EDITORIAL Diversas modalidades de apreensao do sujeito e

Transcrição

EDITORIAL Diversas modalidades de apreensao do sujeito e
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
,
EDITORIAL
Memorándum: memoria e historia em psicología
Número 14
Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo
Esta edigao da Memorándum propoe contribuigoes acerca de diversas maneiras de
considerar o sujeito humano, ao longo do tempo: trata-se de teorías de longa duragao e
que exerceram influencias inclusive na psicología contemporánea: a teoría médica dos
temperamentos originada na cultura grega e utilizada até o século XIX {A teoría dos
temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX de Al-Chueyr Pereira Martins,
Carvalho da Silva e Mutarelli^; a concepgao do cortesao delineada pela filosofía moral que
na primeira Idade Moderna buscara definir o sujeito a partir de determinado papel social
(O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge de
Míssio); a teoria psicanálitica em seus primordios na cultura brasileira dos inicios do
século XX {A introdugao das idéias relativas á psicaná/ise de criancas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos de Ferreira Abrao). O artigo A pessoa como sujeito da experiencia.
Contribuigoes da fenomenología del Mahfoud e Massimi evidencia a contri bu ¡gao da
Fenomenología á discussao sobre os conceitos de pessoa e experiencia na Psicología
contemporánea. Outro aprofundamento da contribuigao da fenomenología, no diálogo
entre Husserl e Merleau Ponty, é o artigo "O serselvagem"e a hyletica fenomenología A
heranga filosófica de "O visível e o invisíve/"de Ales Bello.
O trabalho Ampliando os horizontes da racionalidade. Perspectivas fenomenologicas e
cristológicos trinitarias sobre filosofía da religione e mística de Manganaro evidencia a
necessidade, presente na cultura contemporánea, de um empenho teórico capaz de
articular o nexo entre dois saberes presentes de modo conflituoso na tradigao ocidental o saber filosófico e o saber teológico - sendo ambos importantes para a compreensao do
sujeito humano.
Urna modalidade de apreensao do sujeito no seu contexto comunitario de pertenga é
proposta na pesquisa relatada em O comum em urna comunidade quilombola baiana no
século XXIe o terreiro de candomblépor Rabinovich.
Já o artigo Memorias da Pós-Graduagao em Psicología no Brasil: a Psicología Social da
PUC-SP de Maria do Carmo Guedes visa contribuir á reconstituigao da memoria e da
historia de urna comunidade académica de destaque no contexto da Psicología brasileira.
Concluí esta edigao a resenha do livro O poder e a cruz. Colonizagao e redugoes dos
jesuítas no Brasil (Massimi, Milao, 2008) por Colombo.
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
EDITORIAL
Memorándum: memory and history in psycology
Number 14
Diverse modes of apprehending the subject and diverse
study methods
This Memorándum edition proposes diverse ways of considering the human subject,
throw the time, having these theories long duration and influence even in
contemporaneous psychology: the physician theory of temperaments, originated in Greek
culture and used until the 19th century (The theory of temperaments: from the Corpus
Hippocraticum to the 19th century of Al-Chueyr Pereira Martins, Carvalho da Silva e
MutarelNy); the courtier figure designed by the moral philosophy of the first Modern Age
witch searches to define the subject from a determined social part (The moral courtier of
Baldassare Castiglione and the ordinary of Eustache du Refuge of Míssio); the
psychoanalytical theory in its beginning in the Brazilian culture (The introduction of ideas
relating to the children psychoanalysis in Brazil through Arthur Ramos's work of Ferreira
Abrao); the article The person as subject of experience: contributions of phenomenology
of Mahfoud and Massimi presenting the contribution of Phenomenology to the discussion
about the concepts of the person and the experience in contemporaneous psychology.
Another deepening of the phenomenological contribution relating to the dialogue between
Husserl and Merleau-Ponty is in the article "The wild Being" and the phenomenological
hyletic: the philosophical inheritance of "The visible and the Invisible"'of Ales Bello.
The work Enlarging the horizons of the rationality: Phenomenological and Trinitarians
Christological perspectives about religión philosophy and mystics of Manganaro shows
the need, present in the contemporaneous culture, of an theoretical effort capable of
articulating the connection between two knowledges present in a conflict way in the
occidental tradition: the philosophical knowledge and the theological knowledge - being
both important to the comprehension of the human subject.
A mode of apprehending the subject in his communitarian context of belonging is
proposed in the research related in Whats common in an afro descendent community of
Bahía in the 21th century and the "Terreiro de Candomblé"by Rabinovich.
Now the article Memories of Gradúate Psychology courses in Brazil: the course of Social
Psychology of the PUC-SP intends to contribute to the reconstruction of the history of an
academic community of distinction in the Brazilian psychology context.
This edition is concluded with a review of the book The power and the cross: Colonization
and reductions of the Jesuits in Brazil (Massimi, Milán, 2008) by Colombo.
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editors
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
,-,
Equipe/ Editorial Board
Editores
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Marina Massimi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Consultores externos AdHocda Memorándum 14
>1¿///0cConsultants of Memorándum 14
Ana Lucia
Universidade Federal de Uberlándia
Brasil
Ana Maria J. Vilela
Universidade Estadual Rio de Janeiro
Brasil
André Luis Masiero
Pontificia Universidade Católica MG Brasil
Brasil
Aparecida Mitsuko Antunes
Pontificia Universidade Católica SP
Brasil
Carmen Lucia Cardoso
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Cristina Lhullier
Universidade Caxias do Sul
Brasil
Cristiano A. Roque Barreira
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Érika Lourenco
Universidade Federal de Ouro Preto
Brasil
Francisco T. Portugal
Universidade Federal Rio de Janeiro
Joao B. Madeira
Universidade de Sao Paulo
Brasil
José Paulo Giovanetti
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Leda V. Tfouni
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Márcio Luis Fernandes
Instituto Teológico Curitiba
Brasil
Maria do Carmo Guedes
Pontificia Universidade Católica SP
Brasil
Marilia Ancona Lopes
Pontificia Universidade Católica SP
Brasil
Mauro Amatuzzi
Pontificia Universidade Católica Campiñas
Brasil
Paulo R. A. Pacheco
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Paulo J. Carvalho da Silva
Pontificia Universidade Católica SP
Brasil
Raquel Martins de Assis
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
RaúlFernandes
Faculdade Engenharia Industrial SBC
Brasil
Regina H. F. Campos
Pontificia Universidade Católica SP
Brasil
Saulo Araújo
Universidade Federal de Juiz de Fora
Brasil
Conselho Editorial / Advisory Board
Adalgisa Arantes Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Alcir Pécora
Universidade de Campiñas
Brasil
Angela Ales Bello
Pontificia Universitas Lateranensis
Italia
Aníbal Fornari
Universidad Católica de Santa Fé
Universidade Católica de La Plata
Argentina
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Anna Unali
Universitá La Sapienza
Italia
Antonella Romano
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
Belmira Bueno
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Caio Boschi
Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais
Brasil
Celso Sá
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Brasil
Danilo Zardin
Universitá Cattolica Sacro Cuore
Italia
Ecléa Bosi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Francesco Botturi
Universitá Cattolica Sacro Cuore
Italia
Franco Buzzi
Universitá Cattolica del Sacro Cuore
Italia
Gilberto Safra
Universidade de Sao Paulo
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Helio Carpintero
Universidad Complutense
España
Hugo Klappenbach
Universidad San Luis
Argentina
Isaías Pessotti
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Janice Theodoro da Silva
Universidade de Sao Paulo
Brasil
José Carlos Sebe B. Meihy
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Luís Carlos Villalta
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Luiz Jean Lauand
Universidade de Sao Paulo
Brasil
María Armezzani
Universitá degli Studi di Padova
Italia
María do Carmo Guedes
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
María Efigénia Lage de Resende
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
María Fernanda Diniz Teixeira Enes
Universidade Nova de Lisboa
Portugal
Martine Ruchat
Université de Genéve
Suiss
Michel Marie Le Ven
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Monique Augras
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Brasil
Olga Rofrigues de Moraes von Simson
Universidade de Campiñas
Brasil
Pedro Morande
Universidad Católica de Chile
Chile
Pierre-Antoine Fabre
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Sadi Marhaba
Universitá degli Studi di Padova
Italia
William Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Conselho Consultivo / Board of editorial consuitants
Adone Agnolin
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Ana Maria Jaco Vilela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
André Cavazotti
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Arno Engelmann
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Bernadette Majorana
Universitá degli Studi di Bergamo
Italia
César Ades
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Davide Bigalli
Universitá degli Studi di Milano
Italia
Deise Mancebo
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
Edoardo Bressan
Universitá degli Studi di Milano
Italia
Eugenio dos Santos
Universidade do Porto
Portugal
Giovanna Zanlonghi
Universitá Cattolica del Sacro Cuore
Italia
José Francisco Miguel Henriques Bairrao
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Marcos Vieira da Silva
Universidade Federal de Sao Joao del Rei
Brasil
Maria Luisa Sandoval Schmidt
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Marisa Todeschan D. S. Baptista
Universidade de Sao Marcos
Brasil
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos
métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
,
'
Mitsuko Aparecida Makino Antunes
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Nádia Rocha
Universidade Federal da Bahia
Brasil
Rachel Nunes da Cunha
Universidade de Brasilia
Brasil
Raúl Albino Pacheco Filho
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Vanessa Almeida Barros
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Equipe Técnica / Technical Team
Márcia Regina da Silva - Bibliotecária - Universidade de Sao Paulo - Biblioteca Central Prefeitura Campus Ribeirao Preto
Maria Cristina M. Ferreira - Bibliotecária - - Universidade de Sao Paulo - Biblioteca
Central - Prefeitura Campus Ribeirao Preto
Apoio técnico da Professora Cristina Dotta Ortega do Curso de Ciencias da Informagao e
Documentagao da USP campus Ribeirao Preto.
Claudia Coscarelli Salum - Universidade Federal de Minas Gerais
Apoio / Supporteó by
* LAPS - Laboratorio de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pos
Graduagao em Psicologia - UFMG
* Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas FaFiCH - UFMG
* Núcleo de Epistemología e Historia das Ciencias Miguel Rolando Covian USP/Ribeirao Preto
* Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Faculdade de Filosofía, Ciencias e
Letras - USP/Ribeirao Preto
* Biblioteca Prof. Antonio Luiz Paixao - FaFiCH - UFMG
A revista Memorándum é urna iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos em Psicologia e
Ciencias Humanas: Historia e Memoria",
vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e Ciencias
Humanas/UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofía,
Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP
The electronic scholarly journal Memorándum is an initiative of the Research Group
"Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria",
linked to Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e Ciencias
Humanas/UFMG and to Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de
Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
A teoría dos temperamentos: do corpus hippocraticum a o
século XIX
The theory of temperaments: from the Corpus hippocraticum to the 19 th century
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins
Paulo José Carvalho da Silva
Sandra Regina Kuka Mutarelli
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir a teoria dos temperamentos, partindo de informagoes
contidas em alguns tratados do Corpus Hippocraticum e contribuigoes de Galeno, bem
como alguns de seus desdobramentos. Segundo essa doutrina, a condigao de saúde
depende do equilibrio de humores corpóreos, sua combinagao ocasiona os
temperamentos e existem relagoes entre o caráter do homem, temperamento, aparéncia
física e afetos. A teoria humoral tinha tanto aspectos médicos propriamente ditos como
psicológicos. Alguns autores afirmam que no século XV ocorreu a decadencia dessa
teoria, mas ela esteve presente nao apenas na Idade Media (por exemplo, em Tomás de
Aquino), como em obras do inicio da Idade Moderna (como de autores jesuítas), e
persistiu nos regimes médicos do século XVIII. Apesar de ter sido abandonada pela
maioria dos médicos no século XIX, até hoje sao encontrados resquicios da mesma.
Palavras-chave: temperamentos; Corpus Hippocraticum; Galeno.
Abstract
This paper discusses the theory of temperaments, starting from some of the treatises of
the Corpus Hippocraticum and studying Galen's contributions, as well as some of its
developments. According to that doctrine the state of health depends on the balance of
the bodily humours. Their combination produces the human temperaments and there is a
relationship between each person's temperament, character, physical appearance and
affections. The humoral theory concerned both medical and psychological conditions.
Some authors claim that this theory declined in the 15th century. However, it may be
found not only in the Middle Ages (in Thomas Aquinas' work, for instance) but also in
works of the beginning of the Modern Age (such as the Jesuit authors) and remained in
use in the medical regiments of the 18th century. Although it was abandoned by most
physicians during the 19th century, traces of the theory of the temperaments can be
found even nowadays.
Keywords: temperaments; Corpus Hippocraticum; Galen; medicine; psychology.
1. Introdugao
A concepgao dos temperamentos, que é parte integrante da tradigao médica hipocráticogalénica, esteve presente na medicina ocidental durante muitos séculos a partir da
Antigüidade, tendo inclusive implicagoes para a "psicología". As primeiras informagoes
acerca concepgao de humores corpóreos que determinam o temperamento e sua relagao
com a saúde e doenga de que se tem registro estao em diversos tratados que constituem
o chamado Corpus Hippocraticum ou Coiecao hipocrática. Posteriormente, ainda na
Antigüidade, tais concepgoes aparecem na obra Claudio Galeno (129-199) (1). Galeno,
além de ter realizado estudos em aritmética, lógica e gramática, que caracterizavam urna
formagao em filosofía, teve um treinamento em medicina, tanto no ámbito teórico quanto
prático, que se iniciou quando ele tinha 17 anos (Dean-Jones, 1993). Há inclusive
estudos sobre a "psicología" de Galeno (Singer, 1997). Como muitas das concepgoes de
Galeno se basearam nos conhecimentos encontrados em tratados do Corpus
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Hippocraticum, costuma-se referir a essas idéias como constituindo a medicina galénica
de base hipocrática ou medicina hipocrático-galénica.
Em um dicionário médico do século XIX (Dechambre, 1864) aparece a idéia de que o
"humorismo" (2) originou-se a partir das obras de Hipócrates e se manteve até o século
XV (Brochin, 1886). No mesmo dicionário, (Dechambre, 1864) considera-se o século XV
como o século da decadencia do reino de Galeno.
O objetivo desta pesquisa é inicialmente discutir a teoria dos temperamentos, a partir de
informagoes contidas em tratados do Corpus e ñas obras de Galeno, bem como alguns de
seus desdobramentos, procurando averiguar se as afirmagoes ácima sao procedentes.
Serao levados em conta tanto os aspectos médicos propriamente ditos como os
psicológicos.
2. Humores, saúde, doenca e cura
A conotagao original da palavra "humor", durante a Antigüidade greco-romana, era de
alguma coisa úmida, relacionada a um líquido ou fluido. A palavra latina "humore"
significa bebida, líquido corporal ou líquido de qualquer especie. Gradualmente a palavra
"humor" passou a indicar urna disposigao de espirito, determinada a partir da distribuigao
e quantidade dos humores do corpo humano. Urna pessoa bem humorada seria aquela
que tivesse bons humores (bons líquidos) em seu interior (Martins, Martins, Toledo &
Ferreira, 1997).
A teoria humoral, a idéia de que a saúde está relacionada ao equilibrio dos humores
corporais, ou seja, que eles estejam ñas quantidades certas e nos lugares corretos e que
a doenga é decorrente do excesso, falta ou acumulo de humores em lugares errados, é
atribuida normalmente a Hipócrates, um médico que teria vivido durante a Antigüidade
por volta do século IV a.C. (3) e escrito urna serie de obras que constituem o chamado
Corpus Hippocraticum ou Coiecao hipocrática.
Durante muito tempo a autoría das cerca de setenta obras que constituem o Corpus
Hippocraticum ou Coiecao hipocrática permaneceu como um enigma para a historia
médica. Entretanto, essas obras tém um estilo diferente e tratam de assuntos diferentes
abordando tanto a teoria como a prática médica incluindo temas como cirurgia,
ginecología, medicina interna, higiene e método terapéutico. Algumas vezes, textos sobre
um mesmo assunto apresentam concepgoes diferentes e contraditórias. Estudos feitos
por filólogos indicam que as varias obras que constituem o Corpus foram escritas durante
um período vasto que abarcou varios séculos, sendo que sua parte mais antiga data de
400 a 450 a.C. Essas e outras evidencias mostram nao se tratar da contribuigao de um
único autor mas muito provavelmente de varios, pertencentes a escolas diferentes como
as de Agrigentum, Crotón ou Cnidos (Coulter, 1975; Mutarelli, 2006). É possível que
algumas dessas obras, que estao dentre as antigás, sejam de autoría do Hipócrates
mencionado por Platao e Aristóteles.
Em diversos tratados que integram a Coiecao hipocrática sao mencionados os humores e
suas relagoes com a saúde e doenga. Entretanto, as concepgoes apresentadas diferem
em determinados aspectos.
Algumas obras como os "Aforismos", "Prognósticos" e "Régimen das doengas agudas",
que Harris C. Coulter incluíu no grupo I (4), consideram a existencia de um número
indefinido de humores, que a doenga é o resultado do isolamento de um deles e que a
cura se dá a partir do cozimento do humor que estava ¡solado. Ao médico cabe somente
observar os síntomas e examinar as secregoes e excregoes. A terapéutica recomendada
consiste em dieta, exercícios, físicos, banhos e aplicagoes (que promovem o cozimento) e
laxantes (que promovem a evacuagao). Outras obras como, por exemplo, "Afeccgoes" e
"Doengas internas", que Coulter incluiu no grupo I I , consideram também que a cura se
dá pelo cozimento do humor e prescrevem a terapéutica dos contrarios, ou seja, a
utilizagao de substancias com propriedades contrarias áquelas dos humores. Se o doente
está com excesso de fleuma que é fria e úmida deve ingerir alimentos "quentes" com
condimentos como a pimenta, por exemplo. Nos tratados "Ares, aguas e lugares", "A
doenga sagrada" e "A natureza do homem", que Coulter incluiu no grupo I I I , sao
mencionados somente quatro humores (sangue, fleuma, bilis negra e bilis amarela).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,„
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Estes, se estao em equilibrio, resultam em saúde, mas se ocorrer a falta ou excesso de
um deles, resultará a doenga. Neste caso, deve-se oferecer ao doente urna substancia
com qualidade oposta ao humor, elemento ou qualidade que está causando a doenga.
Praticamente nao há mengao ao "cozimento de humores". Há urna preocupagao em
diagnosticar a causa da doenga (como recomendava Aristóteles) mas nao se faz um
prognóstico. Os tratados "Medicina antiga" e "Arte", incluidos por Coulter no grupo IV,
consideram que o organismo é constituido por um número indefinido de humores e
criticam a terapéutica da cura pelos contrarios (Coulter, 1975; Mutarelli, 2006).
Defendem que o único modo para se chegar ao conhecimento legítimo dos processos
mórbidos é a partir de sinais externos ou analogía direta com o exterior, de modo
análogo ao que aparece no Timeude Platao (Cornford, 1952; Mutarelli, 2006).
Embora a idéia de que existe um número definido de humores (quatro) nao aparega em
todas as obras do Corpus, mas sim específicamente naquelas integram o Grupo III (como
por exemplo, no Sobre a Natureza do Homem), o importante é que essa idéia esteve
presente durante muitos séculos na tradigao médica ocidental. No tratado que
mencionamos ela aparece de modo bastante claro:
O corpo do homem tem dentro dele sangue, fleuma,
bilis amarela e bilis negra. Eles constituem a natureza
desse corpo e por eles surge a dor ou a saúde. Ocorre a
saúde mais perfeita quando esses elementos estao em
proporgoes corretas um para com o outro e em relagao
á composigao, poder e quantidade, e quando eles estao
perfeitamente misturados. Sente-se dor quando um
desses elementos está em falta ou excesso, ou se ¡sola
no corpo sem se compor com todos os outros.
(Hipócrates, séc. IV a. C. /1999, p. 406).
De acordó com Martins e outros (1997) muito provavelmente a concepgao de quatro
humores fundamentáis relacionados as quatro qualidades (a térra é fria; o ar é seco, a
agua é úmida e o fogo é quente) que está presente no tratado Sobre a Natureza do
Homem e em outros que constituem o Corpus Hippocraticum surgiu a partir da teoria dos
quatro elementos de Empédocles e depois foi aproveitada por varios outros autores,
assumindo importancia na medicina ocidental. Num dos fragmentos que restaram do
"Poema sobre a natureza" de autoría do pré-socrático está: "A partir da agua e térra, ar
e fogo misturados surgiram formas e cores de todas as coisas mortais" (Kirk, Raven &
Schofield, 1983, p. 285).
Conforme a visao que aparece nos tratados a que nos referimos no parágrafo anterior, a
saúde e a doenga estariam relacionadas á alimentagao, já que esta contribuiría para a
composigao dos humores. Os alimentos precisariam ser transformados em substancias
corporais e isso acontecería através de seu "cozimento", digestao ou "maturagao". Os
humores seriam cozidos através do calor natural do organismo ou através da febre.
Nesse sentido, a febre seria um sinal positivo de reagao do organismo. Assim, a doenga
nao seria produzida por algum agente que viesse do exterior. No caso das epidemias,
elas seriam causadas por mudangas climáticas que afetavam varias pessoas ao mesmo
tempo. (Martins e outros, 1997).
A. Dechambre considerava a concepgao de temperamento que aparece ñas obras
hipocráticas muito geral e de natureza diversificada dependendo do individuo. Ele
comentou:
O médico deve consultar a natureza [...]; mas as
naturezas sao diversas; e esta diversidade nao é senao
urna analogía distante daquela que pode servir como
base para a determinagao dos temperamentos tal como
eles foram compreendidos mais tarde, quero dizer, os
temperamentos determinados, distintos uns dos outros
e reconhecíveis por caracteres exteriores (Dechambre,
1888, p. 312).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,,
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,,,
3. A teoría dos temperamentos
Na maior parte das obras que constituem o Corpus Hippocraticum a medicina é
apresentada como urna arte ou técnica, um conhecimento empírico, ou seja, adquirido
pela observagao e tentativa. Apesar de existir urna teoria por tras dos conhecimentos
apresentados, geralmente essas obras nao procuravam explicar os sintomas através de
causas internas, por exemplo (Martins e outros, 1997). Esta visao estava de acordó com
a doutrina de Platao segundo a qual nao se podia obter um conhecimento exato das
coisas que pertencem ao mundo material tais como os fenómenos da natureza pois, para
ele, as coisas estavam sempre mudando. Se olharmos para urna árvore, por exemplo, a
cada momento ela estará diferente porque terá caído alguma folha, brotado alguma flor.
Assim, para Platao, nao era possível obter um conhecimento verdadeiro a partir da
percepgao (Cornford, 1989; Cornford, 1952). Entretanto, tal visao sobre o conhecimento
do mundo se modificou com a proposta de Aristóteles (5). Para ele, era possível sim
obter um conhecimento seguro do mundo material através do estudo das causas dos
fenómenos, pois mesmo que no mundo sublunar as coisas se modificassem, as causas
dos fenómenos seriam sempre as mesmas (Aristotle, século IV a.C/1936; Aristotle,
século IV a.C. /1952a, século IV a.C. /1952b). Em urna de suas obras Aristóteles assim
se expressou:
O objetivo de nossa investigagao é o conhecimento, e
as pessoas nao pensam ter conhecido urna coisa até
terem captado o "porqué" déla - que é captar sua
causa primaria. Portanto, é claro que também nos
devemos fazer isso com relagao ao surgimento e
desaparecimento e todo tipo de mudanga física para
que, conhecendo seus principios, possamos tentar
referir a eles cada um de nossos problemas. (Aristotle,
1952b, pp. 18-22, [ I I , 3, 194b]).
De acordó com Aristóteles, a medicina deveria ser um sistema filosófico racional para
constituir um conhecimento. Nesse sentido, sua filosofía ofereceu urna base geral para a
medicina racionalista. Ele aperfeigoou a doutrina dos quatro elementos de Empédocles,
relacionando-os as quatro qualidades básicas (quente-frio, úmido-seco) e associou as
qualidades e elementos com os quatro humores e alguns órgaos (Martins e outros,
1997). O sangue, que é quente e úmido, podia ser associado ao ar; a fleuma que é fria e
úmida, podia ser associada á agua; a bilis negra, que é fria podia ser associada á térra,
enquanto que a bilis amarela que é "ardente", podia ser associada ao fogo.
Entre 350 e 250 a.C. varios médicos tais como Diocles, Praxágoras e Mnesitheos
trabalharam dentro dessa visao. Eles reforgaram a relagao entre os quatro humores, os
quatro elementos e as quatro qualidades básicas, procuraram as causas das doengas
relacionando-as a perturbagóes dos humores e prescreveram tratamentos baseados na
teoria de modo mais sistemático do que vinha se fazendo até entao. (Martins e outros,
1997).
A medicina racionalista de base hipocrática atingiu seu apogeu com as contribuigóes de
Claudio Galeno. Este deixou um volume de obras bastante grande e, apesar de em
muitas délas criticar Aristóteles, adotou varias de suas concepgóes. Além disso, referia-se
respeitosamente a Hipócrates e Platao (Galeno, De Usu Partibum 71/266; De Naturalibus
II 189; De Placitis Hippocratis et Platonis 260 citados por Dean-Jones, 1993; Singer,
1997). Por exemplo, a profissao de médico deveria consistir na preservagao daquilo que
está de acordó com a natureza e eliminagao daquilo que nao está, que era a opiniao de
Hipócrates que deveria ser seguida (Galeno, Venae Sectione Adversus Erasistratum XI
159-66, citados por Dean-Jones, 1993). Como Platao, Galeno admitía a alma tripartida
(6).
O médico de Pérgamo aceitava os quatro elementos de Empédocles, as qualidades que
constituiriam os quatro humores: a bilis amarela (quente e seca); o sangue (quente e
úmido), a fleuma (frió e úmido) e a bilis negra (fria e seca) que aparecem em diversos
tratados do Corpus, como A natureza do homem, por exemplo. A partir dessas
concepgóes elaborou a "teoria dos temperamentos". Ele assim se expressou:
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoria dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,,,
9.1 Vamos retornar ao argumento. Um único corpo
homoiomerous (7) é formado pelos quatro elementos,
sendo que eles estao misturados uns com os outros; e
se o corpo vai ser sensitivo ou intensivo depende da
natureza da mistura, e de modo semelhante todas as
propriedades individuáis em ambas as classes seguem
a natureza da mistura. Assim, de acordó com sua
qualidade peculiar surge o osso ou carne ou arteria ou
ñervo. Mas também a propriedade distintiva de cada
tipo de osso, carne, etc. depende da qualidade peculiar
da mistura: em um leao a carne, por assim dizer, é
mais seca e quente; no carneiro é mais úmida e fria; a
do homem está entre essas duas; e de um individuo
humano, a carne de Dion, como ocorre, é mais quente,
porém a de Phillon é mais fria. Consequentemente,
todas as diferengas dos corpos homoiomerous sao: (a)
simples - como as de varios elementos: mais quentes,
mais frios, mais úmidos, mais secos, e (b) compostas,
mais quatro: mais seco e ao mesmo tempo mais frió,
mais quente e ao mesmo tempo mais úmido; mais urna
terceira, mais seco e ao mesmo tempo mais quente; e
urna quarta, mais frió e ao mesmo tempo mais seco.
No topo dessas [oito] está, antes de mais nada, a
melhor misturada.
9.2 O argumento completo sobre estes assuntos foi
desenvolvido suficientemente em meu tratado Sobre os
temperamentos. [...] (Galeno, De Constitutione Artis
Medicae, citado por Dean-Jones, 1993, p. 99).
Conforme Galeno, cada pessoa já nasceria com urna certa combinagao ou "tempero" dos
quatro humores básicos. Embora pudesse ocorrer que em algumas pessoas os quatro
humores estivessem perfeitamente equilibrados, na maioria dos casos haveria a
predominancia de um ou dois humores. Isso contribuiría tanto para a formagao de tipos
físicos diferentes como de personalidades diferentes (Martins e outros, 1997).
De modo análogo ao que aparece nos tratados do Corpus Hippocraticum, Galeno (1928)
considerava que a saúde era determinada pelo equilibrio dos humores se formavam no
corpo a partir dos alimentos ingeridos pelo individuo. Quando algum deles faltava ou
estava em excesso surgiam as doengas, que poderiam ser curadas através da
alimentagao, medicamentos ou procedimentos. A influencia da alimentagao na saúde era
aceita muito antes de Galeno, é claro. Porém, parece que ele introduziu algo de novo
pois acreditava que a agao desses remedios ou alimentos variava de pessoa a pessoa,
dependendo de seu temperamento. No caso de febre, por exemplo, um menino de quatro
anos necessitaria de um remedio frió devido a seu temperamento ser sanguíneo. Já urna
menina da mesma idade necessitaria de um medicamento menos frió porque, segundo
ele, as mulheres tém por natureza um temperamento frió. Porém, um senhor de oitenta
anos teria um temperamento fleumático e precisaría de um medicamento levemente frío
(Grant, 1999).
Na obra De tempéramenos (1545) Galeno relacionava a mistura dos humores ao caráter
(Singer, 1997). De acordó com Owsei Temkin (1974), em De temperamentis (livro I,
capítulos 8 e 9) o médico de Pérgamo considerou a existencia de nove possíveis tipos de
temperamento, resultantes da mistura qualitativa dos humores. O primeiro seria o ideal,
no qual as qualidades estariam bem equilibradas. Havia quatro nos quais prevalecería
urna das qualidades (quente, frío, seco e úmido); e quatro outros nos quais as
qualidades predominantes apareceriam em duplas de quente e úmido, quente e seco, frió
e seco ou frió e úmido. As misturas bem equilibradas serviriam de modelo e referencia
para as outras.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
, .
Dentro da classificagao adotada por Galeno podem ser incluidos os quatro
temperamentos básicos que foram adotados pela medicina ocidental durante os varios
séculos que se seguiram e que enumeramos a seguir:
- Temperamento sanguíneo: onde há predominancia do sangue
- Temperamento bilioso ou colérico: onde ocorre a predominancia da bilis amarela
- Temperamento melancólico: onde há predominancia da bilis negra
- Temperamento fleumático: onde ocorre a predominancia do muco ou fleuma
Ao se referir ao temperamento bilioso, que considerou excessivamente quente, Galeno
comentou:
Assim, nos precisamos ter um temperamento frió e um
período frió da vida se levarmos mel para a natureza do
sangue.
Portanto,
Hipócrates
aconselhou
apropriadamente aqueles que sao naturalmente biliosos
a tomarem mel, urna vez que eles tém um
temperamento obviamente muito quente. [...] os
médicos empiristas fizeram precisamente a mesma
observagao, a saber que o mel é bom para um homem
velho mas nao para um homem jovem, que é
prejudicial para aqueles que sao naturalmente biliosos,
e útil para aqueles que sao fleumáticos. (Galeno, 1928,
P- 8).
Para Galeno, o equilibrio dos humores do corpo poderia ser afetado pela dieta, drogas,
tempo e localizagao geográfica. Com intuito de conservar a saúde (manter o equilibrio
dos humores).Ele recomendava que se tomasse cuidado e moderagao em relagao a seis
pontos: a) o ar e o ambiente; b) comida e bebida; c) sonó e a vigilia; d) movimento e o
repouso; e) excregoes; f) as paixoes da alma (Martins e outros, 1997). Essas foram
consideradas "as seis coisas nao naturais" para a conservagao da saúde.
Um aspecto que merece ser mencionado é o interesse que Galeno manifestou pela
physiognomia (relagoes entre o caráter do homem e sua aparéncia física), que teve inicio
provavelmente durante o período em que ele estudava em Smyrna. Suas idéias sobre o
assunto aparecem em diversas de suas obras. De acordó com Elizabeth C. Evans (1945),
o enfoque que Galeno deu á physiognomia está intimamente relacionado com suas
concepgoes acerca dos humores. Segundo ela, muitas vezes o médico de Pérgamo
misturava diagnóstico médico com idéias relacionadas á physiognomia. Isso transparece,
por exemplo, em urna passagem do tratado Arte médica onde Galeno discutía os sinais
relacionados ao aquecimento do coragao:
se muito calor domina, nessa diregao existe urna raiva
amarga e loucura e temeridade. Nessas pessoas o tórax
é peludo e especialmente o peito e as partes próximas
á praecordia. Em geral, o corpo todo se torna quente
quando o coragao está quente, exceto se o fígado está
fortemente oposto a ele. (Evans, 1945, p. 290).
Galeno acreditava que as faculdades da mente estavam relacionadas as misturas ou
temperamentos do corpo. As faculdades da alma estavam localizadas no fígado, coragao
e cerebro. Revendo as idéias de Platao, Aristóteles e estoicos, ele discutiu, por exemplo
porque a secura causava a sabedoria e a umidade loucura. Acabou concluindo que a
mente podia ser danificada por afligoes do corpo tais como alteragoes nos humores.
Galeno utilizou paralelismos do homem com animáis que estavam presentes ñas obras
aristotélicas tais como associar aspectos corpóreos a disposigoes como por exemplo,
peito ampio e sangue quente á propensao á raiva; ancas achatadas e sangue frió á
covardia. Outro aspecto que Galeno considerou foi a influencia das regioes onde o
homem vive sobre o seu caráter (covardia, coragem, amor ou prazer, movimentos da
alma) determinando a disposigao do corpo isto porque o sangue difere nos animáis
devido ao calor e frió, espessura ou fluidez, bem como sobre outros aspectos como
pensava Aristóteles. (Evans, 1945).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,.
4. A teoría dos temperamentos no período pós-galénico
De acordó com Owsei Temkin, existe pouco material que indique como ocorreu o
desenvolvimento das idéias médicas e filosóficas de Galeno durante o primeiro século e
meio que se seguiu á sua morte (8). Entretanto, há indicios de que por volta de 350 d.C
ele era respeitado e considerado urna autoridade na Alexandria (Temkin, 1974). Seus
trabalhos foram traduzidos para o latim por autores como Oribasius, por exemplo.
Algumas das concepgoes galénicas foram acatadas pelos árabes que as levaram para a
Europa. Durante a Idade Media, de um modo geral, ele era respeitado como um grande
médico e considerado o unificador da medicina. Neste período a concepgao dos quatro
temperamentos era bastante aceita e adotada. As idéias de Galeno continuaram sendo
influentes até o século XIX quando deixaram de ser utilizadas pela maioria dos médicos.
A nogao de temperamento também foi discutida no ámbito teológico cristáo medieval.
Tomás de Aquino (1225-1274) interessou-se pelo assunto, sobretudo no que tange á
questáo das paixoes da alma ou afetos e sua relagáo com o temperamento.
Galeno, no As faculdades da alma seguem os temperamentos do corpo, chegou a afirmar
que a alma é tributaria da substancia corporal ao defender o principio de que todas as
faculdades da alma seguem os temperamentos do corpo. Esta afirmagáo colocou um
problema para os teólogos cristáos, na medida em que contradizia a soberanía da alma.
Em consonancia com a filosofía aristotélica, sobretudo no De anima, Tomás de Aquino
reafirmou, no Comentario ao Tratado sobre a alma de Aristóteles, I, 402 a 1, que as
paixoes sao afeigoes próprias á uniao entre corpo e alma e que simultáneamente á
paixao, mansidao, medo, compaixao, coragem, alegría, amor e odio, o corpo sofre algum
tipo de alteragao. Isto nao significa que a substancia da alma possa ser considerada o
temperamento, como o escrito citado de Galeno dava a entender.
De fato, na perspectiva galénica, os diferentes temperamentos produziriam as diferentes
paixoes, por exemplo, a ira decorreria do temperamento colérico e a tristeza adviria do
temperamento melancólico. Mesmo nao podendo identificar precisamente a causa,
Galeno afirmava que as alteragoes afetivas e cognitivas sao expressoes da situagao dos
humores:
Após numerosas pesquisas, eu nao descobri porque
quando a bilis amarela se acumula no cerebro, somos
acometidos de delirio, nem, no caso da bilis negra,
sofremos de melancolía, nem ainda porque a fleuma e
as substancias refrigerantes em geral provocam a
letargía que desencadeia a perda da memoria e da
inteligencia. (Galeno, século II d.C. /1995, p. 83).
Pessotti (1994) explica que, segundo Galeno, a fungao das emogoes na alteragao da
erase humoral, se existe, é indireta. O efeito das experiencias afetivas no corpo seria
muito mediato, nao diferente de urna alteragao climática ou a ingestao de um dado
alimento.
Tomás de Aquino, na Summa contra gentiles (1952), refutava a possibilidade da esséncia
da alma coincidir com as qualidades do corpo. Em primeiro lugar, porque as operagoes
da alma excederiam as qualidades ativas e passivas que regem o temperamento; em
segundo lugar, porque o temperamento seria constituido de qualidades contrarias e a
alma tem forma substancial e nao acidental, nao admitindo, portanto, contrarios em si
mesma; terceiro, porque a alma movería o animal em todas as diregoes e o
temperamento nao possui esta propriedade, e, finalmente, porque a alma regeria o corpo
e resistiría as paixoes que brotam do temperamento.
O pensador medieval ainda alegava que Galeno teria se equivocado ao nao considerar
que as paixoes sao devidas, algumas vezes, ao temperamento, outras vezes, á alma. Ao
temperamento se atribuí a causa disponente e o que há de material ñas paixoes, como
por exemplo, o fervor do sangue. Á alma se atribuí a causa principal e a razao do que é
formal ñas mesmas, como o apetite de vinganga com respeito á ira (Aquino, 1999).
Tal controversia persistiu na Idade Moderna, quando foram elaboradas novas
interpretagoes da antiga tradigao, que se prestaram a outros usos e sofreram
modificagoes conforme as exigencias dos campos de saber que a assimilaram. Os
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,¿
jesuítas, por exemplo, fizeram um uso da nogao de quatro temperamentos integrada com
a psicología aristotélico-tomista. No meio jesuítico, ficou definido, a partir da distingao
fixada pelo coimbrao Manuel Góis, no seu comentario ao Parva Naturalia de Aristóteles,
de 1593, que as paixoes ou afetos teriam duas causas: urna formal, o impulso da alma;
e outra material, urna alteragao orgánica.
Alias, na antiga Companhia de Jesús, a nogao de quatro temperamentos foi amplamente
utilizada no processo de selegao e administragao dos seus membros. O respeito e o
aproveitamento conveniente das características de cada um, na sua insergao no grupo, já
era urna preocupagao de Inácio de Loyola, fundador da Ordem dos jesuítas. As
Constituigóes (1594/1997), conjunto de regras que organizam a vida na congregagao,
previam urna especie de triagem para a atribuigao de fungoes, visando o bom
funcionamento da Companhia através do adequado posicionamento dos individuos.
Conforme M. Massimi (2000) as categorías que regiam o procedimento dessa selegao e
seu método, ao longo da historia da antiga Companhia, estao presentes nos Catálogos
trienais, geralmente elaborados pelos dirigentes das provincias e enviados á Curia geral
da Ordem, sobretudo o Catalogus Secundus, que descreve cada jesuíta conforme, em
primeiro lugar, seu ingenium, juízo, prudencia, experiencia e cultura intelectual; em
segundo, seu complexio, e, finalmente, suas capacidades peculiares, talentum.
É justamente sob a denominagáo genérica de complexio, urna das referencias da
psicología prática dos jesuítas, entre outras, que comparecem os quatro temperamentos
e suas combinagoes. Massimi (2000) explica que os dirigentes jesuítas utilizavam-se
dessas categorías inclusive para selecionar os missionários a serem enviados para o
Brasil, onde a empresa missionária jesuítica dependía de gente ativa, enérgica e
comunicativa. Assim, os coléricos, coléricos-melancólicos ou coléricos-sanguíneos, por
apresentarem características quentes, que inclinam ao ímpeto e á fluencia de
comunicagáo, eram considerados os mais adequados para enfrentar as novas e difíceis
situagoes naturais e sociais do Brasil colonia. Já os fleumáticos, mais apáticos, eram
encaminhados aos oficios domésticos ñas casas da Companhia e os poucos individuos
melancólicos, mais voltados para o universo intelectual, trabalhavam nos colegios como
professores. Os sanguíneos nao tinham destinagao prevista porque eram considerados
inaptos para a vida religiosa, por serem julgados inconstantes e volúveis.
Ponderagoes sobre a nogao de temperamentos sao encontradas também no Industriae
pro Superioribus eiusdem Societatis, Ad curandos Animae morbos, ou seja, Industrias
para os superiores da Companhia para a cura dos males da alma, do jesuíta napolitano
Claudio Acquaviva (1542-1615), que dirigiu a Companhia, desde 1581 até sua morte em
Janeiro de 1615. Nesse importante documento de ensino, destinado aos jesuítas em
posigao de comando da época, o padre geral discorre sobre a gerencia e ordenagao
necessárias dos movimentos atribuidos á alma na vida em urna comunidade religiosa,
tendo a tradigao médica como modelo comparativo e fonte de exemplos.
Conforme Acquaviva, para o tratamento conveniente de um doente é imprescindível
conhecer a qualidade da doenga e a compleigao do corpo, isto é, seu temperamento.
Deve-se averiguar se é sanguíneo e jovial ou triste e melancólico; colérico e violento ou
fleumático e apático. É necessário investigar, igualmente, quanto tempo durou a doenga
e quais os remedios mais apropriados para curar ou prevenir alguma indisposigao da
alma (Acquaviva, 1600/1893).
Tal orientagao valia para os diferentes males psíquicos que podiam acometer os
religiosos, entre outros: melancolía, hipocondría, perda do desejo pelo trabalho ou
indisposigao para as relagoes interpessoais. Em caso de discordias entre confrades, por
exemplo, dever-se-ia intervir e levar os reclamantes a examinarem em si mesmos as
causas de desentendimento com o outro. As diferengas de temperamento eram
respeitadas, mas nao deveriam recobrir faltas pessoais na disposigao para com o
próximo. A busca das raízes dos problemas nao deveria circunscrever-se a este nivel,
mesmo que alguém afirmasse que a diferenga de compleigao natural o impedia de
confraternizar-se com o outro. Assim, as diferengas de temperamento eram levadas em
consideragao, mas nao deviam ser, de modo algum, urna justificativa para todas as
disposigoes e atos.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,.,
Acquaviva nao compactuava com a hipótese da soberanía do temperamento do corpo na
determinagao do caráter moral - o que se mostra coerente com a psicología aristotélicotomista, renovada e sistematizada pelos filósofos de Coimbra (Góis, 1583, 1602), que
prevé a possibilidade desejável do dominio da razao sobre os apetites e movimentos
afeitos ao corpo. Preocupado com a coesao e o progresso espiritual do grupo sob sua
responsabilidade, Acquaviva sustentava que os religiosos deveriam superar a condigao
dada pelo temperamento, portanto pela composigao natural do corpo, e manter-se em
harmonía com o conjunto. (Silva, 2005).
O tema dos temperamentos também esteve presente nos sermoes do jesuíta portugués
Antonio Vieira (1608-1697), que circulou entre capitais européias, como Roma, Paris e
Lisboa, e postos avangados das missoes na Bahia e no norte do Brasil. Vieira, em um
sermao para a glorificagao do missionário jesuíta Sao Francisco Xavier, afirmou que o
sonó é a imagem da morte e o sonhos sao imagem da vida. Ele reafirmou a idéia antiga
de que os sonhos retratam as disposigoes anímicas, as agoes diurnas e os desejos do
sonhador.
Vieira ainda afirmava que o tema dos sonhos guarda urna relagao direta com os
temperamentos: "O melancholico sonha coisas tristes e trágicas, o sanguinho sonha
felicidades e festas, o colérico sonha guerras e batalhas, o fleumatico creio que nao
sonha, porque nao vive". (Vieira, séc. XVII / 1951, p. 42).
Do ponto de vista da caracterizagao do tipo físico e psíquico, a maneira como os jesuítas
descreviam os temperamentos nao era muito diferente do modo como os médicos do
período o faziam. Embora nao houvesse formagao médica ñas escolas jesuíticas, eles se
interessavam pela medicina, sobretudo, pela sua vertente preventiva (Silva, 2004).
Nos manuais de regime de vida, muito difundidos na Italia do século XVI e,
posteriormente, por toda a Europa (Mikkeli, 1999), a atengao aos temperamentos era
considerada urna orientagao importante para a preservagao da saúde. Isso se devia, em
parte, á influencia da medicina galénica nesse ramo da arte médica dedicado á
prevengao de doengas e, muitas vezes, prolongamento da vida. Como vimos, foi na
tradigao fundada na medicina de Galeno que ocorreu a sistematizagao das causas
externas da alteragao da saúde, as assim chamadas no meio bizantino, sex res non
naturales, isto é: comida e bebida, ar e ambiente, esforgo e repouso, sonó e vigilia,
excregoes e secregoes e os movimentos da alma.
