexidade na compreensão. Em uma
folha impressa com a referida tira, o participante deverá iniciar sua produção. Após o
comando inicial em Libras para a execução da atividade, o avaliador se manterá
imparcial, a menos que o participante solicite algum vocábulo para a escrita do texto.
Nesse caso, a informação será registrada e considerada no momento da análise; (c) curta
– este é um curta intitulado A Banda de um Homem Só, da Disney/Pixar (2006),
produzido como “bônus especiais” no filme Carros. Não possui texto oral ou escrito e
descreve uma situação de humor relacionada a músicos medievais, portanto, cultura
ouvinte. Apresenta-se o curta no notebook ao participante, que o assiste sem
intervenções. Ao final, solicita-se que produza um texto a partir do que foi
compreendido. O avaliador procede do mesmo modo que no instrumento anterior.
Os dados colhidos da Diagnose de Linguagem em Libras contam com o seguinte
quadro: 01 possui gestos naturais (gn), 01 boa fluência (bf) e 06 ótima fluência (of).
Estes dados configuram o seguinte perfil: MAT, 9a, of; LUC, 9a, of; GIO, 12a, gn;
AND, 12a, of; VIT, 13a, of; MIL, 16a, of; RIC, 22a, of; ROZ,2a, bf. A Diagnose de
Linguagem em Português Escrito para Surdos ainda se encontra em fase de aplicação.
Das informações colhidas nos prontuários, todos os participantes apresentam grande
dificuldade na produção escrita do português.
4. Análise dos dados e discussão
A pesquisa se encontra em fase de desenvolvimento, entretanto, os dados
coletados sugerem alguns indícios de análise. Em primeiro lugar, o nível de interação
em Libras, em todos os participantes avaliados, foi bastante satisfatório. Eles se
mostravam receptivos e atendiam a todas as solicitações feitas pelos avaliadores. Nos
prontuários de semestres anteriores, alguns apresentavam certa resistência ao
atendimento com foco exclusivo na oralização.
Na Diagnose de Linguagem em Libras, os voluntários surdos que tiveram acesso
à língua de sinais mais cedo apresentaram um desempenho superior tanto na produção,
como na compreensão comparados aos demais. Dois participantes de 9 anos, fluentes na
língua de sinais, apresentam um desenvolvimento em Libras semelhante à uma criança
ouvinte na língua oral-auditiva. O uso de diferentes gêneros resultou em um instrumento
diferenciado na avaliação da clínica fonoaudiológica, por ser comum a aplicação de
protocolos sem esse perfil interacionista.
A Diagnose de Linguagem em Português Escrito para Surdos foi aplicada
parcialmente em apenas um participante, com os gêneros lista e curta. Na primeira
atividade, a interação com o material se deu de modo bastante prazeroso para o
voluntário. Pelo fato de o instrumento possibilitar a manipulação e o controle de alguns
elementos, como o tempo da exposição na tela e ‘correção’ da produção escrita, o nível
de interesse foi considerado excelente. Mesmo quando desconhecia a escrita formal, se
propunha a escrever de acordo com as instruções iniciais, isto é, “como você acha que
se escreve”. Outro dado refere-se à característica lúdica da proposta e ser apresentada
em um contexto conhecido em sua vivência.
Após o período da aplicação das diagnoses, as intervenções serão intermediadas
pela Libras em uma proposta interacionista com diferentes gêneros textuais, adaptada de
Di Donato (2007) e das sequências didáticas de Schneuwly e Dolz (2004) e analisadas à
luz da teoria da interlíngua aplicadas a surdos de Dechandt-Brochado (2003, 2007): (a)
eleição de um gênero; (b) discussão/pesquisa do tema; (c) proposta de escrita; (d)
produção textual inicial; (e) revisão pelo escritor; (f) leitura do produto ao terapeuta;
(g) valorização da produção; (h) leitura compartilhada com interferências negociadas
pelo terapeuta; (i) escrita formal refletida e negociada com o escritor; (j) cópia
significativa do texto final; (k) interpretação de texto por escrito; (l) atividades de
reestruturação. Estas esapas poderão sofrer alterações durante o percurso da pesquisa.
A presença do profissional tradutor/intérprete de Libras na clínica intermediando
a comunicação entre os estagiários de Fonoaudiologia revela-se uma experiência
inovadora nas práticas clínicas convencionais. O perfil de ambas as profissões atendem
aos mesmos princípios éticos de sigilo e confiabilidade (QUADROS, 2004, pp. 31-32).
Essa prática defende a participação desse profissional, apenas nos casos em que o
terapeuta não disponha de instrumental linguístico em Libras suficiente para a realizar a
interação com seu paciente, apoiando-se nos princípios de equidade do direito à
qualidade de vida.
Como benefícios, é possível que os resultados contribuam com os profissionais
de Fonoaudiologia, Pedagogia, Letras e áreas afins, sobre a importância da análise e
desenvolvimento de propostas de intervenção na produção escrita de pessoas surdas,
contribuindo não apenas para o processo terapêutico, assim como pretende proporcionar
às pessoas surdas acessibilidade aos conhecimentos formais, possibilitando-lhes maior
nível de autonomia no mundo letrado.
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DISCURSOS EM MADEIRA E TINTA: OS XILOGRAFITES PELAS
RUAS DE RECIFE
Alesson Luiz Gois da Silva4
Mari Noeli Kiehl Iapechino5
Valéria Severina Gomes6
RESUMO: Este trabalho, atrelado ao projeto “A Umburana e o Spray: as relações de identidade entre a
xilogravura e o grafite em Recife”, procura analisar o processo de (re)construção identitária cultural que
ocorre entre os sujeitos das cidades, representados pelos grafiteiros, e os sertanejos, ilustrados pelos
xilogravuristas, a partir do encontro de suas escritas nos muros da cidade de Recife e os leitores delas
presentes nos espaços urbanos. Propõe, também, discutir de quais maneiras os xilografites podem ser
utilizados como uma proposta pedagógica de incentivo à desmarginalização do grafite e às apropriações
das culturas sertanejas e urbanas em ambientes escolares. Quanto aos aspectos teóricos, o estudo se
alicerça na Nova História, ao propor a análise da realidade por meio das representações que os indivíduos
criam para expressar o mundo e a si próprios, e na Análise Crítica do Discurso (ACD), dada sua
perspectiva relacional entre prática discursiva e prática social e suas possíveis relações de poder. Ainda
que preliminarmente, tem-se percebido a gradual mudança de posicionamento das instituições
governamentais sobre o grafite. Esse fato margeia o questionamento de uma suposta apropriação do
xilografite para fins políticos tendo, como resultante, um tratamento diferenciado dele em relação aos
demais grafites.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; grafite; xilogravura; identidade cultural; educação.
ABSTRACT: This work, coupled with the project "The Umburana and Spray: relations of identity
between woodcut and graffiti in Recife," seeks to analyze the process of (re)construction of cultural
identity that occurs among individuals of the towns represented by the graffiti artists and the inlanders
illustrated by woodcuts, starting from the encounters of their writings on walls in the city of Recife and
the readers in the urban areas. This work also proposes to discuss in what ways xilographites can be used
as a pedagogical proposal to lessen marginalization of graffiti and increase the appropriation of hinterland
and urban cultures in school settings. As for theoretical aspects, the study is gased on the New History,
by proposing the analysis of reality by means of the representations that individuals create to express the
world and themselves. It is also based on Critical Discourse Analysis (CDA) given its relational
perspective among discursive practice and social practice and their possible relations of power.
KEY WORDS: Discourse, Graphite, Woodcuts; Cultural identity; Education.
1. Introdução
Na Grécia Antiga, Aristóteles (1998) afirmou que os homens são, por natureza,
seres sociais e políticos e que possuem a necessidade de interagir entre si e com o
mundo. Dessa maneira, a linguagem adota um papel fundamental nesse processo de
comunicação humana, pois é ela o instrumento de mediação entre os próprios
indivíduos e o que os rodeiam.
4
Aluno do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e aluno-pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem (NIEL).
5
Professora do DLCH/UFRPE e coordenadora do NIEL.
6
Professora do DLCH/UFRPE e coordenadora do NIEL.
Com base nessas afirmações, percebemos que muitos são os estudos voltados à
compreensão das relações humanas e aos processos de (re)significação dos discursos,
tendo em vista que esses processos constituem a história, situada em um tempo e espaço
e, portanto, sujeita a variações.
Votre (2002) afirma que a linguagem humana é formada de discursos
pluralizados dotados de diversos significados e interpretações. Ela seria, então,
resultado da complexidade das redes sociais e de crenças presentes em nossa sociedade.
Essa multiplicidade é bastante notória nos espaços urbanos que atuam, por sua vez,
como confluentes e ressignificadores de sentidos, construtores de novas relações sociais
e de práticas culturais.
Nesse contexto, encontra-se o xilografite7 que, demonstrando esse caráter
confluente e produtor de novos sentidos da/na cidade revelando, assim, um encontro
que parecia ser improvável entre elementos supostamente antagônicos como a
xilogravura e o grafite que, no entanto, encontraram convergência nos muros da cidade
de Recife mediante os grafiteiros Derlon Almeida e Bozó Bacamarte.
A xilogravura, proveniente da China, cruzou o mundo até chegar ao Nordeste
brasileiro, onde sofreu as influências culturais dessa região. Em meados dos anos 60 do
século XX, numa época em que a “moderna” arte de fotografar ainda não conseguia
penetrar esse ambiente, a xilogravura passou a retratar o imaginário e a realidade do
homem sertanejo (QUEIROZ, 2007).
Os produtores dessa expressão atuam como mediadores entre o mundo real e o
imaginário, de acordo com Santos (2003). Fazem a mediação entre a realidade de um
cotidiano sofrido e um mundo imaginário, onde o santo e o profano, a religiosidade, os
causos, as lendas, os feitos, os heróis, os demônios, os santos, os anjos, os animais, o
Deus e o diabo estão juntos a cada talhada feita na madeira. As xilogravuras atuam,
assim, como uma superação da realidade, como uma demonstração da necessidade de
imaginar, de aumentar o mundo real (QUEIROZ, 2007; TEVES, 2002).
A xilogravura, como afirmado, analisa a realidade do sertão em suas dimensões
objetiva e subjetiva, pois ela não é apenas imaginação, é também a observação, o
comentário e a crítica à vida cotidiana, como pontua Proença (1982). É a expressão de
sua realidade, é a mostra de sua cultura, de sua identidade sertaneja. É o resumo do
sertão. (QUEIROZ, 2007).
Os grafiteiros, por sua vez, usam o urbano como suporte para a sua prática.
Utilizam-se dos muros para divulgar suas ideias, sejam elas políticas, religiosas, sociais
ou simplesmente com o objetivo de tornarem-se conhecidos entre seus pares, visíveis à
sociedade que, provavelmente, não os percebia. No entanto, por ser uma ação
“espontânea, efêmera e gratuita”, ela encontra limites sociais, devido seu caráter
subversivo, ao intervir em locais protegidos por leis em defesa das propriedades
privadas e patrimônios públicos. Além de ferir a ordem, os grafites comumente são
vistos como uma poluição visual pela sociedade urbana (SOUZA, 2007, p.19).
Entretanto, ao compasso do tempo, as leituras feitas sobre o grafite foram se
modificando a partir de discussões sobre a dicotomia grafite x pichação. A
7
Neologismo com a união das palavras “xilogravura” e “grafite”.
diferenciação entre essas práticas fez com se ressaltasse o caráter mais “artístico” do
grafite, devido seus desenhos, muitas vezes complexos e coloridos, em detrimento das
predominantes letras monocromáticas das pichações. Além disso, a desvinculação do
grafite ao movimento hip hop – relação iniciada nos guetos norte-americanos, em
meados da década de 70 -, como única forma de expressão para o grafite, possibilitou
uma maior abrangência temática atraindo, assim, mais olhares dos habitantes da cidade.
2.
“A cidade não pára...” 8
Este mundo está sendo construído em coletivo, com nossa cara, expressões, formas de falar e pensar.
Está visível em todas as partes da cidade, em diversas formas como uma grande tela (parede) onde cada
indivíduo é uma tinta, e tem o objetivo de falar através dela, com sua cara colorida, onde as pessoas se
juntam e fazem o melhor.9
Os espaços urbanos, ao longo da História, são constantemente representados
como locais de encontro, de trocas e mudanças dos mais diversos tipos de produtos e
ideias. São ambientes de circulação para universos particulares. No entanto, de acordo
com Velho (1995), a urbe não pode ser vista como uma simples e passiva localidade
para confluência de ideias, mas como um local ativo e produtor de novas formas de
interações sociais e culturais. É esse potencial de metamorfose, continua Velho (1995),
que simboliza os espaços urbanos com todas as diversidades culturais de seus
habitantes. Com isso, podemos perceber que a própria realidade da cidade está em
constante transformação, sendo reavaliada e ressignificada em todo instante, assim
como a mentalidade de seus moradores diante dessas constantes modificações.
A presença do xilografite em muros de Recife vem para confirmar essa
concepção, ao demonstrar que expressões antes tão distintas como a xilogravura e o
grafite encontraram convergência no espaço urbano recifense, como mostra dessa
captação e ressignificação cultural permitida pela urbe.
Sennett (apud PESAVENTO, 1995) afirma que a cidade é um ambiente que se
permite experimentar as diferenças e que busca promover a concentração dessas
diferenças, construindo relacionamentos díspares e experiências cada vez mais
complexas.
Pesavento (1995) defende que os espaços urbanos são construídos por
“produtores do espaço”, que são representados por arquitetos, urbanistas e afins.
Juntamente com o espaço físico, esses “produtores” concebem idéias de como viver,
construir, transformar e sonhar a cidade. Dessa maneira, ressalta a idéia de uma “cidade
do desejo”, onde os “produtores do espaço” e os habitantes da urbe constroem
simbolicamente seus anseios sobre ela, ou seja, da “cidade que se quer”.
De acordo Barros (2007), o espaço urbano pode ser interpretado como um textocidade, seguindo a perspectiva de
um texto pode ser definido como algo possível de ser lido, mas
também pode ser compreendido como algo que é escrito. Daí que, se
8
Verso da canção “A Cidade”. Composição: Chico
http://letras.terra.com.br/nacao-zumbi/77652/
9
Paulino “CHE”. Revista Salve S/A. P. 01. Ano. Edição 01.2009.
Science.
Disponível
no
sítio:
os cientistas sociais que examinam a cidade tomam esse texto na sua
dimensão de objeto de leitura, já os seus habitantes e os seus passantes
que percorrem no dia-a-dia podem se relacionar ao texto-cidade
simultaneamente do ponto de vista da leitura e da escrita.10
É necessário também discutirmos o conceito rua, pois ele se releva fundamental
nesta abordagem, por ser nesse ambiente a execução dessas escritas urbanas. A análise
lingüística do termo rua denuncia, portanto, de acordo com Nunes (In: ORLANDI,
2004), os seus vários sentidos ao longo do tempo, tal como seus reflexos na vida social.
Inicialmente, o conceito de rua fora interpretado como um simples lugar de
trânsito, de circulação de pessoas, organizado de acordo com o planejamento urbano
realizado pelo governo vigente. Em seguida, os dicionários portugueses passam a
definir rua como um lugar de passeio marcado pela complexidade social e até mesmo
como um espaço de “vadiagem” sujeito a conflitos. Em meados do século XIX, afirma
Nunes (In: ORLANDI, 2004), a rua, ou seja, o espaço público passa a opor-se ao
espaço privado representado pelas casas e locais de trabalho. Assim sendo, uma dupla
imagem foi construída: a rua enquanto um ambiente moralmente inferior devido ser,
como pontuado por Sennett (apud ORLANDI, 2004), ausente de uma vigilância e
manutenção política efetiva se comparada ao lar, o ambiente familiar; e um espaço de
efêmeras relações sociais motivadas pela intensa circulação provocada pelo ritmo do
capitalismo industrial. A rua passa, portanto, a ser encarada como um lugar perigoso e
de perigosos sujeitos.
Nessa discussão, podemos perceber de forma nítida a influência da nomeação e
atribuição de significados a respeito do termo rua para os espaços urbanos. Constatamos
a forma dos indivíduos perceberem e se relacionarem com a cidade a partir desse
conceito.
Atualmente, ainda é possível observar a atuação desses sentidos atribuídos ao
termo rua. A ideia de “marginalidade” das escritas urbanas como o grafite perpassa essa
conceituação de rua, pois, para muitos, como será discutido posteriormente, a ação de
inscrever textos e formas nos muros da cidade está direcionada diretamente a sujeitos
perigosos, a gangues de ruas e afins.
3. Os muros do discurso
Quem tem dinheiro divulga suas idéias num outdoor nas grandes avenidas, nós não, não temos dinheiro,
divulgamos nossas idéias nas paredes da cidade. 11
Diante das múltiplas relações culturais existentes nas cidades, podemos nos
apropriar das contribuições da ACD, ao problematizarmos a influência das estruturas
sociais sobre as estruturas discursivas, como já mencionado. Nessa perspectiva, a
organização social e a distribuição dos espaços urbanos são resultantes de práticas de
poder estabelecidas institucionalmente. Inserida nesse contexto está a linguagem,
enquanto discurso histórico, que pode ser manifestada com instrumento de dominação,
discriminação, poder e controle social.
10
11
BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, pp. 42-43.
Paulino “CHE”. Revista Salve S/A. P. 01. Ano 1. Edição 01.2009.
Sendo limitados a se expressarem por um condicionamento forçado ou
supostamente acordado com as autoridades, os sujeitos urbanos vêm sendo tolhidos de
manifestar suas ideias, propostas e insatisfações. Nesse momento, o spray entra em
ação, como a “bandeira” de denúncia dos males sociais, dos anseios suprimidos, da
vontade de notoriedade.
Podemos perceber essa afirmação no depoimento de dois destacados grafiteiros.
A seguinte fala pertence ao grafiteiro paulista José Augusto Amaro Capela, mais
conhecido como Zezão:
Fazer Graffiti é ter liberdade acima de tudo. É sair pra pintar meu
lance onde quero, independente de ser autorizado ou não e sem
compromisso algum com ninguém. Faço porque gosto da rua e da
liberdade que sempre tive de pintar meus lances, onde eu sempre quis.
Gosto muito do suporte urbano para interagir com o meu trabalho,
sem limites e sem fronteiras. (...) Gosto de pintar, fotografar e ter o
meu registro. Se durar um dia, um mês ou um ano, isso nunca vai me
importar. (...) Eu, particularmente, acho muito legal hoje ver que a
prefeitura anda apagando tudo, pois isso me motiva a pintar mais e
mais.12
Descrição pessoal do grafiteiro Galo de Souza em sua página na internet:
...iniciei minha vida no mundo das artes, sendo um pixador aos 9 anos
de idade,era uma criança que gostava de desenhar nas paredes,pra
mim isso nunca seria um crime. Com 16 anos fiz meus primeiros
graffitis, impulsionado pelo rap... passei a levar mais que meu nome
pros muros, passei a levar o que penso, o que preciso dizer!!!13
A liberdade mencionada pelo grafiteiro Zezão passa a ser entendida nesta
pesquisa como referente à livre escolha do grafiteiro em selecionar o local nas ruas a ser
utilizado e não como uma liberação de tais práticas nos espaços urbanos pelo governo
ou pela sociedade, pois o posicionamento das autoridades a respeito dessas escritas recai
sobre o discurso de vandalismo e de poluição visual referendados por lei (artigo 65 da
Lei 9.605/98), na qual a ação do grafite é considerada crime “contra o ordenamento
urbano e o patrimônio cultural”, estando sujeita à multa e à detenção para os sujeitosautores que forem pegos em flagrante.
Dessa forma, respaldados pelo pensamento de Foucault (1996), podemos afirmar
que as sociedades passaram a criar sistemas de controle com o objetivo de dominar a
disseminação dos discursos, visando a apagar as marcas de sua invasão no pensamento
e na língua. Uma observação minuciosa da cidade revela que muitas manifestações
expressas nos muros subvertem a tentativa de controle e rompem o silêncio, para que
alguns grupos sejam ouvidos.
Vemos os muros da cidade como um retrato do processo relatado acima, acerca
das disputas entre escritas urbanas - cartazes, pinturas e grafites-, que são vistos como
um suporte de comunicação para a sociedade, um espaço de poder.
12
13
Grafiteiro Zezão em entrevista a Revista Graffiti nº 35, 2006, s/p
Disponível em http://galodesouza.blogspot.com. Acesso realizado em 25.03.10, às 21h27min.
Com isso, compreendemos que a escolha de um local para ser grafitado surge de
uma intenção como, por exemplo, para uma maior e melhor visibilidade. No caso do
xilografite, além desse fator, é possível perceber que os suportes escolhidos geralmente
são ambientes que remetem a uma “rusticidade”, como prédios antigos e portas de
madeiras. Interpretamos, então, essa peculiaridade como um elemento adicional ao
caráter sertanejo que se pretende dar a essas escritas.
4. O tempo e os discursos
Na dinâmica da história, a concepção legal do grafite passou por profundas
revisões. Atualmente, após constantes discussões e a provável conclusão da
impossibilidade de uma total vigilância sobre os sujeitos-autores dessas escritas, o
governo passou a perceber o grafite como uma arte e permitiu sua prática mediante a
autorização do proprietário do muro a ser grafitado. Essa nova realidade é datada do ano
de 2007, com o projeto de lei nº 706, do deputado Geraldo Magela (PT/DF), que define:
Art. 7° - O Caput do art. 65 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1988, passa a vigorar
com a seguinte redação, acrescido, também, dos §§ 1° e 2°.
Art. 65 – Pichar edificação ou monumento urbano
§1° - Entende-se por “pichação” uma ação ilegal e criminosa que degrada o patrimônio
público e privado, além de inferir de forma negativa na paisagem e meio ambiente
urbano.
§ 2° - Entende-se por “grafite” a prática que tem como objetivo a valorização do
patrimônio público e privado mediante a manifestação artística sob o consentimento de
seus proprietários.
Como já mencionado, essa nova lei é resultado das intensas discussões ocorridas
nos últimos anos acerca dessas escritas urbanas, tendo como sua base a diferenciação
entre pichação e grafitagem. Essa segunda manifestação passou a ser vista com “bons
olhos”, de modo geral, devido a alguns supostos fatores, como: a presença de traços
com um rigor técnico mais apurado; a sua diversidade temática; e, principalmente, sua
melhor legibilidade em comparação à pichação, entre outros motivos. Essas
características elencadas, no entanto, não representam um favorecimento a uma imagem
maniqueísta entre o grafite e a pichação, pois, em ambos, há a presença de discursos que
são passíveis de análises e que “falam” da sociedade na qual foram produzidos.
Essa mudança de comportamento é notória em Recife, ao se observar a
introdução do grafite em galerias de arte da cidade tendo, como exemplo: o SPA das
Artes, em 2008, e a visitada exposição “O Vendedor de Bananas”, na Galeria de Arte
SESC Casa Amarela, em 2009, ambas do grafiteiro Galo de Souza; a 47º edição do
Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, com a exposição “Narrativas em Madeira e
Muro: presença da xilogravura popular nas obras de Samico e Derlon”, em 2008/2009;
a premiação para o projeto de grafitagem organizado pela Fundação de Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), em 2008, para Derlon Almeida e
Elanie Bonfim, com a intervenção “Conversa de pescador”, na comunidade da Ilha de
Deus, em Recife; como também ao Galo de Souza, com a intervenção “Oferendas”,
realizada em cinco terreiros da capital pernambucana. Vale mencionar, igualmente, o
lançamento da revista Salve S/A, intitulada como a 1º Revista de Grafite de
Pernambuco, que também foi patrocinada pela FUNDARPE e pela Secretária de
Educação do Governo de Pernambuco. Essa revista teve seu lançamento realizado na
Livraria Cultura, na capital pernambucana, um lugar tradicionalmente visto como
recanto da “cultura dominante”.
Esses poucos exemplos mostram a mudança de olhares sobre o grafite em
Recife, principalmente referindo-se às autoridades. No entanto, apesar de ser possível
notar, atualmente, significativos diálogos entre a escola e o grafite, nesses espaços
escolares ainda se encontra muita resistência na utilização do grafite como uma
ferramenta pedagógica, pois, como afirma Orlandi (2004),
a sociedade como um todo se movimenta e há uma mudança nas
formas tradicionais de comunicação, mudança que as escolas não
estão percebendo ou dando atenção ou mesmo atendendo. Desse modo
a escola não vai para a rua, não se abre, privilegia formas tradicionais
e não dá acesso às outras formas que estão se gestando para saber o
que fazer com elas, para que elas tomem suas formas, para dar-lhes
futuro, elaborando sentidos antes não existentes, não realizados. Uma
dessas novas experiências de linguagem é, como estamos mostrando, a
pichação, é o grafite. O grafismo na parede é comunicação, embora na
escola não seja considerado. As pessoas aceitam passivamente as
montanhas de publicidade mas não aceitam o grafite, a pichação. Isso
tudo tem a ver com a divisão da própria cidade, sem metaforizar a
separação do espaço físico e do espaço social. E a escrita, a linguagem
em geral vai sofrer o mesmo processo14.
A aplicabilidade dos xilografites em âmbito escolar pode proporcionar um
espaço para discussões de assuntos como o papel das escritas urbanas, as questões
referentes à liberdade de expressão, o estudo sobre as transgressões de leis etc. Esses
assuntos permeiam a vida do alunado até mesmo dentro da própria escola com as
inúmeras inserções dessas escritas. Além disso, os xilografites auxiliam na humanização
da educação – ao tornar a construção do conhecimento algo prazeroso e significativo
aos alunos das escolas (principalmente as das periferias) de Recife, pois essa proposta
contribui para a ideia de um aluno como sujeito ativo no processo de aprendizagem, no
qual, a partir dessas inscrições urbanas em sua realidade, os alunos podem “desbravar”
(entre)tecidos da xilogravura e do grafite e, em todas as tramas nelas existentes, o
imaginário popular, como também perceber a influência dessas culturas na realidade em
que eles estão inseridos. Com isso, há a possibilidade de identificação do alunado com
essas escritas, fazendo com que quiçá as valorizem e as ressignifiquem, tal como já
acontece com os sujeitos-autores dos xilografites, visto que o nível de identificação de
um sujeito com a cultura em que ele está inserido varia de acordo com suas experiências
pessoais, no contato com essa cultura (SILVA e SOUZA, 2006).
Orlandi (2004) vem afirma também acerca da percepção da comunidade escolar
sobre a capacidade de leitura dos jovens
[...] o comentário escolar é mais ou menos este: é a falta de leitura que
ameaça a capacidade de linguagem dos jovens. Como se esses jovens
não lessem. Lêem materiais diferentes daqueles que o imaginário
escolar destinou há alguns séculos para o público da escola. Mas os
jovens lêem. Como se eles não escrevessem. A pichação, o grafite é
14
ORLANDI, 2004, p. 113.
escrita. E os jovens se “comunicam” enormemente. Basta olhar para
as paredes e muros das cidades. Para as camisetas. Para os festivais.
Para as novas festas jovens e etc.”15
Na perspectiva da linguista, é possível compreender com mais nitidez as
dificuldades de relação entre professores e docentes quanto o uso e potencial do grafite
em sala de aula. Desvinculando-se dos conhecimentos de vida, da percepção de mundo
e da linguagem do cotidiano utilizada pelos seus alunos, o professor age de forma a
desmerecer a capacidade instrutiva que esse ambiente não-escolar possui para a
construção do conhecimento de seu alunado.
5. Considerações finais
Em linhas gerais, compreender os discursos feitos em madeira e tinta na cidade de
Recife é perceber que, de acordo com Chouliaraki e Fairclough (In: RESENDE, 2005,
p.21) “a dialética entre o discurso e sociedade: o discurso é moldado pela estrutura
social, mas é também constitutivo da estrutura social. Não há, portanto, uma relação
externa entre linguagem e sociedade, mas uma relação interna e dialética”.
Assim, constatamos que a peculiaridade dos traços dos xilografites os torna
notadamente diferentes dos demais grafites da cidade de Recife. Sua proposta em
demonstrar elementos do cotidiano e do imaginário sertanejo em plena urbe ilustra o
processo de hibridismo cultural discutido em Canclini (2006) e da identificação cultural
proposta por Hall (2000), sendo esta última estratégica e posicional, a ponto de atrair os
olhares das próprias autoridades, tornando-os, assim, até produtos de divulgação
cultural (caso dos xilografites de Derlon Almeida).
É possível presenciar também, entre mídias “oficiais” - como cartazes e pinturas de
propagandas -, a disputa por “espaços de poder”, dos quais os muros são representantes.
Assim, a presença dos xilografites nas ruas de Recife permite entender os processos de
releituras culturais existentes nos espaços urbanos.
O processo de desmarginalização pelo qual o grafite tem passado nos dias
atuais, tendo como premissa a mudança de comportamento do Estado e,
consequentemente, da sociedade sobre essa escrita urbana, faz-nos supor que não mais o
grafite será encarado como um ato de vandalismo, mas sim como uma expressão
artística, o que poderá possibilitar, por exemplo, a sua entrada nas escolas, pois, aos
poucos, o governo percebe o seu potencial pedagógico, enquanto um instrumento
educativo, utilizando o discurso de estratégia para a “preservação do patrimônio
público” contra as “ilegais” pichações nos muros escolares. Além disso, a prática do
grafite nesses ambientes pode permitir que os alunos utilizem esse elemento já
conhecido de sua realidade em sua formação educativa, tornando, assim, o
conhecimento mais atrativo e significativo, como também proporcionando discussões
sobre o papel do grafite dentro da sociedade, podendo, dessa maneira, ampliar seus
olhares sobre os espaços urbanos.
15
ORLANDI, 2004, p. 112.
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A DESCOBERTA DA REALIDADE PELOS PERSONAGENS DE O ATENEU E
O MENINO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DO ETHOS DISCURSIVO
Alixandra Guedes16
RESUMO: No transcorrer das atividades diárias percebemos as mais diversas situações conflituosas que
se estabelecem entre os sujeitos no processo de interação, resultantes não apenas da linguagem, mas de
forças exteriores ao discurso, fortemente demarcadas por posições sociais e ideológicas instauradas no
curso da interação verbal configurando uma verdadeira arena onde a oposição e a contestação dos
diferentes discursos são consolidadas. Sob esse viés, nosso trabalho investiga a construção dos ethe
discursivos do personagem Sérgio no capítulo 1, do livro O Ateneu (POMPÉIA, 1999), e do protagonista
do conto O Menino, presente no livro Venha ver o pôr-do-sol e outros contos (TELLES, 2000). Partimos
da hipótese de que a cenografia da narrativa contribui para a construção do “tom”, “do caráter” e do
“corpo” do narrador, o que acarreta a produção de possíveis sentidos no ato da leitura e busca pela adesão
do leitor. Para tanto, analisamos as narrativas com vistas à apreensão dos ethe discursivos colocados na
materialidade linguística do texto, objetivando entender como esses personagens percebiam a realidade
social na qual estão inseridos. Embasamo-nos teoricamente em alguns dos estudiosos inseridos na âmbito
da AD francesa, a saber, Amossy (2005), Maingueneau (2005 e 2006), Salgado & Motta (2008), no que
tange ao ethos e Bakhtin (2000), Dantas (2007) e Orlandi (2007 e 2008), com relação às abordagens sobre
o discurso, visto que esses tecem considerações acerca de como a linguagem materializa-se na ideologia e
como esta influencia nossas escolhas e posturas sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Realidade social; ethe discursivo; Análise do Discurso.
ABSTRACT: During the daily activities we realize many conflicting situations that take place among the
subjects in interaction process which result not only by the language but of external forces to the
discourse strongly demarcated by social and ideological positions, introduced in verbal interacion
representing a truthful arena where the opposition and the contestation of different discourses are
consolidated. In this perspective, our paper investigates the construction of the discursive ethe of Sergio’s
character in the first chapter of the book “O Ateneu” (POMPÉIA, 1999) and the tale’s protagonist, O
Menino, presents in the book “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos” (TELLES, 2000). We start from
the assumption that the narrative scenography contributes to the construction of “tone”, “character” and
“narrator’s body”, which brings the production of possible meanings during reading and searches to
reader’s adhesion. Therefore, we analyzed the narratives searching the apprenhension of the discursive
ethe put in the linguistics materiality of the text and having as objective understanding how these
characters realize the social reality in which they are inserted. We are based theoretically in some studies
related to Discourse Analysis of the French like Amossy (2005), Mainguenau (2005, 2006), Salgado &
Motta (2008) focused on ethos and Bakhtin (2000), Dantas (2007) and Orlandi (2007, 2008) in relation to
approaches about discourse, seeing that they discuss considerations about how language materialize in
ideology and how ideology influences our choices and social behaviors.
KEYWORDS: Social reality; discursive ethe; discourse analysis.
1. Introdução
No transcorrer das atividades diárias percebemos as mais diversas situações
conflituosas que se estabelecem entre os sujeitos no processo de interação, resultantes
16
Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Universidade
Federal de Campina Grande (POSLE – UFCG). Possui Especialização em Língua Portuguesa pela UEPB
(Universidade Estadual da Paraíba).
não apenas da linguagem, mas de forças exteriores ao discurso, fortemente demarcadas
por posições sociais e ideológicas instauradas no curso da interação verbal configurando
uma verdadeira arena onde a oposição e a contestação dos diferentes discursos são
consolidadas.
Com isso, entendemos que a linguagem – oral e escrita – é concebida como um
instrumento social de interlocução que permeia as interações humanas e constrói os
discursos através da produção e recepção de gêneros textuais, colocando-se como ação,
pois permite que os indivíduos ajam sobre o mundo e sobre os outros. Assim,
concebemos o discurso como o elemento externo à língua, repleto de ideologias e
vestígios sociais, situado no âmbito social e que não encerra aspectos puramente
linguísticos; não é a língua propriamente dita, mas precisa dela para existir.
Entendemos que em cada discurso subjaz o que a Retórica aristotélica
denominou de ethos – a imagem do sujeito no discurso, os traços mostrados pelo orador
ao seu auditório. Porém, foi com a Nova Retórica que a vocalidade presente no texto
escrito passou a ser considerada; desta forma, a partir da “voz” que encontramos na
materialidade do discurso, tornou-se possível apreendermos o ethos discursivo do texto
escrito; podemos apreendê-lo como sendo um outro sujeito construído pelo leitor
enquanto efeito de sentido produzido no e pelo evento de interação através da
linguagem (MAINGUENEAU, 2006).
Sob esse viés, nosso trabalho investiga a construção dos ethe discursivos do
personagem Sérgio no capítulo 1, do livro O Ateneu (POMPÉIA, 1999), e do
protagonista do conto O Menino, presente no livro Venha ver o pôr-do-sol e outros
contos (TELLES, 2000). Partimos da hipótese de que a cenografia da narrativa contribui
para a construção do “tom”, “do caráter” e do “corpo” do narrador, o que acarreta a
produção de possíveis sentidos no ato da leitura e busca pela adesão do leitor.
Para tanto, analisamos as narrativas com vistas à apreensão do ethe discursivos
colocados na materialidade linguística do texto. Acreditamos que nossas análises
contribuem para tornar o ato de ler mais reflexivo e, consequentemente, conduzir o
aluno à apropriação das relações sociais por meio da linguagem.
Para a realização da análise, recorremos aos estudiosos inseridos no âmbito da
Análise do Discurso. No que tange ao ethos, embasamo-nos teoricamente em Amossy
(2005), Maingueneau (2005 e 2006), Salgado & Motta (2008) e nas abordagens sobre o
discurso realizadas por Bakhtin (2000), Dantas (2007) e Orlandi (2007 e 2008), pelo
fato destes estudiosos tecerem considerações acerca de como a linguagem é
materializada na ideologia e como esta influencia nossas escolhas e posturas sociais.
2. Pressupostos teóricos
2.1 Sobre o discurso
Concebemos o discurso como a realização de atividades comunicativas,
carregadas de sentidos, que acontecem na interação entre os sujeitos, considerando-se a
situação de produção de linguagem. Neste contexto interacional, é pertinente afirmar
que todo discurso está impregnado de outros, pois “a fala de todo e qualquer sujeito é
perpassada por dizeres de outro lugar e outros sujeitos” (DANTAS, 2007, p.73). Desse
modo, nossos dizeres encontram-se permeados de dizeres outros que acabamos por
absorver e instituir como nossos.
Nesse sentido, Bakhtin (2000) vê a enunciação como fato social e não apenas
como ato individual de uso linguístico. A linguagem é, portanto, um fenômeno sóciohistórico e, por isso, ideológico, empregado para (re)afirmar e estabelecer poderes; para
compreendê-la faz-se necessário compreender sua realização entre os sujeitos sociais,
dessa forma, aqueles que possuem como instrumento de trabalho a Análise do Discurso
ultrapassam o nível da interpretação na tentativa de chegar à compreensão da
materialidade linguística, na busca pela maneira como o texto produz os sentidos que
veicula.
Concordamos com Cardoso (2003, p. 21), quando coloca que “o discurso é, pois,
um lugar de investimentos sociais, históricos e ideológicos, psíquicos, por meio de
sujeitos interagindo em situações concretas”. Por ser o discurso atravessado por muitos
outros no processo de interação, será a formação ideológica do sujeito que apontará para
o sentido a ser construído. Isso, contudo, não significa dizer que o sentido é previsível,
mas que ele é construído durante o processo discursivo.
Para Orlandi (2007), “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si idéia de
curso, de percurso, de correr por, de movimento”. Sendo assim, é inviável pensar o
sujeito e o discurso dissociados da ideologia. Por meio da ideologia diferentes sujeitos
produzem diferentes sentidos. Podemos, então, entender a ideologia como a condição
necessária para a constituição dos sujeitos, dessa maneira, o sujeito é representante de
sua(s) ideologia(s).
É através da interação verbal atrelada à situação social, ampla e imediata que se
constitui a realidade da língua, a produção da linguagem e a constituição dos sujeitos.
Por meio das marcas discursivas, instala-se a heterogeneidade linguística. Logo, vemos
como impensáveis as relações humanas fora do âmbito das relações sociais, visto que a
linguagem é, essencialmente, dialógica, polissêmica e polifônica. Sob a ótica da
interação, temos o discurso em que os sujeitos dialogam atravessados por vozes
distintas, que atribuem diferentes sentidos ao mesmo texto.
Por sua vez, o texto é o veículo através do qual materializamos o discurso, no
entanto, o discurso, por ser formado por vários outros discursos, ao materializar-se
recorre ao interdiscurso para que ocorra a inteligibilidade no ato da leitura. Orlandi
(2008, p. 59), define o interdiscurso como “a memória que se estrutura pelo
esquecimento, à diferença do arquivo, que é o discurso documental, institucionalizado,
memória que acumula”. É, pois, por meio da memória discursiva que estabelecemos
relações de graus de importância das/nas nossas leituras.
Nos termos de Orlandi (op.cit. p. 64), “na textualização do discurso, há uma
distância não preenchida, há uma incompletude que marca uma abertura do texto em
relação à discursividade”. Desse modo, sendo o texto o lugar da materialidade do
discurso, e ao mesmo tempo unidade de análise, devemos entendê-lo como um objeto
multifacetado, heterogêneo, plural, constituído pelo autor/falante – aquele que
materializa o discurso no ato da escrita/oralidade – e pelo leitor/ouvinte – aquele que
(re) significa o discurso materializado no ato da leitura ou da escuta.
Contudo, os discursos não são homogêneos devido às ideologias, pelo contrário,
eles são constituídos por uma multiplicidade de vozes, pois se relacionam diretamente
com as produções sócio-históricas. Daí decorrem as noções pecheutianas de Formação
Ideológica – que revela o funcionamento do discurso, visto que este se mostra
ideológico, ou seja, conforme a posição ideológica do sujeito uma palavra pode adquirir
mais de um significado – e de Formação Discursiva (noção importada de Michel
Foucault) – as produções reúnem em seus enunciados marcas das formações
ideológicas às quais os sujeitos pertencem.
O discurso é, assim, composto por enunciados extraídos de uma mesma
formação discursiva, desse modo, terá por base discursos preexistentes, o que revela a
exterioridade presente na língua, isto é, o que está entre a língua e a fala, “no seio da
vida social”. Para apreendê-la é preciso “compreender de que se constitui essa
exterioridade a que se denomina discurso” (FERNANDES, 2007, p. 23). Para que a
língua signifique há, pois, necessidade da história, já que é o gesto de interpretação que
realiza essa relação do sujeito com a língua.
2.2. Sobre a cenografia e o ethos
Por vezes, ao lermos um texto ficamos com a sensação de que ele é “parecido
com alguma coisa já lida”, essa sensação decorre do fato de o discurso ser heterogêneo,
múltiplo, formado por vários outros discursos. Dessa forma, acreditamos que a
percepção por parte do leitor dos diversos sentidos imbricados no texto resulta da
construção de imagens a respeito da situação de enunciação, assim como da construção
do ethos discursivo que toca o narrador nos vários momentos da atividade enunciativa.
Comumente, tendemos a confundir contexto com situação de comunicação e
situação de enunciação. O contexto pode ser compreendido como o sustentáculo para a
produção discursiva, é o conjunto dos fatos históricos, das marcas ideológicas. Ao
contrário de situação de comunicação, que é exterior ao texto, a situação de enunciação
ocorre de maneira intrínseca ao discurso materializado no texto. A situação de
enunciação está dividida em três cenas, a saber, a cena englobante, a cena genérica e a
cenografia.
Podemos entender a cena englobante como sendo o “pano-de-fundo” discursivo,
isto é, o tipo de discurso que embasa o discurso veiculado, por exemplo, o discurso
político, o discurso religioso. Segundo Maingueneau (2006, p. 251), é a cena englobante
“que define o estatuto dos parceiros num certo espaço pragmático”. No entanto, a cena
englobante não abrange todas as atividades verbais, surge, pois, a cena genérica.
Esta, por sua vez, diz respeito ao gênero textual veiculador do discurso e que
participa da cena englobante por compartilhar com o discurso. Para o autor, “a obra
literária é na verdade enunciada através de um gênero do discurso determinado que
participa, num nível superior, da cena englobante literária”(p. 251).
Por último, e não menos relevante, temos a cenografia. Processo que legitima a
enunciação e é legitimado por ela, ou seja, ao passo que a cenografia constrói a
enunciação discursiva é, ao mesmo tempo, legitimada por ela, já que através da
enunciação torna-se possível a existência da cenografia. Ainda segundo Maingueneau
(2005, p. 87),
A cenografia implica, um processo de enlaçamento paradoxal. Logo
de início, a fala supõe uma certa situação de enunciação que, na
realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio da
própria enunciação. Desse modo a cenografia é ao mesmo tempo a
fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um
enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la (grifo do autor).
A cenografia é validada no texto por meio de marcas textuais, de elementos
paratextuais e, em alguns casos, de marcas explícitas que são avalizadas por falas outras
que não aquelas. Assim, a cenografia (ceno + grafia) nasce das escolhas lexicais e das
combinações linguísticas que conferem ao texto o “tom”, que, por sua vez, deve estar
em consonância com o tema abordado, com suas nuances e teses, de outra forma não
encontraremos o sucesso cenográfico.
É, pois, por meio da cenografia, que o leitor estabelece a relação de aproximação
ou distanciamento com o texto, já que esta é construída no ato da leitura a partir das
pistas deixadas pelas marcas linguísticas. Através da cenografia, a obra literária define
sua relação com a sociedade e é legitimada por ela. Sendo, pois, a cenografia que
legitima a enunciação depende dela a interação entre o texto e o leitor. Será ela que
subsidiará a construção do ethos.
A Nova Retórica postula que o ethos encontra-se não só nos textos orais, mas
também nos textos escritos. Sobre essa nova visão, Maingueneau (2005, 2006) defende
que todo texto escrito possui uma vocalidade específica que nos permitiria construir o
ethos. Para o autor, o ethos se constrói na fusão entre o ethos pré-discursivo – noção
aristotélica – e ethos discursivo – formado pelo ethos dito e pelo ethos mostrado, atenta
para o fato de que o ethos visado não é necessariamente o ethos produzido. Entendemos,
dessa forma, que a percepção do ethos é complexa e ancora-se na mobilização da
afetividade do intérprete, que absorve suas informações da materialização linguística e
do ambiente.
Maingueneau (2006, pp. 271-272) explica a constutividade do ethos do texto
escrito por meio de três características: o tom, o caráter e a corporalidade. O tom
corresponde ao discurso que embasa a enunciação. Por caráter compreendemos ser os
aspectos psíquicos do enunciador. Já pela corporalidade, associamo-la à formação
física, aos caracteres físicos atribuídos, além do modo de agir no espaço social
encerrado no texto.
O autor coloca que os aspectos que constituem o ethos são avalizados pelo
fiador, isto é, pelo discurso social arquivado na memória do leitor e que no momento da
leitura é ativado para validar ou não aquele ethos que se encontra na obra e que é,
também, (trans) formado pelo leitor durante a leitura. Dessa forma,
O ethos constitui, assim, um articulador de grande polivalência.
Recusa toda a separação entre o texto e o corpo, mas também entre o
mundo representado e a enunciação que o traz: a qualidade do ethos
remete a um fiador que, através desse ethos, proporciona a si mesmo
uma identidade em correlação direta com o mundo que lhe cabe fazer
surgir (MAINGUENEAU, op.cit., p. 278).
Sendo, portanto, impossível dissociar o ethos do código de linguagem, uma vez
que a eficiência do código repousa sobre o ethos que lhe é correspondente. Surge, aqui,
a problemática recorrente no que tange ao ethos: a distinção entre o ethos levado ao
leitor, pela enunciação e o ethos construído pelo leitor no ato da leitura, com
implicações colocadas pela sua identidade e pelo espaço sócio-histórico no qual está
inserido.
3. Em busca das cenas
Na busca pela apreensão das cenas que se apresentam nas narrativas, nos
dirigiremos em princípio ao romance O Ateneu – capítulo 1; em seguida partiremos para
o resgate das cenas que compõem o conto O Menino. Selecionamos, para tal, algumas
sequências textuais que acreditamos explicitar com clareza as cenas.
O Ateneu:
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do
Ateneu. Coragem para a luta”. Bastante experimentei depois a
verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de
criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o
regime do amor doméstico [...] (p. 7)
Eu tinha onze anos. (p.7)
A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por um
festa de encerramento dos trabalhos. (p. 10)
Um discurso principalmente impressionou-me. À
direita da comissão dos prêmios, ficava a tribuna dos oradores.
Galgou-se firme, tesinho, o Venâncio, professor do colégio,[ ...]
(p. 11)
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio
confundia-se com ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava
como um cartaz que experimentase (sic) o entusiasmo de ser
vermelho. [...]
Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta
apoteose com o atordoamento ofuscado, mais ou menos de um
sujeito partindo-se à meia-noite [...]
É fácil conceber a atração que me chamava para
aquele mundo tão altamente interessante, no conceito das
minhas impressões. (p. 17)
Após a leitura das sequências textuais supracitadas nos deparamos com o
discurso literário escrito como cena englobante, enunciada através das memórias de
Sérgio adulto quando retrata sua internação no colégio O Ateneu enquanto criança e
materializada pelos seguintes períodos – Eu tinha onze anos; Guardei, na imaginação
infantil,...; É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão
altamente interessante, no conceito das minhas impressões – nos quais percebemos as
recordações e o ato de escrever realizado por Raul Pompéia. Para Maingueneau (2006,
p. 251), “Todo enunciado literário está vinculado com uma cena englobante literária,
sobre a qual se sabe em particular que permite que seu autor use um pseudônimo, que os
estados de coisa que propõe sejam fictícios etc”. O que denuncia o caráter
autobiográfico do romance.
No que tange à cena genérica de Sérgio, no capítulo 1, esta se ancora no gênero
romance. Por cena genérica compreendemos, juntamente com Maingueneau (apud
Amossy, 2005, p. 75), que “é a do contrato associado a um gênero, a uma instituição
discursiva”. É a materialização da enunciação presente na obra. Por se tratar de
romance de memórias encontramos a enunciação de fatos que já aconteceram, com o
uso de verbos no pretérito, como destacado em negrito nas sequências abaixo:
“Como se chama o amiguinho?” perguntou-me o
diretor.
- Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem
esquecer o “seu criado” da estrita cortesia. (p. 18)
Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora com
um nadinha de excessivo desembaraço sentou-se no divã de
perto de mim.
- Quantos anos tem? Perguntou-me.
- Onze anos... (p. 19)
A cenografia vai sendo construída ao passo que Sérgio adulto passa a nos contar
pormenorizadamente a sua vida no colégio interno, especificamente, o momento em que
deixa a sua casa e o carinho de sua mãe. Por meio das marcas textuais e paratextuais
ocorre a validação da cenografia. Entendemos, contudo, que validado não é sinônimo de
valorizado e sim algo que já se encontra instalado no âmbito social; aqui, a vivência em
internatos, seja de modo efetivo ou por passagens que nos são contados por aqueles que
estiveram nessas instituições de ensino. O autor recorre à memória do leitor para fazê-lo
validar a cenografia que se encontra em processo de construção.
Por cenografia, Maingueneau (2006) entende que ela “não é um simples alicerce,
uma maneira de transmitir ‘conteúdo’, mas o centro em torno do qual gira a
enunciação” (p. 264). Entendemos, portanto, ser a cenografia a junção harmônica entre
a obra em si, considerada como objeto autônomo, e as condições de seu surgimento.
O Menino:
Após a análise das cenas de Sérgio e seus aspectos que se inserem no âmbito das
narrativas longas – o romance – nos debruçaremos na apreensão das cenas referentes ao
personagem Menino17, do conto homônimo. Leiamos as sequências a seguir.
Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as
pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice
do vestido e em seguida umedeceu o lencinho de rendas.
Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também,
era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia moça linda
assim.
- Quantos anos você tem, mamãe?
- Ah, que pergunta!Acho que trinta ou trinta e um, por aí,
meu amor, por aí... Quer se perfumar também?
- Homem não bota perfume.
17
Utilizamos aqui o substantivo menino iniciado por letra maiúscula como forma de identificá-lo em sua
posição de sujeito-protagonista do conto, como também como forma de diferenciá-lo do título do conto.
- Homem, homem! – Ela inclinou-se para beijá-lo. – Você é
um nenenzinho, ouviu bem? É o meu nenenzinho. (p. 70)
Quando crescesse haveria de se casar com uma moça igual.
Anita não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com
aqueles dentes saltados. Tinha que ser igual à mãe. (p. 71)
A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e
em seguida, como se tivesse perdido toda a pressa ficou
tranquilamente encostada a uma coluna, lendo o programa. O
menino deu-lhe um puxão na saia.
-Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já
começou, já entrou todo mundo, pó! (p. 72)
Então viu: a mão pequena e branca, muito branca, deslizou
pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do
homem que acabara de chegar. (p. 75)
Encontramos nessas sequências como cena englobante que subsidia os
enunciados do Menino o discurso literário, apresentando na voz do narrador observador
que nos enuncia todas as ocorrências passadas durante a ida ao cinema em companhia
de sua mãe - Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia
moça linda assim; Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já
entrou todo mundo – Maingueneau (2006) coloca que a cena englobante corresponde
ao que se costuma entender por ‘tipo de discurso’, nesse caso o discurso das narrativas
curtas.
A cena genérica do Menino encontra-se expressa através dos contos literários.
Narrativas curtas, se comparadas aos romances, que apresentam poucos personagens e a
descrição do contexto de cena é pouco detalhada. Também é comum a presença do
narrador observador “contando” tudo o que aconteceu. Vejamos a sequência abaixo:
O menino esfregou as pontas dos dedos na umidade dos beijos
no queixo, na orelha. Limpou as marcas com a mesma
expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da calça
quando cortava as minhocas para o anzol. (p. 77)
Observamos que a cena genérica, portanto, diz respeito ao gênero textual
veiculador do discurso e que participa da cena englobante por compartilhar com o
discurso. Para o Maingueneau, “a obra literária é na verdade enunciada através de um
gênero do discurso determinado que participa, num nível superior, da cena englobante
literária” (2006, p. 251).
É, pois, exatamente, esse contar enunciado na voz do narrador sobre as ações do
personagem – Ele sorriu; Ela comprou os ingressos...; O menino deu-lhe um puxão
na saia; O menino esfregou as pontas dos dedos... – que constitui e é, ao mesmo
tempo, constituinte da cenografia. A cenografia “não é imposta pelo gênero, ela é
constituída pelo texto” (MAINGUENEAU, apud AMOSSY, 2005, P. 75); caracteriza a
enunciação e é, simultaneamente, caracterizada por ela; sustenta a obra e é sustentada
por ela. Por isso, é comum nos depararmos durante a leitura com cenografias que vão,
aos poucos, construindo as cenas explicitadas anteriormente.
4. Apreendendo os ethe
Ao analisarmos as cenas que compõem o capítulo 1, de O Ateneu, e as cenas que
constituem o conto O Menino, o fizemos com o objetivo de alcançarmos os ethe
discursivos presentes nas obras. Voltaremos nossa atenção doravante para a apreensão
dos caracteres, dos corpos e dos tons das narrativas, partes que constituem o ethos,
visando comparar o ethos de Sérgio com o ethos de Menino e suas reações diante da
descoberta da realidade da vida adulta.
Segundo Maingueneau (apud Salgado e Motta, 2008, p. 16) “o ethos, por
natureza, é um comportamento que, como tal, articula verbal e não-verbal, provocando
nos destinatários efeitos multi-sensoriais” (grifo do autor), assim, entendemos por ethos
tudo o que está ligado ao enunciador, mas que não faz parte dele. São as características
que idealizamos a respeito do autor textual.
Ainda, segundo o autor, a concepção de ethos faz referência a uma infinidade de
ocorrências, fatos e conceitos que irão variar de acordo com o ponto de vista do
ouvinte/leitor de um determinado texto, desse modo, “o ethos visado não é
necessariamente o ethos produzido”, já que os ouvintes/leitores são diferentes entre si e
circulam em diferentes ambientes sociais, estando, portanto, suscetíveis aos discursos o
que implica em visões distintas em diferentes momentos.
Encontramos, a priori, em Sérgio uma criança que se encontra cercada pelos
afetos familiares, com pouca experiência na vida social, pois Freqüentara como
externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo [...] Lecionoume depois um professor em domicílio. Ao saber que irá para o internato, Sérgio fica
contente, mas sofre por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus
brinquedos (p. 7-8). No momento de conhecer o internato o garoto fica deslumbrado
com a tamanha grandiosidade imposta pelo lugar e por seu diretor, já que naquelas
ocasiões é que se podia tomar o pulso ao homem [...] Aristarco todo era um anúncio.
Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei... (p. 10). Conforme afirma
Maingueneau (2005, p. 97), “por meio da enunciação, revela-se a personalidade do
enunciador”. A sequência em destaque nos revela as características psicológicas de um
ser observador, curioso e amável, que oscila entre a tristeza de deixar o seu lar e o misto
de alegria e medo por ser internado no Colégio.
O seu corpo figura como frágil, embora não apresente doenças, pois além de ser
uma criança de onze anos, Sérgio está sempre acompanhado pelos pais revelando a
fragilidade típica das crianças tanto no que tange à idade quanto no que toca às
situações novas.
Essas características psicológicas e físicas resultam de um tom discursivo
presente e validado pelo discurso literário, pois o autor vê como válida a materialização
de suas memórias, expressando os sonhos, os medos, as alegrias e os traumas
vivenciados no internato, lugar no qual conheceu de perto as relações sociais e
institucionais. Seu primeiro contato com o diretor do Colégio evidencia a visceral
arrancada de Sérgio do seio maternal para a vida em comunidade – Pois, meu caro Sr.
Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes cachinhos...
(p. 18). Sua postura coloca-o como um sujeito heterogêneo, pois sua experiência
enquanto interno proporciona embasamento para a produção do romance; o que é
mostrado por meio da cenografia, que atesta e é atestada por meio do aspecto
confessional do texto.
Por sua vez, observamos em Menino uma criança que insiste em se colocar
como Homem, mas que é tido pela mãe como um nenenzinho. Apreciador dos carinhos
e da beleza da mãe gosta de exibi-la para os amigos, o que revela traços de um ser
exibicionista e perfeccionista, pois deseja casar-se com alguém tão belo quanto à mãe.
Por outro lado, sua fragilidade é revelada ao descobrir a traição da mãe que se encontra
com um desconhecido no cinema. O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado.
Por que a mãe fazia aquilo?! Por que a mãe fazia aquilo?! ...Ficou olhando sem
nenhum pensamento, sem nenhum gesto. (p. 75). Sua reação de espanto e
atordoamento nos revela a confusão causada pela descoberta.
Um outro aspecto psíquico muito evidente é a angústia sentida por Menino ao
notar a reação de sua mãe diante da presença do marido. O menino mordeu o lábio até
sentir o gosto de sangue. Como nas outras noites, igual. Igual. [...], e ao reencontrar o
seu pai na sala de casa O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai.
[...] Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço
(p. 78).
Ele apresenta um corpo saudável e forte, já que possui o hábito de brincar de
pescaria, de montar no corrimão da escada e fazê-lo de escorrego, e de dar puxões na
roupa da mãe para chamar sua atenção. Menino anda pisando forte, o queixo erguido,
olhos acesos [...] na rua costuma chutou(ar) uma caixa de fósforos. Pisou-a em
seguida (p. 71). Segundo Maingueneau (2005, p. 98), “a corporalidade corresponde a
uma compleição corporal, mas também a uma maneira de se vestir e de se movimentar
no espaço social”.
A assimilação do caráter e da corporalidade resulta do tom discursivo e
heterogêneo trazido pelo discurso literário, através dos contos e de suas semelhanças
com as estórias ouvidas e contadas sobre as tragédias familiares presentes na sociedade
e que é validado pela cenografia construída no ato mesmo de contar, realizado pelo
narrador quando transmite para nós a descoberta de Menino.
5. Considerações finais
Reafirmamos nossa postura inicial de que o texto configura-se como a
materialização dos discursos que circulam no âmbito social. Dessa forma, encontramos
na apreensão das cenas de Sérgio e de Menino muito mais que histórias ficcionais da
literatura. Deparamo-nos com descrição de situações sócio-históricas vivenciadas tanto
nas instituições escolares quanto no âmbito familiar.
A apreensão dos ethe mostrou-nos corpos infantis, sadios e em constante
movimento, mas que encerram personalidades fragilizadas diante da dissimulação e
brutalidade da vida adulta. O que reforça nossa posição, enquanto analista do discurso,
de que o texto literário, assim como os demais gêneros de circulação social, retrata os
acontecimentos sócio-culturais, colocando-se como um espelho da época na qual foram
produzidos servindo tanto como instrumento de análise do passado como de objeto de
estudo do presente.
Acreditamos que a leitura não é única, visto que o sujeito está em constante
transformação, e que a obra literária nos remete a vários caminhos, por isso não
queremos designar como únicas as construções de cenas e de ethe que realizamos.
Consideramos que a obra traz em si todo um universo e este por sua vez é
reformulado pelo seu leitor. Destarte, debruçarmos em busca das cenas e do ethe
discursivos que, juntos, compõem as narrativas de O Ateneu e de O Menino não
representou um empresa fácil, uma vez que a noção de ethos está intimamente ligada às
formações ideológicas e ao interdiscurso daquele que lê o texto. E, além disso, os textos
abordam temáticas bastante sensíveis em nossa sociedade. Todavia, acreditamos ter
realizado com sucesso nossa proposta.
6. Referências bibliográficas
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no Discurso: a construção do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
DANTAS, Aloísio de Medeiros. Sobressaltos do Discurso: algumas aproximações da
Análise do Discurso. Campina Grande: EDUFCG, 2007.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo:
Contexto, 2006.
. Análise de Textos de Comunicação. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio
Rocha. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005, pp. 85- 103.
ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas,
SP: Pontes, 2007.
. Discurso e Leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 1. ed. ABC Fortaleza, 1999.
SALGADO, Luciana e MOTTA, Ana Raquel (orgs.) Ethos Discursivo. São Paulo:
Contexto, 2008, pp. 11- 81.
TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o Pôr-do-Sol e Outros Contos. 19. ed. São
Paulo: Editora Ática, 2000.
COMPARAÇÃO DOS SEGMENTOS CONSONANTAIS DA LÍNGUA
LAKONDÊ COM AS CONSOANTES DO LATUNDÊ
Ana Gabriela M. Braga18
RESUMO: Ao longo de toda a história do Brasil, os povos indígenas sofreram um violento processo de
aculturação e exclusão. Apesar de reconhecermos as contribuições destes povos para a formação de nossa
identidade nacional, pouco foi feito no sentido de preservar a cultura indígena. O estudo das línguas
indígenas é uma forma de contribuir para a preservação de um dos mais importantes elementos da cultura
de um povo: a língua. Este trabalho dá início ao estudo da fonologia da língua Lakondê, da família
linguística Nambikwára, que se encontra numa situação extrema, pois há apenas uma falante. A presente
pesquisa trata da comparação preliminar das realizações fonéticas consonantais da língua Lakondê com as
realizações consonantais do Latundê, que faz parte da mesma família linguística (Nambikwára), buscando
explicitar as semelhanças e diferenças entre as duas línguas e, com isso, contribuir para o trabalho de
registro e preservação das línguas Nambikwára do Norte. Para a realização deste estudo, procedemos à
descrição dos segmentos consonantais do Lakondê e utilizamos os procedimentos da análise contrastiva, a
fim de comparar os dados entre as duas línguas. A partir de um corpus selecionado de palavras na língua
Lakondê, fizemos o levantamento dos fones que se realizam na língua, bem como a análise de suas
condições de ocorrência, em seguida, comparamos com as realizações fonéticas da língua Latundê, a
partir da pesquisa realizada por Telles (2002) sobre a fonologia dessa língua.
PALAVRAS-CHAVE: Fonética; Fonologia; línguas indígenas; Lakondê; Latundê
ABSTRACT: Throughout the whole history of Brazil, the indigenous people suffered a violent process
of acculturation and exclusion. In spite of recognizing these people’s contributions to the formation of our
national identity, little has been being done in order to maintain the indigenous culture. The study of the
indigenous languages is a way to contribute to the preservation of one of the most important elements of a
people’s culture: their language. The present work aims to compare the consonant phonetic
accomplishments of the Lakondê language to the consonant accomplishments of the Latundê language,
which is part of the same linguistic trunk (Nambikwara). In doing this, we try to explicit the similarities
and differences between the two languages and so contribute to the work of register and preservation of
the Nambikwára languages of the North. Based on a selected corpus of words in Lakondê, we took up all
the phones that happen in the language and analyzed its occurrence conditions. After it, we compared
them to the phonetic realizations of the Latundê language based on the research by Telles (2002) about
the phonology of this language.
KEYWORDS: Phonetics; Phonology; indigenous languages; Lakondê; Latundê.
1. Introdução
Entre os grupos indígenas brasileiros, pode-se encontrar uma enorme
diversidade cultural, religiosa, social e linguística. Embora diferentes, estas nações têm
em comum o desejo de terem as suas manifestações preservadas, de serem respeitadas
enquanto grupo social autônomo. Daí a importância de se estudar as línguas indígenas
do Brasil como uma forma de manter viva as tradições cultural e linguística de grupos
que, ao longo da história, sofreram uma ação colonizadora extremamente violenta, que
até hoje reflete na sua relação com a sociedade “civilizada”.
18
Aluna do Mestrado em Letras/Linguística do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE.
Atualmente são faladas no país cerca de 180 línguas indígenas, localizando-se a
maior parte delas na região amazônica. Grande parte dessas línguas corre o risco de ser
extinta sem que haja sobre elas nenhuma forma de registro, já que se trata de línguas
ágrafas. Essas línguas, além de trazerem consigo toda a tradição e a cultura de um povo,
são importantes fontes para o enriquecimento do conhecimento linguístico, daí
resultando a sua importância no âmbito da ciência, como afirma Seki (1999, p. 245):
As línguas indígenas despertam interesse especial não por serem
‘exóticas’, mas por serem diversificadas e estarem entre as menos
conhecidas da ciência, do que decorre a expectativa de que possam
apresentar propriedades ainda não observadas em línguas de outras
regiões. Isso vem se confirmando através de estudos já feitos sobre
essas línguas.
A língua Lakondê faz parte da família Nambikwára e atualmente não é mais
utilizada socialmente pela comunidade. Há apenas uma falante, Tereza Lakondê, e os
demais membros da tribo são apenas falantes passivos19. O grupo sofreu um
desmembramento causado, em grande parte, pelo deslocamento forçado da tribo de suas
terras e dos casamentos interétnicos, o que resultou na não perpetuação da língua entre
os seus membros mais jovens. Entendemos, portanto, que o registro linguístico é o
último recurso para um mais largo conhecimento e preservação da memória da língua e
da cultura Lakondê.
Neste trabalho, traçaremos uma comparação entre as realizações consonantais
observadas nas línguas Lakondê e Latundê, também da família Nambikwára, com o
objetivo de identificar as semelhanças e diferenças entre essas línguas e, dessa forma,
lançar as bases para a realização da análise fonológica do Lakondê.
1.1 Metodologia e base teórica
Para a realização deste estudo, passamos por duas etapas principais: a análise
dos dados do Lakondê e a comparação com a fonologia do Latundê apresentada na Tese
de Doutorado de Telles (2002). Para a primeira parte, utilizamos como corpus os dados
coletados in loco por Telles, no ano de 2001, com a informante Tereza Lakondê, última
conhecedora da língua.
Devido ao tempo restrito para a elaboração deste estudo, não trabalhamos aqui
com todo o material coletado. Foi ouvido e transcrito o conteúdo de seis mídias digitais,
perfazendo um total de sete horas de audição.
A amostragem utilizada é constituída basicamente de palavras da língua
Lakondê e é insuficiente para uma descrição mais ampla ou mesmo para se propor uma
fonologia para a língua. Contudo, é satisfatória para um levantamento das realizações
fonéticas e para a análise de suas ocorrências na língua.
Tomando como base as transcrições fonéticas, o passo seguinte foi o da análise
dos dados: identificação dos fones, descrição, distribuição dos segmentos consonantais
na língua e suas condições de ocorrência.
19
Por falante passivo, entende-se o indivíduo que detém o conhecimento da língua, mas que não a fala.
Para a comparação com o Latundê, utilizamos a Tese de Doutorado de Telles,
publicada em 2002. Nesse trabalho, a autora faz um estudo da fonologia da língua
Latundê e da gramática do Lakondê, explicitando a proximidade entre as duas línguas e
suas particularidades. Com base nas realizações explicitadas por Telles para a língua
Latundê, buscamos identificar semelhanças e diferenças entre os fones que se realizam
nas duas línguas.
Para dar início à descrição dos fones, a nossa análise tomou como base o modelo
de análise fonológico estruturalista, presente em autores como Lass (1995) e Cagliari
(2002). Este último, sobre a abordagem estruturalista, afirma que ela
[...] parte sempre do particular para o geral, do fato para o sistema, da
realidade fonética para a interpretação fonológica [...] Ou seja, toda
reflexão fonológica, seja ela de que tipo for, baseia-se sempre em
dados e fatos obtidos através de uma cuidadosa análise fonética.
(CAGLIARI, 2002, p. 20)
Partindo desse princípio, buscamos fazer uma análise fonética que sirva como
base para uma posterior interpretação fonológica da língua Lakondê.
2. O Grupo Lakondê: história e situação linguística
O termo Nambikwára é de origem Tupi e significa “buraco na orelha” (“nambi”
= orelha; “kuara” = buraco) e passou a designar os atuais índios Nambikwára a partir da
entrada da Comissão para Expansão das Linhas Telegráficas, chefiada por Rondon.
Os índios Nambikwára habitam o Sudoeste do Estado do Mato Grosso e a área
adjacente do Estado de Rondônia e, atualmente, há cerca de 800 Nambikwára vivendo
em seis Terras Indígenas (TI), divididas e regularizadas pelo Governo Brasileiro e pela
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). De acordo com Telles, estima-se que, no século
XX, existiam milhares de Nambikwára, divididos em vários subgrupos linguísticos
distintos, habitando uma área de aproximadamente 50.000km².
Desde os primeiros contatos com os ‘brancos’, cujos registros datam da segunda
metade do século XVIII, as terras tradicionais Nambikwára foram continuamente
invadidas, o que resultou na extinção de alguns grupos linguísticos e dialetais. Muitos
grupos indígenas foram dizimados e os que restaram foram forçados a aprender o
português para comunicar-se com o grupo dominante, bem como a conviver com
remanescentes de grupos rivais, no processo de re-aldeamento.
Segundo Telles (2002), dos grupos do Norte, restaram apenas remanescentes de
cinco etnias: Tawandê, Lakondê, Latundê, Mamaindê e Negarotê. Os três últimos ainda
vivem em áreas próximas aos seus territórios tradicionais, o que pode ser atribuído ao
fato desses grupos não habitarem a parte norte do território Nambikwára, que, desde a
entrada das estações de telégrafo, no início do século XX, foi mais atingida, e os grupos
que ali viviam foram sendo desarticulados. Já os remanescentes Tawandê e Lakondê,
foram transferidos para a TI Pyrineus de Sousa (conhecida também como “Aroeira”),
que fica a leste da cidade de Vilhena, no Sul do Estado de Rondônia – uma área
tradicional dos Nambikwára do Sul – e tiveram que coabitar com os remanescentes
Sabanê.
Quanto à classificação linguística, a família Nambikwára constitui-se de mais de
quinze línguas e dialetos, que podem ser classificadas em três grupos: Nambikwára do
Sul, Nambikwára do Norte e Sabanê20 e, apesar das proximidades linguísticas, não são
inteligíveis entre si.
O grupo Nambikwára do Norte é constituído por cinco línguas: Latundê,
Lakondê, Tawandê, Mamaindê e Negarotê. De acordo com Telles (p.27), as línguas
desse grupo são mutuamente inteligíveis, mas apesar disso
Cada grupo de fala dos cinco dialetos do Norte tem a segurança de sua
independência étnica com relação aos demais e embora reconhecendo
a proximidade entre seus dialetos, assevera sua diferença de fala com
relação à fala dos outros.
As línguas Nambikwára do Norte estão em vias de extinção, uma vez que o
contato com a língua portuguesa dos dominantes forçou os índios a aprenderem-na e
abandonarem o uso social das suas línguas.
Dentre essas línguas, talvez o caso mais extremo, do ponto de vista do risco de
extinção, seja o do Lakondê. A língua não é mais usada com fins sociais e há apenas
uma falante, e os estudos realizados sobre essa língua são escassos, sendo o principal a
Tese de Doutorado apresentada por Telles (2002).
Não há muitos registros etnográficos sobre os índios Lakondê, fato que talvez
possa ser atribuído ao desmembramento prematuro da tribo. O nome Lakondê,
conforme Telles (2002, p. 11) foi registrado pela primeira vez na literatura por Rondon
e Faria (1948): “Segundo os autores, esse grupo estaria localizado no ‘Alto curso do rio
Roosevelt, confluente do rio Aripuanã’”. Tereza Lakondê, última conhecedora da língua
Lakondê e informante de Telles, afirma que o seu povo habitava a margem inferior do
rio Festa do Bandeira21. Nesse local, o grupo era constantemente atacado pelos índios
Tawandê.
É a própria Tereza Lakondê que relata a história do seu povo, de sua resistência
e do desmembramento da sua tribo22. De acordo com a índia, por volta de 1950, ainda
moravam na aldeia nove índios. Nessa época eram constantes os ataques Tawandê aos
Lakondê. No último ataque, foram apenas cinco os sobreviventes. Dentre os que
20
Essa classificação não é unânime entre os estudiosos das línguas Nambikwára. Podemos encontrar
bibliografia que trata sobre o assunto em diferentes autores, com classificações distintas. Apresentamos
aqui a classificação adotada nos trabalhos de Telles (2001) e Araújo (2004), onde podem ser encontrados
também uma discussão mais ampla e os argumentos para a adoção dessa classificação.
21
De acordo com Telles (2002), a localização do povo Lakondê diverge nas diversas obras que falam do
grupo. De acordo com Lévi-Strauss (1948), o grupo se localizava à margem direita do rio Roosevelt –
localização que coincide com a informação dada por Tereza Lakondê; de acordo com Price (1972),
informado por Lourenço Lakondê, o grupo se localizava no curso do rio Tenente Marques, a leste do rio
Roosevelt; e segundo Rondon e Faria (1948, p. 20), o grupo estaria localizado no “Alto-curso do rio
Roosevelt, confluente do rio Aripuanã”.
22
O relato de Tereza Lakondê sobre a história da sua tribo está registrado em Mini Disc (MD) e faz parte
do material coletado por Telles em pesquisa de campo realizada no ano de 2001, tendo sido gentilmente
cedido para a realização deste estudo.
morreram, estava a mãe de Tereza, que morreu flechada. A índia, que já havia perdido
seu pai antes de nascer, em outro ataque dos Tawandê, fugiu junto com os sobreviventes
para a Estação José Bonifácio, onde já viviam vários índios Lakondê – Tereza não sabe
precisar quantos.
Os Lakondê, então, tiveram que coabitar com índios de outras etnias e com neobrasileiros23. As dificuldades para a sobrevivência não eram poucas e entre os problemas
que sofriam estavam as epidemias – Tereza conta que houve, logo nos seus primeiros
anos na Estação, uma epidemia de sarampo que reduziu significativamente a população
indígena do local – e os conflitos com tribos rivais. Agora não eram mais os Tawandê
que atacavam, mas os Cinta-Larga. De acordo com Tereza24, os Cinta-Largas “vinham
lá pra matar. Toda semana perseguiam nós.” (sic).
Atualmente há em torno de sete descendentes diretos do Lakondê (TELLES,
2002). O desmembramento do grupo, assim como o seu deslocamento forçado e a
desagregação em decorrência dos conflitos com outros grupos podem ser considerados
fatores determinantes para a não perpetuação da língua Lakondê entre os seus
remanescentes. Nas TI, os Lakondê, por serem minoria, eram subjugados aos Sabanê e
Tawandê, grupos majoritários. Por outro lado, mesmo esses grupos sofriam também o
domínio dos da sociedade não-índia. Tratados como inferiores, os índios acabaram
perdendo parte de sua tradição oral, tendo que usar a língua portuguesa (língua de maior
prestígio social) para os fins comunicativos com a sociedade não-índia.
De acordo com Araújo (2007, p. 04), Wurm (1998) propõe uma “tipologia de
ameaça” (“typology of threat”), que distingue os grupos linguísticos ameaçados de
extinção em cinco níveis:
1. potentially endangered languages are socially and economically
disadvantaged, under heavy pressure from a larger language, and
beginning to lose child speakers; 2. endangered languages have few
or no children learning the language, and the youngest good speakers
are young adults; 3. seriously endangered languages have youngest
good speakers of age 50 or older; 4. moribund languages have only a
handful of good speakers left, most of whom are very old; 5. extinct
languages have no speakers left.
A língua Lakondê, portanto, de acordo com essa escala, pode ser considerada
hoje uma língua que agoniza (“moribund language”): há apenas uma conhecedora
efetiva da língua e poucos registros realizados. Por não ser mais usada socialmente, a
língua é considerada em vias de extinção, assim como o próprio povo Lakondê.
3. Lakondê/ Latundê: comparação entre as realizações consonantais
Segundo Telles (2002), o Latundê e o Lakondê têm fonologias muito
semelhantes. Visando a desenvolver um estudo mais amplo e completo sobre a
23
O termo neo-brasileiro foi bastante utilizado na literatura, nos relatos de expedição, para denominar os
brasileiros de descendência não-indígena e falantes do português.
24
Citação literal transcrita do relato de Tereza Lakondê, registrado por Telles, em 2001. (MD 13/2001)
fonologia do Lakondê, buscamos neste estudo explicitar as diferenças fonéticas que
ocorrem nas duas línguas Nambikwára25.
Na língua Lakondê, foi observada a realização de dezesseis fones consonantais,
conforme o quadro apresentado na tabela 1.
Tabela 1
Bilabiais
Lábiodental
Oclusiva
Nasais
Lateral
Flap
Fricativas
Africada
b
m
Glide
w
SONS CONSONANTAIS
Alveolar
Palatoalveolar
t
d
n
l
R
v
s
S
tS
Palatal
Velar
k
Glotal
g
?
h
j
*Os símbolos que aparecem em pares, os da direita são consoantes sonoras.
De acordo com o estudo realizado por Telles, os fonemas consonantais da língua
Latundê estão dispostos como segue na tabela 2.
Tabela 2
Plosivas
Nasais
Fricativas
FONEMAS CONSONANTAIS
LABIAIS
CORONAIS
+ anterior
- anterior
+ anterior
- anterior
p [p, b, º]
t [t, d, R, ë]
n [n, ?n]
s [s, S, tS,
?
S]
l [l, ?l]
m [m]
Lateral
Glide
w [w, V]
?
DORSAL
- anterior
k [k, ?k,
©, g]
GLOTAIS
- anterior
? [?]
h [h]
s,
j [j, Z]
Tendo como base a análise das correspondências entres os fones em itens
lexicais cognatos nas duas línguas, pudemos observar que muitas ocorrências divergem
ocorrência entre si. Assim, considerando o inventário de fonemas do Latundê com suas
realizações alofônicas, observamos que nem todos os fonemas registrados nessa língua
correspondem, no Lakondê, às mesmas realizações.
O fonema /p/, um oclusiva bilabial surda, na língua Latundê, pode ser [p],
oclusiva bilabial surda, [b], oclusiva bilabial sonora, ou [º], oclusiva bilabial sonora
implosiva. Já na língua Lakondê, há realização apenas de um de seus alofones, a
oclusiva bilabial sonora [b]. A distribuição deste fone no Lakondê é restrita: tal como
no Latundê, [b] ocorre em posição onset diante das vogais central baixa [a] e central
baixa nasal [a)] em início ou meio de palavra, neste caso, em ambiente intervocálico.
O fone [b] tem baixa ocorrência na língua, se comparado às demais consoante.
(001)
[kaÈbajÇRe]
"tatu-de-quinze-
quilos”
25
É importante que fique claro que não se trata aqui de apresentar uma nova fonologia para a língua Lakondê, visto
que os dados analisados neste estudo ainda são insuficientes para tal.
(002)
Latundê26:
“são dois”
“tatu, espécie de”
“são dois”
“chupito, espécie de
pássaro”
[Çbaa)daÈRa)]
[ko)ùÈbayÇte]
[ǺaùÈna)n]~[ÇbaùÈna)n]
[Èpiùte]
/m/ é uma nasal bilabial que no Latundê realiza-se [m], ocorrendo da mesma
forma no Lakondê. Em ambas as línguas, [m] ocorre em início de sílaba, precedendo as
vogais [i, i0, i^, i^0, a, a), a0, u], e não forma sílaba com as vogais
médias frontais [e, e0]. Diferente do Latundê, entretanto, [m] ocorre diante das
vogais médias posteriores [o, o)] e não ocorre diante de das vogais altas posteriores
[u0, u), u0]).
(003)
(004)
Latundê:
[ÇmiùhiÈRa))na]
[Çmo)ù?sejÈda)na]
[ÇmiùÈRa)nÃ]
“está chovendo”
“falar bonito”
“está chovendo”
“está inchado”
[haÈmu)0)ùÇda)nÃ]
O glide lábio-velar /w/ ocupa, tanto no Latundê quanto no Lakondê, posição
de onset e coda e é um segmento bastante frequente nas duas línguas. Em posição de
onset, ocorre diante de [i, e, e0, a, a), a0, o] no Lakondê, e
[i, e, e0, a, a0, o] no Latundê. Diferente do que acontece no Lakondê, em
início de sílaba [w] pode variar com [V], fricativa lábio-dental, no Latundê.
No Latundê, de acordo com Telles (p.42),
[...] quando o glide /w/ ocupa a posição de onset de sílaba pretônica
aberta, seguido pela vogal /a/, central baixa, pode ocorrer a fusão
entre o /w/ e a vogal /a/, resultando nas realizações [] , média
aberta posterior; [o], média fechada posterior e [u], alta posterior.
Estas alofonias variam de acordo com a qualidade da vogal tônica da
sílaba seguinte, com a qual sua vogal átona nuclear se harmoniza [...]
Esse tipo de realização do glide [w], no entanto, não ocorre no Lakondê.
(005)
(006)
Latundê:
[weju)Èga?daÇRa)]
[ÈwajkiniÇ)de]
[VoÈdaùHÇde]~[woÈdaùHÇde]
“madeira da bacaba”
“amendoim”
“pomba”
[ÈwajkiniùÇ)de]
“amendoim”
Em
posição
de
coda,
[w]
ocorre
precedido
das
vogais
[i, a, a), a0, o, o0] no Lakondê, diferenciando-se do Latundê apenas pela
ocorrência precedido de [a)]. Tanto no Lakondê quanto no Latundê há a ocorrência
do processo de fusão quando [w] é precedido de vogal baixa, resultando na realização
de [], vogal média posterior aberta, ou [o)] vogal média posterior fechada nasal.
Essa última só ocorre no Lakondê, quando a vogal baixa [a] é precedida da consoante
coronal nasal [n] em sílaba átona posicionada em final de palavra.
26
Todos os exemplos citados da língua Latundê foram retirados de Telles (2002).
A realização do glide [w] em ambas as línguas é bastante frequente precedido
da vogal baixa [a] e tem ocorrência restrita seguido da vogal alta anterior [i] e da
vogal média posterior [o].
Ainda de acordo com Telles (p. 44), na língua Latundê, foi observado que em
fala rápida e em posição onset o glide /w/ pode ser realizado como [p] ou [m], em
decorrência da fortificação. Essa variação, entretanto, não era reconhecida pelos
informantes quando produzida pela pesquisadora, possivelmente, por se tratar de um
fato não-consciente por parte dos falantes.
(007)
(008)
(009)
Latundê:
[jEÈlawgi)Çni)]
[kwaÈled?neÇRe]
[ÈwahitÇna)w]~[ÈwahitÇno)]
[ÈawÇde]~[ÈùÇde]
[ÈgiwÇlaùdaÇRe]
“tucumã”
“abanar”
“mão”
“gavião”
“cascavel,
espécie de cobra”
No quadro fonológico consonantal do Latundê, podemos encontrar seis
consoantes coronais, cujas realizações são, no geral, muito próximas às observadas na
língua Lakondê, conforme podemos observar.
/t/ é uma consoante oclusiva alveolar surda que se realiza no Latundê como
[t], oclusiva alveolar surda; [d], oclusiva alveolar sonora, em sílaba acentuada;
[R], flap alveolar, quando em posição medial de palavra e [ë], oclusiva alveolar
sonora implosiva, quando em posição inicial de palavra. Com exceção à realização
implosiva [ë], podemos observar no Lakondê as outras três realizações: [t], [d] e
[R].
Diferentemente do Latundê, a realização de [d] no Lakondê nem sempre ocorre
quando forma sílaba tônica, podendo realizar-se também em sílaba átona,
principalmente em sílaba pós-tônica, acompanhado da vogal média anterior fechada
[e]. A sua ocorrência é bastante larga em posição inicial e medial de palavra.
(010)
(011)
Latundê:
espécie de cobra”
[ÈdeheÇRe]
[Èwejdigi)Çni)ùde]
[Çde0heÇRaùÈRe]
[ÇdoùÈRa)n] ~ [ÇëoùÈRa)n]
“cobra”
“coco da bacaba”
“sucuri,
“ele morreu”
O fone oclusivo alveolar surdo [t] ocorre com menor frequência, se
comparado ao seu correspondente sonoro, na língua Lakondê. Ocorre em geral
formando sílaba átona, assim como acontece na língua Latundê.
De acordo com Telles, na língua Latundê, o fonema /t/ realiza-se [t] em
ambiente intervocálico ou precedido da oclusiva glotal ou da oclusiva alveolar surda.
No Lakondê, observamos semelhante condição de realização, acrescentando apenas que
este som também se realiza, ainda que com menor frequência, quando precedido do
glide lábio-velar [w].
(012)
[Çsigi)nu)Èab?tu)]
(013)
[taÈlaùÇte]
[to?Èda)ùÇnde]
[ÈpiùÇte]
“barro
vermelho”
Latundê:
“tipóia”
“nambu”
“chupito, espécie de
pássaro”
O flap alveolar [R] é mais um alofone de /t/ no Latundê. Ele se realiza em
ambiente intervocálico ou precedido pela fricativa glotal surda [h], condicionado à
posição do acento. No Lakondê, [R] ocorre com bastante frequência, podendo se
realizar em ambiente intervocálico ou precedido das consoantes [w, j, ?, h] e de
realizações com soltura retardada das consoantes [t, d]. Quanto ao acento, [R]
ocorre na maior parte dos casos formando sílaba tônica ou pós-tônica.
(014)
(015)
(016)
Latundê:
[uÈRuhÇRe]
“urucum”
[ÈloùhoÇRe]
“urubu”
[kejÈaùwÇRe]
“bacural”
h
h
h
[Èloù ÇRe] ~ [Èloù Çde] ~ [Èloù Çte] “urubu”
[kÈdùÇRe]
“patuá”
/n/ é uma nasal alveolar, cujas alofonias no Latundê dependem do contexto
adjacente à sua posição na palavra, da estrutura da sílaba e do acento. /n/ pode, então,
se realizar como [n], quando ocupa posição de onset silábico, em início de enunciado
ou meio de palavra; ainda em posição de onset, em início de palavra, pode sofrer uma
pré-glotalização, realizando-se como [?n], processo que ocorre preferencialmente
quando a oclusiva alveolar nasal forma sílaba com a vogal baixa [a]. Ainda que em
poucos casos, é possível encontrar no Latundê uma pré-oralização ou oralização da
consoante nasal ocupando posição de coda de sílaba, quando a vogal nuclear é oral.
Esse fenômeno, que é restrito no Latundê, acontece com maior frequência no Lakondê.
A realização da consoante nasal [n] é bastante larga na língua Lakondê. [n]
ocorre com bastante frequência em ambiente intervocálico, seguido preferencialmente
da vogal alta anterior nasal [i)] ou do ditongo [aj)]. Na maior parte dos casos, a
presença do [n] como onset silábico fortalece a sílaba e a vogal sofre um alongamento
– esse fenômeno acontece preferencialmente quando [n] está diante das vogais nasais
[i, o))] ou dos ditongos [aj), aw].
Ainda em posição onset silábica, é bastante frequente a realização de [n]
formando sílaba pós-tônica com a vogal oral baixa [a], quando a sílaba tônica
precedente tem como núcleo a vogal baixa nasal [a)]. Nesse caso, a vogal que forma
sílaba com [n] é sobre um abrandamento, podendo se realizar [Ã].
No Lakondê, diferentemente do Latundê, não foram observados muitos casos de
[n] realizando-se na posição de coda silábica.
(017)
(018)
(019)
Latundê:
[ÈniùÇRe]
[a)Çnuha)Èn]
[Ènai)Çde]
[ÈniùÇdu]
“lenha”
“braço de bicho”
“peixe pacu”
“lenha”
[Èa0?Çnde] ~ [Èa0ùnÇde]
espécie de
[È?na)0Çna)nÃ]
“tatu-galinha,
tatu”
“está
chorando”
/s/ é uma fricativa alveolar surda. Na língua Latundê, ela se realiza como
“[s], fricativa alveolar surda, [S], fricativa palatal surda, [tS], africada alvéolopalatal surda, e [?s], fricativa alveolar surda pré-glotalizada. Com menor freqüência, a
realização fricativa palatal pré-glotalizada [?S] também ocorre”, como afirma Telles
(2002). Dessas realizações, apenas as pré-glotalizadas não foram observadas no
Lakondê.
Para o Latundê, em início de palavra, em sílaba acentuada, há tendência de
realização de [tS], para os falantes mais velhos, e [S] ou [s], para os falantes mais
novos. Nesse mesmo contexto, observamos que, no Lakondê, há preferência para a
realização de [S]. Mesmo assim, são poucas as ocorrências desse som em sílaba tônica
e em início de palavra, ocorrendo apenas diante da vogal alta anterior [i].
[s] ocorre no Lakondê preferencialmente formando sílaba átona, em início de
palavra ou em posição medial, em ambiente intervocálico. No Latundê, no mesmo
contexto, também pode ocorrer a fortificação do /s/, que passa a se realizar como
[tS] ou [?S]. Telles (p.65) afirma ainda que, fora da posição do acento essa
fortificação é menos frequente. Dessa forma, é possível dizer que há uma semelhança
entre a realização desses fones em ambas as línguas.
(020)
(021)
(022)
Latundê:
[waÈsaÇhe]
“besourinho”
[nasaÇSi0tÈdaùÇRe]
“camarão”
[Èmo)ù?sejÇda)na]
“falar bonito”
[waÈsaùhÇRe]
“besouro”
[Ç?siùÈta)n] ~ [ÇsiùÈta)n]
“trovejou”
[Èsu)ùÇnde] ~ [ÈSu)ùÇde] “sol”
[S] ocorre no Lakondê em início ou meio de palavra, sempre na posição onset
de sílaba, em ambiente intervocálico ou precedido do glide palatal [j] ou da oclusiva
glotal [?]. No Latundê, Telles (p.65) afirma que precedido da vogal coronal /i/, o
fonema /s/ sempre se realiza [S]. Quando observamos as realizações de [s] e [S]
na língua Lakondê, verificamos que esse pressuposto também é válido para esta. Não
foram observados casos de ocorrência de [s] precedido da vogal alta anterior; [S], ao
contrário, quando ocorre em ambiente intervocálico, é muito comum a precedência
desta vogal ou da semivogal coronal [j].
Latundê:
(023) [ÈSiÇRi]
(024) [Çaj)ÈSiRigi]
(025) [SaÈ)mai)giÇ)ni)]
[iÈSa)0ùdaÇ)na0]
[?SaÈma?dÃÇRana]
[iÈSu0Çda)nÃ]
“paneiro”
“peixe poraquê (enguia)”
“formiga barrigudinha”
“é folha”
“é tanajura”
“ele está com frio”
A realização de [tS], que no Latundê decorre da fortificação do fonema /s/ e
é restrita à fala dos mais velhos, no Lakondê tem pouquíssima ocorrência, e apenas em
posição medial de palavra, quando precedido por vogal coronal.
Quanto à frequência, a ocorrência da alveolar fricativa, da palato-alveolar
fricativa e da africada é relativamente restrita, assim como a distribuição dessas
consoantes.
[ÇtSoùÈRa)nÃ] ~ [ÇSoùÈRa)nÃ]
“está sujo”
[tSaÈmaj)Çde]
“tanajura”
Latundê:
/l/ é uma lateral alveolar sonora e se realiza como [l] na língua Latundê, em
início e meio de palavra, diante das vogais [i, e, a, a0, o, o0, u]. Assim
como no Lakondê, a ocorrência de [l] diante de [u] é escassa. No Latundê, em início
de palavra, foi observado que /l/ pode ser fortificado, passando a realizar-se como
uma lateral alveolar sonora pré-glotalizada [?l]. Na língua Lakondê, entretanto, este
fenômeno não foi observado.
Latundê:
(026) [koÇlowitÈnawÇRe]
(027) [kaÇlawiÈliùRe]
(028) [Çli)?Èduh]
[daÈleùÇde]
[Èla0ùÇRe] ~ [È?la0ùÇRe]
“barata pequena”
“percevejo”
“rama da mandioca”
“embira”
“jacucáca”
Ainda na série das coronais, observamos nas duas línguas a ocorrência frequente
do glide palatal [j]. Em ambas as línguas, também o glide pode ocupar posição de
onset
ou
coda
silábica.
Como
onset,
pode
ocorrer
diante
de
[e, e0, a, a), a0, o, u, u), u0], no Latundê, e de [e, a, a0, u],
no Lakondê.
No Latundê, de acordo com Telles (p.69) “em posição inicial e seguido pela
vogal média frontal /e, e0/, em sílaba acentuada, ou seguido pela vogal central
baixa /a/, em sílaba átona o glide palatal pode sofrer processo de fortificação,
realizando-se [Z]”. Esse alofone de /j/, no entanto, não ocorre no Lakondê.
(029)
(030)
(031)
Latundê:
[Èja0ùÇge]
“queixada”
[Çje)j? iÈ)))da)na]
“está sujo”
[jeÇlaÈteiÇ)de]
“papo”
n
[Èje0ùÇ da)n]
“está sujo”
[ÈjuùÇte]
“boca”
[je0Èna)ùnuÇte] ~ [Ze0Èna)ùnuÇte]
“porco
espinho”
Com maior frequência, o glide palatal ocorre no Lakondê em posição de coda
silábica. Em ambas as línguas, ele ocorre precedido das vogais [e, e0, a, a0]; a
diferença é que em Lakondê a distribuição é mais ampla: o glide palatal pode seguir
também as vogais [E, o, u], mas a ocorrência, nesses casos, é muito escassa.
(032)
[ÈnajÇRe]
“marimbondo”
(033)
(034)
Latundê:
espécie de”
[kejÈa0ùÇde]
[Èwa0jhe0ÇRe]
[Èna0jÇde]
[Èwajki)ni)Çdu]
“jacaré”
“cerejeira”
“marimbondo,
“amendoim”
Na série das dorsais, o Latundê dispõe de um fonema. /k/ é uma oclusiva
alveolar surda, que no Latundê pode se realizar [k], oclusiva velar surda; [?k],
oclusiva velar surda pré-glotalizada; [©], oclusiva velar sonora implosiva e [g],
oclusiva velar sonora. Destes, apenas os fones [k] e [g] foram observados no
Lakondê, ambos ocorrendo com ampla distribuição e freqüência.
No Latundê, de acordo com Telles, em posição inicial de palavra, o alofone
preferencial é [k]. Ao observarmos as ocorrências de [k] e [g] no Lakondê,
observamos que são bastante escassas as ocorrências da oclusiva velar sonora em início
de palavras; o mesmo não ocorre com o fone [k]. Em ambiente intervocálico – posição
medial de palavra – tanto [g] quanto [k] podem se realizar. No Latundê, há maior
ocorrência de [k]; no Lakondê, ao contrário, a ocorrência de [g] é mais frequente.
Ainda em posição medial da palavra, Telles acrescenta que, em ambiente de consoante
nasal lexical, há preferência da oclusiva velar sonora, o que também acontece com no
Lakondê.
(035)
(036)
(037)
Latundê:
espécie de
[Èku)ùÇde]
[kaÇla?kaÈlaùRe]
[eÈkaùÇRe]
[Èki0ùÇde]
[?kaÇla?kaÈlaùÇRe]
(038)
(039)
Latundê:
coçando”
“algodão”
“galinha”
“fogo, fogueira”
“macaco
noturno,
macaco”
“galinha”
[ÇhagaÈdagi)Çni)]
“cará grande”
[Çmajgi)Èni)]
“caju”
[Çgi0ùÈna)na] ~ [Ç©i0ùÈna)na]
“está
[Èju)ùgini)Çde]
“pedra
de
gelo, granizo”
Diferente do que ocorre no Latundê, em que [k] e [g] não se realizam em
coda silábica, na língua Lakondê esses sons podem ocorrer nessa posição, realizando-se
com soltura retardada. Nesse caso, [k] ocorre em ambiente interconsonantal, precedido
do glide [j] e seguido da consoante nasal [n], e [g] pode ocorrer precedido de
[i, u] e seguido de [g, n, ?].
(040)
(041)
[iwlug?Ètaùde]
[jajkÈna)ùde]
“pau de gameleira”
“lagarta de coqueiro”
Na série das glotais, o Latundê dispõe de dois fonemas, cujas ocorrências
também podem ser observadas na língua Lakondê.
/?/ é uma consoante oclusiva glotal que se realiza [?] e se restringe à posição de
coda silábica em ambas as línguas. Telles explica que em fala lenta a realização da
oclusiva glotal é quase imperceptível de oitiva, sendo sua realização mais clara aos
ouvidos quando em fala rápida. No Lakondê, [?] se realiza na maior parte dos casos em
ambiente com consoante adjacente, ocorrendo diante de [d, n, g].
(042)
(043)
(044)
“jaó”
“dor nos braços”
“madeira da bacaba”
“caititu”
“pássaro,
[taÇda)?Èhu)Çde]
[nitÈnu?ÇniùReÇRa)]
[weju)Èga?daÇRa)]
[ke0Èja?Çnde]
[woÈlo?Çte] ~ [woÈloùÇte]
Latundê:
espécie de”
/h/ é uma fricativa glotal surda, que se realiza [h]. Tanto no Latundê quanto
no Lakondê, [h] pode ocorrer em posição de onset ou coda silábica. [h] realiza-se
preferencialmente em ambiente intervocálico, em meio de palavra, formando sílaba
átona.
Em posição de coda silábica, em ambas as línguas, [h] provoca o alongamento
da vogal precedente, resultando numa vogal longa seguida de uma leve aspiração.
(045)
(046)
[koÈlo0ùhoÇRe]
[kaÇkaÈReùheÇRe]
(047)
(048)
[ejÈhi)Çde]
[ÈnaùhÇRe]
[ÈhuùÇte] ~ [ÈhuùhÇde]
[Çde0heÇRaùÈRe]
de
Latundê:
“capim dÈágua”
“capim-navalha, tipo
capim”
“homem”
“aranha, espécie de”
“arco”
“sucuri,
espécie de cobra”
De acordo com o nosso estudo, podemos sintetizar as realizações fonéticas das
línguas Lakondê e Latundê conforme a tabela 3.
Tabela 3
SONS CONSONANTAIS
Bilabiais
Oclusiva
Implosiva
Nasal
Lateral
Flap
Fricativa
Africada
Glide
Lak
b
m
p
Lat
b
º
m
Lábiodental
Lak Lat
w
Lak
t d
n
l
R
v
w
Alveolar
s
Lat
t d
ë
n
l
R
s
ts
Palatoalveolar
Lak
Lat
Palatal
Lak
Velar
Lat
Lak
k g
Lat
k g
©
Glotal
Lak
?
Lat
?
h
h
ø
S
tS
S Z
tS
j
j
Tendo em vista as semelhanças fonéticas entre as línguas, é possível, portanto,
assumir que o quadro fonológico apresentado por Telles (2002) para a língua Latundê é
pertinente também para a língua Lakondê, se feitas as devidas ressalvas – por exemplo,
a não ocorrência no Lakondê da consoante oclusiva bilabial surda, [p], que é o fonema
/p/ no Latundê. Entretanto, o estudo aqui realizado ainda não é suficiente para
apresentar um quadro fonológico mais preciso do Lakondê.
5. Considerações finais
O estudo das línguas indígenas tem um papel muito importante no que diz
respeito à preservação da cultura e da tradição dos povos que as empregam e que
sofreram um processo violento de aculturamento e de exclusão. Com este estudo,
entendemos, também, que haverá mais chances de se preservar essas línguas, as quais
avaliamos aqui como um patrimônio inestimável quer seja para o repasse das tradições
entre seus falantes, quer seja para o avanço da ciência.
O nosso estudo tem um propósito maior do que a comparação entre as
realizações fonéticas das línguas Lakondê e Latundê que é o de contribuir com o
registro e a preservação da língua desses povos e, com isso, dar um passo a mais no
trabalho de documentação das línguas indígenas brasileiras.
Devido aos propósitos preliminares deste estudo, em razão de suas restrições de
tempo e de maturidade da análise, o nosso levantamento das realizações fonéticas se
circunscreveu às palavras e à comparação consonantal. Ressaltar esse ponto é
importante para se entender que este trabalho não se pretende concluso. Ao contrário,
ele representa o ponto de partida para procedermos à análise global do componente
fonológico do Lakondê.
6. Referências bibliográficas
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Amsterdam: Vrije Universiteit Amsterdam, 2002.
AS ORAÇÕES ADJETIVAS: FUNCIONAMENTO TEXTUAL-DISCURSIVO
Ana Lima27
RESUMO: Tradicionalmente, nas gramáticas e nos manuais de Língua Portuguesa, de orientação mais
estruturalista, as orações adjetivas são apresentadas como componentes do estudo da “subordinação”, ao
lado das chamadas “orações substantivas” e “orações adverbiais”. Essas obras têm como principal
objetivo levar o leitor a: (1) em um determinado “período”, identificar uma oração adjetiva, distinguindoa das substantivas e das adverbiais; e (2) uma vez identificada a adjetiva, enquadrá-la em um dos seus
dois subtipos: o “restritivo” e o “explicativo”. Trabalhos cujo objetivo se afasta um pouco dessa
orientação taxionômica focalizam as funções sintáticas das adjetivas (seus valores como adjuntos
adnominais ou como apostos) e/ou suas funções semânticas (seu papel de diminuir, ou não, a extensão do
termo a que se referem e, assim, aumentar sua compreensão). No entanto, são escassos os trabalhos
acerca das funções textual-discursivas dessas orações e dos seus subtipos. Visando à diminuição dessa
lacuna, este trabalho objetiva apresentar e discutir algumas funções textuais e discursivas das orações
adjetivas, analisadas em contextos reais de uso. Com base em propostas de autores funcionalistas, a
análise aqui empreendida tomou como objeto de pesquisa dados coletados de textos escritos, de graus
variáveis de formalidade, dos seguintes gêneros da língua portuguesa: artigos científicos (da esfera
acadêmica); notícias e editoriais (da esfera jornalística); e crônicas, contos e fábulas (da esfera literária).
PALAVRAS-CHAVE: língua portuguesa; subordinação; orações adjetivas
ABSTRACT: Traditionally, Portuguese grammars and manuals, following the structuralist approach,
have presented adjective clauses as a component of the study of so-called “subordination”, along with
“noun clauses” and “adverb clauses”. The main aim of these works is to lead the reader to: (1) recognize
if a sentence contains an adjective clause, and distinguish it from the other two types of clauses (noun and
adverb); and (2) having identified the adjective clause, to classify it, according to its two subtypes:
“restrictive” or “nonrestrictive”. Works with a different orientation analyze the syntactic as well as the
semantic functions of adjective clauses. But works that focus on the textual and discursive functions of
adjective clauses and of their subtypes are scarce. Aiming to address this lack of focus, this work intends
to present and discuss some textual and discursive functions of adjective clauses, analyzed in real
utterances. Based on functionalist works, this study took as a corpus utterances collected from written
Portuguese texts, with variable levels of register, from the following text genres: scientific essays
(academic domain); news and editorials (journalistic domain); and chronicles, short stories, and fables
(literary domain).
KEY WORDS: Portuguese language; subordination; adjective clauses.
1. Introdução
Este trabalho é resultado de uma pesquisa mais ampla, cujo objeto de estudo são
as chamadas “orações adjetivas” (OA). Na maioria das gramáticas e dos manuais de
Língua Portuguesa, geralmente de orientação mais estruturalista, essas orações integram
o estudo da “subordinação”, ao lado das chamadas “orações substantivas” e “orações
adverbiais”. Essas obras, além de reforçarem a dicotomia coordenação/independência
versus subordinação/dependência, abordam o assunto de maneira muito superficial, e,
por isso, não levam os usuários a refletir sobre os diferentes mecanismos pelos quais se
dá a articulação de orações.
27
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ao analisar esses mecanismos, a maior parte dos autores de orientação
funcionalista (LEHMANN, 1988; MATHIESSEN e THOMPSON, 1988; HOPPER e
TRAUGOTT, 1993; NEVES, 1998; 1999; DECAT, 1999) distingue entre relações de
encaixamento e relações de hipotaxe. Encaixamento ocorre sempre que as orações
estão numa situação de hierarquia, de tal maneira que uma se configura como
constituinte da outra. Hipotaxe, por outro lado, é caracterizada quando as orações se
inter-relacionam de maneira que uma não é constituinte da outra, mas é, antes,
acrescentada para lhe adicionar sentidos; ou seja, orações hipotáticas são compreendidas
como opções do falante para compor o seu discurso, e não como exigência da estrutura
argumental de um dos constituintes oracionais.
A maioria dos trabalhos que levam em conta essa distinção toma como
embasamento teórico as idéias de Halliday (1985), que representam um marco a partir
do qual se aprofundaram as investigações a respeito da construção dos enunciados
complexos. Para esse autor, as relações de encaixamento são distintas das “relações
táticas” (de hipotaxe e parataxe), uma vez que estas são relações que ocorrem entre
orações, enquanto aquelas são "um mecanismo a partir do qual uma oração passa a
funcionar como um constituinte na estrutura de um sintagma que é constituinte da
sentença".
Essa distinção não é sequer aventada nos estudos tradicionais acerca das orações
adjetivas. Pelo contrário, o que se pode evidenciar é que o principal objetivo das
explicações apresentadas nesses estudos é o de levar o leitor a diferenciar os seus
subtipos: “restritiva” e “explicativa”. Na esteira de Halliday (op.cit.), as OA restritivas
são analisadas como subordinadas, já que são orações “encaixadas num sintagma
nominal” (CASTILHO, 2010, p. 366), enquanto as OA não-restritivas28 são
consideradas hipotáticas, uma vez que não são exigidas pela estrutura argumental de
algum constituinte oracional, sendo, antes, opções do falante para compor o seu
discurso.
Na literatura linguística, há trabalhos que, afastando-se um pouco da exagerada
preocupação taxionômica das gramáticas tradicionais, focaliza as funções sintáticas (de
adjuntos adnominais – para as restritivas; de apostos – para as não-restritivas) e/ou
semânticas (seu papel de diminuir, ou não, a extensão do termo a que se referem e,
assim, aumentar sua compreensão) das OA. No entanto, trabalhos que abordam com
maior profundidade as funções textuais e/ou discursivas dessas orações e dos seus
subtipos são bastante escassos.
Com o intuito de colaborar para diminuir essa lacuna, este trabalho objetiva
apresentar e discutir o funcionamento textual e discursivo das orações adjetivas,
consideradas em contextos reais de uso. Adotando como referencial teórico as propostas
de autores funcionalistas (especialmente HALLIDAY, 1985; NEVES, 1999; 2000), a
análise aqui empreendida tomou como objeto de pesquisa dados coletados de textos da
modalidade escrita, de graus variáveis de registro, dos seguintes gêneros da língua
portuguesa: artigos científicos, notícias, anúncios, editoriais, crônicas, contos e fábulas.
28
Neste trabalho, optou-se por adotar a designação de “não-restritivas” para as OA tradicionalmente
designadas como “explicativas”.
2. Funções das OA: breve revisão da literatura
A leitura de trabalhos que tratam das funções das OA revela que, do ponto de
vista sintático, os autores consensualmente consideram que as restritivas cumprem
principalmente a função de “modificar”: um nome ou pronome, para Azeredo (1993);
um núcleo nominal, para Kato et. al. (1996); o antecedente, para Longo et. al., (1994);
uma expressão nominal antecedente ou outra oração, para Mira Mateus et. al. (2003) e
Perini (1989), sendo, portanto, sintaticamente, um adjunto adnominal (KATO et. al.,
1996; NEVES, 2000; SILVA, 2006). As não-restritivas, por sua vez, têm geralmente a
função de “explicar” ou “comentar”, sendo, assim, apositivas.
Do ponto de vista semântico há, igualmente, relativo consenso. A maioria dos
autores concorda com a visão de Macedo (1990), de que, em sua função de adjunto
adnominal, a OA (restritiva) tem um relevante papel semântico: diminuir a extensão do
termo a que se refere, e, assim, contribuir para aumentar-lhe a compreensão. Nessa
mesma direção, Longo et. al. (1994, p. 168) afirma que “no plano semântico-discursivo,
as orações restritivas determinam um subconjunto do conjunto designado pelo
antecedente, restringindo-lhe, portanto, a extensão.” E, de acordo com Mira Mateus et.
al. (2003, p.668), o termo “restritivas” (ou “determinativas”) para as OA com função
adnominal justifica-se, pois essas orações “restringem a extensão do conceito expresso
pelo nome que a oração modifica, contribuindo crucialmente para a natureza referencial
da expressão nominal.” Acrescentam as autoras que, em uma OA restritiva
a predicação incide sobre um sintagma nominal complexo, formado de
núcleo nominal + sintagma adjetival (que pode ser oracional). A essa
diferença na estrutura sintática corresponde uma diferença de valor
semântico: na restritiva, o predicador liga-se a um tema que representa
um “recorte” operado em um universo maior; enquanto que na nãorestritiva o predicador liga-se a um tema que representa uma
totalidade.
Além dessas observações, Neves (2000, p. 377) pontua que “as construções que
contêm uma OA restritiva envolvem uma pressuposição, que pode ser factual, se o
verbo da restritiva estiver no modo indicativo, ou não-factual (hipotética), se o verbo da
restritiva estiver no subjuntivo”. Em Mira Mateus et. al. (2003, 668), essa mesma
distinção está expressa, embora com diferente formulação: para as autoras, as OA
restritivas podem ter um caráter assertivo – se o verbo apresentar-se no modo indicativo
e o antecedente tiver caráter específico, como em: “O livro que li nas férias ganhou um
prêmio.”; ou modal – se o verbo estiver no modo subjuntivo, como em: “Um leão que
tenha fome é perigoso.”; e em: “Por cada artigo que escrevesse, ganharia 50 euros.”.
Além dessas funções, uma longa tradição gramatical tem justificado a
classificação de “adjetivas” para as orações introduzidas por relativos pela defesa de que
elas “funcionam como adjetivos”. Todavia, diversos autores se opõem a essa tendência,
defendendo que essa analogia não tem muito fundamento. Mira Mateus et. al. (2003, p.
657), por exemplo, acreditam que, embora haja “paralelos sintáticos e semânticos” que
justifiquem a aproximação entre as OA e a classe dos adjetivos, as diferenças são
evidentes, uma vez que as OA, sendo oracionais, contêm as propriedades típicas de uma
proposição: predicação própria, tempo, modo, aspecto.
Analisando as OA em espanhol, Garcia (1994) também põe em dúvida a
aproximação generalizada que se faz entre essas orações e os adjetivos. Para opor-se a
essa generalização, toma emprestadas as afirmações de Gili Gaya (apud Garcia, 1994, p.
412), para quem
todas as orações de relativo são adjetivos aplicados a qualquer
substantivo ou pronome da principal, ao qual se chama antecedente.
O emprego das subordinadas relativas permite atribuir ao substantivo
qualidades muito complexas para as quais o idioma não tem adjetivos
ou particípios léxicos.
Para Garcia (op.cit.), a improcedência das idéias de Gili Gaya está no fato de
que “os adjetivos são elementos léxicos, enquanto as orações de relativo pertencem à
sintaxe”. Decorre daí que
a diferença não é somente que o sintático permita expressar qualidades
mais complexas que o léxico. Muito mais importante nos parece que o
léxico está armazenado na memória dos usuários, e é, portanto,
comum a falantes e ouvintes, enquanto que as construções sintáticas
devem ser situadas em cada enunciação das mesmas (p. 412).
Diante de posições tão divergentes, cabe a pergunta: afinal, nos enunciados em
que se inserem, as OA desempenham, ou não, as funções dos adjetivos? Para tentar
responder a essa pergunta, vamos analisar com mais acurácia a questão.
No que se refere ao valor atributivo, nossa análise confirma que as OA
restritivas, assim como os adjetivos, têm, de fato, valor atributivo. No entanto, é
importante lembrar que os adjetivos podem ser atributivos ou predicativos. Segundo
Garcia (op.cit.), o fato de as OA restritivas terem valor atributivo, ao invés de aproximálas da classe dos adjetivos, é a evidência de que se trata de casos muito divergentes.
Segundo ele, “das duas funções mais características dos adjetivos, a atributiva
(modificadora do nome) e a predicativa, só pode dizer-se das relativas que
desempenham a primeira” (p.413).
Além disso, análises mais aprofundadas do funcionamento dos adjetivos no
discurso evidencia que o grau ou a força atributiva não é igual para todos os itens dessa
classe, quando se relacionam com seus referentes (cf. LIMA, 1998). Observa-se que
enquanto uns funcionam atribuindo qualidade diretamente sobre o referente, outros
atribuem a qualidade como que ‘por tabela’, ou seja, indiretamente. Compare-se, por
exemplo, o item chato [professora chata] com o item agressivo [resposta agressiva]. O
primeiro incide diretamente sobre o núcleo, e chato passa a ser uma atribuição inerente
a professora. Diferentemente, agressivo, quando aplicado a resposta, não incide
diretamente sobre ele, mas sobre o ser humano que pratica a ação de responder. Poderia,
assim, ser substituído por advérbio terminado em –mente [alguém responder
agressivamente]. O mesmo acontece com gesto amigo [gesto de pessoa amiga], atitude
covarde [atitude de pessoa covarde], andar gracioso [andar de maneira graciosa =
graciosamente] etc.
3. As OA no discurso: análise de dados
Além das funções apresentadas na seção anterior, a análise da OA em contextos
reais de uso evidencia que elas cumprem diversas outras funções textuais e discursivas.
Dentre essas funções, destacam-se:
3.1. Funções textuais
3.1.1. Função fórica
Algumas ocorrências de OA evidenciam que elas são utilizadas com a função de
apontar para certos elementos ou para trechos do texto em que estão inseridas. É o que
se verifica em (01) e (02), abaixo:
(01) “A "ilha" na metade do caminho permitirá a utilização de aeronaves menores,
que consomem menos combustível e demandarão menos espaço nas
plataformas de exploração a que nos referimos.” (EDT. 018)
(02) Ainda no que se refere às categorias mobilizadas por aqueles que atuam nesse
campo de estudo que estamos discutindo, cabe chamar a atenção para o
esforço de alguns grupos de pesquisa em articular à noção de cultura escolar as
de escolarização (Faria Filho, 2003) e forma escolar (Vincent, 1980; Vidal
2004). (ART.108)
Ao desempenharem essa função, as OA revelam também seu potencial
metalinguístico, importante para situar o interlocutor e o locutor em relação às relações
internas que se verificam no texto.
3.1.2. Função de caracterização dos antecedentes
Nos exemplos abaixo, percebe-se que as OA também são utilizadas quando se
deseja atribuir características aos antecedentes, quer tenham estes traços +Hum (como
em (03)), quer tenham traços –Hum (como em (04)).
(03) “Dizem o atual secretário ianque do Tesouro, Timothy Geithner, e o
economista Lawrence Summers, que atua como chefe do setor na Casa
Branca, sob as ordens diretas do presidente Barack H. Obama, que "o
arcabouço norte-americano para a regulação financeira está perdido em
brechas, fraquezas e sobreposições de jurisdição, e sofre de uma concepção
ultrapassada de risco financeiro".” (EDT. 009)
(04) “Consta que 11 serão as plataformas que haverão de ser construídas para a
exploração do pré-sal, até o ano de 2015.” (EDT. 019)
Caracterizar os antecedentes é um recurso importante para a interação, uma vez
que a imagem desenhada pelo enunciador, em relação aos objetos-de-discurso, também
vai esclarecendo, para o interlocutor, qual a posição do locutor diante do que enuncia.
3.2. Funções discursivas
3.2.1. Função de contribuir para a construção da argumentação
Em diversas ocorrências, percebe-se que a inserção de uma OA é um recurso por
meio do qual o enunciador pode formular de maneira consistente sua argumentação,
pois a OA possibilita a abertura de um espaço no qual o enunciador pode inserir
argumentos mais bem elaborados. Veja-se o seguinte exemplo:
(05) “contribuir de modo formal para que nunca mais o capitalismo se dê ao luxo de
descapitalizar assim dramaticamente bilhões e trilhões de dólares que muitos
de boa fé ganharam no dia-a-dia dos negócios, mas, perderam na roleta
traiçoeira do enorme pano verde que se instalou no orbe terráqueo.” (EDT.
