Esta despensa é no quintal

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Esta despensa é no quintal
SOCIEDADE
AMBIENTE
Esta despensa é no quintal
Fome global? As microquintas são um exemplo de auto-suficiência alimentar com cada vez mais adeptos nas cidades
POR JOÃO PACHECO TEXTO JOSÉ CARLOS CARVALHO FOTOS
L
á fora há fava saloia a crescer na
terra. Lá fora há manjericão, alface folha de carvalho e 15 variedades de batata. Há morangos, ervilha algarvia, hortelã, agriões, beterraba,
limões, laranjas, patos, galinhas e duas gansas velhas e grandes. E há peixes-mosquito,
sebes para controlar as pragas, gatos, cães,
ninhos de mulherinhas…
Cá dentro, já cheira a almoço. O chouriço
de Estremoz e o vinho branco juntaram-se ao refogado e vão atacando os narizes
de quem está na cozinha desta vivenda,
em Alhos Vedros, na periferia de Lisboa.
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Enquanto a panela espera o pato, a salada de frutas recebe os actores principais
caseiros. São morangos e foram trazidos
do quintal das traseiras pelo professor de
Biologia e agricultor José Mariano Fonseca. Cultivou-os e é também ele que os corta
agora, para dentro de uma tigela já cheia de
fruta. De avental, o repórter fotográfico da
VISÃO vai transformando em sumo muitas
laranjas colhidas no quintal. Mais tarde, as
cascas das laranjas irão parar a uma das pilhas de composto que há lá fora e acabarão
por fertilizar a terra, ajudando à produção
de mais comida.
Para este almoço de domingo são essenciais vários ingredientes nascidos e crescidos nesta microquinta urbana, no fundo uma vivenda semelhante na aparência
a tantas outras deste bairro da chamada
Margem Sul. A auto-suficiência alimentar
começa logo pelo pato com que a professora de Biologia Joaquina Mendonça está
a fazer o prato principal. Pertencia a uma
dinastia de patos nascidos na microquinta.
E aqui cresceram também as três variedades
de alface que esperam, poisadas sobre um
banco de jardim, junto à porta da cozinha.
O que não for aproveitável na salada vai para
os patos. A beterraba ainda está na terra, mas
daqui a pouco será colhida, lavada, descascada,
ralada e posta na mesa. Dois ovos de pata virão
de um cesto cheio de ovos caseiros, todos datados a lápis na casca. A microquinta tem apenas 950 metros quadrados, a contar com a casa
onde vivem José e Joaquina, de 38 e 37 anos
– com as filhas Beatriz e Sofia, de 7 e 5 anos.
tinha» que estivesse
à venda.
Há dez anos, acabaram por encontrar a casa certa em
Alhos Vedros. Foi
«um achado», diz Mariano. Podia ser pequena, mas olhando para o jardim abandonado
perceberam logo o potencial. «Só tinha ervas da nossa altura e duas laranjeiras», conta o agricultor urbano. Ao fim de dez anos,
a microquinta é uma experiência que o seu
principal autor gosta de mostrar aos vizinhos e aos passantes. Por isso a minúscula
propriedade está vedada apenas com redes.
Alguns vizinhos foram seguindo o exemplo e deixaram de usar químicos nas suas
hortas. Só isso já é uma grande conquista,
porque – além de dar aulas de Biologia e de
Geologia no Barreiro – José Mariano é um
dos formadores nos cursos da associação
portuguesa de agricultura biológica AGROBIO e escreve na revista Joaninha. Desde que
se licenciou, José tem participado em vários
projectos pedagógicos de hortas biológicas
em escolas. E faz também parte da direcção
EXEMPLO
A microquinta
não tem muros para
que o sucesso da
agricultura biológica
seja visível da rua
A área ao ar livre ainda não está totalmente
aproveitada, mas há espaço para três galinheiros onde vivem aves de raças rústicas, para um
pomar com árvores de variedades tradicionais e para uma horta biológica regada gota-a-gota. Também cabem na microquinta um
relvado, uma mesa de jardim, dois baloiços,
uma piscina de plástico e uma casinha de brincar. Tudo em ponto pequeno, muito pequeno.
CULTIVAR A AUTO-SUFICIÊNCIA
Os objectivos de José Mariano passam por
fazer agricultura biológica, nas horas vagas,
para consumo da família, tentando ser o mais
auto-suficiente possível. Queria «perpetuar
o que tinha vivido na infância», procurando
ver crescer as filhas tão próximas da natureza
como da realidade urbana da Grande Lisboa.
Foi por isso que ele e a mulher resolveram
comprar uma casa com terreno e chegaram
a concorrer para dar aulas em Almeirim, na
esperança de se apaixonarem por «uma quin-
da associação Colher Para Semear, uma rede
portuguesa de troca de sementes de variedades tradicionais que tem contornado, nos
últimos anos, a inundação dos mercados por
variedades híbridas e transgénicas.
Entre as revistas especializadas que este
agricultor-activista costuma ler contamse as britânicas Country Living e Gardener’s
World. E no pequeno escritório da casa lá estão livros sobre Darwin, sobre enxertos, sobre aves de capoeira… E algumas das obras
escritas pelos «mentores» deste agricultor
urbano, Gerald Durrel e John Seymour. Por
exemplo, O Naturalista Amador, de Durrel,
e o Guia Prático da Auto-Suficiência, de Seymour. Próxima da auto-suficiência está a
refeição de hoje e já é quase hora de ir para
a mesa. Antes, Beatriz e Sofia negoceiam
com o pai a possibilidade de dedicarem os
próximos minutos a um jogo na Internet,
acompanhadas pela prima Inês, de 12 anos,
que cá veio passar o dia. Durante a semana,
as crianças da casa não têm autorização
para jogos internéticos e é com voz divertida que José Mariano se queixa da «atracção
da tecnologia».