De qualquer modo, os livros de Galeno sobre a compleigao corporal e influencia das
qualidades (seco, úmido, frió e quente) para a preservagao da saúde faziam parte das
primeiras edigoes impressas de sua obra, como a primeira edigao latina que Filippo Pinzi
realizou em Veneza em 1490 e a editio princeps grega, publicada pelo célebre veneziano
Aldo Manuzio, em 1525. Sobre os temperamentos, em específico, há urna edigao
parisiense, Claudij Galeni Pergameni de Temperamentis libri III. De inaequali intemperie
líber I. Thoma Linacro Anglo Interprete, por Christian Wechel, de 1545.
Na mesma época, algumas obras de Galeno foram traduzidas para as línguas vulgares
alcangando, com isso, um público mais ampio, interessado em regras para preservar a
saúde, sem precisar recorrer diretamente aos médicos. O D'alegrir le corps, atribuido a
Galeno, publicado em Paris, em 1556, prometía a cura de doengas "pelo modo de vida",
sem ajuda de medicagao (p. 4).
Essa arte de bem viver, baseada no humoralismo e em preceitos filosóficos, fez enorme
sucesso na primeira modernidade. Um dos principios fundamentáis era justamente o
exame de si mesmo a fim de identificar o seu temperamento e optar pelos hábitos
condizentes com o mesmo e, portanto, mais saudáveis. É o que prescrevia, entre outros,
o De/la complessione del corpo humano Libri III da quali a ciascuno sará agevole di
conoscere perfetta mente la qualitá del corpo suo, e i moví mentí de/1"animo e i I modo di
conserva/i del tutto sani, (1564) do médico holandés Levinio Lemnio, publicado em
Veneza, em 1561, e reeditado em 1564.
De modo geral, nos regimes de saúde que circularam na Idade Moderna, lé-se que a
administragao das six res non naturales deve se adequar ao temperamento de cada
pessoa. Ou melhor, o regime de vida conveniente nao poderia ser efetuado sem o
conhecimento das características de cada temperamento porque era segundo essas
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,„
categorías se elegía o modo de se alimentar, o ambiente onde se vive, as atividades, a
economía do repouso e a conduta moral, enfim, a maneira de viver.
Por essa razao o médico francés Porchon afirmava: "Regre seu regime conforme o seu
temperamento" (Porchon, 1688, p. 63). Aos sanguíneos, quentes e úmidos, ele sugería
alimentos que diminuem o excesso de sangue, refrescam e secam o excesso de umidade
do corpo. Aos coléricos, quentes e secos, ele recomendava ar frió, banhos, alimentos
frescos, repouso e muita agua. Para os fleumáticos, frios e úmidos, ele prescrevia
alimentos quentes e secos, condimentados e acompanhados de vinhos fortes, pouco sonó
e muitos exercícios. Finalmente, os melancólicos, frios e secos, deveriam preferir
alimentos quentes e úmidos, pouco salgados, além de evitar a tristeza, o medo, as
preocupagoes, o isolamento e o excesso de sonó.
Em um apéndice de seu manual, publicado pela primeira vez em 1684 e logo reeditado e
aumentado em 1688, Porchon retomou a cara eteriza gao moral, senao psicológica,
tradicionalmente atribuida a cada temperamento. Em poucas palavras: os sanguíneos
teriam aparéncia avermelhada, seriam bem humorados e motivados pelos prazeres dos
sentidos. Os biliosos ou coléricos seriam magros, secos e de pele amarelada. Seriam
também impetuosos, ambiciosos e orgulhosos. Eles aprenderiam com facilidade, seriam
irascíveis e espertos. Os fleumáticos, por sua vez, seriam preguigosos, fracos, de
pequeña estatura e obesos. Pouco amante dos estudos, eles seriam também sedentarios,
dormiriam bastante, teriam os sentidos amortecidos e o semblante pálido. Por último, os
melancólicos seriam vocacionados para os estudos e apreenderiam todo tipo de coisa.
Seriam também maldosos, tristes, calados, discretos, invejosos, avaros, tímidos. Além de
dormirem pouco, teriam a pele escurecida.
De acordó com Dechambre, a teoria dos temperamentos foi sofrendo mudangas a partir
dos séculos XV e XVI nos diversos sistemas médicos. Por exemplo, no iatromecanicismo,
F. Hofmann atribuía o temperamento colérico ao movimento enérgico das fibras.
Zimmermann, discípulo de Albrecht von Haller, considerava o temperamento como
"conseqüéncia da constituigao do corpo através da qual o homem senté, pensa e age".
Dentro do vitalismo de J. J. Barthez, seria "urna forma especial, constante, das agoes
vitáis". Para Cabanis, havia seis temperamentos, sendo que somente um deles tinha
relagao com os quatro temperamentos tradicionais e correspondía ao fleumático
(Dechambre, 1888, p. 314).
Mesmo no século XVIII, a idéia de temperamento persistiu no género dos regimes
médicos. Francisco da Fonseca Henriquez, médico do soberano portugués D. Joao V,
dedicou um capítulo de seu Áncora medicinal para conservar a vida em saúde á
adequagao dos alimentos a cada idade da vida e temperamento do corpo. Quanto ao
último quesito, ele foi bastante conciso, mas ratificou a máxima antiga: "Do que fica dito
das idades, consta qual seja de ser o alimento dos temperamentos. Os quentes e secos
querem alimentos frios e úmidos e assim os mais pedem dieta de qualidades contrarias".
(Henriquez, 1721/2004, p. 79).
Por outro lado, Henriquez também abordou os efeitos dos afetos na saúde e admitía que
as paixoes podem causar além de gravissimos males ao corpo, morte repentina, e ainda
a própria alteragao do temperamento. Em suas palavras: "E nao há dúvida que as
paixoes do ánimo comovem muito os humores, alteram o sangue e os espíritos e chegam
a mudar a constituigao e o temperamento do corpo, quando sao excessivas e
continuadas". (Henriquez, 1721/2004, p. 284).
No meio médico, a nogao de temperamento também servia como categoría para
compreender as relagoes afetivas. No De la maladie d'amour ou mélancholie érotique, de
Jacques Ferrand (1575/1623), os quatro temperamentos servem de referencia para
compreender o comportamento dos individuos e o resultado da convivencia entre os
mesmos.
Finalmente as mais expressivas diferengas do amor
advém da variedade de compleigao daqueles que sao
afligidos por esse mal. Se o sanguíneo ama seu
semelhante, é um amor suave, gracioso e louvável.
Mas se o bilioso ama um colérico, é mais urna servidao
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,
do que amor, tanto ele é sujeito a turbulencias e
cóleras, nao obstante a sua semelhanga de compleigao.
Nao há tanto perigo no amor do colérico com a
sanguínea, estes serao tanto contentes, como
descontentes. O amor da melancólica pelo sanguíneo é
bom e gracioso, pois o sangue tempera a má qualidade
da melancolía. Mas se elas se apegam ao colérico, é
mais urna peste do que amor, o que acaba
freqüentemente em desespero. (Ferrand, 1575/1623,
p. 74).
O livro de Ferrand, embora tenha sido muito criticado em sua própria época, é um
exemplo típico de tratado médico-moral do século XVII, no qual fundamentos da
medicina humoralista sao associados á doutrina moral dos afetos. Assim, o médico e
homem político francés propós, para tratar os síntomas dos males do amor, receitas de
remedios para corrigir o equilibrio dos humores, como purgantes, vomitivos, banhos, e
aguas minerais. Contudo, bem ao estilo dos adeptos da soberanía da moral, ele terminou
seu livro afirmando que o remedio supremo para todos esses males é a sabedoria e a
prudencia. (Ferrand, 1575/1623).
5. A teoría dos temperamentos no século XIX
No século XIX, denominava-se "humor" todos os líquidos que entram na composigao do
corpo humano, tais como o sangue, o quilo e a linfa, por exemplo (Beaude, 1849, p. 226;
Nysten, 1835, p. 490) e sua conotagao era "estado, maneira de ser, mistura em certas
proporgoes" (Dechambre, 1888, p. 312). A Dechambre apresentou urna explicagao para
temperamento que considerou neutra, por nao ser nem vitalista, nem organicista, nem
solidista, nem fisiológica e nem química. Ele assim se expressou:
Os temperamentos sao as diferengas entre os homens,
constantes, compatíveis com a conservagao da vida e a
manutengao da saúde, caracterizados por urna
diversidade de proporgao entre as partes constituintes
da organizagao, tao importantes a ponto de ter urna
influencia sobre as forgas e as faculdades da economía.
(Dechambre, 1888, p. 312).
No final do século XIX e inicio do século XX apareceu a concepgao dos quatro
temperamentos (sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico) em Rudolf Steiner (18611925). Suas idéias se apresentam tanto em suas obras dirigidas aos médicos como
naquelas de cunho pedagógico ou filosófico. Embora nao tivesse formagao em medicina
ou psicología, Steiner, que foi filósofo, jornalista e educador desenvolveu urna concepgao
em relagao aos temperamentos aplicada á pedagogía Waldorf. A primeira escola que
seguía esta linha foi fundada em 1919 (9).
Apesar de adotar a mesma terminología empregada pela tradigao hipocrático-galénica, as
concepgoes de Steiner sao diferentes, já que ele pensava que os quatro temperamentos
nao eram determinados pelo predominancia de um dos quatro humores (sangue, bilis
amarela, bilis negra e fleuma) mas de um dos quatro membros constitutivos do homem
(eu, corpo astral, corpo etérico e corpo físico). Com forte influencia da Naturphilosophie,
as concepgoes de Steiner nao tinham base empírica.
6. Consideracoes fináis
Esta pesquisa reafirmou a visao de que o desenvolvimento das concepgoes de Galeno
quanto á saúde e doenga e sua relagao com humores corpóreos e temperamentos teve
suas raízes em alguns tratados do Corpus Hippocraticum, na idéia dos quatro elementos
de Empédocles, em algumas concepgoes de Platao e de Aristóteles, incluindo a "biología"
do último. Além dos aspectos médicos também estavam presentes aspectos
"psicológicos" já que a combinagao dos humores no corpo (temperamentos) resultava em
determinadas disposigoes ou personalidades. Outro ponto interessante que foi abordado
por Galeno é a relagao entre a aparéncia física e o temperamento.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,,„
Assim, quanto á primeira afirmagao que aparece na introdugao deste artigo, pode-se se
dizer que o "humorismo" se originou a partir das obras de Hipócrates, já que é bem
possível que dentre as obras do Corpus, principalmente dentre as reunidas por Coulter
no grupo I I I , estejam algumas que sejam de autoría de Hipócrates. Porém em relagao ao
'"humorismo' ter se mantido até o século XV" iremos discordar, assim como da segunda
afirmagao que considera o século XV como sendo "o século da decadencia do reino de
Galeno".
A idéia de que saúde e doenga estao relacionadas ao equilibrio dos humores, que suas
combinagoes ocasionam os temperamentos, relagoes entre o caráter do homem,
temperamento, aparéncia física e afetos esteve presente na medicina ocidental muito
além do século XV. Relagoes entre paixoes da alma (afetos) e temperamentos aparecem
nao apenas na Idade Media em Sao Tomás de Aquino como continuam presentes no
inicio da na Idade Moderna ñas obras dos jesuítas, no século XVII em Acquaviva e
Antonio Vieira e persistiu nos regimes médicos do século XVIII como o de Francisco da
Fonseca Henriquez, por exemplo. A nogao de temperamento foi aplicada tanto neste
século como no anterior para compreender as relagoes afetivas. Ainda no final do século
XIX aparece a mesma terminología e a idéia da saúde estar relacionada ao equilibrio na
obra de Steiner.
Os exemplos históricos aqui apresentados, que constituem apenas urna pequeña amostra
dos exemplos que se encontram disponíveis, indicam que a nogao de temperamentos nao
desapareceu no século XV mas permaneceu por muito mais tempo sofrendo modificagoes
e adaptagoes. Embora, como dissemos na segao anterior, tais concepgoes tenham
deixado de ser utilizadas pela maioria dos médicos no século XIX, até hoje sao
encontrados resquicios das mesmas. Por exemplo, as expressoes como "bem humorado",
"mal humorado", "temperamental" e o emprego de urna terapéutica que envolve
laxantes, expectorantes, etc. Ou entao a referencia as pessoas como sanguíneas,
coléricas, neumáticas ou melacólicas, como ainda encontramos em autores do século XX
(10).
Referencias
Acquaviva, C. (1893). Industñae pro superioribus eiusdem societatis, ad curandos
animae morbos (Institutum Societatis Iesu, Vol. 3). Florentiae: Typographia A.
SS. Conceptione. (Original publicado em 1600)
Aquino, T. (1952). Suma contra los gentiles(Tomos le II). Madri: Biblioteca de autores
cristianos. (Original do século XIII)
Aquino, T. (1999). Commentaire du Traite de /'ame d'Aristote (J.M. Vernier, Trads.).
Paris: Vrin. (Original do século XIII)
Aristotle. (1936). Physics(\N. D. Ross, Trad.). Oxford: Clarendon. (Original do século IV
a.C.)
Aristotle. (1952a). On generation and corruption (H. H. Joachim, Trad.) (Great Books of
the Western World, Vol. 8). Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Original do
século IV a.C).
Aristotle. (1952b). Physics (R. P. Hardie & R. K. Gaye, Trads.) (Great Books of the
Western World, Vol. 8). Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Original do
século IV a.C.)
Beaude, J. P. (1849). Dictionnaire de medicine usuelle a l'usage des gens du monde
(Vol. 1). Paris: Didier.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
,,,
Brochin, H. (1886). Humorisme. Humeurs. Em A. Dechambre (Org.), Dictionnaire
encyclopédique des sciences medicales (Vol. 3, pp. 496-509). Paris: P. Asselin &
G. Masson.
Cornford, F. M. (1952). Platos cosmology: The Timaeus of Plato. London: Routledge &
Kegan Paul.
Cornford, F. M. (1989). Platos theory of knowledge {The Thaetetus and the Sophist of
Plato). New York: Macmillan.
Coulter, H. L. (1975). Divided legacy: A history of schism in medical thought. v . l .
Washington, DC: Wehawken Book Co.
Dean-Jones (1993). Galen "On the constitution of the art of medicine". Introduction,
translation and commentary. Tese de Doutorado nao-publicada, University of
Texas, Austin, Texas.
Dechambre, A. (Org.). (1864). Dictionnaire encyclopédique des sciences medicales \. 1.
Paris: P. Asselin & G . Masson.
Dechambre, A. (1888). Tempérament. Em A. Dechambre (Org.), Dictionnaire
encyclopédique des sciences medicales (Vol. 14, pp. 312-3250). Paris: P. Asselin
& G. Masson.
Evans, E. C. (1945). Galen the physician as physiognomist. Transactions and Proceedings
of the American Philological Association, 76, 287-298.
Ferrand, J. (1623/ De la maladie d'amour ou mélancholie érotique: Discours curieux qui
enseigne á cognoitre l'essence, les causes, les signes et les remedes de ce mal
fa mastique. Paris: Denis Moreau.
Galeno (1545). Galeni Pergameni de Temperamentis libri III: De inaequali intemperie
líber I. Thoma Linacro Anglo Interprete. Paris: Christian Wechel. (Original do
século II d.C.)
Galeno (1556). D'alegrir le corps (J. Le Bon, Trad.). Paris: Estienne Groulleau. (Original
do século II d.C.)
Galeno (1928). On the natural facultíes (A. 1 Brock, Trad.) (Loeb Classical Library).
Cambridge, MA: Harvard University Press. (Original do século II d.C.)
Galeno (1995). L'áme et ses passions. Les passions et les erreurs de /'ame. Les ames
suivent les tempéraments du corps (V. Barras, T. Birchler & A-F. Morand, trads.).
Paris: Les Belles Lettres. (Original do século II d.C.)
Gois, M. (1583). Disputas do curso sobre os livros da moral da ética a Nico maco, de
Aristóteles em que se contém alguns dos principáis capítulos da Moral. Lisboa:
Simao Lopes.
Gois, M. (1602). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui
Parva Naturalia appellantur. Lisboa: Simao Lopes.
Grant, M. D. (1999). Steiner and the humours: The survival of the ancient Greek science.
British Journal ofthe Education Studies, 47, 56-70.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
»»
Henriquez, F. F. (2004). Áncora medicinal para conservar a vida em saúde. Sao Paulo:
Atelié Editorial. (Original publicado em 1721)
Hipócrates. (1999). Da natureza do homem (H. Cairus, trad.). Historia, Ciencia, Saúde,
Manguinhos, 5(2), 395- 430. (Original dos séculos IV-V a.C.)
Kirk, G. S.; Raven, J. E. & Schofield, M. (1983). The presocratic philosophers: A critica!
history with a selection oftexts. Cambridge, London: Cambridge University Press.
Lemnio, L. (1564). Della complessione del corpo humano. Libri III da quali a ciascuno
sará agevole di conoscere perfettamente la qua/itá del corpo suo, e i moví mentí
dell'animo e ¡I modo di conservan del tutto sani. Veneza: Domenico Niccolino.
(Original publicado em 1561)
Loyola, I. (1997). Costituzioni della Compagnia di Gesü. Annotatí dalla Congregazione
Genérale 34° & norme complementan (G. Silvano, Trad.). Roma: Edizione ADP.
(Original publicado em 1594)
Martins, R.; Martins, L. A.-C. P. M.; Toledo, M. C. F. & Ferreira, R. R. (1997). Contagio:
Historia da prevencao das doencas transmissíveis (Colegao Polémica). Sao Paulo:
Editora Moderna.
Massimi, M. (2000). La teoria dei temperamenti nei cataloghi dei gesuiti in missioni in
Brasile nei secoli XVI e XVII. Physis, 37(1), 137-149.
Mikkeli, H. (1999). Popular health books: Mirrors of academic teaching? Em H. Mikkeli,
Hygiene in the early modern medical tradition (pp. 69-96). Saarijarvi: Crimmerus
Printing.
Mutarelli, S. R. K. (2006). Os quatro temperamentos na antroposofia de Rudolf Steiner.
Dissertagao de Mestrado nao-apresentada, Programa de Estudos Pós-Graduados
em Historia da Ciencia, Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo, Sao Paulo.
Nysten, P. H. (1835). Dictionnaire de medicine, de chirurgie, de pharmacie, des scienees
acessoires ou I'art vétérinaire. Paris: J.S. Chaude.
Pessotti, I. (1994). A loucura e as épocas. Sao Paulo: Editora 34.
Porchon, A. (1688). Les regles de la santé, ou le veritable regime de vivre, que l'on doit
observer dans la santé & dans la maladie. Avec une table qui contíent par
alphabet les facultez et les vertus de tous les alimens, corrigée & augmentée en
cette seconde édition d'un grand nombre de remarques curieuses, de medecine,
de physique, de mora/le (sic) & d'histoire. Paris: Maurice Villery.
Silva, P. J. C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: Os tratados de Luigi Cornaro
(1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum 7, pp. 88-101.
Retirado
em
12/12/06
do
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmq.br/~memorandum/n07po.htm.
Silva, P. J. C. (2005). La medecine de l'áme: Trois cas de convergences entre
psychologie aristotélicienne et savoirs médicaux á l'ancienne Compagnie de Jésus
(Europe et Nouveau Monde). Mélanges de l'École francaise de Rome, 117(1), 351369.
Singer, P. N. (1997). Levéis of explanation in Galen. The Classical Quarterly, 47(2), 252542.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
»_
Temkin, O. (1974). Galenísm : Ríse and decline ofa medicalphilosophy. Cornell : Cornell
University Press.
Vieira, A. (1951). Sermao Xavier dormindo. Em A. Vieira, Sermoes (Vol. 13, pp. 42-43).
Porto: Lello e Irmao. (Original do século XVII)
Notas
(1) Galeno nasceu em Pérgamo, na costa oeste da Asia Menor, e em geral sua morte é
tradicionalmente tida como tendo ocorrido em 199 ou 200 d.C, tal como aparece na
enciclopedia bizantina Suda do século X. Entretanto, existem indicios de que sua morte
ocorreu somente em torno de 210 d.C. (ver a respeito em Dean-Jones, 1993,
Introduction).
(2)
De
acordó
com
Beaude
(1849)
neste
século
entendia-se
por
"humorismo"("humorisme"), na patología, o conjunto de doutrinas que admitiam que as
alteragoes dos diversos fluidos corporais produziam as doengas.
(3) Platao e posteriormente Aristóteles se referiram a Hipócrates em algumas de suas
obras.
(4) A partir de estudos filológicos e históricos, alguns dos tratados que constituem o
Corpus Hippocraticum, conforme suas similaridades, foram reunidos em quatro grupos
que aparecem em Coulter (1975).
(5) Pode-se detectar urna semelhanga com as idéias aristotélicas ñas obras que
constituem o grupo III do Corpus Hippocraticum como, por exemplo, no tratado Sobre a
natureza do homem onde há urna preocupagao com as causas das doengas.
(6) A alma racional estaría localizada no cerebro, a espiritual no coragao e a apetitiva no
fígado (Dean-Jones, 1993).
(7) Para Galeno, o corpo dos animáis poderia ser dividido em duas categorías mais
ampias: partes homogéneas {homoiomerous), que seriam as mais simples do corpo que
seriam o que conhecemos por tecidos (ossos, carne, músculos) e partes compostas, que
seriam as partes dos organismos ou órgaos (mao, perna, fígado, etc). [Ver a respeito em
Dean-Jones, 1993].
(8) Esta mesma visao aparece em Dean-Jones (1993) que comenta sobre o silencio feito
acerca de suas conquistas dentre os autores de obras médicas latinos anteriores a
Cassius Félix no século V.
(9) Ver a respeito da concepgao dos quatro temperamentos de Steiner em Mutarelli
(2006) e Grant (1999), por exemplo.
(10) Os autores agradecem o apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundagao de Amparo á Pesquisa do Estado de Sao
Paulo (FAPESP), que possibilitou desenvolvimento desta pesquisa.
Nota sobre os autores
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins é bióloga, especialista em Historia da Ciencia, mestre e
doutora em Ciencias biológicas na área de Genética pela UNICAMP, professora do
Programa de Estudos Pós-graduados em Historia da Ciencia da PUC/SP, pesquisadora do
GHTC (UNICAMP) e do CNPq. Contato: [email protected]
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus
hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em
/ / , da World
Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
».
Paulo José Carvalho da Silva é psicólogo, mestre em Historia da Ciencia pela PUC-SP e
doutor em Psicología pela USP, faz parte do corpo docente do Programa de Estudos Pósgraduados em Historia da Ciencia da PUC-SP, e pesquisador da Fapesp. Contato:
[email protected].
Sandra Regina Kuka Mutarellie graduada em Matemática pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, com especializagao em Magisterio do Ensino Superior pela Universidade
Paulista de Ensino (UNIP), mestre em Historia da Ciencia pela PUC/SP; diretora do
Campus Cidade Universitaria da UNIP e coordenadora dos cursos de Administragao
superior tecnológico no mesmo campus. Contato; [email protected].
Data de recebimento: 31/01/2007
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ /
, da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~-
O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario
de Eustache du Refuge
The moral courtier of Baldassare Castiglione and the ordinary of
Eustache du Refuge
Edmir Missio
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Este artigo mostra num primeiro momento como Baldassare Castiglione, no Libro del
Cortegiano (1528), previne o leitor da idealidade de seu quadro sobre a corte e o
cortesao, promovendo o que poderíamos chamar de um cortesao moralizado; em
seguida, pontua-se a questao da agao honesta por meio da dissimulagao prescrita por
Castiglione, tomando como base aqui a fundamentagao e validagao desta agao no
pequeño tratado Della Dissimulazione Onesta (1641/1990) de Torquato Accetto; por fim,
trazemos a corte e o cortesao pintados por Eustache du Refuge, em seu Traite de la
court (1616/1617), no qual se expandem, ao que parece, os limites da conduta honesta
prevista nos tratadistas anteriormente considerados.
Palavras-chave: tratados moráis; ética; corte; dissimulagao.
Abstract
This article shows, in its first part, how Baldassare Castiglione, in his Libro del Cortegiano
(1528), warns his reader about the ideality of his picture of the court and the courtier,
providing what we can cali a moral courtier; after this, the paper discusses the question
of the honest action through the dissimulation prescribed by Castiglione, having as its
source the foundation and validation of this action in the Della Dissimulazione Onesta
(1641), written by Torquato Accetto. Finally, we deal with the court and the courtier
painted by Eustache du Refuge, in his Traite de la court (1616), which expands, it seems,
the limits of the honest conduct, already foreseen in the writers previously considered.
Keywords: moral treatises; ethics; court; dissimulation.
Em 1993, o historiador inglés Peter Burke, em seu livro A arte da Conversacao, já
destacava a importancia do estudo "dos usos e convengóes relacionados á capacidade de
escrever" para o entendimento dos textos, "se serios ou irónicos, servís ou zombeteiros"
(Burke, 1993/1995, p. 36). Na mesma época, no Brasil, a valorizagao do conhecimento
dos pressupostos de composigao que norteiam a produgao de um texto, visando a
ampliagao de seu entendimento, já era compartilhado, por exemplo, pelos professores
Joao Adolfo Hansen e Alcir Pécora.
O presente artigo procura seguir essa diretriz. Neste sentido, faz-se notar inicialmente
que o Libro del Cortegiano {Livro do Cortesao) (1528/1965) de Baldassare Castiglione,
nao é escrito histórico mas tratado moral na esteira dos moldes platónico e ciceroniano,
modelos invocados pelo próprio autor. Como veremos, isto fica claro por meio de urna
brilhante irania que pontua o tratado, a qual se compóe com a baga tintura melancólica
que o enquadra. O caráter ideal do quadro de Castiglione é evidenciado ainda no
confronto com o quadro pretensamente realista do francés Eustache du Refuge, em seu
Traite de la cour {Tratado da corte), obra igualmente renomada, datada de 1616 [ 1 ] ; e
que eu saiba, ainda nao considerada por pesquisadores brasileiros. Refutam-se aqui,
repito, as interpretagóes do tratado de Castiglione como retrato histórico, as quais se
servem disso para estabelecer urna imagem - engañosa já pela própria generalizagao de
um (suposto) caso -, de um mundo europeu quinhentista de equilibrio em contraposigao
com um mundo do desequilibrio seiscentista. Ademáis, com Refuge, vemos que a
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~
"denuncia" dos artificios da sociedade cortesa já era partilhada por quem a freqüentava,
ou, ao menos, a conhecia de perto, nao sendo produto "romántico".
Em meio a essas "duas cortes", com seus dois cortesaos (o moral proposto e o amoral
típico), interponho urna descrigáo de um artificio comum a ambos, o da dissimulagao;
apreciada aqui por meio do mini tratado de Torquato Accetto, o Da dissimulagao honesta
(1641/1990).
O cortesao moral de Castiglione
Como se sabe, o Livro do Cortesao tem em Cicero urna das fontes confessas da materia
de que trata e do modo de tratá-la. Tanto o Do Orador (séc. I a.C/1950) quanto o
Orador (séc. I a.C./ 1964) trazem a mesma preocupagao com a formulagao de um
modelo, o do orador, o qual, tal como o cortesao, tem a mesma necessidade de
representar frente a um público, seja para mové-lo a urna agao, seja para comové-lo
para um julgamento. Com relagao ao modo de tratar a materia, a forma dialógica
encontrada em Castiglione aproxima-se antes do primeiro, sendo marcada pelo tom
ameno de conversagao, e nao de urna seca argumentagao.
Outra obra de Cicero a ser destacada aqui é o tratado Dos deveres (séc. I a.C/1994), de
cujos preceitos Castiglione se vale, tal como nos casos do valor do conhecimento, da
moderagao, do decoro, do respeito, de parecer aquilo que é. É ainda no Dos Deveres que
encontramos o ajuste da atuagao do orador aos convivas, com o estabelecimento de
certos pressupostos e fins do trato civil. Alegando urna filiagao socrática [ 2 ] , Cicero
preceitua que a fala no convivio civil seja plácida e branda, sem intransigencia e
prepotencia; urna fala familiar (sermo), para urna conversagao amena e afável, sem a
finalidade de insuflar paixoes, e, neste sentido, contrario á veemente fala dos tribunais e
das tribunas. A intengáo é aproximar-se dos interlocutores e ter a capacidade de
adequar-se á materia tratada, severa ou jocosa; condenando-se porém a maledicencia,
por ser reveladora de defeito moral de quem a ela recorre (Cicero, séc. I a.C/1994). Se,
para Cicero, a eloqüéncia é a arte da paz por excelencia, no ámbito público, o que se
propoe no Dos deveres é repor esta paz para o ámbito da convivencia civil, a fim de
promover a solicitude e a benevolencia entre os convivas. Visa-se dar á conversagao
regras para o ordenamento das relagoes civis com base ñas virtudes cardeais da
sabedoria, justiga (que compreende a generosidade), grandeza de ánimo e temperanga.
Enquanto a oratoria pública devia servir como instrumento de organizagao do Estado, a
conversagao civil nao deixa de tomar parte nisso. Talvez se possa dizer que as regras
para a conduta civil remetem, igualmente, a urna necessidade administrativa do Estado,
provendo, no caso, um espago de 'neutralidade' para o estabelecimento de relagoes que
hoje sao denominadas profissionais. As relagoes civis, de todo modo, pressupoem
respeito mutuo, ou ao menos urna imagem de respeito. A ambigüidade é inevitável.
Em Castiglione (1528/1965), discorre-se sobre essa conversagao amável em meio aos
convivas da corte, e prové-se um modelo a ela correspondente, o cortesao. Na Lettera
dedicatoria (parte I) que antecede o tratado, o anuncio da feitura do "retrato de pintura"
da corte de Urbino traz a captagáo da benevolencia do leitor por meio da imagem de
modestia, de rebaixamento das próprias capacidades, seguindo certo molde retórico.
Para isso, o autor admite nao retratá-la ao modo de um Rafael ou de um Michelángelo,
"mas de pintor ignóbil e que somente saiba tragar as linhas principáis, sem adornar a
verdade de belas cores ou fazer parecer pela arte de prospectiva aquilo que nao é" [3].
Figurando em meio a esse quadro da corte está a imagem do perfeito cortesao, em
relagao ao qual, ainda na Lettera, parte I I I , é prevista urna possível crítica: a de ser
"muito difícil e quase impossível encontrar um homem táo perfeito" [ 4 ] ; pelo que seria
supérfluo descrever tal tipo, urna vez que seria váo "ensinar aquilo que aprender nao se
pode" [5]. Na sequéncia, contudo, em defesa de sua obra, enumera os modelos que
imita, acrescentando que erra em boa companhia ao errar com Platáo, Xenofonte e
Cicero, "ampliando o debate sobre o mundo inteligível e as idéias; entre as quais, tal
como, segundo esta opiniáo, há a idéia da perfeita república, do perfeito rei e do perfeito
orador, assim há também a do perfeito cortesa" [ 6 ] . O escrito é, portanto, alinhado a
urna tradigáo mais propriamente filosófica.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~
Cicero, no Orador (séc. I a.C/1950, vol.2, p. 7), já acentuara a condigao imaginaria, ou
ficticia, de seu orador perfeito ao dizer: "imaginando [fíngendo] o orador supremo, vou
dar forma [informado] ao que ninguém talvez jamáis foi. Pois nao procuro o que foi, mas
qual é aquele a quem nada pode ser superior". Ele havia validado este empreendimento
no parágrafo ¡mediatamente anterior, ao afirmar que "quando se visa o primeiro posto é
honroso chegar ao segundo ou terceiro".
Importa igualmente a Castiglione - como vemos ainda na Lettera, parte I I I - esse
esforgo de "ascensao do aprendiz" á altura do modelo proposto, ainda que nao chegue a
alcangá-lo, reafirmando ser o mais perfeito aquele que mais se aproximar dessa imagem.
Portanto, nao há pretensao ali de retratar urna forma particular a partir do existente como seria se retratasse a si próprio, tal como, ele "confessa", alguns tentaram
convencé-lo a fazer -, mas a partir de um tipo genérico desejado; concluindo com urna
demonstragao dos limites de seu auto-conhecimento, que nao deixa de redundar em ato
de modestia, ao dizer: "nao sou tao privado de juízo no conhecer a mim mesmo, que
presuma saber tudo aquilo que sei desejar" [7].
Quando vamos ao livro I, podemos ler, logo no primeiro parágrafo, que ao conhecimento
dos próprios limites, acrescenta-se a dificuldade de retratar urna discussao que nao
presenciara, estando á época na Inglaterra; de modo que sua pintura se deveria á
memoria alheia, logo, pela recordagao de argumentos que nao testemunhou, mas Ihe
foram ditos. A pintura da corte nao toma assim modelo do vivo, mas é produgao de urna
imagem pela lembranga.
Ás dificuldades de recuperar urna conversagao nao vista nem ouvida, e da
impossibilidade de existencia de um cortesao perfeito, une-se urna outra, como podemos
ver no parágrafo XIII: a dificuldade de definir e circunscrever tal cortesao. Esse ponto
aparece agora já em meio ao diálogo, quando, pela boca da personagem Gonzaga, é
afirmada urna "quase" impossibilidade de se conhecer a "verdadeira perfeigao" das coisas
devido á "variedade dos juízos". Note-se que essa variedade dos juízos já fora apontada
por Cicero no Orador (XI, 36), sendo que Castiglione nao só a retoma, mas a exemplifica
pelo diálogo.
As dificuldades se ampliam ainda mais no livro I I , quando, no primeiro parágrafo, no
prólogo ao diálogo, afirma-se que as lembrangas dos velhos nao deveriam ser tomadas
ao pé da letra, urna vez que a velhice seria fator de idealizagao do vivido. Daí os velhos
cometerem um erro universal: o de louvar o passado e criticar o presente, chegando a
afirmar que "todo bom costume e toda boa maneira de viver, toda virtude, tudo enfim,
vai sempre de mal a pior" [8]. Do que se concluí que, apesar do juízo adquirido pela
experiencia, eles nao perceberiam que se assim fosse seria impossível piorar mais. A
causa desse engaño residiría na "fragilidade da velhice", que influenciaría o espirito
afetado pela lembranga dos prazeres tidos.
A imagem do passado, guardada na memoria, estaría entao fadada a ser expressa em
termos do discurso elogioso. Em seguida, no segundo parágrafo, Castiglione reitera que
os velhos, ao falarem das cortes, teimariam que aquelas de que se recordam foram
"muito melhores e cheias de homens singulares" do que as de hoje, sendo que nelas,
entao, "reinavam tao bons costumes, tanta honestidade, que todos os cortesaos eram
como religiosos"[9].
Junto da melancolía propiciada pela lembranga das alegrías passadas - provida pela fala
do narrador a enquadrar o diálogo -, pode-se divisar a ironía, a sinalizar ao leitor os
limites das apreciagoes e do conhecimento do próprio autor. Como precisa Marc
Fumaroli, a melancolía em Castiglione nao é a do "engenhoso á espanhola", resultante da
"tensao melancólica entre a interioridade contemplativa e o "mundo" corrompido"
(Fumaroli, 1980/2002, p. 90).
Depois de ter prevenido o leitor sobre a idealizagao perpetrada pela memoria em relagao
á questao da corte, Castiglione, no último livro, o quarto, esclarece acerca da idéia do
perfeito cortesao. Assim, no quinto parágrafo, vemos que o cortesao perfeito seria
semelhante a um conselheiro de príncipe, ou antes, a um educador, a fim de "dar a ver
ao seu príncipe quanta honra e utilidade nasga para ele e para os seus da justiga, da
liberalidade, da magnanimidade, da mansuetude e das outras virtudes que convenham a
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~
bom príncipe" [10]. Para cumprir esse papel, caberia a este, digamos, "cortesao-mestre"
manejar a pena e as armas, ser eximio cavaleiro, além de ser versado em música e
canto, pintura e escultura.
No entanto, esta mesma fungao de educador de príncipes nao deixa de ser refutada por
outra personagem, a do Magnífico Iuliano, quando, no §XLIV, alerta que tal excelencia de
um cortesao frente a um príncipe seria inconveniente, urna vez que aquele estaría
próvido de maior dignidade que este. Ademáis, quem tivesse o papel de instruir o
príncipe nao deveria ser chamado cortesao, merecendo "nome muito maior e honrado". E
no parágrafo XLVII, encontramos entao urna saída algo irónica para este paradoxo, tal
como podemos observar na fala da personagem Ottaviano: "se nao quiserdes chamá-lo
cortesao, nao me causa aborrecimento; porque a natureza nao colocou tal limite as
dignidades humanas que nao se possa ascender de urna á outra" [11]. Para validar sua
proposigao, cita Hornero, alegando que ele nao só havia erigido dois homens excelentes
como modelos da vida humana - Aquiles, no que concerne as agóes, e Ulisses, no
referente as paixóes, á tolerancia ao sofrimento -, como também deu forma a um
perfeito cortesao: Fénix, "mandado a Aquiles por Peleu, seu pai, para acompanhá-lo e
ensiná-lo a falar e agir" [12]. Por fim, aduz ainda o exemplo de Aristóteles e Platao, que
teriam praticado essa cortesanía perfeita, o primeiro com Alexandre Magno, o segundo
com os reis da Sicilia.
Como vimos, se, em relagao á corte, Castiglione desfaz o construido, ou ao menos
relativiza a fidelidade do retratado frente ao experienciado, no caso do cortesao o comum
é preterido em fungao do incomum.
Nao se retrata o cortesao tal como é, mas tal como se pretende que venha a ser.
Compóe-se como que um cortesao moralizado, reunindo assim atributos variados, a
servir de espelho para o príncipe. A moralizagao provida aqui se assemelha á que propóe
Platao na República (séc. IV a.C/1947, p. 377c-e, livro II,) em relagao aos deuses
retratados por Hornero e Hesíodo. Lembrando que a crítica platónica leva em conta a
educagao das criangas, que, por terem como modelos deuses que podem mentir, ser
vingativos e guerrear entre si, nao viriam a adquirir o hábito da conduta honesta.
Quando voltamos ao retrato de Castiglione, pode-se dizer que é por seu caráter modelar
que ele se perfaz em contornos nítidos, apesar da obscuridade da memoria e do brilho do
desejo. Ademáis, as tintas bagas da melancolía sao entremeadas nao apenas pelas cores
frias da irania, mas também pelas cores quentes das risadas entre os convivas, as quais
se destacam no terceiro livro. Note-se que ao cortesao perfeito é vetada a melancolía
frente ao príncipe, como podemos ler no livro I I , §XVIII.
A corte de Urbino, inicialmente lembrada em alguns de seus aspectos concretos, das
pessoas ilustres que a freqüentavam as atividades que nela se realizavam, é reduzida
sob a mesma condigao idealizada do cortesao: a conversagao civil é proposta e
exemplificada como que ao modo de urna Academia, voltada para um aprendizado e um
prazer intelectual.
No que diz respeito á composigao do tratado, no Livro do Cortesao entrelagam-se ficgao
narrativa e argumentagao para a construgao e modelagem da imagem do perfeito
cortesao. Tem-se ai um tratado moral ao modo de obra poética, no sentido encontrado
em Aristóteles, pelo qual a poesía é considerada "mais filosófica [...] que a crónica, pois
trata antes do geral" (Séc. IV/1980, vol. 9, p. 51b6). Tal como ñas matrizes alegadas de
Platao, Xenofonte e Cicero, Castiglione faz das figuras históricas - recentes personagens, o que - nos termos ainda da Poética aristotélica, ao tratar da poesía
dramática -, prové ao leitor familiaridade e interesse ñas discussóes, além de persuasao
pela verossimilhanga. A razao disso sendo "que o possível é persuasivo; ora, o que nao
ocorreu, nao eremos ainda que seja possível, ao passo que o que ocorreu, é evidente que
é possível" (Séc. IV/1980, vol. 9, p. 51b6).
Dissimular para compor urna harmonía verossímil
Pode-se dizer que esta verossimilhanga poética é reposta á atuagao dos convivas, pelo
recurso á graga e á sprezzatura; termos que parecem se entrelagar, pressupondo-se em
ambos a facilidade, a desenvoltura ñas agóes e conversagao provida pela dissimulagao. O
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~
uso da dissimulagao é indicado para a produgao da graga, ao ser entendida como
ocultagao da arte, da técnica, do esforgo necessário para se efetuar urna agao ou
discurso. Castiglione, no livro I, §XXVI, vale-se de um lugar de Cicero no De Oratore
(séc. I.a.C/1994, livro I), aonde se trata de dois oradores excelentes que buscavam
ocultar o seu "conhecimentó das letras", para dar a ver oragoes que parecessem ter sido
feitas de modo simples, e como que providas antes pela natureza e pela verdade, que
pelo estudo e pela arte. N'C Cortesao, a finalidade dessa agao é produzir o efeito de
naturalidade e simplicidade evitando-se a afetagao, defeito censurado ao cortesao
perfeito, e que ocorre especialmente ao louvar a si mesmo (séc. I.a.C/1994, livro I I ,
§VII). A nogao de sprezzatura igualmente se vale do dissimular, pressupondo a mesma
ocultagao do saber, do estudo e da fadiga necessárias "em todas as coisas que devem
ser bem feitas", acrescentando-se ainda a modestia de "estimar pouco em si mesmo esta
condigao" (séc. I.a.C/1994, livro I I , §XII). A dissimulagao também será recurso
compreendido para as facécias, bem como para a admoestagao familiar.
Essa dissimulagao decorosa será tematizada e elogiada por Torquato Accetto, um século
depois, em seu livro Da dissimulagao honesta (1641/1990), no qual porém amplia-se o
seu valor pela ampliagao de seu espago de uso. Dissimular honestamente, ou
decorosamente, seria condigao reputada a Deus em relagao aos pecados dos homens,
até estes serem desvelados no juízo final, bem como á natureza em relagao á morte,
quando entao se desvelaría o esqueleto humano. Podem ser usuarios da dissimulagao
honesta guerreiros e governantes (Ulisses, Enéias), filhos em relagao a pais (exemplo
dos filhos de Noé), o miserável consigo mesmo. Os exemplos sao extraídos de gregos,
romanos e hebreus de diferentes séculos e condigoes de vida, de personagens da historia
e ficticios. Mas, se de um lado a questao da dissimulagao em Accetto demonstra urna
variedade de tempo e lugar, de outro requer um momento comum de desequilibrio, a
pedir certo arranjo que possa minimizar os efeitos negativos dessa desarmonia. Seu uso
nao se restringe á vida de corte, mas perpassa todo grau de relagoes humanas, seja no
aspecto do equilibrio externo destas relagoes, seja num plano mais propriamente interno
da pessoa consigo mesma.
Assim, a dissimulagao honesta é recurso previsto para variadas situagoes, remetendo, no
entanto, geralmente, a urna mesma condigao: a de enfrentamento de urna dificuldade
por meio do ardil, seja por recuo, desvio, silencio, ocultagao, ou ainda pela imaginagao.
Recorre-se á dissimulagao honesta por benevolencia, respeito, medo, vantagem e/ou
beleza. Quem dissimula honestamente muitas vezes nao teria o poder efetivo de alterar
a sua situagao, mas há casos em que isso também pode se dar, como podemos ver na
passagem bíblica de José e seus irmaos, que Accetto apresenta no capítulo XIII: visando
ajudar sua familia em condigao miserável, José dissimula reconhecé-los para, por fim,
alterar-lhes a situagao sem prejudicar-se. Outro exemplo diverso é o do uso da
dissimulagao por piedade, caso dos filhos de Noé, que fingem nao ver a nudez do pai,
dando-lhe as costas, para cobri-lo sem envergonhá-lo.
E se a dissimulagao, de modo geral, serve tanto para o ataque quanto para a defesa,
quando honesta nao prevé a ofensa, o daño, é voltada antes á adaptagao ao mundo mas,
como se viu, pode prover mudangas. O contexto da autodefesa em presenga do poder de
um soberano é apenas um dos casos de uso do recurso. O seu uso também ocorre entre
os pares por meio das boas maneiras, assim como nota o próprio Accetto no capítulo IX
ao citar Giovanni Della Casa.
Dissimular honestamente remete a um engaño, a um fingimento em prol da paz entre os
convivas. Compoe-se a agao em fungao da companhia. Este "teatro do mundo", metáfora
corrente entre o final do século XVI e inicio do século XVII, dá-se contudo nao só pelo
jogo de aparéncias, pela atuagao em cena dos atores frente á
assisténcia, mas
completa-se pelas intrigas fomentadas nos bastidores.
Os bastidores podem ser divididos entre os segredos de governo e os segredos do
coragao, esferas fora da vista dos espectadores: urna relativa ao governo do Estado; a
outra relativa as intengoes do individuo, do ámbito do governo de si. Shakespeare coloca
este espago em cena em Macbeth, pega na qual expoe os excessos próprios e possíveis
das tiranías e das paixoes; e ainda que nao seja escrito de historia, daquilo que se
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ /
, da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
,«
passou de fato (ou supostamente), nao deixa de apresentar um quadro verossímil do que
se espera que ocorra neste tipo de circunstancia.