002)
Em (05), o longo segmento destacado, configurado como uma OA, é o espaço
no qual o enunciador pode elaborar sua crítica à instabilidade do capitalismo no mundo
com economia globalizada, crítica que se constrói na base de uma oposição (“ganharam
mas perderam”)
3.2.2. Função de inserir aspectos circunstanciais
As OA têm, também, a função de inserir aspectos circunstanciais, de causa,
condição, concessão, tempo etc., como se evidencia nas ocorrências (06), (07) e (08),
abaixo:
(06) “O aiatolá Khamenei, que já se inclinava para o primeiro polo, passa a
depender mais do apoio da corporação militar e da guarda pretoriana do
regime.” (EDT. 046) (oposição)
(07) “Na sexta-feira, no momento em que os policiais entraram em seu
apartamento, anexo à Igreja do Divino, no bairro Canoas, ele estava no quarto,
sentado com a vítima, uma garota de 13 anos, vestido, mas com o zíper da calça
aberto.” (NOT. 022) (tempo)
3.2.3. Função de referência a dados do conhecimento de mundo
Uma das funções também desempenhadas pelas OA é a referência a informações
compartilhadas, a dados que o enunciador julga ser do conhecimento de mundo do(s)
interlocutor(es), estratégia que gera envolvimento e empatia entre locutor e
interlocutor(es). É o que ocorre, por exemplo, em (08), abaixo:
(08) “Assim, os resultados da próxima Pnad - que continuam de valia para o
planejamento de longo prazo, seja no setor público, seja no privado - não
captarão os efeitos da crise financeira que abalou todo o planeta.” (EDT. 068)
O enunciador, nesse caso, ao elaborar seu enunciado, conta com o conhecimento
do interlocutor de que a crise financeira “abalou todo o planeta”, sem o qual poderão
emergir problemas de interpretação.
4. Considerações finais
Este trabalho apresentou os resultados preliminares de pesquisa sobre as orações
adjetivas, em contextos reais de uso. A análise empreendida evidencia que essas orações
cumprem, no texto e no discurso, variadas funções, que são pouco exploradas quando se
estudam essas construções, especialmente na escola.
Reconhecer as variadas funções que as OA desempenham, no texto e no
discurso, é relevante, do lado do produtor de textos, para a elaboração de textos mais
coerentemente estruturados; do lado do leitor, para a apreensão mais completa dos
sentidos pretendidos pelo locutor.
Se à escola cabe formar leitores e produtores de textos mais competentes, ela
não se pode furtar da análise aprofundada das funções textual-discursivas das OA, já
que essas funções são parte fundamental das reflexões acerca da articulação de orações.
5. Referências bibliográficas
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TARALLO, F. Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. Tese (Doutorado).
University of Pennsylvania, 1983.
POR UM SISTEMA DE ESCRITA PARA AS LÍNGUAS DE SINAIS
Anderson Tavares Correia29
RESUMO: O surgimento da escrita, representação da língua falada por meio de signos gráficos,
representa sem dúvida um marco na história da humanidade. A Língua Brasileira de Sinais – Libras –
vem conquistando um significativo espaço na educação de pessoas surdas e na sua inclusão em diferentes
dinâmicas sociais através da quebra de barreiras comunicacionais. Trata-se de uma língua de natureza
gesto-visual ou visuoespacial, portadora de todas as características de uma língua. Embora os estudos
lingüísticos sobre as línguas de sinais tenham início há algumas décadas, atingindo um considerável nível
de maturidade, ainda encontramos uma recorrente discussão em torno da legitimidade destas línguas,
considerando-as equivocadamente como inferiores em relação às línguas orais. A falta de uma tradição
escrita leva os menos avisados a não reconhecerem que as línguas de sinais são de fato línguas, ou mesmo
considerando-as línguas classificam-nas inferiores em relação às línguas orais com tradição escrita.
Alguns sistemas de escrita foram criados considerando as especificidades desta língua, sendo o sistema
Sign Writing, de Sutton, o mais conhecido; cita-se também o sistema ELiS, de Barros, e o Sistema de
Notação de Sinais, de Lima. Os benefícios trazidos pelo uso de um sistema de notação de sinais serão de
grande valia, cumprindo com o mesmo papel da escrita de comunicar, registrar, conservar e acessar a
língua.
PALAVRAS-CHAVE: Língua Escrita; Libras; Línguas de Sinais.
ABSTRACT: The arising of the writing language and the representation of the spoken language by
graphical signs doubtless represent a landmark in the history of humanity. The Brazilian Sign Language Libras - is conquering a significant space in the education of deaf people and in their inclusion in different
social dynamics through the communicational barrier breaking. It is about a gesture-visual or gesturespatial language, carrier of all the characteristics of a language. Although linguistic studies about sign
languages have began some decades ago and reaching a considerable level of matureness, we still find a
recurrent discuss about the legitimacy of these languages, mistakenly considering them as inferior in
relation to verbal languages. The lack of a written tradition leads uninformed people not to recognize that
sign languages are actually languages or even considering them as inferior languages in relation to verbal
languages which have a written tradition. Some systems of writing had been created considering the
particularities of this language, in which the Sign Writing system, by Sutton, is the most known; the ELiS
system, by Barros, is also quoted, as well as the Sign Writing System, by Lima. The benefits brought by
the use of a written system will be of great value, fulfilling with the same role of the written language to
communicate, to register, to conserve and to have access to the language.
KEYWORDS: Written Language; Libras; Sign Language
1. Introdução
O surgimento da escrita representa, sem dúvida, um marco na história da
humanidade. A história da escrita se confunde, segundo Higounet (2003), com a própria
história da humanidade, afinal serve como base para todas as nossas sociedades e
diacronicamente tomou conta de todos os espaços sociais.
29
Pedagogo (UFPE). Mestrando em Educação (UFPE) na linha de pesquisa Didática de Conteúdos
Específicos. Professor Tutor do Bacharelado em Letras Libras – Universidade Federal de Santa Catarina –
Polo UFPE.
A Língua Brasileira de Sinais – Libras – vem conquistando um significativo
espaço na educação de pessoas surdas e na sua inclusão em diferentes dinâmicas sociais.
Trata-se de uma língua de natureza gesto-visual ou visuoespacial, portadora de todas as
características de uma língua. Em sala de aula, tem sido responsável pela quebra de
barreiras comunicacionais, quando o professor é capacitado para o uso da língua de
sinais, quando há a presença de profissionais tradutores e intérpretes, e ainda, quando há
aulas de Libras tanto para os alunos surdos quanto para todos os demais que com ele
convivem.
No entanto, alguns elementos costumam contribuir para uma visão depreciativa
das línguas de sinais, conforme apontam os estudos de Finau (2006), Leite e McCleary
(2009), Barros (2009), Lima (em estudos ainda não publicados). Um desses aspectos é a
falta de um sistema de escrita para as línguas de natureza visuoespacial que contemple
uma boa representação para a língua de sinais. É a falta de uma tradição escrita que leva
os menos avisados a não reconhecerem que as línguas de sinais são de fato línguas, ou
mesmo considerando-as línguas classificam-nas inferiores em relação às línguas orais
com tradição escrita.
A educação de pessoas surdas será grandemente beneficiada pelo uso da língua
de sinais, considerada sua natureza acessível a essa parcela da população que não tem
acesso à língua de comunicação social. O ensino dessa língua oral, em sua modalidade
escrita, também é de suma importância, considerada a inclusão das pessoas surdas na
sociedade. Por isso, defende-se uma educação bilíngue, na qual a língua de sinais
configura-se como primeira língua e a língua de comunicação local, em sua modalidade
escrita, configura-se como segunda língua.
A necessidade de aquisição de duas línguas é um desafio por parte de
educadores e dos próprios sujeitos da educação. As metodologias de ensino não dão
conta de delimitar o momento de aprender a língua de sinais e o momento de aprender a
língua oral em sua modalidade escrita, cada uma com sua natureza, com suas
peculiaridades, com sua estrutura fonética, fonológica, morfológica e sintática. Muitos
usuários da língua de sinais elegem palavras da língua oral para seus registros escritos,
alternando a construção sintática das duas línguas. O uso de uma modalidade escrita
para as línguas de sinais poderia acabar com essa problemática, delimitando a escrita de
cada língua.
O sistema de escrita mais difundido foi criado por Valerie Sutton, inspirada em
um sistema de notação de passos de dança. Trata-se do Sistema SignWriting (SUTTON,
1996), uma escrita fonética dos elementos que compõem os sinais. No entanto, o
SignWriting não é o sistema de escrita oficial de nenhuma língua (BARROS, 2009).
Por que o sistema SignWriting não é utilizado? Para representar as sentenças em
língua de sinais, através de uma escrita fonética, faz-se necessário o uso de muitos
elementos, demandando tempo e espaço no papel. É algo parecido com o que acontece
com a escrita em Braille, onde um texto ocupa um espaço muito maior em comparação
com a escrita em tinta. Por isso, o SignWriting não ocupou ainda o lugar de escrita
oficial das línguas de sinais, já que não demonstra-se usual nem prático para o seu
usuário.
Outro sistema de escrita, A Escrita da Língua de Sinais (ELiS), foi criado por
Barros (2008) com a proposta de uma representação fonética com escrita alfabética e
linear. Embora minimize o problema do excesso de símbolos escritos, a ELiS apresenta
ainda um número elevado de caracteres, se comparados aos alfabetos de línguas orais.
Em estudos ainda não publicados, Lima criou um Sistema de Notação de Sinais.
Ele consiste no uso de LexIcons, um número significativamente pequeno de elementos
gráficos para o registro escrito das línguas de sinais, preservada sua sintaxe e estilística.
Seria uma forma de auxiliar o processo de alfabetização nas línguas de sinais, além de
permitir o início da tradição escrita nas línguas de sinais. Muito embora ainda não esteja
totalmente acabado, o método de escrita de sinais desenvolvido por Lima (2003) merece
toda a atenção científica, uma vez que contempla peculiaridades das Línguas de Sinais,
respeita as comunidades Surdas em sua forma de comunicação e esteia-se em
conhecimentos científicos da lingüística e dos pressupostos da inclusão da pessoa com
deficiência.
Quais seriam os benefícios do uso de um sistema de escrita para as Línguas de
Sinais e, especificamente, para a Língua Brasileira de Sinais? Este problema motivoume a escrever um projeto de pesquisa que, submetido ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, foi aprovado e encontra-se agora
em andamento. Pretende-se investigar um aspecto absolutamente relevante em uma
língua: um sistema de notação escrita capaz de possibilitar o registro da língua de sinais
e sua aplicação na educação de alunos usuários da Língua Brasileira de Sinais. Além
disso, pode aprofundar-se nos aspectos pedagógicos da educação de alunos surdos,
utilizando-se da Língua Brasileira de Sinais como instrumento de quebra de barreiras
comunicacionais e, certamente, atitudinais.
2. A escrita e as línguas
A escrita é o código de representação gráfica da linguagem por meio de sinais
materiais perceptíveis. É um sistema de representação, já que os sinais gráficos servem
para anotar uma mensagem de determinada língua (oral ou sinalizada) no intuito de
conservá-la ou transmiti-la posteriormente. A evolução de uma língua ágrafa para uma
língua com modalidade escrita dá-se justamente por essa necessidade.
Higounet (2003) descreve a trajetória da escrita, começando com os desenhos
pictográficos rupestres, primeiras tentativas primitivas de escrita; o considerado estágio
embrionário da escrita, nas tentativas de representação gráfica; a escrita sintética, ou
escrita de ideias, onde os sinais começam a se agrupar para sugerir as ideias; a escrita
analítica, onde as palavras começam a surgir isoladas; até a escrita fonética, onde “da
notação das palavras, o homem enfim passou à notação dos sons” (p. 14). Também o
uso de diferentes materiais para o registro (barro, pedra, couro, papiro, papel), a
invenção da imprensa e outras tecnologias influenciaram o curso da história da escrita.
Uma língua surge de uma necessidade comunicativa. Em estudos anteriores
demonstrei que o não-acesso à língua de comunicação local – no caso do Brasil, à
Língua Portuguesa – gera barreiras comunicacionais para as pessoas que nasceram ou se
tornaram surdas e consequentemente a exclusão destes sujeitos das diversas dinâmicas
sociais, entre elas da escolarização. A Língua de Sinais surge da necessidade
comunicativa de grupos formados por pessoas surdas e seus familiares, amigos,
educadores e outras pessoas que com elas convive.
A necessidade de comunicação obriga a quebra da barreira
comunicacional. Sem acesso à língua oral, os surdos desenvolveram
línguas de sinais, permitindo a comunicação por um meio gestovisual. No caso do Brasil, sem acesso ao português em sua
modalidade oral, os surdos desenvolveram a Língua Brasileira de
Sinais (Libras), oficializada pela Lei 10.436 em 2002 e regulamentada
pelo Decreto 5.626 em 2005. (CORREIA, MACEDO JR. e LIMA,
2008)
Até a metade do século XIX, o Brasil possuía apenas experiências isoladas de
dialetos na modalidade gesto-visual ou visuoespacial, estabelecidos pelas pessoas
surdas junto a seus familiares, amigos e profissionais da área da educação. Com a vinda
de educadores franceses e a fundação do Instituto Nacional de Surdos Mudos (atual
Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES), no Rio de Janeiro, em 1957,
começa a estabelecer-se nos centros urbanos brasileiros o modelo francês de educação
para pessoas surdas, incentivando o uso da língua de sinais como acessível meio de
comunicação, conforme demonstram os estudos de Ramos (2009).
Durante outros momentos da história, a língua de sinais foi proibida e em seu
lugar passou-se a utilizar outros métodos, como o método oralista, que consiste em
treinar nas pessoas surdas o uso da língua de comunicação social oral, através de
técnicas com fonoaudiólogos, aprendendo a pronunciar as palavras e fazer leitura labial.
Este método, quando aliado a práticas de imposição e a uma concepção integracionista,
no qual o mundo não deve adaptar-se às diferenças individuais, mas as pessoas devem
adaptar-se ao mundo, deixou grandes marcas na história da educação das pessoas
surdas.
A língua de sinais volta a ser utilizada e difundida na maioria das escolas do
Brasil nas últimas décadas do século XX, e seu reconhecimento legal deu-se apenas no
ano de 2002.
Os estudos linguísticos nas Línguas de Sinais iniciam-se em torno dos anos 1960
(QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 29). O primeiro grande estudioso da linguística das
línguas de sinais foi William C. Stokoe, pesquisador da Língua de Sinais Americana.
Seus estudos contribuíram para a compreensão e reconhecimento das línguas de sinais
como naturais. Nessas línguas, se encontram presentes os mesmos traços das línguas
orais, como flexibilidade, versatilidade, arbitrariedade, descontinuidade, criatividade,
produtividade, padronização, entre outros, traços estudados por Quadros e Karnopp e
por tantos outros pesquisadores. Nessa obra, as autoras discutem também a respeito de
uma série de mitos relativos à língua de sinais. Derrubam ideias errôneas (pp. 31-36),
como por exemplo: as línguas de sinais são incapazes de expressar conceitos abstratos;
a língua de sinais é universal; é um sistema de comunicação superficial, inferior às
línguas orais; derivam da comunicação gestual de ouvintes.
As línguas de sinais são consideradas línguas naturais e,
consequentemente, compartilham uma série de características que lhes
atribui caráter específico e as distingue dos demais sistemas de
comunicação, conforme discutido anteriormente. As línguas de sinais
são, portanto, consideradas pela linguística como línguas naturais ou
como um sistema linguístico legítimo e não como um problema do
surdo ou uma patologia da linguagem. (QUADROS e KARNOPP,
2004, p. 30)
O preconceito em relação à língua de sinais foi tema nos escritos de outros
autores. Gesser traz uma série de reflexões a respeito de aspectos que parecem não fugir
da ordem do dia:
Ainda é preciso afirmar que Libras é língua? Essa pergunta me faz
pensar: na década de 1960, foi conferido à língua de sinais o status
linguístico, e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados,
continuamos a afirmar e reafirmar essa legitimidade. A sensação é
mesmo a de um discurso repetitivo. (GESSER, 2009, p. 09)
A repetição da discussão em torno da legitimidade da Libras como língua não
demonstra apenas a incompreensão de sua legalidade. Além dos que pensam que Libras
não é língua, existem ainda os que pensam que uma língua de sinais é inferior em
relação a uma língua oral. Esse pensamento costuma nortear a escolha de alguns pais de
crianças surdas, no momento da escolha por um modelo educacional para seus filhos.
Influenciados pela ideia de que a Libras é inferior ou insuficiente, e preocupados com a
inserção de seus filhos na sociedade, muitos pais optam pelo modelo oralista, pensando
que apenas dessa forma seu filho vai “falar” e se comunicar com o mundo.
Em um trabalho sobre fatores complicadores e facilitadores no processo de
aprendizagem de Língua de Sinais Brasileira por um adulto ouvinte, Leite e McCleary
trazem as ideias equivocadas que circulam em nossa sociedade sobre a natureza das
Línguas de Sinais como um dos aspectos sociolinguísticos de destaque no processo de
aquisição da língua. Além disso, o não uso de um sistema de escrita entra em nossa
discussão:
Um dos maiores empecilhos para a efetivação do processo de
padronização da Libras no Brasil é a falta de um sistema de escrita
consolidado para essa língua. Tal situação manifesta-se em um ensino
marcado por grande variabilidade linguística, de uma região para
outra, de uma instituição para outra e até de um professor para o outro.
A dificuldade dos alunos em saber qual forma utilizar era agravada
por uma atitude um tanto comum dos professores com os quais tive
contato: variantes da Libras trazidas pelos alunos de outros contextos
eram frequentemente rejeitadas e/ou estigmatizadas em sala de aula
como variantes “incorretas”. (LEITE e MCCLEARY, 2009, p. 254)
O não uso de uma modalidade escrita configura uma dificuldade no processo de
aquisição da língua, tanto pelo ouvinte quanto pelo surdo. Muitas vezes, os professores
adotam metodologias de ensino que misturam a língua oral com a língua de sinais;
utilizam-se de sistemas de notação para a língua de sinais baseados na palavra
correspondente na língua portuguesa, causando confusão por parte do aluno.
A falta de uma escrita para a Libras faz com que os sinais sejam
frequentemente designados por glosas (i.e. palavras do Português
convencionalmente adotadas para se referir aos sinais). Não raramente
nos cursos de Libras, as glosas eram confundidas com a própria
semântica do sinal na Libras (...). O uso de uma escrita de sinais
certamente contribuiria para essa desvinculação entre Português e
Libras (LEITE e MCCLEARY, 2009, pp. 267-268)
O uso de um sistema de escrita para a Língua de Sinais é citado por Finau
destacando sua importância no processo de letramento de alunos surdos. Tendo
adquirido a língua de sinais, e posteriormente a escrita da língua de sinais, a aquisição
da língua portuguesa escrita como segunda língua ficaria mais fácil.
Então, se existe um sistema de escrita para a língua de sinais, não seria
possível a criança surda aprimorar antes o seu letramento dentro da
sua perspectiva lingüística para, depois, fazê-lo em uma segunda
língua? Esse não seria o processo mais interessante de letramento para
o surdo? Até porque, se há transferência de um sistema de linguagem
para outro, seria mais fácil a compreensão da escrita da oralidade, a
partir da escrita da língua de sinais. (FINAU, 2006, p. 235)
3. Sistemas de escrita para as línguas de sinais
Com a proposta de desenvolver um sistema de escrita das línguas de sinais,
Valerie Sutton criou o Sistema de Escrita Visual Direta de Sinais SignWriting. O
SignWritin foi inspirado em um sistema de notação de movimentos da dança, “capaz de
registrar todo e qualquer movimento” (CAPOVILLA, 2008, p. 56). Este sistema permite
uma descrição detalhada de todos os fonemas (utilizo “fonemas” de forma analógica,
pois também são chamado de “quiremas”, relativo à “mão”) de uma língua de sinais, a
saber: configuração de mão, movimento, locação, orientação da mão e expressões nãomanuais (QUADROS e KARNOPP, 2004, pp. 51-61).
A respeito da história da escrita, Higounet distingue três etapas essenciais entre
as tentativas primitivas e os sistemas alfabéticos atuais: escritas sintéticas, analíticas e
fonéticas (Higounet, 2003, p. 11). O sistema SignWriting seria uma escrita fonética
desde sua criação. Capovilla e Raphael (2009, p. 55) diz que o SignWriting está para as
línguas de sinais como está o Alfabeto Fonético Internacional para as línguas orais, já
que “permite uma descrição detalhada dos quiremas de uma Língua de Sinais e um
registro preciso dos sinais que resultam de sua combinação”.
Enquanto o alfabeto da Língua Portuguesa é composto de 26 caracteres (Tufano,
2008), combinadas e representadas linearmente, o sistema SignWriting possui centenas
ou milhares de elementos fonéticos combináveis de forma não linear que podem
aparecer em diferentes posições. Um texto escrito em SignWriting costuma ocupar
muito espaço no papel, tornando-o inviável tanto para quem escreve quanto para quem
lê. A Figura 01, do Dicionário de Capovilla, ao lado de ilustrações analógicas,
demonstra como é feita a escrita do sinal.
Figura 01: Sinal de “Professor” (CAPOVILLA e RAPHAEL, 2008, p. 1084)
O sistema SignWriting conta com uma dificuldade em relação à quantidade de
elementos gráficos. Mesmo focando apenas os elementos usáveis na Língua Brasileira
de Sinais, temos 420 possibilidades de representação das configurações de mãos, seis
símbolos de contato (referentes aos sinais onde há contato feito entre duas partes do
corpo), seis símbolos de dedo (referentes a movimentos feitos com a articulação dos
dedos), 90 símbolos de expressões faciais, centenas de setas de movimentos, 17
símbolos de posição de cabeça, 16 símbolos de movimentos de cabeça, 17 símbolos de
posição ou movimento do ombro, 13 símbolos de posição ou movimento do tronco,
além de sinais de movimento de rotação do antebraço, de flexão do pulso, de posição
dos ombros, entre outros elementos, ou seja, centenas ou milhares de elementos
combináveis entre si (SUTTON, 1996). O resultado, como se pode ver na figura 02, são
sinais complexos e que ocupam muito espaço.
Figuras 02 e 03: Sinais de “Comentário” e “Verbo” escritos em SignWriting
Os estudos sobre o sistema SignWriting no Brasil ainda são muito recentes e
encontram resistência por parte de muitos usuários da Libras. Leite e McCleary (2009)
confirmam a dificuldade do uso do SignWriting e a rejeição por parte de alguns
professores de Libras.
Tal sistema ainda carece de desenvolvimento, constituindo-se numa
escrita fonética bastante dispendiosa, ao menos no que se refere aos
propósitos de registro e estudo das aulas de Libras (...). O uso do SW
ou de qualquer outro tipo de escrita em sala de aula (como o
Português) era amplamente reprovado pelos professores [de cursos de
Libras], que, em alguns casos, chegavam a proibir os alunos de
colocarem papel e caneta sobre as carteiras. (p. 255)
Também Barros (2009), ao propor a necessidade de uma “ordem alfabética” nos
dicionários de Libras, lembra que o SignWriting não é o sistema oficial de escrita da
língua de sinais.
A grande dependência da língua oral na organização de dicionários de
Línguas de Sinais se dá pelo fato de nenhuma Língua de Sinais ter um
sistema de escrita estabilizado. O sistema americano Sign Writing, de
Sutton, é o mais difundido. No entanto, ainda não é reconhecido
oficialmente como sistema de escrita de nenhuma Língua de Sinais.
(BARROS, 2009, pp. 130-131)
Outro sistema de escrita para as línguas de sinais foi criado e proposto por
Barros (2008). Este autor criou e estudou outro sistema de escrita para as línguas de
sinais, denominado ELiS – Escrita da Língua de Sinais. O principal diferencial deste
sistema é a escrita de base alfabética e linear, característica facilitadora da escrita, da
leitura e da organização em ordem alfabética, como foi dito anteriormente. O sistema é
resultado de um trabalho longo, fruto de uma árdua pesquisa e certamente apresenta
benefícios aos usuários da língua. Sem entrar nos méritos da pesquisa, apenas destaco
dois aspectos relevantes na escolha de um sistema que represente a escrita das línguas
de sinais. O primeiro é a grande quantidade de visografemas do sistema ELiS – os 90
símbolos escritos apresentados inicialmente. Embora estejam em menor quantidade se
comparados com o sistema Sign Writing, são ainda muito numerosos, se comparados
aos alfabetos de nossa língua oral. O segundo é a ligação dos visografemas com os
fonemas da língua falada.
Figura 04: Texto escrito em ELiS (BARROS, 2008, p. 121)
Considerando as características dos sistemas SignWriting e ELiS, sem deixar de
respeitar as possibilidades do uso destes sistemas, queremos considerar o uso de um
sistema de escrita para as Línguas de Sinais que não seja fonético, com número
reduzido de caracteres, e os benefícios que a escrita trará no processo educacional de
usuários destas línguas.
Lima, em estudo ainda não publicado, criou o Sistema de Notação de Sinais
(NS), que tem como objetivo propiciar um registro gráfico para as línguas de sinais,
visando a sua divulgação e maior aceitação pelas pessoas falantes das línguas orais. Do
diálogo do autor com estudiosos do SignWriting, discutindo a possibilidade da escrita
de sinais em relevo, surge a ideia de um sistema de escrita com número reduzido de
caracteres. Esta Notação apresenta vantagens, a saber: a redução da quantidade de
caracteres (em número de 16 mais alguns modificadores); a possibilidade de um prático
registro manual (em tinta ou em Braille) e digital; a possibilidade do uso em qualquer
uma das línguas de sinais. Lima, 2003 nomeia os caracteres da NS de LexIcons,
“elementos que estarão para os sinais da língua, e não a língua sob determinação dos
LexIcons e sua correspondente sintaxe ou estilística.” Nas palavras do autor,
Ao considerar a aplicação da Notação de Sinais, há que se priorizar a
preservação da Língua de Sinais de uma determinada comunidade,
determinante da Notação. Não faremos a escrita fonética da língua,
mas sim a notação gráfica iconográfica que considera o caráter
visoespacial e sinestésico dessa modalidade lingüística. (LIMA, 2003,
comunicação pessoal)
Figua 05: Lexicons do Sistema de Notação de Sinais de Lima (2003)
A Notação de Sinais de Lima não é uma escrita que faz a transcrição fonética de
uma língua de sinais, mas uma representação iconográfica da Língua de Sinais,
preservando as características visoespacial peculiar a essa modalidade de língua.
4. Considerações finais
Nas línguas orais, quando lemos, por exemplo, a palavra “casa”, nós associamos
imediatamente o significante ao significado conceitual previamente construído, sem
necessidade de percorrer o caminho da pronúncia da palavra. Além disso, a escrita da
letra “c” não lembra em nada o desenho da articulação do aparelho fonador para a
pronúncia do fonema /k/, e podemos dizer o mesmo dos demais fonemas. A escrita pode
cumprir sua função sem a obrigatoriedade de uma transcrição fonética e com um
número reduzido de caracteres.
Na presente pesquisa bibliográfica, consideramos os principais aspectos de três
sistemas de escrita para as línguas de sinais. Até o momento, entendemos que o Sistema
de Notação de Sinais de Lima melhor responde ao que se espera de um sistema de
escrita, pensando nos benefícios que o uso da escrita pode trazer inicialmente ao usuário
e posteriormente à própria tradição cultural do conjunto de usuários da língua. Surge,
então, a necessidade de aplicar a NS, identificando possíveis vantagens e limites,
verificando a capacidade do sistema de ser utilizado por alunos usuários da Língua
Brasileira de Sinais. Pensamos que este Sistema contemplará uma boa representação
para as línguas de sinais, já que se baseia na qualidade visuoespacial da Libras.
5. Referências bibliográficas
BARROS, Mariângela Estelita. ELiS – Escrita das Línguas de Sinais: proposta
teórica e verificação prática. (Tese de Doutorado). Florianópolis: UFSC, 2008.
BARROS, Mariângela Estelita. Por uma ordem “alfabética” nos dicionários de línguas
de sinais. In: QUADROS, R.M. e STUMPF, M.R. (Org.). Estudos Surdos IV.
Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2009, pp. 124-141.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei 10.436/2002.
Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e dá outras providências.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto
5.626/2005. Regulamenta a Lei Nº. 10.436, de 24 de abril de 2002.
CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkiria Duarte. Dicionário
Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira (Libras), v. I e II
– 3ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
CORREIA, Anderson Tavares; MACEDO JR, Márcio Ribeiro; LIMA, Francisco José
de. O Intérprete de Língua Brasileira de Sinais no Ensino Fundamental e seu Papel
na Escola Comum (Artigo – Trabalho de Conclusão de Curso). Recife: UFPE, Centro
de Educação, Coordenação do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, 2008.
FINAU, Rossana. Possíveis Encontros entre Cultura Surda, Ensino e Linguística. In:
QUADROS, Ronice Müller de. (Org.). Estudos Surdos I. Petrópolis, RJ: Arara Azul,
2006.
GESSER, Audrei. Libras? : Que língua é essa? : crenças e preconceitos em torno da
língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
HIGOUNET, Charles. História Concisa da Escrita. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.
LEITE, Tarcísio de Arantes e MCCLEARY, Leland. Estudo em Diário: fatores
complicadores e facilitadores no processo de aprendizagem da Língua de Sinais
Brasileira por um adulto ouvinte. In: QUADROS, Ronice Müller de. e STUMPF,
Marianne Rossi. Estudos Surdos IV. Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2009.
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QUADROS, Ronice Muller de. e KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais
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RAMOS, Clélia Regina. LIBRAS: A Língua de Sinais dos Surdos Brasileiros.
Petrópolis: Editora Arara Azul, 2009. Disponível em: <http://www.editora-araraazul.com.br/Artigos.php>. Acessado em 30 de agosto de 2009, 11h10.
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<http://www.signwriting.org/lessons/lessonsw/Portuguese.html>, 1996. Acesso em 30
de ag. 2009.
TUFANO, Douglas. Guia Prático da Nova Ortografia. São Paulo: Melhoramentos,
2008.
PLATÃO: A LINGUAGEM COMO ACESSO
AO CONHECIMENTO VERDADEIRO
André Gustavo Ferreira da Silva30
RESUMO: Platão é uma das bases do pensamento ocidental. A análise de suas estratégias discursivas nos
permitirá compreender os fundamentos desse pensamento e a possível pertinência dessas estratégias na
atualidade. Nosso objeto é a relação em Platão entre linguagem e verdade, especificamente, a
problemática referente à linguagem como acesso ao conhecimento verdadeiro. Pois essa verdade não é
acessada pela experiência sensível. Analisaremos os mecanismos discursivos platônicos utilizados no
episódio do escravo de Ménon (PLATÃO, 2005, § 82-84). Investigaremos na maiêutica o momento da
aporia - a percepção da falsidade do conhecimento primeiro – como mecanismo discursivo essencial para
se atingir o saber verdadeiro. O trabalho funda-se na idéia de que, para o ateniense, o conhecimento vai
além da doxa, o saber produzido pelas impressões dos sentidos. O conhecimento verdadeiro se dá no
nível da essência constitutiva das coisas, que ultrapassa as aparências captadas pelos sentidos. Que
apreendem as características empíricas das coisas, mas está no plano sensível e não acessa a essência
verdadeira. A experimentação sensível, portanto, não se constitui como caminho ao conhecimento. Em
Platão, o homem tem a verdade inata na alma. O processo de acesso à verdade se dá por sua busca na
psique: a anamnesis. Sendo a maiêutica um dos métodos de desencadeamento da anamnesis, no qual o
papel do interlocutor é o de conduzir o sujeito, por intermédio de questionamentos, às contradições de seu
primeiro conhecimento para daí ajudá-lo a dar à luz o verdadeiro conhecer. Utilizamos a metodologia de
análise hermenêutica, identificando no próprio texto sua chave interpretativa.
PALAVRAS-CHAVE: Platão; linguagem; maiêutica; aporia; hermenêutica
ABSTRACT: Plato is one of the foundations of Western thought. The analysis of his discursive strategies
will enable us to understand the relevance of these strategies today. Our object is the relationship between
language and true into Plato’s work, specifically the problems relating to language as access to true
knowledge, because that truth is not accessed by experience. We will analyze the discursive mechanisms
used in the episode of Platonic slave Meno (Plato, 2005, § 82-84) and investigate the moment of aporia the perception of the falsity of knowledge first – in Socratic’s maieutic: a discursive mechanism essential
to achieve the true knowledge. The work is based on the idea that, for the Athenian, the knowledge goes
beyond the doxa. The true knowledge occurs at the level of constitutive essence of things, which exceeds
the appearances captured by the sensibility. The sensibility captures the empirical characteristics of
things. But, because are in the sensitive plan, does not access the true essence. Therefore the trial sensitive
is not considered a path to knowledge. In Plato, the man has the truth innate in the soul. The process of
access to truth is through the self search on the psyche: the anamnesis. The Maieutics is one of the
methods of anamnesis, in which an interlocutor to lead the other, through questions, at the contradictions
of his first knowledge. I was utilized the method of hermeneutic analysis, identifying in the text the
interpretation keys.
KEYWORDS: Plato; language; maieutics; aporia; hermeneutics
1. Introdução
Platão é uma das bases do pensamento ocidental. O ateniense inaugura
perspectivas filosóficas que ultrapassam seu tempo: suas reflexões sobre ética, política e
educação, por exemplo, são ainda hoje referências obrigatórias. Os textos platônicos
30
Professor Adjunto – CE/UFPE. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem – NIEL/
Linha de Pesquisa: Linguagem e Hermenêutica.
conseguem transcender a própria pertinência filosófica ao se inserirem no chamado
mundo da literatura universal, dado a sua beleza estética e estilística. Contudo, nesta
pluralidade de enfoques sob os quais sua obra pode ser abordada, nos deteremos nos
mecanismos discursivos utilizados pelo ateniense. Objetivamos investigar em Platão o
papel da linguagem como acesso ao conhecimento verdadeiro. Especificamente, nosso
objeto é o mecanismo discursivo utilizado na maiêutica.
2. A experiência empírica não leva à verdade
A questão do conhecimento em Platão não se limita ao universo empírico. O
conhecimento vai além da opinião (doxa: δοξα), o saber produzido pelas impressões
dos sentidos. Para Platão, a ciência (επιστημη) verdadeira se dá no nível da essência
constitutiva das coisas e ultrapassa as aparências captadas pelos sentidos. Próximo a
Platão havia quem defendesse que o conhecimento poderia ser ensinado ou que poderia
ser adquirido através da experiência e do uso dos talentos individuais. A questão do
conhecimento é trabalhada pelo filósofo confrontando-se com tais noções, defendidas
pelos sofistas. No diálogo “Menon”, (PLATÃO, 2005, p. 19 §70a) temos a exposição
do ponto de vista sofista na fala do personagem que intitula a obra, quando, tendo a
virtude como objeto do conhecimento, indaga se esta “é coisa que se ensina
(διδακτον)? Ou não é coisa que se ensina, mas que se adquire pelo exercício
(ασκητον)? Ou (...) algo que advém aos homens por natureza (...)?”
Platão, que expressa seu pensamento por intermédio do personagem Sócrates,
contestará a possibilidade de se conhecer a virtude através dos caminhos sofistas, pois
parte do princípio que a natureza essencial da verdade acerca da virtude, e da natureza
essencial de todo conhecimento verdadeiro, impossibilita qualquer processo de
produção de conhecimento que se lastre nos sentidos. Haja vista que, subjacente ao que
nossa sensibilidade sensorial possa apreender como saber, está a essência das coisas,
está a sua verdade. Essa verdade não pode ser apreendida por procedimentos sensoriais
de formulação de saberes, pois tratando-se de algo transcendente ao universo sensível
apenas fora desse universo é que poderia se dar sua apreensão. A sensorialidade humana
pode apreender a característica empírica das coisas, as categorias sensoriais que
distinguem uma coisa da outra. Mas, a sensorialidade está no plano sensível e não
acessa à essência verdadeira. A essência é una e transcende à pluralidade das
características empíricas. Tais características, e todos os saberes que se dão no plano do
sensível, podem ser ou transmitidos pelo ensino ou adquiridos pela experiência. No
entanto, a essência, ou seja, o conceito que define um determinado ente, não será
apreendida por tais procedimentos.
Ainda no Menon, Platão (2005, p. 23 §72b-c) usando a definição do conceito de
abelha e virtude defende a unidade e transcendência da essência de um ente, sendo essa
essência sua verdade; pois as abelhas, mesmo sendo “muitas e de toda variedade de
formas e diferentes umas das outras”, “quanto a serem abelhas, não diferem nada uma
das outras”. E as virtudes (αρετϖν), “embora sejam muitas e assumam toda variedade
de formas, têm todas um caráter único, que é o mesmo, graças ao qual são virtudes”.
Transcendendo ao plano sensível, o conhecimento verdadeiro sobre uma coisa,
como vimos, não se dá, segundo o ateniense, pelos meios tradicionais. Todavia, o
argumento sofista, mais uma vez, se coloca diante de Platão. Desta vez a alegação
consiste em questionar que: se a verdade sobre uma coisa não pode ser apreendida pelo
ensino ou pela experiência, “de que modo procurarás, (...), aquilo que não sabes
absolutamente o que é? (...) Ou, ainda que, ao melhor dos casos, a encontres, como
saberás que isso <que encontrastes> é aquilo que não conhecias?” (PLATÃO, 2005, p.
49 §80d). A resposta platônica consistirá em propor que o acesso ao conhecer
verdadeiro não é intersubjetivo e sim intrasubjetivo. Sugerindo que o homem deve
procurar e reconhecer em si mesmo a verdade.
Ressignificando a tradição pitagórica, o filósofo defende que a alma traz consigo
o saber verdadeiro: “sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo
visto tanto as coisas <que estão> aqui quanto as <que estão> no Hades, enfim todas as
coisas, não há o que não tenha aprendido” (PLATÃO, 2005, p. 51 §81b). O homem já
tem na alma a verdade, o conhecimento da essência das coisas. O conhecimento
verdadeiro acerca das coisas é inato. O processo de acesso a esse conhecimento se dá
pela procura e reconhecimento dessa verdade na própria alma. Este processo é o que
Platão chama de anamnesis (αναμνησιζ).
3. A maiêutica e a aporia
O processo de acesso à verdade se dá por sua busca na psique: a anamnesis.
Sendo a maiêutica um dos métodos de desencadeamento da anamnesis, no qual o papel
do interlocutor é o de conduzir o sujeito, por intermédio de questionamentos, às
contradições de seu primeiro conhecimento para daí ajudá-lo a dar à luz o verdadeiro
conhecer.
Platão (2005, p. 65 §85d) define anamnesis como “recuperar alguém a ciência
(επιστημη), ele mesmo em si mesmo”. A anamnesis pode ser interpretada como
rememoração ou o não (an) esquecimento (amnesis). Sendo o conhecimento da verdade
inato e sendo sua condição de acesso a anamnesis, o papel do docente, proposto por
Platão, diverge da forma tradicional. Ou seja, aqui o mestre não transmite um saber ao
aluno, ele facilita a busca ou o reconhecimento deste conhecimento na alma mesma do
discente. O professor é, então, um “parteiro” do saber inato à própria alma discente.
Este processo é a “maiêutica”, facilitar ao educando a rememoração.
A maiêutica, palavra relacionada ao trabalho de parto, representa um tema
precioso à cultura ateniense. Posto que a deusa que nomeia a Polis, também associada à
sabedoria, especialmente em sua versão romana (Minerva), é nascida diretamente da
fronte de Zeus. A referência à idéia de “parto” está também registrada na nomenclatura
do principal templo ateniense, o Partenon, menção direta a uma das prerrogativas da
deusa: proteção aos partos. A maiêutica é um processo discursivo, está no campo da
linguagem. Visa despertar no sujeito discente o saber, que já lhe é imanente, e tem na
aporia uma de suas estratégias mais significativas. Sendo a aporia o momento da
percepção da falsidade do conhecimento primeiro, estado imprescindível para se atingir
o conhecimento verdadeiro.
A situação de aporia, implementada pelo personagem Sócrates, é recorrente nos
diálogos de Platão. Salientaremos aqui três momentos, um na “República” e dois no
“Menon”, destacando o trecho do diálogo entre Sócrates e o escravo de Menon.
O texto “A República”, dentre outros temas, trata da questão da justiça na Polis.
Nele, o filósofo expõe suas críticas ao ideário ético-político dos sofistas. Na
“República”, o ponto de partida para a discussão acerca da justiça é a fala do sofista
Trasímaco, que apresenta o conceito de justiça defendido por sua corrente: “a justiça
não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (PLATÃO, 1996, p. 23 §338c).
Ainda em sua fala, o personagem Trasímaco argumenta que: se o governo é quem
detém a força numa Polis, e, se a justiça numa Polis é expressa pelas leis ditadas pelo
governo, ou seja, se “cada governo estabelece as leis de acordo com sua conveniência”
(PLATÃO, 1996, p. 24 §338e), temos, então, que “a justiça é a mesma em toda parte: a
conveniência do mais forte” (PLATÃO, 1996, p. 23 §338e).
O poder da tese sofista está na possibilidade de ser comprovada facilmente pela
observação empírica, haja vista a experiência na vida real comprovava – e ainda hoje
comprova - que o complexo de normas e prescrições que determinam o sentido da
justiça numa dada sociedade é a expressão dos interesses dos seus grupos hegemônicos.
Todavia, como vimos, para Platão, o fato de enquadrar-se à experiência sensível não
garante a um conhecimento a condição de verdade. O filósofo, por intermédio da
identificação de contradições, conduzirá o sofista à aporia, para daí levá-lo à
compreensão do verdadeiro significado da justiça.
A principal contradição apontada na definição sofista se dá pelo fato de que se
obedecer às leis propostas segundo a conveniência dos governantes é o exercício da
justiça, então, a justiça pode acarretar no mal, haja vista que não há governantes que
estejam isentos de cometer equívocos ao legislar. Platão conduz a essa contradição
lembrando a Trasímaco que o exercício da justiça não pode ser oposto ao exercício do
bem. Se a justiça é a expressão do interesse dos governantes, e se os governantes, na
satisfação de suas conveniências, podem legislar equivocadamente, temos que a
legislação equivocada, cumprida, não acarretaria no bem, mas no seu oposto. Além do
que, segundo Platão, “o próprio Trasímaco concorda que os governantes por vezes dão
ordens que lhes são prejudiciais” (PLATÃO, 1996, p. 26 §340a). Consequentemente, a
obediência à conveniência do mais forte não poderia gerar a justiça, pelo fato dos
governantes por vezes decretarem normas que o cumprimento gera malefícios até a eles
próprios. O processo discursivo desenvolvido pela fala do personagem Sócrates
demonstra que é contraditório a justiça não conduzir ao bem. Portanto, o conhecimento
primeiro sobre a justiça, esboçado na idéia de que esta é a conveniência do mais forte,
perde sua sustentação, mesmo que possa ser comprovado pela experiência. O processo
conduz ao reconhecimento da ignorância, o saber que nada sabe, o momento da aporia,
sem o qual não se atinge o conhecimento verdadeiro acerca da justiça. Pois é esvaziando
as certezas propiciadas pelos sentidos que o sujeito cognoscente desencadeará
plenamente a anamnésis. No decorrer do diálogo, Sócrates conduzirá o debate ao ponto
que seus interlocutores deduzam de “per si” a definição verdadeira: “a justiça é virtude e
sabedoria” (PLATÃO, 1996, p. 44 §350d). Assim, mesmo que a vivência na sociedade
real não registre as normas jurídicas expressando virtude e sabedoria em seus
mandamentos, o significado verdadeiro da justiça, que transcende a realidade sensível,
pode ser atingido por intermédio do processo discursivo desencadeado pela maiêutica.
O texto “Menon” também nos traz significativos exemplos da condução à aporia
como estratégia discursiva. Neste livro, mais uma vez teremos Platão em debate com o
pensamento sofista, tendo agora como tema a questão da virtude. O personagem Menon
dá voz à tese sofista ao definir que “a virtude é querer as coisas boas e poder alcançálas” (PLATÃO, 2005, p. 41 §78b). A uma primeira vista, esta definição é plenamente
satisfatória, haja vista que é próprio da virtude almejar o bem. Contudo, o filósofo
demonstrará que esta não é a verdade sobre a virtude.
A primeira contradição apontada por Platão (2005, p. 41 §78b) está no fato de
que o “querer” o bom não garante que aquilo que se “alcançou” fosse verdadeiramente
bom. Se a virtude é “querer” o bom, a totalidade dos homens seria justa, todos os
homens seriam virtuosos, pois todos almejam o bem que se quis, até os malfeitores.
Assim, não há distinção entre malfeitor e benfeitor, todos seriam virtuosos, pois “o
querer pertence a todos, e de modo algum é por ele que alguém é melhor do que outro”
(PLATÃO, 2005, p. 41 §78b).
Continuando o processo da argumentação, Platão (2005, p. 42 §78c) toma por
artifício a redefinição da primeira acepção de virtude apresentada por Menon,
redefinindo-a então como “o poder de conseguir coisas boas”. Pois, o “querer coisas
boas” não determina, como vimos, a distinção entre o virtuoso e o não virtuoso. Agora,
o homem de virtude seria aquele que tem a possibilidade de realizar o que é bom.
Porém, esta segunda definição recai em outra contradição. Pois, para se poder conseguir
coisas boas é imprescindível antes saber o que é bom, em outras palavras, saber o que é
a virtude. Posto que a ação de conseguir coisas boas não é necessariamente uma ação
virtuosa. Para que o “poder de conseguir coisas boas” seja em si a virtude, temos antes
de saber o que confere virtude a esse “conseguir”. Por exemplo, o “conseguir” posses e
riquezas só é uma ação virtuosa se “junto a esse conseguir esteja justiça, ou prudência,
ou piedade, ou outra parte qualquer da virtude” (PLATÃO, 2005, p. 43 §78e). Desta
forma, a segunda tentativa não define a virtude. Destarte, o problema continua: “o que é
a virtude, uma vez que virtude seria toda ação acompanhada de uma parte da virtude?”
(PLATÃO, 2005, p. 45 §79c). Neste ponto, temos, outra vez, o filósofo dirigindo o
diálogo para o momento da aporia ao invalidar o primeiro conhecimento que seu
interlocutor tinha acerca dela. No texto, o personagem Menon assume seu
desconhecimento:
Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia dizer
que nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também
outros a cair em aporia. (...) miríades de vezes, sobre a virtude,
pronunciei numerosos discursos, (...) Mas agora, nem se quer o que
ela é, absolutamente, sei dizer (PLATÃO, 2005, p. 47 §80b).
O reconhecimento do estado de aporia, por parte de Menon, possibilitará ao
personagem Sócrates dar prosseguimento à explanação de sua tese acerca do
conhecimento. Ao por em xeque o “ensino” da virtude ministrado por Menon, defende a
impossibilidade do ensino (διδακτον) como método de acesso ao conhecimento
verdadeiro. Seu próximo passo será demonstrar, com um exemplo prático, a validade de
sua tese: o conhecer é rememoração. Tal demonstração é o que veremos a seguir.
4. A aporia do escravo de Menon
Analisaremos agora o caso do diálogo com o escravo de Menon como exemplo
do uso da aporia na estratégia do discurso platônico.
Como afirmamos, a finalidade do processo discursivo platônico é atingir a
verdade, que em sua concepção não é construída, mas é resgatada na própria alma. O
filósofo (PLATÃO, 2005, pp. 51-53 §81d) esclarece que:
Sendo então a alma imortal. (...) Pois, sendo a natureza toda congenere
e tendo a alma aprendido todas as coisas, nada impede que, tendo
alguém rememorado uma só coisa – fato esse precisamente que os
homens chamam aprendizado –, essa pessoa descubra todas as outras
coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar. Pois, pelo visto, o
procurar e o aprender são, no seu total, uma rememoração.
Decorrendo o diálogo, Menon pergunta a Sócrates: “podes ensinar-me como isso
é assim?” (PLATÃO, 2005, p. 53 §81e). Então, Platão, pela fala de Sócrates,
demonstrará sua teoria do conhecimento. O episódio nos serve para anotarmos a
importância do momento da aporia na estratégia discursiva platônica. Porém, antes, de
dar continuidade ao diálogo, o filósofo se defende da armadilha montada na fala de
Menon:
Ainda há pouco te dizia, Menon, que és traiçoeiro; eis agora que me
perguntas se posso te ensinar – a mim, que digo que não há
ensinamento mas sim rememoração – justamente para que
imediatamente apareça eu proferindo uma contradição comigo mesmo
(PLATÃO, 2005, p. 53 §82a).
Para demonstrar sua tese, Sócrates (PLATÃO, 2005, p. 53 §82a) pede a Menon
que chame um de seus servos. É importante frisar que as informações históricas nos dão
conta de que os escravos não tinham acesso à escolarização, salvo algum servo
experiente e de confiança, que fosse desempenhar funções de secretariado junto ao
senhor. O texto registra que o escravo em questão “é nascido na casa” (PLATÃO, 2005,
p. 53 §82b), provavelmente um garoto no início da puberdade. Pela fala socrática,
Platão defenderá que seu método não está “ensinando”, mas facilitando a emersão da
verdade, desafiando Menon a verificar sua eficácia: “presta, pois, atenção para ver qual
das duas coisas ele se revela a ti como fazendo: rememorando ou aprendendo comigo”.
(PLATÃO, 2005, p. 55 §82b).
A situação proposta é uma questão de geometria - tema caro à intelectualidade
grega – referente à relação entre os lados do quadrado e sua área. O personagem
Sócrates inicia, então, seu processo de maiêutica:
Dize-me aí, menino: reconheces que uma superfície quadrada é desse
tipo? Escravo: reconheço.
Sócrates: a superfície quadrada então é uma superfície que tem iguais
toda vez estas linhas, que são quatro? Escravo: perfeitamente
(PLATÃO, 2005, p. 55 §82c).
Sócrates perguntará ao escravo quantos pés terá a linha da superfície dobrada e o
escravo responde: “oito pés”31. Esta resposta é a primeira impressão manifesta pelo
interlocutor. Platão acredita que seu método não transfere saber ao escravo, suas
perguntas apenas conduzem a mente do sujeito a buscar em si mesma o saber: “vês,
Menon, que eu não estou ensinando isso absolutamente, e sim estou perguntando tudo?
Neste momento, ele pensa que sabe qual é a linha da qual se formara a superfície de oito
pés”. (PLATÃO, 2005, p. 57 §82e).
O raciocínio provavelmente usado pelo escravo é o seguinte: se um quadrado de
duas unidades de lado equivale a uma área de quatro pés, quando, então, dobrarmos o
lado, dobraremos também a área; Assim, a superfície de oito pés, que é o dobro da
superfície de quatro pés, equivale à superfície de um quadrado de lado quatro, pois
quatro unidades de lado é o dobro de duas unidades de lado. O raciocínio do escravo
baseia-se na impressão imediata dos sentidos. Pois ao constatar empiricamente que um
quadrado com duas unidades de lado forma quatro pequenos quadrados de área, conclui
que se dobrarmos o tamanho do lado, dobraremos a medida da área, resultando em oito
pés de área.
Diante da resposta do escravo, baseada nas impressões dos sentidos, Sócrates
continuará seu método, procurando levar o escravo à percepção de seu próprio erro
(aporia). Antes, porém, salienta o progresso do escravo: "contempla-o, pois, como vai
rememorando progressivamente, tal como é preciso rememorar" (PLATÃO, 2005, p. 57
§83a).
Sócrates, então, leva o escravo a perceber que se uma linha de três unidades
equivale a uma superfície de nove pés de área, uma linha de quatro unidades não pode
equivaler a uma superfície de oito pés, pois se três é menor que quatro, a superfície
gerada deveria ser menor que os oito pés de área atribuídos à superfície com quatro
unidades de linha32.
Assim, quando indagado mais uma vez, o escravo reconhece sua ignorância:
"mas, por Zeus, Sócrates, eu não sei!" (PLATÃO, 2005, p. 59 §84a). Nesta passagem,
Platão demonstra que o momento da percepção da falsidade do conhecimento primeiro,
é essencial para se atingir o conhecimento verdadeiro. O papel do interlocutor é
conduzir o sujeito às contradições de seu primeiro conhecimento para daí ajudá-lo a dar
a luz ao verdadeiro saber. Neste sentido, o personagem Sócrates salienta:
Se, 2 unidades lado = 4 pés de área
Resposta do escravo: 8 pés de área.
31
Se, 3 unidades
(lado)
32
Para 4 unidades (lado) = quantos pés de área?
= 9 pés de área...
Contra-argumentação socrática.
A área (pés) correspondente a 4
unidades (lado) não pode ser 8 pés
(área).
Pois se o lado de 3 unidades tem uma
área de 9 pés, a área do lado de 4
unidades seria maior que 9, haja vista
que 4 é maior que 3.
Estás te dando conta mais uma vez, Mênon, do ponto de rememoração
em que já está este menino, fazendo sua caminhada? Estás te dando
conta de que no início não sabia qual era a linha da superfície de oito
pés, como tampouco agora ainda sabe. Mas o fato é que então
acreditava, pelo menos, que sabia, e respondia de maneira confiante,
como quem sabe, e não o julgava estar em aporia. Agora, porém já
julga estar em aporia, e, assim como não sabe, tampouco acredita que
sabe. (PLATÃO, 2005, p. 59 §84a – 84b).
Pois agora ciente de que não sabe, terá, quem sabe, prazer em, de fato,
procurar e, ao passo que, antes, era facilmente que acreditava, tanto
diante de muitas pessoas quanto em muitas ocasiões, estar falando
com propriedade (PLATÃO, 2005, p. 61 §84c).
Neste ponto, o filósofo responde ao dilema sofista levantado acima por Menon,
quando questionava como seria possível procurar aquilo que não se sabe o que é. Posto
que o exercício de levantar as contradições geradas pelo falso conhecimento guia a
procura pelo verdadeiro conhecimento, ao descartar o conjunto de falsidades que se
colocasse como resposta: é possível procurar o desconhecido porque, pelo uso da
estratégia da aporia, o sujeito pode não ter apreendido o conhecimento que se procura,
mas sabe o que deve ser descartado. Pode não reconhecer ainda a verdade, mas sabe o
que é falso. Assim, aquele conhecimento que não se deixa cair em aporia é o
conhecimento verdadeiro. Por estar sempre pondo em xeque o conhecimento adquirido,
o sujeito cognoscente aciona a ferramenta que possibilitará a busca e a procura daquilo
que não se dê a ele por conhecido. Desta forma, não necessitará de um guia externo,
mas do olhar sobre si próprio.
Dando continuidade ao diálogo, Platão defenderá, mais uma vez, que nada estará
ensinando: apenas formula perguntas que conduzirão o escravo a descobrir por si o
conhecimento que se objetiva. Não percebe a capacidade de transmissão de informação
que podem estar contidas numa pergunta. Acredita que apenas conduz e não induz a
resposta certa. Todavia, mesmo que não se dê conta do caráter indutivo de sua
maiêutica, não podemos deixar de admitir que seu método de acesso ao conhecimento
verdadeiro está no campo da linguagem, especificamente no âmbito das estratégias
discursivas. Posto que é na pergunta que reside a natureza do seu método. Isto fica claro
na seguinte fala de Sócrates a Menon:
Examina pois a partir dessa aporia o que ele vai certamente descobrir,
procurando comigo, que nada estarei fazendo senão perguntando, e
não ensinando. Vigia pois para ver se por acaso me encontras
ensinando e explicando para ele, e não interrogando sobre as suas
opiniões (PLATÃO, 2005, p. 61 §84d).
Após concluir o processo maiêutico no qual o escravo deduz a formulação
geométrica problematizada – a rememoração acerca do que conhecemos como Teorema
de Pitágoras – Platão pela fala socrática, sintetizará suas idéias: a defesa do
conhecimento verdadeiro como inato, e que o acesso a essa verdade está no âmbito da
linguagem, pois é o ambiente no qual o processo discursivo orientado pelo mestre
estimula o rememorar do discípulo.
Que te parece, Mênon? Há uma opinião que não seja dele que este
menino deu como resposta? Mênon: não, mas sim dele.
Sócrates: e no entanto, ele não sabia, como dizíamos um pouco antes.
(...) mas estavam nele, essas opiniões; ou não? Mênon: sim , estavam.
Sócrates: logo, naquele que não sabe, sobre as coisas que por ventura
não saiba, existem opiniões verdadeiras - sobre estas coisas que não
sabe? Mênon: parece que sim.
Sócrates: e agora, justamente, como num sonho, essas opiniões
acabam de erguer-se nele. E se alguém lhe puser essas mesmas
questões frequentemente e de diversas maneiras, bem sabes que ele
acabará por ter ciência sobre estas coisas não menos exatamente que
ninguém. (...) e ele terá ciência, sem que ninguém lhe tenha ensinado,
mas sim e interrogado, recuperando ele mesmo, de si mesmo, a
ciência. (PLATÃO, 2005, pp. 63-65 §85c-d).
5. Considerações finais
Diante do exposto, fica mais claro o que afirmamos acima: para o filósofo, o
aceso ao conhecer verdadeiro é intrasubjetivo. Ele crê que o homem procura e
reconhece em si mesmo a verdade. Todavia, observando o método platônico sob a ótica
da análise do discurso, podemos perceber que seu método epistemológico é
intersubjetivo; pois é no ambiente da linguagem que o educando atinge o saber. O
próprio objeto a ser conhecido é lançado pelo mestre, indicando que não haveria
problematização sem o outro que apontasse a questão. Assim, fora da possibilidade de
interação entre as subjetividades, que a linguagem permite, o episódio do escravo não
seria possível. A validade da maiêutica platônica não está na veracidade de sua teoria do
mundo das ideias – a vivência imortal da alma no Hades – mas no ambiente de interação
que possibilita a eficácia de suas estratégias discursivas. É por que há a linguagem que o
sábio pode “extrair” do “ignorante” o conceito que ele mesmo aponta como problema.
Dessa forma, temos contemplado nosso objetivo principal que é demonstrar que
em Platão o acesso ao conhecimento verdadeiro se dá pela linguagem.
É já lugar comum nos estudos acerca de seu pensamento apontar que a verdade
não é acessada pela experiência sensível. Todavia, o que importa salientar agora, caso
não se aceite a teoria do mundo das ideias, é o significativo valor retórico-didático das
estratégias discursivas utilizadas pelo filósofo. A análise do método discursivo platônico
nos faz despertar para a importância da interação propiciada pela linguagem no que
concerne aos processos didáticos, pois nos alerta para a importância do diálogo
docente/discente e para a valorização do conhecimento produzido pelo discente. Haja
vista que ao encaminhar o processo para a aporia está valorizando o esforço discente em
produzir suas respostas, não colocando a verdade, ou o conhecimento correntemente
aceito, como algo externo a sua subjetividade – estranho a sua compreensão – mas
como algo “parido” de si mesmo. Contribuindo para a formação de subjetividades
autônomas e críticas diante do estabelecido. Deve-se salientar também, além do âmbito
didático-epistemológico do uso da estratégia da aporia, temos sua validade como
estratégia discursiva em si, ao constituir-se como importante modo de
argumentação/contra-argumentação, pois desconstrói o registro do interlocutor a partir
de suas possíveis contradições.
6. Referências bibliográficas
FERREIRA DA SILVA, André Gustavo. O Conhecer e o Educar em Platão: a
anamnesis apresentada no “Menon” como condição de possibilidade da paidéia
apresentada na “República”. In: Anais 32ª. Anped. GT: Filosofia da Educação / n.17.
http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/trabalho_gt_17.html
PLATÃO. A República. Trad. Maria Pereira. 8° edição Lisboa: Calouste Gulbenkian.
junho/1996.
_____. Ménon. São Paulo: UNESP, 2005.
O PROCESSO DE ABERTURA DAS VOGAIS MÉDIAS NÃO-FINAIS
NA CIDADE DE SAPÉ-PB
André Pedro da Silva33
RESUMO: O presente trabalho descreve o comportamento variável das vogais mediais postônicas nãofinais no dialeto (em nomes na variedade) da cidade de Sapé, localizada no interior da Paraíba. Neste
contexto, observa-se a realização do processo fonológico de Abertura das vogais [o] e [e] postônicas nãofinais, como: a.bó.b[o].ra ~ a.bó.b[].ra; cé.r[e].bro ~ cé.r[ ].bro. Para tal finalidade, tomou-se como
base Câmara Jr (1979; 2001), Bisol (1992; 2005), Welzels (1992); Labov (1972) e Weinreich, Labov e
Herzog (1968). A população desta pesquisa compõe-se de 36 informantes, sendo 18 homens e 18
mulheres da zona urbana da cidade de Sapé. Ao submeter os dados à análise do pacote estatístico
VARBRUL, o único grupo de fator selecionado foi o Contexto Fonológico Precedente, tendo como
principal fator a Oclusiva (.85). Contudo, para melhor entendimento sobre o processo de Abertura destas
vogais, dividiu-se os dados em dois grupos de vogais: vogais coronais e vogais labiais. Após tal divisão,
observou-se que o Contexto Fonológico Seguinte foi tido como o mais propício ao processo de abertura
para ambas as vogais supracitadas. As Líquidas Vibrantes foram as maiores favorecedoras do fenômeno,
com (.72) para as vogais postônicas mediais labiais, como: pér/o/la ~ pér//la; e (.84) para as mediais
coronais, como: helicópt/e/ro ~ helicópt/ /ro. Outros fatores também foram selecionados pelo
VARBRUL como favorecedores ao processo de Abertura das postônicas médias não-finais, como
Estrutura Silábica e Contexto Fonológico Precedente, para as labiais; e Estrutura da Sílaba e Tipo de
Entrevista para as Coronais.
PALAVRAS-CHAVE: Variação linguística; Sociolinguística; Fonologia; vogais médias não-finais;
apagamento vocálico.
ABSTRACT: This treatise describes the variable behavior of central, poststressed, non-ending vowels in
the dialect (in nouns in variety) in the town of Sapé in the State of Paraíba. According to that medium,
one observes the phonological process in the opening of vowels, such as: [o] e [e] both poststressed and
non-ending, as follow: a.bó.b[o].ra ~ a.bó.[].ra; cé.r[e].bro ~ cér[ ].bro. In order to proceed on the
research, one based this study on Câmara Jr (1979; 2001), Bisol (1992; 2005), Welzels (1992); Labov
(1972) and Weinreich; Labov; Herzog (1968). The individuals who took part on this research are
composed of 36 people: 18 men and 18 women from the urban area of Sapé. Taking the data under
analysis of VARBRUL statistic set, the only selected factor group was the Forwarding Phonological
Context, assuming the Oclusive (.85) as the main factor. However, coming to understand about the
Opening process of these vowels, one divided the data into two vowel groups: coronal vowels and labial
vowels. After the division, one perceived that the Following Phonological Context was considered as the
most likely for the opening process for both above mentioned vowels. The Liquid Vibrated vowels were
the most favorable of the phenomenon, com (.72) for the the poststressed, labial, central vowels, such as:
pér/o/la ~ pér//la; and (.84) for the central coronals, such as: helicópt/e/ro ~ helicópt/ /ro. Other factors
also selected by VARBRUL as favorable ones for the Opening process of the posstressed, central, nonending vowels, for instance: Syllabic Structure and Forwarding Phonological Context, for the labial
vowels; Syllabic Structure and Type of Interview fot the Coronals ones
KEYWORDS: Linguistic variation; Sociolinguistics; Phonology; central non-ending vowels; vowel
dropping.
1. Introdução
33
Aluno do curso de Pós-Graduação em Linguística da UFPB, em nível de doutoramento.
Todas as línguas naturais humanas encontram-se em permanente dinamismo,
sujeitas a processos de variação e mudança. O caráter heterogêneo imanente nas línguas,
em contrapartida, convive com forças de estabilidade que estruturam os sistemas em
suas invariâncias, legando-lhes identidade e coesão próprias.
O objetivo principal deste trabalho é apresentar um estudo de cunho
variacionista realizado na cidade de Sapé (interior da Paraíba), tomando como ponto de
partida a manutenção da vogal postônica não-final, vogal esta que tende a ser sincopada
conforme estudos em várias regiões do Brasil, realizados por Amaral (1999), na zona
rural do município de São José do Norte-RS; por Silva (2006), na cidade de Sapé-PB;
por Lima (2008), no sudoeste goiano; e por Ramos (2009), no noroeste paulista.
Sob a égide da Teoria da Variação Linguística, investigaram-se as restrições
linguísticas, estilísticas e sociais no processo de escolha entre o apagamento ou não
desses vocábulos. É notório, na Língua Portuguesa, que os vocábulos proparoxítonos
são os menos produtivos e, por sua vez, os mais especiais. Registram-se no dicionário
Aurélio, de acordo com Amaral (1999), 8.520 proparoxítonos de um total de
aproximadamente 120.000 verbetes, razão pela qual são considerados pelos estudiosos
formas marcadas no léxico, ou seja, exceções. Há alguns anos, os vocábulos
proparoxítonos obedecem, na fala, ao padrão canônico português, tornando paroxítono o
que é proparoxítono – e estes são, na maioria, vocábulos eruditos. Mesmo os populares,
como árvore, estômago, câmara, pela lei de menor esforço, pelo princípio de economia
ou por tendência a seguir o padrão da língua, são transformados pelos falantes em
paroxítonos, como, respectivamente, arvre, estomo, cama.
As vogais portuguesas constituem o que Trubetzkoy chamou de sistema vocálico
triangular. Desde Câmara Jr. (1971), é sabido que as vogais postônicas não-finais do
Português Brasileiro (doravante PB) assumem um quadro categórico, composto de
quatro vogais /i, e, a, u/, com a ausência da vogal média posterior /o/.
Há um grande número de regras fonológicas atuantes no sistema vocálico do PB.
Por vezes, essas regras são de natureza prosódica, fonotáticas ou morfológicas (Cf.
BATTISTI e VIEIRA, 2005). E as vogais médias são quase sempre alvo dessas regras
fonológicas: ora alternando entre si, ora alternando com vogais altas.
De acordo com essas regras, além do apagamento da vogal postônica não-final
entre as vogais médias e as vogais altas, os dados aqui trabalhados apontam para este
efeito, o da alternância vocálica. Essa alternância ocorre quando o processo de
apagamento não pode acontecer em determinadas situações, ou seja, quando a
fonotática34 da língua não permite a síncope, ou, então, quando outro processo
fonológico atua em lugar da síncope, como é o caso da neutralização, apontado como
recorrente em palavras proparoxítonas por vários estudiosos do PB, como Câmara
(1979), Amaral (1999), Bisol (1999), Battisti e Vieira (2005).
Para alcançar esse objetivo, analisaram-se os dados acerca desse fenômeno
recolhidos no município de Sapé, que conta com um total de 47.353 pessoas, 35.516 das
quais são moradores da zona urbana. A população desta pesquisa compõe-se de 36
34
Regras fonotáticas são regras específicas de cada língua as quais determinam as posições em que cada
som ou sequências de sons pode aparecer, como por exemplo: na Língua Portuguesa é permitida a
sequência BR (braço, branco, Brasil), mas não a sequência RB.
informantes, sendo 18 homens e 18 mulheres da zona urbana da cidade. Dentre esses
informantes, encontram-se pessoas que exercem as seguintes profissões: professor,
pedreiro, comerciante, horticultor, motorista, bibliotecário, auxiliar administrativo,
vigilante, como também senhoras do lar, aposentados e estudantes.
2. Variação da vogal postônica não-final
De acordo com Silva (2005, 87), em alguns dialetos do Português Brasileiro,
encontra-se uma variação de pronúncia das vogais postônicas não-finais; isso, devido ao
estilo de fala: formal e informal. Tem-se a maioria dos dialetos do Português Brasileiro,
em estilo formal, as vogais [i, e, a, o, u] ocorrendo em posição postônica não-final. Já
em alguns outros dialetos, como o da região Nordeste, por exemplo, as vogais [ε, ]
ocorrem em posição postônica medial em estilo formal. No quadro 1, pode-se ver como
se daria essa possibilidade de variação entre o dialeto carioca35 e o dialeto sapeense:
QUADRO 1 – COMPARAÇÃO ENTRE OS DIALETOS CARIOCA E
SAPEENSE NO ESTILO FORMAL
Estilo Formal
música
pêssego
cérebro
pétala
agrônomo
abóbora
círculo
Português Brasileiro
mús[i]ca
pêss[e]go
cér[e]bro
pét[a]la
agrôn[o]mo
abób[o]ra
círc[u]lo
Dialeto Sapeense
mús[i]ca
pêss[e]go
cér[ε]bro
pét[a]la
agrôn[o]mo
abób[]ra
círc[u]lo
Em ambos os dialetos, todas as cinco vogais [i, e, a, o, u] aparecem. A distinção
entre estes dialetos acontece quanto à ocorrência das vogais [ε, ]. A ocorrência das
vogais [e, o] e [ε, ] em posição postônica não-final depende principalmente da vogal
tônica que a precede (Cf. SILVA 2002, p. 87).
Em um estilo informal, a distribuição da vogal postônica não-final, na maioria
dos dialetos do PB, que ocorrem no estilo formal como [i, a, u], é reduzida
respectivamente a [ , «, U] no informal36.
QUADRO 2 – COMPARAÇÃO ENTRE OS ESTILOS FORMAL E INFORMAL
pacífico
chácara
triângulo
35
Estilo Formal
pacíf[i]co
chác[a]ra
triâng[u]lo
Estilo Informal
pacíf[ ]co
chác[«]ra
triâng[U]lo
Seguindo a ideia de Câmara Jr (1979), mesmo seu estudo sendo realizado de forma intuitiva, não
seguindo os padrões sociolinguísticos.
36
Consoante Silva (2005, p. 87).
Remetendo-se agora à redução das vogais médias [e, ε, o, ] em posição
postônica não-final, Silva (2002, p. 90) observa que as vogais postônicas [o, ] são
reduzidas a [U] na maioria dos dialetos do PB.
Na comunidade linguística sapeense, não ocorre essa redução. Como se pode ver
no quadro abaixo, tais vogais mediais labiais podem manter-se fechadas, como também
podem sofrer processos fonológicos de abertura (o mais comum, em se tratando de fazer
parte da região Nordeste) e o de alçamento.
QUADRO 3 – COMPARAÇÃO ENTRE OS ESTILOS FORMAL E INFORMAL
NOS DIALETOS PB37 E SAPEENSE
pérola
cócora
árvore
agrônomo
Português Brasileiro
Estilo Formal Estilo Informal
pér[o]la
per[U]la
cóc[o]ra
cóc[U]ra
árv[o]re
árv[U]re
agrôn[o]mo
agrôn[U]mo
Dialeto Sapeense
Estilo Formal Estilo Informal
pér[o]la
pér[]la
cóc[o]ra
cóc[]ra
árv[o]re
árv[U]re
agrôn[o]mo
agrôn[U]mo
Assim, pode-se afirmar que o grupo [e, ε] apresenta a maior variação fonética
dentre as vogais postônicas mediais. Segundo Silva (2002, p. 90):
Em alguns casos, o “e ortográfico postônico medial” pode reduzir-se a
[ ]. Nestes casos temos pronúncias como “hipó[
]se,
almôn[
]ga” em que a palatalização do t/d demonstra a ocorrência
da vogal alta anterior i. O “e ortográfico postônico medial” pode
também se reduzir a zero (...). Neste caso temos grupos consonantais
anômalos ocorrendo em posição postônica: númro/número;
hipótze/hipótese. Em algumas palavras, a omissão da vogal postônica
medial causa a omissão concomitante da consoante que a segue:
númo/número; câma/câmara.
Há o caso em que o “e ortográfico postônico medial”, como coloca Silva (2002),
pode aparecer como uma vogal central alta não-arredondada [ ], ocorrendo em posição
postônica não-final no Português Brasileiro, em fala informal, como nas palavras
número, cérebro, helicóptero. Já no português europeu, essa vogal corresponde ao e
ortográfico, que pode ser opcionalmente omitido: [‘numrU] ~ [‘num rU] “número”;
[‘pzaR] ~ [p ‘zaR] “pesar”.
Segundo Câmara Jr (1977, 58), no PB ha duas séries de fonemas vocálicos: os
de articulação na parte anterior da boca, isento de arredondamento dos lábios (/ /, /e/,
/i/,/y/); e os de articulação na parte posterior, provenientes de um arredondamento dos
lábios (//, /o/, /u/, /w/). A vogal /a/, tida como um fonema não-arredondado, não se
encaixa nem nenhuma das posições mencionadas, já que possui uma articulação central,
levemente anterior (Câmara, 1977, p. 58).
Câmara Jr (1979, 44) define o sistema vocálico do PB na posição medial como
sendo formado por quatro segmentos.
(1)
37
Ver Silva (2005, p. 87).
altas
médias
baixa
/u/
/i/
/.../
/e/
/a/
Ainda segundo o autor, há uma neutralização para a posição postônica e essa
neutralização se dá apenas entre o /o/ e o /u/, não passando de mera convenção
ortográfica sua grafia ora com e ora com i38.
No entanto, em análise dos dados da cidade de Sapé, percebeu-se que a
sistematização do quadro vocálico para a posição da postônica não-final é composto por
cinco vogais. Embora seja real a presença dos processos fonológicos nessas vogais
(como o de abertura e o de alçamento das vogais /e/ e /o/ postônicas não-finais), esses
processos apresentam um comportamento variável entre a aplicação e a não-aplicação
desses processos fonológicos.
Dessa forma, tem-se não apenas quatro segmentos vocálicos postônicos mediais,
como proposto por Câmara Jr. (1979) na variedade sapeense. Para melhor
entendimento, o quadro abaixo apresenta alguns exemplos das formas base das vogais
postônicas não-finais presentes no dialeto sapeense:
QUADRO 4 – FORMA BASE DAS VOGAIS POSTÔNICAS NÃO-FINAIS NO
DIALETO SAPEENSE
Postônica Não-Final
i
e
a
o
u
Português Brasileiro
música
pêssego
pétala
agrônomo
círculo
Dialeto Sapeense
mús[i]ca
pêss[e]go
pét[a]la
agrôn[o]mo
círc[u]lo
A partir do quadro acima, é possível afirmar que há um indício de mudança em
progresso na variedade linguística sapeense, já que é visível nos dados aqui em estudo a
presença de processos fonológicos como o de abertura e o de alçamento das vogais
postônicas mediais. Nesta apresentação, deter-se-á apenas ao processo de abertura da
vogal em questão.
3. Processos fonológicos na vogal postônica não-final
De acordo com Silva (2006), há alguns fatores que favorecem o processo de
apagamento da postônica não-final na cidade de Sapé-PB. Isso significa que há palavras
em que esse processo não ocorre, abrindo assim possibilidades para realização de outros
processos variacionais.
A variação no âmbito das vogais médias é uma característica marcante no PB,
haja vista que estas vogais são palco de alguns processos variáveis como o da abertura.
O corpus em estudo conta com um total de 3.590 palavras proparoxítonas. Deste total,
38
O autor não cita nenhuma regra de neutralização entre as vogais /e/ e /i/.
tem-se um número de 2.513 palavras que não sofreu o processo de apagamento da vogal
postônica não-final, como se pode ver na tabela que segue:
TABELA 1 – APAGAMENTO/PRESENÇA DA VOGAL POSTÔNICA NÃOFINAL
PPROCESSOS
Apagamento
Presença
Aplicação/Total
1077/3590
2513/3590
%
30%
70%
A partir dos números mencionados na tabela acima em relação à presença da
vogal postônica não-final, tem-se um total de 1.987 dados de vogal média que não
sofreu processo algum e 526 que apresentaram algum processo fonológico, como:
alçamento (fósf/U/ro), abertura (fósf//ro) ou mudança por uma outra vogal (fósf/ /ro).
Para melhor entendimento de todos esses números, observe-se a tabela 2:
TABELA 2 – FENÔMENOS RECORRENTES À VOGAL MÉDIA
POSTÔNICA NÃO-FINAL
PPROCESSOS
Sem Processos
Abertura
Alçamento
Mudança de Vogal
Aplicação/
Total
1987/2513
348/2513
156/2513
22/2513
%
79%
14%
6%
1%
No decorrer da pesquisa, à medida que se observavam os resultados das rodadas
e após observar que os processos acima mencionados faziam-se presentes nos dados da
pesquisa, pensou-se em algumas hipóteses, tais como:
•
•
•
a abertura seria mais freqüente que o alçamento, haja vista os falantes
pessoenses usarem mais as vogais pretônicas abertas (HORA, 2004, p. 127).
Se no uso pretônico é mais freqüente haver abertura das médias, seria, nas
postônicas, mas recorrentes também a abertura em vez do alçamento;
o alçamento seria, embora menos freqüente, bastante recorrente no falar
sapeense, porém sendo mais freqüentes nas vogais labiais;
restrições de natureza social não condicionam tais processos, sendo, estes,
motivações de natureza fonética.
Como a proposta deste trabalho é analisar os processos que ocorrem nos
vocábulos resistentes ao apagamento, de modo exaustivo, passar-se-á então a tal
discussão, de modo a fixar-se apenas no processo de abertura das vogais postônicas
não-finais.
4. O processo de abertura da vogal postônica não-final
Ao submeter os dados à análise do pacote estatístico VARBRUL, o único grupo
de fator selecionado foi o Contexto Fonológico Precedente e nenhum dos fatores sociais
foi considerado relevante em relação à abertura da vogal postônica não-final.
Contexto Fonológico Precedente
De acordo com os resultados obtidos através do pacote estatístico VARBRUL, a
vogal postônica não-final tende a ser aberta quando precedida por uma consoante
oclusiva (.85), como em: abób/o/ra ~ abób//ra; helicópt/e/ro ~ helicópt/ /ro. Já a
consoante fricativa inibe o processo de abertura, com peso relativo de (.36), como:
árv/o/re ~ árv//re; pêss/e/go ~ pêss/ /go. A tabela que segue mostra melhor todos os
resultados obtidos após esta rodada:
TABELA 3 – CONTEXTO FONOLÓGICO PRECEDENTE
(abertura da vogal postônica média)
CONTEXTO
FONOLÓGICO
SEGUINTE
Oclusiva
Nasal
Fricativa
Aplicação/
Total
%
PR
84/88
93/133
112/165
95%
70%
68%
.85
.53
.51
Input: 0.79
Significância: 0,000
Para melhor observar o fenômeno de abertura das vogais postônicas mediais,
realizou-se uma segunda rodada, pondo de um lado as vogais labiais e de outro as
coronais. Acredita-se que, dessa forma, se possa ver com maior clareza qual das duas
opções vai favorecer ao processo em questão.
Após realização desta rodada, observou-se que as vogais coronais, com 67%, são
mais propícias ao fenômeno de abertura, ficando as vogais labiais com um total de 43%.
i.
Abertura das vogais postônicas médias labiais
Ao submeter os dados à análise do pacote estatístico VARBRUL, os grupos de
fatores selecionados em relação à abertura das vogais pretônicas mediais labiais foram,
seguindo a ordem de relevância, apresentados pelo programa:
a. Contexto Fonológico Seguinte
b. Estrutura da Sílaba
c. Contexto Fonológico Precedente
a.
Contexto Fonológico Seguinte
O Contexto Fonológico Seguinte foi selecionado como sendo o mais relevante
abertura das vogais pretônicas mediais labiais, tendo como variante mais favorecedora
as consoantes líquidas vibrantes (.72), como em: cóc/o/ra ~ cóc//ra; seguida das nãolíquidas (.38), como: côm/o/da ~ côm//da; e das líquidas laterais (.01), pér/o/la ~
pér//la, como se pode ver na tabela abaixo:
TABELA 4 – CONTEXTO FONOLÓGICO SEGUINTE
(abertura da vogal postônica média labial)
CONTEXTO
FONOLÓGICO
SEGUINTE
Líquida Vibrante
Não-líquidas
Líquida Lateral
Aplicação/
Total
%
PR
107/130
16/130
7/130
88%
44%
37%
.72
.38
.01
Input: 0.86
Significância: 0,039
Esse resultado já era esperado uma vez que, segundo Silva (2006), as líquidas
vibrantes foram tidas como a segunda consoante, no que tange ao contexto fonológico
seguinte, das que menos sofriam o processo de síncope. Logo, era uma das que mais
mantinham o padrão, tornando-se passível a algum processo fonético.
b.
Estrutura da Sílaba
A Estrutura da Sílaba aparece com sendo o segundo fator relevante ao processo
de abertura das médias postônicas labiais, sendo que, quando a sílaba tônica em
palavras proparoxítonas é leve, o processo de abertura torna-se mais evidente (.67),
como em: abób/o/ra ~ abób//ra. Há uma inibição do processo de abertura da vogal.
Acredita-se que as sílabas tônicas, quando leves, sejam mais propícias a
abertura, devido à quantidade de soância presente na sílaba acentuada, ou seja, que a
quantidade de soância da sílaba acentuada não esteja funcionando como um elemento
motivador para a preservação do padrão do vocabulário, como se a saliência fônica não
estivesse a exercer papel algum, deixando aberto à variação, neste caso, a abertura dessa
vogal.
c.
Contexto Fonológico Precedente
Tido como último fator relevante ao processo de abertura da vogal postônica
medial labial, o Contexto Fonológico Precedente que mais favorece ao fenômeno em
debate é a consoante líquida vibrante (.98), como: pér/o/la ~ pér//la. Já a consoante
nasal, é inibidora do processo, com peso relativo de (.09), como em: agrôn/o/mo ~
agrôn//mo. Ver tabela referente a esse contexto.
Mais uma vez, corresponde ao esperado, já que a líquida vibrante, ao lado da
lateral, segundo Silva (2006) são as maiores detentoras do padrão, no que tange à
preservação da sílaba postônica medial. De acordo com o autor, líquidas vibrante e
lateral, respectivamente (.34) e (.33), são as que menos sofrem o processo de
apagamento da vogal em questão. Consequentemente, por serem as maiores detentoras
do padrão, as líquidas vibrantes e laterais seriam as que mais sofressem certos processos
fonológicos, como é este processo em questão, o da abertura das postônicas mediais. A
partir da leitura dos dados, foi possível fornecer uma tabela para melhor entendimento
do exposto acima.
TABELA 5 – CONTEXTO FONOLÓGICO PRECEDENTE
(abertura da vogal postônica média labial)
CONTEXTO
FONOLÓGICO
PRECEDENTE
Líquida Vibrante
Oclusiva
Fricativa
Nasal
Aplicação/
Total
%
PR
6/8
72/80
37/52
17/37
75%
90%
71%
41%
.98
.70
.45
.09
Input: 0.86
Significância: 0,039
De acordo com a tabela acima, pode-se observar que embora a líquida vibrante
seja apontada como a mais favorecedora à abertura da vogal em evidência, a consoante
oclusiva possui um número maior de ocorrências, aparecendo logo em seguida e talvez
mereça um maior cuidado nesta análise.
Os resultados referentes ao apagamento ou não da vogal em questão apontam
para as oclusivas como sendo a segunda maior favorecedora à supressão da vogal
postônica medial (Cf. SILVA, 2006). Segundo Silva, as oclusivas e as fricativas são
menos resistentes à síncope devido ao fato de estas terem maior força e menor
sonoridade39. Levando em consideração essa idéia, pode-se entender que as consoantes
oclusivas, quando não apagam, favorecem a variação lingüística, neste caso, a abertura
das vogais postônicas mediais labiais.
ii.
Abertura das vogais postônicas média coronais
Para as vogais coronais, o programa estatístico VARBRUL, para melhor
observação/controle desse fenômeno, elegeu os seguintes fatores como relevantes ao
processo de abertura das vogais postônicas mediais coronais, seguindo-se, claro, a
ordem de relevância dada pelo programa:
a. Contexto Fonológico Precedente
b. Estrutura da Sílaba
c. Tipo de Entrevista
Mais uma vez o programa estatístico computacional não seleciona sequer um
fator social. Isso só reforça a hipótese de que tal processo, o de arredondamento da
39
Cf. Clements (1990). Segundo o autor, a Escala de Sonoridade varia de valor, partindo do mínimo 0 ao
máximo 4, seguindo a seguinte sequência: obstruíntes < nasal < líquida < glide < vogal. O que equivale a
uma leitura do tipo: 0 > 1 > 2 > 3 > 4. O símbolo (<) indica um passo em direção a uma forte
pronunciação.
vogal postônica medial, seja ela labial ou coronal, não condiciona nenhuma restrição de
natureza social, sendo, esses processos, motivações de natureza puramente fonética.
a.
Contexto Fonológico Precedente
O Contexto Fonológico Precedente foi selecionado como sendo o mais relevante
em relação ao processo de abertura que envolve as vogais pretônicas mediais coronais.
De acordo com a rodada realizada, evidenciou-se que as consoantes líquidas vibrantes
são as grandes favorecedoras ao processo de abertura das vogais em questão, com peso
relativo de (.84), como em: cér/e/bro ~ cér/ /bro; e as oclusivas como sendo as menos
favorecedoras, com (.03), como: helicópt/e/ro ~ helicópt/ /ro. A tabela 6 mostra de
modo detalhado o resultado da rodada.
TABELA 6 – CONTEXTO FONOLÓGICO PRECEDENTE
(abertura da vogal postônica média coronal)
CONTEXTO
FONOLÓGICO
PRECEDENTE
Líquida Vibrante
Nasal
Fricativa
Oclusiva
Aplicação/
Total
44/47
74/94
80/116
12/18
%
PR
94%
79%
69%
67%
.84
.52
.45
.03
Input: 0.79
Significância: 0,026
Como se vê, tanto em relação às vogais labiais quanto às vogais coronais, as
consoantes líquidas vibrantes são sempre as favorecedoras do processo de abertura. As
oclusivas, devido ao fato de apresentarem uma ocorrência pequena, tornam-se meio
irrelevantes, trazendo à tona, as nasais com (.52), seguida das fricativas que, assim
como nas labiais, apresentaram um peso relativo de (.45). Como as fricativas aprecem
assiduamente envolvidas no processo de abertura, independentemente de serem tais
vogais labiais ou coronais, acredita-se que tanto as líquidas vibrantes, quanto as
fricativas sejam bastante relevantes ao processo de abertura da vogal postônica medial.
No que tange às consoantes nasais e oclusivas, há uma inversão quando se
compara as médias labiais e as médias coronais. Comparando dos resultados
apresentados nas Tabelas 5 (labiais) e 6 (coronais), percebe-se que, quando labiais as
oclusivas apresentam um bom número de ocorrências, i. é, mostram-se bastante
favoráveis à abertura das vogais em estudo; já as nasais não. O inverso acontece em
relação às vogais médias coronais, que se mostram mais propícias ao processo de
abertura quando a consoante que a precede é uma nasal e menos favoráveis quando
precedida por uma oclusiva. Vale ressaltar que em se tratando da abertura das vogais
pretônicas mediais, com consoante nasal precedendo-a, observa-se que todas as
aberturas acontecem com um só vocábulo: helicóptero.
b.
Estrutura da Sílaba
O pacote de programa estatístico VARBRUL selecionou a variável Estrutura da
Sílaba como sendo o segundo fator relevante à abertura da vogal postônica não-final
coronal. Segundo o programa, as sílabas Pesadas são as grandes favorecedoras ao
processo de abertura das vogais médias coronais, com (.96); ficando as Leves com (.45),
tendo como exemplo, respectivamente, as palavras: úlc/e/ra ~ úlc/ /ra e núm/e/ro ~
núm/ /ro.
Há uma inversão de papel nesta variável, pois, como se pode ver, com vogais
labiais, o maior favorecedor são sílabas leves; já com vogais coronais, são as pesadas. A
partir daí, pode-se considerar que, quando a sílaba tônica for leve, em um contexto de
vogal postônica medial labial, ela tenderá a abrir, mas as pesadas não. Contrariamente,
acontece às médias coronais, já que ocasionará a abertura, quando a sílaba tônica for
pesada, tendo como inibidora do processo de abertura a sílaba tônica leve.
c.
Variável Estilística
A Variável Estilística foi considerada como sendo o último fator relevante à
abertura da vogal postônica medial coronal, uma vez que os valores ficaram próximos
do ponto neutro. De acordo com essa rodada de dados, pode-se observar que a Inquérito
Fonético (.58) favoreceu a abertura e a Leitura de Palavras no Texto (.40) a menos
favorecedora.
O interessante nessa variável é que, quando Silva (2006) observou o apagamento
da vogal postônica medial, o fator Inquérito Fonético foi a que mais beneficiou a
síncope, embora estes dois fatores tenham ficado também bem próximos do ponto
neutro, respectivamente, (.52) e (.47). A partir dessa comparação, é possível perceber
que, quando se tem Inquérito Fonético, i. é, palavras soltas, os processos fonéticos
ficam mais propícios a acontecerem, já que tanto no apagamento, quanto na abertura,
esse fator foi selecionado pelo pacote de programa estatístico VARBRUL como sendo
relevante.
5. Considerações finais
Após análises acerca das vogais postônicas não-finais na variedade da cidade de
Sapé-PB, em dados de fala dirigida (inquérito fonético e leitura de palavras no texto),
observou-se que as vogais em questão podem ser apagadas ou não e, de acordo com a
Tabela 1, 70% dessas vogais mantêm-se presentes. Essas vogais que não são apagadas
podem variar em estilo informal, podendo sofrer processos de abertura, de alçamento,
bem como mudança vocálica.
O objetivo deste trabalho foi o de apresentar o processo de abertura das vogais
postônicas não-finais /e/ e /o/ e pode-se observar que tal processo é diferentemente
regido de acordo com a vogal em questão.
Quando a vogal postônica não-final for uma labial, i. é, for a vogal /o/, o
contexto mais favorecedor será uma Líquida Vibrante em posição seguinte a esta vogal.
Logo, palavras como cóc/o/ra, abób/o/ra e pér/o/la passam, respectivamente, a cóc//ra,
abób//ra e pér//la. Como os demais fatores ficaram abaixo do ponto neutro: Nãolíquidas com (.38) e Líquida Lateral (.01); é possível afirmar que a regra da abertura da
vogal postônica não-final é formalizada da seguinte maneira:
(2)
o

R
Lê-se (2) da seguinte forma: a vogal labial postônica não-final /o/ passará a // quando
diante de uma /R/.
Já a vogal postônica não-final coronal /e/ sofrerá processo de abertura quando,
passando a / / quando o Contexto Fonológico Precedente a essa vogal for uma Líquida
Vibrante /R/, como: pér/o/la > pér//la. Sendo assim, pode-se formalizar a regra de
abertura das vogais em estudo da seguinte forma:
(3)
e
R
A partir do exposto acima, mesmo sem a análise referente ao alçamento da vogal
postônica não final, é possível formalizar a seguinte regra de domínio do pé métrico
para as vogais postônicas não-finais na variedade lingüística sapeense:
(4)
X
Domínio: pé métrico
vocóide
[ ]
[+ab2]
[-ab3]
Vale lembrar que os símbolos [ ] significam abertura variável da vogal em
estudo; e onde a desassociação, acarreta apagamento. Logo, o quadro proposto por
Câmara Jr. (1) não terá no mesmo valor na variedade da cidade de Sapé. Sendo assim, o
quadro apresentado por Câmara Jr. passará a um quadro simétrico de cinco vogais
postônicas não-finais:
(5)
altas
médias
baixa
/u/
/i/
/o/
/e/
/a/
passível de variação nas vogais médias:
(6)
altas
médias
baixa
/u/
/i/
//
/ /
/a/
6. Referências bibliográficas
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HISTÓRIAS DA MODERNIZAÇÃO DO RECIFE SOB A PERSPECTIVA DAS
CARTAS DE LEITORES PUBLICADAS EM JORNAIS DO SÉCULO XIX
Andréa Souza e Silva40
RESUMO: O presente trabalho discute o estudo diacrônico das cartas de leitores publicadas em jornais
pernambucanos do século XIX, enfatizando a percepção dos sujeitos autores sobre a modernização do
Recife. Nesse sentido, o tema aqui proposto para investigação afeta a convivência em uma época cuja
expectativa volta-se para construção de novas formas de socializar os indivíduos em um território
diversificado em tradições culturais. Considerando a pertinência dos estudos envolvendo gêneros
jornalísticos, a opção pela tradição discursiva carta de leitor, no que tange à percepção dos recifenses
acerca da modernização de Recife, deve-se à necessidade de um constante estímulo a leituras cada vez
mais críticas e reflexivas sobre o contexto no qual os sujeitos encontram-se inseridos. Quanto aos
aspectos teóricos, serão utilizados conceitos da História Cultural PESAVENTO (2005) e CHARTIER
(1990). Os fundamentos básicos para compreensão do processo de modernização de Recife, com
REZENDE (2005) e ARRAIS (2004); no diálogo com a Linguística, utilizamos a teoria das Tradições
Discursivas, conforme KABATEK (2001), atrelada a alguns postulados da Teoria dos Gêneros, com
BONINI (2008). O procedimento metodológico adotado consistiu na análise das dimensões sóciohistórica e linguistico-discursivas da carta de leitor do século XIX. Os resultados apontam que essas
cartas além de noticiarem as mudanças sociais realizavam objetivos diversos como, por exemplo,
denuncia, prestação de contas, o que nos permite inferir que essas cartas revelam o ambiente conflituoso
exposto à sociedade pelos jornais.
PALAVRAS-CHAVE: Análise diacrônica; cartas de leitores; modernização de Recife.
ABSTRACT: The present paper discusses the diachronic study of readers’ letters published in XIX
century newspapers of Pernambuco, imphasizing the perception of the subject-authors on modernization
of Recife. Accordingly, the theme proposed here for investigation affects the living in a time when
expectation focuses on the construction of new forms of socializing individuals in a territory where
cultural tradition is varied. Considering the relevance of studies involving journalistic genres, the choice
of reader letter discursive tradition, when it comes to the perception of people from Recife about its
modernization, is due to the need for a constant stimulus to more and more critical and reflective reading
about the context in which individuals are inserted. As for theoretical aspects, it will be used
PESAVENTO concepts of Cultural History (2005) and CHARTIER (1990); the basics for understanding
the process of modernization of Recife, REZENDE (2005) and ARRAIS (2004); and, in dialogue with
Linguistics, we use the theory of discursive Traditions, as KABATEK (2001), tied to some postulates of
the Theory of Genres with BONINI (2008). The methodological procedures consisted of analysis of
socio-historical and linguistic-discursive dimensions of the reader`s letter of the nineteenth century. The
result show that these letters besides reporting on social change held different goals, e.g. complaint,
accountability, which allows us to infer that these letters reveal the contentious atmosphere exposed to the
society by the newspapers.
KEY-WORDS: Diachronic analysis; readers’ letters; modernization of Recife.
1. Introdução
Por sua especificidade comunicativa, as cartas de leitores encontram-se
relacionadas à sociedade, situadas em um contexto social, político e ideológico,
40
Aluna do curso de Licenciatura Plena em História, pesquisadora do Projeto “A Modernização de Recife
e as Representações Sociais pelo viés das Cartas de Leitor em Jornais do Século XIX”, bolsista
PIBIC\FACEPE\CNPq.
refletindo o tempo e o espaço em que foram produzidas. Como todos os gêneros, estão
sujeitas à variação conforme a época e revelam as experiências vividas pelos diferentes
grupos sociais. Tendo em vista esses aspectos, a pesquisa que apresentamos, ao analisar
as características deste gênero textual assentada nos pressupostos teóricos da História
Cultural e das Tradições Discursivas, contribui para uma maior compreensão das
dimensões sócio-históricas e linguistico-discursivas da carta de leitor ao longo da
história.
O gênero carta é uma das mais antigas produções de texto escrito. Consiste na
manifestação de um emissor que pretende comunicar-se com o outro e, por isso, tornase uma fonte de análise de diferentes realidades sociais e culturais. Nos jornais
pernambucanos as cartas eram utilizadas pela camada letrada da sociedade para noticiar,
defender ideias e, apesar de destinadas ao redator, voltavam-se para a sociedade. Como
ponto de partida para pesquisa, reconhecemos que as cartas de leitor em circulação na
atualidade sofreram alterações linguísticas e funcionais de acordo com as necessidades
da sociedade, mas mantiveram sua finalidade comunicativa.
Segundo Bazerman (2003) “a abordagem dos gêneros textuais como fatos
sociais, culturais e históricos possibilitam o diálogo com outras áreas do conhecimento.”
Portanto, ao retratar as mudanças históricas e as estratégias de comunicação
desenvolvidas pelos sujeitos-autores de cartas de leitores, estabelecemos neste trabalho
uma relação dialógica entre a Linguística e a História.
2. Fundamentação teórica
A influência de outras áreas do conhecimento na elaboração do saber
historiográfico tornou-se possível com a Nova História Cultural, ao abordar os aspectos
culturais como importantes elementos para a compreensão da realidade sócio-histórica.
Os novos paradigmas vêm ressaltando a importância de novos objetos no estudo
histórico como, por exemplo, as atitudes perante a vida e a morte, as crenças, as
diferentes maneiras de sociabilidade. Essa nova forma de “construir” a História procura
explicar como os homens de outra época atribuíam sentidos ao mundo, tendo em vista
que os sujeitos traduzem as suas posições, revelam seus interesses, descrevem a
sociedade como pensam ou como a desejam, expressam sua percepção acerca da
realidade em seu entorno por meio das representações.
Segundo Pesavento (2005), as representações construídas sobre o mundo fazem
com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. Essas
representações são matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, chegando a
explicar a realidade. Roger Chartier (1990) considera representações como matrizes de
discursos e de práticas que visam reconhecer uma identidade social, uma forma de
significar simbolicamente uma maneira própria de estar no mundo.
Nossa proposta de trabalho é direcionada para os textos, no intuito de
compreender as práticas de escrita como representações por meio das quais os sujeitos
atribuem sentidos ao presente, tornam-se inteligíveis, constroem significados por meio
dos quais o espaço pode ser decifrado. Chartier (1990, 17). Nessa perspectiva, a
narrativa histórica é compreendida por meio da linguagem e dos significados
produzidos em um sistema cultural. Tendo em vista esses significados elaborados em
um contexto cultural e a influência desse contexto no propósito comunicativo das
representações sociais, trabalhar a carta de leitor no âmbito das Tradições Discursivas é
delinear uma proposta que abrange e vincula a historicidade do texto e a historicidade
da língua. Os textos são uma forma de manifestação da língua e ambos se expressam em
e pela sociedade. Sendo assim, os traços de mudança e permanência observados na
trajetória de um texto indicam traços de mudança e permanência no funcionamento da
língua e na dinâmica social. Essas transformações são condicionadas pelo contexto
sócio-histórico que, segundo Pessoa (2002, p.7), “Não se pode atribuir unicamente à
língua manifestação lingüística absoluta. Há um contexto histórico favorável que pode
ser social, tecnológico e cultural”.
Essa concepção fundamenta a análise diacrônica que pretendemos fazer. Em
virtude da abordagem de um gênero específico carta de leitor, apropriamo-nos de alguns
conceitos que englobam os estudos sobre o gênero textual, com base em Bonini (2008).
Para Bonini (2008), existem três formas de justificar o estudo de um gênero: a
primeira consiste no estudo dos gêneros como forma de produzir subsídios para o
ensino da linguagem; como um recurso para conhecer algum aspecto importante da
realidade social; ou ainda como um meio de repensar as práticas sociais existentes em
uma sociedade.
Em nosso trabalho, justificamos a relevância do estudo do gênero textual por
estar associado à realidade sócio-histórica, apresentando-se como um recurso
importante para compreensão do meio social, uma vez que as cartas encontram-se
situadas em um contexto sócio-político e ideológico, refletindo o tempo e o espaço em
que foram produzidas.
Ao considerar a historicidade das cartas de leitor nos baseamos na teoria da
Tradição Discursiva alemã, cuja proposta pode ser entendida com base nos estudos de
Kabatek (2001, p. 99).
A historicidade discursiva seria, por exemplo, a da história dos
gêneros textuais... Falar seria, pois, uma atividade universal que se
realizará através de um duplo filtro tradicional: a intenção do ato
comunicativo teria que passar pela ordem lingüística que encandeia os
signos de uma língua segundo suas regras sintáticas e pela ordem
textual que atualiza certas tradições discursivas.
A Linguística Histórica dos gêneros textuais é uma teoria empregada para se
referir aos estudos voltados à formação, continuidade e mudança dos gêneros textuais,
levando em consideração o contexto sócio-histórico em que são produzidos. Segundo
Kabatec (2005, p. 163), “os textos estabelecem uma relação de tradição com outros
textos, tanto na repetição de determinada forma textual ou determinado conteúdo”.
Nesse sentido, a carta pode demonstrar variações na estrutura textual e repetição
de uma forma já estabelecida. Kabatec (2005) ressalta ainda que uma Tradição pode
estabelecer uma ligação com a historicidade da língua, uma vez que o falante faz parte
de uma comunidade com um idioma estabelecido. Com base na proposição de Kabatec
(2005), podemos considerar que as características de um texto individual são exemplos
para elaboração de outros textos, vindo a constituir uma Tradição Discursiva.
Para a romanística alemã, Tradição Discursiva diz respeito ao fato de um
usuário de uma língua, diante de uma finalidade comunicativa, produzir seu discurso em
conformidade com o já-dito em sociedade, isto é, modelando-se por “tradições textuais
contidas no acervo da memória cultural de sua comunidade, nas maneiras tradicionais
de dizer ou de escrever” 41 (Kabatek, 2005, p. 3).
Em virtude da necessidade de oferecer detalhadas explicações sobre esse novo
conceito, o linguista chega à seguinte definição:
Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou
de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou de
falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável).
Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou com
qualquer elemento de conteúdo cuja repetição estabelece um laço de
atualização e tradição, quer dizer, qualquer relação que se possa
estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de
enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada
forma textual ou determinados elementos lingüísticos empregados.42
(Kabatek, 2005, p. 159).
Sendo assim, uma Tradição Discursiva consiste em um ato linguístico que
relaciona um texto com uma realidade e com outros textos da mesma tradição. Com
base na teoria de Kabatek (2005), nossa proposta de pesquisa pretende identificar as
características textuais das cartas de leitor do século XIX, considerando que o autor do
texto fala acerca do seu contexto sócio-histórico.
3. Cartas de leitor sob uma perspectiva diacrônica
Os textos seguem um padrão de organização, estão sujeitos a variações, porém
preservam alguns traços essenciais da sua identidade. No processo de levantamento de
dados para a composição do corpus utilizamos alguns critérios que possibilitassem o
reconhecimento dos textos pertencentes à linhagem das cartas de leitores.
De acordo com Maingueneau (2001, pp. 66-68), os gêneros do discurso, como
atividades sociais que são, submetem-se a condições de êxito, tais como:
- Uma finalidade reconhecida: todo gênero de discurso visa certo tipo de modificação
da situação da qual participa.
- O estatuto de parceiros legítimos: que papel deve assumir o enunciador e o coenunciador? Nos diferentes gêneros do discurso, já se determina de quem parte e a
quem se dirige a fala.
41
No original, “tradiciones textuales contenidas em el acervo de la memoria cultural de seu comunidad,
maneras tradicionales de decir o de escribir.”.
42
No original, “Entedemos por Tradicion discursiva (TD) la repetición de um texto o e uma forma textual
o de uma manera particular de escribir o de hablar que adquire valor de signo próprio (por lo tanto es
sigificable). Se puede formar em relación com cualquier finalidad de expresión o con cualquier elemento
de contenido cuja repetición y tradición, es decir, cualquer relación que se puede establecer
semióticamente entre dos elementos de tradición (actos de enunciación o elementos referenciales) que
evocan uma determinada forma textual o determinados elementos lingüísticos empleados.”
- O lugar e o momento legítimos: todo gênero de discurso implica um certo lugar e um
certo momento.
- Um suporte material: o texto é inseparável do seu modo de existência material: modo
de suporte/transporte e de estocagem, logo, de memorização.
- Uma organização textual: dominar um gênero de discurso é ter consciência mais ou
menos clara dos modos de encadeamento de seus constituintes em diferentes níveis: de
frase a frase, mas também em suas partes maiores.
Essas condições de êxito nos auxiliaram no momento de estabelecer os critérios
para identificação das versões iniciais das cartas de leitores. Com base na finalidade
reconhecida, identificamos como cartas de leitores, os textos destinados ao Sr.
Redactor ou Sr. Edictor cujo propósito era interferir na opinião pública. Desse modo,
para que o texto fosse considerado carta de leitor tinha de ser o leitor aquele que dirige a
palavra ao Sr. Redactor. Foram selecionados apenas textos em circulação no Estado de
Pernambuco e em períodos diferentes do século XIX o que confere às cartas de leitores
selecionadas o lugar e o momento legítimos. O suporte material para a veiculação
dos textos foi o jornal impresso.
Para Bhatia (1997, p.17), “os participantes compartilham não só o código, mas
também o conhecimento do gênero, o que inclui conhecer sua construção, interpretação
e uso”. Com relação à utilização do gênero carta de leitor pelos sujeitos-autores,
consideramos as condições de produção dessas cartas tendo em vista a influência do
contexto sócio-histórico-ideológico do século XIX. Para tanto, apropriamo-nos da
finalidade comunicativa proposta por Kabatek (2003), quando se reporta aos objetivos
sociais que se pretende atingir por meio do gênero. Em vista disso, consideramos a
finalidade comunicativa relevante para o reconhecimento do gênero, independente das
modificações que um texto, pertencente a uma mesma tradição discursiva, possa passar.
Podemos dizer que as correspondências (cartas) pressupõem um interlocutor
definido, com referências a ele no decorrer do desenvolvimento do texto. No entanto,
nos textos analisados, mesmo destinados ao Sr. Redactor ou Sr. Edictor, percebemos a
troca de interlocutor:
Ex: 01: Senhores redactores- Ainda algumas conside- I rações tenho a fazer ao communicado sim
assig- I natura, publicado no Diario de 25 de janeiro I proximo passado, que tratou de combater as
de- I sinfecções por meio das fumegações. II Disse o seu autor: - Se estivesse conhecido a I natureza
dos miasmas, então converia adoptar-se qualquer processo chimico, que destruísse es- I sés miasmas.
II A essa argumentação responde- se, que o communicante não tem conhecimento dos reagentes I
capazes de fazer desapparecer os gazes mephe- I ticos de qualquer natureza que sejam: se esti- I
vesse bem a par delles, certamente não avança- I ria tal proposição {... } O mesmo communi- I cante
não é capaz de declarar como se faz uma I desinfecção com os predicados da sciencia, nem I
conhece todos os agentes desinfectantes. II Dê-me alguma explicação á esse respeito: es- I tou certo
que não é capaz. Diga- me como se ob- I tem o chloro, a chloredina e outros desinfectan- I tes d’essa
ordem, espero por ella {...} ( Diario de Pernambuco, 06 de fevereiro de 1862).
No exemplo observamos que o interlocutor inicial é o redator ou editor, mas no
decorrer do texto o correspondente interage com outro interlocutor. Essa mudança é
uma característica do gênero carta de leitor do século XIX. Outro aspecto das cartas de
leitores do século XIX corresponde à indefinição da autoria e o constante uso de
pseudônimos. Com base nos conteúdos das cartas e no nível de informação política dos
sujeitos-autores, podemos verificar que diferentemente das cartas à redação em nossa
época, as cartas de leitor do século XIX não eram escritas por leitores comuns, mas por
pessoas influentes naquela sociedade.
Nesses textos também podemos verificar a constante presença de expressões de
injúria. Sobre isso Sodré (1999, p. 157) afirma:
Os escritores da época não podiam fazer uso de outro processo
porque não o conheciam, não estavam em condições de utilizá-lo.
Num meio em que a educação em seu estágio mais rudimentar, o
ensino, estava pouquissimamente difundida, em que a massa de
analfabetos era esmagadora, em que os que sabiam ler não tinham
atingido o nível necessário ao entendimento das questões públicas, e
em que os que haviam freqüentado escolas superiores se deliciavam
em estéril formalismo e no abuso da eloqüência vazia, a única
linguagem que todos conheciam era mesmo o da injúria.
Podemos perceber a afirmação de Sodré (1999) a respeito da linguagem de
insultos no exemplo a seguir:
Ex: 02: Snr. Redactor II Basta de immoralidade- Para que I desviou Vm. o seo Periodico do fim I
aque originariamente o havia destina- I do ? Para que foi emmaranhar-se no I confuso Labirinto da
política? Se I ao menos tivesse abraçado a BOA I CAUSA, -va-mas passar para o campo dos
Phillistéos-ligar-se com I os Impios... com os malvados... I transcrevendo collunas inteiras de cer- I tos
papeluchos dictados pelo Espirito I da Rebeleaõ, e da Incredulidade, taes I como “ Le Constitucion[
]l”e outros I quejandos coriféos do Libertinismo he com effeito mais que descardo desa- Iforo !!! II
Como se attreve Vm. a prostituir I os seus Typos, imprimindo, como fez I nos extratos de Geneva de
hontem I (37) calunnias, e blasfemias I taõ atrozes, que só de ouvillas se me I arrepiaõ os
cabellos{...} (Diário de Pernambuco, 19 de Fevereiro de 1827).
Outro aspecto que podemos inferir quanto às cartas de leitor do século XIX
corresponde ao propósito comunicativo, tendo em vista que essas cartas realizavam
objetivos diversos e tratavam de vários temas, apesar de estarem agrupadas em uma
mesma seção. Em um jornal atual, se tivéssemos que publicar essas cartas, elas
receberiam a designação de outros gêneros textuais, como o artigo de opinião, por
exemplo.
4. A cidade escrita pelos sujeitos autores das cartas de leitor do século XIX.
Considerando o caráter comunicativo dessas cartas, cujo propósito era a
formação da opinião pública, o presente estudo aborda o contexto sócio-histórico, tendo
em vista buscar os sentidos que nortearam as formações social, política e material da
cidade, observando essas formações em um período em que a cidade passou por um
processo de reformulação dos espaços urbanos que se acelerou a partir de meados do
século XIX. Neste trabalho, a modernização é “compreendida como a busca de novas
linguagens para traduzir as velozes mudanças trazidas pelas novas técnicas”
(REZENDE, 2005, p. 91). Os tempos modernos significaram uma revolução cultural,
conduzindo as sociedades para a busca incessante pela perfeição e pelo culto ao
progresso. Segundo Arrais (2004), no contexto do século XIX, a cidade do Recife é
investida de uma função pedagógica. Nela se exercia o papel formador, que deveria
moldar os novos costumes de civilidade, de ordem pública e de salubridade.
O século XIX, período de estudo deste trabalho, Recife foi cenário de mudanças
inspiradas nos ideais liberais que agitavam a Europa. Os ideais de igualdade e liberdade
proclamados pela Revolução Francesa impulsionaram o sentimento de mudanças
política, social e cultural. Era Recife das revoluções libertárias, da teimosia ácida do
contra, evocado pelo poeta Manuel Bandeira. A história de Recife no século XIX é
marcada por lutas políticas, como a Revolução de 1817, a Confederação do Equador, de
1824, e a Revolução Praeira, de 1848. Por ser palco de grandes batalhas, a cidade
imprimiu na sua história uma identidade heróica: Recife era a “noiva das revoluções”.
Esses movimentos tinham forte ligação com a modernidade e o projeto de
civilização. Essas mudanças não ocorriam, no entanto, apenas na política. Os espaços
urbanos eram moldados pela mão do progresso; os costumes sociais exigiam novos
comportamentos. Nesse contexto de grandes mudanças, destacamos a administração de
Fernando Rego Barros, que ao assumir o cargo de governador da província de
Pernambuco de 1837 a 1844, tinha como proposta de governo transformar Recife em
uma cidade moderna, estabelecendo como padrão de desenvolvimento as cidades
europeias.
Tendo em vista que o século XIX é um momento de rebeliões, revoltas
populares, novos ideais políticos, podemos considerar que os textos revelavam esses
conflitos através da linguagem. Por meio das expressões utilizadas, os sujeitos
transmitiam a informação dos fatos e também expressavam seu posicionamento acerca
da realidade em seu entorno. Para Halliday e Hasan (1989, apud Fraga 2002), “as
estruturas textuais se dão em decorrência de seus contextos e podem revelar as
condições em que os textos foram produzidos”. Essas cartas revelam expressões que
demonstravam um ambiente conflituoso exposto à sociedade pelos jornais.
Os segmentos textuais abaixo revelam o propósito comunicativo das cartas de
leitor do século XIX, que era tornar públicas questões particulares. Assim serviam como
um canal pelo qual as pessoas podiam denunciar, noticiar, defender ideais, revelar as
mudanças no campo político, social e econômico.
Ex: 03: Srs redactores {...} O Espirito d’associação, que tanto vai entre I nós progredindo, nos
prepara um I lisongeiro porvir: a Associação Commercial, já instalada, a do I encanamento d’agoa
á capital, que está em I andamento, a do g[ ]z, do theatro, de pontes de ferro, e das estradas I
provão o que vimos de dizer. A edificação, que tao bellos I e elegantes edifícios nos appresenta, ja
atrevi-I damente vai levantando os seus alicerces I por onde em outro tempo corriaõ as agoas, que
se I vem hoje constrangidas a recuar para I dar logar á industria, e á grandeza: de modo que em
pouco tempo I teremos de ver esta bella Cidade no catalogo I das principaes da Europa{...} Ao seu
constante Leitor O Isolado do Recife. ( Diário de Pernambuco, exemplar que antecede o de 8 de
Agosto de 1839, nº 171; obs.: número e a data do jornal encontram-se ilegíveis)
Ex. 04: Srs. Redactores. Com que prazer me naõ occupo no momento de traçar essas linhas para
sua estimável Folha, e remontando- me aos passados tempos observo já hoje ( com enthusiasmo o
digo) a nossa Província, este bello Pernambuco muito mais polido, [ ] para assim dizer, de hum [ ]
parte: O espírito principalmente da Sociabilidade, Srs. Redactores harmonia a boa ordem parece
que vai-se desenvolvendo progressivamente, porquanto já [ ] contamos , alem da Sociedade
Harmonico Thestral, que foi a primeira instituida, com mais tres de baile, ou danças que vem a ser,
a Apolines, Euterpina e Terpsicore, e concorrendo a qualquer dellas, o que he mais, em huma
mesma noite, como tem acontecido em os dias destinados as suas partidas, naõ pequeno numero de
respeitáveis Famílias, que todas se interessaõ com aquella afabilidade e delicadeza, que lhes são
próprias em desempenhar completamente o fim da Sociedade, ou para que saõ convidadas (Diário
de Pernambuco, 02 de Novembro de 1838).
Considerando que cada gênero possui uma finalidade comunicativa, podemos
observar que as cartas de leitor do século XIX tinham como objetivo reproduzir o
debate público da época, as quais apresentam um relevante teor informativo e tinham o
propósito de persuadir os leitores em favor das opiniões defendidas. Quanto ao
propósito comunicativo, podemos inferir que, além de noticiarem os eventos políticos,
sociais e econômicos, realizavam objetivos diversos como, por exemplo, denúncias,
prestação de contas, notas de esclarecimento, defesa contra difamação ou injúria,
reclamações e cobranças à instituição pública.
O século XIX foi investido de novas técnicas, ideais, costumes exportados da
França. A cidade passa a ser recriada na arquitetura, nos costumes de acordo com os
modelos europeus. O progresso imprimiu na cidade suas marcas nos traços
arquitetônicos. Todas essas mudanças podem ser percebidas nas cartas de leitores:
Era o Recife das novas arquiteturas, de novos traçados nas ruas, de novos hábitos, de
novas práticas de higiene. Era a cidade projetada pelo desejo do homem. As cartas de
leitores retratavam a reformulação dos modos de vida pelos saberes da modernidade. O
que se procurou ressaltar é que nas cartas de leitores o autor fala em seu próprio nome,
em defesa de seus interesses. Por seu caráter comunicativo, as cartas manifestavam um
ponto de vista sobre um assunto atual.
5. Considerações finais
O século XIX é um período da História do Brasil marcado por transformações
sociais introduzidas pelas revoluções sociais, políticas, e tecnológicas. Nesse contexto, a
cidade trilha seu desenvolvimento em direção ao progresso, passando a revelar os
indícios desse progresso nos costumes, na reformulação dos espaços urbanos e,
principalmente, nas formas de comunicar, implicando no surgimento e no
reaparecimento de gêneros textuais.
