Contemporaneidade desconstruída
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Contemporaneidade desconstruída
CONTEMPORANEIDADE DECONSTRUÍDA Na arquitetura, os prédios deixam de ser projetados como um monolito e passam a ser decompostos. Um conjunto de elementos autônomos que se interagem, cada um com sua função. Nas artes gráficas, a mancha de texto e a própria letra é também decomposta, decupada, desfigurada até suas últimas consequências. Deconstrutivismo. Esta é a cara dos anos 90. Que filosofia norteia esta estética fundamentada nos avanços e na proliferação de computadores e softwares? Ao longo da história, algumas escolas ou correntes de pensamento chegaram a produzir manifestos por escrito. Outras foram teorizadas, analisadas e definidas por pensadores de fora do movimento. Algumas vezes é necessário o distanciamento de anos para realmente se compreeender todo o ciclo de um movimento. Muitas vezes reduz-se toda a complexidade de um comportamento social emergente a uma estética ou estilo superficialmente pré-definido. Hoje o mundo também não pode ser mais dividido em dois grandes blocos. A estética do final do séc. XX parece refletir a matriz histórica. De um lado, a negação e a reconstrução da utopia socialista. De outro, a negação da utopia da estética, transformando-se em algo fragmentado. Do ponto de vista gráfico, este é o momento da tipografia. Ela não é apenas um adereço a mais numa peça gráfica, nem muito menos apenas a transposição fria — desprovida de emoção ou conotações — de um texto. Ela não é só o desenho da forma das letras, mas também da sua organização no espaço. Ela é, como sempre deveria ser, um meio de expressão. Uma informação. Muitas vezes confusa, difícil, estranha, agressiva, mas que não deixa de ser uma informação. (Pois todos estes adjetivos são carregados de força semântica). Por um lado a nova mancha gráfica é muito interessante. Por mais contraditório que possa parecer, a medida que se deconstrói a mancha do texto, dando pesos (tipos e tamanhos) e alinhamentos diferentes às palavras, permite-se ao leitor, tal como numa obra aberta, uma participação ativa na construção da mensagem ou na reconstrução do texto, uma vez que não existe mais apenas uma ordem lógica de leitura das palavras. A ambigüidade deixa um espaço para a interpretação do leitor. O problema, como sempre, é a cópia pela cópia. A vontade de estar fazendo o que manda a moda, sem a assimilação de sua filosofia. Sem um conhecimento tipográfico profundo que norteie suas experiências. A revista americana de música alternativa Ray Gun - nome de uma arma de raio laser usada pelos heróis dos anos 50 - foi um marco nesta estética e é um exemplo de sucesso da filosofia de que a legibilidade não é mais um critério absoluto. A Ray Gun foi um fenômeno desde seu lançamento, em novembro de 92. Suas páginas complexas, fracionadas, cheias de imagens explosivas e tipografias mutantes agradaram completamente seu público cult — jovens de mais ou menos 20 anos, consumidores da MTV. Em apenas11 números sua tiragem passou de 55.000 para 120.000 exemplares. Pode-se dizer que é uma revista grunge, mas para seu criador - David Carson, o objetivo não era exatamente ser grunge, mas ser o reflexo, como todas as mídias, de uma realidade. Ser o que se passa no momento. David Carson virou modelo indiscriminado e mau copiado, mundo a fora. Seguindo este caminho, o livroTypography Now - the Next Wave, editado por Rick Poynor, virou Bíblia. Uma das polêmicas levantadas nele é que com as novas possibilidades estéticas oriundas do computador, surge uma reavaliação da feiura ou da falta de arte. Num dos depoimentos, o designer americano Barry Deck, diz que o ponto de partida para o design de uma letra não são mais as tradicionais noções de legibilidade ou elegância, mas a sua grande subjetividade e arbitrariedade narrativa. A paternidade deste estilo também já foi dada ao suíço Wolfgang Weingart que teria partido da sistematização mais pura e racional, para chegar ao caos. (Há quem diga que seu trabalho não é caótico, mas complexo). Ele disse que criou um estilo tipográfico muito pessoal, uma “expressão particular”. “Uma pessoa descobre o caos, outra vem copiá-lo, transforma em estilo, espalha-se pelo mundo, vira internacional e impessoal.” Mas avisa: “Em primeiro lugar é bom deixar claro que há lugares em que é possível usar o caos — como um poster — e outros em que não é possível, como um catálogo”, e diz que certos produtos são “contra-informativos” ou “anti-tipográficos”. Mas contemporiza: “Há 25 anos era difícil ler esse tipo de tipografia porque era, aos olhos daquele tempo, uma novidade. Hoje, todo mundo consegue ler com facilidade, ninguém diria que é um caos”. São as ambigüidades dos anos 90. Trazendo