Esta despensa é no quintal
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Esta despensa é no quintal
SOCIEDADE AMBIENTE Esta despensa é no quintal Fome global? As microquintas são um exemplo de auto-suficiência alimentar com cada vez mais adeptos nas cidades POR JOÃO PACHECO TEXTO JOSÉ CARLOS CARVALHO FOTOS L á fora há fava saloia a crescer na terra. Lá fora há manjericão, alface folha de carvalho e 15 variedades de batata. Há morangos, ervilha algarvia, hortelã, agriões, beterraba, limões, laranjas, patos, galinhas e duas gansas velhas e grandes. E há peixes-mosquito, sebes para controlar as pragas, gatos, cães, ninhos de mulherinhas… Cá dentro, já cheira a almoço. O chouriço de Estremoz e o vinho branco juntaram-se ao refogado e vão atacando os narizes de quem está na cozinha desta vivenda, em Alhos Vedros, na periferia de Lisboa. 130 v 29 DE MAIO DE 2008 Enquanto a panela espera o pato, a salada de frutas recebe os actores principais caseiros. São morangos e foram trazidos do quintal das traseiras pelo professor de Biologia e agricultor José Mariano Fonseca. Cultivou-os e é também ele que os corta agora, para dentro de uma tigela já cheia de fruta. De avental, o repórter fotográfico da VISÃO vai transformando em sumo muitas laranjas colhidas no quintal. Mais tarde, as cascas das laranjas irão parar a uma das pilhas de composto que há lá fora e acabarão por fertilizar a terra, ajudando à produção de mais comida. Para este almoço de domingo são essenciais vários ingredientes nascidos e crescidos nesta microquinta urbana, no fundo uma vivenda semelhante na aparência a tantas outras deste bairro da chamada Margem Sul. A auto-suficiência alimentar começa logo pelo pato com que a professora de Biologia Joaquina Mendonça está a fazer o prato principal. Pertencia a uma dinastia de patos nascidos na microquinta. E aqui cresceram também as três variedades de alface que esperam, poisadas sobre um banco de jardim, junto à porta da cozinha. O que não for aproveitável na salada vai para os patos. A beterraba ainda está na terra, mas daqui a pouco será colhida, lavada, descascada, ralada e posta na mesa. Dois ovos de pata virão de um cesto cheio de ovos caseiros, todos datados a lápis na casca. A microquinta tem apenas 950 metros quadrados, a contar com a casa onde vivem José e Joaquina, de 38 e 37 anos – com as filhas Beatriz e Sofia, de 7 e 5 anos. tinha» que estivesse à venda. Há dez anos, acabaram por encontrar a casa certa em Alhos Vedros. Foi «um achado», diz Mariano. Podia ser pequena, mas olhando para o jardim abandonado perceberam logo o potencial. «Só tinha ervas da nossa altura e duas laranjeiras», conta o agricultor urbano. Ao fim de dez anos, a microquinta é uma experiência que o seu principal autor gosta de mostrar aos vizinhos e aos passantes. Por isso a minúscula propriedade está vedada apenas com redes. Alguns vizinhos foram seguindo o exemplo e deixaram de usar químicos nas suas hortas. Só isso já é uma grande conquista, porque – além de dar aulas de Biologia e de Geologia no Barreiro – José Mariano é um dos formadores nos cursos da associação portuguesa de agricultura biológica AGROBIO e escreve na revista Joaninha. Desde que se licenciou, José tem participado em vários projectos pedagógicos de hortas biológicas em escolas. E faz também parte da direcção EXEMPLO A microquinta não tem muros para que o sucesso da agricultura biológica seja visível da rua A área ao ar livre ainda não está totalmente aproveitada, mas há espaço para três galinheiros onde vivem aves de raças rústicas, para um pomar com árvores de variedades tradicionais e para uma horta biológica regada gota-a-gota. Também cabem na microquinta um relvado, uma mesa de jardim, dois baloiços, uma piscina de plástico e uma casinha de brincar. Tudo em ponto pequeno, muito pequeno. CULTIVAR A AUTO-SUFICIÊNCIA Os objectivos de José Mariano passam por fazer agricultura biológica, nas horas vagas, para consumo da família, tentando ser o mais auto-suficiente possível. Queria «perpetuar o que tinha vivido na infância», procurando ver crescer as filhas tão próximas da natureza como da realidade urbana da Grande Lisboa. Foi por isso que ele e a mulher resolveram comprar uma casa com terreno e chegaram a concorrer para dar aulas em Almeirim, na esperança de se apaixonarem por «uma quin- da associação Colher Para Semear, uma rede portuguesa de troca de sementes de variedades tradicionais que tem contornado, nos últimos anos, a inundação dos mercados por variedades híbridas e transgénicas. Entre as revistas especializadas que este agricultor-activista costuma ler contamse as britânicas Country Living e Gardener’s World. E no pequeno escritório da casa lá estão livros sobre Darwin, sobre enxertos, sobre aves de capoeira… E algumas das obras escritas pelos «mentores» deste agricultor urbano, Gerald Durrel e John Seymour. Por exemplo, O Naturalista Amador, de Durrel, e o Guia Prático da Auto-Suficiência, de Seymour. Próxima da auto-suficiência está a refeição de hoje e já é quase hora de ir para a mesa. Antes, Beatriz e Sofia negoceiam com o pai a possibilidade de dedicarem os próximos minutos a um jogo na Internet, acompanhadas