Vale lembrar que a sociedade de corte compoe-se também do quadro administrativo, e
de urna necessária racionalizagao para o seu funcionamento. Neste sentido, Giovanni
Botero, em sua Ragion di stato (1589/1990), iria advertir os reis do caráter prejudicial de
conferir "graus e oficios ao favor, antes que ao mérito"; o que teria como efeito negativo
ofender os "valorosos", os quais por sua vez vendo-se preteridos pelos "indignos", iriam
se descuidar do servigo e da obediencia. Ademáis, os povos, sob estes governos se
estimariam desprezados, revoltando-se "por odio do ministro contra o próprio príncipe",
de modo que o príncipe que os mantivesse cairia em descrédito (Botero, 1598/1990, p.
25).
E se para administrar um Estado nao bastam obviamente as aparéncias e os cerimoniais,
também a corte nao se faz apenas de conversagao ligeira, mas exige a fala prudente que
pressupoe silencio, tempo para o pensamento; momento que em termos retóricos
corresponderiam á inventio, categoría que prevé reuniao, selegao e reelaboragao da
materia a ser tratada, em suma, discernimento do que se pretende ou se pode dizer,
para depois expressar este saber de certo modo.
O cortesao ordinario de Refuge
O nobre francés Eustache du Refuge (1564-1617), em seu Traite de la Cour irá
justamente trazer o espago dos negocios e dos interesses que compoem urna corte
(Pérez, 2004, p.46). Seu Tratado é obra renomada, tendo tido ¡mensa difusao no século
XVII, com dezesseis edigoes, e tradugoes para o italiano, inglés, latim e alemao (ídem,
p.39).
Aqui, o título já define o género do escrito. Este tratado porém apresenta-se mais como
descrigao daquilo que é do que como proposigao daquilo que deveria ser - caso este do
Livro do Cortesao -, ainda que mantenha um "mesmo fim pedagógico", o qual pode ser
tomado como de adequagao aos costumes. Ao livro de Castiglione, por sua vez, pode-se
imputar urna intengao transformadora, de reforma de costumes se se quiser; ademáis,
para promover sua proposta de um cortesao perfeito, em urna corte modelar, ele recorre
a urna prosa especular que repoe em termos escritos a elevagao moral proposta e o
prazer da convivencia, a qual é por sua vez exemplificada pela forma dialógica. Já o
escrito de Refuge apresenta urna linguagem plana e mesmo crua, sem adornos, em
acordó com o quadro árido que pinta. A corte deste, contrariamente á daquele, está mais
próxima dos exemplos de Accetto, nao sendo submetida a urna "corrente amorosa" e
reduzida apenas a um momento de jogo intelectual: de modo mais ampio, a conversagao
na corte, logo no inicio do tratado, é divisada como a mais difícil por seu caráter
"mesclado" e por estar sob o influxo de paixoes violentas (Refuge, 1616/1617, p.l).
Para Refuge um mesmo fim move os cortesaos, o de serem favoritos e, logo, favorecidos
do príncipe, provocando assim entre os convivas encontros "rudes e impertinentes". O
trago predominante na corte é a vaidade, o que impediría a aplicagao de regras de
conduta certeiras; condigao esta que amplia o espago aos caprichos do acaso (ídem,
p.l). Essa incerteza se estende, a seu ver, necessariamente aos seus próprios
ensinamentos. Refuge refere-se a eles como um mapeamento análogo ao de urna carta
de navegagao, ainda que "vaga e incerta", urna vez que ele mesmo vivia na solidao.
Note-se que no próprio mapa ele recorre á dissimulagao honesta: evita citar autores
recentes, restringindo-se aos exemplos extraídos apenas dos antigos, a fim de evitar a
inveja dos contemporáneos. Estrategia de defesa e ao mesmo tempo respaldo ao dito,
demonstragao de coeréncia e também certa amplificagao da carga dramática do quadro.
Ao seguirmos o caminho tragado no mapa - formado de definigoes e exemplos -,
partimos das condigoes necessárias para entrar, estar e ficar na corte. Assim, para entrar
ali é preciso civilidade e prontidao para agradar; para se conduzir, perspicacia {accortise)
e destreza {dexterité); e para se manter, paciencia, humildade, ousadia, suficiencia ou
capacidade.
A civilidade é composta de conveniencia {bonne sceance, bonne gracé) e afabilidade. A
primeira se requer ñas palavras (claras, comuns, inteligíveis), ñas agoes e feigoes
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ /
, da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
^,
(comedidas e tranquilas) e ñas vestimentas (sem supérfluos, ao modo corrente). A
segunda compreende receber bem as pessoas, respeitar, ter feigao agradável, escutar
com paciencia, misturar dogura e severidade; também participam aqui as agudezas e
gracejos, a serem usadas moderadamente e sem incorrer na bufonaria. Parte da
afabilidade está nos cumprimentos, que devem pautar-se pela discrigao - que Refuge
pontua ser rara ñas cortes -, e no saber ser grato.
A perspicacia, que parece repor aqui o discernimento de Castiglione, consiste em "saber
diferenciar pessoas, negocios e outras circunstancias e segundo isto regrar o modo de
proceder, sua fala e seu silencio" [13] (Refuge, 1616/1617, p. 16). O reconhecimento do
outro se dá "ou das faculdades interiores, de onde procedem as agoes, ou de suas
condigoes exteriores, por meio das quais podemos descobrir, como que através de urna
nuvem, algo de suas inclinagoes" [14] (ídem, p. 17). Sao divisadas duas potencias
interiores no homem, que proveriam todas as nossas agoes: o espirito e a vontade;
espirito sendo composto de entendimento, imaginagao e memoria. Envereda-se aqui pelas
questoes da prudencia, do temperamento, do entendimento e da imaginagao. Sobre o
homem de imaginagao, podemos ler: "O verdadeiro Imaginativo é ordinariamente grande
falador, incontinente, arrogante, presungoso e vao" [15]. (ídem, p.19).
O quadro de Refuge, ainda que nao promova um rompimento com vínculos éticos - ao
tratar da corte em termos de confuto de paixoes e interesses -, indica as maneiras de
sobreviver ali com limites de comportamento mais expandidos do que o anterior de
Castiglione, e mesmo em relagao ao posterior de Accetto. O pequeño tratado deste,
como vimos, pressupoe a circunstancia de desequilibrio, mas responde ainda em termos
de urna agao, ou reagao, mais contida. Verifica-se urna preocupagao maior com a lógica
da psique do que aquilo que se vé nos tratados de cortesanía de Castiglione e Giovanni
Della Casa (1554/s.d.). Esse interesse pode ser verificado ainda em outros produtos
letrados da primeira metade do século XVII, como os tratados de Camillo Baldi
(1622/1992), sobre escrita de cartas, e do jesuíta Jean Frangois Senault, acerca dos usos
das paixoes [16]. O primeiro interessando-se mais em descobrir marcas no texto que
revelem as características internas de seu autor, e o segundo preocupando-se em bem
saber do interno em geral para controlar as agoes particulares alheias.
As paixoes também sao objeto de Refuge, tanto no sentido de reconhecimento do outro
quanto do uso. Importa ai o reconhecimento da vontade alheia, vontade que imprime o
movimento e poderia ser, portanto, deduzida dos movimentos. Nesse sentido, a postura
reservada, em termos dos gestos e das palavras, serviría justamente para dissimular as
vontades e os afetos sentidos. A reserva (retenue), ou dissimulagao, é assim
apresentada como a principal parte da perspicacia, sendo necessário nao só saber usá-la,
mas reconhecé-la. Trata-se de recurso "necessário a todas as pessoas, mas
sobremaneira ao homem de Corte para conduzir sua Ambigao" [17] (ídem, p.100). Como
todo remedio, a dissimulagao tem a sua dose certa, trazendo perigo pelo excesso, o que
no caso quer dizer trazer a desconfianga sobre si. Feita a advertencia, estabelecem-se os
tres modos pelos quais esse remedio pode ser aplicado: pelo silencio, pelas agoes e pelas
palavras.
Segue-se aqui em meio a algumas consideragoes que serao condensadas posteriormente
por Accetto (1941/1990), e que tém como fim a própria sobrevivencia ou reposigao de
um "equilibrio" desfeito. Assim, Refuge nao irá considerar servilismo ou insensatez que
se responda "algumas vezes agradavelmente e sem irritagao aqueles que estao em
cólera, ou que falam com paixao" [18] (ídem, p.104). nesse ponto, encontramos o
conceito de dissimulagao honesta, elogiado por Accetto: "Com este artificio poderemos
algumas vezes dissimular honestamente, e fazer semblante de nao entender, ou nao
saber, alguma coisa que importa no discurso que nos é feito, a fim de poder ter tempo
de resolver e nao ser pego desprevenido" [19] (ídem, p.104). Note-se que o texto de
Refuge fora traduzido para o italiano já em 1621, por Girolamo Canini d'Anghiari, tendo
sido editado em Veneza por Battista Ciotti (Pérez, 2004, p.39).
Mas, junto da perspicacia, necessária para prover e/ou discernir a dissimulagao, prevé-se
ainda a destreza, a qual parece, por sua vez, repor a sprezzatura de Castiglione, como
podemos entrever pela sua definigao: "Chamamos ordinariamente destros aqueles que
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
-,~
sao propriamente ágeis e habéis a todo tipo de movimentos, e que sabem com
disposigao vencer os momentos difíceis e embaragosos" [20] (Refuge, 1616/1617, parte
I, p.102).
Os meios para se manter na corte apresentam assim urna maior proximidade com o
formulado por Accetto. O elenco destes meios completa-se ainda com as virtudes da
paciencia, da humildade e da ousadia discreta; no entanto, a segunda délas apenas
estaría subentendida em Accetto, enquanto que a última parece se aproximar antes do
discreto de Baltazar Gracián. O emprego destas virtudes é tratado na segunda parte do
tratado.
Da primeira parte, vale destacar a advertencia em relagao á corte. Esta é considerada
lugar improprio - e "insuportável, se a estadía for longa" -, ao "homme de bien", o qual
se vé sujeito as inclinagoes do príncipe, inclinagoes que "com muita freqüéncia sao fora
dos termos da razao e da lealdade" [21] (ídem, parte I I , p.104). Contudo, nota-se que
os homens de bem tém maior utilidade ao príncipe e á organizagao do Estado do que os
maus.
A segunda parte do tratado irá tratar justamente das relagoes do cortesao com o
príncipe, figura ausente na reuniao de Castiglione, mas que é o eixo principal em volta do
qual giram os movimentos dos cortesaos, com seus negocios e interesses. O fim destes,
de obter o favor do príncipe, se diversifica agora, e se apresenta de varios modos: por
proveito, por ambigao e vaidade de honras, pelo desejo de comandar, por inveja, para
"prejudicar e roubar os outros", nuyre, & travailler les autres, segundo o que teria dito
Séneca, sendo poucos os que para lá se dirigem com o fim de servir ao seu senhor
(ídem, parte I I , p.97).
Para se obter o favor do príncipe é preciso que este conhega a "pessoa que busca ser
favorecida" e tenha "contentamente com as suas agoes e condutas" [22] (ídem, parte I I ,
p.97). Um dos caminhos mais trilhados para se conseguir isso seria pelo trabalho em
oficios de comissoes extraordinarias, e negocios particulares do príncipe; o exemplo é de
Crisipo secretario de Tiberio, segundo o que relata Tácito em seus Anais, urna das
principáis fontes de exemplos de Refuge (ídem, parte I I , p.99).
A imagem - definigao - da corte que surge em seguida é inequívoca: a corte "é (se nos é
permitido falar assim) urna grande prostituta, a qual corrompe algumas vezes os mais
íntegros e mais castos" [23] (ídem, parte I I , p.104). Daí preconizar aos que desejam
"levar urna vida totalmente inocente e distante da maneira comum de viver dos homens"
[24] (ídem, parte I I , p.104), que se mantenham afastados délas. O exemplo levantado é
o de um grego, Aristides, encarregado das finangas de Atenas, que
"quis de inicio se comportar como homem de bem e impedir de roubar aqueles que
estavam abaixo dele; logo foi acusado de ser o maior ladrao [...] e com grande
dificuldade pode evitar ser condenado. Tendo enfim sido absolvido e continuado em seu
cargo por algum tempo, resolveu se comportar como os outros tinham feito antes dele,
deixando roubar aqueles que tinham o costume de fazer isso, e entao foi considerado por
todos homem de bem"[25] (ídem, parte I I , p.105).
Ao homem de bem que é obrigado a estar na corte, reitera-se a exigencia da virtude da
paciencia; virtude estoica, a qual, além de poder ser usada frente aos demais cortesaos,
deve servir também para se acomodar aos variados tipos de príncipe. Isto nao
significaría inagao, mas precaugao, podendo-se assim "advertir docemente" seu senhor
quando de urna má intengao (ídem, pp.106-107).
Já a adulagao [26], inadequada nos termos de Castiglione e Accetto, na esteira da
condenagao aristotélica encontrada na Ética a Nicómaco, nao deixa de ser preconizada
aqui, de forma comedida, contudo, já que, segundo Refuge, se de um lado "algumas
vezes muito adular prejudica", de outro o mesmo prejuízo pode se dar "se nao se
recorresse nunca a isso" (ídem, p.109).
De modo algo mais realista, Refuge faz assim um retrato de corte em seus aspectos mais
ampios e corriqueiros, em meio as necessidades da administragao palaciana, do servigo
público-privado, e promove algumas diretrizes para a manutengao da paz e das boas
relagoes para os que nela convivem, ou precisam conviver. Nao se trata da corte
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ /
, da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
francesa, mas da corte em si, enquanto espago que concentra o poder políticoeconómico, lugar que atrai naturalmente os ambiciosos e os vaidosos.
Conclusao
Os escritos vistos, enquanto tratados, nao se pretendem relatos históricos mas filosofías
moráis; e deste ponto de vista nao há diferengas essenciais entre as cortes dos sáculos
XVI e XVII, se grandes ou pequeñas, católicas ou protestantes. O homem de bem,
amante da paz, deve estar sempre atento as flutuagóes de humores e interesses de
príncipes e cortesaos. As relagóes no espago urbano, em geral, ampliam e fomentam, em
todas as épocas, paixóes e necessidades; diversificando-se os modos particulares,
acidentais, históricos, de sua manifestagao. Essa condigao se amplifica muito mais no
espago menos ampio dos palacios, onde a urbanidade estava entao especialmente
confinada, e aonde as paixóes eram sobremaneira acirradas pela proximidade com o
centro de poder político-financeiro, com suas fortunas e infortunios. Já em Castiglione,
livro I I , §XXIX, podemos ver um aspecto geral desse ponto de vista, o qual se assemelha
ao de seus pósteros, por meio da personagem do senhor Bembo, quando diz:
tendo me acontecido mais de urna vez ser engañado por quem mais amava e por quem,
mais do que por qualquer outra pessoa, confiava ser amado, pensei por vezes comigo
mesmo que fosse melhor nao confiar em ninguém no mundo, nem colocar-se ñas maos
do amigo, por mais caro e amado que seja, que sem reserva o homem Ihe comunique
todos os seus pensamentos como faria a si mesmo; pois em nossas almas há tantos
esconderijos e tantos recessos, que é impossível que a prudencia humana possa
conhecer aquelas simulagóes que dentro estao ocultas. Portanto, creio que seja bom
amar e servir mais a um do que a outro, segundo os méritos e o valor; mas nao porém
ter tanta certeza desse doce engodo de amizade, para que mais tarde nao venhamos a
nos arrepender [27].
Do ponto de vista histórico, a passagem do século XVI ao século XVII apresenta - com o
avango do protestantismo - o acirramento da disputa pela recuperagao e/ou manutengao
do espago de influencia do Estado eclesiástico romano, de intengao universal/católica,
junto aos governos seculares. Neste sentido, a Inquisigao alimenta as suas fogueiras com
empenho (recorde-se na península itálica de Giordano Bruno), tentando restringir as
variadas expressóes do corpo, do espirito e da mente. Se, nesse ámbito, há mudangas de
graus na felicidade pela maior ou menor liberdade, pela maior ou menor opressao dos
governantes, percebe-se urna perene experiencia do desengaño, das ilusóes perdidas, no
ámbito mais propriamente privado. Pode-se, portanto, terminar aqui por onde Castiglione
comegou, quando, ainda na sua Carta dedicatoria (parte I), harmónicamente sentenciou:
"/a fortuna, come sempre fu, cosí é ancor oggidi contraria alia virtú", a fortuna, como
sempre foi, também é ainda hoje contraria á virtude.
Referencias
Accetto, T. (1990). Delta dissimulazione onesta (a cura di Salvatore Nigro). 2a ed.
Genova : Costa & Nolan. (Original publicado em 1641)
Aristóteles. (1550). Ethica a Nicomaco (B. Segni, trad.). Firenze : Lorenzo Torrentino.
(Original publicado no séc. IV a.C.)
Aristóteles. (1980). La Poétique (R. Dupont-Roc, Jean Lallot, trads.). Paris : Seuil.
(Original publicado no século IV a.C.)
Baldi, C. (1992). Come da una lettera missiva si conoscano la natura e qualitá de/lo
scrittore. Pordenone : Edizioni StudioTesi. (Original publicado em 1622)
Botero, G. (1990). Delta ragion di Stato e de/te cause delta grandezza de/te cíttá
(ristampa anastatica). Bologna : Forni Editore. (Original publicado em 1598)
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
„
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
~,,
Burke, P. (1995). A arte da conversagao (A. L. Hattnher, trad.)- Sao Paulo: Unesp.
(Original publicado em 1993)
Castiglione, B. (s/d). // Cortegiano, em Opere di Baldassare Castiglione, Giovanni della
Casa, Benvenuto Cellini(a cura di Cario Cordié). Milano-Napoli: Ricciardi. (Original
publicado em 1528)
Castiglione, B. (1965). // Libro del Cortegiano (a cura di Giulio Preti). Torino: Einaudi
Editore. (Original publicado em 1528)
Cicero. (1950). De l'orateur (E. Courbaub, trad.). Paris: Les Belles Lettres. 3 vols.
(Original publicado no séc. I a.C.)
Cicero. (1964). L'orateur (A. Yon, trad.). Paris : Les Belles lettres. (Original publicado no
séc. I a.C.)
Cicero. (1994). Dei doveri (a cura di Dario Arfelli). Milano: Mondadori. (Original publicado
no séc. I a.C.)
Della Casa, G. (s.d.). Galateo ovvero de' costumi, in Opere di Baldassare Castiglione,
Giovanni della Casa, Benvenuto Cellini (a cura di Cario Cordié). Milano-Napoli :
Ricciardi. (Original publicado em 1554)
Fumaroli, M. (2002). Essor et desastre de la premiére Renaissance cicéronienne. Em
L'áge de l'éloquence (pp.77-115). Paris: Droz. (Original publicado em 1980)
Pérez, J. L. (2004). Cortesía y sociedade: Las "Artes de vivir" de Gerolamo Cardano y
Eustache de Refuge. Cuadernos de Historia Moderna, 3, 23-57. Retirado
em 10/12/2006,
do
World
Wide
Web :
http://www. ucm.es/BUCM/revistasBUC/portal/modu los. php?name=Revistas2&id =
CHMO .
Platao. (1947). La république (E. Chambry, trad.; Oeuvres completes, Vol. 6). Paris : Les
Belles lettres. (Original publicado no séc. IV a.C.)
Platao. (1997). // Sofista (Premesse, traduzioni e note di Gino Giardini). Em Platone :
Tutte le opere (testo greco a fronte). Milano : Newton. (Original publicado no séc.
IV a.C.)
Refuge, E. du. (1617). Traite de la Cour. S.l. : S.n. (Original publicado em 1616)
Senault, J-F. (1987). De l'usage des Passions. Paris : Fayard. (Original publicado em
1641)
Notas
[1] A obra de Refuge seria traduzida para o inglés sob o título Arcana Áulica; or,
Walsingham's manual of prudential maxims, for the statesman and courtier, por Edward
Walsingham (London: Matthew Gillyflower, 1694). A tradugao inglesa, por sua vez, foi
vertida para o francés por Louis Boulesteis de la Contie em 1695, sob o título Le secret
des cours, ou les memoires de Walsingham, sendo, no entanto, erróneamente atribuido a
Francis Walsingham, famoso secretario da rainha Elisabeth I I , chefe da agencia de
espionagem inglesa.
[2] Sócrates é o exemplo, mas a diferenciagao entre os discursos públicos e a
conversagao civil encontra-se no Sofista (Platao, séc. IV a. C./1997, 222c), quando da
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
.,,-
divisao das técnicas persuasivas em dikaniké, relativa ao judiciário, demegoríké, relativa
á fala em assembléia popular, e prosomiletiké, relativa á conversagao em sociedade.
[3] "ms di pittor ¡gnobile e che solamente sappia tirare le linee principa I i, senza adornar
la veritá de vaghi colorí o far parer per arte di prospettiva que/lo che non é".
Traduzo as passagens citadas de autores franceses e italianos de modo a manter certa
cor antiga, seja ñas palavras ("prospectiva" em lugar de perspectiva),
seja ñas expressoes ("fazer semblante de").
[4] ""tanto difficile e quasi impossibile trovar un orno cosíperfetto".
[5] "insegnare quello che imparare non si pó".
[6] ""lassando il disputare del mondo intelligibile e del le idee; tra le quali, sí come,
secondo quella opinione, é la idea della perfetta república e del perfetto re e del perfetto
oratore, cosí é ancora quella del perfetto cortegiano".
Note-se que ""lassare" vem do latim laxare, estender, alargar.
[7] ""non son tanto privo di giudicio in conoscere me stesso, che mi presuma saper tutto
quello che so desiderare".
[8] ""ogni bon eos tu me e bona maniera di vivere, ogni virtú, in somma ogni cosa, andar
sempre di mal in peggio".
[9] ""molto piú eccellenti e piene di omini singulari [...] regnavano tanti boni costumi,
tanta onestá, che i cortegiani tutti erano come religiosi".
[10] "far vedere al suo principe quanto onore ed utile nasca a lui ed alli suoi dalla
giustizia, dalla liberalitá, dalla magnanimitá, dalla mansuetudine e dall'altre virtú che si
convengono a bon príncipe".
[11] "se non vorrete chiamarlo cortegiano, non mi da noia; perché la natura non ha
posto tal termine alie dígnita umane, che non si possa ascenderé dall'una a I I'al tra".
[12] ""esser stato mandato ad Achí He da Pe/leo suo padre per starg/i in compagnia e
insegnarg/i a diré e fare"
[13] ""savoir faire difference des personnes, des affaires, & se/on cela regler sa facón de
proceder, son par/er, & son silence".
[14] ""ou des facultes interieures, desquelles procedet leurs actios, ou de leurs conditions
exterieures par le moye desquelles nous pouvoos descouvrir comme au travers d'un
nuage que/que chose de leurs inclinations".
[15] ""Le vray Imagina tif est ordinairement grand parleur, incontinent, arrogant,
presompteux, & vain".
[16] cf. de Camillo Baldi (1622/1992) e de J-F Senault (1641/1987).
[17] ""necessaire á toutes sortes de personnes, si l'est elle d'avantage á un homme de
Court pour conduire son Ambition".
[18] ""quelquesfois plaisamment, & sans se fascher contre ceux qui sont en colere, ou qui
parlent avec passion ".
[19] ""Avec cest artífice nous pourrons quelquesfois dissimuler honnestement, & faire
semblant de ne point entendre ou de ne point scavoir que/que chose qui importe au
discours que ron nous faict, afín de pouvoir avoir temps pour res pondré & de n'estre
point pris au despourveu ".
[20] ""Nous appellons ordinairement Ad extres ceux lesquels sont legers propres & hábiles
á toutes sortes de mouvemens, & qui scavent avec disposition surmonter les mauvais &
fascheux passages".
[21] ""les plus souvent se trouvent hors des termes de raison & de prudhommie".
[22] ""personne qui recherche d'estre favorisee, & un agréement de ses actions, &
deportemens".
[23] ""est (s'il nous faut ainsi parler) une grande putain I aquel le corrompí aucunesfoys les
plus entiers & les plus chas tes".
[24] ""mener une vie du tout innocente & esloignee du train ordinaire de vivre des
hommes".
[25] ""s'y voulut porter au commencement en homme de bien, & empescher de dérober
ceux qui estoient soubs luy, incontinent il fut acusé d'estre le plus grande volleur [...] & á
grande peine peust il eviter d'estre condamné. Ayant toutesfois en fim esté absoulz, &
continué en sa charge pour que/que temps, i I resolut de s'y comporter come les autres
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge.
Memorándum, 14, 25-36. Retirado em
/ / , da World Wide Web
~,¿_
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
avoient fait devant luy, layssant dérober ceux qui avoient coustume de ce faire, & lors ¡I
se tro uva fort homme de bien au diré de tous".
[26] kdulatione na tradugao da Ética nicomaquéia por Bernardo Segni, datada de 1550,
libro secondo, p.108. (Aristóteles, séc. IV a.C/1550).
[27] "essendo a me intervenuto piú d'una volta /'esser ingannato da chi piú amava e da
chi sopra ogni altra persona aveva confidenzia d'esser amato, ho pensato talor da me a
me che sia ben non fidarsi mai di persona del mondo, né darsi cosí in preda ad amico,
per caro ed amato che sia, che senza riserva /'orno gli comunichi tutti i suoi pensieri
come farebbe a se stesso; perché negli animi nostri sonó tante latebre e tanti recessi,
che impossibil é che prudenzia umana possa conoscer quelle simulazioni, che dentro
nascose vi sonó. Credo adunque che ben sia amare e serviré /'un piú che l'altro, secondo
i meriti e 7 valore; ma non pero assicurarsi tanto con questa do Ice esca d'amicizia, che
poi tardi se n'abbiamo a pentire".
Nota sobre o autor
Edmir Missio é doutor em Teoría Literaria pelo Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campiñas, e pós-doutor pelo Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas, Faculdade de Filosofía Letras e Ciencias Humanas, Universidade de Sao
Paulo. Atualmente participa do grupo "Educagao, Historia e Cultura no Brasil Colonia:
1549-1759" (DEHSCUBRA).
Data de recebimento: 08/01/2007
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
-_
A introducao das idéias relativas á psicanálise de
criancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos
The introduction of ideas relating to the children psychoanalysis in brazil
through Arthur Ramos' work
Jorge Luís Ferreira Abrao
Universidade Estadual Paulista
Brasil
Resumo
O artigo apresenta a introdugao das idéias relativas á psicanálise de changas no Brasil
ñas primeiras décadas do século XX, na obra de Arthur Ramos. Partindo de urna
investigagao histórica, foram destacados da obra de Arthur Ramos os trabalhos
dedicados ao tema da análise de changas. Identificou-se a ocorréncia de duas fases
distintas e complementares no que concerne as características de sua produgao
psicanalítica. Na primeira, o autor limita-se a introduzir os conceitos psicanalíticos no
meio educacional, familiarizando os professores com esta forma de pensamento. Na
segunda, é introduzida urna prática de assisténcia a changas com problemas escolares
que foi inspirada na teoria psicanalítica e desenvolvida em Clínicas de Orientagao Infantil.
Conclui-se que com base ñas formulagoes psicanalíticas e no trabalho prático, Ramos
introduziu inovagoes no entendimento das dificuldades escolares da changa.
Palavras-chave: Arthur Ramos; psicanálise de criangas; historia das criangas.
Abstract
The article presents the introduction of the children psychoanalysis ideas in Brazil in the
first decades of the 20 th century, through Arthur Ramos' work. Starting from a historical
investigation, there were chosen from Arthur Ramos' work, those works dedicated to the
theme of the children analysis. It was identified two distinct and complementary phases
in the characteristics of his psychoanalytic production. In the first, the author limits
himself to introduce the psychoanalytic concepts in the educational environment,
familiarizing the teachers with this kind of thought. In the second time, it was introduced
a practice of assistance to children with school problems, inspired in the psychoanalytic
theory and developed at Children Garden Clinics. It's possible to conclude, considering
the psychoanalytic formulations and its practical work, that Ramos introduced
innovations in the understanding of the school difficulties presented by the child.
Keywords: Arthur Ramos; children's psvchoanalysis; children's history.
Introdugao
De acordó com os anais da historiografía psicanalítica no Brasil, as primeiras referencias
as idéias de Freud surgiram ainda no século XIX, quando em 1899 Juliano Moreira fez as
primeiras referencias ao tema em sua Cátedra de Psiquiatría na Faculdade de Medicina
da Bahia (Perestrello, 1986). Inaugura-se assim, um período de difusao da psicanálise
que marca os primeiros acordes que constituíram o processo de introdugao desta ciencia
no país. Entre os autores que se destacaram como precursores (1) do movimento
psicanalítico no Brasil, destacaram-se um séquito de profissionais composto por
psiquiatras, pediatras, educadores, entre outros, cujos nomes de maior destaque sao os
seguintes: Julio Pires Porto-Carrero (1887-1937), Franco da Rocha (1864-1933),
Deodato de Moraes, Gastao Pereira da Silva, Hosannah de Oliveira, Antonio da Silva
Mello, Ayrton Roxo, Mauricio de Medeiros (1885-1966) e Arthur Ramos (1903-1949)
(Mokrejes, 1993).
Como característica nodal, estes autores nao tinham como objetivo principal apropriar-se
da psicanálise enquanto método terapéutico afeito ao tratamento de pacientes
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanalise de enancas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
-„
neuróticos, ao contrario, a tomavam como um arcabougo teórico passível de ser aplicado
a diferentes esferas do universo cultural e científico. Neste sentido, a psicanalise surge
no país como um conjunto de idéias ¡novadoras, e bastante apropriadas portanto, ao
projeto de modernidade que comegava a fervilhar em diferentes regioes do Brasil, ñas
primeiras décadas do século XX. Um bom exemplo do que estamos afirmando, a
influencia que a psicanalise exerceu sobre o movimento modernista na década de 1920
Comenta Carmen Lucia Valladares de Oliveira (2006, p. 63):
Em 1920, enquanto Franco da Rocha fornecia urna
explicagao científica sobre os comportamentos e
tendencias de urna sociedade que parecía ter perdido a
razao, as idéias freudianas comegavam a circular
igualmente no meio intelectual e artístico de Sao Paulo
onde foi fundado o movimento literario e artístico mais
importante do país: o Modernismo.
É com este espirito que muitos dos precursores da psicanalise no Brasil procuraram
introduzir as idéias de Freud na medicina, na educagao, ñas artes e na literatura.
Particularmente na esfera da educagao, encontramos um séquito de autores que se
dedicaram a veicular informagoes relativas a psicanalise de changas, particularmente
Arthur Ramos, Julio Pires Porto-Carrero, Deodato de Moraes, Gastao Pereira da Silva e
Hosannah de Oliveira, que se destacaram como precursores da psicanalise de changas no
país (Abrao, 1999, 2001). Entre estes autores merece particular atengao o nome de
Arthur Ramos, médico alagoano que entre o seu eclético interesse intelectual, teve o
mérito de dedicar-se á psicanalise e á educagao, Ao procurar estreitar as relagoes entre
estas duas áreas de conhecimento trouxe contribuigoes importantes que reverberaram ao
longo de anos e influenciaram muitas geragoes de profissionais que o sucederam.
Delimitacoes metodológicas
Deste modo o presente artigo surge com o objetivo de apresentar o período inicial da
difusao das idéias relativas á psicanalise de changas no Brasil, particularmente durante a
década de 1930, tomando como referencia a obra de Arthur Ramos. Esta escolha
justifica-se na medida em que este autor destacou-se entre seus contemporáneos, pois
além de divulgar sistemáticamente as idéias psicanalíticas em suas publicagoes no
período em questáo, teve o mérito de introduzir, de forma pioneira no Brasil, um modelo
de atendimento á crianga com dificuldades escolares inspirado na teoria psicanalítica, que
serviu de paradigma para as políticas de atengao ao escolar deficitario na primeira
metade do século XX, e influenciou muitos profissionais de sua geragáo.
Para darmos exeqüibilidade a este objetivo destacamos, na vasta e eclética obra de
Arthur Ramos, todos os trabalhos, publicados entre as décadas de 1930 e 1940 voltados
ao tema da crianga, período em que o autor dedicou-se ao assunto de forma bastante
intensa. Desta forma, temos, entre os trabalhos compulsados neste estudo, os livros:
Educagao e psychanalyse (1934a), A crianga problema (1939a) e Saúde do
espirito-.Higiene MentaI (1939b) e os artigos: A technica da psychanalyse infantil'(1933),
Os furtos escolares (1934b), A mentira infantil (1937), A dinámica afetiva do filho
mimado (1938a) e O problema psycho-sociologico do filho único (1938b).
O conjunto destes trabalhos foi analisado levando-se em consideragáo o contexto
histórico em que surgiram, as informagoes psicanalíticas que veiculavam, a forma de
apropriagáo e compreensáo da teoria psicanalítica proposta pelo autor e as propostas de
intervengáo junto á crianga decorrentes das hipóteses teóricas veiculadas.
Assim, após breves, porém esclarecedoras, consideragoes biográficas sobre Arthur
Ramos, passaremos a discutir o seguimento de sua obra dedicado ao tema da psicanalise
de criangas, destacando duas fases principáis no que concerne á compreensáo e
utilizagáo deste sistema teórico: a primeira, voltada a divulgagáo de informagoes
psicanalíticas no meio educacional brasileiro e a segunda, dedicada ao desenvolvimento
de um trabalho prático destinado ao atendimento de criangas com dificuldades escolares.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanalise de enancas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Um pensador eclético
Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu em Pilar, no Estado de Alagoas, em 1903.
Formou-se pela renomada Faculdade de Medicina da Bahia, onde defendeu, aos 23 anos,
sua tese de doutorado intitulada: Primitivo e Loucura. Após um breve percurso
profissional no Estado da Bahia, tendo sido nomeado em 1928 medico legista atuando no
Instituto Nina Rodrigues, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde fixou residencia em
1934.
Foi no Rio de Janeiro que Arthur Ramos desempenhou as atividades profissionais mais
expressivas de sua vida. Em 1934 assumiu a chefia da Segáo de Ortofrenia e Higiene
Mental, em 1935, com a criagao da Universidade do Distrito Federal foi convidado a
ocupar a cátedra de Psicología Social e em 1946 foi nomeado professor de Antropología
na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (Campos, 2001).
Médico de formagao e antropólogo por vocagao. Arthur Ramos trilhou um percurso
intelectual bastante eclético, mas nao por isto superficial. Entre sua vasta produgao
intelectual composta por 17 livros e mais de quatrocentos artigos científicos,
encontramos obra de grande expressao como o livro Introdugao a Psicología Social,
publicado em 1936, que se constituiu em um marco da psicología no Brasil.
No que concerne á psicanalise, seu interesse foi despertado desde o inicio de sua vida
académica. Homem dotado de grande erudigao, dominava com facilidade os idiomas
inglés, francés e alemao, o que Ihe garantiu relativa facilidade para entrar em contato
com os textos origináis de Freud e de seus seguidores, sem a necessidade de recorrer a
comentadores ou tradutores destes textos. Desde cedo empregou a teoria psicanalítica
no desenvolvimento de seu pensamento científico, basta lembrarmos, por exemplo, que
sua tese de doutorado encontra-se amplamente sustentada na teoria psicanalítica,
trabalho de grande valor, "(...) receberia o Premio Alfredo Brito e seria comentado em
revistas francesas, americanas e argentinas de Neurología e Psiquiatría. O próprio Freud
escreve-lhe, elogiando-a" (Perestrello, 1986, p. 136). No entanto, foi somente a partir de
sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1934, que os trabalhos dedicados á psicanalise de
criangas comegam a ocupar um lugar relevante na obra deste autor.
Em 1949, Arthur Ramos transferiu-se para Paris em fungao de sua nomeagao como
Diretor do Departamento de Ciencias Sociais da UNESCO, onde veio a falecer, no mesmo
ano, vitima de problemas cardíacos.
Um novo olhar sobre a crianza
Arthur Ramos destaca-se entre os precursores da psicanalise de criangas no Brasil, pois,
além de teorizar amplamente sobre o tema, como fizeram alguns de seus
contemporáneos, teve o mérito de migrar do campo da retórica para a prática,
introduzindo uma modalidade de atendimento á changa fundamentada em principios
psicanalíticos. Assim, podemos dividir suas contribuigoes ao tema em dois períodos
distintos, porém diretamente relacionados: o primeiro destinado á publicagáo de
trabalhos e divulgagáo de idéias concernentes á psicanalise de criangas e a aplicagáo da
psicanalise á educagáo e o segundo centrado no desenvolvimento de um trabalho prático
voltado ao atendimento de criangas com problemas de aprendizagem ou alguma
dificuldade comportamental, denominadas na ocasiáo de "criangas problemas".
No primeiro momento, Arthur Ramos segué uma tendencia introduzida no Brasil, poucos
anos antes, por Deodato de Moraes (1927) e Porto-Carrero (1929 e 1929a), através da
qual os conhecimentos psicanalíticos, em consonancia com o ideario da "Escola Nova" (2)
eram empregado para sustentar uma nova gestao educacional. Dentro desta abordagem,
publica em 1934, o livro Educagáo e Psychanalyse, que teve por finalidade, segundo as
próprias palavras do autor, vulgarizar a teoria psicanalítica aplicada a educagáo.Temos
assim um livro de natureza teórica, destinado a educadores, com a intengáo de auxilíalos a entender o comportamento dos alunos.(3) Neste sentido, encontramos no referido
volume uma exposigáo muito bem fundamentada da teoria freudiana sobre sexualidade
infantil e da psicología individual de Adler.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
-„
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
No primeiro capítulo de seu livro, Arthur Ramos procura fundamentar teóricamente a
insergao da psicanálise na educagao. Argumenta nao ser a psicanálise um novo método
de ensino que vise substituir aqueles já existentes, ao contrario, a teoria freudiana
aplicada a educagao tem por objetivo auxiliar na resolugao daqueles problemas que
interfiram no processo educacional. Define esta atuagao da seguinte forma:
A grande ajuda da psychanalyse a pedagogía está na
investigagao
da
vida
psychica
profunda,
do
inconsciente. Ella esclarece os movéis recónditos de
todas essas situagoes inconscientes difficeis, que véem
sendo o desespero de todas as psychologias e onde os
tests fracassam redondamente. O que muitas vezes se
julga um atraso mental, um apoucamento da
inteligencia revelou-se como sendo inibigoes escolares,
em conseqüéncia de conflictos (Ramos, 1934a, p.16).
Temos aqui urna citagao histórica de grande amplitude, ao ressaltar as interferencias dos
fatores emocionáis na produgao intelectual do aprendiz. Aquilo que aos olhos do mestre
desavisado, ou melhor dizendo, desinformado, pode figurar como falta de inteligencia, e
entendido como urna inibigao da capacidade de aprendizagem por aquele professor que
travou contato com a teoria psicanalítica. A explicagao para esta dificuldade de
aprendizagem surge no capítulo dedicado a "Contra-sexualidade e o Sentimento de
Culpa", ao afirmar que: "Os fracassos e as inibigoes escolares sao a expressao do
mecanismo inconsciente de auto punigao. (...) originados das primitivas interdigóes
brutaes da sexualidade e da má resolugao das situagoes edipianas" (Ramos, 1934a, p.
121).
Tal afirmagao é de grande significado, pois introduz urna distingao bastante ¡novadora
para a época entre changas com déficit intelectual e criangas com problemas emocionáis.
Esbogada de forma pouco precisa em 1934, esta distingao ganhará contornos mais
nítidos em 1939, como decorréncia de urna prática de atendimento a criangas com
problemas escolares, apresentada no livro A Crianga Problema, no qual encontramos o
seguinte comentario:
A nossa experiencia no exame dos escolares "difíceis"
mostrou que havia necessidade de inverter os dados
clássicos da crianga chamada "anormal". Esta
denominagao - impropria em todos os sentidos englobava o grosso das criangas que por varias razóes
nao podiam desempenhar os seus deveres de
escolaridade, em paralelo com os outros companheiros,
os "normáis". (...) A grande maioria porém podemos
dizer os 90% das criangas tidas como "anormais",
verificamos na realidade serem criangas difíceis,
"problemas", vítimas de urna serie de circunstancias
adversas (...) (Ramos, 1939a, p. 13).
Sao estas criangas que virao a beneficiar-se de urna educagao orientada por principios
psicanalíticos.
No tocante ao atendimento de chamada crianga problema, argumenta Ramos em 1934,
adotando o ponto de vista de Oskar Pfister (1873-1956), serem os casos mais simples
passíveis de resolugao pelos próprios professores que tenham um certo conhecimento da
psicanálise, ficando reservado ao médico psicanalista apenas aqueles casos mais graves
de difícil resolugao, urna vez que esses casos necessitam de atendimento mais
especializado capaz de produzir modificagóes na personalidade da crianga. Cabe
constatar, no entanto, que, embora o autor faga referencias a casos simples e graves,
nao diferencia a natureza destes problemas. Com relagao a criangas normáis, a análise
nao é indicada como medida profilática. Nestes casos, o professor deve, simplesmente,
observar o aluno para identificar possíveis problemas.
Evidentemente, para que o professor guie-se pela psicanálise em sua prática pedagógica
e realize a fungao a ele atribuida, de resolver os problemas escolares mais simples
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.„
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
manifestados pelos alunos, é necessário que este profissional receba urna adequada
formagao analítica. Desta forma, fica evidente que "Para urna orientagao pedagógica de
base psychanalytica é indispensável a correta formagao mental do educador" (Ramos,
1934a, p. 161), além do acesso as informagoes teóricas que o familiarize com a teoria
psicanalítica.
O capítulo dedicado á prática da psicanálise de changas, denominada por Ramos de
pedanálise profunda, é de particular importancia em nosso estudo, pois veicula muitas
informagoes sobre o tema, permitindo com isto compreender a forma como este autor
compreendia as publicagoes psicanalíticas voltadas á infancia.(4) A síntese por ele
apresentada destaca-se pela agugada compreensao de diferentes autores psicanalíticos
que teorizaram sobre esta prática na infancia. Encontramos referencias aos trabalhos de
Anna Freud, Melanie Klein, e Sophie Morgenstern (1875-1940). Chama a atengao á
diversidade de psicanalistas comentados por Arthur Ramos em seu texto, em urna época
em que a maioria dos autores nacionais dedicados ao tema limitavam-se a comentar
Freud, citando ocasionalmente os demais teóricos. Outra característica, de valor
histórico, que deve ser destacada é a extrema atualidade das citagoes ali encontradas. A
título de ilustragao, cabe destacar a referencia ao livro A Psicanálise de Changas,
publicado por Melanie Klein em 1932. Para além da cronología, este fato aponta o
interesse do autor no tema, que se mantinha em contato efetivo e constante com as
publicagoes européias relativas a este assunto.
Aponta ainda existencia de algumas diferengas entre a análise de adultos e de criangas
ao afirmar que; "A sua primeira e elementar diferenga da analyse do adulto está
evidente, em que esta é urna personalidade desenvolvida ao passo que a creanga é um
ser incompleto, dependente e em formagao." (Ramos, 1934a, p. 142), para em seguida,
fundamentar esta afirmagao em Anna Freud, ao discutir as dificuldades na análise de
criangas. Na seqüéncia, passa a expor com muita propriedade as principáis contribuigoes
sobre a técnica da análise infantil, apontando os sonhos e as fantasías diurnas como ricas
fontes de material inconsciente. Comenta, também, a importancia da técnica do jogo
criada por Melanie Klein, que é definida por Artur Ramos da seguinte forma:
Nos
brinquedos,
as
creangas
representam
symbolicamente desejos, esperangas, num modo
archaico de expressao, mas há ainda identificagoes
primarias, em que os brinquedos "desempenham
papéis" em situagoes em que a creanga é o próprio
interessado. Todas as reagoes de comportamento da
creanga em relagao as suas bonecas, aos seus
animaezinhos de pau, etc, sao assim a expressao
directa de urna attitude em face das primeiras pessoas
de seu entourage: pae, mae irmaos, etc (Ramos,
1934a, p. 146).
Arthur Ramos destaca a importancia da transferencia na análise da changa, apontando as
diferengas com relagao ao fenómeno transferencial apresentado pelo adulto.
Acompanhando os ensinamentos de Anna Freud, sugere que o analista infantil, ao invés
de colocar-se em urna posigao passiva ante a transferencia da crianga, deve, ao
contrario, adotar urna postura ativa. Desta forma, para a crianga, o analista nao se
constituí em um objeto de atualizagao dos esquemas amorosos infantis, mas sim como
urna pessoa real com quem a crianga pode relacionar-se e partilhar seus afetos,
servindo, desta maneira, como um agente educativo, auxiliando na formagao de seu
superego. Concluí o capítulo afirmando que 'A analyse infantil deve, pois, terminar-se
por urna educagao de base psychanalytica" (Ramos, 1934a, p. 151), educagao esta, que
deve ser estendida para além das fronteiras analíticas, tendo em vista seu valor
profilático.
A versatilidade e consistencia teórica demonstradas por Artur Ramos, ao transitar com
seguranga por diferentes teóricos da psicanálise de criangas, virao constituir-se em urna
base segura para o desenvolvimento de urna prática, que, fundada em urna compreensao
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.,
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
._
psicanalítica da infancia, tornou-se capaz de elucidar alguns dos problemas escolares
manifestados pelas changas.