Como podemos observar no presente trabalho, as cartas representavam a
atividade comunicativa de importante interação social, utilizada pelos letrados para
reivindicar direitos, divulgar para sociedade sua posição política; serviam para o autor
descrever as mudanças no cenário urbano da cidade. Em cada carta, a modernização da
cidade é (re)significada pelos olhares dos sujeitos-autores; essas cartas revelam os
sonhos, as expectativas, os projetos de modernidade que foram vivenciados pelos
recifences no século XIX.
6. Referências bibliográficas
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A AQUISIÇÃO DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS EM JOVENS E
ADULTOS SURDOS
Bernardo Luís Torres Klimsa43
Marcelo Lúcio Correia de Amorim44
RESUMO: A aquisição da linguagem na criança ouvinte é um processo subconsciente que acontece a
partir da interação das crianças com o meio social no qual ela está inserida. Desde o nascimento, a criança
está imersa num ambiente linguístico riquíssimo que favorecerá a aquisição da linguagem e o futuro
aprendizado da escrita. As crianças surdas, em contrário, são privadas desse ambiente linguístico, em
função do impedimento auditivo advindo da surdez. Essas crianças, então, passam a aprender uma língua
de modalidade que não lhe dá o feedback necessário ao processo de compreensão das informações e
conhecimentos passados nas relações familiares e educacionais. Muitos surdos brasileiros, 95% dos casos
(Quadros, 2008), nascem em famílias ouvintes e não adquirem a Língua Brasileira de Sinais - Libras
como L1, mas vão à escola aprender como L1 a língua portuguesa. O processo de aquisição da Língua de
Sinais acontecerá anos após, normalmente na adolescência, quando esses jovens começam a conviver
com outras pessoas surdas, fazendo com que se deparem com outra realidade e compreensão de mundo.
Este trabalho objetiva discutir o processo de aquisição da Libras em jovens e adultos surdos que tiveram
tardiamente contato com essa língua, a partir do relato de vida de seus autores surdos.
PALAVRAS-CHAVES: Libras; surdez; educação; linguagem; interação.
ABSTRACT: The acquisition of language in the child listener is a subconscious process that occurs from
the interaction of children with the social environment of which it is inserted. From birth the child is
immersed in a rich language environment that will encourage language acquisition and learning of writing
future. In the case of deaf children, they are deprived of linguistic environment due to lack of impediment
hearing arising from deafness. These children then begin to learn a language mode that does not give you
the necessary feedback to the process of understanding the information and knowledge passed on family
relations and educational. Many deaf Brazilians, 95% of cases (Quadros, 2008) born to these families and
listeners do not get the Brazilian sign language - Libras as L1, but go to school to learn English as L1.
The process of acquisition of sign language is going to happen years after, usually in adolescence, when
these young people begin to socialize with other deaf people, so that they encounter another reality and
understanding the world. This paper discusses the process of acquiring Libras in young deaf adults who
had later contact with this language, from the life story of her deaf authors.
KEYWORDS: Libras; deafness; education; language; interaction.
1. Introdução
Ao longo da história da educação de surdos no Brasil, sempre houve uma
preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. As propostas
pedagógicas sempre foram calcadas na questão da linguagem. Essa preocupação, não
menos importante que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase exclusiva,
perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança surda. Há várias razões
43
Professor da Secretaria de Educação de PE. Especialista em Língua Brasileira de Sinais – Libras.
Pedagogo e graduando do curso de graduação em Letras/Libras – UFPE.
44
Engenheiro de Testes de Software do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife – C.E.S.A.R.
Mestrando em Ciência da Computação – UFPE
para isso, dentre elas, o fato das crianças serem surdas tornava fundamental a discussão
sobre o processo de aquisição da linguagem, tendo em vista que tal processo era
traduzido por línguas orais-auditivas. As crianças surdas dotadas de capacidades
mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e, por essa razão, até os
dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o desenvolvimento da
linguagem em crianças surdas por meio de métodos de oralização. “Fazer o surdo falar
e ler os lábios permitirá o acesso à linguagem”, frase repetida ao longo da história e que
tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologias altamente especializadas.
Entretanto, apesar de todo esse empenho, os resultados que advêm de tal esforço
foram drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstra o fracasso das
inúmeras tentativas de se garantir linguagem mediante a língua oral-auditiva do país, a
língua portuguesa. Todos os profissionais envolvidos na educação de surdos que
conhecem surdos adultos admitem as dificuldades do ensino da língua portuguesa, não
somente enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente, enquanto
língua que permite o desenvolvimento da linguagem.
Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente “salvar/resgatar” o seu
processo de aquisição da linguagem através da Língua Brasileira de Sinais - Libras. A
raça humana privilegia tanto a questão da linguagem, isto é, a linguagem é tão essencial
ao ser humano que, apesar de todos os empecilhos que possam surgir para o
estabelecimento de relações por intermédio dela, os seres humanos buscam formas de
satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais
independentes da escola e da família, buscam relações com outros surdos através da
língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos foram sendo criadas e tornando-se
espaço de “bate-papo” e lazer em sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais
“oralizavam” ou as escolas “integravam” crianças surdas nas escolas regulares de
ensino.
Percebe-se, aqui, um movimento de resistência por parte dos surdos a um
processo social, político e linguístico que privilegiou o parâmetro do normal. Os surdos
buscam através da língua a constituição da subjetividade com identidade surda em que o
reconhecimento da própria imagem acontece nas relações sociais entre surdos,
determinando a significação do próprio eu. Portanto, a aquisição da linguagem é
fundamental para que o sujeito surdo possa (re)inscrever-se nas interações social,
cultural política e científica e é justamente sobre esse processo que trataremos neste
trabalho.
2. O processo de aquisição da linguagem em crianças surdas e ouvintes
Os seres humanos são imersos desde cedo em um ambiente de variadas
linguagens, onde, segundo Vygostski (1995, p.150), “o significado da palavra existe
antes para outros e apenas depois passa a existir para a criança”. Crianças e adultos
podem comunicar-se e entender-se, mas possuem modos diferentes de compreender os
significados de mundo.
Para então compreender e conceituar o mundo, faz-se necessário elaborar e reelaborar significados, o que só é possível no envolvimento do plano das relações
intersubjetivas. Assim, a formação das funções psíquicas superiores depende sempre
das interações verbais.
Nesse sentido, vale recordar as proposições de Bakthin (1997, p. 314) de que a
língua não se transmite, ela perdura num processo contínuo de interação verbal, no qual
“a experiência verbal do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua
e permanente com os enunciados individuais do outro”.
De acordo com Lodi (2009), o desenvolvimento da linguagem, atividade
exclusiva dos seres humanos, tem seu início a partir das interações do bebê com as
pessoas ao seu redor, por meio das quais ele poderá se apropriar dos aspectos culturais
do meio social em que vive.
Se uma criança, filha de portugueses, é levada para os estados Unidos, ela
aprenderá inglês. Se uma criança, filha de americanos, for levada à Alemanha, ela
aprenderá alemão. A língua dos pais, nessas situações, não determina que língua a
criança adquirirá – o que existirá como fator determinante é a língua falada no meio em
que a criança está inserida.
Refletindo sob esses aspectos, pode-se concluir que toda criança exposta ao
espanhol falará espanhol, toda criança exposta à Língua Brasileira de Sinais sinalizará a
essa língua e assim por diante.
Para Vygotsky (1989), a trajetória principal do desenvolvimento psicológico da
criança é uma trajetória de progressiva individualização, ou seja, é um processo que se
origina nas relações sociais, interpessoais e se transforma em individual intrapessoal.
Assim sendo, a linguagem da criança, desde seu início, é essencialmente social;
ela se desenvolve no plano das interações sociais, nas relações interpessoais. No
decorrer do desenvolvimento da criança, seu discurso social subdivide-se em discurso
comunicativo e discurso egocêntrico. Esse último, conforme Vygotsky (1989), surge
quando a criança transfere as formas sociais cooperativas de comportamento para as
funções psíquicas pessoais internas. Com o tempo, esse discurso se transforma em
discurso interior, distinguindo-se tanto estrutural como funcionalmente da fala social.
A criança ouvinte, desde seu nascimento, é exposta à língua oral, vivenciando
um ambiente linguisticamente favorável a adquirir de forma natural uma língua. Esse
processo permitirá a realização de trocas comunicativas em situações do seu meio e a
constituição de sua linguagem. As crianças surdas, contrariamente, não vivenciam uma
condição linguística tão favorável quanto às crianças ouvintes, fato que atrasará seus
desenvolvimentos linguístico e escolar.
A Organização das Nações Unidas estima que 1,5% da população mundial
possuem deficiência auditiva (CORDE45, 1996). No Brasil, dos 34,5 milhões de pessoas
com deficiência, 5,7 milhões têm deficiência auditiva (IBGE, 2006), um número
significativo em termos de saúde pública, uma vez que, se essas crianças não receberem
um atendimento adequado na área educacional, não conseguirão desenvolver sua
45
É um orgão vinculado à Secretária da Justiça e da Cidadania, responsável pela gestão de políticas
voltadas à inclusão da Pessoa Portadora da Deficiência, em todas as esferas que compõem a sociedade.
competência linguística de forma natural, garantindo-lhes o direito de constituírem-se
como sujeitos ativos, participantes de uma sociedade.
Em nossa sociedade, existem padrões pré-moldados e valores culturais de
normalidade; aqueles que não se ajustam recebem a rotulação de “desviante”, o que os
coloca na posição de propensos a receberem mais conceitos negativos do que positivos
(FIGUEIRA, 1996).
Entre as crianças surdas, 90% têm pais ouvintes, e a ausência de experiência
com perda de audição faz com que esses pais enfrentem vários obstáculos em relação ao
desenvolvimento dessa criança, sendo um deles a dificuldade de comunicação
(ELEWEKE & RODDA, 2000). Os pais são fortemente influenciados pela informação
recebida, especialmente no período que se segue ao diagnóstico da perda de audição. Ao
percebem as funções do aparelho auditivo, a influência da atitude do profissional que os
atendeu, bem como a qualidade do aconselhamento, influenciam na decisão dos pais em
relação aos recursos comunicativos (ELEWEKE & RODDA, 2000).
As primeiras relações de afeto dos filhos são provenientes dos pais, e esse
convívio será responsável por futuros comportamentos no meio social, permitindo ou
não a sua adaptação. Esse papel da família contribuirá para que o filho tenha uma
aprendizagem mais humana, forme uma personalidade única, desenvolva sua autoimagem e se relacione com a sociedade.
A família atua não só no sentido de amparar física, emocional e socialmente os
seus membros, mas também esclarecendo o que é melhor ou pior para seu crescimento,
cabendo a ela a responsabilidade de proporcionar qualidade de vida aos mesmos. Os
cuidados oferecidos pela família constituem estratégias que favorecem o
desenvolvimento humano à medida que proporcionam amor, afeto, proteção e segurança
dentro de um espaço de inclusão e acolhimento aos filhos.
A principal satisfação dos filhos é ter uma boa relação entre os membros da
família, pois essa relação exerce importante papel para o desempenho psíquico e,
conseqüentemente, nas demais fases da vida. No processo de relação familiar, a
comunicação favorece a compreensão das dúvidas, a demonstração de carinho e amor,
entre outras coisas, uma vez que para adquirir essas informações é necessário
estabelecer-se uma mesma linguagem (QUADROS, 2002).
Para Skliar (1997), a comunicação entre pais surdos e filhos surdos é semelhante
à comunicação entre pais ouvintes e filhos ouvintes, possibilitando o processo de
imersão cultural da criança na comunidade em que está inserida. No caso de pais
ouvintes e filhos surdos, as interações comunicativas podem ser muito deficitárias,
dependendo do tipo de informação recebida após o diagnóstico dos filhos e das
modificações daí decorrentes no curso natural das comunicações familiares.
Para evitar o isolamento psicológico das crianças surdas, Skliar (op.cit) aponta a
necessidade dos pais ouvintes estabelecerem contato com membros da comunidade
surda e dos serviços especiais se organizarem contando com a presença de pessoas
surdas, crianças e adultos. Para o autor, somente o acesso à Língua de Sinais, por meio
de interações sociais com as pessoas surdas, pode garantir práticas comunicativas
apropriadas ao desenvolvimento pleno, cognitivo e linguístico, das crianças surdas.
Os estudos linguísticos das línguas de sinais têm apresentado evidencias que
essas línguas observam as mesmas restrições que se aplicam as línguas faladas
(STOKOE et alli, 1976; BELLUGI & KILMA, 1972). No Brasil, a Língua Brasileira de
Sinais – Libras – começou a ser investigada nas décadas de 80 e 90 (FERREIRABRITO, 1986 e 1995; FELIPE, 1992 e 1993; QUADROS, 1995 e 1999) e como
acontece o processo de aquisição por crianças surdas, nos anos 90 (KARNOPP, 1994 e
1999; QUADROS 1995 e 1997).
As investigações delineadas pelos autores citados acima até então indicam que
as crianças surdas, filhas de pais surdos, adquirem as regras de sua gramática de forma
muito similar às crianças que adquirem línguas faladas. Assim, à medida que os estudos
avançam, verifica-se que a constituição da gramática da criança independe das variações
das línguas e das modalidades em que as línguas se apresentam (QUADROS, no prelo;
LILLO-MARTIN e QUADROS, 2007).
Os autores concluíram que o processo de aquisição de linguagem é,
fundamentalmente, o mesmo entre as crianças ouvintes e surdas,
independente da modalidade da língua; portanto, o que irá determinar
esse desenvolvimento são as relações que elas estabelecem com os
interlocutores usuários da língua, pois, tanto as crianças ouvintes
quanto as surdas, no período inicial, fazem uso do gestual na
utilização de dêiticos; no período seguinte, surgem, então, as primeiras
palavras/sinais e os gestos referenciais relativos a esquemas
complexos de ações derivados das trocas realizadas entre crianças e
mães, e não relativo a referentes específicos”. LODI (2009).
De acordo com a citação acima, está bem comprovado que a aquisição é similar
entre crianças surdas e ouvintes, independentemente da língua.
3. O caminho percorrido pelo estudo
Quando o sujeito surdo é levado a conviver apenas com uma comunidade
ouvinte, sem contato com outros surdos, sua surdez tende a ser ocultada e depreciada. O
estigma de deficiente agrava-se a cada dificuldade que essa pessoa encontrará para se
“igualar” com o ouvinte. É importante que o surdo se mantenha integrado em sua
comunidade, relacione-se com seus pares, sem se isolar da comunidade majoritária. O
objetivo dessa interação é a constituição da identidade surda46, de se aceitar como uma
pessoa surda.
Para que o surdo possa reconhecer e assumir sua identidade, é importante que
ele estabeleça o contato com a comunidade surda, para que realize sua identificação
com a cultura, os costumes, a língua e, principalmente, a diferença de sua condição. Por
intermédio das relações sociais, o sujeito tem possibilidade de acepção e representação
de si próprio e do mundo, definindo suas características e seu comportamento diante
dessas vivências sociais.
46
Segundo Perlin, Identidade Surda é uma construção, um efeito, um processo e é crucial a adoção de
uma teoria pedagógica que descreva e explique o processo de construção de identidade e diferenças
surdas.
De acordo com Souza (1998), a partir do momento em que os surdos passaram a
se reunir em escolas e associações e se constituíram em grupo por meio de uma língua,
passaram a ter a possibilidade de refletir sobre um universo de discursos sobre eles
próprios e, com isso, conquistaram um espaço favorável para o desenvolvimento
ideológico da própria identidade.
A comunidade surda pode ser representada por associações, igrejas, escolas,
clubes, ou seja, qualquer lugar onde um grupo de surdos se reúne e divulga sua cultura,
troca idéias e experiências e usa a língua de sinais. Dessa forma, ela exerce um papel
construtor para a identidade surda, pois é por meio dela que ocorrem as identificações
com seus pares e a aceitação da diferença, não como um deficiente ou não-normal, mas
com uma cultura rica que possui valores e língua própria. Porém, ela é minoria diante
da onipotente comunidade ouvinte, que, muitas vezes, vê os surdos e sua comunidade
como "[...] parte da comunidade mais ampla de incapazes [...]" (GARCIA, 1999,
p.152).
Os relatos abaixo nos mostram depoimentos de pessoas surdas adultas que
adquiriram tardiamente a língua de sinais:
Sujeito 1 – “Nasci surdo profundo, por causa de rubéola gestacional. Por volta de um a
dois anos de idade, quando na escola regular e a professora descobriu eu era surdo. A
professora começou a desconfiar, pois no horário de recreio todas as crianças brincavam
juntas e, ao toque da companhia de retorno a sala, todos voltavam menos eu que
continuava brincando sozinho. A professora, então, resolveu avisar meus pais sobre o
problema. Mais tarde, foi diagnosticada a minha surdez por um médico que meus pais
me levaram. Depois disso fui encaminhado ao Suvag (uma clínica especializada em
oralização de pessoas surdas) onde fiz tratamento e terapia fonoaudiológica. Depois de
cinco anos, meus pais contrataram dois pedagogos para ensinar como aprender leitura
escrita e oral. Sempre vivia no mundo de forma isolado, só brincava de bola, de bolinha
de gude, pipa, e outros com amigos ouvintes, mas não conversava assuntos específicos
entre crianças ouvintes. Naquela época, não tinha intérpretes para auxiliar na sala de
aula e eu assistia a aula sem entender bem a leitura labial dos professores, o que me
chamava atenção eram as aulas de artes por causa do visual. Não me lembro de muitos
detalhes do que aconteceu em minha infância, pois minha vida sempre foi de muito
isolamento apesar de ter o carinho a conforto de minha família. Aos 14 anos, fiz um
curso de Libras na Suvag e conheci o professor surdo Jadson, ela foi o responsável por
abrir o meu caminho a novos conhecimentos. Antes só falava oralmente e não em libras.
Convivência com minha família e amigos em diversos lugares e utilizava gestos para
faze-los compreender melhor minha oralidade. Depois descobri a Libras, como L2
(segunda língua), e meu comportamento mudou completamente. A primeira coisa que
fiz foi tomar a decisão de não usar mais aparelho auditivo porque não escutava a voz
das pessoas, só escutava barulhos sem significados para mim. Não sofri influência de
ninguém para deixar de usar o aparelho auditivo, isso aconteceu por minha vontade. Eu
queria compreender como era realmente a vida de uma pessoa surda sem a utilização de
prótese auditiva e apenas fazendo uso dos recursos da leitura labial para entender as
informações. Logo depois, ao freqüentar as aulas do professor Jadson, comecei a
despertar um sentimento de compreensão do significado das palavras da língua
portuguesa, antes incompreensível, pois não havia o apoio dessa língua (Libras) para
melhorar a minha compreensão. Na verdade, depois do curso de Libras, consegui
adaptar a convivência com as pessoas muito melhor, minha visão ficou diferente porque
antes só vivia isolado no mundo e, depois da Libras, não. Sinto-me como se tivesse
nascido de novo. Não conseguir conversar igualmente com pessoas ouvintes e surdos.
Conversar com os surdos é bem diferente, pois a língua nos faz ter os mesmos
sentimentos. Antes a escrita do português por mim era muito fraca e depois que aprendi
Libras meu desempenho se tornou muito melhor, especialmente porque agora posso
dizer que conheço o significado das palavras dessa língua. Quando comecei a freqüentar
a Asspe (Associação de Surdos de Pernambuco) e conversar em Libras com os surdos,
comecei a diminuir a freqüência de conversar de forma oral, isso porque eu gostava de
entender o mundo de forma diferente e só a Libras me proporcionava essa sensação. A
convivência na escola, no trabalho e na família mudou bastante, pois em cada ambiente,
as relações se davam de forma totalmente diferentes. Percebi a diversidade de assuntos
que podia conversar com os surdos, como política, sexo, religião, diversão, piadas e
outros contextos sociais que me privava anteriormente. Ganhei muitas experiências com
a aceitação da Libras e desse novo contexto social, isso me fez mudar minha vida
profissional, pessoal e minha visão do mundo. Mas tenho consciência que toda essa
mudança em minha vida se deu ao fato de ter tido a oportunidade de aprender a língua
portuguesa e também a Libras, essa embora tardiamente. Hoje sou uma pessoa que
tenho bastante realizações pessoais e profissionais, me formei em Pedagogia, agora faço
Letras/Libras e estou na luta pelo mestrado na área de educação”.
Sujeito 2 – “Surdo de nascença, devido a rubéola que a mãe teve na época da sua
gravidez, de uma família ouvinte, brasileira, nordestina, na terra seca do sertão de
Pernambuco. Cresceu como outras muitas crianças, convivendo com muitas pessoas ao
redor, por exemplo a família, professores e colegas em diversos lugares. Na época de
criança e pré-adolescente, até mais ou menos 14 anos de idade, passou praticamente o
tempo todo em terapia com alguns fonoaudiólogos, já com umas viagens a São Paulo,
capital, para tratamento de audição, para usar o melhor aparelho, ou seja, usar o melhor
funcionamento de um aparelho auditivo. Durante esse tempo todo, participou de uma
escola até 5ª série como outros colegas, sem nenhum problema, porém sem nenhuma
lembrança boa naquela época. Durante a pré-adolescência, comecei a perceber a solidão
na vida, os colegas foram se distanciando, passei a freqüentar nada menos que 5 (cinco)
escolas diferentes em 5 anos, sendo que em todas elas passei no máximo 3 e 4 meses na
escola, uma delas do Governo do Estado, hoje reconhecida como a escola da inclusão.
Nessa época, apesar de minha mãe dele ter afirmado que eu não queria deixar de usar o
aparelho auditivo, até entrando no banho, para não ter que ficar sem aparelho por algum
momento, durante criança, cheguei a desistir de usar o aparelho e freqüentar mais o
mundo do surf, onde era normal acordar logo no nascer do sol, entre as 4 e 5 da manhã
para pegar as primeiras ondas do dia, diariamente e nos finais de semanas viajava direto
para pico do surf de Pernambuco, em uma praia vizinha com a praia mais badalada,
Porto de Galinhas, em Baía de Maracaípe, onde é palco dos campeonatos estaduais,
regionais, nacionais e internacionais. A última escola nessa época, no Centro Suvag de
Pernambuco, a escola especializada para pessoas surdas, no começo enfrentei
dificuldades, não queria nem estudar, chegava a sentar no fundão, achava muito feio a
fala das pessoas surdas, a língua de sinais, que no Brasil, a Libras – Língua Brasileira de
Sinais – é a língua de sinais reconhecida e oficial, não queria aprender de jeito nenhum,
apesar de ter um professor excelente surdo ensinando claramente, não queria aprender
na forma alguma. Com o tempo, meus pais ficavam me pressionando para me levar a
escola Suvag, até chegaram a me ameaçar de vender as pranchas de surf, meu principal
hobby, mas eu não queria perder as pranchas, e até comecei a freqüentar a escola e
mesmo sem querer acabei adquirindo a língua de sinais na melhor forma natural
possível, principalmente com o professor excelente que sempre ensinava claramente.
Acabei conhecendo melhor os colegas surdos, adquirindo a língua de sinais na sua
conversação naturalmente, apesar de ter uma boa leitura e escrita na língua portuguesa,
na qual aprendi durante a infância toda. Naquela época, este tal professor era o
presidente da ASSPE (Associação de Surdos de Pernambuco). Fui convidado por ele
para participar dos eventos realizados e criados pelas pessoas da mesma comunidade, a
comunidade surda. Durante essa época, fui adquirindo experiências com outras pessoas
da mesma comunidade, nas cidades diferentes, tais como a Fortaleza do Ceará e João
Pessoa da Paraíba, as principais cidades que mais adquiri a língua de sinais, pois muitos
sinais eram diferentes de acordo com a sua região. Ou seja, adquiri a língua de sinais
sem vontade de aprender e acabei virando expert em língua de sinais. Até cheguei a
fazer o curso de Formação de Instrutores de Libras, onde me formei como o melhor
aluno da turma de novos instrutores de Libras. Cheguei a me mudar para uma cidade
distante da minha família, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, onde mais uma vez fiz
outro curso, de Formação de Instrutores também, mas, desta vez, em parceria com a
MEC do Governo Federal. Nesta mesma cidade, Porto Alegre, minha vida mudou
completamente, só convivi com as pessoas surdas, sem ouvintes, ou seja, para mim,
aquela era uma cidade de surdos, pois só falava em Libras em qualquer lugar, tanto na
escola de surdos quanto na universidade, onde já tinha contratado muitas intérpretes de
Libras, ou seja, perdi a prática da fala oral, ficando só na fala através de sinais. Na volta
para a cidade onde família morava, fui duramente criticado pela perda da fala oral,
porque nessa época que passei no sul do Brasil, fiquei sem praticar a língua oral só
usando Libras, o que para mim melhorou muito, sem falar das experiências que adquiri
com essa nova visão de mundo. Hoje sou aluno do curso de graduação de Letras –
Libras da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC no pólo UFPE –
Universidade Federal de Pernambuco, em Recife/PE. Resumindo, através da Libras, a
minha vida está melhorando muito, apesar da sociedade brasileira, na sua maioria, só
utiliza a língua portuguesa. O português para mim foi primeira língua, ou seja, língua
materna, mas foi com a Libras que novas possibilidades se abriram para mim. Apesar de
ter adquirido a Libras na adolescência, adquiri como uma criança surda adquire a língua
de sinais, de forma natural.”
4. Considerações finais
Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo
língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças
adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de
aquisição da linguagem indicam universais linguísticos. O fato de o processo ser
concretizado através de línguas viso-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem
se desenvolva em crianças surdas, exigeu uma mudança nas formas como esse processo
vem sendo tratado na educação de surdos.
A aquisição da linguagem em crianças surdas deve acontecer mediante uma
língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da Língua de Sinais Brasileira. Isso
independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetização,
aquisição do português, aquisição de conhecimentos etc.), pois é algo que deve ser
pressuposto.
Diante do fato de as crianças surdas irem para a escola sem uma língua
adquirida, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à Língua de
Sinais Brasileira mediante a interação social e cultural com pessoas surdas. O processo
educacional ocorre por meio da interação linguística e deve ocorrer, portanto, na Língua
de Sinais Brasileira. Se a criança chega à escola sem linguagem, é fundamental que o
trabalho seja direcionado à retomada do processo de aquisição da linguagem através de
uma língua visual-espacial
A aquisição da linguagem é essencial, pois com ela, mediante as relações
sociais, se constituirão os modos de ser e de agir, ou seja, a constituição do sujeito.
Como mencionado por Góes (2000, 31), a produção de significados em relação ao
mundo da cultura e a si próprio é um processo necessariamente mediado pelo outro, é
efeito das relações sociais vivenciadas na e pela linguagem.
5. Referências bibliográficas
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VYGOTSKY, L.S. (__). Concrete Human Psychology. Soviet Psychology, v. 27, n. 2.
FUNÇÕES COMUNICATIVAS RECORRENTES EM PERFIS
CORPORATIVOS E INSTITUCIONAIS NO TWITTER
Bruno Diego de Resende Castro47
RESUMO: As teorias sobre gêneros desde Bakhtin até teóricos mais recentes trazem a ideia da
dinamicidade, em que os gêneros do discurso são relativamente estáveis e intrinsecamente ligados às
esferas de atividade humana, ou seja, são estáveis no sentido de manter certa recorrência de funções e
formas, e dinâmicos, porque quando surgem novas ferramentas de comunicação surgem novos gêneros.
Ademais, os gêneros do meio digital “são caracterizados intensamente pela mudança e adaptação, mas
isso problematiza a própria ideia da mudança genérica.” (MILLER, 2009 p. 94). Tendo por base este
enfoque teórico, o objetivo desta comunicação é identificar e caracterizar algumas funções comunicativas
que são recorrentes no twitter (uma ferramenta de caráter híbrido entre blog, rede social e mensageiro
instantâneo) relacionando-as às esferas de atuação dos enunciadores, através da teoria de gêneros do
discurso. Para tanto, fizemos uma abordagem funcional, comunicativa e formal sobre o gênero analisado,
cujo corpus constitui-se dos seguintes perfis: @ufcinforma, @comunicacaoufpi, @IFPI_ASCOM,
@novo_submarino, @buscadescontos, @portalmeionorte, e @portalodia. Sendo três perfis de instituições
ligadas ao governo e quatro a corporações. Diante disso, pode-se observar alguns dos traços recorrentes
em cada perfil. Constatamos que o twitter apresenta finalidades comunicativas de acordo com o perfil da
instituição ou corporação que enuncia e algumas das funções comunicativas encontradas foram:
divulgações sobre a própria instituição, divulgação de notícias relacionadas às instituições,
disponibilizando hiperlinks, realizando divulgação científica etc.
PALAVRAS-CHAVE: Twitter; gênero do discurso; esferas sociais; funções comunicativas.
ABSTRACT: The theories about genders from Bakhtin to more recent theorists include the idea of the
dynamicity, in which the genders of discourse are relatively stable and intrinsically linked to the spheres
of human activity. In other words, they are stable in the sense of maintaining certain recurrence of
functions and forms, and dynamic, because when new communication tools appear, new genres also
appear. Moreover, the genders of the digital environment “are intensely characterized by change and
adaptation, but this compromises the proper idea of generic change." (MILLER, 2009 p. 94). Taking as a
base this theoretical focus, the objective of this communication is to identify and characterize some
communicative functions that are recurrent on Twitter (a tool that is a hybrid of blog, social website and
instant messenger) relating them to the performance spheres of the enunciators, through the theory of
genders of discourse. For this, we have taken a functional approach, communicative and formal about the
gender analyzed, whose corpus consists of the following profiles: @ufcinforma, @comunicacaoufpi,
@IFPI_ASCOM, @novo_submarino, @buscadescontos, @portalmeionorte, and @portalodia, being three
profiles from government institutions and four from corporations. Thus, some of recurring features in
each profile can be observed. We have verified that Twitter presents communicative outcomes in
agreement with the profile of the institution or corporation that initiated them. Some communicative
functions found were: divulgences about the institution itself, divulgences of related news, providing
hyperlinks, divulging scientific research etc.
1. Introdução
A sociedade contemporânea (século XXI) está quase que totalmente envolvida e
dependente da informática, isto é, a cada dia a tecnologia e, principalmente, a internet
47
Mestrando em Letras (2010-2012) pela Universidade Federal do Piauí e integrante do Grupo de
Pesquisa em Texto, Gênero e Discurso (Cataphora) - Teresina / Piauí.
ganha espaço em todas as áreas da atividade humana. Assim, as corporações de um
modo geral estão se “aproveitando” da facilidade de comunicação e da abrangência da
internet para atingir os mais variados fins.
Mas, essa situação também pode ser percebida no setor público, porém mais
tardiamente do que em empresas do setor privado. Dessa forma, desenvolve-se uma
nova dinâmica social que abrange tanto instituições do setor público como corporações
do setor privado, as pioneiras em inaugurar essa nova forma de interação social, mais
informal.
A massificação e “propaganda de facilidade” de comunicação, o fato de ser uma
rede social e por ser “simples” fizeram com que o Twitter passasse a ser um meio de
comunicação entre instituição/corporação e sociedade. Essa agilidade deve-se à
limitação das postagens, pois isso facilita a leitura e proporciona ao leitor verificar
muitas informações em pouco tempo. Por conseguinte, uma ferramenta que inicialmente
foi desenvolvida para a comunicação entre usuários comuns (com certo grau de
familiaridade) passou a ser utilizada por empresas e, depois, por corporações e
instituições, inaugurando uma nova dinâmica para o microblog.
Partindo desse contexto, o presente artigo pretende analisar as funções
comunicativas mais recorrentes no Twitter, fazendo uma correspondência entre a esfera
da atividade humana com o enunciador (perfil do Twitter – tuiteiro), já que a instituição
ou corporação carrega toda uma carga significativa, então, o enunciado apresentará
aspectos semelhantes, se for de uma mesma esfera comunicativa, além de identificar os
traços linguísticos recorrentes nessas composições.
Então, se existe um formato a ser seguido por uma instituição ou corporação,
teremos um gênero textual. Tendo isso em vista, tomamos como base os estudos de
Bakhtin (2003), considerando que “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, sendo isso gêneros do discurso”, como também
Marcuschi (2008), que situa os “ambientes ou entornos virtuais” como “locais” em que
os “gêneros digitais” estão assentados. Dessa forma, pretendemos estudar o Twitter
como um gênero digital.
2.
Gênero do discurso: a tentativa de “estabilização” do Twitter
Tendo como base a noção de que gêneros textuais são classes de textos “que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos
característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos estilos
concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e
técnicas (MARCUSCHI, 2008, p. 155), podemos perceber a dimensão social dos
gêneros textuais e a sua estabilização, que é tênue, devido à dinamicidade da própria
sociedade.
Então, como podemos perceber traços recorrentes em uma classe em que a
dinamicidade é a regra? Bhatia (1997, 629 apud MARCUSCHI, 2008, p. 150) afirma
que, devido às ações comunicativas e estratégias convencionais, produzimos textos
“semelhantes”, para alcançar um determinado objetivo. Dessa forma, Marcuschi (2008,
p. 150) diz que “cada gênero têm uma forma e uma função, bem como estilo e um
conteúdo, mas sua determinação se dá basicamente pela função e não pela forma”.
Assim, podemos perceber essa característica (de ser estável) no estudo de Bakhtin
(2003, p.179):
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana. O enunciado reflete as condições especificas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e
por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua –
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e, sobretudo,
por seu conteúdo composicional.
Essa noção do uso da língua permite-nos “encaixar” o Twitter em um gênero
digital, pois a língua está sendo usada a partir de um conteúdo temático e por meio do
estilo verbal da esfera da atividade humana a qual pertence o perfil.
Delimitamos, assim, a presente pesquisa, para fazer um tratamento genérico do
Twitter, mas sabendo, segundo Marcuschi (2008), que corremos o grande risco ao
definir e identificar os gêneros digitais, em função de sua natureza variável e versátil,
pois o “seu vertiginoso avanço pode invalidar com grande rapidez” as ideias aqui
apresentadas.
No Twitter, tem-se um caso particular de gênero digital, pois é uma
transmutação de, pelo menos, dois gêneros digitais, o blog e o chat. Consequentemente,
as teorias de gêneros do discurso podem não dar conta dessa dinamicidade e
flexibilidade dos gêneros digitais.
Assim, a tentativa de “estabilizar” o Twitter como um gênero digital é
condicionada tanto pela sua própria forma, a limitação de 140 caracteres, como também
pela intenção pretendida pelo enunciador, isto é, tem-se como base a intenção
comunicativa do usuário. Consequentemente esse gênero digital possui uma “forma” e
função que são definidas pelo conjunto de características sócio-históricas de uma
comunidade de fala e mais especificamente, por cada esfera discursiva (família, religião,
empresa jornalística, ambiente virtual etc.).
3. Peculiaridades do Twitter
De maneira resumida e não exaustiva, Orihuela (apud ZAGO, 2008) define o
Twitter como “uma ferramenta de microblog, com caráter híbrido entre blog, rede social
e mensageiro instantâneo”, cujas postagens (tweets) são limitadas a 140 caracteres,
limitação que se deve à utilização não só em computadores, mas também em celulares.
O Twitter é um microblog devido à limitação da postagem e por possuir tratamento
temático semelhante aos demais blogs (exposição de ideias, autopromoção, discussões
etc.); é uma rede social, porque permite ao usuário seguir (following) e ser seguido
(follower) por outros usuários e assim saber “o que está acontecendo” através das
postagens de quem está seguindo; e pode ser considerado como um mensageiro
instantâneo, porque quando os usuários estão on-line podem enviam mensagens entre si
de forma síncrona, ou seja, o usuário A escreve diretamente ao usuário B mediante a
opção reply48 ou simplesmente colocando o sinal “@” antes do nome do perfil, e assim
conversarem on-line.
Esse sistema foi inicialmente criado para que usuários, geralmente conhecidos
(familiares, colegas de trabalho e amigos), se comunicassem, respondendo a uma
pergunta, “what are you doing?”. Segundo os desenvolvedores desse sistema, o Twitter
seria uma forma de comunicação “natural” em que o usuário escreveria o que achasse
importante comunicar aos seus seguidores (followers).
Porém a abrangência alcançada pelo Twitter, ao redor do mundo, fez com que a
pergunta que “conduz” os tweets mudasse de “what are you doing?” para “what’s
happening?”, tornando-se mais geral para atender a todos os usos comunicacionais que
o usuário pretender construir, tais como: falar sobre atividades do seu cotidiano,
promover debates sobre temas diversos, autopromover-se, informar através de notícias
etc.
Assim, depois de apropriado pelos indivíduos, o Twitter “servirá aos
interesses” do enunciador que, para alcançar êxito na comunicação, adéqua o texto
(tweet) para a função comunicativa pretendida, pois, segundo Bakhtin (2003), “uma
dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições,
específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero”,
e, assim como ocorreu com os blogs e demais gêneros digitais, a cada descoberta de
uma função comunicativa, o gênero digital passa a ter uma forma textual que atenda a
essa determinada função. Isto é, como foi afirmado anteriormente, os gêneros do
discurso são dinâmicos e o Twitter, pertencente ao mundo virtual, permite uma maior
flexibilidade que serve à função comunicativa que o usuário pretende enunciar.
Dessa forma, consideraremos o Twitter um gênero digital transmutado (do blog
e do chat, pelo menos). Segundo Miller (2009) a origem dos gêneros ocorre de
mudanças de situação, contexto e cultura e de outros gêneros, num processo
evolucionário e “ocasionalmente do esforço consciente de indivíduos para preencher
uma necessidade não satisfeita previamente”. Nesse último processo, podemos situar o
Twitter.
4. Contexto das instituições e corporações
A sociedade do século XXI gira em torno da alta informatividade promovida
pelos meios digitais de comunicação e, nesse contexto, as instituições públicas e as
corporações inauguram novas formas de comunicação, pois, em cada meio digital de
comunicação (e-mail, blog, home page, rádios etc.) existe uma nova situação interativa
entre a instituição/corporação e o público em geral.
O Twitter é um desses meios digitais de comunicação e, consequentemente, o
contexto em que o enunciado é produzido está vinculado, segundo Swales (apud
HEMAIS & BIASI-RODRIGUES, 2005, p.113) a “uma classe de eventos
comunicativos, (em que) os eventos compartilham um propósito comunicativo.” Assim,
48
Reply é a opção que o usuário tem de indicar na postagem que está se referindo aquele perfil é a mesma
função do “@” antes do nome do perfil.
a proposta comunicativa de uma instituição/corporação é compartilhada por todas que
possuem a mesma proposta, constituindo, então, um gênero do discurso.
No caso de instituições e corporações, além de possuir uma mesma proposta
comunicativa, deve-se observar o contrato social desses enunciadores com os
receptores. Bhatia (1997) afirma que “os gêneros se definem essencialmente em termos
do uso da linguagem em contextos comunicativos convencionados, que dá origem a
conjuntos específicos de propósitos comunicativos para grupos sociais e disciplinares
especializados, que, por sua vez, estabelecem formas estruturais relativamente estáveis
e, até certo ponto, impõem restrições quanto ao emprego de recursos léxicogramaticais”, ou seja, as instituições ao se apropriarem do Twitter estabelecem formas
estruturais que não são totalmente estáveis, pois além de ser socialmente determinada,
tem-se ainda a versatilidade do meio digital, o que conduzirá à construção linguística do
enunciado.
Portanto, é pertinente dizer que os gêneros são construídos para atender a
situações comunicativas que se repetem de forma regular e acabam por estabilizar-se,
sendo originárias de propósitos comunicativos próprios para aquela
instituição/corporação marcados por estruturas regulares e recursos linguísticos
restritos.
Além dessas funções comunicativas relacionadas à instituição, têm-se as que são
relacionadas a empresas jornalísticas, que são as mesmas do jornal impresso: noticiar
fatos do cotidiano.
Serão analisados, também, neste artigo enunciados da esfera publicitária cuja
função comunicativa, em geral, é a de oferecer produtos e serviços. Assim, buscaremos
observar essa função também no Twitter, porém tendo em vista as peculiaridades
próprias do microblog.
Após essa breve contextualização da origem do corpus que compõe o presente
artigo, apresentaremos a metodologia utilizada para se chegar a essas recorrências
comunicacionais das esferas aqui tratadas.
5. Metodologia
Primeiramente, elencamos a bibliografia que tem como base as teorias de
gêneros do discurso, pois pretendemos realizar uma abordagem genérica, identificando
e caracterizando as funções comunicativas da instituição/corporação no gênero digital
Twitter, visto que é um meio digital que possui características peculiares (ser
mensageiro instantâneo, blog e rede social), por ter muitas opções de utilização, ou seja,
tem variadas finalidades comunicativas, e possuir todo um contexto sociocultural e
interacional conduzindo à linguagem.
Para realizar esse estudo, selecionamos os seguintes perfis: “@ufcinforma49”,
“@comunicacaoufpi” “@IFPI_ASCOM”, ”@buscadescontos”, “@novo_submarino”,
49
A forma “@ + nome do perfil” é como o usuário faz para citar o perfil em uma conversa, encontrá-lo
no buscador do Twitter ou conversar com o perfil.
“@portalodia” e “@portalmeionorte”. Sendo que os três primeiros perfis são de
instituições públicas, em que duas são de universidades federais, (@ufcinforma e
@comunicacaoufpi), e um é de instituto federal, (@IFPI_ASCOM); os outros quatro
são compostos por dois perfis de sites de vendas pela internet (@novo_submarino e
@buscadescontos), e dois de jornais piauienses (@portalodia e @portalmeionorte). O
quadro abaixo ilustra todas as categorias selecionadas para compor o corpus:
Esfera da
atividade
humana
Acadêmica
Jornalística
Publicitária
Nome
Universidade
Federal do Piauí
Universidade
Federal do Ceará
Instituto Federal de
Ensino do Piauí
Grupo Meio Norte
de comunicação
Sistema O DIA de
Comunicação
Submarino
Busca Descontos
Nome do perfil
Endereço do twitter
(http://twitter.com/__)
@comunicacaoufpi comunicacaoufpi
@ufcinforma
ufcinforma
@IFPI_ASCOM
IFPI_ASCOM
@portalmeionorte
portalmeionorte
@portalodia
portalodia
@novo_submarino
@buscadescontos
novo_submarino
buscadescontos
Quadro1 – Categorias e endereços dos perfis selecionados
As postagens foram coletadas diretamente dos perfis entre os dias 23 de outubro
de 2009 a 13 de março de 2010, tendo sido selecionados 80 tweets,50 na ordem em que
foram postados, isto é, de maneira cronológica, assim como está no timeline,51 que é do
tweet mais recente para o menos recente.
Os perfis dessas universidades foram selecionados por serem duas do Estado do
Piauí e uma do Ceará, que foi selecionada para se fazer uma comparação entre as
recorrências. Selecionamos, também, dois jornais de circulação local e duas empresas
de comércio eletrônico. Dessa forma, foram analisados os tweets realizados por essas
instituições/corporações e as recorrências neles existentes.
6. Funções comunicativas recorrentes no Twitter
Como foi apresentado, o tratamento ao Twitter será de gênero digital, devido à
relativa estabilidade da forma, ao uso linguístico ser conduzido para atender à função
comunicativa do enunciador e ao condicionamento a uma esfera da atividade humana.
6.1. Divulgação de notícias
A simplicidade, devido à limitação de 140 caracteres, facilita a difusão de
informações, que se torna rápida por conta da agilidade na leitura e na retransmissão das
50
Tweets são as postagens do Twitter.
Página inicial do Twitter, ou seja, lugar em que o usuário escreve suas postagens e lê as postagens dos
seus followings.
51
noticias entre os usuários da rede através do retweet52, permitindo, assim, a
disseminação de notícias de forma rápida e “eficaz”, pois o receptor demora pouco
tempo para ler os tweets da sua rede social.
Os perfis pertencentes às esferas acadêmicas e jornalísticas utilizam-se dessa
agilidade para atingir suas propostas comunicacionais de divulgar notícias que, no caso
das universidades, são relacionadas à própria instituição de ensino, isto é, são voltadas
ao público acadêmico. Na esfera jornalística, por sua vez, tem-se uma maior diversidade
na temática da notícia, pois os jornais referendam acontecimentos locais a nacionais.
Assim, resguardando as devidas proporções, a temática é semelhante à do jornal
impresso.
Portanto, para as universidades, especificamente, o uso do Twitter permite uma
maior proximidade com a comunidade em geral, com os alunos, com os professores e
com outras instituições, pois os usuários que estão seguindo o perfil ficam a par dos
acontecimentos que envolvem a universidade em tempo hábil.
Já nos perfis dos jornais, o usuário conhece, por meio do Twitter, as notícias que
são publicadas nos sites dessas empresas, pois, por meio do API53, o jornal atualiza o
Twitter “automaticamente”, porém com algumas limitações, como o número de
postagens por hora.
6.1.1. Esfera acadêmica no Twitter
Como apresentados no Quadro 1, selecionamos três perfis que pertencem à
esfera acadêmica para, assim, podermos contextualizar o enunciado postado e extrair as
recorrências das funções comunicativas encontradas, bem como a estrutura
composicional. No item 6.1, a função comunicativa recorrente nessa esfera foi a
divulgação de notícias referentes à própria instituição. Então, apresentaremos a seguir
algumas postagens para ilustrar essa recorrência, bem como para apresentar os traços
formais que mais ocorreram.
A seguir, temos cinco postagens do perfil “@ufcinforma”:
O curso de Especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem
prorrogou inscrições até segunda-feira (18). http://bit.ly/6GQ1rA
11:13 AM Jan 15th from web
Atenção! Termina hoje (2) a primeira fase do processo de matrícula
2010.1, para alunos veteranos. http://uiop.me/PbE 3:22 PM Feb 2nd
from web
Abertas, até 18/03, inscrições p/ concurso de melhores monografia,
dissertação e tese da Semana de Humanidades da UFC.
http://uiop.me/TAD 11:51 AM Feb 18th from web
Reopção de curso p/ candidatos classificáveis do Vestibular 2010 que
fizeram
provas
específicas
em
Física
e
Matemática.
http://uiop.me/RnX 9:43 AM Feb 10th from web
52
Retwitar é retransmitir uma informação que se considera relevante para um grupo de seguidores
(SPYER, 2009, p. 28).
53
A Interface de Programação de Aplicativo (API) tem sido empregada por empresas jornalísticas para
postarem simultaneamente notícias no Twitter como no site oficial do jornal.
MAUC irá expor, dias 28 e 29/01, a maior gravura já produzida no
País: "Os quatro elementos", de Francisco de Almeida.
http://uiop.me/NpB 3:42 PM Jan 27th from web
Podemos observar nesses exemplos que a função comunicativa é divulgar fatos
relacionados à universidade e que o receptor pretendido é aquele que também está
inserido na esfera acadêmica.
Temos neles, ainda, alguns traços linguísticos recorrentes: o uso de links, a
acentuação adequada e o uso de redutor de links. O primeiro traço se deve à limitação
do tweet a 140 caracteres, em que o enunciador cria um “título” para o texto,
sintetizando-o ao máximo para “caber” no Twitter, e posta esse título com o link que
direciona o leitor para o texto na íntegra (se ele desejar ler o texto completo). O segundo
traço relaciona-se ao caráter da instituição, pois a universidade utiliza um modelo de
linguagem padrão para a sociedade, por conseguinte, esse traço reflete esse pensamento.
O terceiro traço é uma adaptação do primeiro, porque a maioria dos links possui um
“endereço” muito extenso, que ultrapassaria os 140 caracteres apenas com o link, não
permitindo ao enunciador postar o “título” do texto para informar ao receptor do que se
trata o link.
Analisaremos, em seguida, cinco exemplos do perfil @comunicacaoufpi:
Inscrições para projeto Pré-Vestibular Popular começam segunda-feira
(1º): http://www.ufpi.br/noticia.php?id=16698 12:04 PM Jan 27th
from Echofon
Aprovados no PSIU para cursos do CCS e CCA devem realizar
matrícula institucional nesta segunda (1º): http://tinyurl.com/ycaaer7
9:07 AM Feb 1st from Echofon
Residência Médico-Veterinária abre inscrições segunda-feira (01):
http://www.ufpi.br/noticia.php?id=16798 9:24 AM Feb 25th via
Echofon
@TamirisLima Boa tarde, o que houve? 2:14 PM Feb 1st from
Echofon in reply to TamirisLima
Vaga para estágio na Coordenadoria de Comunicação da UFPI, no
turno da tarde. Interessados: (86) 3215-5525/3215-5526. 5:06 PM Feb
2nd from Echofon
A função recorrente, como já dissemos, é de comunicar fatos relacionados à
própria universidade. Os traços linguísticos observados são semelhantes ao perfil da
Universidade Federal do Ceará: o uso de links e a acentuação adequada, motivados pela
limitação de caracteres e pelo caráter significativo da instituição. Contudo, o perfil
“@comunicacaoufpi” tem algumas peculiaridades em relação ao “@ufcinforma”. A
primeira é a pouca ocorrência de links reduzidos pelo perfil “@comunicacaoufpi” e a
outra é o meio utilizado para postar os tweets, o perfil da UFPI usa primordialmente o
aplicativo “Echofon”, já a UFC utiliza a web.
Por último, temos o perfil “@IFPI_ASCOM”. A seguir, observamos cinco
tweets:
Estão abertas as inscrições para o Simpósio de Alimentos do Instituto
Federal do Piauí de 24 a 27/11. informações:88336138/ 88196695
4:49 AM Oct 23rd, 2009 from web
Campus Teresina Zona Sul realiza encontro pedagógico. Confira:
www.ifpi.edu.br 8:44 AM Feb 23rd via web
Começa amanhã o Encontro Cientifico do IFPI - ENCIPRO. Confira a
programação e participe. www.ifpi.edu.br 5:34 AM Nov 3rd, 2009
from web
IFPI realiza ultimo dia do Encontro Cientifico - ENCIPRO. 6:58 AM
Nov 6th, 2009 from web
Eleições para Diretor Geral dos campi Teresina Central e
Floriano.http://tinyurl.com/ycdgjam 9:40 AM Mar 2nd via web
IFPI realiza o II Simpósio de Produtividade em Pesquisa e II Encontro
de Iniciação Científica do IFPI no período de 3 a 6/ 11 .Participe! 6:38
AM Oct 30th, 2009 from web
Esse perfil também tem como função comunicativa recorrente: divulgar
informações sobre fatos da esfera acadêmica. Nas postagens desse perfil podemos
observar algumas peculiaridades, tais como: a não realização de acentuação em muitas
postagens e o grande número de postagens sem links. Acreditamos que isso ocorre
devido a pouca experiência no uso do Twitter, já que o perfil possui poucas postagens.
Mas, podemos observar também a recorrência dos links e do redutor de links em grande
parte das postagens que são mais recentes.
No gráfico a seguir, podemos ter uma visão geral da “estrutura” composicional
recorrente no Twitter nessas esferas:
Gráfico 1 – Recorrências linguísticas na esfera acadêmica
6.1.2. Esfera jornalística
Nesta seção, analisaremos, como apresentado no Quadro 1, dois perfis que
pertencem à esfera jornalística, já que pretendemos contextualizar o enunciado postado
e extrair as recorrências das funções comunicativas encontradas, assim como a estrutura
composicional.
No item 6.1, apresentamos a função comunicativa recorrente dessa esfera, que
foi a divulgação de notícias com temática extremamente variada. Então, apresentaremos
a seguir algumas postagens para ilustrar essa recorrência, bem como os traços
linguísticos que mais ocorreram.
Seguem cinco postagens do perfil “@portalodia”:
Luz
para
todos,
um
fio
de
esperança
http://www.sistemaodia.com/noticias/luz-para-todos-um-fio-deesperanca-71171.html 1:33 PM Mar 3rd via API
Jesus diz que se considera casado com Madonna http://bit.ly/9mMqyj 10:19 AM Mar 5th via API
O
papel
das
lideranças
na
gestão
da
Saúde.
http://www.sistemaodia.com/noticias/o-papel-das-liderancas-nagestao-da-saude-71466.html 4:37 PM Mar 6th via API
Programação
Aniversario
de
Capitao
de
campos
http://www.sistemaodia.com/noticias/programacao-aniversario-decapitao-de-campos-71431.html 9:15 AM Mar 6th via API
MULHER
X
COMPRAS
TUDO
A
VER.
http://www.sistemaodia.com/noticias/mulher-x-compras---tudo-a-ver71579.html about 11 hours ago via API
Nesses exemplos, podemos observar que a função comunicativa é a de noticiar,
porém, a temática é variada, o que nos permite comparar com o jornal impresso.
Entretanto, no Twitter, não temos a divisão por seções.
Os exemplos desse perfil possuem alguns traços linguísticos que são recorrentes:
o uso de links, a acentuação adequada e o uso de redutor de links. O primeiro traço se
deve à limitação do próprio Twitter, em que o enunciador coloca apenas o título da
notícia e posta esse título com o link que direciona para a notícia na íntegra, no site do
próprio jornal. O outro traço relaciona-se à carga significativa da própria corporação,
pois o jornal deve praticar a linguagem padrão perante a sociedade e, por conseguinte,
esse traço refletirá essa característica inerente à esfera da atividade humana na qual está
inserido esse perfil. O terceiro traço é uma adaptação do primeiro, pois como o
“endereço” dos links geralmente é extenso e como a regra no Twitter é economizar o
redutor de link, torna-se um aspecto essencial para unir o titulo da notícia ao endereço
do link para o site do jornal.
Em seguida, temos cinco postagens do perfil “@portalmeionorte”:
Saiba como combinar sombra e batom - http://migre.me/kPEJ about 1
hour ago from API
Os males que o cigarro causa a pele - http://migre.me/kPBk about 1
hour ago from API
Herança genética e fatores psicológicos podem causar o alcoolismo http://migre.me/kPw3 about 1 hour ago from API
Destaque , materia veiculada na TVMN http://bit.ly/aPmuip about 23
hours ago from twitterfeed
CONHEÇA OS PERIGOS QUE OS REFRIGERANTES FAZEM AO
NOSSO CORPO - http://migre.me/kNVd about 11 hours ago from
API
Minotauro é nocauteado, e Wanderlei renasce no UFC 110 na
Austrália - about 20 hours ago from API
Esses exemplos permitem-nos observar que a função comunicativa recorrente é
a de noticiar, como já foi exposto anteriormente. O perfil apresenta as mesmas
recorrências linguísticas do perfil anterior, mas enquanto este apresenta quase todas as
postagens com redutor de links, aquele possui apenas duas postagens com redutores de
links.
A seguir, no Gráfico 2, podemos ter uma visão geral da “estrutura”
composicional recorrente no Twitter nessas esferas:
Gráfico 2 – Recorrências linguísticas na esfera jornalística
6.2. Divulgação de produtos e serviços no Twitter
“Na medida em que o uso do Twitter se espalha, mais companhias se interessam
em promover marcas, fazer pesquisas, se relacionar com clientes e vender online”
(SPYER, 2009, p. 49), isto é, a facilidade com que se difundem informações no Twitter
torna uma marca conhecida muito rapidamente, devido à agilidade na leitura pelos
usuários e na retransmissão das notícias entre os usuários da rede por meio do retweet,
permitindo, assim, a disseminação da marca de forma rápida e “eficaz”, pois o receptor
“demora pouco tempo” para ler os tweets de sua rede social.
Dessa forma, o Twitter inaugura uma nova relação entre empresa prestadora de
serviço e usuário, pois “quantas pessoas prestaram atenção em um outdoor e como elas
foram impactadas por isso. Não era possível saber isso, mas agora é. Basta a empresa
incorporar ao anúncio incentivos para que usuários tuitem a respeito.”(ibidem), como,
por exemplo, um usuário poder concorrer a prêmios se retwitar determinado tweet.
Os perfis pertencentes à esfera publicitária utilizam-se dessa agilidade e rapidez
para atingir sua proposta comunicativa, que é a de divulgar algum produto.
6.2.1. A esfera publicitária
Nesta seção, será feita a análise de dois perfis que pertencem à esfera
publicitária, como foi apresentado no Quadro 1. Assim, pretendemos contextualizar o
enunciado postado e identificar as recorrências das funções comunicativas encontradas,
além de caracterizar a estrutura composicional das postagens.
No item anterior, já adiantamos que a função comunicativa recorrente dessa
esfera é a divulgação de produtos e serviços. Então, apresentaremos a seguir algumas
postagens para ilustrar essa recorrência e também para identificarmos os traços
linguísticos que mais ocorreram nelas.
Primeiramente, analisaremos
“@buscadescontos”, que são:
cinco
exemplos
de
postagem
do
perfil
TODAS as ofertas de #informática do Busca Descontos:
http://www.buscadescontos.com.br/?q=informatica&ob=novos 11:12
PM Feb 9th via web
http://migre.me/jrme #Americanas Pen Drive 4GB a partir de R$39,90
(via @buscadesconto) 3:05 PM Feb 9th via API
http://migre.me/lAe4 #Voe_Azul Azul está com promoção de
passagens em dezenas de trechos só nesse fim de semana (via
@buscadescontos) 2:20 PM Feb 27th via API
http://bit.ly/bZ3gAO #Americanas ESPECIAL 30% de DESCONTO
em Notebooks e Netbooks (via @buscadescontos) 4:05 PM Mar 6th
via API
http://migre.me/jQst #Busca_Descontos #Descontos e #Promoções
para o final de semana? (via @buscadesconto) 1:37 PM Feb 12th via
API
Nas postagens apresentadas acima, podemos verificar um traço linguístico que é
específico do Twitter, pois além da síntese de ideias e do uso de links em todas as
postagens, tem-se a hash tag54, que é uma “saída” dos usuários para identificarem o
assunto a que a postagem se refere. A “ideia de colocar etiquetas nas mensagens é
permitir que elas sejam encontradas e identificadas por outras pessoas” (SPYER, 2009,
p. 20) – recurso muito importante para a esfera publicitária, já que identifica do que
trata a postagem e situa a postagem facilitando a busca, se assim o usuário desejar.
Agora, analisaremos as postagens do perfil “@novo_submarino”, que são cinco
também:
O ganhador do #CowMarino foi @pettersonarq com a escowfandrista
http://twitpic.com/10p9d4 Parabéns! Aguardem nossas próximas
promoções 5:11 PM Feb 12th from web
Ofertas secretas no Submarino, confira: http://migre.me/iukN 8:51
AM Feb 2nd from web
Se Changeman fez parte da sua infância, não perca a lata especial
Esquadrão Relâmpago + Camiseta e Postêr: http://migre.me/jya7
11:23 AM Feb 10th from web
Para comemorar o dia dos criativos, lista de livros com descontos
exclusivos
(aparece
no
carrinho):
http://bit.ly/bkqS0E
#diadopublicitario 2:12 PM Feb 1st from web
Vocês pediram e a promo relâmpago da coleção completa de Prison
Break
voltou.
Mas
por
tempo
limitado,
aproveite:
http://migre.me/kjsK 3:41 PM Feb 17th from web
Temos acima exemplos de postagens em que podemos observar características
semelhantes às do primeiro perfil, tais como: síntese de ideias, uso de links e redutor de
links e o uso de hash tags. Contudo, as postagens do @novo_submarino possuem uma
linguagem “menos direta” do que a do perfil @buscadescontos, como na terceira
postagem, em que o enunciador apresenta uma data comemorativa para incentivar a
venda do produto.
No gráfico seguinte, temos a ilustração da “estrutura” composicional recorrente
no Twitter nessas esferas:
54
O termo vem do inglês hash é o nome do símbolo “#” e tag significa etiqueta, criar uma hash tag
“significa relacionar palavras-chave a um determinado conteúdo para que ele possa ser encontrado por
outras pessoas.” (SPYER, 2009, p. 20)
Gráfico 3 – Recorrências linguísticas na esfera publicitária
7. Considerações finais
Este artigo é apenas parte de um pensamento maior que será a dissertação de
Mestrado a ser desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Piauí, assim, possui alguns problemas, como a utilização da Teoria de
Gêneros do Discurso, na perspectiva bakhtiniana, visto que os gêneros do discurso,
atualmente, possuem aspectos composicionais e formais mais diluídos do que quando se
pensou em uma teoria de gêneros; dessa forma, tentou-se pensar nessa teoria e aplicá-la,
pois se buscava uma maior formalização da pesquisa.
Esta análise corre um grande risco ao tratar o Twitter como um gênero do
discurso, pois a multiplicidade de funções e a “maleabilidade” proporcionada pela
evolução da informática dificultam a busca de recorrências. Formalizar algo tão flexível
e múltiplo pode não ser possível.
Assim, necessitou-se realizar um recorte muito grande para transformar, em
apenas um artigo, toda a análise que o Twitter pode oferecer a uma pesquisa linguística.
Por isso, não apresentamos neste estudo alguns aspectos que lhe poderiam dar um maior
suporte: o número de seguidores (followers) e de seguidos (following) e o número de
postagens (tweets) por dia e em sua totalidade.
A partir desses esclarecimentos, podemos apresentar as funções comunicativas
recorrentes em perfis institucionais e corporativos, que foram: noticiar, em sua maior
ocorrência, nas instituições públicas (esfera acadêmica); difundir notícias, em todas as
postagens dos perfis pertencentes à esfera jornalística; e divulgação de produtos e
serviços, na maioria das postagens dos perfis da esfera publicitária, porém observamos
outras funções que não foram apresentadas devido ao recorte feito, como esclarecemos
anteriormente.
A “estabilização” do gênero digital Twitter pretendida nesta análise foi realizada
com base na Teoria de Gêneros do Discurso, haja vista que, dentro de uma esfera da
atividade humana, os indivíduos se comunicam e interagem mediante gêneros do
discurso em uma situação determinada sócio-historicamente. Então, sob esse viés,
realizamos a formalização do estudo do Twitter como um gênero do discurso e não
como uma ferramenta de comunicação.
Acredita-se que vários problemas surgem dessa formalização, porém ela se torna
necessária, pois, para se fazer um estudo linguístico de uma forma de comunicação,
deve-se situá-lo em um gênero do discurso e assim desenvolver a análise.
Alguns dos problemas que surgem com este estudo são: podemos afirmar que o
Twitter é um gênero? Se for, cada esfera da atividade humana que criar um perfil criará
um gênero? Podemos dizer que essas esferas sociais estão criando novos gêneros
digitais a partir do Twitter? Utilizar a Teoria de Gêneros do Discurso é possível para
esse tipo de análise? Pretendemos responder a esses questionamentos na dissertação ou,
talvez, nela apresentar outros; por enquanto, o artigo científico não nos permite
responder a elas, pois não requer um maior fechamento e uma amplitude de análise.
8. Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Os Gêneros do Discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, pp. 261-306.
_____. Tema e Significação na Língua. In: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São
Paulo: Hucitec, 2004.
BHATIA, V. K. Genre Analysis Today. Revue Belge de Philologie et d’Histoire,
Bruxelles, 75:629-652. 1997. [Tradução: Benedito Gomes Bezerra].
HEMAIS, B.; BIASI-RODRIGUES, B. A Proposta Sócio-Retórica de Jonh M. Swales
para o Estudo de Gêneros Textuais. In: MEURER, J. L., BORTONI, A., MOTTAROTH, D. (orgs.) Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola Editorial,
2005.
SILVA, M. L. H. O Twitter como Ferramenta de Comunicação da Cibercultura.
Palmas, 2009. Monografia disponível em: <http://www.scribd.com/doc /23332387/OTwitter-como-ferramenta-de-comunicacao-da-Cibercultura>.
MARCUSCHI, L.A. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: Gêneros
Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, pp. 19-36.
_____. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital. In:
MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. (orgs.). Hipertexto e Gêneros Digitais: novas
formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005 pp. 13-67.
_____. Gêneros Textuais no Ensino de Língua. In: Produção Textual, Análise de
Gêneros e Compreensão. São Paulo: Parábola, 2008, pp. 146-224.
MILER, C. R. Questões da Blogosfera para a Teoria dos Gêneros. In: _____. Estudos
sobre Gênero Textual, Agência e Tecnologia. Recife, UFPE, 2009, pp. 93-121.
SPYER, J. Tudo o que Você Precisa Saber Sobre o Twitter (você já aprendeu em
uma mesa de bar). São Paulo: Talk Interactive. 2009. Disponível em:
<http://www.talk2.com.br/geral/baixe-o-guia-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-otwitter/>
ZAGO, G. S. Apropriações Jornalísticas do Twitter: a criação de mashups. In: II
Simpósio da ABCiber, São Paulo, 2008.
IMAGEM E DISCURSO: O HOMEM ENQUANTO OBJETO DE PERSUASÃO
Carla Jeane Ferreira Silva e Costa 55
RESUMO: Ao refletirmos sobre o papel do homem na sociedade contemporânea, estamos cientes de que,
imerso em uma sociedade de consumo e amplamente voltada ao visual, é perceptível que esse papel possa
estar relacionado ao de ‘objeto’, seja ele ‘objeto de poder’, ‘objeto de desejo’, ‘objeto de manipulação’ e
até mesmo ‘objeto de persuasão’, tendo em vista que o forte poder persuasivo contido nos mais diferentes
discursos que o rodeia, como o discurso religioso, o discurso jurídico, o discurso político, o discurso da
propaganda, entre outros, cada vez mais tentam transformar o homem em objeto. Nessa perspectiva,
focamos neste trabalho o discurso da propaganda como veículo propagador de um discurso carregado de
intencionalidade e persuasão que se utiliza dos mais variados recursos, principalmente da imagem para
conseguir alcançar seu objetivo final que é a adesão do leitor. Nesse ínterim, este trabalho tem como
objetivos tecer reflexões e analisar a influência do poder persuasivo da imagem frente ao homem
contemporâneo. Para alcançar nossos objetivos, utilizamos uma propaganda da marca de roupas
femininas Planet Girls, veiculada na Revista Men’s Health, número 38, de Junho de 2009, que serviu
como corpus deste estudo. Como suporte teórico, buscamos respaldo em estudiosos como Aguiar (2004),
Citelli (2004), Fernandes (2007), Ferrara (2007), Field (2004), Kress e Van Leeuwen (2000), Pietroforte
(2007, 2008), entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem; discurso da propaganda; persuasão.
ABSTRACT: Thinking about the man’s role in the contemporary society we are aware that immersed in
a consumer society and largely focused on visual is perceptible that this paper can be related to kinds of
‘object’ like ‘power object’, ‘desire object’, ‘manipulation object’ and even ‘persuasion object’,
considering that the strong persuasive power in different discourses around him like religious discourse,
legal discourse, political discourse, advertising discourse and other increasingly attempt to turn man into
an object. In this perspective, we focus in this paper the advertising discourse as a vehicle propagator of a
speech full of intent and persuasion which uses the most variety resources, mainly of image for achieving
its final objective that is the adhesion of reader. In this way, this work aims to reflect and analyze the
influence of the persuasive power of image related to the contemporary man. To achieve our goals, we
use an advertisement of a brand women’s clothing Planet Girls that was presented in Men’s Health
Magazine, number 38, June 2009 which served as a corpus. We search theoretical support in studies of
Aguiar (2004), Citelli (2004), Fernandes (2007), Ferrara (2007), Field (2004), Kress & Van Leeuwen
(2000), Pietroforte (2007, 2008) and others.
KEYWORDS: Image; advertising discourse; persuasion.
1. Introdução
Ao tecermos reflexões sobre o nosso papel enquanto sujeitos de uma sociedade
contemporânea, consumista e amplamente voltada ao visual, propagadora dos mais
diversos discursos que nos vão envolvendo e buscando nos conquistar, percebemos que
são esses discursos que fazem com que nossas identidades estejam sempre em processo
de mutação. Somos incentivados, a cada dia, a estarmos na ordem do discurso, ou seja,
estar inserido no meio proposto pela mídia, pela religião, pela escola e por todos os
55
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Universidade Federal da Paraíba
(UFCG). Possui Especialização em Linguística Aplicada pela FIP (Faculdades Integradas de Patos).
discursos que compõem os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), como aponta
Althusser apud Fernandes (2008).
Estar na ordem do discurso é estar imerso no contexto vivido pela sociedade na
qual nos inserimos, é praticar os mesmos hábitos e participar, de forma expressiva, das
manifestações propostas pelos indivíduos detentores do poder ou que, na verdade,
pensam possuir o poder.
[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais
precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas
e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e
diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os
ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que
fala (FOUCAULT, 2009, p. 37).
Esses discursos são carregados de intencionalidade e persuasão e buscam, o
tempo todo, incentivar nossas decisões e buscar a nossa adesão ao que eles propõem.
Discursos capazes de moldar nossas formas de agir, de pensar e de ser. Discursos que
refletem vontades de verdade e relações de poder.
Dentro desse contexto, não podemos ver o “homem” enquanto sujeito autônomo,
dono do seu dizer, homogêneo e que pratica suas ações de forma individual, única e sem
influências. Ao contrário, o que podemos perceber é que o “homem”, esse sujeito que
busca sua individualidade e independência, que tenta demonstrar sua verdade e seu
poder, mostra-se um indivíduo assujeitado pelas práticas que seu meio de convivência
lhe impõe.
Nessa perspectiva, temos um sujeito heterogêneo, que não é dono do seu dizer,
tendo em vista que o que ele diz não é novo, pois sofre influência da sua formação
discursiva, do já dito. “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta” (FOUCAULT, 2009, p. 26). Dessa forma, temos um sujeito que é perpassado por
várias vozes e, nesse sentido, tem sua identidade em processo contínuo de formação e
transformação.
Partindo desse pressuposto, temos então o homem enquanto sujeito
influenciável. Levando-se em consideração que a publicidade é um dos meios que mais
influencia o homem contemporâneo e que esta apresenta cada vez mais a imagem como
propagadora de sentidos, este trabalho tem como objetivos tecer reflexões e analisar a
influência do poder persuasivo da imagem frente ao homem contemporâneo, através do
discurso da propaganda. Para alcançar nossos objetivos, utilizamos uma propaganda da
marca de roupas femininas Planet Girls, veiculada na Revista Men’s Health, número
38, de Junho de 2009, que serviu como corpus deste estudo. Como suporte teórico
buscamos respaldo em estudiosos como Aguiar (2004), Citelli (2004), Fernandes
(2007), Ferrara (2007), Field (2004), Foucault (2009), Kress e Van Leeuwen (2000),
Joly (2009), Silva (2006), entre outros. 2. O discurso da propaganda e seu poder persuasivo
A persuasão é elemento característico dos discursos. Consoante Citelli (2004),
podemos afirmar que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele no
corpo. Ao se pensar no discurso da propaganda, esse posicionamento torna-se ainda
mais latente, tendo em vista que ao pensar na palavra “propaganda” vem logo à nossa
mente o jogo persuasivo intrínseco a ela. É difícil imaginar em separar esses termos,
talvez seja mesmo impossível. Um está ligado ao outro de forma indissociável.
Segundo Moraes (2000), a função da imagem publicitária é criar um mundo
ideologicamente favorável e perfeito com a contribuição do produto a ser vendido. Para
ela, esta mensagem trata a base informativa de forma manipulada, objetivando
transformar a consciência do possível comprador. Nessa visão, percebemos que o
discurso da propaganda é permeado de intenções prévias para conseguir alcançar seu
objetivo: vender.
A propaganda, para Aguiar (2004), preocupa-se com a sua eficácia junto ao
receptor. Dessa forma, esse gênero busca motivar o leitor através dos jogos linguísticos
entre os signos verbais e visuais. Esses recursos têm como objetivo atrair a atenção do
leitor para sua posterior adesão ao que está sendo oferecido.
Vale ressaltar que nem sempre o discurso da propaganda consegue causar boa
impressão e vender o que se propõe. No entanto, mesmo não agradando ele tem o poder
de deixar sua marca na memória dos sujeitos.
[...] um encanto nada metafísico, e sim na ordem de um efeito
emocional, propositadamente criado, cuja particularidade está também
no veio de sua antípoda, pois ao não agradar – e até
despropositadamente -, ainda assim pode gerar um efeito de
penetração e lembrança por causa da sua objetivação (do produto ou
pelo modo de apresentá-lo, presente no discurso) do que é visto e
entendido pessoalmente como desagradável (SILVA, 2006, p. 1).
O jogo discursivo proposto por esse discurso leva a uma interação entre
produto/consumidor. Essa linguagem carregada de ideologia e intencionalidade vem
influenciando, manipulando e criando novas de identidades em seus alocutários. A
identidade do indivíduo, por sua vez, é atravessada por diversos discursos no seu diaa-dia e, dessa forma, devemos levar em consideração que a identidade não é algo
acabado, mas que está sempre em mutação. “A identidade é uma busca permanente,
está em constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem
história e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre,
implica movimento” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 11).
Partindo desses pressupostos, a linguagem da propaganda é vista como um
discurso social. De acordo com Silva (2006), a linguagem é composta por práticas
enunciativas, escolhas de composição de texto e imagens visuais e sonoras, feitas
pelos agentes da área durante a fase de criação, que falam de coisas e de sujeitos
como coisas. E é nesse falar da propaganda que vemos, de forma expressiva, o
discurso persuasivo claramente apresentado.
Quando há o ato interativo, o locutor tem a intenção de atuar no
pensamento e no agir do seu ouvinte. Essa intencionalidade no
discurso é realizada através de argumentos. E é nesse discurso
argumentado que há pretensões, há persuasão (NOGUEIRA, 2007, p.
1).
Nesse ínterim, Citelli (2004, pp. 44-47) afirma que, em suas variações, os
discursos persuasivos podem formar, reformar ou conformar pontos de vista e
perspectivas colocadas em movimento por emissores/enunciadores. Vejamos a
definição dos referentes termos:
▪
▪
▪
Formar indica criar novos hábitos, novos pontos de vista e novas atitudes
que irão fazer parte do mundo do alocutário.
Reformar, como o próprio nome nos remete, não é a ação de criar, de
formar, mas sim, apenas mudar de direção o que já existe.
Conformar, por sua vez, não irá nem formar nem tão pouco reformar. O
discurso persuasivo para este ato será o de reiterar o que já existe, ou seja,
manter a fidelidade do seu receptor.
No intuito de alcançar seus objetivos, o discurso da propaganda, segundo Brown
(1971 apud op. cit., pp. 59-61), utiliza-se de alguns recursos como o uso de estereótipos
(culto à beleza), a substituição de nomes (o uso de eufemismos), a criação de inimigos
(um busca combater o outro), o apelo à autoridade (demonstração de algo que reforce o
valor do que está sendo apresentado) e a afirmação e repetição (o novo apresentado
como forma de fixação do que já existe).
Esses recursos só vêm confirmar o posicionamento de que é através do jogo
persuasivo que a publicidade ganha espaço na sociedade, conquistando e fazendo com
que o homem torne-se realmente “objeto de persuasão”.
3. A imagem na publicidade
Cientes da nossa imersão em uma “civilização da imagem” (JOLY, 2009), não
podemos deixar de refletir sobre sua existência e o que a torna propagadora de sentidos
e também de persuasão. O estudo da palavra “Imagem” vem desde Platão (1949 apud
JOLY, 2009, pp. 13-14): “Chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os
reflexos que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e
todas as representações do gênero.” Nessa visão, teríamos a imagem enquanto objeto
refletido de algo apresentado.
As imagens refletem o que representam como um espelhamento. É nesse
contexto que percebemos a imagem como um objeto de desejo por aquele que a
enxerga, capaz de chamar a atenção de quem passa e olha e, principalmente, de produzir
os mais diferentes sentidos. Podemos demonstrar tal fato se pensarmos na constante
busca do homem em assemelhar-se a algo ou a alguém que ele considera como
“modelo”, “padrão” de sujeito que possui destaque em seu meio.
Pensemos, de acordo com Ferrara (2007, p. 18), como o não-verbal apresenta-se
na cidade, sendo este considerado por ela como espaço privilegiado desse tipo de
linguagem.
O texto não-verbal espalha-se em escala macro pela cidade e
incorpora as decorrências de todas as suas micro-linguagens: a
paisagem, a urbanização, a arquitetura, [...] a comunicação visual, a
publicidade, a sinalização viária – incluindo aí o verbal -, a moda, o
impacto dos veículos de comunicação de massa nos seus
prolongamentos urbanos e ambientais, o rádio, o jornal, a televisão.
[...] A cidade, enquanto texto não-verbal, é uma fonte informacional
rica em estímulos criados por uma forma industrial de vida e de
percepção.
Partindo desse pressuposto, a autora mostra que o texto não-verbal está diluído
no quotidiano do espaço urbano e, dessa maneira, nada o impõe à nossa observação. “O
texto não-verbal é mudo porque não agride nossa atenção. O hábito de atuar nos
mesmos espaços e ambientes faz com que eles sejam cada vez mais iguais e
imperceptíveis. Ora, não se lê o homogêneo” (op. cit., p. 23). Sendo assim,
observamos, lemos, aquilo que nos chama a atenção por estar dentro das nossas
expectativas, das nossas buscas. Por isso, não lemos tudo o que vemos, mas sim apenas
aquilo com o que nos identificamos.
É nesse processo de identificação que a linguagem persuasiva ganha seu espaço.
Essa linguagem tão presente no discurso da propaganda mostra-se não apenas no texto
verbal, com frases bem elaboradas e previamente articuladas, mas também através de
imagens. São elas que reforçam estereótipos, impressionam e conquistam seu públicoalvo.
As imagens na publicidade não são meras ilustrações utilizadas apenas para
melhorar o visual do texto como um todo. Pèninou (1976 apud GOMES e SACCHET,
2006) mostra que a imagem na linguagem publicitária possui algumas funções: atrair a
atenção do espectador (através das escolhas fotográficas, formas, estilo e cores);
aparecer como uma informação intimidante (a posição como a imagem está
apresentada); construir uma informação predicativa (o produto apresenta-se só,
soberano, na maioria das vezes); oferecer pretexto na narração (trata-se mais de uma
representação do que de uma apresentação); outorgar sentido ao produto (orienta o
próprio produto, tratando-o metonimicamente). Nesse contexto, percebemos que tudo o
que está contido na propaganda, do slogan às imagens apresentadas, passam por um
processo de elaboração e articulação no qual cada elemento possui seu papel e juntos
vão em busca do seu alvo para conseguir alcançar seus objetivos.
Partindo dessa premissa, é possível perceber que:
Em todo ato discursivo haverá sempre um manipulador e um
manipulado em plena interação, em que o primeiro tenta persuadir o
segundo que está afirmando; o segundo, por sua vez, faz o discurso
interpretativo, que pode levá-lo a crer ou não no que foi dito, segundo
um contrato de fidúcia entre esses dois pólos (BAZANI e VANETTI,
2005, p. 1).
Dentro dessa perspectiva, o público-alvo do discurso propagandístico é
criteriosamente pensado. Não se pode esquecer que cada produto posto no mercado tem
como foco uma determinada clientela e a interação entre locutor/alocutário é que
propiciará a concretização desse discurso carregado de intencionalidade e persuasão. As
imagens, pensadas como “destaque” nesse jogo de convencimento, é que vendem o
produto, ou seja, elas se autocomercializam. Afinal, o produto que é mostrado é que irá
ser comercializado. O verbal, nesse caso, entra como negociador desse processo de
convencimento.
4. A imagem como propagadora de sentidos e persuasão
Para iniciar nossas reflexões a respeito da influência do poder persuasivo da
imagem frente ao homem contemporâneo, através da propaganda utilizada como corpus
da análise do nosso trabalho, tomemos as palavras de Joly (2009, p. 10) como ponto de
partida.
De fato, a utilização das imagens se generaliza e, contemplando-as ou
fabricando-as, todos os dias acabamos sendo levados a utilizá-las,
interpretá-las. Um dos motivos pelos quais elas podem parecer
ameaçadoras é que estamos no centro de um paradoxo curioso: por um
lado, lemos as imagens de uma maneira que nos parece totalmente
“natural”, que, aparentemente, não exige qualquer aprendizado e, por
outro, temos a impressão de estar sofrendo de maneira mais
inconsciente do que consciente a ciência de certos iniciados que
conseguem nos “manipular”, afogando-nos com imagens em códigos
secretos que zombam da nossa ingenuidade.
Na busca de refletir e dialogar com as palavras da autora, pensemos na nossa
condição enquanto sujeito, assujeitado a determinadas práticas sociais impostas por uma
sociedade de consumo e amplamente voltada ao visual. Sociedade que tem por objetivo
adquirir novos adeptos que sigam seus preceitos e que se utiliza das mais diversas
estratégias de convencimento para conseguir alcançar o que almeja. Diante do exposto,
vemos que as imagens presentes no discurso da propaganda não são utilizadas
aleatoriamente, mas possuem uma função: chamar a atenção do provável comprador e
conquistar sua adesão.
Ainda na visão da autora, temos a imagem publicitária, “com toda certeza
intencional” (op. cit., p. 71), como essencialmente comunicativa e destinada não apenas
à leitura de um indivíduo, mas sim a uma leitura pública, oferecendo-se como campo
privilegiado de observação dos mecanismos de produção de sentido pela imagem. Nesse
contexto, esse tipo de imagem é pensada e elaborada no intuito de atingir o maior
número de pessoas dentro de um pequeno espaço de tempo. Dessa forma, os elementos
que compõem esse discurso precisam estar claros para seus leitores para que seu
funcionamento se dê de forma efetiva.
Nessa perspectiva, vejamos a propaganda da marca de roupas feminina Planet
Girls:
Fonte: Revista Men’s Health, número 38, Junho de 2009, p. 31.
As imagens presentes nesta propaganda, a princípio, apresentam um jogo de
cores características da identidade feminina. A cor rosa do tecido que forma uma
espécie de tenda indiana, à esquerda da fotografia, demonstra certa inocência da
menina-mulher, o amor doce e singelo da “namorada”. O tom avermelhado do mesmo
tecido, do lado direito, demonstra não mais a inocência do amor de menina, mas a
paixão da mulher. A cor dourada apresentada nos objetos pendurados remete a ideia de
riqueza, o ouro, este como objeto de desejo da maioria das mulheres por demonstrar
“poder aquisitivo”. A escolha da cor branca no texto verbal reflete a pureza e, além
disso, a referida cor foi utilizada tendo em vista que as imagens contidas nesta
propaganda apresentam tons fortes e, nesse caso, para poder chamar a atenção do leitor
deveria ser usado uma cor que se destacasse no meio das outras.
As outras cores utilizadas complementam um ambiente voltado ao desejo, ao
prazer. O fundo marrom que aparece por detrás do tecido rosa nos remete a um
ambiente escuro, lugar do proibido, aquilo que se busca esconder, como a parte frontal
do corpo da modelo (os seios) e que mesmo estando de costas para a câmera é encoberta
por seus braços. No entanto, a escuridão é quebrada pelas luzes das pequenas velas que
tornam o ambiente sedutor e reservado para o amor, para os momentos de paixão.
Objetos coloridos apresentados em tons de rosa, verde, marrom e lilás que parecem ser
almofadas, completam esse ambiente de aconchego. Esse ambiente seria, dessa maneira,
o “planeta das garotas” [grifo nosso], repleto de esplendor, beleza, riqueza, amor,
paixão, sensualidade e aconchego. Ambiente que revela a mulher como ser único, que
está acima de tudo e de todos, possuidora de um planeta só seu.
A publicidade apresenta a utilização de figuras de retórica como metáforas,
hipérboles, elipses, metonímias, anacolutos etc. O uso dessas figuras na imagem
publicitária, segundo Duran (1970 apud JOLY, 2009, p. 86), tem a função de provocar o
prazer no espectador, por um lado, poupando-lhe, com apenas um olhar, o esforço
psíquico exigido pela inibição ou repressão ao que se vê e, por outro, permite que ele
sonhe com um mundo onde tudo é possível. “A imagem retoricizada, em sua leitura
imediata, assemelha-se ao fantástico, ao sonho, às alucinações: a metáfora torna-se
metamorfose, a repetição, desdobramento, a hipérbole, gigantismo, a elipse, levitação
etc.” (JOLY, p. 86).
Observando a figura feminina da propaganda, a atriz e modelo Danielle Winits,
esta exibe seu corpo escultural, objeto de desejo de muitos homens, usando uma calça
colada ao corpo e apenas uma tatuagem pintada nas costas. A tatuagem lembra os
desenhos indianos e vem compactuar com o ambiente descrito anteriormente, uma
espécie de tenda indiana, como mencionamos. O desenho apresentado na tatuagem
possui várias estrelas ao seu redor e tem no centro uma pequena flor. A estrela é um
símbolo56 característico da marca de roupas Planet Girls.
As imagens das estrelas no corpo da modelo, na etiqueta da calça e na logomarca
da grife, fazem um jogo discursivo de sincronia com a palavra “estrela” apresentada no
texto verbal, fazendo com que possamos inferir que, para ser uma estrela, é preciso
participar daquele contexto.
Devemos ressaltar que ao se falar em imagem não estamos apenas nos referindo
às figuras apresentadas, mas também ao texto verbal. A escolha dos tipos de letras,
fontes e cores, bem como sua disposição na página, também possuem o objetivo de
chamar a atenção do leitor e complementar os sentidos a serem produzidos pelo
discurso da propaganda.
A escolha da tipografia também tem sua importância como escolha
plástica. É claro que as palavras têm significação imediatamente
compreensível, antes mesmo de ser percebida, mas essa significação é
colorida, tingida, orientada, antes mesmo de ser percebida, pelo
aspecto plástico da tipografia (sua orientação, sua forma, sua cor, sua
textura), do mesmo modo que as escolhas plásticas contribuem para a
significação da imagem visual (JOLY, 2009, p. 111).
Podemos observar essas estratégias no slogan da propaganda: “Toda ESTRELA
merece esse JEANS”. As palavras “estrela” e “jeans” vêm em destaque no intuito de
fazer uma associação direta: para ser estrela tem que usar este jeans, não qualquer um.
A persuasão nesta frase é apresentada de forma clara e explícita aos olhos do leitor.
O slogan é complementado pelo enunciado: “No dia dos namorados faça do seu
amor uma verdadeira estrela.”, reforçando a ideia de que para estar na ordem do
discurso do sujeito pós-moderno, “ser uma verdadeira estrela”, é preciso usar o jeans da
referida marca.
Analisando o olhar da modelo, vemos que está em direção ao slogan, reforçando
o discurso apresentado. É válido ressaltar que para se apropriar desse discurso, “ser
estrela”, a propaganda não apresenta uma mulher qualquer, mas sim uma modelo e atriz
famosa de uma grande emissora de TV. Uma verdadeira estrela do mundo da mídia que
exibe um corpo considerado “perfeito”, estilo de corpo que é propagado pela própria
mídia como o corpo que o sujeito contemporâneo deveria possuir para estar, dessa
forma, na ordem do discurso, nesse caso, o discurso da beleza.
56
“[...] o símbolo corresponde à classe dos signos que mantêm uma relação de convenção com seu
referente. Os símbolos clássicos como a bandeira para o país ou a pomba para a paz, entram nessa
categoria junto com a linguagem, aqui considerada como um sistema de signos convencionais” (JOLY,
2009, p. 36).
Nesse sentido, o corpo fala mais do que as palavras. Ele propaga sentidos: o
corpo enquanto objeto de desejo do homem (e também de algumas mulheres, as
homoafetivas), que busca e que, principalmente, dá prazer; e o corpo perfeito, objeto de
desejo de mulheres que buscam a beleza de forma incondicional. Não podemos deixar
de mencionar a questão de que o ego feminino é invadido pela persuasão da imagem de
mulher rica, estrela de TV e que dá a oportunidade de todo o público feminino vestir o
tipo de roupa que ela veste. Dessa maneira, qualquer mulher poderia também estar nesta
posição.
A polissemia da palavra “estrela” permite que o público leitor construa vários
sentidos. Ser estrela é estar não somente na ordem do discurso da mídia, mas também
do seu meio. É ser detentora de poder por estar no centro das atenções, motivo de
adoração pelo tipo de lugar que ocupa na sociedade. É possuir um mundo diferente dos
demais indivíduos. Estrela também no sentido de astro do universo, de brilho intenso e
que não está ao alcance. Ainda nesse contexto, a palavra estrela emana o sentido de
desejável, mas intocável. Aquilo que apenas se pode observar, mas que na verdade não
existe a possibilidade de possuí-la.
É a partir daí que vemos que o sujeito, enquanto indivíduo, não pode ser igual a
outro indivíduo. Pode ser imagem e semelhança do outro, mas não igual. Ninguém
possui a identidade do outro. Cada sujeito tem a sua própria identidade. No entanto, é a
partir da existência do outro que sabemos quem somos. É nesse sentido que percebemos
os constantes processos de identificação dos sujeitos. Temos um indivíduo que busca
ser o que está na moda, na ordem do discurso, refletindo a imagem do outro como um
espelhamento.
Fazendo uma análise sobre o público leitor da propaganda em questão,
poderíamos afirmar, em um primeiro momento, que a propaganda está destinada ao
público masculino, tendo em vista que o texto verbal aponta para um discurso que busca
chamar a atenção do homem para uma data especial que é o “Dia dos Namorados”. No
entanto, devemos pontuar que os enunciados não apresentam um discurso fechado
apenas para o sexo masculino, tendo em vista que as palavras “estrela” e “amor” abrem
espaço também para o público feminino.
Contudo, podemos pontuar que a imagem do corpo feminino chamará a atenção
do público-leitor, tanto masculino quanto feminino, muito mais do que os enunciados
contidos na propaganda. Certamente, o público feminino será mais influenciado pela
imagem da modelo do que o masculino, tendo em vista que a constante busca pelo
corpo perfeito, bem como o desejo de estar sempre na moda são marcas características
da mulher contemporânea.
As imagens na propaganda buscam prender esses olhares e conseguir convencêlos a comprar o produto que lhes é apresentado. Dessa forma, é a imagem quem vende o
produto, devido ao seu forte poder persuasivo. Apesar do texto verbal também
apresentar uma linguagem que reflete a persuasão, estamos acostumados a buscar nas
imagens significados e sentidos para o que somos e o que queremos ser através de
processos de identificação. Nesse segmento, vemos a imagem como reflexo daquilo que
objetivamos ter e ser.
5. Considerações finais
Ao tecermos conclusões sobre os aspectos apresentados neste trabalho, podemos
refletir que as imagens na propaganda realmente chamam a atenção do leitor mais do
que o texto verbal por fatores como: o seu posicionamento no texto, o tamanho da
imagem a ser comercializada (geralmente apresenta-se em tamanho maior do que o
texto verbal), as cores utilizadas, quem se apresenta com o produto, entre outros. Nesse
sentido, através do seu forte poder persuasivo, a imagem consegue alcançar seu objetivo
principal: vender o produto que está sendo oferecido.
É através da imagem que o sujeito realiza processos de identificação. Ser ou ter
o que se apresenta, na imagem publicitária, é estar na ordem do discurso, é participar de
práticas que a sociedade na qual estamos inseridos nos impõe. Estar na moda é estar na
mídia, no centro das atenções. Nesse contexto, vemos a eficácia do discurso da
propaganda através do crescimento cada vez mais significativo desse meio veiculador
de jogos de verdade e relações de poder, no qual o sujeito está constantemente
assujeitado ao que é propagado por este Aparelho Ideológico do Estado (AIE).
Partindo desse pressuposto, temos a imagem publicitária como propagadora de
sentidos e que se utiliza, de forma expressiva, da persuasão, envolvendo o sujeito
através da relação de jogos linguísticos propostos pela relação entre o verbal e o nãoverbal. Não podemos deixar de pontuar que a imagem, ao ser lida, transforma-se em
palavras. Dessa forma, devemos refletir que a imagem não substitui as palavras, mas
que as duas linguagens se complementam para a concretização da mensagem a ser
enviada. E é através desse jogo persuasivo, criado pela relação das duas linguagens na
propaganda analisada, que vemos claramente o “homem enquanto objeto de persuasão”,
ou seja, aquele que é facilmente influenciável.
6. Referências bibliográficas
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2009.
GÊNEROS TEXTUAIS NO CONTINUUM FALA E ESCRITA COMO
RECURSO TERAPÊUTICO NO TRATAMENTO DO SUJEITO AFÁSICO NA
CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA
Chirlene Santos da Cunha Moura57
Marígia Ana de Moura Aguiar58
RESUMO: A afasia é uma alteração de linguagem na qual os mecanismos linguísticos são alterados em
todos os níveis, caracterizada por distúrbio de expressão e recepção do código simbólico da linguagem
oral e/ou escrita. Atividades envolvendo gêneros textuais na clínica fonoaudiológica, na terapêutica do
afásico, através do uso de diferentes modalidades (oral e/ou escrita), têm apontado para resultados
bastante positivos no que se refere à reorganização dessa linguagem. O presente estudo teve como
objetivo geral investigar o uso de marcas de oralidade na produção escrita e o uso da escrita na produção
oral de dois estudos de caso, já publicados, com sujeitos afásicos, como estratégias para a organização
discursiva no contínuo tipológico para fala e escrita. Tomando por base os resultados e discussões de uma
dissertação de mestrado sob o título “Marcas de oralidade na escrita de um afásico com dificuldades
expressivas” e de uma monografia intitulada “Produção escrita e oralidade: favorecendo a interação
lingüística do afásico”, foram elaborados quadros com os gêneros textuais produzidos pelos sujeitos
afásicos, tanto com características da oralidade quanto da escrita. A partir desses estudos, conclui-se que
o afásico com dificuldades comunicativas por via da modalidade oral usa a escrita como estratégia para
superação de dificuldades comunicativas, estratégias estas percebidas por meio do uso de marcas de
oralidade na escrita. Não se verificou a presença de marcas de escrita na oralidade, porque esta última está
bastante deficitária nesses sujeitos.
PALAVRAS-CHAVE: Afasia; fala; escrita.
RÉSUMÉ: L’aphasie est un trouble du langage à cause duquel les mécanismes linguistiques sont
modifiés à tous les niveaux. Elle est caractérisée par un trouble d’expression et de réception du code
symbolique du langage oral et/ou écrit. Les activités impliquant des genres textuelles dans le traitement
des aphasiques, dans la clinque orthophonique, grâce à l’utilisation de différents modalités ( orale et
écrite), ont signalé des résultats très positifs en ce qui concerne la réorganisation du langage. Cette étude a
eu pour but l’analyse de l’utilisation de marques d’oral dans la production écrite et l’utilisation de l’écrit
dans la production orale de deux études de cas auprès de sujets aphasiques,déjà publiées, comme des
stratégies visant la réorganisation du discours tant oral qu’écrit. En prenant pour base les résultats d’une
dissertation de master intitulée « des marques de l’oral dans la production écrite d’un aphasique avec
difficulté d’expression » et une monographie intitulée « production écrite et oralité : pour rendre plus
facile l’interaction linguistique de l’aphasique »,on a groupé les genres textuelles produits par les
aphasiques , avec des caractéristiques tant de l’oral que de l’écrit. À partir de ces études, on a conclu que
l’aphasique, qui a des difficultés à s’exprimer à l’oral, utilise l’écrit comme une stratégie pour surmonter
ces difficultés de communication, des stratégies remarquées grâce à l’utilisation de marques de l’oral dans
l’écrit. On n’a pas remarqué la présence de marques de l’écrit sur l’oral, car celui-ci est très déficient chez
les aphasiques.
MOTS-CLES : Aphasie ; parole; écriture.
1. Introdução
O tema deste artigo volta-se à organização do discurso do portador de afasia,
entendida como uma desorganização da função cerebral que gera comprometimento de
57
Aluna do Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista
CAPES.
58
Professora do Programa de Mestrado da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do CNPq.
linguagem e de comunicação, interferindo na percepção (CAMBIER, 1999). Para
Coudry (1988), essa desorganização de linguagem pode comprometer a expressão e a
recepção do código simbólico da linguagem oral e/ou escrita.
Considerada uma questão social, por estar relacionada com a organização do
discurso, a afasia traz consigo uma repercussão social bastante incômoda, visto alterar a
posição social do sujeito frente à família, ao trabalho e às demais relações sociais, uma
das grandes problemáticas enfrentadas pelo afásico.
Uma vez desorganizada a maneira como o afásico vinha lidando com os
símbolos linguísticos, o uso de diversos gêneros textuais, utilizados mediante
modalidades escrita e/ou oral, pode contribuir significativamente para que haja uma
reorganização em sua atividade de linguagem, visto que, na fala como na escrita, o
afásico dispõe de uma multimodalidade de recursos para a organização de seu discurso,
atribuindo-lhe sentido, ao mesmo tempo em que propicia a sustentação de suas relações
interpessoais, viabilizando sua inserção social.
Neste trabalho, adota-se o uso de gêneros textuais na clínica fonoaudiológica no
tratamento de afásicos como meio de facilitar o processo de organização discursiva
desse sujeito, contribuindo para o processo de reabilitação comunicativa, por considerar
que o continuum entre fala e escrita tem um forte componente de caráter
sociocomunicativo.
2. Fundamentação teórica
O homem, como ser dotado de racionalidade, distingue-se dos demais animais,
dentre outros aspectos, pela capacidade de comunicação, que vem sendo estimulada, nas
últimas décadas, pelo uso de tecnologias cada vez mais avançadas. Há vários meios
usados para se comunicar, porém, é pelas modalidades oral (falada) e/ou escrita que a
língua se realiza, num processo multimodal, com uso de gestos e expressões faciais.
A incapacidade comunicativa oral e/ou escrita pode ocorrer por várias razões,
acarretando comprometimento de linguagem. Dentre outras, destaca-se aquela gerada
por uma afecção de ordem neurológica, denominada afasia, objeto de investigação neste
trabalho.
Segundo Coudry (1988), a afasia é uma alteração de linguagem, na qual os
mecanismos linguísticos são alterados em todos os níveis, tanto em relação à produção
de fala quanto aos aspectos interpretativos dela, e caracterizada por distúrbio de
expressão e recepção do código simbólico da linguagem oral e/ou escrita, estritamente.
Pode ser causada por acidente vascular cerebral, traumatismo crânio-encefálico ou
mesmo tumor (MORATO, 2002). Os portadores de afasia sofrem uma desorganização
no processo linguístico, sendo obrigados a reorganizar a forma como vinham lidando ou
utilizando os símbolos, em seu modo de funcionamento, nos diversos campos da
linguagem.
Em alguns casos, a fala do sujeito afásico pode-se apresentar incoerente e
incompreensível, embora a compressão seja conservada; em outros casos, é a
compreensão que está afetada, porém há fluência na fala. Cada caso dependerá da
localização da lesão cerebral, numa visão organicista em relação à afasia, estabelecendo
relação lesão-sintoma, como destacado em Cambier (1999) e Jakubovicz e Cupello
(2005). Já Fonseca (1995) critica a classificação da relação entre localização da lesão
cerebral e sintomas relacionados à linguagem, deixando, porém, bastante claro que os
estudos de Wernick e Broca foram um marco para os estudos das afasias.
Santana (2002), em relação aos estudos da neuropsicologia, afirma que o cérebro
não é mais visto como um conjunto de partes divididas como um quebra cabeça, com
centros bem delimitados, com funções especificas, porque hoje se considera o
dinamismo, a plasticidade e a integratividade disseminadas pelos avanços
biotecnológicos. Daí, não se pode dizer que a linguagem esteja relacionada a uma região
específica do córtex cerebral, mas que transita em um sistema cognitivo complexo.
Vieira (2006) propõe que as afasias sejam vistas na correlação sujeito e
linguagem, dando ênfase aos efeitos subjetivos que as afasias trazem consigo, sendo
impossível determinar que, se uma determinada região foi lesada, um determinado
sintoma virá como consequência, visto que cada sujeito é dotado de especificidades e,
portanto, singular. Para Morato (1999), a afasia é, basicamente, uma questão de
linguagem, um problema discursivo, não redutível aos níveis linguísticos, isto é, à
língua, mas que envolve o funcionamento da linguagem em associação aos processos
cognitivos dela. A afasia torna-se, então, uma questão de discurso, indo além da questão
da língua.
A prática clínica fonoaudiológica, ultimamente, com o avanço das pesquisas e
publicações no campo das afasias, tem-se voltado para a adoção de abordagens
terapêuticas que façam uso de diferentes gêneros textuais na intenção de promover
resgate das atividades sociais do sujeito.
Segundo Marcuschi (2008), o estudo dos gêneros textuais vê a linguagem em
funcionamento em atividades culturais e sociais, constituindo-se uma prática social na
vida diária humana. Considerando que tudo que está relacionado ao discurso deve estar,
a um só tempo, na língua e na sociedade e que a afasia resulta em uma questão social, a
utilização dos gêneros textuais como estratégia terapêutica para o tratamento das afasias
representa uma significativa contribuição para a clínica fonoaudiológica.
Ao definir gênero, Marcuschi (2008) pondera que cada gênero textual tem um
campo de circulação, o que determina o seu propósito. Todos os gêneros, então, têm
uma forma e uma função e sua determinação se dá pelos objetivos dos
falantes/escreventes e a natureza do assunto tratado, ou seja, mais pela função do que
pela forma. É o caso, por exemplo, de uma receita culinária que orienta para a
preparação de uma refeição, uma aula expositiva que orienta para o conteúdo de uma
determinada disciplina.
Koch (2004) ressalta que gênero textual é distinto de tipo de texto (narrativo,
descritivo, injuntivo, argumentativo, expositivo), e Marcuschi (2008) defende que,
enquanto na distinção dos tipos textuais usam-se critérios predominantemente
linguísticos e estruturais, para os gêneros os critérios são funcionais. Uma vez que são
sócio-históricos e variáveis, os gêneros não podem ser classificados, sendo mais
importante saber sua constituição e circulação social. O que se tem de concreto é a sua
realização como prática social, acontecendo num continuum que vai da fala para a
escrita, adotando características de uma ou de outra. Nesse continuum, situam-se todas
as realizações textuais, desde as consideradas mais formais até aquelas usadas em
situações coloquiais. Entre as primeiras, estão as conferências acadêmicas, os relatórios
científicos, entre outros. Já, no segundo caso, estão as conversas face a face, os
telefonemas, os bilhetes, para citar alguns.
Para Marcuschi e Dionísio (2005), a semelhança entre fala e escrita está no fato
de ambas adotarem o mesmo sistema linguístico e a diferença está no âmbito da
organização discursiva. Do ponto de vista discursivo, a fala tem uma representação
sonora de presença fugaz, enquanto a escrita tem representação gráfica, com presença
duradoura. Por ser de presença fugaz, a fala não permite o armazenamento de
conhecimento para posterior expressão dentro de uma formalidade, como o faz a escrita
(MARCUSCHI e HOFFNAGEL, 2005).
Ao remeterem ao papel da fala e da escrita, Marcuschi e Dionísio (2005, p. 15)
defendem que “cada uma tem sua arena preferencial, nem sempre fácil de distinguir,
pois são atividades discursivas complementares”.
Durante muito tempo, alguns teóricos consideravam a escrita como linguagem
do distanciamento e a fala como linguagem da proximidade. Marcuschi (2002) aponta o
princípio do dialogismo, em que o sujeito, ao escrever/falar, pressupõe um
leitor/ouvinte, o que constitui um avanço no estudo da linguagem. “As diferenças entre
fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico e não na relação dicotômica de dois
pólos opostos” (MARCUSCHI, 1995, p. 13)
A adoção do conceito de continuum fala – escrita neste trabalho oferece uma
perspectiva de investigar o sujeito portador de afasia com dificuldade no eixo
metonímico, e o desenvolvimento de habilidades para expressar-se através da escrita
e/ou oralidade. A proposta busca destacar o fato de que existem afásicos que apresentam
a ocorrência de estratégias da oralidade na escrita e da escrita na oralidade, utilizadas
com a finalidade de superar dificuldades comunicativas, como no caso dos dois sujeitos
que serão investigados nesta pesquisa.
Para isso, será feita uma observação da utilização de gêneros textuais por cada
sujeito, individualmente, buscando identificar como se dá o processo de organização
linguística pelo uso de diferentes estratégias de construção textual em suas produções
linguísticas.
3. Método
3.1 Tipo de estudo: pesquisa bibliográfica com método de procedimento descritivo
comparativo e método de abordagem indutivo.
3.2 Caracterização do estudo: foram utilizados os resultados publicados de uma
dissertação de mestrado sob o título “Marcas de oralidade na escrita de um afásico com
dificuldades expressivas”59, sobre um estudo de caso de um sujeito, e de uma
monografia (TCC) intitulada “Produção escrita e oralidade: favorecendo a interação
lingüística do afásico”60, também estudo de caso, mas com outro sujeito.
3.3 Identificação dos dados: os dados foram obtidos por meio dos resultados e
discussão dos dois estudos supracitados, que fizeram uso de variados gêneros textuais e
tiveram como finalidade favorecer o desenvolvimento do aspecto expressivo da
linguagem, sendo ambos voltados ao uso da escrita como estratégia de contribuição para
o restabelecimento da oralidade, visando a chegar aos objetivos propostos.
3.4 Análise dos dados: os dados coletados, escaneados, analisados e já discutidos nos
dois estudos, foram analisados na perspectiva de identificar estratégias que envolvessem
superações de dificuldades na oralidade, na escrita e o continuum entre oralidade e
escrita. Para tal, foram elaborados quadros dos gêneros usados pelos sujeitos. No quadro
com descrição do sujeito participante do primeiro estudo (S1), foram listados os gêneros
usados na oralidade; outro foi a exposição dos gêneros empregados na modalidade
escrita pelo sujeito do segundo estudo (S2); e, ainda outro, com presença daqueles que
ficaram no continuum entre fala e escrita de ambos os sujeitos, observada a proposta de
Marcuschi (2008) de análise de gêneros textuais, apresentadas na revisão da literatura
deste artigo.
3.5 Considerações éticas: o projeto do qual resultou a elaboração deste artigo não foi
submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), por tratar-se de uma pesquisa bibliográfica.
4. Resultados e discussão
Como já descrito na metodologia, o trabalho foi baseado em dois outros
trabalhos de estudos de caso. O sujeito (sexo masculino) do primeiro estudo
(dissertação) será nomeado S1, e a coleta de dados para o seu estudo foi realizada em
atividades de grupo. S2 é como será nomeado o sujeito do segundo estudo (TCC), do
sexo feminino. A coleta de dados deste último estudo ocorreu em sessões individuais
com a presença da terapeuta.
Considerando que “todos temos uma competência textual discursiva
relativamente bem desenvolvida e não há o que ensinar propriamente” (MARCUSCHI,
2008, p. 81), na proposta terapêutica voltada ao afásico, não se pode ter a pretensão de
querer ensinar, mas, sim, de contribuir de maneira a favorecer a (re)tomada da
organização da linguagem. Com esse intuito, o trabalho com ambos os sujeitos foi
desenvolvido com uso de gêneros textuais, envolvendo tanto a modalidade escrita
quanto a modalidade oral de uso da língua, com vistas a favorecer a reorganização
discursiva.
59
MARINHO, J. S. Marcas de Oralidade na Escrita de um Afásico com Dificuldades Expressivas.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife,
2008, 82f.
60
GONÇALVES, P. M. Produção Escrita e Oralidade: favorecendo a interação lingüística do afásico.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2008, 41 f.
No caso de S1, que pouco oralizava (emissão de alguns monossílabos) por outras
questões advindas do AVC, foi possível elaborar quadros baseados na análise e
resultados previamente apresentados. A partir do uso de diferentes textos, puderam-se
classificar aqueles que ficaram numa margem de maior proximidade com a oralidade,
por apresentarem mais características inerentes a ela, e outros mais característicos da
escrita, conforme observa-se nos quadros 1 e 2.
Quadro 1- Gêneros textuais com mais características da oralidade de S1
Gênero textual
Caracterização da situação
Exposição informativa
O participante deveria caracterizar um companheiro do
grupo, escolhido mediante sorteio, para os demais
adivinharem de quem se tratava.
Mensagem desejando feliz Durante a festa junina, escreveu no quadro branco para
São João
que todos os participantes do grupo recebessem suas
felicitações.
“Diálogo” escrito
Conversa sobre as férias.
Narração
Exposição baseada na leitura de um texto lido na
internet.
“conversa” escrita
A atividade consistia em continuar cantando uma música
que parou de tocar. No caso desse sujeito, assoviava a
melodia. Escreveu o nome de uma música (Carinhoso) e
fez menção a sua ex-esposa, o que desencadeou uma
conversa.
Relato pessoal
“Narrou” os fatos que marcaram seu AVC.
Piada
Depois de assistir um cd de piadas de Mr. Bean, relatou
de qual mais gostou.
Jogo (nome, lugar e O jogo consistia em dizer nomes relativos à categoria
objeto)
semântica sorteada. Ele o fazia através da escrita.
Venda de objetos
Como numa feira, colocava os preços e tinha que fazer a
propaganda para vender.
Pode-se afirmar que S1 não “fala”, mas manifesta sua oralidade por intermédio
da manipulação da escrita. Isso pode ser afirmado apoiando-se em Marcuschi (2008, p.
64), que faz distinção entre oralidade e fala. Para ele, oralidade está relacionada à
“prática social no uso da língua” e, fala “seria uma forma assumida pela expressão
oral”.
No quadro 1, observam-se os gêneros textuais utilizados por S1 que mais
tiveram características da oralidade que da escrita. Santana (2002) salienta que, dentre
as características de uma fala informal está a fragmentação de palavras, e esta foi uma
estratégia percebida na escrita de S1, uma vez que sua escrita serve como representação
da oralidade.
Foi observado que S1 apresentou mais facilidade em manipular os gêneros
textuais que mais se aproximam da oralidade, provavelmente porque, como destaca
Marcuschi (2008), de um modo geral, há mais facilidade em produzir gêneros textuais
orais com variadas formas de organização.
Com base na perspectiva discursiva, a fundamental presença de um interlocutor,
conforme aponta Santana (2002), tanto por ocasião da linguagem escrita como por
ocasião da fala, também foi fator decisivo no estudo de S1, pois esse interlocutor é que
conferia sentido ao discurso, interpretava-o, à medida que norteava sua (de S1) escrita, a
tal ponto que as palavras isoladas, escritas no papel ou mesmo no quadro, se
transformavam em longas “conversas”, conforme apresentado na descrição dos
resultados no trabalho analisado.
No quadro 2, vê-se a relação de gêneros textuais usados por S1 com
características que mais se aproximam da modalidade escrita de uso da língua.
Quadro 2 – Gêneros textuais usados por S1, com características predominantemente da
escrita.
Gênero textual
Caracterização da situação
Cálculos
Por ocasião da venda de objetos.
Preço e cálculos
Continuação da atividade com venda.
Convite
Para a festa junina.
Lista de itens
Para levar para a festa junina
Receita culinária
Referente a comidas típicas de festas juninas.
Diário de férias
Fragmento de relato de acontecimentos durante o
período de recesso das atividades do grupo.
Quadrinhos
Após observação das imagens (expressão facial dos
personagens, contexto situacional), preencheu com a
escrita os espaços para criar a estória.
Bula de remédio
Frente à dificuldade, resolveu manter uma
conversação.
Nomeação no quadro
Atividade de habilidade sensitiva (tato), em que teria
de nomear o objeto tocado.
Trecho de estória
Atividade realizada em pares: um narrava e o outro
continuava a estória escrita.
Cartão de aniversário
Oferecido a um companheiro do grupo.
Resumo
Narração escrita, em forma de história, das sessões
anteriores
Escrita + desenhos
Fazendo menção a momentos felizes de sua vida.
Lacerda (1993, apud SANTANA, 2002) afirma que, durante o processo de
aquisição da linguagem, a oralidade gera uma reflexão que atingirá a construção da
escrita. Graças a esse fato, crianças em fase de desenvolvimento de linguagem cometem
“erros” na escrita, a maioria deles apoiados na oralidade.
O mesmo acontece com o afásico, sendo que alguns estão com a oralidade mais
preservada em detrimento da escrita, enquanto, com outros, ocorre justamente o oposto.
No caso do Sujeito 1 (S1) deste estudo, a escrita como simbolismo de primeira ordem,
por estar melhor preservada, serve de apoio para a re(construção) da fala, que, neste
caso, é o simbolismo de segunda ordem. Em outras palavras, pode-se afirmar que a
escrita serve de orientação para a fala. É provável que, por essa razão, se perceba tantas
marcas de oralidade em sua escrita.
Os traços de oralidade observados na escrita de S1, como corrigir o texto, com
riscos, rasuras, ou mesmo apagando e reescrevendo; ao perceber que o interlocutor
entendeu prossegue, quando percebe que ele não entendeu repete, muda o planejamento,
faz gestos e expressões faciais paralelamente como se faz numa conversa face a face;
utiliza recursos paralinguísticos, dentre outros. Essas são manifestações com as quais S1
fala através da escrita, embora existam ocasiões em que faça uso da escrita com todas as
suas regras, características (formas) e funções. Por exemplo, quando usa vírgulas e
pontuações, quando tenta construir frases e não palavras isoladas, quando, ao elaborar
um cartão, data, coloca o nome do destinatário no topo e assina no final. Tudo isso
revela a distinção que S1 faz entre fala e escrita.
Ao considerar-se que a produção escrita tem como função a prática social, terse-á em mente um leitor, que, em alguns casos, pode ser o próprio escritor
(MARCUSCHI, 2002). No caso de S1, durante a escrita de um diário de férias, o
objetivo era o de que ele mesmo, ao retomar as atividades, pudesse compartilhar os
episódios ocorridos, utilizando como recurso auxiliar de sua memória aquilo que
diariamente havia escrito.
“Mesmo que o texto escrito desenvolva um uso lingüístico interativo não do tipo
comunicação face a face, deve, contudo, preservar os papéis que cabem ao escritor e ao
leitor para cumprir sua função, sob pena de não ser comunicativo” (MARCUSCHI,
2008 p. 53). Em outras palavras, pode-se dizer que o papel comunicativo exercido pelo
texto, mesmo sem a presença real de um interlocutor (como no caso de S1, ao escrever
um diário de férias), é adjacente à função que cumprem escritor e leitor no ato
discursivo.
Leal, Madeiro e Aguiar (2006, p. 116) endossam essa afirmação, quando
afirmam que
Adotar uma perspectiva interativa sobre os fatos discursivos, portanto,
é considerar que o diálogo é co-produzido pelos diversos participantes
da troca, os quais asseguram, conjuntamente, o comando da
conversação. É admitir ainda
que, longe de ser uma instância
puramente passiva, o receptor participa ativamente na construção do
discurso do emissor.
S1, durante a proposta para elaboração de gênero textual bula de remédio, não
respondeu em sua produção escrita conforme previsto, pois sentiu dificuldade em seguir
a forma socialmente identificável deste gênero, mas, durante o “diálogo” escrito no
encontro, falou (escreveu) a palavra remédio e o nome de um dado remédio, o que
permite afirmar ter compreendido o gênero em questão.
Marcuschi (2008), ao elaborar um quadro dos gêneros textuais na oralidade e na
escrita, conclui que existem mais gêneros textuais na escrita que na oralidade. Graças a
esta variedade, o sujeito 2 (S2) obteve mais amplas possibilidades de se manter dentro
da proposta com o uso de gêneros textuais na categoria escrita, predominantemente,
com é possível observar no quadro 3. Vale destacar, no entanto, que houve ocasiões em
que os textos estavam muito mais próximos à oralidade (quadro 4) que à escrita e até
num continuum em que fica difícil definir se há mais características de uma modalidade
em detrimento da outra.
Quadro 3 – Gêneros textuais típicos da escrita usados por S2
Gênero textual
Receita culinária
Lista de compras
Anúncio
Caracterização da situação
Elaboração durante a sessão com ajuda de pistas.
Trouxe de casa e afirmou ser cópia de uma já pronta.
Escolha de uma figura (cachorro) para, a partir dela, criar
um anúncio.
Cartão de páscoa
Elaboração destinada à própria terapeuta.
Palavras cruzadas
Após ler descrição nomeava e escrevia. Em alguns casos
não conseguiu nomear mas obteve sucesso na escrita.
Cartão para o dia das A atividade mexeu bastante com seus sentimentos, mais
mães
preferiu não conversar sobre o assunto.
Lista de ingredientes
Para confecção de uma receita de bolo.
Receita de bolo
Esta é uma que sempre faz.