à tona uma nova lógica racional e digital que é ao mesmo tempo caótica. O atual desenvolvimento tecnológico permite a realização de qualquer coisa (de forma concreta ou virtual). E permite a qualquer pessoa o acesso à esta produção. A tipografia, até então um tópico reservado aos bibliófilos e experientes designers passou a fazer parte do discurso popular. A indústria da editoração eletrônica e a febre da computação desenvolveram interfaces simplificadas para usuários leigos em informática mas também leigos em design. As tecnologias para geração de textos e misturas de palavras com imagens tornaram-se tão poderosas quanto acessíveis. Surgiram novos desenhos de fontes e novas maneiras de usá-las. Qualquer um pode escolher, ou até mesmo criar tipos, diagramar textos e finalmente imprimir seu produto, domesticamente. Até há pouco, ou nos contentávamos com o que era oferecido pelos catálogos de fotocomposição e fotoletra ou, com estiletes e nanquim, nos dedicávamos a um lento e minucioso trabalho de retocar à mão cópias fotogreaficas super ampliadas. Criar um alfabeto, então, era uma missão para poucos iniciados. Aplica-se alguns filtros numa fonte tradicional dentro do Ilustrator ou do Freehand, transfere-se o resultado para o Fontographer e tem-se uma nova fonte. Se hoje ficou mais fácil, para quem realmente quer, criar um alfabeto novo (ainda que partindo de alfabetos existentes), toda uma geração de profissionais está sendo formada, sem passar pela prancheta, pelo estilete ou nanquim. Para estes, modificar uma letra, redesenhar um alfabeto ou criar uma família tipográfica pode parecer totalmente desnecessário, ou pior, excessivamente banal. Tanto faz escolher a Times ou a Template, quando não deforma-se gratuitamente uma elegante Bodoni. Nos dois casos estamos facilitando a mesmice e correndo o risco da mediocridade. Antigamente o desenho de uma fonte nova demorava mais ou menos um ano. As vezes dois ou três. Tomavam-se medidas exatas de cada uma das partes dos caracteres. Os traços verticais, os horizontais, as serifas, as hastes finíssimas mas passíveis de serem reproduzidas, a proporção em que a altura da letra redonda excedia as retas etc. Seguiam-se normas estritas sobre espacejamento e o alinhamento. Hoje desenha-se um novo alfabeto em um dia. Estamos vivendo uma grande invasão de novas tipografias. Em parte, pela facilidade e baixo custo de se criar fontes utilizando computadores pessoais. Em parte pela variada oferta das grandes empresas especializadas. Os recentes alfabetos começaram a reproduzir os princípios da diagramação deconstrutivista. São cortados, deformados e as vezes sujo. Mas na verdade estas tipografias raramente são autenticamente novas. E os estudiosos de tipografia, em sua maioria, afirmam que quanto mais autênticas elas são, menos possibilidades têm de sobreviver no futuro. Ainda que funcionem como um símbolo da cultura visual de hoje, tudo indica que as letras moderninhas não terão presença na próxima década. Devem ficar envelhecidas e excessivamente datadas como a Avant Garde (1967) muito mais desgastada que a Futura (1928), na qual foi inspirada, que guarda os traços art-deco sem ser muito característica do estilo, por que também foi baseada em proporções clássicas. As novas tecnologias facilitaram a recuperação de importantes acervos da cultura humana. Nos últimos 20 anos os designers puderam revisitar a histórica herança tipográfica usando as tecnologias digitais e fotográficas para gerar interpretações de fontes do passado. Independentemente da possibilidade do designer de hoje poder desenhar seus próprios alfabetos, ele tem à sua disposição, pelas grandes empresas de fontes eletrônicas, clássicos da tipografia que há pouco tempo só existiam em livros. Para os puristas, o que existe de realmente bom, entre as novas tipografias, na verdade são recriações de velhos alfabetos. A Trajan, da Adobe Systems, por exemplo, é uma tipografia inspirada nas letras inscritas na base da Coluna Trajana do Forum Romano, em comemoração às vitórias do imperador romano Trajano (112 - 113 DC). Mesmo quando se parte de um alfabeto conhecido, deve existir todo um trabalho criterioso de digitalizar antigos desenhos, fazer as correções necessárias, criar números ou caracteres que não existiam originalmente, desenhar as versões bold e italic, de forma que as novas letras possam efetivamente virar uma fonte. Mesmo as tipografias de estética moderninha, possivelmente efêmeras, são geralmente criadas a partir da DEconstrução, e REconstrução de antigos alfabetos. Não se deve escapar, assim, de um sólido conhecimento das bases tipográficas. Ou no mínimo, possuir um vasto acervo de tipos. A Dead History é uma letra que foi descrita no catálogo da Emigre (revista que se converteu em produtora de tipos) como a marca do final de uma era de fontes produzidas tradicionalmente. Ela personificaria uma nova atitude a respeito da criação tipográfica, caracterizada pelo desenho de fontes híbridas que são fundamentalmente o resultado da capacidade do computador de funcionar como perfeita ferramenta de montagem. Esta letra foi criada em 1990 por Scott Makella juntando partes da Centennial (da Linotype) e da Vag Ronded (Adobe), passando por vários redesenhos até ser licenciada para a venda em 1994. Melhor ou pior — de qualquer forma o computador gerou uma nova estética. Nevelly Brody, tipógrafo mais importante da década de 80, confessou, há anos, ser impossível não se deixar seduzir pela estética da máquina ao se iniciar na utilização do computador. Se no início as formas e imagens deveriam ser, propositadamente, mal definidas, evidenciando sua composição por pontos digitais, hoje isto não é mais preciso. Hoje explora-se as possibilidades que o computador oferece, que antes seriam impossíveis de ser trabalhadas como as distorções e sobreposições. É a perfeição do sujo, cortado, quebrado. Feio? lDeconstrutivismo, Cutting Edge, Pós-modernismo, Estética grunge. Podemos dar vários nomes e várias origens para os nomes que tentam estudar esta estética. Martin Solomon, num artigo publicado na Argentina chamou de Maneirismo Tipográfico, fazendo alusão a um estilo artístico do século XVI. O termo maneirismo foi criado no séc. XX com o fim de descrever as manifestações, principalmente italianas que se sucederam entre os anos 1520 e 1600. Começou com a pintura de Rafael que modificando as convenções de escala, podia fazer o elemento principal parecer secundário e extende-se aos trabalhos deste período que não respondiam aos cânones renascentistas ou barrocos. O diferencial consistia em transgredir de maneira consciente as regras estabelecidas pela arte clássica (assim chamada durante o Renascimento). Porém esta postura pressupunha um observador educado, sem o qual a proposta não teria sentido. A característica principal de uma peça de arte maneirista é seu interesse pela figura humana muito musculosa, que adota posições extremas, distorcidas, alongadas. A composição é pouco clara e o sujeito principal se encontra renegado a um segundo plano. Conhecido, também, como a arte dos artistas neuróticos — Miguel Angel, Tinturettoe El Greco. Maneirismos são modos de distorção, manejo, modificação, transgreção de parâmetros estabelecidos. No maneirismo gráfico, quanto a harmonia e legibilidade das letras. Para Solomon distorcer caracteres é um recurso tão antigo como a história da tipografia, e a origem do excesso gráfico também remonta de séculos atrás, firmando-se na nossa cultura em função das facilidades ao acesso tecnológico. Distorção Tipográfica é o nome que outros estudiosos dão a este Deconstrutivismo, em geral reclamando que esta forma expressão carece de um fundamento sólido... Assim como em qualquer momento de modismo, para um trabalho ser realmente consistente, requer um profundo comhecimento (neste caso tipográfico) que o sustente. O resto vira uma massa amorfa que segue uma receita pronta... Ainda existe no mundo lugar para a dicotomia, ou só pluralidade? Os novos mercados asiáticos, latino-americanos e o leste europeu provocam surpresas, desestabilizacões. Não mais capitalismo X socialismo, mas capitalismos e socialismos buscando novos caminhos. Hand-made ou ready-made? A polêmica artistico-artesanal X industrial, e intuitivo-poético X racional reaparece. Ela é na verdade muito antiga. Na história do design, já no início do século tinha seus representantes em Morris (artesanal) X Cole (industrial). Para Vanni Pasca, teórico italiano, uma questão que sempre reaparece, não está solucionada, e talvez esteja nesta dicotomia a própria essência do design. Deconstrutivismo — não “des”. Que filosofia norteia esta estética? O sentido está na contradição inserida no próprio nome, com toda a carga semântica e semiótica que carrega. O sistema produtor da mensagem gráfica — um dos fetiches da sociedade capitalista se desmitifica enquanto, em vez de produzir sistemas, os destrói. Crise que se expressa na linguagem funcional do computador e na linguagem fusional do deconstrutivismo. Onde o computador é a arma da destruição da leitura, ao mesmo tempo que instrumento de sua construção. Os radicalismos tendem a se acalmar. As verdadeiras transformações são absorvidas pelo cotidiano, e novamente transformadas. O que é meramente superficial passa. As bases clássicas ficam. Quantos designers gráficos estão se destacando neste momento por fundamentarem seus trabalhos nas bases clássicas e nas tradições históricas e regionais?
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