Chegamos assim, a segunda fase do trabalho de Arthur Ramos enquanto precursor a
psicanálise de changas no Brasil. As reformas educacionais denominadas de "Escola
Nova", a pouco referidas, tiveram lugar notadamente na cidade do Rio de Janeiro,
principal centro político e cultural da época, através da "Reforma Anísio Teixeira" (5) do
ensino municipal. No bojo destas reformas educacionais foi instituida, em setembro de
1933, junto ao Instituto de Pesquisas Educacionais do Departamento de Educagao do
Distrito Federal a Segao de Ortofrenia e Higiene Mental. Trata-se, a nosso juízo, do
primeiro servigo de higiene mental (6) criado no Brasil, e, provavelmente, em toda a
América Latina.
A convite de Anísio Teixeira (1900-1971), Arthur Ramos assume a chefia deste servigo,
cargo que ocupou desde sua fundagao até 1939. Como sustenta Luitgarde Oliveira
Cavalcanti Barros (2003, p. 51),
para organizar e dirigir a Segao de Ortofrenia e Higiene
Mental, é escolhido um médico alagoano, Arthur
Ramos, respeitado na Escola Baiana por sua dedicagao
ao estudo das mais modernas teorías no campo da
psicanálise, e sua atuagao profissional numa visao
abrangente da medicina, encarando a doenga em seus
aspectos patológicos e sociais.
É justamente por intermedio desta moderna e abrangente visao da medicina e, por
conseguinte, da doenga, que Arthur Ramos pode conceber um modelo de atendimento á
crianga em que os problemas escolares eram compreendidos a partir de diferentes
perspectivas: pedagógica, social e psicológica. Devemos acrescentar ser esta urna visao
altamente ¡novadora para a época.
Através dos escritos legados pelo próprio Arthur Ramos, idealizador e executor do servigo
de higiene mental escolar, temos acesso ás informagoes relativas aos atendimentos
oferecidos ás criangas na Clínica de Orientagáo Infantil e sobre as conclusoes teóricas
advindas da casuística deste servigo, que atingiu um total de 2000 criangas atendidas em
um período de cinco anos.
Estas conclusoes foram apresentadas em artigos publicados ao longo dos anos, de 1934
a 1938, e ganharam urna sistematizagáo no livro A Crianga Problema, (7) publicado em
1939. (8) O referido livro, assumiu grande projegáo, tendo sido amplamente comentado
por varios teóricos do campo da educagao de entáo, o que levou Anísio Teixeira a
escrever urna carta para Arthur Ramos, datada de 15 de novembro de 1939, na qual
comentava:
Um dos maiores livros de educagao escritos entre nos.
Quando o estudioso de 1980 procurar saber o que se
fez na década de 30-40, deter-se-á assombrado diante
de sua obra. Vocé é dos poucos entre nos que está
realmente trabalhando no futuro (Teixeira citado por
Barros, 2003, p. 18).
Com o intuito de colocar em execugao o programa de higiene mental idealizado por
Arthur Ramos, foram criadas clínicas ortofrénicas em seis escolas do Rio de Janeiro,
visando proporcionar atendimento a criangas em idade escolar, sao elas: Escola Barbara
Otoni, Escola Argentina, Escola México, Escola Estados Unidos, Escola Manuel Bonfim e
Escola General Transpawski. Em 1937, teve lugar na Escola General Transpawski urna
clínica de hábitos para o atendimento de criangas pré-escolares.
A finalidade destes servigos nao estava centrada únicamente no atendimento áquelas
criangas que apresentavam dificuldades no ámbito escolar, a quem Arthur Ramos
prefería chamar de criangas problemas ou criangas difíceis. A avaliagáo das condigoes
físicas e emocionáis destas criangas, bem como a assisténcia e orientagáo para a
resolugáo dos problemas por elas manifestados, constituía-se, táo somente, em urna das
atribuigoes da clínica de orientagáo infantil, que deveria abranger também um trabalho
preventivo. Neste sentido, figuravam também como metas da Segáo de Ortofrenia e
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
._
Higiene Mental os seguintes objetivos: formagao mental do professor, educagao do
público através de divulgagao de informagoes por jomáis e radios e formagao e
orientagao dos pais por intermedio de programa educativo transportado ao lar.
Com relagao á intervengao de natureza preventiva, podemos destacar a importancia
atribuida á educagao da changa, tanto no lar como na escola, para o desenvolvimento
saudável de sua personalidade, livre de inibigoes e de disturbios neuróticos. Deste modo,
as clínicas de orientagao infantil propunham um trabalho de divulgagao, entre pais e
professores, de alguns principios da higiene mental que poderiam ser aplicados, á
educagao da crianga. Tal proposta ganhou concretude através da produgao de urna vasta
literatura de vulgarizagao publicada em livros, jomáis e revistas, nos quais os principios
da higiene mental eram enunciados.
Um bom exemplo do que acabamos de afirmar pode ser encontrado em um livro
publicado por Arthur Ramos, em 1939, pela Secretaria Nacional de Educagao Sanitaria do
Ministerio da Saúde, sob o título: Saúde do Espirito: Higiene mental. Esta publicagao,
embora nao esteja diretamente vinculada a Segao de Ortofrenia e Higiene Mental, ilustra
com a necessária exatidao a filosofía de trabalho que o autor empregou durante sua
gestao junto a este centro de assisténcia a crianga, circunscrevendo entre seus objetivos
o de "(•••) dar regras práticas e gerais para a corregao dos desajustamentos e conflitos
psíquicos que geram a angustia, a incapacidade e a dor" (Ramos, 1939b, p. 5). Nos
capítulos deste volume, destinados a higiene mental na infancia, o autor destaca a
influencia que o meio, sobretudo a familia, exerce na formagao da personalidade da
crianga, destacando o papel da psicanálise no alargamento desta compreensao, o que é
precisado nos seguintes termos:
O pai, a mae, os irmaos, outras pessoas tém influencia
transcendente na vida da crianga. A velha educagao
sabia da importancia do fato. Mas foram as novas
escolas da psicología, principalmente a psicanálise e a
psicología individual, que mostraram a importancia dos
adultos, em primeiro lugar dos pais, na formagao
psicológica da crianga (Ramos, 1939b, p. 45).
Esta concepgao reforga a necessidade de orientar os pais, com base em principios
psicanalíticos, para que sua influencia sobre os filhos seja de natureza benéfica,
favorecendo seu desenvolvimento psicológico.
De modo análogo ao ocorrido na intervengao de natureza preventiva, o atendimento
conferido a crianga problema pelas clínicas de orientagao infantil, encontrava-se
fortemente embasado na teoria psicanalítica, como procuraremos demonstrar. Cumprenos agora, compondo a cena a partir dos indicios fornecidos por Arthur Ramos, descrever
o modelo de atendimento empregado pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental e
apontar sua afinidade com a psicanálise.
No que concerne ao atendimento das changas problemas realizado pelas clínicas de
orientagao infantil, foram desenvolvidos alguns procedimentos básicos a serem
executados pela equipe técnica, que era constituida por médicos e professores (9) que
integravam este servigo. Assim, a crianga era submetida a exames psicológico e médico
para a avaliagao de seu estado físico e mental e, além disso, eram levantados dados
sobre a historia de vida e as condigoes familiares e escolares do aluno em questao, aos
moldes do que atualmente chamaríamos de anamnese. Com base em todos estes dados
arrolados, cujo registro deveria constar na ficha individual de cada paciente, eram
procedidas as orientagoes aos pais e professores e realizados os encaminhamentos da
crianga para eventuais tratamentos que se considerava conveniente. Desta forma,
buscava-se criar as condigoes necessárias para que a crianga viesse a apresentar um
desenvolvimento escolar satisfatório.
A proposta de tratamento sustentada pelas clínicas de orientagao infantil tinha por
fundamento priorizar a atuagao junto ao meio onde a crianga está inserida, ou seja, a
familia e a escola, e apenas secundariamente, em alguns casos mais graves, realizar
urna intervengao direta junto a crianga.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
. .
Adere, desta forma, a opiniao de Pfister, já enunciada em 1934, no livro Educagao e
Psychanalyse publicado em 1934, segundo o qual somente os escolares com problemas
mais graves deveriam submeter-se a urna análise completa e nos casos mais simples, o
próprio professor deveria ser o analista. Para que o professor pudesse assumir esta
tarefa seria necessário que se submetesse a urna auto-análise, o que Ihe permitiría
reconhecer suas atitudes erróneas frente ao aluno, bem como identificar as
manifestagoes transferenciais da changa em relagao a sua pessoa. Assim, o professor
poderia atuar junto á crianga problema, compreendendo psicanaliticamente as
dificuldades por elas manifestadas, o que possibilitaria a adogao de urna postura mais
adequada frente a estes problemas.
Apesar de ressaltado o papel do professor na assisténcia ao escolar difícil, nao
encontramos urna descrigao precisa das iniciativas tomadas pela Segao de Ortofrenia e
Higiene Mental no que concerne á formagao psicanalítica do educador. Ao que parece,
esta formagao ficou restrita a algumas instrugoes teóricas e orientagóes específicas para
cada caso em particular, que eram realizadas pela equipe técnica do referido servigo.
A orientagao da conduta dos pais referente á crianga é outra etapa significativa que
compóe o tratamento e a assisténcia ao escolar. Neste contexto, as clínicas de orientagao
infantil, fundamentadas nos principios da "Escola Nova" que propunham um maior
estreitamento dos lagos que unem a familia á escola, buscavam obter urna maior
integragao dos pais no tratamento da crianga, o que ocorreu nao sem grandes
resistencias. Comenta Arthur Ramos (1939a, p. 390):
Em nosso servigo, esta agao tem sido lenta e cautelosa.
Quase sempre convidamos os pais a discutir questóes
de ordem puramente médico-orgánico dos filhos, e por
ai, insensivelmente, eles recebem os influxos benéficos
do Servigo.
O procedimento analítico propriamente dito, ou seja, o tratamento individual de criangas
por intermedio da técnica de análise de criangas, era empregado em um restrito número
de casos de natureza mais grave, quando os procedimentos descritos ácima nao eram
suficientes para debelar o problema. Transitando com grande facilidade e seguranga
entre os teóricos da psicanálise de criangas, Arthur Ramos considera mais apropriado,
nestes casos, o emprego da técnica de Melanie Klein em detrimento da de Anna Freud.
Sustentando esta preferencia da seguinte forma, "Nao fazemos análise diretas,
ortodoxas, na crianga, a molde de Anna Freud. Damos preferencia ao método indireto de
Melaine Klein, nos casos indicados de corregao psicanalítica" (Ramos, 1939a, p.387).
O teor desta citagao nos leva a pensar sobre qual o sentido atribuido por Arthur Ramos
as técnicas de Anna Freud e Melanie Klein, ou mais específicamente, qual a forma de
utilizagao destes recursos técnicos pelas clínicas de orientagao infantil, urna vez que o
dominio teórico dos trabalhos destas autoras já era urna realidade para Arthur Ramos
desde 1933, data de sua primeira publicagao sobre o tema.
Tomando por certa a afirmagao de que as análises diretas eram evitadas, podemos
deduzir que o tratamento oferecido as criangas problemas, naqueles casos em que a
psicanálise era indicada, nao comportava um procedimento analítico completo, da forma
como o entendemos atualmente, compreendendo a análise da transferencia manifestada
pelas criangas, o que pode ser interpretado através da elucidagao das fantasías
inconscientes expressas no simbolismo do brincar. A utilizagao da psicanálise de criangas
restringia-se a alguns procedimentos técnicos, particularmente a observagao da atividade
lúdica da crianga em um contexto clínico, urna vez que:
A crianga anima os seus brinquedos, comportando-se
em face dos mesmos como se fossem pessoas do seu
ambiente familiar e escolar. E entao o analista vé
desfilarem o pai, a mae, os irmaozinhos, os
professores... verificando as reagoes de amor, odio,
ciúme, inveja, despeito, agressao... da crianga em
frente deles (Ramos, 1939a, p.388).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Este procedimento nos parece ser empregado com uma finalidade muito mais diagnóstica
do que propriamente terapéutica, embora o efeito terapéutico pudesse advir
secundariamente. É neste sentido que podemos compreender a aplicagao da técnica
lúdica de Melanie Klein, definida por Arthur Ramos, como um procedimento indireto que
nao requer a preparagao previa da changa para seu posterior engajamento no
tratamento, como sugere a técnica propalada por Anna Freud.
Nos procedimentos descritos ácima torna-se evidente que Arthur Ramos empregou a
teoria psicanalítica, adequando este recurso teórico e técnico as condigoes e
necessidades vigentes ñas clínicas de orientagao infantil. Nao podemos deixar de
ressaltar que a afinidade de Arthur Ramos com a psicanálise já estava patente alguns
anos antes. A inovagao aqui reside em poder aplicar este conhecimento no trabalho com
criangas. Torna-se conveniente, portanto, acompanharmos as elaboragoes teóricas
tecidas pelo autor a partir de sua atuagao junto as clínicas de orientagao infantil, para
que possamos compreender quais as aproximagoes propostas por ele entre a higiene
mental escolar e a psicanálise de criangas.
A casuística das clínicas de orientagao infantil mantidas pela Segao de Ortofrenia e
Higiene Mental, respaldada em mais de dois mil casos atendidos ao longo de cinco anos,
permitiram identificar algumas condigoes afetivas manifestadas pela changa, que, em
geral, estao na origem de grande parte dos problemas escolares por ela apresentados.
Assim, tanto a changa mimada quanto a crianga escorragada, polos extremos forjados a
partir de suas relagoes familiares, vieram a tornar-se objeto de estudo de Arthur Ramos.
Sob a denominagao de criangas mimadas, encontramos o filho único, o cagula, o
primogénito, o filho com dotes especiáis, enfim, aquelas criangas que por alguma razao
particular sao alvo de atengao excessiva por parte de seus pais. Estas criangas, quando
obrigadas a passarem do meio familiar, que Ihes devota tanta atengao e cuidados, para o
ambiente escolar, no qual a atengao do mestre é quase sempre dissipada entre os varios
alunos, sofre, na maioria das vezes, grandes dificuldades de ajustar-se a este nova
condigao, sobrevindo daí desajustamentos escolares dos mais diversos tipos. Considera
Arthur Ramos que estas criangas adquirem seus vicios de uma relagao de extrema
dependencia com a figura materna, permanecendo fixadas a uma fase do
desenvolvimento psico-afetivo, no qual a mae é o principal objeto de prazer da crianga.
Entre as criangas escorragadas figuram aquelas que provém de lares desajustados, as
que sao excessiva mente castigadas e os órfaos de ambos os pais. Estas criangas
apresentam, quase sempre, desajustes escolares tais como: agressividade,
impulsividade, instabilidade e fugas escolares. Atitudes estas que podem ser entendidas
como manifestagao de protesto e rebeldía em relagao as figuras de autoridade, raciocinio
este fundamentado por Arthur Ramos da seguinte forma:
Os freudianos investigam mais a fundo os elementos
causáis destas atitudes de protesto e reagao. A revolta
da crianga contra o pai (e a autoridade em geraj) se
formaría em fungao da situagao triangular do Édipo
onde o pai aparece como rival amoroso. Como o rival
que rouba a exclusividade das caricias maternas (...)
(Ramos, 1939a, p. 80).
No tocante aos problemas que atingem com maior freqüéncia os escolares atendidos
pelas clínicas de orientagao infantil do Rio de Janeiro, encontramos descritos os
seguintes: criangas agitadas ou turbulentas, para empregarmos a terminología de Arthur
Ramos, tiques e ritmias, problemas sexuais, medo e angustia, mentiras e furtos. Embora
nao exista uma estatística que permita mensurar a freqüéncia com que os escolares
sejam acometidos por estes problemas, tudo leva a crer que as dificuldades arroladas por
Arthur Ramos sejam representativas dos problemas mais expressivos atendidos pela
Segao de Ortofrenia e Higiene Mental.
Sob o termo turbulenta encontra-se uma gama variada de comportamentos motores, tais
como: instabilidade, agressividade e impulsividade. A causa destes comportamentos
infantis comportam duas explicagoes etiológicas: a primeira délas aponta fatores
orgánicos como responsáveis pela agitagáo psicomotora; enquanto a segunda enfatiza a
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
..
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.,
questao ambiental. Arthur Ramos adere á segunda dessas hipóteses, procurando
compreender a changa turbulenta no ámago de sua estrutura familiar; considerando que
Os aspectos da agressividade e turbulencia do escolar,
a mania de destruigao de objetos, o desejo de sujá-los,
marcá-los, ou sublimagao ou a repressao das primitivas
tendencias, etc, podem estar ligada á tendencias
possessivas conservadoras, da fase anal-sádica da
libido (Ramos, 1939a, p. 198).
Salienta, por fim, o papel desempenhado pelo meio no controle dos impulsos agressivos,
destacando que tanto a repressao excessiva quanto a liberdade desmedida dificultam o
controle desses impulsos.
No capítulo dedicado aos tiques e ritmias recorre o autor novamente a teoria
psicanalítica, para explicar as causas destas manifestagoes motoras da crianga. Após
citar Karl Abraham (1877-1925), Sandor Ferenzi (1873-1933) e Melanie Klein, que
haviam teorizado sobre as causas psicogénicas dos tiques, sustenta ser este
comportamento um fenómeno de conversáo motora que surge em decorréncia do
recalcamento da sexualidade pré-genital.
As fugas escolares sao reconhecidas como um problema que atinge com freqüéncia os
alunos, cuja intensidade pode ser bastante variável, indo desde simples fugas
esporádicas até o abandono da escola. Este problema está, "(•••) na sua quase
totalidade, ligadas a fatores afetivos, a desajustamentos e conflitos familiares e sociais,
que determinam o mecanismo de fuga, como evasao de um ambiente hostil" (Ramos,
1939a, p. 250).
As manifestagoes da sexualidade infantil, bem como o tema da educagao sexual, já há
algum tempo vinha despertando o interesse dos psicanalistas brasileiros, que encarando
o problema de forma objetiva, destacando a importancia do esclarecimento sexual na
infancia. As constatagoes advindas do trabalho desenvolvido pela Segao de Ortofrenia e
Higiene Mental, evidenciam a ocorréncia de algumas manifestagoes da sexualidade na
escola, como: masturbagao e homossexualismo. Esta constatagao veio demonstrar nao
ser mais possível ignorar a sexualidade infantil, que se faz presente também no meio
escolar, confirmado assim a necessidade, já há algum tempo apontada, de um trabalho
de orientagao sexual. Segundo Arthur Ramos, a orientagao sexual é de responsabilidade
recíproca dos pais e da escola, devendo ocorrer de forma individual e indireta, com base
em exemplos retirados da biología e da zoología, educagao esta que deve ser
complementada pela sublimagao dos impulsos sexuais. Constatamos desta forma que
embora a importancia da educagao sexual foi reconhecida como algo necessário na
escola, a forma de abordar a questao ainda é bastante cautelosa e feita com certa
hesitagao.
Entre os casos atendidos ñas clínicas de orientagao infantil do Rio de Janeiro, figuravam
algumas manifestagoes de medo e angustia apresentadas pelas criangas. Comentando
sobre este tema, Arthur Ramos faz alusao a distingao entre os conceitos de terror, medo
e angustia proposta por Freud, ao considerar que,
a angustia "denota urna disposigao consciente como
urna expectativa, urna preparagao ao perigo"; o medo
exige um objeto determinado em frente ao qual ele se
revela; quanto ao terror, representa urna disposigao a
que se chega diante de um perigo atual, para o qual
nao se esta preparado e que surge de surpresa
(Ramos, 1939a, p. 311).
Argumenta, no entanto, que as distingoes estabelecidas entre os conceitos de angustia,
medo e terror, nao sao aplicáveis na prática, devido a dificuldade de discriminar estes
quadros. Apresenta alguns casos de medos mais brandos, como medo de escuro, de
isolamento e de fantasmas; e outros mais graves que podem levar até mesmo ao suicidio
infantil. Na génese do medo infantil, seja qual for sua intensidade, encontramos, "(...)
reagoes de fuga diante do perigo e auto punigao de um crime cometido dentro das
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
._
relagoes familiares. Crime do Édipo, terror da castragao, dizem os analistas" (Ramos,
1939a, p. 336).
A mentira e os furtos, designados por Arthur Ramos sob o rótulo de pré-delinqüéncia
infantil, nao apresentam nesta etapa da vida a mesma conotagao atribuida a estes
delitos quando cometidos por individuos adultos. Na crianga, estes atos, na sua grande
maioria, possuem urna conotagao simbólica que aponta para possíveis desajustamentos
afetivos por ela manifestados.
Consideragoes fináis
Ao destacarmos da vasta e eclética obra de Arthur Ramos os trabalhos dedicados á
psicanálise de changas e á educagao, conforme o percurso que trilhamos ácima, é
possível colocarmos em relevo alguns aspectos nodais que caracterizaram o
entendimento deste autor em relagao á crianga e a educagao de sua época. Neste
sentido, tres aspectos ganham particular destaque, merecendo urna análise mais
apurada: a concepgao de crianga presente em sua obra, a forma de entendimento da
relagao professor aluno e a nogao de profilaxia difundida no trabalho da Segao de
Ortofrenia e Higiene Mental.
Com relagao á concepgao de crianga veiculada na obra de Arthur Ramos, é possível
reconhecer, com relativa facilidade e nitidez, que este autor passa a atribuir á crianga
urna identidade própria que a diferencia do adulto. Sustentado neste pressuposto, o
autor considera que os primeiros anos da infancia devam receber maior atengao devido a
sua importancia para o desenvolvimento futuro. Com esta tese, Arthur Ramos tras para a
esfera educacional a concepgao freudiana de que os primeiros anos de vida constituem o
substrato que irá formar a personalidade do adulto.
Na esteira deste raciocino, Arthur Ramos propoe mudangas ñas práticas pedagógicas
vigentes no ensino tradicional, urna vez que, segundo sua concepgao, a crianga enquanto
individuo singular e diferenciado do adulto deve dispor de métodos de ensino que atenda
as suas necessidades. Dentre estas mudangas cabe destacar a forma de compreender o
fracasso escolar e a relagao professor aluno durante o processo ensino-aprendizagem.
A pedagogía tradicional, sempre abordou de forma indiferenciada o aluno que fracassava
no desempenho de suas atividades escolares, rotulando-o de anormal, em contraposigao
ao educando dito normal, que aprende com facilidade. Para Arthur Ramos, como
procuramos demonstrar ácima, esta concepgao é muito restritiva, nao permitindo
compreender as verdadeiras razoes que levam a crianga ao fracasso escolar. Neste
sentido, apresenta de forma inédita no Brasil a distingao entre problemas cognitivos e
emocionáis na génese das dificuldades escolares manifestadas pelas changas.
Compreensao análoga e apresentada por Luitigarde Oliveira Cavalcante Barros em seu
artigo "Um projeto de modernizagao do Rio de Janeiro: a contribuigao de Arthur Ramos
(1933-1949)", ao sustentar que
analisando o tradicional método de classificagao da
clientela infantil das escolas em "normal" e "anormal",
a partir de testes de Q.I., condenou essas técnicas que
dividiam as criangas entre: Q.I. 100 - media normal;
ácima de 100 - supernormal (inteligencia genial
superior, muito superior); abaixo de 100 atrasados
mentáis ou oligofrénicos, 70 a 80; 10 a 50 imbecilidade; e 0 a 10 - idiota. No livro A Crianga
problema, resultado se sua experiencia no Servigo de
Ortofrenia e Higiene Mental, publicado em 1939, Ramos
considera tais técnicas um "unilateralismo simplista da
psicometria". Seu principal argumento contra estas
práticas é a desconsideragao, por este método, de
varios fatores que interferem no comportamento
infantil, como desajustamentos e miseria social e
familiar, com reflexo na vida escolar (Barros, 2003, p.
53).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Em decorréncia desta concepgao cunhou a expressao "changa problema", para designar
os alunos que fracassam na escola, urna vez que no entendimento de Arthur Ramos a
crianga problema, ao contrario da deficiente, tinha suas dificuldades forjadas na relagao
entre suas necessidades individuáis e o meio social em que está inserida.
Sobre a relagao entre professor e aluno, podemos depreender da obra de Arthur Ramos,
urna concepgao bastante ¡novadora para a época, ao considerar que a interagao desta
dupla interfere no processo de aprendizagem. Decorre deste raciocinio a compreensao de
que o processo de ensino-aprendizagem e fortemente influenciado pelo aspecto
relacional, isto significa dizer que a relagao professor-aluno contempla sempre urna
importante dimensao transferencial na qual sentimentos de ambos sao atualizados. Estas
idéias trazem como substrato a necessidade de formagao psicanalítica do educador
presentes na obra de Arthur Ramos, tema pouco desenvolvido pelo autor, porém
bastante presente na atualidade ao se discutir a relagao entre educagao e psicanálise.
Outro aspecto a ser destacado refere-se á concepgao de profilaxia presente na obra de
Arthur Ramos. Entre os autores que se dedicaram ao tema da psicanálise ñas primeiras
décadas do século XX prevaleceram duas concepgoes de profilaxia com relagao á crianga,
que embora guardem alguma semelhanga entre si, apresentam diferengas conceituais
que merecem ser destacadas (Abrao, 2001).
De um lado estao autores como Julio Pires Porto-Carrero e Deodato de Moraes, que,
fundados em um ideal eugénico, ao utilizarem a psicanálise no cuidado da crianga,
circunscrevendo sua intervengao em um período anterior ao surgimento de urna possível
patología, de tal forma que ao se oferecer urna educagao saudável as changas evitava-se
o desenvolvimento de síntomas neuróticos na vida adulta. Este raciocinio encontra-se em
prefeita consonancia com o pensamento vigente na psiquiatría brasileira do inicio do
século XX, que direcionava sua atengao para a área da saúde mental, o que foi
concretizado, em 1923, com a criagao, no Rio de Janeiro, da Liga Brasileira de Higiene
Mental.
Em outra diregao, temos autores como Arthur Ramos no Rio de Janeiro e Durval
Marcondes (10) em Sao Paulo que tomavam a idéia de profilaxia em um sentido distinto
do anterior, urna vez que o foco principal destes autores era o de promover a prevengao
da doenga mental, através da compreensao e da assisténcia as manifestagoes
sintomáticas da crianga em idade escolar, o que era realizado por intermedio do trabalho
de diagnóstico e orientagao de pais e professores realizados pelas clínicas de orientagao
infantil.
Procuramos expor, ainda que de forma sumaria, as principáis contribuigoes de Arthur
Ramos á psicanálise de changas no Brasil. Dado ao caráter ¡novador de sua contribuigoes
e a consistencia teórica de seus textos, como ficou aqui demonstrado e a influencia que
exerceu sobre as geragoes que o sucederam, estimulando muitos profissionais a
enveredarem pelo caminho da psicanálise, é lícito atribuir-lhe o título de precursor da
psicanálise de criangas no Brasil.
Referencias
Abrao, J. L. F. (2001). A historia da psicanálise de criangas no Brasil. Sao Paulo: Escuta.
Abrao, J. L. F. (1999). Um percurso pela historia da psicanálise de criangas no Brasil.
Dissertagao de Mestrado nao-publicada, Faculdade de Ciencias e Letras de Assis,
Universidade Estadual Paulista, Assis.
Barros, L. O. C. (2003). Um projeto de modernizagao do Rio de Janeiro: A contribuigao
de Arthur Ramos (1933-1949). Em C. S. Weyrauch; G. C. Lima & H. Arnt (Orgs.),
Forasteiros construtores da modernidade (pp.40-65). Rio de Janeiro: Terceiro
Tempo.
Campos, R. H. F. (Org.). (2001). Dicionário biográfico da psicología no Brasil. Rio de
Janeiro: Imago.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.„
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
Mokrejes, E. (1993). A psicanálise no Brasil: As origens do pensamento psicanalítico.
Petrópolis: Vozes.
Moraes, D. (1927). A psychanalyse na educagao. Rio de Janeiro: Mendonga, Machado &
Cia. Editores.
Oliveira, C. L. V. (2006). Historia da psicanálise: Sao Paulo (1920-1969). Sao Paulo:
Escuta.
Perestrello, M. (1986). Primeiros encontros com a psicanálise no Brasil (1899-1937). Em
Encontros: Psicanálise (pp. 111-152). Rio de Janeiro: Imago.
Perestrello, M. (1995). Ainda sobre a historia da psicanálise no Brasil. Revista Brasileira
de Psicanálise, 2P(3),667-674.
Porto-Carrero, J. P. (1929). Ensaios de psychanalyse. Rio de Janeiro: Flores & Mano
Editores, 1929.
Porto-Carrero, J. P. (1929a). Educagao sexual. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental,
2(1), 120-133.
Ramos, A. (1933). A technica da psychanalyse infantil. Archivos Brasileiros de Hygiene
Mental, 5(2), 195-205.
Ramos, A. (1934a). Educagao e psychanalyse. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional.
Ramos, A. (1934b). Os furtos escolares. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, 7 ( 2 ) ,
229-235.
Ramos, A. (1936). Introdugao a psicología social. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil.
Ramos, A. (1937). A mentira infantil. Revista Médica da Bahía, 5(10), 195-210.
Ramos, A. (1938a). A dinámica afetiva do filho mimado. Neurobiologia, 1(1), 265-287.
Ramos, A. (1938b). O problema psycho-sociologico do filho único. Revista Médica da
Bahía, 5(9), 185-200.
Ramos, A. (1939a). A changa problema (4a ed.). Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa
do Estudante do Brasil.
Ramos, A. (1939b). Saúde do espirito: Higiene mental {fia. ed.). Rio de Janeiro: Servigo
Nacional de Educagao Sanitaria.
Sagawa, R. (2002). DurvalMarcondes. Rio de Janeiro: Imago.
Notas
(1) Neste artigo empregaremos a periodizagáo proposta por Marialzira Perestrello (1995),
ao definir as diferentes etapas que marcam o desenvolvimento histórico da psicanálise no
Brasil. Segundo ela pode-se diferenciar tres períodos: o dos precursores, o dos pioneiros
e o momento atual. Neste sentido, os precursores sao definidos como aqueles
profissionais devotados á causa psicanalítica que, embora nao possuíssem urna formagao
sistematizada na área, dedicavam-se a divulgar a psicanálise entre nos e, por vezes, a
praticá-la como autodidatas; os pioneiros, por sua vez, constituem-se no primeiro grupo
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.„
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
de psicanalistas propiamente ditos que, após terem concluido sua formagao, em muitos
casos no exterior, dirigiram grande parte de sua atividade profissional para o ensino da
psicanálise e para formagao de novos psicanalistas, e o momento atual caracteriza-se
pelo aumento do número de psicanalistas exercendo atividades clínicas.
(2) A "Escola Nova" ou "Escola Progressista", como ficou conhecida, constitui-se em urna
nova filosofía educacional, introduzida no Brasil na década de 1930. Fundada no ideario
liberal, a "Escola Nova" surge no cenário educacional do país como urna opgao ou mesmo
como urna oposigao ao ensino tradicional em vigor até entao. Esta nova política
educacional partia do principio de que a escola deveria atuar como um instrumento para
a edificagao da sociedade, através da valorizagao das qualidades pessoais de cada
individuo. Seguindo esta linha de raciocinio podemos evidenciar a énfase colocada ñas
peculiaridades da changa enquanto um ser em desenvolvimento, diferenciado do adulto e
com urna lógica de pensamento própria. Neste sentido, torna-se vital compreender as
características da changa para melhor gerir sua educagao. Temos com isto um espago
bastante fecundo para a introdugao da psicología e da psicanálise no meio educacional
(3) O livro é composto pelos seguintes capítulos: Cap. I A escola nova e a psychanalyse;
Cap. II Nogoes fundamentaes da psychanalyse; Cap. I I I A psychologia individual e a
pedagogía; Cap. IV O ponto de vista analytico-causal; Cap. V A sexualidade infantil; Cap.
VI A contra sexualidade e o sentimento de culpa; Cap. VII As reacgoes do recalcado;
Cap. VIII A prática da pedanalyse e Cap. IX Psychanalyse do educador.
(4) O texto deste capítulo, com pequeñas vahagoes, já havia sido publicado, um ano
antes, nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental sob o título: "A Technica da
Psychanalyse Infantil". Esse trabalho foi também objeto de urna conferencia proferida
pelo autor na Liga Brasileira de Hygiene Mental, em setembro de 1933, que teve como
título: "A psychanalyse infantil e sua importancia na hygiene mental e na pedagogía".
(5) Entre os teóricos nacionais que empunharam a bandeira da "Escola Nova", figura com
grande destaque o nome de Anísio Teixeira, que após estudar com o filósofo John Dewey
(1858-1952) nos Estados Unidos, trouxe para o Brasil suas idéias sobre esta nova
filosofía educacional, implantando-as no ensino municipal do Rio de Janeiro na década de
1930, o que ficou conhecido como "Reforma Anísio Teixeira".
(6) O termo higiene mental corresponde ao que entendemos hoje por saúde mental. A
mudanga de nomenclatura foi sugerida pela Organizagao Mundial da Saúde, em 1949.
(7) Este livro é constituido pelos seguintes capítulos: Cap. I - Heranga e ambiente; Cap.
II - A changa mimada; Cap. III - A crianga escorragada; Cap. IV - A changa escorragada
(continuagao), Cap. V - A crianga escorragada (continuagao); Cap. VI - A crianga
escorragada (conclusao); Cap. VII - As constelagoes familiares; Cap. VIII - O filho único;
Cap. IX - Avós e outros parentes; Cap. X - A crianga turbulenta; Cap. XI - A crianga
turbulenta (conclusao); Cap. XII - Tiques e ritimias; Cap. XIII As fugas escolares; Cap.
XIV - Os problemas sexuais; Cap. XV - Os problemas sexuais (continuagao); Cap. XVI Os problemas sexuais (conclusao); Cap. XVII - Medo e angustia; Cap. XVIII - Medo e
angustia (conclusao); Cap. XIX - A pré-delinqüéncia infantil: a mentira Cap. XX - A prédelinqüéncia infantil: os furtos e Cap. XXI - Tratamento e assisténcia.
(8) Ao cotejarmos o conjunto destes trabalhos, verificamos que os artigos publicados por
Arthur Ramos neste período, vieram a constituir alguns capítulos do referido livro, sao
eles: Os Furtos Escolares (1934b), A Mentira Infantil (1937), O Problema Psychosociológico do Filho Único (1938b) e O Desenvolvimento Afetivo do Filho Mimado
(1938a).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.„
Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da
obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
(9) A equipe técnica era constituida pelos seguintes profissionais: Professoras Diñan
Goulart, Isaura Carvalho de Azevedo, Lea de Miranda, Marília Hasseumann Rosa e Silva e
Doutores Claudio Mesquita de Azevedo, José de Paula Chaves e Stephania Soares
(10) Durval Bellegarde Marcondes (1899-1981), desde o inicio de sua vida académica na
Faculdade de Medicina de Sao Paulo, onde se formou em 1924, interessou-se pela
psicanálise. Seguindo os passos do mestre e incentivador Franco da Rocha, de quem
herdou o gosto e a dedicagao pela psicanálise, iniciou o atendimento de pacientes
empregando a técnica de Freud nos últimos anos da década de 1920 (Sagawa, 2002).
Em 1938 idealizou, fundou e dirigiu a Segao de Higiene Mental Escola vinculada ao
Departamento de educagao do Estado de Sao Paulo, que por intermedio de sua Clínica de
orientagao Infantil ofereceu atendimento a criangas em idade escolar nos moldes do
trabalho realizado por Arthur Ramos no Rio de Janeiro (Abrao, 2001).
Nota sobre autor
Jorge Luís Ferreira Abrao, Psicólogo, doutor em Psicología Escolar e do Desenvolví mentó
Humano pelo Instituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo. Professor Assistente
Doutor do Departamento de Psicología Clínica da UNESP de Assis e do Programa de PósGraduagao em Psicología e Sociedade da mesma Universidade. Supervisor do Centro de
Pesquisa e Psicología Aplicada Dra. Betti Katzenstein. Contacto: [email protected]
Data de recebimento: 15/04/2007
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf
.,
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
¡-
A pessoa como sujeito da experiencia:
contribuicoes da fenomenologia
The person as subject of experience:
Contributions of phenomenology
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Marina Massimi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Evidenciam-se contribuigoes da Fenomenologia á discussao sobre o conceito de
experiencia na Psicología contemporánea. Negagao da experiencia enquanto categoría
gnosiológica leva a fragmentagao do vivido, redugao a representagao ou a reagoes,
negagao do sujeito. Husserl aponta as raízes: objetivagao do sujeito questiona
fundamentos da cultura ocidental. Duas posigoes decisivas na formulagao daquele
conceito e constituigao da Psicología: (1) experiencia subentende juízo; (2) experiencia
como sensagao. Esta fundamenta a Psicología moderna. Tal redugao do conceito leva á
crise da Psicología científica: a inviabiliza como ciencia da pessoa. A Fenomenologia
(Husserl e Stein) re-propoe a centralidade da experiencia distinguindo vivencia de
experiencia; síntese passiva de síntese ativa; a atitude própria das Ciencias Naturais
daquela das Ciencias do Espirito. Experiencia tem como centro a pessoa: eu-no-mundo;
agente por ter experiencia determinada e ordenada do mundo, podendo habitá-lo; tem
experiencia privilegiada do corpo próprio.
Palavras-chave: experiencia; pessoa; fenomenologia e psicología
Abstract
It's evident the contributions of Phenomenology to discussions about the concept of
experience in contemporary Psychology. The denial of experience as gnosiological
category results in the fragmentation of lived experience, reducing it to representation or
reactions, denying the subject. Husserl points towards the roots: the objectivation of the
subject questions the fundaments of Western culture. Two decisive positions in the
formulation of that concept and constitution of Psychology: (1) experience supposes
judgment; (2) experience as sensation. This is the fundament of modern Psychology.
Such reduction of the concept causes the crisis of scientific Psychology, turning it
inadequate as a science of the person. Phenomenology (Husserl and Stein) re-proposes
the centrality of experience distinguishing lived experience; passive from active
synthesis; the attitude proper of the Natural Sciences from that one of the Sciences of
the Spirit. Experience has the person as its center: I-in-the-world; agent due to its
specific and ordered experience of the world, so that it can inhabit in it; and has the
privileged experience of its own body.
Keywords: experience; person; phenomenology and psychology
O presente trabalho visa discutir o conceito de experiencia, com especial énfase em seu
lugar na Psicología, na perspectiva oferecida pela Fenomenologia de E. Husserl e E.
Stein.
Assiste-se, no atual contexto cultural, á negagao da experiencia enquanto categoría
gnosiológica com conseqüéncias particularmente importantes no campo da Psicología.
Encontramos, freqüentemente, diversas redugoes a respeito do que seria experiencia,
que terminam por negá-la: a fragmentagao do vivido, redugao a representagao ou a
reagoes, negagao do sujeito da experiencia.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
Na ciencia psicológica estas redugóes determinam a delimitagao de seus objetos e
métodos: redugao do psiquismo a mera passividade ao eliminar a dimensao da
consciéncia; redugao da experiencia a um provar concebido análogamente a
experimentagao de laboratorio; énfase na experiencia ¡mediata que dispensa, em sua
formulagao, a fungao ativa do sujeito.
Consideramos aqui análises de Husserl sobre experiencia, em que propóe um horizonte
complexo capaz de superar aquelas redugoes, chegando - com E. Stein - a conceber
urna psicología enquanto ciencia da pessoa.
1. A objetivacao do sujeito humano e o falso paralelismo experiencia externa experiencia interna
A análise de Husserl sobre a historia da filosofía moderna realizada no volume A Críse
das ciencias européias e a fenomenologia transcendental (1935/2002) aponta a
objetivagao do sujeito humano como raiz da crise que atinge a racionalidade ocidental.
Para adequadamente apreender essa objetivagao do sujeito, Husserl remonta á historia
da filosofía desde Galileu - definindo-o "genio que descobre e ao mesmo tempo oculta"
(p. 81) - e á sua interpretagao matematizante da natureza que permitiu o avango da
ciencia moderna mas, ao mesmo tempo, veio a esconder sua raiz, isto é, o mundo-davida (1). Da concepgao galileiana derivou-se também urna conseqüéncia nefasta para o
estudo da subjetividade, cujo ponto de partida passa a ser a doutrina da pura
subjetividade das qualidades sensíveis - retomada por Hobbes como doutrina da
subjetividade de todos os fenómenos. Os fenómenos existiriam apenas nos sujeitos; a
única objetividade seria a da matemática. A natureza seria, em sua esséncia,
matemática.
Se o mundo intuitivo da vida é tomado como puramente subjetivo, eis que todas as
verdades da vida pré-científica e extra-científica vém a perder valor. O percurso filosófico
derivado desta posigao desemboca em Descartes e sua dúvida metódica. Pois na busca
de um fundamento absoluto do conhecimento filosófico, Descartes chegara a colocar em
questao a validade da experiencia sensível, que tradicionalmente era considerada o grau
inferior de todo conhecimento objetivo, e correlativamente perde-se a conexao entre a
ciencia e o mundo-da-vida, ou seja "aquele mundo que nesta experiencia e em virtude
desta experiencia tem para nos sentido e ser como indiscutível certeza" (p. 104). Desse
modo, sao negadas todas as formagóes de significado e de valoragao que se fundam na
experiencia.
A dúvida cartesiana nega a experiencia humana enquanto experiencia sensível e
encarnada no corpo. A única evidencia apodítica para Descartes é o eu, mas o eu
enquanto cogito, ou seja o eu concebido segundo urna distingao rigorosa entre
experiencia sensível e pensamento matemático. O eu áo mundo-da-vida, o eu encarnado
no próprio corpo é assim eliminado, dicotomizando subjetividade e corporeidade. Desse
modo, se por um lado Descartes estabelece a fundagao subjetiva da Filosofía, por outro
acaba por fundar a mens na psicología naturalista e, portanto, o objetivismo.
Para Husserl, desta falsa dicotomía corpo-alma deriva o falso paralelismo entre
experiencia interna e experiencia externa. Pois
a experiencia que verdadeiramente leva o mundo-davida á datidade, por ser urna experiencia que especialmente no modo originario da percepgao apresenta as coisas meramente corpóreas nao foi
chamada de experiencia psicológica, mas, pelo
contrario, em contraposigao a ela, foi definida como
experiencia externa (p. 242).
Desse modo, eliminou-se inclusive a evidencia da "subjetividade" em tudo o que é
próprio do mundo-da-vida e desconsiderou-se o fato de que, tudo o que é subjetivo,
refere-se a urna totalidade sem cisóes.
Cindidas, experiencia interna e a experiencia externa tornaram-se conceitos obscuros e,
em ambos os casos,
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
r,
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
¡-A
as experiencias foram pensadas como se fossem
constituidas por meio de urna fungao teorética: a
ciencia da natureza passou a fundamentar-se na
experiencia externa, e a psicología, na experiencia
interna: na primeira temos a natureza física, na
segunda o ser psíquico, o ser da alma. Portanto,
"experiencia psicológica" tornou-se urna expressao
equivalente a "experiencia interna" (p. 242).
Nesse sentido, Husserl critica inclusive o conceito de percepgao interna de Brentano
como expressao destas abstragoes: "A ingenuidade de considerar estes dados da
experiencia psicológica iguais aos da experiencia corporal, leva a sua coisificagao" (p.
252).
Chegou-se assim, na historia da psicología moderna, a "conceber o dado interno como
um átomo psíquico ou como um conjunto de átomos", as "faculdades psíquicas ou
disposigoes psíquicas, análogas as forgas físicas" (p. 252), tomando como paralelos
também os objetivos das duas ciencias.
Rompida a unidade da experiencia, a adesao a ela tornou-se urna suposigao ilusoria.
2. Naturalismo e experiencia psíquica
Segundo Husserl, a naturalizagao da experiencia elimina seu sujeito; ao passo que
podemos atingir a experiencia somente a partir da apreensao do sujeito que
continuamente a constituí.
Em Fenomenologia e Teoría do Conhecimento (1987/2000), Husserl coloca urna "nota
terminológica" (p. 159) acerca do termo experiencia. Afirma que, na linguagem comum,
utilizamos o termo para indicar toda intuigao individual dada de forma original e todas as
intuigoes paralelas presentificadas. Todavía, pelo predominio da atitude naturalista a
linguagem comum acabou por identificar experiencia com experiencia natural, sendo que
toda a experiencia das vivencias e do sujeito da consciéncia acabou por ser identificada
com a experiencia psicológica naturalista da consciéncia. Portanto, se queremos utilizar o
termo experiencia sem encobrir seu sujeito constituinte, devemos contrapor a
experiencia natural á transcendental (2). A tal ponto que ao tratarmos da primeira, em
atitude de interesse exclusivamente teorético, Husserl propoe (cf. p.130) que utilizemos
a expressao "experiencia psicológica"; mas quando apreendemos o eu - o ser humano
localizado no espago e que diante das coisas vive a percepgao externa délas através da
percepgao interna da "auto-experiéncia" -, propoe o termo "experiencia psíquica". Nessa
experiencia apreendemos um sujeito espiritual ligado a urna corporeidade natural: o
sujeito pessoal, no sentido lato (3).