Agenda
de Teve dificuldade em nomear a ação, mesmo assim a
compromissos
descreveu. Ex.: 8:00 – “vitamina, pão, queijo”, em lugar
de, “tomar café”.
Marcuschi (2005) destaca que, para chegar à compreensão de questões difíceis
na produção escrita, pode-se trabalhar a partir da fala. No caso de S2, apesar de
dificuldades tanto na fala quanto na escrita, esta última foi usada como recurso
favorecedor no auxílio da produção oral, surtindo efeitos bastante positivos, uma vez
que, no início do processo terapêutico, sua fala era ininteligível, o que gerava
silenciamento devido à falta de compreensão por parte do interlocutor. Aos poucos, foi
havendo mais vontade de comunicar-se, diminuindo as desistências.
Predominantemente, S2 usa a escrita como uma forma de gerar compreensão
daquilo que é classificado pela terapeuta como fala ininteligível, mas também houve
ocasiões em que a palavra falada no processo da escrita serviu de mediação, deixando
explícita a relação estabelecida entre oralidade e escrita.
S2 reformulava, depois da releitura, inserindo letras ou palavras, questionando a
terapeuta sobre a grafia das palavras. Destaca-se sua percepção e correção dos erros e as
tentativas de acerto. Apenas em um de seus textos apresentou perseveração.
Nessas ocasiões, a terapeuta utilizou como estratégias soletrar, falar
vagarosamente e, até, escrever a palavra adequadamente para que S2 copiasse e
continuasse, sendo esta uma estratégia positiva e até recomendada por Santana (2002),
como mecanismo que visa a levar o sujeito a superar dificuldades advindas da afasia.
Assim como no estudo de Marculino e Catrini (2006), o texto escrito de S2
caracteriza-se por fragmentação de palavras, ausência de conectivos e pontuação, o que
é bem comum em sujeitos afásicos. Entretanto, a compreensão por parte da terapeuta foi
mantida porque ela estava no contexto e norteava sua escrita com auxílio de
questionamentos orais. Outros recursos paralinguísticos também foram usados, tanto
por S2 quanto por S1, como maneira de facilitar a compreensão. Nesse aspecto, os
afásicos se assemelham, pois essa dificuldade em expressar-se através da fala e/ou da
escrita termina por fazê-los usar os recursos paralinguísticos como meio de facilitar a
comunicação. Esses recursos paralinguísticos, por outro lado, se configuram como uma
marca de oralidade na escrita, uma vez que são recursos marcadamente presentes na
conversação.
Aquele que não sabe ler nem escrever é nomeado pela sociedade de analfabeto e,
segundo Santana (2002), um analfabeto é considerado inferior frente à sociedade
letrada, porque há um estigma de que quem sabe ler é eloquente no falar. Essa
concepção afeta os afásicos diretamente, que se sentem discriminados por não
conseguirem ler e/ou escrever como faziam antes e como “todo” sujeito faz. Agora,
afetados por uma “doença”, sentem-se ainda pior frente à imagem de incapacitados para
retomar as práticas de leitura e de escrita (SANTANA, 2002). Portanto, para uma boa
proposta terapêutica, envolvendo a escrita do afásico enquanto prática discursiva, faz-se
necessário considerar aspectos como subjetividade, dialogismo e trabalho linguístico.
Ficaram claros os efeitos da subjetividade gerados no decorrer de diversas
sessões de S2 e, porque não dizer, de todas. Considerando o princípio do dialogismo
envolto nessa subjetividade, destaca-se o fato de que, no início do processo terapêutico,
pela pouca relação estabelecida tanto com a escrita quanto com a terapeuta, era comum
o uso do termo “eu não sei”. Já no final da pesquisa, a terapeuta refere que S2 está mais
confiante, como é possível perceber através do uso da expressão “como é?”, a qual traz
o indicativo da vontade de superar a dificuldade e prosseguir.
Quadro 4 – Uso de gêneros textuais por S2 com maiores características da oralidade.
Gênero textual
Narrativa
Caracterização da situação
Ao discorrer sobre o assunto da Páscoa e não ser
compreendida pela oralidade, apoiava-se na escrita para dar
continuidade ao assunto.
Mensagem para o Escreveu o que deveria falar da próxima vez que ele lhe
filho (telefonema)
telefonasse.
Oração
Embora tenha entendido o gênero, apenas topicalizou uma
lista de coisas ruins e outra de coisas boas abaixo da palavra
Deus.
Durante elaboração de várias atividades, dentre elas a oração presente no quadro
4, observou-se que S2 se saiu melhor na escrita de listas que nas narrativas, pois sua
dificuldade está em articular sentenças ou mesmo palavras com uso de elementos
coesivos. Para S1, também verificou-se a falta de alguns elementos coesivos mas, em
certos casos (elaboração do diário de férias), percebeu-se a tentativa da escrita em forma
de frase e não puramente palavras isoladas. Mesmo quando usava uma única palavra,
em certas ocasiões, tanto S1 quanto S2 usaram aquela denominada como palavra-frase,
a qual gerava sentido, de forma a levar os pesquisadores a compreender o discurso.
Do ponto de vista de Marcuschi (2008, p. 64), letramento se distingue de escrita.
Letramento “seria a prática social de uso diário da escrita em eventos comunicativos”,
por outro lado, escrita “seria a forma de manifestação do letramento enquanto atividade
de textualização”. Fazendo um paralelo desses conceitos com a escrita de S2, pode-se
afirmar que, mesmo com maior facilidade na elaboração de listas, ou seja, tópicos sem a
necessidade de presença de conectivos de modo a compor frases, S2 tem um grau de
letramento que a move a estranhar sua própria escrita a ponto de perceber que falta algo
ou tem algo a mais (errado) e, embora não saiba ao certo o que é, o fato a incomoda,
levando-a a questionar seu interlocutor sobre o possível “erro” na grafia das palavras.
S1 e S2, ao se apropriarem da multimodalidade discursiva de que os gêneros
textuais falados ou escritos são compostos, utilizaram, mesmo sem a plena consciência,
um recurso que está à disposição de todo usuário da língua, com o propósito de gerar
efeito de compreensão.
No texto oral, esta multimodalidade ficou manifesta através dos atos
linguísticos, paralinguísticos (sons, gestos) e dos cinésicos (elementos visuais). Na
escrita, uma ocasião que marcou bastante o uso dessa multimodalidade foi o texto de
S1, com predominância de desenhos e poucas palavras (quadro 2, última linha). Com
S2, foi a elaboração de um anúncio a partir de outro anúncio, com a imagem de um
cachorro (linha 4 do quadro 3).
Neste trabalho, houve a elaboração de quatro quadros distribuídos segundo a
modalidade do gênero textual desenvolvido pelos sujeitos dos estudos prévios. Os
quadros foram baseados em Marcuschi (2008), com a distribuição dos gêneros por
domínio e modalidades.
A dificuldade gerada no decorrer da elaboração desses quadros foi, até certo
ponto, positiva, uma vez que havia dificuldade em classificar os gêneros como
predominantemente característicos ora da fala ora da escrita. Positiva, porque aí vê-se a
existência do continuum, em que alguns textos estão imersos, a ponto de não se poder
afirmar serem tipicamente escritos ou orais, por estarem na margem entre ambas as
modalidades.
Os quadros didaticamente dispostos têm a finalidade de favorecer a discussão
dos conteúdos aqui tratados, sem a pretensão de tomar a nomeação sugerida aos gêneros
nem os enquadres por modalidades discursivas como verdade absoluta, pois considerase a existência de variáveis, dentre elas, conforme salienta Marcuschi (2008), o fato de
estarem os sujeitos a sofrer influência cultural.
4. Considerações finais
Considerando os objetivos propostos e a abordagem metodológica utilizada
neste estudo, foi possível identificar algumas particularidades do uso da linguagem por
parte de sujeitos afásicos.
Ao analisar o discurso, seja de sujeito afásico ou não, observa-se não somente o
dito ou escrito, mas todo o contexto. No caso dos afásicos, verifica-se mais
acentuadamente o uso de recursos como expressões faciais, corporais, gestos, contexto
social, dentre outros, visando a auxiliar na comunicação que, por vezes, está bastante
deficitária em uma e outra modalidade. Esses recursos auxiliam aquele que escreve ou
fala o autor, neste caso o afásico, na construção de sentido do discurso para o seu
interlocutor, oferecendo-lhe informações complementares.
O uso de gêneros textuais pelos afásicos serviu de facilitador do contexto
comunicativo, uma vez que norteou o assunto tratado, contribuindo para a superação de
dificuldades que, predominantemente, estavam na oralidade. Assim, por terem um tema
delimitado pelo gênero, ficava mais fácil para o terapeuta interpretar certas partes do
discurso, assim como para o afásico em se fazer compreendido e dar prosseguimento ao
discurso.
Os afásicos com dificuldades expressivas na modalidade oral tomaram como
facilitador da comunicação a modalidade escrita da língua, utilizando-se de estratégias
de oralidade na escrita. Isso pôde ser visto quando, em um diálogo, ao perceber que o
interlocutor já havia compreendido o que pretendia comunicar, interrompe o fluxo,
como acontece na fala. O mesmo acontece ao perceber que não está sendo
compreendido, decidindo, por isso, mudar de assunto. O uso de gestos e de expressões
faciais também é algo bastante comum numa conversação oral face a face, bem como a
própria fragmentação ou topicalização, algo marcadamente característico da presença da
oralidade na escrita.
Outro ponto importante é que o afásico distingue entre escrita como
representação da oralidade e escrita propriamente dita, com todas as suas características,
embora não tenha sido percebida a presença de estratégia de escrita na oralidade.
Sugere-se, que, na clínica fonoaudiológica, a oralidade e a escrita sejam
contempladas como modalidades complementares, em que, na ausência ou dificuldade
de uso de uma, a outra sirva como ponto de partida para o processo de (re)organização
da linguagem do afásico.
Os resultados obtidos com este trabalho podem contribuir para que o sujeito
afásico se veja não como um sujeito repetidor, assujeitado, mas como sujeito da
enunciação, dono de sua vontade e de seu discurso, embora este último esteja, neste
momento, desorganizado. Espera-se, a partir desta mudança na concepção do sujeito
afásico, a consequente incorporação da concepção dialógica em que o sujeito é visto
como um ator social, que é ativo, constrói e é construído. Tudo isso, contribuindo,
inclusive, para a retomada da posição social frente à família, ao trabalho e às demais
relações sociais.
E, finalmente, com este trabalho, espera-se também contribuir para o
aprofundamento dos estudos no campo da linguagem bem como no campo das afasias,
com dados que favoreçam novas pesquisas para estudantes de Fonoaudiologia, para
pesquisadores em linguagem e a outros preocupados com a superação de dificuldades na
linguagem visando à inserção social desse sujeito.
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METÁFORAS DA MEMÓRIA NA FICÇÃO CONTEMPORÂNEA EM
PERNAMBUCO
Cristhiano Motta Aguiar61
RESUMO: Tema importante na literatura brasileira, a memória continua a ser abordada na produção
contemporânea em Pernambuco, como atestam os livros Rasif, de Marcelino Freire (2008), Galiléia
(2008), de Ronaldo Correia de Brito e As confissões de Lúcio, de Fernando Monteiro (2006). Os três
autores, bem como as obras citadas, têm conseguido bastante destaque no panorama da ficção brasileira
hoje, seja através de uma boa recepção de crítica e público, seja mediante premiações literárias. Nossa
análise não apenas se debruçará sobre as metáforas contidas nos textos, como também procurará articulálas com questões pertinentes à sociedade contemporânea e à própria tradição literária brasileira.
Fundamentando nossa leitura, traremos reflexões de Todorov (2002) e Weinrich (2001), que analisam,
nos discursos da história, da biografia e da literatura, as diversas metáforas da memória e do
esquecimento. Com Krausz (2007) e Sônia Lúcia Ramalho de Farias (2006), o tema da memória será
discutido a partir dos motivos de sua presença na tradição poética grega, ponto de origem do conceito de
literatura tal como o conhecemos hoje, e na literatura brasileira. Complementando esta fundamentação
teórica, a pesquisa também dialoga com as reflexões de Luiz Costa Lima sobre mimesis (2006). Este
trabalho apresenta algumas conclusões de pesquisa desenvolvidas no programa de pós-graduação em
Letras da UFPE, durante os anos de 2008-2010, sob orientação da professora Dra. Sônia Lúcia Ramalho
de Farias.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; ficção brasileira contemporânea; sociedade contemporânea
ABSTRACT: Important theme in Brazilian literature, the memory continues to be addressed in
contemporary production in Pernambuco, as evidenced by books Rasif, Marcelino Freire (2008), Galiléia
(2008), Ronaldo Correia de Brito and Confissões de Lúcio, Fernando Monteiro (2006). The three authors
and the works cited, has attained prominence in the panorama of Brazilian fiction today, either through a
good reception from critics and the public, either through literary awards. Our analysis not only will cover
the metaphors contained in the texts, but also seek to articulate them with issues relevant to contemporary
society and the Brazilian literary tradition itself.Basing our reading, we will bring reflections Todorov
(2002) and Weinrich (2001), which examined, in the discourses of history, biography and literature, the
various metaphors of memory and oblivion. With Krausz (2007) and Sonia Lúcia Ramalho de Farias
(2006), the subject of memory is discussed as the reasons for their presence in the Greek poetic tradition,
point of origin of the concept of literature as we know it today, and Brazilian literature .Complementing
this theoretical framework, the research also interacts with the reflections on mimesis Luiz Costa Lima
(2006). This paper presents some findings of research undertaken in the post-graduate program in
Literature, UFPE, during the years 2008-2010, under the guidance of Professor Dra. Sônia Lucia
Ramalho de Farias.
KEYWORDS: Memory; Brazilian contemporary fiction; contemporary society.
1. Memória e sociedade contemporânea
Na Grécia homérica, a memória não se separava da ideia de verdade. A poesia
oral deste período ajudava a situar cada comunidade na história, na qual o papel de cada
uma dentro do cosmos, concebido como impregnado de substância divina, era
contextualizado no devir de homens e deuses. Além dessa função, que explica por que a
poesia épica queria criar uma síntese do mundo, articulando os diversos conhecimentos
61
Mestre em Teoria da Literatura pela Pós-Graduação em Letras da UFPE.
possíveis das culturas cantadas, a memória transmitida poeticamente doutrinava os
homens para o presente e os preparava para o futuro, porque definia os paradigmas de
comportamento e as maneiras específicas de organização social (KRAUSZ, 2007, p.20).
À memória, desde esta época, associa-se a função de superação da realidade cotidiana,
inscrevendo as experiências humanas nas dimensões do sagrado e do transcendente.
Quando surge a cultura da escrita e o papel social do poeta se transforma de
sacerdote do passado a artesão da palavra, é feita a primeira fratura entre memória,
simbolizada pelas musas, e verdade. É o que pode ser visto na Teogonia, de Hesíodo
(KRAUSZ, 2007, p.96). Neste momento, uma noção de ficcionalidade passa a ser
introduzida nas metáforas da memória: às musas é permitido contar histórias com um
intervalo maior em relação à obrigação de verdade dos fatos históricos. Desta forma, se
instaura o ruído e a tensão entre memória e história.
Todorov nos alerta que os regimes totalitários do século XX foram marcados por
uma tentativa de destruir qualquer traço da memória dos dominados (TODOROV, 2002,
pp.136-138). Se o totalitarismo transformou a memória numa vítima destas estratégias,
a procura pela liberdade e democracia usou esta mesma memória como arma e afronta:
durante o século XX, todo ato de reminiscência sobrevivente era considerado um ato de
resistência antitotalitária (TODOROV, 2002, p.140). Lembrar implicava restaurar um
cosmos destruído pelo caos da injustiça política e social. Logo, quando os totalitarismos
são derrotados, a preocupação com a perda da memória se transforma numa questão
política: “os atos de memória foram uma peça central da transição democrática [...]
Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos
relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido” (SARLO, 2007, p.20-21). Se
durante todo o século XX a memória ajudou a democratizar o espaço público, também
foi um instrumento importante para conferir dignidade a identidades e sujeitos que
ficaram à margem das histórias oficiais. É o fundamento para a afirmação das
identidades das minorias (SARLO, 2007, p.17).
Será o aproveitamento do passado que definirá os papéis dos três discursos que
organizam seus vestígios: a testemunha, o historiador e o comemorador. O primeiro:
“refiro-me ao indivíduo que convoca suas lembranças para dar uma forma, portanto um
sentido, à sua vida, e constituir assim uma identidade. [...] É o interesse do indivíduo
que preside à construção” (TODOROV, 2002, p.151). O historiador seria “o
representante da disciplina cujo objeto é a reconstituição e a análise do passado [...]”
(TODOROV, 2002, p.151-152). Por fim, se a atividade da testemunha e do historiador
se complementam, a do comemorador, não. Guiado pelo interesse, apresenta sua visão
personalíssima da história como dotada de “uma verdade irrefutável” (TODOROV,
2002, p.154). A comemoração simplifica e sacraliza o passado em espaços nos quais o
argumento de autoridade torna a comemoração irrefutável (TODOROV, 2002, p.155).
A história, por outro lado, é sacrílega e tem como objetivo complicar nosso
conhecimento do passado; o comemorador, de maneira surpreendente, sequestra a
história do passado, substituindo-a por uma ilusão. Ao comemorador, falta a noção de
que a memória, tal como a literatura, também é motivada por uma mimesis tal como a
entende Costa Lima (2006, p.207), não no sentido do senso comum de uma mera
“imitação”, mas sim como vetor de aproximação entre o discurso a ser elaborado e os
elementos culturais a partir dos quais o discurso nasce. Realçar o caráter de mimesis da
memória implica colocar sob suspeita a tendência de naturalizá-la enquanto discurso da
Verdade, abordagem acrítica dos vestígios do passado.
2. Memória e ficção brasileira contemporânea
No decorrer da pesquisa de mestrado que deu origem a este artigo, ao pensarmos
acerca das possíveis relações entre memória e literatura brasileira, chegamos a uma
questão: por que este tema se tornou tão recorrente na nossa poesia e prosa? No caso da
prosa, algumas das mais importantes realizações estão conectadas à memória: Memórias
póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, São Bernardo, Memórias sentimentais de
João Miramar, Romance d’a Pedra do Reino, Menino de engenho, Grande Sertão:
veredas, O Ateneu...
Como vimos, ao epos cabia a função de situar as comunidades em relação ao
cosmos. A memória era, por excelência, um privilegiado instrumento de composição de
um rosto social. Não deixa de existir um traço épico na própria formação do romance,
gênero literário moderno por excelência. O escritor e crítico italiano Claudio Magris
(2009, pp.1018-1019) afirma: “O romance é com frequência a história de um indivíduo
que busca um sentido que não há, é a odisseia de uma desilusão” . Retomando a Teoria
do Romance de Lukács, Magris (2009, p.1023) recorda que o romance se movimenta
num mundo no qual os sentidos não são mais dados, porém precisam ser construídos. Se
na epopeia vemos um movimento do indivíduo em busca de uma máscara que deve
colocar na própria face, o romance é a busca dos múltiplos pedacinhos do espelho
partido pela modernidade; no romance, juntar os cacos afiados, tarefa às vezes
arriscada, não garante que seja possível recompor a imagem original. De maneira
análoga, é possível que a forte presença da memória enquanto motor de criação
ficcional possa compartilhar com a épica e com a origem do romance a dupla função de
rosto e de pergunta pelos sentidos do chão.
Esta, contudo, é apenas uma das explicações. É na estrutura social verticalizada
brasileira que podemos encontrar uma explicação complementar à reiteração do tema da
memória na nossa literatura. No ensaio “Minas: tempo e memória”, Arruda (1988, p.3637), ao investigar o memorialismo no estado mineiro, concorda conosco em relação às
conexões entre memória, mito, epos, e conclui que a memória também responde à
flutuação social das classes dominantes. A partir do retorno ao passado, elabora-se um
discurso marcado pelo saudosismo:
Os memorialistas encaram a infância e a juventude como os
momentos privilegiados das suas vidas. Neste tempo de esperanças
fecundas residem as suas valorizações [...] Por isso, a família adquiriu
importância fundamental, transformando-se no elemento mediador
entre o memorialista e o mundo por ele retratado. Desse modo, através
das memórias, emerge uma visão socializada da família e obscurecemse as mudanças sociais que alteram a sua feição, ao emergirem
confundidas as diferentes gerações (ARRUDA, 1988, p.33).
Relembrar, como é o caso de Trechos da minha vida, de Taunay, e Minha
formação, de Joaquim Nabuco, desempenhou, no século XIX, o papel de coroar
carreiras de prestígio trilhadas por membros da elite. Neste caso, a memória serviu
como ferramenta de justificação dos valores e comportamentos do estamento superior
(CARDOSO, 1988, pp.69-70). Nas gerações posteriores, como aquela da qual fizeram
parte escritores ligados ao regionalismo de 30, a relação com a memória continua a
partir daquela necessidade de retomar um locus marcado pela decadência. Sônia Lúcia
Ramalho de Farias (2006, p.31) demonstra que a gestação do pensamento regionalista
no Nordeste se deve ao fato deste ter sido o primeiro espaço, no Brasil, de ocupação
demográfica e desenvolvimento da economia colonial. Elabora-se, a partir disto, nos
três primeiros séculos de nossa história, uma identidade que tentou sobrepor-se
hegemonicamente. Devido à reorganização do espaço social e econômico brasileiro,
causada pela tensão entre o Centro-Sul cafeeiro, em processo de industrialização, e o
Nordeste do açúcar, da pecuária e do algodão, cuja supremacia declinava, o
regionalismo se organiza enquanto movimento da perda da hegemonia das oligarquias
rurais diante do processo de modernização (FARIAS, 2006, pp.32-33). Este movimento
será capitaneado, na ficção, pela memória e suas metáforas.
No conto “Futuro que me espera”, do escritor Marcelino Freire (2008, p.121),
um dos nomes de destaque da nova prosa produzida a partir de Pernambuco, é repetido
o tema do retorno ao passado enquanto “tempo de esperanças fecundas”, para usar a
expressão de Arruda: “Tenho saudades de Sertânia. Saudades de Catolé, Canindé.
Saudades de Sairé. Saudades do batucajá. Do acarajé. De Nazaré da Mata [...]. Saudades
do tumbança. Do papangu, do maracatu de lança. Saudades do Carnaval”. Ao cantar a
sua cidade natal, Sertânia, que foi trocada pela imigração até a cidade de São Paulo, o
narrador utiliza a memória como base para a configuração de uma identidade nordestina
composta de forma romantizada e nostálgica, na qual o espaço social do Nordeste se
encontra imobilizado pela utopia passadista. Não obstante na obra do autor a memória, e
nesse conto específico isto não é diferente, não ser utilizada para compor um espaço de
poder geopolítico perdido por uma classe social, como foi o caso citado do regionalismo
nordestino de 30, a incidência de uma semelhante utilização metafórica comprova que
esta abordagem da memória continua como um topoi possível em nossa literatura
contemporânea. Ou seja: a memória ainda continua a serviço de uma certa construção
discursiva do que seria um verdadeiro ethos nordestino, aliada à função de reconstrução
de significância num mundo no qual os sentidos não são mais automaticamente dados
pelo corpo social.
Veremos como é possível colocar estas ideias em diálogo com os romances que
escolhemos ler. Quais as metáforas da memória presentes no texto e como os discursos
sobre o passado – testemunha, história e comemoração – são abordados nas suas
páginas? Que concepção do estatuto da memória Galiléia e As confissões de Lúcio
postulam? Pound aproximava seu conceito de poesia da ideia de condensação de
significados; embora este conceito seja questionável, pois não funciona para todos os
textos e todos os momentos da literatura, os textos literários frequentemente trabalham
com imagens-metáforas que condensam, em si, uma gama de questões complexas e
dizem da experiência do mundo em diversas camadas.
3. Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito & As confissões de Lúcio, de Fernando
Monteiro
No romance do cearense, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito, a
memória, principalmente se relacionada à família, torna-se obscena. Adonias, o
narrador do livro, médico e escritor, viaja com seus dois primos, Davi e Ismael, até a
fazenda Galileia, localizada no sertão cearense. Os três personagens moram longe deste
lugar e empreendem a viagem de retorno para participar do aniversário do avô, o
moribundo patricarca Raimundo Caetano, que jaz entre vida-e-morte numa cama na
casa principal da propriedade. Embora alguns momentos, tais como os da crônica da
decadência do patriarcalismo, da analogia entre o estado de saúde do senhor de terras e
a desolação de sua propriedade, bem como a presença do “neto inadaptado”, típico
protagonista do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego, aproximem o livro de
temas trabalhados pela tradição regionalista62, Galiléia tem como projeto uma outra
representação do sertão, conectando as identidades sertanejas a uma experiência mais
contemporânea, na qual a modernização do espaço é representada com uma
complexidade adequada. Além disso, o romance de Brito não adere aos projetos
estéticos e ideológicos dos regionalismos, cujo último momento organizado, na
literatura brasileira, foi o Movimento Armorial, fortemente criticado durante todo o
romance. Desfazer o Nordeste inventado pelo regionalismo e pelo armorial faz parte da
revisão de uma certa memória cultural cujo projeto político foi querer tornar a própria
verdade particular em essência63.
Adonias assume as funções de historiador e testemunha. Cada papel destes se
realça dependendo do que será narrado. Adonias enquanto testemunha, por exemplo,
será mais evidente naqueles momentos em que a memória familiar parece mais próxima
e mais dolorosa:
Observo as carnaúbas, esguias como o corpo do primo Davi, e revejo
a tarde dolorosa, ele fugindo nu, coberto apenas por uma camisa
branca, o sexo à mostra, o sangue escorrendo entre as pernas. Sinto a
náusea de sempre, o pavor de não compreender nada, mesmo depois
de anos de psicanálise. [...] Vou sair no meio do filme. Não quero
prosseguir (BRITO, 2008, p.8).
Aqui está o núcleo da obscenidade, no sentido de algum elemento que precisa
ser extirpado do centro dos acontecimentos; lançado fora, salva tudo que o cercava do
risco de contaminação. Tudo relacionado à família de Adonias está envolto em
mistérios que envolvem incestos, mentiras, filhos bastardos, traições e assassinatos. No
entanto, só é possível conhecer vislumbres desses segredos familiares... Mentiras que
escamoteiam outras – mortalhas de silêncio. Essa indeterminação do conhecimento do
passado é fundamental à constituição da linguagem e estrutura do romance: as lacunas e
a fragmentação implicam uma linguagem posta, por um lado, sob rédeas que evitam a
exibição do obsceno e, por outro, consciente dos limites de dizer experiências que não
cabem na palavra lembrada. Cada capítulo, geralmente com nomes de homens da
família de Adonias, consiste em fotografias, ou melhor, daguerreótipos erodidos, que
não conseguem nos dar um conhecimento que supere o provisório.
A obscenidade pode nos ajudar a explicar os fantasmas que habitam a fazenda,
retornando, incontroláveis, para conversar com os mortos sobre pecados que não se
enunciam em voz alta. Encontrá-los é uma experiência de horrores e repúdios; após o
crime que Adonias comete, ou pensa cometer contra Ismael64, será necessária uma
descida aos mortos (a cena, impressionante, atualiza o tema épico da kathabasis, no qual
62
Seguimos as idéias de Flora Sussekind no seu Tal Brasil, Qual Romance? (1984).
Faz parte da ideologia naturalizar-se, como sabemos. Sobre os discursos que procuram “criar” uma
verdade para a região nordeste, pensamos junto com Durval Muniz de Albuquerque e o seu A invenção do
nordeste e outras artes (2001) e com Moema Selma D`Andrea, no livro A tradição re(des)coberta (1992).
64
A tensão entre os dois personagens, alimentada por um passado de ressentimentos e por um desejo
homoerótico não resolvido, eclode em uma discussão, na qual Adonias acaba assassinando, ou
acreditando assassinar, pois o texto é propositalmente ambiguo, o seu primo Ismael.
63
o herói, na sua demanda, desce até o Hades), ao núcleo do que é mais obsceno, para
conseguir uma expiação através de um pacto sobrenatural. Arrependido, Adonias
encontra o fantasma de um dos seus antepassados e faz um pacto com ele: se ressuscitar
Ismael, Adonias prometerá dar ao primo metade dos seus dias na terra. Como sabemos,
o motivo épico da descida do herói ao Hades é fundamentalmente um encontro com a
memória.
Aqui, surge a necessidade de um contrapeso, que também será relevante ao
lermos As confissões de Lúcio: o esquecimento como pharmakon. O narrador de
Galiléia é um desenraizado, lembremos que o romance atualiza o típico protagonista
dos romances regionalistas, o bacharel que não se adapta ao velho patriarcalismo em
decadência, e sua relação com a memória reflete este fato. Em dois episódios do
romance, ele se questiona sobre alguns conhecimentos que, fora de uma identidade
cultural, perdem o seu sentido:
- Meu pai exigia que eu memorizasse as plantas da caatinga (...).
Recitei os nomes com orgulho da memória, e depois recaí na tristeza.
O meu conhecimento me parecia inútil. [...] – Você conhece muitos
passarinhos e árvores. Tem alguma utilidade saber essas coisas? –
Nunca pensei nisso. Conheço porque nasci e me criei aqui. (BRITO,
2008, p.12; p.228).
Aqui há, também, a velha dicotomia, que remete aos gregos, da inutilidade de
um conhecimento enciclopédico versus a reflexão acerca do que se aprende
(WEINRICH, 2001, pp.77-78, no qual o autor discute esse ideia em Kant e Cervantes).
É possível perceber em Galiléia, ao contrário de parte considerável da ficção
contemporânea brasileira, uma tentativa de retornar a uma das primeiras funções
daquilo que já foi chamado de “grande romance burguês”. Falo da tentativa de construir
uma totalidade, uma grande narrativa que dê conta de grandes questões. Nesse sentido,
Adonias se aproxima do papel de historiador tanto da sua família, quanto do espaço
social do sertão.
O narrador busca este chão mais sólido, inclusive com certa urgência, contudo
sabe que isso não é mais possível. Ao tentar urdir coesão no caos, Adonias só consegue
chegar no meio do caminho, pois a desconfiança da linguagem é o método do nosso
tempo. Galiléia propõe uma coerência inquieta, roída pelas traças, consciente das ruínas
às quais estão destinados os discursos. A obscenidade da memória, no entanto, é
redimida pela ficção. Ao inventar mirabolantes mentiras sobre o passado, Adonias e os
seus parentes fogem pela via esquerda, pois no plano da fabulação os traumas e os
crimes podem ser evitados. O risco dessa fabulação do passado, contudo, pode ser a
naturalização dessas ficções, que se transformam no principal veículo de um discurso
comemorador do passado familiar, cuja consequência é a petrificação do presente.
As metáforas da memória em Galiléia tomam a forma de objetos,
lugares, corpos. Com relação ao espaço, uma das mais importantes é a casa: “a casa da
Galiléia sofreu reformas e acréscimos. Cada morador deixou nela uma marca de sua
passagem, um embelezamento ou estrago”. As rugas no interior da casa são análogas às
rugas dos patriarcas que a habitaram e viram o vai-e-vem das gerações. O corpo e objeto
da memória são tanto o corpo moribundo de Raimundo Caetano – sua morte
transformará o presente em memória – e a arca na qual guarda os diários da sua mulher
– dentro dos diários dela, pode ser encontrado um envelope contendo uma flor seca e
marrom –, como também a ferida no corpo de Davi e as cartas que este dá de presente a
Adonias, de cujo conteúdo só conhecemos alguns trechos, pois o narrador se recusa a ler
e revelar integralmente as lembranças perversas do primo. Outra vez, aqui, a
obscenidade.
Adonias e Mauro Portela, protagonista e narrador de As confissões de Lúcio,
romance de Fernando Monteiro, são muito parecidos, não obstante os dois livros serem
tão diferentes um do outro. Talvez a diferença seja mera aparência, pois o livro de
Monteiro também é uma forte reflexão sobre a memória, desta vez lançando o seu olhar
para a cultura cosmopolita dos grandes centros urbanos. O choque entre o moderno e o
arcaico de Galiléia tem seu contraponto na crítica à nossa mediocridade cultural e
intelectual, em As confissões de Lúcio, cujo debate se articula a partir do eixo das
relações entre esquecer e lembrar.
O romance de Fernando Monteiro faz parte de uma trilogia que nos conta a
história borgiana do suposto primeiro escritor brasileiro a ganhar o prêmio Nobel de
literatura, o gaúcho Lúcio Graumann. No primeiro volume desta trilogia, O grau
Graumann, acompanhamos os últimos momentos do escritor laureado, que falece numa
praia na Paraíba dias antes de receber o dinheiro do Nobel. Em As confissões de Lúcio,
Mauro Portela, que narrou o primeiro volume, continua agora tentando dar conta da
memória de Graumann. O terceiro volume que completa a trilogia ainda não foi
publicado.
Mauro Portela é testemunha-historiador, tanto quanto Adonias, e um feroz
destruidor de qualquer discurso de comemoração. Sua crítica ao comemorador está
ligada à crítica, proposta pelo romance, do sistema intelectual brasileiro. A cultura de
verniz cultural e bacharelismo, de superficialidade disfarçada de pompa – tudo isto é
desnudado diante do desconforto causado pelo cadáver-Graumann. O tratamento que As
confissões de Lúcio dá à questão da memória sempre comporta, nas entrelinhas, esta
crítica à cultura brasileira contemporânea. Por isso, nos dois volumes publicados da
trilogia, há referências a bastidores do jornalismo cultural, assim como bois nomeados e
macacos nos seus devidos galhos.
A trajetória de Graumann é construída neste impulso crítico: ele é um escritor de
região “periférica”, cuja carreira teve pouca projeção nacional, embora respeitado e
traduzido no exterior, avesso às políticas literárias e esquecido pelas listas oficiais de
órgãos formadores de opinião, como a Veja. A morte, neste caso, é a síntese da ironia,
pois o escritor gaúcho é o mártir da indiferença em relação aos temas culturais de um
país ainda banguela. Um dos momentos mais irônicos acontece quando Mauro Portela
descreve a “homenagem” que a Academia Brasileira de Letras faz ao laureado:
Uma novidade absoluta: Lúcio Graumann foi votado – por
unanimidade – membro póstumo da Academia Brasileira de
Letras, com direito à cadeira (41) fantasmagórica por si
mesma. O escritor morto passa a ocupá-la em caráter
permanente (sic), embora essa “quadragésima primeira”
cadeira não exista de modo físico lá dentro [...] Foi
necessário, é claro, promover alteração de caráter
excepcional e extraordinário no estatuto da nova Casa de
Paulo Coelho [...] a cadeira que está sendo chamada de
“fantasma”, pelo bom humor carioca (MONTEIRO, 2006,
pp.109-111, grifos do autor).
As confissões de Lúcio se estrutura lançando mão de uma fragmentação diferente
da de Galiléia. Embora na raiz das construções ficcionais esteja, certamente, o diálogo
com a linguagem cinematográfica, o que abre caminho, aos leitores interessados, a uma
outra perspectiva de estudo das duas obras, mas que foge aos objetivos deste ensaio, o
fragmento no romance de Ronaldo Correia de Brito está muito enraizado nas sombras
da memória obscena e da crise existencial em suas profundezas. Ao passo que, no caso
do romance de Monteiro, o que temos é uma fragmentação que dialoga criticamente
com a experiência do constante choque de linguagens e informações que nos
bombardeiam dia após dia. Se vivemos num tempo em que boa parte das nossas
experiências são mediadas pela mídia, As confissões de Lúcio, como parte considerável
das obras de Monteiro, incorpora a fragmentação e a hiper-realidade para implodi-las
com ironia. Contra os textos do consenso, contra a comemoração e a mediocridade de
certos setores da nossa produção cultural, todo um simulacro irônico é criado. Se em
Galiléia, todo o discurso da memória é refeito na voz do narrador Adonias (a exceção é
o texto escrito pelo personagem Davi), em As confissões de Lúcio temos uma colcha de
retalhos de diversos gêneros textuais escritos por vários narradores.
A velocidade da mudança brusca de registros, similar àquela que fazemos ao
apertar o botão do controle remoto ou clicar no mouse, aparece o tempo todo no livro.
Como exemplo, que não podemos reproduzir aqui integralmente, temos o momento em
que Mauro Portela conversa com Cançado, português que namora Raissa, ex-amante do
nosso narrador: “Ah, Porto Alegre. A terra do vosso prêmio Nobel.’ Cançado sabe de
Graumann?! Claro, a notícia foi notícia em Portugal:” (MONTEIRO, 2006, p.86, grifos
do autor). Em seguida, após os dois pontos, aparece um pedaço da manchete que
anunciou o prêmio, com uma tipografia peculiar e um tamanho das letras bem grande.
Isto é tipicamente audiovisual: só precisamos lembrar daqueles filmes e seriados nos
quais um personagem faz referência a alguma coisa, daí ocorre um corte e aparecem
imagens explicativas, ou mesmo palavras que remetem a outras palavras e imagens.
O narrador de As confissões de Lúcio mantém uma relação problemática com a
memória de Graumann. Primeiro, há certa inveja inoculada na admiração que sempre
teve pelo escritor gaúcho. Segundo, ele acaba tendo um caso com Márcia, que foi
amante de Graumann. Por fim, Mauro Portela, também escritor, acredita que foi
plagiado por Graumann e que este romance plagiado foi definitivo à consagração do
laureado. Para piorar o desconforto, Portela chega à conclusão de que o plágio de
Graumann melhorou o romance (MONTEIRO, 2006, p.181). Isto transforma Mauro
numa espécie de zelador relutante em assumir, de uma vez por todas, a memória
literária do seu amigo. Se geralmente associamos à memória um valor positivo e ao
esquecimento, um valor negativo, em As confissões de Lúcio e Galiléia, vemos a
inversão desse processo, pois os dois personagens principais estão envenenados pelas
lembranças que vêm à tona quase sem controle; se o esquecimento coletivo possui uma
clave negativa em As confissões de Lúcio, no caso da tragédia particular de Mauro
Portela esta clave se inverte e esquecer a sombra de Graumann se torna fundamental
para que Mauro consiga seguir adiante. Por isso, ele, tal como Adonias, acaba
escolhendo a fuga, o abandono: o primeiro parte da Galiléia sem ver a morte do seu avô,
sem obter respostas, sem resolver os impasses de desejo com seu primo Ismael; o
segundo decide livrar-se de todos os textos de Graumann sob sua guarda, queimandoos. Atando os dois romances, a desconfiança explícita em relação à linguagem; temos,
em um, a genealogia familiar manchada de sangue e despetalada; enquanto, no outro,
encontramos a impossibilidade das biografias. No caso de Monteiro, a crítica à cultura
contemporânea, neste aspecto particular, continua evidente: no futuro, o estudo do
horizonte de recepção deste livro vai revelar que ele também criticava a moda editorial
das biografias e dos livros que revelam “a vida como ela é”, sucessos de vendagens nas
livrarias de todo o país.
Todas as conversas que Mauro trava com os outros personagens parecem levar a
lugar algum, como se todos estivessem encenando alguma peça do teatro do absurdo.
As conversas que Adonias tem com seus parentes, embora menos desencontradas,
também são frustrantes: “Percebi com assombro que não compreendia Ismael [...]
Decidi não responder à provocação, esquecer o que falava [...] Não consigo levar o papo
com Davi. Melhor voltar à caminhada” (BRITO, 2008, p.138; p.173). O problema se
explica, em parte, pela memória: todas as relações dos narradores parecem remeter aos
mesmos fios entrançados, que imobilizam os pulsos e asfixiam os pescoços; isso
implica uma crise de identidade que gera, como consequência, a crise enquanto traço
fundamental da relação desses personagens com tudo que os circunda.
O leitor talvez já tenha percebido as metáforas da memória em As confissões de
Lúcio. Em primeiro lugar, a ironia do corpo morto do escritor, que põe em movimento
todos os conflitos do livro. A segunda metáfora da memória, relacionada ao lugar, não é
mais a casa e o deserto, mas sim o texto. Em As confissões de Lúcio, os textos sobre
Graumann, vinculados à sua memória ou escritos por ele próprio, são os principais
lugares pelos quais Mauro Portela e nós, leitores, caminhamos. Eles são, também, os
veios nos quais se garimpam as lembranças do morto. Por fim, a memória como objeto
se realiza, de forma mais marcante, de uma maneira semelhante à Galiléia: Mauro
Portela recebe não um baú, mas sim uma caixa cheia de manuscritos e recortes de jornal
de Graumann. Ela logo se transforma numa âncora de chumbo.
Adonias e Mauro buscam nestes objetos uma conexão imediata com o passado
(ao passo que o corpo e o lugar são muito mais uma oportunidade de encontrar os seus
vestígios). Esse passado volta bastante falsificado: após ter seu apartamento invadido,
Mauro Portela e Márcia descobrem que nada foi retirado da caixa legada por Graumann;
ao contrário, novos papéis foram acrescentados a ela. Adonias procura um
conhecimento acerca do passado e só encontra mais vazios e estranhamento; Portela não
consegue mais se desatar dos enganos. O frustrado escritor de As confissões de Lúcio
parece se libertar do peso de Graumann, ao colocar fogo na caixa da memória, mas se
há alguma redenção a partir deste gesto, não é possível saber.
4. Considerações finais
Aproximados, os dois romances nos propõem, portanto, uma poética das
incertezas, ancorada, entretanto, não num niilismo que tantas vezes foi reputado à
produção contemporânea brasileira, apesar dos desencantos narrados em seus enredos.
Se nossa reflexão, no início deste artigo, começa com a reiteração da importância da
memória enquanto agente de resgate cultural, os textos estudados nos demonstram que a
saúde de uma cultura e de um indivíduo também passam pela sabedoria em descobrir o
que é preciso esquecer. Percebemos que as duas funções consolidadas em nossa
literatura ligadas à memória, de constituição e justificação de um locus político de
classe, não se constituíram linhas de força relevantes nos dois romances estudados.
Muito pelo contrário, sem abrir mão de uma visada crítica acerca da realidade social e
cultural do Brasil contemporâneo, a memória é retomada em Galiléia e As confissões de
Lúcio como inquietação universal acerca da possibilidade de construção de sentidos na
experiência de viver o mundo.
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A GESTUALIDADE E A LEITURA: UM CAMINHO DE APRENDIZADO
PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
Cristiane Marinho da Costa65
RESUMO: Este estudo objetiva refletir sobre e analisar a presença da gestualidade como fator intrínseco
e fundamental na aula de leitura com a Educação Infantil. Para situar a pesquisa, abordaremos em
primeiro plano, a temática da Educação Infantil, expondo a compreensão sobre o conceito de criança, que
é vista como um sujeito social e que constrói o conhecimento a partir das interações que estabelece com
as outras pessoas e com o meio em que vive. Para situarmos o estudo, tomaremos como base teórica a
visão interacionista de Bakhtin (1979-2002), para quem a linguagem é dialógica e a leitura pode ser vista
como um processo dialógico e interacional. Também elucidaremos posições dos pesquisadores
relacionados à gestualidade, tomando os estudos de McNeill (1995), Kendon (1982), Cavalcante (1994 e
2009), entre outros. Nesta pesquisa, evidenciamos que o aprendizado da criança em relação à leitura é
permeado pelas imagens, os desenhos do livro infantil, as estórias ouvidas pela professora e,
principalmente, da gestualidade como essencial na aquisição da leitura. Os gestos são importantes na
interação e funcionam como organização do pensamento, dentre eles, temos o gesto do apontar. De
acordo com McNeill (1995), no processo de comunicação, deve-se levar em conta tanto o aspecto verbal
como o não-verbal, pois eles formam um todo e, assim, não podem ser dissociados na comunicação.
Trabalhar com a Educação Infantil requer do professor uma maior expressividade em sala, e,
especialmente, na aula de leitura, em que os gestos do professor direcionam para a compreensão da leitura
pela criança.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura; gestualidade; Educação Infantil.
ABSTRACT: This study aims to reflect and analyze the presence of gestures as an intrinsic and
fundamental to reading in class with child education. To situate the research, we discuss in the foreground
the issue of child education, exposing the understanding of the concept of a child who is seen as a social
subject and build knowledge from establishing interactions with other people and the environment in
living. Second, mention some aspects related to language and reading in which we emphasize the
interactionist view of Bakhtin (1979-2002) for whom language is dialogic reading and can be seen as a
dialogical and interactional. Here, elucidating theoretical positions of scholars and researchers related to
gestures, building upon the study of McNeill (1985), Kendon (1982), Cavalcante (1994 and 2009) among
others. Finally, we present our proposal to work with reading and gestures in children's education,
pointing exemplificações of lessons for reading in the presence of gesture is presented as fundamental to
communication.
KEY WORDS: Reading; gestures; Upbringing
1. Introdução
É notório que, em relação à Educação Infantil, nos últimos anos houve um
avanço significativo no atendimento às crianças de 0 a 6 anos. Um dos fatores é a
realidade da nova organização familiar. A LDB, em seu capítulo V, Da Educação
Especial, parágrafo 3º, determina que: “A oferta de educação especial, dever
constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a
educação infantil”.
65
UFPB / PROLING. Doutoranda
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) alerta para a
necessidade de os educadores estarem mais atentos ao desenvolvimento da linguagem
da criança, como também aos processos de interação social que estabelecem, pois,
neles, conflitos, negociações de sentimentos, ideias e soluções compartilhadas
emergem, constituindo-se elementos indispensáveis ao desenvolvimento da linguagem
oral e da aprendizagem da criança. A criança deve ser vista como um ser social e
cultural, capaz de interagir por meio da linguagem nas trocas sociais, precisando
aprender com os outros, sejam eles adultos ou não.
As Diretrizes Curriculares Nacionais determinam os objetivos gerais da
Educação Infantil, visto como orientador e incentivador dos projetos educacionais e
pedagógicos, em todos os níveis de atuação da Educação Infantil, visando à cobertura
para propiciar à formação integral da criança e atendendo a todos os envolvidos com
elas, ou seja, os educadores, a família e a sociedade.
De acordo com o MEC: “A capacidade de desenvolvimento de linguagem das
crianças é marcada pelas possibilidades de trocas discursivas e o adulto/professor tem
um papel importante nessa tarefa no contexto escolar”. (MEC, 1998, p. 136).
Sabemos que a escola deve ser vista com um propósito definido. Segundo
Escher (2006) na sociedade atual destaca-se a educação da criança como um sujeito
social. É necessária uma parceria entre escola, família e sociedade para o
desenvolvimento da criança enquanto cidadã. Antes, a criança era vista com indiferença,
não era percebida com necessidades diferentes dos adultos. Nos tempos modernos, com
a tríade família – escola e sociedade, a criança passou a compor uma unidade em prol da
Educação Infantil.
Não é desconhecido (ou não deveria ser) para nós, educadores, que a criança é
um sujeito social e histórico que faz parte de uma organização familiar e está inserida
em sociedade. Educar, nessa perspectiva, significa, portanto, propiciar situações de
aprendizagem de uma forma integrada. A organização de situações de aprendizagem
deve visualizar o professor como mediador entre as crianças e o conhecimento, para que
a aprendizagem ocorra de forma salutar; é muito importante o professor agir como
mediador e tomar como ponto de partida os conhecimentos adquiridos pela criança em
seu ambiente familiar e no seu convívio social.
No ambiente escolar, faz-se necessário que o professor crie situações que
promovam o desenvolvimento das crianças em todas as fases, da fala, da leitura e da
escrita. É necessário também observarmos nesta fase de alfabetização os diversos usos
que a criança utiliza na linguagem, para se expressar. É fundamental questionarmos e
buscarmos compreender cada vez mais o universo infantil, assim como também, a
linguagem infantil.
A aprendizagem é um processo e, enquanto tal, necessita de tempo para o
aprendizado. Em se tratando da Educação Infantil, o professor não pode perder de vista
que para a criança é tudo muito novo, sua chegada à escola, a descoberta da figura do
professor, de outras crianças tão próximas e que estão na atenção também daquele
professor, assim, este professor deve estar atento a este mundo novo em que a criança
está imersa. Portanto, a educação não pode se apresentar como algo pronto, acabado e
fechado para a criança.
No processo de construção do conhecimento, as crianças utilizam-se das mais
diferentes linguagens e exercem a capacidade que possuem de terem idéias e hipóteses
originais sobre aquilo que buscam desvendar. Mas, por que estamos tratando desses
aspectos? Porque precisamos desta compreensão da criança como um todo, para
visualizarmos em quais circunstâncias devemos responder às suas necessidades.
Também é notório que as crianças constroem o conhecimento a partir das interações que
estabelecem com os outros e, consequentemente, com o meio em que vivem.
É notório que a criança, neste processo de aprendizado, de descoberta, de novas
experiências etc., constrói um diálogo com o mundo, que irá proporcionar o seu
desenvolvimento intelectual e afetivo. Segundo Vygotsky (1988, p.126):
O aprendizado desperta vários processos interativos de
desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança
interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com
seus companheiros. Uma vez que internalizados, esses processos
tornam-se partes das aquisições do desenvolvimento independente da
criança.
Cabe, pois, ao professor, atento e interessado, auxiliar a construção conjunta das
falas das crianças, ouvir atentamente o que a criança diz para ter certeza de que
entendeu o que ela falou, visando a ajudá-la continuamente no processo de
desenvolvimento lingüístico.
2. Sobre os gestos na aula de leitura
A criança, desde muito cedo, tem contato com o mundo da leitura por meio de
seus pais, em casa, no momento da leitura do livro infantil na hora de dormir, seja
observando o pai lendo o jornal, ou quando percebe que o pai lê as placas sinalizadoras
para saber se orientar no trânsito, ou quando a mãe lê a bula de remédios para saber
cumprir as indicações médicas, entre outras situações. Sabemos que, em contrapartida,
também temos crianças que têm pouco ou quase nenhum contato com essas situações de
leitura, mas, de uma forma ou de outra, a leitura se apresenta para a criança em um
determinado momento de sua vida. Conforme destaca Chartier (1996, p.115): “Para
uma criança, os conhecimentos são em primeiro lugar, construídos dentro da
experiência de mundo no qual ela se move, age e fala com adultos e outras crianças”.
Dentre essas situações, apresentaremos o uso dos gestos na aula de leitura como
primordial para o aprendizado dos alunos. Ferreiro (2006, p.165) nos indica: “[...] Mas,
é a presença da voz o único indicador de um ato de leitura? Obviamente não. É tanto a
postura como a direção do olhar, ou o tipo de exploração que os olhos realizam”. A
criança reproduz os gestos realizados pelo adulto em relação à leitura como “olhar com
atenção os desenhos, segurar o livro de determinada maneira e, inclusive, pode chegar a
relatar o que vê [...]”. (op.cit. p.165)
De acordo com os pesquisadores, para a criança, inicialmente, a leitura não pode
ser concebida sem voz. Assim, ela acompanha o gesto com a voz que escuta, “a
exigência de ouvir o que se lê junto com a interpretação olhando [...]” (FERREIRO,
2006, p.169). Em outro momento, a leitura da criança se faz independente da voz, que
se diferencia do folhear, é chamada de leitura silenciosa. Para a autora (op.cit, p.172):
“Os atos de leitura silenciosa definem em si mesmos, e os gestos, a direção do olhar, o
tempo e o tipo de exploração, são índices que mostram e demonstram uma atividade de
leitura silenciosa”.
Sabemos que a linguagem verbal é vista como a principal na construção do
sentido, mas, é também notório o avanço do estudo dos gestos na significação de textos
verbais em situações de sala de aula. Trata-se de pensar e exercer a gestualidade para,
principalmente, ampliar os significados da leitura. Percebemos um paralelo entre as
enunciações verbais e os gestos, que servem para acompanhar o verbal e expressar
idéias. Os gestos ilustram a enunciação verbal e especificam o sentido dos gestos. A
linguagem gestual é essencial para que a criança, carente de um maior repertório verbal,
possa consolidar uma explicação, compreender a leitura, os sentidos.
De acordo com McNeill (1995), no processo de comunicação deve-se levar em
conta tanto o aspecto verbal como o não-verbal, pois formam um todo e assim não
podem ser dissociados na comunicação.
Assim, os gestos fazem parte da construção do sentido do texto na sala de aula,
em especial, trataremos da aula de leitura, analisando o papel dos gestos como
preponderante para o ensino e a aprendizagem na aula de leitura com a Educação
Infantil.
Os estudos sobre os gestos têm sido desenvolvidos de forma mais profunda por
McNeill, que toma como base os estudos de Kendon, que considera os gestos como
integrantes da língua, com relevância na cognição e na linguagem. O autor indica que o
gesto desempenha um papel na aprendizagem da criança e também pode ser um
indicador de períodos de transição no que diz respeito à aquisição de novos conceitos,
permitindo atenção e um valor pedagógico ao gesto.
McNeill toma como conceituação o termo gestos no plural, pois assegura que
nossos movimentos repercutem ações e não algo isolado, por isso temos gestos. Para
nomear os movimentos que efetuamos, Kendon (1982) elaborou uma tipologia
denominada de “contínuo de Kendon” que implica: a gesticulação; a pantomima; os
emblemas; a(s) língua(s) de sinais. Conforme menciona Cavalcante66 (2009, p.5):
A gesticulação caracteriza-se como os gestos que acompanham o
fluxo da fala, envolvendo braços, movimentos de cabeça e pescoço,
postura corporal e pernas, possui marcas da comunidade de fala e
marcas do estilo individual de cada um; a pantomima são gestos que
´simulam´ ações ou personagens executando ações, é a representação
de um ato individual, tem um caráter de narrativa, pois envolve uma
seqüência de micro ações; os emblemas ou gestos emblemáticos são
aqueles determinados culturalmente (são convencionais) tais como o
uso, em nossa cultura, do gesto que envolve a mão fechada e polegar
levantado significando aprovação; a língua de sinais enquanto sistema
lingüístico próprio de uma comunidade, no nosso caso, a LIBRAS
66
Artigo: Rotinas Interativas Mãe-Bebê: constituindo gêneros do discurso, de Marianne Carvalho Bezerra
Cavalcante.
Trabalhar com a Educação Infantil requer do professor uma maior
expressividade em sala, e, especialmente, na aula de leitura, em que a expressividade,
entendida neste estudo como os gestos do professor, direcionam para a compreensão da
leitura pela criança. É incontestável que o modo como falamos e gesticulamos na aula
de leitura corrobora para a atenção da criança. Portanto, neste estudo, analisaremos a
presença desta gestualidade em algumas situações de trabalho com a leitura de crianças.
3. A leitura e a gestualidade: um caminho de aprendizado
Elucidaremos a seguir algumas propostas de trabalho com a leitura na Educação
Infantil, refletindo, analisando e observando a presença intrínseca e fundamental da
gestualidade, ora desenvolvida pela professora, ora pela própria criança, em busca de
uma aproximação com o objeto lido.
Sabemos que a criança nesta fase está ingressando no mundo da leitura, por
meio de sua alfabetização e letramento, em que responder e compreender a leitura feita
pelo professor não corresponde, necessariamente, a ler o texto, principalmente de forma
estrita as letras, pois nesta fase a leitura da criança é muito mais permeada pela imagem,
os desenhos encontrados no livro, sua identificação com as imagens lidas etc.
Apresentaremos algumas situações de leitura a serem trabalhadas em sala,
sempre tendo em vista a presença do gesto como orientador e fundamental neste
processo de aprendizagem da leitura pela criança.
A – Leitura compartilhada: Os gestos são importantes na interação e funcionam como
organizadores do pensamento
O momento da leitura com as crianças no trabalho em conjunto propicia uma
interação e compartilhar das idéias encontradas no livro permite a apropriação de
significados em conjunto, numa parceria de aprendizado. Nessa leitura, cada criança
aponta, gesticula para o seu colega o que lhe chamou mais atenção na leitura,
direcionando, assim, o significado do texto que elas constroem nesta parceria. O gesto
de surpresa, de descoberta, de identificação com a leitura, por meio muitas vezes dos
desenhos, como também do olhar do outro, representa este papel do professor.
B - Leitura oral: gestos do professor – gestos dos alunos. Na concepção do gesto como
linguagem, temos na contação de estórias a gestualidade como precursora e íntima com
a leitura, pois direciona a fala da professora, assim, a gestualidade amplia o significado
do texto falado e os movimentos da professora na leitura explicam para a criança sobre
aquilo que ela fala.
Fabron (2006) afirma que, no contexto de sala de aula, a expressividade
comanda a interação entre professor e aluno e pode facilitar a construção do
conhecimento, podendo até mesmo garantir a atenção dos alunos. Sem duvida, é um
momento de prazer e espera pelos alunos que segue todo um ritual desejado como a
hora da leitura, daí figuram os gestos: sentar em circulo, a professora segura o livro,
começa a contar a história em voz alta, utiliza de gestos para expressar o que está lendo,
como a pantomima, e também mostra para as crianças alguns desenhos sobre o que lê.
Nesse tipo de leitura, a pantomima apresenta-se como fundamental na sala de aula e o
educador deve explorar ao máximo essa gesticulação, em que se representam as
personagens lidas e a criança, atenciosamente, acompanha o texto.
C - Leitura em conjunto: professor e alunos realizam a leitura paulatinamente, em
conjunto, e os gestos acompanham-na, ao apontar para a criança no livro o que está
lendo. Esse gesto de apontar é definido pelos estudiosos como um meio comunicativo e
não como um gesto aleatório, ou seja, a professora, ao apontar para o aluno determinado
trecho do livro (que destaca com o apontar seja um desenho ou outra coisa), pretende
manifestar comunicação com a criança, visando a sua compreensão e à leitura daquele
objeto apontado.
Percebemos que o gesto, ou seja, a postura da professora em aproximar-se do
aluno e apontar para o texto lido colabora com a comunicação e a compreensão da
criança. Define a leitura como um momento harmonioso entre a professora, a criança e
o livro. Assim, por meio da linguagem corporal, o gesto de apontar indica à criança o
caminho da leitura, facilitando a leitura como processo de construção do conhecimento
e garantindo a atenção do aluno.
D - Leitura curiosa: A criança de 0 a 6 anos é curiosa, investigativa e tem
questionamentos e necessidade de respostas às questões sobre o mundo que a cerca. Os
gestos fazem parte dessa observação, como fixar um olhar num desenho ou apontar para
outro que desconhece ou se identifica etc.
De acordo com Oliveira (2001, p.1): “Ler não significa somente decodificar
palavras ou assimilar informações; pode ser também momento de entusiasmo, de
conflito, de transformações, de impulso, de movimento”. Assim, quando a criança pega
o livro e fixa atenciosamente seu olhar no texto, por meio do gesto do seu olhar, do
folhear, de fixar em determinada página ou figura que, possivelmente, a identifica com
seu mundo, essa leitura curiosa é motivada pelo entusiasmo em descobrir naquele texto
algo que cativa. Seu gesto de segurar o livro com entusiasmo, com curiosidade é a
descoberta do seu mundo com aquele livro.
4. Considerações finais
É fundamental para o professor observar, registrar e refletir sobre esses aspectos,
visando também a rever sua pratica e a aprender. Por meio da aula de leitura no trabalho
com a Educação Infantil, evidenciamos, neste estudo sobre a gestualidade na aula de
leitura, como são preponderantes e inseparáveis a leitura e os gestos na leitura para uma
maior compreensão da criança sobre o objeto lido.
Através de cada situação de leitura apresentada em epigrafe, percebemos que o
trabalho do educador se torna eficaz se caminhar junto com os gestos e para o educador
é importante ter essa percepção em expor a leitura para as crianças.
Este estudo objetiva também contribuir para o aprendizado dos educadores em
visualizar as práticas pedagógicas implementadas em sua sala que possam ser
direcionadas por meio dos gestos, pois, incontestavelmente, sem a presença dos gestos e
esta visão ampla do seu significado no texto, certamente, a leitura será comprometida.
A linguagem é dinâmica, a leitura consequentemente também o é, os gestos,
pois, definem e asseguram essa dinamicidade na sala de aula. Em se tratando da
Educação Infantil, conforme relatado neste estudo, é primordial a presença da
gestualidade na aula de leitura com as crianças.
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LITERATURA E FILOSOFIA: REFLEXÕES SOBRE O FAZER POÉTICO NA
OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS
Edilane Rodrigues Bento67
RESUMO: Produzida na virada do século XIX para o século XX, a obra poética de Augusto dos Anjos
tem sido constantemente estudada do ponto de vista da presença de uma mimetização de um sentimento
melancólico na obra do poeta. Sabemos que a inconstância dos bens terrenos, a fragilidade das relações
entre os homens, a vaidade e miséria humanas, a finitude do ser, a exaltação da dor, do não-ser e da morte
são características presentes na obra poética de Augusto dos Anjos e que levaram muitos estudiosos a
apontar para a mesma como sendo portadora de certa visão pessimista da condição humana, no entanto,
podemos afirmar que esses estudos limitaram, a nosso ver, a apreensão da obra desse poeta, pois, ao tratar
apenas dos aspectos considerados negativos da vida humana, deixaram de observar outras possibilidades
de leitura que a obra permite. É considerando a riqueza temática dessa obra que, neste artigo, nos
propomos a realizar uma leitura diferenciada da obra de Augusto dos Anjos. Tomando como corpus de
estudo o poema “Vencedor”, pertencente à obra “Eu”, buscaremos tecer algumas considerações sobre o
fazer poético, bem como sobre a relação entre filosofia e poesia e o lugar da poesia na sociedade
moderna.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; poesia; filosofia; melancolia.
ABSTRACT: Produced in the turning of the century XIX for the century XX, the poetic work of Augusto
dos Anjos has constantly been studied of the point of view of the presence of a mimetização of a
melancholic feeling in the poet's work. We know that the inconstancy of the terrestrial goods, the fragility
of the relationships among the men, the vanity and human poverty, the being's finiteness, the exaltation of
the pain, of the no-being and of the death, they are characteristic present in the poetic work of Augusto of
the Angels and that you/they took many studious to appear for the same as being bearer of certain
pessimistic vision of the human condition, however, we can affirm that those studies limited, ours to see,
the apprehension of that poet's work, because, when treating just of the aspects considered negatives of
the human life, they stopped observing other reading possibilities that the work allows. It is considering
the thematic wealth of that work that, in that article, we intend to accomplish a differentiated reading of
the work of Augusto dos Anjos. Taking as study corpus the "Winner" poem, belonging to the work "Eu",
we will look for to weave some considerations on doing poetic, as well as about the relationship among
philosophy and poetry and the place of the poetry in the modern society.
KEYWORDS: Literature; poetry; philosophy; melancholy.
1. Introdução
Produzida na virada do século XIX para o século XX, a obra poética de Augusto
dos Anjos tem sido constantemente estudada por inúmeros pesquisadores a exemplo de
Almeida (1962), Helena (1975), Viana (1994), Erickson (2003), Bezerra (2005), entre
outros, os quais apontam para a presença de uma mimetização de um sentimento
melancólico na obra do poeta. Sabemos que a inconstância dos bens terrenos, a
fragilidade das relações entre os homens, a vaidade e miséria humanas, a finitude do ser,
a exaltação da dor, do não-ser e da morte, são características presentes na obra poética
de Augusto dos Anjos e que levaram muitos estudiosos a apontar para a mesma como
sendo portadora de certa visão pessimista da condição humana, fato que pode ser
67
Doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco.
facilmente percebido através dos rótulos impostos ao poeta, os quais reafirmam a
formação dessa visão pessimista, tais como os títulos de “Poeta do hediondo”, “Poeta da
morte”, “Poeta do mau gosto”, associados à figura do poeta Augusto dos Anjos.
Nesse sentido, podemos afirmar que esses estudos limitaram, a nosso ver, a
apreensão da obra desse poeta, pois, ao tratar apenas dos aspectos considerados
negativos da vida humana, deixaram de observar outras possibilidades de leitura que a
obra permite. É considerando a riqueza temática dessa obra que, nesse artigo, nos
propomos a realizar uma leitura diferenciada da obra de Augusto dos Anjos. Tomando
como corpus de estudo o poema “Vencedor”, pertencente à obra “Eu”, buscaremos tecer
algumas considerações sobre o fazer poético, bem como sobre a relação entre filosofia e
poesia e o lugar da poesia na sociedade moderna.
2. O texto poético
O termo poesia, deriva do grego poíeses, ou latim poesis, significa fazer, criar,
alguma coisa. O pensamento estético começa pela poesia com Platão, na República, e
Aristóteles na Poética. Platão (2006), em sua República, no livro X, parte da ideia de
que há um “modelo no céu”, ou seja, que o real é o ideal, considerando haver três graus
de realidade: a criada por Deus, a do artífice e a do artista. Tomando como modelo a
cama, ele aponta, que existem “três formas de cama”, “uma que é a forma natural e da
qual diremos, segundo entendo, que Deus a confeccionou”, outra seria “a que executou
o marceneiro”, e outra, “feita pelo pintor” (PLATÂO, 2006, p.295), sendo que apenas a
primeira seria a cama “ideal”, enquanto o marceneiro/o artífice seria um primeiro
imitador do modelo “ideal” e o pintor, um segundo imitador, um imitador da imitação e,
por isso, um imitador menor .
Dessa forma, o imitador é o autor de uma produção afastada três graus da
natureza. Podendo tal ideia ser aplicada igualmente ao poeta, Platão vai afirmar que
“todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes dos assuntos sobre
os quais compõem, mas não atingem a verdade” (2006, p.299). A imitação está assim,
longe do verdadeiro e o poeta, por sua condição de imitador, vivendo no erro, não teria
utilidade alguma na “República Ideal” de Platão.
Aristóteles não compartilha das ideias de Platão, destacando a arte como uma
imaginação suscetível de criação, ele afirmará em sua Arte Poética (2007, p. 43) que a
poesia não tem finalidade de simplesmente narrar um acontecimento verídico, mas em
sua qualidade de artista, o poeta narra “o que poderia ter acontecido, o possível,
segundo a verossimilhança ou a necessidade”. Comparando o historiador e o poeta,
Aristóteles afirma que eles diferem entre si pelo fato de ao primeiro caber a obrigação
de escrever sobre o que aconteceu e ao segundo sobre o que poderia ter acontecido.
Diante disso afirmará (2007, p. 43) que “a poesia é mais filosófica e de caráter mais
elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda
apenas o particular”. As ideias de Aristóteles marcam assim o começo de uma mudança
em torno da ideia errônea da arte enquanto uma simples reprodução ou fotografia da
realidade.
É necessário perceber que Aristóteles não se refere à poesia tal qual imaginamos
hoje, mas ao destacar o “narrar” ele se refere à épica, pois de acordo com Borges
(2000), embora hoje nós possamos pensar no poeta como aquele que profere notas
líricas, os antigos, quando falava de um poeta, um “fazedor”, pensavam nele também
como quem narra uma história, a exemplo de Homero na Ilíada e Odisséia ou dos quatro
evangelhos, os quais Borges considera como “épica divina”.
Sobre a relação entre a poesia e a realidade, as afirmações de Costa Lima (1966)
nos são esclarecedoras. Esse autor (1966, p.23) afirma que a obra de arte não anula o
real, antes dele se alimenta e o suspende na obra “para enriquecê-lo com uma riqueza
nova”, ou seja, através da expressão artística podemos tomar maior consciência do real,
é dele que a obra parte e a ele volta. A ideia de que exprimir é tomar consciência pode
ser mais bem visualizada em Heidegger (2007b, p.27) para quem “a obra é o acontecer
da verdade”. Considerando a representação de um par de sapatos numa pintura de Van
Gogh, Heidegger dirá que é na obra que nos aproximamos da essência do Ser sapato, ou
seja, é nela que acontece a verdade através do desocultamento do Ser desse simples
apetrecho. Para Heidegger (2007b, p.24) o ente sapato enquanto um apetrecho útil não
tem nada de especial, o “Ser-apetrecho desse apetrecho repousa na sua serventia”, no
entanto, na pintura de Van Gogh, o ente sapato perde seu caráter instrumental
possibilitando, assim, o desocultamento do seu Ser, pois através de sua representação
podemos perceber que:
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade
e o cansaço dos passos do trabalhador. Na grávida gravidade rude e
sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos
sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o
qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e fertilidade do
solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela
noite que cai. [...] por esse apetrecho passa o calado temor pela
segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a
miséria, a angústia do nascimento iminente e o temor ante a ameaça
da morte. (HEIDEGGER, 2007b, p.25)
Nas palavras de Heidegger (2007b), percebemos o que significa o
desocultamento do “Ser” do ente, ou seja, é através da obra de arte que tomamos maior
consciência daquilo que ela apresenta. A arte nos faz parar por um momento e
refletirmos sobre as coisas, os sentimentos, os fatos, as ideias nelas representadas.
Sabemos que não estamos diante do real, mas é nela que percebemos melhor esse
desocultamento do real de que fala Heidegger.
Da mesma forma, podemos falar que na poesia acontece esse desocultamento,
pois a poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do ser,
desocultamento original, ou seja, forma de o ser se revelar, no sentido de que na obra de
arte acontece a revelação ou a verdade de algo, a verdade do ser. Ela é “a
fundamentação do Ser em e pela palavra” (2007b, p.37) e, por isso mesmo, o mais
perigoso de todos os bens que o homem possui, pois enquanto fundamentação do Ser,
ela arrisca o Ser.
Através da poesia, das imagens simbólicas presentes em suas metáforas,
sentimos que o indizível tornou-se possível, sentimos prazer e ao mesmo tempo somos
chamados a refletir sobre a realidade, percebendo que nela não se realiza a simples
imitação, mas uma revelação de algo que a simples linguagem cotidiana é incapaz de
transmitir. “A poesia é uma paixão e um prazer” afirma Borges (2000). Concordamos
com o autor quando ele afirma que a ideia de poesia enquanto “expressão” de algo é cair
no velho problema de “forma e conteúdo”. Ler Homero não é ler poesia, pois o livro é
apenas ocasião para a poesia, passar à poesia é passar à vida, pois a vida é feita de
poesia e esta pode saltar sobre nós a qualquer instante.
O livro, para Borges (2000, p.11), é apenas “um objeto físico num mundo de
objetos físicos. [...] as palavras são meros símbolos”, a poesia então é o que está por trás
das palavras, e as faz saltar para a vida, ressuscitando-a. Segundo Borges (2000), nós
sabemos tão bem o que é a poesia que não conseguimos defini-la, tal como não
podemos definir o gosto do café, a cor vermelha, etc., assim, como diz Santo Agostinho
a respeito do tempo, ou seja, que se não lhe perguntam o que é, ele sabe, mas se o
perguntam, ele já não sabe, da mesma maneira Borges (2000) afirma que acontece com
ele em relação à poesia. Ele contesta as palavras de Stevenson, o qual afirma que as
palavras são destinadas ao comércio habitual do dia a dia, e o poeta de algum modo as
converte em algo mágico, pois acredita que o que o poeta faz é levar a linguagem de
volta às fontes, uma vez que as palavras começam como mágica, ou seja, as palavras
não começam abstratas, mas concretas, poéticas, citando como exemplo palavras como
“threat [ameaça] que inicialmente significava “a threatening crowd”, [uma multidão
ameaçadora].
Outra palavra que Borges (2000) usa para exemplificar o início poético da
palavra é “thunder” [trovão], fazendo um paralelo com o deus Thunor e o equivalente
saxão Thor nórdico. Sobre essa palavra, o autor nos diz que ela exprimia o trovão e o
deus e que, quando as pessoas proferiam ou escutavam a palavra “thunder”, ao mesmo
tempo ouviam o grave estrondo no céu e viam o raio e pensavam no deus. Conforme
Borges (2000, p.85) “as palavras eram envoltas em mágicas; não tinham um significado
estanque”. Olhando em retrospecto ele percebe que, embora essas palavras hoje sejam
abstratas, elas já tiveram um forte significado perdido com o uso corriqueiro, mas
reconduzido à mágica inicial pela poesia. Nesse sentido, todas as palavras eram
originalmente metáforas, embora, segundo o autor, a fim de entender a maioria das
palavras, seja preciso esquecer o fato de serem metáforas.
Fizemos até aqui algumas considerações sobre a concepção de poesia de acordo
com Platão (2006), Aristóteles (2007), Costa Lima (1966), Heidegger (2007b) e Borges
(2000). No entanto, é possível encontrar na obra poética de Augusto dos Anjos uma
visão do fazer poético que nos possibilita tecer algumas considerações sobre a missão
do poeta na sociedade. É nesse sentido que nos voltamos para a leitura do poema
“Vencedor” de Augusto dos Anjos:
VENCEDOR
01 Toma as espadas rútilas, guerreiro,
02 E à rutilância das espadas, toma
03 A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
04 Meu coração – estranho carniceiro!
05 Não podes? Chama então presto o primeiro
06 E o mais possante gladiador de Roma.
07 E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
08 Nenhum pôde domar o prisioneiro.
09 Meu coração triunfava nas arenas.
10 Veio depois um domador de hienas
11 E outros mais, e, por fim, veio um atleta,
12 Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
13 E não pôde domá-lo enfim ninguém,
14 Que ninguém doma um coração de poeta!
A leitura do soneto nos permite afirmar que nele é apresentado o acontecer de
um duelo. Na primeira estrofe, o eu lírico desafia o guerreiro a domar seu coração e,
para tanto, o instiga a tomar as espadas rútilas, a adaga e o gládio, ambos de aço, todas
elas armas bélicas de alto poder destrutivo.
A espada, arma braça longa, é o símbolo guerreiro, que segundo Chevalier e
Gheerbrant (2007, p.392), possui dois aspectos: o destruidor, que pode ser positivo
quando aplicado contra as injustiças, e o construtor, pois ela “estabelece e mantém a paz
e a justiça”. Ela simboliza ainda, por sua lâmina brilhante, a luz, o relâmpago e o fogo.
No livro de Gênesis do Antigo testamento bíblico, é narrado que, após Deus ter
expulsado Adão e Eva do paraíso, “pôs querubins ao oriente do jardim do Éden e uma
espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn
3: 24).
Percebemos assim o alto poder destrutivo da espada, ao ser a arma escolhida
para guardar o paraíso. Na estrofe, a ideia de duelo é reafirmada através do uso do
vocábulo espada, gládio e adaga. Sabemos que a espada era a primeira e principal arma
utilizada pelos guerreiros nos duelos. Ela era segurada geralmente na mão direita
enquanto a adaga, espécie de punhal, o era pela mão esquerda e tinha como função
cortar a espada do adversário. Já o gládio, espécie de espada curta, era utilizado pelo
guerreiro, quando sua espada havia sido cortada pelo adversário ou perdida durante o
duelo. O uso sequencial dos vocábulos no poema dá a ideia de movimento do combate:
o adversário usou a espada, a adaga e, sendo infeliz no uso, necessitou tomar o gládio
no duelo contra o eu lírico. No entanto, o uso dessas poderosas armas não foi suficiente
para domar o coração do eu lírico, como sugere o primeiro verso da segunda estrofe, no
qual o eu lírico tendo-o derrotado, pergunta: “Não podes?”.
O eu lírico sugere então que o guerreiro, derrotado, chame outro combatente: o
primeiro e o mais possante gladiador de Roma. Percebemos mais uma vez a ousadia do
eu lírico ao sugerir afrontar tal adversário: os gladiadores romanos eram geralmente
escravos treinados, que lutavam entre si para “alegrar” a plateia do Coliseu. Da vitória
no duelo dependia muitas vezes sua liberdade e, por isso, o gladiador lutava como
gigante, objetivando, ao vencer seu adversário, obter fama e sair da difícil vida de
escravo. O eu lírico enfrenta uma sucessão de duelos, como sugere o verso 07 da
segunda estrofe e, mais uma vez, sai vitorioso, pois nenhum dos gladiadores o pode
domar e seu coração triunfava nas arenas.
De acordo com o verso nove, o combatente que sucede aos gladiadores é “um
domador de hienas”. Caçador diurno, encontrado em toda a África e na Ásia meridional,
desde o Mediterrâneo até a baía de Bengala, a hiena sempre teve uma terrível reputação.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, p.492) a hiena “se caracteriza antes de mais
nada pela voracidade, pelo cheiro, pelas faculdades de adivinhação que lhe são
atribuídas e pela força das suas mandíbulas, capazes de moer os ossos mais duros”. Por
todas essas características, a hiena é um animal assustador. Os antigos pensavam que a
sua gargalhada durante a noite era a risada de um homem colocando armadilhas fatais
aos viajantes. Acreditavam que se a sombra de uma hiena caísse sobre a de um cão, este
ficaria mudo e paralisado. Diziam ainda que a hiena era a encarnação de espíritos de
feiticeiros.
Nesse sentido, o poema sugere mais uma vez o poderio do adversário que o eu
lírico está a enfrentar, afinal, não é qualquer homem que conseguiria domar uma hiena,
além de destemido, ele precisa de habilidades especiais para lidar com esse animal. No
entanto, nem o domador foi suficiente para domar o coração do eu lírico. Depois dele
vieram outros, como sugere o verso 11, mas da mesma forma que o primeiro, não
alcançaram vitória. Ainda nesse verso é apresentado o último adversário do eu lírico:
um atleta. A figura do atleta representa o ideal de perfeição humana mais
especificamente da figura masculina, se pensarmos que, na Grécia antiga, as mulheres
eram excluídas das práticas esportivas olímpicas. O mundo grego, de onde se origina a
figura do atleta, é o primeiro a iniciar o culto ao corpo.
Na Grécia antiga, se buscava a harmonia entre a mente e o corpo, sendo o corpo
saudável, belo e forte tão valorizado quanto uma mente brilhante. A importância da
força física era destacada ainda pelo próprio lema do atletismo grego: "mais rápido,
mais alto e mais forte" ("citius, altius e fortius"). Assim como os gladiadores, os atletas
gregos tinham muitas razões para se esforçarem, objetivando a vitória nas olimpíadas,
pois os vencedores recebiam uma palma ou coroa de oliveira, além de outras
recompensas de sua cidade, para a qual a vitória representava grande glória. De volta à
terra natal, eram triunfalmente acolhidos, podendo, inclusive, receber alimentação
gratuita pelo resto de suas vidas. A homenagem podia consistir até na construção de
uma estátua do vencedor, além de poemas que poderiam ser escritos por Píndaro, poeta
lírico que produziu diversas obras, destacando-se hinos em louvor às vitórias de atletas
gregos. Como podemos perceber, o atleta é, assim como os anteriores, um difícil
adversário para o eu lírico, considerando seu vigor físico, mas assim como os demais, o
atleta não pôde domar o coração do eu lírico.
Segundo o eu lírico, vieram ao todo cem adversários e nenhum conseguiu domar
seu coração (versos 10 e 11). Interessante observar a simbologia do número 100.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, pp.218-219) :
Esse número individualiza a parte de um todo que, por sua vez, é
apenas parte de um conjunto maior. [...] O cem é uma parte que
forma um todo dentro do todo, um microcosmo dentro do
macrocosmo, que distingue e individualiza uma pessoa, um grupo,
uma realidade qualquer dentro de um conjunto. E essa entidade assim
individualizada possuirá suas propriedades distintivas, que se tornarão
de uma eficácia particular dentro de um conjunto mais vasto” (negrito
dos autores)
Considerando a simbologia do número 100, percebemos que ele não representa,
no poema, um número objetivo de quantidade real de adversários, mas apenas uma parte
de um todo maior. É possível afirmar que o eu lírico trava uma batalha mais vasta, de
que o número seria apenas uma ideia aproximada. Podemos afirmar que o eu lírico
venceu todos seus opositores, pois, como afirma nos versos 11 e 12, ninguém conseguiu
domar seu coração, “porque ninguém doma um coração de poeta”. É apenas no último
verso que sabemos quem é o eu lírico: um poeta ou um homem que tem um coração de
poeta.
A manifestação da natureza do eu lírico dá um novo significado ao poema. É
necessário voltar ao início do soneto e fazer uma leitura que abarque essa nova
informação. Considerando o eu lírico enquanto poeta, o soneto sugere uma batalha que
é a da própria poesia ao longo do tempo.
É necessário voltar à simbologia da espada e perceber que, além dos aspectos de
destruição e construção, ela representa ainda a palavra. Segundo Chevalier e Gheerbrant
(2007, p.392):
Ela é um símbolo do Verbo, da palavra. [...] o Apocalipse descreve
uma espada de dois gumes a sair da boca do Verbo. Esses dois gumes
relacionam-se com o duplo poder [...] designa a palavra e a
eloquência, pois a língua, assim como a espada, tem dois gumes.
A associação da espada à palavra é muitas vezes destacada no Novo testamento
bíblico. Na carta de Paulo aos efésios, este incentiva os fieis a tomarem, na luta contra
as astutas ciladas do diabo, “a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef. 6: 17).
Já no livro escrito aos Hebreus, de autoria desconhecida, temos mais uma vez a relação
entre a espada e a palavra de Deus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante
do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até à divisão da alma, e do espírito, e
das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração”.
(Hb. 4: 12).
Ora representada pelo símbolo da espada, como nos trechos de Apocalipse e
Efésios, ora comparada à sua eficácia, como no livro de Hebreus, a palavra divina é
muitas vezes relacionada à espada nos escritos bíblicos. Entendendo a batalha do poeta
como uma batalha com a palavra, ou como a batalha da poesia ao longo do tempo, e
considerando as figuras do guerreiro, do gladiador e do atleta, podemos interpretar o
poema da seguinte maneira: a mudança de adversário representaria a sucessão do
tempo; a figura do guerreiro, relacionada aos tempos mais remotos; a do gladiador,
representaria um tempo não tão antigo quanto o primeiro, uma vez que a figura do
gladiador surge em Roma aproximadamente dois séculos antes de Cristo e a figura do
atleta representaria o presente, uma vez que, embora tendo surgido na antiga Grécia, a
figura do atleta é a única, dentre as três, que permaneceu até os dias atuais, pois o
guerreiro de espada em punho, descrito pelo soneto e o gladiador tal qual conheceu
Roma não sobreviveram ao passar do tempo.
Interpretando desse modo, podemos afirmar que o poema faz alusão à existência
e luta da poesia para permanecer ao longo do tempo. Um coração de poeta, ou seja, um
sentimento de amor, delicado e aparentemente frágil de trabalho com a linguagem no
sentido de trazer a ela os sentimentos indizíveis, numa constante batalha contra a
coisificação do mundo, sempre existiu e resistiu a seguidas lutas, conseguindo
permanecer, mesmo em meio às maiores tormentas, podendo o poeta declarar-se, enfim,
um vencedor.
Como sugerem os poemas, a missão do poeta está relacionada ao divino (o
vates), à sabedoria (poeta/profeta) e à luta (o guerreiro). Ele é o que anuncia as verdades
essenciais, destacando-se dos demais, por ser o mediador entre Deus e os homens. No
entanto, qual seria a missão do poeta na sociedade moderna? Na era dos grandes
avanços tecnológicos, do culto à máquina, da competitividade e valorização do lucro na
sociedade capitalista, ainda há espaço para a poesia? Sobre essas e outras questões nos
debruçamos no tópico seguinte.
3. Poesia na sociedade moderna
Com o nascimento da sociedade moderna, a situação social do poeta sofreu um
grave abalo. Segundo Paz (1976), para a burguesia capitalista, a poesia não passa de
mera distração e a inspiração e imagens poéticas são classificadas como produtos de
enfermidades mentais. A sociedade moderna tenderá a rotular e expulsar aquilo que não
pode assimilar, e essa realidade será percebida em relação à poesia. Para Paz (1976,
p.76) “a poesia nem ilumina nem diverte o burguês. Por isso desterra o poeta e
transforma-o em um parasita ou um vagabundo”. O poeta passa, então, pela primeira
vez na história, a não conseguir viver de seu trabalho, uma vez que esse é considerado
sem valor. A afirmação “poesia não vale nada” traduz-se precisamente por “a poesia
não ganha nada” e como seu labor não tem valor para a burguesia, pois o valor poético
não podia ser convertido em dinheiro como a pintura, os cofres burgueses são então
fechados ao poeta, e ele é obrigado a buscar outra ocupação, ou morrer de fome.
Destituído de sua função de profeta, de sábio ou feiticeiro, atribuídas ao poeta
arcaico, o poeta moderno tenta fundar a palavra poética no próprio homem. Não vendo
em suas imagens a revelação de um poder estranho, a escritura poética passa a ser
concebida como a revelação de si mesmo que o homem faz de si próprio. Nesse sentido,
a poesia moderna torna-se também a teoria da poesia, e o poeta desdobra-se em crítico.
A missão do poeta moderno consiste, então, “em ser a voz do movimento que diz “Não”
a Deus e a seus hierarcas e “Sim” aos homens. As escrituras do mundo novo serão as
palavras do poeta revelando um homem livre de deuses e senhores, sem intermediários
diante da vida e da morte” (Paz, 1976, p. 79). Nasce, então, uma íntima relação entre
poesia e revolução: culto à liberdade do homem frente às coerções religiosas e
burguesas da sociedade moderna.
A missão do poeta passa a ser a de estabelecer a palavra original, entendida
como sendo anterior às Bíblias e aos Evangelhos, palavra do homem original, que é o
homem puro, inocente. O poeta moderno propaga que a verdade não procede da razão,
mas da percepção poética, da imaginação, uma vez que nossa essência última seria o
desejo de infinito, sendo o homem imaginação e desejo. Ele profetiza a sociedade
poética, na qual o homem é livre dos dogmas da religião e se relaciona numa comunhão
poética em que a relação senhor e servo, patrão e escravo não mais subsiste.
Essa ruptura entre poesia e religião terá suas consequências: “também as Igrejas,
como a burguesia, expulsam os poetas”, afirma Paz (1976, p.84). O poeta moderno está
condenado a viver no subsolo da história, ele não tem lugar na sociedade, é considerado
como aquele que não trabalha nem produz, e a solidão o define. A solidão é na verdade,
segundo Paz (1976), a nota dominante da poesia atual.
No entanto, mesmo em sua solidão, a voz do poeta moderno continua a anunciar
um sonho de um mundo mais humano, tal qual o poeta descrito por Elcanaã Ferraz, de
que nos fala Santiago (2006), o qual em sua mesa de trabalho corrige os “erros” da
natureza e os transforma em beleza, extraindo, da negatividade do desencanto, o
encanto. Na pena do poeta, da megalópole feia e poluída, ele extrai beleza. O poema na
sociedade moderna é, como diz Santiago (2006), a esperança, um fio de luz, a flor que
nasce no asfalto, para usar uma metáfora de Drummond. A poesia constitui-se assim,
segundo Adorno (2003, p.69), como “uma forma de reação à coisificação do mundo”.
Além da função social de dar prazer, na poesia, como afirma Eliot (s/d, p.58):
[...] existe sempre a comunicação de uma experiência nova qualquer,
ou qualquer nova apreensão do que é familiar, ou ainda a expressão do
algo que experimentamos, mas para que nos faltam as palavras, que
alarga a nossa consciência ou apura nossa sensibilidade.
As palavras de Eliot (s/d) nos reportam à afirmação de Heidegger (2007b),
quando este diz que a arte é o acontecer, a revelação de uma verdade para a qual não
tínhamos uma expressão adequada. Diante da poesia, ficamos paralisados pela força do
“grito” metafórico que condensa o mundo.
A poesia é a arte nacional por excelência. Isso porque, como afirma Eliot (s/d),
as pessoas encontram a expressão mais consciente dos seus sentimentos mais profundos
na poesia de sua língua, mais do que em qualquer outra parte, ou do que na poesia de
outras línguas. É nesse sentido que Eliot (s/d) afirma que o dever do poeta é, em
primeiro lugar, com sua língua, numa busca de conservá-la e, seguidamente, alargá-la e
melhorá-la. O verdadeiro poeta, ao descobrir novas variantes da sensibilidade e exprimilas, contribui para o desenvolvimento e enriquecimento de sua própria língua. Elas
podem restaurar a beleza de uma língua e podem auxiliar no seu desenvolvimento.
Nesse sentido, é necessário que uma nação possua sempre uma literatura viva, pois,
caso contrário, a sua literatura passada se tornará cada vez mais distante de seu povo,
pois como afirma Eliot (s/d, p.62) “se não continuarem a surgir do seu meio grandes
autores e principalmente grandes poetas, a língua decairá e poderá vir a ser absolvida
por uma cultura mais vigorosa”.
Como vimos, podemos destacar duas funções da poesia na sociedade moderna: o
fato de nos dar prazer e a capacidade de tornar bela e auxiliar no desenvolvimento da
língua de uma nação, ou, nas palavras de Eliot (s/d, p. 65), “a função social da poesia
em sentido amplo é o facto dela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o
falar e a sensibilidade de toda a nação”.
Uma terceira função que visamos destacar em nosso trabalho é a da poesia
enquanto meio de conhecimento do homem e do universo. Através da apresentação seja
dos fatos, dos sentimentos ou dos conflitos humanos, a poesia permite ao homem uma
melhor apreensão e reflexão de sua realidade e de sua existência, ou seja, do Ser, como
em Heidegger (apud GILES, 1975), para o qual o homem moderno, apesar de cercado
de conhecimentos como em nenhuma outra época, nunca soube tão pouco a respeito de
si próprio. Nesse sentido, a poesia aparece como a revelação do Ser.
4. Poesia e filosofia
Desde o nascimento, a filosofia nunca foi indiferente à poesia. Podemos verificar
que, inicialmente, suas relações são de desacordo. Basta recordarmos os diálogos
platônicos, nos quais observamos certa discriminação contra a poesia pelo filósofo
grego, o qual, como vimos, afirmava ser a poesia uma mera imitação da realidade e, por
isso, destituída de valor na “República Ideal”. No entanto, é importante lembrar que, de
acordo com Villela-Petit (2003), a origem da crítica aos poetas não tem início com
Platão, mas lhe é anterior, a qual destaca que é velha a disputa entre filósofos e poetas,
disputa travada entre outros fatores pelo alto prestígio dos poetas na sociedade, o que
despertava a preocupação dos filósofos.
Ainda sobre essa relação, Naddaf (2007) chama a atenção para uma necessidade
de releitura da representação do poeta na República, pois a seu ver o que Platão
destacava não eram apenas os pontos negativos, mas também os positivos da poesia. No
entanto, acreditamos que mesmo os pontos negativos podem ser revistos, pois a crítica
platônica não considera a especificidade do texto poético que nada tem compromisso
com o real.
Na filosofia moderna, segundo Nunes (2007), prosperará o interesse filosófico
pela poesia concebida como um meio de conhecimento. No entanto, nosso objetivo vai
além da simples constatação do interesse da filosofia pela poesia, pois nosso intuito é
verificar as possíveis relações entre ambas e, nesse sentido, consideramos necessário
buscar em Heidegger a fundamentação teórica que nos permita elucidar suas relações,
iniciando com a problematização da filosofia.
É necessário entender o que é a filosofia para Heidegger (2006, p.17):
A palavra “filosofia” fala agora pelo grego. A palavra grega é,
enquanto palavra um caminho. De um lado, esse caminho se estende
diante de nós, pois ouvimos e pronunciamos esta palavra desde os
primórdios de nossa civilização. Desta maneira, a palavra grega
philosophia é um caminho sobre o qual estamos a caminho.
Conhecemos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que
possuamos muitos conhecimentos históricos sobre a filosofia grega e
os possamos difundir.
A filosofia, de acordo com o autor, seria então um caminho para o qual estamos
sempre a caminho. Logo, torna-se necessário saber a que visa esse caminho: qual o
objetivo desse caminhar? Ou seja, o que busca o filósofo? Antes, porém, de responder
esses questionamentos, precisamos entender o que é o filósofo, cuja resposta
encontramos na definição etimológica do termo filosofia dada por Heidegger (2006,
pp.21-22):
A palavra grega philosophia remonta à palavra philósophos.
Originalmente esta palavra é um adjetivo como philárgyros, o que
ama a prata, como philítimos, o que ama a honra. A palavra
philósophos foi presumivelmente criada por Heráclito. Isto quer dizer
que para Heráclito ainda não existia a philosophia. Um anér
philósophos não é um homem “filosófico”. O adjetivo grego
philósophos significa algo absolutamente diferente que os adjetivos
filosófico, philosophique. Um anér philósophos é aquele que, hòz
philei tò sophón; que ama a sophón; philein significa aqui no sentido
de Heráclito: homologein, falar assim como o Logos fala, quer dizer,
corresponder ao Logos. Este corresponder está em acordo com o
sophón. Acordo é harmonia. O elemento específico de philein do
amor, pensando Heráclito, é a harmonia que se revela na recíproca
integração de dois seres, nos laços que os unem originalmente numa
disponibilidade de um para o outro.
Considerando o trecho, entendemos que o filósofo é aquele que ama a sabedoria
(sophón), e que fala de acordo com a razão (Logos). Sabedoria (Logos) e razão (Logos)
se harmonizam através do amor (philein). Diferentemente da sabedoria sem amor, que
geralmente leva ao materialismo ou do amor sem a sabedoria, cujo fim levaria ao
fanatismo, ser filósofo significa, então, amar a sabedoria a tal ponto de viver em
harmonia com seus preceitos, diferindo igualmente do mero conhecimento da filosofia
ou da história da filosofia.
Voltamos então ao nosso questionamento: o que busca a filosofia? E a resposta
nos será dada por Heidegger (2006, p.23): “a filosofia está a caminho do Ser do ente”.
Ora o ente é, na definição de Leão (1999, p.11), “tudo que de algum modo é: o homem,
as coisas, os acontecimentos”. Já o Ser é onde o ente é, sendo ele mesmo o ente, ele é o
recolhimento do ente. Para entender a diferença entre ente e Ser, tomemos um exemplo:
de acordo com Heidegger (2006) se perguntamos: que é aquilo lá longe? E obtemos a
resposta: uma árvore, a resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não
conhecemos exatamente, estamos dessa maneira nos referindo ao ente. No entanto, se
questionamos: que é aquilo que designamos árvore? Nossa reflexão se aprofunda e se
relaciona àquela forma de questionar desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles no
sentido que eles perguntaram: que é o belo? Que é o conhecimento? Que é o
movimento? Tal questionamento visa ultrapassar o ente e alcançar a essência, o Ser.
Da mesma maneira, quando nos perguntamos que é aquilo lá longe e nos
respondem: é um homem, a resposta nos remete ao ente, mas quando nos questionamos:
que é o homem? Buscamos ultrapassar o ente. Dessa forma, podemos afirmar que a
filosofia nos ajuda a sair do trivial, do ordinário, da aparência das coisas, nos ajudando a
perceber que as coisas do mundo podem não ser tão certas quanto se nos apresentam. É
exatamente aqui que reside a íntima relação entre filosofia e poesia: ambas buscam o
Ser, ou seja, tanto na filosofia quanto na poesia nos deparamos com um caminho que
leva ao Ser, no sentido de que ambas nos ajudam a sair do trivial, da aparência das
coisas. A própria linguagem poética se constitui numa linguagem que rompe com o
trivial, com o cotidiano. É a linguagem na qual o indizível torna-se possível.
A poesia como um caminho para o Ser é destacada por Heidegger (2007b),
quando afirma que a poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do
ser, desocultamento original, ou seja, forma de o ser se revelar, no sentido de que na
obra de arte acontece a revelação ou a verdade de algo, a verdade do Ser. Nesse
caminho para o ser residiria então a relação entre filosofia e poesia. Poesia e filosofia,
apesar de serem atividades diferentes, adquirem uma significação mais totalizadora, na
visão de Heidegger, por serem realizações que apontam para um núcleo único: da
verdade e do Ser.
Outra relação reside na perspectiva da linguagem. Ora, de acordo com
Heidegger (2007a), é na linguagem que aparece e se manifesta a essência daquilo que
nós somos, é ela que torna o homem um Ser. O homem não possui, mas antes é
possuído pela linguagem, pois só ela fala realmente, pois pela palavra o presente é
trazido à presença como acontecimento. Para o autor (2006, p.32-33), só aprendemos a
conhecer e a saber, quando experimentamos de que modo a filosofia é: “Ela é ao modo
da correspondência que se harmoniza e põe de acordo com a voz de ser do ente. Este
corresponder é um falar. Está a serviço da linguagem”.
Ora, se apenas na linguagem se manifesta a essência do que somos, Poesia e
Filosofia partilham do mesmo caminho na busca do Ser: a linguagem. Ambas estão a
serviço da linguagem, conforme assinala Heidegger (2006, p.34): “Entre ambos, pensar
e poeta, impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm
por ela e por ela se sacrificam”.
No entanto, é necessário destacar igualmente as diferenças entre as duas e
observar, conforme assinala Heidegger (2006, p.34), que, entre o pensar do filósofo e o
poetar do poeta, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois eles “moram nas montanhas
mais separadas”.
O abismo entre as duas reside no modo como ambas apreendem o Ser: a
Filosofia chega ao Ser por investigação; a Poesia, por apresentação.
De acordo com Heidegger (1999, p.43), a filosofia é “a investigação extraordinária do extra-ordinário”, ou seja, a filosofia é sempre uma meditação crítica, uma
sistematização racional dos problemas totais que apresenta a realidade, mas sempre um
exame da razão. Ela procura “compreender a própria concepção do mundo e da vida,
classificando-lhes os tipos e descobrindo as leis de sua formação”, tal como afirma
Moraes Filho (1997).
A poesia não pretende fazer uma investigação da realidade, ela não explica, nem
representa, ela apresenta. A poesia não se impõe sobre o mundo, não cria “teorias” a
respeito do mundo. Na poesia o ser não se define, ele se mostra. Muitas vezes não há
explicação clara na poesia justamente porque ela mostra e, nesse mostrar das coisas,
também é exibida a obscuridade própria delas. Na poesia, as coisas não são reduzidas
aos conceitos, elas não têm de se encaixar nas representações feitas pelo homem.
Para Paz (1976, p.50), a poesia “não alude à realidade; pretende – e às vezes
consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade”.
Essa recriação da realidade é possível porque quando o leitor penetra afetivamente
naquilo que o poema revela, produz uma recriação ou, como diz Paz (1976, p. 50):
[...] ao falar-nos de sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos
fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de
nós. E mais ainda: leva-nos a repetir, a recriar seu poema, a nomear
aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, revela-nos o que somos.
É possível, então, afirmar que na poesia ocorre a revelação da condição humana.
Revelação que não é um saber de algo ou sobre algo, pois esse tipo de saber está mais
próximo da filosofia, mas revelação no sentido de que, na poesia, nos é
revelada/apresentada uma verdade que é inerente à condição humana.
A revelação do Ser na poesia pode ser comparada à revelação do Ser do
apetrecho sapato percebida por Heidegger (2007b, p.35) ao contemplar o quadro de Van
Gogh. Observando o quadro ele afirma que:
Repentinamente deslocamo-nos para outra dimensão: a obra de arte
nos revelou toda a realidade do par de sapatos. Não se deve pensar que
a pintura desses sapatos seja uma simples descrição subjetiva, onde
posteriormente surgiria seu ser instrumento, e muito menos que ela
seja uma representação intuitiva do próprio instrumento. Este se torna
presente, realiza seu aparecer através da obra e somente na obra.
É no quadro que a revelação do Ser do apetrecho sapato é possível, é como se
ele fosse um novo posto de observação, que permite àquele que o contempla apreender
bem mais que se contemplasse o próprio apetrecho. Também na poesia acorre o mesmo:
através dela observamos a linguagem, percebemos os símbolos transferidos para a
linguagem em sua sonoridade, contemplamos as palavras e, na constante busca por
desvendar seus significados, percebemos a revelação do Ser no poema.
O verdadeiro poeta e o verdadeiro filósofo, segundo Giles (1975, p.299), é o que
encontra a palavra que anuncie a verdade do Ser, sendo que “a angústia, abrindo para o
homem o abismo do nada, pode dar-lhe a ocasião de escutar esta palavra no silêncio
profundo de si, pois o nada é o frasco do Ser”.
5. Considerações finais
Nosso artigo nos permite afirmar que, apesar do antigo desacordo entre literatura
e filosofia, ambas têm direcionamentos específicos e devem ser consideradas nesse
sentido. A literatura nada tem de compromisso com o real e não pode ser criticada por
se afastar da realidade uma vez que seu compromisso é ser uma representação
transmudada do real. O poeta, que na sociedade moderna perde seu status de ser divino,
ganha em liberdade de expressão, no sentido que agora, enquanto apenas humano, fala
não apenas das coisas divinas, mas de todos os âmbitos da vida humana. Vimos, de
acordo com Augusto dos Anjos, a permanência da poesia ao longo do tempo. Podemos
afirmar que o poeta continua sendo o guerreiro destacado por Augusto dos Anjos,
continua lutando contra a coisificação do mundo e, embora sejam poucos a ouvir sua
voz, ele continua lançando seu encantamento sobre a humanidade, como o sol que,
embora a maioria de sua plateia esteja dormindo, continua dando todos os dias o
espetáculo de seu nascimento.
6. Referências
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Literatura I. Tradução de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34,
2006.
ALMEIDA, Horácio de. Augusto dos Anjos: razões de sua angústia. Rio de Janeiro:
Gráfica Ouvidor Editora, 1962.
ANJOS. Augusto dos. Toda a Poesia com um Estudo Crítico de Ferreira Gullar.
2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1078.
BEZERRA, Rosilda Alves. Anseio Metafísico e Realidade de Morte: uma leitura da
poética augustiana. Grafhos (Revista de Pós-Graduação em Letras), João Pessoa: Ideia,
vol. 7, n. 2/1, 2005.
BÍBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida, São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.
BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. Tradução de José Marcos Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 21ª ed.,
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REFLEXOS DA LINGUAGEM POPULAR NA SOCIEDADE: ASPECTOS
LÉXICOS NA FALA DE PERNAMBUCO
Edmilson José de Sá68
RESUMO: A proposta deste estudo é analisar alguns aspectos da variação linguística no estado de
Pernambuco, ainda pouco documentada em trabalhos tanto de nível sociolinguístico, quanto
dialetológico, mas muito influentes na sociedade. Há muito tempo, pesquisadores do mundo todo estudam
as línguas e seu comportamento variável. Ao encontrar uma pessoa, determinado grupo ou até uma
comunidade que fale diferente, ocorre uma preocupação em compreender as razões que influenciam essa
variação existente na fala espontânea. Isso possibilita uma linha divisória que separa a forma mais aceita
na sociedade, preferida na escola e no âmbito profissional, da forma que foge às normas gramaticalizadas.
Deste modo, preocupamo-nos em externalizar um pouco da língua falada, cuja variação é notória tanto na
fonética, quanto na sintaxe como no léxico, sendo que, para o momento, trabalharemos o terceiro aspecto.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa de campo com base em três campos semânticos, atividades agropastoris, crenças ou religiões e corpo humano. A pesquisa seguiu os pressupostos metodológicos do
ALIB, com algumas adequações, e os resultados encontrados e analisados sob a égide da geolinguística
pluridimensional, que agrega elementos sociais à dialetologia, chamaram a atenção para um léxico
diferenciado, que poderá futuramente ser usado em comparações com outros estudos já existentes.
Esperamos, então, poder mostrar nos resultados da amostra colhida em Pernambuco que a estrutura social
pode influenciar ou determinar a estrutura da língua ou seu comportamento, o que reforça que os valores
sociais costumam ter efeito sobre a língua.
PALAVRAS-CHAVE: Geolinguística; linguagem popular; variação linguística; léxico.
ABSTRACT: The proposal of this study is to analyze some aspects of the linguistic variation in the state
of Pernambuco, still little registered in works both of sociolinguistic level, and dialectological one, but
very influential in the society. Sometimes ago, researchers throughout the world study the languages and
their changeable behavior. When we find a person, a determined group or until a community that speaks
differently, occur a concerning in understanding the reasons that influence in this existing variation at the
spontaneous speech. This makes possible a dividing line that separates the most accepted form in the
society, preferred at school and the professional scope, in the form that runs away to the gramaticalized
norms. In this way, we worry about the forms of externalizing a little of the spoken language, whose
variation is well-known both in the phonetic way, and the syntax or lexicon, but at this moment, we will
work the third aspect. So, a field research was carried through on the basis of three semantic fields, agropastoral activities, beliefs or religions and human body. The research followed the ALIB methodological
presuppositions with some adequacies and the results joined and analyzed based on the pluridimensional
geolinguistics, which adds social elements to the dialectology, had called the attention for a differentiated
lexicon, which could be used in comparisons with other already existing studies soon. We wait, then, to
be able to show in the results of the sample harvested in Pernambuco that the social structure can
influence or determine the structure of the language or its behavior, what it strengthens that the social
values used to have effect on the language.
KEYWORDS: Geolinguistics; popular language; linguistic variation; lexicon.
1. Introdução
A língua é justificadamente um sistema de signos que funciona com regras e
restrições. O dialeto, por sua vez, é uma língua usada em um lugar restrito que possui
68
Aluno de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.
um sistema fonético-lexical e sintático apropriado, e a fala é uma forma da língua usada
por um determinado grupo social.
A variação e a mudança linguísticas, no período da passagem do
desenvolvimento da sociolinguística, passam por enormes problemas seja no nível
metodológico, como no campo prático da análise, da interpretação e do modelo.
Diante desta preocupação, este trabalho se propõe a mostrar alguns pontos da
variação lexical, baseada em uma pesquisa que seguiu a metodologia do Atlas
linguístico do Brasil. O artigo é estruturado esta maneira: na seção 2, esboçamos
algumas considerações sobre a dialetologia, a fim de trazer algumas informações que
ajudarão a compreender os resultados; na seção 3, verificamos alguns estudos sobre esta
área no Brasil, enfatizando a variação lexical; na seção 4, mencionamos algumas
pesquisas sobre o léxico no estado de Pernambuco; finalmente, na seção 5,
apresentamos nossas perspectivas futuras.
2. Dialetologia ontem e hoje
Foi na França que a dialetologia foi primeiramente considerada como um meio
valioso de pesquisa da variação linguística com o trabalho inovador de Jules Guilliéron
que, entre 1897 e 1901, dirigiu uma pesquisa de campo que consistia na aplicação de
um questionário de 1920 perguntas em 639 pontos no território francês. Guilliéron teve
a ajuda de Edmond Edmont, cujos dados emitidos a Guilliéron para a análise, resultou
na publicação, entre 1902 e 1912, no “Atlas Linguistique de la France” (ALF).
Embora seu trabalho tenha sido criticado, como ocorre em qualquer trabalho, o
trabalho de Guilliéron é reconhecido como a base do que, até hoje, “é mostrado pelo
valor excepcional ao conhecimento das variedades regionais de uma língua”
(BRANDÃO, 1991, p. 11).
Com o fim da Primeira Guerra, produções que analisaram o pensamento
brasileiro e suas manifestações culturais já interessavam. Este fato representou o
primeiro passo para estudar outro aspecto do país: seu idioma.
Santiago & Dalpian (2001) destacam o trabalho pioneiro de Mendonça. Neste
trabalho, além dos períodos pré-histórico e histórico-etnográfico do idioma, ele também
mostrou o aspecto dialetológico de acordo com qual, era possível classificar o idioma
em um grupo de dialetos. A divisão de Mendonça para este estudo vem de 1826 para os
dias atuais.
Outra contribuição para os estudos dialetológicos no Brasil mencionada por
Santiago & Dalpian (op cit) foi o trabalho de Lemos chamado "A língua portuguesa no
Brasil" no qual ele analisa possíveis dialetos substitutos no Brasil, o que insinua a ideia
de um estudo geolinguístico no país. Ele sugeriu que algumas pesquisas fossem
organizadas ao longo do Brasil, assim ele entenderia a língua falada região por região.
Não obstante, Nascentes (1958), concordando com a necessidade de uma
descrição detalhada no idioma falado no Brasil, decidiu se arrefecer como se já previsse
as dificuldades. Assim ele preferiu que a execução de atlas regionais e o seu projeto de
Atlas Linguístico de Brasil fossem adiados.
Esta opinião foi descrita em seu trabalho Bases para a elaboração do Atlas
Linguístico de Brasil, no qual ele informa que:
embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo no país
inteiro, pois o fim não é muito distanciado do início, os Estados
Unidos, país vasto com belas trilhas, preferiram a elaboração de atlas
regionais, para uni-los depois no atlas geral. Igualmente nós
deveríamos fazer isto em nosso país que também é vasto
(NASCENTES, 1958, p. 07).
Desde então, estão sendo desenvolvidos alguns trabalhos importantes que têm
inspirado as pesquisas geolinguísticas agora. Sem esquecer o pioneirismo de Nelson
Rossi em 1963 de criar o Atlas dos de Prévio Falares Baianos - APFB, vários trabalhos
estão nas bibliotecas de Brasil e talvez fora dele. O Esboço de um Atlas Linguístico de
Minas Gerais - 1977, o Atlas Linguístico da Paraíba - 1984, o Atlas Linguístico de
Sergipe - 1987, o Atlas Linguístico de Paraná - 1994, o Atlas Linguístico e
Etnográfico da Região Sul do Brasil - 2002, o Segundo Atlas Linguístico de Sergipe 2005), o Atlas Linguístico Sonoro de Pará - 2004, o Atlas Linguístico do Amazonas e
Altino - 2007 e o Atlas Linguístico de Paraná - II (ambos ainda sem publicação) e o
Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul -2007 são exemplos dos atlas concluídos no
Brasil.
Ainda há em curso cinco Atlas Regional nos estados do Maranhão, Rio Grande
do Norte, Espírito Santo, Rondônia e Pará, além de outras dissertações e pesquisas já
concluídas ou em elaboração, focalizando atlas micro-regionais. A partir deste ano, será
iniciada também a pesquisa para o Atlas Linguístico de Pernambuco, tese de Doutorado
sob a nossa incumbência e orientação da professora Maria do Socorro Silva de Aragão
da Universidade Federal da Paraíba.
3. Variação lexical no Brasil: documentação existente
De acordo com Silva & Aguilera (2007), foi realizada uma pesquisa que
examinou as variantes do campo lexical “fauna” do ALIB, proporcionado por
informantes de 13 capitais brasileiras: Macapá, Boa Vista, Manaus, Rio Branco, Porto
Velho, Cuiaba, Campo Grande, Goiânia, Belo Horizonte, São Paulo, Vitória, Curitiba e
Florianópolis.
Esse trabalhou focalizou-se na pergunta (064) Qual a ave preta que come animal
morto, podre? (QUESTIONÁRIOS, 2001, p. 26) e foram analisadas respostas advindas
de 104 informantes. Os resultados mostraram sete variantes para o mesmo aspecto, mas
com variada produtividade. urubu com 104 respostas (86%) que foi encontrada em
todas as cidades e falada por quase todos os informantes; corvo com 9 (8%); abutre com
2 (2%). Com apenas uma variante cada, ou 0.8%, foram gravadas as variantes: comecarniça, bicho-carniça, corcovado e carniceiro. Acrescentando todos os vocábulos
proporcionados pela primeira, segunda e terceira respostas, foram coletados 120
vocábulos nas entrevistas.
Outro estudo de variação lexical ocorreu com o campo semântico atividades
agro-pastoris numa pesquisa realizada no Centro Oeste (FREITAS & ISQUERDO,
2007). Com relação à questão (061), Como se chama o homem contratado para
trabalhar na roça do outro e recebe por dia?, o estudo mostrou que Campo Grande e
Goiânia gravaram o maior número de variantes. Em Campo Grande, por exemplo, 03
variantes foram documentadas como respostas à pergunta supracitada: diarista (87,5%),
empreiteiro (12,5%) e peão diarista (12,5%), enquanto em Goiânia, foram encontradas
peão (65,5%), diarista (65,5%) e boia-fria (25%). Em contraste, a capital Cuiabá
contabilizou o maior número de variantes para nomear o conceito em questão: peão
(25%), diarista (25%), roceiro (25%), lavrador (25,5%), meia praça (12,5%) e
agregado (12,5%), de modo que o mais produtivo nas duas capitais foi o termo diarista.
Outro estudo oriundo das pesquisas de Ramos (2002), também relacionado às
atividades rurais, se deteve na questão pequena parte que fica no chão depois que se
corta o pé de arroz ou de fumo (047), em que os pesquisadores do Maranhão
descobriram somente no interior a variante esperada (soca) ocorreu imediatamente.
4. O léxico em Pernambuco: resultados preliminares
Para a realização de pesquisas em todo o Brasil, costumam ser usados os
questionários do ALIB, publicados em 2001 num livro que tem inspirado e auxiliado
muitos pesquisadores. O livro inclui o Questionário Fonético-Fonológico (QFF), o
Questionário Semântico-Lexical (QSL), o Questionário Morfossintático (QMS),
questões pragmáticas, temas para discursos semi-dirigidos, questões metalinguísticas e
textos para leitura.
Do questionário semântico-lexical, há algumas questões sobre o campo
semântico atividades agro-pastoris, que têm sido usadas em outros estudos, como já foi
publicado em conferencias e outros atlas linguísticos.
Para analisar as variantes lexicais concernente ao campo semântico das
atividades agro-pastoris em Pernambuco, coletamos os dados numa pesquisa a 36
pessoas, estratificadas conforme a metodologia do ALIB.
Como se trata de uma pesquisa embrionária, apenas para o conhecimento das
variantes lexicais do estado, alguns dos critérios metodológicos de escolha de
informantes não foram seguidos, como idade e origem, o que poderá ocorrer numa
pesquisa posterior.
Quando questionados sobre Quais as frutas menores que a laranja, que se
descascam com a mão e, normalmente, deixam um cheiro na mão (QSL 39,
QUESTIONÁRIOS DO ALIB, 2001), foram encontradas 8 variantes, mas com variada
produtividade: mexerica (22%), laranja (11%), limão (29%), laranja-cravo (22%) e
outras lexias (3%), porque as variantes maçaranduba, pitanga, cravo e mangaba
apareceram somente uma vez.
O gráfico a seguir nos mostra algo sobre as respostas para a questão (039).
3%
22%
22%
mexerica
laranja
11%
limão
laranja‐cravo
29%
outras lexias
Gráfico 1: Variantes encontradas para a questão (039)
O percentual mais alto, embora com pouca distância para o segundo lugar, foi
para o vocábulo limão com (29%), contra 22% para laranja-cravo e mexerica. De
acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss (2001), o limão é a fruta da família dos
angiospermas e tem grandes propriedades farmacêuticas, o que pode contribuir para a
preferência em citar esse vocábulo:
O Poder de cura do limão é um guia de medicina caseira que todo lar deve
ter. Um alimento natural, acessível a todos, disponível o ano todo e que pode
ser facilmente usado, com sucesso, em diversas técnicas terapêuticas de
prevenção e tratamento de saúde. O limão - polpa e casca - é um alimento
ímpar da natureza porque sua composição lhe confere propriedades múltiplas
como: alcalinizar e depurar o sangue, ativar a circulação, ativar o sistema
imunológico, bactericida, antivirótico, adstringente, fortalecer ossos, órgãos e
sistemas, clarificar, etc. (TRUCON, 2004, p. __)
Para a questão (040), Cada parte que se corta do cacho da bananeira para pôr
para amadurecer?), houve muitas variantes, como o gráfico seguinte atesta:
4%
4%
8%
28%
palma
penca
cacho
56%
carbureto
talo
Gráfico 2: Variantes encontradas para a questão (040)
Das respostas para a questão (040), mais da metade foram para o vocábulo
penca (56%), enquanto palma veio em segundo lugar com 28% e os vocábulos
carbureto e talo obtiveram 4% cada um.
Na pesquisa de Encarnação (2006) na comunidade de Ilha Bela, em São Paulo, o
vocábulo penca também ocorreu relevantemente.
A questão (044) Como se chama a parte roxa do cacho da banana?), resultou
em 8 variantes, mas o vocábulo mangará foi o mais falado, como se pode observar no
gráfico abaixo:
4%
4%
mangará
4% 4%
44 %
cacho
4%
mangangá
4%
coroa
penca
talo
8%
pera
caule
Gráfico 3: Variantes encontradas para a questão (044)
O resultado estratificado acima mostra que a lexia mangará ocorreu em 44% do
total dos vocábulos encontrados, uma vez que as variantes mangangá, coroa, penca,
talo, pêra e caule tiveram 4% cada uma e cacho teve 8%.
A respeito da lexia mais encontrada, cabem algumas considerações:
Segundo encontrado no Dicionário Eletrônico Houaiss (2001), a palavra
mangará constitui uma extremidade bulbosa da inflorescência da bananeira, roxa ou
castanho-avermelhada. Sua formação idealiza outros sinônimos pertencentes aos
regionalismos, especialmente no Nordeste. Etimologicamente a lexia mangará provém
do tupi-guarani e significa coração, sinônimo também usado em outras regiões. Tratase, pois, de uma planta originária das Antilhas e do Caribe da família das aráceas.
A respeito da designação na língua tupi, cabe também informar que a lexia
possivelmente veio de manga-rã, de modo que rã significa "semelhante à", "substituto
de" e manga, conforme encontrado em Gatti (1985) que a conceitua como “um
sinónimo de amanga, hongo de la familia de las licoperdáceas...que adquieren forma de
bolsas o sacos redondeados". Além disso, o Dicionário Houaiss (op cit) também cita
Cardim [c1584] que mencionou a variante mangarã como antecessora de mangará, já
que esta foi alcunhada quase cem anos depois.
Quando os informantes tiveram que responder à questão (049) “Onde é que
ficam os grãos de feijão, no pé, antes de serem colhidos?”, as respostas foram múltiplas.
A tabela abaixo mostra uma noção dos resultados e seus percentuais:
Variantes
Vagem
Bage
Bagem
Porcentagens
20%
30%
33%
Casca
Rama
Galhos
Caule
6%
3%
3%
3%
Tabela 1: Porcentagens das respostas para a pergunta (049)
Com uma diferença pequena percentual, a variante bagem foi mais falada. Este
vocábulo, provavelmente homônimo à vagem, teve 33% das realizações, seguido de
uma variante que apocopizou a consoante -m na coda da sílaba. De acordo com Lass
(1984), nesta posição uma consoante tende a ser enfraquecida e extinta no fim do
processo da fraqueza, como ocorre com l, r, s e n no português do Brasil (PB). A
respeito do b inicial análogo ao v, evidencia-se também o processo do betacismo,
recorrente no espanhol desde o século de X e remanescente no português.
No Dicionário Eletrônico Houaiss (2001), importante por contemplar o
significado das palavras com base em sua etimologia, descobriu-se que a vagem
constitui a fruta do feijoeiro, pertencente à família das angiospermas e é muito usada
como alimento para o ser humano, o que a torna mais propícia a ser encontrada na fala
espontânea e a tendência às variações que a própria evolução linguística ou a influência
de restrições sociais contribuem para justificá-la.
Outra questão dirigida aos informantes pernambucanos, dentro do campo
semântico das atividades agro-pastoris e que teve algumas variantes lexicais
interessantes foi a de número (058) Quando se usam objetos de couro, com tampa, para
levar farinha, no lombo do cavalo ou do burro?). Contudo, à exceção do vocábulo
canga com 13 realizações, as outras só se realizaram uma vez. São elas: jugo, canzil,
cambão, focinheira, gancho, gameleira, forquilha, arreio e apeio. Sobre essas variantes,
algumas considerações.
No Dicionário Aurélio (1988), a palavra canga, além de significar “parte da
madeira que carrega o boi pelo pescoço e o liga a um carro”, o termo também tem o
sentido figurado “opressão, sujeição, jugo.” Sua origem vem do Celta, *cambica,
“madeira arcada”. Na Bahia, a variante é cangá, de origem controversa, de acordo com
Nascentes (2003), Figueiredo69 compara esta variante com cangalha.
Outras questões também tiveram variantes curiosas em suas respostas, mas estas
não serão analisadas profundamente, para não tornar este trabalho exaustivo. Contudo,
acreditamos que seja necessário conhecer pelo menos alguns dos vocábulos
encontrados.
Questões
(40) O grão coberto por uma casquinha
dura, que se come assado, cozido...?
(43) Duas bananas que nascem
grudadas?
(52) Um veículo de uma roda,
empurrado por uma pessoa, para
69
Vocábulos encontrados
Amendoim, castanha, coquinho-catolé,
ouricuri, milho, guandu.
Gêmeas, irmãs, homozigóticas
Carro – de – Mão, carroça, carrinho – de –
mão – carrinho
Nascentes (2003) se refere a Cândido Figueiredo, o autor do “Grande Dicionário da Língua
Portuguesa, publicado em 1956.”
pequenas cargas...?
(56) Objeto de couro, com tampa, para Bornal, alforje, tambor, mochila, carona,
levar farinha, no lombo do cavalo ou do bisaclo, cuia.
burro?
(59) A cria da ovelha logo que nasce?
Carneiro, borrego, filhote, cordeiro,
borreguinho.
(60) Como se diz quando a fêmea de Perdeu, perdeu a cria, botou pra fora,
um animal perde a cria?
botou no mato, abortou, encruou, zuniu.
(61) O trabalhador contratado pra Trabalhador, trabalhador rural, boia-fria,
trabalhar na roça do outro e recebe por empregado, lavrador, peão, diarista,
dia de trabalho?
agricultor.
(62) O que se abre com facão para Trilha, caminho, vareda, mato, mata,
passar por mato fechado?
arrasto, roçadura, estrada, vale, valeta
Tabela 2: Outras variantes lexicais encontradas na fala pernambucana
Diante do exposto, podemos supor que as relações sociais, que reúnem e
integram pessoas e grupos, nascem na vivência do cotidiano coletivo. Daí a existência
de tantas variantes para determinado campo semântico. A partir da singularidade das
situações do dia-a-dia, configuram-se as interfaces que aproximam as práticas
comunicativas e a formação social da realidade e que se instalam na subjetividade
individual para aflorar na unificação do senso comum. Para relacionar a língua à
sociedade, Wardhaugh (2006) explica que a estrutura social pode influenciar ou
determinar a estrutura da língua ou seu comportamento, o que prova que os valores
sociais costumam ter efeito sobre a língua.
Além disso, a dialetologia é talvez a linha de pesquisa mais próxima da
sociolingüística a ponto de serem, em alguns casos, consideradas sinônimas. Morales
(1993) tenta atribuir uma distinção, afirmando que o estudo da dialetologia abrange a
análise das gramáticas internalizadas, enquanto a sociolingüística justifica a existência
dessas gramáticas no contexto social, preocupando-se com as possibilidades de
realização. Num estudo posterior, poderá ser aplicada a geolinguística pluridimensional,
que agrega as duas linhas de pesquisa de variação, a dialetologia e a sociolingüística. É,
pois, um objetivo da tese sobre a fala de Pernambuco, a ser elaborada e defendida em
breve.
Na pesquisa de Silva (2009), analisaram-se as variantes lexicais do campo
semântico do corpo humano fornecidas por 10 informantes escolhidos à luz da
metodologia do ALIB na cidade de Arcoverde, quando foram questionados a pessoa que
tem os olhos voltados para direções diferentes (QSL 092 -QUESTIONÁRIOS, 2001, p
28 ). Foram analisadas as respostas dadas pelos 10 informantes e os resultados indicam
4 variantes para o mesmo referente, mas com produtividade variada: zarolho (70%),
sendo, registrada tanto pelo sexo feminino quanto pelo masculino. Em 10% das
respostas foram encontradas as variantes: vesgo, estrábico e zanoio.
Gráfico 3: A pessoa que tem os olhos voltados para direções diferentes? (092)
Vejamos mais alguns resultados:
Quando foram questionados sobre a pessoa que só enxerga com um olho, foram
encontrados resultados indicando 2 variantes para o mesmo referente (cego e caolho),
mas com produtividade variada em relação ao gênero. Com relação ao gênero feminino,
os resultados foram: cego (40%) e caolho (60%); ao contrario do que ocorreu no gênero
masculino: cego (60%) e caolho (40%).
Quando o questionamento foi a respeito da pessoa que tem um calombo grande
nas costas e fica assim?, foram 4 as variantes encontradas: cacunda, corcunda, cocunda
e marreco. A variante culta corcunda teve um percentual de apenas 10%; já a variante
cacunda, mais usada popularmente, teve percentual de 70%; e as demais variantes,
cocunda e marreco, 10% cada uma.
Gráfico 4: A pessoa que tem um calombo grande nas costas e fica assim? (107)
Já a pesquisa de Rocha (2009) trouxe variantes para o campo lexical de religiões
e crenças.
Para a pergunta (148), o que algumas pessoas dizem ter visto á noite em
cemitérios ou casas e dizem ser do outro mundo, foram obtidas cinco variações, das
quais predominou a lexia alma, com (30%).
Gráfico 5: O que algumas pessoas dizem ter visto á noite em cemitérios ou casas e dizem ser do
outro mundo? (148)
Outra pergunta feita aos informantes foi a número (150): O objeto que algumas
pessoas usam e dizem ser para dar sorte ou afastar males? Para ela, foram obtidas seis
variações, amuleto, com (30%).
Gráfico 6: O objeto que algumas pessoas usam e dizem ser para dar sorte ou afastar males?
(150)
Ao ser perguntado sobre a chapinha de metal com um desenho usada geralmente
no pescoço, presa a uma corrente, o resultado mais relevante foi relacionado à medalha,
também com 30%.
Gráfico 7: A chapinha de metal com um desenho usada geralmente no pescoço, presa a uma
corrente, como se chama? (157)
5. Considerações finais
A língua é o instrumento a partir do qual o homem modela seu pensamento, seus
sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade, seus atos e o instrumento graças
ao qual ele influencia e é influenciado.
Ao final desta pesquisa, aliados os referentes teóricos e os resultados da pesquisa
de campo, conclui-se que o estudo das Variações Linguísticas é importante não só para
o conhecimento da amplitude do campo semântico, mas também para compreender o
processo de formação da língua e dinâmica da língua espontânea, de cunho popular.
Cabe aos estudiosos de análise linguística continuar com as pesquisas das formas
ditas estigmatizadas, mas não menos importantes que as preferidas pela sociedade, pois
refletem a riqueza da heterogeneidade do idioma que falamos. Bortoni-Ricardo (2004)
afirma, pois, que há vários “portugueses brasileiros”.
Os resultados encontrados e analisados poderão ser usados em comparações com
outras pesquisas de natureza semelhante e, mais ainda, contribuir com o Atlas
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TRUCON, Conceição. O Poder do Limão. Editora Alaúde Ltda. 2004.
A CRÍTICA LITERÁRIA EM JORNAIS E REVISTAS CULTURAIS
Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho70
RESUMO: O debate público sobre a pertinência, a classificação e o valor de uma obra artística literária –
o que, de forma geral, denominamos crítica – nunca foi e não será um lugar consensual e pacífico.
Historicamente, dependendo dos modismos e influências de cada época, a atividade do crítico é vista com
admiração ou receio, respeito ou desconfiança. “Houve época em que intelectuais eloquentes e eruditos
lançavam-se na primeira pessoa, discorrendo ampla e digressivamente sobre as obras, ou a partir delas”
(NINA, 2007:24). Tal modalidade ficou conhecida como crítica de rodapé, que era tachada, de forma um
tanto simplificadora e mesmo pejorativa, como crítica impressionista. O declínio desse gênero nos jornais
no Brasil está diretamente ligado ao momento em que a crítica acadêmica toma corpo no País com a
promessa de uma análise de caráter mais “teórico” e “científico”. Esses acadêmicos, vindos
principalmente do exterior e das recém-criadas Faculdades de Filosofia, Ciências Sociais e Letras, traziam
uma nova linguagem, especializada, cheia de conceitos próprios, jargões e vocabulário teórico.
Atualmente, vivemos um período de ajustes: os acadêmicos se deram conta da necessidade de buscar um
público mais amplo e os jornais perceberam que podiam enriquecer suas páginas com a colaboração do
conhecimento universitário especializado. A condição para esse novo pacto é a linguagem – os oriundos
da academia estão tendo que adquirir a capacidade de se comunicar com um público diversificado e nãoespecializado; os jornalistas, por sua vez, buscam aprofundar-se em suas áreas de interesse através de pósgraduações e especializações.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Literatura; Crítica Literária; jornalismo cultural.
RESÚMEN: El debate público sobre la pertinencia, la clasificación y el valor de una obra de arte literaria
– lo que, en general, llamamos “crítica” – nunca ha sido ni será un lugar de consenso y tranquilidad.
Históricamente, en función de las modas y las influencias de cada época, la actividad de la crítica es
considerada con admiración o miedo, respeto o desconfianza. "Hubo un momento en que intelectuales y
académicos elocuentes y eruditos ‘se lanzaban’ en la primera persona, discutiendo de manera amplia y
personal las obras (o desde ellas). Se llamaba a eso ‘crítica de rodapé’, como era conocida la crítica que se
produjo en los periódicos antes de la emergencia de la crítica académica (Nina, 2007:24) Esta crítica de
‘rodapé’ llegó a ser conocida, de forma un tanto simplista e incluso despectiva, como impresionista. La
disminución de este enfoque en los periódicos está directamente conectada con el momento en que la
crítica académica se desarrolla en Brasil con la promesa de un análisis literario más "teórico" y
"científico". Algunos estudiantes, procedentes principalmente del extranjero, y la recién creada Facultad
de Filosofía, Ciencias Sociales y Artes de São Paulo, proponían un nuevo idioma, especializado, lleno de
conceptos, lenguaje y vocabulario teórico propios. Actualmente estamos viviendo un período de ajustes:
los académicos se percataron de la necesidad de buscar un público más amplio y los diarios dieron cuenta
de que pueden enriquecer sus páginas con la colaboración de expertos universitarios. Sin embargo, la
condición para este nuevo pacto es el lenguaje – los de la Academia tienen que adquirir la capacidad de
comunicarse con un público diverso y no especializado; los periodistas, a su vez, tratan de profundizarse
en sus áreas de interés a través de Postgrados y lecturas especializadas.
PALABRAS CLAVE: Teoría de la Literatura; Crítica Literária; periodismo cultural.
1. Introdução
“Não são os fatos que comovem os homens, mas as palavras”
(Epiteto, 55-135 d.C.)
70
Doutorando em Teoria da Literatura pela Pós-Graduação em Letras da UFPE.
Apesar da renovação criativa do jornalismo cultural que vem acontecendo no
Brasil há alguns anos – tanto da forma quanto do conteúdo –, no que diz respeito
particularmente à crítica literária voltada ao grande público, passamos por um período
que classifico como de indefinição... E de tédio. Com essa avaliação – não isenta de
autocrítica – não quero jogar nossa própria sujeira no ventilador; só pretendo
compartilhar um incômodo. Nós, críticos, parecemos constrangidos desempenhando o
papel que nos cabe: o de assumir posicionamentos como indivíduos diante das obras
literárias do nosso tempo. Acostumamo-nos a abdicar da autonomia e personalidade em
nome ou de teorias da moda (e até das fora de moda, pois estamos no Brasil e
recebemos tudo com atraso até hoje) ou do corporativismo das rodas intelectuais e, pior
ainda, da visão estreita dos preceitos “politicamente corretos”. O que notamos hoje em
jornais e revistas que abordam temas culturais – salvo honrosas exceções – é que
perderam o caráter polêmico e contestatório de outros tempos.
De fato, o debate público sobre a pertinência, a classificação e o valor de uma
obra artística literária – o que, de forma geral, denominamos crítica – nunca foi e não
será um lugar consensual e pacífico. Historicamente, dependendo dos modismos e
influências de cada momento, a atividade do crítico é vista com admiração ou receio,
respeito ou desconfiança. As mesmas perguntas sempre voltam: o que significa
classificar uma obra como boa ou má? Como comprová-lo? Como persuadir os leitores?
Qual o papel da crítica hoje?
2. Saudades dos rodapés
“Sei que tudo é loucura, mas há certo método no que ele diz”
(Polônio, sobre Hamlet)
Dessa maneira, a jornalista e professora Cláudia Nina, em seu panorâmico
Literatura nos jornais: a crítica literária dos rodapés às resenhas, apresenta um dos
períodos mais ricos da crítica literária no Brasil:
“Houve época em que intelectuais eloquentes e eruditos lançavam-se
na primeira pessoa, discorrendo ampla e digressivamente sobre as
obras (ou a partir delas). Era o rodapé, como ficou conhecida a crítica
que se produzia em jornal antes da crítica universitária, geralmente
publicada na parte inferior da página e praticada por autores
expressivos como Alceu de Amoroso Lima, Sérgio Milliet e Álvaro
Lins – o ‘imperador da crítica’, segundo Carlos Drummond de
Andrade”. (NINA, 2007, p. 24)
Tal modalidade em que os autores, a partir de sua perspectiva individual e
abordagem multidisciplinar, emitiam juízos de valor sobre livros, temas e autores do
momento, ficou conhecida como crítica de rodapé (o nome deriva da posição que esse
tipo de texto ocupava na diagramação dos jornais). Essa prática era taxada, de forma um
tanto simplificadora e mesmo pejorativa, como impressionista. O declínio desse gênero
nos jornais no Brasil está diretamente ligado ao momento em que a crítica acadêmica
toma corpo no País com a promessa de uma análise de caráter mais “teórico” e
“científico”. Esses acadêmicos, vindos principalmente do Exterior e das recém-criadas
Faculdades de Filosofia, Ciências Sociais e Letras, traziam uma nova linguagem,
especializada, cheia de conceitos próprios, jargões e vocabulário teórico.
A crença num superior status metodológico da crítica universitária garantiu um
período de preeminência desses especialistas nos suplementos, revistas e jornais do
País. Mas essa hegemonia não durou muito: a forte influência do jornalismo americano,
com os seus princípios de concisão, objetividade e clareza, começava a ser implantado
nos principais jornais brasileiros e ia diretamente contra o estilo muitas vezes prolixo e
permeado de jargões acadêmicos dos scholars. Além disso, nos fins dos anos 1960, a
profissão de jornalista foi regulamentada e os professores-críticos começaram a ser
vistos com reservas nas redações. Esse foi o início de um período de relativo
distanciamento entre o jornalismo e a crítica literária no Brasil.
Uma das maiores condenações – em boa parte, justificada – relativa às críticas
literária e cultural praticadas ultimamente nos periódicos brasileiros se refere ao
esvaziamento do debate de ideias e das polêmicas entre os intelectuais. Os críticos
“impressionistas” estavam constantemente expostos ao risco: não se eximiam de avaliar
o novo, de emitir juízos a respeito de escritores, fossem iniciantes ou experientes, e
também de se posicionar frente ao trabalho de outros críticos e intelectuais em geral.
3. Heranças e lições
Cabe, agora, uma pergunta: será proveitoso nos voltarmos ao passado para tentar
resolver questões colocadas hoje? Acredito que sim, mas não devemos buscar repetir ou
imitar modelos, senão reavaliá-los à altura dos problemas do nosso tempo, selecionando
aquilo que podemos absorver como lição.
O principal legado deixado por críticos como Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins,
Alceu Amoroso Lima, Wilson Martins (falecido recentemente), entre outros, é a
compreensão de que a atuação do crítico se assemelha a de um “publicista cultural”: um
agente catalisador de mudanças – a partir de sua perspectiva única e insubstituível de
mundo – na visão que uma sociedade tem de seus próprios valores. Toda necessidade
latente no âmbito cultural, se estimulada, pode se converter em valor legitimado
socialmente. O crítico teria o poder, portanto, de operar mutações em nossa
sensibilidade frente às circunstâncias. Como bem percebeu o pensador espanhol Ortega
y Gasset.: “Valores considerados universais e assim propagados no universo da cultura
— o belo, o bem, o virtuoso —, nasceram um dia da ‘entranha espiritual’ de um
indivíduo com seus caprichos e humores” (ORTEGA y GASSET, 1998, p. 83).
Outra herança dos “impressionistas” é a noção de que um verdadeiro crítico não
pode ser nunca, exclusivamente, um especialista: a complexidade da literatura e a
relação dela com outros fenômenos culturais exigem do analista uma visão ampla, ao
mesmo tempo aprofundada, histórica e complexa, no sentido de interdisciplinar.
Por último, podemos aprender com aqueles que nos precederam que a crítica –
assim como a própria literatura – não deve a obedecer a propósitos predeterminados ou
normas apriorísticas que independem do arbítrio individual, pois o crítico é mais um
participante do jogo social em que todos os valores, inclusive os seus próprios, estão em
constante redefinição. Portanto, a prática crítica como atividade social vai muito além
da emissão de julgamentos e apreciações “corretas” sobre determinada obra: ela faz
parte de um jogo – retórico, mercadológico, moral e político – que é um dos
combustíveis mais importantes da vida cultural. Um erro de avaliação cometido por um
crítico que se arrisca a tomar posições fortes me parece ter mais valor do que a de uma
resenha apática e anódina. Precisamos reavivar o entusiasmo dos leitores.
4. Os novos desafios da crítica
O próprio jornalismo escrito passa por profundas adaptações. A concorrência
dos meios eletrônicos de comunicação, principalmente a televisão e a internet, obrigam
a cada dia os jornais impressos a se reinventarem. A notícia rápida, a informação ligeira
e os fatos mais importantes do dia são muito mais fácil e velozmente acessados através
de mídias não-escritas. No papel, as pessoas parecem cada vez buscar algo mais além de
simples informações: querem reflexão, inteligência, análise e posicionamento em textos
mais embasados e opinativos.
Em relação especificamente à crítica literária praticada em jornais e revista de
circulação mais abrangente, atualmente, vivemos um período de ajustes: os acadêmicos
se deram conta da necessidade de buscar um público mais amplo e os jornais
perceberam que podiam enriquecer suas páginas com a colaboração do conhecimento
universitário especializado. A condição para essa nova parceria é a linguagem – os
oriundos da academia estão tendo que adquirir a capacidade de se comunicar com um
público diversificado e não-especializado; os jornalistas, por sua vez, buscam
aprofundar-se em suas áreas de interesse através de pós-graduações e especializações.
Em face do atual momento de efervescência no mercado editorial brasileiro, o
juízo de valor sobre obras volta a assumir uma importância fundamental. A profusão de
lançamentos à espera de divulgação, qualificação e seleção abre um espaço natural em
jornais e revistas para diversos modos de abordagem literária – as resenhas, os press
releases, os artigos acadêmicos e os ensaios eruditos convivem em uma mesma
publicação. Contudo, a velha e boa crítica, carregada das idiossincrasias e
posicionamentos pessoais, é material raríssimo no nosso jornalismo. Será que os leitores
contemporâneos repudiam esse tipo de crítica? Penso que não, e basta ver a grande
influência e repercussão que os bons críticos de cinema – muitos deles
“impressionistas” – desfrutam hoje.
Vivemos uma época bastante diferente daquela em que os rodapés faziam as
cabeças do público leitor, e as obras literárias parecem não mais assumir as mesmas
funções e ocupar os mesmo espaços na vida das pessoas. A literatura perdeu a
centralidade cultural que já possuiu; e está longe de ter a mesma influência e a mesma
representatividade. Essa repercussão social que a literatura já teve pode ser retomada?
Nesse aspecto, sou pessimista... Isso não significa que caímos na irrelevância, mas que
ocupamos outra posição num mercado cultural, que, com o desenvolvimento social,
tecnológico e econômico das duas últimas décadas, abriu-se e se tornou muito mais rico
e complexo.
Falar em papel do crítico hoje, numa sociedade pluralista e democrática é falar
de um constante e inesgotável diálogo entre indivíduos – o escritor, o crítico e o leitor –
que buscam nessa forma particular de comunicação que é a literatura redescrever o
mundo e seus valores, aumentando seu repertório a cada leitura, a cada polêmica.
Após tantas correntes e debates acadêmicos sobre teoria e crítica literárias,
principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, parece-me sensato afirmar que não há
uma resposta final e totalizante para o problema da crítica, porque ela se apresenta sob
vários aspectos. As teorias literárias – e os teóricos da literatura – da moda costumam
propor abordagens à literatura mais “científicas”, sofisticadas e autoconscientes que as
anteriores – e, ainda por cima, mais relevantes socialmente que as anteriores. Acreditar
nessas promessas é voltar ao que José Guilherme Merquior chamou de “fetichismo do
método” (MERQUIOR, 1975, p.10). Devemos desistir de uma vez do sonho dogmático
de uma crítica científica ou de promessas de avaliações definitivas e inequívocas de
obras literárias e culturais. O juízo estético é sempre contingencial.
Em entrevista publicada no Jornal da Unicamp e reproduzido no site Recanto
das Letras, o professor e crítico literário Alcir Pécora sentenciou:
“A ‘grande análise’ era possível quando havia justamente o que mais
parece perdido agora: modelos hegemônicos capazes de sustentar
crenças naturalizadas como universais. A literatura, desse ponto de
vista, perde a certeza de um ponto de vista racional e abrangente,
iluminista e romântico, que se supunha suficiente para dar conta de
sua função e forma de uma vez por todas, e, portanto, para se produzir
como prescrição crítica. Hoje, sem fundamentos, sem natureza, sem
processos hegemônicos de análise ou de determinação do real,
estamos seguros apenas da contingência, o que inclui a literatura e a
crítica. Perdemos, pois, a certeza, a missão, a finalidade, a
paternidade, a transcendência de qualquer espécie. Isto é doloroso
seguramente. Mas não é pior do que não ter uma vida própria, e ter
apenas um pai amantíssimo. No meio do mar, perdido o lenho, talvez
a inteligência seja obrigada a recobrar seu sentido de ato de
descoberta” (PÉCORA, 2007).
O exemplo dos “impressionistas”, justamente pelo caráter subjetivista e
personalista de suas apreciações, parecem-me, mais do que nunca, um modelo a ser
revisitado. Uma característica comum a esses grandes intelectuais é a capacidade que
tinham de subverter métodos, regras e didatismos em nome de algo difuso e inconstante
que poderia ser chamado de “verdade íntima” ou experiência singular das coisas. O
caráter individualista da crítica é fruto legítimo do teor essencialmente individualista da
própria criação literária e mesmo da sua recepção.
5. A crítica ainda é pertinente?
O crítico José Veríssimo (1857-1916) foi impiedoso na caracterização do
ambiente literário de sua época (nos seus Estudos de Literatura Brasileira): “Vista de
perto e de dentro, a nossa vida literária, por tantos aspectos ridícula e desprezível,
assemelha-se a esse jogo de empurra, que os nossos meninos, apertando-se em um
mesmo banco uns sobre os outros, jogam esforçando-se por fazer pular fora um dos
companheiros” (VERÍSSIMO, 1903, p. 92).
Quase um século depois, o veríssimo veredicto continua descrevendo
perfeitamente boa parte do nosso “meio literário”, não menos ridículo e desprezível do
que o de outrora. Mas cabe aqui uma diferenciação fundamental no que diz respeito à
jocosa metáfora do “jogo de empurra” do crítico: naquela época, ele percebia que, para
ter destaque e reconhecimento, os literatos digladiavam-se de forma uma tanto
darwiniana. Hoje, no entanto, parece que o espírito do tempo é o do radical
democratismo (no que a palavra carrega de pior). Trata-se do jogo do “sempre cabe
mais um”, em que todo mundo é igual, compartilhando a mediocridade como valor
positivo e o elogio mútuo indulgente.
Tudo isso está relacionado diretamente com a falta de autonomia e curiosidade
intelectual: os jovens jornalistas culturais se satisfazem com a superficialidade do
release, do marketing, da divulgação editorial ligeira e interesseira no lugar da análise
detida das obras e a reflexão aprofundada sobre temas literários; e os jovens
acadêmicos, com a mera imitação e reprodução de jargões dos teóricos da moda. Na
universidade, o grande problema é a resistência em lidar com textos contemporâneos.
Outro inimigo poderoso da crítica é certo radicalismo de raiz historicista que, quando
ultrapassa a defesa de um saudável pluralismo de valores, chega ao paroxismo do
relativismo completo ou, por outro lado (não menos danoso), ao império da crítica
“politicamente correta”.
No nosso caso, no Recife especificamente, hoje, a vida literária parece estar mais
animada do que nunca. Há feiras de livros, bienal, saraus, leituras, academias, união de
escritores e coisas do gênero. Mas nem tudo que reluz no mundo das letras é arte. Vida
literária e literatura andam juntas, mas não são a mesma coisa. O banquete é farto e
animado, mas quase ninguém percebe que a parte da comida está estragada...
A única forma de contestar essa realidade de aceitação do medíocre é o
posicionamento crítico. O jornalista Paulo Polzonoff, em artigo sobre o grande crítico
caruaruense Álvaro Lins publicado na Revista Continente, escreveu que “a qualidade
dos escritores de um país tem uma relação muito próxima com a qualidade dos críticos
desse país” (POLZONOFF, 2005, p.23). Temos muito trabalho pela frente.
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ENTRE A PSICANÁLISE E O ROMANTISMO: A RAZÃO, O LIMITE E
A CIVILIZAÇÃO71
Eduardo Melo França72
RESUMO: Inspirado nas ideias e aproximações expostas por Thomas Mann sobre Romantismo e
Psicanálise em seu ensaio "A posição de Freud na moderna história das idéias" (1988),
contextualizaremos e problematizaremos as semelhanças e diferenças entre o lugar que a Razão e Desejo
ocupa no cerne desses dois saberes. Partindo da concepção de ambos os movimentos sobre racionalidade
e de domínio da natureza e do desejo, mostraremos como eles possuem o mesmo objeto de análise: a
indefinição, as contradições e o desejo humano. Contudo, abordando-o a partir de métodos e perspectivas
diferentes; a Psicanálise de forma racional, porém não cientificista (FREUD, 1932 [1931]) e o
Romantismo, mais especificamente o alemão, sempre intempestiva e apaixonadamente (GUINSBURG, J.
e ROSENFELD, 2008). Para isso, em alguns momentos, será necessário situar tanto a Psicanálise quanto
o Romantismo frente ao Iluminismo, tal como entendido por Sérgio Paulo Rouanet (1993), uma vez que
ambos estabelecem fortes relações, seja de ruptura ou complementaridade, com este movimento.
PALAVRAS-CHAVE: Freud; Romantismo; Razão; Thomas Mann; Inconsciente.
ABSTRACT: Inspired by the ideas and approaches expounded by Thomas Mann on Romanticism and
Psychoanalysis in his essay Freud's position in the modern history of ideas (1988), we’ll contextualized
and problematized the similarities and differences between the place that Reason and Desire in the heart
of these deals two knowledges. Starting from the idea of rationality and mastery of nature and desire, we
show how they have the same object of analysis: the vagueness, contradictions and human desire.
However, approaching it from different perspectives and methods; psychoanalysis rationally, but not
scientistic (Freud, 1932 [1931]) and Romanticism, specifically German, and passionately always
inadvertent (GUINSBURG, J. and ROSENFELD, 2008). For that, at times, be necessary to place both,
Psychoanalysis as Romanticism, against the Iluminism, as understood by Sergio Paulo Rouanet (1993),
since both establish strong relationships, either break or complementarity, with this movement.
KEYWORDS: Freud: Romantism; Reason; Thoman Mann; Unconscious.
O pensamento freudiano ao mesmo tempo em que é um hiato entre o
Iluminismo e o Romantismo, apresenta aspectos fundamentais da sua concepção de
homem, arte e ética que inegavelmente podem ser relacionados – divergente ou
convergentemente – com ambos os movimentos. Apesar de considerar um exagero, se
podemos chamar Freud de iluminista, como quer Sérgio Paulo Rouanet (1993), creio
que seja em boa parte pela sua fervorosa fé na capacidade da razão proporcionar ao
homem a possibilidade de viver em coletividade e produzir cultura. Por outro lado, se
nos recusamos a defini-lo como um membro tardio da Ilustração, é porque sua
concepção de homem mais se aproxima da romântica; obscura, dominada pelo desejo,
pela paixão e constituída em maior parte por forças inconscientes. Qualquer tentativa de
ler a Psicanálise como descendente direta e exclusiva do Iluminismo ou Romantismo
não seria outra coisa senão um reducionismo. Se pretendemos entender como o saber
freudiano se relaciona, foi influenciado e dialoga simultânea ou sucessivamente com
qualquer um desses movimentos, é preciso admitir que a Psicanálise é herdeira de duas
correntes incompatíveis e conscientemente rivais: a razão e a contenção iluminista
francesa e o ímpeto, a paixão, o desejo e o idealismo romântico alemão.
71
Between Psychoanalysis and Romantism: the reason, the limit and the civilization.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Autor do livro “Ruptura ou
Amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos de Machado de Assis”. Ed. UFPE, 2008.
72
A ambiguidade que permeia o diálogo psicanalítico com a paixão intempestiva
romântica e a razão esclarecedora iluminista pode ser exemplificada num trecho da carta
escrita por Freud para Einstein.
A situação ideal, naturalmente, seria que a comunidade humana
tivesse subordinado sua vida instintual a uma ditadura da razão73.
Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme,
ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto,
com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica (FREUD,
1976, v. 22, p. 256).
Apesar de num primeiro momento a veia iluminista Freudiana saltar aos olhos
quando literalmente propõe uma ditadura da razão, ao considerar essa possibilidade
como apenas uma “esperança utópica”, imediatamente ele se apresenta como cético em
relação ao homem se constituir totalmente enquanto um ser de consciência,
racionalidade e razoabilidade. Se com algum esforço podemos dizer que Freud e os
iluministas apresentam projetos de civilização semelhantes, não há dúvida de que
partiram de concepções divergentes de homem. Essa divergência é fundamental. Por
mais paradoxal que pareça, o projeto iluminista, aos olhos da Psicanálise, parece
demasiado romântico – no sentido corrente e vulgar que a palavra adquiriu com os anos.
Isso porque as implicações, dificuldades admitidas e concepção de homem freudiano
apresentam muito mais semelhanças com as ideias nascidas com o Romantismo. Para
Freud, a razão é absolutamente necessária e deve sempre ser tomada como meta, no
entanto, o ímpeto, a paixão, o inconsciente e a desmedida são inegáveis, incontornáveis
e intrinsecamente humanos.
Antes de prosseguirmos, é importante salientar que quando se trata de
Psicanálise, as idéias de cultura, civilização, limite, razão, sociedade e castração se
fundem num feixe psicológico que pretende ao mesmo tempo admitir a pulsão, mas
preservar a convivência humana.
Thomas Mann, no ensaio A posição de Freud na moderna história das idéias
(1929), não apenas inaugura o debate sobre a relação entre Psicanálise e Romantismo
como também percebe que o que há de mais importante a ser problematizado quando
justapomos esses dois movimentos é a eterna luta entre o desejo e a razão, a liberdade e
o limite, o indivíduo e a cultura. Sobre essa mão dupla que Freud estabelece tanto com o
desejo noturno e intempestivo do Romantismo, quanto com a razão e sobriedade
iluminista, vejamos o que Mann diz:
O interesse da pesquisa de Freud pelo afetivo não se forma na
glorificação do seu objeto às custas da esfera intelectual. Seu antiracionalismo significa a compreensão da superioridade real-poderosa
do instinto sobre o espírito; não significa o admirável deitar-de-bruços
diante desta superioridade e o escárnio do espírito. Não há qualquer
motivo de equívoco e ele próprio não será vítima de um tal equívoco.
Inconfundível e inequívoco é o seu “interesse” pela pulsão, que não é,
perante esta uma servidão amorosa, nem negadora em termos de
espírito, nem conservadora em termos de natureza, mas está a serviço
da vitória no futuro, está a serviço – a palavra proibida foi aqui
73
Tanto na tradução para o espanhol das obras completas de Freud quanto nas traduções mais recentes
para o português, observamos que a palavra ditadura surge no lugar de domínio. Por isso, apesar de
utilizarmos a Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud, adotaremos e
permaneceremos utilizando a expressão ditadura da razão.
introduzida no seu sentido maior, independente das ondulações do
tempo – do Iluminismo (MANN, 1988, p. 150).
Sejamos sinceros, não podemos fingir não ver que em apenas um parágrafo
Mann resolve todo o nosso problema. Surpreendentemente, apesar do alvoroço
irracionalista gerado pelos pintores e poetas da década de vinte e trinta em torno da
Psicanálise, ele percebeu que Freud construiu uma teoria que pisa em solo romântico,
mas que olha através de lentes racionalistas. Se a concepção de homem e de batalha
travada entre desejo e razão apresentada por Freud tem um sabor romântico, Mann
ressalta que diferente dele, a Psicanálise não elogia a noite, o desejo incontrolável ou o
id. Ela apenas admite a força desses impulsos irracionais e inconscientes.
Por mais que saibamos que nem só de paixão e sentimento seja feita a poesia de
Schlegel, Novalis, Coleridge, Wordsworth e de boa parte dos poetas ingleses e alemães
da primeira geração, “quaisquer que tenham sido as causas, porém, o fato é que, em
Shelley, perdeu-se o ‘equilíbrio romântico’ conquistado pela primeira geração”
(VIZZIOLI, 2008. p. 149). Por isso, não se pode negar que “só com o Romantismo se
estruturou um movimento que se atreveu a reptar abertamente e em seus fundamentos a
perspectiva [clássica e racionalista] instaurada pela renascença” (GUINSBURG, J. e
ROSENFELD, 2008. p. 262). Enfim, temos consciência da problemática condição do
lugar que a razão e a inteligência ocupam nas diferentes gerações do próprio
Romantismo.
Sem esquecer que Mann escreve do final da década de vinte, leiamos mais um
excerto de seu ensaio,
[...] com sua ênfase sobre o demoníaco na natureza, com sua paixão de
pesquisador das esferas noturnas da alma, ela [a Psicanálise] é tão
anti-racional como qualquer manifestação do novo espírito que está
em luta vitoriosa com os elementos mecânico-materialistas do século
XIX. Ela é a revolução inteiramente em seu sentido (MANN, 1988, p.
149).
As duas passagens transcritas do ensaio de Thomas Mann mostram como ele foi
capaz de tocar em dois dos pontos mais significativos em relação à posição que a
Psicanálise ocupa entre o irracionalismo e a razão. Primeiro, deixemos claro que antiracionalismo não é sinônimo de irracionalismo. Apesar de ambos os movimentos
tomarem o homem como um ser obscuro, de paixões intensas e ímpetos destrutivos, a
Psicanálise se diferenciaria do Romantismo, pois acredita que seu lugar não é o das
sombras e da profundidade, mas o da razão e da luz. Diferente do irracionalismo que
elogia a obscuridade e o noturno, o anti-racionalista crê que os indivíduos são
dominados por impulsos inconscientes, por pulsões, e que na maioria das vezes a razão
e a consciência não são outra coisa senão a ponta de um iceberg ou um fraco cocheiro
angustiado e desesperado tentando com todas as forças domar dois cavalos fortes e sem
controle. O solo que a Psicanálise e esses poetas pisam pode ser o mesmo, pantanoso e
movediço, mas Freud, como um anti-racionalista, acredita não num sentido ingênuo,
mas problematizador, que o homem deve caminhar num movimento ascendente e rumo
à consciência. Ser anti-racionalista, mas não irracionalista, consiste em admitir a
inevitabilidade da pulsão, mas com todas as forças lutar para que a razão, a consciência,
o limite e a cultura sejam soberanos, ainda que sempre em ameaça.
De um lado, podemos dizer com segurança que o objeto de estudo freudiano é
romântico, ou ainda mais significativamente, inventado pelo Romantismo. Por outro,
sua intenção e postura não são exatamente iluministas, visto que enquanto ele se
posiciona como um anti-racionalista, o neoclassicismo francês era constituído por
racionalistas convictos que declaravam seus projetos iluministas tomando o homem
como uma tabula rasa e não como um ser do inconsciente, cindido, contraditório e antes
de tudo, agora, fundamentalmente numa condição de indivíduo. Isaiah Berlin define
bem como os iluministas estavam distantes da concepção vertical de psicologia que
nasce com o Romantismo e os filósofos idealistas, como Herder, Fichte e Schelling.
Para ele, “os philosophes eram cegos que conduziam cegos, alienados de toda
concepção do que na verdade importava nas profundezas da alma humana, imortal,
embora pecaminosa, feita à imagem da própria natureza divina. Esse era o domínio da
visão devota e introspectiva da alma alemã” (BERLIN, 1991. p. 42).
Nas palavras de Mann, Freud é um “revolucionário”, pois constrói uma teoria
que olha para o futuro, visa a superação e pretende empreender um processo de
racionalização, civilização e por conseqüência de cultura. O caráter revolucionário de
Freud estaria justamente em mergulhar nas profundezas humanas, na obscuridade da
psicologia, tal como fez o Romantismo, mas compreender que o futuro e a cultura
dependem de uma constante tentativa de retorno às luzes e à razão. Mesmo que a força
do inconsciente seja inevitavelmente constante, não há no final das contas outro
objetivo para Freud senão o de proporcionar ao homem a condição de liberdade, mesmo
que precária e provisória. Somente a razão pode proporcionar essa sensação de domínio
e suposta segurança. Entregue aos instintos, à pulsão e à natureza, o homem, perdendo
sua liberdade, seria um prisioneiro de algo que dentro dele apenas busca saciar de forma
predadora os desejos mais egoístas e, quando sob a égide da pulsão de morte,
autodestrutivos.
Já dissemos, num tom crítico, que o Iluminismo tem um ar romântico, no sentido
vulgar da palavra. Agora, sem sermos contraditórios, dizemos também que ele, por
ingenuidade, é demasiadamente exigente. O projeto iluminista prega uma razão absoluta
que não reconhece as implicações do recalque e da pressão pulsional. Daí uma diferença
que precisamos estabelecer entre a razão proposta por Freud, que nasce da
autoconsciência, e a razão imposta homogênea e externamente pelo projeto iluminista.
Do ponto de vista psicológico, o movimento das luzes é tão precário e ingênuo como
qualquer projeto totalitário – desde A Republica de Platão, passando pelas utopias do
Renascimento, até os últimos suspiros ainda anacrônicos da China ditatorial. O grande
diferencial entre a ética psicanalítica com sua razão civilizatória, os românticos e os
iluministas é o fato de sua crítica à cultura não ser motivada em nome de um passado
ideal –uma época de ouro onde havia uma unidade harmônica entre o homem, a cultura
e a natureza – ou em nome de um projeto utópico – no qual os interesses pessoais, e
ainda pior, as necessidades pulsionais não somente fossem sacrificadas, mas
praticamente desconsideradas em prol de uma cultura homogênea e opacamente
subjetivada. A crítica psicanalítica à cultura não tem ideologia ou utopia e muito menos
se funda num passado fantasioso ou num futuro idealizado e utópico. A medida da sua
razão e seu único compromisso é com a compreensão da formação do mal-estar na
sociedade.
Em um de seus não raros momentos de ironia, diz Freud sobre a possibilidade de
uma época de ouro, tal como um paraíso abundante e totalmente harmonioso:
Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da
Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário
ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à
tranqüilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a
agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber
mais a respeito de coisas tão afortunadas (FREUD, 1976, v. 22, p.
254).
Ao mesmo tempo em que não vislumbra essa época na qual todas as
necessidades sexuais fossem completamente satisfeitas, ele, diferentemente de
Rousseau, nutre a convicção de que qualquer organização social deve ser submetida aos
ditames da razão e da cultura coletiva; o que implica limites, proibições, frustrações e
castrações. Freud não propõe alternativas utópicas ou idealistas e reconhece que viver
sob uma eterna frustração, ou castração, não é outra coisa senão admitir a condição
neurótica como uma espécie de paraíso artificial e precário, mas o único possível.
O tipo de razão que Freud acredita ser indispensável para a sobrevivência da
humanidade é aquela que impõe a norma e o amadurecimento intelectual de forma
vigorosa, mas que também é capaz de reconhecer importância dos impulsos emocionais.
Em uma das Conferencias Introdutórias (XXXV74) sobre a Weltanschauung, diz Freud
que:
Nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto — o espírito
científico, a razão — possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu
domínio sobre a vida mental do homem. A natureza da razão é uma
garantia de que, depois, ela não deixará de dar aos impulsos
emocionais do homem, e àquilo que estes determinam, a posição que
merecem. A compulsão comum exercida por um tal domínio da razão,
contudo, provará ser o mais forte elo de união entre os homens e
mostrará o caminho para uniões subseqüentes. Tudo aquilo que, à
semelhança das proibições da religião contra o pensamento, se opõe a
uma evolução nesse sentido, é um perigo para o futuro da humanidade
(FREUD. 1976, v. 22, p. 208).
A razão psicanalítica tem como parceira uma moral ativa e realista que se nega a
se basear em qualquer manifestação moralizadora e ideal, seja utópica (iluminista) ou
nostálgica (romântica). A ditadura da razão não deve ser tomada como uma entidade
abstrata que se guia por pressupostos espirituais e ideais. Seu parâmetro é a medida do
mal-estar. A razão deve encontrar sua medida certa e sua razoabilidade na história
subjetiva da humanidade. Ela não pode desconhecer a vida sexual e pulsional do
indivíduo que em cada época encontra novas formas de subjetivação e satisfação. O
Romantismo delirava com um retorno a uma época de ouro quando os homens seriam
mais felizes e naturais. O Iluminismo projetava uma sociedade igualitária na qual os
homens seriam capazes de abstrair significativamente suas diferenças em prol da
fraternidade. Já Freud, fixando seu projeto em solo sóbrio, tanto leva em conta a
instabilidade humana (do Romantismo) quanto a necessidade da razão (iluminista), para
propor que cada mal-estar seria produzido por diferentes fatores e que por isso a ideia
74
Nessa mesma conferência, Freud aborda outro tema que não cabe no foco do nosso trabalho, mas que
certamente faz parte do raio de debate entre a Psicanálise e o Romantismo. Freud expõe sua descrença na
possibilidade do mundo e das pessoas serem plenamente explicadas por uma só teoria totalitária ou visão
de mundo única, seja ela uma weltanschauung científica, um sentimento religioso ou a naturphilosophie
cultivada pelos primeiros românticos, particularmente por Goethe, e que tanto lhe comoveu na juventude.
de recalque e razão deve, sempre sem perder a razoabilidade, ser antropologizada. Vale
lermos o que tem a dizer Isaiah Berlin sobre a necessidade da razão respeitar as
especificidades históricas e culturais.
A razão é diferente. A idéia de uma sociedade única, perfeita e
compreendendo toda a humanidade deve ser contraditória em si
mesma, pois o Valhalla dos alemães é necessariamente diferente do
ideal de vida futura dos franceses, o paraíso dos muçulmanos não é o
dos judeus ou dos cristãos, porque uma sociedade na qual um francês
atinja uma realização harmoniosa pode se revelar sufocante para um
alemão (BERLIN, 1991, p. 45).
Não há outra forma de se encontrar o que gostamos de chamar de mínimaharmonia se não fundada na concepção de indivíduo e razão. A Psicanálise, quando
julgando a razão, não recai sobre o que se chama de falsa consciência. Freud, diferente
dos iluministas, não esqueceu que a razão é um produto absolutamente humano, criado
e em muitos momentos renegado pelo próprio homem. O fenômeno da falsa
consciência, para Hegel, é a incapacidade humana de se ver no objeto (ROUANET,
1990. p. 70). Assim como age um escravo diante do seu senhor, o homem esquece, é
incapaz ou simplesmente finge não ver que a religião, por exemplo, é uma criação
humana. Ele a criou, a lançou no mundo e a ela se submete como seu súdito impotente e
sem forças. Assim também agiu o Iluminismo em relação à razão. Tornou-a
incomesurevelmente poderosa e quase que abstrata; uma entidade desumanizada na qual
o homem dela não se reconhece como criador, pela sua falsa consciência, mas a ela
deve ser submisso.
Ao contrário do que parece acontecer com os iluministas, que apesar de
logocêntricos e antropocêntricos abstraem o fato da razão ser uma criação humana,
Freud não perde de vista que ela é humana e deve ser demasiadamente humana. Se
Marx subverte a falsa consciência hegeliana mostrando que essa dialética não é um
movimento natural do homem, mas uma dinâmica empreendida pela alienação da
sociedade capitalista, a Psicanálise, aqui mais lacaniana, torce o objeto ao seu modo, dá
um passo ainda mais adiante e mostra que não apenas a sociedade capitalista, a religião
e a razão são produtos da consciência e da linguagem, como que o motor de todas essas
e outras criações é o desejo. Seja o de amparo e conforto que cria a religião; o de posse,
individuação e egocêntrico que possibilita o nascimento de uma sociedade capitalista;
ou o de independência do divino e vontade de descoberta e liberdade que institui a razão
como juízo das coisas. Se para Marx não temos na religião o homem, mas o homem
alienado, para a Psicanálise, a razão não é simplesmente uma necessidade política,
institucional ou uma lei abstrata e dissociada da história, mas, sim, um objeto fruto da
história, da criação e do desejo de um homem que nela se projeta e tenta criar novos
modos de pensamento a partir dos quais pode se tornar independente de Deus – uma
outra criação sua – e construir uma sociedade mais igualitária e harmônica. A razão é
uma criação que em si catalisa o desejo de independência do transcendental, de
igualdade e ordem.
O caráter revolucionário freudiano, como diz Thomas Mann, mostra que o malestar não é outra coisa senão produto de excessos herdados pela tensão entre a ideologia
iluminista e romântica, i. e., da razão enrijecida, cega e desumanizada e dos sonhos
desmedidos e geradores de frustrações. O processo que possibilitaria um contorno ou
apaziguamento desse mal-estar só pode ser obtido através da tomada do indivíduo como
parâmetro das coisas e da autoconsciência, psicológica e intelectual, que permitiria ao
homem entender o mundo como criação sua e a razão como um instrumento ao seu
favor e não como uma entidade cristalizada e incapaz de se adequar à história e às
diversidades das necessidades subjetivas. Vale notar de passagem que a aproximação da
Psicanálise com o liberalismo consiste basicamente na adoção do indivíduo como
parâmetro das coisas e o respeito às suas vontades e desejos. Digo isso, pois, diferente
dos liberais mais radicais, Freud não nutre o otimismo necessário para acreditar que os
homens sejam capazes de se autogovernarem numa sociedade com o mínimo de leis
instituídas, ou seja, impostas pelo Estado. Os homens, para Freud, como veremos mais
adiante, quando totalmente livres e sem agentes regulatórios são verdadeiras “bestas
feras” capazes de se destruírem sem piedade ou culpa.
Nietzsche acreditava que a salvação poderia vir pelas mãos do super-homem.
Mas a civilização depende de limites. Para Rousseau, o mundo se tornaria melhor
quando o homem de natureza pura e boa, que foi corrompido pela sociedade, pudesse
novamente exercer sua bondade. Freud, por sua vez, não crê na pureza humana e muito
menos em um homem privado de limites e que possa exercer todas as suas forças e
desejos. Para ele, “a civilização consiste nessa renúncia progressiva. O contrário do que
acontece com o ‘super-homem’” (FREUD, 1977, v. 1, p. 348).
Um dos contrapontos mais evidentes entre a Psicanálise e o Romantismo é a
descrença que Freud nutre acerca da felicidade e da completude humana poderem estar
num monismo, numa unidade perdida, num casamento entre a natureza e a cultura, da
arte e do desejo, da paixão e da razão. Diante disso, Thomas Mann mostra enorme
lucidez ao preferir o projeto psicanalítico, que no lugar de promessas utópicas oferece
um projeto de racionalidade que inclui a necessidade de aprimoramento intelectual e o
conceito de sublimação como opção razoável e possível de harmonia entre os homens –
e ainda mais decididamente entre os homens e suas próprias pulsões.
A revolução para Thomas Mann é um processo de aprimoramento humano que
leva em conta todas as suas dificuldades inerentes; uma tentativa contínua de
autoconsciência e amadurecimento intelectual. Só assim, para Mann, e sabemos que
também para Freud, a sociedade poderá atingir o mal- estar mínimo e inevitável no qual
as pulsões se satisfaçam ao mesmo tempo em que os limites da cultura e da civilização
sejam mantidos. Não é o momento para nos determos com mais afinco no conceito de
liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin (1981), mas vale notar, com as devidas
ressalvas, que tanto ele quanto Freud acreditam que a medida certa da liberdade só pode
ser encontrada ou criada através do aprimoramento intelectual.
Em sua correspondência com Einstein, em apenas uma das várias menções que
faz ao caráter revolucionário e civilizatório da cultura, razão e intelecto, Freud diz que
“dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais
importantes: o fortalecimento do intelecto [...] e a internalização dos impulsos
agressivos [...]” (FREUD, 1976, v. 22, p.258). Olhando deste modo, Freud é
absolutamente divergente dos poetas românticos que encontram em Rousseau e no seu
“profundo pessimismo no tocante à sociedade e à cultura” a inspiração para a
construção de um sonho poético no qual a civilização seria a responsável por corromper
o homem e distanciá-lo da sua verdade interior que seria boa, generosa e criadora
(GUINSBURG, J. e ROSENFELD , 2008, p. 266).
Em primeiro lugar, sobre o mito do bom selvagem e da possibilidade do homem
permitir que sua verdadeira natureza venha à tona e ainda assim consiga conviver em
sociedade, Freud parece um tanto pessimista. Diz ele que:
Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais
contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela
também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma
besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é
algo estranho (FREUD, 1976, v. 21. p. 133)
Em segundo lugar, Freud era um lúcido venerador do processo civilizatório e
cultural. Digo e enfatizo lúcido, pois, diferente dos ingênuos e exigentes iluministas, ele
tinha a consciência das implicações psicológicas (o mal-estar) de uma cultura
organizada sobre leis institucionais e fundada (psicologicamente) sobre a interdição e a
castração. Em outras palavras, se tivéssemos que distinguir um resultado para a equação
freudiana que envolve razão, desejo e cultura, seria a ideia de que a civilização é o que
nos salva, mas o que nos adoece. “É a esse processo [de cultura e civilização] que
devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de
que padecemos” (FREUD. 1976, v. 22, p. 258).
Se a harmonia da nossa sociedade é vista como um artifício precário, tanto para
a Psicanálise quanto para o Romantismo, deve-se saber de antemão que cada um desses
movimentos entende essa precariedade de uma forma diferente. Para a Psicanálise,
apesar dessa harmonia ser tão forte e resistente quanto a psicologia de um neurótico que
insiste em se manter saudável apenas a partir de um recalque sempre precário e a ponto
de ruir, ela deve ser vista positivamente, pois sendo impossível “eliminar totalmente os
impulsos agressivos do homem”, seria ela, não apenas a responsável, mas o próprio
fruto do recalque, da cultura, da interdição e da soberania da razão na sociedade. Ou
seja, apesar de precária, ela é um trunfo conquistado a duras custas pela sociedade e do
qual ela não deve e nem pode abrir mão.
Essa busca da Psicanálise em fazer da consciência uma meta pode parecer, num
primeiro momento, um otimismo de quem acredita podermos viver um dia sob um
império estável da tal ditadura da razão. Muito pelo contrário. Otimismo há no
Romantismo que busca essa profundidade obscura do homem e acredita que somente in
natura ele alcançará a felicidade. Poetas como Novalis e os irmãos Schlegel tinham a
ilusão de que a cultura sobreviveria a um homem imerso em desejos, sem regras e
obstáculos civilizatórios. Isto, sim, pode ser tomado em certa medida como
irracionalismo.
Por incrível que pareça, é o anti-racionalismo, um conceito não contraditório,
mas ambíguo e paradoxal, que constitui boa parte do pessimismo que exala da
Psicanálise. Isso quer dizer que diferente do que pensavam os poetas românticos, a
natureza humana, destrutiva e irracional, se é inevitável e infinitamente maior do que a
consciência deve também ser incansavelmente combatida e iluminada. A Psicanálise
possui a sensibilidade romântica que combate a hipocrisia da sociedade, seus ditames
enrijecidos, sua incapacidade de se adaptar vitalmente aos desejos e a força de
satisfação neurótica. Mas seu guia é a razão e seu projeto é o de uma consciência
progressiva, de abandono da ilusão do tempo perdido de ouro e do homem in natura
puro e bom. Como diz Thomas Mann:
Pode-se chamá-la [a Psicanálise] anti-racional, pois o seu interesse na
pesquisa da noite, do sonho, do instinto, do pré-razoável é válido e no
seu principio está o conceito do inconsciente; mas ela está longe de ser
deixar tornar, através do interesse, a criada do espírito obscuro,
delirante e retrógrado (MANN, 1988, p.153).
Outro aspecto importante notado por Mann acerca da teoria freudiana é seu
caráter anti-mecânico-materialista. Isto é, anti-científico, pelo menos aos moldes
naturalistas e mecanicistas, mais evidente durante o século XIX. A relação de Freud
com a ciência que nasce no final do século XIX é interessante. Ele acreditava piamente
que era um cientista e que fazia a mais pura ciência. No entanto, ironicamente, sabemos
como hoje a psiquiatria olha para o saber analítico com um certo desdém por seu
suposto caráter não científico. Thomas Mann foi exato em notar essa contribuição
ambivalente da Psicanálise aos estudos psicológicos. Freud quis fazer ciência.
Felizmente não fez. No entanto, nunca lhe faltou racionalidade ou lhe sobrou
misticismo. Mesmo não sendo um naturalista, empreendeu, ou criou, uma lógica (do
inconsciente), uma razão, não mística ou científica. Foi essa sua suposta falha,
incapacidade de criar um saber puramente científico, que possibilitou o nascimento de
uma teoria não comprometida com valores e conceitos que a pós-modernidade
demonstrou serem frágeis e estreitos.
Mann escreve do final da década de vinte. Estávamos de saída do Romantismo.
Assistíamos a um avanço inegável e irreversível da ciência e no campo das artes um
movimento que Thomas Mann chama de neo-Romantismo, mas que sabemos ser o
surrealismo e todas as suas variações simpatizantes do irracionalismo. Freud não
cambaleia nem pra um lado nem pra o outro. Ao mencionar no mesmo parágrafo que
Freud não era um irracionalista e muito menos um mecanicista, o autor da Montanha
mágica diz que ao mesmo tempo em que ele não descamba para a apologia ao noturno,
tal como esses neo-românticos, também não reduz o homem a células, glândulas e
distúrbios neuroquímicos. A Psicanálise nesse contexto funciona como um nó que
transforma a irracionalidade do Romantismo em anti-racionalismo; a razão do
Iluminismo em razoabilidade e autoconsciência; e a ciência mecanicista em psicologia.
Não é difícil notarmos que os temas mais apreciados pelo Romantismo formam
o eixo central dos estudos freudianos – loucura, inconsciente, sonho, ocultismo,
repetições, chistes, pulsões, arte, o reconhecimento do obscurantismo da psicologia e a
ideia de indivíduo e de precariedade do eu, por exemplo. Apesar dos temas serem os
mesmos e centrais, é evidente que a Psicanálise e o Romantismo os tratam de formas
diversas. As diferenças residem justamente na linha que perpassa todo o nosso trabalho.
Enquanto o Romantismo aborda esses temas sempre resvalando para o misticismo, a
nostalgia, o obscurantismo e a concepção de monismo cósmico, Freud tomou as
mesmas ideias e lhes deu um tratamento racional e de intenções científicas – notem que
digo “intenções”.
Como lembram Guinsburg e Rosenfeld, o pensamento classicista se distingue do
romântico fundamentalmente por princípios como “o equilíbrio, a ordem, a harmonia, a
objetividade, a ponderação, a proporção, a serenidade, a disciplina, o desenho sapiente,
o caráter apolíneo, secular, lúcido e luminoso. É o domínio do diurno. Avesso ao
elemento noturno, o classicismo quer ser transparente e claro, racional. E com tudo isso
se exprime, evidentemente, uma fé na harmonia universal”. Outro aspecto que se
destaca na perspectiva clássica é o disciplinamento dos impulsos subjetivos do artista. O
escritor clássico é contido e seguidor das normas clássicas. Ele encontra seus limites
subjetivos e formais nas regras estéticas. “Por trás da arte, deve desaparecer o artista”.
Ele se confunde com a obra, não porque ela o reflete, mas porque ele não se faz notar.
Ele pretende a objetividade (GUINSBURG, J. e ROSENFELD, 2008, pp. 262-263).
Além do rompimento com a norma clássica, proporcionando uma mistura de
gêneros e o fortalecimento dos versos livres e brancos, como reflexo da natureza
indefinida do homem, os primeiros românticos alemães, mais do que tudo e de forma
completamente oposta aos neoclassicistas, valorizaram a subjetividade humana, em
muitos momentos refletida pelo narrador psicologicamente “atrevido”, notável, bem
definido e singular. O Grupo de Iena, a partir do estudo de escritores como Cervantes,
Shakespeare, Sterne e Diderot, passaram a cultivar um estilo de ironia que se
diferenciando do que encontramos na antiga retórica clássica, passa a se identificar com
o intervalo antitético entre reflexão e utopia (LOUREIRO, 2002, p. 211). Todos esses
autores se destacam por terem suas obras marcadas por narradores hipertrofiados que a
todo o momento interrompem o fluxo narrativo e realizam dois procedimentos: (1) se
relacionam diretamente como leitor e (2) realizam uma autoreflexão acerca de sua
própria narrativa.
Ambos os procedimentos, além de proporcionarem reflexões sobre a relação
autor-obra-leitor e acerca do caráter ficcional da obra, supervalorizam a figura do autor
como indivíduo, que tratando o texto como texto, se intrometendo na narrativa e se
apresentando não apenas como narrador objetivo, mas como indivíduo criador, faz
emergir uma reflexão em torno da obra literária e do lugar do autor com figura artística
preponderante. É por esse tipo de reflexão (sobre a autoreflexão) artística que a figura
do indivíduo singular, com um ego hipertrofiado, e por consequência a do autor único e
genial, passa a ter lugar de destaque nas ideias românticas.
A poesia romântica, assim como a dos autores estudados pelo Grupo de Iena, é
marcada pela autoreflexão e pelo papel do autor como gênio criativo que não somente
imita a natureza, mas a recria. Essa possibilidade de criação é possivelmente o principal
contraponto que se pode estabelecer entre a mimesis romântica e a imitation neoclássica.
Se durante o neoclassicismo o autor vivia sob o rígido regime da imitation, a partir do
Romantismo passa a interromper sua obra para atestar seu caráter ficcional,
problematizar seus procedimentos criativos e literários e principalmente refletir acerca
do imediato e da relação que nasce do contato entre o leitor e a obra. Por consequência,
o artista passa a ser visto e a exercer o papel de um ser demiúrgico que faz da arte
reflexo de sua liberdade criativa de desejar e sonhar. Nasce assim a ironia romântica: o
casamento improvável entre a reflexão e a fantasia; do autor que conversa, se intromete,
reflete e discute, mas que também cria um novo mundo que pode ser mais integrado e
harmonioso.
São essas duas ideias aparentemente antagônicas – reflexão e utopia – que
movimentam a engrenagem romântica para um paradoxo ainda mais intenso e rico em
controvérsias e discussões. De um lado, a obra de arte que tomada como reflexo da
genialidade única do autor passa a ser motivo para a cada vez maior valorização da
“espécie biográfica”, como chamava Nietzsche, do indivíduo único, singular e
verticalizado. Por outro lado, essa obra agora que compartilha de um sentimento de
mimesis criativa, e não apenas da imitation, revela um novo mundo que pode ser criado,
e não apenas copiado, e que carrega em si o sentimento de nostalgia de um tempo
anterior à queda no qual a unidade perfeita e harmônica não haviam sido quebradas.
Nasce daí o maior paradoxo romântico: a relação entre a inevitabilidade de um
indivíduo absolutamente livre, tomado pelo desejo singular e a vontade de unidade, de
monismo, coletividade harmônica e de cosmos unitário. Levados ao limite, temos o
mais importante paradoxo-irônico-romântico: reflexão/utopia e a inconciliável dupla
aspiração à singularidade e ao absoluto.
É interessante pensarmos que no cerne da discussão acerca do Mal-Estar na
Civilização de Freud reside o paradoxo, senão contradição, mais importante do
movimento romântico: indivíduo único e sociedade comum. A diferença, contudo, é que
enquanto os românticos tomam o par indivíduo singular e unidade absoluta como uma
condição a ser vivida enquanto sonho ou nostalgia, Freud apontara o tenso e desastroso
casamento entre o indivíduo e a coletividade como uma condição e um problema que
não será resolvido com nostalgia ou obscurantismo, mas, sim, a partir da razão e seus
derivados: as leis, os acordos, a sublimação, a arte, os sintomas, as normas e as
interdições.
Como o objeto de estudo psicanalítico e de veneração romântica são os mesmos,
as diferenças entre ambos os movimentos podem somente começar a surgir
definitivamente quando a utopia toma o lugar do projeto e a paixão o da razão. O
aparecimento da figura do indivíduo surge no Romantismo a partir da autoreflexão, ou
como chamamos anteriormente, da autoconsciência. Autores como Cervantes, Sterne ou
Shakespeare saltaram aos olhos dos irmãos Schlegel, pois seus protagonistas
apresentando uma inquietação, diríamos, romântica, de dissociação com a ordem natural
das coisas e do mundo, adotam pontos de vista fora de si próprios e tentam
problematizar e encontrar seus novos e indefinidos lugares no mundo. Para A. W.
Schlegel,
O ideal grego [...] era a concórdia e o equilíbrio perfeitos de todas as
forças; a harmonia natural. Os novos, porém, adquiriram a consciência
da fragmentação interna que torna impossível este ideal; por isso a sua
poesia aspira a reconciliar os dois mundos em que nos sentimos
divididos, o espiritual e o sensível, fundindo-os de um modo
indissolúvel [...]. Na arte e poesia gregas manifesta-se a unidade
original e inconsciente de forma e conteúdo; na nova, procura-se a
interpenetração mais íntima de ambos, enquanto ao mesmo tempo
permanecem opostos. Aquela soluciona a sua tarefa, chegando à
perfeição; esta, só pela aproximação pode satisfazer o seu anseio do
infinito [..] (Citado por GUINSBURG, J. e ROSENFELD, 2008 , p.
273).
Percebe-se, portanto, de forma geral, que o Romantismo tinha consciência de
que o nascimento do indivíduo moderno é fruto da capacidade do homem se desdobrar
sobre si próprio e perceber sua cisão em relação ao mundo. Sem esse sentimento de
cisão e ruptura não haveria a emergência da necessidade de um reagrupamento artificial
fundado em regras e limites, que por sua vez gera a frustração dos desejos, a nostalgia
de um tempo perdido, o desconforto e o desencantamento com o mundo atual. Em
outras palavras, voltamos à ideia de um mal-estar.
Ora, os românticos tiveram tudo para iniciar uma problematização pela primeira
vez profunda acerca da natureza humana e das possibilidades de convivência em grupo,
mas se perderam no deslumbramento da profundidade psicológica, na utopia de um
futuro ao mesmo tempo harmônico e selvagem (no sentido Rousseriano) e num vício de
nostalgia. Freud nesse momento foi exato em mesclar sua herança híbrida de luz e
sombra e dizer que sem o limite e uma ditadura da razão, do homem não podemos
esperar outra coisa senão...
[...] criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma
poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é,
para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade,
a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses,
humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo
homini lupus. (FREUD, 1976, v. 21, p. 1976).
Também Thomas Mann acreditava na infeliz capacidade do homem de destruir e
se autodestruir quando numa condição na qual a vontade se sobrepunha à razão. Em seu
ensaio homônimo dedicado a Schopenhauer, diz ele, evidentemente impregnado pelo
pessimismo de Freud e do filósofo alemão que
O homem, enfim, considera o todo como criado para seu uso e
contribui por seu lado para assinalar com a mais espantosa evidência o
horror do combate de todos contra todos, o auto-estraçalhamento da
vontade, segundo a máxima Homo hominis lupos (MANN, 2009. p.
9).
Felizmente, diferente do que observamos quando críticos e teóricos resolvem
escrever ficção ou poesia e costumeiramente nos frustram, não são raros os exemplos de
poeticidade, profundidade e sensibilidade com os quais nos deparamos quando poetas e
romancistas resolvem fazer crítica, teoria ou ensaio. Por isso, apesar de todos os estudos
que hoje dispomos sobre a relação entre Psicanálise e Romantismo, acreditamos que
Thomas Mann, apesar de seu curto ensaio, ainda é o melhor guia que poderia nos
acompanhar nesse tema. Uma vez que foi ele não apenas o primeiro, mas também quem
mais especificamente conseguiu perceber que além de todas as outras possibilidades de
abordagem, o que há de mais importante na relação entre Freud e o Romantismo é a
questão da razão e do contraste entre uma concepção pessimista e inconsciente da
psicologia humana e a necessidade de fortalecimento da razão, da cultura e da
civilização.
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ORAÇÕES ADJETIVAS: ASPECTOS DESCRITIVOS
Erika Virgínia Simas Oliveira75
RESUMO: Tradicionalmente, as orações adjetivas são conceituadas como estruturas iniciadas por um
pronome relativo. Morfologicamente, considera-se que elas são equivalentes a um adjetivo; e,
sintaticamente, a um adjunto adnominal ou a um aposto. A partir dessas noções, as gramáticas e os
manuais tradicionais costumam propor uma subclassificação, em que elas são divididas em restritivas e
explicativas, conforme a referência que fazem em relação ao antecedente. Como veremos neste artigo, os
aspectos descritivos em relação às orações adjetivas, quando abordados da maneira supracitada,
apresentam uma visão simplificadora da língua, desconsiderando os reais contextos de funcionamento das
mesmas, além de negligenciar aspectos importantes de sua descrição. Além disso, os manuais tradicionais
falham no tratamento dessas estruturas, pois vários aspectos importantes de sua descrição não são sequer
mencionados. Neste artigo, a partir da coleta efetuada em textos escritos das esferas acadêmica,
jornalística e literária, aponto os aspectos sintáticos das construções adjetivas e suas variadas
configurações – como o aparecimento da oração subordinada adjetiva encadeada, a qual convencionamos
assim denominar - em contraposição à abordagem puramente estrutural e canônica que não dá conta da
riqueza do fenômeno das estratégias de relativização.
PALAVRAS-CHAVE: Língua Portuguesa; descrição; orações adjetivas.
ABSTRACT: Traditionally, the adjective clauses are conceptualized as structures started by a relative
pronoun. In their morphology, they are considered equivalent to an adjective; in their syntax, to an
adnominal adjunct or an appositive. Based on these notions, the traditional grammars and booklets
usually propose a sub classification, in which they are divided in restrictive and explicative, according to
the reference they make regarding their antecedent term. As it will be presented in this paper, the
descriptive aspects concerning the adjective clauses – when approached in the aforementioned way –
present a simplified view of language, disregarding the real functioning context of it, as well as neglecting
important aspects of its description. Besides, the traditional booklets fail while handling these structures,
because many important aspects of its description are not even mentioned. In this paper, based on the
material we collected from written texts of academic, journalistic and literary spheres. We highlight the
syntactic aspects of adjective constructions and their varied configurations – such as the appearance of the
adjective subordinated chained clause, which we conveyed to denominate in this manner – in opposition
to the purely structural canonic approach that does not reach the richness of relativization strategies.
KEYWORDS: Portuguese language; description; adjective clauses.
1. Introdução.
Muito já se tem discutido e pesquisado acerca dos processos de relativização,
assim como já é bastante debatida a necessidade de um enfoque mais condizente da
gramática em relação às realizações da língua. No entanto, apesar da quantidade de
estudos publicados, as pesquisas linguísticas revelam não apenas uma diversificação nas
abordagens, terminologias e correntes teóricas, mas também uma discrepância entre o
que é proposto pelas gramáticas e os manuais de língua portuguesa e o real
funcionamento dessas orações no discurso falado e escrito.
75
Graduanda do curso de Letras da UFPE.
No que se refere às orações subordinadas adjetivas, muitos autores têm-se
preocupado em estudar o fenômeno que envolve as estratégias de relativização nas
modalidades de língua escrita e falada, uma vez que já se percebeu o uso de orações
adjetivas em desacordo com o que prescreve a norma padrão, principalmente em
situações de comunicação espontânea. Assim, aqueles que defendem uma orientação
mais funcionalista para a análise das relativas adjetivas afirmam existir, além da
canônica, a relativa copiadora e cortadora no português brasileiro.
Redefinições a parte, o objetivo da pesquisa apresentada neste artigo é
corroborar a visão de que a gramática normativa não contempla os reais funcionamentos
das estratégias de relativização das adjetivas, ou seja, valendo-se apenas de aspectos
descritivos desconectados de sua efetiva realização e contribuindo para manter, de
acordo com suas regras, as noções de certo e errado.
Para isso, serão enfocados os conceitos estabelecidos pelas gramáticas e manuais
acerca das orações subordinadas adjetivas: suas configurações e as respectivas
classificações para que se compreenda qual o tipo de oração denominada canônica.
Nessa etapa, serão apresentadas as definições de gramáticos e de autores de manuais e
livros de língua portuguesa mais utilizados pelas escolas.
Embora o foco não seja discutir sobre questões de ensino e orações adjetivas,
como veremos, algumas estratégias de relativização, como o emprego do pronome cujo,
só são incorporadas ao repertório da língua no processo de escolarização. Por isso, a
importância no que tange ao conceito das subordinadas adjetivas.
Outro ponto crucial para demonstrar a limitação de uma abordagem mais
estruturalista a respeito das orações adjetivas é a análise comparativa entre as
construções canônicas, que denominaremos também prototípicas, e as construções nãoprototípicas. Dessa forma, apresentaremos as estratégias de relativização cuja
funcionalidade está sendo negligenciada pela gramática normativa e, mais uma vez,
corroborando a necessidade de extrapolar os aspectos descritivos descontextualizados.
Os exemplos, de ambas as configurações, apontados neste artigo compõem as
ocorrências retiradas do corpus de modalidade da língua escrita, formado pela seleção
aleatória de textos das esferas acadêmica (artigos científicos), jornalística (editoriais e
notícias) e literária (crônicas, contos e fábulas).
Além de efetuar essa análise comparativa entre relativas prototípicas e nãoprototípicas, apontaram-se dados como: a recorrência a determinados pronomes
relativos e a preferência por orações restritivas e não-restritivas. Para corroborar a
investigação e fundamentar a análise lingüística, foram utilizados como aparato teórico
os postulados de Halliday (1985), Neves (1999; 2000), Brito e Duarte (2003), Oliveira
(2007), Mioto e Negrão (2007) e Bispo (2007).
A contribuição pretendida com a análise ora empreendida é fortalecer as
discussões, numa visão integral, acerca das estratégias de relativização, defendendo que
é indispensável estudar a língua sem desconsiderar a função comunicativa.
2. Fundamentação teórica.
A variação linguística para as civilizações antigas sempre foi alvo de
preocupação, sendo a mesma concebida como algo danoso à língua, cuja forma estava
inspirada nos clássicos. E essa visão passou a ser criticada após o surgimento da
Linguística Moderna, cujo objetivo é conhecer a língua tal como é.
No entanto, pela própria construção histórica, a noção de língua ainda está
atrelada ao modelo linguístico corroborado nas gramáticas normativas. E isso é
compreensível quando se analisa a formação dos Estados, a estruturação da língua
nacional e seus aspectos políticos e ideológicos.
À centralização política das modernas nações europeias seguiu-se a seleção de
uma língua, uma norma-padrão para direcionar a vida social. Assim, a variedade
linguística escolhida como “língua oficial” segue o critério do poder, do mais influente.
Deste modo, para legitimar essa língua eleita, deve existir uma série de
instituições e regras: uma ortografia oficial para manter a unidade da escrita (tanto que é
promulgada por lei); enumeração do léxico da língua, definindo palavras segundo
critério social e cultural; as gramáticas normativas para indicar o uso correto a partir da
tradição literária e status e instituições que perpetuem a noção equivocada da língua.
É nessa perspectiva em que os conceitos sobre orações subordinadas adjetivas
são inseridos. Antes de introduzir o conceito das adjetivas relativas, apresentaremos a
noção de transposição em relação ao que Bechara denomina conjunção subordinada
(BECHARA, 2004, p.465).
Segundo o autor, a transposição indica que uma oração, que poderia funcionar
sozinha, como enunciado, perde essa característica e, ao se inserir num enunciado
complexo, exerce a função de palavra. Nesse sentido, o transpositor relativo que, na
oração subordinada reintroduz o antecedente a que se refere, acumula também uma
função de acordo com a estrutura sintática da oração transposta.
A partir da discussão sobre a localização do adjetivo em relação ao substantivo,
para explicar o conceito de orações subordinadas adjetivas, Bechara compara a função
do adjunto adnominal, admitindo que este também pode ser representado por uma
oração que, pela equivalência semântica e sintática, é denominada adjetiva.
Dessa forma, morfologicamente, considera-se que as orações subordinadas
adjetivas são equivalentes a um adjetivo e, sintaticamente, a um adjunto adnominal ou a
um aposto. A partir dessas noções, as gramáticas e os manuais tradicionais costumam
propor uma subclassificação, em que elas são divididas em restritivas e explicativas,
conforme a referência que fazem em relação ao antecedente.
Segundo Bechara, “a oração adjetiva restritiva é proferida sem pausa e não é
indicada na escrita por sinal de pontuação” (op. cit. p.466). Para ilustrar a relação entre
antecedente e oração, o referido autor faz uma analogia a princípios matemáticos em
que, a partir de vários elementos que compõem um conjunto, há a seleção de um único
agente possível. Já Brito e Duarte nos apresentam uma definição mais consistente: “as
relativas restritivas ou determinantes contribuem para a construção do valor referencial
da expressão nominal, restringindo o domínio de referência do seu antecedente”
(BRITO & DUARTE, 2003, pp.655-656).
Ex.1: “O centro do plano prevê mais poder de intervenção governamental sobre fatias
do mercado financeiro que corriam soltas sem qualquer tipo de regulação.” (EDT.
006)
Já as adjetivas não-restritivas (explicativas) são tradicionalmente concebidas
como orações que não restringem a significação do nome, mas acrescentam-lhe uma
característica que é própria. Nessa mesma abordagem, Bechara afirma que “a adjetiva
explicativa alude a uma particularidade que não modifica a referência do antecedente e
que, por ser mero apêndice, pode ser dispensada sem prejuízo total da mensagem” (op.
cit., p.466). O autor também caracteriza a adjetiva não-restritiva através da língua
falada: “marcada por pausa em relação ao antecedente – e na escrita – assinala pelo
sinal de pontuação (vírgulas). (op. cit., p.466).
Ex.2: “Se, nos dias de hoje, o movimento de empregados, que transitam entre as
plataformas de petróleo e destas ao continente, atinge a "população" de 40 mil
pessoas” (EDT. 021)
Sendo assim, percebe-se que, além da natureza da relação que é estabelecida
entre antecedente e oração, destacam-se entre os critérios de classificação das adjetivas
relativas aspectos da língua falada e escrita. Nessa mesma perspectiva, Brito e Duarte
entendem que:
as relativas apositivas exprimem um comentário acerca duma entidade
denotada por um sintagma nominal, o antecedente da relativa. Ao
contrário das relativas restritivas, não contribuem para a construção do
valor referencial da expressão nominal; têm um caráter parentético,
que é dado na oralidade por pausas e na escrita por vírgulas ou traços.
(op. cit., p.671)
O primeiro ponto a ser criticado é acerca do paralelo sintático e semântico entre
as orações adjetivas e os próprios adjetivos. Para Brito e Duarte, as diferenças entre eles
são evidentes: “as relativas, por ser oracionais, contêm as propriedades típicas de uma
proposição (predicação própria, tempo, modo, aspecto). Além disso, há a possibilidade
de sucessão de adjetivos e relativas, bem como a coordenação dos mesmos. (op. cit.,
p.657). Nesse sentido, põe-se abaixo o mito que a gramática preconiza: a possibilidade
de troca da oração adjetiva por um adjetivo correspondente.
Vejamos a partir de um exemplo do corpus da pesquisa:
“Há duas semanas, o governo editou medida provisória que libera R$ 4 bilhões da
União para criar dois fundos que visam garantir operações de crédito para micro,
pequenas e médias empresas e para trabalhadores autônomos.” (NOT. 043)
Nesse exemplo, não é possível a transformação das orações adjetivas restritivas
em adjetivos correspondentes, sem que se negligencie as perdas de sentido decorrentes
dessa operação. Além disso, essas estruturas não se enquadram nos protótipos das
orações adjetivas, apresentando uma complexificação dessas configurações.
Por apresentar uma estrutura complexa, cuja configuração não é apenas
justaposição ou coordenação de orações, adotamos a denominação encadeada, por
melhor expressar o entrelaçamento sintático e semântico que ocorre.
Se nos detivermos na definição de Bechara a respeito das relativas adjetivas
restritivas, de que elas selecionam um único agente possível, então na oração encadeada
não se pode determinar a referência apenas pelo critério sintático. Demonstrando, assim,
que essa forma de perceber e de explicar as orações adjetivas, deveras limitada, não dá
conta de uma real caracterização do que é o fenômeno denominado ‘subordinação
adjetiva’.
As orações aqui denominadas encadeadas, as construções não-prototípicas
encontradas no corpus, além de outras estratégias relativizadoras já estudadas, como a
cortadora e a copiadora, apontam a variedade dos processos de relativização que
convivem na realização linguística dos falantes do português brasileiro. Mais ainda,
“tais exemplos apontam para a necessidade de uma abordagem dessas formas de
organização da oração adjetiva, visto que elas podem ocorrer de maneira regular em
diversas situações de comunicação.” (BISPO, 2007, p. 164)
3. Metodologia
Até o presente momento, o corpus analisado é resultado de seleção de textos da
esfera acadêmica, jornalística e literária. Para tanto, foram escolhidos: três artigos
científicos de graduandos de três áreas distintas: ciências humanas, exatas e saúde; na
esfera jornalística, sete editoriais e oito notícias; e na literária, três contos, três fábulas e
duas crônicas.
Embora não seja objetivo dessa pesquisa levantar hipóteses acerca de uma maior
ou menor frequência das relativas adjetivas em determinado texto, elas perfizeram um
total de 385 ocorrências (artigos científicos -182; editoriais e notícias -137; contos,
fábulas e crônicas -66).
Para fins de seleção e análise das configurações sintáticas adjetivas presentes no
corpus da modalidade escrita da língua, foram estabelecidos alguns critérios, como:
a) A catalogação de orações adjetivas restritivas e não-restritivas prototípicas
(nome + determinante + relativa ou determinante + relativa);
b) A identificação de orações adjetivas restritivas e não-restritivas não-prototípicas
(encadeamento de restritivas adjetivas, por exemplo);
c) A manutenção de orações adjetivas que apresentam uma inadequação quanto ao
uso do pronome relativo e sua localização na frase;
d) A manutenção de orações reduzidas de particípio, com valor de adjetivo.
Determinou-se também a criação de códigos e normas a fim de catalogar e controlar as
ocorrências das construções adjetivas no corpus. Para isso foi firmado que:
a) Dentro de um mesmo tipo textual selecionado para a pesquisa, procede-se a
enumeração conforme o aparecimento das orações adjetivas;
b) Caso ocorra mais de uma oração adjetiva no mesmo período, cada uma será
enumerada de acordo com a ordem em que aparecem;
c) Para cada texto das esferas acadêmica, literária e jornalística instituiu-se um
código: artigos científicos (ART); editoriais (EDT); notícias (NOT); fábulas
(FAB); contos (CON) e crônicas (CRO).
Como última fase desse projeto de pesquisa, além do corpus da modalidade
escrita, serão selecionadas, da modalidade oral, ocorrências da conversação face a face
(que compõem o acervo sonoro do Projeto NURC- Recife), além de entrevistas
veiculadas em programas de rádio e televisão e de exposições orais (aulas, discurso
religioso, palestras), a serem gravadas e transcritas.
Uma vez montado o corpus em sua totalidade e selecionadas as ocorrências, os
dados serão submetidos a uma análise qualitativa, sempre respeitando seus contextos de
uso. Dessa maneira, o que se põe em análise é a dinâmica da interação, da qual a
construção adjetiva participa, sendo uma das estratégias empregadas para a obtenção
dos resultados dos sentidos pretendidos pelos interlocutores. Análises quantitativas
serão realizadas para subsidiar a análise qualitativa, em etapas do trabalho nas quais os
resultados numéricos (percentuais) podem ser de grande relevância, por corroborar, ou
refutar as conclusões a que se chegará, nesta pesquisa.
4. Análise dos dados
Serão aqui apresentadas as ocorrências das orações adjetivas a partir do corpus
selecionado, destacando e comparando as construções relativas adjetivas canônicas e as
que não se enquadram no protótipo instaurado pelas normas gramaticais.
Nosso intuito, no que se refere às relativas não-padrão, não é responder a
possíveis questionamentos acerca dos motivos de sua realização na língua escrita. O
objetivo é descrever a configuração que elas podem assumir nessa modalidade de língua
e demonstrar que uma visão mais estruturalista não responde à complexidade dos
processos de relativização.
Como já foi citado, as relativas adjetivas perfazem um total de 385 ocorrências,
entre elas restritivas, não-restritivas e não-prototípicas. Também serão considerados,
para fins de análise, o tipo de pronome relativo empregado e a frequência com que
aparecem nas construções relativas.
Conforme já se convencionou, as orações subordinadas adjetivas vêm
normalmente introduzidas por um pronome relativo e exercem a função de adjunto
adnominal de um substantivo ou pronome antecedente. Sendo assim, as orações
adjetivas são introduzidas pelos pronomes – que, quem, quanto, onde, o qual (e
flexões), cujo (e flexões) e como. Vale ressaltar que não há um consenso entre os
gramáticos acerca do como na qualidade de pronome relativo. Inclusive não
encontramos nenhuma ocorrência de relativas adjetivas iniciadas por como, durante
análise dos textos que compõem o corpus.
Entre os pronomes relativos, as construções relativas adjetivas introduzidas pelo
que são as mais freqüentes no nosso corpus. O que pode funcionar tanto como sujeito
quanto como objeto direto. A seguir, a tabela abaixo demonstra a preferência por esse
transpositor relativo:
Tipo de Estrutura
Que
em que
Quem / em quem
por que / de que
no qual/ na qual
a que / a qual/ ao qual
Preposição + a qual (der.)
Cujo
Onde
demonstrativo + que
Reduzida de particípio
Total
Orações prototípicas e não-prototípicas
228
17
8
3
7
30
10
8
7
45
22
385
Tabela 1
Os números da tabela demonstram que os usuários da língua escrita preferem
construções relativas introduzidas pelo que. Segundo, Brito e Duarte, o que é um dos
pronomes mais polivalentes; ele pode ser usado referindo-se a um antecedente
[+humano] ou [ - humano] e ainda possui, num aspecto semântico, o valor consecutivo.
(op. cit., p. 662). Em contrapartida, não se verificou nenhuma ocorrência de relativas
adjetivas iniciadas pelo pronome quanto.
A segunda maior incidência de realizações relativas adjetivas é a recorrência a
determinantes não seguidos de nome (“elipse nominal”), que são tradicionalmente
considerados pronomes relativos. Esse tipo de estrutura só pode funcionar como
antecedente de uma adjetiva restritiva, por causa da unicidade referencial. As orações
presentes no corpus obedecem a essas prerrogativas, ou seja, não há ocorrência desse
tipo de estrutura relacionado com adjetivas não-restritivas. Vejamos abaixo:
Ex.1)“Ou naquelas que fabricam produtos para o mercado interno com alto valor
unitário (NOT.034) e que dependem da concessão de crédito para vender ao
consumidor - caso de eletroeletrônicos e móveis.” (NOT. 035)
Ex.2) O que realmente diferencia os estágios da experiência humana nesta Terra
(CRO.011) é o que o homem, a cada idade, considera bom mesmo (CRO.012).
Em terceiro lugar, aparecem com maior frequência as relativas iniciadas por o
qual (e flexões). Nesse caso, são encontradas tanto relativas restritivas quanto nãorestritivas. Numa visão normativa, nas relativas restritivas o qual nunca é usado como
sujeito ou como objeto direto, o que já pode ser admitido nas relativas não-restritivas,
como demonstra-se nos exemplos abaixo:
“Aí se podem notar, de fato, o questionamento de aspectos centrais do regime e o
clamor por abertura maior, a qual talvez nem Mousavi esteja disposto a oferecer.”
(EDT. 047)
“Na segunda parte, sem pretender realizar uma revisão bibliográfica completa nem um
exaustivo levantamento de títulos e autores, chama a atenção para algumas das
dimensões da realidade educacional brasileira às quais os pesquisadores têm buscado
entender com o concurso da noção de cultura escolar”. (ART.003)
No que se refere à classificação das orações adjetivas, verificamos que há
prevalência das restritivas em detrimento das não-restritivas, em relação ao
levantamento das ocorrências no corpus.
Configuração sintática
Relativas restritivas
Relativas não-restritivas
Quantidade de ocorrências
280
97
% (percentual)
81,71%
28,28%
Tabela 2
Embora não seja o foco deste trabalho empreender hipóteses sobre a ocorrência
de determinada construção adjetiva em dado tipo textual, as relativas explicativas são
mais recorrentes nos textos da esfera jornalística.
Entretanto, como já foi discutido na fundamentação teórica deste artigo, as
relativas adjetivas podem apresentar uma configuração tradicional – ora restritivas, ora
não-restritivas – ou uma complexificação dessas estruturas. Durante análise do corpus
verificamos a existência de estruturas que denominamos encadeadas, embora possam
assumir outras nomenclaturas dadas por outros autores. Nessas relativas adjetivas
encadeadas, encontramos as seguintes construções sintáticas:
a) A junção de duas relativas adjetivas restritivas no mesmo período;
Ex.: “Há duas semanas, o governo editou medida provisória que libera R$ 4 bilhões da
União para criar dois fundos que visam garantir operações de crédito para micro,
pequenas e médias empresas e para trabalhadores autônomos.” (NOT. 042)
Ex.2: [CITANDO] “Alertava, por fim, para a necessidade de se recontextualizarem as
fontes, suspeitando que a “grande inércia que percebemos em nível global pode estar
acompanhada de mudanças muito pequenas que insensivelmente transformam o
interior do sistema” (Julia, 2001, p. 15). (ART.035) (ART.036)
b) A junção de orações reduzidas de particípio e relativa restritiva;
Ex.: “bem como os vários sujeitos da educação vêm sendo valorizados em suas ações
cotidianas, o que se explicita no aumento de interesse pelas trajetórias de vida e
profissão e no engajamento que observa em análises organizadas em torno de
questões de gênero, raça e geração.” (ART.007)
Ex.2: “Desse medo, medo obscuro, profundo e selvagem que a criatura não conseguiu
disciplinar (CON.031), surgem os casos trágicos, cômicos e humorísticos
acontecidos com alguns mortos aparentes (CON.032) que tornaram à vida
(CON.033) e até, mesmo, a simples aparência, suposição e engano, ligados à idéia da
morte.” (CON.034)
c) A introdução de uma relativa não-restritiva numa relativa restritiva;
Ex.: Uma das áreas da história da educação que mais direta e fortemente tem se
utilizado dos diversos arcabouços teóricos subjacentes às diversas acepções de
cultura escolar e, portanto, das tradições historiográficas que lhes dão suporte, é
aquela que se volta para a investigação acerca dos saberes e conhecimentos
escolares. (ART.086) (ART.087) (ART.088)
Do total de 385 ocorrências de orações subordinadas adjetivas, contabilizou-se
30 construções com as características não-prototípicas acima apontadas, o que
corresponde a 7,79%.
Esse percentual revela uma realidade da nossa língua que não é contemplada
pela gramática normativa, demonstrando a distância entre o cânone e a função.
Portanto, deve-se assumir a dinamicidade da língua e a criatividade dos seus falantes
nos diferentes contextos comunicativos.
Apesar de haver muitos estudos sobre os processos de relativização, muitas
questões ainda merecem um maior aprofundamento. Tanto é que já houve avanços no
campo das relativas adjetivas (cortadoras e copiadoras) e esse estudo aqui apresentado
neste artigo demonstra que ainda há muito a ser pesquisado (e questionado) na área da
sintaxe, principalmente nos processos de relativização, sempre pautando-se por uma
análise linguística que contemple a realidade da língua.
5. Considerações finais
Em várias situações do nosso cotidiano, seja na qualidade de falantes naturais da
língua ou nas nossas ocupações, percebemos que há um descompasso, um fosso, entre
as prescrições contidas em manuais da gramática normativa e o que é expresso
realmente na nossa língua.
Isso corrobora a noção de que a norma-padrão é algo abstratamente construído e
exterior aos falantes. No entanto, a dinamicidade da língua como resposta às
necessidades comunicativas põe em xeque os cânones da gramática normativa e, entre
eles, o que se entende por ‘subordinação adjetiva’.
As estratégias de relativização não-padrão têm sido bastante estudadas, tanto que
alguns autores defendem a existência de duas estratégias convivendo lado a lado no
português brasileiro: a relativa padrão e a relativa vernacular (cortadora e copiadora) –
(Lemle apud Oliveira, 2007, p.688)
O objetivo deste artigo foi, a partir do corpus selecionado, demonstrar, através
de dados reais da língua, a superficialidade dos aspectos puramente descritivos no trato
das orações adjetivas. Descrição essa que não resisti a uma comparação com as
construções relativas adjetivas reais, principalmente no que se refere à diversidade de
estruturas.
Vale mais uma vez salientar que os resultados aqui obtidos referem-se apenas à
coleta de ocorrência de orações subordinadas adjetivas prototípicas e não-prototípicas
na modalidade escrita da língua. Após essa fase de apresentação dos dados, proceder-seá à gravação e à transcrição do corpus da modalidade oral da língua, comparando-se as
possíveis configurações das orações adjetivas na fala com aquelas presentes na
modalidade escrita e, por fim, compondo o corpus integral da pesquisa.
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A RELAÇÃO ENTREVISTADOR-ENTREVISTADO NA ENTREVISTA
RADIOFÔNICA: QUANDO OS PAPÉIS SE INVERTEM
Evana Izabely Ribeiro de Souza76
RESUMO: O gênero entrevista se caracteriza por consistir basicamente em um evento interacional
estabelecido entre no mínimo um par de sujeitos; sendo um destes o entrevistador (que estabelece o
primeiro passo para a comunicação e define o tema e os rumos da conversa) e o outro é o entrevistado,
que teoricamente se submete às regras do “jogo interacional” estabelecido pelo entrevistador e responde
as perguntas propostas de modo a expor sua face positiva e impor uma boa imagem ao veículo que
veiculará a entrevista e, consequentemente, o público receptor. Os papeis sociais das partes envolvidas em
uma entrevista são, de uma maneira geral, bem delineados e um não invade o espaço alheio (o que
incorreria no risco de dificultar a compreensão da mensagem por parte do público e um não-alcance dos
objetivos da entrevista). No entanto, em uma entrevista transmitida pelo rádio, em sua maioria produzida
ao vivo (isto é, sem edição posterior), é possível que ocorra uma eventual inversão de papéis ao longo do
diálogo. Quando isso acontece e quais são as implicações desta inversão para a compreensão da
mensagem? Neste artigo, buscamos fazer uma análise das perguntas e das respostas feitas durante uma
entrevista radiofônica veiculada pela Rádio CBN; identificando as instâncias em que houve inversão de
papeis entre entrevistado-entrevistador, e quais as consequências que incorrem desta inversão.
PALAVRAS-CHAVE: Entrevista; rádio; comunicação.
ABSTRACT: The interview is a genre known for being an interactional event estabilished between (at
least) two people: the interviewer, who gives the first step for communication defining the theme of the
conversation; and the interviewee, who (theoretically) accept the rules of the interaction and ansewr the
questions in a way of exposing his/her positive face, giving to the audience a good image of him/herself.
Social roles of the participants of an interview are usually well defined and one doesn’t invade the space
of the other. However, in na interview via radio, usually aired without any kind of edition, it is possible to
happen na inversion of roles through the dialoghe. When does it happen and which are the consequences
of this inversion to message comprehension? In this article, we analyze the questions and answers taken
from na interview aired on Rádio CBN; identifying the moments when happens inversion of roles
between interview-interviewee, and its consequences.
KEYWORDS: Interview; radio; communication.
1. Introdução
O rádio se apresenta como um veículo de comunicação aparentemente mais
difícil do que a televisão ou a revista/jornal, no que diz respeito à manutenção da
atenção e consequente compreensão da mensagem. Sem o apoio de imagens que a TV
fornece e sem os subsídios gráficos da mídia impressa como figuras e tabelas, torna-se
mais complicado manter-se atento ao foco principal. No caso da entrevista, que é o
gênero analisado neste trabalho, o fato de termos mais de um locutor em ação exige do
ouvinte uma atenção maior, não só para o tema da conversa, mas também para quem é o
entrevistador e quem é o entrevistado; e quais são suas contribuições para tal evento
interacional.
76
Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Sabemos que a entrevista, assim como a conversa informal, está baseada em
uma estrutura dialogal. No entanto, diferencia-se desta por se configurar de uma forma
geral como um gênero assimétrico, no qual uma das partes impõe a introdução e
fechamento de tópicos ao longo do diálogo enquanto a outra parte responde segundo ao
que é solicitado pelo primeiro.
Naturalmente, não é tão simples assim. A dinâmica de uma entrevista pode ser
alterada dependendo de diversos fatores, como o nível de relacionamento entre os
interlocutores e a dinâmica empregada pelo programa no qual a entrevista ocorre; e,
dessa forma, as regras do “jogo” podem ser alteradas, pondo entrevistador e
entrevistado em posições invertidas. Isto pode ocorrer em especial em entrevistas ao
vivo, que não são submetidas a um processo criterioso de edição pré-transmissão.
Tal modificação estrutural seria prejudicial aos objetivos da entrevista? Até que
ponto ocorreria “ruído” na transmissão da mensagem para a audiência? O presente
artigo se propõe a observar a ocorrência da inversão de papéis entre entrevistadorentrevistado (especificamente, os momentos em que o entrevistador “se desvia” de seu
papel) em um programa da Rádio CBN: quando ocorre, as possíveis razões para isso e
as consequências para o desenvolvimento e compreensão do discurso de cada um dos
interlocutores.
2. Algumas considerações sobre os papéis sociais na entrevista
Em qualquer programa jornalístico, seja ele do meio impresso ou audiovisual, há
no mínimo dois participantes: o entrevistador/apresentador do programa e o
entrevistado/convidado. Cabe ao primeiro estabelecer o contato primário com sua
audiência, de modo a chamar a atenção do público e manter essa atenção evidenciando a
importância das atrações/convidados a serem apresentados ao longo do programa. Esta é
uma estratégia bastante comum entre todos os apresentadores de programas
radiofônicos ou televisivos de qualquer natureza. Também é papel do entrevistador
prover a ligação do entrevistado com o público, já que, ao menos em tese, este só se
pronuncia quando é feita a primeira pergunta feita diretamente a ele. Por fim, o
entrevistador também funciona como mediador, redirecionando os rumos da conversa
de acordo com suas necessidades/necessidades do veículo que representa e acalmando
os ânimos em casos mais polêmicos.
O entrevistado, por sua vez, apresenta-se completamente disponível ao
confronto. Pressupõe-se que ele aceitou estar ali para responder a todas as perguntas que
serão feitas; portanto, presume-se que ele aceitou as regras do jogo interacional, que
será cumprido sem nenhum tropeço.
Além desses, há o terceiro elemento da interação: o público, que se apresenta
como o motivo principal pelo qual a entrevista ocorre. Afinal, o entrevistado não
prepara as perguntas apenas movido pela própria necessidade/curiosidade, mas também
(e pode-se dizer que principalmente) segundo os interesses do seu público-alvo. Mesmo
ausente do cenário em que a entrevista ocorre, o público pode ser considerado inclusive
o elemento central deste jogo interacional, visto que tanto um quanto outro participante
do diálogo está preocupado em conquistar o apoio da opinião pública para si, em
construir sua identidade.
Isso parece ficar ainda mais explícito quando acompanhamos entrevistas em
programas de auditório, no qual a plateia, representando de forma mais concreta as
pessoas que acompanham o programa em casa, conquista o direito de fazer perguntas
diretas ao entrevistado, assumindo por alguns instantes o papel do entrevistador e
empregando algumas de suas estratégias argumentativas, que serão vistas no próximo
tópico.
3. Estratégias argumentativas de entrevistadores e entrevistados
Estar diante de um interlocutor que aceitou o contrato interacional que consiste
em responder às perguntas propostas (e que geralmente são preparadas com
antecedência) não garante por si só que as expectativas serão atendidas. Para que a
mensagem seja compreendida pelo entrevistado da forma esperada e, principalmente,
para que sua face seja preservada, o entrevistador deve lançar mão de algumas
estratégias argumentativas, a fim de tornar seu discurso mais adequado à situação e à
pessoa que a receberá. Listamos e descrevemos a seguir algumas dessas estratégias que
certamente também estão presentes em instâncias menos formais da conversação, mas
aqui ganham contornos mais definidos e atendem a algumas especificações do gênero:
a) Argumentação por autoridade: conceito apresentado por Ducrot (1987), consiste na
apropriação do discurso alheio a fim de construir o seu discurso com mais propriedade.
O nível de credibilidade do autor do discurso “primário” interfere diretamente na
credibilidade do discurso do entrevistador ou do entrevistado;
b) Uso de modalizadores: atenuadores, delimitadores de domínio, comentadores da
forma como o enunciador se apresenta ante os outros: a utilidade desta estratégia reside
na necessidade de se preservar a face do interlocutor. Durante a entrevista, as faces dos
interlocutores estão constantemente sob ameaça, e o mínimo “arranhão” à face negativa
de um dos participantes pode implicar no término prematuro da entrevista; e
c) Uso de figuras retóricas (figuras de presença, figuras de comunhão,entre outras)
Tais estratégias são empregadas tanto por entrevistadores quanto por
entrevistados em todos os tipos de perguntas, mas são mais visíveis quando os
questionamentos feitos têm temática polêmica.
4. Considerações sobre a estrutura dialogal da entrevista radiofônica
Patrick Charaudeau (2009) afirma que o rádio é, por excelência, a mídia ideal
para a execução de uma entrevista. Em seu livro Discurso das Mídias, ele afirma que “a
voz revela à audição, atenta ou inconsciente, os movimentos da afetividade, sentimentos
favoráveis ou desfavoráveis, o tremor das emoções, frieza ou paixão, as vibrações do
espírito, sinceridade ou mentira”.
Portanto, mesmo sem os subsídios visuais, a voz cria a relação de intimidade
com a audiência. Tal modalidade de entrevista se aproxima mais da conversa por
telefone, mas se afasta desta modalidade interacional devido não só à assimetria
característica da entrevista, mas também por algumas regras específicas, tais como:
a) Evitar o uso de “hãhã”, “mmm”, “ahh”, entre outros, durante a fala de seu
interlocutor. Enquanto em outras instâncias conversacionais estas expressões servem
para apoiar o discurso do interlocutor e incentivá-lo a falar mais, durante uma
transmissão de rádio elas servem apenas para “sujar” a transmissão;
b) Anotar informações básicas em um pedaço de papel, como dados sobre o
entrevistado e o tema da entrevista. Segundo Milton Jung, citado por Oyama (2006) em
A arte de entrevistar bem, “Em rádio, pesquisas indicam que o público muda a cada
quinze minutos. É por isso que, em entrevistas mais longas, identificamos várias vezes
quem está sendo ouvido, na apresentação, no meio da conversa, no fim da entrevista.”
Portanto, esta é uma estratégia fundamental para manter a atenção da audiência que
sintoniza na estação no meio da entrevista;
c) Não fazer perguntas que já contenham a resposta: a função do entrevistador, como
citado anteriormente, é expressar as dúvidas do público e também instigar seu
interlocutor a falar coisas até então desconhecidas sobre o tema em questão. Quando a
resposta está inserida na pergunta, o propósito da entrevista se perde; e
d) Não fazer perguntas que comecem com “o que o senhor acha de...”: uma pergunta
apenas pedindo opinião do interlocutor, sem um direcionamento mais específico,
aumenta as chances de ocorrência de desvios do tema, prejudicando o desenvolvimento
do diálogo.
5. Dos desvios na entrevista ao vivo e suas consequências
Ao passo que uma entrevista impressa – e, às vezes, entrevistas televisionadas passa por um processo de edição que apaga praticamente todas as marcas de oralidade e
desvios temáticos, deixando apenas o realmente essencial para os objetivos da
matéria/entrevista; uma entrevista ao vivo não passa por esse “filtro”, o que acarreta
uma série de “problemas” que podem inclusive afastar a entrevista de suas
características originais ou pôr em xeque sua credibilidade.
Charaudeau (2009) afirma que
Problema de credibilidade igualmente na medida em que as
entrevistas de testemunho (e em alguns casos também as de expertise)
destinadas a autenticar os fatos são mais pretextos do que provas: a
fragmentação da entrevista (brevidade no tempo e interrupção das
respostas por comentários), a acumulação de testemunhas de opinião
(entrevista de rua) mais ou menos selecionadas em função do interesse
das respostas, produzem um efeito de “entrevistas-álibis” da
informação. (p. 217 – grifo meu)
O entrevistador pode expor suas opiniões, associadas a observações alheias a fim
de basear um questionamento e instigar seu interlocutor – vide item anterior – mas em
alguns casos as observações podem ser meros “assaltos de turno”, cortando o raciocínio
do entrevistado. Tais mudanças bruscas de turno não são comuns no contexto de uma
entrevista jornalística, sendo mais próximas da conversa formal, em que há uma
simetria entre os participantes.
Dependendo do contexto do programa de rádio e do tipo de participação do
entrevistado, certas “formalidades” podem ser excluídas, como a repetição de
informações mencionadas na introdução no decorrer e no encerramento da entrevista.
Ainda, a participação do entrevistador no comando da interação pode ser reduzida;
deixando que o convidado, embora seja o detentor de conhecimento do tema em
questão, conduza praticamente todo o processo, fazendo com que a entrevista se
assemelhe mais a um quadro fixo contendo apenas uma preleção com algumas
intervenções.
Na seção a seguir, vamos observar com o auxílio de exemplos a aparição destes
desvios, em especial da postura do entrevistador ao longo do diálogo e as consequentes
alterações na dinâmica do gênero praticado.
6. Análise do corpus
A entrevista escolhida para a análise neste trabalho foi realizada no dia
29/12/2009 e inserida no programa CBN Noite Total. Principiaremos as observações
pela introdução ao tema e ao entrevistado; seguindo para o posicionamento do
entrevistador e finalmente o posicionamento do entrevistado.
O início da entrevista segue o padrão de uma entrevista radiofônica (pode-se
dizer que dos outros suportes de entrevista também), apresentando de forma breve a
biografia do entrevistado, como visto na transcrição abaixo:
T: E assim como já de costume às terças-feiras, o
professor em engenharia de software da Universidade
Federal de Pernambuco e cientista chefe do Centro de
Estudos e Sistemas Avançados do Recife, o Sílvio Meira,
está aqui conosco no CBN Noite Total. Sílvio, tudo bem?
Cabe observar aqui que o apresentador abre a entrevista dizendo “como já de
costume às terças-feiras”, dando a entender ao ouvinte recém-chegado que a presença
daquele entrevistado é algo constante. Mesmo assim, este é apresentado – retomando a
afirmação de que o público de rádio está constantemente mudando.
No entanto, esta breve introdução não traz algo de praxe das aberturas de
entrevista: a apresentação do tema a ser abordado. Ele prioriza as boas-vindas ao
convidado e não chega a explicar de forma alguma o motivo pelo qual o entrevistado
está presente, deixando-se a menção do tema apenas para o momento da primeira
pergunta, transcrito abaixo.
T:Boa noite, tudo ótimo. Sílvio, a gente pode dizer que eh:
os e-books vão acabar com os livros de papel ou não?
S: No curtíssimo prazo, não; no longo prazo as chances
são muito grandes. Se a gente olhar pra os livros no
formato que a gente tá acostumado a ver, impressos numa
gráfica eles são uma instituição, uma indústria que tem
quinhentos anos ou pouco mais de quinhentos anos em/
T: De Gutemberg pra cá
S: É, de Gutemberg e seus sucessores pra cá.
T: Da Bíblia, né?
S: Exatamente. Que substituíram os monges copistas, e os
copistas em geral, né, o processo de cópia manual,
tediosa, custosa...
T: Imagina cada Bíblia escrita a mão uma a uma! Meu
Deus, hein, Sílvio?
S: Exatamente, com todas as edições que cada copista
achava que deveria ter, né, porque o original é, não era
exatamente a cópia que a gente lia, né...
Após a primeira pergunta, todas as intervenções do entrevistador (grifadas no
trecho transcrito anteriormente) não podem ser consideradas perguntas próprias de um
entrevistador. Apesar de as duas últimas intervenções se apresentarem como perguntas,
elas não contém de fato indagações próprias de uma pergunta para incitar o entrevistado
a falar. A primeira é um pedido de confirmação de informação provavelmente já
conhecida pelo próprio entrevistador (e talvez do público); e a segunda é um comentário
inserido em um momento de assalto de turno. Elas não chegam a ter a função de
inserção e apagamento de tópicos ao longo do diálogo, visto que o assunto permanece o
mesmo e o entrevistado apenas expressa concordância com a fala do
interlocutor/entrevistador e prossegue com o discurso correspondente ainda à resposta
da pergunta feita no começo da entrevista.
Apesar de não serem propriamente as perguntas para obtenção de novas
informações, as interferências do entrevistador servem como expressões de apoio, em
substituição aos “ruídos” – “hã”, “hmm”, “hãhã”. A forma como estas observações são
incluídas no meio do texto, como assaltos de turno no meio da fala do entrevistado,
chegam a poluir a transmissão tanto quanto um dos ruídos citados anteriormente.
O convidado continua sua fala livremente, sem qualquer controle por parte do
entrevistador – que deveria direcionar o diálogo para os fins propostos. Apresentamos
mais um trecho da entrevista a seguir, exemplificando a gradual redução da assimetria
entrevistador-entrevistado:
S: Isso é absolutamente impressionante. A Amazon ela
não diz exatamente qual mais ou quanto de: de cada coisa
ela não publicou esses dados.
T: Mas mais ou menos 51% ao ano.
S: É, exatamente. Disse claramente que neste Natal
vendeu mais livros eletrônicos do que livros em papel.
T: Os leitores de livros e: digitais foram uma das febres
do Natal dos Estados Unidos.
A esta altura da entrevista, fica claro que as “personagens” entrevistador e
entrevistado não existem mais. Muito pelo contrário, a partir do momento que ambos
apenas trocam impressões e informações sobre o tema proposto, como se estivessem
participando de um bate-papo informal. Há o discurso de outrem, presente através dos
dados vindos de um site de vendas; mas não existe o que se pode chamar de estratégia
argumentativa, seja para basear uma pergunta ou uma resposta. Ou seja, não há
mediação entre as partes, nem fechamento ou reintrodução de tópicos; em outras
palavras, não acontece a evolução do tópico proposto.
O entrevistador parece tentar retomar seu papel original mais adiante,
aproveitando-se do discurso de seu interlocutor para fazer a segunda pergunta da
entrevista:
S: É o no/no meu caso, por exemplo é o que eu faço. Eu
não tenho Kindle eh: por questões de praticidade eu
sempre tenho que carregar um laptop, de qualquer
maneira eu teria que carregar mais uma coisa, então eu
tenho o software do Kindle no meu PC e compro livros na
Amazon pra ler no meu PC.
T: É mesmo? Você acha mais confortável, Sílvio?
S: Eu acho muito mais prático. Se você pega por exemplo
tem: vamo pegar: um livro recente que tá na minha mão
tanto fisicamente quanto eletronicamente, é um livro do
Adrian Wordsworth, “How Rome Fell”, Como É Que
Roma Caiu onde ele desenvolve inclusive a tese
extremamente interessante de que quem derrubou Roma
foram os romanos, as/as brigas internas que mataram
muito mais gente que as invasões bárbaras e assim por
diante. Eu tenho esse livro em papel e tenho esse livro
eletrônico. Papel ele pesa mais de um quilo, trata-se de
um volume de seiscentas páginas grossas, capa dura
assim por diante, e eh: no meu na minha biblioteca
eletrônica no meu PC não pesa absolutamente nada.
Então quando eu tô em casa eu leio a minha cópia em
papel quando tô viajando eu leio a minha cópia
eletrônica. E eu tô acostumado a ler em tela de
computador, na verdade eu acho que todo mundo tá
acostumado a ler em tela de computador.
O entrevistador parece retomar o controle da interação, instigando o entrevistado
a confirmar a opinião recém-expressa, e assim abrindo um novo tópico no diálogo (a
praticidade dos livros eletrônicos). Porém, ao menos no primeiro momento, esta
retomada parece não surtir efeito. Seu interlocutor, desenvolvendo o discurso de forma
completamente livro, envereda por assuntos que são introduzidos de forma ancorada
(isto é, encontram base em um tema anterior), mas irrelevantes para a entrevista em si.
Finalmente, é importante ressaltar que ao longo do trecho aqui exposto, as
perguntas feitas foram baseadas apenas no pedido de opinião (“você acha que...”), sem
o apoio de dados que pudessem ajudar a construir uma argumentação a ser confirmada
ou refutada. Assim, as respostas se tornam mais “abertas” incorrendo no risco de
desvios de tópico, que é o que acontece na entrevista tomada como exemplo.
7. Considerações finais
Pôde-se observar na entrevista escolhida para análise que o entrevistador deixa
por alguns instantes a sua função e se coloca de alguma forma ao lado do entrevistado,
anulando a assimetria típica do gênero. Ainda podemos apontar a grande ocorrência de
assaltos de turno, o que não é propriamente uma característica da entrevista tal como a
conhecemos, mas é identificada como característica do debate ou da conversa informal.
No entanto, apesar da “anulação” de características que a entrevista sofre, não
podemos dizer que a atenção do ouvinte é perdida por completo. A “inversão” de
papéis, com o entrevistado fazendo às vezes de “comandante” da situação interacional
pode se mostrar até mesmo enriquecedora no ambiente radiofônico, aproximando mais
o enunciador do discurso de seus ouvintes e, consequentemente, aumentando o interesse
no tema proposto.
8. Referências bibliográficas
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ESSENFELDER, Renato. Marcas da Presença da Audiência em uma Entrevista
Jornalística. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 3, n. 4, março
de 2005. ISSN 1678-8931 (<www.revel.inf.br>)
KOCH, Ingedore G. Vilaça. A Construção dos Sentigos no Discurso: uma abordagem
sociocognitiva. In: Revista Investigações. Vol. 18, n. 2, 2006
OYAMA, T. A Arte de Entrevistar Bem. São Paulo: Contexto, 2008.
* Entrevista com Sílvio Meira, professor de Engenharia de Software da Universidade
Federal de Pernambuco e cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados de
Recife (CESAR). Exibida em: 29 de dezembro de 2009. Disponível em:
<http://cbn.globoradio.globo.com/cbn-noite-total/2009/12/29/E-BOOKS-VAOACABAR-COM-OS-LIVROS-DE-PAPEL.htm>
COMPETÊNCIAS PARA PRODUÇÃO TEXTUAL: O DISCURSO DE
PROFESSORES AVALIADORES
Ewerton Ávila dos Anjos Luna77
Kazue Saito Monteiro de Barros78
Beth Marcuschi79
RESUMO:
Este estudo visa a realizar reflexões sobre as competências propostas para a avaliação da produção textual
realizadas pelos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Para isso, então, foram
entrevistados nove professores de Pernambuco que participaram em 2007 do processo avaliativo. A
pesquisa possui caráter interdisciplinar; estando baseada, portanto, em pressupostos teóricos da
Pedagogia, da Linguística Textual e da Linguística Aplicada. Coube à Linguística Textual as concepções
que tomam o texto e a construção de sentido como centro de reflexão, e à Linguística Aplicada, a partir
das contribuições advindas da Linguística Textual, o trabalho com práticas relacionadas à educação, isto
é, o ensino e a avaliação da escrita em língua materna (KOCH, 2008; SCHNEUWLY & DOLZ, 2004;
entre outros). Além de fundamentos e postulados da Linguística, o estudo utiliza também os da
Pedagogia; em particular, os trabalhos de Perrenoud (1999) e Hadji (2001). Em relação ao discurso dos
avaliadores, além do destaque para as ações positivas que circundam as competências da produção textual
no Enem (como, por exemplo, a consideração de uma única competência destinada a questões
relacionadas à norma padrão), alguns problemas foram destacados. O objetivo não foi o de apresentar
“queixas”, mas sim problemas que proporcionaram reflexões. Não se pretendeu tampouco trazer soluções,
mas chamar atenção para aspectos que são passíveis à transformação.