pela prima Inês, de 12 anos, que cá veio passar o dia. Durante a semana, as crianças da casa não têm autorização para jogos internéticos e é com voz divertida que José Mariano se queixa da «atracção da tecnologia». SOCIEDADE AMBIENTE VARIEDADE Entre carne, vegetais e fruta, há aqui um pouco de tudo ao longo do ano O pai de Beatriz e Sofia troca os chinelos pelas galochas com que anda no quintal. Vai lá fora buscar um último pormenor para a salada, uma variedade de agrião que contrabalança bem as alfaces. Com a família já reunida à mesa, são trazidos o pato e a salada. Cá estão também as azeitonas alentejanas, vindas do terreno do avô de Mariano. Já acabaram há coisa de semanas as que foram curtidas aqui com sal da ria Formosa, louro e produtos da microquinta: alho, laranja aos quartos e nêveda, uma variedade de hortelã. FOME GLOBAL ‘ENCOMENDADA’ Enquanto nesta microquinta biológica não faltam nem variedade nem quantidade, as manifestações e motins contra os preços da comida em muitos países e a ameaça de uma 132 v 29 DE MAIO DE 2008 fome global têm enchido as primeiras páginas dos jornais. Os preços dos cereais e de toda a comida dispararam, empurrados pela especulação, pela pressão dos biocombustíveis, pelo aumento de procura de potências emergentes como a Índia e a China e pelo crescimento da população mundial, que vive cada vez mais em meios urbanos. O professor-agricultor desvaloriza as notícias: «Soa-me a uma coisa encomendada, para entrarem aí os transgénicos, com grande pressa.» A família está longe de ser completamente auto-suficiente, mas a carne, os vegetais e a fruta aqui produzidos evitam parte das compras que seriam necessárias. A agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) já tem chamado a atenção para o papel importante que a agricultura urbana poderá vir a ter, sobretudo nas grandes cidades. Mas esta microquinta de Alhos Vedros tem tanto de despensa como de sala de aulas e de campo de batalha pela manutenção da biodiversidade vegetal e animal – além de ser uma das formas como José Mariano gosta de passar os seus tempos livres. Não foi apenas para alimentar a família que o agricultor pôs na terra 15 variedades de batata da última vez que a VISÃO o visitou. O microbatatal está agora muito crescido e servirá também para proteger essas variedades de batata da extinção, fazendo-as circular e reproduzindo-as através da rede de troca de sementes Colher Para Semear. E, por exemplo, os peixes-mosquito que ali estão a nadar nem sequer são para comer. Em tempos eram colocados nos SOCIEDADE AMBIENTE charcos para darem conta das larvas dos mosquitos, evitando a propagação de doenças como as febres hemorrágicas, conta o professor. São também conhecidos por «gambúzios» e Mariano salvou-os há dois anos de uns charcos vizinhos, quando o calor era tanto que pareciam condenados. Mas nem todos os animais são bem-vindos à microquinta. Enquanto um dos galos tem direito a andar sempre à solta porque «não se dá» com as outras aves, José Mariano refere-se aos escaravelhos arlequim como «aqueles malvados». AUTO-SUFICIÊNCIA O objectivo principal do agricultor-professor é alimentar a família de forma mais saudável ADOPÇÃO DE GALINHAS REFORMADAS Além de ensinar, o professor aproveita todas as oportunidades para aprender com outros agricultores. Ainda há uns meses foi ao Alentejo e andou com a mãe «pelos quintais das velhotas», conta. «A recolher daquelas coisas lindíssimas que já não há.» Ou seja, a recolher sementes e estacas de todas as variedades tradicionais que lhe apareciam à frente. Através das revistas especializadas que manda vir sobretudo do Reino Unido, José Mariano vai ficando a saber das últimas ideias originais postas em prática por outros adeptos da agricultura biológica, defensores da biodiversidade e da agricultura sustentável. Um desses ovos de Colombo é o que alguns grupos andam a fazer no Rei134 v 29 DE MAIO DE 2008 no Unido para evitar o abate de galinhas poedeiras em fim de carreira. Sentado à mesa, sob as laranjeiras, o agricultor conta que, ao fim de dois anos, os aviários renovam os contingentes de poedeiras e livram-se das reformadas. Algumas são compradas a baixo preço por associações e entregues a quintas de agricultura biológica onde ganham outras cores. Num dos casos, a proprietária de uma quinta acolheu as galinhas reformadas e começou a utilizar os ovos para fazer confeitaria artesanal. O sucesso tem vindo a ser cada vez maior e galinhas e doces já apareceram bem fotografados numa das revistas que está no escritório da microquinta. José Mariano elogia o facto de uma produção artesanal do género poder crescer, aos poucos, no Reino Unido, na cozinha da própria casa onde mora a agricultora. Enquanto em Portugal «seria impossível» por ausência de legislação, lamenta, referindo que assim são impedidas as pequenas iniciativas que poderiam dar um novo fôlego ao mundo rural português. «Não percebo em que é que estão a pensar os nossos governantes.» Longe da Assembleia da República e das ameaças de fome global, a família abrirá hoje a temporada do caracol. E, há dias, as favas de José Mariano chegaram ao ponto de serem descascadas e cozinhadas. Bom apetite.