Portanto, Husserl passa a definir a psicología como
a ciencia da "psique", nao apenas de nome mas
também de fato, ou seja a ciencia daquele sujeito,
espiritual ou pessoal, o qual no sentido lógico é o
sujeito ou substrato das multíplices qualidades
psíquicas naturais, inferiores e superiores, que
adquirem o nome de faculdades, disposigoes,
caracteres espirituais etc.. Estas qualidades das
realidades psíquicas tornam-se conhecidas através da
vida consciente atual das psiques, ou seja através das
multíplices vivencias da consciéncia relacionadas as
suas condigoes naturais. Apreendidas nestes termos
pela reflexao (ou experienciadas psicológicamente),
elas tém a forma lógica de estados naturais do sujeito
natural correspondente ou, se quisermos, da psique (p.
131).
O grande tema da "psicología como doutrina da experiencia" (p.131) é, para Husserl, o
campo da consciéncia empírica tomado nao de modo naturalista, mas através da
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
,-c
apercepgao das condigóes psíquicas e das correlagóes entre sujeito psíquico e qualidades
psíquicas naturais (disposigóes, caráter etc.).
A psicología se ocupa, entao, de urna parte da experiencia natural, assim como a física se
ocupa de outra sua parte. "Quem realiza urna investigagao nestas disciplinas se ocupa de
experiencias naturais que cabem á sua parte de natureza, mas referidas á natureza
inteira, como horizonte mais ampio" (p.133).
A psicología poderia ainda se ocupar de um outro tipo de experiencia: a experiencia
possível em geral, "um imaginar experimentar, e num certo sentido, viver a experiencia
sem que essa se experimente na realidade" (p.145),
um livre plasmar objetualidades, as quais, mantendo
sua identidade, constituem-se através de quaseexperiéncias que se conectem urnas com as outras,
quase-determiando mais precisamente seus objetos.
(...) Desse modo, a experiencia possível constitui-se
num terreno de ser, o das possibilidades de urna
natureza (p.151).
Este é o objeto da psicología eidética, concebida como psicología racional ou doutrina
eidética do psíquico, podendo-se assim, "percorrer sistemáticamente as possibilidades
livres e determinar conceitualmente o estilo necessário, a regra e a lei" (p.151).
Assim a psicología teria condigoes de se ocupar de urna teoría psicológica do
conhecimento (entendida como atividades das fungóes psíquicas) mas nao substituiría a
teoría do conhecimento no sentido filosófico e transcendental. Urna tal substituigao
levaría - e de fato levou - á afirmagao da impossibilidade do conhecimento, á
sustentagao de "motivos céticos de ordem gnoseológica, produzindo confusóes" (p.133).
3. Experiencia como atividade do eu
Em Experiencia e juízo (1948/1995), Husserl afirma que o "retorno necessário as
evidencias máximas originarias da experiencia nao pode ser obtido por meio da
psicología" (p. 42). Esta apenas poderia reconduzir a tipología das formas lógicas do
conhecimento as relativas operagóes subjetivas, concebidas como fenómenos naturais já
dados e determináveis científicamente.
Naquele texto ele se ocupa específicamente da categoría experiencia do ponto de vista
da teoría do conhecimento (4). Define experiencia como "a evidencia objetiva dos
objetos individuáis" (p. 47) caracterizados pela "datidade evidente", no nivel
antepredicativo, ou seja, anterior ao juízo.
Para documentar a presenga do eu na elaboragao da experiencia que permite chegar ao
conhecimento e á formulagao de um juízo, Husserl parte do mundo-da-vida:
Se quisermos chegar á experiencia entendida no
sentido último e originario que estamos procurando,
esta nao pode deixar de ser a experiencia originaria
que se dá no mundo-da-vida, a qual ainda nada sabe a
respeito das idealizagóes embora seja seu fundamento
necessário. Com esta volta ao originario mundo-da-vida
nao se aceita simplesmente o mundo de nossa
experiencia no modo em que nos é dado, mas procurase a historicidade que nele está depositada, (p.41).
O retorno á origem do mundo-da-vida (5) significa voltar ao fator subjetivo por cuja agao
intencional o mundo assumiu sua forma atual. Trata-se portanto de urna volta á
subjetividade, mas "no sentido mais radical do que a subjetividade da psicología" (p.
44): a subjetividade transcendental. Por transcendental deve-se entender a volta as
fontes últimas das formagóes cognitivas pelas quais o sujeito do conhecimento reflete
acerca de si mesmo e da própria vida cognitiva.
O mundo-da-vida nao é apenas um mundo de produgóes lógicas, mas também "mundo
da experiencia no sentido mais concreto e cotidiano do termo" (p. 47), refere-se a um
conjunto de realidades habituáis que proporciona seguranga á decisao e á agao, ou seja a
seguranga daquilo que já "foi experimentado", ñas situagóes da vida (6) - "sejam estas
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
r¿
determinadas e delimitadas, ou tomadas em geral como atitudes diante da vida em seu
conjunto" (p. 47).
O campo onde nossas experiencias se dao é propriamente o mundo-da-vida e as
experiencias mais básicas desse mundo tornam-se substrato para elaboragao de toda
ordem de experiencia.
No mundo da nossa experiencia a natureza é o
substrato inferior que fundamenta todos os outros; o
existente ñas suas feigoes simplesmente apreensíveis
como natureza, é aquilo que está como fundamento e
substrato para todos os outros modos de experiencia; a
este aplica-se a nossa atividade valorativa e prática e
permanece invariável no fundo de todas as valoragoes
mutáveis e relativas acerca da sua possibilidade de ser
utilizado para determinados objetivos, para que com o
material dado pela natureza se constitua, caso por
caso, algo diverso. (...) Como essa experiencia é
originalmente dativa, a chamamos de percepgao, alias
percepgao externa (p.49).
Trata-se, entao de incluir na nogao de experiencia "também os específicos atos do
experimentar pelo qual conseguem-se estas dimensoes habituáis" (p.47), examinado a
subjetividade transcendental.
Realizando a análise das vivencias, Husserl identifica um nivel de contato com o mundo
caracterizado pela passividade do sujeito que sofre impacto da presenga do mundo e
outro nivel em que o sujeito elabora tal impacto ao voltar-se para a presenga buscando
apreendé-la em suas características, em seu significado e seu valor e apreender a
vivencia de seu próprio eu nesse processo.
O primeiro nivel, o da "predatidade passiva" é urna passividade originaria de dados
sensíveis: por exemplo, o campo sensorial da visao como unidade articulada de dados
sensíveis (cores) antes mesmo de serem apreendidos como objeto (cores de coisas
concretas).
Quanto ao segundo nivel, "já o perceber é urna operagao ativa do eu" (p. 65), nao é
apenas um elemento passivo da consciéncia mas é fruto de sínteses dotadas de forga
afetiva. Inicialmente os elementos do campo perceptivo se impoem ao eu: o estímulo do
objeto intencional, dirigindo-se para o eu, o atrai com forga maior ou menor, de modo
que o eu cede. Esta receptividade do eu ante o objeto, na verdade, é o grau mais baixo
de sua atividade, pois o eu permite que o objeto entre e o apreende. Tanto maior é a
forga afetiva do objeto, tanto mais forte é a tendencia do eu a dar-se ao objeto. Assim o
eu se volta para o objeto, iniciando urna nova tendencia (eu - objeto). Desta desenvolvese o pensamento, ou cogito, que é urna tendencia ao objeto que parte do eu.
Segundo Husserl, o "conceito normal de experiencia (percepgao, recordagao etc..) indica
a experiencia ativa que depois se desenvolve como experiencia explicativa" (p. 72).
Na mesma perspectiva, Husserl amplia a concepgao de atengao como "algo que pertence
á estrutura essencial de todo específico ato do eu, (...) ou seja, o tender do eu na
diregao do objeto intencional" (p. 73). Mais precisamente, trata-se de um "tender á
unidade que aparece ininterruptamente através das variagoes dos modos de datidade"
(p.73) em que um objeto se apresenta.
Numa unidade entre atengao e percepgao, "o inicio do ato perceptivo acontece quando o
eu se volta para o objeto; e realmente desde já é dar-se conta de estar junto do objeto"
(p.74). Este inicio possui um horizonte intencional, "mirando para além de si num
horizonte vazio que somente as realizagoes sucessivas tornarao intuitivo" (p. 75). Assim,
a atengao se constituí em ato intencional que leva á exigencia de apreensao do objeto
em diversas miradas, sempre dependendo do ato do eu de ocupar-se da percepgao do
objeto e constituigao de sua unidade. Note-se que esse horizonte de totalidade do objeto
é, para o sujeito, intuitivo. E cabe a ele decidir-se pela continuidade de apreensao do
objeto a partir de sua complexidade e totalidade intuidas.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
,-7
Por exemplo: a visao de um objeto remete ao lado posterior fora da algada da vista, de
modo que a tendencia em diregao ao objeto destina-se também a alcangar este lado
inicialmente oculto. Deste modo, a tendencia desdobra-se na diregao de um fazer do eu,
visando a produgao de sempre novas modalidades de aparigao do objeto (as imagens
que fazemos deste). Passamos assim de urna imagem para outra. Trata-se de passagens
livres que levam a constituir urna imagem após outra, por deslocamentos e movimentos
do corpo, os quais proporcionam diferentes miradas, sendo processos subjetivos ativos
diante do objeto dado e imóvel á minha frente. (7)
Na tendencia que caracteriza a percepgao está inerente também um sentimento positivo
e por isto podemos falar propriamente em interesse. Um sentimento de satisfagao devido
ao enriquecimento do conhecimento do objeto gera a tendencia a aproximar-se cada vez
mais deste, podendo também assumir a conotagao de vontade de conhecé-lo, com a
proposigao de objetivos e intengoes. Neste caso, nos ocupamos de algo de modo
temático.
Somente este voltar-se do eu ao objeto na forma do "eu percebo" torna-o um objetomeu, um objeto de minha observagao; e torna o mesmo ato de observar, urna
observagao-minha do mundo-objeto através das imagens. "O eu vive no cogito - o que
dá a cada conteúdo do cogito urna relagao específica com o e¿/"(p.77).
4. Experiencia na psicología como ciencia da pessoa
Ao realizar urna análise da historia da psicología moderna, Husserl, em Crise das ciencias
européias e a fenomenologia transcendental (1954/2002), observa que a psicología
fracassa por nao realizar a "indagagao acerca da subjetividade concreta e plena (...), a
reflexao radical e livre de preconceitos, que abriría necessariamente á dimensao
transcendental subjetiva" (p.235).
Husserl define em pormenores a atitude indagadora que seria necessária para
constituigao de urna psicología científica: interrogar originariamente o qué e o como da
psique das pessoas,
o seu modo de ser no mundo, no mundo-da-vida, o
modo em que ela anima os corpos próprios, os modos
pelos quais elas se localizam na espago-temporalidade,
o modo em que cada urna vive psíquicamente enquanto
tem consciéncia do mundo em que vive e no qual é
consciente de viver; o modo em que cada urna
experimenta o "seu" corpo nao apenas como corpo
singular mas também como corpo próprio (sistema dos
órgaos que ela movimenta em seu agir), o modo em
que ela intervém no mundo circunstante do qual é
consciente etc. (p. 235).
Sem urna "análise radical e realmente livre de pressupostos, é impossível apreender o
que é propriamente essenciaf (p.236) da psique de urna pessoa, do elemento psíquico
do mundo-da-vida, sendo portanto impossível apreender o substrato último e auténtico
de urna ciencia da pessoa.
Ao invés, adotado um conceito de psique fundamentado no dualismo cartesiano, a
psicología concebeu o seu tema próprio - a psique e a pessoa - como algo real no
mesmo sentido da natureza corpórea, formulando-se nos termos de urna ciencia natural
(8).
O caráter de cientificidade, no entanto, nao foi garantido pela adotada empiria metódica
rigorosamente psico-fisicalista. Nao partindo de urna concepgao originaria de psique,
tomou-se urna abstragao como objeto natural.
Esta génese histórica da psicología moderna impediu a criagao de urna psicología como
ciencia da psique, originando continuas crises da psicología científica.
A atitude temática naturalista considera o homem como extensao, como ampliagao da
natureza determinável no tempo e no espago. Já a atitude pessoal é definida como o
direcionamento do interesse para os homens enquanto pessoas em suas agoes e paixoes,
sempre voltadas para o mundo, sempre em sua comunidade de vida, em relacionamento,
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
en
pertencentes a um único mundo circunstante do qual tém consciéncia. Assim caberia á
psicología lidar com o "problema de como as pessoas se comportam em seu agir e
padecer, de como elas sao motivadas em suas agoes pessoais do perceber, do recordar,
do pensar, do avahar, do planejar, do amedrontar-se, do defender-se, do atacar etc." (p.
312).
A ciencia da subjetividade humana toma em análise a pessoa que se dá conta do mundo
que se Ihe apresenta e Ihe fornece motivagoes, assim como examina o mundo-da-vida
apreendido pela pessoa e por ela é valorado. Desse modo, compreende todo o mundo
espiritual, tematiza todas as pessoas e seus géneros, todas as operagoes pessoais em
suas formagoes culturáis. A ciencia da pessoa aborda um eu no mundo circunstante e por
isso no mundo, por ter consciéncia dele" (p. 318), podendo agir por ter urna experiencia
bem determinada e ordenada do mundo, podendo habitá-lo.
Diversamente das ciencias naturais - para quem o espirito é algo que se soma ao corpo
- a ciencia da pessoa volta-se ao ser pessoal que tem o corpo-próprio como objeto
privilegiado de seu mundo-da-vida.
Edith Stein, em A estrutura da pessoa humana (1994/2000) indica um delineamento
para urna psicología enquanto ciencia da pessoa:
Se o conhecimento é a compreensao espiritual de um
ente, devemos, entao, dizer que conhecemos a
característica peculiar de um ser humano; ela nos fala
através de múltiplas formas de expressao, ñas quais a
"interioridade" se "mostra" e nos compreendemos essa
linguagem (p.58).
Os sinais de expressao da interioridade localizáveis no mundo-da-vida e nos objetos
culturáis possibilitam que outros acessem a individualidade em questao. Para o
conhecimento da pessoa é necessário reconhecer tais tragos expressivos e reconduzi-los
as suas expressoes origináis. Descrigao e interpretagao (refletir sobre expressoes
pessoais) formam urna "escola da compreensao" que leva á familiaridade com os seres
humanos e á introdugao á especificidade individual (9).
Penetrando na realidade concreta individual e
investigando as relagoes psíquicas para compreendélas, até as profundidades últimas alcangáveis pelo olhar
humano, chega-se ao ponto em que essas nao sao mais
compreensíveis por si mesmas, nem a partir da relagao
com o mundo circunstante, ficando evidente a agao de
forgas espirituais (p.59).
Também estas - as forgas espirituais - sao ámbito da auténtica psicología científica, nao
se tratando de apenas descrever a individualidade humana, mas de elaborar um
conhecimento do ser humano enquanto tal, como genuino principio de urna ciencia.
A humanidade concreta, assim como se apresenta na
realidade da vida (...) tem um logos, urna lei
constitutiva ou urna estrutura de ser universalmente
compreensível que pode ser evidenciada a partir do que
é dado concretamente. (...) Partindo da realidade da
vida concreta e das formas históricas, esse
conhecimento afirma o ser humano como espirito, e
aquilo que Ihe é essencial enquanto pessoa espiritual
(p.60).
A pessoa experimenta a existencia e a humanidade nos outros mas também em si
mesma. Em tudo o que experiencia, faz também experiencia de si mesma. Esta
experiencia é totalmente diferenciada da experiencia que faz de tudo mais. "A percepgao
exterior do próprio corpo nao é a ponte para a experiencia do próprio eu" (p.69). Com a
percepgao da interioridade apreendo o corpo vivo e meu próprio eu nele, "o que implica
que eu seja consciente do meu eu e nao apenas consciente de meu corpo vivo, mas
consciente de todo meu eu corpóreo-animado-espiritual" (p.69-70).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
,-g
Conclusao
Husserl e Stein documentam que na experiencia encontramos realidades mistas:
a vida espiritual se apresenta como processo psíquico;
tudo o que é psíquico nos aparece ligado com o ser
material; as formagoes espirituais objetivas, por sua
vez, nos aparecem como fundamentadas no ser da
natureza. Por outro lado, todo ser natural pode se
tornar portador de um sentido espiritual. Por isso nao
nos maravilhemos se ñas ciencias empíricas orientadas para os objetos da experiencia - se
entrelagam métodos diversos a serem diferenciados.
(Stein, 1922/1999)
O reconhecimento da complexidade própria do ser humano - entendida
fenomenologicamente como realidade mista que exige diversas modalidades de
abordagem - permite a superagao dos reducionismos tao freqüentes na psicología
contemporánea.
Por um lado, pode-se superar a redugao naturalista que toma em consideragao somente
processos mecánicos - neuro-fisiológicos, comportamentiais ou psicológicos - abolindo o
sujeito da experiencia.
Por outro lado, temos condigoes de criticar a redugao da experiencia a puro processo
simbólico concebido desvinculado de um sujeito pessoal. Encobrindo a agao do eu, tal
postura cultural impossibilita reconhecer o fundamento do sistema simbólico no mundoda-vida, a relagao do mundo com a pessoa e a percepgao do próprio eu por parte dos
sujeitos humanos concretos. Chega-se assim a negar a possibilidade mesma do
conhecimento de si e do mundo. Paradoxalmente, o sujeito humano figurado como fonte
última e abstrata do significado e do ser é contemporáneamente afirmado como incapaz
de apreender a si mesmo e ao mundo como existente além de si mesmo. Esvaziado de
sua esséncia, o sujeito mergulha no niilismo e no ceticismo.
É por este motivo que a experiencia mesma passa a ser abandonada e substituida por
fragmentos de reagoes mecánicas ou por meras representagoes simbólicas.
Referencias
Ales Bello, A. (2004). Fenomenologia e ciencias humanas: Psicología, historia e religiao
(M. Mahfoud & M. Massimi, Eds. e Trads.). Bauru: Edusc.
Husserl, E. (1995). Esperienza e giudizio: Ricerche sulla genealogía de/la lógica (L.
Landgrebe, Ed.; F. Costa & L. Samoná, Trads.). Milano: Bompiani. (Original
publicado em 1948)
Husserl, E, (2000). Fenomenologia e teoría de/la conoscenza (P. Volonté, Trad.). Milano:
Bompiani. (Original publicado em 1987)
Husserl, E. (2002). La crisi de/le scienze europee e la fenomenologia transcendental: Per
un sapere umanistico (E. Paci, Pref.; E. Filippini, Trad.). Milano: Net Tascabili.
(Original de 1935 e publicado em 1954)
Husserl, E. (2003). Fenomenologia e psicología (A. Donise, Ed. e Trad.). Napoli: Filema.
(Original de 1917, publicado em 1987).
Stein, E. (1999). Psicología e scienze de/lo spirito: Contributi per una fondazione
filosófica (2a ed.; A. Ales Bello, Apresent; A. M. Pezzella, Trad.). Roma: Cittá
Nuova. (Original publicado em 1922)
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf
¿r,
Stein, E. (2000). La struttura della persona umana (A. Ales Bello, Present; M. D'Ambra,
Trad.)- Roma: Cittá Nuova. (Original de 1932-33, publicado em 1994)
Notas
(1) Para Husserl, isto é um "contra-senso, pois é contrario á esséncia própria dos corpos
e das almas que se dá na experiencia do mundo-da-vida e que determina o sentido
auténtico de todos os conceitos científicos. É a experiencia real, anterior as versóes
teoréticas, que determina originariamente o sentido do que é dado física e psíquicamente
no mundo-da-vida e posteriormente se torna objeto das ciencias exatas" (ídem, p. 236).
Pois, "o que é experimentado realmente, é o mundo que simplesmente é, antes de
qualquer filosofía e teoría, as coisas que sao, as pedras, os animáis, os homens. Tudo
isto é experimentado na simples vida: o mundo está aqui sendo, ou simplesmente já foi
etc." (ídem, p. 242).
(2) De fato, "o significado da expressao dimensao transcendental é o de estrutura do
sujeito humano na sua universalidade" (Ales Bello, 2004, p. 95).
(3) Em Fenomenologia e Psicología Husserl já apontara que "um ego cogito, com o qual
ele [Descartes] concluí demasiadamente rápido, subentende ego mens sive animus sive
intelectus, a personalidade empírica, o sujeito das qualidades caracteriais, das
disposigóes. Ele nao submeteu a alma, o espirito no sentido natural á redugao metódica,
e assim fica compreensível que Locke e o psicologismo empírico sucessivo, até o
presente, interpretem a evidencia do cogito, ou, como melhor deveria se chamar, a
evidencia da reflexao sobre o cogito, como evidencia da experiencia psicológica de si" (p.
80). Mas realizando a redugao fenomenológica radical "o residuo nao é um nada, mas a
plena experiencia vivida" (Husserl, 2003, p.82).
(4) Cf. p. 42 e p. 69.
(5) Este retorno deve acontecer em dois níveis: 1) do mundo já dado ao mundo-da-vida
originario; e 2) volta problematizante do mundo-da-vida as operagóes subjetivas das
quais este se origina. O mundo-da-vida, com efeito, é urna formagao que pode ser
estudada a partir de seu modo de constituigao. Para isto cooperam nao apenas as
operagoes lógicas, mas também "as experiencias práticas e sentimentais, a experiencia
do querer, do avahar e do agir na vida prática" (p. 45) incluindo os horizontes inerentes a
elas, bem como "todas as operagoes da experiencia pelas quais se alcanga a constituigao
do tempo e do espago do mundo etc." (p. 45).
(6) "Este sentido concreto cotidiano e familiar da experiencia indica, portanto, o
comportamento da agao prática e da avaliagao mais do que o comportamento de julgar e
conhecer" (Husserl, 1948/1995, p. 47).
(7) No apéndice II , parágrafo 9, de A Crise das ciencias européias e a fenomenologia
transcendental, Husserl (1954/2002) afirma que na vida da experiencia pré-científica,
estamos mergulhados no rio dos dados sensíveis sendo que na evidencia ingenua da
experiencia temos a certeza de conhecer algo como idéntico a si mesmo, vendo-o,
tocando-o, apalpando-o, escutando-o e confirmamos esta sua presenga como objetiva e
real pela reprodugao da experiencia. Mas este conhecimento é sempre aproximado e
portanto seu horizonte está sempre aberto ao desconhecido. O que implica a constante
possibilidade da retificagao, especialmente a partir de nossa experiencia acomunada a de
outros homens.
(8) "O erróneo principio de querer considerar os homens (...) como realidades duplas,
como uniao de duas realidades de géneros diferentes e mesmo assim iguais em seu
sentido, e portanto de considerá-los (...) numa dimensao causal natural, como os corpos
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da
fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
¿,
espago-temporais, suscitou a presumida obviedade de um método definível em termos
análogos aqueles das ciencias naturais". (Husserl, 1954/2002, p. 241).
(9) Em Psicologia e ciencias do espirito, Stein (1922/1999) define a psique como "o
conjunto das características peculiares que diferenciam singularmente" homens e animáis
(p. 42) e define o espirito como "um emergir de si mesmos, urna abertura numa dúplice
diregao: ao mundo objetivo que é experimentado e á subjetividade alheia junto á qual
experienciamos e vivemos" (p. 311). A pessoa"é o sujeito da vida espiritual, centro de
agoes qualitativamente determinado em modo único em seu género" (p. 323).
Notas sobre autores
Miguel Mahfoud é Doutor em Psicologia Social pela Universidade de Sao Paulo, professor
associado do Departamento de Psicologia na Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil. Suas pesquisas
referem-se as áreas de memoria, cultura e subjetividade.
Contato: [email protected]
Marina Massimi é Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de Sao Paulo,
professora titular junto ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de
Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto;
especialista em historia da psicologia e dos saberes psicológicos.
Contato: [email protected].
Data de recebimento: 16/12/2007
Data de aceite: 13/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿~
Essere grezzo e hyletica fenomenologica:
l'ereditá filosófica di " I I visibile e l'invisibile"
The wild Being and the phenomenological hyletic
The philosophical inheritance of "The visible and the invisible"
Angela Ales Bello
Pontificia Universitá Lateranense
Italia
Riassunto
L'articolo confronta i risultati della ricerca filosófica di Merleau-Ponty (specialmente
Topera // visibile e l'invisibile) e la proposta di Husserl. Mostra che Merleau-Ponty coglie
l'intenzione della fenomenología husserliana e si pone sulla scia di Husserl da diversi
punti di vista: nell'uso del linguaggio e nell'uso dei concetti. Discute il rapporto fra I'
hyletica fenomenologica husserliana e la proposta teorética di Merleau-Ponty,
individuando tre punti di convergenza, riconducibili al grande tema del visibile e
dell'invisibile: 1) l'analisi husserliana del corpo con le sue dimensioni tattili e visive, che
corrisponde al tema merleau-pontiano della "carne", 2) il rimando alia dimensione
hyletica con la sua intenzionalitá impulsiva, che trova echi in quella dell'Essere selvaggio,
3) la ricerca di una nuova ontologia che accomuna i due pensatori. Conclude che si tratta
di esaminare il contenuto delle due ontologie per coglierne le affinitá ed anche le
differenze.
Parole Chiave: hyletica; fenomenología husserliana; Merleau Ponty.
Abstract
The article compares the results of Merleau-Ponty's philosophical research (specially the
work The visible and the invisible) with Husserl's proposal. It shows that Merleau-Ponty
apprehends Husserl's phenomenological intention and puts himself in the same path of
Husserl in many points of view: in the use of language and in the use of concepts. It
discusses the relationship between Husserl's phenomenological hyletic and MerleauPonty's theoretical proposal, distinguishing three convergent points, connect to the big
theme of the visible and the invisible: 1) Husserl's analysis of the body with its tactile
and visible dimensions, that corresponds to Mearleu-Ponty's theme of the "flesh", 2) The
connection with the hyletic dimensión in its impulsive intentionality that finds echoes in
the intentionality of the wild Being, 3) the search of a new ontology that unites the two
thinkers. It concludes that the effort is to examine the contení of the two ontologies to
harvest the similarities and the differences.
Keywords: hyletic; Husserl's phenomenology; Merleau-Ponty.
Se é vero che la filosofía, non appena si dichiara
riflessione o coincidenza, pregiudica ció che trovera, é
necessario che ancora una volta essa riprenda tutto,
respinga gli strumenti che la riflessione e l'intuizione si
sonó date, s'installi in un luogo in cui esse non si
distinguano ancora, in esperienze che non siano ancora
state "elabórate", che ci offrano contemporáneamente,
mescolati, il "soggetto" e I' "oggetto", l'esistenza e
l'essenza, e forniscano quindi alia filosofía i mezzi per
ridefinirli (Merleau-Ponty, 1993, p. 147).
In quella parte, che Merleau-Ponty é riuscito a portare a compimento, del libro // visibile
e l'invisibile - rimasto interrotto a causa della sua morte - l'autore affronta e sviluppa un
único tema fundaméntale: che cosa é l'interrogazione filosófica. L'interlocutore principale
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿~
in questo silenzioso dialogo é Descartes, esponente della filosofía riflessiva. Si pone
súbito, allora, la questione riguardante la funzione della riflessione. Se Merleau-Ponty si
domanda, in ultima istanza, quale sia il senso e il ruólo della filosofía, deve constatare
che questo tipo d'indagine non puó prescindere dalla riflessivitá. Nello stesso tempo si
rende contó che il rischio della riflessivitá é la chiusura della filosofía su se stessa,
l'avvitamento del pensiero che perde l'altro da sé.
Di questo paradosso é consapevole Merleau-Ponty. Egli lo esplicita, infatti, scrivendo: «A
prima vista questo movimento riflessivo sará sempre convincente: in un certo senso
s'impone, é la veritá stessa, e non si vede come la filosofía potrebbe farne a meno»
(1993, p.57). E' chiaro che il momento del pensare é un momento fundaméntale. E'
chiaro anche che l'autocoscienza, di cui parla Descartes, é un aspetto umano
imprescindibile, é ció che é auténticamente umano, ció che distingue l'essere umano da
tutti gli altri esistenti. E' comprensibile anche che si consideri la riflessivitá e
l'autoriflessivitá come ció che vale di piü in assoluto. Merleau-Ponty lo riconosce, quando
afferma che é proprio la comprensione dall'interno di tutto ció che io vivo che : « ...fará
sempre della filosofía riflessiva non solo una tentazione, ma anche un cammino che si
deve seguiré » (idem).
A questo punto, pero, la domanda é radicale: si tratta di appurare se questo tipo di
indagine, cosí come si é tradizionalmente configurata, riesca veramente a cogliere il
légame "natale" fra me, che percepisco, e ció che percepisco. In questa espressione
"natale" si coglie l'intenzione profonda dell'autore, direi la sua aspirazione. Perché di
un'aspirazione si tratta, quella di trovare un luogo nuovo per un nuovo inizio con una
nuova modalitá. E il primo "luogo" non é il pensiero, ma la "percezione" che mi mette in
contatto con il mondo. Si tratta, allora, di muovere proprio dalla nozione di mondo.
Si é detto che dietro la filosofía riflessiva si trova Descartes, ma, in realtá, si trova anche
Kant. La prova di ció é, secondo Merleau-Ponty, che nell' Analítica - ci si riferisce qui alia
Critica della Ragion pura -, Kant muove dal presupposto di un mondo possibile. In tal
modo, l'analisi riflessiva cade in un'ingenuitá, perché, per costituire il mondo, si
presuppone la nozione di mondo, in quanto precostituito. Certamente, anche Kant
riconosce la validitá dell'irriflesso, dichiara di iniziare da esso, ma, allora, é necessario
andaré fino in fondo su questa via, metiere in crisi la filosofía riflessiva e stabilire una
relazione reciproca fra la riflessione e l'irriflesso, fra originario e derivato, fra condizione e
incondizionato (1993, p. 60). Per usare i termini dell'autore fra fede percettiva e
riflessione.
II filosofo che sembra essere riuscito a cogliere e superare il punto debole della filosofía
riflessiva, secondo Merleau-Ponty, é Husserl. La correlazione o, addirittura, la coincidenza
fra riduzione trascendentale e riduzione eidetica, proposta da Husserl nel § 34 delle
Meditazioni cartesiane, é interpretata da Merleau-Ponty come un nuovo modo di
intendere la riflessione: «Riflettere non é coincidere con il flusso dalla sua origine fino alie
sue ramificazioni estreme, é far scaturire dalle cose, dalle percezioni, dal mondo e dalla
ercezione del mondo, sottoponendoli ad una variazione sistemática, alcuni nuclei
intelligibili che le resistano, muoversi dall'uno all'altro in modo che l'esperienza non
smentisce, ma che ci dá solo i suoi contorni universali» (1993, p. 70).
La fenomenología é, dunque, definita come una superriflessione, che, da un lato, si pone
la questione della genesi del mondo esistente, ma, dall'altro, anche della genesi
deN'idealizzazione riflessiva. In tal modo, Husserl affronta il problema eluso
dall'atteggiamento riflessivo, stabilendo una correlazione tra spirito e mondo, che per lui
sonó, paradossalmente si potrebbe aggiungere, troppo perfettamente coestensivi "perché
l'uno possa essere preceduto dall'altro e troppo distinti perché l'uno possa involgere
l'altro" (1993, p. 71).
In tal modo, Merleau-Ponty coglie veramente l'intenzione della fenomenología
husserliana, secondo la quale non é possibile pensare ad una preesistenza del mondo a
me, perché il mondo é sempre un mondo per me; ma non si tratta di una chiusura
solipsistica, al contrario, «il mondo privato che indovino all'origine dello sguardo altrui
non é tanto privato da impedirmi che, nello stesso tempo, io ne divenga il quasispettatore» (idem).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿.
In margine al testo che si sta esaminando, intitolato, appunto, "Riflessione e
Interrogazione", scrive l'autore che intende «mostrare che la riflessione sopprime
l'intersoggettivitá». Per mostrare ció, é necessario ritornare sulla nozione di "mondo" e
indagare sulla sua preesistenza, intendendola, pero, nel senso che c'é un único significato
e un'unica idealitá del mondo, pur essendo le nostre vite non commensurabili. Al livello
del significato, la mia percezione e la percezione che un altro ha del mondo sonó la
stessa e, in tal modo,
...con la correlazione di principio del pensiero e
dell'oggetto di pensiero, si stabilisce una filosofía che
non conosce né difficoltá, né problemi, né paradossi, né
capovolgimenti: una volta per tutte, io ho coito in me,
con la pura correlazione di colui che pensa e di ció che
egli pensa, la veritá della mia vita, che é anche quella
del mondo e quella delle altre vite (Merleau-Ponty,
1993, p. 72).
Sembra, allora, che l'aspirazione si sia realizzata: si é giunti ad una filosofía in cui la
riflessione é, in senso husserliano, riflessione speculare, sguardo. Merleau-Ponty a questo
punto scrive in margine che avrebbe voluto dedicare un parágrafo alia riflessione nel
senso di Husserl. In realtá rimangono solo poche righe, ma molto eloquenti, perché il
modo di intendere la riflessione da parte del fenomenologo tedesco si distacca dal
"collegante" kantiano, che rintraccia solo le condizioni di possibilitá, e «trova aH'origine di
ogni riflessione una presenza a sé massiccia, il Noch ¡m Grlff della Ritenzione e,
attraverso esso, I' Urimpression, e il flusso assoluto che li anima. Questa riflessione
presuppone la riduzione della Natura alie unitá immanenti» (idem, p. 73). Si tratta,
perianto, di procederé alia «Tematizzazione deN'immanenza psicológica, del tempo
interno» (idem).
Giá da queste indicazioni si puó constatare che nella ricerca di una nuova dimensione
Merleau-Ponty si pone sulla scia di Husserl da diversi punti di vista: nell'uso del
linguaggio e nell'uso dei concetti.
Movendo da domande quotidiane e banali quali: dove sonó? Che ora é? Egli osserva che
é necessario indagare che cosa siano lo spazio e il tempo, passare, cioé, dal piano dei
"fatti" a quello dell'essenze, ma, giunti a questo punto, si é percorsa solo una parte del
cammino che deve essere prolungato fino alia domanda riguardante il rapporto fra spazio
e tempo e la loro essenza. Ció significa passare dallo spazio e dal tempo, come "esseri",
all'Essere. Sembrerebbe questa un'indagine metafisico-ontologica e in parte lo é, anche
se il termine Essere, benché scritto con la maiuscola, perda il carattere di Assoluto che ha
avuto nella tradizione. Tuttavia, esso mantiene una sua assolutezza, collocandosi al di la,
al di sotto dei fatti e delle essenze e aprendo una nuova prospettiva ontologica. La novitá
sta nell'aggettivo che lo designa, "selvaggio" o "grezzo". E credo che per comprendere
questa novitá sia necessario cércame l'origine non esplicita, bensl remota nella scoperta
della dimensione passiva proposta da Husserl.
Nell'opera che si sta esaminando, il riferimento a questo aspetto fundaméntale
dell'indagine husserliana c'é e non c'é. Ci sonó luoghi in cui appare la ripresa di alcuni
suggerimenti provenienti dalle opere di Husserl, altri in cui le espressioni sonó cosí
diverse o originali che sembra essere lontani da lui. Tuttavia, si puó supporre che l'intera
argomentazione sia ispirata alia lettura dei testi husserliani, soprattutto ad alcuni
manoscritti.
Una prova di ció si trova nelle "Note di lavoro" pubblicate come appendice al testo giá
elaborato, in particolare in un appunto del febbraio del 1959, riguardante il primo
abbozzo dell'ontologia. II progetto é chiaro: si tratta di stabile una continuitá fra i risultati
della Fenomenología della percezione e la nuova ontologia e, piü precisamente, dello
"Svelamento dell'Essere selvaggio o grezzo mediante il cammino di Husserl e della
Lebenswelt, in cui si viene a sboccare" (idem, p. 200) e ritorna la domanda «Che cosa é
la filosofía? II dominio del Verborgen (cp e occultismo)» (idem).
II termine Lebenswelt \n Husserl rimanda ad un territorio che comprende, al suo interno,
una complessitá che richiede una paziente analisi, contenendo in se stesso tutte le
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
(-
operazioni e sedimentazioni culturali e, nello stesso tempo, la sfera precategoriale che
consente di desenvere la genesi di quelle formazioni.
Di ció é consapevole Merleau-Ponty: infatti, a suo avviso, l'indagine si deve svolgere su
due versanti, quello della descrizione essenziale dei fenomeni e quello della loro genesi
precategoriale. Perianto, la risposta che si cerca é «...piü in alto dei "fatti" e piü in basso
delle "essenze", é nell'Essere selvaggio in cui essi erano indivisi e in cui, dietro o sotto le
scissure della nostra cultura acquisita, continuano ad esserlo» (1993, p. 200) e questo é
veramente il programma husserliano, anche se condotto con una modalitá peculiare che
si cercherá di ¡Ilustrare. Dico súbito che quello che determina la differenza fra le due
posizioni é l'atteggiamento critico assunto da Merleau-Ponty nei confronti della riduzione
trascendentale; tuttavia, é necessario approfondire il significato della riduzione stessa,
per cogliere le eventuali possibili convergenze.
Un primo motivo di vicinanza fra i due pensatori é rintracciabile nell'accettazione
sostanziale, da parte di Merleau-Ponty, del § 34 delle Meditazioni Cartesiane di Husserl,
in cui é trattato il rapporto fra la riduzione eidetica e quella trascendentale. Si tratta,
quindi, in primo luogo, del tema delle essenze, tema considerato imprescindibile da
Merleau-Ponty. Husserl scrive nel parágrafo citato:
Se noi dunque pensiamo la fenomenología formata
puramente secondo il método eidetico come scienza
intuitiva a priori, tutte le ricerche di essenze non sonó
altro che rilevazioni dell'universale ego trascendentale
in genérale, che contiene in sé tutte le puré variazioni
di possibilitá del mió io esistente di fatto e quest'io
stesso come possibilitá (Husserl, 1931/1960, p. 120).
Pur non accettando la validitá della sfera trascendentale, credo che Merleau-Ponty si
interessi all'operazione che conduce al trascendentale. In fondo, si tratta dell'operazione
regressiva che va dal fatto all'essenza, da un lato, ma, dall'altro, ad un essere grezzo.
Particolarmente significativo é, a mió avviso il seguente brano che si trova nel capitolo
dedicato a "Interrogazione e intuizione":
Quando la filosofía cessa di essere dubbio per farsi svelamento, esplicitazione, in quanto
si é staccata dai fatti e dagli esseri, il campo che essa dischiude é di fatto si di significati
0 di essenze, ma che non sonó autosufficienti, che manifestamente si riferiscono ai nostri
atti di ideazione e, grazie a questi, sonó prelevati da un essere grezzo in cui si tratta di
ritrovare alio stato selvaggio i corrispondenti delle nostre essenze e dei nostri significati
(Merleau-Ponty, 1993, p. 130).
E' proprio qui che
Merleau-Ponty coglie il senso delle proposta husserliana nel
movimento che va dall'alto al basso e dal basso in alto. Ció induce a constatare che il
percorso puó essere cosí delineato: 1) la ricerca filosófica é un processo di disvelamento;
2) essa muove dai fatti per esplicitarne i significati o le essenze; 3) le essenze sonó nostri
atti di ideazione che rimandano non direttamente ai fatti, ma in senso fenomenologicotrascendentale ad una dimensione "grezza" o "selvaggia".
E' opportuno, allora, fermarsi, in primo luogo ad esaminare la presa di posizione del
fenomenologo francese sul tema dell'essenza.
La questione delle essenze
1 due livelli dell'alto e del basso si delineano con riferimento alia dimensione esperienziale
del visibile, che é l'Essere attuale, di cui le essenze costituiscono le varianti possibili. Ma,
poiché l'ideazione é un fatto importante e ineludibile, per diría con Husserl, si puó
muovere dall'ideazione stessa per domandarci che cosa sia e come si determini e, quindi,
"scendere" verso l'Essere grezzo per poi risalire, con maggiore consapevolezza, da
quest'ultima dimensione verso l'alto, verso l'ideazione.
II visibile, dal quale Merleau-Ponty prende le mosse, apre verso l'invisibile che, mi pare di
capire, diverge in una doppia direzione: verso l'essenza, l'idealitá, e verso la regione
selvaggia. Ma, nonostante la divaricazione, non c'é una separazione, tutto é unito e
connesso fino al punto che egli considera l'ambito in cui viviamo «l'ambito dell'esistenza
e dell'essenza grezze» (1993, p. 135), definizione che sembra paradossale se riferita alie
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿¿
essenze, ma con la quale si intende diré che fatticitá e idealitá sonó indivise. Si tratta,
piuttosto, di un'architettura, di una stratificazione, di livelli d'essere in cui noi siamo
sempre immersi, immersi come corporeitá. II movimento non puó essere quello del
decentramento dell'io in una realtá "meta", una Wesensschau senza luogo e senza
tempo, perché anche i pensieri sentono la pressione dello spazio e del tempo e
«dell'Essere che essi pensano» (ídem, p. 134).
Questa sembrerebbe essere una critica alia "visione d'essenza" di cui parla Husserl, ma,
al contrario, si tratta di riconoscere che «lo stesso Husserl non ha mai ottenuto una sola
Wesensschau che poi non abbia ripresa e rielaborata, non per smentirla, ma perfarle diré
ció che dapprima essa non aveva detto completamente» (idem, p. 135).
Se distinguiamo le due riduzioni, che Husserl, in veritá, tiene sempre connesse, pur
dando a ciascuna di esse una sua specificitá, notiamo che l'esigenza husserliana di
accentuare fortemente il ruólo gnoseologico della visione d'essenza nasce
daN'insufficienza, da lui messa in evidenza, della chiusura positivista in un mondo
puramente fattuale. La grande battaglia, che egli ingaggia con l'atteggiamento
naturalistico, lo conduce ad evidenziare che anche chi ritiene che le scienze siano l'unica
fonte valida di conoscenza é costretto ad usare giudizi e principi formali, tratti dalla lógica
fórmale. Perianto, ogni scienza pienamente sviluppata é, secondo Husserl, «vincolata
all'essenza de\V oggettua/itá in genérale » (Husserl, 1977/2002, p. 25) sia dal punto di
vista ontologico-formale (lógica fórmale, aritmética, analisi matemática, ecc) sia dal
punto di vista eidetico-materiale, perché «ogni veritá eidetica relativa alie essenze puré
ivi incluse deve fornire la legge cui é vincolata quella data singolaritá di fatto, come ogni
altra possibile singolaritá in genérale» (idem). Come si vede, il légame con la fattualitá é
ritenuto necessario da parte di Husserl, soprattutto nel campo delle scienze empiriche,
che solo apparentemente possono essere considérate prive del riferimento a ció che é
essenziale.
Merleau-Ponty comprende molto bene il légame che Husserl aveva individuato fra la
fattualitá e l'eidetica; meno valida rispetto all'intenzione di Husserl, come si evince nel
testo ora indicato delle Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica,
é l'altra sua affermazione, secondo la quale la variazione eidetica é frutto
dell'immaginazione e della visione solitaria del filosofo «mentre essa é il supporto e il
luogo stesso di quella opinio communis che chiamiamo scienza» (Merleau-Ponty, 1993, p.
135).
Riguardo alia prima parte dell'obiezione, si puó notare che nel § 4 del I libro delle Idee
per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica Husserl collega l'ideazione,
che é intuizione d'essenza, alia libera fantasía, la quale fornisce la possibilitá di foggiare
variazioni rispetto alie figure spaziali, agli avvenimenti sociali, alie melodie e cosí via; non
si tratta di attribuire l'ideazione alia fantasía, piuttosto, di un lavoro in comune fra
fantasía e intuizione intellettuale, che non si riduce, come intende Merleau-Ponty,
aN'immaginazione del filosofo, ma é presente in tutti gli esseri umani, appartenente,
perianto, alia nostra struttura trascendentale, che il filosofo si limita a porre in evidenza.
Per quanto riguarda il rapporto fra variazione eidetica e scienza, si é giá indicato che é
proprio Husserl ad osservare che le scienze si fondano sulla visione d'essenza e anzi, egli
aggiunge:
De facto, il positivista rifiuta le conoscenze essenziali,
solo quando riflette 'filosóficamente' lasciandosi
ingannare dai sofismi dei filosofi empiristi, ma non
quando, nell'atteggiamento nórmale delle scienze
naturali, pensa e giustifica le sue asserzioni come
ricercatore scientifico della natura. In quest'ultimo caso
si lascia largamente guidare da evidenze eidetiche
(Husserl, 1977/2002, p. 53).
Quindi, Husserl sarebbe pienamente d'accordo con il pensatore francese e, perianto,
l'obiezione di quest'ultimo non é valida.
Passiamo ora ad esaminare la seconda riduzione: quella fenomenologico-trascendentale.