SOCIEDADE
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VARIEDADE Entre carne, vegetais e fruta, há aqui um pouco de tudo ao longo do ano
O pai de Beatriz e Sofia troca os chinelos
pelas galochas com que anda no quintal. Vai
lá fora buscar um último pormenor para a
salada, uma variedade de agrião que contrabalança bem as alfaces. Com a família já
reunida à mesa, são trazidos o pato e a salada. Cá estão também as azeitonas alentejanas, vindas do terreno do avô de Mariano. Já
acabaram há coisa de semanas as que foram
curtidas aqui com sal da ria Formosa, louro
e produtos da microquinta: alho, laranja aos
quartos e nêveda, uma variedade de hortelã.
FOME GLOBAL ‘ENCOMENDADA’
Enquanto nesta microquinta biológica não
faltam nem variedade nem quantidade, as
manifestações e motins contra os preços da
comida em muitos países e a ameaça de uma
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fome global têm enchido as primeiras páginas dos jornais. Os preços dos cereais e de
toda a comida dispararam, empurrados pela
especulação, pela pressão dos biocombustíveis, pelo aumento de procura de potências
emergentes como a Índia e a China e pelo
crescimento da população mundial, que vive
cada vez mais em meios urbanos. O professor-agricultor desvaloriza as notícias: «Soa-me a uma coisa encomendada, para entrarem aí os transgénicos, com grande pressa.»
A família está longe de ser completamente
auto-suficiente, mas a carne, os vegetais e a
fruta aqui produzidos evitam parte das compras que seriam necessárias. A agência das
Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) já tem chamado a atenção para
o papel importante que a agricultura urbana
poderá vir a ter, sobretudo nas grandes cidades. Mas esta microquinta de Alhos Vedros
tem tanto de despensa como de sala de aulas
e de campo de batalha pela manutenção da
biodiversidade vegetal e animal – além de
ser uma das formas como José Mariano gosta de passar os seus tempos livres.
Não foi apenas para alimentar a família
que o agricultor pôs na terra 15 variedades
de batata da última vez que a VISÃO o visitou. O microbatatal está agora muito crescido e servirá também para proteger essas
variedades de batata da extinção, fazendo-as circular e reproduzindo-as através da
rede de troca de sementes Colher Para Semear. E, por exemplo, os peixes-mosquito
que ali estão a nadar nem sequer são para
comer. Em tempos eram colocados nos
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charcos para darem conta das larvas dos
mosquitos, evitando a propagação de doenças como as febres hemorrágicas, conta
o professor. São também conhecidos por
«gambúzios» e Mariano salvou-os há dois
anos de uns charcos vizinhos, quando o calor era tanto que pareciam condenados.
Mas nem todos os animais são bem-vindos à microquinta. Enquanto um dos galos
tem direito a andar sempre à solta porque
«não se dá» com as outras aves, José Mariano refere-se aos escaravelhos arlequim
como «aqueles malvados».
AUTO-SUFICIÊNCIA
O objectivo principal
do agricultor-professor
é alimentar a família
de forma mais saudável
ADOPÇÃO DE GALINHAS REFORMADAS
Além de ensinar, o professor aproveita todas
as oportunidades para aprender com outros agricultores. Ainda há uns meses foi ao
Alentejo e andou com a mãe «pelos quintais
das velhotas», conta. «A recolher daquelas
coisas lindíssimas que já não há.» Ou seja, a
recolher sementes e estacas de todas as variedades tradicionais que lhe apareciam à
frente.
Através das revistas especializadas que
manda vir sobretudo do Reino Unido, José
Mariano vai ficando a saber das últimas
ideias originais postas em prática por outros adeptos da agricultura biológica, defensores da biodiversidade e da agricultura
sustentável. Um desses ovos de Colombo é
o que alguns grupos andam a fazer no Rei134
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no Unido para evitar o abate de galinhas
poedeiras em fim de carreira.
Sentado à mesa, sob as laranjeiras, o agricultor conta que, ao fim de dois anos, os
aviários renovam os contingentes de poedeiras e livram-se das reformadas. Algumas
são compradas a baixo preço por associações e entregues a quintas de agricultura
biológica onde ganham outras cores. Num
dos casos, a proprietária de uma quinta
acolheu as galinhas reformadas e começou
a utilizar os ovos para fazer confeitaria artesanal. O sucesso tem vindo a ser cada vez
maior e galinhas e doces já apareceram bem
fotografados numa das revistas que está no
escritório da microquinta.
José Mariano elogia o facto de uma produção artesanal do género poder crescer,
aos poucos, no Reino Unido, na cozinha da
própria casa onde mora a agricultora. Enquanto em Portugal «seria impossível» por
ausência de legislação, lamenta, referindo
que assim são impedidas as pequenas iniciativas que poderiam dar um novo fôlego
ao mundo rural português. «Não percebo
em que é que estão a pensar os nossos governantes.» Longe da Assembleia da República e das ameaças de fome global, a família
abrirá hoje a temporada do caracol. E, há
dias, as favas de José Mariano chegaram ao
ponto de serem descascadas e cozinhadas.
Bom apetite.