PALAVRAS-CHAVE: Produção textual; competência; avaliação.
ABSTRACT: This study aims to reflect about competences proposed to evaluate texts produced by
participants of High School National Exam (Exame Nacional do Ensino Médio-ENEM). It was
interviewed teachers from Pernambuco that participated of the evaluation process in 2007. The research is
interdisciplinary since is based on theoretical presupposed of Pedagogy, Textual Linguistics and Applied
Linguistics. The conception of text and meaning construction as an aim of reflection comes from Textual
linguistics; and practices related do education, that is, teaching and evaluation in mother tongue from
Applied Linguistics (Koch, 2008; Schneuwly & Dolz, 2004; etc.). Beyond postulates of Linguistics, the
study is based on Perrenoud (1999) and Hadji’s (2001) works. In relation to evaluators’ discourse, beyond
the focus on positive aspects from the competences established for evaluating participants of Enem, some
problems were detected. The aim was not to present “complaints”, but problems which can be reflected. It
was not intended to create solution either, but calling attention to aspects that are susceptible to
transformation.
KEYWORDS: Writing; competence; evaluation.
1. Introdução
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) busca avaliar as estruturas
mentais que são desenvolvidas, ampliadas, alteradas e reafirmadas através de interações
77
Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Faculdade Santa
Catarina (FASC).
78
Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Programa de Pós-Graduação
em Letras (PPGL/UFPE).
79
Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Programa de Pós-Graduação
em Letras (PPGL/UFPE).
com o meio físico e social ao longo da vida do educando; particularmente aquelas que
estão relacionadas com as atividades escolares.
São consideradas para a avaliação, então, estruturas mentais que são
quantificadas e qualificadas através de competências e habilidades que estejam de
acordo com o que se espera de um aluno que chega ao término do Ensino Médio, ou
seja, após onze anos de formação escolar (para o ensino regular).
Considerando que a avaliação de textos escritos é uma das preocupações
recorrentes por parte dos que estão envolvidos com processos de avaliação e com o
trabalho de produção textual, este estudo tem como objetivos investigar como os
profissionais que participam do processo enquanto avaliadores se posicionam diante da
Planilha de Correção da Redação do Enem. Para isso, foram realizadas entrevistas que
constituem, portanto, dados da pesquisa.
O estudo torna-se relevante uma vez que investiga o tratamento dado à avaliação
da produção textual por uma esfera importante no âmbito do ensino de língua:
Ministério da Educação; e, ainda, por refletir acerca de um Exame que vem se
popularizando a cada ano.
2. Avaliação da produção textual: pressupostos teóricos
Segundo Conceição (2002, p.46), “o aluno tem criado uma espécie de temor pela
escrita, e o professor tem se excluído enquanto possível interlocutor do texto do aluno,
passando a exercer a função, quase exclusiva, de juiz, de avaliador”.
Geraldi (2002, pp. 128-129), ao questionar como as produções de alunos são
avaliadas, destaca que muitas vezes a escola prepara para a vida “encarando-se o hoje
como não vida”. Existe, então, um aluno-função que escreve para a função-professor, ou
seja, há uma descaracterização dos sujeitos. Segundo o autor, nós, professores,
“precisamos nos tornar interlocutores para, respeitando-lhe a palavra, agirmos como
reais parceiros: concordando, discordando, acrescentando, questionando, perguntando,
etc.”.
A dificuldade de alunos não se dá pela ausência de interlocutor, e sim pela forte
presença da imagem da escola como “grande interlocutor” (BRITTO,1983). Em
consonância, Leal (2003, p. 55) afirma que a lógica escolar elimina “a atitude
responsiva ativa, pois o aluno sabe de antemão que nada ou muito pouco pode esperar
como resposta efetiva do que produz”. Destaca, ainda, que propósitos indefinidos ou
objetivos obscuros também trazem sequelas para o processo de ensino e aprendizagem.
Portanto, critérios devem ser claramente estabelecidos. Como menciona Koch (2008), o
produtor de texto toma decisões variadas que comportam os âmbitos gramatical,
estilístico, semântico, pragmático, etc. O professor, por sua vez, ao avaliar, deve estar
ciente disso e conceber que estes âmbitos estão imbricados na produção de efeitos de
sentido.
Devido à natureza processual da escrita, trabalhos no campo da produção textual
(FERREIRO, 1996; ABAURRE et al., 1997; ROCHA, 2003; entre outros) enfatizam
um ponto de vista da avaliação que leva em consideração não apenas o produto final do
texto, mas também todo o processo de escritura como a revisão e a refacção. Rocha
(2003, p. 73), por exemplo, entende a revisão:
Como um procedimento que permite não apenas ver melhor mas,
também, ver de outra perspectiva, na medida em que, durante a
produção da primeira versão do texto, o aprendiz tem sua atividade
reflexiva centrada em aspectos como: o que dizer, como dizer, que
palavras usar... Durante o processo de revisão, a aluno tem
possibilidade de centrar esforços em questões pertinentes ao plano
textual-discursivo, como dizer mais, dizer de outro jeito, analisar e/ou
corrigir o que foi dito...
Em relação ao trabalho de reescrita, Ruiz (2001) destaca a importância de que,
mesmo que esta etapa ocorra após a leitura e as sugestões do professor, o aluno seja o
responsável para encontrar os recursos que melhorarão seu texto. Segundo a autora, “o
grande proveito possível que o aluno pode tirar, em função de uma intervenção do
professor em seu texto, é aquele que advém também de um esforço pessoal seu...”
(p.78). Para Ruiz, a avaliação resolutiva incita o aluno a apenas realizar atividade de
cópia enquanto reescrita, impedindo assim a oportunidade de reflexão.
Nessa perspectiva, o erro é concebido como fundamental para a aprendizagem
(Perrenoud, 1999). Ferreiro (1996), em estudo sobre crianças, afirma que não se pode
esperar que ela saiba fazer perfeitamente aquilo que ainda estão aprendendo, por isso
não se pode aplicar os juízos advindos da norma adulta (absoluta). Abaurre, Fiad e
Mayrink-Sabinson (1997, pp. 16-17), afirmam que:
Durante um longo período, os estudos e práticas pedagógicas
ignoraram o fato de que os “erros” cometidos pelos aprendizes de
escrita/leitura eram, na verdade, preciosos indícios de um processo em
curso de aquisição da representação escrita da linguagem, registrando
os momentos em que a criança torna evidente a manipulação que faz
da própria linguagem, história da relação que com ela (re)constroí ao
começar a escrever/ler .
Suassuna (2004) compartilha com as ideias citadas ao entender que o processo
avaliativo ganha qualidade quando os erros são interpretados como correspondente ao
nível de entendimento e domínio sobre recursos linguísticos. A avaliação dos erros
junto aos alunos significa “promover um trabalho de reflexão sobre a língua e suas
peculiaridades, uma atividade de construção/apreensão de suas regras de
funcionamento” (p.139).
Esses posicionamentos em relação ao erro, à forma como o texto é concebido,
aos aspectos contextuais, etc., podem ser observados a partir dos ganhos advindos das
teorias do discurso. A concepção de linguagem como trabalho social “mostra que não se
trata de aprender uma língua para dela se apropriar para, posteriormente, usá-la; trata-se,
antes, de usá-la em processos interativos...” (SUASSUNA, 2004, p.133). Mas nem
sempre, essa visão foi preponderante às demais. O que é avaliado nas produções
textuais dos alunos está diretamente relacionado à concepção de língua que subjaz a
prática do docente. Segundo B. Marcuschi (2004, p. 4),
Os critérios selecionados e atualizados pelo professor de língua
materna nos procedimentos avaliativos podem ser vistos como fortes
indicadores dos valores linguísticos e culturais que vigoram em
ambiente escolar (e mesmo na sociedade de modo mais amplo) a
respeito da linguagem.
Durante muito tempo, se concebeu a língua como um sistema homogêneo; como
consequência, eram avaliados nos textos principalmente aspectos estruturais referentes
ao código como, por exemplo, a ortografia. Suassuna (2004, p. 117) ao abordar está
perspectiva afirma que:
As observações do professor incidem sobre uma única versão do
texto, que não será reescrita pelos alunos, e sim ‘avaliada’, ‘corrigida’,
ou ‘passada-a-limpo’. Deriva daí um apagamento da heterogeneidade
e da singularidade das práticas de textualização: estabelecem-se, entre
sujeito e texto, relações lineares, higiênicas e objetivas.
Por outro lado, o ensino de produção escrita por parte daqueles que concebem a
língua como forma heterogênea de interação sócio-historicamente situada está voltado
para condições efetivas de uso (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004). Na avaliação, são
considerados como critérios importantes não apenas estruturas gramaticais, mas o uso
de recursos expressivos que a língua oferece em prol da construção de sentidos. Para
Suassuna (2004, p. 138), o professor ao avaliar se posiciona como um “interlocutor
verdadeiro do aluno, um co-autor de suas produções, na medida em que interpreta,
opina, sugere, corrige, orienta, atribui valor”.
3. Os avaliadores e as competências: análise dos dados
Neste tópico serão discutidas as entrevistas coletadas conforme explicitação na
introdução. A análise foi feita à luz do referencial destacado e tem o propósito de
investigar como os avaliadores do ENEM se posicionam em relação ao processo às
competências presentes na Planilha de Correção da Redação.
Ao serem questionados em relação à distribuição equitativa de critérios da prova
no que se refere à composição das notas, os avaliadores, de modo geral, destacaram e
concordaram com o fato de não haver ênfase na competência I, ou seja, aspectos
relacionados ao uso do padrão – tanto questões de escolha de registro quanto o
conhecimento estrutural da língua escrita – não são sobressalentes (corresponde a 20%
da nota) em relação a outros fatores que colaboram para a textualidade da produção do
participante (como pode ser verificado nos fragmentos seguintes). Os avaliadores
entrevistados concebem que um bom texto não é aquele que apenas apresenta
excelência em ortografia, acentuação, regência verbal, etc.; e que o Eenm abarca a
tendência preconizada pelos estudos linguísticos atuais e documentos oficiais para a
realização do trabalho com a produção escrita na escola.
Av7: eu só não acho que correção de redação deve de maneira nenhuma
deve privilegiar
acho inclusive que não acontece mais esse tipo de correção
gramática e só isso
o texto está bonitinho estruturado gramaticalmente perfeito mas é vazio de ideias
Essa postura discursiva dos avaliadores foi confirmada junto a sete avaliadores
no momento em que deixaram suas marcas nos textos ao realizarem a avaliação
solicitada pelo pesquisador. Enquanto a maior parte dos avaliadores teceram
comentários relacionados tanto a aspectos estruturais quanto a questões temáticas como
clareza, progressividade, coerência, recursos coesivos, etc.; outros, apesar de afirmar
que um bom texto é composto por uma série de fatores, destacaram majoritariamente
aspectos estruturais no momento da avaliação.
Em relação à competência dois, três aspectos são destacados pelos avaliadores: o
não trabalho com gêneros textuais, os gêneros utilizados na proposta e a fuga ao tema.
Como pode ser observado no trecho seguinte, Av1 demonstra sentir falta na
proposta de redação do Enem o trabalho com a diversidade dos gêneros textuais, ou
seja, considera como aspecto negativo o fato da avaliação considerar apenas a tipologia
do texto.
Av1: eu acho que aqui [aponta a planilha impressa]
eles atendem a muitas coisas que são pregadas pelos PCN
pelo MEC
que são requisitados até pelos estudos linguísticos atuais
então acho que muitas coisas têm aqui
mas eu ainda sinto falta de algum critério ou de um desses itens valorizar mais a
questão dos gêneros
mas isso vem também da proposta...
a própria proposta/
ela não se baseia em gêneros
então como é que os critérios/
eles contemplariam as questões de gêneros em algum lugar?
se a própria proposta não pede?
por outro lado a gente não sabe o que motiva esses grandes concursos a não trabalharem
com gêneros
porque é a mesma discussão...
quem vem primeiro: o ovo ou a galinha?
A proposta do ENEM não contempla de fato a produção de gêneros
diversificados, apesar de existir a presença de vários gêneros textuais ao longo da prova
objetiva e nos textos-estímulo da própria proposta, onde se encontra texto não-verbal,
letra de música, trecho de Declaração Universal, etc. Entretanto, a produção é restrita ao
tipo argumentativo (assim como já foi discutido no capítulo anterior).
A presença de textos na Proposta de Redação foi considerada, pelos avaliadores,
como recurso importante de estímulo e motivação para a produção de texto.
Av5: a proposta ajuda
por quê?
quando eu era estudante... era colocado apenas um tema
e esse tema era colocado no quadro
‘olha o tema aqui’
era como se fosse uma loteria...
a gente tinha que adivinhar... tinha que ser mãe Diná
Entretanto, ao ser indagado sobre o assunto, Av7 afirma que alguns gêneros
podem trazer certas dificuldades ao participante.
Av7: eu acho que colabora sim
o que eu acho que nunca vai colaborar e sempre vai atrapalhar
independente da quantidade de textos
é porque nossos alunos de maneira geral não são leitores
então... para alguns pode até dificultar porque são mais textos
então vai confundindo
/.../
compreender uma proposta no âmbito de reflexão
exige que você leia aqui... leia aqui...
reflete... vai à leitura de imagens...
vai aqui também...
algum texto de orientação ideológica como a declaração universal contrapondo-se à música
popular...
isso tudo colabora para quem tem a habilidade mínima de leitura
para refletir... para parar e juntar as peças
mas para quem não tem pode ser só o título
como pode ser/
eu acho que nem vai nem vem.
a única diferença é que cada vez que você procura nas provas
você vai perceber que eles usam isso aqui
então... nesse sentido eu acho que essa proposta aqui ajuda
mas também pode até atrapalhar
atrapalha porque em geral os alunos não estão preparados
Para exemplificar esta situação, pode-se contrapor o ano de 2006. O tema da
redação em 2006 foi “O poder de transformação da leitura”. Na proposta havia um
trecho do texto “O poder das letras” (Moacyr Scliar) que narra, em primeira pessoa, a
introdução à leitura na infância do escritor. A presença deste texto pode ter sido uma das
razões para grande quantidade de textos essencialmente narrativos e autobiográficos
naquele ano (Luna, 2007). Em 2008, observa-se empiricamente que a quantidade de
participantes que não produzem o texto dissertativo-argumentativo é muito pequena.
Como explicação para o fato, tem-se a proposta criada a partir do texto “A máquina da
chuva”, artigo publicado na Folha de São Paulo, em que são sugeridas três ações para a
preservação da Floresta Amazônica e solicitado que o participante escolha uma das
ações e ressalte suas possibilidades e limitações.
Apesar da possibilidade de certos gêneros da proposta propiciarem dificuldades
ao participante, como foi exemplificado anteriormente, acredita-se que a variação deva
existir. Os PCNs regem que o trabalho com texto na escola deve basear-se na
diversificação textual. Portanto, o concluinte ou egresso do Ensino Médio devem ter
aptidão para realizar leitura e produzir textos variados de forma competente.
O terceiro aspecto está relacionado à fuga ao tema. Assim como foi discutida a
questão no capítulo anterior, neste capítulo é mostrada a discordância por parte dos
avaliadores do texto que foge totalmente a temática proposta com a reafirmação de que
compreender a proposta é essencial para o desenvolvimento do texto. Para Av5, levar
em consideração apenas a competência I e desconsiderar as outras faz com o texto seja
visto como partes passíveis de serem separadas. Para Av7, a correção de textos que
fogem ao tema incentiva à fuga e o desenvolvimento de fórmulas prontas de cursinhos,
além de ser injusto perante os que tentam, mesmo com dificuldades, desenvolver a
temática solicitada.
Av5: uma coisa que eu achei errada
pra mim... fuga do tema é zero
agora eu não sei que critério ou que critérios as pessoa utilizaram pra/
porque eu sei que a proposta do ENEM é avaliar o aluno
a estrutura é um dos itens de avaliação?
É... mas eu não entendo
eu não consigo entender um corpo sem cérebro [risos].
então se ele fugiu ele não atendeu...
se ele fugiu... ele não entendeu a proposta... ele não discutiu...
se a proposta é fazer com que o aluno se coloque...
ele não se colocou
Av7: então... às vezes... uma pessoa que por mais dificuldade que tivesse
tentou aos trancos e barrancos desenvolver aquele tema
tirava nota igual a uma pessoa que desenvolveu outro tema
então você dá margem para que as pessoas fujam
assim...
as pessoas que falavam de futebol de aquecimento global
eles tinham as mesmas notas às vezes que uma pessoa que teve dificuldades em produzir
mas tentou produzir o tema
aí eu discordava
uma opinião pessoal
eu só achava o seguinte...
fuga ao tema tem que ser zero
porque se você sabe no mínimo ter domínio da língua
o mínimo de tentativa de pensar
de falar um pouco sobre o tema...
Sobre as competências III e IV, o maior alvo de comentários foi a dificuldade de
enquadrar o texto do participante nos níveis do contínuo de conceitos.
Av3 [ao avaliar um texto]:
esse aqui [participante] é bastante frágil...
eu ficaria no 1
‘apresenta fatos e opiniões precariamente relacionados ao tema’
‘apresenta informações fatos e opiniões ainda que pertinente ao tema proposto mas com
pouca articulação e ou contradições...’
não... eu ficaria com o 2
Em relação à competência V, as opiniões dos avaliadores foram bastante
diversificadas. Quatro avaliadores julgaram-na essencial uma vez que colabora com a
formação do cidadão autônomo, ativo, crítico e solidário.
A competência V estaria de acordo, então, com os PCNEM quando estes
afirmam, por exemplo, que:
Diante desse mundo globalizado, que apresenta múltiplos desafios
para o homem, a educação surge como uma utopia necessária
indispensável à humanidade na sua construção da paz, da liberdade e
da justiça social (2000, p.13).
Por isso, é critério de avaliação não apenas a forma como o participante se
coloca diante de um determinado tópico, mas também como traz propostas de ação que
estejam de acordo com os Direitos Humanos. Sob essa ótica, pode ser entendido o
próximo fragmento:
Av3: a proposta de intervenção e respeito aos direitos humanos/
mostrando aquilo ali como uma eh::
tudo que você for sugerir... for finalizar... for amarrar...
você tem que observar
você tem que estar ligado também ao respeito ao outro
ao individuo né?
aos direitos do cidadão como homem
porque pode ser que tenha algum louco ali que diga “exterminar tudo”
que seja um seguidor de Hitler
que queira aperfeiçoar...
então isso aí... “mas é minha opinião”
mas aí ele está fugindo
como a gente sabe que tem muitas cabeças hoje em dia meio (não compreensível)
eu achei interessante isso aqui.
Av1, como pode ser observado adiante, acredita que boa parte dos participantes
possui dificuldades no desenvolvimento da competência. Seria esta, então, uma
competência que talvez não tenha muito espaço no cotidiano escolar e por isso seja tão
comum encontrar nas produções dos alunos e dos participantes a solução “é preciso que
os homens se conscientizem” sem ao menos indicar ou sugerir caminhos para tal.
o que encontrava era “amenos uns aos outros”
“não devemos julgar para não sermos julgados”
que são propostas sim
mas até que ponto essa proposta
ela tem argumentação suficiente?
normalmente é lugar comum não é?
A dificuldade por parte do aluno para o desenvolvimento da competência
também é destacado por Av7, para quem as questões ideológicas (imbricadas à
competência) não encontram espaço para se fazer presente nos textos da grande maioria
dos participantes.
/.../ eu mesmo não vi nenhum desses todos aí que desrespeitasse os direitos humanos... eles
nem chegavam perto de respeitar
a maioria deles/
eles estavam muito mais em um nível de discussão tão frágil
que não chegavam a ter um posicionamento ideológico que viesse de encontro a direitos
humanos
ou qualquer coisa desse tipo
Houve também avaliador que, apesar de achar importante a presença da
competência, acredita que de certa forma direciona demais o texto do aluno. Primeiro
por impor que o texto deva ter necessariamente uma proposta de intervenção (Av7) e
segundo por esta ter que estar de acordo com os Direitos Humanos (Av3).
Av7: aqui eu tinha muita dificuldade
porque eu via que algumas pessoas não elaboravam proposta nenhuma
e aqui não tinha a opção
então eu pensava... sim e o que é que a gente faz pra quem não elabora proposta?
aí vai dar o mínimo porque é o mínimo
mas não tem na::da a ver com o que aconteceu no texto do aluno
Av3: ele tem que ter essa perspectiva do outro... da sociedade
isso pode até
digamos desviar um pouco
ou amarrar um pouco
ou comprometer um pouco a ideia dele...
porque alguém pode dizer que não...
quer dizer... alguém pode até concordar com o preconceito
não pode concordar?
se ele fizer uma apreciação dessa
concordando com o preconceito e querendo marginalizar
ou querendo discriminar um determinado contingente da sociedade
ele vai ser penalizado aqui
então isso aí amarra um pouquinho
4. Considerações finais
Após a discussão sobre o discurso de professores avaliadores da produção escrita
dos participantes do ENEM, faz-se relevante, à guisa de conclusão, tecer comentários
sobre a avaliação em larga escala uma vez o Exame se caracteriza como tal.
Duas grandes finalidades da avaliação em larga escala são: (1) selecionar, como
é feito nos vestibulares e concursos, (2) e identificar a real situação dos sistemas de
ensino através da aprendizagem do aluno (HADJI, 2001). Em relação à primeira, podese afirmar que a proposta é classificar os candidatos, e assim hierarquizá-los.
Sobre esta segunda, foco do ENEM, pode-se afirmar que avaliar os sistemas de
ensino, no geral, e as escolas, as IES, os professores, os recursos teórico-metodológicos
que guiam o ensino, em particular, é uma tendência que vêm sendo desenvolvida em
vários países. No Brasil, pode-se citar, por exemplo, a partir da década de 1990, a
criação do SAEB, Sistema de Avaliação da Educação Básica; do ENC, Exame Nacional
de Cursos, conhecido por Provão – hoje ENADE – Exame Nacional de Desempenho de
Estudantes, avaliando o Ensino Superior. Além de exames criados mais recentemente
como a Prova Brasil, que avalia apenas estudantes de ensino fundamental de 4ª e 8ª
séries e o Encceja, Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e
Adultos.
Para abrir espaço para que discussões futuras sejam feitas sobre as competências
do ENEM e seu processo avaliativo, conclui-se com as seguintes perguntas: Será que
após os resultados são sempre criadas políticas para redirecionamento de práticas? Será
que os relatórios produzidos são acessíveis aos professores? Será que as IES privadas
não desvirtuam suas práticas para se preparar para uma avaliação e depois usar o
resultado como estratégia de marketing? Até que ponto os resultados indicam a real
situação da educação no país?
5. Referências bibliográficas
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ENSINO DE LÍNGUA ESPANHOLA PARA BRASILEIROS: LÍNGUA,
CULTURA E IMAGINÁRIO
Fabiele Stockmans De Nardi80
RESUMO: Neste trabalho nos propomos a olhar para as concepções de língua e/ou cultura que sustentam
algumas metodologias de ensino de línguas estrangeiras para discutir o imaginário sobre a língua e seu
ensino que, então, a partir delas se constrói. Amparados pelo aparato teórico da Análise do Discurso de
linha francesa, nosso objetivo é observar como esse imaginário se materializa nas propostas apresentadas
por alguns livros didáticos para o ensino de língua espanhola utilizados no Brasil, observando,
especialmente, os efeitos produzidos por uma concepção de língua como instrumento de comunicação
para o modo de se olhar para a língua do outro e seu ensino. Nesse percurso, algumas recorrências, como
um desejo de silenciamento da língua materna e da instauração de uma comunicação sem ruídos, e a
construção do livro didático como o espaço do saber, permitirão vislumbrar os efeitos das escolhas
metodológicas para a construção dos lugares de professor e aluno no livro didático, bem como o
imaginário sobre a língua espanhola que atravessa esses dizeres acerca de seu ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Língua; imaginário; cultura; ensino de língua espanhola.
RESUMEN: En este trabajo proponemos un análisis las concepciones de lengua y cultura en diferentes
metodologías de enseñanza de lenguas extranjeras con el propósito de determinar el imaginario sobre la
lengua y su enseñanza que a partir de ellas es construido. La teoría en que da soporte a nuestros análisis es
la escuela francesa de Análisis del Discurso y nuestro objetivo es discutir el modo como se materializa
este imaginario en las propuestas de algunos libros didácticos para la enseñanza de la lengua española que
se utilizan en Brasil. Observamos, especialmente, los efectos que produce una comprensión de lengua
como instrumento de comunicación para la manera como comprendimos la lengua extranjera y su
enseñanza. En nuestros análisis apuntaremos lo que consideramos recurrencias presentes en estas
metodologías de enseñanza y en los libros didácticos, a ejemplo de un aislamiento relación a la lengua
materna del sujeto-aprendiz; la insistencia en una comunicación sin ruidos y la presentación del libro
didáctico como un espacio de saber. Esto, entendimos, nos permite pensar los efectos de las concepciones
metodológicas para la construcción de los espacios de profesor y alumno en el libro didáctico y también
el imaginario sobre la lengua española presente en estos materiales.
PALABRAS-CLAVE: Lengua; imaginario; cultura; enseñanza de lengua española.
1. Introdução
As discussões em torno das concepções de língua e cultura que sustentam
propostas de ensino, em nosso caso de ensino de línguas estrangeiras, não são novas e
tampouco podem ser resumidas em poucas linhas. Certo é que ao pensar o ensino de
língua estrangeira acabamos por nos aproximar dessas discussões, em nosso caso
pensando no modo como se refletem em materiais didáticos produzidos para o ensino de
língua espanhola.
O olhar que propomos instaurar sobre esses movimentos é aquele forjado pela
Análise do Discurso de linha francesa (AD), que pensa a língua como um sistema
habitado pela falha, pela falta, atravessado pela incompletude e, portanto,
essencialmente heterogênea. Língua que convoca a pensar a cultura, o que pensamos
80
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco.
sobre cultura, a relação do sujeito com a cultura, porque é pela língua que os sujeitos se
dizem sujeitos e, portanto, dizem de si e do que os constitui, dos imaginários que
sustentam o seu modo de olhar para o outro e o que o cerca.
2. Língua materna e língua estrangeira: entre o acolhimento e a recusa
Quando falamos de sujeitos e de seu trabalho de ensinar-aprender uma outra
língua, podemos dizer que pensamos em um ser entre, que se situa, em muitos
momentos, num lugar intervalar entre o materno e o estrangeiro, entre a sua língua e a
do outro. Esse encontro, às vezes confronto, entre a língua materna e a língua
estrangeira, materializa-se, de certa forma, no espaço que se dá à língua materna do
aprendiz, o modo de tratá-la em diferentes metodologias de ensino de línguas.
De forma bastante sucinta, podemos dizer que há dois grandes movimentos que
marcam a história da didática das línguas no que se refere à relação língua maternalíngua estrangeira. O primeiro deles é caracterizado basicamente por práticas de ensino
que tem como elemento central a língua materna do aprendiz. Foi o que caracterizou,
por exemplo, o Método Tradicional (séc. XVIII), também conhecido como Gramática
Tradução, cujo objetivo era o ensino do Grego e do Latim. No MT a aula era ministrada
na língua materna do aprendiz, e girava em torno do ensino da gramática e da
tradução/versão de textos.
Quando o MT teve sua eficácia questionada como metodologia de ensino de
línguas estrangeiras, em meados do século XX81, opõe-se a essa prática o Método
Direto (MD), cujos princípios se constroem pela observação dos processos de aquisição
da língua materna pela criança. Compreende-se, no MD, que a aprendizagem de uma
língua estrangeira depende do contato direto com essa língua. Sendo assim, a língua
materna do aprendiz, que tinha até então um lugar de destaque, passa agora a um espaço
marginal, já que a recomendação era evitar-se ao máximo o exercício da tradução ou
qualquer outro recurso à língua materna do aprendiz. Uma das implicações desse
deslocamento é que o texto escrito, base de estudo no MT, passa para um segundo
plano, e a ênfase recai sobre o trabalho com a oralidade, recorrendo-se, para tanto,
preferencialmente aos diálogos situacionais.
O que estava em jogo era o acesso à tradição cultural e literária produzida nas
línguas-alvo. O estudo da língua, tratada então como um conjunto de regras a serem
apreendidas, era o caminho para se chegar a essa tradição. Ao refletir sobre a questão,
em um trabalho anterior (De Nardi, 2007) comentamos que no MT que aprender o latim
era, então, inserir-se num universo de cultura, tornar-se um homem de cultura.
Se no MT a língua era o caminho para se chegar aos textos, no MD o olhar se
volta para a língua mesma, a língua estrangeira que se pretendia adquirir. Segundo
Galisson e Coste (1983, p.206), esse método “privilegia a expressão oral e o recurso
imediato e constante à língua estrangeira” (o «banho de língua»). Esse banho de língua,
no entanto, vem acompanhado, como vimos anteriormente, de uma recusa à língua
81
A busca de novas metodologias de ensino deve-se, em grande medida, a um deslocamento do interesse
para outras línguas estrangeiras que não o Grego e o Latim, o que gerava, portanto, novas configurações
para esse ensino.
materna do aprendiz, que passou a ser vista, então, como uma indesejável presença no
contexto de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira, já que o desejo era levar o
aluno a pensar na língua estrangeira, o que pressupunha fazer do espaço da sala de aula
uma “ilha” na qual pudesse o aprendiz afastar-se da sua língua materna. Subjaz a essa
ideia a compreensão de uma relação direta entre a percepção acústica e a compreensão
mental, daí o uso exclusivo da língua estrangeira nas interações. Assim, repetindo
estruturas, o aprendiz iria adquirindo esse novo código, apreendendo as leis naturais
dessa língua, de modo similar ao que faz a criança quando aprende a falar.
Duas observações nos parecem importantes nesse momento para pontuar a
relação língua materna–língua estrangeira no MD: a primeira, é compreensão de que
nada pode trazer, o aprendiz, de sua língua materna, que não seja a produção de
interferências nessa língua estrangeira, as quais fatalmente o levariam ao erro; a
segunda, aquela da possibilidade de que o sujeito “abandone” a sua língua, se afaste
dela para se inserir nesse espaço da língua estrangeira como se fosse uma página em
branco.
O trabalho, portanto, com a língua do outro se baseia em repetir estruturas para
assimilar seu funcionamento. Desse modo, embora deixe de ser a tradução o exercício
básico sobre o qual se sustenta o ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira, a
concepção de língua que sustenta essas práticas é a de uma língua apreensível em sua
totalidade e que está a serviço da expressão do pensamento. No MD é ainda mais forte a
idéia de língua como um sistema fechado, transparente a ser dominado pelo aprendiz,
que nas estruturas que repete encontra a possibilidade de dizer tudo o que deseja por
meio dessa língua.
E é justamente essa compreensão de língua como um sistema fechado e isolado
de tudo o que o cerca que permite olhá-lo, também, como se não tivesse com o sujeito
outra relação senão a de um falante com o código que domina, código, portanto, que
pode “abandonar” quando em contato com outro. Daí a ilusão de que é possível separar
o sujeito de sua língua materna, porque não implica a língua na construção de sua
identidade, ignorando-se, portanto, aquilo sobre o que tão bem falou Revuz (1998) ao
mostrar-nos que o contato com uma outra língua, que não a nossa língua materna,
produz modificações nas construções identitárias desse sujeito, e, portanto, no modo
como se relaciona com a sua própria língua, porque encontra na língua do outro a
possibilidade de olhá-la a partir de outro lugar. Por isso, entendemos, trata-se de uma
ilusão o desejo de sair da língua materna para mergulhar nesse espaço estrangeiro,
porque somos a nossa língua, porque é essa materialidade que constitui a nossa
identidade.
Esse afastamento em relação à língua materna do aprendiz também está presente
nas propostas dos métodos áudio-oral e audiovisual que ganharam destaque nas
décadas 40 e 50 do século XX. O primeiro possuía fortes ligações com o behaviorismo
e o distribucionalismo, concebendo a língua como um conjunto de hábitos, que
poderiam ser adquiridos pelos alunos através de um processo automático de estímuloresposta. Segundo Galisson e Coste (1983, p. 80), essa talvez tenha sido uma das
críticas mais ferrenhas ao método áudio-oral, ou seja, a aplicação das teorias
skinnerianas de condicionamento na aprendizagem das línguas vivas. O segundo se
afasta das hipóteses skinnerianas, justamente por insistir na relação entre a linguagem e
a situação de interação, mas o lugar da língua materna na aula de LE segue sendo
marginal, já que sustenta o método audiovisual uma recusa de que a aula passe pela
língua materna do aprendiz, ou seja, a imagem é o mecanismo pelo qual se busca
produzir a compreensão nessa língua estrangeira, evitando-se a tradução como recurso
pedagógico.
É, portanto, distanciando-se das interferências da língua materna do aprendiz
que deve se construir o domínio dessa outra língua, o que no Método audiovisual
encontra seu lastro no recurso à imagem, a qual deve substituir a necessidade de se
buscar na língua materna do estudante as explicações acerca dos elementos estudados na
língua estrangeira. De certa forma, o que se faz é uma “tradução” não pelo recurso à
língua, mas por meio da identificação, pelo aprendiz, do que uma palavra nomeia no
mundo, como se ela estivesse colada desde sempre ao objeto a que dá nome. Esse
procedimento nos situa no espaço das concepções naturalistas de língua, em que ela é
compreendida como um repertório de palavras, cada uma correspondendo a um
referente no mundo exterior.
O MD, embora tenha sofrido inúmeras revisões, influenciou de maneira
significativa o modo de se conceber o ensino de uma língua estrangeira, assim como o
fizeram os métodos áudio-oral e audiovisual. Se olharmos especificamente para essa
relação materna-estrangeira, veremos que há, atualmente, um afastamento em relação à
ideia de um efeito nocivo do recurso à língua materna no processo de ensinoaprendizagem de uma outra língua, concepção, que, no entanto, deixou marcas nas aulas
de língua estrangeira e nos materiais produzidos com essa finalidade. Não é raro que
encontremos orientações no sentido de que o professor evite a língua materna, lançando
mão de outros recursos. Da mesma maneira, é recorrente, também, a concepção de
língua como código a ser apreendido para que, através dele, possa o falante expressar o
que seu pensamento deseja, ou seja, pode/deve o falante dominar a língua e utilizá-la a
serviço de sua expressão.
Fundamenta-se, assim, o domínio do código numa anterioridade do pensamento
em relação à expressão, como se fosse possível encontrá-los separadamente e como se
essa última fosse meramente uma forma de torná-lo visível, engano para o qual já
alertava Bakhtin (2002(a)) em seus escritos, quando dizia que é a expressão que
organiza o pensamento, sem a qual ele não é senão uma massa dispersa. Ou seja, não
pensamos para depois traduzir em língua o que pensamos, é na língua que organizamos
o pensamento, pensamos em língua. Uma visão instrumental da língua, código
transparente a ser memorizado, leva a uma anulação do papel do sujeito em sua relação
com a língua e, portanto, também da língua como formadora de sua identidade.
As marcas a que nos referimos anteriormente dizem respeito a um desejo, que
embora minimizado, ainda presente em alguns livros didáticos (LDs82) para o ensino de
língua espanhola utilizados em nosso país: o de um distanciamento em relação à língua
materna do aprendiz. Esses materiais, em geral, não preconizam abertamente a exclusão
82
CERROLAZA, M.; CERROLAZA, O.; LLOVET, B. Planet@ E/LE. Madrid: Didascalia, 2001.
(LD1)
CASTRO, F. et. al. Nuevo ven. Libro del profesor. Madrid: Didascalia. (Utilizamos apenas o livro do
profesor, porque ele reproduz o livro do aluno e inclui o material adicional) (LD2)
BRUNO, F. C.; MENDOZA, M. A. C. M. Hacia el español – curso de lengua y cultura hispánica. 6ª ed.
Reform. São Paulo: Saraiva, 2004. (LD3)
BOROBIO, V. Nuevo ELE. Curso de español para extranjeros. Madrid: Ediciones SM. (LD4)
da língua materna da sala de aula de língua estrangeira (como o fariam se seguissem a
proposta do MD), declarando, por vezes, fazer uso de comparações do espanhol com a
língua portuguesa83, mas tendem a orientar o professor a evitar o recurso à tradução e
fazer uso de imagens como forma de substituir as comparações com a língua materna.
Além disso, quando se convoca a língua materna do aprendiz, em geral isso é feito de
maneira muito pontual e para tratar de questões de ordem puramente gramatical.
Em LD1, por exemplo, na Versión Mercosur, em que se inclui o recurso a
comparações com a língua portuguesa, isso ocorre apenas em dois momentos e nos
seguintes moldes:
La preposición A
En los casos que te presentamos a continuación, verás que la preposición “a”
tiene un uso distinto en español y en portugués. Para evitar errores te
proponemos las siguientes actividades. (grifo nosso).
1. Observa las siguientes frases. (a que seguem exemplos de construções com
ou sem o uso de preposição em espanhol)
2. ¿Cuándo debe usar la preposición A? Completa el siguiente esquema.
3. Redacta dos oraciones con cada uno de los verbos siguientes: una usando
la preposición A, otra sin ella. (LD1, pp.159-160)
Pronombres personales átonos
En el portugués hablado de Brasil es poco común el uso de pronombres
átonos (me, te, se, lo, la le, nos, os, los, las, les.). Si bien se utilizan en la
lengua escrita, son infrecuentes en la lengua hablada, En cambio, en español
estos pronombres se emplean abundantemente al hablar y al escribir, por eso
este tema le resulta particularmente complicado al/ a la alumno/a brasileño/a.
Por lo tanto, proponemos aquí una serie de actividades que te ayudarán a
automatizar los usos. (LD1, p. 166) (A essa explicação seguem exercícios
de perguntas e respostas e de preenchimento de lacunas, cujo foco é o
emprego dos pronomes pessoais átonos na língua espanhola).84
Pode-se perceber que o foco é puramente gramatical e tem o objetivo de evitar
erros e levar à automatização dos usos na língua-alvo. Deve-se acrescentar a isso que
tais observações não são apresentadas no decorrer das lições do livro, mas em um
anexo, o que nos leva a questionar a efetiva importância dada ao trabalho com a língua
materna do aprendiz, o que certamente exige muito mais do que o recurso a
comparações pontuais de elementos gramaticais das línguas. Nesse material
complementar85, bem como em outras partes do livro, também se recorre a
desenhos/fotografias para se trabalhar, em especial, com o vocabulário.
O mesmo procedimento pode ser encontrado também em LD2 (no qual, além
disso, recomenda-se que o professor use mímicas ou desenhos para indicar o significado
dos vocábulos com que se está trabalhando) e LD4, além de recomendações como usar
83
[…] ya que trata no sólo diferencias del español hablado en España y en Hispanoamérica, sino también
aspectos contrastivos entre el español y el portugués. (CERROLAZA, M.; CERROLAZA, O.; LLOVET,
B. Planet@2 E/LE. Madrid: Edelsa, 2001, p. 3. (Libro del alumno)
84
(LD1, p. 166)
85
(LD1, p. 167)
un diccionário monolingüe (LD3, p. 7) ou evitar el uso de la traducción, siempre que
sea posible (...) (idem, p. 8).
Embora se possa argumentar pela “eficácia” desse tipo de recurso, discussão que
não pretendemos fazer aqui, não se pode negar que há um silenciamento da língua
materna nesses materiais, nos quais ela não aparece senão esporadicamente, como
núcleo de comparações meramente linguísticas, o que reforça a concepção de que por
língua entende-se o sistema, o código lingüístico, não tendo ela outra dimensão senão a
gramatical.
Exceção a isso são as recomendações dadas em LD3 – Manual del profesor
(p.14) sobre o encaminhamento do exercício que abre o livro e que traz um mapa em
que o aluno encontra os países em que se fala a língua espanhola. Trata-se de uma
atividade de partida, cujo objetivo mais claro é reforçar o número de falantes de
espanhol, argumento que se entende como suficiente para que se busque aprender essa
língua. No entanto, vários links remetem o professor ao Manual del Profesor, no final
do livro, em que ele encontra recomendações sobre a possibilidade de se pensar as
diferenças da língua espanhola, tanto léxicas quanto fonéticas ou sintáticas, trabalhando
com comparações com a língua materna do aprendiz, no caso o português do Brasil,
além de indicações sobre a importância de mostrar que, em muitos desses lugares, a
língua espanhola convive com outras línguas, oficiais ou não, que são faladas nesses
países.
Por meio dessas indicações, vê-se uma tentativa de fazer o que Coracini (1999) e
Serrani (2005) indicaram como um caminho interessante para o trabalho com o ensinoaprendizagem de segundas línguas, que é buscar a comparação com a língua materna
do aprendiz, criando espaços de reflexão tanto sobre a língua quanto sobre os
elementos sócio-históricos e culturais que a constituem. Tal comparação, no entanto, só
é possível se passarmos a olhar para a língua materna do aprendiz não apenas como um
espaço onde se constroem indesejáveis interferências, mas como o lugar de constituição
identitária desse sujeito, e, portanto, como o espaço familiar no qual se estrutura a sua
relação com o outro e, assim, com a outra língua de que se aproxima. Não se trata,
portanto, de apenas comparar estruturas linguísticas, mas de convidar esse sujeitoaprendiz a revisitar a sua língua e os discursos de que é materialidade para que, então,
deslocar-se para esse espaço da língua outra, para esse outro espaço discursivo.
3. A língua “instrumento de comunicação”: um olhar sobre a língua do outro e seu
ensino
Aprender para comunicar. Essa talvez seja a resposta quase unânime a um
questionamento sobre o porquê de uma língua estrangeira, resposta que nos ofertam os
livros didáticos quando esboçam como seu objetivo que o aluno se comunique de forma
eficaz, tornando-se um falante competente na língua-alvo. Observamos isso ao trabalhar
com os LDs para o ensino de língua, o que aparece, por exemplo, em trechos da
apresentação de um dos métodos86 utilizados para o ensino de língua espanhola no
Brasil, LD1, na qual se diz que os temas escolhidos para a organização das unidades de
86
Os livros didáticos analisados neste trabalho definem como seu público-alvo adolescentes, jovens e
adultos.
ensino têm como função permitir a aquisição de uma comunicação autêntica e
motivadora.
[...]Los temas elegidos permiten la adquisición de una comunicación
auténtica y motivadora (...) (LD1, p. 3) (grifo nosso).
Esse material - que explicita sua escolha pela abordagem comunicativa - é
representativo de uma premissa que encontraremos em grande parte do material
produzido para o ensino-aprendizagem de uma segunda-língua: a tarefa primeira desse
ensino é produzir um falante da língua que seja capaz de se adaptar a situações
comunicativas em que estiver diante de falantes nativos dessa língua. Fica claro, assim,
o apelo comunicativo desse processo e a aceitação de que é compromisso do professor
construir a competência comunicativa87 do aluno, trabalho para o qual o livro didático
apresenta-se como o caminho facilitador (para não dizer como o único caminho).
Al finalizar NUEVO VEN 1 el alumno será capaz de comprender y expresar
ideas básicas y cotidianas, tanto de forma oral como escritas,
correspondientes al nivel A2 de las directrices del Marco de referencia
europeo. (LD2, p. 2).
[…] es un curso comunicativo de español dirigido a estudiantes adolescentes
y adultos de nivel principiante, concebido con el objetivo de ayudar al
alumno a alcanzar un grado de competencia lingüística y comunicativa.
(LD4) (grifo nosso).
[…]
Tanto en el libro del alumno como en el cuaderno de ejercicios se ofrecen
unas propuestas didácticas que facilitan el aprendizaje del estudiante y lo
sitúan en condiciones de abordar con garantias de éxito situaciones de
uso de la lengua, así como cualquier prueba oficial própria del nível al que
(...) va dirigido. (Idem) (grifo nosso).
Entre as concepções que sustentam essa busca pela competência está a ideia de
uma comunicação sem ruídos, que pressupõe a aquisição de um modo de falar essa
língua que permita ao aprendiz portar-se como um nativo: com uma pronúncia perfeita,
um vocabulário adequado, uma aguçada capacidade de prever os efeitos de seu dizer nas
diversas situações comunicativas em que estiver inserido. Sustentar essa postura só é
possível se trabalharmos com uma língua homogênea e transparente e com um falanteouvinte ideal, nos modelos de Chomsky, idealização sem a qual nos parece difícil
chegar a essa competência. Tal postura afasta-nos, ainda, da possibilidade de falarmos
em sujeitos da língua, considerando que estamos, assim, nos limitando a produzir
falantes.
Essa concepção de língua enquanto instrumento perpassa as orientações do que
chamamos de abordagem comunicativa, que compreende a língua como um instrumento
87
Coste (2002, p. 11), ao falar sobre a apropriação que a didática de línguas faz do conceito de
competência comunicativa - criado pelos etnolinguistas -, aponta os deslizes interpretativos ocorridos
nesse processo, ou seja, a tendência em (a) falar-se em competência comunicativa restringindo-a à
capacidade de trocas orais eficientes, limitando a amplitude do conceito aos diálogos; (b) considerar-se a
competência comunicativa como uma totalidade única, supondo, a exemplo de Chomsky, que todos os
falantes de uma língua têm a mesma competência; (c) produzir-se uma dicotomia entre competência
lingüística e competência comunicativa. Para Coste é preciso abandonar a tendência de se considerar que
a aquisição de uma sintaxe e de um vocabulário possa ser tomada como o objetivo do processo de ensino
de uma língua estrangeira87 e buscar a aplicabilidade do conceito de competência comunicativa à
reflexões sobre os processos de leitura em língua estrangeira.
de comunicação ou de interação social, visando o seu ensino ao desenvolvimento da
competência comunicativa do aprendiz. O objetivo do ensino de uma LE é, portanto,
dominar essa língua, o que pode ser traduzido como falar, ler e escrever orações nessa
língua, mas também conhecer as maneiras como ditas orações são utilizadas para se
conseguir um determinado efeito comunicativo. Não bastava mais, então, apreender
unidades lingüísticas isoladas, era preciso aprender a utilizá-las para um determinado
fim.
Compreender o que nos propõe essa abordagem, que nasceu fortemente
inspirada nos estudos da psicologia cognitivista e da gramática gerativotransformacional, exige recuperar os movimentos teóricos que lhe deram origem88, o
que não poderemos fazer detalhadamente nesse momento, em que nos limitaremos a
pontuar algumas observações que nos ajudam a compreender as relações entre essa
concepção de língua enquanto instrumento de comunicação e as propostas de ensino que
dela partem.
Promovendo deslocamentos em relação ao que propôs Chomsky, mas sem
romper com suas orientações, os comunicativistas recorrem à noção de competência
para formular o que chamam de competência comunicativa89, que contemplaria tanto a
competência linguística quanto o conhecimento prático das regras sociais e culturais a
que estão submetidos os falantes de uma língua. Destaca-se, nessa abordagem, uma
concepção cognitivista de aprendizagem, em que ela é entendida como um processo
criador, determinado por mecanismos internos. “Aprender uma língua consistiria em
aprender a formar regras que permitissem produzir novos enunciados, o que faz com
que se delegue ao pensamento um papel significativo na descoberta de regras de
formação de enunciados.” (Mascia, 2002, p.134).
Parece-nos interessante, nesse momento, observar duas questões que destacamos
no capítulo anterior. A primeira delas refere-se ao tratamento dado à língua materna do
aprendiz, já que não há, na abordagem comunicativa, uma preocupação explícita de
promover um afastamento da língua materna90, assim como aparece nessa abordagem
uma visão do erro91 como parte natural do processo de ensino-aprendizagem. Erros e
88
Ver mais sobre o tema em Widdowson (1991), Hymes (1979), Galisson e Coste (1983).
Em “Língua, cultura e competência: questões para o ensino e o discurso” (De Nardi, 2009), discutimos
a noção de competência.
90
Coracini (1997) lembra que a abordagem comunicativa chega ao Brasil na década de 80 e comenta que,
teoricamente, com sua inserção, o foco das preocupações deslocou-se do ensino para a aprendizagem, o
que fez com que, embora ainda se preconize o uso da língua estrangeira em sala de aula, tenha- se tornado
consensual o recurso à tradução/ comparação com a língua materna quando isso facilitar o trabalho com a
segunda língua em sala de aula. É preciso notar, no entanto, como mostramos anteriormente, que esse
teoricamente ganha força quando analisados os LDs para o ensino de língua espanhola, já que mesmo
naqueles trabalhos em que se promete uma comparação entre língua estrangeira e língua materna,
recomenda-se ao professor que ele evite a segunda sempre que possível, o que, entendemos, leva a um
desprestígio desse tipo de recurso, olhado como possível mas evitável.
91
Vê-se o reflexo dessa opção teórica em muitos LDs, nos quais não há menção ao erro, seja como
elemento a ser discutido, seja como elemento para discussão, embora siga sendo comum indicar-se a
resposta “certa” para a questão proposta. Além disso, é possível observar, como em LD1 – Libro del
Profesor, quando se menciona o erro, faz-se na busca de uma forma positiva de tratá-lo:
[...] Mientras dura el debate, yo voy tomando nota de los errores, y luego tod@s junt@s los corregimos
de una forma constructiva y positiva. (idem, p. 38)
[…]Al final los colgaremos en las paredes para que tod@s podamos leerlos y, tal vez, también
corregirlos entre tod@as. (idem, p. 39) (grifo nosso).
89
interferências passam a ser incorporados ao trabalho, podendo servir como elemento
indicativo das decisões a serem tomadas pelo professor na seleção de material e
reorganização das atividades de ensino. No entanto, esse olhar sobre como se dá o
processo de aprendizagem de uma LE reforça, ainda, um predomínio do pensamento
sobre a expressão, que é dominada por ele. A língua permanece, assim, numa posição
instrumental e o sujeito ganha ares de seu grande senhor, apropriando-se dela para
expressar aquilo que o seu pensamento criou. Além disso, a orientação cognitivista
também faz com que se trabalhe com a memória como um lugar de armazenamento,
cujos dados, uma vez acessados, permitem sua integração em novos campos de
memória, que se relacionam com o conhecimento prévio do aprendiz, permitindo que
sejam acessados e novamente utilizados quando isso se fizer necessário. A
aprendizagem é um processo consciente e controlável.
Coracini (1997, p.156), ao falar sobre a abordagem comunicativa, comenta o
fato de ter havido nela um deslocamento da aquisição para a aprendizagem. Alerta, no
entanto, que a aprendizagem passa a ser vista como um processo idealizado e
homogeneizante, o que leva a autora a dizer que “o ensino passou a ser considerado
como o melhor meio de fomentar essa (grau de consciência sobre o seu processo de
aprendizagem) consciência no aprendiz”. Ao citar Krashen, lembra que, para os
comunicativistas, enquanto se adquire uma língua materna, processo inconsciente, a
língua estrangeira é aprendida conscientemente. Essa concepção, segundo ela, “aumenta
ainda mais o fosso que sempre existiu, no ensino, tanto na teoria quanto na prática, entre
uma língua e outra”, no caso, a materna e a estrangeira, que, seguindo-se essa
orientação, será sempre exterior ao indivíduo, porque objeto estranho que o aluno
reconhece e aprende a usar, fazendo dela uma ferramenta de comunicação.
Consideramos que tais concepções sobre o processo de ensino-aprendizagem de
uma segunda língua, além de serem determinantes para que se fixe o lugar marginal da
relação entre língua materna e língua estrangeira (como já comentamos anteriormente),
podem ter criado os espaços para uma prática que parece corriqueira nos trabalhos que
seguem a abordagem comunicativa e que trazem resquícios de uma prática que
caracterizou o método direto: a de pressupor que a memorização e a repetição de
estruturas utilizadas em situações comunicativas específicas pode levar à construção da
competência comunicativa, tornando o aprendiz capaz de acessar essas estruturas e
colocá-las em prática no momento em que for solicitado a tanto.
O que se acaba por reforçar é a ilusão do controle que o aprendiz adquire da
língua e cria-se uma visão estática tanto da língua quanto das situações comunicativas,
já que a aceitação da possibilidade de repetição das estruturas pressupõe a ideia de que
ambas se realizem da mesma forma em momentos diferentes de interação.
Desconsidera-se, desse modo, a possibilidade de que outros sujeitos, outros tempos,
outros desejos possam levar a uma inadequação dessas estruturas, apelando-se para a
fixidez das relações entre os indivíduos e para a eficiência da língua como instrumento
de comunicação: capaz de oferecer a esse falante, sempre, os recursos necessários para
uma feliz atuação nos cenários de interação.
Embora se fale muito do positivo nesse livro, em nenhum momento propõe-se uma discussão sobre o que
isso representa, tampouco sobre o que seria essa pedagogia do positivo, o que, entendemos, reforça a
construção de um lugar de executor para o professor de línguas, que não é convidado a discutir as
propostas que lhe são feitas, tampouco esclarecido sobre os fundamentos que as sustentam.
Ao fazer tais observações, não se trata de negar o papel imprescindível do estudo
das estruturas de uma língua e regularidades, do léxico da língua e suas particularidades
sintáticas, mas lembrar que limitar a língua a ser um código a serviço da comunicação
pode reduzir o potencial do processo de ensino-aprendizagem de que ela é matéria. O
que colocamos em causa, portanto, é a ilusão do todo, da língua enquanto unidade
apreensível, que, de certa maneira, nos permite um questionamento sobre qual é o papel
do ensino-aprendizagem de uma segunda língua.
Essa busca pela competência também se sustenta pela ideia de uma comunicação
sem ruídos, que só é possível se pensarmos numa língua homogênea e transparente,
língua de falantes-ouvintes ideais, que nos impede, portanto, em falar de sujeitos na
língua. Também Moita Lopes (1996) alertou para o perigo de uma tomada de posição
como essa em termos de ensino-aprendizagem de segunda-língua, a qual tende a criar
no sujeito-aprendiz um imaginário de perfeição em relação à língua-alvo (e tudo que
está envolto por ela), imergindo-o num espaço de idealizações. Toma-se a língua-alvo
como homogênea e, além disso, incorre-se no que Coste (2002) chamou de deslize na
apropriação da noção de competência comunicativa, tomando-a como uma totalidade
única, como se não houvesse, numa mesma comunidade linguística, diferenças. A isso
se pode acrescentar a homogeneização de objetivos para o ensino-aprendizagem de
segunda-língua subjacente a essa postura, que reforça a comunicação como a finalidade
última (e quase que única) desse ensino. Coracini (1999, p. 19), ao citar Bolognini,
propõe uma relativização da adequação dessa abordagem, pensando em cenários de
aprendizagem nos quais, por exemplo, a possibilidade dos alunos estarem no país de
origem da língua alvo é mínima ou quase nula. Diz a autora, retomando a proposta que
anunciamos nas linhas finais do capítulo anterior:
Conseqüentemente, um ensino que estimulasse a comparação entre as
culturas (materna e estrangeira), que propiciasse a reflexão seria muito
mais útil para esse grupo de alunos brasileiros. A abordagem
comunicativa, então, quando fixada por e num material passa a ser tão
impositiva quanto a anterior... (idem)
Esse imaginário de língua que se sustenta sobre a consideração de uma
homogeneidade para esse sistema, essencialmente falho e aberto, merece nossa atenção,
porque ao negarmos o caráter heterogêneo de tais processos, apagamos uma diversidade
que, em termos de ensino, de sujeitos, de língua e cultura não é só desejável, mas
necessária.
E isso não é diferente quando pensamos o ensino de espanhol em nosso país, já
que o imaginário sobre essa língua, em nosso país, parece estar cada vez mais atrelado à
força comercial dessa língua. Como consequência, seu domínio aparece como um
passaporte para o mercado de trabalho, determinando uma preferência ao estudo de
estruturas fixas, que supostamente seriam capazes de dar ao aprendiz a possibilidade de
tornar-se fluente nessa língua e, desse modo, comunicar-se, em detrimento dos
processos discursivos.
A língua não é mais que instrumento de comunicação, o que restringe seu caráter
heterogêneo, acirra a separação entre língua e sujeitos e acaba por criar uma visão
estática dos processos de produção do discurso. Isso reforça posturas que vão se
materializar nas atividades propostas no LD, como a predominância de exercícios
estruturais, cuja função é, pela repetição, levar à aquisição da língua. Aprendida uma
estrutura, o aluno vai treiná-la, reproduzindo o seu uso até que ele se torne automático,
momento em que teria, então, apreendido esse recurso e estaria apto para utilizá-lo em
situações comunicativas em que tal estrutura fosse exigida.
A sequência de LD4 (p. 30), exemplar desse tipo de proposta, chama a atenção
por seguir uma ordem92 bastante rígida, comum às demais unidades do livro, em que os
exercícios são dispostos a fim de que o aluno observe, responda, escute, leia e, então,
pratique o que aprendeu, reproduzindo o que lhe foi ensinado e comprovando seus
erros/acertos; o que lhe garantirá o controle de sua aprendizagem.
O mesmo pode ser visto em LD2, obra na qual se costuma abrir as unidades com
a audição de diálogos, a que se seguem exercícios para a verificação do que foi
compreendido e, então, atividades cujo objetivo central é a repetição das estruturas
aprendidas. Embora haja uma variação no tipo exercício proposto, seu fundamento é o
mesmo: fixação e controle93.
Além disso, não é raro o uso de textos (canções, poemas, diálogos, cartazes, etc.)
para uma posterior (e quase exclusiva) exploração dos elementos lingüísticos presentes
na produção (ou o preenchimento de lacunas). É o que notamos em LD1(a, p. 12),
Órbia 1a – La diversidad. Essa unidade, ou órbita, apresenta um cartaz, que é parte de
uma campanha intitulada “Democracia es Igualdad”, para iniciar os trabalhos desse
tema. No entanto, a relevância da discussão fica em segundo plano, já que se dá um
destaque muito maior às estruturas lingüísticas com as quais o aprendiz entrará em
contato - e que estão organizadas no mapa mental -, do que aos discursos que subjazem
as denominações vinculadas às fotos de personalidades como Einstein e Luther King.
Preconceitos, estereótipos, discriminação, temas latentes no cartaz, não entram em
pauta, perdendo espaço para os exercícios que lotam as páginas seguintes e vão
redundar na revisão gramatical proposta no final do tema.
Assim, o trabalho se concentra na apresentação de diálogos entre pessoas de
diversas nacionalidades para, posteriormente, passar-se à sistematização desse
conteúdo. Destacam-se, então, as estruturas principais para cumprimentar, despedir-se,
perguntar e dizer o nome para que, em seguida, repetindo-as, o aluno realize as tarefas
de construir e completar diálogos, relacionar enunciados a fotos/desenhos, etc.
Nos LDs apresentados, privilegia-se a repetição de estruturas básicas que são
apresentadas, ora em maior ora em menor variedade, a fim de que o aluno realize uma
atividade comunicativa específica, ou seja, toda a vez que eu quiser perguntar o nome
de alguém em espanhol eu uso X e obtenho como resposta Y. Esse privilégio ao estudo
da língua a partir de estruturas fixas também aparece em LD1 (p. 10) – Dossier Puente
3 – La cultura del español94. Nele, o aluno é convidado a conhecer um dos grandes
museus do mundo, o Museu do Prado, de Madrid, seguindo essa seqüência de
atividades: (1) Relaciona estos verbos con las frases de la derecha; (2) Lee este texto y
rellena los huecos con ES, HAY, ESTÁ, ESTÁN; (3) Aquí tienes los retratos de dos de
los famosos pintores del Museo del Prado: Goya y Velásquez. Haz una lista de 6
92
Não se pode deixar de notar que o tom de ordem, dado pelo uso preferencial do imperativo, não deixa
outra opção senão a de obedecer ao comando.
93
É recorrente em alguns LDs a insistência em que o professor controle o número de informações
ofertadas ao aluno, o que lhe garantiria o controle desse aprendizado que ele comanda.
94
Anexo 3.
comparaciones; (4) Este es uno de los cuadros más famosos de Velásquez, “Las
Meninas”. Hemos identificado a todos los personajes. ¿Puedes escribir qué están
haciendo? (oferece-se, então, ao aluno, uma lista de ações que podem ser realizadas,
como mirar al frente, e um modelo de construção, La infanta Margarita está mirando al
frente.).
Informações sobre o Museu, os pintores ou as obras mencionadas acabam
ficando em segundo plano, uma vez que a atenção do aluno volta-se ao preenchimento
de lacunas e/ou à reprodução de estruturas, por meio das quais ele estará aprendendo a
descrever, na língua alvo, as atividades que estão sendo realizadas por aqueles que ele
está observando. Assim o recurso a esse componente cultural transforma-se apenas em
uma forma de colocar em prática conteúdos lingüísticos anteriormente explorados, a que
se seguirão novos exercícios.
Vale observar, ainda, a instrução do Libro del Profesor (pp. 14-15) para essa
atividade, em que fica bastante marcado o desejo de ativar conhecimento e exercitar as
capacidades desenvolvidas. Insiste-se na dinamicidade, no caráter lúdico que deve ter a
atividade, mas isso não resulta, no entanto, em propostas efetivas sobre o papel e a
importância dos museus ou dos pintores apresentados, mas em uma série de atividades
que são apenas uma forma diversificada de realizar as atividades propostas no livro e
que têm, fundamentalmente, como propósito, a fixação de estruturas lingüísticas para a
descrição. Importam os dados culturais, mas será que com isso efetivamente se está
trabalhando com a cultura?
Os LDs vêm acompanhados, em geral, de um livro de exercícios, ou de
exercícios complementares no final do livro. Em sua quase totalidade, são exercícios em
que o aluno é convidado a reproduzir estruturas, de acordo com um modelo, ou
completar lacunas, prática com a qual não se rompe mesmo quando há uma proposta
(como podemos ver em LD3) de um trabalho com a LE que esteja voltado para a
formação de cidadãos. Não se observa, portanto, nesses materiais, um enfrentamento em
relação a práticas já consagradas, aceitando reproduzi-las como forma de dar mais
segurança ao aluno no processo de aquisição da língua (ou a ilusão de que, assim, ele
esteja efetivamente adquirindo-a, dominando-a, aprendendo a fazer as escolhas certas).
Habita o discurso de muitos LDs uma cisão entre a declarada tentativa de
instaurar novas práticas em relação ao ensino-aprendizagem de segunda língua e a
necessidade de sistematização e de um recurso de análise gramatical ou linguística sem
o qual parece inviável promover a aquisição da língua. Assim, inclui-se a gramática e os
exercícios estruturais, mas se pede desculpas por isso, jogando sobre o costume do
aluno e a sua necessidade de sistematização a responsabilidade por esse retorno.
Arriscamo-nos a dizer que poderíamos comprovar o mesmo movimento analisando as
nossas próprias práticas em sala de aula, que, embora não raro estejam impregnadas
pela novidade, não parecem ser resistentes ao desejo da sistematização, levando-nos a
reproduzir com freqüência exercícios como os anteriormente expostos e recorrer às
descrições gramaticais a fim de, supostamente, organizar o conteúdo trabalhado95.
95
Vale ressaltar que a nossa questão nesse trabalho não é propor uma discussão sobre a adequação ou não
dos exercícios gramaticais para o ensino de segunda língua, mas as concepções teóricas e de ensino que
subjazem às propostas apresentadas pelos livros didáticos em análise.
Promove-se, desse modo, um retorno a uma visão consagrada pela leitura do
texto saussuriano, a da língua como um objeto previsível e delimitado. Além disso,
olha-se para a comunicação como um campo de previsibilidades: se o aprendiz
conseguir saber o que deseja dizer e qual a estrutura linguística que deve usar para isso,
seu sucesso estará garantido. Retornamos, de certa forma, à ilusão da completude, que
vamos conquistar por meio das sistematizações, dos exercícios, das repetições, enfim,
volta-se sempre a girar em torno do mesmo desejo: não deixar brechas, suturar as
fissuras, afastar o imprevisível. Foge-se, assim, do mesmo modo que o fez Chomsky, da
ambiguidade, que passa a ser um problema para se resolver em termos de língua, já que
ela, previsível e controlável, não guarda espaços para o equívoco. Trata-se de uma
língua normatizável, cujos efeitos de sentido podem ser controlados pelo sujeitoaprendiz a partir do domínio das estruturas, capacidade que fará dele um falante dessa
língua.
Posturas como as que vimos analisando implicam ainda, como dissemos, outra
recusa, a da heterogeneidade presente em toda a língua. Conforme Bakhtin (2005, p.
181), somente sob o prisma rigorosamente linguístico, ou seja, aquele a partir do qual,
por meio de uma abstração, pode-se obter uma língua despida das influências de um
exterior, é possível negar à língua sua heterogeneidade.
4. Nas recorrências, um imaginário de língua e cultura
Esse olhar que lançamos ao pensar as concepções que sustentam nossas práticas
de ensino de língua estrangeira, observando os livros didáticos para o ensino de língua
espanhola e as metodologias que permeiam construção, pese sua superficialidade96,
permitem que pontuemos algumas recorrências que nos ajudam propor considerações
finais, embora não conclusivas, sobre a questão.
Destaca-se, nesses materiais, um desejo recorrente de controle: controlar o outro,
a língua, a cultura, a aprendizagem. Denuncia esse desejo a própria organização dos
LDs, que tendem à fixidez, repetindo sua estrutura e a organização interna de cada
unidade, bem como os conteúdos a serem trabalhados e o modo como é feita a sua
apresentação. Tal repetição é parte da estratégia de controle proposta pelo LD, que leva
a uma automatização não só dos recursos lingüísticos que o aluno deve dominar, mas
também dos procedimentos de aprendizagem a serem utilizados. Para Grigoletto (1999),
o caráter homogeneizante, a repetição e a apresentação são marcas do livro didático, por
meio dos quais se cria um regime de verdade e a naturalização desses processos. É
como se não houvesse outra forma de aprender, ou outros conteúdos a serem postos em
foco. Além disso, os alunos são levados a fazer, todos, as mesmas atividades, passando
por processos idênticos e chegando às mesmas conclusões.
O processo de ensino-aprendizagem sofre, assim, o efeito de naturalização,
constituindo-se, o conteúdo vinculado pelo LD, como O Saber a ser compreendido,
apreendido, repetido. O efeito mais visível disso é a criação de uma atitude de aceitação
em relação ao que é dito/proposto pelo livro didático que acaba por engessar professor e
96
As reflexões que ora apresentamos são “recortes” de um trabalho mais amplo que realizamos em nossa
tese de doutoramento, em que aprofundamos, especialmente, a discussão sobre o lugar da cultura no
ensino de língua espanhola.
aluno. Grigoletto fala do LD como um espaço fechado de sentidos que se impõe ao
usuário, isso porque, entendemos, não há lugares para a construção do conhecimento,
justamente porque ele não é visto como algo a ser construído: trata-se de um já-posto
em relação ao qual não há o que questionar, restando-nos, portanto, a tarefa de
reproduzir.
Encontramos, em geral, apenas lugares de simulação de um diálogo entre leitor e
livro, em que aparentemente o leitor é convidado a se pronunciar (embora já esteja
posto algo que dele se espera), não havendo, no entanto, espaços dialógicos. Longe da
convivência conflitante e tensa de vozes por vezes dissonantes, como é próprio da
construção de conhecimento, o que encontramos nos LDs é um saber apresentado como
o único possível. Não há, assim, lugar de interpretação no LD, porque o regime de
verdade que cria apaga esse espaço. Os espaços de professor e aluno nessa relação com
o LD aparecem, portanto, bastante delimitados: ao professor cabe atuar como aquele
que comanda o processo, que dirige uma cena que já foi anteriormente construída,
escrita, delimitada, sem que possa nela interferir de maneira significativa97; ao aluno,
cabe seguir as instruções, o que lhe é apresentado como garantia da construção da
competência comunicativa que lhe garantirá atuar como um falante dessa língua que
aprende.
Ao insistir na construção da competência comunicativa do aluno, criam-se
situações em que o aluno supostamente encontraria lugares de dizer. No entanto, esses
são lugares de controle em que o sujeito fala, sempre e apenas para se comunicar, como
se não houvesse situações em que o não-dizer se impõe e/ou os sentidos escapam. Não
está em causa, nesse momento, o que se diz, importa dizer, importa falar, importa
exercitar estruturas.
Parte-se, assim, da transparência da língua como um pressuposto pelo qual se
apaga qualquer possibilidade de se analisar a sua relação com sujeito e historicidade. A
língua é, assim, um sistema instrumental por meio do qual os indivíduos se comunicam,
sistema sem falhas e furos, sistema de sujeitos cuja heterogeneidade sucumbe diante da
necessidade de comunicar. A cultura, ou melhor, os componentes culturais, por sua vez,
são apenas o recurso pelo qual se inicia este estudo, não se dando a eles maior
importância senão aquela de funcionam como um estímulo a partir do qual se inicia o
estudo da língua. Podem aparecer dados culturais, informações sobre a cultura, mas não
aparecem os discursos, não se analisam os discursos, porque o foco está em outro lugar,
poderíamos dizer, em outra língua que não aquela que é materialidade de processos
discursivos.
A pergunta que podemos fazer é, portanto, que imaginário de cultura se liga e
esse imaginário de língua como instrumento delimitável que se entrega ao domínio do
sujeito, língua utilitária que nos cabe apreender?
97
Nossas análises nos permitem dizer que LD3 apresenta-se como uma exceção nesse sentido, porque há
nessa obra uma abertura, ainda que sutil, para a interferência do professor na proposta apresentada, já que
o manual do professor que acompanha a obra não se limita a oferecer instruções de como deve esse
profissional atual para atingir os objetivos das atividades propostas, mas o convida a conhecer os
pressupostos teóricos que sustentam a obra em questão e, também, indicam outras fontes de pesquisa a
que possa recorrer. Tal oferta não é condição suficiente para uma mudança de postura na relação do
professor com o LD, mas é condição necessária para tanto.
Parece-nos que a resposta nos oferta de certo modo Bosi (2000) ao falar a
cultura como um mosaico, já que ao se falar sobre cultura o que temos é a apresentação
fragmentada de elementos culturais, sem que se inclua qualquer problematização sobre
esses conteúdos. Informa-se o estudante a respeito de aspectos relacionados à culinária,
música, literatura, etc, desses países, e considera-se que, assim, será possível dar conta
dessas culturas, desenvolver uma competência intercultural. Além disso, como já
apontamos, a preocupação não é destacar efetivamente questões culturais, históricas
e/ou sociais dos lugares/populações apresentados, os quais ficam em segundo plano,
uma vez que o encaminhamento dado a essas questões é, em geral, o de destacar
elementos vocabulares e/ou estruturais dos texto utilizados.
A abordagem comunicativa, que declaram seguir esses LDs, propiciou uma
retomada em relação a uma discussão sobre o lugar da cultura no ensino de língua, mas
no desejo de construir a chamada competência cultural o que se observa, efetivamente,
nesses materiais didáticos, é que o estudo da cultura fica em segundo plano, dando
lugar, por vezes, a exercícios bastante estruturais, como o preenchimento de lacunas.
Por outro lado, cria-se a aparência de que essas informações soltas são capazes de dar
conta da cultura dos países de língua espanhola, uma vez que não há qualquer referência
ao caráter incompleto e lacunar do que é apresentado, tão pouco à possibilidade de que
seja necessário ampliar a discussão sobre o tema. O efeito disso, entendemos, é um
fortalecimento dos estereótipos, que não são colocados em causa, e, portanto, não
aparece a cultura, como a entendemos, nem como um lugar de interpretação, nem como
um espaço de constituição identitária para os sujeitos.
Se falar em língua e cultura é falar em identidade, ou melhor, com os processos
de identificação por meio dos quais essa identidade se constrói, mais do que olhar para a
cultura, é preciso compreender os discursos que dizem essa cultura e, portanto, os
sujeitos que nela se inscrevem. Mas é preciso que recuperemos as discussões sobre a
cultura, sobre o que entendemos por cultura, porque se quando se fala em cultura,
admite-se seu papel no ensino-aprendizagem, não é comum que nos questionemos sobre
o que entendemos por cultura ou o que está implicado ao escolhermos um ou outro
posicionamento sobre o tema.
Olhar discursivamente para a cultura é, para nós, compreendê-la como um
espaço simbólico, lugar de produção de sentidos de que o sujeito é chamado a
participar. A cultura possui, assim, uma estrutura-fucionamento semelhante àquela da
ideologia e do inconsciente, no sentido de que não há sujeito sem cultura. A inserção do
sujeito nas redes de sentido também se dá pela via da cultura, que aparece como uma
matriz de sentidos, criando efeitos de naturalização para processos que são
intrinsecamente histórico-sociais. Os sujeitos identificam-se com a cultura, de forma
muito semelhante como se dá a interpelação ideológica, no sentido de assumirem
espaços numa formação social. E essa identificação não é, como possa parecer, da
ordem do puramente consciente, tampouco se dá por completo, sem falhas, sem
fissuras. Por isso questionar o estereótipo e pensar o lugar da cultura no ensino é tão
significativo, e, por isso, entendemos que não se pode compreender a cultura pela
simples observação do que dela são apenas fragmentos, é necessário que mergulhemos
nos discursos da/sobre a cultura.
Esse movimento, entendemos, é o que nos dará a possibilidade de produzirmos
reflexões efetivas sobre nossas relações com a língua do outro, em nosso caso com a
língua espanhola, compreendendo os processos discursivos de que essa língua é
materialidade.
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A (RE)CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO DO PROFESSOR DE LÍNGUA NO
DISCURSO DO SUJEITO-ALUNO
Felipe Augusto Santana do Nascimento
Gabriella de Lima Espíndola98
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a (re)construção do imaginário sobre o
professor que se produz pelo/no discurso dos alunos de um curso de Letras a distância. Este trabalho, que
se fundamenta na Análise do Discurso de linha francesa, parte da noção de formações imaginárias para,
ao pensar o discurso produzido nesse ambiente virtual sobre a língua e seu ensino, verificar como nele se
constrói o imaginário sobre o professor de língua. Para tanto, buscamos analisar como se constróem as
formações imaginárias que designam o lugar que o sujeito-aluno atribui a si mesmo e ao professor, a
imagem que ele faz do lugar que ocupa e do lugar do outro. Essas considerações acerca do imaginário
sobre o professor são importantes, pois, a partir delas, o aluno projeta inferências, pré-construídos, que
determinam a sua relação com os sentidos do seu discurso, a fim de atender a essa expectativa. Nesse
contexto, buscar-se-á apontar as contradições que, no discurso do sujeito-aluno, revelam o seu desejo de
responder a esse imaginário.
PALAVRAS-CHAVE: Formações imaginárias; professor de língua; sujeito-aluno.
RESUMEN: Este trabajo tiene por objetivo analizar la (re)construcción del imaginario sobre el profesor
que se produce por/en el discurso de los alumnos de un curso de Letras a distancia. La investigación se
fundamenta en la escuela francesa de Análisis de Discurso y parte de la noción de formaciones
imaginarias para, al pensar el discurso producido en ese ambiente virtual sobre la lengua y su enseñanza,
verificar como en él se construye el imaginario sobre el profesor de lengua. Para eso, analizamos las
formaciones imaginarias que designan el lugar que o sujeto-alumno atribuye a si mismo y al profesor, la
imagen que hace este sujeto del lugar en que está insertado y del lugar del otro. Dichas consideraciones
respecto al imaginario sobre el profesor son importantes porque es a partir de ellas que el alumno
proyecta inferencias, preconstruidos que determinan su relación con los sentidos de su discurso. En ese
contexto se buscará apuntar las contradicciones que en el discurso del sujeto-alumno relevan su deseo de
responder a ese imaginario.
PALABRAS-CLAVE: Formaciones de imaginario; profesor de lengua; sujeto-alumno.
1. Introdução
Neste trabalho, vamos analisar como os alunos, a partir dos lugares
representados pelos professores, (re)constroem uma série de “formações imaginárias”
que designam o lugar que aquele atribui a este, e vice-versa, nas relações discursivas.
Nesse sentido, vamos observar, a partir de recortes do discurso de alunos de um curso
de Letras a distância, como o sujeito-aluno antecipa as representações dos professores
para, de acordo com esse “imaginário”, adequar o seu discurso. No entanto, o que
aparece de forma recorrente no material analisado é a contradição que se instaura
quando o aluno, ao tentar reproduzir o dizer do professor materializado no conteúdo da
disciplina, deixa ressoar o dizer do que ele entende por professor de língua, cristalizado
98
Graduandos em Letras pela UFPE. Os alunos participam voluntariamente do projeto de pesquisa
“Língua, Escrita e Sujeito: interfaces nos/dos ambientes virtuais” e são orientados pelas professoras
doutoras Evandra Grigoletto e Fabiele Stockmans de Nardi.
no senso comum. Dessa forma, vamos fazer um breve percurso pelos conceitos da
Análise do Discurso de posição-sujeito e de formação discursiva, que contribuem para
um entendimento mais amplo de como ocorre essa formação do imaginário na relação
sujeito aluno e professor de língua.
2. A noção de formação imaginária em Pêcheux
Para se entender a noção de formação imaginária proposta por Michel Pêcheux,
é importante considerar que ela se relaciona com as condições de produção do discurso
e com os mecanismos de seu funcionamento, tais como: antecipação, relação de força e
de sentido. Essas considerações são necessárias para caracterizar a formação do
imaginário como constituinte do funcionamento do discurso, pois é a partir dele que são
designados os lugares que o interlocutor atribui a si e ao outro. Além disso, a partir
desses lugares sociais, também são estabelecidos processos sócio-históricos e
ideológicos nos quais o discurso é produzido. Nesse caso, analisaremos como se
processam esses mecanismos na relação estabelecida entre o professor e o aluno.
Para Pêcheux, as formações imaginárias designam os lugares que os sujeitos “se
atribuem, cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem do seu próprio lugar e do
lugar do outro” (1997, p. 82). Tais antecipações regulam o imaginário, que é
materializado no discurso do sujeito-aluno, imaginário por meio do qual determinamos
os lugares que os sujeitos atribuem a si e ao outro, como destacou Pêcheux. A
construção desse imaginário está relacionada com o lugar social que o sujeito do
discurso ocupa. Assim, na relação pedagógica, os alunos atribuem a si um imaginário
daqueles que não sabem a própria língua e estão naquela posição para aprender,
enquanto o professor é o que detém o saber e está na condição de ensinar. Contudo, vale
salientar que, nessa relação pedagógica, o papel do aluno – que teoricamente está numa
condição inferior a do professor – é fundamental para compreender as relações de forças
que permeiam o discurso deste, pois eles tentam adequar seu discurso às expectativas do
professor.
Nesse contexto, as relações discursivas entre professor-aluno se estabelecem por
um processo de antecipação da representação de aluno formada pelo professor e viceversa. Esse mecanismo direcionará as posições que o professor e o estudante ocuparão
nesse discurso. Dessa forma, o aluno tenta antecipar as eventuais “respostas” do
professor, para adequar seu discurso ao efeito que pensa produzir nele. Além disso,
segundo Pêcheux (1997, p. 85), essas formações imaginárias “resultam, elas mesmas, de
processos discursivos anteriores (provenientes de outras condições de produção) que
deixaram de funcionar mas que deram nascimento a ‘tomada de posição’ implícitas que
asseguram a possibilidade do processo discursivo em foco”. Isso significa que essas
representações imaginárias são também atravessadas pelo “já ouvido” e pelo “já dito”.
Nesse sentido, a representação de senso comum que os alunos fazem dos professores é o
que domina a produção dos seus discursos.
Outra característica importante para se entender as formações imaginárias são as
relações de força, pois elas intervêm nesse mecanismo e, portanto, na constituição do
sentido do discurso. Nesse caso, o sujeito fala da condição social de aluno, aprendiz
nessa relação de ensino-aprendizagem, aquele que, inconscientemente, reproduz o
discurso do professor a fim de corresponder a esse imaginário do professor de língua.
Dessa forma, é importante observar, ainda, que esses sujeitos-alunos são futuros
sujeitos-professores, ou seja, isso também determina o seu dizer e o esforço de
corresponder à imagem que eles constroem desse lugar.
As relações de sentido também correspondem a importantes mecanismos das
formações imaginárias, as quais pressupõem que um discurso se relaciona com outros.
Assim, essas imagens são resultado de projeções de sujeitos no discurso e constituem o
dizer. Contudo, essas representações não podem ser consideradas como fechadas em si
mesmas, já que a imagem que surge, nesse caso, do professor vem de um processo
histórico, ideológico e das relações de poder, representando um efeito de realidade.
Para entender melhor como se constituem essas formações imaginárias, é
importante fazer um percurso por alguns conceitos-chave para a Análise do Discurso,
como a posição-sujeito e a formação discursiva. Sendo assim, no próximo tópico,
vamos explicá-los e estabelecer relações entre esses conceitos à luz da teoria de
Pêcheux.
3. Um percurso pelas noções de Sujeito e Formação Discursiva em Pêcheux
Este artigo se fundamenta na teoria da Análise no Discurso, concebida por
Michel Pêcheux, que, ao considerar os sujeitos do discurso atravessados pela realidade
histórica, social e ideológica dos quais fazem parte, leva em consideração que cada um
deles ocupa determinadas posições nesse conflito de relações sociais. Uma das
principais considerações desse teórico da Análise do Discurso francesa está no fato de
que esses sujeitos não são empíricos ou organismos humanos individuais, mas são
representações, como afirma Brandão (2004),“de lugares determinados na estrutura de
uma formação social, lugares cujo feixe de traços objetivos característicos pode ser
descrito pela sociologia”. Dessa forma, no interior de cada formação discursiva há “o
lugar” determinado de uma formação social. Vamos analisar a seguir como se
constituem essas teorias para o funcionamento do discurso.
A noção de sujeito na Análise do Discurso (AD) já foi analisada e revisitada
diversas vezes ao longo da história da teoria, o que demonstra que essa teoria não está
cristalizada, mas é dinâmica por produzir reflexões e questionamentos no interior da
própria teoria. É nesse sentido que vamos refletir sobre outras noções correlatas, tais
como: formação discursiva, ideologia e posição-sujeito.
O sujeito da AD, como referido no parágrafo introdutório, não é o indivíduo,
sujeito empírico, mas o sujeito do discurso, que não está na origem do seu dizer, mas
que tem a ilusão que domina perfeitamente o que diz. Nesse contexto, Pêcheux
acrescenta algo importante às suas formulações, o que foi chamado de “uma teoria nãosubjetiva da subjetividade”. Com isso, ele introduz a noção de inconsciente e de
ideologia, que foram de grande importância para se entender as concepções de
subjetividade. Nessa perspectiva, o sujeito do discurso é dotado pelo inconsciente e
interpelado pela ideologia, características essas que influenciam na produção do seu
discurso.
Para entender como esse sujeito está presente no discurso, é preciso trabalhar
com a noção de formação discursiva (FD). Para Indursky (2008, p. 11), a formação
discursiva “corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados discursivos,
que regulam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando o que pode e
deve ser dito”. Essa noção representa na AD um lugar central de articulação entre língua
e discurso, pois é na relação desta com o sujeito que se chega ao funcionamento desse
sujeito do discurso. Nesse sentido, o conceito de formação discursiva regula esse
assujeitamento do indivíduo em sujeito de seu discurso. É a FD que regula se os
sujeitos, inseridos numa conjuntura histórica e ideológica, identificam-se ou não com o
sentido que se produz nesse dizer.
No entanto, é preciso lembrar que sujeitos de uma mesma formação discursiva
podem apresentar diferentes discursos, assumindo posições diversas dentro dessa
mesma FD. Essa característica demonstra que a FD é, portanto, heterogênea, não
apresenta fronteiras fechadas, e se caracteriza por apresentar entre diversas posiçõessujeito uma fronteira que se desloca. Determinando, portanto, que uma mesma formação
discursiva pode apresentar sujeitos que apresentem discursos contraditórios, o que faz
dela o lugar onde ocorrem as contradições.
Vale salientar que antes dessa noção de FD estabelecida por Courtine, em 1981,
essa reflexão acerca da FD passou por outros dois momentos. No primeiro momento, a
FD era tida por um conjunto de regras formadas pela homogeneidade, ou seja, eram
diferentes FDs, separadas e sem ligação entre elas. Já, no segundo momento, em 1975,
Pêcheux estabeleceu a FD por um complexo com dominantes, no qual uma é dominante
e as outras são dependentes desta. E o terceiro momento, como já foi discutido
anteriormente, entende a FD como o lugar para as contradições, para os diferentes
efeitos de sentido, onde não se estabelecem fronteiras fixas, mas sim instáveis.
Sendo assim, vamos analisar, à luz desses conceitos, como ocorrem esses
mecanismos no discurso do sujeito-aluno. Para tanto, faremos algumas reflexões acerca
de como se estabelecem essas relações de imaginário, sujeito e formação discursiva.
4. Reflexões sobre a formação do imaginário do aluno sobre o professor
Observar a questão do imaginário que o aluno projeta sobre o professor, em
particular o professor de língua, é, atualmente, importante para compreender como se dá
essa inter-relação. Levando em conta que ela ocorre por meio da interação entre os
mesmos, o discurso se apresenta como o “elo” que os interliga. Dessa maneira, portanto,
não se pode analisar o discurso, sem o remeter às suas condições de produção, já que o
discurso é uma prática social. Desse modo, por meio do discurso, o sujeito se
materializa na história, pois deixa ressoar inconscientemente os discursos de uma
formação discursiva, a partir das características de uma formação ideológica com a qual
ele se identifica.
Antes de tudo, vale ressaltar que o corpus é composto por recortes de respostas
de alunos acerca da “Atividade I - Aula de Português de Caetano a Drummond”. Nessa
atividade, foi exigido dos alunos que interpretassem os textos - o poema Aula de
Português, de Carlos Drummond de Andrade, e a música A língua, de Cateano Veloso –
e os debatessem. No entanto, tendo em comum, a priori, a temática da língua, a
interpretação buscava que eles partissem dos textos de apoio e refletissem sobre o
conceito de língua, em especial o de língua portuguesa. Com isso, alguns sujeitosalunos, a partir do imaginário que projetam sobre professor, procuram se adequar à
noção de língua que ressoa no discurso do sujeito-professor, ou seja, parte do
pressuposto que este como professor de língua a domina.
4.1 O que é ser professor de língua?
A concepção acerca do professor de língua, na educação do Brasil, é construída
sobre a base de que ele, por ensinar a língua, é quem melhor detém o saber sobre ela,
com isso, é quem melhor a denomina. Esse dizer sobre o professor constitui uma
memória discursiva, a de que cabe ao professor ensinar a língua e melhor utilizá-la,
imaginário que é (re)produzido no ambiente escolar. Nesse contexto, o professor de
língua é tido como a figura máxima na sala de aula, não podendo ser contestado quanto
ao uso da língua, pois cabe a ele o uso correto dela, sendo único responsável pelo
“repasse” desse conteúdo.
Nesse sentido, vale salientar, ainda, que o imaginário produzido sobre/no
professor de língua é resultado de uma questão histórico-social. Com isso, esse sujeito
se apresenta como um ser neutralizado99, visto que o local que ocupa na sociedade é
determinante para estereotipá-lo como um ser que detém o conhecimento. Ou seja, o
imaginário sobre o professor se constrói pela repetição dessa memória discursiva, em
que está implícito um saber do senso comum de que o docente tem esse “conhecimento
oficial”, que, nos recortes abaixo, aparece relacionado à ideia de língua padrão:
1-“[...] [O professor] ele sempre será o elo entre a disseminação do
conhecimento oficial [...]” [grifo nosso]
2-“Onde o professor é detentor de conhecimento, que o faz embaraçar
e esquecer o modo como ele falava antes.” [grifo nosso]
3-“O ‘professor’ que vive no meio das letras é quem vai explicar o
sentido das palavras [...]”
Nesses movimentos de sentido, se evidencia um conflito que aponta para um
sentido dominante, que coloca na figura do professor a responsabilidade de
ensinar/transmitir a língua ideal, padrão. Dessa forma, os sujeitos-alunos mobilizam um
pré-construído que determina seu modo de olhar para esse lugar do professor. Assim, a
imagem de que ele é detentor do conhecimento é (re)construída nos recortes –
“conhecimento oficial” “quem vai explica os sentido”, pois, ao afirmarem que o mesmo
é o detentor do conhecimento o “sempre-já-aí” é acionado e “constitui o sujeito em sua
relação com o sentido, de modo que ele apresenta, no interdiscurso, aquilo que o
determina a dominação da forma-sujeito” (PÊCHEUX, 1975). Assim, é ativada na
memória discursiva do sujeito-aluno a (re)contrução do mito, senso comum, de que o
professor é quem detém o conhecimento e, desse modo, é o único que pode ensinar e
dominar a língua enquanto norma padrão, mostrando-nos o “sentido das palavras”.
99
Conforme Carmagnani (1999), grosso modo, alunos e professores são seres despolitizados e
ideologicamente neutros, pois não ocupam um ‘lugar’ específico numa dada instituição, visto que os
sujeitos interagem controlados pela instituição escolar que determina que ao primeiro cabe ensinar e ao
segundo aprender.
4-Cabe ao professor criar situações que estimulem os educandos,
buscando novas estratégias, mostrando as novas modificações
gramaticais, destacando a maneira que como utilizamos a língua no
nosso dia-a-dia
(Re)construindo o senso comum – “cabe” “criar”, “buscando”, “destacando”,
como já foi dito, ressoa no recorte 4 a determinação do imaginário sobre o professor, ou
seja, de que ele sabe e o aluno não. Dessa forma, o professor de língua é visto por meio
de uma memória pré-construída, isto é, “aquilo que todo mundo já sabe” em relação a
ele é retomado e é fundamental para determinar as relações de força, a maneira como o
sujeito-aluno o observa. Assim, é repetido esse imaginário de que o professor é
responsável pelo bom aprendizado do aluno e de que cabe somente ao docente a
responsabilidade de fazer com que aqueles aprendam a dominar a língua enquanto
norma padrão. Nesse sentido, a constituição do conhecimento por parte dos alunos
depende exclusivamente do professor, pois está numa posição, teoricamente, mais
privilegiada, por conseguinte, “ sabe” mais que o aluno.
Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras
significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno. [...]
Como nossa sociedade é constituída por relações hieraquizadas, são
relações de forças, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que
se fazem valer na ‘comunicação’. A fala do professor vale (significa)
mais do que a do aluno (ORLANDI, 1999, pp. 39-40).
Com isso, chegamos a uma questão essencial para entender como se forma o
imaginário do professor de língua nos dizeres desse sujeito-aluno. Considerando as
relações de força que atravessam esses dizeres, o que vemos é que se cristaliza uma
imagem que é institucionalizada e que faz com que o sujeito-aluno acredite, realmente,
que o professor de língua, no caso, detém o conhecimento e o poder de fazer com que o
aluno aprenda a dominar a língua. Desse modo, é importante ressaltar que compreender
o professor de língua, segundo as concepções que aparecem nos discursos analisados, é
entendê-lo como o detentor do “poder” de transformar o aluno em um bom falante de
língua materna. Assim, o sujeito-aluno tende a levar o discurso do professor como
sendo o saber definitivo, pronto, acabado, correto, e, portanto, fonte última e, às vezes,
única de aprendizado.
Contudo, essa não é a única imagem que ressoa no discurso do sujeito-aluno,
pois, diferentemente da projeção dos recortes anteriores, é possível observar, no recorte
5, que a imagem do professor como detentor do conhecimento não é única para o
sujeito-aluno. Para ele, o professor também aprende, também tem dúvidas, também
questiona e, com isso, o ensino da língua como uma forma de atingir um padrão se
torna falho.
5-É quando vemos o professor que, não muito diferente de seus
alunos, em pleno século XXl, advindo da língua materna em conflito
com sua falta de clareza dessa mesma língua e suas diversidades,
tendo ele que mudar sua própria visão diante do que se chama
fenômeno da língua e, também melhorar seu estilo de dar aulas para
atingir o padrão da linguagem. [grifo nosso]
Com um conceito diferente dos demais, o recorte 5 apresenta o professor, a
priori, como sendo um “aluno” no tocante à língua, pois, para o mesmo, esta é
heterogênea e não pode apresentar apenas uma concepção. No entanto, o aluno, apesar
de ter uma reflexão diferente sobre o professor de língua, retoma o senso comum, ao
afirmar que será por meio de um conhecimento maior do professor frente a língua que o
aluno conseguirá atingir a norma padrão da língua. Nessa perspectiva, pode-se observar
que nesse discurso, num primeiro momento, aparece uma visão de língua heterogênea,
língua sistema não dominável. Mas, num segundo momento, ressoa no discurso do
sujeito-aluno uma contradição, já que mesmo que admita que “existem fenômenos
linguísticos”, reafirma a necessidade de se “atingir” a língua idealizada, a padrão. Nesse
recorte, o sujeito-professor, no primeiro momento, é considerado como sujeito-aluno
que também apresenta dificuldades em entender as “diversidades línguisticas” no
interior do sistema; por outro lado, no último período do recorte, o discurso que ressoa é
o de que, mesmo com essas dificuldades e entendendo o fenômeno da variação, o
professor deve “melhorar seu estilo de dar aulas para atingir o padrão da linguagem”.
Assim, apesar de apresentar, inicialmente, uma perspectiva diferente sobre o que
é o professor de língua, o aluno não foge das relações de forças que determinam os
lugares que professor e aluno ocupam - o professor detém o saber e o aluno o recebe sendo por meio daquele que o padrão será atingido. Dessa forma, o aluno “[...] não
consegue ir além de objetivos imediatistas que, por sua vez, não reiteram do aluno o
papel de ‘re-produtor’” (CARMAGNANI, 1999, p. 159). Então , como se reflete o
discurso do aluno perante o professor?
4.2 O aluno como receptor e (re)produtor do saber docente
Após observarmos como se configura a imagem que o sujeito-aluno faz do
professor de língua, cabe reforçar o efeito desse imaginário na constituição de seu
discurso. Nessa perspectiva, no caso da relação entre aluno-professor, na maioria das
vezes, o sujeito-aluno reproduz o discurso de que o professor detém o conhecimento e,
por meio do mecanismo da antecipação100, projeta-se no lugar do docente numa
tentativa de adequar o seu dizer ao que, ilusoriamente, ele “pensa” que o professor
gostaria de “ouvir/ler”. Com isso, inconscientemente, procura dirigir o seu discurso no
intuito de produzir o efeito de sentido almejado, que é atender às expectativas do
professor. Além disso, nesse sentido, percebe-se que o sujeito-aluno, muitas vezes,
revela-se como aquele que recebe as informações tidas como importantes pelo sujeitoprofessor, numa ação estática, sem trocas de experiências.
Dessa maneira, tendo como contexto de produção o ambiente escolar, no caso o
virtual, em que o professor ocupa uma posição hierárquica frente ao aluno, ressoa
fortemente no discurso do sujeito-aluno as determinações desse lugar institucional. Com
isso, a partir de uma determinada situação, o aluno que responde a questões para um
professor, inconscientemente, se adequa ao que pode e deve ser dito.
6-[...] São tão comuns, pronunciamos de forma tão natural, que nem
nos damos conta de que são erros de português. [...] O bom mesmo é
que hoje, existe a concepção, de que a fala de nossos alunos não é
errada. (grifo nosso)
100
Segundo Orlandi (1999), o mecanismo de antecipação consiste na possibilidade que o locutor tem de
se por no local de seu interlocutor e, com isso, adequar a sua fala a ele. Dessa forma, o enunciador tenta
visar ao sentido de sua argumentação perante o ouvinte, contudo esta não pode ser prevista, pois o sentido
só é alcançado na interação.
Ao ser convidado a falar sobre o conceito de língua e de sua visão na sociedade,
o sujeito-aluno não hesita em utilizar em seus argumentos fatos trabalhados pelo
professor – “a fala de nossos alunos não é errada” - buscando um conceito de língua
enquanto heterogeneidade. Aquele vê as variantes como pertencentes às necessidades
do falante, fato que revela a não existência de uma superioridade entre as línguas, mas
sim que dependendo da circunstância a língua se adequará às necessidades dele.
Contudo, ao revelar essa visão diante da língua, o sujeito-aluno se contradiz ao tratar os
desvios da norma padrão como “erros de português”. Com isso, ressoa uma contradição
nesse discurso, pois se os devios são “erros”, então como pode ser a língua heterogênea?
A resposta a essa pergunta pode estar vinculada a relações de força que existem
entre o sujeito-aluno e o professor de língua. Por meio do mecanismo de antecipação,
como já foi mencionado, o aluno procura adequar o seu dizer ao dizer do professor,
visto que este ocupa uma posição social privilegiada em relação àquele. Desse modo,
respondendo a esses jogos de imagens, o discente procura sustentar seu discurso,
reiterando a fala do professor de que, em se tratando de língua, não se pode falar em
“certo e errado”, mas em variedades. Portanto, ao afirmar que “a fala dos nossos alunos
não é errada”, o mesmo busca no discurso do professor os saberes que repete no seu
dizer.
Todavia, ao tratar de língua como heterogeneidade, ressoa no discurso do
sujeito-aluno a ideia de língua como “certo ou errado”, tão difundida no senso comum.
Com uma visão estruturalista da língua, o aluno, inconscientemente, repete uma
memória de que os desvios são considerados erros. Devido à grande influência de
alguns estudos de vertente estruturalista no Brasil, a noção de língua baseada na
dicotomia certo/errado permeou os estudos línguísticos no país, estabelecendo-se a
concepção equivocada de que os desvios não podem ser aceitos enquanto língua. Nesse
sentido, o sujeito-aluno projeta uma imagem do professor e, por meio do discurso, tenta
adequá-lo ao seu interlocutor. Entretanto, apesar disso, não se pode olvidar que o aluno
está inserido em condiçoes de produções especificas, contexto geral, e a formação
discursiva, no caso o escolar, que influencia o dizer dele.
5. Considerações finais
Ao tratarmos da formação do imaginário do sujeito-aluno sobre o professor,
devemos considerar que este, enquanto sujeito sócio-histórico-ideológico, projeta uma
imagem de professor como detentor da língua e projeta a si mesmo a imagem daquele
que não domina as normas gramaticais. Dessa forma, ao discursivizar, materializa em
seu discurso, postado nos fóruns, esse imaginário de professor como dono do saber de
língua. Tentando, nesse movimento, atender a esse imaginário de professor, produz
sentidos que entram em contradição no fio do discurso.
Dessa forma, a partir da noção de formações imaginárias de Pêcheux e dos
recortes em análise, devemos considerar o sujeito-aluno enquanto inscrito em uma
formação discursiva escolar, que dita o que ele pode/deve produzir nesse imaginário.
Assim, enquanto sujeito ideológico, afetado pelo inconsciente, tem a ilusão de domínio
do seu dizer e transparência do seu discurso. Esse movimento de projeção de imagem
sobre si e sobre o outro só pode ser entendedido se situarmos essas condições de
produção na qual o sujeito está inscrito.
6. Referências bibliográficas
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CARMAGNANI, A. M. G. A Questão da Autoria e a Redação em Língua Estrangeira
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Autoria e Legitimação do Livro Didático: língua materna e língua estrangeira.
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CAZARIN, E. Posição-Sujeito: um espaço enunciativo heterogêneo. In: INDURSKY,
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INDURSKY, F.. Unicidade, Desdobramento, Fragmentação: a trajetória da noção de
sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, S.; GRIGOLETTO, E. et al (org).
Práticas Discursivas e Identitárias: sujeito e língua. Porto Alegre, RS: Nova Prova,
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ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
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_____. A Linguagem e seu Funcionamento: as formas do discurso. Campinas, SP:
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PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
_____________, 1975.
ENSINO DE LÍNGUAS: UMA PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONAL DA
LINGUAGEM
Flávia Conceição Ferreira da Silva101
RESUMO: Nos estudos relacionados ao ensino de línguas estrangeiras, percebe-se a preocupação do
professor em desenvolver estratégias de ensino que colaborem com o desenvolvimento efetivo das
habilidades comunicativas (produção escrita, produção oral, compreensão auditiva e compreensão leitora)
trabalhadas em sala de aula. Tais habilidades, segundo especialistas em ensino de línguas estrangeiras,
devem ser trabalhadas numa perspectiva sociointeracionista, já que o aprendiz, nesta perspectiva, terá a
oportunidade de interagir em situações reais de uso da língua. Entretanto, verifica-se, em determinadas
práticas pedagógicas, a presença de atividades tradicionalistas que não contribuem com o processo de
ensino-aprendizagem de um idioma. Isto acontece porque, em muitos casos, nem sempre a prática
discursiva docente coincide com a abordagem de ensino usada pelo professor. Diante desta constatação, o
presente trabalho tecerá reflexões acerca da Teoria da Mediação de Feuerstein (1994), e da perspectiva
Sociointeracionista de Vygotsky (2003), revelando a importância do discurso no desenvolvimento da
aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino; discurso; perspectiva sociointeracionista.
RESUMEN: En los estudios relacionados a la enseñanza de lenguas extranjeras, se percibe la
preocupación del profesor en desarrollar estrategias de enseñanza que promuevan el efectivo desarrollo de
las habilidades comunicativas (producción escrita, producción oral, comprensión auditiva y comprensión
lectora) trabajadas en la clase. Tales habilidades, según especialistas en enseñanza de lenguas extranjeras,
deben ser estudiadas en una perspectiva sociointeraccionista, ya que el aprendiente, en esta perspectiva,
tendrá la oportunidad de interaccionar en situaciones reales de uso de la lengua. Sin embargo, se verifica,
en determinadas prácticas pedagógicas, la presencia de actividades tradicionalistas que no contribuyen
con el proceso de enseñanza-aprendizaje de un idioma. Esto ocurre porque, en muchos casos, ni siempre
la práctica discursiva docente coincide con el abordaje de enseñanza usada por el profesor. Ante esta
constatación, la presente reflexión se basa en la Teoría de la Mediación de Feuerstein (1994) y de la
perspectiva Sociointeracionista de Vygotsky (2003), enseñando la importancia del discurso en el
desarrollo de aprendizaje.
PALABRAS-CLAVE: Enseñanza; discurso; perspectiva sociointeracionista.
1. Introdução
Refletir sobre o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira, em
particular a espanhola, é levar em consideração aspectos funcionais de aprendizagem
que extrapolam o âmbito da sala de aula, isto é, ensinar um novo idioma significa não
apenas levar o alunado ao domínio das estruturas linguísticas desse idioma, mas
também levá-lo a entender que essas estruturas surgirão em práticas discursivas
diversas, socialmente constituídas em contextos distintos; entendendo também que o
estudo de um novo idioma deverá ser fundamentado nessas práticas discursivas de uso
real da linguagem.
No entanto, há que se considerar, também, no processo de aprendizagem de uma
Língua Estrangeira (doravante LE), os aspectos afetivos e cognitivos dos professores e
101
Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
dos alunos que participam do processo de estudo de tal língua estrangeira; há que se
considerar, ainda, as crenças, virtudes, enfim, todo o caráter humano tanto do
professorado quanto do alunado em qualquer momento de aprendizagem, porque
ensinar uma língua estrangeira não significa apenas aprender a comunicar-se nela mas
também trabalhar o caráter humanizador e cultural da língua meta.
Burden e Williams (1999, p. 5) registram
This view, however, simplifies what is a highly complex process
involving an intricate interplay between the learning process itself, the
teacher’s intentions and actions, the individual personalities of the
learners, their culture and background, the learning environment and a
host of other variables102.
Assim, no processo de ensino é necessário levar em consideração as
características individuais do professor, suas experiências também enquanto pessoa. Do
mesmo modo é preciso considerar o aluno com suas crenças, experiências individuais,
seu conhecimento de mundo. Para Pinto (1999, p. 125)
(...) a aprendizagem de uma língua estrangeira não consiste apenas num
exercício intelectual de apreensão de formas e estruturas lingüísticas em um
código diferente, mas numa experiência de vida, pois amplia as possibilidades
de se agir discursivamente no mundo. O papel educacional da língua estrangeira
é importante para o desenvolvimento integral do indivíduo, devendo o seu
ensino ser visto em termos de proporcionar, ao aluno, essa nova experiência de
vida.
Consideramos, assim, que na sala de aula é a heterogeneidade discursiva103 que
se faz presente. São mundos discentes distintos que são apresentados ao professorado
num processo desafiador de conquista, de entendimento desses mundos. Levamos em
consideração, desse modo, a concepção dialógica da linguagem. Souza (2002) lembra
que considerar o caráter social da linguagem no ambiente escolar e/ou acadêmico, é
considerar a reflexão bakhtiniana do dialogismo nas aulas de LE. Para o autor (2002, p.
23), “a sala de aula, na visão bakhtiniana, pode ser vista como um fenômeno social e
ideologicamente constituído – ou seja, uma arena de conflitos de vozes e valores
mutáveis e concorrentes”. Dessa maneira, é a essas vozes conflitantes que o professor
deve atentar, pois são também nos discursos conflituosos e nas diferenças que podemos
entender, perceber o aluno não como um ser passivo, mas como alguém que atua
efetivamente no processo de aprendizagem, pois como registra Souza (2002, p. 24), “o
aprendiz é um ser social formado hibridamente por discursos dialogicamente
conflitantes, o que faz com que ele não se adapte facilmente a metodologias unívocas
homogeneamente lineares e preestabelecidas”.
Essas vozes caracterizam não somente o discurso do professor como também o
do aluno. É através dessas vozes que conhecemos o outro; é no que nos é apresentado
discursivamente que apreciamos os valores, as crenças, as atitudes que cada aluno
apresenta na sala de aula. Dessa maneira, se acreditamos que ensinar um idioma é
102
Essa perspectiva, no entanto, simplifica o que é considerado um processo extremamente complexo
envolvendo uma interação intricada entre o próprio processo de aprendizagem, as intenções e ações do
professor, as personalidades individuais dos aprendizes, sua cultura e conhecimento prévio, o ambiente de
aprendizagem e uma série de outras variáveis. (Tradução da pesquisadora)
103
Fazemos referência aos diferentes alunos presentes na sala de aula.
considerar os aspectos funcionais da linguagem e tudo que circunda na sala de aula,
podemos concluir que esse processo é um tanto quanto complexo, portanto “dominar”
esse processo é tentar reconhecer o outro nesse caminho sócio-educacional de estudo
da LE.
Para Burden e Williams (1999, p. 5)
The successful educator must be one who understands the
complexities of the teaching-learning process and can draw upon this
knowledge to act in a way which empower learners both within and
beyond the classroom situation 104.
Nesse ambiente de aprendizagem, sociodiscursivamente complexo,
identificamos a aplicação de metodologias de ensino que podem ser eficazes ou não,
dependendo da oportunidade em que é dada às vozes do aluno, isto é, da participação
discursiva do alunado dentro desse ambiente de ensino. O que nos leva a acreditar que é
através das relações discursivas que observamos qual metodologia, abordagem de
ensino está sendo aplicada, ao contrário do que comumente acontece quando o
professor, ao escolher uma metodologia de ensino, acredita realizar, discursivamente, a
prática da abordagem elegida.
Nesse cenário discursivo, acreditamos que só por meio do sociointeracionismo é
que o aprendiz participa efetivamente do processo de aprendizagem, evidenciando uma
prática discursiva que gera uma interação colaborativa no ambiente da sala de aula,
como mostra o gráfico abaixo:
Aprendiz
Discurso
Docente
Afetividade
Crenças
Interação
Valores
Figura 1
104
O educador bem sucedido deve ser aquele que compreende as complexidades do processo de ensinoaprendizagem e pode fazer uso desse conhecimento para agir de modo a capacitar o aluno a atuar em
situações dentro e fora da sala de aula. (Tradução da pesquisadora)
2. O ensino de línguas: da Escola Positivista ao Sociointeracionismo
Para um melhor entendimento de como é possível aprender uma língua
estrangeira, parece-nos importante tecer reflexões acerca das teorias que fundamentaram
o processo de aprendizagem de um novo idioma. Vamos discutir, nesse momento,
algumas das importantes teorias que subsidiaram o estudo de uma língua estrangeira,
em particular a espanhola.
Consideramos a contribuição da Psicologia Educacional que revela as três
escolas norteadoras do estudo de uma língua, seja essa materna, seja estrangeira. Para o
entendimento dessas três escolas, levaremos em consideração as reflexões de Burden e
Williams (1997) apresentadas no capítulo: “An introduction to educacional psychology:
behaviourism and cognitive psychology”; e também as de Moreira (1999) apresentadas
no seu livro “Teorias da Aprendizagem”.
A primeira escola a ser estudada é a Positivista, que prega o desenvolvimento do
aprendizado de uma “lógica positiva” em que para que se realize o conhecimento faz-se
necessário realizar estímulos para que se chegue a uma resposta considerada correta.
Nessa escola, é a concepção Behaviourista de aprendizagem que se faz presente. Essa
abordagem behaviourista de aprendizagem surge no século XX nos Estados Unidos e,
embora tenha apresentado falhas na sua “estruturação”, foi extremamente relevante para
os métodos da atual psicologia cognitiva, como afirma Matlin (2004). Para essa
pesquisadora (2004, p. 4), “o behaviourismo enfatiza os estímulos ambientais que
determinam o comportamento”. Embora o mais proeminente dos behavioristas tenha
sido o psicólogo americano John B. Watson, foi com Skinner que essa abordagem teve
uma maior repercussão. Mas, como ela surge na sala de aula?
Moreira (1999, p. 14) registra que “grande parte da ação docente consistia em
apresentar estímulos e, sobretudo, reforços positivos (consequências boas para os
alunos) na quantidade e no momento corretos, a fim de aumentar ou diminuir a
frequência de certos comportamentos dos alunos”.
No caso do estudo de uma língua estrangeira, o processo caracteriza-se pela
apresentação do professor, ao alunado, de um estímulo que o leve a uma resposta
esperada havendo, em seguida, o reforço que segundo Pinto (1999) é a avaliação que o
professor realiza da resposta dada ao alunado. Para essa autora eram os exercícios de
repetição e de substituição que caracterizavam essa abordagem de ensino de um idioma
estrangeiro.
Moreira (1999, p. 14) registra que
A tônica da visão de mundo behaviourista está nos comportamentos
observáveis e mensuráveis dos sujeitos, i. e. nas respostas que ele dá
aos estímulos externos. Está também naquilo que acontece após a
emissão das respostas, ou seja, na conseqüência. Tanto é que uma
idéia básica do behaviourismo mais recente é a de que ‘o
comportamento é controlado pelas conseqüências’: se a conseqüência
for boa para o sujeito, haverá uma tendência de aumento na freqüência
da conduta e, ao contrário, se for desagradável, a freqüência de
resposta tenderá a diminuir.
Essa prática behaviourista foi, inicialmente, testada nos animais e era, segundo
Burden e Williams (1999), considerada como a prática do condicionamento clássico SR (estímulo-resposta). Para esses pesquisadores o indivíduo aprende se receber um
estímulo que provoque uma dada resposta.
Mas, como identificamos esse processo na aula de língua estrangeira? Como
registramos anteriormente, as atividades de repetição e substituição marcavam o
behaviourismo na sala de aula, e essas atividades eram chamadas de áudio-lingual.
Burden e Williams (1999, p. 10) afirmam:
Learning a language is seen acquiring a set of appropriate mechanical
habits, and errors are frowned upon as reinforcing ‘bad habits’. The
role of the teacher is to develop in learners good language habits,
which is done mainly by pattern drills, memorization of dialogues or
choral repetition of structural patterns. Explanation of rules is
generally given when the language item has been well practiced and
the appropriate habit acquired105.
Essa prática áudio-lingual de condicionamento pode, em algum momento, ter
sido eficaz, mas apresenta lacunas que não favorecem o desempenho do alunado. De
acordo com Burden e Williams (1999) esse processo tem suas limitações: 1) o alunado
apresenta-se como um ser passivo; 2) não se leva em consideração o aspecto cognitivo
que está sempre presente em todo e qualquer processo de aprendizagem; 3) não se leva
em conta o valor total de uma língua estrangeira; 4) não se percebe nenhuma interação
na relação professor-aluno; 5) a resposta correta é a única aceitável.
Com o descrédito que a teoria behaviourista foi causando nos psicólogos, o
interesse pela cognição humana foi crescendo. O fato é que essa nova teoria de
aprendizagem nasceu das limitações que o behaviourismo apresentava. Certas
atividades humanas, por exemplo, não poderiam ser entendidas através da “técnica”
behaviourista de estímulo, resposta e reforço. Como retrata Matlin (2004, p. 6), “Muitas
atividades psicológicas não podiam ser estudadas porque os behaviouristas limitavam-se
somente a respostas observáveis”.
A partir desse momento, o cognitivismo ganha um esforço relevante, pois
através dessa linha de pesquisa se tentará entender como o ato de conhecer se realiza
levando-se em consideração os processos mentais. Moreira (1999, p. 15) afirma que: “a
filosofia coginitivista trata, então, principalmente dos processos mentais, se ocupa da
atribuição de significado, da compreensão, transformação, armazenamento e uso da
informação envolvida na cognição”.
Nessa abordagem cognitiva de aprendizagem, os pesquisadores passaram a
dedicar-se aos processos do pensamento humano. Para o ensino de idiomas, essa
atenção dada aos processos revela-se de maneira importante, pois, assim, busca-se
105
O aprendizado de uma língua é visto como a aquisição de uma série de hábitos mecânicos aprendidos e
os erros são olhados com desagrado como o reforço de maus hábitos. O papel do professor consiste em
desenvolver no aprendiz bons hábitos de linguagem, o que é feito, principalmente por repetições do tipo
padrão, por memorização de diálogos ou repetição em coro de padrões estruturais. Explicações das regras
são geralmente dadas quando o item da língua tiver sido bem praticado e o hábito apropriado tiver sido
desenvolvido. (Tradução da pesquisadora)
perceber quais estratégias de aprendizagem podem ser utilizadas para tornar o processo
mais fácil.
Na perspectiva cognitivista, os processos do pensamento humano estão
relacionados à Abordagem do Processamento da Informação, que possibilita o
entendimento do modo como conhecemos o mundo, e como desenvolvemos os
processos mentais. Nessa abordagem há, segundo Matlin (2004), dois componentes
importantes: a) o processo mental, que é mais facilmente entendido se comparado a um
computador e b) um sistema organizado por etapas, já que o processo mental pode ser
compreendido desse modo.
Tendo em vista o acima exposto, podemos perceber que, embora a Psicologia
Cognitiva nos tenha apresentado postulados muito importantes para o entendimento da
atividade da mente humana, identificamos um aspecto não tão eficaz dessa abordagem,
que é a ideia de comparar a mente humana a um computador. A mente humana processa
todo um conhecimento socialmente construído, e esse conhecimento surge nos
processos interacionais da relação humana. Tendo em vista esse raciocínio concluímos
que essa abordagem não contempla todos os aspectos que fazem parte do processo de
aprendizagem de uma língua estrangeira, o que nos leva à concepção sociointeracionsta
de aprendizagem.
Na abordagem Sociointeracionista, o processo de ensino de uma língua
estrangeira só se realiza levando-se em conta o aspecto social e interativo da linguagem.
Nesta abordagem, o foco da aprendizagem não está apenas no alunado ou no professor,
mas em todos os elementos que fazem parte da aula de idiomas. Elementos tais como:
ambiente da sala de aula, contexto situacional, disposição das carteiras, entre outros.
Enfim, leva-se em conta tudo o que faz parte desse processo; tudo que esteja direta ou
indiretamente interligado ao alunado e ao professor. Segundo Pinto (1999, p. 120)
[...] o enfoque sociointeracionista da linguagem indica que, ao se
engajarem no discurso, as pessoas consideram aqueles a quem se
dirigem ou quem se dirigiu a elas na construção social do significado.
Ou seja, o social, que envolve toda a construção cultural e lingüística,
está sempre presente na aprendizagem de uma língua.