Anche in questo caso si puó notare una certa vicinanza, ma, come si accennava sopra,
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿~
piü nei contenuti che non nel procedimento metodológico. In fondo, la grande differenza
risiede nel fatto che Merleau-Ponty non accetta la scoperta della dimensione coscienziale
con i suoi Erlebnisse (1993). Tuttavia, egli é d'accordo con Husserl nell'individuare uno
stretto rapporto fra passivitá e attivitá nella conoscenza, perché ció consente alia filosofía
stessa di tener contó della veritá e dell'essere, ma anche del mondo e quindi,
sostanzialmente, a considerare necessaria la regressione fenomenologica, lo scavo che
conduce alia Lebenswelt, ad una sfera passiva, grezza, che é scoperta movendo dalla
corporeitá e dalle sue cinestesi, come direbbe Husserl, dalla carne, come dice MerlauPonty. Punto questo di straordinaria coincidenza, ma anche di lontana, come cercheró di
indicare. Si tratta, allora, di entrare nella sfera della passivitá hyletica e stabilire un
rapporto con la dimensione dell'Essere grezzo o selvaggio.
Che cosa significa "corpo vívente": uno sguardo dall'interno
L'ingresso nella dimensione hyletica, per Husserl, avviene attraverso la corporeitá;
altrettanto accade per l'ingresso nell'Essere grezzo da parte di Merleau-Ponty. Allora, é
questa che é necessario esaminare. Iniziamo da Husserl.
Una tentazione alia quale non si riesce a resistere é quella di porsi di fronte al corpo per
analizzarlo quasi girando "intorno" ad esso, come fosse un oggetto esterno. E' chiaro che
la filosofía occidentale é nata proprio grazie alia possibilitá che ha l'essere umano di
"oggettivare", cioé di trattare tutto ció che ci si presenta come oggetto di riflessione e di
indagine. E questo é, in effetti, realizzabile. Anche l'essere umano é stato oggettivato,
piü o meno esplicitamente; si é coito fin dalla speculazione greca che egli o ella diremmo oggi - si trova in una situazione paradossale, per usare l'espressione cara a
Husserl (1), di essere contemporáneamente colui che fa l'analisi e colui che la subisce. I
termini che ormai usiamo come consolidati tradizionalmente per indicare tale situazione,
quelli, cioé, di soggetto e oggetto, debbono essere esplicitati e la loro esplicitazione
consente di comprendere che l'essere umano é inteso come qualche cosa su cui é
possibile esercitare la riflessione, quindi ob-jectum e come luogo dal quale inizia la
riflessione stessa, luogo profondo che si trova "sotto", nel senso che é all'origine di tutte
le sua capacita e determinazioni, il sub-jectum, appunto. Tale definizione ha nella
tradizione filosófica, in particolare da Boezio, il senso di una realtá meta-fisica: infatti con
l'espressione subjectum si traduce il termine aristotélico di upokeimenon, cioé il núcleo
profondo soggiacente a tutte le determinazioni contingenti.
II termine soggetto, ormai entrato nel linguaggio filosófico, non si riferisce sempre ad
un'entitá che possiede tale spessore. Lo troviamo anche in Kant e in Husserl, i quali non
muovono da una definizione metafísica. Ma entrambi sonó interessati a penetrare in
questa realtá per sondarla, analizzarla, sezionarla si potrebbe aggiungere,
riconoscendone il ruólo attivo, perché ció che sta al fondo di tutte le determinazioni é,
anche per la filosofía classica, non un momento di assoggettamento o di passivitá, come
potrebbe far ritenere il termine per la sua assonanza con ció che é "assoggettato", al
contrario un centro di attivitá. Ció sará sempre piü tenuto presente e specificato nella
speculazione moderna che si impegna, come é stato detto, in un'opera di penetrazione
analítica.
In questo contesto é opportuno inseriré la posizione della fenomenología classica, la
quale procede ad uno scavo su'igeneris movendo non dalla superficie, ma daH'interioritá.
La via di accesso é individuata a iniziare dal modo stesso in cui noi essere umani
cogliamo noi stessi e il mondo circostante, dalla dimensione e dal terreno della nostra
consapevolezza di noi stessi e di ció che é fuori di noi. Questa é la dimensione degli atti,
delle operazioni di cui abbiamo consapevolezza, che "viviamo" in ogni momento della
nostra esistenza, questi sonó gli atti che sonó da noi vissuti, i nostri "vissuti", parola con
la quale traduciamo in italiano il termine tedesco Erlebnisse, non possedendo la nostra
lingua un sostantivo equivalente.
Gli atti che viviamo sonó da noi colti coscienzialmente, ció vuol diré che ci rendiamo
contó di viverli; esemplificando si possono indicare quello della percezione, del ricordo,
deN'immaginazione, del pensiero, e cosí via. Particolare importanza riveste l'atto
percettivo, perché ci pone in modo diretto e immediato in contatto con il mondo esterno;
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
¿^
la percezione, perianto, é il vissuto dal quale muovere per iniziare un'indagine che
conduce successivamente ad esaminare la vasta gamma degli altri vissuti. A sua volta la
percezione puó essere sottoposta ad analisi ed a questo punto che ci rendiamo contó di
compiere tale atto attraverso il médium della sensibilitá ed é a questo punto che diventa
esplicito il tema della corporeitá. Proprio perché Merleau-Ponty consente nel considerare
la percezione come l'avvio dell'indagine, possiamo definiré il suo approccio
fenomenologico.
Tornando a Husserl, per procederé nell'indagine ci puó aiutare l'analisi da lui compiuta
nel secondo volume delle Idee per una fenomenología pura e una filosofía
fenomenologica, trascritto dagli appunti stenografici da Edith Stein (Husserl, 1977/
2002); infatti, la percezione in quanto atto da noi vissuto ci rimanda alie sensazioni che
la costituiscono e fra queste importanza primaria hanno le sensazioni tattili e visive. Esse
si distinguono perché le prime sonó localizzate e le seconde non lo sonó. In ogni caso,
entrambe sonó fondamentali per la conoscenza delle cose fisiche, ma anche per il loro
rimando al corpo proprio. Quest'ultimo, da un lato, si presenta come una cosa fisica,
dall'altro come un corpo senziente {Leib); molto diverse anche in quest'ultimo caso sonó
le sensazioni attraverso le quali cogliamo un oggetto fisico inanimato e quelle che
riguardano il corpo proprio:
E cosí - scrive Husserl - il mió corpo proprio, entrando
in una relazione fisica con altre cose materiali (colpo,
pressione, spinta, ecc), non offre soltanto l'esperienza
di eventi fisici, in riferimento col corpo proprio e con le
cose, bensl anche specifici eventi somatici del genere
che abbiamo denominato sensazione localizzata. Simili
eventi non si danno nelle cose "meramente" materiali
(Husserl, 1977/2002, p. 148).
Alia percezione della cosa fisica va aggiunta la percezione del corpo proprio che é in
contatto con la cosa fisica. Si delinea, in tal modo, una serie di percezioni che assumono
un'importanza straordinaria, perché costituiscono la ragione per cui sentiamo il nostro
corpo e lo consideriamo come proprio. Le sensazioni tattili in questo caso hanno
un'assoluta precedenza rispetto alie altre sensazioni, ad esempio quelle visive, perché
possiedono il doppio riferimento che si é indicato: «Quello che chiamo corpo proprio
visto, non é una cosa che é vista e che vede, mentre il mió corpo proprio, quando lo
tocco, é qualcosa che tocca e che é toccato» (ídem, p. 150). Ció significa che il ruólo
della sensazione visiva é diverso da quello della sensazione tattile; la vista da sola non
da il corpo proprio e neppure l'udito, se non ci fosse il tatto non avremmo la sensazione
del corpo che possediamo.
L'analisi, che si é condotta, é solo la base per ulteriori sviluppi estremamente significativi.
Le sensazioni localizzate, insieme con quelle che derivano dagli altri sensi, ci danno la
possibilitá di cogliere gli oggetti nello spazio, «esercitano una funzione costitutiva per la
costituzione delle cose sensoriali» (ídem, p. 154), come si esprime Husserl; siamo in
quella sfera che egli definisce largamente hyletica, usando la parola greca nel tentativo di
indicare una dimensione che non é stata esaminata in tutta la sua potenzialitá e che é la
base per formazioni di grado superiore come, appunto, la costituzione di oggetti fisici.
Tale sfera non riguarda solo il rapporto del corpo proprio con ció che é esterno, ma
comprende anche altri gruppi di sensazioni che sonó definiti "sentimenti sensoriali", come
il piacere, il dolore, la tensione e il rilassamento, il benessere e il malessere che sonó alia
base della vita dei sentimenti e delle valutazioni.
Che cosa é la hyletica fenomenologica
Se l'individuazione dei vissuti costituisce la geniale scoperta husserliana e ció che
caratterizza la sua indagine, l'analisi dei vissuti stessi pone in evidenza la duplicitá fra il
momento noetico intenzionale e il momento hyletico o materiale. La descrizione di questa
duplicitá, giá contenuta nel primo volume delle Idee per una fenomenología pura, é
approfondita, come si é detto sopra, nel secondo volume in correlazione con l'analisi del
corpo vívente {Leib), il quale non ha soltanto localizzazioni relative alie sensazioni
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
^
sensoriali, che esercitano una funzione costitutiva per gli oggetti che appaiono nello
spazio, ma anche relative a sensazioni di gruppi completamente diversi e
l'esemplificazione é efficace, perché Husserl si riferisce ai sentimenti sensoriali e questo
é un punto particularmente importante.
Che tale argomento continui ad essere presente nelle sue ricerche é confermato da un
cospicuo numero di manoscritti degli anni Trenta dei gruppi C e D, nei quali i due
momenti sopra indicati sonó presentí. In particolare, nel Ms. trans. C 10, senza titolo del
1931 (Husserl, 1931/1973) , si coglie il nesso fra le unitá hyletiche e le affezioni, perché
anche se l'universo hyletico é un universo non egologico, in quanto si costituisce senza
l'intervento dell'io, tuttavia, l'io é sempre presente, come luogo delle affezioni, e sempre
attivo.
Una preziosa esemplificazione in questa direzione é contenuta in un testo nel quale non si
sospetterebbe certamente di trovare una simile applicazione, La struttura della persona
umana, che raccoglie le lezioni tenute da Edith Stein nel semestre invernale 1932-33
presso l'Istituto di Pedagogía Scientifica di Münster. Riflettendo sul tema dello spirito,
l'autrice afferma che il mondo dello spirito abbraccia Tintero mondo creato.
Per dimostrare ció Edith Stein esamina un blocco di granito. Indubbiamente, a suo
avviso, si tratta di una formazione materiale nella quale, tuttavia, si rivela un senso, essa
é plena di senso, perché, anche se non percepiamo una spiritualitá personale, tale
formazione é costituita secondo un principio strutturale proprio, del quale sonó parte
essenziale il suo peso specifico, la sua consistenza, la sua durezza; anche la massa, il
fatto che "si presentí" in blocchi enormi, non in granelli o frammenti (Stein, 1992/2004,
p. 166), ma ció che é importante per noi e che vale sul piano delle affezioni di cui parlava
Husserl, consiste nel fatto che esso «richiama la nostra attenzione in modo singolare».
Infatti, la sua irremovibile consistenza e la sua massa non sonó solo qualcosa che cade
sotto i nostri sensi e che la ragione constata come una realtá. I sensi e la ragione sonó
colpiti interiormente; in essi si rivela a noi qualcosa; in questa realtá leggiamo qualcosa.
II "qualcosa", che viene a questo punto individuato, non é soltanto un senso simbólico,
che puré é presente, ma ecco emergeré il momento hyletico del vissuto, perché il blocco
ci parla di un'imperturbabile stabilitá e di una sicura affidabilitá come qualitá ad esso
adeguate; Timperturbabilitá, la stabilitá, Taffidabilitá sonó risonanze interiori, danno un
senso di benessere o malessere, quello descritto da Husserl a proposito dell'aspetto
hyletico del vissuto, senso che non é lo stesso che puó essere suscitato dalTargilla o dalla
sabbia.
Per continuare il paragone con le analisi husserliane e cogliere le assonanze, le quali, nel
reciproco rimando, chiariscono i risultati ai quali giungono i due fenomenologi, é
opportuno riprendere alcuni passi del manoscritto husserliano sopra citato. Si tratta del
riferimento a quei gruppi di sensazioni localizzate, che svolgono un ruólo análogo, di
materiali appunto, a quello delle sensazioni primarie per gli atti vissuti intenzionali, quali
la durezza, la bianchezza ecc. Questi gruppi di sensazioni, in quanto sensazioni
localizzate, - secondo Husserl - hanno un'immediata localizzazione somática, talché per
ogni essere umano riguardano in modo immediatamente intuitivo il suo corpo vívente
(Leib) in quanto suo corpo proprio, come un'oggettivitá soggettiva, che si distingue dalla
cosa puramente materiale "corpo proprio" attraverso lo strato di sensazioni localizzate
(Husserl, 1977/2002, p. 155). Queste ultime «difficili da analizzare e da ¡Ilustrare» continua Husserl - formano la base della vita del desiderio, della volontá, le sensazioni
di tensione e di rilassamento dell'energia, le sensazioni dell'inibizione interna, della
paralisi, della liberazione (idem). Con questo strato si connettono, pero, le funzioni
intenzionali, i materiali assumono una funzione spirituale, cosí come accade per le
sensazioni primarie che vengono a far parte di percezioni, sulle quali, poi, si costituivano
giudizi percettivi,ecc. (idem). Si indica, perianto, una stratificazione, che ha un doppio
versante: uno conoscitivo, formato dalle sensazioni primarie, percezioni, giudizi percettivi
e uno psichico-reattivo, formato da sentimenti sensoriali e valutazioni. II livello
percettivo, giudicativo e valutativo sta dalla parte della noetica.
Si delinea cosí chiaramente il rapporto fra hyletica e noetica, ma il momento hyletico
sembra trascinare quello noetico, da qui la perentoria affermazione husserliana: «
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,„
...Tiritera coscienza di un uomo é in un certo modo legata al suo corpo vivo attraverso la
sua base hyletica » (idem), tuttavia la duplicitá non é eliminata; infatti, gli atti vissuti
intenzionali non sonó localizzati e non costituiscono uno strato del corpo proprio.
L'autonomia del momento spirituale rispetto a quello materiale, che puré ne consente la
manifestazione, é, in tal modo, ribadita; la percezione, in quanto afferramento tattile
della forma, non sta nel dito che tocca, in cui sonó localizzate le sensazioni tattili; il
pensiero non é veramente localizzato intuitivamente nella testa come le sensazioni
localizzate di tensione (idem). Husserl osserva che spesso ci esprimiamo cosí, e ci si puó
domandare perché ció avvenga; si potrebbe rispondere che la forza attrattiva della
localizzazione hyletica fa concentrare l'attenzione sul corpo proprio, dove il termine
hyletica non sta ad indicare la materia nel senso tradizionale, ma un tipo nuovo di
materialitá, giá da lui proposto nel § 85 del I libro delle Idee,{ 1952/2002) per il quale,
chiaramente, egli é alia ricerca di un termine nuovo e crede di poterlo trovare nel
vocabolo greco hyle. Si tratta dell'individuazione di una dimensione prima mai ben
delineata e per questo mancano anche le parole per esprimerla.
Hyletica e intenzionalitá
Se la hyletica si manifesta in modo preminente nell'ambito gnoseologico, numerosi
accenni di Husserl ne indicano una piü ampia funzione. La hyletica coinvolge, come si é
visto, in primo luogo la sfera affettiva e impulsiva che é alia base - e in questo senso si
puó parlare di hyle, cioé di materia - della valutazione noetica. Analizzando gli atti umani
nella loro stratificazione, Husserl afferma che in essi é presente un'entelechia "cieca" e
"orgánica" che agisce a livello impulsivo, essa diventa esplicita a livello volontario,
passando da un'intenzionalitá impulsiva ad una consapevole. Seguendo la via del
comportamento pratico-etico e non di quello puramente gnoseologico, é possibile
approfondire il tema dell'entelechia e il suo senso teleologico.
Certamente piü nota é l'insistenza di Husserl sulla teleología della storia, da intendersi
come scoperta di un fine immanente in essa e come appello etico alia realizzazione del
fine stesso. Ma le ragioni ultime dell'esistenza di questa dimensione sonó da rintracciarsi
in quello che egli definisce necessario «rinvio ai fatti originari della hyle» (Husserl, 1973,
p.386), che sembrerebbe incomprensibile se non si fosse messa in risalto l'intenzionalitá
presente a livello impulsivo. Si manifesta anche in questo caso il rimando, sempre
attuato da Husserl, dalla sfera della consapevolezza, conoscitiva ed etica, quella da lui
definita categoriale, alia sfera pre-categoriale. E' il cammino da lui indicato che, sulla via
della lógica, va da quella fórmale a quella trascendentale {Lógica fórmale e
trascendentale) (Husserl, 1929/1966) e, sulla linea della gnoseologia, dalla coscienza alie
sintesi passive {Lezionisulle sintesipassive) (Husserl, 1966/1993), le quali sonó, come si
noterá piü avanti, alia base della formazione di ogni conoscenza nell'intreccio fra soggetto
e oggetto, prima che questi due momenti siano effettivamente distinti.
Non a caso, in appendice alie Lezioni sulla sintesi passiva, si trovano le considerazioni
preliminari alie lezioni sulla lógica trascendentale. Si é giá detto che, attraverso l'analisi
genética, Husserl scende nelle formazioni di senso fino ad arrivare ai gradi piü nascosti
della passivitá. Questo cammino a ritroso proprio di quella che egli chiama Rückfrage, é
una regressione che é difficile operare, perché gli esseri umani vivono alia superficie del
processo, dove si danno giá i risultati e per "sciogliere" tali risultati e cogliere la loro
genesi é necessario uno sguardo atiento, consapevole, "scientifico", ma di una
scientificitá che non é di tipo costruttivo, bensl decostruttivo, non perché rinunci alia
ricerca di senso, ma perché scava per trovare sempre sensi ulteriori.
La dimensione hyletica é quella che beneficia di piü da questo scavo, perché, mentre le
sedimentazioni culturali, come prodotti noetici, si presentano ben strutturate, anzi
strutturate in un modo che é comunemente considerato definitivo, e che cresce
attraverso continué ulteriori stratificazioni, la via genética, che conduce alia sfera della
passivitá, rimane ignorata per un duplice motivo: chi vive a livello prescientifico, che in
questo caso vuole diré acritico e ingenuo, non si accorge del processo genético
presupposto da ogni conoscenza e da ogni risultato ottenuto a livello della prassi; d'altra
parte, chi vive a livello scientifico, proprio a causa della sempre maggiore
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,,
specializzazione del sapere, della sua ramificazione e della sua complessitá
naturalmente qui ci si riferisce in particolare alia cultura occidentale -, crede di
giustificare tutto attraverso questo tipo di sapere e non si pone la questione della stessa
genesi del sapere.
E' in questo contesto che la filosofía ha assunto fin dalla cultura greca antica un ruólo
critico, ma non é ancora riuscita, secondo Husserl, a smascherare l'origine delle
sedimentazioni. Ció é chiaramente espresso in quello che si puó chiamare il suo
testamento spirituale (Husserl,1992/2004).
La fenomenología husserliana é nata con l'intento di procederé a questo smascheramento
e ha esaminato le scienze matematiche, fisiche e quelle riguardanti la sfera umana, allora
chiamate scienze dello spirito. Accanto a queste e aN'interno di queste, i problemi dei
procedimenti logici, cioé dell'organizzazione del pensiero assumevano per Husserl un
ruólo sempre piü importante e si erano sedimentati nella lógica fórmale, certamente di
origine aristotélica, ma sempre piü raffinata ed astratta come stavano dimostrando i
neopositivisti. Husserl é d'accordo che questo tipo di lógica possa essere utile strumento
nell'elaborazione delle scienze, ma il problema si sposta: come si sonó elabórate le
scienze e la stessa lógica fórmale?
Questa domanda é stata sempre presente nel percorso husserliano e la risposta,
seguendo il filone delle sue opere sulla lógica - filone molto importante perché
confinante con quello delle scienze matematiche, con le quali era avvenuta la sua prima
formazione intellettuale - é data non sul terreno della stessa lógica, ma su quello piü
profondo della genesi delle operazioni logiche all'interno della struttura trascendentale dei
vissuti. I due scritti piü significativi in questa direzione sonó Lógica fórmale e
trascendentale, in cui si muove dal terreno giá costituito della lógica fórmale, per
retrocederé fino alie operazioni e agli atti che, pur non essendo tutti di tipo conoscitivo,
debbono essere studiati sotto un profilo conoscitivo, quindi sul piano gnoseologico, ed
Espeñenza e Giudizio (Husserl, 1948/1995), in cui si percorre il cammino che va dal
primo coglimento percettivo delle cose al livello giudicativo. In realtá, si tratta di un
duplice lavoro ascendente e discendente compiuto correlativamente, con grande capacita
di andaré dalle formazioni giá costituite alia loro genesi e, viceversa, di ripercorrere dalle
prime operazioni costitutive il processo fino a raggiungere i livelli piü alti.
Nel lavoro di scavo si inseriscono, come si é giá indicato, le Lezioni sulla sintesipassiva,
che studiano le operazioni preliminari rintracciabili per la formazione della conoscenza
percettiva, la quale non é il primo gradino della conoscenza, ma é giá il risultato di un
processo anteriore basato essenzialmente sull'associazione, cioé sulle operazione
primitive che, attraverso il contrasto, la successione e la coesistenza consentono di
definiré, in prima istanza, i campi percettivi. In questa fase, soggetto e oggetto sonó
ancora indistinti e solo a livello percettivo avviene la distinzione.
In tale prospettiva, il problema della "sensazione" e della sua origine é rivisitato ed anche
il rapporto fra la noesi intenzionale e la hyle, materia che si presenta. E', perció, possibile
rintracciare due modi in cui si parla di questo particolare materiale della sensazione
interna ed esterna, che si chiama hyle. Secondo l'analisi statica, condotta nelle Idee per
una fenomenología pura, la hyle é la materia a cui la noesi dá un significato, e diventa
materia per ulteriori operazioni, ad esempio la piacevolezza data dalla visione di un
colore mi spinge a scegliere quel colore, a valutario positivamente e, quindi, diventa
"materia" di un giudizio. Al contrario, nella prospettiva genética, che mette in evidenza la
sfera passiva, la hyle possiede giá una sua struttura intenzionale, che consente ad essa
di presentarsi in modo configúrate
Piü in genérale lo scavo "archeologico", che qui si tenta di ricostruire movendo dalle
sparse analisi di Husserl, serve alia scoperta delle "ragioni ultime", che si congiungono
con le ragioni prime o piü palesi. Per comprendere tale scavo, é opportuno esaminare un
testo scritto nel 1931, intitolato "Teleología" (Husserl, 1931/1973), che compendia tutto
¡I cammino finora descritto, aggiungendo nuovi ed inediti elementi. II sottotitolo suona
"Implicazione dell'eidos: intersoggettivitá trascendentale nell'eidos: io trascendentale".
II manoscritto inizia con una tensione riscontrata a livello trascendentale fra
l'orientamento dell'essere umano verso la perfezione, verso l'autoconservazione e la
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,,,
presenza di sempre nuove contraddizioni. Ma l'idea di perfezione si presenta, secondo
Husserl, come un'idea-guida nella sua valenza etica. Si tratta di una "nozione"
preontologica, cioé presente fin dall'inizio, che acquista valore ontologico attraverso la
riflessione e puó assumere un valore tramante per la volontá «che in tal modo ha il suo
fine esplicito e la forma esplicita della meta, dello scopo, della totalitá di tutti gli scopi
individúan e sopraindividuali (intersoggettivi, riguardanti tutta l'umanitá) » (Husserl,
1931, p. 379). Ed é qui che si innesta il tema della storia e del suo senso e bisogna
ricordare che per Husserl la storia ha un senso e un fine, essa é percorsa da una volontá
"metafísica", che produce un processo infinito o meglio tendente all'infinito. Ogni
elemento finito, pur nella sua oscuritá, vive nella forma dell'infinitá. E l'infinitá appare
nella forma temporale come successione temporale di momenti finiti, ma la sua ultima
vera natura é quella del nunc stans, quindi dell'eternitá qualitativamente diversa dal
tempo.
Tutto il discorso di Husserl ruota intorno ad una realtá profonda che guida la storia,
manifestandosi come volontá infinita, giustificante i vari gradi di volontá; infatti, ogni
essere umano dapprima senté un'oscura volontá di vivere, poi, tende verso mete di
perfezione, anche se non giunge mai a realizzare tale perfezione; in altri termini, come si
evince dai testi husserliani rivolti alie questioni etiche, come mai l'essere umano vede ció
che é buono e riconosce ció che é male? Perché ha una sorta di nostalgia di una
situazione migliore di quella in cui é costretto a vivere? A questo punto della sua
riflessione Husserl ipotizza una situazione di comprensione collettiva di ció che é buono e
positivo e si domanda che cosa accadrebbe se tutti i soggetti potessero destarsi in senso
etico, cioé comprendere ció che é positivo. E si chiede, ancora, come puó accadere la
diffusione di ció che é stato coito in modo genuino da alcuni, e si riferisce al ruólo di
alcune comunitá, ad esempio le Chiese, sottolineando la funzione che esse hanno nella
diffusione di ció che é buono, oppure si pone su un piano etico-religioso, quando pensa
all'opera missionaria o alia spinta verso Yimitatio e, presumibilmente, si tratta
dell'imitatio di Cristo.
Accanto al livello etico-religioso, si delineano quello pedagógico e quello etico-politico.
Tutte queste dimensioni tendono ad un fine e si tratta di stabilire perché e se sonó
connesse ad un elemento sotterraneo unitario, costituente la "forma di tutte le forme".
Tutti i livelli di realizzazione umana lungo il cammino storico trovano la loro
giustificazione in Dio. Scrive Husserl:
La volontá assoluta universale che vive in tutte le
soggettivitá trascendentali e
che rende possibile
l'essere individúale-concreto della soggettivitá totale
trascendentale, é la volontá divina, la quale presuppone
pero tutta l'intersoggettivitá non nel senso che
quest'ultima preceda la prima e sia possibile senza di
essa (e neppure nel senso in cui l'anima presuppone il
corpo) ma come strati strutturali, senza i quali questa
volontá non puó essere concreta (Husserl, 1931/1973,
p. 381).
In tal modo si stabilisce una correlazione profonda fra gli esseri umani e la divinitá, che
non si presenta lontana ed estranea, ma vicina e attiva.
II testo, che si sta esaminando, é particolarmente significativo, perché in esso si medita
ancora di nuovo sul rapporto fra la dimensione esistenziale umana, la capacita, sempre
umana, di cogliere ció che é essenziale e, quindi, di individuare la sfera trascendentale, la
"lastra trasparente", come mi sembra di potería definiré, su cui si imprimono i vissuti in
un processo di continuo rimando. Husserl osserva che, mentre, in genérale, é possibile
cogliere il momento essenziale o eidos di qualunque realtá, prescindendo dall'essere o dal
non essere della realizzazione dei momenti essenziali, nel caso dell'essere umano
«l'eidos: io trascendentale é impensabile senza l'io trascendentale come fattuale»
(Husserl, 1931/1973, p. 385). Questo significa che si stabilisce una correlazione fra
l'ontologia mondana e l'ontologia assoluta, cioé fra le strutture esistenziali del mondo e
quelle essenziali, e la correlazione trova il suo nesso proprio nell'essere umano.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,,,
Ed é proprio a livello della sfera trascendental che si chiarisce la struttura del "fatto". II
"fatto" essere umano, attraverso la ricerca regressiva, é individuato nelle sue strutture
originarle che si configurano in un primo momento a livello hyletico; la hyle originaria si
presenta con le cinestesi, cioé con i movimenti originan, con i sentimenti originari, con gli
istinti originari. E tutto questo materiale originario si trova in una forma di unitá, che é la
forma essenziale prima della mondanitá. Proprio perché questo si mostra nell'essere
umano immediatamente, appare giá indicato a livello "istintivo", la costituzione di tutto il
mondo, che é contenuto nella sua "grammatica essenziale", nel suo alfabeto essenziale
nei livelli profondi dell'essere umano stesso, e ció che é indicato, non é solo una struttura
passiva, inconscia, istintiva unitaria, ma anche possedente una sua finalitá. La teleología
si manifesta a livello trascendentale, ma ha la sua origine nei fatti «...originari della hyle
(nel senso piü ampio); senza essi nessun mondo sarebbe possibile e nessuna soggettivitá
totale trascendentale. Stando cosí le cose si puó diré che questa teleología, con la sua
fatticitá originaria, ha il suo fondamento in Dio? Perveniamo alie ultime "questioni di
fatto" - alie questioni di fatto originarie, alie ultime necessitá, alie necessitá originarie »
(Husserl, 1931/1973, p. 385).
Non solo si dice genéricamente che tutte le cose hanno un fine, ma si analizza
partitamene la stratificazione della realtá attraverso la stratificazione presente nell'essere
umano per giungere alia conclusione, secondo la quale non solo le opere culturali o quelle
dello spirito, i processi volontari, che caratterizzano gli esseri umani, non solo Tésame
degli organismi e dei loro livelli di sviluppo e di perfezione - come si legge nel testo citato
delle Idee -, ma anche quel mondo oscuro, degli istinti originari, dei sentimenti, dei
movimenti fisici e psichici inconsapevoli hanno un senso. E senso e fine, causa fórmale e
causa finale, come direbbe Aristotele, sonó correlativi, perció la teleología é definita "la
forma di tutte le forme": infatti, é riscontrabile a tutti i gradi della realtá.
E se tutto, non solo i livelli di razionalitá, le opere dello spirito, ma anche le dimensioni
considérate caotiche e magmatiche, nonostante l'apparente irrazionalitá, hanno un
senso, allora non si puó fare a meno di attribuire l'origine di questo senso a Dio.
Nel caso di questo percorso, che si potrebbe definiré come quello della hyletica, l'inizio si
ha, come sempre in Husserl, nella dimensione dell' esperienza vissuta, ma si esce da
essa perché le "ragioni ultime" anche sul piano della hyletica, si trovano nel fatto che
nulla é "a caso", al contrario é necessario rintracciare fin dalle dimensioni piü profonde
una "teleología", una finalitá e, quindi, il rimando ad una "fatticitá originaria" puó essere
compreso fino in fondo, se si constata che essa ha il suo fondamento in Dio (Husserl,
1931/1973, p. 385).
Hyletica fenomenologica ed Essere grezzo
In quale senso si puó stabilire un rapporto fra i risultati delle analisi husserliane sopra
indicati e la proposta teorética di Merleau-Ponty? A mió avviso si possono individuare tre
punti, riconducibili al grande tema del visibile e dell'invisibile: 1) l'analisi husserliana del
corpo con le sue dimensioni tattili e visive, che corrisponde al tema merleau-pontiano
della "carne", 2) il rimando alia dimensione hyletica con la sua intenzionalitá impulsiva,
che trova echi in quella dell'Essere selvaggio, 3) la ricerca di una nuova ontologia che
accomuna i due pensatori. Si tratta, in ultima analisi, di esaminare il contenuto delle due
ontologie per coglierne le affinitá ed anche le differenze.
Si é visto che per Husserl fundaméntale é la dimensione trascendentale come luogo di
individuazione di strutture universali che si declinano, pero, sempre in modo singolare ed
empírico.
Negli appunti preparati per la prosecuzione della stesura del suo libro, Merleau-Ponty
individua la sua nuova ontologia come capace di metiere in crisi le nozioni di soggettivitá
trascendentale, di soggetto, di oggetto in favore della presa di coscienza della filosofía
come pre-scienza, «...in quanto espressione di ció che é prima dell'espressione e che la
sostiene a tergo» (Merleau-Ponty, 1993, p. 185); infatti, « tutte le analisi particolari sulla
Natura, sulla vita, sul corpo umano, sul linguaggio ci faranno entrare nella Lebenswelt e
nell'essere "selvaggio"; e, cammin facendo, io non dovró astenermi dall'entrare nella loro
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,.
descrizione positiva, e nemmeno nell'analisi delle diverse temporalitá - dirlo sin dalla
introduzione» (ídem, p. 185).
Si possono notare, perianto, due cose, sulle quali é necessario soffermarsi: in primo
luogo che la regressione, di cui parla Husserl, non si risolve in una contrapposizione fra
soggettivitá trascendentale e Lebenswelt, perché i due termini si comprendono solo
attraverso un reciproco rimando e, in secondo luogo, che Merleau-Ponty stabilisce un'
identitá fra Lebenswelt ed essere selvaggio. D'altra parte, mi sembra che ci sia una
vicinanza nel modo di intendere la Lebeneswelt da parte di Merleau-Ponty: «La ricerca
della visione "selvaggia"» (ídem, p. 199).
La critica di Merleau-Ponty contro il trascendentale non é esplicitamente rivolta a Husserl,
potrebbe essere, piuttosto, rivolta a Kant, ma, in ogni caso, anche Husserl considera la
soggettivitá trascendentale come un punto di partenza e di arrivo imprescindibile. La
novitá, come si é visto, é costituita dall'individuazione della sfera coscienziale con i suoi
vissuti, che non é presa in considerazione da Merleau-Ponty.
Ció consente di capire come mai egli proceda dall'individuazione dell'importanza della
corporeitá, ma come non possa cogliere il senso ultimo della dimensione hyletica. Eppure
le analisi husserliane su di essa hanno straordinarie affinitá con quelle condotte dal
fenomenologo francese sul tatto e sulla vista.
Vale la pena soffermarsi su queste per procederé ad un paragone.
Si puó prendere l'avvio dall'analisi del colore rosso, condotta da Merleau-Ponty nel
capitolo dedicato a "L'intreccio - II chiasma" . Dall'analisi di molteplici oggetti che offrono
il colore rosso egli ricava, in primo luogo, che esso é « ... una specie di stretto fra
orizzonti esterni ed interni sempre aperti, qualcosa che viene a toccare dulcemente e fa
risuonare a distanza diverse regioni del mondo colorato o visibile, una certa
differenziazione, una modulazione effimera di questo mondo, e quindi meno colore o cosa
che differenzia fra cose e colori, cristallizzazione momentánea dell'essere colorato o della
visibilitá» (Merleau-Ponty, 1993, p. 149). Ed é rivelativo, perianto, di un tessuto che
fodera i visibili, che li sostiene, che é carne.
Ció accade, in veritá, perché, se ci si pone dalla parte del védente - e qui c'é lo
spostamento verso il soggetto proprio dell'indagine fenomenologica -, si nota che lo
sguardo "avvolge, palpa, sposa le cose visibili" non a caso, ma secondo una "legalitá"
direbbe Husserl, che stabilisce una correlazione per cui non si puó diré chi comanda, se il
soggetto o le cose. Tale correlazione é comprensibile attraverso la palpazione, perché é li
che l'interrogante e l'interrogato sonó piü vicini. Se leggiamo le analisi husserliane sul
tatto, si coglie il senso di tale correlazione. Infatti, nel tatto non solo é coinvolto il corpo,
ma si costituisce il corpo stesso, perché imprescindibile é il riconoscimento delle
sensazioni légate alia mano, ma anche a tutta la corporeitá. II tatto diffuso sul corpo é, in
realtá, l'origine dell'esperienza dei confini del corpo e, quindi, della consapevolezza del
corpo stesso; infatti, posso diré che ho un corpo, perché c'é un'esperienza tattile diffusa
e localizzata. Come si é visto sopra, la localizzazione é fundaméntale per comprendere il
senso della sfera hyletica nel doppio versante egologico e non egologico, tatto delle cosa
esterna o di quella cosa che chiamo il mió corpo, che risponde con le sue sensazioni alia
mia mano senziente e senso della gradevolezza o meno nel caso del liscio o del ruvido,
che si manifesta, allora, come reazione psichica, facente parte anch'essa della sfera
hyletica.
Mentre Husserl afferma la supremazia della sensazione tattile su quella visiva per la
costituzione del corpo proprio, Merleau-Ponty, che pur riconosce il sorgere di un
sentimento passivo - cosí egli lo chiama - del corpo e del suo spazio attraverso il tatto,
stabilisce una sorta di paritá o addirittura di scambio di validitá fra tatto e vista: «
Dobbiamo abituarci a pensare che ogni visibile é ricavato dal tangibile, ogni essere tattile
é promesso in un certo qual modo alia visibilitá; e che c'é sopravanzamento,
sconfinamento, non solo fra il toccato e il toccante, ma anche fra il tangibile e il visibile
che é incrostato in esso, cosí come reciprocamente, il tangibile stesso non é un nulla di
visibilitá, non é privo di esistenza visiva. Poiché il medesimo corpo vede e tocca, visibile e
tangibile appartengono al medesimo mondo» (Merleau-Ponty, 1993, p. 151-152).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,.
Indubbiamente non si tratta di stabilire semplicemente la circolaritá fra i due tipi di
sensazioni. Anche Husserl accetta che il medesimo corpo vede e tocca e che visibile e
tangibile appartengono al medesimo mondo, si tratta, piuttosto di individuare le
caratteristiche essenziali dei due ordini di esperienze e, quindi, sulla base delle sue analisi
sempre rigorose, si puó diré che non accetterebbe che la visione sia palpazione con lo
sguardo se non in senso metafórico, ma accetterebbe che «occorre che anch'essa si
iscriva nell'ordine d'essere che essa ci svela, occorre che colui che guarda non sia
estraneo al mondo che guarda» (Merleau-Ponty, 1993, p. 151).
A proposito di tale estraneitá si puó diré che Husserl, scavando nella sfera passiva,
constata l'indistinzione originaria fra soggetto e oggetto, esplicitando analíticamente ció
che Merleau-Ponty pone solo come rimando al terreno indistinto dell'Essere "grezzo".
Alcuni tratti fondamentali dell'ontologia di Merleau-Ponty
Poiché il fenomenologo francese non é riuscito a completare il suo lavoro, non possiamo
pretendere un'analisi della regione dell'Essere grezzo. Ci sonó, tuttavia, alcune "Note di
lavoro", che possono essere indicative. In particolare, un brano che potrebbe essere
accostato alia descrizione condotta da Husserl. Si é notato che quest'ultimo si riferisce ad
una sfera profonda, istintiva, la quale, tuttavia, possiede una sua intenzionalita. MerleauPonty individua un'intenzionalitá latente che identifica con la struttura fondamentale della
Zeitigung. L'intenzionalitá latente cessa di essere vita della coscienza per diventare vita
intenzionale. Si tratta di quello che Husserl chiamava Triebintentionalitát? Di questa, in
realtá, non parla Merleau-Ponty, é come se non conoscesse quest'aspetto delle analisi di
Husserl, non coglie lo scavo archeologico che egli ha compiuto, se lo accusa di essersi
fermato alia coscienza immanente senza aver individuato «...il doppiofondo della mia vita
di coscienza» (Merleau-Ponty, 1993, p. 191).
Husserl, al contrario di quanto ritiene Merleau-Ponty, lo ha individuato tanto é vero che
paragona questo sottofondo addirittura all'inconscio, di cui parla la psicoanalisi, nelle sue
Lezioni sulle sintesi passive (2). D'altra parte, Merleau-Ponty sembra riconoscere ció,
soprattutto commentando le Meditazioni cartesiane. Un punto di convergenza rispetto al
trascendentale di cui parla Husserl é rappresentato, infatti, dalla nota del febbraio 1959,
in cui egli riconosce, rimanendo all'interno delle Meditazioni cartesiane, la validitá del
campo trascendentale come superamento, da parte di Husserl, della concezione
cartesiana della mens sive anima, ma anche del superamento della stessa soggettivitá
trascendentale sulla linea della sintesi passiva che in quell'opera di Husserl é legata alia
conoscenza deN'alteritá, che inizia, secondo Husserl, come egli si esprime nel § 5 1 , dalla
ursprüngliche Paarung, l'appaiamento originario. Pur non facendo riferimento esplicito a
tale espressione, Merleau-Ponty individua la dimensione passiva attraverso il tema
dell'intersoggettivitá, piuttosto che quello della conoscenza del mondo fisico, in altri
termini tiene contó, come si é detto, delle Meditazioni cartesiane e non dei manoscritti
husserliani che sonó, in seguito, stati pubblicati sotto il titolo di Sintesi passive.
L'analisi delle Meditazioni q\\ consente di cogliere attraverso l'intersoggettivitá uno degli
itinerari che Husserl privilegiava, come é stato indicato sopra, quello che conduce alia
storia. Nei suoi appunti Merleau-Ponty scrive:
II passaggio all'intersoggettivitá é contraddittorio solo
nei confronti di una riduzione insufficiente, Husserl ha
ragione a dirlo. Ma una riduzione sufficiente conduce al
di la della pretesa "immanenza" trascendentale,
conduce alio spirito assoluto inteso come Weltlichkeit,
al Geistcome Ineinander delle spontaneitá, esso stesso
fondato suW Ineinander Q.sXe.s\o\oq\zo e sulla sfera della
vita come sfera dell'Einfühlung e di intercorporeitá
(Merleau-Ponty, 1993, p. 189).
Si apre, come si é giá visto in Husserl, anche per il fenomenologo francese la questione
della storia riconducibile al tessuto connettivo óe\Y Ineinander, che costituisce la
dimensione mondana delle spirito (ídem, p. 191). Lo spirito rimanda, perianto, alia sfera
del tessuto connettivo intersoggettivo, fondato sul rapporto fra le corporeitá dei singoli.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
~¿
Appare, a questo punto, un termine che finora non era stato usato, quello di Geist, da
ricondurre sempre, e in questo caso esplicitamente, alie analisi husserliane. Gennaio
1959, scrive Merleau-Ponty: « Husserl: i corpi umani hanno un "altro lato", un lato
"spirituale"» (ídem, p. 185) ed espone il suo progetto: «Nel Io volume, - dopo natura
fisica e vita, fare un 3o capitolo in cui il corpo umano sará descritto come dotato di un
lato "spirituale"» (ídem, p. 186). Si tratta di un ampio progetto che riprende e
approfondisce « i miei primi due libri» dice Merleau-Ponty, nella prospettiva
dell'ontologia. // visibile e l'invisibile rappresenta, come si é giá potuto constatare, un
compimento del cammino di ricerca iniziato nella Fenomenología della Percezione.
Sempre desenvendo il suo progetto di una nuova ontologia, Merleau-Ponty propone di
metiere il evidenza tutte le radici ed apre la via all'analisi del linguaggio. II
trascendental é, allora, inteso come evidenziazione dell'agente sensoriale che é il corpo
e l'agente idéale che la parola (ídem, p. 189).
Le parole conclusive della parte dell'opera elaborata da Merleau-Ponty sonó dedícate al
ruólo del linguaggio. « In un certo senso, come dice Husserl, tutta la filosofía consiste nel
restituiré un potere di significare, una nascita del senso o un senso selvaggio, una
espressione dell'esperienza attraverso l'esperienza che ¡Ilumina specialmente la sfera
particolare del linguaggio» (ídem, p. 170). Due punti sonó particularmente significativi in
questo brano: il fatto che ció che é selvaggio ha un senso - e questo troverebbe una
conferma nel tema deN'intenzionalitá latente, alia quale ci si é giá riferiti - e che ci sia un
nesso fra senso e linguaggio e quest'ultimo non é solo linguaggio articolato; citando
Valery, infatti, Merleau-Ponty sostiene che «... il linguaggio é tutto, perché esso non é la
voce di nessuno, perché é la voce stessa delle cose, delle onde e dei boschi» (ídem, p.
170). Lo stretto légame, ma ancora meglio l'identitá fra senso e linguaggio rimanda
anche, aN'interno della corrente fenomenologica, alie analisi di Hedwig Conrad-Martius, la
quale afferma nei suoi Dialoghi Metafisici (Conrad-Martius, 1921/2006 e Ales Bello, 2006)
(3) che le cose parlano perché esprimono la loro essenza, il loro senso, anche se non si
tratta di un linguaggio articolato, e che il linguaggio articolato é l'espressione propria del
senso dell'essere umano che é un essere corpóreo, psichico, ma soprattutto spirituale.
Anche per Merleau-Ponty il tema del linguaggio é legato alia questione del senso e
quest'ultimo a quello dello spirito. La spia di ció é la sua affermazione, secondo la quale
non basta la lingüistica per capire il linguaggio. Se le parole hanno un senso ció non é
finalizzato al fatto che il lingüista lo scopra, ma: «...la Parola operante é la regione oscura
dalla quale proviene la luce istituita, alio stesso modo in cui la sorda riflessione del corpo
su se stesso é ció che noi chiamiamo luce naturale» (Merleau-Ponty, 1993, p. 169).
L'intreccio, il chiasma si istituisce fra la significazione e la molteplicitá dei mezzi fisiologici
e linguistici della elocuzione cosí come la visione porta a compimento il corpo
estesiologico. Merleau-Ponty lancia un'esortazione a seguiré piü da vicino il passaggio dal
mondo muto al mondo parlante. Credo che questo dia la possibilitá di legare "senso" a
"selvaggio", da un lato, ma anche senso e spirito, dall'altro.
La nuova ontologia, che, in tal modo, é delineata da Merleau-Ponty, assume i caratteri di
un nuovo umanesimo (ídem, p. 186), ma anche di una nuova metafísica, che si fonda
sulla constatazione di una Offenheit, di un'infinitá che si presenta diversa dall'apertura
"classica" verso la trascendenza proposta, come si é detto sopra, da Husserl, ma che in
entrambi i pensatori é intesa come superamento della fattualitá, la quale, pero, non
eselude la fattualitá stessa. Maggio 1960: « lo sonó contro la finitezza nel senso
empirico, esistenza di fatto che ha deilimiti: ecco perché sonó per la metafísica. Ma essa
non é nell'infinito piü che nella finitezza di fatto » (ídem, p. 163).
Non é facile procederé ad un bilancio senza correré il rischio di schematizzare troppo la
ricchezza concettuale delle analisi dei due fenomenologi. La lettura dei loro testi rivela
un'aria di famiglia, che consente di ritenere Merleau-Ponty, per alcuni aspetti, uno fra i
piü sensibili eredi di Husserl.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
.,.,
Riferimenti
Ales Bello, A. (2006). Binswanger erede di Husserl. In L. Binswanger, Esperienza della
soggettivita
e
trascenderla
dell'altro:
I
margini
di
un'esplorazione
fenomenologico-psichiatrica (S. Besoli, ed.) (pp.261-282). Macerata: Quodlibet
Edizioni.
Conrad-Martius, H. (2006). Dialoghi metafisici (A. Caputo, trad., A. Ales Bello, pref.)
Lecce: Besa. (Origínale pubblicato in 1921).
Husserl, E. (1960). Meditazione Cartesiane e i Discorsi Parigini (F. Costa, trad.). Milano:
Bompiani. (Original publicado em 1931).
Husserl, E. (1966). Lógica fórmale e trascendentale (G. Neri, trad.). Bari: Laterza.
(Original publicado em 1929)
Husserl, E. (1973). Teleologie: Die Implikation des Eidos transzendentale
Intersubjektivitát im Eidos transzendentales Ich. (aufgrund von Noten vom 5
November 1931). Em E. Husserl. Zur Phánomenologie der Intersubjektivitát.
Texte aus dem Nachlass. Dritter Te/7: 1929-1935. (Husserliana, XV; I. Kern, Ed.;
pp. 378-386). La Haya: Martinus Nijhoff. (Original de 1931).
Husserl, E. (1973a). Zur Phánomenologie der Intersubjektivitát, Dritter Teil (Husserliana,
Vol. 15).Teh Hague: Martinus Nijhoff.
Husserl, E. (1988). La crisi de/le scienze europee e la fenomenología trascendentale (E.
Filippini, trad.). Milano: II Saggiatore. (Origínale pubblicato em 1976).
Husserl, E. (1993). Lezioni sulla sintesi passiva (V. Costa, trad.). Milano: Guerini e
Associati. (Origínale pubblicato in 1966)
Husserl, E. (1995). Esperienza e Giudizio (F. Costa & L. Samoná, trad.). Milano:
Bompiani. (Origínale pubblicato in 1948)
Husserl, E. (2002). Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica
( v o l . l ; V. Costa, trad.). Torino: Einaudi. (Origínale pubblicato in 1952).
Husserl, E. (2004). La storia della filosofía e la sua fínalitá (H. Ghigi, trad., A. Ales Bello,
pref.). Roma: Cittá Nuova. (Original publicado em 1992).
Merleau-Ponty, M. (1993). // visibile e l'invisibile (A. Bonomi, trad.). Milano: Bompiani.
(Origínale pubblicato in 1964)
Stein, E. (2004). La struttura della persona umana (M. D'Ambra, trad.). Roma: Cittá
Nuova. (Original publicado em 1994).
Note
(1) «Ma come puó una struttura parziale del mondo, la soggettivita umana del mondo,
costituire Tintero mondo, costituirlo come sua formazione intenzionale?» - scrive Husserl
- « (...) Ma questo é un controsenso! O si tratta forse di un paradosso che puó essere
ragionevolmente dipanato, un paradosso addirittura necessario, che sgorga cioé
necessariamente dalla tensione esistente tra la forza dell'ovvietá dell'atteggiamento
naturale obiettivo (la forza del common sensé) e l'atteggiamento opposto dell'
"osservatore disinteressato"? » (Husserl, 1988, p. 206). «Ma il grande problema é
appunto quello di capire questa "ovvietá". II nostro método esige ora che l'ego si
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I'
invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
-,„
interroghi sistemáticamente a partiré dal concreto fenómeno del mondo e che venga a
conoscere se stesso, l'ego trascendentale, nella sua concrezione, nella sistemática dei
suoi strati costitutivi e delle sue fondazioni di validitá inespresse e occulte. (...) Attraverso
questo procedimento sistemático si attinge dapprima la correlazione del mondo e della
soggettivita trascendentale obiettivata deN'umanitá» {Ivi, § 55, p.213).
(2) Mi sonó interessata di questo argomento e del rapporto Husserl - Freud in
Binswanger erede di Husserl (Binswanger, 2006)
(3) Si tratta di un dialogo sull'analisi fenomenologica della costituzione della natura e del
suo significato spirituale, condotto con originalitá e fine stile letterario. II libro é il primo
delle opere dell'autrice tradotto in una lingua straniera.
Nota al riguardo dell'autrice
Angela Ales Bello é docente di storia della filosofía contemporánea presso la Pontificia
Universitá Lateranense, Roma, Italia. Dirige il Centro Italiano di Ricerche
Fenomenologlche. Integra il corpo editoriale de diverse riviste scientifiche italiane e
straniere, tra cui: "Per la filosofía", "Segni e Comprensione", "Ana/ecta Husser/iana",
"Phenomenological Inguiry"; collabora con "Recherches Husserliennes" e "Studien zur
interkulturelien Philosophie". Contatto: Pontificia Universitá Lateranense, Facoltá di
Filosofía, Piazza San Giovanni in Laterano n.4, Cittá del Vaticano (00120). E-mail:
[email protected].
Data de recebimento: 30/07/2007
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
7(
'-
Allargare gli orizzonti della razionalitá:
prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su
filosofía della religione e mística
Enlarging the horizons of the rationality
Phenomenological and Trinitarians Christological perspectives about religión
philosophy and mystics
Patrizia Manganaro
Pontificia Universitá Lateranense
Italia
Riassunto
II tema di ricerca proposto implica l'impegno teórico di articulare nel loro nesso fecondo
due saperi presentí in modo conflittuale nel soleo della tradizione occidentale - il sapere
filosófico e il sapere teológico, attraverso un esercizio non ego-logico della ragione, che si
pone al contempo in continuitá e in rottura con il lógos occidentale. II "filosófico" sará
declinato nell'ottica segnatamente fenomenologica, e il "teológico" in quella cristologicotrinitaria, con l'obiettivo di cogliere l'unione-distinzione delle due discipline costitutivamente autonome nella condivisa esperienza della veritá - e di ció che puó
essere sintéticamente definito il "filosofico-teologico". Fides e ratio - "pensare" e
"credere" -sonó due dimensioni distinte ma connesse.
Parole chiave: fede e ragione; sapere filosófico e sapere teológico; fenomenología.
Abstract
This work accepts the theoretical effort of articulating the fertile connection between two
knowledges present in a conflict way in the occidental tradition: the philosophical
knowledge and the theological knowledge, throw a not ego-logical exercise of the reason,
which put itself in continuity and in rupture with the occidental logos. The "philosophical"
will be described in the phenomenological view and the "theological" in the trinitarianchristological view, with the intention of apprehending the union-distinction of the two
disciplines that have autonomy in its constitution in the shared experience of the truth.
Fides and ratio - "to think" and "to believe"- philosophy and theology, are two
dimensions distinguished but connected.
Keywords: Faith, reason; philosophical and theological knowledge; phenomenology.
Ampliare gli spazi della ragione non é solo un auspicio: é una possibilitá concreta. II tema
di ricerca proposto implica l'impegno teórico di articulare nel loro nesso fecondo due
saperi per la veritá presentí in modo assai conflittuale nel soleo della tradizione
occidentale - il sapere filosófico e il sapere teológico -, ma che vorrei qui rilanciare nel
segno di un possibile rinnovamento per l'oggi e per il futuro dell'oggi. Tenteró di
assolvere tale compito attraverso un esercizio non ego-logico della ragione, che si pone al
contempo in continuitá e in rottura con il lógos occidentale (Manganaro, 2008).
Con un'avvertenza: declineró il "filosófico" nell'ottica segnatamente fenomenologica, e il
"teológico" in quella cristologico-trinitaria, con l'obiettivo di cogliere l'unione-distinzione
delle due discipline - costitutivamente autonome nella condivisa esperienza della veritá e di ció che puó essere sintéticamente definito il "filosofico-teologico".
Fides e ratio - "pensare" e "credere" - sonó due dimensioni distinte ma connesse,
intrecciate a quel filo d'oro che é l'essere umano con le sue molteplici, complesse
potenzialitá: l'una piü spiccatamente argumentativa, discorsiva, noetica, lógica; l'altra
intesa come apertura, accoglimento, disponibilitá, affidamento. Entrambe possiedono
elementi razionali che sarebbe riduttivo misconoscere, tra i quali la motivazione, la
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
„„
°u
decisione, la liberta, la responsabilitá, l'autonomia, la ricerca del senso, l'attribuzione di
significato. Ed entrambe possono essere declínate in una pluralitá di espressioni e di
manifestazioni che derivano tuttavia da un'unica radice, costitutiva dell'umano - lo
spirito.
Detto questo, spenderei qualche parola introduttiva sul filo che lega in un nodo
complesso e sempre attuale la filosofía, l'Europa e l'Occidente.
1. Filosofía, Europa, Occidente
Dobbiamo
accettare
il
tramonto
dell'occidente
[untergang des abendlandes] come se si trattasse di
una fatalitá, di un destino che ci sovrasta? sarebbe un
destino fatale soltanto se lo accettassimo passivamente
(Husserl, 1999, p. 4).
Cosí Husserl ne L'idea di Europa.
L'attuale orizzonte storico-culturale sembra rispondere con enigmática puntualitá al
"destino" (all'identitá?) che l'Occidente - Abendland, térra del tramonto - pare portare in
grembo sin dalla sua vicenda etimológica e semántica: un destino inequivocabilmente
crepuscolare. Di caduta, di declino, di spegnimento come dall'interno. Nel quale pero si
riflette come in uno specchio il brillare, ancora timido e fievole, dell'urgenza di un
rinnovamento, di un ribaltamento. Forse anche di una trasfigurazione.
L'Europa spirituale [geistige Europa] ha un luogo di
nascita. Non parlo di un luogo geográfico, di un paese,
per quanto anche questo senso sia legittimo, parlo di
una nascita spirituale [geistige Geburtsstátté\ che é
avvenuta in una nazione, o meglio per mérito di singoli
uomini e di singoli gruppi di uomini di questa nazione.
Questa nazione é l'antica Grecia del VII e del VI secólo
a.C. Qui si delinea un nuovo atteggiamento [neuartige
Einstellung] di alcuni uomini verso il mondo circostante
[Umwe/t]. Da questo atteggiamento derivó una
formazione spirituale di un genere completamente
nuovo, la quale si trasformó rápidamente in una forma
cultúrale sistemáticamente conclusa. I Greci la
chiamano filosofía (Husserl, 1976/2002b, p.334).
II fenómeno originario - Urphánomen - che caratterizza e individua l'Europa alio stato
nascente é dunque la filosofía, fonte spirituale da cui sonó scaturite cultura e civiltá. In
questo senso, soltanto lo spirito - Geist - é immortale, quale arché, inizio, primo
annuncio; ma anche come presente, futuro e orizzonte deN'umanitá. La concezione
eurocentrica, o presunta tale, di Husserl si tratteggia come primato della ratio, o meglio,
del lógos greco: cosí l'idea di Europa necessariamente s'accompagna a quella di "spirito"
e quindi di "cultura", "comunitá", "intersoggettivitá" (1); per il tramite di Franz Brentano,
poi, la nozione fenomenologica di intenzionalitá risulta legata all'individuazione di un
peculiare territorio ontologico - lo spirito, appunto - e al pensiero cristiano, in particolare
all'istanza agostiniana deH'interioritá: Quaestio mihi factus sum. Tra cultura ellenica e
pensiero cristiano, cosí ancora s'esprime Husserl:
II deifico "conosci te stesso" ha ottenuto un significato
nuovo. La scienza positiva vale nella dispersione
mondana. Si deve prima perderé il mondo mediante
Yepoché, per riottenerlo poi con la presa universale del
senso di sé. Noli foras ¡re, dice Agostino, in te redi, in
interiore nomine habitat veritas. (Husserl, 1976/2002b,
§ 64, p. 171).
Volgendosi agli Erlebnisse coscienziali come al primum da cui muovere, il fenomenologo
effettua un'inedita operazione di scavo neU'interioritá che attraverso Yepoché evita
l'ipertrofia dell'ego, il solipsismo autoreferenziale e la dispersione nel mondano - le
malattie tipiche dell'Occidente -, configurandosi piuttosto come a/7f/-egologia della
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
„,
8
ragione che si spinge sino all'analisi eidetica delle nozioni di "empatia", "comunione" e
"comunitá": una sorta di capovolgimento delle moderne filosofie dell'io o del soggetto in
direzione di un'accezione significativamente "noi-centrica", efero-centrata.
L'atteggiamento del /ogos fenomenología) non é riducibile al modello di razionalitá delle
scienze empiriche o fattuali: il desiderio di conoscenza, infatti, puó essere vanamente
"riempito", e tale "riempimento" puó persino provenire da altro, da altrove, essere cioé
ricevuto passivamente, in uno spostamento del centro d'irradiazione esperienziale. Come
súbito si vedrá, é questo il caso paradigmático deII'Erfahrung mística.
2. Un'ottica capovolta. Pensare l'identitá nella relazione o del "filosoficoteologico"
Veritá e religioni: un singolare e un plurale non scontati, stridenti sino all'urto e persino
alio scontro di civiltá, se il proprio punto di vista é inteso come assoluto, ideológico e
autoreferenziale. La sfida si gioca tutta nella congiunzione e, che sollecita a non essere
negligenti, a non tradire l'impegno e la responsabilitá della ricerca nel pensare l'identitá e
la relazione. O meglio: a pensare l'identitá nella relazione.
La possibilitá di un autentico dialogo tra le varié religioni e di una vicendevole
comprensione del significato originario di ciascuna passa attraverso il comune coglimento
della veritá dell'esperienza religiosa nella sua universalitá. Parlare di "fenómeno" religioso
consente una salutare apertura a ogni esperienza di Dio o del divino, a ogni
manifestazione del sacro e persino a ogni eccedenza mística. Non si tratta infatti di
un'unica religione intesa come "figura" storicamente determinata, ma di una filosofía
fenomenologica deN'esperienza religiosa, al singolare, come "fenómeno" universa/mente
e costitutivamente umano, che emerge quale comune denominatore, nel tempo e nello
spazio, delle piü diverse e lontane tradizioni, attraversandole tutte (Van der Leeuw,
1992). Con ció, essa coglie la specifica razionalitá insita in ogni autentica religione.
II compito odierno é, allora, quello di mostrare le condizioni di possibilitá di un
ampliamento della ragione, di dilátame lo spazio non solo in senso orizzontale, ma anche
e direi soprattutto in senso verticale, nella duplice direzione dell'altezza e della
profonditá. Un risultato che si ottiene relazionando, intersecando la prospettiva
cristologico-trinitaria - l'altezza, la sommitá - con quella filosofico-fenomenologica - la
profonditá, la via ad intus -, con l'obiettivo di ribaltare il luogo comune che fa della
filosofía e/o dello "speculativo" l'ardita e compiaciuta messa in crisi di ció che la
tradizione occidentale ha chiamato revelatio (Coda, 2008, p. 13).
Collocandomi in quest'ottica capovolta, intendo articulare la mia riflessione in forma
interrogativa: quale lógos si sprigiona dall'evento della croce? Quale forza inaudita
manifesta la "debolezza" kenotica del Lógos-V erita, del Crocifisso/Abbandonato, che
separa sé da sé, che si svuota e rinuncia alia propria identitá rivelando il Deus Trinitas?
La teo-logica della croce esprime un lógos-a\tro cosí potente e destabilizzante da
costringere la filosofía a ridefinirsi. Qui il pensiero occidentale conosce la sua crisi e,
insieme, tocca il suo vértice; e qui, proprio qui, il "filosofico-teologico" mantiene la sua
promessa. La questione verte infatti sulla singolaritá-universalitá dell'evento Cristo, nella
formulazione di Calcedonia vero Dio evero uomo, veritá sul divino e veritá sull'umano, su
ogni essere umano: la veritá su tutti e su ciascuno, nessuno escluso. E verte altresi sulla
teo-logica paradossale della croce, che non eselude vicendevolmente - aut/aut "abbandono" e "affidamento", ma li mantiene superando Turto antinómico in una "lógica"
della relazione: et-et.
La ragione filosófica é forse qui impotente, indigente, insufficiente, inadeguata? L'evento
Cristo, infatti, non é contro ragione, ma mette in crisi la ragione. In tale prospettiva,
Cristo é pietra d'inciampo per la filosofía o é pietra angolare di ogni riflessione
sull'umano, e non solo teológica?
In conformitá con questo spirito di ricerca, vorrei almeno accennare un'ulteriore
questione epistemológica, che mi sembra di non secondaria importanza: la "filosofía della
religione" puó davvero essere considerata una filosofía semplicemente "seconda", una
delle tante "filosofie di..."? O, che é piü o meno lo stesso, davvero Dio puó essere
considerato soltanto "oggetto" dell'indagine razionale e conoscitiva?
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
^
°
Non dipende solo da noi conoscere Dio. Noi conosciamo Dio nella misura in cui Egli
¡iberamente si offre, si dona, si autocomunica (2), e il "modo" peculiare della sua rivelazione (non Offenbarung, ma re-velatio, manifestazione-nascondimento) é il Cristo, il
suo evento di incarnazione, crocifissione, abbandono, risurrezione. Che dice súbito
Mysterium Trinitatis, e lo dice nel paradosso di una "perfetta" identitá tra il Padre, il Figlio
e lo Spirito Santo. Una perfetta identitá nella relazione.
Si tratta dunque di indagare se e come la ratio possa pensare in modo rinnovato il
mistero pasquale e trinitario, se e come la filosofía possa riconoscere la sua intima
vocazione teológica all'interrogazione del principio, deW'arché. Risuona, forte e attuale,
l'interrogativo che fu di Agostino:
Come comprendere dunque che questa sapienza che é
Dio é Trinitá? Non ho detto "come credere" (su questo,
tra i fedeli, non deve esserci questione), ma se in
qualche modo, per mezzo deN'intelligenza, possiamo
vedere ció che crediamo, quale sará questo modo?
(Agostino, 416/1968, p. 472) (3).
L777fe//ecf¿/s//tfe/agostiniano conduce direttamente all'autocoscienza, alia riflessione sulla
natura stessa del pensiero, cui pertiene la capacita di pensare se stesso. E getta luce
sulla possibilitá di daré nuovo slancio alio studio filosófico della dimensione interiore, che
l'Occidente ha prima ereditato, poi ripudiato, privándola della profonditá che in origine
custodiva.
In interiore nomine habitat ventas: eppure la modernitá ha risolto l'interioritá nella
soggettivitá, divenendo progressivamente sistemática, monadologica, egologica. Non cosí
la scuola fenomenologica, che puré ha fatto della coscienza e del suo erleben il primum
da cui muovere l'analisi, anche nel caso paradigmático dell'esperienza mística. Ed ecco il
punto da tenere in particolare considerazione: é possibile leggere Yepoché - l'istanza
privilegiata della via ad intus, secondo Husserl - come de-costruzione dell'ego, come
esercizio di volontario e libero svuotamento?
3. La forza della ragione pática. L'esperienza etero-centrata e la fenomenología
della mística
La mística non s'identifica con la filosofía - esse non sonó lo stesso - e non ne costituisce
l'opposto - cosí come l'irrazionale (é il contrario) del razionale. II loro rapporto é
complesso, di difficile declinazione e definizione. La mística é l'altro del pensiero, l'oltre
del pensiero, il trascendimento stesso del pensiero, e si configura come quel momento di
/70/7-pensiero o di /70/7-filosofia che viene tuttavia considerato il vértice del pensiero e
della filosofía. Una filosofía della mística dovrebbe in prima istanza pensare, scavare,
interrogare questo non. E vicendevolmente, lasciarsi provocare dalla potenza di questo
negativo (4).
La pratica a/7f/-egologica della ragione qui sostenuta si pone a fondamento della filosofía
della mística quale condizione necessaria e valido sostegno, disegnando il profilo d'una
etero-\og\ca: la lógica della relazione, che non eselude, bensl integra e mantiene, la
lógica dell'identitá, aprendola alia pensabilitá speculativa del dinamismo d'amore intratrinitario.
Come sopra rilevavo, allargare gli spazi della ragione non é dunque soltanto auspicabile:
é possibile.
II Lógos crocifisso, il Dio kenotico - insieme potente, impotente e onnipotente - e la forza
della ragione pática: il sacrificio della crocee il sacrificio della ragione possono ora essere
(ri)pensati come condizioni di quel "risorgere" che, solo, consente la costruzione d'una
civiltá imperniata sulla perdita di sé per-I"a/tro. Una civiltá efero-fondata, /70/-centrica. Di
contro a un Occidente che rischia l'autoimplosione, in questo nuovo "luogo" del pensare
ci si avvede che la spada tagliente d'un siffatto non e ferisce e risana: et-et. Qui si gioca
il superamento del "sacro" in favore del "mistico". A patto pero d'intendere il "místico"
quale attiva e/o dinámica passivitá: se l'essere di Dio é ora concepito nel pathos, sará
disposta la ratio filosófica a farsi crocifiggere? A inchiodare la sua vanitá, la sua
arroganza, la sua sete di dominio e di possesso? A confrontarsi seriamente con l'abissale
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
„,,
°ó
differenza tra l'esito nichilista della cultura occidentale e la presenza-potenza
dell'esperienza kenotica, la quale non dice fallimento né debolezza, ma forza della
povertá e dello svuotamento volontari?
Alia ragione pática viene cosí offerta la possibilitá di raggiungere, nella distanza, la vetta
e l'abisso del pensiero: il Mysterium Trinitatis. L'origine e il senso della questione
trinitaria risiedono infatti nella confessione in un Dio che porta su di sé il sigillo
dell'abbandono. II segno del non.
Nell'accezione fenomenologica, l'esperienza mística é efero-centrata, é cioé un vissuto
non-egologico: un attraversare e un essere attraversati dalla differenza, dall'alteritá (5).
Qui sta il significato piü profondo della continuitá e della frattura con il lógos occidentale;
e ancora qui risiede la possibilitá dell'irruzione della potenza estranea, dell'invasione del
divino, il quale fa dell'umana dimensione interiore, il "dove" e/o il "luogo" della sua
manifestazione riempiente - secondo la dizione husserliana, si tratta della "profonda
profonditá" e/o della "profonditá profonda". L'individuazione della fonte o sorgente altra
da cui il vissuto místico scaturisce offre occasione di ulteriore scavo nel núcleo dell'essere
umano: l'anima.
Nell'analisi fenomenologica dell'Erlebnis místico avviene una sorta di spostamento del
centro esperienziale, nel dinamismo che va dall'/Ttfra-soggettivo all777fer-soggettivo. Se
l'/nfra-soggettivo non é disgiunto dall'/nfer-soggettivo, la lógica della relazione non si
oppone, si affianca a quella dell'identitá: non la elimina, l'accompagna e la completa. Ció
significa che la questione sopra richiamata del núcleo dell'identitá persónate concerne al
tempo stesso, e con pari dignitá, quella dell'identitá relazionale. Vi é inestricabilmente
connessa.
L'identitá che si svuota di sé, che rinuncia a sé e che si libera dalle catene dell'io empírico
e superficiale rimanda alia possibilitá di un io non-egocentrato (Manganaro, 2006) e
dunque a una ragione non-egologica, non autoreferenziale ma parimenti svuotata. Una
ragione pática, kenotica. I mistici cristiani parlano di abnegare se ipsum o abnegare
proprium, il cui paradigma é e rimane quello del Crocifisso/Abbandonato, attestato in FU
2,7.
In conclusione, la fenomenología di Husserl costituisce il paradigma d'un pensare nuovo,
diverso, origínale, che attraverso Yepoché costringe a un cambiamento di prospettiva, a
una conversione dello sguardo sulla base d'una filosofía concepita quale scienza rigorosa.
Essa mostra le condizioni di possibilitá del riempimento di senso, di cui descrive
analíticamente anche le modalitá d'attuazione. Cosí ancora il fenomenologo, insistendo
sull'atteggiamento spiritualedell'umano:
Invece di permanere in questo atteggiamento , noi
vogliamo mutarlo radicalmente. Ció allude a una
determinata e peculiare modalitá della coscienza, che si
aggiunge alia semplice tesi o posizione originaria e,
sempre in maniera peculiare, le fa subiré una
conversione di valore. Questa conversione di valore é
cosa che riguarda la nostra piena liberta (Husserl,
1952/2002a, § 3 1 , p. 67).
Ampliare gli spazi della ragione é dunque possibile in senso orizzontale everticale, e piü
ancora in altezza e in profonditá, nell'esperienza di una veritá condivisa dal sapere
filosófico e da quello teológico: una possibilitá che s'inserisce nella nostra vicenda
esistenziale e intellettuale come fatto di liberta e di responsabilitá. Auspico che la filosofía
non si sottragga all'impegno di un pensare cosí elevato.
Riferimenti
Agostino. (1968). De Trínitate. Turnholti: Typographi Brepols Editores Pontificii. (Corpus
Christianorum Series Latina). (Original de 416 de).
Coda, P. (2008). Sul luogo della Trinitá: rileggendo il De Trinitate di Agostino. Roma:
Cittá Nuova.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
„.
°4
Husserl, E. (1999). L'idea di Europa. Milano: Raffaello Cortina.
Husserl, E. (2002a). Idee per una fenomenología pura e per una filosofía fenomenología
(Vol. 1). Tormo: Einaudi. (Original publicado em 1952).
Husserl, E. (2002b). La cris! delle scienze europee e la fenomenología trascendentale.
(trad. ) Milano: II Saggiatore Tascabali. (Original pubblicado em 1976).
Husserl, E. (2002c). Meditazioni cartesiane e Discorsi parigini ("Epilogo"). Milano:
Bompiani. (Original publicado em 1931).
Manganaro, P. (2006), L'anima e IIsuo oltre: ricerche sulla mística cristiana. Roma: Ed.
OCD.
Manganaro, P. (2008). Filosofía della mística: Per una pratica non ego-logica della
ragione. Cittá del Vaticano: Lateran University Press.
van der Leeuw, G. (1992). Fenomenología della religione. Torino: Boringhieri.(Original
publicado em 1933).
Nota
(1) L'ultimo residuo della riduzione fenomenologica non é la monade soggettiva, questa
sorta di ego solipsistico, bensl Yerleben intersoggettivo della comunitá: con ció viene
riattualizzato il nos di Agostino - Intima scientia est qua nos vivere scimus {De Trinltate,
XV, 12) - e sonó gettate le fondamenta per la comprensione della nozione filosófica di
"alteritá", in un fertile dialogo con l'ontologia trinitaria e la connessa "lógica" della
relazione. Sul fronte filosófico, si veda Ales Bello, A. (1997). Culture e religión: una
lettura fenomenologica. Roma: Cittá Nuova; Ales Bello, A. (1993). Archeologia
fenomenologica del logos occidentale. IIContributo. XVII(3), 3-12.). Roma: Cittá Nuova.
Sul versante teológico, cf. Hemmerle, K. (1996). Tesi di ontologia trinitaria. Roma: Cittá
Nuova.; Coda, P. (2003). IILógos e IINulla: Trinitá religionimística. Roma: Cittá Nuova.
(2) Per una riflessione filosófica sul nesso linguaggio-rivelazione, rimando a Manganaro,
P. (2005). L'esperienza della venta nella parola-.filosofía linguaggio rivelazione. Cittá del
Vaticano: Lateran University Press.
(3) Agostino. (1968). De Trinitate - Libri XIII-XV (Corpus Christianorum Series Latina).
Turnholti: Typographi Brepols Editores Pontificii. [«Hanc ergo sapientiam quod est Deus,
quomodo intelligimus esse trinitatem? Non dixi: "Quomodo credimus?" (nam hoc inter
fideles non debet habere quaestionem), sed si aliquo modo per intelligentiam possumus
videre quod credimus, qui iste erit modus?»].
(4) Cf. Stein, E. (1997). // castello interiore. In Natura persona mística: per una ricerca
cristiana della veritá (a cura di A. Ales Bello). 2a ed. (A. M. Pezzella, Trad.). Roma: Cittá
Nuova. (Textos origináis publicados em 1930, 1932 e 1936; pp. 115-147); Stein, E.
(1982). Scientia crucis: studio su S. Glovanni della Croce. (Edoardo di S. Teresa, Trad.).
Milano: Áncora. (Original publicado em 1950); Walther, G. .(1955). Phánomenologie der
Mystik(2a ed.). Olten und Friburg: Walther-Verlag.
(5) cf. Ales Bello, A. (1992). Fenomenología dell'essere umano: Lineamenti di una
filosofía al femminile. Roma: Cittá Nuova; Ales Bello, A. (2003). Per un recupero della
mística nell'ambito fenomenologico: Gerda Walther e Edith Stein. In AAVV, Esperienza
mística e pensiero filosófico: Atti del Colloquio Filosofía e Mística (Roma, 6-7 dicembre
2001) (pp. 11-25). Cittá del Vaticano: Librería Editrice Vaticana.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e
cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85.
Retirado
em
/
/
,
da
World
Wide
Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
„
"
Nota al riguardo dell'autrice
Patrizia Manganaro é laureata in filosofía, docente di filosofía del linguaggio presso la
Pontificia Universitá Lateranense, Roma, Italia. Contatto: [email protected].
Data de recebimento: 01/03/2008
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
O comum em urna comunidade quilombola baiana no
século XXI e o Terreiro de Candomblé
What's common in an afro descendent community of Bahía in the 21 Century
and the "Terreiro de Candomblé"
Elaine Pedreira Rabinovich
Universidade Católica do Salvador
Brasil
Resumo
Este estudo tem por objetivo apontar alguns dos processos de formagao e sustentagao de
urna comunidade. Para atingir tal objetivo, descreve um recorte específico de urna
comunidade afro-descendente, localizada no litoral baiano, durante seu processo de
reconhecimento como Remanescente de Quiolombo. Relata a entrevista com membros
de urna familia realizada pela pesquisadora e por urna lider local, ao mesmo temp em
que percorrem os espagos onde outrora havia um terreiro de Candomblé. Nesse
percorrer, tempo e espago se entrecruzam criando pontos em comum a partir de onde se
pode ler os acontecimentos atuais e passados, com vistas a um futuro desejado.
Palavras-chave: comunidade; quilombo; Candomblé; ambiente.
Abstract
This study intends to point out some community processes of formation and support
through observation and description. To accomplish this task, it describes a specific
moment of an afro-descendent community located on the coast of Bahia (BR), its process
of being recognized as a "Remanescente de Quilombo". The study reports an
interview with the local leader, while he and the researcher walked around an área where
there was a "Terreiro de Candomblé". In this journey, time and space intersected
creating common points from where one can read past and present events looking for a
desirable future.
Keywords: community; quilombo; Candomblé; environment.
O cenário
Se tudo nasce da agua, ainda mais quando foram elas as nascentes de um povoado remanescente indígena e africano - em térras tórridas de um Brasil tropical e baiano,
assim as aguas serao nossos guias, como certamente foram deles ao chegarem as térras
localizadas em Mata de Sao Joao.
Que fontes? Enterradas e contaminadas por urna barragem que barra a agua, mas
principalmente barra o passado que nutre - fonte vital - o futuro e deixa urna enorme
tristeza. Pois o lago construido a partir délas - sete fontes, olho d'água pura para se
banhar, limpar roupas e comidas, se divertir, se encontrar, socializar e, a partir disto
tudo, criar um ritual que unia e dava o significado sagrado de ligar tudo, natureza e
gente - pois o lago das fontes sagradas agora está cercado de casas de temporada,
turistas nacionais e talvez estrangeiros, que jogam as suas fezes no mesmo lago onde
circulam seus barcos a motor, afastando os pássaros, os bichos, e enlameando a agua
com outras lamas. Turistas que olham o lago da barragem como um cenário para o seu
fausto, mais do que sua diversao que esta, para acontecer, precisa da fonte enterrada
por eles.
O passeio continua á procura da agua, e vemos a "Passagem do Boi", aonde a gente
também ia, mais o boi. Este boi agora é urna vaca que ainda anda solta pelos terrenos,
comendo o que nao deve e criando celeumas, resto de um passado onde todos os
animáis eram criados soltos.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
„?
Restos também poluem a "Fonte das Mulheres" que ainda a usam para lavar louga e
tomar banho, onde um menino limpa peixe longe do cachorro para que este nao o coma
antes dele - fonte cercada de dejetos humanos, garrafas de plástico e congénere: as
mulheres usam o mato como ontem - quando o mato era ¡menso e a gente pouca - e o
lixo é o de hoje: desperdicio.
A "Fonte da Mogas" - gragas a suas gragas - continua pura e intocada, assim como dois
mananciais, a serem protegidos como os tesouros mais ricos e escondidos, que
realmente sao: a agua já se tornou um bem da humanidade a ser preservado, mas
aparentemente outras verdades estao jorrando na frente desta: o bem de poucos frente
á sede de muitos, ou de todos. Esses dois sao a "Fonte dos Indios" e a "Fontinha nos
Milagres", sobreviventes porque escondidos ñas matas, enfim, fontes quilombolas. "Os
objetos construidos pelos homens (...) sao substituidos. Mas, se destruírem estas matas,
quem pode refazé-las? Que maos poderiam produzi-las?" (Mahfoud, 2003, p.107).
Quem pode refazer as nascentes e os rios desta destruigao pelos homens que a
sociedade de consumo de coisas substituíveis nao pode substituir?
Estamos em térras postas a descoberto pela Linha Verde, a energía elétrica tendo
chegado em 1993, e as demais melhorias do chamado progresso, aguardando a sua
vinda. Televisoes monitoradas por antenas parabólicas permitindo captar 23 cañáis lá
estao, ao lado da agua encanada de urna bomba instalada em um pogo artesiano que,
quebrada, obriga as mulheres a retomar os velhos hábitos de lata d'água na cabega,
assim como roupa e outras coisas que portam com um donaire e aptidao invejáveis!
Nao há outros pogos, a agua só aparece em grande profundidade, e roupas e pratos
foram levados as fontes que sobraram, e a agua trazida na cabega.
As térras, de Mata Atlántica secundaria, pertencem á reserva Florestal Sapiranga,
declarada Área de Protegáo Ambiental, em 1992.
Estamos em um longo veráo, sem chuvas, o que afeta a quantidade e a qualidade da
agua, o crescimento das plantas e o plantío.
Historias que contam a historia
Pelas máos de Edite - líder, coordenadora e professora da Escola Comunitaria de Pau
Grande, membro e conselheira da recém criada Associagáo de Moradores Tupinambá, fui
apresentada aos moradores. Estes foram surgindo cada um em seu canto, como um
canto, contando mais do que vida, contando de vidas que já foram e esperando por um
tempo de ser vida hoje. A historia aqui apresentada será a de Dona Dada, e de seu
espago-mundo.
O método seguirá a origem etimológica do termo: caminho, e irá passear pelos dominios
espagos-temporais da entrevistada.
Este método acompanha os acontecimentos durante o processo de estudo, de modo que
as referencias teóricas foram a ele acrescidas, nao decorrendo de um posicionamento
previo. Este procedimento pode ser assimilado ao que Boumard (1999, p.2) descreve
como postura etnográfica, ou seja, a ida ao campo como o material indispensável para
que o discurso sobre o outro tenha sentido .
Dona Dada: "de mim, veio tu do isso!"
Dada estava fora da casa e lá nos recebeu. Nao ser recebida dentro da casa difere de
outras experiencias no Brasil, onde á porta aberta se segué um convite para ali adentrar
e tomar algo, cuja recusa implica mesmo em ofensa aos donos da casa. Porém, o mesmo
ocorreu em outro quilombo localizado em Sao Paulo, o Carmo (Rabinovich, 2003, 2005),
onde varias entrevistas foram realizadas na porta da casa. No Carmo, a explicagao
estava ligada a um trago de desconfianga atribuido aos moradores e associado aos
sofrimentos pelos quais já haviam passado. Aqui, no entanto, a explicagao possível é que
fora pode ser mais agradável do que dentro: os próprios moradores preferem ficar sob
árvores, ou em terragos arejados. As cozinhas sao externas para evitar tanto a fumaga
da lenha queimada quanto o calor do forno de barro. As casas sao pequeñas. Donde
estar fora pode ser mais agradável do que dentro das casas.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em uma comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Q<
Chamo Bernardina de Jesús, tenho 53 anos, já sou
bisavó. Recebi meu nome de minha mae que
homenageou o seu pai que se chamava Bernardo.
Como foi a primeira neta, botou de lembranga do pai
déla.
O sobrenome Jesús, muito comum na localidade, indica uma origem africana, assim
como ser nomeada pela mae, a linhagem matrilinear. Contudo, a inclusao, pela mae, da
figura de seu pai ao nomear a filha, denota um ato de carinho e de afeto em relagao ao
progenitor, além de reforgar, de certa maneira, a heranga e os vínculos dele advindos.
I o elemento comum: a posse da térra
Vim para cá com 9 anos, com a mae e uma tia. Vim de
Tanagra, municipio vizinho. Meu pai morreu cedo, e
veio para cá porque achava que era melhor. Negociava
com animáis e achava que aqui era melhor. Ela teve
um menino que morreu, só ficou eu. De mim, veio tudo
istoü (o restante da familia).
Para confirmar as informagoes sobre a posse da térra, sem que tenhamos pedido, traz a
escritura de compra do terreno, em nome do antigo proprietário. Relata Silva (2004, p.
162) que, no sul do país, os ex-escravos e seus descendentes "foram pressionados a
adquirir legalmente as porgoes de térra que ocupavam desde os anos 70 do sáculo XIX,
com o objetivo de legitimar através da compra e nao perder a posse desses territorios".
Ñas localidades de Pau Grande, Taquera e Barreiros, este é o momento inicial do seu
reconhecimento como Remanescente de Quilombo, obtido no final de 2006, estando, em
2007, instaurado o processo de titulagao das térras pelo INCRA.
Trata-se do seguimento de uma longa historia iniciada em 1549, com a chegada de Tomé
de Souza a Salvador, Bahia, e com ele, García d'Ávila, cuja familia se tornou proprietária
do maior latifundio já existente no mundo: uma sesmaria que ocupava 1/10 do Brasil,
praticamente todo o Nordeste, térras indo do norte de Salvador até Maranhao, durante
10 geragoes sucessivas. Sao descendentes dos escravos, negros e indios, e de brancos,
que habitavam e trabalhavam ñas fazendas dessa familia os atuais quilombolas dessas
tres localidades.
2 o elemento comum: o trabalho rural e suas implicacoes
Meu pai era roceiro, roga de mandioca, feijao de corda,
milho, banana.
Trabalhava na Fazenda da Praia do Forte, de
estrovenga e limpar coqueiro.
Seu pai se mantinha á custa de uma economía de roga caseira, como a maioria dos
moradores daquele tempo, ao lado do trabalho para o dono da Fazenda Praia do Forte,
ácima referida, a mais antiga do país.
Silva (2004, p.162) aponta, para quilombos situados no Rio Grande do Sul, o
subemprego, atividades informáis, baixos salarios e aviltantes recursos de arrendamento,
muitas de forma verbal, caracterizando essas comunidades. Indica, igualmente, o
recurso a alimentos e ervas medicináis provenientes de suas rogas familiares, sendo que
algumas familias criavam pequeños animáis domésticos, galinhas e porcos, como o caso
do pai e do tio de Dona Dada, cuja intengao, ao se fixar em Pau Grande, foi comercializar
com animáis.
Portanto, pode-se tragar um primeiro elemento comum da comunidade: serem
trabalhadores rurais, com as implicagoes deste trabalho, que nao sao objeto do presente
estudo. Apenas para deixar registrada, a maior parte dos moradores de Pau Grande e
Barreiras pagaram renda aos antigos proprietários.
3 o elemento comum: as parteiras e a nomeacao das changas
Dada teve tres maridos. Dos 12 filhos, os primeiros receberam o nome "do Almanaque",
um calendario com o nome do santo correspondente ao dia. Os demais filhos foram
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
o
nomeados de modo a reforgar o sentimento de irmandade. Assim, a historia dos
nascimentos, conforme a atribuigáo do nome, está ligada tanto á sua historia pessoal
quanto á do povoado.
Sua máe, parteira, nao quis fazer os seus partos. Assim, no parto dos primeiros filhos, a
parteira foi das Dores. Já a mae do terceiro marido era também parteira e insistiu em
fazer os partos. nE os filhos com Raimundo (o terceiro e atual marido), foi D. Venencia
que pegou todos os cinco1.", comentou o pai orgulhoso.
Nos primeiros filhos, de acordó com o costume local, a parteira deu o nome a partir do
Almanaque. Repetindo a sua própria historia, Dada dá o nome do segundo marido ao
filho deste, iniciando urna serie de nomes de maneira a denotar que os irmaos faziam
parte de um mesmo grupo. No parto dos filhos do terceiro marido, realizados pela mae
deste, os nomes passam a ser dados pelo marido: todos comegam com R. Este modo de
nomear confirma o que disse, referindo-se a si própria: "De mim, veio tudo isto!"
O uso do Almanaque, encontrado sistemáticamente ñas demais familias entrevistadas,
indica o processo de evangelizagao ainda atuante na época pelas práticas das parteiras
que realizavam a dupla fungao do nascimento: o parto biológico e o parto social. Como
as parteiras eram também rezadeiras, acumulavam assim urna terceira - e tripla fungao religiosa, a de ligagao entre mundos.
4 o elemento comum: o uso de apelidos
Contudo, de um modo sistemático, todos na comunidade sao, e foram, conhecidos por
apelidos. Isto denota que o parto da pessoa propriamente ocorria no grupo de
pertencimento pelo apelido, pelo qual continuava sendo conhecida e reconhecida durante
toda a vida.
Antonio Cándido (2001) relata que, na comunidade caipira por ele estudada, havia a
prática de nomes patronímicos, oriundos da tradigáo medieval portuguesa de dar o nome
do pai seguido da desinencia es com a fungao genitiva de "filho de". Até recentemente,
nao havia sobrenomes. Segundo esse autor, na tradigáo rural, havia o "nome do papel" e
o nome segundo o progenitor, marcando a importancia tradicional do genitor. "Quando a
familia da máe era mais importante, ou o marido se integrava nela, o nome do avó
materno predominava pois ele era o chefe." (p. 303).
Na comunidade estudada, os sobrenomes sao poucos, pois além de terem sido
recentemente criados, as familias sao aparentadas. Assim, como em geral no Brasil, os
nomes, como sinais identificatórios, sao mais importantes do que os sobrenomes.
Quando os nomes sao dados segundo urna tradigáo crista - dar o nome do santo do dia porém fruto de urna violencia simbólica - e quando estamos em urna organizagáo sóciofamiliar em que predomina o direito do útero, mais do que o do patrio poder, a parteira
ficou empossada deste duplo encargo. Contudo, ante urna identificagáo "incompleta", ou
mesmo de urna "manipulagáo de identidade" (Arruti, 2002), um segundo trago comum
emerge: o uso dos apelidos.
5 o elemento comum: urna memoria comum a partir da marginalizacao conforme
inscrita nos sobrenomes
Raimundo de Conceigáo Santos, 46 anos, é o 3o marido, com quem está casada D. Dada
há 21 anos. Segundo Edite, os Conceigáo sao descendentes de indígenas, pois esse
sobrenome decorre da cápela de Nossa Senhora. da Conceigáo, centro religioso e de
festas da comunidade.
Esta cápela lá está até hoje, no Castelo da Torre, ao lado da vila dos pescadores,
também um quilombo - o de Taquera. Varios foram os relatos abordando as festas ali
realizadas, com as barraquinhas de sapé, muita comida e bebida, muita danga
avangando noite á dentro. E nao cansava, pois no dia seguinte todos trabalhavam até
com mais energía, mesmo sem ter nada dormido. Conceigáo, portanto, é festa, santa e
sobrenome, urna manifestagáo sincrética. "Apreender o significado é fazer memoria, é
tecer urna ponte através do qual o significado pode chegar ao presente". (Mahfoud,
2003, p.62).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
g
Haveria urna ponte ligando significados no Nome? A ponte entre passado e presente
seriam os encontros em noites imemoráveis que se mantém vivas na memoria e sao
passadas a nos, por experiencias do que nao tivemos mas em lugares onde estamos
agora?