Nessa perspectiva, não só os aspectos cognitivos são levados em consideração
mas todo conhecimento adquirido na interação, como registra Pinto (1999, p. 12) “[...]
a aprendizagem é de natureza sociointeracional, no sentido de que aprender é uma
forma de estar no mundo social com alguém em um contexto histórico, cultural e
institucional”.
Burden e Williams (1999) pontuam que os fatores que influenciam o processo de
aprendizagem de uma língua estrangeira são: os professores, os estudantes, as tarefas e
os contextos. A aprendizagem se realiza porque há interação entre esses elementos.
Para os pesquisadores (1999, p. 43):
Teachers select tasks which reflect their beliefs about teaching and
learning: learners interpret tasks in ways there are meaningful and
personal to them as individuals. The task is therefore the interface
between the teacher and learners. Teachers and learners also interact
with each other; the way that teachers behave in classrooms reflects
their values and beliefs, and the way in which learners react to
teachers will be affected by the individual characteristics of the
learners and the feelings that the teacher conveys to them106.
Isto é, os valores, as crenças, as convicções tanto do professor quanto do
aprendiz de língua estrangeira devem ser considerados nesse processo, pois nessa
abordagem, os sujeitos discursivos da aprendizagem são vistos em sua totalidade e não
apenas em seu aspecto cognitivo. As características de ambos fazem parte desse
processo socioeducacional e linguístico.
Para o Sociointeracionismo o estudante é um sujeito efetivamente discursivo
porque age, atua na interação social do ambiente da sala de aula. Leva-se em conta o seu
conhecimento de mundo, seu conhecimento sistêmico, sua postura no processamento da
aprendizagem. Tais reflexões nasceram das investigações desenvolvidas por Vygotsky
(2003), um dos mais relevantes estudiosos do Sociointracionismo.
Vale ressaltar que não apenas Vygotsky desenvolveu relevantes reflexões acerca
do processamento da aprendizagem, mas outro importante teórico, que compartilha das
mesmas ideias de Vygotsky, apresentou uma grande contribuição para o estudo do
desenvolvimento sócio-cognitivo humano partindo de pesquisas desenvolvidas com
crianças.
O psicólogo israelense Reuven Feuerstein (1975) além de ter dado atenção aos
aspectos cognitivos responsáveis pelo processo de aprendizagem de uma criança, por
exemplo, concluiu em linhas gerais, que o ambiente social em que as crianças estão
inseridas e o fator cultural da sociedade a que pertencem estão intimamente
relacionados, influenciando de forma direta o desenvolvimento intelectual dessa
criança. De acordo com Gomes (2001), estudioso da teoria de Feuerstein, é coerente
afirmar a aproximação que há entre as ideias do israelense e as de Vygotsky
(2003/2008) acerca do desenvolvimento. Ambos consideravam que a interação, a
cultura, entre outros aspectos, influenciavam de maneira determinante o crescimento
sócio-cognitivo humano, ou seja, o homem, de uma maneira geral, possui um
mecanismo cognitivo que lhe permite agir discursivamente no mundo, no entanto, é na
interação discursiva, considerando as vozes sociais e culturais do seu ambiente que ele
crescerá sócio-cognitivamente. Vejamos o que nos apresenta o estudioso Gomes (2001,
p. 72)
(...) verificamos a existência de uma semelhança estreita entre
Feuerstein e Vygotsky: ambos acreditavam na existência de um
potencial não-manifesto, no desenvolvimento pela interação
sociocultural e na necessidade da elaboração de metodologias
avaliativas mais eficientes voltadas para a potencialidade do
indivíduo. Ambos buscavam desbravar potenciais humanos que não
eram observáveis pelos métodos tradicionais.
106
Os professores selecionam as atividades que refletem suas opiniões sobre o ensino e a aprendizagem:
os estudantes interpretam as atividades do modo pelo qual lhes parecem significativas. A tarefa é,
portanto, a interface entre o professor e os alunos. Professores e alunos também interagem entre si; a
postura que os professores devem assumir nas aulas reflete suas crenças e valores, e o modo pelo qual os
estudantes reagem aos professores será afetado pelas características individuais dos estudantes e os
sentimentos que o professor transmite para eles. (Tradução da pesquisadora)
Entretanto, como Feuerstein (1994) buscou explicar ou apresentar outras
maneiras de avaliar, de perceber o crescimento cognitivo-social de uma criança levando
em consideração o seu ambiente familiar, cultural, enfim, sua esfera social? Feuerstein
(1994) identificou que através da mediação a criança, por exemplo, se desenvolveria de
uma forma mais eficaz, isto é, passou-se a perceber que o processo de aprendizagem de
um dado conteúdo se realizava não apenas pelo conhecimento que a criança tinha sobre
determinado tema, mas levava-se em conta os instrumentos externos a ela, que
mediavam a construção do conhecimento; construção que se iniciava fora do ambiente
escolar.
Para sistematizar sua compreensão do desenvolvimento humano, Feuerstein
(1994), criou a Teoria da Mediação, ou seja, a EAM, Experiência de Aprendizagem
Mediada. Segundo essa teoria, a aprendizagem acontece quando ela é mediada por
instrumentos educacionais que favorecem o estabelecimento da compreensão de um
conteúdo vivenciado em sala de aula. Essa mediação pode ser realizada pela mãe, pelo
pai, pelos amigos, pelos professores, etc. O fato é que a aprendizagem de fato acontece
na interação percebida entre o aprendiz e o/a mediador /a.
Acompanhemos abaixo um testemunho dado por Feuerstein (1994), encontrado
no livro Feuerstein e a Construção Mediada do Conhecimento de Cristiano Gomes
(2001, p. 72)
Durante a Segunda Guerra, vivi em campos de concentração e depois
em prisões nazistas. A guerra acabou e dediquei-me às crianças
sobreviventes do holocausto. Elas foram para Israel depois de
passarem três, quatro anos nos campos de concentração. Seus pais
haviam morrido em câmaras de gás. Algumas chegaram em Israel
como esqueletos. Eram totalmente analfabetas aos oito, nove anos de
idade. Eu não podia aceitar que fossem retardadas ou idiotas. Passei
mais de sete anos trabalhando com essas crianças. Não conseguiam
organizar o pensamento, nem suas ações. Uma noite, em Jerusalém,
um dos meninos, com oito anos, deitou-se ao meu lado e então
começamos a ler filosofia juntos. A mudança era possível. Hoje, essas
crianças tornaram-se homens e mulheres inteligentes e dignos.
Ao observarmos o testemunho de Reuven Feuerstein, percebemos que o
fascinante de sua experiência não está apenas relacionada à descoberta da possibilidade
de resgatar vidas ou a fome por conhecimento, mas também à descoberta de que é
possível construir o conhecimento através da interferência positiva de um instrumento
mediador, que nesse caso foi o próprio Feuerstein. Para o pesquisador, as pessoas que
fazem parte do convívio social da criança podem exercer a função de mediadoras, assim
como seus professores ou ainda livros ou qualquer material que seja usado no processo
de aprendizagem.
Dessa experiência e de outras observações do pesquisador, surge a EAM que
funcionará como uma nova ferramenta de entendimento no desenvolvimento da
inteligência humana contrapondo-se à teoria de Piaget. Para Gomes (2001, p. 73)
Se antes de Feuerstein, com Piaget, o baixo rendimento cognitivo, o
fracasso no processo de aprendizagem e/ou o retardo mental eram – e
ainda são – vistos como frutos de uma imaturidade biológica da
estrutura cognitiva do indivíduo, os mesmos passaram a ser vistos
como frutos da falta de interação social chamada experiência de
aprendizagem mediada, que, por sua vez, produz a denominada
síndrome de privação cultural. A própria imaturidade biológica, vista
como causa central das dificuldades de aprendizagem para muitos
teóricos, é analisada por Feuerstein como um efeito da ausência de
mediação ou processo mediacional.
Neste momento, identificamos a relevância da EAM, pois, nesta abordagem,
considera-se não somente o aspecto cognitivo, mas também o caráter sócio-interacional,
o ambiente social em que o aprendiz se encontra. Percebemos ainda que a interação
torna-se elemento chave na dinâmica da construção do conhecimento, na dinâmica do
ambiente escolar. Seguindo Gomes (2001, p. 77), apreciamos a seguinte informação:
Há um mediador – um ser humano – que seleciona, filtra, organiza,
nomeia, dá significados ao mundo dos objetos. O mediador transmite
sua visão de mundo ao mediado para que ele possa estabelecer a sua
própria visão. É no conflito entre os conhecimentos prévios do
mediado e o saber do mediador que se produz uma nova forma de
interpretação por parte do mediado. Esse tipo de transmissão cultural
engloba a EAM.
Magalhães (2004) acredita que, fazendo uma reflexão do seu discurso, o
professor perceberá se sua prática discursiva se distancia das ações tradicionalistas
rotineiras ou não, para nessa reflexão buscar possibilidades de reconstrução de práticas
pedagógicas que dificultam o aprendizado do alunado, na medida em que desconsidera,
por exemplo, a pedagogia popular (Magalhães, 2004). Esta autora afirma que
os modos como a linguagem vem sendo enfocada nos contextos de
formação nem sempre possibilitam aos participantes a desconstrução
de representações tradicionais que têm uma sólida base em pedagogia
que entende ensino-aprendizagem como transmissão e devolução de
conhecimentos e está apoiada em um conceito estruturalista de
linguagem. (MAGALHÃES, 2004, p. 61)
Por isso, é preciso considerar o professor não como um instrumento de mera
transmissão de conhecimento, mas sim um profissional reflexivo, crítico, que reflita
sobre suas práticas discursivas e também sobre a atuação do seu alunado no processo de
estudo da língua estrangeira meta. Dessa forma, é preciso que o professor reflita sobre
sua prática discursiva docente para que possa sempre fazer uso de uma prática
discursiva que corrobore para o desenvolvimento efetivo do aprendiz de língua
estrangeira.
3. Referências bibliográficas
BURDEN, Robert; WILLIAMS, Marion (1999). Psychology for Language Teachers:
a Social Constructivist Approach. Cambridge: University Press
FEURSTEIN, Reuven. (1975). Mediated Leaning Experience - Na out line of the
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_____. (1994). Aprender a Pensar: a modificabilidade cognitiva no contexto da
formação profissional. Revista Formar, nº 11, maio-junho.
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Aula. Programa de Pesquisa Cognitiva, Divisão de Educação Especializada da
Universidade e WITWATERSAND, África do Sul. Tradução José Francisco Azevedo.
São Paulo: Instituto Pieron de Psicologia Aplicada.
GOMES, Cristiano Mauro Assis. (2001). Feuerstein e a Construção Mediada do
Conhecimento. São Paulo: Artmed.
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Rio de Janeiro: LTC
MAGALHÃES, Maria Cecília (org.) (2004) A Formação do Professor como um
Profissional Crítico. São Paulo: Mercado de Letras
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ensino/aprendizagem de Língua Estrangeira. In.: MARCUSCHI, E. (org.). Formação
do Educador, Avaliação e Currículo. Recife: Ed. UFPE.
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Maria José (org.) (2002). O Jogo Discursivo na aula de Leitura – Língua Materna e
Língua Estrangeira. 2ª ed. São Paulo: Pontes.
VYGOTSKY, L. S. (2003). A Formação Social da Mente. Tradução José Cipolla Neto
et al. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
VYGOTSKY, L. S. (2008). Pensamento e Linguagem. Tradução Jefferson Luiz
Camargo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
DAS CAVERNAS ÀS REVISTAS – A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO
GÊNERO INFOGRÁFICO
Flávia G. B. Borges107
RESUMO: As mudanças constantes operadas pela tecnologia trazem consigo novas formas de
comunicação e interação, e, com isso, novos gêneros aparecem no cenário midiático. Utilizando recursos
da multimodalidade, o infográfico é um desses gêneros textuais que apresentou nas últimas duas décadas
grandes modificações tanto em sua forma como em sua função, enquanto gênero textual, em periódicos
nacionais. Este artigo tem por objetivo descrever a construção sócio-histórica do gênero infográfico,
retomando conceitos sobre gêneros de Devitt (2004), Bazerman (2005) e Miller (2004) e a partir das
hipóteses de De Pablos (1998). Para tanto, foi realizada uma pesquisa de caráter bibliográfico, em fontes
documentais impressas e eletrônicas, que revelaram a intrínseca relação entre o gênero infográfico e a
pinturas rupestres, como origens da multimodalidade em textos escritos, e a influência decisiva das
evoluções tecnológicas dos meios de comunicação de massa para a ascensão e sucesso do gênero
infográfico em revistas e jornais atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero textual; infográfico; multimodalidade.
ABSTRACT: The constant changes operated by technology bring new forms of communication and
interaction, and thus, new genres appear in the media scene. Using the resources of multimodality, the
infographic is one of those genres that changed drastically in the last two decades both in form and in
function in national periodicals. This article aims to describe the socio-historical genre known as
infographic, based on genre concepts from Devitt (2004), Bazerman (2005) and Miller (2004) and on the
hypothesis of De Pablos (1998). In order to achieve such objective, we conducted a bibliographic survey
on print and electronic documentary sources, which revealed the intrinsic relationship between the
infographic genre and pre-historic paintings, as the origins of multimodality in written texts, and the
decisive influence of technological developments of means of mass communication for the rise and
success of the infographic genre in magazines and newspapers today.
KEYWORDS: Genre; infographic; multimodality.
1. Construindo sócio-historicamente um gênero
“Genres have long been seen metaphorically
as having lives: being born,
growing, and sometimes dying.”
Amy Devitt
A linguagem, como atividade humana, está em constante movimento, num
processo dinâmico, e assume diversas formas para cumprir seu papel comunicativointerativo, uma dessas formas são os gêneros textuais. Gêneros não são estáticos e,
assim como a linguagem, mudam também para acompanhar as atividades humanas.
Como os gêneros pertencem às atividades humanas e as refletem, assim como a
linguagem muda, mudam os gêneros, ou seja, se as situações sociais, históricas e
culturais se modificam, modificam-se os gêneros que as refletem, ou emergem novos
107
Doutoranda em Linguística pela UFPE, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Mato Grosso, bolsista FAPEMAT.
gêneros a partir de gêneros antecedentes. Para Devitt (2004) as mudanças culturais,
assim como as pessoais, mudam os gêneros, o processo é tão genérico, num nível social,
quanto específico, num nível individual, já que os propósitos individuais das pessoas
também podem ocasionar mudanças nos gêneros.
Dessa forma, ao percebermos um gênero textual hoje, impresso numa revista ou
manipulando-o numa folha avulsa, ou sendo visto num outdoor, vemos uma
possibilidade desse gênero neste contexto sócio-histórico e podemos, ao refletir sobre
ele, indicar-lhe partes de sua história, de seu processo diacrônico que resultou no que
estamos apreciando.
Ainda, podemos perceber que os gêneros respondem às situações retóricas a que
pertencem, de maneira que, como as situações são diversas, os gêneros são flexíveis e,
sendo assim, são profundamente dinâmicos. Devitt (2004, p. 90) aponta que “even the
nature of our world, fluid and inconstant, requires that we understand genre as
dynamic108”, e, sendo as atividades humanas cada vez mais fluidas, num mundo em
constante modificação tecnológica, os gêneros tendem a acompanhar essa fluidez. E
exatamente nesse contexto se encontra o infográfico.
2. A infografia
A palavra infografia é um neologismo adotado entre os anos 70 e 80 (século
XX), para denominar o antigo gênero gráfico informativo, que deriva do termo inglês
infographics, resultado da união de information e graphics. Trata-se de uma modalidade
textual que apresenta a informação através de imagens em esquemas e que não é
utilizada apenas no jornalismo, mas também em outras áreas. Segundo Ranieri (2008), o
termo inglês deu origem às palavras em espanhol infográfico e infografía,
representando, então, uma atividade exercida nas redações de jornais por infógrafos ou
infografistas.
O Dicionário Houaiss traz o verbete com a seguinte definição: “gênero
jornalístico que utiliza recursos gráfico-visuais para apresentação sucinta e atraente de
determinadas informações”, sendo etimologicamente construído a partir do radical info(deduzido de informação) + -grafia.
O infográfico faz parte de um conjunto de gêneros que formam o chamado
“jornalismo iconográfico”, também composto por gráficos, mapas, símbolos,
ilustrações, histórias em quadrinhos e iconografia animada. Como gênero, o termo
infográfico é entendido como uma unidade espacial que se utiliza de uma combinação
de códigos icônicos e verbais para produzir uma informação ampla e precisa, que, se
feita por um discurso verbal, demandaria mais espaço (COLLE, 2004).
Historicamente, os infográficos surgiram, segundo a hipótese de De Pablos
(1998), com as pinturas rupestres dos homens das cavernas. Segundo esse autor, o
108
Tradução nossa: mesmo a natureza do nosso mundo, fluido e inconstante, requer que nós
compreendamos gênero como dinâmico.
homem que descobriu o traço, iniciou toda a trajetória humana da linguagem, dando
origem à grafia, e, muito mais além, às artes gráficas.
A possibilidade de desenhar trouxe à humanidade uma nova forma de expressão,
mais poderosa e com mais possibilidades. Segundo De Pablos (1998), “después del
trazo, el humán descubrió la figura de su entorno que podía recrear a partir del trazo.
Así nacieron tantas pinturas rupestres en cuevas de todo el viejo mundo habitado, en
Europa, América, Africa, Asia y Oceanía109”.
Essa forma de comunicação trouxe aquelas mensagens da Antiguidade aos dias
de hoje e o que podemos comprovar é que se trata de uma expressão baseada no
binômio imagem + texto. Desde as cavernas, as paredes dos templos egípcios, lâminas
de papiros, as iluminuras da Idade Média, até o surgimento da imprensa, por
Guttemberg, o que se vê é a união entre imagens e textos, sem que se possa ler um sem
o auxílio do outro, pois são complementares.
Papiro egípcio
Iluminura – Idade Média
109
Tradução nossa: depois do traço, o homem descobriu que podia recriar a figura de seu entorno a partir
do traço. Assim nasceram tantas pinturas rupestres em cavernas do velho mundo habitado, na Europa,
América, África e Oceania.
Entre as formas de registrar acontecimentos e fornecer dados à sociedade, os
mapas e diagramas têm sido largamente utilizados, desde 6.200 a.C, como vemos no
registro a seguir:
Representação de uma cidade da Babilônia encontrado na região de Kirkuk, Iraque. O original
era escavado em pedra110
Para De Pablos (1998), esse trabalho primitivo de desenho e texto fez nascer a
infografia. Segundo o autor, “había nacido la infografía, que no es en modo alguno un
producto de la era informática, sino fruto de los deseos de la humanidad por
comunicarse mejor, por dejar más acuradas aquellas primeras formas de comunicar111.”
Em consonância com De Pablos, o infografista Luiz Iria, da Editora Abril, em
entrevista realizada por e-mail, opinou que “as pinturas rupestres, de uma certa maneira,
retratam como eram os habitantes daquela época. Na infografia as imagens são
informações visuais. Vendo por esse prisma posso concluir que as pinturas rupestres
possam ser consideradas infografias”.
De Pablos (1998) indica que a infografia sempre existiu, desde a primeira união
entre o desenho e o texto e que hoje, a infografia conta com poderosos elementos
gráficos, computadorizados que auxiliam na construção da mensagem. Segundo o autor,
De ese modo, la historia de la infografía es tan antigua como la de la
conjunción de un texto a una imagen, fenómeno visual que encontramos en
Babilonia y en Egipto, por no citar los antiguos restos de culturas primitivas
en paredes de cavernas o de piedras alzadas en lugares mágicos. La
infografía, pues, surge como una necesidad de subrayar el mensaje icónico,
para darle su perfecto significado, para que no quepa duda alguna a quien
pudiera mal interpretar el contenido de una comunicación visual no
animada.112
110
Disponível em:<http://www.scribd.com/doc/8447930/Historia-Infografia>, acesso em janeiro de 2010.
Documento original: Marcos na história da visualização de dados. Trad. e Org. Mario Kanno.
111
Tradução nossa: havia nascido a infografia, que não é de modo algum um produto da era da
informática, mas sim fruto dos desejos da humanidade para se comunicar melhor, para deixar mais
precisas aquelas primeiras formas de comunicar.
112
Tradução nossa: Desse modo, a história da infografia é tão antiga como a da conjunção de um texto a
uma imagem, fenômeno visual que encontramos na Babilônia e no Egito, por não citar os antigos restos
de culturas primitivas nas paredes de cavernas ou de pedras encontradas em lugares mágicos. A
infografia, pois, surge como uma necessidade de sublinhar a mensagem icônica, para dar-lhe seu perfeito
significado, para que não fique dúvida alguma a quem puder mal interpretar o conteúdo de uma
comunicação visual não animada.
No século XVIII, a necessidade de se comunicar melhor fez com que cartógrafos
passassem a registrar em mapas mais que a posição geográfica dos lugares, mas também
a mapear dados sobre economia, saúde, geologia, entre outros. Entre os artistas da
época, destaca-se William Playfair, que realizou estudos econômicos por meio de
gráficos, como o do exemplo a seguir:
Gráfico de barras e de linhas com dados econômicos, feito em 1786, por William Playfair (17591823), Inglaterra.
Entretanto, foi no século XIX que ocorreu grande revolução na maneira de
apresentar dados. Devido às inovações do século anterior, houve um acelerado
crescimento de gráficos estatísticos e mapeamento temático, de tal forma que grande
parte do que conhecemos ainda hoje sobre gráficos foram desenvolvidos nesse século.
O gênero gráfico alcançou status acadêmico e começou a figurar em artigos
científicos e teses da época, como forma de descrever fenômenos analisados nos
trabalhos acadêmicos. Iniciava-se a época de ouro da estatística, com a teoria de Gauss e
Laplace.
As guerras da época eram tema constante nos gráficos, mapas e diagramas.
Neste, produzido pelo engenheiro francês Charles Minard em 1869, a largura do trajeto
é proporcional ao número de soldados que sobreviveram na campanha, em cinza, o
caminho de ida e, em preto, o da volta.
Ilustração gráfica da campanha de Napoleão contra a Rússia, em 1812.
A partir da inserção da imprensa nos meios sociais, o binômio imagem + texto se
fez presente nos jornais impressos, como vemos nas páginas abaixo, a primeira de 1740
e a outra de 1914:
Daily Post, Londres, 1740 e 1914
Entretanto, se analisarmos as publicações em jornais, onde a infografia se faz
mais presente, podemos questionar quando a fotografia, a mera ilustração deixou de
exercer sua função e passou ao infográfico a tarefa de informar e ilustrar? Segundo
Devitt (2004, p. 90), “the genre constructed by and constructing this situation, therefore,
will also change. The changes to which genres adapt include changes in contexts of
culture, situation, and genres113”. Assim, o gênero infográfico assumirá a partir da
década de 80, século XX, novas funções.
3. Infográficos na História das Guerras
Historicamente, a infografia foi mais utilizada desde o final do século XIX para
auxiliar nas explicações sobre guerras, o que faz levantar a hipótese da infografia
cumprir, por muitas vezes, a função que os mapas exerciam de orientar, localizar e
explicar um processo, por exemplo.
Para Devitt (2004, p. 94), o processo de surgimento de um novo gênero se dá por
um gênero antecedente e pelos propósitos da comunidade a que aquele gênero pertence.
Em relação aos mapas, podemos deduzir que, com os novos conceitos de utilização das
imagens e com a necessidade crescente de interação oportunizada pelos meios digitais, a
característica de imobilidade do mapa não mais oferecia aquilo que se buscava da
reportagem.
113
Tradução nossa: O gênero construído pela e construindo esta situação, portanto, também mudará. A
mudança a que os gêneros se adaptam incluem mudanças nos contextos da cultura, da situação e gêneros.
Assim, os infográficos podiam exercer melhor esse papel de informar e ilustrar
como estavam ocorrendo as guerras. De Pablos (1998) indica que
[...] encontramos auténticos infos que nos enseñan episodios de la
guerra de secesión norteamericana, grabados sobre planchas de
madera al estilo xilográfico, grabados a mano, y volvemos a encontrar
este tipo de labores -el binomio Texto + Imagen- con motivo del
hundimiento del Maine en aguas de La Habana en febrero de 1898114.
Dessa forma, os novos propósitos culturais e sociais, como as inovações
tecnológicas e o amplo acesso aos meios de comunicação, no início da década de 80,
proporcionaram o grande ressurgimento do infográfico no jornalismo, nos Estados
Unidos, como information graphics ou gráficos de informação, logo passando a ser
infographics (infográficos).
No Brasil, o termo infografia, segundo Ary Moraes (1998, p.67), é utilizado
desde a década de 80, quando das reformas gráficas de alguns dos principais jornais do
país, como O Estado de São Paulo e Zero Hora. O grande marco da inserção dos
infográficos foi, sobretudo, a Guerra do Golfo, no início da década de 1990, difundidos
em jornais, em revistas e na televisão.
Com o avanço da internet e as novas ferramentas de mídia, a Guerra do Iraque
trouxe infográficos mais modernos e interativos. Como foi uma guerra “anunciada” e
planejada, foi possível aos meios de comunicação realizar todos os preparativos,
inclusive a cobertura jornalística visual.
Assim, foram realizados projetos gráficos de cadernos especiais sobre a guerra,
iconografias geográficas e representativas dos temas relacionados ao Iraque,
114
Tradução nossa: encontramos autênticos infos que nos ensinam episódios da guerra de secessão norteamericana gravados em pranchas de madeira ao estilo xilográfico, gravados à mão, e voltamos a encontrar
este tipo de trabalho – o binômio Texto + Imagem – com motivo do colapso do Maine nas águas de
Havana em fevereiro de 1898.
infográficos que foram estruturados previamente para estarem prontos para o início do
conflito.
Diversos infográficos foram construídos para auxiliar as reportagens sobre a
guerra, traziam informações a respeito dos avanços americanos, distribuição de
alimentos por ONGs humanitárias, rotas de ataque, entre outros. Podemos ver exemplos
abaixo:
115
Infográfico sobre os gastos com a Guerra do Iraque
O que esses infográficos nos revelam é que anteriormente ao avanço da rede
mundial de computadores, e, consequentemente, da sua inserção das imagens e ícones
de maneira tão decisiva em nossa vida cotidiana, muitas das funções do infográfico
115
Infográfico disponível em:
<http://2.bp.blogspot.com/_0j_JXbrnWa0/SWvP2dFnBYI/AAAAAAAAAq0/9kyx7XhcqOs/s400/threetr
illiondollarwar.jpg > Acesso em 17 dez 2009.
eram realizadas por mapas, gráficos e tabelas. No entanto, agora, com esse novo gênero,
todas essas informações estão concentradas num único texto, no infográfico.
4. Modalidades dos infográficos
Eugênio Bucci, em entrevista concedida à Mayara Rinaldi, explicou de que
forma a infografia pode auxiliar na construção de uma matéria:
O infográfico não rouba conteúdo de palavras, o que você precisa
descrever em palavras só pode usar as palavras, e o que você pode
fazer por infográfico é bom fazer para não transformar o texto numa
trilha modorrenta e sonífera para o leitor. Se você ficar tentando
descrever detalhes de um esquema espacial por meio de um texto de
revista vai construir uma espécie de trilha de obstáculos para o leitor,
ele não vai suportar passar por aquilo lá. Ao passo que se você usa a
linguagem visual para aquele trecho, reforça a importância do texto
que vem ao lado.116
Em geral, os infográficos se apresentam em duas modalidades, como autônomos
ou como complementares. Os infográficos autônomos são aqueles que se apresentam
independentes de qualquer outro texto, são eles próprios o texto. Luiz Iria, em entrevista
concedida por e-mail, indica que “a infografia é completa. Trabalhamos com apuração,
ilustração, edição de imagens, fotografia e designer. Ela é um pouco de cada área dentro
do universo editorial”.
Já os infográficos complementares são aqueles que auxiliam alguma reportagem,
notícia, texto. Sobre esse fato, Luiz Iria explica que “nem sempre o infográfico é a
estrela principal de uma matéria. Muitas vezes, ele entra como um complemento par um
entendimento melhor da pauta em questão. A infografia é integração de arte e texto. Um
depende do outro para o entendimento da informação”.
Nesse tópico, destacam-se os infográficos da Revista Superinteressante que,
desde a década de 1990 (século XX), vem utilizando esse recurso ora como
complementar, ora como gênero autônomo. Luiz Iria, que é responsável por boa parte
dos infográficos da Editora Abril, explica que “a infografia é importante tanto nas
revistas como na Internet pois é uma linguagem que permite absorvermos as
informações de maneira rápida e dinâmica. Revistas como Superinteressante, Saúde e
Mundo Estranho, todas da Editora Abril, tem como marca registrada o uso constante da
infografia”.
5. Considerações finais
Como De Pablos (1998) ressalta, o gênero infográfico não é um gênero novo,
apenas um velho gênero recuperado porque sempre houve infografia. O que acontece é
116
RINALDI, M. O uso da infografia no jornalismo científico brasileiro – estudo da Revista
Superinteressante.
Disponível
em
<http://www.nupejoc.cce.ufsc.br/paginas/produ/mayara_superinteressante_1.pdf >
que houve um momento em que a infografia se transformou em infografia jornalística.
Além de ser ou não ser um gênero jornalístico, o importante é que a infografia serve
para auxiliar a informação que fica para o leitor. Espera-se que o leitor que leia um texto
com infografia ou um infográfico se lembre melhor da informação do que aquele que
leu somente o texto e viu uma foto.
Historicamente, como foi mostrado, o binômio imagem + texto sempre esteve
presente na linguagem humana, como forma de melhor se comunicar. No século XXI,
temos uma intensa utilização desse gênero, o infográfico, não apenas para melhor nos
comunicarmos, mas também para alcançarmos nossos objetivos, seja de convencer,
chocar, divertir, informar. Qualquer que seja o objetivo ou função de um texto, o que
vemos na atualidade da imprensa mundial é que a forma mais utilizada para se expressar
tem sido o infográfico.
Devido às suas características formais serem maleáveis e apropriadas tanto para
os gêneros impressos quanto digitais (animados ou não), o infográfico serve a diversas
funções nas páginas de jornais, revistas e sites da internet. Essa característica do gênero
transforma-o num poderoso instrumento de comunicação. Para tanto, o gênero recorre a
inúmeras estratégias para se compor, como cores, ilustração, gráfico, mapas, animação,
acompanhadas de texto verbal.
Assim, após o percurso sócio-histórico desse gênero percorrido, podemos
afirmar que a durabilidade do infográfico como conhecemos hoje está já em processo de
mudança. Ele pode se transformar num novo gênero, incorporando aspectos de outros
gêneros ou não, o que podemos prever é que, com a velocidade das informações e
mudanças tecnológicas, logo o infográfico não será como o definimos aqui.
6. Referências bibliográficas
BAZERMAN, C. Gêneros Textuais, Tipificação e Interação. A. P. Dionísio, J.C.
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RINALDI, Mayara. O Uso da Infografia no Jornalismo Científico Brasileiro –
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Disponível
em:<
http://www.nupejoc.cce.ufsc.br/paginas/produ/mayara_superinteressante_1.pdf. Acesso
em 20 nov. 2009.
A LINGUAGEM, O DESENVOLVIMENTO DO SER, E OS
SUBTERRÂNEOS DO DISCURSO NA PRESERVAÇÃO DAS FACES DOS
INTERLOCUTORES
Francisco de Assis Silva117
RESUMO: O presente trabalho faz uma reflexão sobre a importância da linguagem para o
desenvolvimento do ser humano; como a linguagem se materializa no texto e como se dá o processo de
interação verbal entre os sujeitos do discurso. Com base em Bakhtin, aborda também a não neutralidade
da linguagem, o seu caráter ideológico, o embate entre os interlocutores e o processo de argumentação na
busca da persuasão. Trata do dialogismo e dos aspectos polifônicos presentes nas falas dos sujeitos. Em
seguida, o texto se apóia no trabalho de Dominique Maingueneau para fazer um estudo sobre as leis do
discurso e a presença das faces positiva e negativa, trazendo como demonstração os depoimentos de
advogados e juízes sobre a existência de problemas linguísticos em petições de advogados, e os
depoimentos de advogados e juízes sobre a questão. Reflete também sobre depoimentos de pessoas de
uma comunidade que foi pesquisada pelo fato de não haver violência ali, mesmo estando inserida em uma
região considerada violenta.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; polifonia; leis do discurso.
ABSTRACT: The current paper makes a reflection about the importance of the language for the
development of the human being; how the language materializes itself in the text and how the interaction
process takes place between the subjects and individuals of the discourse. According to Bakhtin, he also
points out the non-neutrality of the language, its ideological character, the collision between the
interlocutors and the process of argument in search of persuasion. It talks about the dialogism, the
polyphonic aspects existing in the speeches of the speakers. Next, the text supports itself in the work of
Dominique Maingueneau in order to make a study about laws of discourse and the presence of both
positive and negative faces, bringing as a demonstration the testimonies of lawyers and judges about the
existence of linguistic problems in lawyers’ petitions as well as the testimonies of lawyers and judges
about this issue. It also reflects about the people’s testimonies of a community which was researched
regarding the absence of violence in that place, even being within a region considered violent.
KEY WORDS: Language; polyphony; laws of discourse.
1. Introdução
Estudar a linguagem no processo de humanização e desenvolvimento do ser
humano é tentar compreender como ocorrem as relações de interação entre as pessoas, o
diálogo entre o eu e o outro. Os caminhos de encontros e desencontros pelos quais os
sujeitos compreendem o mundo e se relacionam com o que nele existe e,
principalmente, com o seu semelhante.
Tendo como base epistemológica o sócio-interacionismo e crendo na unicidade
e, ao mesmo tempo, na pluralidade do ser humano, compreendemos que esse ser de que
falamos é um agente de relações e o resultado de infinitas formas de interação: além de
117
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor de Português da
Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE. Professor de Português da
Universidade de Pernambuco - UPE.
ser individual é, ao mesmo tempo, coletivo e social. Compreende-se assim que suas
ações, nesse processo de interação, ocorrem tão somente pela linguagem. É desse modo,
pela linguagem, que o ser humano se comunica e se relaciona com tudo o que o cerca:
natureza, família, comunidade etc.
Quando falamos em linguagem, admitimo-la não como simples expressão de
pensamentos ou manifestação de sentimentos, nem como veículo de comunicação ou
mera fonte de informação. Falamos das várias linguagens como processo de interação
humana. Tanto da não-verbal (representada pelas mais variadas formas de
manifestações humanas, cujos elementos expressivos não são predominantemente
veiculados pelas palavras), como da verbal (representada pela articulação de palavras,
signos linguísticos imbuídos de significados e intenções. É por meio das várias
modalidades de linguagem que o ser humano constrói o seu percurso de humanização e
desenvolvimento. Vai desde o seu estágio mais rudimentar e natural ao universo
cultural, ambiente complexo de aprendizado, chegando ao nível mais desenvolvido
possível. Esse desenvolvimento, resultado das infinitas formas de interação, não se dá
sempre de forma harmônica e linear, mas sim, também nos embates, numa constante
arena de lutas em que os interlocutores dialogam, discutem e se protegem ao mesmo
tempo, compreendendo as posições de parceria e de adversidade.
2. A linguagem e o desenvolvimento do ser
Desde o nascimento, o ser humano já inicia o seu processo de aprendizagem e
desenvolvimento e, assim, vai sendo construído o seu modo de pensar e de agir com os
outros, em contato com os outros, no diálogo e nos embates. Sobre isso, Geraldi (1991,
p. 4 e 5) indica que
[...] a questão da linguagem é fundamental no desenvolvimento de
todo e qualquer homem; de que ela é condição sine qua non na
apreensão de conceitos que permitem aos sujeitos compreender o
mundo e nele agir; de que ela é ainda a mais usual forma de encontros,
desencontros e confrontos de posições, porque é por ela que estas
posições se tornam públicas, é dar à linguagem o relevo que de fato
tem.
[...] É portanto a interlocução, entendida como espaço de produção de
linguagem e constituição de sujeitos.
Nesse processo de humanização e de desenvolvimento, iniciado, talvez
instintivamente, ainda na vida intra-uterina e que realmente se desenrola a partir do
contato materno e, posteriormente, com os demais seres humanos, que age e interage no
coletivo, é preciso, segundo Geraldi (1991, pp. 6 e 7),
Focalizar a interação verbal como o lugar da produção de linguagem e
dos sujeitos que, neste processo, se constituem pela linguagem
significa admitir:
a)
que a língua (no sentido sociolingüístico do termo) não está
de antemão pronta, dada como um sistema de que o sujeito se apropria
b)
para usá-la segundo suas necessidades específicas do
momento de interação, mas que o próprio processo interlocutivo, na
atividade de linguagem, a cada vez a (re)constrói;
c)
que os sujeitos se constituem como tais à medida que
interagem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de
mundo resultam como “produto” deste mesmo processo. Neste
sentido, o sujeito é social já que a linguagem não é o trabalho de um
artesão, mas trabalho social e histórico seu e dos outros e é para os
outros e com os outros que ela se constitui [...]
Entendemos, com isso, que a linguagem não ocorre fora de um universo próprio,
por meio de meras expressões isoladas e espontâneas, desarticuladas de uma lógica
coletiva, dissociadas de um contexto amplo e social. A linguagem se materializa em
unidades concretas, autônomas e, ao mesmo tempo, faz parte de algo muito maior, que a
envolve; e que é preciso que exista esse universo, ao qual esteja incorporada, uma vez
que é somente nesse universo que podemos compreender a sua existência: é o que
chamamos de texto.
Quando usamos a palavra “texto”, não a estamos empregando na visão
estruturalista da linguagem, nem de acordo com o que aprendemos nas aulas de
Português dos anos sessenta, setenta, parte dos anos oitenta. É o texto como uma
unidade de sentido, que existe como resultado das ações e necessidades humanas no
processo de interação e de sobrevivência.
Considerando a importância dos textos, Mugrabi (2002, p.13) diz que “Os textos
são produtos da atividade humana, e como tais são articulados a necessidades, interesses
e condições de funcionamento de uma sociedade dada”.
Já que afirmamos que o homem é um ser plural, inserido em um contexto de
relações e interações: numa sociedade altamente complexa, onde, de acordo com
Mugrabi (2002, p.8), “O texto constitui um filtro por meio do qual os sujeitos
interpretam e compreendem as ações humanas, os fenômenos físicos e sociais, as
múltiplas facetas da cultura na qual estão inseridos”, as sociedades, por sua vez, se
relacionam de tal forma, por meio dos textos, que, segundo Mugrabi (2002, p. 12), “é
impossível imaginar a vida das comunidades na Terra sem os textos”. Seria impossível,
portanto, sermos o que somos se os seres humanos não interagissem, não se
humanizassem, não se desenvolvessem pela linguagem, em forma de textos.
No que se refere aos textos e sobre a importância deles para os seres humanos,
Bakhtin (2000, p. 329 e 334) afirma que “onde não há texto, também não há objeto de
estudo e de pensamento”. Claro, pensamos com os textos; a partir de textos, elaboramos
novos textos. Diz ainda o mesmo teórico que “O ato humano é um texto potencial e não
pode ser compreendido (na qualidade de ato humano distinto à ação física) fora do
contexto dialógico do seu tempo”. Analisando de forma lúcida o que diz Bakhtin,
entendemos que, por trás de qualquer ação consciente subjaz um texto. Para realizarmos
uma ação, acionamos a existência de textos, explícitos ou implícitos, mas reais. Desse
modo, compreendemos que todo o processo de interação humana se dá por meio de
textos. Cada intenção, cada ato, pressupõe o uso de textos (com as mais diversas
linguagens). Embutidos em tudo o que pensamos e paralelos a tudo que fazemos estão
os textos. Segundo Vigotski, é impossível pensarmos sem a existência das palavras.
3. As intenções da linguagem: entre os encontros e os desencontros
Se falamos que os seres humanos se desenvolvem pela linguagem no convívio e
no diálogo com o outro, entendemos que esse processo não se dá de forma linear, de
maneira plenamente harmônica e ingênua. É no ato responsivo do outro que percebemos
se o que defendemos é aceito ou não pelo nosso interlocutor. Vemos o nível de
aceitação ou de rejeição daquilo que dizemos, portanto o nosso interlocutor é, ao mesmo
tempo, parceiro e oponente, companheiro e adversário. É pensando nesse outro que
construímos e reconstruímos o nosso discurso, uma vez que não dizemos meras
palavras. Dizemos, segundo Bakhtin, “verdades e mentiras”.
Falamos para que tudo o que dizemos seja aceito pelo outro, mesmo que
tenhamos consciência de que tal verdade seja inconsistente, mas se acreditamos em tal
verdade, em nossa fala nos armamos de estratégias para que isso que dizemos se torne
verdade, ou pelo menos, que produza o efeito que pretendemos, já que, segundo se diz,
nós somos o que pensamos e falamos. Vemo-nos refletidos na nossa própria fala ou
somos a própria fala. Bakhtin (2002, p. 46) diz que
O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se
refrata. O que determina essa refração do ser no signo ideológico? O
confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma
comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes... Conseqüentemente,
em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor
contraditório. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de
classes.
Não temos dúvida de que, por trás das palavras, escondem-se as
intencionalidades, o que, segundo Ducrot, são os não-ditos, os implícitos. Sutilmente
armamos os posicionamentos argumentativos, as estratégias do dizer, os recursos
utilizados, visando a obtermos os efeitos pretendidos. Todos esses recursos e estratégias
são usados a depender do ambiente de fala, da pessoa com quem se fala, do momento
em que a fala é construída, das outras pessoas presentes ao ambiente da fala, do estado
psicológico e dos aspectos subjetivos dos interlocutores.
Quando pensamos o signo como “arena”, como afirma Bakhtin, pensamos no
modo como devemos “lutar”, para vencermos ou convencermos o outro, para que o
outro adira ao nosso modo de ver e de interpretar os fenômenos físicos e sociais como
interpretamos, que o outro se torne mais um dos nossos aliados, que fique do “nosso
lado”. É pensando nesse outro que construímos as nossas “trincheiras” de luta verbal e
não verbal, e assim o nosso discurso se torna a arma de persuasão e de conquista de
adeptos para nossas ideias. Ora nos posicionamos no nosso próprio discurso, ora nos
antecipamos ao embate e assumimos o discurso do outro ou citamos a sua possível voz,
como forma de “minar” o seu território, fortalecendo assim nosso discurso e tentando
enfraquecer ou anular o que possivelmente viria como arma do nosso oponente e, com
isso, utilizamos as vozes dos outros, embutidas na nossa própria voz.
4. Os encontros e os desencontros nos discursos dos advogados
Em 2008, com a ajuda de quatro alunos do curso de Direito da Faculdade de
Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, unidade mantida pela Autarquia Educacional
do Vale do São Francisco, iniciamos uma pesquisa com o objetivo de investigar a
existência de possíveis problemas linguísticos existentes nas petições elaboradas pelos
advogados da região.
Logo no início da análise, tivemos a primeira surpresa: nas petições coletadas
como amostra, fomos logo constatando que, embora se imaginasse que esse tipo de
documento fosse portador de uma linguagem totalmente correta, que obedecesse
rigorosamente ao uso do padrão culto de linguagem, que essa linguagem fosse usada
com a impessoalidade pretendida, que fosse escrito com concisão, já que os juízes, de
um modo geral, estão sobrecarregados de processos a serem julgados e deferidos ou
indeferidos e não podem perder tempo lendo textos tão longos e desnecessariamente
detalhados, que possuísse a devida clareza das ideias ali registradas, para que fossem
entendidas sem dificuldade pelos magistrados, que a linguagem fosse provida da
formalidade necessária, já que é um documento legal e de muita importância no
universo jurídico, ao contrário de todas essas qualidades citadas e exigidas pelo Manual
de Redação da Presidência da República em vigor, o que constatamos foi a presença de
problemas elementares e muitos vícios de linguagem.
Quanto aos pleitos e argumentos para conseguirem do juiz o pretendido
deferimento, uma vez que é o real motivo da existência da petição, percebemos que
havia muitas falhas de argumentação, e algumas até elementares, sendo que a primeira
falha constatada foi a presença de períodos longos, contendo muitas orações
subordinadas, sem a presença das orações principais, o que causava uma espécie de
sentido vago, ficando claro que ali faltava alguma coisa, para que o texto fosse
entendido.
Levando em conta a importância dos tipos de argumentos usados para
conseguirem do juiz o parecer favorável ao pleito exposto no documento, e que esses
argumentos se constituem as armas em uso na “arena” do direito, uma vez que, para
cada pleito, pressupomos a existência de, no mínimo, dois oponentes, pessoas em
posições adversas numa mesma situação, ou seja, uma (ou várias) que sairá (ou sairão)
como vencedora (ou vencedoras) e outra(s), como perdedora(s), comprovamos que os
argumentos, eram, na maioria das vezes, fracos ou defeituosos, por conta do mau uso da
linguagem, quando ficava claro que o advogado não dominava o argumento de
competência linguística. Para Platão & Fiorin (2004, p. 291),
[...] O modo de dizer dá confiabilidade ao que se diz. Utilizar também
um vocabulário adequado à situação de comunicação dá credibilidade
às informações veiculadas. Se um médico não se vale de termos
científicos ao fazer uma exposição sobre suas experiências,
desconfiamos da validade delas. Se m professor não é capaz de usara
norma culta, achamos que ele não conhece sua disciplina. Além disso,
contribui para persuadir a utilização de diferentes mecanismos
lingüísticos.
Além dos aspectos já citados, outro elemento negativo observado em algumas
petições foi que, além fazerem um texto que ora caiam no uso exacerbado de
preciosismos e arcaísmos, tentando impressionar ingenuamente o juiz, chegavam no
final do texto e não diziam o que realmente pretendiam com aquele documento, e aí o
texto perdia sua verdadeira função de produção.
Depois de constatados diversos problemas na linguagem das petições, fomos
analisar os questionários enviados aos advogados e aos juízes para verificarmos as
opiniões desses profissionais a respeito da existência dos problemas citados, que
prejuízos esses problemas poderiam causar e como poderíamos evitar tais problemas.
Os depoimentos dos entrevistados nos indicaram mais algumas novidades e como todos
se preservavam em suas respostas, garantindo a integridade e evitando quaisquer
possíveis comprometimentos.
5. A preservação das faces na construção dos discursos
O discurso, para ser eficiente, deve obedecer a alguns princípios, estar submisso
a algumas leis, uma vez que, segundo Maingueneau, o interlocutor ou destinatário supõe
que o produtor do enunciado sempre respeita as “regras do jogo”: que o enunciado é
sério, que ali há uma informação indispensável ao interlocutor individual ou coletivo e
que, por isso, foi produzido, proporcionando todo o esforço possível para que haja a
interação entre locutor e interlocutor. Quando isso não acontece, os interlocutores
poderão ter alguns problemas e o discurso poderá se tornar improdutivo.
O primeiro aspecto fundamental é o princípio de cooperação, o que Charaudeau
chama de “contrato de comunicação”. Para que dois ou mais interlocutores tenham
sucesso em um momento de fala ou de construção de um texto coletivo, o saber deve ser
compartilhado. Os falantes ou participantes do discurso devem colaborar de certa forma
para que a informação seja completa, embora parte dela não esteja explícita, mas apenas
na mente dos participantes do discurso, que ambos detenham conhecimentos anteriores
ou antecipados sobre o assunto, e que ambos colaborem para que o entendimento seja o
mais eficaz possível.
Outro aspecto fundamental é o princípio da polidez no discurso. A obediência a
esse princípio implica a garantia de uma conversa prazerosa, de um diálogo agradável
em que os interlocutores não sentem vontade de logo encerrá-lo. Muitas vezes fazem
questão de até prolongá-lo com certas repetições de informações que servem apenas
fortalecimento das relações, com troca de palavras e expressões que denotam afeto e
confiança e que concorrem para o “avivamento” ou a manutenção e de laços outrora
construídos. Segundo Maingueneau (2001, p. 37),
Como a comunicação verbal é também uma relação social, ela se
submete às regras que costumamos chamar de polidez. Transgredir
uma lei do discurso (falar fora do assunto, ser hermenêutico, não as
informações solicitadas etc) é se expor a ser chamado de “maleducado”. O simples fato de dirigir a palavra a alguém, de
monopolizar sua atenção já é uma intrusão no seu espaço, um ato
potencialmente agressivo.
Considerando a importância da polidez para a realização do diálogo, e não se
esquecendo de que o signo é uma arena em que se travam as lutas de ideias, os
interlocutores, a todo momento, expõem-se e, ao mesmo tempo, protegem-se. É o que
chamamos da presença e preservação das faces. Uma positiva e outra negativa. É a
exposição da face positiva e a proteção ou preservação da face negativa.
De acordo com Maingueneau, apoiado em Brown e Levinson, esses inspirados
em Goffman, cada indivíduo possui duas faces, uma positiva e uma negativa. A face
positiva é o lado idealizado, construído pelo locutor com o objetivo de apresentá-lo ao
outro. É o que o indivíduo quer que seja visto, o lado social, o apresentável, a
denominada “fachada”, ou seja, o “modo como eu quero que o outro me veja, e que eu
me esforço para apresentá-lo”. É o lado compartilhado com a sociedade.
No que se refere à face negativa, isso representa o lado que o indivíduo não
compartilha com o outro. Não quer que seja visto. É a sua privacidade, é o que ele
protege para, a todo custo, garantir sua integridade. É uma espécie de “território
sagrado”, constantemente vigiado para que ninguém o invada. Não divide isso com
ninguém ou quase ninguém. E se divide com algum outro de sua inteira confiança, esse
outro não tem permissão de dividi-lo com mais ninguém, sob pena de haver ruptura nos
laços de confiança construídos entre ambos. A face negativa diz respeito ao corpo e ao
psicológico: sua intimidade. Diz respeito aos seus ensaios, treinos, amadorismos,
defeitos e fragilidades.
Levando em conta que todo mundo possui as duas faces, quando duas pessoas
dialogam, ali estão presentes duas faces de cada um dos interlocutores. E cada um, à
medida que dialoga, protege a face negativa e expõe a positiva. Exalta a face positiva e
finge ignorar a face negativa, mas que está em plena vigilância para, quando necessário,
avançar na defesa da negativa.
Com relação a isso, tentamos mais uma vez trazer para serem observados os
trabalhos dos advogados, informações colhidas por meio de entrevistas com questões
semi-estruturadas, aplicadas para saber o posicionamento dos advogados a respeito dos
problemas constatados nas petições analisadas no grupo. Vejamos o que aconteceu.
Quando perguntamos aos advogados se as petições enviadas aos juízes eram
elaboradas por eles mesmos ou eram copiadas de modelos prontos em manuais ou
disponíveis na internet, nenhum deles admitiu que copiava de qualquer fonte, mas sim
que elaborava suas próprias petições. Cerca de trinta por cento acrescentaram apenas
que reformulam também algumas das que são feitas por eles, adaptando-as para outras
finalidades.
Quando perguntamos se eles sentem algum tipo de dificuldade para redigir as
petições que usam, de seis entrevistados, cinco disseram que não possuem dificuldade
alguma para a elaboração de suas petições. Um afirmou que é relativo, pois depende da
especificidade do caso.
De acordo com o que vimos, é claro que eles não iriam assumir que copiavam
petições de manuais ou retiravam de modelos da internet, pois estavam diante de alunos
de Direito. Jamais iriam expor suas dificuldades profissionais. E a reputação deles como
profissionais, como ficaria diante de aspirantes à carreira?
Quando perguntamos a que eles atribuíam o fato de não terem dificuldades para
redigir as petições, um dos entrevistados afirmou que “não tem dificuldade porque é
licenciado em Letras Português pela FFPP”. Outros quatro disseram possuir experiência
suficiente para lidar com a linguagem.
Ao perguntarmos se já teve alguma petição devolvida ou indeferida por algum
problema linguístico (falta de clareza, inadequação de argumento, inconsistência etc.),
todos os entrevistados afirmaram que “não”.
Ao perguntamos se já foi prejudicado ou se já teve algum cliente prejudicado por
causa do texto da petição, todos os entrevistados afirmaram que “não”. No entanto, quando
perguntamos se conheciam algum profissional da advocacia que foi prejudicado por causa
do texto da petição ter sido mal elaborado, dos seis entrevistados, cinco responderam
afirmativamente e um respondeu que não. O que nos chamou a atenção é que quase todos
disseram que conheciam outros advogados que passaram por situação desse tipo pelo fato de
terem petições devolvidas por problemas linguísticos, mas ninguém admitiu ter passado por
situação semelhante.
Quando perguntamos, que recomendações ele, como advogado, faria ao aluno de
Direito em relação à prática de elaboração de petições, vieram as seguintes
recomendações:
1. “Sintetizar, usar da clareza que advém somente da prática e do bom uso dos recursos
lingüísticos”;
2. “Muita leitura para ter uma boa produção textual”;
3. “Indico aos meus alunos apostilas sobre linguagem e direito, disponibilizo, em mídia
digital, dicionário jurídico (latim e português). A leitura é indispensável à produção de
peças processuais, bem como o conhecimento da língua”;
4. “Estudar cada situação de forma minuciosa”;
5. “Todas as petições devem ser fundamentadas com a legislação pertinente aos pareceres
jurídicos, além da clareza”.
Percebemos que as respostas foram bem diferentes. Enquanto o primeiro
recorreu a duas características da boa linguagem da Redação Oficial, recomendadas
pelo Manual da Redação da Presidência da República de 2002, o segundo fez questão
de deixar claro que a prática da leitura é fundamental para poder redigir bem os textos.
Observamos aqui a mudança de posição dos entrevistados, quando agora se viravam
contra a face negativa dos entrevistadores, que eram alunos iniciantes do curso. Antes as
perguntas deixavam-nos numa situação de inferioridade, já que questionavam a face
negativa deles, agora, as perguntas já os deixavam em posição superior, quando
passavam a dar conselhos, e os conselhos, na verdade, vão contra a face negativa do
receptor/interlocutor. Percebemos ainda que o terceiro entrevistado, além de advogado
era também professor de um curso de Direito, o que fez questão de mostrar como sua
face positiva, o que denotaria uma posição de superioridade em relação aos outros
advogados e aos alunos. Os demais deixaram claro para os entrevistadores (que no
momento eram alunos) o que deveriam fazer para redigirem bem na futura profissão de
advogados. Nessa nova posição, os entrevistados enviaram, então, as seguintes
recomendações para o coordenador do curso e para os professores das disciplinas:
1. “Treinar bastante os alunos para que aprendam a usar os recursos lingüísticos que
ajudem a reduzir a fala, pois os juízes não gostam de receber petições longas. Sugiro
também que se prolongue o tempo de ensino na sala de aula. No meu tempo eram 4
semestres de português, acho que é por isso que nós, mais velhos, não temos tanta
dificuldade como os jovens de hoje”.
Observamos que, agora, na posição de profissional experiente do Direito, que
sabe o que dá certo e o que prejudica na área jurídica, e que tem algo a recomendar aos
aspirantes da carreira, aos professores e aos coordenadores de cursos de Direito (e isso
faz parte da face positiva de advogado, pelo fato de ser esse o lado com o qual ele quer
ser reconhecido em sociedade), ele sugere que os cursos contemporâneos sigam o
modelo dos cursos de Direito que funcionavam em sua época de estudante. E vejamos o
que ele diz no final de sua recomendação: “acho que é por isso que nós, mais velhos,
não temos tanta dificuldade como os jovens de hoje”. O advogado coloca-se em posição
de superioridade em relação aos advogados jovens, que têm muito a aprender com os
mais velhos, e ensinar e dar conselhos aciona a face positiva do locutor e ataca a face
negativa do interlocutor, no caso, os alunos e os advogados em início de carreira.
Observando o que disse o segundo entrevistado, notamos também a sua
mudança de postura, agora na posição de quem tem o que ensinar:
“Trabalhos tendentes a verificar a habilidade do aluno quanto a produção de texto
argumentativo. Disponibilizar ao discente o vocabulário mínimo da ciência jurídica, bem
como noções de latim”.
Esse entrevistado, mesmo não sendo um professor, diretamente se coloca nessa
posição e sugere o que supõe ser a melhor a maneira de evitar os possíveis problemas
comuns a esse gênero textual. Agora é o entrevistador (no caso os alunos) que tem a sua
face negativa ameaçada. Como é uma situação de aprendizagem e o objetivo, nesse
momento, é o de melhorar a qualidade do curso, para que os alunos, por meio desse
curso, conquistem a profissão de advogado, não experimentem situações
constrangedoras de terem suas petições devolvidas e seus futuros clientes prejudicados,
por não terem propriedade de escrever bem uma petição e os demais textos que circulam
no universo jurídico.
Observemos, agora, a posição do entrevistado seguinte, quanto à sugestão a ser
dada para os professores e o coordenador do curso:
“Trabalhar com os alunos textos jurídicos, concordância verbal e muita produção de textos”.
Esse entrevistado também se coloca em posição de superioridade e não na
posição de defesa da face, uma vez que nessa situação é o outro (individual e coletivo)
que precisa proteger a sua face, no caso, a negativa. E ainda se arrisca a interferir
também na área do professor de Português, ao sugerir que ele trabalhe conteúdos
específicos de sua disciplina para corrigir e evitar os problemas linguísticos que
possivelmente cometeriam na elaboração das petições.
O entrevistado seguinte, como é, além de advogado, também professor da
instituição pesquisada, tomou postura diferente e colocou-se da seguinte forma:
“Na realidade os professores têm muito cumprido sua parte no tocante a esse assunto porque
o programa já determina todos os passos e o que deve ser seguido”.
Observemos que ele já inicia sua fala na defesa de sua face negativa como
professor e não apena como advogado. É como se estivesse dizendo: “Estamos
trabalhando muito bem e não precisamos de sugestões dos que estão de fora. Esse é meu
território e não admito que o invadam, emitindo conselhos que não estamos pedindo ou
querendo”. E, como sabemos, dar conselhos é uma ameaça para o interlocutor, pois o
aconselhador se coloca em posição de superioridade sobre o aconselhado. Significa que
o aconselhador sabe mais do que o aconselhado, tem mais experiência e nome do que o
outro.
Em seguida fomos ver o que diziam os juízes em relação a esses problemas.
Perguntamos aos juízes o seguinte: “Em relação às petições elaboradas/enviadas pelos
advogados, quais os problemas comuns que mais são encontrados, os quais podem
interferir na análise inicial?” Três juízes responderam assim:
a) “Desconhecimento do direito, bem como a má redação”;
b) “Falta de silogismo. Erros gráficos que, se reduziram após o computador. Falta de
objetividade”;
c) “Não são observados os requisitos fundamentais estudados nos Artigos 282 e 283 do
Código de Processo Civil, bem como a desatenção quanto ao aspecto jurisdicional”.
Notamos que esses três juízes se ativeram aos conhecimentos específicos das leis
e demais instrumentos legais que amparam os pleitos dos advogados nas petições.
Assumiram claramente a posição de superioridade (como assim os são) pelo fato de
serem juízes e deterem a prerrogativa de deferir ou indeferir o pedido ali exposto pelo
advogado. Foram incisivos em demonstrar que sabem mais e que o que está ameaçado é
a face negativa dos advogados e, no caso, todos fazem questão de expor a face positiva,
que é a imagem que a sociedade tem da pessoa do juiz: “aquele sabe muito mais que o
advogado”.
O quarto juiz entrevistado se posicionou de forma diferente:
“Prolixidade, uso de expressões incoerentes que muitas vezes expressam ambigüidade”.
Observamos que ele, embora na posição de juiz, se ateve ao assunto
questionado, que era o aspecto linguístico. Iniciou já deixando claro que os advogados
estavam construindo petições com textos muito longos e cansativos, além da imprecisão
das palavras e das frases, sem o devido cuidado de elaboração. Falou também a respeito
das condições de comunicabilidade das petições, comprometendo o sentido. Nesse caso,
o juiz assumiu a posição de leitor exigente e deixou ameaçada a face negativa do
advogado como redator.
Pulamos a terceira pergunta feita aos juízes e fomos à quarta e à quinta. Citamos
as duas perguntas de forma seguida: “4. Alguma vez V. Exa. foi induzido a cometer
alguma falha de decisão devido à má elaboração de petições por parte de advogados? 5.
Caso isso tenha acontecido, como foi constatada a falha? Foi possível repará-la?”.
1.“Não, porém o trabalho é árduo para evitar falhas”;
2. “Em razão das errôneas apontadas, podemos deixar de apreciar algum pedido”;
3. “Esse artifício, por vezes, é utilizado pelos profissionais de pouca ética, cabendo ao juiz
repelir tal prática com o rigor da lei processual. Assim, o magistrado deverá ser cuidadoso
ao apreciar tal matéria para aquilatar se ela decorreu de pouco estudo do advogado ou de
sua pouca ética. No primeiro caso, deverá determinar a emenda da peça; no segundo, deverá
fazer valer as regras dos arts. 14 e 18 do CPC”;
4. “Não mas tem que ter cuidado para que erros graves, que comprometam a petição, não
passem despercebidos”;
5. “Não”.
Nas respostas dos dois primeiros entrevistados houve diferenças e semelhanças.
O primeiro disse não ter cometido qualquer tipo de falha e o segundo não negou, mas
também não admitiu ter cometido alguma falha, mesmo sendo essa por culpa de
petições mal elaboradas. Não se sabe realmente se nunca cometeram falhas, mesmo por
culpa de advogados mal preparados, ou se o que estava em jogo aqui era a proteção da
face positiva do seu lado profissional, uma vez que estavam diante de jovens alunos de
Direito e, em suas posições, não ficaria bem para eles, juízes, admitirem que falharam.
E a imagem construída socialmente de que o juiz tem a verdade? É ele a pessoa
encarregada de julgar, descobrir de que lado estão os erros ou atos repugnados e dar a
razão a quem está certo (ou deveria estar). Para eles, assumir falhas seria despir-se
diante dos inferiores, mostrar a face negativa.
O terceiro a responder, assume uma posição de neutralidade ou de quem está
acima dos demais juízes, pois aproveita para recomendar a um juiz não personalizado
ou a todos os juízes para estarem atentos, pois os problemas existem e todos devem
ficar em alerta, vigiando assim a face positiva da magistratura, uma responsabilidade de
todos os magistrados. Ele alerta que o problema pode ser também por “falta de ética do
advogado” e, nesse caso, recomenda a aplicação de leis ou sanções, o que iria assim
interferir diretamente na face negativa dos advogados antiéticos.
Os dois últimos disseram nunca terem falhado (e se tivessem também não diriam
um “sim” de maneira franca). Talvez deixassem isso de forma implícita, como o
segundo o fez.
O segundo estudo foi feito com os depoimentos, resultados de entrevistas de
outra pesquisa, da qual também participei como professor pesquisador. No segundo
semestre de 2009, ao lado de um professor de Analise do Discurso, de uma professora
de Sociologia e de mais cinco alunos dos cursos de Direito e de Turismo da Faculdade
de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, iniciamos uma pesquisa em uma
comunidade de quase cinco mil habitantes, distrito de Petrolina, distante cerca de 60 km
da sede do município. O distrito de Rajada, com mais de quatro mil habitantes, não
conta com casos graves de violência. Ali, há quase um século, foram registrados apenas
dois casos de assassinato e nenhum caso de estupro. Queríamos saber por que ali, tão
perto da cidade de Petrolina e de outras cidades que fazem parte do denominado
“Polígono da Maconha”, área considera violenta pela produção de maconha e por
alimentar o tráfico para os grandes centros urbanos, não havia violência.
Fomos todos àquele distrito entrevistar os moradores daquela comunidade.
Dividimos a entrevista em várias categorias e dividimos o grupo em duplas para cobrir
áreas diferentes. Pesquisamos sobre as categorias família, escola, trabalho, consumo,
religião, lazer e violência. É claro que o foco central estava na categoria violência, já
que era o tema da pesquisa: “A não-violência em Rajada”.
Vejamos o constatado nas falas de alguns entrevistados sobre a categoria
“família”, quando perguntamos a eles “O que é família?”
Depoimentos de entrevistados de sexo e faixa etária diferentes:
1. “É amor, amizade.” (MHL, 11 anos, sexo masculino);
2. “É tudo aí. Família é o centro de tudo” (JCR, 35 anos, sexo masculino);
3. “É tudo de bom. Graças a Deus, tudo para mim corre bem. Fui ainda um pai e uma
mãe com necessidade...” (JTS, 85 anos, sexo feminino).
Logo nesses três primeiros depoimentos servidos como amostra dentre os trinta
depoimentos sobre essa categoria, observamos o mesmo fenômeno ocorrido com os
entrevistados do grupo anterior, os da área do Direito. A família é um bem a ser
preservado, portanto uma face positiva, pois na família residem as intimidades, a
privacidade. É um espaço a ser altamente vigiado contra o invasor, o estranho que pode
estar à espreita. Todos aqui exaltaram esse espaço, esse grupo dentro daquela
comunidade. Todos fizeram questão de exaltá-la, pois é assim que a sociedade espera da
família. Mesmo havendo pequenas diferenças, é como se fosse um discurso de todos.
Das trinta pessoas entrevistadas sobre esse item, percebemos que todos conceituam
positivamente “família” como o centro, como a instituição digna de toda credibilidade e
dos sentimentos positivos. Estranhamos a resposta dada pela criança de 11 anos,
quando disse que “família é amor, é amizade”. É uma espécie de fala dos outros e não
dele mesmo. O entrevistado respondeu como se não tivesse sentindo o que estava
dizendo, era uma resposta tão abrangente e vaga, como se fosse uma espécie de voz
“genérica”, como se o que diz fosse a voz dos pais, da família e da própria comunidade.
Na resposta do entrevistado número 2, já podemos perceber que ele fala com a
alma. Mesmo suspeitando que o que diz é compartilhado com a voz existente na família
dele ou, talvez, a voz da própria comunidade de Rajada, a qual cultiva a idéia de família
como o “centro de tudo”, uma vez que ali quase todas as pessoas têm um certo grau de
parentesco ou cultiva um estilo de vida que supervaloriza os vínculos de afinidade e
amizade como se fossem parentes.
Foi ainda interessante observar na fala da entrevistada número 3 que, além de
compartilhar com a opinião dos entrevistados anteriores, ela aproveita para dar uma
resposta não à pergunta feita pelo entrevistador, mas ao pensamento ainda existente na
sociedade de que a família que não fosse constituída da presença do pai e da mãe na
criação dos filhos não poderia fazer isso com sucesso. Após avaliar positivamente a
instituição “família”, ela se volta para a própria família, inicialmente demonstrando a
sua realização, com sensação de dever cumprido e implicitamente dizendo às vozes da
comunidade que, possivelmente, em épocas passadas, diziam que ela não teria condição
de criar sozinha os filhos, sem a presença do pai. Diz nas entrelinhas que venceu;
passou por muitas necessidades, mas, quando agradece a Deus, evidencia a sua
realização, evitando, todavia, qualquer demonstração de presunção ou auto-suficiência.
Quando perguntamos se Rajada é violenta, dos trinta entrevistados sobre essa
categoria, somente um respondeu afirmativamente (uma criança de doze anos, dizendo
ele que a droga já estava chegando lá também). Os outros disseram que não. Vejamos as
respostas obtidas:
1. “Não. É um lugar calmo, não tem assalto.” (FASN, 10 anos);
2. “Não, não tem brigas.” (JBLF, 11 anos);
3. “Não. Só os bebos que abusam.” (WAS, 13 anos);
4. “Não. Nunca ouvi falar de ninguém matar.” (GSM, 23 anos);
5. “Não. Você pode até dormir na praça.” (JSM, 57 anos);
6. “Não. Porque o povo aqui tem vergonha na cara.” (AFSM, 80 anos).
Mesmo sabendo que falavam a verdade, ao afirmarem que ali não havia
violência, cada um fez questão de evidenciar um aspecto diferente. O primeiro
evidencia a não existência de assalto; o segundo focaliza o aspecto “briga”; o terceiro
focaliza a violência de assassinato; o quarto focaliza o privilégio de morar em um lugar
tão tranquilo que é possível até dormir em uma praça, sem ser incomodado ou por em
risco sua própria existência; e o último faz uma verdadeira exaltação à moral, ao
respeito e aos bons costumes ainda existentes naquele lugar. É como se estivesse
dizendo: “Embora por aí, nas outras cidades, não mais exista clima de harmonia entre as
pessoas e de respeito ao ser humano, aqui nós ainda desfrutamos disso. Vocês, por aí
afora, não possuem vergonha na cara.”
Quando analisamos as faces nos depoimentos em destaque, percebemos o quanto
defendem a face negativa coletiva (da comunidade) e expõem a face positiva. E ainda
atacam a face negativa das outras comunidades por lidarem com a violência. Esse
último depoimento da pessoa de oitenta anos foi o que melhor ilustrou o estudo das
faces, pois literalmente ela chamou de “cara”, o termo popular para significar face. Ela
realmente defendeu sua face, a face da comunidade.
6. Referências bibliográficas
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Conferencias sobre Psicología]. Tomos II. Madrid: Aprendizaje – Visor, 1993.
O PAPEL DO MIDIUM/SUPORTE NA DESCONSTRUÇÃO DE UM GÊNERO
TEXTUAL: UM ESTUDO ACERCA DO CORDEL DE ESCOLA
Genivaldo do Nascimento118
Hanna Jessica Nunes e Silva119
Maria Cirlândia de Sousa Felix120
RESUMO: A literatura de cordel é um gênero textual que sempre teve ligação com o universo popular.
Trazida pelos portugueses há quase trezentos anos, esse tipo de manifestação cultural encontrou no Brasil
espaços facilitadores para a sua efetiva circulação. Nos outros países onde era produzida, passou a ser
peça de museu e de colecionadores. Somente aqui ela ainda existe como forma de expressão viva e com
poder de influenciar outros modos de dizer, a exemplo da Arte (Literatura, Cinema e Teatro), do jornal e,
nas últimas duas décadas, da internet. Como já era de se esperar, considerando a estrutura da sociedade
brasileira, o cordel foi apropriado pela indústria cultural e entrou definitivamente no circuito oficial de
publicação comercial. Assim, esse gênero textual é analisado neste estudo à luz da relação conflituosa
entre o massivo e o popular. Este trabalho analisa os deslocamentos no mídium/suporte da literatura de
cordel brasileira e discute como essas mudanças afetam diretamente a identidade do cordel como gênero
textual. Descreve a apropriação dele pela indústria cultural e questiona a possibilidade de aplicação do
conceito de salvaguarda para a manutenção de aspectos fundamentais para a sobrevivência do cordel
como gênero textual pertencente ao patrimônio imaterial do povo nordestino.
PALAVRAS-CHAVE: Cordel; gênero textual; identidade; salvaguarda.
ABSTRACT: The Cordel literature is a textual genre which has always had a connection with the
popular universe.Brought by the Portuguese people for almost three hundred years, this kind of cultural
expression found in Brazil easy opportunities for its effective spreading. In other countries where it was
produced, it became museum’s and collectors’ piece. Only here it still exists as a live form of expression
and with the power to influence other ways of expression, such as: Art (Literature, Cinema and Theater),
news and, recently, the internet. As we have already expected, regarding the structure of the Brazilian
society, Cordel was adapted for the cultural industry and has definitely joined in the official circuit of the
commercial publishing.Thus, this textual genre is analyzed in this study regarding this conflicting
relationship between the massive and the popular. This paper analyses the displacements in the
medium/support of the Brazilian Cordel literature and discusses how these changes daily affect the
Cordel’s identity as a textual genre. It also describes its appropriation by the cultural industry and
question the possibility of application of the concept of protection for the maintenance of fundamental
aspects for Cordel’s survival as textual genre belonging to the immaterial heritage of the people from the
Northeast Region.
KEYWORDS: Cordel; textual genre; identity; protection.
1. Introdução
Exu, Pernambuco. Museu do Gonzagão. Na primeira parte da exposição/visita,
o funcionário-guia mostra os discos de ouro e platina que o Rei do Baião ganhou. Logo
abaixo desses prêmios, estão os primeiros instrumentos musicais utilizados pelo maior
118
Mestre em Educação e Pesquisa pela Universidade de Quebec-Canadá. Professor da Faculdade de
Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – FACAPE.
119
Aluna do curso de Turismo (Bacharelado) na FACAPE e integrante do GECORDEL - Grupo de
Estudos sobre o Cordel da FACAPE, localizada no Sertão de Pernambuco.
120
Aluna do curso de Turismo (Bacharelado) na FACAPE e integrante do GECORDEL - Grupo de
Estudos sobre o Cordel da FACAPE, localizada no Sertão de Pernambuco.
sanfoneiro do Brasil em todos os tempos: zabumba, a sanfona, o triângulo e um agogô.
O visitante, então, percebe que a historiografia acerca desse cantor nordestino nega,
geralmente, um dado relevante: a mistura de instrumentos feita por ele na construção do
forró-de-pé-de-serra. Esse discurso foi fundamental para que esse tipo de forró fizesse
uma contraposição ao que se convencionou chamar de forró estilizado ou eletrônico,
que surgiu com muita força na década de 90. A identidade do forró sertanejo ou de péde-serra está vinculada à ideia de tradição. Nesse sentido, apresentar o agogô como um
dos instrumentos musicais é, para a historiografia, contraditório, pois é preciso
reafirmar o conceito de forró tradicional feito apenas com sanfona, zabumba e triângulo.
O que se percebe na visita ao Museu do Gonzagão é que o problema não é a mistura de
elementos como suporte do gênero, mas o que é feito com essa mistura, ou seja, o que
importa mesmo é o resultado da “feitura” (Uma palavra comum na zona rural sertaneja
que designa o processo de fazer algo. Existe, inclusive, a figura profissional do “feitor”aquele que faz -,um tipo de gerente, supervisor, encarregado).
A feitura de Luiz Gonzaga, ao misturar os instrumentos no suporte do gênero
forró sertanejo, não impediu que ele se construísse como agente representante da
identidade cultural nordestina. Já as bandas do forró estilizado, a exemplo de Calcinha
Preta, Calypso e Saia Rodada, têm uma ligação com os elementos da indústria cultural e
provocam uma desconstrução do forró tradicional, ao usarem elementos no suporte
como a guitarra, o sax e a bateria.
Percebemos o simulacro da tradição usado pela indústria cultural, ao utilizar o
termo forró para designar o estilo dessas bandas, em um claro exemplo de apropriação
de elementos do universo popular para a construção de produtos da cultura de massa.
Esse conflito entre o massivo e o popular é uma discussão contemporânea em
sociedades como a brasileira, heterogênea e marcada pela interferência muito forte dos
veículos de comunicação, especialmente da TV, no cotidiano dos cidadãos. A polêmica
dos forrós (tradicional X estilizado) é uma metáfora desse conflito pós-moderno, que
produz certos deslocamentos estéticos e políticos. Para ilustrar isso, basta lembrar o que
aconteceu em Caruaru-PE. No São João de 2009, a prefeitura não convidou muitas
bandas do forró estilizado, numa tentativa de “retradicionalizar” essa festa. Resultado: o
público jovem diminuiu bastante (muitos deles preferiram ir ao São João de cidades
vizinhas, como Bezerros e Gravatá, atraídos por essas bandas). A fuga desse tipo de
público talvez tenha acontecido porque os organizadores não reconheceram que o São
João de Caruaru é ambíguo: tem características populares misturadas ao massivo e esses
dois mundos nem sempre têm os mesmos objetivos (não falam a mesma língua, para
usar uma expressão do universo popular).
Para evitar o fim do forró estilizado, considerando a fase atual de decadência e
como o mercado precisa se reinventar constantemente, foi inventado um subgênero: o
forró das antigas, com o relançamento de bandas que deram início a esse fenômeno, a
exemplo de Mastruz com Leite. Fazendo isso, mais uma vez, a indústria cultural tenta
acoplar ao forró tradicional a ideia de a-histórico, afinal, se a música de Mastruz com
Leite é antiga, a de Luiz Gonzaga é o quê?
Outro motivo que forçou a indústria cultural a fazer esse relançamento foi o fato
de cada vez mais o forró estilizado se parecer com o axé music e a identidade desse
forró como produto ter ficado prejudicada (é melhor para essa indústria ter dois
produtos para vender do que apenas um).
Assim, percebe-se que muitas mudanças operadas no forró foram determinadas
pela indústria cultural nas duas últimas décadas. Isso fez com que esse gênero musical
ficasse a mercê dos objetivos dessa indústria, que vende o forró estilizado como produto
massivo (a ser consumido). Para essa indústria, o forró tradicional está ligado a algo que
se perdeu no tempo. Dessa forma, vê-se como o forró tradicional sofre ameaças de
desconstrução à sua territorialidade/identidade como gênero musical pelo agenciamento
da indústria cultural, através de mudanças operadas por ela nos elementos de suporte
desse gênero.
Esse processo de desconstrução do forró tradicional serve para se discutir os
deslocamentos no suporte (e os perigos) pelos quais outra manifestação artísticocultural nordestina tem passado: a literatura de cordel, que exerceu grande influência em
muitas manifestações artísticas culturais brasileiras, a exemplo do Cinema Novo, do
Teatro e da Literatura.
Trazido pelos portugueses, o cordel teve grande circulação no Nordeste, mas
somente entre os anos de 1890 e 1895 o primeiro cordel foi publicado com a estrutura e
suporte vistos atualmente: geralmente em estrofes rimadas e em sextilhas, com páginas
que variam entre 8 e 16 e em livretos com tamanho entre 11cm e 15cm. Leandro Gomes
de Barros foi o precursor desse formato de cordel, que, até metade do século XX,
circulava principalmente na feiras livres e tinha como produtores e destinatários os
integrantes das classes populares, ou seja, era um gênero textual circunscrito ao
universo popular.
Na segunda metade do século XX, o cordel passou por diversos deslocamentos
na produção, nos meios de circulação e de destinatário. Hoje ele circula muito mais na
internet, universidades, escolas, bancas de jornais, exposições e museus do que na feira
livre e casas da zona rural; seus produtores vão desde o semi-alfabetizado aos doutores,
poetas e escritores; o destinatário ficou multifacetado, pois não há mais um públicoleitor definido; o suporte pode ser a brochura e papel jornal ou encadernações
sofisticadas.
O objetivo deste estudo é o de analisar como esses deslocamentos no suporte,
produzidos pela indústria cultural, podem desconstruir a identidade do cordel (assim
como está acontecendo com o forró pé-de-serra) como gênero textual e,
consequentemente, como elemento pertencente ao patrimônio cultural nordestino. A
discussão está centrada, portanto, nos seguintes questionamentos: até que ponto podemse aceitar como naturais (e inevitáveis) as mudanças/os deslocamentos de gêneros
textuais pertencentes ao patrimônio cultural de um grupo? Dizer que as mudanças no
cordel são naturais porque acompanham a evolução dos tempos não é uma reprodução
do discurso de algumas agências, a exemplo da indústria cultural? A quem interessam
essas mudanças/esses deslocamentos? O fetiche da modernização do cordel, assim
como aconteceu com o forró tradicional, não fará com que ele se transforme em mais
um produto da cultura de massa e, com isso, entre em declínio, perdendo a sua
identidade como gênero textual? É sensato, do ponto de vista científico, considerar a
hipótese de salvaguarda da base comum de gêneros textuais de patrimônio cultural?
Para subsidiar essa discussão, foram analisados livros de cordel destinado a um
público-leitor definido: os alunos da educação básica. Essas obras são geralmente
adaptações de clássicos da literatura (nacional e universal) e são impressas em um
suporte diferenciado em relação ao folheto tradicional de cordel, atendendo a regras
estabelecidas pela indústria cultural.
Assim, será analisada uma vertente desse gênero a qual denominamos cordel de
escola. Escola, no nosso trabalho, também é uma metáfora que retoma a ideia de
formato, disciplina, saberes e enquadramento. A escolha desse gênero textual se
justifica pela presença nele de elementos que materializam os deslocamentos discutidos
neste trabalho e que são produzidos pelo suporte e destinatário, a partir de interesses dos
sujeitos produtores e dos ditames da cultura de massa.
2. Fundamentação teórica
2.1 Influência do cordel na arte e na cultura brasileiras do século XX
Durante o século XX, o cordel se insere nos contextos histórico, estético e
cultural do Brasil. Na História, a produção cordeliana serve, por exemplo, de crônica
que descreve eventos brasileiros importantes. Nessa perspectiva, Kurran (2001, p.19)
diz que:
O cordel, mais uma vez, é caracterizado como um meio híbrido:
popular em termos de produção, disseminação e consumo, enquanto
conservadoramente folclórico no pensar de seus poetas tradicionais e
do público. Além disso, seus poemas de acontecidos são realmente
memória, documento e registro de cem anos da história brasileira,
recordados e reportados pelo cordelista, que além de poeta é jornalista,
conselheiro do povo e historiador popular, criando uma crônica de sua
época
Esse autor analisa um recorte de cem anos da História do Brasil (de 1890 a
1990) a partir da voz dos cordelistas acerca de eventos-chave, como o governo de
Getúlio Vargas e o impeachment de Fernando Collor.
Para a historiografia do cangaço, a literatura de cordel é uma fonte privilegiada,
pois muitos cordelistas foram contemporâneos de Lampião e a maioria deles morava na
zona rural, principal espaço de atuação dos cangaceiros. Nos cordéis sobre esse tema,
percebe-se como o autor se apresenta como sujeito falante que representa as vozes da
população da época sobre o cangaço e, em especial, a respeito de Lampião. Os versos a
seguir são do folheto “A Chegada de Lampião no Inferno”, do poeta alagoano José
Pacheco da Rocha (apud LIMA, 2006, p. 47), demonstram bem isso:
Vamos tratar da chegada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu.
-Quem é você, Cavalheiro?
-Moleque, sou cangaceiro!
Lampião lhe respondeu.
Moleque não, sou vigia,
E não sou o seu parceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro...
-Moleque, abra o portão
Saiba que sou Lampião
Assombro do mundo inteiro.
Na arte, a literatura de cordel influenciou diversos autores, principalmente no
cinema (Cinema Novo), Literatura (Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto) e no
Teatro (Ariano Suassuna). De todos, este último foi o que sofreu maior influência,
como fica claro nesse depoimento dele (DIÉGUES JÚNIOR et al, 1986, p. 181)
Em 1947, escrevi minha primeira peça, que era, também, a primeira
ligada ao Romanceiro Popular Nordestino: Uma Mulher Vestida de
Sol. Ganharia, com ela, um concurso instituído pelo Teatro do
Estudante de Pernambuco. [...] Por aí se vê como, aos vinte anos, já
era grande a minha preocupação com essa forte e pura raiz popular da
Arte e da Literatura nordestinas que são os folhetos e repentes do
Romanceiro.
Outra contribuição do cordel para a literatura brasileira foi a consolidação da
narrativa em versos, geralmente em sextilhas, como forma poética. Por esse motivo,
costuma-se denominar de cordel qualquer gênero textual feito em estrofes de seis versos
com rimas no esquema ABCBDB. No nosso entendimento, isso produz deslocamentos
estéticos e políticos relacionados ao cordel brasileiro contemporâneo.
2.2 Cordel como gênero textual: uso de suportes diferenciados e deslocamentos na
produção e recepção
Embora o cordel tenha circulado em diversos países, somente no Brasil,
especialmente no Nordeste, esse gênero ainda tem efetiva circulação social. Aqui ele é
encontrado nas universidades, bancas de jornais, escolas, livrarias, internet, feiras livres,
exposições e bienais de livros. Pode-se dizer que entrou, definitivamente, na linha
editorial da literatura convencional. Nos outros países, ele está restrito a museus e peça
de colecionadores.
Desde o início de sua circulação na Europa, esteve ligado ao ato de contar
histórias tradicionais. Tinha, portanto, a fala como elemento principal do
suporte/mídium de veiculação desse gênero. Em seguida, o cordel era impresso em
folhas soltas, tendo diversas denominações conforme o país: em Portugal, folhas
volantes ou soltas; na Nicarágua, no Peru, no México e na Venezuela, corrido; na
Argentina, hojas ou pluegos sueltos; na França, litterature de corpotage. Diégues Júnior
(1986) assinala que:
Divulgam-se, por intermédio das folhas volantes, narrativas
tradicionais, como a Imperatriz Porcina, Princesa Magalona, Carlos
Magno. Tudo isso, evidentemente, e como seria natural, se transladou,
com o colono português, para o Brasil; nas naus colonizadoras, com
os lavradores, os artífices, a gente do povo, veio naturalmente esta
tradição de romanceiro, que se fixaria no Nordeste como literatura de
cordel.
No Brasil, a circulação do cordel em folhas soltas não foi tão efetiva como em
Portugal. Lá, onde também esse gênero era conhecido como literatura de cegos, pois
houve uma época em que somente as pessoas com esse tipo de deficiência podiam
vendê-lo, o cordel passou a ser chamado assim por causa da forma usada pelos
vendedores para a exposição do produto: amarrado ao corpo, geralmente ao pescoço,
por um cordão. Daí a origem do nome cordel, também utilizado aqui no Brasil, séculos
mais tarde, só que já em forma de livretos (tamanho médio de 15cm X 11 cm)
pendurados nas bancas das feiras livres.
A efetiva circulação do cordel como gênero textual no Brasil, tendo o formato
do livreto como um dos elementos de suporte acontece nas primeiras décadas do século
XX, embora o primeiro cordel tenha sido publicado no final do século anterior, por
Leandro Gomes de Barros, um paraibano da Serra do Teixeira.
Como suporte/midium e a possibilidade que ele tem de interferir na construção
do sentido, usamos neste trabalho o conceito de Maingueneau (2001):
Vimos que é necessário reservar um lugar importante ao modo de
manifestação material dos discursos, ao seu suporte, bem como ao seu
modo de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela
de computador etc. Essa dimensão da comunicação verbal foi durante
muito tempo relegada a segundo plano. Estávamos habituados,
especialmente nos estudos literários, a considerar o texto como
sequência de frases dotadas de sentido, indiferentes ao seu
mídium.Hoje, estamos cada vez mais conscientes de que o mídium
não é um simples meio de transmissão do discurso, mas que ele
imprime um certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que
dele podemos fazer. O mídium não é um simples meio, um
instrumento para transportar uma mensagem estável: uma mudança
importante do mídium modifica o conjunto de um gênero do discurso
(grifo do autor).
Já para gênero textual ou discursivo (não é objetivo deste trabalho estabelecer
diferenças conceituais de nomenclatura nesse campo), consideramos os estudos de
Bazerman (2006), que afirma que:
Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser.
São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São os
lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos
que formamos e as comunicações através das quais interagimos (grifo
nosso).
As mudanças do suporte na circulação do cordel como gênero textual, de papel
para livreto, coincide com a chegada ao Brasil de máquinas para a impressão de livros e
jornais, no final do século XIX. Assim, quanto à estrutura do texto em si, o cordel
brasileiro se afasta um pouco do cordel português, ao consolidar o uso de estrofes
rimadas, geralmente a sextilha no esquema ABCBDB, enquanto em Portugal era
comum o uso da prosa nos cordéis.
Para esse deslocamento do cordel brasileiro em sua forma poética, foi muito
importante a influência dos repentistas brasileiros, pois eles usavam a sextilha, a setilha
e a décima (esta última principalmente nos desafios) na composição das estrofes, as
quais são denominadas de versos e estes são chamados de linhas pelos poetas populares.
Assim, o cordel se afasta da produção portuguesa por não usar mais as folhas soltas e
por usar o livreto como principal elemento do mídium/suporte.
Outro aspecto importante a ser destacado na composição do suporte do cordel
foi a apresentação da capa. Inicialmente, os folhetos de cordel tinham nela, com
pequenas variações, os seguintes elementos: título da obra em letras garrafais e em
negrito, um desenho resumitivo do conteúdo e o nome do autor. Em seguida, a partir da
década de 40, esses folhetos passaram a ter a xilogravura na capa e, na segunda metade
do século XX, tinham desenhos coloridos feitos nos livretos maiores publicados pela
Editora Luzeiro, de São Paulo. Essas mudanças no suporte causaram certa reação
negativa, pois os destinatários não as aceitaram de forma consensual. Por exemplo,
muitos estudos indicam que a xilogravura não foi bem recebida pelo leitor da zona rural,
porque eles achavam feio uma princesa ser retratada em linhas tortuosas, ou seja, o ideal
estético de princesa, produzido pelo discurso europeizante (loira, alta, magra e de
cabelos longos) e amplamente divulgado por agências discursivas, como a Igreja
Católica, durante muitos anos, não combinava com o ethos da xilogravura: feita em
preto e branco, de material rústico (geralmente madeira de umburana de cambão) e com
traços que fogem ao padrão de harmonia/simetria clássica. Por isso, as capas dos
folhetos da Luzeiro agradavam mais a esse tipo de destinatário, que já estava
acostumado com o universo estético da televisão (e seu mundo de cores e personagens).
No entanto, outro tipo de leitor desaprovou as capas coloridas da Luzeiro: os estudiosos
do cordel. Muitos deles diziam que essa editora produzia um deslocamento no cordel
tradicional, pois o formato dos livretos dela parecia mais um gibi do que um cordel,
numa imitação subserviente à cultura dos Estados Unidos.
Deve-se ressaltar também que o destinatário do cordel mudou e isso influenciou
as mudanças do suporte. Na primeira metade do século XX, o morador da zona rural
ainda era o leitor principal desse tipo de gênero. No entanto, já na segunda metade,
principalmente após os movimentos de valorização do nacional-popular e do
fortalecimento dos veículos de comunicação, o cordel passou a ser lido por diversos
tipos de destinatários, principalmente estudantes universitários e da Educação Básica,
além de turistas estrangeiros. Nessa discussão de valorização do popular, predominou o
conceito de cultura popular sendo aquilo feito pelo e para o povo. O objetivo principal,
explicitado por grupos de atuação política, era usar os elementos da cultura popular para
conscientizar as classes subalternas (para usar um termo da época, oriundo dos estudos
de Gramsci).
Essa mudança de destinatário foi motivada, entre outros aspectos, pelos
deslocamentos relacionados ao mídium/suporte: espaço de circulação, formatação do
livreto, uso de diversos materiais na impressão e, na linguagem, correção gramatical
(alguns autores nem sequer usam mais rimas nas estrofes e ainda dizem que a obra é
cordel).
2.3 O cordel de escola
Denominamos neste estudo cordel de escola toda a produção cordeliana que
foge ao padrão do cordel tradicional e tenta se adaptar às regras e à estética da indústria
cultural, provocando transformações na forma de apresentar o cordel. Escola, nesse
sentido, não é apenas um espaço físico, mas um território de enquadramento. Essas
mudanças estão associadas principalmente ao suporte/mídum, pois a partir delas foi
construído o que muitos chamam de novo cordel, que entendemos ser outro gênero
textual, porque perdeu a identidade dos “enunciados relativamente estáveis”, como
afirma Bakhtin.
Como demonstração do que está sendo discutido aqui, será feita uma breve
descrição da análise de duas obras do cordel de escola como um recorte desse tipo de
produção cordeliana contemporânea. A primeira obra, intitulada “Branca de Neve:
cordel ilustrado”, é de autoria de Julie Ane Oliveira, com ilustrações de Eduardo
Azevedo. Foi publicada pela Editora IMEPH em 2008, tem 24p, com tamanho 19,5 X
26,5 cm. Nos dados de catalogação, consta que é literatura infanto-juvenil.
Fazem parte da constituição do suporte/mídium desse livro os seguintes
elementos: na capa, existe um desenho colorido da Branca de Neve e os sete anões (ver
anexo III). Ela segura uma maçã e tem olhos azuis; o papel e o formato em que a obra
foi impressa em nada lembram a literatura de cordel; são vinte e quatro estrofes em
sextilhas e, na última página, tem as informações básicas sobre a autora e o ilustrador.
A segunda obra é intitulada “Memórias Póstumas de Brás Cubas em Cordel”. O
autor dessa adaptação é Varneci Nascimento e as ilustrações são de Cristina Carnelós. A
Editora é a Nova Alexandria, tem 56 páginas e o ano de publicação é 2008. Esse livro
tem uma capa colorida, com desenhos que tentam retomar o universo sertanejo. Em um
plano secundário, tem a imagem de vegetação da caatinga e a de dois homens, um
tocando sanfona e outro, triângulo. No plano principal, tem a figura de um homem com
a pena em uma mão e a outra faz um gesto que lembra o ato de pensar. A estrutura
verbal é composta por apresentação e prefácio, dados acerca de Machado de Assis e de
Varneci Nascimento. Tem uma sequência de quase cento e setenta estrofes em sextilhas.
Em um estudo exploratório-descritivo, essas duas obras foram apresentadas a 43
alunos do curso de Letras da Universidade de Pernambuco/Campus Petrolina, para que
eles identificassem os enunciados do universo cordeliano. Todos afirmaram não
reconhecer nessas obras esses enunciados, com exceção das sextilhas. Portanto, esses
destinatários não perceberam tais obras como sendo do gênero cordel. Justificaram a
resposta dizendo que o formato, tanto da capa quanto do miolo do livro, é muito
diferente do cordel. As mudanças no suporte dessas obras mudaram o gênero textual,
numa retextualização não assumida pelos autores/produtores delas. Assim, percebe-se
que o cordel brasileiro contemporâneo tem uma vertente, o cordel de escola, que nega
os enunciados do cordel tradicional, produzindo uma desconstrução desse gênero.
2.4 O gênero cordel como elemento do patrimônio cultural nordestino: o conceito
de salvaguarda
Por ter papel importante do ser e do fazer de um determinado grupo, pode-se
dizer que o cordel é um gênero textual constituinte do patrimônio cultural do Nordeste e
do Brasil. A produção cordeliana diz muito acerca da tradição e da formação da
sociedade brasileira/nordestina. Ela faz parte dos elementos da identidade cultural do
nordestino, como atestam essas estrofes do poeta Eugênio Dantas, no folheto intitulado
“Mas o que é Cordel?”, publicado pela Academia dos Cordelistas do Crato-CE (2001),
com xilogravura de Zé Lourenço:
O Nordeste que tem fé
O Nordeste valentão,
Do santo Padrinho Ciço
E também de Lampião,
Do engenho de rapadura
Das festas de apartação
O nordeste verdejante
Ali da beira do rio
O nordeste onde a miséria
Chega a causar arrepio,
Mas onde o caboclo forte
Demonstra bravura e brio
Dessa forma, entendemos que os deslocamentos do mídium/suporte do cordel,
impostos pela indústria cultural como foram nos dois livros analisados, devem ser
analisados nessa perspectiva: a de que o cordel é um gênero textual de patrimônio
cultural.
Quando os graduandos de Letras recusaram essas obras como cordéis, fizeram
uso do que podemos chamar de salvaguarda de enunciados de base comum de um
determinado gênero. Explicando melhor: para que possamos reconhecer determinado
gênero, lançamos mão da nossa memória para identificarmos enunciados constituintes
dele. Assim, dizemos que uma carta pessoal é uma carta a partir do reconhecimento de
certas características comuns a todas as cartas pessoais. A salvaguarda está relacionada
a esse reconhecimento, mas também diz respeito à proteção do perigo, conceito
essencial na ideia de salvaguardar. Essa proteção é comum nos gêneros textuais
acadêmico-científicos (não se pode fazer um resumo ou artigo científico de todo jeito,
pois existem normas de proteção que salvaguardam esses gêneros). Essa proteção
também acontece com os gêneros religiosos. O Vaticano, inclusive, publica normas que
devem ser seguidas (para proteger/salvaguardar) a celebração da missa da Igreja
Católica. Também é de salvaguarda a postura dos gramáticos tradicionais quando
tentam proteger “o bom português”, ou seja, para eles, é preciso proteger o “falar
correto” do “falar errado”. Assim, é lícito considerar que a salvaguarda é um processo
cognitivo-social-institucional presente no ato de interagir com os gêneros textuais.
O conceito de salvaguarda voltado para o contexto de patrimônio cultural usado
pela UNESCO (apud Ministério da Cultura, 2007, p. 25) diz que:
A conservação se refere à produção das tradições vinculadas à cultura
tradicional e popular e seus portadores, segundo o entendimento de
que cada povo tem direitos sobre a sua cultura e de que a adesão a
essa cultura pode perder o vigor sob a influência da cultura
industrializada difundida pelos meios de comunicação de massa.
Por isso é necessário adotar medidas para garantir o estado e o apoio
econômico das tradições vinculadas à cultura tradicional e popular,
tanto no interior das comunidades que as produzem quanto fora delas
(grifo nosso).
Quando os alunos disseram que não reconheciam essas obras como sendo
cordéis, procuraram salvaguardar elementos do cordel tradicional contra o perigo da
indústria cultural. Isso porque a negação do cordel é também a negação da identidade
cultural de um povo.
Essa defesa da salvaguarda de gênero textual, considerando a relação conflituosa
entre o massivo e o popular, não é uma postura de folclorista, “cuja missão é preservar o
autêntico, cujo paradigma continua a ser o rural e para os quais toda mudança é
desagregação, isto é, deformação de uma forma voltada para a sua pureza original
(MARTIN-BARBERO, 1997, p. 309). A salvaguarda faz parte do processo de interação
crítica que deve haver no encontro de culturas. Se ela já existe nos gêneros textuais do
campo acadêmico-científico e religioso, por que não pode existir também nos gêneros
que dizem respeito ao universo cultural? Além disso, não parece ser sensato achar
naturais as mudanças operadas no suporte/mídium dos gêneros textuais, principalmente
daqueles apropriados pela indústria cultural, como é o caso do cordel, sem questionar a
quem interessam essas mudanças. Não se deve perder de vista o fato de que as
mudanças do suporte/mídium elitizam o cordel e produzem uma certa
“despopularização” dele ao agregar um maior valor comercial ao produto (preço médio
do folheto tradicional: R$ 1,50; preço dos livros de cordel industrializados: entre R$
20,00 e 30,00). A mudança de espaços (da feira livre para livrarias de Shopping,
universidades, internet e bancas de jornais) também contribui para um deslocamento
que despopulariza o cordel.
3. Considerações finais
Este artigo analisou algumas mudanças operadas no/pelo suporte/mídium do
cordel brasileiro contemporâneo. Identificou uma vertente desse gênero que está ligada
aos ditames da indústria cultural. À luz dessa discussão, sugere a adoção da salvaguarda
do cordel, uma vez que ele faz parte do universo de gêneros textuais de patrimônio
cultural.
Este trabalho indica que o Estado brasileiro deve responsabilizar-se pela
salvaguarda da literatura de cordel tradicional, conforme recomendação da UNESCO
feita durante a Conferência Geral - 25ª Reunião, realizada em 1989, em Paris. Essa
salvaguarda é importante para a preservação da memória e também para proteger os
cordelistas tradicionais que têm na produção dos folhetos uma fonte de renda.
Indubitavelmente, são esses cordelistas (e não a indústria cultural) que ajudarão a
preservar o cordel como elemento da identidade cultural do povo nordestino/brasileiro.
Nesse sentido, sugerimos que outros estudos analisem o suporte do cordel
contemporâneo como obra de arte, pois o universo da criação é um território um pouco
arredio à idéia de demarcação de regras e de salvaguarda.
É preciso, portanto, que o Estado não deixe o cordel à mercê dos interesses da
indústria cultural e do mercado, como deixou o forró pé-de-serra. Isso é condição sine
qua non para evitar a “calypsização” da literatura de cordel tradicional, ou seja, que ela
se transforme apenas em mais um produto da cultura de massa.
4. Referências bibliográficas
BRASIL, MINISTÉRIO DA CULTURA/INSTITUTO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Roteiro para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial. Fortaleza, 2007.
BAZERMAN, C. Gênero, Agência e Escrita. Tradução e adaptação de Judith
Chambliss Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2006.
CURRAN, M. História do Brasil em Cordel. 2. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001.
DANTAS, E. Mas o que é Cordel? 2. ed. Crato, CE: Academia dos Cordelistas do
Crato, 2001.
DIÉGUES JÚNIOR, M. et al. Estudos. São Paulo:Editora da Universidade de São
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auxiliar na educação. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. Tradução de Cecília P. de
Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
MARTÍN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 1997.
NASCIMENTO, V. Memórias Póstumas de Brás Cubas em Cordel. São Paulo: Nova
Alexandria, 2008.
OLIVEIRA, J. A. Branca de Neve: cordel ilustrado. Fortaleza: IMEPH, 2008.
Figura 1: capa de cordel tradicional
Figura 2: cordel com capa colorida (Editora Luzeiro-São Paulo)
Figura 3: capa de cordel de escola
Figura 4: capa de cordel de escola
A LINGUAGEM DO NÃO-DISCURSIVO NA CONSTITUIÇÃO DE
IDENTIDADES
Glaucio Ramos Gomes121
RESUMO: Em um tempo não tão remoto, a linguagem era compreendida apenas como meio, forma
diversa de comunicação, instrumento de que se valia o indivíduo. Dentro dessa visão estruturalista, não
havia espaço para se pensar em sujeito, constituição de identidade. Hoje, pós Bakhtin, Foucault e,
contemporaneamente, Análise do Discurso, a linguagem não é mais vista como mediador-neutro, mas
como ação constitutiva que transforma os indivíduos em sujeitos mediante as mais diversas manifestações
discursivas e não-discursivas. Partilhando dessa compreensão constitutiva da linguagem, este artigo,
resultante de dissertação de mestrado “A relação saber-poder e a constituição dos sujeitos professor e
alunos em aulas de língua portuguesa”, tem por objetivo mostrar como, no universo do espaço escolar, os
elementos não-discursivos revestem-se de uma linguagem e participam ativamente da construção
identitária dos sujeitos escolares. Em outras palavras, que relação há entre o enfileiramento das carteiras e
a formação do sujeito-aluno? O texto está divido em três momentos: fundamentação teórica, corpus e
análise do corpus. O corpus resulta de filmagem, transcrição e análise de 20 (vinte) horas-aula de língua
portuguesa em uma turma do 7° ano do Ensino Fundamental da Escola Rotary de Nova Descoberta,
localizada em Recife, Pernambuco. Foucault, Orlandi e Bakhtin são as vozes principais que fundamentam
nosso texto. A conclusão que se chega com a análise do corpus é que a escola - Aparelho Ideológico – e
seu micro espaço – a sala de aula – são espaços discursivamente elaborados para marcar, reger e
constituir identidades.
PALAVRAS-CHAVE: Professor; aluno; sujeito; identidade; poder.
ABSTRACT: In a time not so remote, the language was understood only as a means, a different way of
communication, an instrument that is worth the individual. Within this structuralist view, there was no
room to think about the subject, the constitution of identity. Today, after Bakhtin, Foucault and, likewise,
discourse analysis, language is no longer seen as neutral mediator, but as constitutive action that
transforms individuals into subjects through the various manifestations discursive and non-discursive.
Sharing this understanding constitutive of language, this article, resulting from dissertation "The
knowledge-power relationship and the constitution of subjects teachers and students in Portuguese
language classes," aims to show how in the world of school space, the elements discursive-are of a
language and actively participate in the identity construction of school subjects. In other words, what is
the relationship between the queuing of portfolios and training of student-subject? The text is divided into
three phases: theoretical, corpus and corpus analysis. The corpus is the result of shooting, transcription
and analysis of twenty (20) class hours of portuguese language in a class of 7 th grade of elementary
school school Rotary New Discovery, located in Recife, Pernambuco. Foucault, Bakhtin Eni Orlandi and
are the main voices that underlie our text. The conclusion that comes along with the analysis of the corpus
is that the school - Ideological Apparatus - and your space - the classroom - spaces are discursively
produced to mark, rule and form identities.
KEY WORDS: Teacher; student; subject; identity; power.
1. Introdução
No universo das relações sociais, os indivíduos são constantemente interpelados
em sujeitos por meio da linguagem discursiva e não-discursiva. Isso posto, significa que
121
Mestre em Letras pela UFPB; Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa
pela Fundação de Ensino Superior de Olinda – FUNESO; graduado em Letras-Inglês – FUNESO;
professor efetivo das redes estadual e municipal; e assessor em Língua Portuguesa do Centro de Educação
da UFPE.
o sujeito aqui compreendido não é um já-lá, isto é, não está pronto, definido, acabado.
Mas um vir a ser que é histórico. Na linguagem foucaulteana, o sujeito é uma função,
um lugar que pode ser ocupado por qualquer indivíduo.
Dada a pluralidade dos mecanismos de constituição dos sujeitos, este texto focase nos elementos não-discursivos presentes no universo da escola e, especificamente, na
Máquina de Ensinar, a sala de aula. Esta é mais que uma estrutura física; é um espaço
de posições ideológicas, isto é, de “verdades” institucionalizadas que regem o ensino e a
aprendizagem; de demarcações identitárias; de assujeitamentos; de disciplinas. Partindo
de uma visão micro – a sala de aula – para uma visão macro – a escola –,
especificamente sua arquitetura, veremos como as identidades dos sujeitos escolares –
professor e aluno – são constituídas mediante a linguagem não-discursiva presente no
estreitamento do corredor, na disposição sistemática das salas de aula, no enfileiramento
das carteiras em sala de aula, no controle do tempo pedagógico, na caderneta, na
fiscalização pelo olhar.
Uma vez que se trata de um texto que tem como objeto de reflexão o discurso, a
fundamentação teórica não poderia ser outra senão a da Análise do Discurso, aqui, a
linha francesa de Análise do Discurso (AD). Nessa linha, o texto reserva um espaço
significativo para a concepção de Foucault do sujeito.
Assim, o texto está estruturado em três momentos: fundamentação teórica;
linguagem não-discursiva I (análise do espaço escolar); e linguagem não-discursiva II
(análise da sala de aula). O corpus a ser analisado resulta de filmagem e transcrição de
20 (vinte) horas-aula de língua portuguesa feitas em 2008, em uma turma do 7° ano do
Ensino Fundamental da Escola Rotary de Nova Descoberta, localizada em Recife,
Pernambuco.
2. Fundamentação Teórica
2.1. Da língua estanque à língua em discurso
Estudada pelas epistemologias estruturalistas, a língua era concebida como autosuficiente, com fim em si mesma e indiferente a uma realidade social. Em decorrência
dessa posição, nos estudos linguísticos não havia espaço para se falar em sujeito,
história e discurso. Como diz Pêcheux (1997, p. 62), não havia na proposta de Saussure
o estudo do texto, mas da “língua, isto é, um conjunto de sistemas que autorizam
combinações e subordinações reguladas por elementos definidos...”. Essa citação de
Pêcheux é uma das inúmeras vozes que ecoaram na década de 60 em tom de críticas ao
estruturalismo linguístico. Veja-se aqui mais uma ressalva de Pêcheux (idem) à teoria
saussuriana:
[...] a partir do momento que a língua deve ser pensada como um
sistema, ela deixa de ser compreendida como tendo a função de
expressar um sentido; torna-se um objeto do qual uma ciência pode
descrever o funcionamento. (...) A consequência desse deslocamento
é, como já se sabe, a seguinte: o “texto” não pode de maneira alguma
ser objeto pertinente para a linguística, porque ele não funciona - o
que funciona é a língua, isto é, um conjunto de sistemas [...]
[...] a língua, como objeto de ciência, se opõe à fala, como resíduo
não-científico da análise. ‘Com o separar a língua da fala, separa-se ao
mesmo tempo: 1º, o que é social do que individual; 2º, o que é
essencial do que é acessório e mais ou menos acidental’.
Com essas críticas, o estruturalismo não pôde mais conter a presença da
exterioridade no estudo da língua. Agora, o espaço estava aberto para uma nova
compreensão de língua “A língua, no seu uso prático, é inseparável do seu conteúdo
ideológico ou relativo à vida” (BAKHTIN, 2006, p. 99) e linguagem “ora, a linguagem
não é um conceito, mas uma noção fluida subsumindo um nevoeiro de fatos e
causalidades (enunciação, determinações históricas, sociais etc.) (ORLANDI 1996, p.
177).
No instante em que critica a teoria estruturalista, Pêcheux, com a publicação de
sua “Análise Automática do Discurso”, em 1969, lança as bases de sua teoria da Análise
do Discurso, doravante AD. Enquanto o estruturalismo toma a língua na sua
estaticidade para análise, Pêcheux terá uma língua dinâmica - inscrita na história -; terá
como objeto de análise o discurso que é compreendido como um acontecimento
resultante de três elementos: língua, sujeito e história.
O novo paradigma, isto é, a teoria da AD, situou o sujeito no centro das
reflexões sobre a língua e permitiu-lhe, como afirma Dosse (1993, p. 65), “reaparecer
pela janela, após ter sido expulso pela porta”.
2.2. Do “Sujeito” ao sujeito
Um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes
posições e assumir o papel de diferentes sujeitos.
Michel Foucault
O Sujeito, que está situado na visão iluminista, é totalmente centrado, unificado,
homogêneo, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação; é um ser que já
nasce pré-disposto a agir sobre um mundo. Veiga-Neto (2007) fará menção a Descartes
– eu pensante – e de Kant – sujeito do conhecimento – para dizer que as teorias desses
filósofos foram fundamentais para a concepção moderna de que o sujeito já é um “jálá”, isto é, que já nasce pronto, que não se constitui mediante sua inserção no mundo
social, político, cultural e econômico. Veiga-Neto (2007, p. 110), fazendo menção a
Kant, Marx e Piaget, deixa claro que esses pensadores tomavam o sujeito como um já
dado:
O sujeito já está desde sempre dado. Fosse ele incompleto porque
vazio - no caso de Kant-, incompleto porque alienado/inconsciente da
realidade política e social - no caso de Marx -, ou incompleto porque
ainda psicogeneticamente não de todo desenvolvido/realizado - no
caso de Piaget, - o importante é que o sujeito é tomado como um ente
desde sempre aí [...]
No entanto, na contramão dessa visão determinista do sujeito, vai aparecer dela;
ele mergulha na fluidez da história. Ele não tem a pretensão de criar a história, pois ela
lhe precede, ou, como diz Althusser (1973, p. 69)
Não se pode (begreien: conceber), ou seja, pensar a história real
(processo de reprodução e de revolução de formações sociais) como
capaz de ser reduzida a uma origem, uma Essência ou uma Causa
(ainda que fosse o Homem), que seria o seu Sujeito – o Sujeito, esse
‘ser’ ou ‘essência’ posto como identificável, ou seja, como existente
sob a forma da unidade de uma interioridade e (teórica e
praticamente) responsável (a identidade, a interioridade e a
responsabilidade são constitutivas, entre outras determinações, de todo
sujeito), capaz, portanto, de prestar contas do conjunto de ‘fenômenos’
da história.
Com essa compreensão do sujeito, damos o primeiro passo para o entendimento
desse “sujeito”. Como qualquer mudança epistemológica muda as práticas discursivas e
as verdades, a concepção do sujeito histórico está atrelada a novas epistemes. São
epistemes que carregam em si uma noção fluida, dinâmica e inconstante de homem e de
mundo. São saberes que compreendem o sujeito como constituído e não como
constituinte; como processo, e não como produto. Essa nova concepção de mundo pode
ser vista em Marx (1973, 70 apud Hall, 2006, p. 14) quando ela trata da modernidade [...] é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de
todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas
as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas
representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recémformadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é
sólido se desmancha no ar [...]
Essa declaração de Marx é bem significativa para que se entenda que a noção de
sujeito que surge da Modernidade está baseada num constante processo de mutação e
reconstrução dos saberes. Hall (2006) diz que as sociedades modernas não têm um
centro regulador que reja os sujeitos de forma unificada; o que há é um conjunto
disperso de referentes que transpassando os sujeitos torna-os usuários de várias
identidades. Considerando também a flexibilidade das identidades, Santos (2000, p.
135) diz que “as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São
resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. (...) Identidades
são, pois, identificações em curso”. Situado em um campo epistemológico bastante
instável – o campo da modernidade – o sujeito moderno vai ser constituído sobre uma
base dinâmica e heterogênea de saberes.
A questão da historicidade do sujeito é tratada de maneira bem metodológica por
Foucault (1995, p. 231) que tinha, como ele mesmo disse, o sujeito como seu objeto de
estudo: “Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos
quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”. Para fazer sua história
da subjetivação dos seres humanos, Foucault (1995, p. 231) segue três caminhos que,
segundo ele, objetivam o sujeito: “Meu trabalho lidou com três modos de objetivação
que transformaram os seres humanos em sujeito”. O sujeito, como centro das reflexões
de Foucault, é analisado sob os prismas do saber, do poder e da ética. Os três modos de
objetivação de que falou Foucault estão distribuídos nas três fases de seu trabalho: fase
arqueológica (a arqueologia do saber), fase genealógica (a genealogia do poder) e fase
de si (as técnicas de si). O sujeito, sob ótica de Foucault, é o produto de um complexo
processo discursivo e não-discursivo que se materializa temporariamente em
determinado momento histórico. Reconhecendo essa complexidade do sujeito, Foucault,
em suas três fases, garante-lhe (ao sujeito) um minucioso espaço de análise: o sujeito
que se constitui pelo saber, o sujeito que se constitui pela ação do poder e o sujeito que
se constitui a partir de si mesmo. Assim, o sujeito, como um lugar vazio, pode ser
ocupado por qualquer indivíduo. Sendo histórico, o sujeito se constitui a partir das
condições sócio-ideológicas que o transpassam por meio do discurso e do nãodiscursivo. O discurso funciona como canal e produtor do poder que por sua vez
determina que saberes devem ser tomados como verdade. A imagem abaixo ilustra a
constituição do sujeito:
Imagem criada pelo autor do artigo para ilustrar a constituição do sujeito
A imagem mostra a interpelação de um indivíduo em sujeito. Nesse processo, o
discurso tem função fundamental, porque ele vem autorizado pelo poder que torna os
saberes em discursos “verdadeiros”. O poder, nesse texto, é bastante significativo;
vejamos o que nos diz Foucault sobre ele.
2.3. O exercício do poder
Foucault teve tamanha fidelidade ao seu objeto de estudo – o sujeito histórico –
que mesmo quando fala do poder, ele o coloca em posição secundária em relação ao
sujeito; o poder está para a constituição do sujeito. Ratificamos isso com a fala do
próprio Foucault (1995, p. 231):
Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu
trabalho nos últimos anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem
elaborar os fundamentos de tal análise. (...) Meu objetivo... foi criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura,os
seres humanos tornaram-se sujeitos.
Nessa fase, Foucault busca compreender como o sujeito é constituído mediante a
ação do poder. Saliente-se, no entanto, que Foucault tem uma concepção dinâmica,
descentralizda e positiva do poder. O poder é dinâmico porque está em constante
transitividade no corpo social; é descentralizado porque não tem o Estado como seu
espaço único de manifestação, mas ao contrário, manifesta-se nas mínimas relações
sociais (família, relação professor e aluno); é positivo porque produz sujeitos dóceis,
disciplinados, sistemáticos.
Ao invés de dominado, possuído, o poder é antes tudo exercido. E aqui está a
característica descentralizada do poder, pois esse exercício pode ser feito por qualquer
sujeito, independente de sua posição na relação de poder. Isso é claramente visto no
corpus de análise de nossa pesquisa, em que professor e aluno, ligados de maneira
assimétrica, exercem, cada um ao seu tempo, “seu poder”. O professor, imaginando ser
o dono do poder, age sobre o aluno tentando mantê-lo o mais submisso possível. O
aluno, no exercício do seu poder, resiste – não há relação de poder sem resistência
(Foucault, 1995, p 248) – à ação do poder do professor quando, por exemplo, nega-se a
fazer uma atividade. Assim, há uma relação de forças entre esses dois sujeitos, ou seja,
uma luta constate pelo exercício do poder.
Para Foucault (1995, p. 244), o poder não deve ser visto pelos olhos da tirania “o
modo de relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da
violência e da luta”, porque seu objetivo não é reprimir os sujeitos, mas conduzir suas
condutas para que eles se tornem sujeitos mais dóceis. Ratificando essa questão da não
tirania do poder, diz Foucault (idem)
O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois
adversários, ou do vínculo de um em relação ao outro, do que da
ordem do ‘governo’. Devemos deixar para este termo a significação
bastante ampla que tinha no século XVI. Ele não se referia não apenas
às estruturas políticas e à gestão dos Estados; mas designava a
maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos. (...) Ele
não recobria apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política
ou econômica; mas modos de ação mais ou menos refletidos e
calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de
ação dos outros indivíduos.
Nota-se com essa citação que o poder, antes de repressor, é um gerenciador do
comportamento dos sujeitos, isto é, ele age sobre os sujeitos com o intuito de dotá-los
de determinadas competências. Machado (2008, p. XVI), falando da positividade do
poder, diz que “o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma
positividade. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que o poder tem como
alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.”
Ao falarmos no corpo, chegamos a um ponto crucial da fase genealógica de
Michel Foucault: a ação do poder disciplinar. Segundo Foucault, o poder disciplinar
surge no século XVII, quando o corpo do homem é descoberto como objeto e alvo do
poder. Diferentemente do poder punitivo que suplicia o corpo do homem com os mais
diversos instrumentos de tortura, a disciplina visa o controle sob os corpos a fim de
torná-los obedientes e produtivos, como diz Foucault (2007, p. 118) em sua definição de
disciplina “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidadeutilidade”. Embora não suplicie o corpo com açoites, a disciplina também possui seus
mecanismos de punição que primam, acima de tudo, pela correção dos desvios.
O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve
portanto ser essencialmente corretivo. Ao lado das punições copiadas
ao modelo judiciário (multas, açoites, masmorra), os sistemas
disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício –
aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido
(FOUCAULT, 2007, p.150).
O poder disciplinar surge, no final do século XVII e início do século XVIII, como:
Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua
importância: porque definem um certo modo de investimento político
e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder; (...) Pequenas
astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de
aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que
obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem
grandeza (FOUCAULT, 2007, p. 120).
Dentro de um regime disciplinar, todos os movimentos do corpo, por menores
que sejam, são monitorados com vistas a impedir a ociosidade, o desgaste e a
indisciplina, pois esses desvios têm como conseqüência a improdutividade. Um corpo
disciplinado é mais produtivo porque canaliza suas forças para o cumprimento da tarefa
que lhe foi confiada. Característica do poder disciplinar é que ao mesmo tempo em que
ele aumenta as forças do corpo, ele a diminui no sentido de não permitir que o corpo se
rebele, ou seja, o corpo disciplinado está em um estado de obediência. De acordo com
Foucault (2007, p 119), o poder disciplinar surgiu primeiramente “nos colégios, muito
cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em
algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar.” Dentro desses aparelhos
ideológicos, pela ação ininterrupta da disciplina, os sujeitos são subjetivados.
Na busca de constituir os sujeitos, o poder disciplinar faz uso de uma série de
mecanismos que regulam toda a atividade do corpo. Vejamos aqui alguns desses
mecanismos disciplinares: a distribuição dos corpos, o controle do tempo e a vigilância.
Foucault (2007) diz que o primeiro passo da disciplina é regular a distribuição dos
corpos, pois isso permite a vigilância e o reconhecimento de cada sujeito. Em Vigiar e
Punir, livro onde se vê claramente a ação do poder sobre os corpos, Foucault (2007, p.
123) fala do “enquadramento” que equivale a colocar cada sujeito em um espaço
particular que lhe permita ser observado individualmente. Nas palavras de Foucault (Id.
ibid) “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo”, porque assim será
possível “evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas;
analisar as pluralidades confusas, maciças”. Com essa individualização dos sujeitos, a
disciplina cria um espaço analítico. A fim de comprovar o mecanismo disciplinar da
distribuição, Foucault (2007, p. 125) remete-se à escola e diz que “pouco a pouco – mas
principalmente depois de 1762 – o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se
homogênea, ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao
lado dos outros sob os olhares do mestre”. Ainda em relação à escola, Foucault (2007,
p. 125) diz que
‘A ordenação por fileiras’, no século XVIII, começa a definir a grande
forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos
na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em
relação a cada tarefa e a cada prova; colocação que ele obtém de
semana em semana, de mês em mês, (...) alinhamento das classes de
idade segundo uma ordem de dificuldade crescente.
Com um lugar definido dentro da máquina disciplinar, o sujeito será agora
regulado pelo mecanismo do tempo. Dentro do regime disciplinar não há espaço para a
ociosidade. Cada movimento do sujeito deve estar voltado para uma produtividade.
Somente um corpo disciplinado pode fazer bom uso do tempo que tem. Quando fala do
tempo, Foucault (2007, p. 128) diz que “no começo do século XIX, serão propostos
para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada
do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04
primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc”. Há uma relação direta entre o
poder e o tempo; “O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e
garante sua utilização (FOUCAULT, 2007, p. 136).
Juntamente com a localização exata dos corpos e o controle de suas práticas,
Foucault apresenta um outro mecanismo que age sobre o corpo: o olho do poder.
Falamos da constante vigilância sobre os mínimos gestos do sujeito. A vigilância, no
regime disciplinar, é onipresente e ininterrupta. Há uma subjetivação tal do sujeito que,
embora o vigia se ausente de seu posto, o sujeito tem a certeza de que está sendo
observado. Para que essa vigilância aconteça, o espaço onde se situa o sujeito deve ser
organizado de maneira a possibilitar a vigilância sobre todos os corpos ao mesmo
tempo. Foucault encontra esse espaço de vigilância constante no Panóptico de
Bentham: um projeto arquitetônico que foi elaborado para as prisões do século XVIII
que possibilitava a vigilância de todos os presos a partir de um único ponto, a torre
central. Referindo-se à educação, Foucault (2007, p.166) diz que no panoptismo,
quando aplicado ao espaço de ensino, “não há cola, nem barulho, nem conversa, nem
dissipação”. Isso se faz porque “uma relação de fiscalização, definida e regulada, está
inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas
como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência” (FOUCAULT,
2007, p. 148). Assim, o Panóptico, elaborado para fins carcerários, toma dimensões
múltiplas (escola, hospital,) dentro do corpo social, tornando-se “uma nova anatomia
política cujo objetivo e fim não são a relação de soberania, mas as relações de
disciplina” (FOUCAULT, 2007, p.172).
Com essa abordagem do poder, nós fechamos o ciclo de fundamentação teórica e
partimos para as constatações da teoria por meio da análise do corpus. Vejamos
primeiro a objetivação dos sujeitos por meio da linguagem não-discursiva da arquitetura
escolar.
3. Linguagem não-discursiva I (análise do espaço escolar)
Para o exercício de seu poder formador da governamentalidade, a escola conta
com uma série de mecanismos disciplinares: arquitetura, horário, professores, gestores,
plano político-pedagógico, registro de presença. Não entraremos em detalhes sobre
todos esses mecanismos, tendo em vista a notoriedade de suas funções, mas destacamos
a arquitetura em virtude da abordagem que Foucault dá à questão. Segundo Foucault,
(2007, p. 145), a escola moderna foi arquitetada como um vigia: “o próprio edifício da
Escola devia ser um aparelho de vigiar; os quartos eram partidos ao longo de um
corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos regulares, encontrava-se um
alojamento oficial.” Dos corredores estreitos, dos altos muros que lembram as prisões,
da cantina, do pátio, tudo na escola converge para constituição de um sujeito
disciplinado. As fotos da escola onde fizemos a coleta dos dados reforçam o caráter
constitutivo da arquitetura da escola que objetiva os sujeitos-escolares
Nesta foto, é possível observarmos a regularidade da
divisão das salas que estão dispostas em um corredor.
Há um nivelamento na distribuição dos alunos, isto é,
todos estão distribuídos de maneira igualitária. Uma
amostra clara da tentativa de homogeneização dos
sujeitos no espaço disciplinar. Saliente-se que essa
distribuição das salas faz lembrar as celas de uma
prisão onde se está sobre constante vigilância.
1 Foto frontal do pátio
2 Aqui nós temos uma visão mais próxima do corredor
onde estão as salas. Chamamos a atenção para a
estreiteza do corredor. Como se observa na foto1
(olhe-se para o pátio abaixo), havia espaço para a
construção de um corredor mais largo, no entanto, o
que se observa é uma compressão dos corpos. Parecenos que corredores mais largos significam dispersão,
indisciplina. Assim, o poder disciplinar da escola
transpassa os corpos dos sujeitos pela prática nãodiscursiva – corredores – e os objetiva. A
compactação dos corpos permite um melhor controle.
3 Foto da sala- visão superior
4 Foto 2 do corredor
6 5 Foto 4 - panorâmica da escola
Foto 5
Na foto 3, nós observamos uma partícula do poder disciplinar que constitui os
sujeitos-escolares: a distribuição das carteiras em fileiras sistemáticas. Com essa
distribuição, cada aluno é individualizado ao mesmo tempo em que pertence a um corpo
coletivo “homogêneo”. Essa localização dos corpos favorece a vigilância do professor
que consegue fiscalizar cada aluno de qualquer lugar da sala. É uma ação ininterrupta
sobre os corpos para que os sujeitos se tornem dóceis, isto é, produtivos a partir da
eliminação de toda e qualquer dispersão ou gasto desnecessário da força produtiva. A
foto 4 mostra com maior precisão a ação compressiva da arquitetura escolar sobre os
corpos dos sujeitos-escolares que são impelidos a formar filas indianas devido à
estreiteza do corredor; o próprio aluno ativa o poder disciplinar da escola. Isso nos faz
lembrar um aspecto peculiar ao poder disciplinar: o vigia não precisa estar presente para
regular os vigiados. Já as fotos 4 e 5 ratificam o aspecto prisional que anteriormente
falamos: muros altos (ao fundo da foto) e grades na janela (foto em foco).
A partir da análise das fotos, vemos que a escola, via arquitetura, busca
homogeneizar os sujeitos, imprimir-lhes uma identidade coletiva. Da constituição
identitária via arquitetura, passemos para uma constituição mais plural: caderneta, a
disposição das carteiras, o olhar, o tempo pedagógico.
4. Linguagem não-discursiva II (análise da sala de aula)
4.1. A caderneta
Ela permite ao professor um controle sobre o fluxo dos alunos. Não apenas isso,
mas um acompanhamento individualizado, um mapeamento da história de cada sujeitoescolar. Como instrumento do exercício de poder da ordem do não-discursivo, a
caderneta, suporte para a chamada, garante ao professor “um domínio” sobre a vida
escolar do sujeito-aluno. Extrapolando o domínio escolar, a caderneta é o olho invisível
do exercício de poder do Estado que vigia e constitui os sujeitos. Observando a
chamada
717 AL 6
718 AL1
adriana ((chamada))
presente
Andréia
aqui
Brenand
Notamos a presença do poder disciplinar (a ordem alfabética) que individualiza e
torna cada aluno um caso analisável. A caderneta possui campos específicos para
acompanhar o desenvolvimento de cada aluno: campos de frequência, notas,
comportamento. Esse exercício minucioso – buscam-se os detalhes de cada indivíduo –,
ininterrupto – vigilância contínua do indivíduo –, totalizador – ninguém escapa do
olhar, está na origem dos saberes pedagógicos presentes na escola.
Na passagem a seguir, vemos o exercício de poder na escola, representado pela
caderna, constituindo o sujeito-professor. Nessa situação, a aluna três defende uma
colega que segundo ela havia faltado às aulas em que a música Eduardo e Mônica foi
trabalhada, logo não poderia fazer o teste:
844 AL 3
845 PR
ela faltou (( uma aluna defende a outra dizendo que ela havia faltado à
aula em que a música foi trabalhada))
ela faltou em que dia? esse texto foi feito em dois dias...no terceiro a
gente ainda conversou sobre ele...ela faltou isso tudinho? sem condições
(( a aluna fez o teste sem saber de nada))
silêncio...se preocupe com o seu... deixe o dela ((fala com a aluna que
defendeu a colega))
você nunca leu o texto ? ((fala com a aluna que foi defendida))
por quê? você faltou três dias ((a professora pega a caderneta e constata
que a aluna esteve presente no terceiro dia quando o texto foi debatido))
Tendo por hábito fazer chamadas e registros dos alunos, a professora constata
que a aluna defendida havia assistido à terceira aula em que a música foi trabalhada.
Com isso, ela julgou que era possível que a aluna respondesse a prova. É de se
reconhecer que, em virtude de ter faltado à maioria das aulas em que a música foi
trabalhada, a aluna tinha poucas chances de responder e que a professora poderia
remarcar a prova; mas o fato é que a professora, à medida que faz a chamada e
acompanha os alunos, vê-se na obrigação de cobrar-lhes o retorno das aulas ministradas.
Não é um registro a esmo, é um reconhecimento fundamental para a constituição do
sujeito-escolar; logo, esse instrumento não-discursivo marca também a identidade do
professor que se forma como um sujeito “onisciente” em relação ao aluno, ou seja, o
professor conhece – ao menos deve conhecer – o perfil de cada aluno – o que ele sabe,
seu ritmo de aprendizagem, sua dificuldade de aprendizagem.
4.2. A disposição das carteiras em filas
A disciplina entende que o desenvolvimento do sujeito só pode ocorrer dentro de
um espaço sistemático, onde as forças do sujeito sejam gerenciadas de maneira que ele
as utilize com o menor desperdício possível. Somente uma distribuição ordenada, que
diminua ao máximo as dispersões – brincadeiras, conversas – e centralize a atenção do
aprendiz ao professor pode possibilitar a constituição de sujeitos dóceis. A escola, de a
muito, já adotou essa concepção da organização regular do espaço de aprendizado: a
sala divide-se em filas bem delineadas que objetivam centralizar a atenção dos alunos
ao professor. Os alunos são individualizados em cada carteira. Observando mais um
trecho da aula do ditado da música Eduardo e Mônica, nós veremos como essa prática
não-discursiva – a distribuição em fileiras – objetiva a identidade do sujeito-aluno. No
trecho abaixo, a professora faz uma reclamação aos alunos, porque eles desfizeram a
fila
538 PR
outra estrofe... outra estrofe
Construíram uma casa a uns dois anos atrás
Cadê minha passagem que não está aqui...vocês sabem que eu gosto
da passagem para olhar ...o caderno de cada um né [ dá próxima vez
não vou querer essa fila aqui não (( reclamou porque os alunos
criaram uma fila a mais e isso a impediu de passar para
supervisionar o caderno dos alunos))
Pela reação da professora – Cadê minha passagem –, nós podemos ver a
importância que é dada à fila. A prática não-discursiva – a fila – objetiva um sujeitoaluno regulado, obediente, conhecedor de seus limites, ou seja, disciplina as ações do
sujeito-aluno, evita o desperdício e aumenta seu campo de produção. No entanto, essa
objetivação não ocorre de maneira passiva; há uma resistência por parte dos alunos que,
vez por outra, desfazem as filas. O sujeito-aluno não é uma mira indolente do exercício
do poder da escola por via do professor. Mas o dizer da professora “Cadê minha
passagem que não está aqui”, evidencia algo mais que a busca pela constituição de um
sujeito dócil: a necessidade da professora de manter o seu exercício de poder sobre os
alunos. O regime disciplinar sobre o qual os alunos estão assujeitados tem toda uma
política de manutenção que se concretiza pelo discursivo e o não-discursivo. Isso fica
claro nessa passagem que estamos analisando. O aspecto não-discursivo da constituição
do sujeito-aluno fica evidente na repreensão feita pela professora que constatou uma
desorganização na sistemática distribuição dos corpos em sala de aula “dá próxima vez
não vou querer essa fila aqui não”.
4.3. O olhar
Em sala de aula, o olhar tem um papel significativo: intimida, autoriza, afirma,
nega, corrige, estimula, estabelece um campo de poder sobre os corpos sujeitosescolares. O olhar do sujeito-professor é universal no sentido de que ele alcança todos
os alunos; ninguém foge à fiscalização da máquina de ensinar. A visibilidade do poder
disciplinar que constitui os alunos está disseminada em sala de aula; ou seja, o aluno
não é só passivo de observação pelo olhar direto do professor, mas também por outros
meios sensitivos de captação: a prova, a caderneta, o exercício. Esses mecanismos,
juntamente com o professor, trabalham de maneira articulada na análise e na
constituição do sujeito-escolar. O olhar que vigia para punir, também é o mesmo que
vigia para disciplinar, isto é, para corrigir e aumentar a força de produtividade. Se
retomarmos a aula da aplicação do teste, veremos um exemplo do olhar que vigia para
punir no enunciado da professora que ameaça a classe – expulsar os alunos – ao
observar uma indisciplina generalizada “... quem falar agora...eu vou começar a esvaziar
a sala ta?”. Já na aula a seguir, o olhar destina-se a disciplinar, corrigir a má
desenvoltura do aluno no que diz respeito ao uso das letras maiúsculas:
545PR
[tem maiúscula aí no meio Jéssica? ((chama a atenção da aluna que
estava colocando letra maiúscula onde não cabia))
Mas, há outro atributo do olhar que não podemos deixar de mencionar: o olho
que vê também é visto. A visibilidade, como dissemos, está espalhada dentro da
máquina de ensinar. Isso significa que há um jogo de olhares constante. Nesse jogo de
olhares, há uma assimetria determinada pela posição que cada observador – professor e
aluno – ocupa dentro da máquina de ensinar. Da função-sujeito que ocupa, o professor,
é o olho do poder disciplinar que observa e constitui a identidade do sujeito-aluno. Mas
a estratégia da visibilidade não está em olhar indiscriminadamente o sujeito observado,
mas também em se deixar olhar por ele. Deixar-se ver é uma estratégia de governo,
pois, à medida que é visto, o olho do poder avisa que também está observando. O olho
do poder chama para si os olhares, pois assim ele pode governar os que o observam.
Essa estratégia pode ser vista no enunciado da professora que, em uma aula sobre
oração-frase, chama para si o olhar do aluno
736 PR
OLHA...presta atenção aqui rapidinho...
iterrompe um pouquinho aí ((refere-se ao exercício de palavras
cruzadas))
pra gente não perder o assunto
O “OLHA”, além de indicar uma ordem que evidencia o lugar de autoridade de
onde fala a professora, também estabelece um governo sobre o aluno, pois na proporção
que se deixa olhar pelo aluno, a professora o vigia.
4.4. O tempo
O professor policia seu tempo e o dos alunos que são sempre chamados à
atenção, quando não fazem bom uso – compromete aprendizado – desse tempo, isto é,
quando “desperdiçam” o tempo com outros campos discursivos, como, por exemplo, em
conversas e brincadeiras – atitudes essas que prejudicam a construção de sujeitos
dóceis. Há um verdadeiro sacramento do tempo. Na passagem a seguir nós vemos que a
professora aplica o exercício e logo cobra uma agilidade dos alunos, isto é, que eles
terminem a atividade logo, uma vez que ela quer fazer a correção do exercício proposto,
ou seja, fazer bom uso de seu tempo:
917 PR
agora vamos fazer um exerciciozinho
no primeiro momento vamos fazer esse aqui
agora isso tem que ser rápido...pra gente corrigir hoje junto ((a professora
anda na sala supervisionando a atividade dos alunos))
enquanto vocês copiam...eu vou fazer a chamada
terminou leo...terminou edson?
olha a conversa...não terminaram
Assim, o exercício de poder na escola, materializado no tempo, marca o corpo e
a razão do professor, imprimi em sua identidade a ética do tempo.
5. Considerações finais
De imediato, a sala de aula é um lugar menos democrático do que se espera. A
máquina de ensinar, espaço que comporta o discursivo e o não-discursivo, age
indiscriminadamente sobre os sujeitos professor e aluno. A pirâmide do poder presente
em sala de sala determina a posição de cada sujeito; “sempre se está assujeitado a”. Se o
aluno assujeita-se ao professor porque o reconhece como uma autoridade instituída, o
professor, por sua vez, tem seu discurso e sua prática determinados pela função-sujeito
que ocupa, isto é, sujeito de docência regulado pelas vontades de verdade do aparelho
ideológico escolar ao qual está assujeitado. A busca última do poder disciplinar que faz
mover a máquina de ensinar é a constituição de sujeitos dóceis, isto é, sujeitos que
produzem e que estão em constante disciplina. Para isso, a máquina usa uma série de
mecanismos de poder que vão do discursivo ao não-discursivo.
Os instrumentos não-discursivos procuram objetivar os corpos dos sujeitos.
Esses instrumentos foram constatados na análise – o controle do tempo, a disposição
das carteiras na sala, a chamada, o olhar. Assim, regulados por essa maquinaria, os
sujeitos professor e aluno têm seus corpos marcados e, literalmente, regulados. O poder
que regula a máquina de ensinar estabelece esses mecanismos de objetivação como
saberes, logo, como verdades que naturalmente são assimiladas pelos sujeitos. Além
desses mecanismos em loco – na sala de aula –, os sujeitos também são objetivados pela
própria arquitetura da escola que impele os sujeitos a um estado de autocontrole, a uma
reativação do poder disciplinar que, como vimos, tem por objetiva a constituição de
sujeitos dóceis, isto é, devidamente disciplinados para o exercício do aprender.
Toda essa reflexão evidencia o aspecto positivo do poder, pois a escola e seu
micro espaço – a sala de aula – são espaços que por natureza exigem sistematicidade e
controle dos corpos.
Assim, esse texto é a voz do ideológico que se faz presente nas práticas
discursivas e não-discursivas da sala de aula e que constituem o professor e o aluno. De
maneira geral, o texto vem engrossar a fileira de outras linhas teóricas que buscam
compreender a relação entre o professor e o aluno dentro da máquina de ensinar – a sala
de aula. De um ângulo mais específico, a importância desse texto estar em revelar quão
constitutivo é o poder que circula em sala de aula; poder que constrói saberes, saberes
que se tornam “verdades”, verdades que constituem identidades.
Logo, em sala de aula, nada é por acaso; da voz ao silêncio, tudo é
ideologicamente marcado.
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A MEMÓRIA DE TRABALHO E A PRODUÇÃO ORAL EM L2 DO FRANCÊS
E DO INGLÊS POR FALANTES DO PORTUGUÊS COMO L1
Gustavo Lopez Estivalet122
RESUMO: Esta pesquisa apresenta os resultados de testes de mensuração da capacidade de memória de
trabalho e suas correlações com a produção oral em L2 do francês e do inglês por falantes de português
como L1. A memória de trabalho é um construto crucial para o desenvolvimento de tarefas cognitivas
complexas, como a produção oral (DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983). Sendo assim, é sabido
que indivíduos com uma maior capacidade de memória de trabalho possuem também uma melhor
produção oral, e vice-versa (FORTKAMP & BAPTISTA, 2000). Logo, o objetivo principal foi identificar
as diferenças individuais de capacidade de memória de trabalho entre os dois grupos – falantes de francês
e falantes de inglês – e seus resultados diretos na produção oral em L2. Para tanto, será abordada a
metodologia e os critérios adotados para a seleção das palavras e frases utilizadas nos testes, assim como
o desenvolvimento sistemático dos testes de mensuração da capacidade de memória de trabalho através
do programa E-Prime v2.0 (CONWAY et al., 2005). Para esta pesquisa, foram desenvolvidos 3 testes,
sendo 2 deles, o Operation-Word Span Test (OSPAN) e o Reading Span Test (RST) (TURNER &
ENGLE, 1989) para a capacidade leitora e 1, o Speaking Span Test (SST) (DANEMAN, 1991) para a
habilidade oral. Este conjunto de 3 testes de mensuração da capacidade de memória de trabalho foi
desenvolvido em língua materna (L1 – português) e em línguas estrangeiras (L2 – inglês e/ou francês).
PALAVRAS-CHAVE: Memória de trabalho; produção oral em L2; Psicologia Cognitiva; Linguística.
ABSTRACT: This research study presents the results of tests measuring working memory capacity and
theirs correlations with the speech production in L2 French and L2 English by Portuguese speakers like
L1. The working memory is a important construct the development of complex cognitive tasks, as speech
production (DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983). Therefore, it is known that individuals with
greater working memory capacity also have better speech production, and vice-versa (FORTKAMP &
BAPTISTA, 2000). So, the main objective was identify the individuals differences in working memory
capacity between the two groups – speakers of French and speakers of English – and theirs direct results
in the L2 speech production. Then, it will be mentioned the methodology adopted for the selection of
phrases and words used in the tests, and the systematic development of the ests of measuring working
memory capacity through the E-Prime v2.0 software (CONWAY et al., 2005). For this research study, 3
tests for measuring the working memory capacity were developed, being 2 of them, the Operation-Word
Span Test (OSPAN) and the Reading Span Test (RST) (TURNER & ENGLE, 1989) for the reading
capacity and 1, the Speaking Span Test (SST) (DANEMAN, 1991) for the speaking capacity. This battery
of 3 tests for measuring the working memory capacity was developed in mother tongue (L1 - Portuguese)
and foreign language (L2 - French and L2 – English).
KEYWORDS: Working memory; L2 speech production; Cognitive Psychology; Linguistic.
1. Introdução
Desde que os estudos em linguística moderna começaram, a partir da década de
50, a maior dificuldade de pesquisa é em relação à análise científica da produção oral
dos indivíduos, principalmente no que concerne à obtenção de dados reais e específicos
para uma análise qualitativa. Tendo em vista que essas dificuldades são uma grande
122 Aluno e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC.
barreira para a pesquisa em língua materna (L1), elas aumentam ainda mais na pesquisa
em língua estrangeira (L2).
Em teoria, o sistema de produção oral em L1 seria também válido para L2, mas
o fato é que os modelos teóricos disponíveis não explicam qual mecanismo permite a
um bilíngue alternar conscientemente ou inconscientemente a língua em que ele produz
a mensagem (FORTKAMP & BAPTISTA, 2000). De uma forma geral, os estudos em
L2 revelam que a diferença fundamental entre a produção oral em L1 e L2 se situa no
subestágio de formulação da mensagem, isto é, quando o falante deve acessar os
conhecimentos lexicais, sintáticos e fonológicos. Em L1, este acesso é implícito e
automático, porém, em L2, ele é explícito e intencional. Sendo assim, esse acesso
depende da utilização de recursos atencionais do falante, penalizando a sua produção
oral em L2.
A manipulação desses recursos é realizada num sistema chamado memória de
trabalho, que, por sua vez, tem-se mostrado um construto crucial para a compreensão do
sistema cognitivo humano (BADDELEY, 1999). De acordo com a definição clássica, a
memória de trabalho é responsável pelo armazenamento e pelo processamento
temporário das informações durante a execução de tarefas cognitivas complexas
(DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983; TURNER & ENGLE, 1989; FORTKAMP
& BAPTISTA, 2000). Assume-se ainda que existe uma concorrência entre o
armazenamento e o processamento das informações, ou seja, à medida que a capacidade
de processamento é mais exigida, sobram menos recursos para o armazenamento e viceversa. Nesse contexto, fala-se ainda de capacidade de memória de trabalho, que nada
mais é do que a diferença mensurável entre um individuo e outro em relação à sua
memória de trabalho, ou seja, as capacidades individuais de armazenamento e
tratamento de dados (MOTA & BAPTISTA, 1995; CONWAY et al., 2003).
Esta concorrência pode ainda ser vista como uma negociação no sistema
cognitivo entre as capacidades de armazenamento e processamento das informações.
Enfim, a variação da capacidade de memória de trabalho é fundamental no
desenvolvimento de tarefas cognitivas complexas, como a produção oral. Sendo assim,
indivíduos com uma maior capacidade de memória de trabalho apresentam também uma
melhor performance nas tarefas de aprendizagem, raciocínio, controle cognitivo, leitura
em L1 e produção oral em L1 (DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983;
DANEMAN, 1991). Desse fato, percebe-se que a memória de trabalho possui uma
ligação direta com a cognição, que é definida como o processo de conhecer ou de saber
e possui uma forte relação com a atenção, a percepção, o raciocínio, a imaginação e a
linguagem (CONWAY et al., 2003).
Conway et al. (2005) observaram que tanto o sistema memória de trabalho como
os próprios instrumentos de mensuração da capacidade de memória de trabalho são
utilizados em diversos campos da ciência e não somente na psicologia cognitiva.
Normalmente, essas pesquisas desconsideram aspectos epistemológicos e
metodológicos importantes sobre o sistema cognitivo humano, provocando resultados
inconsistentes. Enfim, os testes de mensuração da capacidade de memória de trabalho
em L2 são muitas vezes aplicados com pouca ou nenhuma atenção e consideração a
uma questão fundamental a um bilíngue: a existência de dois sistemas linguísticos, um
natural e completo em L1 e outro não natural e incompleto em L2. Logo, em que
medida os resultados, nos testes cognitivos, são afetados pela performance em L2 e pela
interação e utilização simultânea dos dois sistemas linguísticos? O fato é que
normalmente os resultados obtidos nos testes em L2 são menores do que nos testes em
L1. Porém, não se sabe até que ponto essas diferenças têm uma relação direta com a
construção e a aplicação dos testes aos conhecimentos em L2 do indivíduo e,
principalmente, à capacidade cognitiva individual de cada indivíduo.
Por todas essas razões, o objetivo principal desta pesquisa é o de verificar as
diferenças individuais da capacidade de memória de trabalho entre indivíduos falantes
do português brasileiro como L1 e do francês ou do inglês como L2. Como objetivos
específicos, esta pesquisa deseja 1) identificar os motivos e consequências das
diferenças individuais da capacidade de memória de trabalho, 2) desenvolver e adaptar
uma série de testes de mensuração da capacidade de memória de trabalho, de uma forma
sistemática e metódica, a partir da utilização do programa E-Prime v2.0123
(SCHNEIDER et al., 2007) e 3) realizar uma análise teórica e prática dos instrumentos
de mensuração e análise da capacidade de memória de trabalho.
2. Fundamentação teórica
O primeiro teste desenvolvido e aplicado para a mensuração da memória de
trabalho foi o Reading Span Test124 (RST), para a tarefa de compreensão de leitura
(DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983). Em seguida, o Speaking Span Test (SST)
foi desenvolvido e aplicado para a mensuração da memória de trabalho durante a tarefa
de produção oral (DANEMAN & GREEN, 1986; DANEMAN, 1991). Em
contrapartida, Engle demonstrou que as mesmas relações podem ser obtidas pelo
Operation-Word Span Test (OSPAN) (TURNER & ENGLE, 1989), teste de
mensuração da capacidade de memória de trabalho durante tarefas lógicas, que não
utiliza as habilidades de compreensão e produção da língua (CANTOR et al., 1991;
CONWAY et al., 2003; UNSWORTH & ENGLE, 2005). Os resultados sistemáticos
obtidos por Engle são vistos como uma evidência de que a capacidade do sistema é
geral e não específica e relacionada à habilidade que o indivíduo tem para ajustar seus
mecanismos atencionais, independentemente da tarefa (TURNER & ENGLE, 1989;
FORTKAMP & BAPTISTA, 2000; REDICK & ENGLE, 2006).
A relação entre a memória de trabalho e a realização de tarefas cognitivas
complexas mantém-se para a performance na produção oral L2. Mota tem pesquisado
desde 1995 exatamente esta relação entre a memória de trabalho e a produção oral em
L2 – língua inglesa. Fortkamp (2000) mostrou que essa relação é mantida nas tarefas
orais monológicas, quando a performance é avaliada em termos de fluência, precisão
gramatical, complexidade gramatical e densidade lexical. Os trabalhos de Bergsleithner
(2007) e Prebianca (2008) replicaram os resultados encontrados por Fortkamp (2000).
Porém, o trabalho de Weissheimer (2007) apresentou inconsistências nos resultados
obtidos, sobretudo nas relações entre os resultados dos testes de mensuração da
capacidade de memória de trabalho e a performance na produção oral do indivíduo em
inglês como L2.
123 Programa de construção, aplicação e análise de testes psicológicos informatizados desenvolvido pela
PST Inc.
124 Decidiu-se manter-se a nomenclatura original em inglês dos testes de mensuração da capacidade de
memória de trabalho, devido à tradição de aplicação desses testes e utilização das siglas no texto.
A memória de trabalho é um modelo criado e desenvolvido para explicar e
sistematizar a utilização de recursos cognitivos para o armazenamento e processamento
de informações, durante a realização de tarefas complexas. Assim, a memória de
trabalho intervém logo que se presta atenção em um estímulo registrado pela memória
sensorial. Baddeley e Hitch propuseram, em 1974, um modelo teórico simplista, mas
muito pertinente, didático e prático. Nesse modelo, a memória de trabalho é dividida em
três partes: 1) o administrador central, que por sua vez gere simultaneamente 2) o ciclo
fonológico (modalidade verbal/auditiva) e 3) a área de armazenamento viso-espacial
(modalidade visual/espacial). Tem-se, logo abaixo, na Figura 1, uma ilustração do
modelo proposto por Baddeley e Hitch.
Figura 1 – Modelo da memória de trabalho
Os recursos de armazenamento e processamento competem entre si por uma
capacidade limitada (DANEMAN & CARPENTER, 1983; TURNER & ENGLE,
1989). Logo, quanto mais a capacidade de processamento é requerida, mais o sistema
utiliza recursos disponíveis, diminuindo assim a capacidade de armazenamento e viceversa. É por isso que indivíduos com uma baixa capacidade de memória de trabalho
possuem menos recursos cognitivos e consequentemente possuem uma menor
performance nas tarefas cognitivas complexas, como a produção oral em L2
(FORTKAMP, 2000).
Enfim, sabendo-se que a memória de trabalho possui uma capacidade limitada,
questiona-se: qual é o limite da capacidade de memória de trabalho? Como mensurar
estsa capacidade? Miller, em 1956, ou seja, antes do desenvolvimento do modelo da
memória de trabalho, havia realizado uma pesquisa muito pertinente sobre este tema125.
Ele definiu o número 7, mais ou menos 2, como o limite da capacidade humana de
armazenar e processar as informações (MILLER, 1956). Esse número é frequentemente
observado nas pesquisas sobre a capacidade da memória de trabalho (DANEMAN &
CARPENTER, 1980; 1983; TURNER & ENGLE, 1989).
Considerando-se que diferentes indivíduos possuem diferentes capacidades de
memória de trabalho, pesquisadores da área afirmam que diferenças individuais nessa
capacidade afetam diretamente a capacidade de resolução de problemas (TURNER &
ENGLE, 1989). Daneman e Carpenter (1980) afirmaram em seu trabalho seminal que
125 Para mais informações sobre esse tema, ler o artigo The magical number seven, plus or minus two:
Some limits on our capacity for processing information, de Miller (1956).
indivíduos que realizaram uma leitura e interpretação ineficientes do texto também
tiveram uma pontuação baixa no RST, já indivíduos que realizaram uma leitura e
interpretação eficientes obtiveram uma pontuação alta nesse teste. Em 1986, Daneman e
Green publicaram uma pesquisa que tratava das diferenças entre a capacidade de
memória de trabalho e a produção oral em L1 – língua inglesa – a partir do SST. Em seu
artigo, os pesquisadores afirmam que os resultados similares nos dois testes – o SST e o
RST – sugerem que, para ambos os testes, os recursos cognitivos utilizados foram os
mesmos. Eles afirmam ainda que indivíduos com uma menor capacidade de memória de
trabalho são também menos fluentes na produção oral em contexto determinado
(DANEMAN & GREEN, 1986).
Em contrapartida, Turner e Engle (1989) realizaram uma pesquisa com RST e o
OSPAN para verificar a dependência dos sistemas cognitivos entre o armazenamento e
o processamento de informações durante as diferentes tarefas. Os indivíduos que
obtiveram uma boa pontuação no RST também obtiveram uma boa pontuação no
OSPAN e vice-versa. Sendo assim, os indivíduos que obtiveram um bom resultado na
tarefa de compreensão de leitura, também obtiveram um bom resultado na tarefa
matemática lógica. Logo, os pesquisadores afirmaram que a memória de trabalho é um
sistema geral (TURNER & ENGLE, 1989). Engle, Cantor e Carullo (1992) replicaram
os mesmos resultados e destacaram que as diferenças de tempo de resposta entre os
indivíduos que obtiveram uma boa pontuação e baixa pontuação nos testes era muito
baixa (ENGLE, CANTOR & CARULLO, 1992). Finalmente, Unsworth e Engle (2005)
destacaram que as diferenças de tempo de resposta são significativas quando
comparadas entre tarefas de aprendizagem implícita e aprendizagem explícita.
O modelo de produção oral em L2 proposto por Levelt, em 1989, é utilizado
largamente, devido a sua funcionalidade e utilidade didática. Nele, todo o processo de
produção oral em L2 começa na 1a) concepção da mensagem que o indivíduo possui
intenção de produzir oralmente. Após ter na cabeça o que ele quer produzir, o indivíduo
1b) acessa a rede desses conceitos, a fim de produzir uma sentença correta
gramaticalmente. Isso já dá ao indivíduo uma 2) ideia da produção fonética a ser
realizada. Em seguida, o desenvolvimento dessa superfície fonética se torna a própria 3)
articulação física que produzirá as ondas sonoras que serão 4) vigiadas pelo indivíduo.
Levelt explica que esse processo é linear, mas diversas partes podem acontecer em
paralelo. Ele faz a distinção de quatro componentes principais em seu modelo: 1) a
conceitualização, 2) a formulação, 3) a articulação e 4) o sistema fala-compreensão.
A conceitualização é quando o indivíduo demonstra a sua intenção de falar e faz
a seleção e a organização das informações relevantes. A formulação é quando o
indivíduo vai escolher e desenvolver a organização lexical para a correta utilização
fonológica e gramatical. A articulação é o momento em que o plano fonético é
realizado, ou seja, o momento da articulação física e da produção de ondas sonoras.
Finalmente, o sistema fala-compreensão é o componente que permite ao falante vigiar e
corrigir a sua produção oral (FORTKAMP, & BAPTISTA, 2000).
3. Metodologia
Para a aplicação dos testes, a saber: o Reading Span Test (RST) (DANEMAN &
CARPENTER, 1980), o Speaking Span Test (SST) (DANEMAN & GREEN, 1986) e o
Operation-Word Span Test (OSPAN) (TURNER & ENGLE, 1989), foram selecionados
estudantes universitários da disciplina de Língua Francesa IV do curso de Letras –
Língua Francesa e Literatura e, da disciplina de Produção Oral em Língua Inglesa IV do
curso de Letras – Língua Inglesa e Literatura, todos estudantes do quarto semestre dos
cursos de graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Essa população foi escolhida por julgar-se que seus indivíduos possuíam uma boa
maturidade linguística, um bom nível de eloquência em L1, mas, principalmente, um
bom nível e homogêneo entre eles em relação à produção oral em L2.
Para a construção dos testes de mensuração da capacidade de memória citados
acima, foi utilizado o programa de elaboração de testes psicológicos E-Prime v2.0
(SCHNEIDER et al., 2007). Como era desejado manter-se a coerência científica,
metodológica e a neutralidade humana na elaboração dos testes, as palavras e frases
utilizadas para a construção dos mesmos foram selecionadas através de uma pesquisa de
corpus. Para cada língua – português, francês e inglês –, foram selecionados os 200
substantivos concretos mais frequentes, de até três sílabas para o inglês e até quatro
sílabas para o português e o francês. Esses critérios foram utilizados de acordo com
Baddeley (1999), que diz que os substantivos concretos são a classe de palavras mais
fácil de ser armazenada e processada cognitivamente. O autor ainda diz que palavras
com menos sílabas são igualmente mais eficazes para a memorização.
Sendo assim, o corpus e a ferramenta de análise em linguística computacional da
Brigham Young University (BYU) forneceu todas as palavras e frases necessária para a
construção dos testes em português e em inglês (http://corpus.byu.edu/bnc;
http://www.corpusdoportugues.org/x.asp). Para as palavras em língua francesa, foi
utilizada uma lista realizada pelo pesquisador francês em linguística computacional Jean
Veronis (http://sites.univ-provence.fr/veronis/index.html). Para as frases em francês, foi
utilizado o corpus Lextutor (http://www.lextutor.ca/concordancers/concord_f.html).
Diferentemente, a formulação das operações matemáticas do OSPAN foi realizada
aleatoriamente, com os números sempre entre 0 e 9, sendo a primeira operação uma
multiplicação ou divisão e a segunda operação uma adição ou subtração (ex. 3X2-1=5?)
(TURNER & ENGLE, 1989).
No mais, definiu-se como arquitetura de construção dos testes a apresentação de
3 seções, com 4 conjuntos de 2 a 5 estímulos, totalizando 42 estímulos por teste. Essa
arquitetura é utilizada atualmente por Engle e sua equipe (ENGLE et al., 1992;
UNSWORTH & ENGLE, 2005; CONWAY et al., 2005; entre outros). Os testes foram
aplicados somente a partir de estímulos visuais de leitura na tela de um computador com
a tela de fundo preta e as letras brancas. As 3 seções foram apresentadas de forma
crescente, ou seja, cada seção apresentava o primeiro conjunto com 2 estímulos, o
segundo com 3, o terceiro com 4 e o quarto com 5. Um estímulo após o outro.
No RST, apresentam-se frases de 12 a 18 palavras. A última palavra de cada
frase deve ser reproduzida oralmente pelo indivíduo quando solicitada. Para cada uma
das frases, o indivíduo deve dizer se ela está correta ou incorreta gramaticalmente e
sintaticamente, a fim de garantir que o indivíduo processe a informação. Após a
apresentação de cada conjunto de frases, o indivíduo deve dizer em voz alta as últimas
palavras de cada uma das frases apresentadas no conjunto, preferencialmente na mesma
ordem em que foram apresentadas (DANEMAN & CARPENTER, 1980, 1983).
No OSPAN, apresenta-se a operação matemática. A palavra que se encontra
imediatamente após o resultado da operação é a palavra que deve ser reproduzida
oralmente pelo indivíduo quando solicitada. Para cada uma das operações matemáticas,
o indivíduo deve dizer se o resultado está correto ou incorreto, a fim de garantir que o
indivíduo processe a informação. Após a apresentação de cada conjunto de operações
matemáticas, o indivíduo deve dizer em voz alta as palavras que se encontravam
imediatamente após os resultados de cada uma das operações matemáticas apresentadas
no conjunto, preferencialmente na mesma ordem em que foram apresentadas (TURNER
& ENGLE, 1989; CONWAY et al., 2005).
No SST, apresentam-se palavras durante um segundo – sempre uma palavra
após a outra -, com intervalos de 100ms entre as palavras. Quando uma tela preta com
pontos de interrogação aparece, o indivíduo deve produzir oralmente uma sentença
diferente para cada uma das palavras apresentadas no conjunto (DANEMAN &
GREEN, 1986; DANEMAN, 1991).
Finalmente, cada indivíduo desta pesquisa realizou 6 testes de mensuração da
capacidade de memória de trabalho: os 3 testes citados acima em português e os
mesmos 3 testes na sua respectiva L2 de estudo – francês ou inglês. Esta pesquisa foi
realizada com 6 indivíduos falantes de francês como L2 e com 6 indivíduos falantes de
inglês como L2. Cada indivíduo teve um encontro individual com o pesquisador de
aproximadamente 1h30min, em que foram realizados todos os 6 testes. Após a
explicação detalhada do funcionamento dos testes, cada indivíduo realizou-os em um
computador com monitor de 15 polegadas, sozinho, em uma sala silenciosa, utilizando
um fone de ouvidos e um microfone de lapela. É importante salientar que o pesquisador
não teve nenhum contato com os indivíduos durante o experimento.
4. Resultados e discussão
Todos os testes foram projetados, construídos, programados, aplicados e
analisados através do programa E-Prime v2.0 (SCHNEIDER et al., 2007). Para as
pontuações individuais, acrescentou-se 1 ponto para cada acerto do indivíduo126
(CONWAY et al., 2005), visto que o nosso foco principal era verificar principalmente a
capacidade de armazenamento e produção oral durante o processamento de informações
e não a eficácia, ordenamento, qualidade ou precisão dessa produção oral. É importante
frisar que a pontuação máxima a ser obtida em cada teste era de 42 pontos, pois foram
apresentados 42 estímulos em cada teste. Sendo assim, tem-se abaixo, na Tabela 1, a
pontuação individual geral dos indivíduos, onde OSPAN (Operation-Word Span Test),
RST (Reading Span Test), SST (Speaking Span Test), L1 (português), L2 (francês ou
inglês), F (indivíduos que realizaram o teste em L1 - português e L2 - francês) e I
(indivíduos que realizaram o teste em L1 - português e L2 – inglês).
126 Agregou-se ao indivíduo 1 ponto para cada palavra correta, independentemente do tempo de demora,
da precisão, da qualidade e da ordem da produção oral.
Tabela 1 – Pontuações individuais gerais. N=12
Percebe-se, facilmente, as diferenças individuais das capacidades de memória de
trabalho nos três testes, em L1 e em L2. Nota-se que os indivíduos F1, F4, I5 e I1
obtiveram as pontuações mais baixas, respectivamente. Enquanto os indivíduos I3, I4,
F6 e F2 obtiveram as pontuações mais altas, respectivamente. Restando aos indivíduos
F3, F5, I2 e I6 pontuações medianas. Salienta-se o equilíbrio entre esses três grupos,
pois cada um deles formou-se com 4 indivíduos, sendo 2 do francês e 2 do inglês. Em
relação ao OSPAN, percebe-se que todos os indivíduos falantes de francês obtiveram
pontuações maiores em L2, enquanto todos os indivíduos falantes de inglês obtiveram
pontuações maiores em L1. Em relação ao RST, apenas 2 indivíduos falantes de francês
e de inglês obtiveram pontuações maiores em L1. No SST, todos os indivíduos de
ambas as línguas obtiveram pontuações mais altas em L1, porém percebe-se que, em
geral, os indivíduos falantes de inglês obtiveram pontuações mais baixas do que os
falantes de francês em L2.
Logo adiante, na Tabela 2, verifica-se que é mais interessante trabalhar-se com
as médias gerais dos testes por língua. Nesta tabela, faz-se uma subdivisão entre as
média gerais de cada teste e as médias dos indivíduos por língua. Sendo f (francês), i
(inglês) e DV (desvio padrão). Imediatamente, percebe-se um grande desvio padrão no
RST L1. Isso se deve à grande diferença de resultados entre a pontuação mínima e a
pontuação máxima 15<RST L1<40, enquanto nos outros testes as pontuações médias se
mantiveram mais equilibradas.
Em seguida, observa-se que, com exceção do OSPAN L1 e do SST L2, todos os
outros testes, seja em L1 ou em L2, obtiveram resultados muito próximos entre os
indivíduos falantes de francês e os indivíduos falantes de inglês OSPAN L2f=35,67 e
OSPAN L2i=36,67; RST L1f=28,33 e RST L1i=29,33; RST L2f=29,50 e RST
L2i=31,33; SST L1f=24,67 e SST L1i=24,00. Destaca-se que as médias em L1 foram
muito próximas, com diferenças muito pequenas, ou seja, tanto os falantes de francês
como os falantes de inglês possuem a mesma capacidade de memória de trabalho, no
que diz respeito à compreensão e à produção oral em L1. Porém, as diferenças em L2 se
acentuam, o que indica diferenças individuais significativas de memória de trabalho em
relação às línguas faladas. É interessante observar que, no OSPAN e no RST, os
indivíduos falantes de inglês possuem médias maiores que os indivíduos falantes de
francês, já no SST os resultados são contrários, seja em L1 ou L2. Isso antecipa a
reflexão sobre a memória de trabalho como um sistema específico ou geral.
Tabela 2 – Médias por teste e por língua. N=12, n=6
No mais, conclui-se que a grande diferença de médias no SST L2: SST
L2f=19,67 e SST L2i=16,33 justifica que a produção oral de uma frase em francês, por
falantes do português como L1, é mais fácil do que em inglês, em nível de
armazenamento e processamento das informações, pois sabe-se bem que, morfológica e
sintaticamente, o francês é muito mais próximo do português do que o inglês, o que
exige muito menos recursos atencionais e de processamento do indivíduo para a
produção oral de uma frase em francês do que em inglês.
Por todas essas razões, pode-se sustentar a hipótese de que o aprendizado do
francês é mais fácil do que o aprendizado do inglês, por falantes do português como L1.
Sustenta-se essa hipótese, visto que os dois grupos de estudantes estavam no quarto
semestre de seus respectivos cursos de língua e tiveram o mesmo número de horas de
aulas de L2. Sendo assim, deveriam ter a mesma performance em L2. Ressalta-se ainda
que normalmente os estudantes de inglês possuem um maior contato e conhecimento
dessa língua, visto que ela está muito mais presente no cotidiano de todos indivíduos, do
que a língua francesa. Para corroborar essa hipótese, verifica-se que a média do SST
L1f=24,67 é mais alta do que a média do SST L1i=24,00. De forma que, pode-se
concluir que a memória de trabalho é um sistema geral (TURNER & ENGLE, 1989),
visto que as médias dos resultados em L1 são diretamente ligadas às médias de L2, no
SST.
Logo em seguida, apresenta-se o Gráfico 1, referente a Tabela 2, contendo as
médias gerais dos testes, as médias por teste, por língua e o desvio padrão. Sendo, O
(OSPAN), R (RST), S (SST), 1 (L1), 2 (L2), f (francês) e i (inglês). Percebe-se uma
clara diferença entre as médias nos testes. Vê-se que as médias mais altas aconteceram
nos OSPAN, as médias medianas nos RST e as médias mais baixas nos SST. Destaca-se
o OSPAN é o teste que trabalha com o processamento lógico, logo, requer menos
recursos cognitivos da memória de trabalho do que o RST e o SST, que requerem do
indivíduo uma maior reflexão e um pensamento abstrato, exigindo mais recursos
cognitivos para o processamento das informações. Já o SST é o teste que requer mais
recursos cognitivos do indivíduo, pois ele não só exige o armazenamento de
informações, mas um grande processamento dessas informações para a produção oral de
frases contextualizadas, utilizando o estímulo apresentado anteriormente. A afirmação
anterior se torna ainda mais acentuada, quando se fala da produção oral em L2.
Gráfico 1 – Médias e desvio-padrão dos testes por língua. N=12, n=6
Sendo assim, conclui-se que o RST precisa de mais recursos cognitivos do que o
OSPAN e o SST precisa de mais recursos cognitivos do que o RST, pois o fato é que o
SST obteve as menores pontuações, porém os menores desvios-padrão também. Esse é
o teste que requer mais recursos de armazenamento e processamento de informações
para a produção oral de sentenças contextualizadas. O RST foi o teste que apresentou o
maior desvio-padrão, seguido pelo OSPAN. Enfim, pode-se afirmar que a produção oral
de uma sentença em L2 possui necessidade de mais recursos cognitivos do que em L1 e
que a utilização desses recursos para a produção oral é maior em inglês do que em
francês.
Essa afirmação faz constatar-se que os falantes de francês obtiveram uma melhor
pontuação no SST L2 devido exatamente à proximidade morfológico-sintática dessa
língua com o português, de tal forma que não foi necessária a utilização de tantos
recursos cognitivos para o processamento das informações em francês, sobrando mais
recursos para o armazenamento, diferentemente dos falantes de inglês, que utilizaram
muitos recursos cognitivos para o processamento das informações, restando poucos
recursos para o armazenamento e obtendo, assim, pontuações mais baixas. Esta
economia dos recursos cognitivos dos falantes de francês se deve obviamente ao
português como língua materna dos indivíduos, pois essa língua já é muito bem
utilizada, conhecida, estabelecida, armazenada e processada pelos indivíduos.
Após terem-se verificado os resultados individuais dos testes, as médias entre os
participantes por teste e por língua, terem-se realizado as primeiras observações,
hipóteses e conclusões, abordar-se-ão as correlações e interpretações desses dados.
Nesta pesquisa, foi utilizada a correlação de Pearson, muito empregada em trabalhos
sobre a capacidade de memória de trabalho e linguagem (DANEMAN &
CARPENTER, 1980, 1983; DANEMAN & GREEN, 1986; FORTKAMP &
BAPTISTA, 2000).
Tabela 3 – Correlação de Pearson das médias por teste por língua. n=6
Na tabela 3, percebe-se um coeficiente de correlação muito significativo entre os
OSPAN L1 e L2 em ambas as línguas. Logo, percebe-se que, em inglês, os OSPAN L1
e L2 obtiveram correlações significativas com os RST L1 e L2. Enquanto para o
francês, os OSPAN L1 e L2 obtiveram correlações muito significativas com o RST L1,
mas não houve correlação com o RST L2. Percebe-se que, entre os testes em que a
capacidade mais requisitada é o armazenamento - OSPAN L1, OSPAN L2 e RST L1 –,
obtiveram-se no mínimo correlações significativas. Porém, entre o RST L1 e o RST L2
em francês, obteve-se uma correlação significante, já em inglês não houve correlação
entre esses testes. Esses resultados demonstram uma maior utilização de recursos
cognitivos de processamento para a compreensão das frases no RST L2 em francês,
enquanto para o inglês não há a utilização de tantos recursos de processamento para esse
teste. Isso demonstra a utilização de diferentes recursos cognitivos para o
processamento de compreensão das frases nesta língua, ou seja, a partir desses
resultados, poder-se-ia considerar a memória de trabalho como um sistema específico,
em relação às tarefas lógicas e de linguagem, pelo menos no que diz respeito à
compreensão de leitura.
Em seguida, observa-se que não há correlação entre os SST L1 e L2 e os
OSPAN L1 L2, em ambas as línguas, demonstrando uma grande diferença na
capacidade de processamento na tarefa de produção oral e na tarefa lógica, assim como
no sistema cognitivo, seja em L1 ou em L2. Já as correlações entre os SST L1 L2 e os
RST L1 e L2 foram exatamente inversas em ambas as línguas. É importante destacar-se
que 1) não houve correlações entre o SST L2 e os OSPAN L1 e OSPAN L2 em ambas
as línguas; 2) somente em inglês também não houve correlação entre o SST L2 e os
RST L1 e L2, pois 3) em francês essas correlações foram significativas e muito
significativas, respectivamente. Logo, poder-se-ia ainda pensar que a memória de
trabalho é específica para tarefas lógicas ou de linguagem. E ainda que essas
capacidades são diferentes em relação à produção oral ou compreensão em L2, do inglês
ou do francês.
Nesse ponto, faz-se importante dizer que o SST é um teste mais específico que
os outros testes, pois ele requer mais recursos de processamento da memória de trabalho
que o OSPAN e o RST. Sendo assim, há uma concorrência maior no sistema cognitivo
do indivíduo, mais especificamente na memória de trabalho, entre o armazenamento e o
processamento das informações. Desse fato, percebe-se que as correlações significativas
entre o SST L1 e o SST L2 são próximas em ambas as línguas. Ou seja, os recursos
cognitivos utilizados para a produção oral francês e em inglês são semelhantes.
Finalmente, a partir desses resultados, e principalmente das correlações do
inglês, poder-se-ia dizer que a memória de trabalho é um sistema geral. Mas, os
resultados do francês colocam em dúvida essa afirmação. Todavia, percebe-se que as
correlações entre os RST L2 e SST L2 e os OSPAN L1 e OSPAN L2, em francês, são
muito próximas dos valores significativos, confirmando a memória de trabalho como
um sistema geral.
5. Considerações finais
Acredita-se ter aqui apresentado uma boa metodologia e sistematização para a
produção, construção e aplicação de testes de mensuração da capacidade de memória,
assim como para a verificação e discussão dos dados e resultados. Esta metodologia
apoiou-se, sobretudo, nos recursos informáticos, obtendo-se, assim, o máximo de
neutralidade do pesquisador na escolha dos estímulos a serem apresentados, na
construção e na aplicação dos testes de mensuração da capacidade de memória de
trabalho.
Enfim, puderam-se perceber as sistemáticas diferenças entre os resultados
encontrados em língua francesa e em língua inglesa. Enquanto o primeiro grupo
apresentou resultados mais inconstantes e variados, o segundo grupo apresentou
resultados mais constantes e equilibrados. Logo, pode-se dizer que este último apresenta
um conhecimento comum maior de L2 e uma maior homogeneização na utilização de
recursos cognitivos da memória de trabalho. Conclui-se que: 1) em inglês e francês a
tarefa lógica (OSPAN) e a tarefa de compreensão em leitura (RST) requerem menos e
semelhantes recursos cognitivos de processamento, sobrando recursos para o
armazenamento, 2) enquanto a tarefa de produção oral (SST) em inglês como L2 requer
muito mais recursos de processamento, sobrando poucos recursos para o
armazenamento, 3) em francês, a tarefa de produção oral não requer tantos recursos de
processamento, sobrando mais recursos para o armazenamento. Logo, o aprendizado e a
produção oral do francês são mais fáceis.
Finalmente, a produção oral em francês como L2, por falantes do português
como L1, é mais fácil, porque o sistema de formulação da mensagem nesta língua é
muito parecido com o sistema de formulação da mensagem em português, língua que o
indivíduo possui plena competência, pois os sistemas morfológico, sintático e mesmo
fonológico do francês, são muito mais próximos do português do que os do inglês.
Desde o acesso à rede de conceitos corretos gramaticalmente, passando pela ideia da
produção fonética a ser realizada e o desenvolvimento desta superfície fonética através
da articulação física, o processamento cognitivo em francês assemelha-se muito mais
com o português do que o inglês.
Para as próximas pesquisas neste campo de estudo, faz-se as seguintes
recomendações, sugestões e alternativas: 1) dizer para os indivíduos lerem em voz alta e
silenciosamente todos os estímulos completos, em testes diferentes; 2) realizar a
apresentação dos grupos de estímulos aleatoriamente (UNSWORTH & ENGLE, 2005;
CONWAY et al., 2005); 3) realizar os testes de produção oral somente a partir de
estímulos sonoros, somente a partir de estímulos visuais e a partir dos dois; e 4) realizar
os testes com o maior número de línguas estrangeiras possíveis.
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ORAÇÕES ADJETIVAS: QUESTÕES DE ENSINO
Herbertt Neves127
RESUMO: O ensino das chamadas ‘orações adjetivas’ nas salas de aula de língua portuguesa ainda
reflete uma visão bastante estruturalista do funcionamento da língua e, por isso, não consegue dar conta
de diversos fenômenos do discurso, oral e escrito. Em geral, essas orações são tratadas pelos professores
de maneira extremamente simplificada, como vem acontecendo com muitos outros temas da gramática.
Com este trabalho, visamos a estabelecer um paralelo entre estas duas perspectivas teóricas que embasam
o ensino da língua: a perspectiva tradicional, de base principalmente estruturalista, e a perspectiva
discursiva, com base em abordagens funcionalistas. Para isso, faremos uma revisão inicial do ensino
dessas orações, mostrando as grandes lacunas que ele deixa, e mostraremos diversos aspectos que
ocorrem no entorno desse fenômeno linguístico. Como corpus, trabalharemos com exemplos de orações
coletadas em textos do português escrito, de diversos gêneros textuais. Nossa expectativa é a de que este
trabalho contribua para o ensino de língua portuguesa, uma vez que apresentaremos estratégias didáticas
para o ensino das orações adjetivas, que podem ser usadas como modelo de atividades relevantes para a
formação dos alunos, como leitores e produtores de texto.
PALAVRAS-CHAVE: Língua portuguesa; ensino; orações adjetivas.
ABSTRACT: The teaching of adjective clauses in Portuguese classes still reflects a very structuralist
view of the operation of language. That is the reason why it cannot reach many phenomena of the oral
and the written discourse. In general, theses clauses are handled by the teachers in a very simplified
mode, as it has been happening with other matters of grammar. With this work we intend to establish a
parallel between those two theoretical perspectives that compound the basis of language teaching; the
traditional perspective, with a mainly structuralist foundation; and the discursive perspective, which is
based in functionalist approaches. In order to achieve that, we will make an introductory review of the
teaching of those clauses. This review will show the major gaps that the language teaching has left, and
will show many aspects that occur around that linguistic phenomenon. As corpus, we will work with
examples of clauses collected from texts in written Portuguese; and in many textual genres. Our
expectation is that this work will contribute to the teaching of the Portuguese language once we present
didactic strategies for the teaching of adjective clauses. These strategies may be used as a model of
relevant activities for the formation of alumni, as readers and as text producers.
KEYWORDS: Portuguese language; teaching; adjective clauses.
1. Introdução: ensino tradicional de gramática e análise linguística
À primeira vista, parece batido o discurso de dizer que as aulas de língua
portuguesa não possibilitam ao aluno uma efetiva competência comunicativa (tanto oral
quanto escrita) enquanto usuários de sua própria língua materna. Tal discurso, no
entanto, mostra-se necessário e atual quando nos deparamos com o modo com o qual se
ensina português nas escolas, especialmente se nos focarmos no ensino de ‘gramática’.
Uma primeira observação que se pode fazer a respeito dessas aulas é que elas
representam a quase totalidade das aulas de língua portuguesa. Ensinar português ainda
é quase equivalente a ensinar gramática normativa. A abordagem do texto fica colocada
à margem, como parte complementar ou como matéria apenas para exercícios. O
127
Graduando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
ensinar a interpretar textos ou a inter-relação entre gramática e texto não se encontram
presentes na sala de aula.
Na tentativa de unir texto e gramática (união que, por sinal, nunca deve ser
desfeita, tendo em vista a própria natureza desses dois entes da comunicação), os
professores utilizam fórmulas que não dão conta da real relação que existe entre eles. O
texto serve, nesse tipo de prática, apenas como o lugar de onde se vão retirar as frases e
as palavras que vão ser analisadas posteriormente fora de seu contexto de circulação.
Além disso, a Gramática Tradicional (doravante GT), na qual se baseia a
gramática escolar, tem seus postulados nada embasados teórica ou metodologicamente.
É fácil notar as “contradições que surgem no próprio contexto da gramática escolar tão
logo aceitamos explicitar suas teses e aplicá-las de maneira consequente” (ILARI, 1997,
p. 24).
Antunes (2003, pp. 31-33) aponta diversas características da gramática tal como
ela é abordada na escola. É surpreendente que, ainda hoje, depois de tanto se discutir
sobre o tema, a gramática na escola ainda se encontre:
• descontextualizada, desvinculada dos reais contextos de uso;
• fragmentada, de palavras e frases inventadas e soltas;
• irrelevante, sem favorecimento nem utilidade para a competência
comunicativa do aluno;
• excêntrica e refinada, apoiada em regras e casos de inconsistência teórica;
• voltada apenas para nomenclaturas e classificações, o que só desenvolve no
aluno a capacidade de ‘reconhecer’ e nomear estruturas;
• inflexível e rígida, fixa em regras que não se atualizam;
• na sua forma prescritiva, preocupada com o par dicotômico “certo” e
“errado”, o que embasa a preocupação exclusiva com o escrever corretamente;
• não apoiada nos usos reais da língua, sem perspectivas para a comunicação
funcional.
O que se postula na Linguística para um ensino de língua materna que dê conta
de aspectos comunicativos e discursivos é que, além de se fazer um trabalho
contextualizado, com textos reais da língua, haja a prática da “análise linguística”
(doravante AL). A AL é um modo de trabalhar a gramática sem estar atento unicamente
ao normativo e ao descritivo. Essa é uma prática livre das contradições existentes na
GT, pois só busca observar o que há de gramatical, de linguístico, nas realidades
textuais observadas.
Esse termo foi introduzido nos estudos linguísticos por Geraldi, em 1984, no
artigo “Unidades básicas do ensino de português”, da obra O texto na sala de aula.
Pode-se observar que esta é uma prática já discutida em 1984 e que hoje, 26 anos
depois, ainda está longe de ser dominante nas salas de aula de língua portuguesa. A
respeito da AL nos comenta Mendonça (2006, p. 205) que
O termo análise linguística [...] surgiu para denominar uma nova
perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os usos da
língua, com vistas ao tratamento escolar de fenômenos gramaticais,
textuais e discursivos. Foi cunhado [...] para se contrapor ao ensino
tradicional de gramática, para firmar um novo espaço, relativo a uma
nova prática pedagógica.
A autora ainda observa que o ensino tradicional não deixa de refletir sobre a
linguagem, apenas o faz de maneira equivocada, com objetivos equivocados e aspectos
de análise incoerentes. Também destaca que a AL forma, juntamente com as atividades
de leitura e produção textual, os pilares para o ensino de língua, sob a ótica do
Sociointeracionismo.
Visto isso, nosso objetivo aqui é mostrar como esse ensino tradicional é ineficaz
para a abordagem do fenômeno das ‘orações adjetivas’ (doravante OA). Procuraremos
mostrar como a abordagem feita na escola não dá conta dos fenômenos discursivos
acarretados por esse tipo de construção na língua portuguesa. Tentaremos demonstrar
que a prática da AL para a abordagem das OA favorece a formação desse usuário. E é
na busca de formas para atuar nessa abordagem que tal trabalho se faz importante, tendo
em vista colaborar para a prática de um professor que esteja preocupado em realmente
formar leitores e escritores em língua portuguesa.
Em seguida, a partir de exemplos extraídos de textos reais, vamos mostrar
diversos fenômenos relativos a tais construções e sua contribuição para a formação de
um usuário competente da língua. Tais exemplos, todos provenientes de textos escritos,
foram coletados de gêneros de três esferas de circulação: a jornalística (editoriais e
notícias), a literária (contos, crônicas e fábulas) e a acadêmica (artigos científicos). Para
identificação dos exemplos, utilizaremos um código para cada um dos gêneros: editorial
(EDT), notícia (NOT), conto (CON), crônica (CRO), fábula (FAB) e artigo (ART). Ao
lado do código, haverá um número que indicará qual foi a ordem daquela ocorrência em
todo o corpus.
2. O ensino tradicional das orações adjetivas
Para compreensão da forma por meio da qual se ensinam as OA nas escolas,
recorremos, principalmente, a dois objetos de análise: o livro didático (ou manuais de
gramática) e a aula de língua portuguesa. Cabe, antes, lembrar que a prática na aula de
português é muito baseada no que dizem os livros didáticos, diferindo da abordagem
deste apenas na escolha de uma sequência didática diferente para abordagem dos temas.
Vejamos, então, como se procede normalmente na sala de aula de língua
portuguesa para ensinar as OA:
(1º) leva-se o aluno a reconhecer, por meio de frases isoladas ou retiradas de textos, os
pronomes relativos e a função de retomada que eles têm em relação a seu antecedente;
(2º) mostra-se que esses pronomes servem para introduzir uma certa espécie de oração e
que esta assume as mesmas funções de retomada desses pronomes;
(3º) faz-se com que o aluno conclua, por meio da comparação entre orações e adjetivos
a elas equivalentes, que essas orações, ao mesmo tempo em que retomam um termo
nominal, também servem para caracterizá-lo, tal qual um adjetivo. É a partir daí que se
começa a usar o termo ‘orações adjetivas’128;
(4º) inclui-se no grupo da subordinação essas orações, argumentando serem todas elas
dependentes do termo nominal a que se referem;
(5º) explana-se para o aluno a classificação das OA em restritivas e explicativas e
caracteriza-se cada tipo de oração e suas respectivas funções, mostrando que as
primeiras são indispensáveis ao período, visto que restringem o significado do
antecedente, e as últimas são acessórias, pois só adicionam uma explicação em relação
ao antecedente;
(6º) analisa-se as OA em relação à fala, mostrando que as explicativas são marcadas
prosodicamente por uma pausa, o que se configura numa vírgula, no campo da escrita;
(7º) após diversas demonstrações do que se viu antes por meio de exemplos, passa-se
para o campo dos exercícios, meramente classificatórios, taxionômicos, sem nenhuma
atenção para os aspectos discursivos da língua;
(8º) entra-se, por último, no campo das OA reduzidas, afirmando terem essas sempre
formas desenvolvidas correspondentes.
E encerra-se aí a abordagem das OA nas salas de aula de língua portuguesa.
Ficam de fora diversos aspectos relativos ao fenômeno das OA que são de imensa valia
para a formação de um aluno que será leitor e produtor de textos na sua língua materna,
o português, no caso. Aspectos de ordem morfológica, sintática, semântica e
pragmático-discursiva, que auxiliariam em muito na apreensão de aspectos textuais,
quando ao aluno fosse requisitada a compreensão ou a produção de um texto. A respeito
de alguns desses aspectos, vamos nos deter mais na próxima seção.
Com isso, podemos comprovar o que nos traz E. Marcuschi (1999, p. 174) a
respeito do tratamento do conhecimento (meta)linguístico em sala de aula:
O conhecimento metalinguístico [...] não [emerge] no mero exercício
analítico das palavras ou frases isoladas ou nas solicitações de
codificação e decodificação gramatical, pois as atividades [textualcomunicativas] não estão submetidas ao conhecimento abstrato da
língua, ao domínio da nomenclatura e à concepção de correção
propostos pela gramática tradicional. Trata-se antes de saber
relacionar os conhecimentos metalingüísticos ao uso da língua. [...]
saber gramática envolve a competência para interligar e articular
fenômenos, seguir regras e ordenar estruturas que favoreçam a
compreensão e a produção de significados discursivos.
É disso que estamos falando: negar ao aluno o conhecimento que o faça dominar
todas essas competências acima citadas é, no mínimo, transformar em desperdício boa
parte do tempo que ele destinou em sua vida escolar para o estudo da disciplina ‘língua
portuguesa’.
128
Na gramática tradicional da língua francesa, essas construções são nomeadas ‘proposições relativas’.
Essa mesma nomeação também é assumida por alguns linguístas, exatamente pelo fato de nem sempre se
poder ter uma equivalência entre OA e adjetivo.
Além de deixar de fora esses aspectos (cruciais, vale repetir), a GT “tem o
mérito de não nos impingir exemplos banais, e isso aguça algumas curiosidades
irreverentes, sobretudo quanto à identificação dos antecedentes e à distinção
restritiva/explicativa” (ILARI, 1997, p. 26). São muitos os equívocos na abordagem
tradicional das OA, não só do ponto de vista didático e metodológico, como também do
conceitual e teórico. Eis alguns desses equívocos:
(1) Para que o aluno compreenda o que realmente é uma OA, os exemplos que a ele
fossem apresentados para introduzir o tal conceito deveriam ser SEMPRE baseados em
situações reais de comunicação. Esse conceito poderia surgir a partir da reflexão, por
parte do aluno, sobre a função básica das OA: serem “formas de modificação de uma
expressão nominal antecedente [...] [ou] igualmente uma forma de modificação de uma
outra oração” (BRITO & DUARTE, 2003, p. 655).
(2) Afirmar que as OA são equivalentes a adjetivos logo no começo dos trabalhos é
levar o aluno a ter uma visão simplificadora do fenômeno. Primeiramente, porque nem
sempre essa substituição pode ser feita, como no exemplo FAB.004:
“Conduziu-o à sala de jantar, onde encontraram os restos de uma grande festa”.
Não há na língua portuguesa um adjetivo que seja correspondente a toda essa
construção. Também, há de se observar que, quando conseguimos fazer uma
substituição lexical, o sentido do enunciado não é sempre mantido, como em:
“Tudo preparado para que o país possa ganhar a doação, por que todos esperam, de
1,8 milhão de barris-dia de ouro negro das jazidas do pré-sal.” (EDT. 020).
Se nós transformarmos a oração destacada no adjetivo correspondente
“esperada”, perder-se-á a informação de que a doação é esperada por todos os
brasileiros.
(3) A diferenciação entre os tipos de orações deve ser posta pelo caráter restritivo das
orações (ausência ou presença da restrição), pois nem sempre as chamadas orações
‘explicativas’ são realmente responsáveis por dar uma explicação. Observemos um
exemplo em:
“ações calculadas que são determinadas pela ausência de um próprio, como convém a
Certeau [...], que tem sido citado por muitos desses estudiosos das práticas
escolares.” (ART.100)
A OA apenas acresce uma informação ao nome próprio Certeau, sem restringir
seu significado nem, muito menos, estabelecer explicação a respeito desse nome. É
equívoco também postular que as ‘explicativas’ podem ser retiradas do enunciado sem
prejuízo. Veja-se isso em:
“"Não é cura, é remissão prolongada", ressalta o médico, cujo trabalho gerou muita
expectativa entre portadores da doença.” (NOT. 068).
A OA serve para justificar a importância da fala do médico, mostrando ser uma
autoridade que fala sobre o assunto. É imprescindível, portanto, para a argumentação do
texto.
(4) A diferenciação entre os tipos de OA deve se ter como base não apenas a presença
ou ausência da vírgula, que está ali para marcar um traço prosódico, mas sim as funções
dessas orações: há ou não uma restrição? Quais as circunstâncias ali estabelecidas? Qual
a natureza do antecedente? Há antecedente?
São essas apenas algumas das falhas existentes no modo pelo qual são abordadas
as OA nas aulas de português. Seria um primeiro (e enorme!) passo para uma verdadeira
aula de língua materna se esses equívocos fossem desfeitos. Só aí já teríamos uma
mudança significativa rumo a uma formação escolar que capacitasse nossos alunos para
a leitura e a escrita.
Depois de corrigidos esses equívocos, um passo seguinte seria uma abordagem
de fenômenos semântico-pragmático-discursivos existentes no campo das OA. É a
respeito de alguns desses fenômenos que iremos tratar na próxima seção deste trabalho,
sempre ressaltando seu valor para a formação do leitor-produtor de textos.
3. A visão funcional das OA e o ensino de língua portuguesa
Em uma consideração da língua sob uma perspectiva funcionalista, podemos
observar uma série de fenômenos que ocorrem em diversos textos escritos que circulam
em várias esferas discursivas da sociedade. É mister saber que fenômenos como esses
poderiam constituir boa parte do tempo que é destinado nas aulas de português ao
estudo das OA. Alguns deles serviriam justamente para retirar da cabeça de muitos
alunos certos mitos existentes sobre o uso das OA ou dos próprios pronomes relativos
na leitura e na produção de textos.
A partir de agora, vamos mostrar alguns desses fenômenos e estudar com um
pouco mais de detalhes o trabalho que poderia ser feito com eles em sala de aula. Sobre
tais tópicos, faremos comentários acerca das possibilidades de trabalho em cada nível de
ensino e dos benefícios que eles podem trazer ao leitor/escritor em formação.
3.1. Os usos dos pronomes relativos e o mito do ‘queísmo’
Saber qual pronome relativo utilizar em cada situação é muitas vezes uma
tormenta para o aluno na hora de produzir um texto. Essa situação se agrava com a
presença de um mito criado por professores de cursinhos preparatórios: o chamado
‘queísmo’. De acordo com esse mito, o excesso de palavras ‘que’ num texto o torna
cansativo e repetitivo. É proibido, então, escrever mais de três ‘ques’ em uma redação.
Na tentativa de fugir do ‘que’, os alunos apelam para qualquer outro pronome
relativo (especialmente os mais refinados, que impressionam, como cujo e o qual). O
resultado disso é uma completa inadequação do uso dos pronomes relativos nos textos
dos alunos. Isso é extremamente visível em redações de vestibular, nas quais o
candidato, para impressionar a banca avaliadora, ao mesmo tempo em que foge do
‘queísmo’, utiliza as mais sofisticadas formas de pronome relativo em qualquer
contexto.
Oliveira (2007, p. 696) nos traz alguns exemplos extraídos de provas do exame
vestibular da Fuvest, especialmente no que concerne ao uso do pronome cujo:
“E o patrocinador é uma distribuidora de combustível, cuja, assim, permite que a
circulação dos automóveis seja feita” (observe-se o emprego de cujo onde perfeitamente
caberia um o que)
“O paradoxo reside em o garçom compreender uma língua cujo ele mesmo afirmou que
desconhece” (observe-se o emprego de cujo onde perfeitamente caberia um que)
“... que raio de língua era aquela cujos Cláudio Mello e Souza e seus dois amigos, que
eram brasileiros, falavam pois ele não conseguia entender”
A partir desses exemplos, vemos o quanto é urgente ensinar aos alunos como e
quando utilizar os pronomes relativos e tirar da cabeça deles essa falsa história de
‘queísmo’. Aprender, por exemplo, que o pronome cujo (e flexões) é utilizado quando
se tem uma relação de posse entre o elemento de uma sentença e outra sentença, e que é
obrigatório haver aí uma relação de concordância entre esse elemento e essa sentença,
seria de suma importância para um aluno produtor de textos. E esse aprendizado pode
ser desenvolvido já no ensino fundamental, nos 8º e 9º anos, nos quais o aluno já tem
capacidade plena de dominar os contextos de utilização dos pronomes relativos de sua
língua em sentenças complexas.
3.2. Orações adjetivas circunstanciais
Além de poderem ser classificadas quanto ao seu papel de restrição, as orações
adjetivas podem ainda exercer determinadas circunstâncias em relação ao sintagma de
seu antecedente ou ao próprio antecedente. Observemos os exemplos:
“Um balanço de toda essa produção, que chega aos dias de hoje, seria impossível no
limite exíguo de um artigo.” (ART.014).
Estabelece-se aí uma relação causal, pois a adjetiva é responsável por mostrar a
dimensão dessa produção (ela deve vir de muito tempo atrás e conseguir chegar aos dias
de hoje), fato pelo qual se faz impossível fazer seu balanço num curto espaço de um
artigo.
“Certa vez, no meio de uma conversa animada de um grupo, durante a qual mantivera
um silêncio triste, ele suspirou fundo e declarou” (CRO.010).
Observa-se, no exemplo, claramente o valor temporal dessa construção adjetiva.
“Mais tarde a gente se sente na obrigação de pensar que bom mesmo é mulher (ou
prima, que é parecido com mulher)” (CRO.014).
A OA é utilizada para explicar o porquê de a expressão prima de ter sido
colocada entre parênteses: o fato de alguns jovens desejarem suas primas logo cedo.
Tem-se, pois, uma relação de explicação.
“E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.” (CON.019).
Observe-se que, nesse caso, a OA pode também estabelecer uma ideia de
consequência: foi pelo fato de se ter atirado o papel que este atingiu o peito do
amanuense.
“Pesquisadores da USP de Ribeirão Preto estão testando uma nova maneira de usar
células-tronco adultas contra o diabetes tipo 1, forma da doença que é fatal caso o
paciente não receba doses regulares de insulina.” (NOT. 057).
Observa-se aí um caso interessante: uma relação condicional. Apenas se essa
condição for cumprida a OA terá realmente exercido seu papel referencial. Caso
contrário, a retomada (e também caracterização) do termo doença perde o sentido.
“"Não é cura, é remissão prolongada", ressalta o médico, cujo trabalho gerou muita
expectativa entre portadores da doença.” (NOT. 068).
Temos aqui um caso de estabelecimento de posse, geralmente marcada no uso
do cujo. Em relação a essa noção, já há uma abordagem, mesmo que vaga, pela escola.
A análise dessas e de outras circunstâncias que podem ser exercidas pelas OA
seria uma excelente abordagem que uniria a análise linguística à compreensão do texto.
Um trabalho como esse poderia ser realizado já no 9º ano do Ensino fundamental,
quando os alunos teriam a oportunidade de estabelecer a ponte entre as construções
adjetivas e as adverbiais.
3.3. Orações adjetivas em cadeia
Um outro aspecto que merece a atenção em relação às OA é uma das
configurações peculiares que elas podem assumir. É o caso das OA em cadeia, que
aparecem quando um mesmo referente é retomado por várias OA (e vários pronomes
relativos, consequentemente). Essa configuração traz alguns aspectos sintáticos
importantes. A esse respeito da repetição e da supressão de pronomes relativos, ressaltanos Azeredo (2008, p. 322) que
Pronomes relativos com um antecedente comum podem desempenhar a mesma
função sintática ou funções sintáticas diferentes. Com a mesma função sintática,
é comum que o pronome relativo seja suprimido na segunda ocorrência. Com
função sintática diferente, o normal é a repetição do pronome, sobretudo se um
deles vem precedido de preposição.
Observa-se o primeiro caso em:
“ele conta de um amigo que sofria de pressão alta (CRO.008) e era obrigado a fazer
uma dieta rigorosa.” (CRO.009).
Como as duas orações (que se coordenam entre si, caso em que vamos nos
detalhar na próxima seção) são introduzidas por pronomes relativos de mesma função,
pôde-se elidir, na segunda ocorrência, o pronome que. São casos como esse exemplos
de OA em cadeia.
Outro caso semelhante pode-se notar no exemplo a seguir, típica configuração
do que resolvemos chamar ‘oração adjetiva em cadeia’:
“Nem sequer diremos que ela [a educação] transmite fielmente uma cultura ou culturas,
elementos de cultura, entre os quais não há forçosamente homogeneidade, que podem
provir de fontes diversas, ser de épocas diferentes, obedecer a princípios de
produção e lógicas de desenvolvimento heterogêneos e não recorrer aos mesmos
procedimentos de legitimação.” (ART.055).
Há aí diversas orações referindo-se a um mesmo antecedente.
Compreender essas estruturas é um exercício extremamente proveitoso ao aluno,
que passará a desenvolver uma melhor capacidade lógica para a recuperação de
referentes na hora de interpretar as ideias contidas num texto e na hora de organizar as
próprias retomadas por ele feitas na hora da produção de um texto. Tal exercício poderia
ser feito com ele já no 9º ano do Ensino fundamental, com exemplos mais simples desse
tipo de aprofundamento do tema.
3.4. Orações adjetivas encaixadas em outras construções
É comum encontrarmos casos de OA que encontram encaixadas em outras
construções (coordenadas ou subordinadas). Em casos como esses, geralmente surge a
dúvida no leitor: o que se tem aí é uma construção convencionalmente chamada de
coordenada (ou subordinada) com uma (outra) subordinada dentro, ou duas construções
separadas? Em outras palavras, há dúvida em se considerar a OA como parte integrante
ou não da oração. Observemos os exemplos:
“A decisiva questão das fontes emergia como problema, ao qual Julia contornava
sugerindo a capacidade do historiador em fazer “flecha com qualquer graveto” e
lembrando o inusitado das surpresas dos arquivos, reveladas apenas àqueles que se
deixavam sensibilizar por novos objetos, a despeito de reconhecer as dificuldades
inerentes a uma investigação sobre as práticas culturais, uma vez que elas não
costumam deixar traços.” (ART.033) (ART.034).
Aqui se vê claramente uma mistura entre construções adverbiais e construções
adjetivas.
“A quimioterapia pode ser realizada com a aplicação de um ou mais agentes
antineoplásicos que, por possuírem mecanismos de ação variáveis, dificultam a
resistência adquirida pelo tumor a certas drogas e assim, permitindo um melhor
controle da neoplasia.” (ART.165).
Há claramente uma construção causal dentro da OA. Exemplos como esse farão
o aluno refletir sobre o fenômeno que está diante dele: tudo está na OA, ou a adverbial
não faz parte da construção relativa? A partir dessa reflexão, o aluno será levado a fixar
tanto esse tipo de construção relativa quanto um tipo de construção causal.
O mesmo ocorre com essa construção concessiva:
“Os antioxidantes são substâncias que, mesmo presentes em baixas concentrações,
são capazes de atrasar ou inibir as taxas de oxidação.” (ART.167).
No caso a seguir, temos uma OA que apresenta uma construção coordenada
alternativa internamente, que já apresenta outra OA dentro de si:
“Ao final, apontamos alguns dos desafios que, a nosso ver, precisamos levar em
conta ou enfrentar para o prosseguimento das investigações e para o
aprofundamento teórico-metodológico das pesquisas/ que utilizam os arcabouços
aqui discutidos.” (ART.018) (ART.019).
Há também os casos das OA que se encontram encaixadas em outras OA,
quando se há necessidade de estabelecer alguma informação a respeito de um
componente do sintagma oracional.
“"Acho que o Brasil tem o mais forte arcabouço de política macroeconômica que eu,
que tenho 50 anos, já testemunhei em toda a minha vida"” (EDT. 027)
“"Acho que o Brasil tem o mais forte arcabouço de política macroeconômica que eu,
que tenho 50 anos, já testemunhei em toda a minha vida"” (EDT. 028)
O reconhecimento de todas essas estruturas é de grande valia para se contrapor
relações de coordenação e/ou subordinação dentro dos períodos. O próprio debate sobre
o que vem a ser coordenação e subordinação poderia ser iniciado a partir desses
exemplos. Teríamos, aí, a prática de reflexão (meta)linguística, o que seria proveitoso
para despertar no aluno o interesse por questões mais complexas da língua. Atividades
envolvendo essa temática seriam um prato cheio para estudantes do Ensino médio,
época em que já se deve ter maturidade para analisar e avaliar questões mais refinadas
sobre linguagem.
4. Considerações finais
O caminho para que se consolide o que foi aqui posto ainda é longo. É preciso
que o professor adquira consciência logo de que as práticas realizadas na aula de
português já há muito tempo não dão conta da formação de leitores e escritores
competentes, de usuários da língua, enfim. A mudança, sabemos, é paulatina, mas se faz
urgente. Esse discurso (tão repetido neste trabalho e em tantos outros, por diversos
autores) se mostra atual e necessário cada vez que, em uma sala de aula, temas da
gramática são tratados de forma errônea, tendo como base postulados teoricamente
fracos e muitas vezes falsos.
Muitas ideias precisam ser desenvolvidas e firmadas nesse campo, dentre elas o
próprio conceito que se tem de gramática. Como nos mostra Neves (2008, p.71),
“indubitavelmente, a noção de ‘gramática’ demonstrada nas aulas de diversos
professores é completamente díspare do que realmente é a gramática. Não se reconhece
nem mesmo a existência de diversas ‘gramáticas’ diferentes, cada qual com sua
natureza válida”. E esse reconhecimento tem que ser só o ponto inicial da mudança.
No sentido de guiar o professor a caminhos que objetivem essas mudanças foi
que se apresentou tudo que aqui foi dito. Deve-se ter atenção, também, a um outro
ponto que, às vezes, é mal interpretado por aqueles que discordam de um ensino de
língua materna com base nos fundamentos da Linguística: cada componente da língua
merece (e deve) ser estudado, em todas as especificidades, o que inclui também estudar
a norma. Nessa linha de argumentação, Ilari & Basso (2007, p. 231) apontam que a
Maneira de hierarquizar os objetivos do ensino de português, típica da
escola de nível fundamental e médio, tem a seu favor alguns
argumentos fortes, mas no final das contas é míope e ineficaz. É sem
dúvida importante que o maior número possível de pessoas domine o
português culto, porque é nessa variedade que foi escrita a maior parte
dos textos que todos precisam conhecer para desempenhar de forma
plena seu papel de cidadão. Por isso mesmo, abrir mão de ensinar o
português culto seria um crime, ou no mínimo uma grave omissão,
que resultaria em reforçar as situações de exclusão de que sofre
secularmente o país. Entretanto, expressar-se em português padrão é
muito mais do que uma decisão pessoal e livre por parte do aluno.
Ou seja, tanto estudando o português culto quanto o popular, deve ser levado em
consideração o fator contexto. Por que se fala de um jeito em certo local e hora e de
outro noutros local e hora? São perguntas como essas que devem ser centro na aula de
língua.
Especificamente em relação às OA, pode-se constatar a grande lacuna que há no
ensinar dessas, que são por muitos consideradas a parte mais fácil e rápida de se ensinar
em gramática. Ver que muita coisa pode ser estudada a esse respeito é tomar
conhecimento dessas lacunas.
Além disso, só com o reconhecimento das funções textual-discursivas das OA, é
que se pode construir um aluno com competência comunicativa nessa área. Não dá para
compreender nem escrever bem se eu não sei essas funções, se eu não sei para que usar
tais estruturas. É assim não só com as OA, como também em todos os outros tópicos
trabalhados na gramática escolar.
O trabalho do professor deve ser focado no preenchimento dessas e de outras
lacunas presentes no ensino-aprendizagem de língua portuguesa. É isso que se espera
para uma boa atualização das práticas pedagógicas do país afora: que nossas aulas de
português sejam um local de ‘encontro’ e ‘interação’, nos dizeres de Irandé Antunes.
Para que isso ocorra, muito trabalho deve ser feito. Mãos à obra!
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A ESCOLA, A TRADIÇÃO DO USO DO LIVRO DIDÁTICO E OS DISCURSOS
DO PROFESSOR
Hérica Karina Cavalcanti de Lima129
Lívia Suassuna130
RESUMO: São muitos os enfoques a partir dos quais o livro didático tem sido pesquisado. De vilão a
amigo (ou vice-versa), ele vem ganhando cada vez mais espaço nas pesquisas e na sala de aula. Sabendo,
então, que esse material precisa ser investigado e que não pode ser compreendido fora dos contextos
escolar e social, realizamos uma investigação com o objetivo de perceber, a partir dos discursos dos
professores de português, como eles escolhem os livros didáticos, como afirmam usá-los e o que pensam
sobre esse material, entre outros aspectos. Para tanto, entrevistamos duas professoras da Prefeitura de
Recife, que lecionavam em turmas do segundo ano do quarto ciclo de aprendizagem e usavam o livro
didático de português: uma usava o livro que havia selecionado no processo de escolha realizado no
âmbito do PNLD 2007; outra trabalhava com um livro que não tinha sido objeto de sua escolha. Para
realizar esta pesquisa qualitativa, fizemos uma entrevista semi-estruturada cujos dados foram analisados
com base nas teorias da Análise do Discurso. Esta pesquisa trouxe-nos resultados bastante interessantes
quanto ao modo como os professores concebem e usam o livro didático de português. Além disso,
mostrou-nos que, seja por escassez de recursos didáticos ou, simplesmente, pelo fato de servir como um
“orientador” das práticas dos professores, esse material tem uma tradição escolar que não lhe permite,
ainda, deixar as aulas de português.
PALAVRAS-CHAVE: Livro didático; ensino de português; Análise do Discurso.
ABSTRACT: There are many focuses from which the didactic book is researched. From the villain to a
friend (or vice-verse), it has gotten a space in the classroom researches. Knowing that this material needs
to be investigated and that it can not be understood out of the school and social contexts, we did an
investigation with the objective of noticing from the Portuguese teachers’ discourse how they choose the
didactic books, the assertion of using it and what they think of this material among other aspects. In such
way, we interviewed two teachers of Recife City Hall who taught in the second year group from the
fourth learning lisping and they used the Portuguese didactic book: one of them used the book selected in
the choice process done in PNLD 2007 ambit; the other one worked with the book which was not her
choice. To get this qualitative research, we did a semi-structured interview which data were analyzed in
the Discourse Analyses theoretical bases. This studying gave us very interesting results on how the
teachers conceive and use the Portuguese didactic book. Besides this, it showed us that the lack of
didactic resources or simply by the fact on how it is the teachers practice “guide” in their practice and
this material has a school tradition what does not permit to let the Portuguese classes.
KEY WORDS: Didactic book; portuguese teaching: Discourse Analyzes
1. Introdução
O livro didático (LD) é um recurso pedagógico que possui diferentes facetas.
Segundo Chris Stray (1993 apud CHOPPIN, 2004, p. 563), “é um produto cultural
complexo [que] se situa no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial e
da sociedade”. Na sala de aula, muitas vezes não é visto apenas como um instrumento
de trabalho auxiliar, mas sim como “a autoridade, a última instância, o critério absoluto
129
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco e professora da UPE/Campus
Nazaré da Mata.
130
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco.
de verdade, o padrão de excelência a ser adotado” (FREITAG et al., 1987, p. 93) ”.
Jurema (1989, p. 22) afirma que ele “tem presença significativa na vida escolar, tendo,
por isso mesmo, se tornado uma espécie de livro sagrado, de bíblia, que, numa
linguagem didática, constrói e difunde dogmas de natureza social e política”.
De acordo com Silva (1997), o LD é a principal fonte de informação impressa
utilizada por parte significativa de alunos e professores brasileiros, e sua utilização
intensiva ocorre quanto mais as populações escolares têm menor acesso a bens
econômicos e culturais. É devido a isso e à complexidade do LD que é preciso estudá-lo
em todas as suas dimensões para que, através dele, possamos entender um pouco mais o
ensino, a escola e a sociedade em que vivemos.
O professor de português, frequente usuário do LD, nem sempre reconhece a
dimensão e a complexidade desse instrumento pedagógico. E isso é preocupante se
considerarmos que o LD veicula valores, propõe conteúdos e metodologias de ensino e,
em certos casos, até assume a autoria da aula, “impondo” práticas que deveriam ser
produzidas e aplicadas pelo próprio professor. E é ainda mais preocupante se
reconhecermos que a escolha desse material tão utilizado nem sempre tem sido uma a
tarefa reflexiva nas escolas brasileiras.
Assim, sabendo da forte presença do LD nas nossas escolas – mais
especificamente nas aulas de língua portuguesa – e da necessidade de estudá-lo e de
perceber como ele é visto pelos professores, decidimos realizar uma investigação com o
objetivo de compreender, através dos discursos desses professores, o que pensam sobre
tal material, como o escolhem e como o utilizam para darem aulas de português.
Diante dos dados e dos resultados das análises, acreditamos que esta pesquisa
tem grande relevância porque traz contribuições ao debate sobre o LD, sua escolha e
sobre o modo como os professores o veem. Diferentemente dos relevantes estudos já
feitos sobre o LD propriamente dito, procuramos investigar neste trabalho os discursos
produzidos sobre ele, dos quais podemos inferir, entre outras questões, que, embora os
professores digam que o LD deve funcionar apenas como um apoio às suas práticas,
esse instrumento ainda é figura marcante nas salas de aula e está longe de dar lugar a
práticas autônomas elaboradas e encabeçadas pelos próprios professores.
2. Fundamentação teórica
O LD é muitas vezes o único material de que dispõem o professor e o aluno para
fazerem acontecer o processo de ensino-aprendizagem. Ele é praticamente o único meio
de os alunos das escolas públicas brasileiras terem acesso à cultura letrada. Nesse
contexto, esse material ganha relevância porque é principalmente através dele que esse
aluno tem a possibilidade de desenvolver habilidades de leitura e de escrita. Segundo
Oliveira et al. (1984, p. 16), “no Brasil, o contato com o primeiro livro quase sempre se
dá na escola”. Não há dúvidas, então, “de que é a partir daí [do livro didático] que o
aluno parte para o hábito de leitura [...] necessário ao desenvolvimento intelectual, ao
aprimoramento da sensibilidade, à valorização da cultura nos seus vários setores”
(OLIVEIRA, 1986, p. 130). A formação do gosto pela “leitura de real valor” (idem,
ibidem, p. 130) e o domínio de procedimentos essenciais à construção do conhecimento
por parte do aluno têm relação direta com o livro didático que ele usa na escola. Por
isso, a despeito de todo o progresso atribuído à tecnologia educacional e à consequente
variedade e eficiência de recursos passíveis de aplicação na escola – televisão, vídeo,
CDs, projetores etc. –, o livro didático permanece incólume, ocupando posição central
no trabalho do professor.
Por esse motivo, é imprescindível que o livro que estará nas salas de aula seja
escolhido mediante critérios de qualidade. Se a escolha for pensada dessa forma, esperase que o livro didático de português escolhido seja o que mais se aproxime dos objetivos
do professor, bem como das necessidades do aluno e da proposta pedagógica da escola.
Rangel (2005) coloca que o cotidiano de nossas escolas pede, com urgência,
uma reflexão a respeito dos materiais que são adequados ao ensino, de uma escolha
qualificada desse material e de um uso crítico dele. Para o autor, quanto mais o material
estiver adequado à situação de ensino-aprendizagem em que está inserido, melhor será o
seu rendimento didático. Carvalho (2005, p. 02) afirma que é preciso que “o professor
escolha os materiais que vai utilizar com um objetivo bem claro em mente. O professor
deve saber para que quer o material”.
Rojo (2007), colaborando com o debate, afirma que é muito importante
estabelecer discussões sobre os modos de o professor escolher o LD, bem como sobre o
modo de usar e de se relacionar com ele. Ela defende que “o momento de escolha do
livro faz parte do início, da inauguração de um projeto de ensino de mais longa duração,
no qual vários professores interferirão, e deve, portanto, ser vivido pelo diálogo coletivo
dos professores interessados” (pp. 01-02). Ainda para a autora, o momento de escolha
de LD faz parte da montagem de um cenário, de uma organização da escola para receber
os alunos. Por isso, “nesse momento, o professor deve dispor de tempo, condições e
orientações suficientes para que possa fazer a escolha de comum acordo com os colegas
interessados e de maneira ponderada e responsável” (p. 02).
Em se tratando do uso do LDP, podemos afirmar que, em muitos casos, ele tem
presença marcante e, por vezes, “ditadora” na sala de aula. Isso faz surgirem críticas
como as de Geraldi (1987), que afirma: quando adotado, o livro didático passa a
orientar, conduzir o processo de ensino: de adotado passa a adotar o professor e os
alunos. Para o autor, devido, muitas vezes, à má formação que possuem, os professores
buscam nos livros didáticos “muletas pedagógicas” para a realização do seu trabalho.
Ele defende que, para melhorar as condições de ensino e aprendizagem no país, é
necessário um sério questionamento das posturas reproduzidas em sala de aula e,
principalmente, da utilização do LD como “cânone indiscutível”, em contraposição a
reflexões necessárias para o planejamento das aulas por parte dos professores.
Reconhecendo, então, essa mecanização do processo ensino-aprendizagem em
decorrência do uso inadequado do LD, Soares (2002), em entrevista ao programa Um
Salto para o Futuro, coloca que o livro didático assume dois papéis diferentes na sala
de aula – o ideal e o real: o ideal seria que o livro didático fosse apenas um apoio, mas
não o roteiro do trabalho do professor; o real, porém, é que ele acaba sendo a diretriz
básica do professor na sua tarefa de ensinar.
Britto (1997), contribuindo com o debate sobre o uso do LD, traz algumas
explicações para esse forte vínculo entre ele e a escola. São eles:
1) a estruturação do sistema escolar na sociedade industrial de massa
(que obriga a uma produção em série e faz o livro didático se impor
como necessidade pragmática para as políticas de educação e os
agentes pedagógicos); 2) o papel ideal e ideologicamente atribuído à
escola (que faz o livro didático incorporar para si a tarefa de
estabelecer uma ponte entre as instâncias produtoras do conhecimento
e o processo pedagógico e funcionar como formulador do currículo); e
3) a visão do aluno como ser em formação (que dá origem a um
processo de simplificação e padronização da exposição do conteúdo,
na forma de um “didatismo reducionista”) (pp. 174-175).
Como podemos perceber, são muitas as críticas feitas ao LD e ao seu uso
impensado. Porém, embora essas críticas sejam frequentes, Heyneman (apud
OLIVEIRA et al., 1984) afirma que o livro didático pode desempenhar importante
papel no processo de melhoria da aprendizagem dos alunos. Freitag et al. (1989, p.128)
também se posicionam positivamente a respeito do uso do LD, afirmando que sem ele
“o ensino brasileiro desmoronaria”.
Essa afirmação de Freitag é possível de ser entendida e – até aceita – se
considerarmos que nossas escolas carecem muito de recursos didáticos e tecnológicos.
Diante disso, o LD acaba sendo um dos poucos recursos acessíveis ao professor e aos
alunos. É sobretudo por este motivo que se torna fundamental refletir sobre as
concepções que os professores têm do LD e sobre como escolhem e usam esse material,
aspectos que podem ser percebidos através dos discursos que proferem na e sobre as
suas práticas de ensino.
3. Metodologia
Partindo do princípio de que não há metodologias “boas” ou “más” em si, e sim
metodologias adequadas ou inadequadas para tratar de um determinado problema
segundo certo parâmetro, e levando em consideração as especificidades do nosso objeto
de pesquisa – os discursos do professor de português –, apresentamos, abaixo, algumas
informações sobre nossa pesquisa e o percurso metodológico que foi seguido para a sua
realização.
Nossa investigação teve como paradigma orientador a pesquisa qualitativa por
“explorar características dos indivíduos e cenários que não podem ser facilmente
descritos numericamente” (MOREIRA e CALEFFE, 2006, p. 73). Quanto à tipologia,
devido à riqueza do objeto analisado, podemos classificá-la como:
1.
exploratória, porque teve por finalidade “desenvolver, esclarecer (...)
conceitos e ideias” (GIL, 1994 apud MOREIRA e CALEFFE, 2006, p.
69);
2. descritiva, uma vez que “as pesquisas desse tipo têm como objetivo
primordial a descrição das características de determinada população ou
fenômeno” (idem, ibidem, p. 69);
3. explicativa, já que, de acordo com Moreira e Caleffe (ibidem, p. 70),
“esse é o tipo de pesquisa que mais aprofunda o conhecimento da
realidade, porque explica a razão, o porquê das coisas”;
4. dialética, entre outros motivos, por considerar as complexas relações de
dualidade e de complementação entre o todo e as partes, que são tomados
como uma só realidade que se movimenta e se transforma através das
relações determinadas dialeticamente.
As pesquisas qualitativas são “caracteristicamente multimetodológicas”
(ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 2004, p. 163), ou seja, podem
contemplar uma grande diversidade de procedimentos e instrumentos de coleta de
dados. Sendo assim, para levantar os dados necessários a esta investigação, usamos os
seguintes instrumentos:
1. questionário;
2. entrevista semi-estruturada.
O questionário foi usado com o objetivo de colher os dados iniciais que nos
levariam aos sujeitos, como informações sobre sua formação, local de trabalho, tempo
de serviço, entre outras mais direcionadas ao objeto de estudo, todas elas fundamentais
à pesquisa. A entrevista semi-estruturada, por sua vez, se deu com o intuito de levantar
dados que se referissem diretamente às atitudes, valores e opiniões dos sujeitos sobre o
objeto pesquisado. Sua aplicação foi necessária por ela ter uma natureza interativa, que
permite tratar dos temas mais complexos que não podem ser investigados
adequadamente só com o uso do questionário. Ela foi utilizada, então, para recolher
dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, o que, de acordo com Bogdan e
Biklen (1994, p. 134), permite ao investigador “desenvolver intuitivamente uma ideia
sobre a maneira como os sujeitos interpretam os aspectos do mundo”. A entrevista foi
semi-estruturada porque, mesmo baseada num roteiro com as principais questões
relativas ao assunto, não obedeceu a uma estrutura rígida. A preferência por esse tipo de
entrevista deu-se por ela permitir ao entrevistado abordar o tema proposto sem respostas
ou condições rigidamente determinadas pelo pesquisador.
A pesquisa completa, fruto do curso de Mestrado em Educação, buscou
respostas dos professores a várias questões sobre o LDP. Neste artigo, abordaremos
apenas três das questões feitas, quais sejam aquelas referentes ao que as professoras
pensam sobre o LDP e sua importância para a realização das práticas de ensino de
língua, ao processo de escolha do LDP e ao uso desse material.
Os sujeitos da pesquisa foram duas professoras de língua portuguesa (Professora
A e Professora B) que participaram do processo de escolha de LDP no ano de 2007 e
usaram esse material em 2008, sendo que uma professora (Professora B) usava o LDP
que havia escolhido e a outra (Professora A), um LDP que não havia sido objeto de sua
escolha. A investigação realizou-se em duas escolas públicas da Prefeitura de Recife,
mais especificamente em duas turmas de 1º ano do 4º ciclo de aprendizagem (9º ano do
Ensino Fundamental).
Os dados coletados a partir da entrevista semi-estruturada foram analisados com
base nas teorias da Análise do Discurso, já que, de acordo com Orlandi (1983, 1984,
1986 apud SUASSUNA, 1995),
a) a AD analisa a linguagem nas suas mais diversas dimensões,
tentando dar conta da sua complexidade e da sua historicidade; b) a
AD analisa a linguagem e tenta oferecer subsídios para o
entendimento de sua natureza mesma; c) a AD não é um método exato
ou um nível específico de análise do conteúdo e da linguagem; antes,
é um “ponto de vista” diferente, com base no qual é possível “ver” a
linguagem; d) a AD é uma teoria crítica da linguagem e não há como
estabelecer seus limites (...) (p. 85).
Através das respostas dadas pelas professoras, procuramos perceber e analisar,
entre outros aspectos, o dialogismo, a polifonia e a heterogeneidade presentes nos seus
discursos. Levando em consideração esses aspectos do discurso, buscamos compreender
quem diz, como se diz, em que circunstâncias, a partir de que lugar social etc. Em outras
palavras, queremos saber: O que fala o professor de português sobre o LD, sobre o
processo de escolha e sobre o seu uso? Como estrutura sua fala? De que posição
discursiva ele fala? A quem ele fala o que fala? É a essas questões que tentaremos
responder.
4. Análise dos dados
A partir dos discursos do professor, é possível perceber que ele é um sujeito
cindido, cuja identidade está em constante reformulação. Consequentemente, assim
também pode ser o seu discurso. Analisá-lo, então, é reconhecer que “se trata, mesmo,
de lidar com o sujeito em sua relação necessária com a ideologia, tenso, contraditório,
obscuro” (SUASSUNA, 1995, p. 102). É preciso, também, perceber, como diz Orlandi
(1987), que o discurso é construído desta ou daquela maneira em virtude do tipo de
interação que se deseja estabelecer, e que as estratégias discursivas fundamentam-se nas
representações que os sujeitos constroem dos seus interlocutores (PÊCHEUX, 1990).
Sendo assim, faz-se necessário levar em consideração que as professoras, durante a
entrevista, de certa forma falaram de sua prática para a Academia, que é representada
pelo pesquisador. Nesse sentido, é natural que seus discursos evidenciem o papel e o
lugar social do qual fazem parte e demonstrem certo cuidado em dizer de determinada
forma o que é dito, apesar de a entrevista ter sido realizada de forma que as professoras
se sentissem à vontade. Suassuna (2006) também chama atenção para isso:
para se compreender o evento linguístico em toda sua complexidade seria
preciso tematizar, necessariamente: as condições de produção do enunciado,
a intenção comunicativa, o papel social de produção do enunciado, a intenção
comunicativa, o papel social dos interlocutores, os efeitos de sentido
perseguidos e conseguidos (p. 40).
Luz (s.d.) também evidencia o cuidado que devemos ter ao analisarmos os
discursos do professor captado em situação de entrevista. Segundo a autora, “podemos
pressupor que o sujeito no contexto imediato de entrevista sente-se ideologicamente
interpelado a responder, a produzir (inconscientemente) um efeito de unidade no seu
dizer sobre a profissão e, portanto, homogeneíza sua fala (...)” (p. 10-11).
Feitas essas considerações, comecemos nossas análises tentando não perder de
vista, além do dito, o não-dito, as lacunas deixadas entre um dizer e outro, bem como as
diferentes formas do dizer.
4.1. Os discursos sobre a importância do LD para a realização das práticas de
ensino de língua
Para começar, analisemos o que as professoras responderam à pergunta feita
sobre a importância do LD. De acordo com o discurso proferido pelas duas, ambas
consideram-no um material importante, mas o motivo dessa importância é bem diferente
para cada uma delas.
Para a professora A, o LD é importante, mas com ressalvas. Uma delas é que ele
não deve nortear o trabalho do professor, deve ser apenas um apoio:
“Olha... o livro didático é importante. É importante, mas, assim, eu faço uma ressalva:
depende... do modo como o professor utiliza esse material. (...) Ele pode servir de
suporte para você trabalhar outras questões e não necessariamente você deve ficar
presa ao livro didático. O livro didático não pode, não... não pode, não deve, ao meu
entender, não deve nortear o trabalho do professor, né? Antes disso, o professor tem
que ter as suas concepções(...) pra, então, o livro didático servir como apoio, como
suporte pedagógico, então, não... não pode ser o norteador da prática, ele deve vir
como apoio à prática” (Professora A).
No entanto, para a professora B, ele é importante porque é um orientador da
prática do professor:
“Eu considero importante porque ele... serve como um orientador também para o
trabalho do professor. Além dos outros, né?, que a gente tem. Eu acho o LD importante
para o trabalho do professor” (Professora B).
A partir dessas falas, podemos ver que as duas professoras têm concepções
diferentes do LD e do seu papel na sala de aula. O que diz a professora A sobre a
importância do LD pode ser entendido como sendo influenciado social e historicamente.
Sabemos que para ela não são novidades as críticas que são feitas a esse instrumento
como norteador da prática do professor. Sendo assim, para essa professora, ir contra
esse discurso que ecoa na sociedade poderia demonstrar que ela não estaria a par das
pesquisas, das críticas etc. Do seu lugar social de professora experiente, ela não poderia
ficar no senso comum.
Como enfatiza Suassuna (1995, p. 85), “a apropriação do discurso não é
individual, mas social, já que aí está refletida a ilusão do sujeito; na verdade, o discurso
é, ao lado de outros fatores sociais, determinado historicamente”. Isso pode ser
associado à fala da professora B também, apesar de ela dizer que o LD é orientador da
prática do professor. Observemos sua fala: “serve como um orientador também para o
trabalho do professor”. Vejamos que, apesar de dizer que o LD é um orientador, ela
ameniza sua fala usando a palavra inclusiva também, certamente sabendo o peso do que
havia dito. Quando acrescenta o também, ela direciona o nosso entendimento para o fato
de haver outros instrumentos orientadores do trabalho do professor e reafirma isso
quando diz: “Além dos outros, né?, que a gente tem.”. Com esse acréscimo, percebemos
que ela tenta “quebrar” o raciocínio que fizemos da sua fala anterior: o LD é orientador,
mas não é só ele que exerce ou que deve exercer esse papel; há outros recursos usados
pelo professor para orientar sua prática além do LD; o LD é usado, mas não é o único
ou o mais importante...
É possível inferir, a partir disso, que as vozes sociais também perpassam a fala
dessa professora, pois concordar com o fato de o LD ser orientador da prática, mesmo
com tantas críticas ao fato de ele ser usado com muito apego e pouca reflexão, seria
arriscado demais para uma professora que está afirma estar a par de discussões atuais.
Essa atitude das professoras remete ao que Geraldi (1991) afirma sobre o trabalho
linguístico e sua internalização por parte sujeitos:
pode-se dizer que o trabalho linguístico é tipicamente um trabalho
constitutivo: tanto da própria linguagem e das línguas particulares
quanto dos sujeitos, cujas consciências sígnicas se formam com o
conjunto das noções que, por circularem nos discursos produzidos nas
interações de que os sujeitos participam, são por elas internalizadas (p.
03).
Antes de partirmos para outro questionamento feito na entrevista, gostaríamos de
chamar atenção ainda para dois aspectos colocados pelas professoras em relação à
importância do LD. O primeiro deles diz respeito à seguinte fala:
“... a gente sabe que, mesmo com as inovações da tecnologia e da informática, o livro
didático ainda é o material escolar mais utilizado. Ele é importante, sim, porque ele é...
é... os alunos têm mais facilidade de acesso, né?, do que a computador, notebook etc.,
etc. Isso eu tô falando da escola pública, né?, é... de ter acesso e... se a gente for pensar
na parte financeira, ele é mais econômico do que computador etc., etc. Por enquanto,
ainda é, não é, e... ele oferece ao professor um leque de possibilidade” (Professora A).
A partir desse discurso, podemos observar que a professora reconhece a
importância do LD, apesar de não ver nele um objeto que norteie sua prática. Traz à
tona, mais uma vez, no seu discurso, o discurso social, que vem afirmando que o LD é
praticamente o único material a que os alunos têm acesso (pesquisas realizadas por
Batista (1999), entre outras, mostram isso). Porém, para ela, o LD vai permanecer nas
escolas não porque é um bom material didático (apesar de deixar claro que ele oferece
um leque de possibilidades), mas porque é a ele que os alunos têm acesso com mais
facilidade, já que computadores e notebooks são muito caros para os que estudam na
escola pública.
O segundo aspecto a ser discutido parte da fala da professora B, dita para
complementar a resposta dada à questão sobre a importância do LD. Ela afirma que há
outros materiais que orientam o trabalho do professor:
“É. Os outros recursos que a gente utiliza: jornais, outros livros didáticos também,
outras leituras. Mas, assim, o livro didático tenta trazer o que há de mais novo no
campo acadêmico, né?, para a sala de aula. Então, eu acho importante” (Professora
B).
De acordo com o que diz essa professora, o uso do LD convive com o uso de
outros materiais na sala de aula. Porém esta acredita, diferentemente da professora A,
que, apesar de outros recursos estarem presentes na sala de aula, o LD permanecerá
nela, mas não porque é um material mais barato, mas por ser uma tentativa de
representação dos conhecimentos produzidos na Academia.
4.2. Os discursos sobre a escolha do LDP
Em relação ao processo de escolha do livro didático, as professoras anunciaram
importantes questões que merecem a nossa reflexão. Dentre elas, destacaremos aqui os
discursos produzidos acerca da participação no processo de escolha do LD. Ao serem
questionadas sobre a importância de escolherem o LDP, assim elas se posicionaram:
“Ah! Sem dúvida! Sem dúvida! Eu fico danada da vida quando eu vejo que o livro vem
pra eu engolir goela abaixo sem ter passado pelo processo de escolha, né? Porque...
é... quando você já trabalha numa escola, por exemplo, três, cinco, dez anos (...) então
você já conhece a clientela, você, né?, sabe qual é o livro mais bacana. (...) Eu num tô
dizendo, por exemplo, como às vezes eu escuto o professor dizer: ‘Não, esse livro é... o
nível tá muito alto para o aluno’. Não, a gente está descartando até aquilo que se fala
da Zona de Desenvolvimento Proximal, né?, você tem que oferecer ao aluno pra ele ir
mais além, né? (...) eu tô falando da... do... livro que mais se aproxima da realidade
daquela população, daquela clientela que se tem na escola. Então... e outra: eu sou da
área, né?, eu tenho minha formação específica, eu conheço o Programa Nacional do
Livro Didático e, mesmo que não conhecesse, conheço os Parâmetros Curriculares
Nacionais, eu tenho uma formação específica na área, então... é fundamental que... é
essencial que eu conheça o instrumento que vou usar o ano inteiro com o meu aluno,
né?” (Professora A).
Pelo discurso dessa professora, observamos que os argumentos que ela usa para
justificar esse posicionamento têm a ver com a questão da auto-afirmação, com os
saberes que ela tem e por conhecer programas e documentos oficiais, como o PNLD e
os PCN. Mais uma vez, percebemos que o discurso dela é atravessado por outros
discursos, como os desses programas e documentos, pois assim afirma Luz (s.d., p. 01):
“o discurso do professor se inscreve na formação discursiva que representa, entre outros
discursos, o discurso oficial do Estado”.
Aproximando as ideias de Luz às de Bakhtin (apud SUASSUNA, 2006),
lembramos que as palavras vêm de outros sujeitos, de outros tempos e outros lugares.
Nesse caso, podem vir de outros participantes dos processos de formação pelos quais
essa professora passou, dos autores lidos, dos próprios estudos, formações e leituras,
como dos estudos sobre Psicologia da Aprendizagem; percebemos isso quando ela cita a
Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) como um aspecto que não pode deixar de
ser considerado na hora de escolher o livro. Essas vozes podem vir, também, como já
dissemos, dos documentos oficiais, do Estado e da Academia. Esse movimento
polifônico comprova as muitas vozes que constituem a voz de cada um.
A fala dessa professora também nos permite inferir, logo de início, que ela
mantém um discurso contrário à verticalização, à ideia de receber as decisões já
tomadas e prontas, vindas de uma posição superior à sua. Ela parece reivindicar um
espaço para que a voz do professor ecoe, seja ouvida e respeitada. Por isso o tom de
exclamação – “Ah! Sem dúvida! Sem dúvida! Eu fico danada da vida quando eu vejo
que o livro vem pra eu engolir goela abaixo sem ter passado pelo processo de escolha,
né?” – quando vai se referir à participação na escolha. Apesar de adotar em sua fala o
discurso do Estado e da instituição, ela parece ser contrária a qualquer forma de tomada
de decisão em que não prevaleça a democracia. Falando assim, ela parece ser o que
Orlandi (1987) chama de “sujeito de um processo de ruptura do instituído, do
autoritarismo”.
Podemos perceber, ainda, que, para sustentar o seu discurso, essa professora usa
o discurso do outro, ou seja, ela cita a fala de um suposto professor se posicionando no
momento da escolha do LD: “Não, esse livro é... o nível tá muito alto para o aluno”.
Nesse caso, diferentemente das vozes já mencionadas, essa não condiz com seu ponto
de vista. Mesmo assim, usá-la também trouxe força ao seu discurso, pois ela parece
acreditar que não é adequado menospr

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