Por outro lado, há significagoes ritualísticas que se mantém porque margináis? Segundo
Silva (2004, p. 162), um tecido cultural de resistencia aos processos de
desterritorializagao é forjado através de aliangas matrimoniáis, festas comunitarias, redes
de parentesco, amizades e compadrio e a consolidagao de urna memoria comum.
Á marginalidade, como um elemento comum em populagoes mantidas fora de centros de
decisao e controle políticos, corresponderiam solugoes específicas como formas de
resistencia, como no caso do patronímico dos caipiras estudados por Cándido; e talvez
pelos sobrenomes. Em Pau Grande, ressaltamos Jesús, Conceigao, Santos, Evangelista;
no quilombo do Carmo, em Sao Paulo, encontramos Carmo, Borba, Marcelino, Guarino; e
no quilombo de Sao Miguel e Rincao dos Martimianos (Anjos & Silva, 2004), no Rio
Grande do Sul, Martins, Rezende de Souza e Alves da Silva. Portanto, as historias que
indicam as pontes que ligam os significados variam e, percorrendo-as, pode-se chegar as
experiencias que as produziram. Trata-se de algo em comum, embora diferente - urna
memoria comum a partir da marginalizagao conforme inscrita nos sobrenomes.
No caso da localidade do Carmo (Rabinovich, 2003), por exemplo, o mito fundador do
agrupamento pode ser o elemento mais fundamental de sua historia e da historia de seus
moradores e se organiza em torno da santa, Nossa Senhora do Carmo. Esta foi
encontrada no rio e, para legitimar a sua posse, ou seja, a posse da térra da santa,
trabalharam cerca de um ano em outra cidade. Bananal. Ocorre que aos escravos estava
proibida a posse de térras, sendo a Igreja sua quardia, donde o termo "térra da santa"
ou "do santo". Pode ser que os ex-escravos tenham trabalhado para pagar a sua alforria
em outra fazenda do mesmo proprietario daquela onde se encontravam originalmente, a
Fazendo do Carmo. Foram e retornaram com a santa que ocupa o altar principal da
cápela que leva o seu nome. Essa Nossa Senhora do Carmo nao carrega o menino, como
as demais Nossas Senhoras do Carmo, mas porta o seu manto. Praticamente todos os
descendentes deste grupo se chamam Carmo.
6 o elemento comum: a dispersao familiar, a ruptura da convivencia e a
passagem da tradigao
Raimundo nasceu em Pau Grande, mas foi criado em Salvador, sendo que os irmaos, fora
dois, venderam tudo. "Quando o pai morreu, venderam a térra, eu nao, dei para minha
filha e neta". Conheceu Dada porque "seu pai inventou de casar no civil e fez festa, e dei
para gostar déla e amasieí'.
Raimundo parece muito orgulhoso de seu casamento e filhos. É bem magro, miudinho,
como muitos descendentes de indios, enquanto os africanos sao maiores, mais altos,
com urna musculatura mais volumosa. Apresentam doengas diferenciadas: os
descendentes de indios, diabetes; os de africanos, pressao alta.
Raimundo é filho de um casal fundante do local e da comunidade, Venáncia e Teotónio
Batista dos Santos. Teo foi o primeiro professor do local e Venáncia foi a principal
parteira da localidade. Foram proprietários de urna enorme gleba de térra que, como
Raimundo descreve, foi vendida, e os irmaos, dispersaram-se, indo habitar a periferia de
Salvador. Um deles retornou á sua origem indígena.
Nada pode ser mais importante do que ser um professor de todos da localidade. Um ser
quase venerado. A tradigao, no sentido de enraizamento (Weil, 1949/2001), foi passada
a poucos filhos. Contudo, urna de suas netas tem a "memoria incorporada" dessa
tradigao por ter sido criada pela avó, encarregada de acompanhar os partos, recordar as
historias de ventos que falavam, de encantados que estao ñas matas assustando os
moradores, de fontes que davam vida, de como eram realizados os batizados, e de
muitas outras. Muitos significados sao passados pela convivencia, principalmente durante
a infancia e adolescencia; é ela que permite frequentemente a ponte entre passado e
presente pela evocagao na memoria dos gestos, dos cheiros, das presengas.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em uma comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
91
Voltei para cá, onde planto aipim e fago um pouco de
carpinteiro. Um irmao, motorista da Nestlé, sofreu
derrame, quem cuida é a esposa, mora em Salvador.
Outro irmao vive no sertao, mais na térra, mais indio.
Estamos em uma regiao rural onde pouco se planta nem se cultiva. Alguns ainda plantam
aipim e mandioca para que as mulheres fagam farinha ñas casas de farinha existentes no
local. Há, pelo menos uma, em cada quilombo. Algumas familias sobrevivem da extragao
do azeite do coco de dendé, sem se preocupar em plantar a árvore. Praticamente
perdeu-se a arte de tecer a palha, embora ainda se fagam armadilhas para pegar peixe
ou pitu. Muitas árvores frutíferas proliferam por si sos, seus frutos sendo colhidos as
vezes.
A mesma dispersao e estado de coisas é relatada por Antonio Cándido sobre os caipiras
paulistas nos anos 1950 quando, com a perda da paisagem social e económica, ocorre
uma incorporagao progressiva á esfera da cultura urbana. "Os desajustes se resolvem,
cada vez mais, pela migragao urbana, com abandono das atividades agrícolas e
passagem a outro universo de cultura" (2001, p. 271).
Portanto: mais um elemento comum: a dispersao familiar e a ruptura de um tipo de
convivencia ainda vista na casa de Dada.
A casa de Dada ainda é um terreno familiar onde moram varios familiares, seus filhos.
Um deles montou um bar ao lado da casa; um neto tem uma bandinha de pagode e
treina em um espago suspenso {veja foto 01), guardando os instrumentos em uma das
casas, abandonada e a mais antiga {veja foto 02)
Foto 01: lugar de ensato de banda
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
92
Foto 02: estudio de música
As casas sao feitas de blocos, com teto de teína, de tamanho semelhante. Há distancia
entre elas. Ainda se pode ver no local, casas de pau-a-pique e teto de sapé. Muitas foram
e estao sendo construidas por mutirao.
No terreno, há um jirau de tábuas fechadas para secar a louga e panelas, urna torneira
ao lado e um galho que serve de paneleira {veja foto 03). O banheiro é externo, de
palha, e serve para o banho, tendo um "cagador" separado.
Foto 03: Jirau, paneleira, casa da filha de Dada ao fundo
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
g^
Urna filha de Dada, moradora de urna das casas ao lado da déla, aparece com um
menino de 2 anos, seu filho, pois vai ao hospital ver o neto que nasceu. Bem arrumada,
nao nos olha, nossa presenga nao causa estranheza. Já o menino pergunta
constantemente pela mae, inconformado. A mae, antes de sair, deixa algumas instrugoes
com a avó. Urna menina de 5 anos vem carregando o menino de 2 anos, sendo
repreendida pelos demais.
Essa filha nao nos dirigiu um olhar sequer de reconhecimento; depois, comandou a avó
em sua tarefa de cuidar do filho. Repreenderam a menina por carregar a crianga. Se
Dada é bisavó aos 54 anos, nada mais natural que esta jovem, que parece ter cerca de
40 anos, seja avó ao mesmo tempo que mae de urna crianga de 2 anos. Eis urna das
razoes porque certas teorizagoes, como ciclo de vida, devem ser vistas como
normatizadoras.
A avó foi encarregada de ficar com o neto, denotando um tipo de vínculo que Sarti
(2004) chama de rede de obrigagoes. Nao se trata nem de um desejo da filha nem da
avó, mas de um compromisso que mantém a estrutura familiar, independente das
motivagoes particulares de seus membros.
Quanto á crianga ser repreendida por se ocupar de outra, deve-se observar que as
changas, de ambientes semelhantes a esse, sao muito protegidas até atingir o
"entendimento", em torno de 5 anos, o que se deve a dois fatores: ao alto índice de
mortalidade infantil; e ao mito africano de a crianga ser especial, como representado ñas
festas de Cosme e Damiao, presentes na Bahia ainda hoje quando se dá comida a todos
que pegam.
Enquanto eu aplaudía a menina carregando a outra crianga, em urna atitude ideológica
de saudagao á autonomía, os demais ¡mediatamente a censuraram fortemente, temendo
pela sua seguranga. Ao mesmo tempo, como bem apontou Bastos (2001), as criangas
partilham obrigagoes domésticas desde muito cedo, com isto compartilhando a vida
familiar. Sao também responsáveis por atividades fora de casa, como comprar pao em
local próximo, ajudar na roga, capinar etc. Tudo isto pode ocorrer antes dos 5 anos, se
houver necessidade familiar e capacidade da crianga. Sao responsáveis pelos cuidados de
outras criangas, carregando-as e embalando-as no lugar da mae. O visto na cena ácima,
portanto, sugere que há regras quanto a esses cuidados entre criangas relacionadas,
supostamente, as idades relativas de ambas e á seguranga.
Antigamente, a térra era tanta que, se alguém quería
um pedago, o dono simplesmente podía dar, dizendo,
por exemplo: pegue daquela jaqueira até as pedras.
Andando, chegamos ao Terreiro de Candomblé de sua mae, tema que acabou por
centralizar a conversa. O Terreiro é urna área grande situada ácima do local das
moradias, com urna entrada independente pela rúa, atualmente nao usada.
A mae de D. Dada deu térras para Moga, que morou muitos anos com ela e foi por ela
"disciplinada", isto é, iniciada. No entanto, ninguém assumiu o terreiro após a morte da
mae de Dada.
A mae de santo Moreninha
Chamava-se Cecilia de Jesús e morreu com 78 anos, de
broncopneumonia. No Atestado de Óbito, aparece
apenas o nome de sua mae, Francelina Francesca de
Jesús. Minha mae trabalhava na roga, doente, doente,
de nascimento, negocio de indio. Corría para o mato,
eu tinha de chamar ela. Eu ficava com medo, meu tio
me levava pra casa dele, ficava uns 8 dias.Nao conheci
meu pai, meu padrasto me descadeirava, me cortou 2
dedos porque fui mexer no facao.
Algo da historia de Dada comega a ser desvelado. De um lado, a heranga matrilinear.
Perdeu o pai cedo, sua mae casou-se com um padrasto que a maltratava, seu tio foi seu
refugio. Sua mae, por sua vez, apresentou urna manifestagao de comportamento que a
apavorava e desamparava, pois estas fugas para a mata a deixavam á mercé do
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomble. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
94
padrasto. Eis porque nao seguiu o caminho materno em relagao a se tornar zeladora do
terreiro: nao Ihe foi possível realizar urna identificagao positiva com essa mae e com o
seu percurso.
O mato é o desconhecido, onde trevas habitam sem luz, sem consciéncia. É possível
abandonar-se em um transe sem perder-se na mata?
Disseram que tinha caboclo e que precisava trabalhar.
Tinha de trabalhar e botaram para disciplinar. O
caboclo chegou nela, recebia e tratava.
Urna vez feito o diagnóstico - fora possuída por um caboclo ou orixá - tinha de trabalhar
/ elaborar essa possessao para deixar de ser por ela dominada. Teve o noviciado que a
formou como Mae de Santo. Carneiro (1948/2003) assinala que no candomble de caboclo
há a incorporagao de mais de um orixá, diferentemente de outros, como na África.
Para Montes (2003, p. 17), "confiscados os seus vínculos de pertencimento, de sangue,
língua ou nagao, o negro escravo os recría no interior da cultura da nova térra". Essa
autora enfatiza que as religioes africanas ensinam a negociar com as forgas do cosmos os
impasses do cotidiano em que o sagrado invade a totalidade da experiencia do mundo.
Foi assim no tratamento de Moreninha: primeiro, a zeladora a colocou no rancor, casa
onde as pessoas ficam guardadas para serem trabalhadas porque estao possuídas por
um espirito. Corta-se todo o cábelo - significando a limpeza da cabega - para o espirito
assentar. No rancor, há urna capelinha com um santo. A pessoa é trabalhada até poder
receber a entidade com quem vai trabalhar. Durante este período, que é longo, ela muda
a sua alimentagao, toma varios banhos e realiza muita oragao.
Daí abriu o terreiro e recebeu diploma (veja foto 04)
Foto 04: diploma
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
g,
Federagao Bahiana do Culto Afro-Brasileiro
Fundada em 1946
OLORUM
ELE DA
DIPLOMA
Confere a Cecilia de Jesús
Responsável pelo Centro de Caboclo Gentil das Matas - M.T. 2.364
Salvador, 24 agosto de 1990.
Urna organizagao, a Federagao Bahiana do Culto Ihe conferiu o grau de Mae de Santo,
responsável por um terreiro, o Caboclo Gentil das Matas. A cidade onde o quilombo está
localizado chama-se ela própria Mata de Sao Joao.
O candomblé é o culto dos deuses africanos, como praticado na Bahia. Segundo Verger
(2003, p.16), as religioes trazidas de Daomé e da parte sudoeste da atual Nigeria,
mantiveram-se principalmente nos candomblés da Bahia. Em cada terreiro, urna mae ou
pai de santo é depositario dos axés, ou objetos sagrados desses deuses. Sacrificios de
animáis e oferendas de alimentos sao feitos aos deuses durante as cerimónias privadas.
Os deuses sao, a seguir, invocados e chamados a voltar á térra pelas cangoes, durante
dangas simbólicas executadas pelas filhas e filhos de santo, ao som dos atabaques e de
um sino chamado agogó. A presenga dos deuses se manifesta pelo transe das filhas e
filhos do santo, no corpo dos quais se encarnam os diversos orixás. Cada filha e filho de
santo é possuído apenas pelo orixá ao qual é consagrado, durante a sua iniciagao.
7 o elemento comum: a forca das mulheres congregando tres poderes: saúde,
social, religioso
Ela trabalhava muito bem e os outros tinha ciúmes esta zeladora trabalhava muito bem! Colocavam Exu
com rifle ñas costas para por ordem, na porta déla.
Entao, eu e as outras desistimos de continuar o terreiro
porque tinha muito despacho.
Ela foi
muito
experimentada.
Conflitos foram vivenciados de forma muito ameagadora, levando as suas possíveis
seguidoras a desistir de manter o terreiro. O motivo do confuto seria a sua supremacía
em relagao as possíveis demais rivais.
Edite pergunta sobre urna possível rivalidade entre as tres parteiras locáis. O significado
de ser parteira era triplo, conjugando o poder "médico", o poder "civil" e o poder
"religioso", pois além do nascimento biológico e do nome como nascimento social, havia
a forga das rezas e da própria pessoa responsável por dar passagem entre dois mundos.
Era parteira mas nao dos netos porque ficava com
medo. Por isso foi D. Venáncia, mae de Raimundo,
quem pegou os cinco filhos dele.
Nao temos resposta quanto ao confuto. Dona Venáncia, ao realizar o parto dos netos da
única filha de Dona Moreninha, estava, a nosso ver, adquirindo algum poder sobre esta,
mesmo que indiretamente. Sem dúvida, mulheres fortes se confrontaram, tecendo
relagoes de sustentagao da comunidade mesmo que a dividindo.
Portanto, podemos enunciar mais um elemento comum: a forga das mulheres
congregando tres poderes: saúde, social, religioso.
8 o elemento comum: o terreiro e o dendé
Continuando, chegamos ao local onde fora o terreiro.
O terreiro era ali adiante. Tinha dendé - flor azul, e
mesa branca - agua. Era sessao de agua e flor. Fazia
despacho no dendé. Comegou fazendo caridade, depois
comegou a cobrar. Fazia trabalho de limpeza. A
gameleira era o lugar onde amarrava as coisa ruim.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
96
Segundo Edite, o dendé caracteriza a presenga africana no local {veja foto 05). O dendé
marca geo-historica-culturalmente o local de terreiros porque onde era langado o carogo,
ali nascia o dendé. O comum, ai indicado, é um uso comum do dendé como alimento,
como festa, como religiao, elementos estes que estao comungados no terreiro de
Candomblé.
As cerimónias públicas do candomblé tém lugar em
grandes barracoes decorados com grinaldas de papel
recortado ñas cores dos orixás, que se festejam neste
dia, e duram horas, durante as quais cangoes nagós
sao cantadas, mantendo-se assim com grande
vitalidade o patrimonio espiritual legado pelos seus
ancestrais (Verger, 2003, p. 16).
Foto 05
9o elemento comum: a temporalidade mítica
No meio do mato, duas figuras nos espreitam: um exu, ainda com as suas cores {veja
foto 06), e urna figura de preto velho. Perto deles, algumas tigelas de barro, pequeñas,
ainda permanecem {veja foto 07).
Os altares sao espagos sagrados em que se condensam
cosmologías; sao espagos densos de significados,
povoados de objetos que ao mesmo tempo captam e
transmitem a forga de um misterio que só aos poucos
se desvenda, na dramatizagao dos mitos que os ritos
poem em cena para a iniciagao dos fiéis ou a
celebragao festiva de suas obrigagoes rituais. (...) Os
ritos falam de estórias dos deuses e do tempo da
criagao. (Montes, 2003, p. 17).
Da casinha de despacho (fotos), sobraram quatro
estatuas de ferro que estao na minha casa. O resto
tudo botou numa caixa e deixou no mato, Moreninha
pediu, e assim foi feito: as roupas, os pratos, bacías,
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
coritas, espadas dos caboclos, vermelho (Iansa) e azul
(Ogum).
Foto 07: tigelas de barro
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
gj
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
10° elemento comum: a visao cíclica do eterno retorno
O que vem do mato, ao mato retorna. A visao cíclica, do eterno retorno, do uróboro - a
serpente que morde a própria cauda como símbolo da transmutagao permanente de
morte em vida, da dialética material da vida e da morte - está manifestada neste desejo
de Moreninha. Além de se poder observar outras coincidencias, como a ¡mago mundi no
Benin, térra ancestral de muitos de nossos africanos.
O Uróboro, velho símbolo de um velho Deus natural
destronado pelo espirito, permanece urna grande
divindade cosmográfica e geográfica; como tal, está
gravada na periferia de todas as primeiras imagens do
mundo, como o disco de Benin, sem dúvida, a mais
antiga ¡mago mundi negro-africana (Chevalier &
Gheerbrant, 1982/1991, p.816).
11° elemento comum: sincretismo
Santo Antonio era o padroeiro. Tinha S. Cosme, S.
Raimundo, N. Sr. do Bonfim, N. Sra. da Conceigao,
Candeias. Os santos déla, fiquei tudo. O primeiro que
comegou a vida déla foi Santo Antonio de Lisboa.
Apesar de Dada ter conservado apenas os santos da Cápela dos Santos, o candomblé
incorpora, funde e resume as varias religioes do negro africano e sobrevivencias
religiosas dos indígenas brasileiros, com muita coisa do catolicismo brasileiro e do
espiritismo (Carneiro, 1950/2003).
No terreiro havia: a Casa dos Espíritos ou Despacho, onde as fotos revelam os restos, ao
lado da gameleira; a Cápela do Santo, perto do dendé, onde estavam os santos. Há inda
muitas espadas de Ogum sob a árvore.
Sob a gameleira, o despacho era 2a e 6a feiras. Fazia a
limpeza do local. Na Casa dos Espíritos, um era Sete
Facadas. Duas vezes por semana se fazia a limpeza do
local, e nos Caboclos também: acordava as 5 horas,
antes dos passarinhos levantar, pegava agua no brejo.
Lavava as pedras, os pratos, com sabonete e alfazema.
Estamos em um pleno cor/agao - em um centro de cor pulsante em que coincidem a
alma e o pulso, o significado de coragao para os indios Tucuna (Chevalier & Gheerbrant,
1991, p.283).
Na Cápela de Mesa Branca, tinha os santos e rezava lá
e depois passava para o barracao de danga. O barracao
media 10 passos de cada lado, até mais. Tinha rancor,
cozinha, dois quartos de mudar roupa e dormir. Comia
galinha de terreiro e carneiro, arroz, feijao, farofa;
camarao no pilao. Fazia pemba, um pó com raízes para
quando estava com dor. E fazia trabalho de limpeza,
cruzava os dois. A limpeza pelo banho era de jurema,
aroeira, espinheira cheirosa. (Carneiro, 1950/ 2003, p.
3).
Há sempre um altar com imagens e registros católicos
na sala de festas, mas os seres que vém ao terreiro sao
legítimos deuses africanos. Assim se realiza a
comunhao dos seres humanos com os deuses e com as
ancestrais. Os dois mundos se confundem no
Candomblé. Os deuses e os mortos se misturam com os
vivos no terreiro, ouvem as suas queixas, aconselham,
concedem gragas, resolvem as suas desavengas e dao
remedio para as suas dores e consolo para os seus
infortunios. O mundo celeste nao está distante, nem
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
g
superior, e o crente pode conversar diretamente com
os deuses e aproveitar de sua beneficencia. (Carneiro,
1950/ 2003, p. 109).
12° elemento comum: A Festa!
A Festa! Segundo relatos de outros moradores, o terreiro era o local de festas que se
estendiam noite adentro, na ausencia de qualquer outra diversao. Varios homens,
moradores no local, declararam ir ao terreiro nao por acreditar, mas para se divertir.
A festa sintetiza o comunitario, a vida cotidiana onde estao presentes: parentesco, meio
ambiente, calendario agrícola, respeito aos mais velhos, historia dos ancestrais, lideranga
feminina, conhecimento de plantas (Moura, 2004b, p. 67). Igualmente, Silva (2004, p.
195) frisa que as festas eram momentos extraordinarios que rompiam com o cotidiano
das comunidades negras rurais, promovendo um sentimento especial de estar junto e
configurando o espago social privilegiado do acontecimento extraordinario. Muitos
possuíam habilidades como músicos, tocando instrumentos e cantando.
13° elemento comum: a cura pelas ervas
Andamos pelo terreiro e sao nomeadas as plantas para a limpeza, jurema, aroeira,
espinheira cheirosa, e mais: espada de Santa Bárbara (pontuda); espada de Oxuns;
sangue de lavoura: para gases; abre caminho; bálsamo; bijus ou Sao Gongalo (cheiro
forte) para limpar energía; juiz de paz: inflamagao para mulheres; capetinha do diabo ou
avelude: para cáncer, verruga, queima demais, só urna gota; carqueja do campo;
vassoura de botáo: mal olhado; anticoncepcional; mal me quer: vermífugo e
antiinflamatório; cabriola: para esticar cábelo; malva branca (e vermelha): para
inflamagao de dente; "sedegoso": febre, dor de cabega, conjuntivite, vermelháo
(erisipela); mata-pasto: coceira; língua de vaca. E outras.
Este conhecimento, elaborado e acumulado por indígenas e africanos, representa urna
inestimável riqueza do país. Em um espago pequeño de terreno, proliferavam urna
impressionante variedade de ervas medicináis. Um país e um povo a quem a
farmacología ocidental só chegou bem recentemente, e ainda assim de modo muito
incipiente porque impossível de ser adquirida devido ao custo, só pode ter sobrevivido a
custas desse conhecimento. Sem esquecer que a urbanizagáo vem dos anos 1950 para
cá, portanto, ainda somos rurais, mesmo que habitando em cidades.
Pelos olhos de Dada e Edite, descortina-se nao apenas um monte de mato: estamos em
um cor/agáo - em um centro colorido que pulsa - e que emerge das trevas deixando
aflorar urna arqueología que dá sentido á vida daquelas pessoas. Clóvis Moura (2004a)
conta que a retirada dos quilombolas de Alcántara deixou a populagáo sem nenhum
referencial histórico e cultural, como simples aglomerados de negros. Aqui, a memoria
permanece inscrita no local, pelas pequeñas figuras que nos espreitam, pelas espadas de
Sao Jorge que anunciam a área protegida, pelo dendé espalhado na área, pela historia
que significa este espago.
Em Morro Vermelho, comunidade rural de Caeté, Minas Gerais, a populagáo mantém
tradigóes herdadas dos portugueses e guarda especial atengáo ao passado, encarnado
em suas origens e percursos históricos, depositando sua esperanga no futuro,
representado pelas novas geragóes (Leite & Mahfoud, 2007). Seu nexo de pertenga á
comunidade se manifesta em festas ligadas a datas litúrgicas. Qual a pertenga á
comunidade dos candomblés?
A liturgia - a fungáo pública - dos candomblés pode implicar em forgas outras além da
espiritual, pois o reconhecimento de áreas, como o terreno por nos pisado, como
Remanescente de Quilombo implica em urna transferencia do patrimonio da propriedade
da térra e em questóes de importancia geopolítica e económica (Moura, 2004a),
inclusive, como no presente caso, de interesses de transnacionais devido á proximidade
com a Praia do Forte onde extensa rede hoteleira internacional está instalada. A este
respeito, Frúgoli alerta para as formas de poder baseadas em distintas representagóes de
temporalidade e espacialidade e sobre as diversas e intricadas mediagóes das relagóes
entre sociedade e natureza (2006, p.302).
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
,™
Á guisa de conclusao: a peregrinagao
Foi urna peregrinagao - urna viagem a lugares distantes, santos e de devogao -, em térra
estranha: a de um Brasil escondido. Edite e eu, retornando á térra dos vivos,
perguntamos se Dada permitiría que essa área pudesse vir a se tornar um referencial de
um passado nela encarnado para as próximas geragoes. Que outros pudessem percorrer
os mesmos caminhos, vivenciar esta historia que está apenas ñas fimbrias, as margens.
Sua resposta foi evasiva.
Por ocasiao do 450° aniversario de Sao Paulo, pude contemplar, estarrecida, a carta de
alforria dos negros assinada pela Princesa Isabel. Entao, pensei, houve realmente urna
princesa, chamada Isabel, que se compadeceu dos pobres pretos e, pegando de urna
pluma, mergulhou-a em tinta e, sabendo escrever, assinou o seu nome? Donde é
venerada até hoje, como a Santa Libertadora? Qual a importancia dos gestos que
permanecem? Esse caminho, se percorrido por outros, pode vir a fazer parte de um
reservatório de memoria que Dada, Raimundo, Edite, eu, e as criangas que nos
acompanharam, pudemos ter experiencia?
A noite dos tempos cai depressa nos povos sem escrita. Esse nosso passeio recuperou
urna escrita?
Urna verdadeira diferenga cultural separa as sociedades
que escrevem daquelas que nao escrevem. As
segundas elaboraram desde muito tempo sobre a
prática oral seus próprios modelos de expressao, seus
sistemas de trocas e de equilibrios, assim como sua
memoria. (...) Os depositarios da historia das
sociedades oráis sao os seus sabios e os seus poetas.
(Hagége, 1985, p.120).
"Para alcangar o desenvolvimento pessoal, cada membro precisa conviver, isto é, viver
com os outros" (Ales Bello, 2006, p.77) pois o lócus de realizagao da pessoa é a
comunidade. O que é fundamental, se quisermos ter pessoas que possam decidir sobre
os seus destinos. Assim, retomando o principio desta apresentagao - a busca do comum
dessa comunidade - que termos encontramos?: a natureza; modos de partilhar; modos
de morar; mutirao; ruralidade; apelidos; trabalhadores rurais; memoria comum e
marginalizagao; convivencia; dispersao e sentimento de pertencimento; rede de
parentesco; rede de obrigagoes; festa; forga das mulheres; dendé; coco; fusao de
imagens e significados; comunhao; medicina por ervas.
Para Mahfoud (2007), identificar os sustentadores da comunidade e enfocar a
sustentagao interpessoal que confere funcionalidade á comunidade pode nos oferecer
urna releitura dos processos comunitarios.
Essa passagem por um caminho, além do desterro, evocou pontos de sustentagao que
foram encontros e que sao, todavía, alimentadores de urna poética que serve de norte
para as pessoas por ela tocadas. Porém, se a encruzilhada é o caminho do diverso que se
encontra em um ponto onde é hora de partir de novo (segundo Souza Jr.no discurso de
quatro de abril de 2006, proferido no Ciclo "Conversando com a sua historia"), entao: os
elementos comuns permitem encontros, mas nao permitem prever acontecimentos que
sao imprevisíveis?
Referencias
Ales Bello, A. (2006). Introdugao á fenomenología (J. T. García; M. Mahfoud, Trad.).
Bauru: Edusc.
Anjos, J. C. G. D. & Silva, S. B. D. (2004). Sao Miguel e Rincao dos Martimianos.
Ancestralidade negra e direitos terrítoríais. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
Arruti, J. M. A. (2001). Agenciamentos políticos da "mistura": Identificagao étnica e
segmentagao negro-indígena entre os Pankararú e os Xocó. Estudos afroasiáticos, 23(2), 215-254.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
Bastos, A. C. D. S. (2001). Modos de partilhar. A changa e a vida cotidiana da familia.
Taubaté: Cabral Editora Universitaria.
Boumard, P. (1999). O lugar da etnografía ñas epistemologías construtivistas. PslRevista de Psicología Social e Institucional, 1(2). Retirado em 23/10/2008, de
http://www2.ccb/psicologia/revista/textolvln22.html.
Candido, A. (2001). Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformagao dos seus meios de vida (9a ed.). Sao Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
Carneiro, E. (2003a). Como se desenrola urna festa de Candomblé. Em Quilombo: vida,
problemas e aspiragoes do negro: Edigao fac-similar do jornal (pp.22-23). Sao
Paulo: FUSP; Ed. 34. (Original em 1948).
Carneiro, E. (2003). A teogonia negra. Em Quilombo: vida, problemas e aspiragoes do
negro I Edigao fac-similar do jornal (pp. 109). Sao Paulo: FUSP; Ed. 34. (Original
publicado em 1950).
Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (1991). Dicionário de símbolos (4a ed., V. Costa; R. D.
Silva; S. Barbosa; A. Melim & L. Melin, Trads.). Rio de Janeiro: José Olympio.
(Original publicado em 1982).
Hagége, C. (1985). L'homme
humaines. Paris : Fayard.
de paroles:
Contribution
linguistiques
aux sciences
Frúgoli Jr., H. (2006). A arena em rorno do futuro Plano Diretor de Sao Bento do Sapucaí
9SP): Novos significados da relagao entre cidade e campo. Em H. Frúgoli Jr.; L. T.
D. Andrade & F. A. Peixoto (Orgs.), As cidades e seus agentes: práticas e
representagoes (pp.277-304). Belo Horizonte: PUC Minas; Edusp.
Leite, R. V. & Mahfoud, M. (2007). Cuidar da educagao, da cultura e de si: horizontes de
urna experiencia de resgate da cultura popular na escola. Revista Brasileira de
Crescimento e Desenvolvimento Humano, 17(2), 74-86.
Mahfoud, M. (2003). Folia de Reis: Festa raíz: Psicología e experiencia religiosa na
Estagao Ecológica Juréia-Itatins. Sao Paulo: Companhia Ilimitada.
Mahfoud, M. (2007). Centro pessoal e núcleo comunitario, segundo Edith Stein:
indicagoes para estudos sobre familia. Em A. M. A. Carvalho & L. V. D. C. Moreira
(Orgs.), Familia, subjetividade, vínculos (pp. 107-124). Sao Paulo: Paulinas.
Moura, C. (2004a). Formas de resistencia do negro escravizado e do afro-descendente.
Em K. Mununga (Org.), Historia do negro no Brasil: Vol.l. O negro na sociedade
brasileira: resistencia, participagao, contribuigao (pp.09-61). Brasilia: Fundagao
Palmares-MinC.
Moura, G. (2004b). Quilombos contemporáneos no Brasil. Em K. Mununga (Org.),
Historia do negro no Brasil: Vol.l. O negro na sociedade brasileira: Resistencia,
participagao, contribuigao. (pp. 62-75). Brasilia: Fundagao Palmares-MinC.
Montes, M. L. (2003). Cosmología e altares. Em Negras memorias, memorias de negros:
O imaginario luso-afro-brasileiro e a heranga da escravidao (p. 17). Belo
Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o
terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em
/ / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf
,^
Rabinovich, E. P. (2003). O Carmo: aspectos psico-sócio-históricos do desenvolvimento
de changas brasileiras afrodescendentes. Revista Brasileira de Crescimento e
Desenvolvimento Humano, 13(1), 79-93.
Rabinovich, E. P. & Gallo, P. R. (2005). Estudo das familias de urna comunidade
quilombola do Carmo, Sao Roque, SP. Em J. C. Petrini & V. R. S. Cavalcanti
(Orgs.), Familia, sociedade e subjetividades: urna perspectiva multidisciplinar
(pp.195-209). Petrópolis: Vozes.
Sarti, C. A. (2004). Algumas questoes sobre familia e políticas sociais. Em C. Jacquet &
L. F. Costa (Orgs.), Familia em mudanga (pp. 193-214). Sao Paulo: Companhia
Ilimitada.
Silva, D.S. (2004). Constituigáo e diferenga étnica: o problema jurídico das comunidades
remanescentes de quilombos no Brasil. Em: O'Dwyer E. C. (Org). Terra de
quilombos (pp. 161-196). Rio de Janeiro: ABA; UFRJ.
Verger, P. (2003). Candomblé. Em: ????. Negras memorias, memorias de negros: O
imaginario luso-afro-brasileiro e a heranga da escravidao (p. 16). Belo Horizonte:
Prefeitura de Belo Horizonte.
Weil, S. (2001). O enraizamento (M. L. Loureiro, Trad.). Bauru: Edusc. (Original
publicado em 1949).
Nota sobre a autora
Elaine Pedreira Rabinovich é professora do Mestrado em Familia na Sociedade
Contemporánea da Universidade Católica do Salvador. Psicóloga clínica, mestrado em
Psicología Experimental, doutorado e pós-doutorado em Psicología Social, ambos no
Instituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo onde exerce o cargo de professora
convidada no Curso de Pós-graduagao Psicóloga e Historia, da Profa. Dra. Eda T. O.
Tassara (IPUSP) em conjunto com o Prof. Dr. Jean-Pierre Goubert, historiador na Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris VI. Exerceu o cargo de Editora Assistente
da Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. Membro fundador e
pesquisadora do Laboratorio de Psicología Socio-Ambiental e Intervengao, LAPSI-IPUSP.
Atua na área de desenvolvimento infantil e ambiental, com interesse especial na
formagáo cultural brasileira. Contato: [email protected].
Agradecimentos
A Edite, que me recebeu e acompanhou esta trajetória que se tornou nossa; a Ricardo e
a Dadja, por me permitirem participar de suas vidas; a todos os moradores
entrevistados; e a Adelaide Brandáo que me possibilitou tal encontró.
Data de recebimento: 24/04/2007
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf
Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil.
Memorándum, 14, 116-118. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf
1i¿-
Resenha
O poder e a cruz: colonizagao e redugoes dos jesuítas no
Brasil
The power and the cross: colonization and reductions of the Jesuits in Brazil
Emanuele Colombo
Universitá degli Studi di Milano
Italia
Massimi, M. (2008). IIpotere e la croce: colonizzazione e riduzioni del gesuitiin Brasile.
Milano: Edizioni San Paolo.
As redugoes jesuíticas no Brasil sempre estiveram no centro de vivos debates, sendo
objeto de urna literatura de divulgagao que muitas vezes carece de urna investigagao
seria dos documentos históricos. Ao mesmo tempo, os diversos estudos de especialistas
dedicados a esse tema tiveram sempre difusao restrita. O livro de Marina Massimi, atrás
de um título e de urna capa cativantes, esconde urna síntese eficaz e de agradável leitura
dos mais recentes estudos a respeito da Companhia de Jesús e das próprias pesquisas da
autora.
1. Mais que propor urna introdugao á Companhia de Jesús, o livro introduz o leitor na
própria Companhia de Jesús, permitindo-lhe, para usar urna famosa expressao de John
O'Malley, "compreender os jesuítas como os jesuítas compreendiam a si mesmos". Quem
le é levado a urna viagem pelas principáis fontes que descrevem a identidade da ordem,
como a Fórmula do Instituto, as Constituigóes, os Exercícios espirituais e a Autobiografía
do fundador. O livro chama também a atengao para o valor da escrita, especialmente das
cartas, instrumentos indispensáveis para a garantía da circulagao de informagoes e da
unidade de condugao da Companhia, e, ao mesmo tempo, "remedio para a dor da
ausencia" dos companheiros em missao ñas térras de além-mar. As cartas escritas pelos
jesuítas no Brasil constituíam "a ponte que aqueles homens procuraram estabelecer
entre o Velho Mundo - um mundo que era o próprio mundo deles, conhecido e familiar,
mas agora distante - e o Novo Mundo - urna realidade estranha, desconhecida e
fascinante, e muitas vezes hostil, antes conteúdo de imaginagao e de sonhos, agora
realidade ¡mediata e presente" (p. 20). Sao também muito importantes as litterae
indipetae, escritos pelos quais os jovens jesuítas se candidatavam as missoes, explicando
ao preposto-geral as razoes de seu pedido, que este recebia de todos os noviciados da
Europa. É quando procura esclarecer o que a missao significava para esses homens que o
livro alcanga suas páginas de maior forga e originalidade. A formagao históricopsicológica de Marina Massimi, autora de numerosas publicagoes sobre esses temas,
permite-lhe aprofundar de maneira extremamente original algumas das palavras usadas
pelos potenciáis missionários: "desejo", um termo também muito freqüente nos
Exercícios espirituais, e ainda "indiferenga", "tristeza", "consolagao". Compreendendo o
valor desses termos para os jesuítas, o leitor pode comegar a enxergar os
acontecimentos históricos relativos as missoes com o olhar dos protagonistas.
2. Para justificar a evangelizagao, sobretudo em situagoes politicamente complexas,
como a brasileira, os jesuítas precisavam demonstrar que o indio era urna "pessoa", um
homem para todos os efeitos dotado de alma. A evolugao dessa convicgao, que
certamente nao era obvia no principio da Idade Moderna, nos é mostrada, no livro, por
intermedio de fontes dos séculos XVI e XVII particularmente interessantes. As questoes,
os problemas que se apresentam e os debates sao iluminados por textos fundamentáis
da Segunda Escolástica (como os chamados Conimbricenses, comentarios as obras de
Aristóteles muito difundidos na Companhia), além de estudos antropológicos e
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf
Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil.
Memorándum, 14, 116-118. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf
117
psicológicos muitas vezes redigidos em forma de diálogo, nos quais se discute a natureza
dos indios.
A visao antropológica da Companhia está na origem da énfase que ela dá á educagao: se
os indígenas possuíam todas as "potencialidades" da alma humana, o que Ihes faltava
era a educagao, tarefa primordial dos missionários. As opinioes, no entanto, oscilavam no
que diz respeito a muitos aspectos: a religiosidade tradicional dos indígenas, por
exemplo, era considerada, por alguns missionários, urna idolatria que tinha de ser
condenada, ao passo que, para outros, ela era urna auténtica expressao do sentimento
religioso, que os aproximaría do cristianismo; o uso da forga para submeter os povos
indígenas, muitas vezes violentos e antropófagos, era admitido em condigoes
particulares, ao mesmo tempo em que, em outras ocasioes, era condenado sem
reservas. Numerosas citagoes nos permitem compreender também a distancia que existe
entre o olhar europeu e o dos missionários que atuavam no "trabalho de campo": estes
frisavam sempre a necessidade de urna convivencia cotidiana com os indios, para
aprender sua linguagem e compreender e amar suas tradigoes. Assistimos ainda ao
desengaño de que eram acometidos alguns missionários com o passar do tempo: depois
de um inicio triunfal, eles tomavam consciéncia das dificuldades de obter conversoes
sinceras e duradouras, como também do caráter delicado das relagoes com o poder civil
espanhol e portugués. Todos esses aspectos, que na historiografía as vezes sao
reduzidos a fenómenos puramente políticos e sociais, tém um fundamento teológico e
religioso que o livro revela com clareza.
3. Outro mérito da obra é a descrigao dos métodos e "estrategias" dos missionários.
Também aqui, a autora retoma as origens de algumas características bem conhecidas do
"modo de proceder" jesuítico, mostrando como tudo já estava presente no ensinamento
de Inácio. A conversatio, cujo valor era sempre destacado pelo fundador, está na origem
da importancia fundamental das pregagoes ñas missoes da Companhia. Já a insistencia
de Inácio sobre a necessidade de adaptagao as diferentes circunstancias e as
características do interlocutor inspirou o método jesuítico da acomodagao {accomodatió),
utilizado pelos missionários durante mais de dois séculos no mundo inteiro, da China ao
Paraguai.
O livro mostra a unidade profunda que existia entre o conteudo teológico da pregagao e a
forma como os missionários procuravam nao apenas explicar, mas também "mover" e
comover seus interlocutores. Palavras, gestos, teatralidade, música, procissoes, liturgia:
tudo o que os jesuítas propunham estava estreitamente ligado ao conteudo que queriam
comunicar. As espléndidas igrejas que se construíam ñas redugoes, a música, que insería
temas religiosos em melodías tradicionais indígenas, a utilizagao de imagens, todos esses
eram instrumentos destinados a tornar evidente aos indígenas a verdade e a beleza do
cristianismo.
4. O quinto capítulo nos oferece urna galería de "retratos" de "figuras exemplares" das
missoes no Brasil. De fato, quando, na Companhia, eram destacados os talentos que um
jesuíta deveria cultivar, essa énfase sempre passava por testemunhos a serem imitados.
Antonio Vieira, missionário e "príncipe dos pregadores", é sem dúvida um protagonista
indiscutível entre os jesuítas do Brasil. Em seus famosos sermoes, Vieira apresenta sua
vida como caracterizada pela obediencia, sinal da imitagao de Cristo, á qual dedicou sua
genialidade e grandeza. Quando o rei portugués Joao IV Ihe ofereceu o cargo de
primeiro-ministro, Vieira respondeu que "prefería ser mendicante á porta do Colegio a
deixar o hábito dos filhos de Inácio". Temos também Joao de Souza e Pero Correia,
primeiros mártires da Companhia no Brasil, cuja biografía, por décadas, foi lida e dada
como exemplo ñas casas da ordem. A vida de Antonio Nóbrega, provincial do Brasil, é
apresentada como urna verdadeira ¡mitatio da vida do fundador da Companhia, enquanto
José de Anchieta, o "apostólo do Brasil", homem de aguda e viva inteligencia, é
recordado como autor de urna fundamental gramática da língua tupi-guarani. Por fim,
vemos o retrato de Inácio de Azevedo, que morreu a 15 de julho de 1570 apertando nos
bragos a imagem de Nossa Senhora, ao ser bárbaramente martirizado pelos piratas
franceses ñas Ilhas Canarias, ao lado de setenta companheiros.
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf
Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil.
Memorándum, 14, 116-118. Retirado em
/ / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf
11 o
5. Nao podemos deixar de reconhecer a riqueza das fontes deste livro. Além das fontes
manuscritas do arquivo romano da Companhia, como as cartas annuais do Brasil, as
litterae indipetae, objeto de numerosos estudos, e os Catalogi trienales, recentemente
utilizados para urna pesquisa sobre os criterios de recrutamento para as missoes, há
tambem urna serie de citagoes de textos publicados nos séculos XVI e XVII que, como já
dissemos, contribuem para esclarecer os debates teológicos e filosóficos daquela época.
A bibliografía soma á literatura européia, já mais conhecida, urna selegao de estudos
brasileiros.
Estamos diante de um livro "de divulgagao" escrito por urna especialista, modelo que
vem tendo crescente sucesso no mundo inteiro. Se é urna síntese, agradável de se ler,
de estudos recentes e consagrados sobre a Companhia de Jesús, apresenta tambem, ao
mesmo tempo, pesquisas origináis da autora. Encontramos no livro o juízo equilibrado de
alguém que escreve historia por oficio, mas, tambem, a paixao pelo itinerario da
Companhia - particularmente pelas missoes jesuíticas -, tema que há décadas nao cessa
de seduzir geragoes de estudiosos. Podemos ver, enfim, ñas entrelinhas, o olhar crítico
do historiador, consciente da dificuldade de fornecer interpretagoes e balangos sobre um
tema de alto risco, mas tambem sabedor do enorme legado dos jesuítas no Brasil. A vida
desses homens, seus gestos, as palavras que pronunciaram e escreveram tiveram, talvez
de modo mais evidente no Brasil que em qualquer outro lugar, "urna continuidade no
tempo e na memoria popular e cultural", o que testemunha a vitalidade e a eficacia de
sua presenga.
Nota sobre o autor
Emanuele Colombo é doutor e pesquisador na área de Historia do cristianismo e das
igrejas junto á Universidade dos estudos de Pádua (Italia) e desenvolve atividade de
pesquisa junto á Universidade dos estudos de Milao. É autor de ensaios de historia
religiosa e de dois livros: Cario Antonio Casnedi (1643-1725) e ¡I suo tempo (Soveria
Mannelli & Rubettino, 2007) e Convertiré i musulmán!. L 'esperienza di um gesuita
spagnolo delSeicento. Milano, Bruno Mondadori, 2008).
e-mail: [email protected]
Data de recebimento: 16/02/2008
Data de aceite: 15/10/2008
Memorándum 14, abril/2008
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf