EDITORIAL Diversas modalidades de apreensao do sujeito e
Transcrição
EDITORIAL Diversas modalidades de apreensao do sujeito e
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf , EDITORIAL Memorándum: memoria e historia em psicología Número 14 Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo Esta edigao da Memorándum propoe contribuigoes acerca de diversas maneiras de considerar o sujeito humano, ao longo do tempo: trata-se de teorías de longa duragao e que exerceram influencias inclusive na psicología contemporánea: a teoría médica dos temperamentos originada na cultura grega e utilizada até o século XIX {A teoría dos temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX de Al-Chueyr Pereira Martins, Carvalho da Silva e Mutarelli^; a concepgao do cortesao delineada pela filosofía moral que na primeira Idade Moderna buscara definir o sujeito a partir de determinado papel social (O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge de Míssio); a teoria psicanálitica em seus primordios na cultura brasileira dos inicios do século XX {A introdugao das idéias relativas á psicaná/ise de criancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos de Ferreira Abrao). O artigo A pessoa como sujeito da experiencia. Contribuigoes da fenomenología del Mahfoud e Massimi evidencia a contri bu ¡gao da Fenomenología á discussao sobre os conceitos de pessoa e experiencia na Psicología contemporánea. Outro aprofundamento da contribuigao da fenomenología, no diálogo entre Husserl e Merleau Ponty, é o artigo "O serselvagem"e a hyletica fenomenología A heranga filosófica de "O visível e o invisíve/"de Ales Bello. O trabalho Ampliando os horizontes da racionalidade. Perspectivas fenomenologicas e cristológicos trinitarias sobre filosofía da religione e mística de Manganaro evidencia a necessidade, presente na cultura contemporánea, de um empenho teórico capaz de articular o nexo entre dois saberes presentes de modo conflituoso na tradigao ocidental o saber filosófico e o saber teológico - sendo ambos importantes para a compreensao do sujeito humano. Urna modalidade de apreensao do sujeito no seu contexto comunitario de pertenga é proposta na pesquisa relatada em O comum em urna comunidade quilombola baiana no século XXIe o terreiro de candomblépor Rabinovich. Já o artigo Memorias da Pós-Graduagao em Psicología no Brasil: a Psicología Social da PUC-SP de Maria do Carmo Guedes visa contribuir á reconstituigao da memoria e da historia de urna comunidade académica de destaque no contexto da Psicología brasileira. Concluí esta edigao a resenha do livro O poder e a cruz. Colonizagao e redugoes dos jesuítas no Brasil (Massimi, Milao, 2008) por Colombo. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf EDITORIAL Memorándum: memory and history in psycology Number 14 Diverse modes of apprehending the subject and diverse study methods This Memorándum edition proposes diverse ways of considering the human subject, throw the time, having these theories long duration and influence even in contemporaneous psychology: the physician theory of temperaments, originated in Greek culture and used until the 19th century (The theory of temperaments: from the Corpus Hippocraticum to the 19th century of Al-Chueyr Pereira Martins, Carvalho da Silva e MutarelNy); the courtier figure designed by the moral philosophy of the first Modern Age witch searches to define the subject from a determined social part (The moral courtier of Baldassare Castiglione and the ordinary of Eustache du Refuge of Míssio); the psychoanalytical theory in its beginning in the Brazilian culture (The introduction of ideas relating to the children psychoanalysis in Brazil through Arthur Ramos's work of Ferreira Abrao); the article The person as subject of experience: contributions of phenomenology of Mahfoud and Massimi presenting the contribution of Phenomenology to the discussion about the concepts of the person and the experience in contemporaneous psychology. Another deepening of the phenomenological contribution relating to the dialogue between Husserl and Merleau-Ponty is in the article "The wild Being" and the phenomenological hyletic: the philosophical inheritance of "The visible and the Invisible"'of Ales Bello. The work Enlarging the horizons of the rationality: Phenomenological and Trinitarians Christological perspectives about religión philosophy and mystics of Manganaro shows the need, present in the contemporaneous culture, of an theoretical effort capable of articulating the connection between two knowledges present in a conflict way in the occidental tradition: the philosophical knowledge and the theological knowledge - being both important to the comprehension of the human subject. A mode of apprehending the subject in his communitarian context of belonging is proposed in the research related in Whats common in an afro descendent community of Bahía in the 21th century and the "Terreiro de Candomblé"by Rabinovich. Now the article Memories of Gradúate Psychology courses in Brazil: the course of Social Psychology of the PUC-SP intends to contribute to the reconstruction of the history of an academic community of distinction in the Brazilian psychology context. This edition is concluded with a review of the book The power and the cross: Colonization and reductions of the Jesuits in Brazil (Massimi, Milán, 2008) by Colombo. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editors Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf ,-, Equipe/ Editorial Board Editores Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Marina Massimi Universidade de Sao Paulo Brasil Consultores externos AdHocda Memorándum 14 >1¿///0cConsultants of Memorándum 14 Ana Lucia Universidade Federal de Uberlándia Brasil Ana Maria J. Vilela Universidade Estadual Rio de Janeiro Brasil André Luis Masiero Pontificia Universidade Católica MG Brasil Brasil Aparecida Mitsuko Antunes Pontificia Universidade Católica SP Brasil Carmen Lucia Cardoso Universidade de Sao Paulo Brasil Cristina Lhullier Universidade Caxias do Sul Brasil Cristiano A. Roque Barreira Universidade de Sao Paulo Brasil Érika Lourenco Universidade Federal de Ouro Preto Brasil Francisco T. Portugal Universidade Federal Rio de Janeiro Joao B. Madeira Universidade de Sao Paulo Brasil José Paulo Giovanetti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Leda V. Tfouni Universidade de Sao Paulo Brasil Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Márcio Luis Fernandes Instituto Teológico Curitiba Brasil Maria do Carmo Guedes Pontificia Universidade Católica SP Brasil Marilia Ancona Lopes Pontificia Universidade Católica SP Brasil Mauro Amatuzzi Pontificia Universidade Católica Campiñas Brasil Paulo R. A. Pacheco Universidade de Sao Paulo Brasil Paulo J. Carvalho da Silva Pontificia Universidade Católica SP Brasil Raquel Martins de Assis Universidade Federal de Minas Gerais Brasil RaúlFernandes Faculdade Engenharia Industrial SBC Brasil Regina H. F. Campos Pontificia Universidade Católica SP Brasil Saulo Araújo Universidade Federal de Juiz de Fora Brasil Conselho Editorial / Advisory Board Adalgisa Arantes Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Alcir Pécora Universidade de Campiñas Brasil Angela Ales Bello Pontificia Universitas Lateranensis Italia Aníbal Fornari Universidad Católica de Santa Fé Universidade Católica de La Plata Argentina Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Anna Unali Universitá La Sapienza Italia Antonella Romano École des Hautes Études en Sciences Sociales France Belmira Bueno Universidade de Sao Paulo Brasil Caio Boschi Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais Brasil Celso Sá Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Danilo Zardin Universitá Cattolica Sacro Cuore Italia Ecléa Bosi Universidade de Sao Paulo Brasil Francesco Botturi Universitá Cattolica Sacro Cuore Italia Franco Buzzi Universitá Cattolica del Sacro Cuore Italia Gilberto Safra Universidade de Sao Paulo Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Helio Carpintero Universidad Complutense España Hugo Klappenbach Universidad San Luis Argentina Isaías Pessotti Universidade de Sao Paulo Brasil Janice Theodoro da Silva Universidade de Sao Paulo Brasil José Carlos Sebe B. Meihy Universidade de Sao Paulo Brasil Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Luís Carlos Villalta Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Luiz Jean Lauand Universidade de Sao Paulo Brasil María Armezzani Universitá degli Studi di Padova Italia María do Carmo Guedes Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil María Efigénia Lage de Resende Universidade Federal de Minas Gerais Brasil María Fernanda Diniz Teixeira Enes Universidade Nova de Lisboa Portugal Martine Ruchat Université de Genéve Suiss Michel Marie Le Ven Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Monique Augras Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil Olga Rofrigues de Moraes von Simson Universidade de Campiñas Brasil Pedro Morande Universidad Católica de Chile Chile Pierre-Antoine Fabre École des Hautes Études en Sciences Sociales France Regina Helena de Freitas Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Sadi Marhaba Universitá degli Studi di Padova Italia William Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Conselho Consultivo / Board of editorial consuitants Adone Agnolin Universidade de Sao Paulo Brasil Ana Maria Jaco Vilela Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil André Cavazotti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Arno Engelmann Universidade de Sao Paulo Brasil Bernadette Majorana Universitá degli Studi di Bergamo Italia César Ades Universidade de Sao Paulo Brasil Davide Bigalli Universitá degli Studi di Milano Italia Deise Mancebo Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil Edoardo Bressan Universitá degli Studi di Milano Italia Eugenio dos Santos Universidade do Porto Portugal Giovanna Zanlonghi Universitá Cattolica del Sacro Cuore Italia José Francisco Miguel Henriques Bairrao Universidade de Sao Paulo Brasil Marcos Vieira da Silva Universidade Federal de Sao Joao del Rei Brasil Maria Luisa Sandoval Schmidt Universidade de Sao Paulo Brasil Marisa Todeschan D. S. Baptista Universidade de Sao Marcos Brasil Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf , ' Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Nádia Rocha Universidade Federal da Bahia Brasil Rachel Nunes da Cunha Universidade de Brasilia Brasil Raúl Albino Pacheco Filho Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Vanessa Almeida Barros Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Equipe Técnica / Technical Team Márcia Regina da Silva - Bibliotecária - Universidade de Sao Paulo - Biblioteca Central Prefeitura Campus Ribeirao Preto Maria Cristina M. Ferreira - Bibliotecária - - Universidade de Sao Paulo - Biblioteca Central - Prefeitura Campus Ribeirao Preto Apoio técnico da Professora Cristina Dotta Ortega do Curso de Ciencias da Informagao e Documentagao da USP campus Ribeirao Preto. Claudia Coscarelli Salum - Universidade Federal de Minas Gerais Apoio / Supporteó by * LAPS - Laboratorio de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pos Graduagao em Psicologia - UFMG * Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas FaFiCH - UFMG * Núcleo de Epistemología e Historia das Ciencias Miguel Rolando Covian USP/Ribeirao Preto * Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras - USP/Ribeirao Preto * Biblioteca Prof. Antonio Luiz Paixao - FaFiCH - UFMG A revista Memorándum é urna iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria", vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas/UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP The electronic scholarly journal Memorándum is an initiative of the Research Group "Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria", linked to Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas/UFMG and to Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf A teoría dos temperamentos: do corpus hippocraticum a o século XIX The theory of temperaments: from the Corpus hippocraticum to the 19 th century Lilian Al-Chueyr Pereira Martins Paulo José Carvalho da Silva Sandra Regina Kuka Mutarelli Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Resumo O objetivo deste artigo é discutir a teoria dos temperamentos, partindo de informagoes contidas em alguns tratados do Corpus Hippocraticum e contribuigoes de Galeno, bem como alguns de seus desdobramentos. Segundo essa doutrina, a condigao de saúde depende do equilibrio de humores corpóreos, sua combinagao ocasiona os temperamentos e existem relagoes entre o caráter do homem, temperamento, aparéncia física e afetos. A teoria humoral tinha tanto aspectos médicos propriamente ditos como psicológicos. Alguns autores afirmam que no século XV ocorreu a decadencia dessa teoria, mas ela esteve presente nao apenas na Idade Media (por exemplo, em Tomás de Aquino), como em obras do inicio da Idade Moderna (como de autores jesuítas), e persistiu nos regimes médicos do século XVIII. Apesar de ter sido abandonada pela maioria dos médicos no século XIX, até hoje sao encontrados resquicios da mesma. Palavras-chave: temperamentos; Corpus Hippocraticum; Galeno. Abstract This paper discusses the theory of temperaments, starting from some of the treatises of the Corpus Hippocraticum and studying Galen's contributions, as well as some of its developments. According to that doctrine the state of health depends on the balance of the bodily humours. Their combination produces the human temperaments and there is a relationship between each person's temperament, character, physical appearance and affections. The humoral theory concerned both medical and psychological conditions. Some authors claim that this theory declined in the 15th century. However, it may be found not only in the Middle Ages (in Thomas Aquinas' work, for instance) but also in works of the beginning of the Modern Age (such as the Jesuit authors) and remained in use in the medical regiments of the 18th century. Although it was abandoned by most physicians during the 19th century, traces of the theory of the temperaments can be found even nowadays. Keywords: temperaments; Corpus Hippocraticum; Galen; medicine; psychology. 1. Introdugao A concepgao dos temperamentos, que é parte integrante da tradigao médica hipocráticogalénica, esteve presente na medicina ocidental durante muitos séculos a partir da Antigüidade, tendo inclusive implicagoes para a "psicología". As primeiras informagoes acerca concepgao de humores corpóreos que determinam o temperamento e sua relagao com a saúde e doenga de que se tem registro estao em diversos tratados que constituem o chamado Corpus Hippocraticum ou Coiecao hipocrática. Posteriormente, ainda na Antigüidade, tais concepgoes aparecem na obra Claudio Galeno (129-199) (1). Galeno, além de ter realizado estudos em aritmética, lógica e gramática, que caracterizavam urna formagao em filosofía, teve um treinamento em medicina, tanto no ámbito teórico quanto prático, que se iniciou quando ele tinha 17 anos (Dean-Jones, 1993). Há inclusive estudos sobre a "psicología" de Galeno (Singer, 1997). Como muitas das concepgoes de Galeno se basearam nos conhecimentos encontrados em tratados do Corpus Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Hippocraticum, costuma-se referir a essas idéias como constituindo a medicina galénica de base hipocrática ou medicina hipocrático-galénica. Em um dicionário médico do século XIX (Dechambre, 1864) aparece a idéia de que o "humorismo" (2) originou-se a partir das obras de Hipócrates e se manteve até o século XV (Brochin, 1886). No mesmo dicionário, (Dechambre, 1864) considera-se o século XV como o século da decadencia do reino de Galeno. O objetivo desta pesquisa é inicialmente discutir a teoria dos temperamentos, a partir de informagoes contidas em tratados do Corpus e ñas obras de Galeno, bem como alguns de seus desdobramentos, procurando averiguar se as afirmagoes ácima sao procedentes. Serao levados em conta tanto os aspectos médicos propriamente ditos como os psicológicos. 2. Humores, saúde, doenca e cura A conotagao original da palavra "humor", durante a Antigüidade greco-romana, era de alguma coisa úmida, relacionada a um líquido ou fluido. A palavra latina "humore" significa bebida, líquido corporal ou líquido de qualquer especie. Gradualmente a palavra "humor" passou a indicar urna disposigao de espirito, determinada a partir da distribuigao e quantidade dos humores do corpo humano. Urna pessoa bem humorada seria aquela que tivesse bons humores (bons líquidos) em seu interior (Martins, Martins, Toledo & Ferreira, 1997). A teoria humoral, a idéia de que a saúde está relacionada ao equilibrio dos humores corporais, ou seja, que eles estejam ñas quantidades certas e nos lugares corretos e que a doenga é decorrente do excesso, falta ou acumulo de humores em lugares errados, é atribuida normalmente a Hipócrates, um médico que teria vivido durante a Antigüidade por volta do século IV a.C. (3) e escrito urna serie de obras que constituem o chamado Corpus Hippocraticum ou Coiecao hipocrática. Durante muito tempo a autoría das cerca de setenta obras que constituem o Corpus Hippocraticum ou Coiecao hipocrática permaneceu como um enigma para a historia médica. Entretanto, essas obras tém um estilo diferente e tratam de assuntos diferentes abordando tanto a teoria como a prática médica incluindo temas como cirurgia, ginecología, medicina interna, higiene e método terapéutico. Algumas vezes, textos sobre um mesmo assunto apresentam concepgoes diferentes e contraditórias. Estudos feitos por filólogos indicam que as varias obras que constituem o Corpus foram escritas durante um período vasto que abarcou varios séculos, sendo que sua parte mais antiga data de 400 a 450 a.C. Essas e outras evidencias mostram nao se tratar da contribuigao de um único autor mas muito provavelmente de varios, pertencentes a escolas diferentes como as de Agrigentum, Crotón ou Cnidos (Coulter, 1975; Mutarelli, 2006). É possível que algumas dessas obras, que estao dentre as antigás, sejam de autoría do Hipócrates mencionado por Platao e Aristóteles. Em diversos tratados que integram a Coiecao hipocrática sao mencionados os humores e suas relagoes com a saúde e doenga. Entretanto, as concepgoes apresentadas diferem em determinados aspectos. Algumas obras como os "Aforismos", "Prognósticos" e "Régimen das doengas agudas", que Harris C. Coulter incluíu no grupo I (4), consideram a existencia de um número indefinido de humores, que a doenga é o resultado do isolamento de um deles e que a cura se dá a partir do cozimento do humor que estava ¡solado. Ao médico cabe somente observar os síntomas e examinar as secregoes e excregoes. A terapéutica recomendada consiste em dieta, exercícios, físicos, banhos e aplicagoes (que promovem o cozimento) e laxantes (que promovem a evacuagao). Outras obras como, por exemplo, "Afeccgoes" e "Doengas internas", que Coulter incluiu no grupo I I , consideram também que a cura se dá pelo cozimento do humor e prescrevem a terapéutica dos contrarios, ou seja, a utilizagao de substancias com propriedades contrarias áquelas dos humores. Se o doente está com excesso de fleuma que é fria e úmida deve ingerir alimentos "quentes" com condimentos como a pimenta, por exemplo. Nos tratados "Ares, aguas e lugares", "A doenga sagrada" e "A natureza do homem", que Coulter incluiu no grupo I I I , sao mencionados somente quatro humores (sangue, fleuma, bilis negra e bilis amarela). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,„ Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Estes, se estao em equilibrio, resultam em saúde, mas se ocorrer a falta ou excesso de um deles, resultará a doenga. Neste caso, deve-se oferecer ao doente urna substancia com qualidade oposta ao humor, elemento ou qualidade que está causando a doenga. Praticamente nao há mengao ao "cozimento de humores". Há urna preocupagao em diagnosticar a causa da doenga (como recomendava Aristóteles) mas nao se faz um prognóstico. Os tratados "Medicina antiga" e "Arte", incluidos por Coulter no grupo IV, consideram que o organismo é constituido por um número indefinido de humores e criticam a terapéutica da cura pelos contrarios (Coulter, 1975; Mutarelli, 2006). Defendem que o único modo para se chegar ao conhecimento legítimo dos processos mórbidos é a partir de sinais externos ou analogía direta com o exterior, de modo análogo ao que aparece no Timeude Platao (Cornford, 1952; Mutarelli, 2006). Embora a idéia de que existe um número definido de humores (quatro) nao aparega em todas as obras do Corpus, mas sim específicamente naquelas integram o Grupo III (como por exemplo, no Sobre a Natureza do Homem), o importante é que essa idéia esteve presente durante muitos séculos na tradigao médica ocidental. No tratado que mencionamos ela aparece de modo bastante claro: O corpo do homem tem dentro dele sangue, fleuma, bilis amarela e bilis negra. Eles constituem a natureza desse corpo e por eles surge a dor ou a saúde. Ocorre a saúde mais perfeita quando esses elementos estao em proporgoes corretas um para com o outro e em relagao á composigao, poder e quantidade, e quando eles estao perfeitamente misturados. Sente-se dor quando um desses elementos está em falta ou excesso, ou se ¡sola no corpo sem se compor com todos os outros. (Hipócrates, séc. IV a. C. /1999, p. 406). De acordó com Martins e outros (1997) muito provavelmente a concepgao de quatro humores fundamentáis relacionados as quatro qualidades (a térra é fria; o ar é seco, a agua é úmida e o fogo é quente) que está presente no tratado Sobre a Natureza do Homem e em outros que constituem o Corpus Hippocraticum surgiu a partir da teoria dos quatro elementos de Empédocles e depois foi aproveitada por varios outros autores, assumindo importancia na medicina ocidental. Num dos fragmentos que restaram do "Poema sobre a natureza" de autoría do pré-socrático está: "A partir da agua e térra, ar e fogo misturados surgiram formas e cores de todas as coisas mortais" (Kirk, Raven & Schofield, 1983, p. 285). Conforme a visao que aparece nos tratados a que nos referimos no parágrafo anterior, a saúde e a doenga estariam relacionadas á alimentagao, já que esta contribuiría para a composigao dos humores. Os alimentos precisariam ser transformados em substancias corporais e isso acontecería através de seu "cozimento", digestao ou "maturagao". Os humores seriam cozidos através do calor natural do organismo ou através da febre. Nesse sentido, a febre seria um sinal positivo de reagao do organismo. Assim, a doenga nao seria produzida por algum agente que viesse do exterior. No caso das epidemias, elas seriam causadas por mudangas climáticas que afetavam varias pessoas ao mesmo tempo. (Martins e outros, 1997). A. Dechambre considerava a concepgao de temperamento que aparece ñas obras hipocráticas muito geral e de natureza diversificada dependendo do individuo. Ele comentou: O médico deve consultar a natureza [...]; mas as naturezas sao diversas; e esta diversidade nao é senao urna analogía distante daquela que pode servir como base para a determinagao dos temperamentos tal como eles foram compreendidos mais tarde, quero dizer, os temperamentos determinados, distintos uns dos outros e reconhecíveis por caracteres exteriores (Dechambre, 1888, p. 312). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,, Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,,, 3. A teoría dos temperamentos Na maior parte das obras que constituem o Corpus Hippocraticum a medicina é apresentada como urna arte ou técnica, um conhecimento empírico, ou seja, adquirido pela observagao e tentativa. Apesar de existir urna teoria por tras dos conhecimentos apresentados, geralmente essas obras nao procuravam explicar os sintomas através de causas internas, por exemplo (Martins e outros, 1997). Esta visao estava de acordó com a doutrina de Platao segundo a qual nao se podia obter um conhecimento exato das coisas que pertencem ao mundo material tais como os fenómenos da natureza pois, para ele, as coisas estavam sempre mudando. Se olharmos para urna árvore, por exemplo, a cada momento ela estará diferente porque terá caído alguma folha, brotado alguma flor. Assim, para Platao, nao era possível obter um conhecimento verdadeiro a partir da percepgao (Cornford, 1989; Cornford, 1952). Entretanto, tal visao sobre o conhecimento do mundo se modificou com a proposta de Aristóteles (5). Para ele, era possível sim obter um conhecimento seguro do mundo material através do estudo das causas dos fenómenos, pois mesmo que no mundo sublunar as coisas se modificassem, as causas dos fenómenos seriam sempre as mesmas (Aristotle, século IV a.C/1936; Aristotle, século IV a.C. /1952a, século IV a.C. /1952b). Em urna de suas obras Aristóteles assim se expressou: O objetivo de nossa investigagao é o conhecimento, e as pessoas nao pensam ter conhecido urna coisa até terem captado o "porqué" déla - que é captar sua causa primaria. Portanto, é claro que também nos devemos fazer isso com relagao ao surgimento e desaparecimento e todo tipo de mudanga física para que, conhecendo seus principios, possamos tentar referir a eles cada um de nossos problemas. (Aristotle, 1952b, pp. 18-22, [ I I , 3, 194b]). De acordó com Aristóteles, a medicina deveria ser um sistema filosófico racional para constituir um conhecimento. Nesse sentido, sua filosofía ofereceu urna base geral para a medicina racionalista. Ele aperfeigoou a doutrina dos quatro elementos de Empédocles, relacionando-os as quatro qualidades básicas (quente-frio, úmido-seco) e associou as qualidades e elementos com os quatro humores e alguns órgaos (Martins e outros, 1997). O sangue, que é quente e úmido, podia ser associado ao ar; a fleuma que é fria e úmida, podia ser associada á agua; a bilis negra, que é fria podia ser associada á térra, enquanto que a bilis amarela que é "ardente", podia ser associada ao fogo. Entre 350 e 250 a.C. varios médicos tais como Diocles, Praxágoras e Mnesitheos trabalharam dentro dessa visao. Eles reforgaram a relagao entre os quatro humores, os quatro elementos e as quatro qualidades básicas, procuraram as causas das doengas relacionando-as a perturbagóes dos humores e prescreveram tratamentos baseados na teoria de modo mais sistemático do que vinha se fazendo até entao. (Martins e outros, 1997). A medicina racionalista de base hipocrática atingiu seu apogeu com as contribuigóes de Claudio Galeno. Este deixou um volume de obras bastante grande e, apesar de em muitas délas criticar Aristóteles, adotou varias de suas concepgóes. Além disso, referia-se respeitosamente a Hipócrates e Platao (Galeno, De Usu Partibum 71/266; De Naturalibus II 189; De Placitis Hippocratis et Platonis 260 citados por Dean-Jones, 1993; Singer, 1997). Por exemplo, a profissao de médico deveria consistir na preservagao daquilo que está de acordó com a natureza e eliminagao daquilo que nao está, que era a opiniao de Hipócrates que deveria ser seguida (Galeno, Venae Sectione Adversus Erasistratum XI 159-66, citados por Dean-Jones, 1993). Como Platao, Galeno admitía a alma tripartida (6). O médico de Pérgamo aceitava os quatro elementos de Empédocles, as qualidades que constituiriam os quatro humores: a bilis amarela (quente e seca); o sangue (quente e úmido), a fleuma (frió e úmido) e a bilis negra (fria e seca) que aparecem em diversos tratados do Corpus, como A natureza do homem, por exemplo. A partir dessas concepgóes elaborou a "teoria dos temperamentos". Ele assim se expressou: Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoria dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,,, 9.1 Vamos retornar ao argumento. Um único corpo homoiomerous (7) é formado pelos quatro elementos, sendo que eles estao misturados uns com os outros; e se o corpo vai ser sensitivo ou intensivo depende da natureza da mistura, e de modo semelhante todas as propriedades individuáis em ambas as classes seguem a natureza da mistura. Assim, de acordó com sua qualidade peculiar surge o osso ou carne ou arteria ou ñervo. Mas também a propriedade distintiva de cada tipo de osso, carne, etc. depende da qualidade peculiar da mistura: em um leao a carne, por assim dizer, é mais seca e quente; no carneiro é mais úmida e fria; a do homem está entre essas duas; e de um individuo humano, a carne de Dion, como ocorre, é mais quente, porém a de Phillon é mais fria. Consequentemente, todas as diferengas dos corpos homoiomerous sao: (a) simples - como as de varios elementos: mais quentes, mais frios, mais úmidos, mais secos, e (b) compostas, mais quatro: mais seco e ao mesmo tempo mais frió, mais quente e ao mesmo tempo mais úmido; mais urna terceira, mais seco e ao mesmo tempo mais quente; e urna quarta, mais frió e ao mesmo tempo mais seco. No topo dessas [oito] está, antes de mais nada, a melhor misturada. 9.2 O argumento completo sobre estes assuntos foi desenvolvido suficientemente em meu tratado Sobre os temperamentos. [...] (Galeno, De Constitutione Artis Medicae, citado por Dean-Jones, 1993, p. 99). Conforme Galeno, cada pessoa já nasceria com urna certa combinagao ou "tempero" dos quatro humores básicos. Embora pudesse ocorrer que em algumas pessoas os quatro humores estivessem perfeitamente equilibrados, na maioria dos casos haveria a predominancia de um ou dois humores. Isso contribuiría tanto para a formagao de tipos físicos diferentes como de personalidades diferentes (Martins e outros, 1997). De modo análogo ao que aparece nos tratados do Corpus Hippocraticum, Galeno (1928) considerava que a saúde era determinada pelo equilibrio dos humores se formavam no corpo a partir dos alimentos ingeridos pelo individuo. Quando algum deles faltava ou estava em excesso surgiam as doengas, que poderiam ser curadas através da alimentagao, medicamentos ou procedimentos. A influencia da alimentagao na saúde era aceita muito antes de Galeno, é claro. Porém, parece que ele introduziu algo de novo pois acreditava que a agao desses remedios ou alimentos variava de pessoa a pessoa, dependendo de seu temperamento. No caso de febre, por exemplo, um menino de quatro anos necessitaria de um remedio frió devido a seu temperamento ser sanguíneo. Já urna menina da mesma idade necessitaria de um medicamento menos frió porque, segundo ele, as mulheres tém por natureza um temperamento frió. Porém, um senhor de oitenta anos teria um temperamento fleumático e precisaría de um medicamento levemente frío (Grant, 1999). Na obra De tempéramenos (1545) Galeno relacionava a mistura dos humores ao caráter (Singer, 1997). De acordó com Owsei Temkin (1974), em De temperamentis (livro I, capítulos 8 e 9) o médico de Pérgamo considerou a existencia de nove possíveis tipos de temperamento, resultantes da mistura qualitativa dos humores. O primeiro seria o ideal, no qual as qualidades estariam bem equilibradas. Havia quatro nos quais prevalecería urna das qualidades (quente, frío, seco e úmido); e quatro outros nos quais as qualidades predominantes apareceriam em duplas de quente e úmido, quente e seco, frió e seco ou frió e úmido. As misturas bem equilibradas serviriam de modelo e referencia para as outras. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf , . Dentro da classificagao adotada por Galeno podem ser incluidos os quatro temperamentos básicos que foram adotados pela medicina ocidental durante os varios séculos que se seguiram e que enumeramos a seguir: - Temperamento sanguíneo: onde há predominancia do sangue - Temperamento bilioso ou colérico: onde ocorre a predominancia da bilis amarela - Temperamento melancólico: onde há predominancia da bilis negra - Temperamento fleumático: onde ocorre a predominancia do muco ou fleuma Ao se referir ao temperamento bilioso, que considerou excessivamente quente, Galeno comentou: Assim, nos precisamos ter um temperamento frió e um período frió da vida se levarmos mel para a natureza do sangue. Portanto, Hipócrates aconselhou apropriadamente aqueles que sao naturalmente biliosos a tomarem mel, urna vez que eles tém um temperamento obviamente muito quente. [...] os médicos empiristas fizeram precisamente a mesma observagao, a saber que o mel é bom para um homem velho mas nao para um homem jovem, que é prejudicial para aqueles que sao naturalmente biliosos, e útil para aqueles que sao fleumáticos. (Galeno, 1928, P- 8). Para Galeno, o equilibrio dos humores do corpo poderia ser afetado pela dieta, drogas, tempo e localizagao geográfica. Com intuito de conservar a saúde (manter o equilibrio dos humores).Ele recomendava que se tomasse cuidado e moderagao em relagao a seis pontos: a) o ar e o ambiente; b) comida e bebida; c) sonó e a vigilia; d) movimento e o repouso; e) excregoes; f) as paixoes da alma (Martins e outros, 1997). Essas foram consideradas "as seis coisas nao naturais" para a conservagao da saúde. Um aspecto que merece ser mencionado é o interesse que Galeno manifestou pela physiognomia (relagoes entre o caráter do homem e sua aparéncia física), que teve inicio provavelmente durante o período em que ele estudava em Smyrna. Suas idéias sobre o assunto aparecem em diversas de suas obras. De acordó com Elizabeth C. Evans (1945), o enfoque que Galeno deu á physiognomia está intimamente relacionado com suas concepgoes acerca dos humores. Segundo ela, muitas vezes o médico de Pérgamo misturava diagnóstico médico com idéias relacionadas á physiognomia. Isso transparece, por exemplo, em urna passagem do tratado Arte médica onde Galeno discutía os sinais relacionados ao aquecimento do coragao: se muito calor domina, nessa diregao existe urna raiva amarga e loucura e temeridade. Nessas pessoas o tórax é peludo e especialmente o peito e as partes próximas á praecordia. Em geral, o corpo todo se torna quente quando o coragao está quente, exceto se o fígado está fortemente oposto a ele. (Evans, 1945, p. 290). Galeno acreditava que as faculdades da mente estavam relacionadas as misturas ou temperamentos do corpo. As faculdades da alma estavam localizadas no fígado, coragao e cerebro. Revendo as idéias de Platao, Aristóteles e estoicos, ele discutiu, por exemplo porque a secura causava a sabedoria e a umidade loucura. Acabou concluindo que a mente podia ser danificada por afligoes do corpo tais como alteragoes nos humores. Galeno utilizou paralelismos do homem com animáis que estavam presentes ñas obras aristotélicas tais como associar aspectos corpóreos a disposigoes como por exemplo, peito ampio e sangue quente á propensao á raiva; ancas achatadas e sangue frió á covardia. Outro aspecto que Galeno considerou foi a influencia das regioes onde o homem vive sobre o seu caráter (covardia, coragem, amor ou prazer, movimentos da alma) determinando a disposigao do corpo isto porque o sangue difere nos animáis devido ao calor e frió, espessura ou fluidez, bem como sobre outros aspectos como pensava Aristóteles. (Evans, 1945). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,. 4. A teoría dos temperamentos no período pós-galénico De acordó com Owsei Temkin, existe pouco material que indique como ocorreu o desenvolvimento das idéias médicas e filosóficas de Galeno durante o primeiro século e meio que se seguiu á sua morte (8). Entretanto, há indicios de que por volta de 350 d.C ele era respeitado e considerado urna autoridade na Alexandria (Temkin, 1974). Seus trabalhos foram traduzidos para o latim por autores como Oribasius, por exemplo. Algumas das concepgoes galénicas foram acatadas pelos árabes que as levaram para a Europa. Durante a Idade Media, de um modo geral, ele era respeitado como um grande médico e considerado o unificador da medicina. Neste período a concepgao dos quatro temperamentos era bastante aceita e adotada. As idéias de Galeno continuaram sendo influentes até o século XIX quando deixaram de ser utilizadas pela maioria dos médicos. A nogao de temperamento também foi discutida no ámbito teológico cristáo medieval. Tomás de Aquino (1225-1274) interessou-se pelo assunto, sobretudo no que tange á questáo das paixoes da alma ou afetos e sua relagáo com o temperamento. Galeno, no As faculdades da alma seguem os temperamentos do corpo, chegou a afirmar que a alma é tributaria da substancia corporal ao defender o principio de que todas as faculdades da alma seguem os temperamentos do corpo. Esta afirmagáo colocou um problema para os teólogos cristáos, na medida em que contradizia a soberanía da alma. Em consonancia com a filosofía aristotélica, sobretudo no De anima, Tomás de Aquino reafirmou, no Comentario ao Tratado sobre a alma de Aristóteles, I, 402 a 1, que as paixoes sao afeigoes próprias á uniao entre corpo e alma e que simultáneamente á paixao, mansidao, medo, compaixao, coragem, alegría, amor e odio, o corpo sofre algum tipo de alteragao. Isto nao significa que a substancia da alma possa ser considerada o temperamento, como o escrito citado de Galeno dava a entender. De fato, na perspectiva galénica, os diferentes temperamentos produziriam as diferentes paixoes, por exemplo, a ira decorreria do temperamento colérico e a tristeza adviria do temperamento melancólico. Mesmo nao podendo identificar precisamente a causa, Galeno afirmava que as alteragoes afetivas e cognitivas sao expressoes da situagao dos humores: Após numerosas pesquisas, eu nao descobri porque quando a bilis amarela se acumula no cerebro, somos acometidos de delirio, nem, no caso da bilis negra, sofremos de melancolía, nem ainda porque a fleuma e as substancias refrigerantes em geral provocam a letargía que desencadeia a perda da memoria e da inteligencia. (Galeno, século II d.C. /1995, p. 83). Pessotti (1994) explica que, segundo Galeno, a fungao das emogoes na alteragao da erase humoral, se existe, é indireta. O efeito das experiencias afetivas no corpo seria muito mediato, nao diferente de urna alteragao climática ou a ingestao de um dado alimento. Tomás de Aquino, na Summa contra gentiles (1952), refutava a possibilidade da esséncia da alma coincidir com as qualidades do corpo. Em primeiro lugar, porque as operagoes da alma excederiam as qualidades ativas e passivas que regem o temperamento; em segundo lugar, porque o temperamento seria constituido de qualidades contrarias e a alma tem forma substancial e nao acidental, nao admitindo, portanto, contrarios em si mesma; terceiro, porque a alma movería o animal em todas as diregoes e o temperamento nao possui esta propriedade, e, finalmente, porque a alma regeria o corpo e resistiría as paixoes que brotam do temperamento. O pensador medieval ainda alegava que Galeno teria se equivocado ao nao considerar que as paixoes sao devidas, algumas vezes, ao temperamento, outras vezes, á alma. Ao temperamento se atribuí a causa disponente e o que há de material ñas paixoes, como por exemplo, o fervor do sangue. Á alma se atribuí a causa principal e a razao do que é formal ñas mesmas, como o apetite de vinganga com respeito á ira (Aquino, 1999). Tal controversia persistiu na Idade Moderna, quando foram elaboradas novas interpretagoes da antiga tradigao, que se prestaram a outros usos e sofreram modificagoes conforme as exigencias dos campos de saber que a assimilaram. Os Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,¿ jesuítas, por exemplo, fizeram um uso da nogao de quatro temperamentos integrada com a psicología aristotélico-tomista. No meio jesuítico, ficou definido, a partir da distingao fixada pelo coimbrao Manuel Góis, no seu comentario ao Parva Naturalia de Aristóteles, de 1593, que as paixoes ou afetos teriam duas causas: urna formal, o impulso da alma; e outra material, urna alteragao orgánica. Alias, na antiga Companhia de Jesús, a nogao de quatro temperamentos foi amplamente utilizada no processo de selegao e administragao dos seus membros. O respeito e o aproveitamento conveniente das características de cada um, na sua insergao no grupo, já era urna preocupagao de Inácio de Loyola, fundador da Ordem dos jesuítas. As Constituigóes (1594/1997), conjunto de regras que organizam a vida na congregagao, previam urna especie de triagem para a atribuigao de fungoes, visando o bom funcionamento da Companhia através do adequado posicionamento dos individuos. Conforme M. Massimi (2000) as categorías que regiam o procedimento dessa selegao e seu método, ao longo da historia da antiga Companhia, estao presentes nos Catálogos trienais, geralmente elaborados pelos dirigentes das provincias e enviados á Curia geral da Ordem, sobretudo o Catalogus Secundus, que descreve cada jesuíta conforme, em primeiro lugar, seu ingenium, juízo, prudencia, experiencia e cultura intelectual; em segundo, seu complexio, e, finalmente, suas capacidades peculiares, talentum. É justamente sob a denominagáo genérica de complexio, urna das referencias da psicología prática dos jesuítas, entre outras, que comparecem os quatro temperamentos e suas combinagoes. Massimi (2000) explica que os dirigentes jesuítas utilizavam-se dessas categorías inclusive para selecionar os missionários a serem enviados para o Brasil, onde a empresa missionária jesuítica dependía de gente ativa, enérgica e comunicativa. Assim, os coléricos, coléricos-melancólicos ou coléricos-sanguíneos, por apresentarem características quentes, que inclinam ao ímpeto e á fluencia de comunicagáo, eram considerados os mais adequados para enfrentar as novas e difíceis situagoes naturais e sociais do Brasil colonia. Já os fleumáticos, mais apáticos, eram encaminhados aos oficios domésticos ñas casas da Companhia e os poucos individuos melancólicos, mais voltados para o universo intelectual, trabalhavam nos colegios como professores. Os sanguíneos nao tinham destinagao prevista porque eram considerados inaptos para a vida religiosa, por serem julgados inconstantes e volúveis. Ponderagoes sobre a nogao de temperamentos sao encontradas também no Industriae pro Superioribus eiusdem Societatis, Ad curandos Animae morbos, ou seja, Industrias para os superiores da Companhia para a cura dos males da alma, do jesuíta napolitano Claudio Acquaviva (1542-1615), que dirigiu a Companhia, desde 1581 até sua morte em Janeiro de 1615. Nesse importante documento de ensino, destinado aos jesuítas em posigao de comando da época, o padre geral discorre sobre a gerencia e ordenagao necessárias dos movimentos atribuidos á alma na vida em urna comunidade religiosa, tendo a tradigao médica como modelo comparativo e fonte de exemplos. Conforme Acquaviva, para o tratamento conveniente de um doente é imprescindível conhecer a qualidade da doenga e a compleigao do corpo, isto é, seu temperamento. Deve-se averiguar se é sanguíneo e jovial ou triste e melancólico; colérico e violento ou fleumático e apático. É necessário investigar, igualmente, quanto tempo durou a doenga e quais os remedios mais apropriados para curar ou prevenir alguma indisposigao da alma (Acquaviva, 1600/1893). Tal orientagao valia para os diferentes males psíquicos que podiam acometer os religiosos, entre outros: melancolía, hipocondría, perda do desejo pelo trabalho ou indisposigao para as relagoes interpessoais. Em caso de discordias entre confrades, por exemplo, dever-se-ia intervir e levar os reclamantes a examinarem em si mesmos as causas de desentendimento com o outro. As diferengas de temperamento eram respeitadas, mas nao deveriam recobrir faltas pessoais na disposigao para com o próximo. A busca das raízes dos problemas nao deveria circunscrever-se a este nivel, mesmo que alguém afirmasse que a diferenga de compleigao natural o impedia de confraternizar-se com o outro. Assim, as diferengas de temperamento eram levadas em consideragao, mas nao deviam ser, de modo algum, urna justificativa para todas as disposigoes e atos. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,., Acquaviva nao compactuava com a hipótese da soberanía do temperamento do corpo na determinagao do caráter moral - o que se mostra coerente com a psicología aristotélicotomista, renovada e sistematizada pelos filósofos de Coimbra (Góis, 1583, 1602), que prevé a possibilidade desejável do dominio da razao sobre os apetites e movimentos afeitos ao corpo. Preocupado com a coesao e o progresso espiritual do grupo sob sua responsabilidade, Acquaviva sustentava que os religiosos deveriam superar a condigao dada pelo temperamento, portanto pela composigao natural do corpo, e manter-se em harmonía com o conjunto. (Silva, 2005). O tema dos temperamentos também esteve presente nos sermoes do jesuíta portugués Antonio Vieira (1608-1697), que circulou entre capitais européias, como Roma, Paris e Lisboa, e postos avangados das missoes na Bahia e no norte do Brasil. Vieira, em um sermao para a glorificagao do missionário jesuíta Sao Francisco Xavier, afirmou que o sonó é a imagem da morte e o sonhos sao imagem da vida. Ele reafirmou a idéia antiga de que os sonhos retratam as disposigoes anímicas, as agoes diurnas e os desejos do sonhador. Vieira ainda afirmava que o tema dos sonhos guarda urna relagao direta com os temperamentos: "O melancholico sonha coisas tristes e trágicas, o sanguinho sonha felicidades e festas, o colérico sonha guerras e batalhas, o fleumatico creio que nao sonha, porque nao vive". (Vieira, séc. XVII / 1951, p. 42). Do ponto de vista da caracterizagao do tipo físico e psíquico, a maneira como os jesuítas descreviam os temperamentos nao era muito diferente do modo como os médicos do período o faziam. Embora nao houvesse formagao médica ñas escolas jesuíticas, eles se interessavam pela medicina, sobretudo, pela sua vertente preventiva (Silva, 2004). Nos manuais de regime de vida, muito difundidos na Italia do século XVI e, posteriormente, por toda a Europa (Mikkeli, 1999), a atengao aos temperamentos era considerada urna orientagao importante para a preservagao da saúde. Isso se devia, em parte, á influencia da medicina galénica nesse ramo da arte médica dedicado á prevengao de doengas e, muitas vezes, prolongamento da vida. Como vimos, foi na tradigao fundada na medicina de Galeno que ocorreu a sistematizagao das causas externas da alteragao da saúde, as assim chamadas no meio bizantino, sex res non naturales, isto é: comida e bebida, ar e ambiente, esforgo e repouso, sonó e vigilia, excregoes e secregoes e os movimentos da alma. De qualquer modo, os livros de Galeno sobre a compleigao corporal e influencia das qualidades (seco, úmido, frió e quente) para a preservagao da saúde faziam parte das primeiras edigoes impressas de sua obra, como a primeira edigao latina que Filippo Pinzi realizou em Veneza em 1490 e a editio princeps grega, publicada pelo célebre veneziano Aldo Manuzio, em 1525. Sobre os temperamentos, em específico, há urna edigao parisiense, Claudij Galeni Pergameni de Temperamentis libri III. De inaequali intemperie líber I. Thoma Linacro Anglo Interprete, por Christian Wechel, de 1545. Na mesma época, algumas obras de Galeno foram traduzidas para as línguas vulgares alcangando, com isso, um público mais ampio, interessado em regras para preservar a saúde, sem precisar recorrer diretamente aos médicos. O D'alegrir le corps, atribuido a Galeno, publicado em Paris, em 1556, prometía a cura de doengas "pelo modo de vida", sem ajuda de medicagao (p. 4). Essa arte de bem viver, baseada no humoralismo e em preceitos filosóficos, fez enorme sucesso na primeira modernidade. Um dos principios fundamentáis era justamente o exame de si mesmo a fim de identificar o seu temperamento e optar pelos hábitos condizentes com o mesmo e, portanto, mais saudáveis. É o que prescrevia, entre outros, o De/la complessione del corpo humano Libri III da quali a ciascuno sará agevole di conoscere perfetta mente la qualitá del corpo suo, e i moví mentí de/1"animo e i I modo di conserva/i del tutto sani, (1564) do médico holandés Levinio Lemnio, publicado em Veneza, em 1561, e reeditado em 1564. De modo geral, nos regimes de saúde que circularam na Idade Moderna, lé-se que a administragao das six res non naturales deve se adequar ao temperamento de cada pessoa. Ou melhor, o regime de vida conveniente nao poderia ser efetuado sem o conhecimento das características de cada temperamento porque era segundo essas Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,„ categorías se elegía o modo de se alimentar, o ambiente onde se vive, as atividades, a economía do repouso e a conduta moral, enfim, a maneira de viver. Por essa razao o médico francés Porchon afirmava: "Regre seu regime conforme o seu temperamento" (Porchon, 1688, p. 63). Aos sanguíneos, quentes e úmidos, ele sugería alimentos que diminuem o excesso de sangue, refrescam e secam o excesso de umidade do corpo. Aos coléricos, quentes e secos, ele recomendava ar frió, banhos, alimentos frescos, repouso e muita agua. Para os fleumáticos, frios e úmidos, ele prescrevia alimentos quentes e secos, condimentados e acompanhados de vinhos fortes, pouco sonó e muitos exercícios. Finalmente, os melancólicos, frios e secos, deveriam preferir alimentos quentes e úmidos, pouco salgados, além de evitar a tristeza, o medo, as preocupagoes, o isolamento e o excesso de sonó. Em um apéndice de seu manual, publicado pela primeira vez em 1684 e logo reeditado e aumentado em 1688, Porchon retomou a cara eteriza gao moral, senao psicológica, tradicionalmente atribuida a cada temperamento. Em poucas palavras: os sanguíneos teriam aparéncia avermelhada, seriam bem humorados e motivados pelos prazeres dos sentidos. Os biliosos ou coléricos seriam magros, secos e de pele amarelada. Seriam também impetuosos, ambiciosos e orgulhosos. Eles aprenderiam com facilidade, seriam irascíveis e espertos. Os fleumáticos, por sua vez, seriam preguigosos, fracos, de pequeña estatura e obesos. Pouco amante dos estudos, eles seriam também sedentarios, dormiriam bastante, teriam os sentidos amortecidos e o semblante pálido. Por último, os melancólicos seriam vocacionados para os estudos e apreenderiam todo tipo de coisa. Seriam também maldosos, tristes, calados, discretos, invejosos, avaros, tímidos. Além de dormirem pouco, teriam a pele escurecida. De acordó com Dechambre, a teoria dos temperamentos foi sofrendo mudangas a partir dos séculos XV e XVI nos diversos sistemas médicos. Por exemplo, no iatromecanicismo, F. Hofmann atribuía o temperamento colérico ao movimento enérgico das fibras. Zimmermann, discípulo de Albrecht von Haller, considerava o temperamento como "conseqüéncia da constituigao do corpo através da qual o homem senté, pensa e age". Dentro do vitalismo de J. J. Barthez, seria "urna forma especial, constante, das agoes vitáis". Para Cabanis, havia seis temperamentos, sendo que somente um deles tinha relagao com os quatro temperamentos tradicionais e correspondía ao fleumático (Dechambre, 1888, p. 314). Mesmo no século XVIII, a idéia de temperamento persistiu no género dos regimes médicos. Francisco da Fonseca Henriquez, médico do soberano portugués D. Joao V, dedicou um capítulo de seu Áncora medicinal para conservar a vida em saúde á adequagao dos alimentos a cada idade da vida e temperamento do corpo. Quanto ao último quesito, ele foi bastante conciso, mas ratificou a máxima antiga: "Do que fica dito das idades, consta qual seja de ser o alimento dos temperamentos. Os quentes e secos querem alimentos frios e úmidos e assim os mais pedem dieta de qualidades contrarias". (Henriquez, 1721/2004, p. 79). Por outro lado, Henriquez também abordou os efeitos dos afetos na saúde e admitía que as paixoes podem causar além de gravissimos males ao corpo, morte repentina, e ainda a própria alteragao do temperamento. Em suas palavras: "E nao há dúvida que as paixoes do ánimo comovem muito os humores, alteram o sangue e os espíritos e chegam a mudar a constituigao e o temperamento do corpo, quando sao excessivas e continuadas". (Henriquez, 1721/2004, p. 284). No meio médico, a nogao de temperamento também servia como categoría para compreender as relagoes afetivas. No De la maladie d'amour ou mélancholie érotique, de Jacques Ferrand (1575/1623), os quatro temperamentos servem de referencia para compreender o comportamento dos individuos e o resultado da convivencia entre os mesmos. Finalmente as mais expressivas diferengas do amor advém da variedade de compleigao daqueles que sao afligidos por esse mal. Se o sanguíneo ama seu semelhante, é um amor suave, gracioso e louvável. Mas se o bilioso ama um colérico, é mais urna servidao Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf , do que amor, tanto ele é sujeito a turbulencias e cóleras, nao obstante a sua semelhanga de compleigao. Nao há tanto perigo no amor do colérico com a sanguínea, estes serao tanto contentes, como descontentes. O amor da melancólica pelo sanguíneo é bom e gracioso, pois o sangue tempera a má qualidade da melancolía. Mas se elas se apegam ao colérico, é mais urna peste do que amor, o que acaba freqüentemente em desespero. (Ferrand, 1575/1623, p. 74). O livro de Ferrand, embora tenha sido muito criticado em sua própria época, é um exemplo típico de tratado médico-moral do século XVII, no qual fundamentos da medicina humoralista sao associados á doutrina moral dos afetos. Assim, o médico e homem político francés propós, para tratar os síntomas dos males do amor, receitas de remedios para corrigir o equilibrio dos humores, como purgantes, vomitivos, banhos, e aguas minerais. Contudo, bem ao estilo dos adeptos da soberanía da moral, ele terminou seu livro afirmando que o remedio supremo para todos esses males é a sabedoria e a prudencia. (Ferrand, 1575/1623). 5. A teoría dos temperamentos no século XIX No século XIX, denominava-se "humor" todos os líquidos que entram na composigao do corpo humano, tais como o sangue, o quilo e a linfa, por exemplo (Beaude, 1849, p. 226; Nysten, 1835, p. 490) e sua conotagao era "estado, maneira de ser, mistura em certas proporgoes" (Dechambre, 1888, p. 312). A Dechambre apresentou urna explicagao para temperamento que considerou neutra, por nao ser nem vitalista, nem organicista, nem solidista, nem fisiológica e nem química. Ele assim se expressou: Os temperamentos sao as diferengas entre os homens, constantes, compatíveis com a conservagao da vida e a manutengao da saúde, caracterizados por urna diversidade de proporgao entre as partes constituintes da organizagao, tao importantes a ponto de ter urna influencia sobre as forgas e as faculdades da economía. (Dechambre, 1888, p. 312). No final do século XIX e inicio do século XX apareceu a concepgao dos quatro temperamentos (sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico) em Rudolf Steiner (18611925). Suas idéias se apresentam tanto em suas obras dirigidas aos médicos como naquelas de cunho pedagógico ou filosófico. Embora nao tivesse formagao em medicina ou psicología, Steiner, que foi filósofo, jornalista e educador desenvolveu urna concepgao em relagao aos temperamentos aplicada á pedagogía Waldorf. A primeira escola que seguía esta linha foi fundada em 1919 (9). Apesar de adotar a mesma terminología empregada pela tradigao hipocrático-galénica, as concepgoes de Steiner sao diferentes, já que ele pensava que os quatro temperamentos nao eram determinados pelo predominancia de um dos quatro humores (sangue, bilis amarela, bilis negra e fleuma) mas de um dos quatro membros constitutivos do homem (eu, corpo astral, corpo etérico e corpo físico). Com forte influencia da Naturphilosophie, as concepgoes de Steiner nao tinham base empírica. 6. Consideracoes fináis Esta pesquisa reafirmou a visao de que o desenvolvimento das concepgoes de Galeno quanto á saúde e doenga e sua relagao com humores corpóreos e temperamentos teve suas raízes em alguns tratados do Corpus Hippocraticum, na idéia dos quatro elementos de Empédocles, em algumas concepgoes de Platao e de Aristóteles, incluindo a "biología" do último. Além dos aspectos médicos também estavam presentes aspectos "psicológicos" já que a combinagao dos humores no corpo (temperamentos) resultava em determinadas disposigoes ou personalidades. Outro ponto interessante que foi abordado por Galeno é a relagao entre a aparéncia física e o temperamento. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,,„ Assim, quanto á primeira afirmagao que aparece na introdugao deste artigo, pode-se se dizer que o "humorismo" se originou a partir das obras de Hipócrates, já que é bem possível que dentre as obras do Corpus, principalmente dentre as reunidas por Coulter no grupo I I I , estejam algumas que sejam de autoría de Hipócrates. Porém em relagao ao '"humorismo' ter se mantido até o século XV" iremos discordar, assim como da segunda afirmagao que considera o século XV como sendo "o século da decadencia do reino de Galeno". A idéia de que saúde e doenga estao relacionadas ao equilibrio dos humores, que suas combinagoes ocasionam os temperamentos, relagoes entre o caráter do homem, temperamento, aparéncia física e afetos esteve presente na medicina ocidental muito além do século XV. Relagoes entre paixoes da alma (afetos) e temperamentos aparecem nao apenas na Idade Media em Sao Tomás de Aquino como continuam presentes no inicio da na Idade Moderna ñas obras dos jesuítas, no século XVII em Acquaviva e Antonio Vieira e persistiu nos regimes médicos do século XVIII como o de Francisco da Fonseca Henriquez, por exemplo. A nogao de temperamento foi aplicada tanto neste século como no anterior para compreender as relagoes afetivas. Ainda no final do século XIX aparece a mesma terminología e a idéia da saúde estar relacionada ao equilibrio na obra de Steiner. Os exemplos históricos aqui apresentados, que constituem apenas urna pequeña amostra dos exemplos que se encontram disponíveis, indicam que a nogao de temperamentos nao desapareceu no século XV mas permaneceu por muito mais tempo sofrendo modificagoes e adaptagoes. Embora, como dissemos na segao anterior, tais concepgoes tenham deixado de ser utilizadas pela maioria dos médicos no século XIX, até hoje sao encontrados resquicios das mesmas. Por exemplo, as expressoes como "bem humorado", "mal humorado", "temperamental" e o emprego de urna terapéutica que envolve laxantes, expectorantes, etc. Ou entao a referencia as pessoas como sanguíneas, coléricas, neumáticas ou melacólicas, como ainda encontramos em autores do século XX (10). Referencias Acquaviva, C. (1893). Industñae pro superioribus eiusdem societatis, ad curandos animae morbos (Institutum Societatis Iesu, Vol. 3). Florentiae: Typographia A. SS. Conceptione. (Original publicado em 1600) Aquino, T. (1952). Suma contra los gentiles(Tomos le II). Madri: Biblioteca de autores cristianos. (Original do século XIII) Aquino, T. (1999). Commentaire du Traite de /'ame d'Aristote (J.M. Vernier, Trads.). Paris: Vrin. (Original do século XIII) Aristotle. (1936). Physics(\N. D. Ross, Trad.). Oxford: Clarendon. (Original do século IV a.C.) Aristotle. (1952a). On generation and corruption (H. H. Joachim, Trad.) (Great Books of the Western World, Vol. 8). Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Original do século IV a.C). Aristotle. (1952b). Physics (R. P. Hardie & R. K. Gaye, Trads.) (Great Books of the Western World, Vol. 8). Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Original do século IV a.C.) Beaude, J. P. (1849). Dictionnaire de medicine usuelle a l'usage des gens du monde (Vol. 1). Paris: Didier. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ,,, Brochin, H. (1886). Humorisme. Humeurs. Em A. Dechambre (Org.), Dictionnaire encyclopédique des sciences medicales (Vol. 3, pp. 496-509). Paris: P. Asselin & G. Masson. Cornford, F. M. (1952). Platos cosmology: The Timaeus of Plato. London: Routledge & Kegan Paul. Cornford, F. M. (1989). Platos theory of knowledge {The Thaetetus and the Sophist of Plato). New York: Macmillan. Coulter, H. L. (1975). Divided legacy: A history of schism in medical thought. v . l . Washington, DC: Wehawken Book Co. Dean-Jones (1993). Galen "On the constitution of the art of medicine". Introduction, translation and commentary. Tese de Doutorado nao-publicada, University of Texas, Austin, Texas. Dechambre, A. (Org.). (1864). Dictionnaire encyclopédique des sciences medicales \. 1. Paris: P. Asselin & G . Masson. Dechambre, A. (1888). Tempérament. Em A. Dechambre (Org.), Dictionnaire encyclopédique des sciences medicales (Vol. 14, pp. 312-3250). Paris: P. Asselin & G. Masson. Evans, E. C. (1945). Galen the physician as physiognomist. Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 76, 287-298. Ferrand, J. (1623/ De la maladie d'amour ou mélancholie érotique: Discours curieux qui enseigne á cognoitre l'essence, les causes, les signes et les remedes de ce mal fa mastique. Paris: Denis Moreau. Galeno (1545). Galeni Pergameni de Temperamentis libri III: De inaequali intemperie líber I. Thoma Linacro Anglo Interprete. Paris: Christian Wechel. (Original do século II d.C.) Galeno (1556). D'alegrir le corps (J. Le Bon, Trad.). Paris: Estienne Groulleau. (Original do século II d.C.) Galeno (1928). On the natural facultíes (A. 1 Brock, Trad.) (Loeb Classical Library). Cambridge, MA: Harvard University Press. (Original do século II d.C.) Galeno (1995). L'áme et ses passions. Les passions et les erreurs de /'ame. Les ames suivent les tempéraments du corps (V. Barras, T. Birchler & A-F. Morand, trads.). Paris: Les Belles Lettres. (Original do século II d.C.) Gois, M. (1583). Disputas do curso sobre os livros da moral da ética a Nico maco, de Aristóteles em que se contém alguns dos principáis capítulos da Moral. Lisboa: Simao Lopes. Gois, M. (1602). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur. Lisboa: Simao Lopes. Grant, M. D. (1999). Steiner and the humours: The survival of the ancient Greek science. British Journal ofthe Education Studies, 47, 56-70. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf »» Henriquez, F. F. (2004). Áncora medicinal para conservar a vida em saúde. Sao Paulo: Atelié Editorial. (Original publicado em 1721) Hipócrates. (1999). Da natureza do homem (H. Cairus, trad.). Historia, Ciencia, Saúde, Manguinhos, 5(2), 395- 430. (Original dos séculos IV-V a.C.) Kirk, G. S.; Raven, J. E. & Schofield, M. (1983). The presocratic philosophers: A critica! history with a selection oftexts. Cambridge, London: Cambridge University Press. Lemnio, L. (1564). Della complessione del corpo humano. Libri III da quali a ciascuno sará agevole di conoscere perfettamente la qua/itá del corpo suo, e i moví mentí dell'animo e ¡I modo di conservan del tutto sani. Veneza: Domenico Niccolino. (Original publicado em 1561) Loyola, I. (1997). Costituzioni della Compagnia di Gesü. Annotatí dalla Congregazione Genérale 34° & norme complementan (G. Silvano, Trad.). Roma: Edizione ADP. (Original publicado em 1594) Martins, R.; Martins, L. A.-C. P. M.; Toledo, M. C. F. & Ferreira, R. R. (1997). Contagio: Historia da prevencao das doencas transmissíveis (Colegao Polémica). Sao Paulo: Editora Moderna. Massimi, M. (2000). La teoria dei temperamenti nei cataloghi dei gesuiti in missioni in Brasile nei secoli XVI e XVII. Physis, 37(1), 137-149. Mikkeli, H. (1999). Popular health books: Mirrors of academic teaching? Em H. Mikkeli, Hygiene in the early modern medical tradition (pp. 69-96). Saarijarvi: Crimmerus Printing. Mutarelli, S. R. K. (2006). Os quatro temperamentos na antroposofia de Rudolf Steiner. Dissertagao de Mestrado nao-apresentada, Programa de Estudos Pós-Graduados em Historia da Ciencia, Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo, Sao Paulo. Nysten, P. H. (1835). Dictionnaire de medicine, de chirurgie, de pharmacie, des scienees acessoires ou I'art vétérinaire. Paris: J.S. Chaude. Pessotti, I. (1994). A loucura e as épocas. Sao Paulo: Editora 34. Porchon, A. (1688). Les regles de la santé, ou le veritable regime de vivre, que l'on doit observer dans la santé & dans la maladie. Avec une table qui contíent par alphabet les facultez et les vertus de tous les alimens, corrigée & augmentée en cette seconde édition d'un grand nombre de remarques curieuses, de medecine, de physique, de mora/le (sic) & d'histoire. Paris: Maurice Villery. Silva, P. J. C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: Os tratados de Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum 7, pp. 88-101. Retirado em 12/12/06 do World Wide Web http://www.fafich.ufmq.br/~memorandum/n07po.htm. Silva, P. J. C. (2005). La medecine de l'áme: Trois cas de convergences entre psychologie aristotélicienne et savoirs médicaux á l'ancienne Compagnie de Jésus (Europe et Nouveau Monde). Mélanges de l'École francaise de Rome, 117(1), 351369. Singer, P. N. (1997). Levéis of explanation in Galen. The Classical Quarterly, 47(2), 252542. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf »_ Temkin, O. (1974). Galenísm : Ríse and decline ofa medicalphilosophy. Cornell : Cornell University Press. Vieira, A. (1951). Sermao Xavier dormindo. Em A. Vieira, Sermoes (Vol. 13, pp. 42-43). Porto: Lello e Irmao. (Original do século XVII) Notas (1) Galeno nasceu em Pérgamo, na costa oeste da Asia Menor, e em geral sua morte é tradicionalmente tida como tendo ocorrido em 199 ou 200 d.C, tal como aparece na enciclopedia bizantina Suda do século X. Entretanto, existem indicios de que sua morte ocorreu somente em torno de 210 d.C. (ver a respeito em Dean-Jones, 1993, Introduction). (2) De acordó com Beaude (1849) neste século entendia-se por "humorismo"("humorisme"), na patología, o conjunto de doutrinas que admitiam que as alteragoes dos diversos fluidos corporais produziam as doengas. (3) Platao e posteriormente Aristóteles se referiram a Hipócrates em algumas de suas obras. (4) A partir de estudos filológicos e históricos, alguns dos tratados que constituem o Corpus Hippocraticum, conforme suas similaridades, foram reunidos em quatro grupos que aparecem em Coulter (1975). (5) Pode-se detectar urna semelhanga com as idéias aristotélicas ñas obras que constituem o grupo III do Corpus Hippocraticum como, por exemplo, no tratado Sobre a natureza do homem onde há urna preocupagao com as causas das doengas. (6) A alma racional estaría localizada no cerebro, a espiritual no coragao e a apetitiva no fígado (Dean-Jones, 1993). (7) Para Galeno, o corpo dos animáis poderia ser dividido em duas categorías mais ampias: partes homogéneas {homoiomerous), que seriam as mais simples do corpo que seriam o que conhecemos por tecidos (ossos, carne, músculos) e partes compostas, que seriam as partes dos organismos ou órgaos (mao, perna, fígado, etc). [Ver a respeito em Dean-Jones, 1993]. (8) Esta mesma visao aparece em Dean-Jones (1993) que comenta sobre o silencio feito acerca de suas conquistas dentre os autores de obras médicas latinos anteriores a Cassius Félix no século V. (9) Ver a respeito da concepgao dos quatro temperamentos de Steiner em Mutarelli (2006) e Grant (1999), por exemplo. (10) Os autores agradecem o apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundagao de Amparo á Pesquisa do Estado de Sao Paulo (FAPESP), que possibilitou desenvolvimento desta pesquisa. Nota sobre os autores Lilian Al-Chueyr Pereira Martins é bióloga, especialista em Historia da Ciencia, mestre e doutora em Ciencias biológicas na área de Genética pela UNICAMP, professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Historia da Ciencia da PUC/SP, pesquisadora do GHTC (UNICAMP) e do CNPq. Contato: [email protected] Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Martins, L. AI-C.P.; Silva, PJ.C. & Mutarelli, S.R.K. (2008). A teoría dos temperamentos: do Corpus hippocraticum ao sáculo XIX. Memorándum, 14, 09-24. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf ». Paulo José Carvalho da Silva é psicólogo, mestre em Historia da Ciencia pela PUC-SP e doutor em Psicología pela USP, faz parte do corpo docente do Programa de Estudos Pósgraduados em Historia da Ciencia da PUC-SP, e pesquisador da Fapesp. Contato: [email protected]. Sandra Regina Kuka Mutarellie graduada em Matemática pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com especializagao em Magisterio do Ensino Superior pela Universidade Paulista de Ensino (UNIP), mestre em Historia da Ciencia pela PUC/SP; diretora do Campus Cidade Universitaria da UNIP e coordenadora dos cursos de Administragao superior tecnológico no mesmo campus. Contato; [email protected]. Data de recebimento: 31/01/2007 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/martisilmuta01.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~- O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge The moral courtier of Baldassare Castiglione and the ordinary of Eustache du Refuge Edmir Missio Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo Este artigo mostra num primeiro momento como Baldassare Castiglione, no Libro del Cortegiano (1528), previne o leitor da idealidade de seu quadro sobre a corte e o cortesao, promovendo o que poderíamos chamar de um cortesao moralizado; em seguida, pontua-se a questao da agao honesta por meio da dissimulagao prescrita por Castiglione, tomando como base aqui a fundamentagao e validagao desta agao no pequeño tratado Della Dissimulazione Onesta (1641/1990) de Torquato Accetto; por fim, trazemos a corte e o cortesao pintados por Eustache du Refuge, em seu Traite de la court (1616/1617), no qual se expandem, ao que parece, os limites da conduta honesta prevista nos tratadistas anteriormente considerados. Palavras-chave: tratados moráis; ética; corte; dissimulagao. Abstract This article shows, in its first part, how Baldassare Castiglione, in his Libro del Cortegiano (1528), warns his reader about the ideality of his picture of the court and the courtier, providing what we can cali a moral courtier; after this, the paper discusses the question of the honest action through the dissimulation prescribed by Castiglione, having as its source the foundation and validation of this action in the Della Dissimulazione Onesta (1641), written by Torquato Accetto. Finally, we deal with the court and the courtier painted by Eustache du Refuge, in his Traite de la court (1616), which expands, it seems, the limits of the honest conduct, already foreseen in the writers previously considered. Keywords: moral treatises; ethics; court; dissimulation. Em 1993, o historiador inglés Peter Burke, em seu livro A arte da Conversacao, já destacava a importancia do estudo "dos usos e convengóes relacionados á capacidade de escrever" para o entendimento dos textos, "se serios ou irónicos, servís ou zombeteiros" (Burke, 1993/1995, p. 36). Na mesma época, no Brasil, a valorizagao do conhecimento dos pressupostos de composigao que norteiam a produgao de um texto, visando a ampliagao de seu entendimento, já era compartilhado, por exemplo, pelos professores Joao Adolfo Hansen e Alcir Pécora. O presente artigo procura seguir essa diretriz. Neste sentido, faz-se notar inicialmente que o Libro del Cortegiano {Livro do Cortesao) (1528/1965) de Baldassare Castiglione, nao é escrito histórico mas tratado moral na esteira dos moldes platónico e ciceroniano, modelos invocados pelo próprio autor. Como veremos, isto fica claro por meio de urna brilhante irania que pontua o tratado, a qual se compóe com a baga tintura melancólica que o enquadra. O caráter ideal do quadro de Castiglione é evidenciado ainda no confronto com o quadro pretensamente realista do francés Eustache du Refuge, em seu Traite de la cour {Tratado da corte), obra igualmente renomada, datada de 1616 [ 1 ] ; e que eu saiba, ainda nao considerada por pesquisadores brasileiros. Refutam-se aqui, repito, as interpretagóes do tratado de Castiglione como retrato histórico, as quais se servem disso para estabelecer urna imagem - engañosa já pela própria generalizagao de um (suposto) caso -, de um mundo europeu quinhentista de equilibrio em contraposigao com um mundo do desequilibrio seiscentista. Ademáis, com Refuge, vemos que a Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~ "denuncia" dos artificios da sociedade cortesa já era partilhada por quem a freqüentava, ou, ao menos, a conhecia de perto, nao sendo produto "romántico". Em meio a essas "duas cortes", com seus dois cortesaos (o moral proposto e o amoral típico), interponho urna descrigáo de um artificio comum a ambos, o da dissimulagao; apreciada aqui por meio do mini tratado de Torquato Accetto, o Da dissimulagao honesta (1641/1990). O cortesao moral de Castiglione Como se sabe, o Livro do Cortesao tem em Cicero urna das fontes confessas da materia de que trata e do modo de tratá-la. Tanto o Do Orador (séc. I a.C/1950) quanto o Orador (séc. I a.C./ 1964) trazem a mesma preocupagao com a formulagao de um modelo, o do orador, o qual, tal como o cortesao, tem a mesma necessidade de representar frente a um público, seja para mové-lo a urna agao, seja para comové-lo para um julgamento. Com relagao ao modo de tratar a materia, a forma dialógica encontrada em Castiglione aproxima-se antes do primeiro, sendo marcada pelo tom ameno de conversagao, e nao de urna seca argumentagao. Outra obra de Cicero a ser destacada aqui é o tratado Dos deveres (séc. I a.C/1994), de cujos preceitos Castiglione se vale, tal como nos casos do valor do conhecimento, da moderagao, do decoro, do respeito, de parecer aquilo que é. É ainda no Dos Deveres que encontramos o ajuste da atuagao do orador aos convivas, com o estabelecimento de certos pressupostos e fins do trato civil. Alegando urna filiagao socrática [ 2 ] , Cicero preceitua que a fala no convivio civil seja plácida e branda, sem intransigencia e prepotencia; urna fala familiar (sermo), para urna conversagao amena e afável, sem a finalidade de insuflar paixoes, e, neste sentido, contrario á veemente fala dos tribunais e das tribunas. A intengáo é aproximar-se dos interlocutores e ter a capacidade de adequar-se á materia tratada, severa ou jocosa; condenando-se porém a maledicencia, por ser reveladora de defeito moral de quem a ela recorre (Cicero, séc. I a.C/1994). Se, para Cicero, a eloqüéncia é a arte da paz por excelencia, no ámbito público, o que se propoe no Dos deveres é repor esta paz para o ámbito da convivencia civil, a fim de promover a solicitude e a benevolencia entre os convivas. Visa-se dar á conversagao regras para o ordenamento das relagoes civis com base ñas virtudes cardeais da sabedoria, justiga (que compreende a generosidade), grandeza de ánimo e temperanga. Enquanto a oratoria pública devia servir como instrumento de organizagao do Estado, a conversagao civil nao deixa de tomar parte nisso. Talvez se possa dizer que as regras para a conduta civil remetem, igualmente, a urna necessidade administrativa do Estado, provendo, no caso, um espago de 'neutralidade' para o estabelecimento de relagoes que hoje sao denominadas profissionais. As relagoes civis, de todo modo, pressupoem respeito mutuo, ou ao menos urna imagem de respeito. A ambigüidade é inevitável. Em Castiglione (1528/1965), discorre-se sobre essa conversagao amável em meio aos convivas da corte, e prové-se um modelo a ela correspondente, o cortesao. Na Lettera dedicatoria (parte I) que antecede o tratado, o anuncio da feitura do "retrato de pintura" da corte de Urbino traz a captagáo da benevolencia do leitor por meio da imagem de modestia, de rebaixamento das próprias capacidades, seguindo certo molde retórico. Para isso, o autor admite nao retratá-la ao modo de um Rafael ou de um Michelángelo, "mas de pintor ignóbil e que somente saiba tragar as linhas principáis, sem adornar a verdade de belas cores ou fazer parecer pela arte de prospectiva aquilo que nao é" [3]. Figurando em meio a esse quadro da corte está a imagem do perfeito cortesao, em relagao ao qual, ainda na Lettera, parte I I I , é prevista urna possível crítica: a de ser "muito difícil e quase impossível encontrar um homem táo perfeito" [ 4 ] ; pelo que seria supérfluo descrever tal tipo, urna vez que seria váo "ensinar aquilo que aprender nao se pode" [5]. Na sequéncia, contudo, em defesa de sua obra, enumera os modelos que imita, acrescentando que erra em boa companhia ao errar com Platáo, Xenofonte e Cicero, "ampliando o debate sobre o mundo inteligível e as idéias; entre as quais, tal como, segundo esta opiniáo, há a idéia da perfeita república, do perfeito rei e do perfeito orador, assim há também a do perfeito cortesa" [ 6 ] . O escrito é, portanto, alinhado a urna tradigáo mais propriamente filosófica. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~ Cicero, no Orador (séc. I a.C/1950, vol.2, p. 7), já acentuara a condigao imaginaria, ou ficticia, de seu orador perfeito ao dizer: "imaginando [fíngendo] o orador supremo, vou dar forma [informado] ao que ninguém talvez jamáis foi. Pois nao procuro o que foi, mas qual é aquele a quem nada pode ser superior". Ele havia validado este empreendimento no parágrafo ¡mediatamente anterior, ao afirmar que "quando se visa o primeiro posto é honroso chegar ao segundo ou terceiro". Importa igualmente a Castiglione - como vemos ainda na Lettera, parte I I I - esse esforgo de "ascensao do aprendiz" á altura do modelo proposto, ainda que nao chegue a alcangá-lo, reafirmando ser o mais perfeito aquele que mais se aproximar dessa imagem. Portanto, nao há pretensao ali de retratar urna forma particular a partir do existente como seria se retratasse a si próprio, tal como, ele "confessa", alguns tentaram convencé-lo a fazer -, mas a partir de um tipo genérico desejado; concluindo com urna demonstragao dos limites de seu auto-conhecimento, que nao deixa de redundar em ato de modestia, ao dizer: "nao sou tao privado de juízo no conhecer a mim mesmo, que presuma saber tudo aquilo que sei desejar" [7]. Quando vamos ao livro I, podemos ler, logo no primeiro parágrafo, que ao conhecimento dos próprios limites, acrescenta-se a dificuldade de retratar urna discussao que nao presenciara, estando á época na Inglaterra; de modo que sua pintura se deveria á memoria alheia, logo, pela recordagao de argumentos que nao testemunhou, mas Ihe foram ditos. A pintura da corte nao toma assim modelo do vivo, mas é produgao de urna imagem pela lembranga. Ás dificuldades de recuperar urna conversagao nao vista nem ouvida, e da impossibilidade de existencia de um cortesao perfeito, une-se urna outra, como podemos ver no parágrafo XIII: a dificuldade de definir e circunscrever tal cortesao. Esse ponto aparece agora já em meio ao diálogo, quando, pela boca da personagem Gonzaga, é afirmada urna "quase" impossibilidade de se conhecer a "verdadeira perfeigao" das coisas devido á "variedade dos juízos". Note-se que essa variedade dos juízos já fora apontada por Cicero no Orador (XI, 36), sendo que Castiglione nao só a retoma, mas a exemplifica pelo diálogo. As dificuldades se ampliam ainda mais no livro I I , quando, no primeiro parágrafo, no prólogo ao diálogo, afirma-se que as lembrangas dos velhos nao deveriam ser tomadas ao pé da letra, urna vez que a velhice seria fator de idealizagao do vivido. Daí os velhos cometerem um erro universal: o de louvar o passado e criticar o presente, chegando a afirmar que "todo bom costume e toda boa maneira de viver, toda virtude, tudo enfim, vai sempre de mal a pior" [8]. Do que se concluí que, apesar do juízo adquirido pela experiencia, eles nao perceberiam que se assim fosse seria impossível piorar mais. A causa desse engaño residiría na "fragilidade da velhice", que influenciaría o espirito afetado pela lembranga dos prazeres tidos. A imagem do passado, guardada na memoria, estaría entao fadada a ser expressa em termos do discurso elogioso. Em seguida, no segundo parágrafo, Castiglione reitera que os velhos, ao falarem das cortes, teimariam que aquelas de que se recordam foram "muito melhores e cheias de homens singulares" do que as de hoje, sendo que nelas, entao, "reinavam tao bons costumes, tanta honestidade, que todos os cortesaos eram como religiosos"[9]. Junto da melancolía propiciada pela lembranga das alegrías passadas - provida pela fala do narrador a enquadrar o diálogo -, pode-se divisar a ironía, a sinalizar ao leitor os limites das apreciagoes e do conhecimento do próprio autor. Como precisa Marc Fumaroli, a melancolía em Castiglione nao é a do "engenhoso á espanhola", resultante da "tensao melancólica entre a interioridade contemplativa e o "mundo" corrompido" (Fumaroli, 1980/2002, p. 90). Depois de ter prevenido o leitor sobre a idealizagao perpetrada pela memoria em relagao á questao da corte, Castiglione, no último livro, o quarto, esclarece acerca da idéia do perfeito cortesao. Assim, no quinto parágrafo, vemos que o cortesao perfeito seria semelhante a um conselheiro de príncipe, ou antes, a um educador, a fim de "dar a ver ao seu príncipe quanta honra e utilidade nasga para ele e para os seus da justiga, da liberalidade, da magnanimidade, da mansuetude e das outras virtudes que convenham a Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~ bom príncipe" [10]. Para cumprir esse papel, caberia a este, digamos, "cortesao-mestre" manejar a pena e as armas, ser eximio cavaleiro, além de ser versado em música e canto, pintura e escultura. No entanto, esta mesma fungao de educador de príncipes nao deixa de ser refutada por outra personagem, a do Magnífico Iuliano, quando, no §XLIV, alerta que tal excelencia de um cortesao frente a um príncipe seria inconveniente, urna vez que aquele estaría próvido de maior dignidade que este. Ademáis, quem tivesse o papel de instruir o príncipe nao deveria ser chamado cortesao, merecendo "nome muito maior e honrado". E no parágrafo XLVII, encontramos entao urna saída algo irónica para este paradoxo, tal como podemos observar na fala da personagem Ottaviano: "se nao quiserdes chamá-lo cortesao, nao me causa aborrecimento; porque a natureza nao colocou tal limite as dignidades humanas que nao se possa ascender de urna á outra" [11]. Para validar sua proposigao, cita Hornero, alegando que ele nao só havia erigido dois homens excelentes como modelos da vida humana - Aquiles, no que concerne as agóes, e Ulisses, no referente as paixóes, á tolerancia ao sofrimento -, como também deu forma a um perfeito cortesao: Fénix, "mandado a Aquiles por Peleu, seu pai, para acompanhá-lo e ensiná-lo a falar e agir" [12]. Por fim, aduz ainda o exemplo de Aristóteles e Platao, que teriam praticado essa cortesanía perfeita, o primeiro com Alexandre Magno, o segundo com os reis da Sicilia. Como vimos, se, em relagao á corte, Castiglione desfaz o construido, ou ao menos relativiza a fidelidade do retratado frente ao experienciado, no caso do cortesao o comum é preterido em fungao do incomum. Nao se retrata o cortesao tal como é, mas tal como se pretende que venha a ser. Compóe-se como que um cortesao moralizado, reunindo assim atributos variados, a servir de espelho para o príncipe. A moralizagao provida aqui se assemelha á que propóe Platao na República (séc. IV a.C/1947, p. 377c-e, livro II,) em relagao aos deuses retratados por Hornero e Hesíodo. Lembrando que a crítica platónica leva em conta a educagao das criangas, que, por terem como modelos deuses que podem mentir, ser vingativos e guerrear entre si, nao viriam a adquirir o hábito da conduta honesta. Quando voltamos ao retrato de Castiglione, pode-se dizer que é por seu caráter modelar que ele se perfaz em contornos nítidos, apesar da obscuridade da memoria e do brilho do desejo. Ademáis, as tintas bagas da melancolía sao entremeadas nao apenas pelas cores frias da irania, mas também pelas cores quentes das risadas entre os convivas, as quais se destacam no terceiro livro. Note-se que ao cortesao perfeito é vetada a melancolía frente ao príncipe, como podemos ler no livro I I , §XVIII. A corte de Urbino, inicialmente lembrada em alguns de seus aspectos concretos, das pessoas ilustres que a freqüentavam as atividades que nela se realizavam, é reduzida sob a mesma condigao idealizada do cortesao: a conversagao civil é proposta e exemplificada como que ao modo de urna Academia, voltada para um aprendizado e um prazer intelectual. No que diz respeito á composigao do tratado, no Livro do Cortesao entrelagam-se ficgao narrativa e argumentagao para a construgao e modelagem da imagem do perfeito cortesao. Tem-se ai um tratado moral ao modo de obra poética, no sentido encontrado em Aristóteles, pelo qual a poesía é considerada "mais filosófica [...] que a crónica, pois trata antes do geral" (Séc. IV/1980, vol. 9, p. 51b6). Tal como ñas matrizes alegadas de Platao, Xenofonte e Cicero, Castiglione faz das figuras históricas - recentes personagens, o que - nos termos ainda da Poética aristotélica, ao tratar da poesía dramática -, prové ao leitor familiaridade e interesse ñas discussóes, além de persuasao pela verossimilhanga. A razao disso sendo "que o possível é persuasivo; ora, o que nao ocorreu, nao eremos ainda que seja possível, ao passo que o que ocorreu, é evidente que é possível" (Séc. IV/1980, vol. 9, p. 51b6). Dissimular para compor urna harmonía verossímil Pode-se dizer que esta verossimilhanga poética é reposta á atuagao dos convivas, pelo recurso á graga e á sprezzatura; termos que parecem se entrelagar, pressupondo-se em ambos a facilidade, a desenvoltura ñas agóes e conversagao provida pela dissimulagao. O Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~ uso da dissimulagao é indicado para a produgao da graga, ao ser entendida como ocultagao da arte, da técnica, do esforgo necessário para se efetuar urna agao ou discurso. Castiglione, no livro I, §XXVI, vale-se de um lugar de Cicero no De Oratore (séc. I.a.C/1994, livro I), aonde se trata de dois oradores excelentes que buscavam ocultar o seu "conhecimentó das letras", para dar a ver oragoes que parecessem ter sido feitas de modo simples, e como que providas antes pela natureza e pela verdade, que pelo estudo e pela arte. N'C Cortesao, a finalidade dessa agao é produzir o efeito de naturalidade e simplicidade evitando-se a afetagao, defeito censurado ao cortesao perfeito, e que ocorre especialmente ao louvar a si mesmo (séc. I.a.C/1994, livro I I , §VII). A nogao de sprezzatura igualmente se vale do dissimular, pressupondo a mesma ocultagao do saber, do estudo e da fadiga necessárias "em todas as coisas que devem ser bem feitas", acrescentando-se ainda a modestia de "estimar pouco em si mesmo esta condigao" (séc. I.a.C/1994, livro I I , §XII). A dissimulagao também será recurso compreendido para as facécias, bem como para a admoestagao familiar. Essa dissimulagao decorosa será tematizada e elogiada por Torquato Accetto, um século depois, em seu livro Da dissimulagao honesta (1641/1990), no qual porém amplia-se o seu valor pela ampliagao de seu espago de uso. Dissimular honestamente, ou decorosamente, seria condigao reputada a Deus em relagao aos pecados dos homens, até estes serem desvelados no juízo final, bem como á natureza em relagao á morte, quando entao se desvelaría o esqueleto humano. Podem ser usuarios da dissimulagao honesta guerreiros e governantes (Ulisses, Enéias), filhos em relagao a pais (exemplo dos filhos de Noé), o miserável consigo mesmo. Os exemplos sao extraídos de gregos, romanos e hebreus de diferentes séculos e condigoes de vida, de personagens da historia e ficticios. Mas, se de um lado a questao da dissimulagao em Accetto demonstra urna variedade de tempo e lugar, de outro requer um momento comum de desequilibrio, a pedir certo arranjo que possa minimizar os efeitos negativos dessa desarmonia. Seu uso nao se restringe á vida de corte, mas perpassa todo grau de relagoes humanas, seja no aspecto do equilibrio externo destas relagoes, seja num plano mais propriamente interno da pessoa consigo mesma. Assim, a dissimulagao honesta é recurso previsto para variadas situagoes, remetendo, no entanto, geralmente, a urna mesma condigao: a de enfrentamento de urna dificuldade por meio do ardil, seja por recuo, desvio, silencio, ocultagao, ou ainda pela imaginagao. Recorre-se á dissimulagao honesta por benevolencia, respeito, medo, vantagem e/ou beleza. Quem dissimula honestamente muitas vezes nao teria o poder efetivo de alterar a sua situagao, mas há casos em que isso também pode se dar, como podemos ver na passagem bíblica de José e seus irmaos, que Accetto apresenta no capítulo XIII: visando ajudar sua familia em condigao miserável, José dissimula reconhecé-los para, por fim, alterar-lhes a situagao sem prejudicar-se. Outro exemplo diverso é o do uso da dissimulagao por piedade, caso dos filhos de Noé, que fingem nao ver a nudez do pai, dando-lhe as costas, para cobri-lo sem envergonhá-lo. E se a dissimulagao, de modo geral, serve tanto para o ataque quanto para a defesa, quando honesta nao prevé a ofensa, o daño, é voltada antes á adaptagao ao mundo mas, como se viu, pode prover mudangas. O contexto da autodefesa em presenga do poder de um soberano é apenas um dos casos de uso do recurso. O seu uso também ocorre entre os pares por meio das boas maneiras, assim como nota o próprio Accetto no capítulo IX ao citar Giovanni Della Casa. Dissimular honestamente remete a um engaño, a um fingimento em prol da paz entre os convivas. Compoe-se a agao em fungao da companhia. Este "teatro do mundo", metáfora corrente entre o final do século XVI e inicio do século XVII, dá-se contudo nao só pelo jogo de aparéncias, pela atuagao em cena dos atores frente á assisténcia, mas completa-se pelas intrigas fomentadas nos bastidores. Os bastidores podem ser divididos entre os segredos de governo e os segredos do coragao, esferas fora da vista dos espectadores: urna relativa ao governo do Estado; a outra relativa as intengoes do individuo, do ámbito do governo de si. Shakespeare coloca este espago em cena em Macbeth, pega na qual expoe os excessos próprios e possíveis das tiranías e das paixoes; e ainda que nao seja escrito de historia, daquilo que se Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ,« passou de fato (ou supostamente), nao deixa de apresentar um quadro verossímil do que se espera que ocorra neste tipo de circunstancia. Vale lembrar que a sociedade de corte compoe-se também do quadro administrativo, e de urna necessária racionalizagao para o seu funcionamento. Neste sentido, Giovanni Botero, em sua Ragion di stato (1589/1990), iria advertir os reis do caráter prejudicial de conferir "graus e oficios ao favor, antes que ao mérito"; o que teria como efeito negativo ofender os "valorosos", os quais por sua vez vendo-se preteridos pelos "indignos", iriam se descuidar do servigo e da obediencia. Ademáis, os povos, sob estes governos se estimariam desprezados, revoltando-se "por odio do ministro contra o próprio príncipe", de modo que o príncipe que os mantivesse cairia em descrédito (Botero, 1598/1990, p. 25). E se para administrar um Estado nao bastam obviamente as aparéncias e os cerimoniais, também a corte nao se faz apenas de conversagao ligeira, mas exige a fala prudente que pressupoe silencio, tempo para o pensamento; momento que em termos retóricos corresponderiam á inventio, categoría que prevé reuniao, selegao e reelaboragao da materia a ser tratada, em suma, discernimento do que se pretende ou se pode dizer, para depois expressar este saber de certo modo. O cortesao ordinario de Refuge O nobre francés Eustache du Refuge (1564-1617), em seu Traite de la Cour irá justamente trazer o espago dos negocios e dos interesses que compoem urna corte (Pérez, 2004, p.46). Seu Tratado é obra renomada, tendo tido ¡mensa difusao no século XVII, com dezesseis edigoes, e tradugoes para o italiano, inglés, latim e alemao (ídem, p.39). Aqui, o título já define o género do escrito. Este tratado porém apresenta-se mais como descrigao daquilo que é do que como proposigao daquilo que deveria ser - caso este do Livro do Cortesao -, ainda que mantenha um "mesmo fim pedagógico", o qual pode ser tomado como de adequagao aos costumes. Ao livro de Castiglione, por sua vez, pode-se imputar urna intengao transformadora, de reforma de costumes se se quiser; ademáis, para promover sua proposta de um cortesao perfeito, em urna corte modelar, ele recorre a urna prosa especular que repoe em termos escritos a elevagao moral proposta e o prazer da convivencia, a qual é por sua vez exemplificada pela forma dialógica. Já o escrito de Refuge apresenta urna linguagem plana e mesmo crua, sem adornos, em acordó com o quadro árido que pinta. A corte deste, contrariamente á daquele, está mais próxima dos exemplos de Accetto, nao sendo submetida a urna "corrente amorosa" e reduzida apenas a um momento de jogo intelectual: de modo mais ampio, a conversagao na corte, logo no inicio do tratado, é divisada como a mais difícil por seu caráter "mesclado" e por estar sob o influxo de paixoes violentas (Refuge, 1616/1617, p.l). Para Refuge um mesmo fim move os cortesaos, o de serem favoritos e, logo, favorecidos do príncipe, provocando assim entre os convivas encontros "rudes e impertinentes". O trago predominante na corte é a vaidade, o que impediría a aplicagao de regras de conduta certeiras; condigao esta que amplia o espago aos caprichos do acaso (ídem, p.l). Essa incerteza se estende, a seu ver, necessariamente aos seus próprios ensinamentos. Refuge refere-se a eles como um mapeamento análogo ao de urna carta de navegagao, ainda que "vaga e incerta", urna vez que ele mesmo vivia na solidao. Note-se que no próprio mapa ele recorre á dissimulagao honesta: evita citar autores recentes, restringindo-se aos exemplos extraídos apenas dos antigos, a fim de evitar a inveja dos contemporáneos. Estrategia de defesa e ao mesmo tempo respaldo ao dito, demonstragao de coeréncia e também certa amplificagao da carga dramática do quadro. Ao seguirmos o caminho tragado no mapa - formado de definigoes e exemplos -, partimos das condigoes necessárias para entrar, estar e ficar na corte. Assim, para entrar ali é preciso civilidade e prontidao para agradar; para se conduzir, perspicacia {accortise) e destreza {dexterité); e para se manter, paciencia, humildade, ousadia, suficiencia ou capacidade. A civilidade é composta de conveniencia {bonne sceance, bonne gracé) e afabilidade. A primeira se requer ñas palavras (claras, comuns, inteligíveis), ñas agoes e feigoes Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ^, (comedidas e tranquilas) e ñas vestimentas (sem supérfluos, ao modo corrente). A segunda compreende receber bem as pessoas, respeitar, ter feigao agradável, escutar com paciencia, misturar dogura e severidade; também participam aqui as agudezas e gracejos, a serem usadas moderadamente e sem incorrer na bufonaria. Parte da afabilidade está nos cumprimentos, que devem pautar-se pela discrigao - que Refuge pontua ser rara ñas cortes -, e no saber ser grato. A perspicacia, que parece repor aqui o discernimento de Castiglione, consiste em "saber diferenciar pessoas, negocios e outras circunstancias e segundo isto regrar o modo de proceder, sua fala e seu silencio" [13] (Refuge, 1616/1617, p. 16). O reconhecimento do outro se dá "ou das faculdades interiores, de onde procedem as agoes, ou de suas condigoes exteriores, por meio das quais podemos descobrir, como que através de urna nuvem, algo de suas inclinagoes" [14] (ídem, p. 17). Sao divisadas duas potencias interiores no homem, que proveriam todas as nossas agoes: o espirito e a vontade; espirito sendo composto de entendimento, imaginagao e memoria. Envereda-se aqui pelas questoes da prudencia, do temperamento, do entendimento e da imaginagao. Sobre o homem de imaginagao, podemos ler: "O verdadeiro Imaginativo é ordinariamente grande falador, incontinente, arrogante, presungoso e vao" [15]. (ídem, p.19). O quadro de Refuge, ainda que nao promova um rompimento com vínculos éticos - ao tratar da corte em termos de confuto de paixoes e interesses -, indica as maneiras de sobreviver ali com limites de comportamento mais expandidos do que o anterior de Castiglione, e mesmo em relagao ao posterior de Accetto. O pequeño tratado deste, como vimos, pressupoe a circunstancia de desequilibrio, mas responde ainda em termos de urna agao, ou reagao, mais contida. Verifica-se urna preocupagao maior com a lógica da psique do que aquilo que se vé nos tratados de cortesanía de Castiglione e Giovanni Della Casa (1554/s.d.). Esse interesse pode ser verificado ainda em outros produtos letrados da primeira metade do século XVII, como os tratados de Camillo Baldi (1622/1992), sobre escrita de cartas, e do jesuíta Jean Frangois Senault, acerca dos usos das paixoes [16]. O primeiro interessando-se mais em descobrir marcas no texto que revelem as características internas de seu autor, e o segundo preocupando-se em bem saber do interno em geral para controlar as agoes particulares alheias. As paixoes também sao objeto de Refuge, tanto no sentido de reconhecimento do outro quanto do uso. Importa ai o reconhecimento da vontade alheia, vontade que imprime o movimento e poderia ser, portanto, deduzida dos movimentos. Nesse sentido, a postura reservada, em termos dos gestos e das palavras, serviría justamente para dissimular as vontades e os afetos sentidos. A reserva (retenue), ou dissimulagao, é assim apresentada como a principal parte da perspicacia, sendo necessário nao só saber usá-la, mas reconhecé-la. Trata-se de recurso "necessário a todas as pessoas, mas sobremaneira ao homem de Corte para conduzir sua Ambigao" [17] (ídem, p.100). Como todo remedio, a dissimulagao tem a sua dose certa, trazendo perigo pelo excesso, o que no caso quer dizer trazer a desconfianga sobre si. Feita a advertencia, estabelecem-se os tres modos pelos quais esse remedio pode ser aplicado: pelo silencio, pelas agoes e pelas palavras. Segue-se aqui em meio a algumas consideragoes que serao condensadas posteriormente por Accetto (1941/1990), e que tém como fim a própria sobrevivencia ou reposigao de um "equilibrio" desfeito. Assim, Refuge nao irá considerar servilismo ou insensatez que se responda "algumas vezes agradavelmente e sem irritagao aqueles que estao em cólera, ou que falam com paixao" [18] (ídem, p.104). nesse ponto, encontramos o conceito de dissimulagao honesta, elogiado por Accetto: "Com este artificio poderemos algumas vezes dissimular honestamente, e fazer semblante de nao entender, ou nao saber, alguma coisa que importa no discurso que nos é feito, a fim de poder ter tempo de resolver e nao ser pego desprevenido" [19] (ídem, p.104). Note-se que o texto de Refuge fora traduzido para o italiano já em 1621, por Girolamo Canini d'Anghiari, tendo sido editado em Veneza por Battista Ciotti (Pérez, 2004, p.39). Mas, junto da perspicacia, necessária para prover e/ou discernir a dissimulagao, prevé-se ainda a destreza, a qual parece, por sua vez, repor a sprezzatura de Castiglione, como podemos entrever pela sua definigao: "Chamamos ordinariamente destros aqueles que Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf -,~ sao propriamente ágeis e habéis a todo tipo de movimentos, e que sabem com disposigao vencer os momentos difíceis e embaragosos" [20] (Refuge, 1616/1617, parte I, p.102). Os meios para se manter na corte apresentam assim urna maior proximidade com o formulado por Accetto. O elenco destes meios completa-se ainda com as virtudes da paciencia, da humildade e da ousadia discreta; no entanto, a segunda délas apenas estaría subentendida em Accetto, enquanto que a última parece se aproximar antes do discreto de Baltazar Gracián. O emprego destas virtudes é tratado na segunda parte do tratado. Da primeira parte, vale destacar a advertencia em relagao á corte. Esta é considerada lugar improprio - e "insuportável, se a estadía for longa" -, ao "homme de bien", o qual se vé sujeito as inclinagoes do príncipe, inclinagoes que "com muita freqüéncia sao fora dos termos da razao e da lealdade" [21] (ídem, parte I I , p.104). Contudo, nota-se que os homens de bem tém maior utilidade ao príncipe e á organizagao do Estado do que os maus. A segunda parte do tratado irá tratar justamente das relagoes do cortesao com o príncipe, figura ausente na reuniao de Castiglione, mas que é o eixo principal em volta do qual giram os movimentos dos cortesaos, com seus negocios e interesses. O fim destes, de obter o favor do príncipe, se diversifica agora, e se apresenta de varios modos: por proveito, por ambigao e vaidade de honras, pelo desejo de comandar, por inveja, para "prejudicar e roubar os outros", nuyre, & travailler les autres, segundo o que teria dito Séneca, sendo poucos os que para lá se dirigem com o fim de servir ao seu senhor (ídem, parte I I , p.97). Para se obter o favor do príncipe é preciso que este conhega a "pessoa que busca ser favorecida" e tenha "contentamente com as suas agoes e condutas" [22] (ídem, parte I I , p.97). Um dos caminhos mais trilhados para se conseguir isso seria pelo trabalho em oficios de comissoes extraordinarias, e negocios particulares do príncipe; o exemplo é de Crisipo secretario de Tiberio, segundo o que relata Tácito em seus Anais, urna das principáis fontes de exemplos de Refuge (ídem, parte I I , p.99). A imagem - definigao - da corte que surge em seguida é inequívoca: a corte "é (se nos é permitido falar assim) urna grande prostituta, a qual corrompe algumas vezes os mais íntegros e mais castos" [23] (ídem, parte I I , p.104). Daí preconizar aos que desejam "levar urna vida totalmente inocente e distante da maneira comum de viver dos homens" [24] (ídem, parte I I , p.104), que se mantenham afastados délas. O exemplo levantado é o de um grego, Aristides, encarregado das finangas de Atenas, que "quis de inicio se comportar como homem de bem e impedir de roubar aqueles que estavam abaixo dele; logo foi acusado de ser o maior ladrao [...] e com grande dificuldade pode evitar ser condenado. Tendo enfim sido absolvido e continuado em seu cargo por algum tempo, resolveu se comportar como os outros tinham feito antes dele, deixando roubar aqueles que tinham o costume de fazer isso, e entao foi considerado por todos homem de bem"[25] (ídem, parte I I , p.105). Ao homem de bem que é obrigado a estar na corte, reitera-se a exigencia da virtude da paciencia; virtude estoica, a qual, além de poder ser usada frente aos demais cortesaos, deve servir também para se acomodar aos variados tipos de príncipe. Isto nao significaría inagao, mas precaugao, podendo-se assim "advertir docemente" seu senhor quando de urna má intengao (ídem, pp.106-107). Já a adulagao [26], inadequada nos termos de Castiglione e Accetto, na esteira da condenagao aristotélica encontrada na Ética a Nicómaco, nao deixa de ser preconizada aqui, de forma comedida, contudo, já que, segundo Refuge, se de um lado "algumas vezes muito adular prejudica", de outro o mesmo prejuízo pode se dar "se nao se recorresse nunca a isso" (ídem, p.109). De modo algo mais realista, Refuge faz assim um retrato de corte em seus aspectos mais ampios e corriqueiros, em meio as necessidades da administragao palaciana, do servigo público-privado, e promove algumas diretrizes para a manutengao da paz e das boas relagoes para os que nela convivem, ou precisam conviver. Nao se trata da corte Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf francesa, mas da corte em si, enquanto espago que concentra o poder políticoeconómico, lugar que atrai naturalmente os ambiciosos e os vaidosos. Conclusao Os escritos vistos, enquanto tratados, nao se pretendem relatos históricos mas filosofías moráis; e deste ponto de vista nao há diferengas essenciais entre as cortes dos sáculos XVI e XVII, se grandes ou pequeñas, católicas ou protestantes. O homem de bem, amante da paz, deve estar sempre atento as flutuagóes de humores e interesses de príncipes e cortesaos. As relagóes no espago urbano, em geral, ampliam e fomentam, em todas as épocas, paixóes e necessidades; diversificando-se os modos particulares, acidentais, históricos, de sua manifestagao. Essa condigao se amplifica muito mais no espago menos ampio dos palacios, onde a urbanidade estava entao especialmente confinada, e aonde as paixóes eram sobremaneira acirradas pela proximidade com o centro de poder político-financeiro, com suas fortunas e infortunios. Já em Castiglione, livro I I , §XXIX, podemos ver um aspecto geral desse ponto de vista, o qual se assemelha ao de seus pósteros, por meio da personagem do senhor Bembo, quando diz: tendo me acontecido mais de urna vez ser engañado por quem mais amava e por quem, mais do que por qualquer outra pessoa, confiava ser amado, pensei por vezes comigo mesmo que fosse melhor nao confiar em ninguém no mundo, nem colocar-se ñas maos do amigo, por mais caro e amado que seja, que sem reserva o homem Ihe comunique todos os seus pensamentos como faria a si mesmo; pois em nossas almas há tantos esconderijos e tantos recessos, que é impossível que a prudencia humana possa conhecer aquelas simulagóes que dentro estao ocultas. Portanto, creio que seja bom amar e servir mais a um do que a outro, segundo os méritos e o valor; mas nao porém ter tanta certeza desse doce engodo de amizade, para que mais tarde nao venhamos a nos arrepender [27]. Do ponto de vista histórico, a passagem do século XVI ao século XVII apresenta - com o avango do protestantismo - o acirramento da disputa pela recuperagao e/ou manutengao do espago de influencia do Estado eclesiástico romano, de intengao universal/católica, junto aos governos seculares. Neste sentido, a Inquisigao alimenta as suas fogueiras com empenho (recorde-se na península itálica de Giordano Bruno), tentando restringir as variadas expressóes do corpo, do espirito e da mente. Se, nesse ámbito, há mudangas de graus na felicidade pela maior ou menor liberdade, pela maior ou menor opressao dos governantes, percebe-se urna perene experiencia do desengaño, das ilusóes perdidas, no ámbito mais propriamente privado. Pode-se, portanto, terminar aqui por onde Castiglione comegou, quando, ainda na sua Carta dedicatoria (parte I), harmónicamente sentenciou: "/a fortuna, come sempre fu, cosí é ancor oggidi contraria alia virtú", a fortuna, como sempre foi, também é ainda hoje contraria á virtude. Referencias Accetto, T. (1990). Delta dissimulazione onesta (a cura di Salvatore Nigro). 2a ed. Genova : Costa & Nolan. (Original publicado em 1641) Aristóteles. (1550). Ethica a Nicomaco (B. Segni, trad.). Firenze : Lorenzo Torrentino. (Original publicado no séc. IV a.C.) Aristóteles. (1980). La Poétique (R. Dupont-Roc, Jean Lallot, trads.). Paris : Seuil. (Original publicado no século IV a.C.) Baldi, C. (1992). Come da una lettera missiva si conoscano la natura e qualitá de/lo scrittore. Pordenone : Edizioni StudioTesi. (Original publicado em 1622) Botero, G. (1990). Delta ragion di Stato e de/te cause delta grandezza de/te cíttá (ristampa anastatica). Bologna : Forni Editore. (Original publicado em 1598) Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf „ Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf ~,, Burke, P. (1995). A arte da conversagao (A. L. Hattnher, trad.)- Sao Paulo: Unesp. (Original publicado em 1993) Castiglione, B. (s/d). // Cortegiano, em Opere di Baldassare Castiglione, Giovanni della Casa, Benvenuto Cellini(a cura di Cario Cordié). Milano-Napoli: Ricciardi. (Original publicado em 1528) Castiglione, B. (1965). // Libro del Cortegiano (a cura di Giulio Preti). Torino: Einaudi Editore. (Original publicado em 1528) Cicero. (1950). De l'orateur (E. Courbaub, trad.). Paris: Les Belles Lettres. 3 vols. (Original publicado no séc. I a.C.) Cicero. (1964). L'orateur (A. Yon, trad.). Paris : Les Belles lettres. (Original publicado no séc. I a.C.) Cicero. (1994). Dei doveri (a cura di Dario Arfelli). Milano: Mondadori. (Original publicado no séc. I a.C.) Della Casa, G. (s.d.). Galateo ovvero de' costumi, in Opere di Baldassare Castiglione, Giovanni della Casa, Benvenuto Cellini (a cura di Cario Cordié). Milano-Napoli : Ricciardi. (Original publicado em 1554) Fumaroli, M. (2002). Essor et desastre de la premiére Renaissance cicéronienne. Em L'áge de l'éloquence (pp.77-115). Paris: Droz. (Original publicado em 1980) Pérez, J. L. (2004). Cortesía y sociedade: Las "Artes de vivir" de Gerolamo Cardano y Eustache de Refuge. Cuadernos de Historia Moderna, 3, 23-57. Retirado em 10/12/2006, do World Wide Web : http://www. ucm.es/BUCM/revistasBUC/portal/modu los. php?name=Revistas2&id = CHMO . Platao. (1947). La république (E. Chambry, trad.; Oeuvres completes, Vol. 6). Paris : Les Belles lettres. (Original publicado no séc. IV a.C.) Platao. (1997). // Sofista (Premesse, traduzioni e note di Gino Giardini). Em Platone : Tutte le opere (testo greco a fronte). Milano : Newton. (Original publicado no séc. IV a.C.) Refuge, E. du. (1617). Traite de la Cour. S.l. : S.n. (Original publicado em 1616) Senault, J-F. (1987). De l'usage des Passions. Paris : Fayard. (Original publicado em 1641) Notas [1] A obra de Refuge seria traduzida para o inglés sob o título Arcana Áulica; or, Walsingham's manual of prudential maxims, for the statesman and courtier, por Edward Walsingham (London: Matthew Gillyflower, 1694). A tradugao inglesa, por sua vez, foi vertida para o francés por Louis Boulesteis de la Contie em 1695, sob o título Le secret des cours, ou les memoires de Walsingham, sendo, no entanto, erróneamente atribuido a Francis Walsingham, famoso secretario da rainha Elisabeth I I , chefe da agencia de espionagem inglesa. [2] Sócrates é o exemplo, mas a diferenciagao entre os discursos públicos e a conversagao civil encontra-se no Sofista (Platao, séc. IV a. C./1997, 222c), quando da Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf .,,- divisao das técnicas persuasivas em dikaniké, relativa ao judiciário, demegoríké, relativa á fala em assembléia popular, e prosomiletiké, relativa á conversagao em sociedade. [3] "ms di pittor ¡gnobile e che solamente sappia tirare le linee principa I i, senza adornar la veritá de vaghi colorí o far parer per arte di prospettiva que/lo che non é". Traduzo as passagens citadas de autores franceses e italianos de modo a manter certa cor antiga, seja ñas palavras ("prospectiva" em lugar de perspectiva), seja ñas expressoes ("fazer semblante de"). [4] ""tanto difficile e quasi impossibile trovar un orno cosíperfetto". [5] "insegnare quello che imparare non si pó". [6] ""lassando il disputare del mondo intelligibile e del le idee; tra le quali, sí come, secondo quella opinione, é la idea della perfetta república e del perfetto re e del perfetto oratore, cosí é ancora quella del perfetto cortegiano". Note-se que ""lassare" vem do latim laxare, estender, alargar. [7] ""non son tanto privo di giudicio in conoscere me stesso, che mi presuma saper tutto quello che so desiderare". [8] ""ogni bon eos tu me e bona maniera di vivere, ogni virtú, in somma ogni cosa, andar sempre di mal in peggio". [9] ""molto piú eccellenti e piene di omini singulari [...] regnavano tanti boni costumi, tanta onestá, che i cortegiani tutti erano come religiosi". [10] "far vedere al suo principe quanto onore ed utile nasca a lui ed alli suoi dalla giustizia, dalla liberalitá, dalla magnanimitá, dalla mansuetudine e dall'altre virtú che si convengono a bon príncipe". [11] "se non vorrete chiamarlo cortegiano, non mi da noia; perché la natura non ha posto tal termine alie dígnita umane, che non si possa ascenderé dall'una a I I'al tra". [12] ""esser stato mandato ad Achí He da Pe/leo suo padre per starg/i in compagnia e insegnarg/i a diré e fare" [13] ""savoir faire difference des personnes, des affaires, & se/on cela regler sa facón de proceder, son par/er, & son silence". [14] ""ou des facultes interieures, desquelles procedet leurs actios, ou de leurs conditions exterieures par le moye desquelles nous pouvoos descouvrir comme au travers d'un nuage que/que chose de leurs inclinations". [15] ""Le vray Imagina tif est ordinairement grand parleur, incontinent, arrogant, presompteux, & vain". [16] cf. de Camillo Baldi (1622/1992) e de J-F Senault (1641/1987). [17] ""necessaire á toutes sortes de personnes, si l'est elle d'avantage á un homme de Court pour conduire son Ambition". [18] ""quelquesfois plaisamment, & sans se fascher contre ceux qui sont en colere, ou qui parlent avec passion ". [19] ""Avec cest artífice nous pourrons quelquesfois dissimuler honnestement, & faire semblant de ne point entendre ou de ne point scavoir que/que chose qui importe au discours que ron nous faict, afín de pouvoir avoir temps pour res pondré & de n'estre point pris au despourveu ". [20] ""Nous appellons ordinairement Ad extres ceux lesquels sont legers propres & hábiles á toutes sortes de mouvemens, & qui scavent avec disposition surmonter les mauvais & fascheux passages". [21] ""les plus souvent se trouvent hors des termes de raison & de prudhommie". [22] ""personne qui recherche d'estre favorisee, & un agréement de ses actions, & deportemens". [23] ""est (s'il nous faut ainsi parler) une grande putain I aquel le corrompí aucunesfoys les plus entiers & les plus chas tes". [24] ""mener une vie du tout innocente & esloignee du train ordinaire de vivre des hommes". [25] ""s'y voulut porter au commencement en homme de bien, & empescher de dérober ceux qui estoient soubs luy, incontinent il fut acusé d'estre le plus grande volleur [...] & á grande peine peust il eviter d'estre condamné. Ayant toutesfois en fim esté absoulz, & continué en sa charge pour que/que temps, i I resolut de s'y comporter come les autres Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Missio, E. (2008). O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge. Memorándum, 14, 25-36. Retirado em / / , da World Wide Web ~,¿_ http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf avoient fait devant luy, layssant dérober ceux qui avoient coustume de ce faire, & lors ¡I se tro uva fort homme de bien au diré de tous". [26] kdulatione na tradugao da Ética nicomaquéia por Bernardo Segni, datada de 1550, libro secondo, p.108. (Aristóteles, séc. IV a.C/1550). [27] "essendo a me intervenuto piú d'una volta /'esser ingannato da chi piú amava e da chi sopra ogni altra persona aveva confidenzia d'esser amato, ho pensato talor da me a me che sia ben non fidarsi mai di persona del mondo, né darsi cosí in preda ad amico, per caro ed amato che sia, che senza riserva /'orno gli comunichi tutti i suoi pensieri come farebbe a se stesso; perché negli animi nostri sonó tante latebre e tanti recessi, che impossibil é che prudenzia umana possa conoscer quelle simulazioni, che dentro nascose vi sonó. Credo adunque che ben sia amare e serviré /'un piú che l'altro, secondo i meriti e 7 valore; ma non pero assicurarsi tanto con questa do Ice esca d'amicizia, che poi tardi se n'abbiamo a pentire". Nota sobre o autor Edmir Missio é doutor em Teoría Literaria pelo Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campiñas, e pós-doutor pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofía Letras e Ciencias Humanas, Universidade de Sao Paulo. Atualmente participa do grupo "Educagao, Historia e Cultura no Brasil Colonia: 1549-1759" (DEHSCUBRA). Data de recebimento: 08/01/2007 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/missio02.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf -_ A introducao das idéias relativas á psicanálise de criancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos The introduction of ideas relating to the children psychoanalysis in brazil through Arthur Ramos' work Jorge Luís Ferreira Abrao Universidade Estadual Paulista Brasil Resumo O artigo apresenta a introdugao das idéias relativas á psicanálise de changas no Brasil ñas primeiras décadas do século XX, na obra de Arthur Ramos. Partindo de urna investigagao histórica, foram destacados da obra de Arthur Ramos os trabalhos dedicados ao tema da análise de changas. Identificou-se a ocorréncia de duas fases distintas e complementares no que concerne as características de sua produgao psicanalítica. Na primeira, o autor limita-se a introduzir os conceitos psicanalíticos no meio educacional, familiarizando os professores com esta forma de pensamento. Na segunda, é introduzida urna prática de assisténcia a changas com problemas escolares que foi inspirada na teoria psicanalítica e desenvolvida em Clínicas de Orientagao Infantil. Conclui-se que com base ñas formulagoes psicanalíticas e no trabalho prático, Ramos introduziu inovagoes no entendimento das dificuldades escolares da changa. Palavras-chave: Arthur Ramos; psicanálise de criangas; historia das criangas. Abstract The article presents the introduction of the children psychoanalysis ideas in Brazil in the first decades of the 20 th century, through Arthur Ramos' work. Starting from a historical investigation, there were chosen from Arthur Ramos' work, those works dedicated to the theme of the children analysis. It was identified two distinct and complementary phases in the characteristics of his psychoanalytic production. In the first, the author limits himself to introduce the psychoanalytic concepts in the educational environment, familiarizing the teachers with this kind of thought. In the second time, it was introduced a practice of assistance to children with school problems, inspired in the psychoanalytic theory and developed at Children Garden Clinics. It's possible to conclude, considering the psychoanalytic formulations and its practical work, that Ramos introduced innovations in the understanding of the school difficulties presented by the child. Keywords: Arthur Ramos; children's psvchoanalysis; children's history. Introdugao De acordó com os anais da historiografía psicanalítica no Brasil, as primeiras referencias as idéias de Freud surgiram ainda no século XIX, quando em 1899 Juliano Moreira fez as primeiras referencias ao tema em sua Cátedra de Psiquiatría na Faculdade de Medicina da Bahia (Perestrello, 1986). Inaugura-se assim, um período de difusao da psicanálise que marca os primeiros acordes que constituíram o processo de introdugao desta ciencia no país. Entre os autores que se destacaram como precursores (1) do movimento psicanalítico no Brasil, destacaram-se um séquito de profissionais composto por psiquiatras, pediatras, educadores, entre outros, cujos nomes de maior destaque sao os seguintes: Julio Pires Porto-Carrero (1887-1937), Franco da Rocha (1864-1933), Deodato de Moraes, Gastao Pereira da Silva, Hosannah de Oliveira, Antonio da Silva Mello, Ayrton Roxo, Mauricio de Medeiros (1885-1966) e Arthur Ramos (1903-1949) (Mokrejes, 1993). Como característica nodal, estes autores nao tinham como objetivo principal apropriar-se da psicanálise enquanto método terapéutico afeito ao tratamento de pacientes Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanalise de enancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf -„ neuróticos, ao contrario, a tomavam como um arcabougo teórico passível de ser aplicado a diferentes esferas do universo cultural e científico. Neste sentido, a psicanalise surge no país como um conjunto de idéias ¡novadoras, e bastante apropriadas portanto, ao projeto de modernidade que comegava a fervilhar em diferentes regioes do Brasil, ñas primeiras décadas do século XX. Um bom exemplo do que estamos afirmando, a influencia que a psicanalise exerceu sobre o movimento modernista na década de 1920 Comenta Carmen Lucia Valladares de Oliveira (2006, p. 63): Em 1920, enquanto Franco da Rocha fornecia urna explicagao científica sobre os comportamentos e tendencias de urna sociedade que parecía ter perdido a razao, as idéias freudianas comegavam a circular igualmente no meio intelectual e artístico de Sao Paulo onde foi fundado o movimento literario e artístico mais importante do país: o Modernismo. É com este espirito que muitos dos precursores da psicanalise no Brasil procuraram introduzir as idéias de Freud na medicina, na educagao, ñas artes e na literatura. Particularmente na esfera da educagao, encontramos um séquito de autores que se dedicaram a veicular informagoes relativas a psicanalise de changas, particularmente Arthur Ramos, Julio Pires Porto-Carrero, Deodato de Moraes, Gastao Pereira da Silva e Hosannah de Oliveira, que se destacaram como precursores da psicanalise de changas no país (Abrao, 1999, 2001). Entre estes autores merece particular atengao o nome de Arthur Ramos, médico alagoano que entre o seu eclético interesse intelectual, teve o mérito de dedicar-se á psicanalise e á educagao, Ao procurar estreitar as relagoes entre estas duas áreas de conhecimento trouxe contribuigoes importantes que reverberaram ao longo de anos e influenciaram muitas geragoes de profissionais que o sucederam. Delimitacoes metodológicas Deste modo o presente artigo surge com o objetivo de apresentar o período inicial da difusao das idéias relativas á psicanalise de changas no Brasil, particularmente durante a década de 1930, tomando como referencia a obra de Arthur Ramos. Esta escolha justifica-se na medida em que este autor destacou-se entre seus contemporáneos, pois além de divulgar sistemáticamente as idéias psicanalíticas em suas publicagoes no período em questáo, teve o mérito de introduzir, de forma pioneira no Brasil, um modelo de atendimento á crianga com dificuldades escolares inspirado na teoria psicanalítica, que serviu de paradigma para as políticas de atengao ao escolar deficitario na primeira metade do século XX, e influenciou muitos profissionais de sua geragáo. Para darmos exeqüibilidade a este objetivo destacamos, na vasta e eclética obra de Arthur Ramos, todos os trabalhos, publicados entre as décadas de 1930 e 1940 voltados ao tema da crianga, período em que o autor dedicou-se ao assunto de forma bastante intensa. Desta forma, temos, entre os trabalhos compulsados neste estudo, os livros: Educagao e psychanalyse (1934a), A crianga problema (1939a) e Saúde do espirito-.Higiene MentaI (1939b) e os artigos: A technica da psychanalyse infantil'(1933), Os furtos escolares (1934b), A mentira infantil (1937), A dinámica afetiva do filho mimado (1938a) e O problema psycho-sociologico do filho único (1938b). O conjunto destes trabalhos foi analisado levando-se em consideragáo o contexto histórico em que surgiram, as informagoes psicanalíticas que veiculavam, a forma de apropriagáo e compreensáo da teoria psicanalítica proposta pelo autor e as propostas de intervengáo junto á crianga decorrentes das hipóteses teóricas veiculadas. Assim, após breves, porém esclarecedoras, consideragoes biográficas sobre Arthur Ramos, passaremos a discutir o seguimento de sua obra dedicado ao tema da psicanalise de criangas, destacando duas fases principáis no que concerne á compreensáo e utilizagáo deste sistema teórico: a primeira, voltada a divulgagáo de informagoes psicanalíticas no meio educacional brasileiro e a segunda, dedicada ao desenvolvimento de um trabalho prático destinado ao atendimento de criangas com dificuldades escolares. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanalise de enancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Um pensador eclético Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu em Pilar, no Estado de Alagoas, em 1903. Formou-se pela renomada Faculdade de Medicina da Bahia, onde defendeu, aos 23 anos, sua tese de doutorado intitulada: Primitivo e Loucura. Após um breve percurso profissional no Estado da Bahia, tendo sido nomeado em 1928 medico legista atuando no Instituto Nina Rodrigues, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde fixou residencia em 1934. Foi no Rio de Janeiro que Arthur Ramos desempenhou as atividades profissionais mais expressivas de sua vida. Em 1934 assumiu a chefia da Segáo de Ortofrenia e Higiene Mental, em 1935, com a criagao da Universidade do Distrito Federal foi convidado a ocupar a cátedra de Psicología Social e em 1946 foi nomeado professor de Antropología na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (Campos, 2001). Médico de formagao e antropólogo por vocagao. Arthur Ramos trilhou um percurso intelectual bastante eclético, mas nao por isto superficial. Entre sua vasta produgao intelectual composta por 17 livros e mais de quatrocentos artigos científicos, encontramos obra de grande expressao como o livro Introdugao a Psicología Social, publicado em 1936, que se constituiu em um marco da psicología no Brasil. No que concerne á psicanalise, seu interesse foi despertado desde o inicio de sua vida académica. Homem dotado de grande erudigao, dominava com facilidade os idiomas inglés, francés e alemao, o que Ihe garantiu relativa facilidade para entrar em contato com os textos origináis de Freud e de seus seguidores, sem a necessidade de recorrer a comentadores ou tradutores destes textos. Desde cedo empregou a teoria psicanalítica no desenvolvimento de seu pensamento científico, basta lembrarmos, por exemplo, que sua tese de doutorado encontra-se amplamente sustentada na teoria psicanalítica, trabalho de grande valor, "(...) receberia o Premio Alfredo Brito e seria comentado em revistas francesas, americanas e argentinas de Neurología e Psiquiatría. O próprio Freud escreve-lhe, elogiando-a" (Perestrello, 1986, p. 136). No entanto, foi somente a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1934, que os trabalhos dedicados á psicanalise de criangas comegam a ocupar um lugar relevante na obra deste autor. Em 1949, Arthur Ramos transferiu-se para Paris em fungao de sua nomeagao como Diretor do Departamento de Ciencias Sociais da UNESCO, onde veio a falecer, no mesmo ano, vitima de problemas cardíacos. Um novo olhar sobre a crianza Arthur Ramos destaca-se entre os precursores da psicanalise de criangas no Brasil, pois, além de teorizar amplamente sobre o tema, como fizeram alguns de seus contemporáneos, teve o mérito de migrar do campo da retórica para a prática, introduzindo uma modalidade de atendimento á changa fundamentada em principios psicanalíticos. Assim, podemos dividir suas contribuigoes ao tema em dois períodos distintos, porém diretamente relacionados: o primeiro destinado á publicagáo de trabalhos e divulgagáo de idéias concernentes á psicanalise de criangas e a aplicagáo da psicanalise á educagáo e o segundo centrado no desenvolvimento de um trabalho prático voltado ao atendimento de criangas com problemas de aprendizagem ou alguma dificuldade comportamental, denominadas na ocasiáo de "criangas problemas". No primeiro momento, Arthur Ramos segué uma tendencia introduzida no Brasil, poucos anos antes, por Deodato de Moraes (1927) e Porto-Carrero (1929 e 1929a), através da qual os conhecimentos psicanalíticos, em consonancia com o ideario da "Escola Nova" (2) eram empregado para sustentar uma nova gestao educacional. Dentro desta abordagem, publica em 1934, o livro Educagáo e Psychanalyse, que teve por finalidade, segundo as próprias palavras do autor, vulgarizar a teoria psicanalítica aplicada a educagáo.Temos assim um livro de natureza teórica, destinado a educadores, com a intengáo de auxilíalos a entender o comportamento dos alunos.(3) Neste sentido, encontramos no referido volume uma exposigáo muito bem fundamentada da teoria freudiana sobre sexualidade infantil e da psicología individual de Adler. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf -„ Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf No primeiro capítulo de seu livro, Arthur Ramos procura fundamentar teóricamente a insergao da psicanálise na educagao. Argumenta nao ser a psicanálise um novo método de ensino que vise substituir aqueles já existentes, ao contrario, a teoria freudiana aplicada a educagao tem por objetivo auxiliar na resolugao daqueles problemas que interfiram no processo educacional. Define esta atuagao da seguinte forma: A grande ajuda da psychanalyse a pedagogía está na investigagao da vida psychica profunda, do inconsciente. Ella esclarece os movéis recónditos de todas essas situagoes inconscientes difficeis, que véem sendo o desespero de todas as psychologias e onde os tests fracassam redondamente. O que muitas vezes se julga um atraso mental, um apoucamento da inteligencia revelou-se como sendo inibigoes escolares, em conseqüéncia de conflictos (Ramos, 1934a, p.16). Temos aqui urna citagao histórica de grande amplitude, ao ressaltar as interferencias dos fatores emocionáis na produgao intelectual do aprendiz. Aquilo que aos olhos do mestre desavisado, ou melhor dizendo, desinformado, pode figurar como falta de inteligencia, e entendido como urna inibigao da capacidade de aprendizagem por aquele professor que travou contato com a teoria psicanalítica. A explicagao para esta dificuldade de aprendizagem surge no capítulo dedicado a "Contra-sexualidade e o Sentimento de Culpa", ao afirmar que: "Os fracassos e as inibigoes escolares sao a expressao do mecanismo inconsciente de auto punigao. (...) originados das primitivas interdigóes brutaes da sexualidade e da má resolugao das situagoes edipianas" (Ramos, 1934a, p. 121). Tal afirmagao é de grande significado, pois introduz urna distingao bastante ¡novadora para a época entre changas com déficit intelectual e criangas com problemas emocionáis. Esbogada de forma pouco precisa em 1934, esta distingao ganhará contornos mais nítidos em 1939, como decorréncia de urna prática de atendimento a criangas com problemas escolares, apresentada no livro A Crianga Problema, no qual encontramos o seguinte comentario: A nossa experiencia no exame dos escolares "difíceis" mostrou que havia necessidade de inverter os dados clássicos da crianga chamada "anormal". Esta denominagao - impropria em todos os sentidos englobava o grosso das criangas que por varias razóes nao podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade, em paralelo com os outros companheiros, os "normáis". (...) A grande maioria porém podemos dizer os 90% das criangas tidas como "anormais", verificamos na realidade serem criangas difíceis, "problemas", vítimas de urna serie de circunstancias adversas (...) (Ramos, 1939a, p. 13). Sao estas criangas que virao a beneficiar-se de urna educagao orientada por principios psicanalíticos. No tocante ao atendimento de chamada crianga problema, argumenta Ramos em 1934, adotando o ponto de vista de Oskar Pfister (1873-1956), serem os casos mais simples passíveis de resolugao pelos próprios professores que tenham um certo conhecimento da psicanálise, ficando reservado ao médico psicanalista apenas aqueles casos mais graves de difícil resolugao, urna vez que esses casos necessitam de atendimento mais especializado capaz de produzir modificagóes na personalidade da crianga. Cabe constatar, no entanto, que, embora o autor faga referencias a casos simples e graves, nao diferencia a natureza destes problemas. Com relagao a criangas normáis, a análise nao é indicada como medida profilática. Nestes casos, o professor deve, simplesmente, observar o aluno para identificar possíveis problemas. Evidentemente, para que o professor guie-se pela psicanálise em sua prática pedagógica e realize a fungao a ele atribuida, de resolver os problemas escolares mais simples Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf .„ Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf manifestados pelos alunos, é necessário que este profissional receba urna adequada formagao analítica. Desta forma, fica evidente que "Para urna orientagao pedagógica de base psychanalytica é indispensável a correta formagao mental do educador" (Ramos, 1934a, p. 161), além do acesso as informagoes teóricas que o familiarize com a teoria psicanalítica. O capítulo dedicado á prática da psicanálise de changas, denominada por Ramos de pedanálise profunda, é de particular importancia em nosso estudo, pois veicula muitas informagoes sobre o tema, permitindo com isto compreender a forma como este autor compreendia as publicagoes psicanalíticas voltadas á infancia.(4) A síntese por ele apresentada destaca-se pela agugada compreensao de diferentes autores psicanalíticos que teorizaram sobre esta prática na infancia. Encontramos referencias aos trabalhos de Anna Freud, Melanie Klein, e Sophie Morgenstern (1875-1940). Chama a atengao á diversidade de psicanalistas comentados por Arthur Ramos em seu texto, em urna época em que a maioria dos autores nacionais dedicados ao tema limitavam-se a comentar Freud, citando ocasionalmente os demais teóricos. Outra característica, de valor histórico, que deve ser destacada é a extrema atualidade das citagoes ali encontradas. A título de ilustragao, cabe destacar a referencia ao livro A Psicanálise de Changas, publicado por Melanie Klein em 1932. Para além da cronología, este fato aponta o interesse do autor no tema, que se mantinha em contato efetivo e constante com as publicagoes européias relativas a este assunto. Aponta ainda existencia de algumas diferengas entre a análise de adultos e de criangas ao afirmar que; "A sua primeira e elementar diferenga da analyse do adulto está evidente, em que esta é urna personalidade desenvolvida ao passo que a creanga é um ser incompleto, dependente e em formagao." (Ramos, 1934a, p. 142), para em seguida, fundamentar esta afirmagao em Anna Freud, ao discutir as dificuldades na análise de criangas. Na seqüéncia, passa a expor com muita propriedade as principáis contribuigoes sobre a técnica da análise infantil, apontando os sonhos e as fantasías diurnas como ricas fontes de material inconsciente. Comenta, também, a importancia da técnica do jogo criada por Melanie Klein, que é definida por Artur Ramos da seguinte forma: Nos brinquedos, as creangas representam symbolicamente desejos, esperangas, num modo archaico de expressao, mas há ainda identificagoes primarias, em que os brinquedos "desempenham papéis" em situagoes em que a creanga é o próprio interessado. Todas as reagoes de comportamento da creanga em relagao as suas bonecas, aos seus animaezinhos de pau, etc, sao assim a expressao directa de urna attitude em face das primeiras pessoas de seu entourage: pae, mae irmaos, etc (Ramos, 1934a, p. 146). Arthur Ramos destaca a importancia da transferencia na análise da changa, apontando as diferengas com relagao ao fenómeno transferencial apresentado pelo adulto. Acompanhando os ensinamentos de Anna Freud, sugere que o analista infantil, ao invés de colocar-se em urna posigao passiva ante a transferencia da crianga, deve, ao contrario, adotar urna postura ativa. Desta forma, para a crianga, o analista nao se constituí em um objeto de atualizagao dos esquemas amorosos infantis, mas sim como urna pessoa real com quem a crianga pode relacionar-se e partilhar seus afetos, servindo, desta maneira, como um agente educativo, auxiliando na formagao de seu superego. Concluí o capítulo afirmando que 'A analyse infantil deve, pois, terminar-se por urna educagao de base psychanalytica" (Ramos, 1934a, p. 151), educagao esta, que deve ser estendida para além das fronteiras analíticas, tendo em vista seu valor profilático. A versatilidade e consistencia teórica demonstradas por Artur Ramos, ao transitar com seguranga por diferentes teóricos da psicanálise de criangas, virao constituir-se em urna base segura para o desenvolvimento de urna prática, que, fundada em urna compreensao Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ., Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ._ psicanalítica da infancia, tornou-se capaz de elucidar alguns dos problemas escolares manifestados pelas changas. Chegamos assim, a segunda fase do trabalho de Arthur Ramos enquanto precursor a psicanálise de changas no Brasil. As reformas educacionais denominadas de "Escola Nova", a pouco referidas, tiveram lugar notadamente na cidade do Rio de Janeiro, principal centro político e cultural da época, através da "Reforma Anísio Teixeira" (5) do ensino municipal. No bojo destas reformas educacionais foi instituida, em setembro de 1933, junto ao Instituto de Pesquisas Educacionais do Departamento de Educagao do Distrito Federal a Segao de Ortofrenia e Higiene Mental. Trata-se, a nosso juízo, do primeiro servigo de higiene mental (6) criado no Brasil, e, provavelmente, em toda a América Latina. A convite de Anísio Teixeira (1900-1971), Arthur Ramos assume a chefia deste servigo, cargo que ocupou desde sua fundagao até 1939. Como sustenta Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (2003, p. 51), para organizar e dirigir a Segao de Ortofrenia e Higiene Mental, é escolhido um médico alagoano, Arthur Ramos, respeitado na Escola Baiana por sua dedicagao ao estudo das mais modernas teorías no campo da psicanálise, e sua atuagao profissional numa visao abrangente da medicina, encarando a doenga em seus aspectos patológicos e sociais. É justamente por intermedio desta moderna e abrangente visao da medicina e, por conseguinte, da doenga, que Arthur Ramos pode conceber um modelo de atendimento á crianga em que os problemas escolares eram compreendidos a partir de diferentes perspectivas: pedagógica, social e psicológica. Devemos acrescentar ser esta urna visao altamente ¡novadora para a época. Através dos escritos legados pelo próprio Arthur Ramos, idealizador e executor do servigo de higiene mental escolar, temos acesso ás informagoes relativas aos atendimentos oferecidos ás criangas na Clínica de Orientagáo Infantil e sobre as conclusoes teóricas advindas da casuística deste servigo, que atingiu um total de 2000 criangas atendidas em um período de cinco anos. Estas conclusoes foram apresentadas em artigos publicados ao longo dos anos, de 1934 a 1938, e ganharam urna sistematizagáo no livro A Crianga Problema, (7) publicado em 1939. (8) O referido livro, assumiu grande projegáo, tendo sido amplamente comentado por varios teóricos do campo da educagao de entáo, o que levou Anísio Teixeira a escrever urna carta para Arthur Ramos, datada de 15 de novembro de 1939, na qual comentava: Um dos maiores livros de educagao escritos entre nos. Quando o estudioso de 1980 procurar saber o que se fez na década de 30-40, deter-se-á assombrado diante de sua obra. Vocé é dos poucos entre nos que está realmente trabalhando no futuro (Teixeira citado por Barros, 2003, p. 18). Com o intuito de colocar em execugao o programa de higiene mental idealizado por Arthur Ramos, foram criadas clínicas ortofrénicas em seis escolas do Rio de Janeiro, visando proporcionar atendimento a criangas em idade escolar, sao elas: Escola Barbara Otoni, Escola Argentina, Escola México, Escola Estados Unidos, Escola Manuel Bonfim e Escola General Transpawski. Em 1937, teve lugar na Escola General Transpawski urna clínica de hábitos para o atendimento de criangas pré-escolares. A finalidade destes servigos nao estava centrada únicamente no atendimento áquelas criangas que apresentavam dificuldades no ámbito escolar, a quem Arthur Ramos prefería chamar de criangas problemas ou criangas difíceis. A avaliagáo das condigoes físicas e emocionáis destas criangas, bem como a assisténcia e orientagáo para a resolugáo dos problemas por elas manifestados, constituía-se, táo somente, em urna das atribuigoes da clínica de orientagáo infantil, que deveria abranger também um trabalho preventivo. Neste sentido, figuravam também como metas da Segáo de Ortofrenia e Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ._ Higiene Mental os seguintes objetivos: formagao mental do professor, educagao do público através de divulgagao de informagoes por jomáis e radios e formagao e orientagao dos pais por intermedio de programa educativo transportado ao lar. Com relagao á intervengao de natureza preventiva, podemos destacar a importancia atribuida á educagao da changa, tanto no lar como na escola, para o desenvolvimento saudável de sua personalidade, livre de inibigoes e de disturbios neuróticos. Deste modo, as clínicas de orientagao infantil propunham um trabalho de divulgagao, entre pais e professores, de alguns principios da higiene mental que poderiam ser aplicados, á educagao da crianga. Tal proposta ganhou concretude através da produgao de urna vasta literatura de vulgarizagao publicada em livros, jomáis e revistas, nos quais os principios da higiene mental eram enunciados. Um bom exemplo do que acabamos de afirmar pode ser encontrado em um livro publicado por Arthur Ramos, em 1939, pela Secretaria Nacional de Educagao Sanitaria do Ministerio da Saúde, sob o título: Saúde do Espirito: Higiene mental. Esta publicagao, embora nao esteja diretamente vinculada a Segao de Ortofrenia e Higiene Mental, ilustra com a necessária exatidao a filosofía de trabalho que o autor empregou durante sua gestao junto a este centro de assisténcia a crianga, circunscrevendo entre seus objetivos o de "(•••) dar regras práticas e gerais para a corregao dos desajustamentos e conflitos psíquicos que geram a angustia, a incapacidade e a dor" (Ramos, 1939b, p. 5). Nos capítulos deste volume, destinados a higiene mental na infancia, o autor destaca a influencia que o meio, sobretudo a familia, exerce na formagao da personalidade da crianga, destacando o papel da psicanálise no alargamento desta compreensao, o que é precisado nos seguintes termos: O pai, a mae, os irmaos, outras pessoas tém influencia transcendente na vida da crianga. A velha educagao sabia da importancia do fato. Mas foram as novas escolas da psicología, principalmente a psicanálise e a psicología individual, que mostraram a importancia dos adultos, em primeiro lugar dos pais, na formagao psicológica da crianga (Ramos, 1939b, p. 45). Esta concepgao reforga a necessidade de orientar os pais, com base em principios psicanalíticos, para que sua influencia sobre os filhos seja de natureza benéfica, favorecendo seu desenvolvimento psicológico. De modo análogo ao ocorrido na intervengao de natureza preventiva, o atendimento conferido a crianga problema pelas clínicas de orientagao infantil, encontrava-se fortemente embasado na teoria psicanalítica, como procuraremos demonstrar. Cumprenos agora, compondo a cena a partir dos indicios fornecidos por Arthur Ramos, descrever o modelo de atendimento empregado pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental e apontar sua afinidade com a psicanálise. No que concerne ao atendimento das changas problemas realizado pelas clínicas de orientagao infantil, foram desenvolvidos alguns procedimentos básicos a serem executados pela equipe técnica, que era constituida por médicos e professores (9) que integravam este servigo. Assim, a crianga era submetida a exames psicológico e médico para a avaliagao de seu estado físico e mental e, além disso, eram levantados dados sobre a historia de vida e as condigoes familiares e escolares do aluno em questao, aos moldes do que atualmente chamaríamos de anamnese. Com base em todos estes dados arrolados, cujo registro deveria constar na ficha individual de cada paciente, eram procedidas as orientagoes aos pais e professores e realizados os encaminhamentos da crianga para eventuais tratamentos que se considerava conveniente. Desta forma, buscava-se criar as condigoes necessárias para que a crianga viesse a apresentar um desenvolvimento escolar satisfatório. A proposta de tratamento sustentada pelas clínicas de orientagao infantil tinha por fundamento priorizar a atuagao junto ao meio onde a crianga está inserida, ou seja, a familia e a escola, e apenas secundariamente, em alguns casos mais graves, realizar urna intervengao direta junto a crianga. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf . . Adere, desta forma, a opiniao de Pfister, já enunciada em 1934, no livro Educagao e Psychanalyse publicado em 1934, segundo o qual somente os escolares com problemas mais graves deveriam submeter-se a urna análise completa e nos casos mais simples, o próprio professor deveria ser o analista. Para que o professor pudesse assumir esta tarefa seria necessário que se submetesse a urna auto-análise, o que Ihe permitiría reconhecer suas atitudes erróneas frente ao aluno, bem como identificar as manifestagoes transferenciais da changa em relagao a sua pessoa. Assim, o professor poderia atuar junto á crianga problema, compreendendo psicanaliticamente as dificuldades por elas manifestadas, o que possibilitaria a adogao de urna postura mais adequada frente a estes problemas. Apesar de ressaltado o papel do professor na assisténcia ao escolar difícil, nao encontramos urna descrigao precisa das iniciativas tomadas pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental no que concerne á formagao psicanalítica do educador. Ao que parece, esta formagao ficou restrita a algumas instrugoes teóricas e orientagóes específicas para cada caso em particular, que eram realizadas pela equipe técnica do referido servigo. A orientagao da conduta dos pais referente á crianga é outra etapa significativa que compóe o tratamento e a assisténcia ao escolar. Neste contexto, as clínicas de orientagao infantil, fundamentadas nos principios da "Escola Nova" que propunham um maior estreitamento dos lagos que unem a familia á escola, buscavam obter urna maior integragao dos pais no tratamento da crianga, o que ocorreu nao sem grandes resistencias. Comenta Arthur Ramos (1939a, p. 390): Em nosso servigo, esta agao tem sido lenta e cautelosa. Quase sempre convidamos os pais a discutir questóes de ordem puramente médico-orgánico dos filhos, e por ai, insensivelmente, eles recebem os influxos benéficos do Servigo. O procedimento analítico propriamente dito, ou seja, o tratamento individual de criangas por intermedio da técnica de análise de criangas, era empregado em um restrito número de casos de natureza mais grave, quando os procedimentos descritos ácima nao eram suficientes para debelar o problema. Transitando com grande facilidade e seguranga entre os teóricos da psicanálise de criangas, Arthur Ramos considera mais apropriado, nestes casos, o emprego da técnica de Melanie Klein em detrimento da de Anna Freud. Sustentando esta preferencia da seguinte forma, "Nao fazemos análise diretas, ortodoxas, na crianga, a molde de Anna Freud. Damos preferencia ao método indireto de Melaine Klein, nos casos indicados de corregao psicanalítica" (Ramos, 1939a, p.387). O teor desta citagao nos leva a pensar sobre qual o sentido atribuido por Arthur Ramos as técnicas de Anna Freud e Melanie Klein, ou mais específicamente, qual a forma de utilizagao destes recursos técnicos pelas clínicas de orientagao infantil, urna vez que o dominio teórico dos trabalhos destas autoras já era urna realidade para Arthur Ramos desde 1933, data de sua primeira publicagao sobre o tema. Tomando por certa a afirmagao de que as análises diretas eram evitadas, podemos deduzir que o tratamento oferecido as criangas problemas, naqueles casos em que a psicanálise era indicada, nao comportava um procedimento analítico completo, da forma como o entendemos atualmente, compreendendo a análise da transferencia manifestada pelas criangas, o que pode ser interpretado através da elucidagao das fantasías inconscientes expressas no simbolismo do brincar. A utilizagao da psicanálise de criangas restringia-se a alguns procedimentos técnicos, particularmente a observagao da atividade lúdica da crianga em um contexto clínico, urna vez que: A crianga anima os seus brinquedos, comportando-se em face dos mesmos como se fossem pessoas do seu ambiente familiar e escolar. E entao o analista vé desfilarem o pai, a mae, os irmaozinhos, os professores... verificando as reagoes de amor, odio, ciúme, inveja, despeito, agressao... da crianga em frente deles (Ramos, 1939a, p.388). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Este procedimento nos parece ser empregado com uma finalidade muito mais diagnóstica do que propriamente terapéutica, embora o efeito terapéutico pudesse advir secundariamente. É neste sentido que podemos compreender a aplicagao da técnica lúdica de Melanie Klein, definida por Arthur Ramos, como um procedimento indireto que nao requer a preparagao previa da changa para seu posterior engajamento no tratamento, como sugere a técnica propalada por Anna Freud. Nos procedimentos descritos ácima torna-se evidente que Arthur Ramos empregou a teoria psicanalítica, adequando este recurso teórico e técnico as condigoes e necessidades vigentes ñas clínicas de orientagao infantil. Nao podemos deixar de ressaltar que a afinidade de Arthur Ramos com a psicanálise já estava patente alguns anos antes. A inovagao aqui reside em poder aplicar este conhecimento no trabalho com criangas. Torna-se conveniente, portanto, acompanharmos as elaboragoes teóricas tecidas pelo autor a partir de sua atuagao junto as clínicas de orientagao infantil, para que possamos compreender quais as aproximagoes propostas por ele entre a higiene mental escolar e a psicanálise de criangas. A casuística das clínicas de orientagao infantil mantidas pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental, respaldada em mais de dois mil casos atendidos ao longo de cinco anos, permitiram identificar algumas condigoes afetivas manifestadas pela changa, que, em geral, estao na origem de grande parte dos problemas escolares por ela apresentados. Assim, tanto a changa mimada quanto a crianga escorragada, polos extremos forjados a partir de suas relagoes familiares, vieram a tornar-se objeto de estudo de Arthur Ramos. Sob a denominagao de criangas mimadas, encontramos o filho único, o cagula, o primogénito, o filho com dotes especiáis, enfim, aquelas criangas que por alguma razao particular sao alvo de atengao excessiva por parte de seus pais. Estas criangas, quando obrigadas a passarem do meio familiar, que Ihes devota tanta atengao e cuidados, para o ambiente escolar, no qual a atengao do mestre é quase sempre dissipada entre os varios alunos, sofre, na maioria das vezes, grandes dificuldades de ajustar-se a este nova condigao, sobrevindo daí desajustamentos escolares dos mais diversos tipos. Considera Arthur Ramos que estas criangas adquirem seus vicios de uma relagao de extrema dependencia com a figura materna, permanecendo fixadas a uma fase do desenvolvimento psico-afetivo, no qual a mae é o principal objeto de prazer da crianga. Entre as criangas escorragadas figuram aquelas que provém de lares desajustados, as que sao excessiva mente castigadas e os órfaos de ambos os pais. Estas criangas apresentam, quase sempre, desajustes escolares tais como: agressividade, impulsividade, instabilidade e fugas escolares. Atitudes estas que podem ser entendidas como manifestagao de protesto e rebeldía em relagao as figuras de autoridade, raciocinio este fundamentado por Arthur Ramos da seguinte forma: Os freudianos investigam mais a fundo os elementos causáis destas atitudes de protesto e reagao. A revolta da crianga contra o pai (e a autoridade em geraj) se formaría em fungao da situagao triangular do Édipo onde o pai aparece como rival amoroso. Como o rival que rouba a exclusividade das caricias maternas (...) (Ramos, 1939a, p. 80). No tocante aos problemas que atingem com maior freqüéncia os escolares atendidos pelas clínicas de orientagao infantil do Rio de Janeiro, encontramos descritos os seguintes: criangas agitadas ou turbulentas, para empregarmos a terminología de Arthur Ramos, tiques e ritmias, problemas sexuais, medo e angustia, mentiras e furtos. Embora nao exista uma estatística que permita mensurar a freqüéncia com que os escolares sejam acometidos por estes problemas, tudo leva a crer que as dificuldades arroladas por Arthur Ramos sejam representativas dos problemas mais expressivos atendidos pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental. Sob o termo turbulenta encontra-se uma gama variada de comportamentos motores, tais como: instabilidade, agressividade e impulsividade. A causa destes comportamentos infantis comportam duas explicagoes etiológicas: a primeira délas aponta fatores orgánicos como responsáveis pela agitagáo psicomotora; enquanto a segunda enfatiza a Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf .. Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ., questao ambiental. Arthur Ramos adere á segunda dessas hipóteses, procurando compreender a changa turbulenta no ámago de sua estrutura familiar; considerando que Os aspectos da agressividade e turbulencia do escolar, a mania de destruigao de objetos, o desejo de sujá-los, marcá-los, ou sublimagao ou a repressao das primitivas tendencias, etc, podem estar ligada á tendencias possessivas conservadoras, da fase anal-sádica da libido (Ramos, 1939a, p. 198). Salienta, por fim, o papel desempenhado pelo meio no controle dos impulsos agressivos, destacando que tanto a repressao excessiva quanto a liberdade desmedida dificultam o controle desses impulsos. No capítulo dedicado aos tiques e ritmias recorre o autor novamente a teoria psicanalítica, para explicar as causas destas manifestagoes motoras da crianga. Após citar Karl Abraham (1877-1925), Sandor Ferenzi (1873-1933) e Melanie Klein, que haviam teorizado sobre as causas psicogénicas dos tiques, sustenta ser este comportamento um fenómeno de conversáo motora que surge em decorréncia do recalcamento da sexualidade pré-genital. As fugas escolares sao reconhecidas como um problema que atinge com freqüéncia os alunos, cuja intensidade pode ser bastante variável, indo desde simples fugas esporádicas até o abandono da escola. Este problema está, "(•••) na sua quase totalidade, ligadas a fatores afetivos, a desajustamentos e conflitos familiares e sociais, que determinam o mecanismo de fuga, como evasao de um ambiente hostil" (Ramos, 1939a, p. 250). As manifestagoes da sexualidade infantil, bem como o tema da educagao sexual, já há algum tempo vinha despertando o interesse dos psicanalistas brasileiros, que encarando o problema de forma objetiva, destacando a importancia do esclarecimento sexual na infancia. As constatagoes advindas do trabalho desenvolvido pela Segao de Ortofrenia e Higiene Mental, evidenciam a ocorréncia de algumas manifestagoes da sexualidade na escola, como: masturbagao e homossexualismo. Esta constatagao veio demonstrar nao ser mais possível ignorar a sexualidade infantil, que se faz presente também no meio escolar, confirmado assim a necessidade, já há algum tempo apontada, de um trabalho de orientagao sexual. Segundo Arthur Ramos, a orientagao sexual é de responsabilidade recíproca dos pais e da escola, devendo ocorrer de forma individual e indireta, com base em exemplos retirados da biología e da zoología, educagao esta que deve ser complementada pela sublimagao dos impulsos sexuais. Constatamos desta forma que embora a importancia da educagao sexual foi reconhecida como algo necessário na escola, a forma de abordar a questao ainda é bastante cautelosa e feita com certa hesitagao. Entre os casos atendidos ñas clínicas de orientagao infantil do Rio de Janeiro, figuravam algumas manifestagoes de medo e angustia apresentadas pelas criangas. Comentando sobre este tema, Arthur Ramos faz alusao a distingao entre os conceitos de terror, medo e angustia proposta por Freud, ao considerar que, a angustia "denota urna disposigao consciente como urna expectativa, urna preparagao ao perigo"; o medo exige um objeto determinado em frente ao qual ele se revela; quanto ao terror, representa urna disposigao a que se chega diante de um perigo atual, para o qual nao se esta preparado e que surge de surpresa (Ramos, 1939a, p. 311). Argumenta, no entanto, que as distingoes estabelecidas entre os conceitos de angustia, medo e terror, nao sao aplicáveis na prática, devido a dificuldade de discriminar estes quadros. Apresenta alguns casos de medos mais brandos, como medo de escuro, de isolamento e de fantasmas; e outros mais graves que podem levar até mesmo ao suicidio infantil. Na génese do medo infantil, seja qual for sua intensidade, encontramos, "(...) reagoes de fuga diante do perigo e auto punigao de um crime cometido dentro das Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ._ relagoes familiares. Crime do Édipo, terror da castragao, dizem os analistas" (Ramos, 1939a, p. 336). A mentira e os furtos, designados por Arthur Ramos sob o rótulo de pré-delinqüéncia infantil, nao apresentam nesta etapa da vida a mesma conotagao atribuida a estes delitos quando cometidos por individuos adultos. Na crianga, estes atos, na sua grande maioria, possuem urna conotagao simbólica que aponta para possíveis desajustamentos afetivos por ela manifestados. Consideragoes fináis Ao destacarmos da vasta e eclética obra de Arthur Ramos os trabalhos dedicados á psicanálise de changas e á educagao, conforme o percurso que trilhamos ácima, é possível colocarmos em relevo alguns aspectos nodais que caracterizaram o entendimento deste autor em relagao á crianga e a educagao de sua época. Neste sentido, tres aspectos ganham particular destaque, merecendo urna análise mais apurada: a concepgao de crianga presente em sua obra, a forma de entendimento da relagao professor aluno e a nogao de profilaxia difundida no trabalho da Segao de Ortofrenia e Higiene Mental. Com relagao á concepgao de crianga veiculada na obra de Arthur Ramos, é possível reconhecer, com relativa facilidade e nitidez, que este autor passa a atribuir á crianga urna identidade própria que a diferencia do adulto. Sustentado neste pressuposto, o autor considera que os primeiros anos da infancia devam receber maior atengao devido a sua importancia para o desenvolvimento futuro. Com esta tese, Arthur Ramos tras para a esfera educacional a concepgao freudiana de que os primeiros anos de vida constituem o substrato que irá formar a personalidade do adulto. Na esteira deste raciocino, Arthur Ramos propoe mudangas ñas práticas pedagógicas vigentes no ensino tradicional, urna vez que, segundo sua concepgao, a crianga enquanto individuo singular e diferenciado do adulto deve dispor de métodos de ensino que atenda as suas necessidades. Dentre estas mudangas cabe destacar a forma de compreender o fracasso escolar e a relagao professor aluno durante o processo ensino-aprendizagem. A pedagogía tradicional, sempre abordou de forma indiferenciada o aluno que fracassava no desempenho de suas atividades escolares, rotulando-o de anormal, em contraposigao ao educando dito normal, que aprende com facilidade. Para Arthur Ramos, como procuramos demonstrar ácima, esta concepgao é muito restritiva, nao permitindo compreender as verdadeiras razoes que levam a crianga ao fracasso escolar. Neste sentido, apresenta de forma inédita no Brasil a distingao entre problemas cognitivos e emocionáis na génese das dificuldades escolares manifestadas pelas changas. Compreensao análoga e apresentada por Luitigarde Oliveira Cavalcante Barros em seu artigo "Um projeto de modernizagao do Rio de Janeiro: a contribuigao de Arthur Ramos (1933-1949)", ao sustentar que analisando o tradicional método de classificagao da clientela infantil das escolas em "normal" e "anormal", a partir de testes de Q.I., condenou essas técnicas que dividiam as criangas entre: Q.I. 100 - media normal; ácima de 100 - supernormal (inteligencia genial superior, muito superior); abaixo de 100 atrasados mentáis ou oligofrénicos, 70 a 80; 10 a 50 imbecilidade; e 0 a 10 - idiota. No livro A Crianga problema, resultado se sua experiencia no Servigo de Ortofrenia e Higiene Mental, publicado em 1939, Ramos considera tais técnicas um "unilateralismo simplista da psicometria". Seu principal argumento contra estas práticas é a desconsideragao, por este método, de varios fatores que interferem no comportamento infantil, como desajustamentos e miseria social e familiar, com reflexo na vida escolar (Barros, 2003, p. 53). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Em decorréncia desta concepgao cunhou a expressao "changa problema", para designar os alunos que fracassam na escola, urna vez que no entendimento de Arthur Ramos a crianga problema, ao contrario da deficiente, tinha suas dificuldades forjadas na relagao entre suas necessidades individuáis e o meio social em que está inserida. Sobre a relagao entre professor e aluno, podemos depreender da obra de Arthur Ramos, urna concepgao bastante ¡novadora para a época, ao considerar que a interagao desta dupla interfere no processo de aprendizagem. Decorre deste raciocinio a compreensao de que o processo de ensino-aprendizagem e fortemente influenciado pelo aspecto relacional, isto significa dizer que a relagao professor-aluno contempla sempre urna importante dimensao transferencial na qual sentimentos de ambos sao atualizados. Estas idéias trazem como substrato a necessidade de formagao psicanalítica do educador presentes na obra de Arthur Ramos, tema pouco desenvolvido pelo autor, porém bastante presente na atualidade ao se discutir a relagao entre educagao e psicanálise. Outro aspecto a ser destacado refere-se á concepgao de profilaxia presente na obra de Arthur Ramos. Entre os autores que se dedicaram ao tema da psicanálise ñas primeiras décadas do século XX prevaleceram duas concepgoes de profilaxia com relagao á crianga, que embora guardem alguma semelhanga entre si, apresentam diferengas conceituais que merecem ser destacadas (Abrao, 2001). De um lado estao autores como Julio Pires Porto-Carrero e Deodato de Moraes, que, fundados em um ideal eugénico, ao utilizarem a psicanálise no cuidado da crianga, circunscrevendo sua intervengao em um período anterior ao surgimento de urna possível patología, de tal forma que ao se oferecer urna educagao saudável as changas evitava-se o desenvolvimento de síntomas neuróticos na vida adulta. Este raciocinio encontra-se em prefeita consonancia com o pensamento vigente na psiquiatría brasileira do inicio do século XX, que direcionava sua atengao para a área da saúde mental, o que foi concretizado, em 1923, com a criagao, no Rio de Janeiro, da Liga Brasileira de Higiene Mental. Em outra diregao, temos autores como Arthur Ramos no Rio de Janeiro e Durval Marcondes (10) em Sao Paulo que tomavam a idéia de profilaxia em um sentido distinto do anterior, urna vez que o foco principal destes autores era o de promover a prevengao da doenga mental, através da compreensao e da assisténcia as manifestagoes sintomáticas da crianga em idade escolar, o que era realizado por intermedio do trabalho de diagnóstico e orientagao de pais e professores realizados pelas clínicas de orientagao infantil. Procuramos expor, ainda que de forma sumaria, as principáis contribuigoes de Arthur Ramos á psicanálise de changas no Brasil. Dado ao caráter ¡novador de sua contribuigoes e a consistencia teórica de seus textos, como ficou aqui demonstrado e a influencia que exerceu sobre as geragoes que o sucederam, estimulando muitos profissionais a enveredarem pelo caminho da psicanálise, é lícito atribuir-lhe o título de precursor da psicanálise de criangas no Brasil. Referencias Abrao, J. L. F. (2001). A historia da psicanálise de criangas no Brasil. Sao Paulo: Escuta. Abrao, J. L. F. (1999). Um percurso pela historia da psicanálise de criangas no Brasil. Dissertagao de Mestrado nao-publicada, Faculdade de Ciencias e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis. Barros, L. O. C. (2003). Um projeto de modernizagao do Rio de Janeiro: A contribuigao de Arthur Ramos (1933-1949). Em C. S. Weyrauch; G. C. Lima & H. Arnt (Orgs.), Forasteiros construtores da modernidade (pp.40-65). Rio de Janeiro: Terceiro Tempo. Campos, R. H. F. (Org.). (2001). Dicionário biográfico da psicología no Brasil. Rio de Janeiro: Imago. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf .„ Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf Mokrejes, E. (1993). A psicanálise no Brasil: As origens do pensamento psicanalítico. Petrópolis: Vozes. Moraes, D. (1927). A psychanalyse na educagao. Rio de Janeiro: Mendonga, Machado & Cia. Editores. Oliveira, C. L. V. (2006). Historia da psicanálise: Sao Paulo (1920-1969). Sao Paulo: Escuta. Perestrello, M. (1986). Primeiros encontros com a psicanálise no Brasil (1899-1937). Em Encontros: Psicanálise (pp. 111-152). Rio de Janeiro: Imago. Perestrello, M. (1995). Ainda sobre a historia da psicanálise no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, 2P(3),667-674. Porto-Carrero, J. P. (1929). Ensaios de psychanalyse. Rio de Janeiro: Flores & Mano Editores, 1929. Porto-Carrero, J. P. (1929a). Educagao sexual. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, 2(1), 120-133. Ramos, A. (1933). A technica da psychanalyse infantil. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, 5(2), 195-205. Ramos, A. (1934a). Educagao e psychanalyse. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional. Ramos, A. (1934b). Os furtos escolares. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, 7 ( 2 ) , 229-235. Ramos, A. (1936). Introdugao a psicología social. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil. Ramos, A. (1937). A mentira infantil. Revista Médica da Bahía, 5(10), 195-210. Ramos, A. (1938a). A dinámica afetiva do filho mimado. Neurobiologia, 1(1), 265-287. Ramos, A. (1938b). O problema psycho-sociologico do filho único. Revista Médica da Bahía, 5(9), 185-200. Ramos, A. (1939a). A changa problema (4a ed.). Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil. Ramos, A. (1939b). Saúde do espirito: Higiene mental {fia. ed.). Rio de Janeiro: Servigo Nacional de Educagao Sanitaria. Sagawa, R. (2002). DurvalMarcondes. Rio de Janeiro: Imago. Notas (1) Neste artigo empregaremos a periodizagáo proposta por Marialzira Perestrello (1995), ao definir as diferentes etapas que marcam o desenvolvimento histórico da psicanálise no Brasil. Segundo ela pode-se diferenciar tres períodos: o dos precursores, o dos pioneiros e o momento atual. Neste sentido, os precursores sao definidos como aqueles profissionais devotados á causa psicanalítica que, embora nao possuíssem urna formagao sistematizada na área, dedicavam-se a divulgar a psicanálise entre nos e, por vezes, a praticá-la como autodidatas; os pioneiros, por sua vez, constituem-se no primeiro grupo Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf .„ Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf de psicanalistas propiamente ditos que, após terem concluido sua formagao, em muitos casos no exterior, dirigiram grande parte de sua atividade profissional para o ensino da psicanálise e para formagao de novos psicanalistas, e o momento atual caracteriza-se pelo aumento do número de psicanalistas exercendo atividades clínicas. (2) A "Escola Nova" ou "Escola Progressista", como ficou conhecida, constitui-se em urna nova filosofía educacional, introduzida no Brasil na década de 1930. Fundada no ideario liberal, a "Escola Nova" surge no cenário educacional do país como urna opgao ou mesmo como urna oposigao ao ensino tradicional em vigor até entao. Esta nova política educacional partia do principio de que a escola deveria atuar como um instrumento para a edificagao da sociedade, através da valorizagao das qualidades pessoais de cada individuo. Seguindo esta linha de raciocinio podemos evidenciar a énfase colocada ñas peculiaridades da changa enquanto um ser em desenvolvimento, diferenciado do adulto e com urna lógica de pensamento própria. Neste sentido, torna-se vital compreender as características da changa para melhor gerir sua educagao. Temos com isto um espago bastante fecundo para a introdugao da psicología e da psicanálise no meio educacional (3) O livro é composto pelos seguintes capítulos: Cap. I A escola nova e a psychanalyse; Cap. II Nogoes fundamentaes da psychanalyse; Cap. I I I A psychologia individual e a pedagogía; Cap. IV O ponto de vista analytico-causal; Cap. V A sexualidade infantil; Cap. VI A contra sexualidade e o sentimento de culpa; Cap. VII As reacgoes do recalcado; Cap. VIII A prática da pedanalyse e Cap. IX Psychanalyse do educador. (4) O texto deste capítulo, com pequeñas vahagoes, já havia sido publicado, um ano antes, nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental sob o título: "A Technica da Psychanalyse Infantil". Esse trabalho foi também objeto de urna conferencia proferida pelo autor na Liga Brasileira de Hygiene Mental, em setembro de 1933, que teve como título: "A psychanalyse infantil e sua importancia na hygiene mental e na pedagogía". (5) Entre os teóricos nacionais que empunharam a bandeira da "Escola Nova", figura com grande destaque o nome de Anísio Teixeira, que após estudar com o filósofo John Dewey (1858-1952) nos Estados Unidos, trouxe para o Brasil suas idéias sobre esta nova filosofía educacional, implantando-as no ensino municipal do Rio de Janeiro na década de 1930, o que ficou conhecido como "Reforma Anísio Teixeira". (6) O termo higiene mental corresponde ao que entendemos hoje por saúde mental. A mudanga de nomenclatura foi sugerida pela Organizagao Mundial da Saúde, em 1949. (7) Este livro é constituido pelos seguintes capítulos: Cap. I - Heranga e ambiente; Cap. II - A changa mimada; Cap. III - A crianga escorragada; Cap. IV - A changa escorragada (continuagao), Cap. V - A crianga escorragada (continuagao); Cap. VI - A crianga escorragada (conclusao); Cap. VII - As constelagoes familiares; Cap. VIII - O filho único; Cap. IX - Avós e outros parentes; Cap. X - A crianga turbulenta; Cap. XI - A crianga turbulenta (conclusao); Cap. XII - Tiques e ritimias; Cap. XIII As fugas escolares; Cap. XIV - Os problemas sexuais; Cap. XV - Os problemas sexuais (continuagao); Cap. XVI Os problemas sexuais (conclusao); Cap. XVII - Medo e angustia; Cap. XVIII - Medo e angustia (conclusao); Cap. XIX - A pré-delinqüéncia infantil: a mentira Cap. XX - A prédelinqüéncia infantil: os furtos e Cap. XXI - Tratamento e assisténcia. (8) Ao cotejarmos o conjunto destes trabalhos, verificamos que os artigos publicados por Arthur Ramos neste período, vieram a constituir alguns capítulos do referido livro, sao eles: Os Furtos Escolares (1934b), A Mentira Infantil (1937), O Problema Psychosociológico do Filho Único (1938b) e O Desenvolvimento Afetivo do Filho Mimado (1938a). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf .„ Abrao, J.L.F. (2008). A introducao das idéias relativas á psicanálise de mangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf (9) A equipe técnica era constituida pelos seguintes profissionais: Professoras Diñan Goulart, Isaura Carvalho de Azevedo, Lea de Miranda, Marília Hasseumann Rosa e Silva e Doutores Claudio Mesquita de Azevedo, José de Paula Chaves e Stephania Soares (10) Durval Bellegarde Marcondes (1899-1981), desde o inicio de sua vida académica na Faculdade de Medicina de Sao Paulo, onde se formou em 1924, interessou-se pela psicanálise. Seguindo os passos do mestre e incentivador Franco da Rocha, de quem herdou o gosto e a dedicagao pela psicanálise, iniciou o atendimento de pacientes empregando a técnica de Freud nos últimos anos da década de 1920 (Sagawa, 2002). Em 1938 idealizou, fundou e dirigiu a Segao de Higiene Mental Escola vinculada ao Departamento de educagao do Estado de Sao Paulo, que por intermedio de sua Clínica de orientagao Infantil ofereceu atendimento a criangas em idade escolar nos moldes do trabalho realizado por Arthur Ramos no Rio de Janeiro (Abrao, 2001). Nota sobre autor Jorge Luís Ferreira Abrao, Psicólogo, doutor em Psicología Escolar e do Desenvolví mentó Humano pelo Instituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo. Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicología Clínica da UNESP de Assis e do Programa de PósGraduagao em Psicología e Sociedade da mesma Universidade. Supervisor do Centro de Pesquisa e Psicología Aplicada Dra. Betti Katzenstein. Contacto: [email protected] Data de recebimento: 15/04/2007 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/abrao01.pdf ., Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ¡- A pessoa como sujeito da experiencia: contribuicoes da fenomenologia The person as subject of experience: Contributions of phenomenology Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Marina Massimi Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo Evidenciam-se contribuigoes da Fenomenologia á discussao sobre o conceito de experiencia na Psicología contemporánea. Negagao da experiencia enquanto categoría gnosiológica leva a fragmentagao do vivido, redugao a representagao ou a reagoes, negagao do sujeito. Husserl aponta as raízes: objetivagao do sujeito questiona fundamentos da cultura ocidental. Duas posigoes decisivas na formulagao daquele conceito e constituigao da Psicología: (1) experiencia subentende juízo; (2) experiencia como sensagao. Esta fundamenta a Psicología moderna. Tal redugao do conceito leva á crise da Psicología científica: a inviabiliza como ciencia da pessoa. A Fenomenologia (Husserl e Stein) re-propoe a centralidade da experiencia distinguindo vivencia de experiencia; síntese passiva de síntese ativa; a atitude própria das Ciencias Naturais daquela das Ciencias do Espirito. Experiencia tem como centro a pessoa: eu-no-mundo; agente por ter experiencia determinada e ordenada do mundo, podendo habitá-lo; tem experiencia privilegiada do corpo próprio. Palavras-chave: experiencia; pessoa; fenomenologia e psicología Abstract It's evident the contributions of Phenomenology to discussions about the concept of experience in contemporary Psychology. The denial of experience as gnosiological category results in the fragmentation of lived experience, reducing it to representation or reactions, denying the subject. Husserl points towards the roots: the objectivation of the subject questions the fundaments of Western culture. Two decisive positions in the formulation of that concept and constitution of Psychology: (1) experience supposes judgment; (2) experience as sensation. This is the fundament of modern Psychology. Such reduction of the concept causes the crisis of scientific Psychology, turning it inadequate as a science of the person. Phenomenology (Husserl and Stein) re-proposes the centrality of experience distinguishing lived experience; passive from active synthesis; the attitude proper of the Natural Sciences from that one of the Sciences of the Spirit. Experience has the person as its center: I-in-the-world; agent due to its specific and ordered experience of the world, so that it can inhabit in it; and has the privileged experience of its own body. Keywords: experience; person; phenomenology and psychology O presente trabalho visa discutir o conceito de experiencia, com especial énfase em seu lugar na Psicología, na perspectiva oferecida pela Fenomenologia de E. Husserl e E. Stein. Assiste-se, no atual contexto cultural, á negagao da experiencia enquanto categoría gnosiológica com conseqüéncias particularmente importantes no campo da Psicología. Encontramos, freqüentemente, diversas redugoes a respeito do que seria experiencia, que terminam por negá-la: a fragmentagao do vivido, redugao a representagao ou a reagoes, negagao do sujeito da experiencia. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf Na ciencia psicológica estas redugóes determinam a delimitagao de seus objetos e métodos: redugao do psiquismo a mera passividade ao eliminar a dimensao da consciéncia; redugao da experiencia a um provar concebido análogamente a experimentagao de laboratorio; énfase na experiencia ¡mediata que dispensa, em sua formulagao, a fungao ativa do sujeito. Consideramos aqui análises de Husserl sobre experiencia, em que propóe um horizonte complexo capaz de superar aquelas redugoes, chegando - com E. Stein - a conceber urna psicología enquanto ciencia da pessoa. 1. A objetivacao do sujeito humano e o falso paralelismo experiencia externa experiencia interna A análise de Husserl sobre a historia da filosofía moderna realizada no volume A Críse das ciencias européias e a fenomenologia transcendental (1935/2002) aponta a objetivagao do sujeito humano como raiz da crise que atinge a racionalidade ocidental. Para adequadamente apreender essa objetivagao do sujeito, Husserl remonta á historia da filosofía desde Galileu - definindo-o "genio que descobre e ao mesmo tempo oculta" (p. 81) - e á sua interpretagao matematizante da natureza que permitiu o avango da ciencia moderna mas, ao mesmo tempo, veio a esconder sua raiz, isto é, o mundo-davida (1). Da concepgao galileiana derivou-se também urna conseqüéncia nefasta para o estudo da subjetividade, cujo ponto de partida passa a ser a doutrina da pura subjetividade das qualidades sensíveis - retomada por Hobbes como doutrina da subjetividade de todos os fenómenos. Os fenómenos existiriam apenas nos sujeitos; a única objetividade seria a da matemática. A natureza seria, em sua esséncia, matemática. Se o mundo intuitivo da vida é tomado como puramente subjetivo, eis que todas as verdades da vida pré-científica e extra-científica vém a perder valor. O percurso filosófico derivado desta posigao desemboca em Descartes e sua dúvida metódica. Pois na busca de um fundamento absoluto do conhecimento filosófico, Descartes chegara a colocar em questao a validade da experiencia sensível, que tradicionalmente era considerada o grau inferior de todo conhecimento objetivo, e correlativamente perde-se a conexao entre a ciencia e o mundo-da-vida, ou seja "aquele mundo que nesta experiencia e em virtude desta experiencia tem para nos sentido e ser como indiscutível certeza" (p. 104). Desse modo, sao negadas todas as formagóes de significado e de valoragao que se fundam na experiencia. A dúvida cartesiana nega a experiencia humana enquanto experiencia sensível e encarnada no corpo. A única evidencia apodítica para Descartes é o eu, mas o eu enquanto cogito, ou seja o eu concebido segundo urna distingao rigorosa entre experiencia sensível e pensamento matemático. O eu áo mundo-da-vida, o eu encarnado no próprio corpo é assim eliminado, dicotomizando subjetividade e corporeidade. Desse modo, se por um lado Descartes estabelece a fundagao subjetiva da Filosofía, por outro acaba por fundar a mens na psicología naturalista e, portanto, o objetivismo. Para Husserl, desta falsa dicotomía corpo-alma deriva o falso paralelismo entre experiencia interna e experiencia externa. Pois a experiencia que verdadeiramente leva o mundo-davida á datidade, por ser urna experiencia que especialmente no modo originario da percepgao apresenta as coisas meramente corpóreas nao foi chamada de experiencia psicológica, mas, pelo contrario, em contraposigao a ela, foi definida como experiencia externa (p. 242). Desse modo, eliminou-se inclusive a evidencia da "subjetividade" em tudo o que é próprio do mundo-da-vida e desconsiderou-se o fato de que, tudo o que é subjetivo, refere-se a urna totalidade sem cisóes. Cindidas, experiencia interna e a experiencia externa tornaram-se conceitos obscuros e, em ambos os casos, Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf r, Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ¡-A as experiencias foram pensadas como se fossem constituidas por meio de urna fungao teorética: a ciencia da natureza passou a fundamentar-se na experiencia externa, e a psicología, na experiencia interna: na primeira temos a natureza física, na segunda o ser psíquico, o ser da alma. Portanto, "experiencia psicológica" tornou-se urna expressao equivalente a "experiencia interna" (p. 242). Nesse sentido, Husserl critica inclusive o conceito de percepgao interna de Brentano como expressao destas abstragoes: "A ingenuidade de considerar estes dados da experiencia psicológica iguais aos da experiencia corporal, leva a sua coisificagao" (p. 252). Chegou-se assim, na historia da psicología moderna, a "conceber o dado interno como um átomo psíquico ou como um conjunto de átomos", as "faculdades psíquicas ou disposigoes psíquicas, análogas as forgas físicas" (p. 252), tomando como paralelos também os objetivos das duas ciencias. Rompida a unidade da experiencia, a adesao a ela tornou-se urna suposigao ilusoria. 2. Naturalismo e experiencia psíquica Segundo Husserl, a naturalizagao da experiencia elimina seu sujeito; ao passo que podemos atingir a experiencia somente a partir da apreensao do sujeito que continuamente a constituí. Em Fenomenologia e Teoría do Conhecimento (1987/2000), Husserl coloca urna "nota terminológica" (p. 159) acerca do termo experiencia. Afirma que, na linguagem comum, utilizamos o termo para indicar toda intuigao individual dada de forma original e todas as intuigoes paralelas presentificadas. Todavía, pelo predominio da atitude naturalista a linguagem comum acabou por identificar experiencia com experiencia natural, sendo que toda a experiencia das vivencias e do sujeito da consciéncia acabou por ser identificada com a experiencia psicológica naturalista da consciéncia. Portanto, se queremos utilizar o termo experiencia sem encobrir seu sujeito constituinte, devemos contrapor a experiencia natural á transcendental (2). A tal ponto que ao tratarmos da primeira, em atitude de interesse exclusivamente teorético, Husserl propoe (cf. p.130) que utilizemos a expressao "experiencia psicológica"; mas quando apreendemos o eu - o ser humano localizado no espago e que diante das coisas vive a percepgao externa délas através da percepgao interna da "auto-experiéncia" -, propoe o termo "experiencia psíquica". Nessa experiencia apreendemos um sujeito espiritual ligado a urna corporeidade natural: o sujeito pessoal, no sentido lato (3). Portanto, Husserl passa a definir a psicología como a ciencia da "psique", nao apenas de nome mas também de fato, ou seja a ciencia daquele sujeito, espiritual ou pessoal, o qual no sentido lógico é o sujeito ou substrato das multíplices qualidades psíquicas naturais, inferiores e superiores, que adquirem o nome de faculdades, disposigoes, caracteres espirituais etc.. Estas qualidades das realidades psíquicas tornam-se conhecidas através da vida consciente atual das psiques, ou seja através das multíplices vivencias da consciéncia relacionadas as suas condigoes naturais. Apreendidas nestes termos pela reflexao (ou experienciadas psicológicamente), elas tém a forma lógica de estados naturais do sujeito natural correspondente ou, se quisermos, da psique (p. 131). O grande tema da "psicología como doutrina da experiencia" (p.131) é, para Husserl, o campo da consciéncia empírica tomado nao de modo naturalista, mas através da Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ,-c apercepgao das condigóes psíquicas e das correlagóes entre sujeito psíquico e qualidades psíquicas naturais (disposigóes, caráter etc.). A psicología se ocupa, entao, de urna parte da experiencia natural, assim como a física se ocupa de outra sua parte. "Quem realiza urna investigagao nestas disciplinas se ocupa de experiencias naturais que cabem á sua parte de natureza, mas referidas á natureza inteira, como horizonte mais ampio" (p.133). A psicología poderia ainda se ocupar de um outro tipo de experiencia: a experiencia possível em geral, "um imaginar experimentar, e num certo sentido, viver a experiencia sem que essa se experimente na realidade" (p.145), um livre plasmar objetualidades, as quais, mantendo sua identidade, constituem-se através de quaseexperiéncias que se conectem urnas com as outras, quase-determiando mais precisamente seus objetos. (...) Desse modo, a experiencia possível constitui-se num terreno de ser, o das possibilidades de urna natureza (p.151). Este é o objeto da psicología eidética, concebida como psicología racional ou doutrina eidética do psíquico, podendo-se assim, "percorrer sistemáticamente as possibilidades livres e determinar conceitualmente o estilo necessário, a regra e a lei" (p.151). Assim a psicología teria condigoes de se ocupar de urna teoría psicológica do conhecimento (entendida como atividades das fungóes psíquicas) mas nao substituiría a teoría do conhecimento no sentido filosófico e transcendental. Urna tal substituigao levaría - e de fato levou - á afirmagao da impossibilidade do conhecimento, á sustentagao de "motivos céticos de ordem gnoseológica, produzindo confusóes" (p.133). 3. Experiencia como atividade do eu Em Experiencia e juízo (1948/1995), Husserl afirma que o "retorno necessário as evidencias máximas originarias da experiencia nao pode ser obtido por meio da psicología" (p. 42). Esta apenas poderia reconduzir a tipología das formas lógicas do conhecimento as relativas operagóes subjetivas, concebidas como fenómenos naturais já dados e determináveis científicamente. Naquele texto ele se ocupa específicamente da categoría experiencia do ponto de vista da teoría do conhecimento (4). Define experiencia como "a evidencia objetiva dos objetos individuáis" (p. 47) caracterizados pela "datidade evidente", no nivel antepredicativo, ou seja, anterior ao juízo. Para documentar a presenga do eu na elaboragao da experiencia que permite chegar ao conhecimento e á formulagao de um juízo, Husserl parte do mundo-da-vida: Se quisermos chegar á experiencia entendida no sentido último e originario que estamos procurando, esta nao pode deixar de ser a experiencia originaria que se dá no mundo-da-vida, a qual ainda nada sabe a respeito das idealizagóes embora seja seu fundamento necessário. Com esta volta ao originario mundo-da-vida nao se aceita simplesmente o mundo de nossa experiencia no modo em que nos é dado, mas procurase a historicidade que nele está depositada, (p.41). O retorno á origem do mundo-da-vida (5) significa voltar ao fator subjetivo por cuja agao intencional o mundo assumiu sua forma atual. Trata-se portanto de urna volta á subjetividade, mas "no sentido mais radical do que a subjetividade da psicología" (p. 44): a subjetividade transcendental. Por transcendental deve-se entender a volta as fontes últimas das formagóes cognitivas pelas quais o sujeito do conhecimento reflete acerca de si mesmo e da própria vida cognitiva. O mundo-da-vida nao é apenas um mundo de produgóes lógicas, mas também "mundo da experiencia no sentido mais concreto e cotidiano do termo" (p. 47), refere-se a um conjunto de realidades habituáis que proporciona seguranga á decisao e á agao, ou seja a seguranga daquilo que já "foi experimentado", ñas situagóes da vida (6) - "sejam estas Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf r¿ determinadas e delimitadas, ou tomadas em geral como atitudes diante da vida em seu conjunto" (p. 47). O campo onde nossas experiencias se dao é propriamente o mundo-da-vida e as experiencias mais básicas desse mundo tornam-se substrato para elaboragao de toda ordem de experiencia. No mundo da nossa experiencia a natureza é o substrato inferior que fundamenta todos os outros; o existente ñas suas feigoes simplesmente apreensíveis como natureza, é aquilo que está como fundamento e substrato para todos os outros modos de experiencia; a este aplica-se a nossa atividade valorativa e prática e permanece invariável no fundo de todas as valoragoes mutáveis e relativas acerca da sua possibilidade de ser utilizado para determinados objetivos, para que com o material dado pela natureza se constitua, caso por caso, algo diverso. (...) Como essa experiencia é originalmente dativa, a chamamos de percepgao, alias percepgao externa (p.49). Trata-se, entao de incluir na nogao de experiencia "também os específicos atos do experimentar pelo qual conseguem-se estas dimensoes habituáis" (p.47), examinado a subjetividade transcendental. Realizando a análise das vivencias, Husserl identifica um nivel de contato com o mundo caracterizado pela passividade do sujeito que sofre impacto da presenga do mundo e outro nivel em que o sujeito elabora tal impacto ao voltar-se para a presenga buscando apreendé-la em suas características, em seu significado e seu valor e apreender a vivencia de seu próprio eu nesse processo. O primeiro nivel, o da "predatidade passiva" é urna passividade originaria de dados sensíveis: por exemplo, o campo sensorial da visao como unidade articulada de dados sensíveis (cores) antes mesmo de serem apreendidos como objeto (cores de coisas concretas). Quanto ao segundo nivel, "já o perceber é urna operagao ativa do eu" (p. 65), nao é apenas um elemento passivo da consciéncia mas é fruto de sínteses dotadas de forga afetiva. Inicialmente os elementos do campo perceptivo se impoem ao eu: o estímulo do objeto intencional, dirigindo-se para o eu, o atrai com forga maior ou menor, de modo que o eu cede. Esta receptividade do eu ante o objeto, na verdade, é o grau mais baixo de sua atividade, pois o eu permite que o objeto entre e o apreende. Tanto maior é a forga afetiva do objeto, tanto mais forte é a tendencia do eu a dar-se ao objeto. Assim o eu se volta para o objeto, iniciando urna nova tendencia (eu - objeto). Desta desenvolvese o pensamento, ou cogito, que é urna tendencia ao objeto que parte do eu. Segundo Husserl, o "conceito normal de experiencia (percepgao, recordagao etc..) indica a experiencia ativa que depois se desenvolve como experiencia explicativa" (p. 72). Na mesma perspectiva, Husserl amplia a concepgao de atengao como "algo que pertence á estrutura essencial de todo específico ato do eu, (...) ou seja, o tender do eu na diregao do objeto intencional" (p. 73). Mais precisamente, trata-se de um "tender á unidade que aparece ininterruptamente através das variagoes dos modos de datidade" (p.73) em que um objeto se apresenta. Numa unidade entre atengao e percepgao, "o inicio do ato perceptivo acontece quando o eu se volta para o objeto; e realmente desde já é dar-se conta de estar junto do objeto" (p.74). Este inicio possui um horizonte intencional, "mirando para além de si num horizonte vazio que somente as realizagoes sucessivas tornarao intuitivo" (p. 75). Assim, a atengao se constituí em ato intencional que leva á exigencia de apreensao do objeto em diversas miradas, sempre dependendo do ato do eu de ocupar-se da percepgao do objeto e constituigao de sua unidade. Note-se que esse horizonte de totalidade do objeto é, para o sujeito, intuitivo. E cabe a ele decidir-se pela continuidade de apreensao do objeto a partir de sua complexidade e totalidade intuidas. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ,-7 Por exemplo: a visao de um objeto remete ao lado posterior fora da algada da vista, de modo que a tendencia em diregao ao objeto destina-se também a alcangar este lado inicialmente oculto. Deste modo, a tendencia desdobra-se na diregao de um fazer do eu, visando a produgao de sempre novas modalidades de aparigao do objeto (as imagens que fazemos deste). Passamos assim de urna imagem para outra. Trata-se de passagens livres que levam a constituir urna imagem após outra, por deslocamentos e movimentos do corpo, os quais proporcionam diferentes miradas, sendo processos subjetivos ativos diante do objeto dado e imóvel á minha frente. (7) Na tendencia que caracteriza a percepgao está inerente também um sentimento positivo e por isto podemos falar propriamente em interesse. Um sentimento de satisfagao devido ao enriquecimento do conhecimento do objeto gera a tendencia a aproximar-se cada vez mais deste, podendo também assumir a conotagao de vontade de conhecé-lo, com a proposigao de objetivos e intengoes. Neste caso, nos ocupamos de algo de modo temático. Somente este voltar-se do eu ao objeto na forma do "eu percebo" torna-o um objetomeu, um objeto de minha observagao; e torna o mesmo ato de observar, urna observagao-minha do mundo-objeto através das imagens. "O eu vive no cogito - o que dá a cada conteúdo do cogito urna relagao específica com o e¿/"(p.77). 4. Experiencia na psicología como ciencia da pessoa Ao realizar urna análise da historia da psicología moderna, Husserl, em Crise das ciencias européias e a fenomenologia transcendental (1954/2002), observa que a psicología fracassa por nao realizar a "indagagao acerca da subjetividade concreta e plena (...), a reflexao radical e livre de preconceitos, que abriría necessariamente á dimensao transcendental subjetiva" (p.235). Husserl define em pormenores a atitude indagadora que seria necessária para constituigao de urna psicología científica: interrogar originariamente o qué e o como da psique das pessoas, o seu modo de ser no mundo, no mundo-da-vida, o modo em que ela anima os corpos próprios, os modos pelos quais elas se localizam na espago-temporalidade, o modo em que cada urna vive psíquicamente enquanto tem consciéncia do mundo em que vive e no qual é consciente de viver; o modo em que cada urna experimenta o "seu" corpo nao apenas como corpo singular mas também como corpo próprio (sistema dos órgaos que ela movimenta em seu agir), o modo em que ela intervém no mundo circunstante do qual é consciente etc. (p. 235). Sem urna "análise radical e realmente livre de pressupostos, é impossível apreender o que é propriamente essenciaf (p.236) da psique de urna pessoa, do elemento psíquico do mundo-da-vida, sendo portanto impossível apreender o substrato último e auténtico de urna ciencia da pessoa. Ao invés, adotado um conceito de psique fundamentado no dualismo cartesiano, a psicología concebeu o seu tema próprio - a psique e a pessoa - como algo real no mesmo sentido da natureza corpórea, formulando-se nos termos de urna ciencia natural (8). O caráter de cientificidade, no entanto, nao foi garantido pela adotada empiria metódica rigorosamente psico-fisicalista. Nao partindo de urna concepgao originaria de psique, tomou-se urna abstragao como objeto natural. Esta génese histórica da psicología moderna impediu a criagao de urna psicología como ciencia da psique, originando continuas crises da psicología científica. A atitude temática naturalista considera o homem como extensao, como ampliagao da natureza determinável no tempo e no espago. Já a atitude pessoal é definida como o direcionamento do interesse para os homens enquanto pessoas em suas agoes e paixoes, sempre voltadas para o mundo, sempre em sua comunidade de vida, em relacionamento, Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf en pertencentes a um único mundo circunstante do qual tém consciéncia. Assim caberia á psicología lidar com o "problema de como as pessoas se comportam em seu agir e padecer, de como elas sao motivadas em suas agoes pessoais do perceber, do recordar, do pensar, do avahar, do planejar, do amedrontar-se, do defender-se, do atacar etc." (p. 312). A ciencia da subjetividade humana toma em análise a pessoa que se dá conta do mundo que se Ihe apresenta e Ihe fornece motivagoes, assim como examina o mundo-da-vida apreendido pela pessoa e por ela é valorado. Desse modo, compreende todo o mundo espiritual, tematiza todas as pessoas e seus géneros, todas as operagoes pessoais em suas formagoes culturáis. A ciencia da pessoa aborda um eu no mundo circunstante e por isso no mundo, por ter consciéncia dele" (p. 318), podendo agir por ter urna experiencia bem determinada e ordenada do mundo, podendo habitá-lo. Diversamente das ciencias naturais - para quem o espirito é algo que se soma ao corpo - a ciencia da pessoa volta-se ao ser pessoal que tem o corpo-próprio como objeto privilegiado de seu mundo-da-vida. Edith Stein, em A estrutura da pessoa humana (1994/2000) indica um delineamento para urna psicología enquanto ciencia da pessoa: Se o conhecimento é a compreensao espiritual de um ente, devemos, entao, dizer que conhecemos a característica peculiar de um ser humano; ela nos fala através de múltiplas formas de expressao, ñas quais a "interioridade" se "mostra" e nos compreendemos essa linguagem (p.58). Os sinais de expressao da interioridade localizáveis no mundo-da-vida e nos objetos culturáis possibilitam que outros acessem a individualidade em questao. Para o conhecimento da pessoa é necessário reconhecer tais tragos expressivos e reconduzi-los as suas expressoes origináis. Descrigao e interpretagao (refletir sobre expressoes pessoais) formam urna "escola da compreensao" que leva á familiaridade com os seres humanos e á introdugao á especificidade individual (9). Penetrando na realidade concreta individual e investigando as relagoes psíquicas para compreendélas, até as profundidades últimas alcangáveis pelo olhar humano, chega-se ao ponto em que essas nao sao mais compreensíveis por si mesmas, nem a partir da relagao com o mundo circunstante, ficando evidente a agao de forgas espirituais (p.59). Também estas - as forgas espirituais - sao ámbito da auténtica psicología científica, nao se tratando de apenas descrever a individualidade humana, mas de elaborar um conhecimento do ser humano enquanto tal, como genuino principio de urna ciencia. A humanidade concreta, assim como se apresenta na realidade da vida (...) tem um logos, urna lei constitutiva ou urna estrutura de ser universalmente compreensível que pode ser evidenciada a partir do que é dado concretamente. (...) Partindo da realidade da vida concreta e das formas históricas, esse conhecimento afirma o ser humano como espirito, e aquilo que Ihe é essencial enquanto pessoa espiritual (p.60). A pessoa experimenta a existencia e a humanidade nos outros mas também em si mesma. Em tudo o que experiencia, faz também experiencia de si mesma. Esta experiencia é totalmente diferenciada da experiencia que faz de tudo mais. "A percepgao exterior do próprio corpo nao é a ponte para a experiencia do próprio eu" (p.69). Com a percepgao da interioridade apreendo o corpo vivo e meu próprio eu nele, "o que implica que eu seja consciente do meu eu e nao apenas consciente de meu corpo vivo, mas consciente de todo meu eu corpóreo-animado-espiritual" (p.69-70). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ,-g Conclusao Husserl e Stein documentam que na experiencia encontramos realidades mistas: a vida espiritual se apresenta como processo psíquico; tudo o que é psíquico nos aparece ligado com o ser material; as formagoes espirituais objetivas, por sua vez, nos aparecem como fundamentadas no ser da natureza. Por outro lado, todo ser natural pode se tornar portador de um sentido espiritual. Por isso nao nos maravilhemos se ñas ciencias empíricas orientadas para os objetos da experiencia - se entrelagam métodos diversos a serem diferenciados. (Stein, 1922/1999) O reconhecimento da complexidade própria do ser humano - entendida fenomenologicamente como realidade mista que exige diversas modalidades de abordagem - permite a superagao dos reducionismos tao freqüentes na psicología contemporánea. Por um lado, pode-se superar a redugao naturalista que toma em consideragao somente processos mecánicos - neuro-fisiológicos, comportamentiais ou psicológicos - abolindo o sujeito da experiencia. Por outro lado, temos condigoes de criticar a redugao da experiencia a puro processo simbólico concebido desvinculado de um sujeito pessoal. Encobrindo a agao do eu, tal postura cultural impossibilita reconhecer o fundamento do sistema simbólico no mundoda-vida, a relagao do mundo com a pessoa e a percepgao do próprio eu por parte dos sujeitos humanos concretos. Chega-se assim a negar a possibilidade mesma do conhecimento de si e do mundo. Paradoxalmente, o sujeito humano figurado como fonte última e abstrata do significado e do ser é contemporáneamente afirmado como incapaz de apreender a si mesmo e ao mundo como existente além de si mesmo. Esvaziado de sua esséncia, o sujeito mergulha no niilismo e no ceticismo. É por este motivo que a experiencia mesma passa a ser abandonada e substituida por fragmentos de reagoes mecánicas ou por meras representagoes simbólicas. Referencias Ales Bello, A. (2004). Fenomenologia e ciencias humanas: Psicología, historia e religiao (M. Mahfoud & M. Massimi, Eds. e Trads.). Bauru: Edusc. Husserl, E. (1995). Esperienza e giudizio: Ricerche sulla genealogía de/la lógica (L. Landgrebe, Ed.; F. Costa & L. Samoná, Trads.). Milano: Bompiani. (Original publicado em 1948) Husserl, E, (2000). Fenomenologia e teoría de/la conoscenza (P. Volonté, Trad.). Milano: Bompiani. (Original publicado em 1987) Husserl, E. (2002). La crisi de/le scienze europee e la fenomenologia transcendental: Per un sapere umanistico (E. Paci, Pref.; E. Filippini, Trad.). Milano: Net Tascabili. (Original de 1935 e publicado em 1954) Husserl, E. (2003). Fenomenologia e psicología (A. Donise, Ed. e Trad.). Napoli: Filema. (Original de 1917, publicado em 1987). Stein, E. (1999). Psicología e scienze de/lo spirito: Contributi per una fondazione filosófica (2a ed.; A. Ales Bello, Apresent; A. M. Pezzella, Trad.). Roma: Cittá Nuova. (Original publicado em 1922) Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/marifoudmassimi02.pdf ¿r, Stein, E. (2000). La struttura della persona umana (A. Ales Bello, Present; M. D'Ambra, Trad.)- Roma: Cittá Nuova. (Original de 1932-33, publicado em 1994) Notas (1) Para Husserl, isto é um "contra-senso, pois é contrario á esséncia própria dos corpos e das almas que se dá na experiencia do mundo-da-vida e que determina o sentido auténtico de todos os conceitos científicos. É a experiencia real, anterior as versóes teoréticas, que determina originariamente o sentido do que é dado física e psíquicamente no mundo-da-vida e posteriormente se torna objeto das ciencias exatas" (ídem, p. 236). Pois, "o que é experimentado realmente, é o mundo que simplesmente é, antes de qualquer filosofía e teoría, as coisas que sao, as pedras, os animáis, os homens. Tudo isto é experimentado na simples vida: o mundo está aqui sendo, ou simplesmente já foi etc." (ídem, p. 242). (2) De fato, "o significado da expressao dimensao transcendental é o de estrutura do sujeito humano na sua universalidade" (Ales Bello, 2004, p. 95). (3) Em Fenomenologia e Psicología Husserl já apontara que "um ego cogito, com o qual ele [Descartes] concluí demasiadamente rápido, subentende ego mens sive animus sive intelectus, a personalidade empírica, o sujeito das qualidades caracteriais, das disposigóes. Ele nao submeteu a alma, o espirito no sentido natural á redugao metódica, e assim fica compreensível que Locke e o psicologismo empírico sucessivo, até o presente, interpretem a evidencia do cogito, ou, como melhor deveria se chamar, a evidencia da reflexao sobre o cogito, como evidencia da experiencia psicológica de si" (p. 80). Mas realizando a redugao fenomenológica radical "o residuo nao é um nada, mas a plena experiencia vivida" (Husserl, 2003, p.82). (4) Cf. p. 42 e p. 69. (5) Este retorno deve acontecer em dois níveis: 1) do mundo já dado ao mundo-da-vida originario; e 2) volta problematizante do mundo-da-vida as operagóes subjetivas das quais este se origina. O mundo-da-vida, com efeito, é urna formagao que pode ser estudada a partir de seu modo de constituigao. Para isto cooperam nao apenas as operagoes lógicas, mas também "as experiencias práticas e sentimentais, a experiencia do querer, do avahar e do agir na vida prática" (p. 45) incluindo os horizontes inerentes a elas, bem como "todas as operagoes da experiencia pelas quais se alcanga a constituigao do tempo e do espago do mundo etc." (p. 45). (6) "Este sentido concreto cotidiano e familiar da experiencia indica, portanto, o comportamento da agao prática e da avaliagao mais do que o comportamento de julgar e conhecer" (Husserl, 1948/1995, p. 47). (7) No apéndice II , parágrafo 9, de A Crise das ciencias européias e a fenomenologia transcendental, Husserl (1954/2002) afirma que na vida da experiencia pré-científica, estamos mergulhados no rio dos dados sensíveis sendo que na evidencia ingenua da experiencia temos a certeza de conhecer algo como idéntico a si mesmo, vendo-o, tocando-o, apalpando-o, escutando-o e confirmamos esta sua presenga como objetiva e real pela reprodugao da experiencia. Mas este conhecimento é sempre aproximado e portanto seu horizonte está sempre aberto ao desconhecido. O que implica a constante possibilidade da retificagao, especialmente a partir de nossa experiencia acomunada a de outros homens. (8) "O erróneo principio de querer considerar os homens (...) como realidades duplas, como uniao de duas realidades de géneros diferentes e mesmo assim iguais em seu sentido, e portanto de considerá-los (...) numa dimensao causal natural, como os corpos Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). A pessoa como sujeito da experiencia: contribuigoes da fenomenologia. Memorándum, 14, 52-61. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf ¿, espago-temporais, suscitou a presumida obviedade de um método definível em termos análogos aqueles das ciencias naturais". (Husserl, 1954/2002, p. 241). (9) Em Psicologia e ciencias do espirito, Stein (1922/1999) define a psique como "o conjunto das características peculiares que diferenciam singularmente" homens e animáis (p. 42) e define o espirito como "um emergir de si mesmos, urna abertura numa dúplice diregao: ao mundo objetivo que é experimentado e á subjetividade alheia junto á qual experienciamos e vivemos" (p. 311). A pessoa"é o sujeito da vida espiritual, centro de agoes qualitativamente determinado em modo único em seu género" (p. 323). Notas sobre autores Miguel Mahfoud é Doutor em Psicologia Social pela Universidade de Sao Paulo, professor associado do Departamento de Psicologia na Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil. Suas pesquisas referem-se as áreas de memoria, cultura e subjetividade. Contato: [email protected] Marina Massimi é Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de Sao Paulo, professora titular junto ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto; especialista em historia da psicologia e dos saberes psicológicos. Contato: [email protected]. Data de recebimento: 16/12/2007 Data de aceite: 13/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/mahfoudmassimi02.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿~ Essere grezzo e hyletica fenomenologica: l'ereditá filosófica di " I I visibile e l'invisibile" The wild Being and the phenomenological hyletic The philosophical inheritance of "The visible and the invisible" Angela Ales Bello Pontificia Universitá Lateranense Italia Riassunto L'articolo confronta i risultati della ricerca filosófica di Merleau-Ponty (specialmente Topera // visibile e l'invisibile) e la proposta di Husserl. Mostra che Merleau-Ponty coglie l'intenzione della fenomenología husserliana e si pone sulla scia di Husserl da diversi punti di vista: nell'uso del linguaggio e nell'uso dei concetti. Discute il rapporto fra I' hyletica fenomenologica husserliana e la proposta teorética di Merleau-Ponty, individuando tre punti di convergenza, riconducibili al grande tema del visibile e dell'invisibile: 1) l'analisi husserliana del corpo con le sue dimensioni tattili e visive, che corrisponde al tema merleau-pontiano della "carne", 2) il rimando alia dimensione hyletica con la sua intenzionalitá impulsiva, che trova echi in quella dell'Essere selvaggio, 3) la ricerca di una nuova ontologia che accomuna i due pensatori. Conclude che si tratta di esaminare il contenuto delle due ontologie per coglierne le affinitá ed anche le differenze. Parole Chiave: hyletica; fenomenología husserliana; Merleau Ponty. Abstract The article compares the results of Merleau-Ponty's philosophical research (specially the work The visible and the invisible) with Husserl's proposal. It shows that Merleau-Ponty apprehends Husserl's phenomenological intention and puts himself in the same path of Husserl in many points of view: in the use of language and in the use of concepts. It discusses the relationship between Husserl's phenomenological hyletic and MerleauPonty's theoretical proposal, distinguishing three convergent points, connect to the big theme of the visible and the invisible: 1) Husserl's analysis of the body with its tactile and visible dimensions, that corresponds to Mearleu-Ponty's theme of the "flesh", 2) The connection with the hyletic dimensión in its impulsive intentionality that finds echoes in the intentionality of the wild Being, 3) the search of a new ontology that unites the two thinkers. It concludes that the effort is to examine the contení of the two ontologies to harvest the similarities and the differences. Keywords: hyletic; Husserl's phenomenology; Merleau-Ponty. Se é vero che la filosofía, non appena si dichiara riflessione o coincidenza, pregiudica ció che trovera, é necessario che ancora una volta essa riprenda tutto, respinga gli strumenti che la riflessione e l'intuizione si sonó date, s'installi in un luogo in cui esse non si distinguano ancora, in esperienze che non siano ancora state "elabórate", che ci offrano contemporáneamente, mescolati, il "soggetto" e I' "oggetto", l'esistenza e l'essenza, e forniscano quindi alia filosofía i mezzi per ridefinirli (Merleau-Ponty, 1993, p. 147). In quella parte, che Merleau-Ponty é riuscito a portare a compimento, del libro // visibile e l'invisibile - rimasto interrotto a causa della sua morte - l'autore affronta e sviluppa un único tema fundaméntale: che cosa é l'interrogazione filosófica. L'interlocutore principale Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿~ in questo silenzioso dialogo é Descartes, esponente della filosofía riflessiva. Si pone súbito, allora, la questione riguardante la funzione della riflessione. Se Merleau-Ponty si domanda, in ultima istanza, quale sia il senso e il ruólo della filosofía, deve constatare che questo tipo d'indagine non puó prescindere dalla riflessivitá. Nello stesso tempo si rende contó che il rischio della riflessivitá é la chiusura della filosofía su se stessa, l'avvitamento del pensiero che perde l'altro da sé. Di questo paradosso é consapevole Merleau-Ponty. Egli lo esplicita, infatti, scrivendo: «A prima vista questo movimento riflessivo sará sempre convincente: in un certo senso s'impone, é la veritá stessa, e non si vede come la filosofía potrebbe farne a meno» (1993, p.57). E' chiaro che il momento del pensare é un momento fundaméntale. E' chiaro anche che l'autocoscienza, di cui parla Descartes, é un aspetto umano imprescindibile, é ció che é auténticamente umano, ció che distingue l'essere umano da tutti gli altri esistenti. E' comprensibile anche che si consideri la riflessivitá e l'autoriflessivitá come ció che vale di piü in assoluto. Merleau-Ponty lo riconosce, quando afferma che é proprio la comprensione dall'interno di tutto ció che io vivo che : « ...fará sempre della filosofía riflessiva non solo una tentazione, ma anche un cammino che si deve seguiré » (idem). A questo punto, pero, la domanda é radicale: si tratta di appurare se questo tipo di indagine, cosí come si é tradizionalmente configurata, riesca veramente a cogliere il légame "natale" fra me, che percepisco, e ció che percepisco. In questa espressione "natale" si coglie l'intenzione profonda dell'autore, direi la sua aspirazione. Perché di un'aspirazione si tratta, quella di trovare un luogo nuovo per un nuovo inizio con una nuova modalitá. E il primo "luogo" non é il pensiero, ma la "percezione" che mi mette in contatto con il mondo. Si tratta, allora, di muovere proprio dalla nozione di mondo. Si é detto che dietro la filosofía riflessiva si trova Descartes, ma, in realtá, si trova anche Kant. La prova di ció é, secondo Merleau-Ponty, che nell' Analítica - ci si riferisce qui alia Critica della Ragion pura -, Kant muove dal presupposto di un mondo possibile. In tal modo, l'analisi riflessiva cade in un'ingenuitá, perché, per costituire il mondo, si presuppone la nozione di mondo, in quanto precostituito. Certamente, anche Kant riconosce la validitá dell'irriflesso, dichiara di iniziare da esso, ma, allora, é necessario andaré fino in fondo su questa via, metiere in crisi la filosofía riflessiva e stabilire una relazione reciproca fra la riflessione e l'irriflesso, fra originario e derivato, fra condizione e incondizionato (1993, p. 60). Per usare i termini dell'autore fra fede percettiva e riflessione. II filosofo che sembra essere riuscito a cogliere e superare il punto debole della filosofía riflessiva, secondo Merleau-Ponty, é Husserl. La correlazione o, addirittura, la coincidenza fra riduzione trascendentale e riduzione eidetica, proposta da Husserl nel § 34 delle Meditazioni cartesiane, é interpretata da Merleau-Ponty come un nuovo modo di intendere la riflessione: «Riflettere non é coincidere con il flusso dalla sua origine fino alie sue ramificazioni estreme, é far scaturire dalle cose, dalle percezioni, dal mondo e dalla ercezione del mondo, sottoponendoli ad una variazione sistemática, alcuni nuclei intelligibili che le resistano, muoversi dall'uno all'altro in modo che l'esperienza non smentisce, ma che ci dá solo i suoi contorni universali» (1993, p. 70). La fenomenología é, dunque, definita come una superriflessione, che, da un lato, si pone la questione della genesi del mondo esistente, ma, dall'altro, anche della genesi deN'idealizzazione riflessiva. In tal modo, Husserl affronta il problema eluso dall'atteggiamento riflessivo, stabilendo una correlazione tra spirito e mondo, che per lui sonó, paradossalmente si potrebbe aggiungere, troppo perfettamente coestensivi "perché l'uno possa essere preceduto dall'altro e troppo distinti perché l'uno possa involgere l'altro" (1993, p. 71). In tal modo, Merleau-Ponty coglie veramente l'intenzione della fenomenología husserliana, secondo la quale non é possibile pensare ad una preesistenza del mondo a me, perché il mondo é sempre un mondo per me; ma non si tratta di una chiusura solipsistica, al contrario, «il mondo privato che indovino all'origine dello sguardo altrui non é tanto privato da impedirmi che, nello stesso tempo, io ne divenga il quasispettatore» (idem). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿. In margine al testo che si sta esaminando, intitolato, appunto, "Riflessione e Interrogazione", scrive l'autore che intende «mostrare che la riflessione sopprime l'intersoggettivitá». Per mostrare ció, é necessario ritornare sulla nozione di "mondo" e indagare sulla sua preesistenza, intendendola, pero, nel senso che c'é un único significato e un'unica idealitá del mondo, pur essendo le nostre vite non commensurabili. Al livello del significato, la mia percezione e la percezione che un altro ha del mondo sonó la stessa e, in tal modo, ...con la correlazione di principio del pensiero e dell'oggetto di pensiero, si stabilisce una filosofía che non conosce né difficoltá, né problemi, né paradossi, né capovolgimenti: una volta per tutte, io ho coito in me, con la pura correlazione di colui che pensa e di ció che egli pensa, la veritá della mia vita, che é anche quella del mondo e quella delle altre vite (Merleau-Ponty, 1993, p. 72). Sembra, allora, che l'aspirazione si sia realizzata: si é giunti ad una filosofía in cui la riflessione é, in senso husserliano, riflessione speculare, sguardo. Merleau-Ponty a questo punto scrive in margine che avrebbe voluto dedicare un parágrafo alia riflessione nel senso di Husserl. In realtá rimangono solo poche righe, ma molto eloquenti, perché il modo di intendere la riflessione da parte del fenomenologo tedesco si distacca dal "collegante" kantiano, che rintraccia solo le condizioni di possibilitá, e «trova aH'origine di ogni riflessione una presenza a sé massiccia, il Noch ¡m Grlff della Ritenzione e, attraverso esso, I' Urimpression, e il flusso assoluto che li anima. Questa riflessione presuppone la riduzione della Natura alie unitá immanenti» (idem, p. 73). Si tratta, perianto, di procederé alia «Tematizzazione deN'immanenza psicológica, del tempo interno» (idem). Giá da queste indicazioni si puó constatare che nella ricerca di una nuova dimensione Merleau-Ponty si pone sulla scia di Husserl da diversi punti di vista: nell'uso del linguaggio e nell'uso dei concetti. Movendo da domande quotidiane e banali quali: dove sonó? Che ora é? Egli osserva che é necessario indagare che cosa siano lo spazio e il tempo, passare, cioé, dal piano dei "fatti" a quello dell'essenze, ma, giunti a questo punto, si é percorsa solo una parte del cammino che deve essere prolungato fino alia domanda riguardante il rapporto fra spazio e tempo e la loro essenza. Ció significa passare dallo spazio e dal tempo, come "esseri", all'Essere. Sembrerebbe questa un'indagine metafisico-ontologica e in parte lo é, anche se il termine Essere, benché scritto con la maiuscola, perda il carattere di Assoluto che ha avuto nella tradizione. Tuttavia, esso mantiene una sua assolutezza, collocandosi al di la, al di sotto dei fatti e delle essenze e aprendo una nuova prospettiva ontologica. La novitá sta nell'aggettivo che lo designa, "selvaggio" o "grezzo". E credo che per comprendere questa novitá sia necessario cércame l'origine non esplicita, bensl remota nella scoperta della dimensione passiva proposta da Husserl. Nell'opera che si sta esaminando, il riferimento a questo aspetto fundaméntale dell'indagine husserliana c'é e non c'é. Ci sonó luoghi in cui appare la ripresa di alcuni suggerimenti provenienti dalle opere di Husserl, altri in cui le espressioni sonó cosí diverse o originali che sembra essere lontani da lui. Tuttavia, si puó supporre che l'intera argomentazione sia ispirata alia lettura dei testi husserliani, soprattutto ad alcuni manoscritti. Una prova di ció si trova nelle "Note di lavoro" pubblicate come appendice al testo giá elaborato, in particolare in un appunto del febbraio del 1959, riguardante il primo abbozzo dell'ontologia. II progetto é chiaro: si tratta di stabile una continuitá fra i risultati della Fenomenología della percezione e la nuova ontologia e, piü precisamente, dello "Svelamento dell'Essere selvaggio o grezzo mediante il cammino di Husserl e della Lebenswelt, in cui si viene a sboccare" (idem, p. 200) e ritorna la domanda «Che cosa é la filosofía? II dominio del Verborgen (cp e occultismo)» (idem). II termine Lebenswelt \n Husserl rimanda ad un territorio che comprende, al suo interno, una complessitá che richiede una paziente analisi, contenendo in se stesso tutte le Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf (- operazioni e sedimentazioni culturali e, nello stesso tempo, la sfera precategoriale che consente di desenvere la genesi di quelle formazioni. Di ció é consapevole Merleau-Ponty: infatti, a suo avviso, l'indagine si deve svolgere su due versanti, quello della descrizione essenziale dei fenomeni e quello della loro genesi precategoriale. Perianto, la risposta che si cerca é «...piü in alto dei "fatti" e piü in basso delle "essenze", é nell'Essere selvaggio in cui essi erano indivisi e in cui, dietro o sotto le scissure della nostra cultura acquisita, continuano ad esserlo» (1993, p. 200) e questo é veramente il programma husserliano, anche se condotto con una modalitá peculiare che si cercherá di ¡Ilustrare. Dico súbito che quello che determina la differenza fra le due posizioni é l'atteggiamento critico assunto da Merleau-Ponty nei confronti della riduzione trascendentale; tuttavia, é necessario approfondire il significato della riduzione stessa, per cogliere le eventuali possibili convergenze. Un primo motivo di vicinanza fra i due pensatori é rintracciabile nell'accettazione sostanziale, da parte di Merleau-Ponty, del § 34 delle Meditazioni Cartesiane di Husserl, in cui é trattato il rapporto fra la riduzione eidetica e quella trascendentale. Si tratta, quindi, in primo luogo, del tema delle essenze, tema considerato imprescindibile da Merleau-Ponty. Husserl scrive nel parágrafo citato: Se noi dunque pensiamo la fenomenología formata puramente secondo il método eidetico come scienza intuitiva a priori, tutte le ricerche di essenze non sonó altro che rilevazioni dell'universale ego trascendentale in genérale, che contiene in sé tutte le puré variazioni di possibilitá del mió io esistente di fatto e quest'io stesso come possibilitá (Husserl, 1931/1960, p. 120). Pur non accettando la validitá della sfera trascendentale, credo che Merleau-Ponty si interessi all'operazione che conduce al trascendentale. In fondo, si tratta dell'operazione regressiva che va dal fatto all'essenza, da un lato, ma, dall'altro, ad un essere grezzo. Particolarmente significativo é, a mió avviso il seguente brano che si trova nel capitolo dedicato a "Interrogazione e intuizione": Quando la filosofía cessa di essere dubbio per farsi svelamento, esplicitazione, in quanto si é staccata dai fatti e dagli esseri, il campo che essa dischiude é di fatto si di significati 0 di essenze, ma che non sonó autosufficienti, che manifestamente si riferiscono ai nostri atti di ideazione e, grazie a questi, sonó prelevati da un essere grezzo in cui si tratta di ritrovare alio stato selvaggio i corrispondenti delle nostre essenze e dei nostri significati (Merleau-Ponty, 1993, p. 130). E' proprio qui che Merleau-Ponty coglie il senso delle proposta husserliana nel movimento che va dall'alto al basso e dal basso in alto. Ció induce a constatare che il percorso puó essere cosí delineato: 1) la ricerca filosófica é un processo di disvelamento; 2) essa muove dai fatti per esplicitarne i significati o le essenze; 3) le essenze sonó nostri atti di ideazione che rimandano non direttamente ai fatti, ma in senso fenomenologicotrascendentale ad una dimensione "grezza" o "selvaggia". E' opportuno, allora, fermarsi, in primo luogo ad esaminare la presa di posizione del fenomenologo francese sul tema dell'essenza. La questione delle essenze 1 due livelli dell'alto e del basso si delineano con riferimento alia dimensione esperienziale del visibile, che é l'Essere attuale, di cui le essenze costituiscono le varianti possibili. Ma, poiché l'ideazione é un fatto importante e ineludibile, per diría con Husserl, si puó muovere dall'ideazione stessa per domandarci che cosa sia e come si determini e, quindi, "scendere" verso l'Essere grezzo per poi risalire, con maggiore consapevolezza, da quest'ultima dimensione verso l'alto, verso l'ideazione. II visibile, dal quale Merleau-Ponty prende le mosse, apre verso l'invisibile che, mi pare di capire, diverge in una doppia direzione: verso l'essenza, l'idealitá, e verso la regione selvaggia. Ma, nonostante la divaricazione, non c'é una separazione, tutto é unito e connesso fino al punto che egli considera l'ambito in cui viviamo «l'ambito dell'esistenza e dell'essenza grezze» (1993, p. 135), definizione che sembra paradossale se riferita alie Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿¿ essenze, ma con la quale si intende diré che fatticitá e idealitá sonó indivise. Si tratta, piuttosto, di un'architettura, di una stratificazione, di livelli d'essere in cui noi siamo sempre immersi, immersi come corporeitá. II movimento non puó essere quello del decentramento dell'io in una realtá "meta", una Wesensschau senza luogo e senza tempo, perché anche i pensieri sentono la pressione dello spazio e del tempo e «dell'Essere che essi pensano» (ídem, p. 134). Questa sembrerebbe essere una critica alia "visione d'essenza" di cui parla Husserl, ma, al contrario, si tratta di riconoscere che «lo stesso Husserl non ha mai ottenuto una sola Wesensschau che poi non abbia ripresa e rielaborata, non per smentirla, ma perfarle diré ció che dapprima essa non aveva detto completamente» (idem, p. 135). Se distinguiamo le due riduzioni, che Husserl, in veritá, tiene sempre connesse, pur dando a ciascuna di esse una sua specificitá, notiamo che l'esigenza husserliana di accentuare fortemente il ruólo gnoseologico della visione d'essenza nasce daN'insufficienza, da lui messa in evidenza, della chiusura positivista in un mondo puramente fattuale. La grande battaglia, che egli ingaggia con l'atteggiamento naturalistico, lo conduce ad evidenziare che anche chi ritiene che le scienze siano l'unica fonte valida di conoscenza é costretto ad usare giudizi e principi formali, tratti dalla lógica fórmale. Perianto, ogni scienza pienamente sviluppata é, secondo Husserl, «vincolata all'essenza de\V oggettua/itá in genérale » (Husserl, 1977/2002, p. 25) sia dal punto di vista ontologico-formale (lógica fórmale, aritmética, analisi matemática, ecc) sia dal punto di vista eidetico-materiale, perché «ogni veritá eidetica relativa alie essenze puré ivi incluse deve fornire la legge cui é vincolata quella data singolaritá di fatto, come ogni altra possibile singolaritá in genérale» (idem). Come si vede, il légame con la fattualitá é ritenuto necessario da parte di Husserl, soprattutto nel campo delle scienze empiriche, che solo apparentemente possono essere considérate prive del riferimento a ció che é essenziale. Merleau-Ponty comprende molto bene il légame che Husserl aveva individuato fra la fattualitá e l'eidetica; meno valida rispetto all'intenzione di Husserl, come si evince nel testo ora indicato delle Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica, é l'altra sua affermazione, secondo la quale la variazione eidetica é frutto dell'immaginazione e della visione solitaria del filosofo «mentre essa é il supporto e il luogo stesso di quella opinio communis che chiamiamo scienza» (Merleau-Ponty, 1993, p. 135). Riguardo alia prima parte dell'obiezione, si puó notare che nel § 4 del I libro delle Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica Husserl collega l'ideazione, che é intuizione d'essenza, alia libera fantasía, la quale fornisce la possibilitá di foggiare variazioni rispetto alie figure spaziali, agli avvenimenti sociali, alie melodie e cosí via; non si tratta di attribuire l'ideazione alia fantasía, piuttosto, di un lavoro in comune fra fantasía e intuizione intellettuale, che non si riduce, come intende Merleau-Ponty, aN'immaginazione del filosofo, ma é presente in tutti gli esseri umani, appartenente, perianto, alia nostra struttura trascendentale, che il filosofo si limita a porre in evidenza. Per quanto riguarda il rapporto fra variazione eidetica e scienza, si é giá indicato che é proprio Husserl ad osservare che le scienze si fondano sulla visione d'essenza e anzi, egli aggiunge: De facto, il positivista rifiuta le conoscenze essenziali, solo quando riflette 'filosóficamente' lasciandosi ingannare dai sofismi dei filosofi empiristi, ma non quando, nell'atteggiamento nórmale delle scienze naturali, pensa e giustifica le sue asserzioni come ricercatore scientifico della natura. In quest'ultimo caso si lascia largamente guidare da evidenze eidetiche (Husserl, 1977/2002, p. 53). Quindi, Husserl sarebbe pienamente d'accordo con il pensatore francese e, perianto, l'obiezione di quest'ultimo non é valida. Passiamo ora ad esaminare la seconda riduzione: quella fenomenologico-trascendentale. Anche in questo caso si puó notare una certa vicinanza, ma, come si accennava sopra, Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿~ piü nei contenuti che non nel procedimento metodológico. In fondo, la grande differenza risiede nel fatto che Merleau-Ponty non accetta la scoperta della dimensione coscienziale con i suoi Erlebnisse (1993). Tuttavia, egli é d'accordo con Husserl nell'individuare uno stretto rapporto fra passivitá e attivitá nella conoscenza, perché ció consente alia filosofía stessa di tener contó della veritá e dell'essere, ma anche del mondo e quindi, sostanzialmente, a considerare necessaria la regressione fenomenologica, lo scavo che conduce alia Lebenswelt, ad una sfera passiva, grezza, che é scoperta movendo dalla corporeitá e dalle sue cinestesi, come direbbe Husserl, dalla carne, come dice MerlauPonty. Punto questo di straordinaria coincidenza, ma anche di lontana, come cercheró di indicare. Si tratta, allora, di entrare nella sfera della passivitá hyletica e stabilire un rapporto con la dimensione dell'Essere grezzo o selvaggio. Che cosa significa "corpo vívente": uno sguardo dall'interno L'ingresso nella dimensione hyletica, per Husserl, avviene attraverso la corporeitá; altrettanto accade per l'ingresso nell'Essere grezzo da parte di Merleau-Ponty. Allora, é questa che é necessario esaminare. Iniziamo da Husserl. Una tentazione alia quale non si riesce a resistere é quella di porsi di fronte al corpo per analizzarlo quasi girando "intorno" ad esso, come fosse un oggetto esterno. E' chiaro che la filosofía occidentale é nata proprio grazie alia possibilitá che ha l'essere umano di "oggettivare", cioé di trattare tutto ció che ci si presenta come oggetto di riflessione e di indagine. E questo é, in effetti, realizzabile. Anche l'essere umano é stato oggettivato, piü o meno esplicitamente; si é coito fin dalla speculazione greca che egli o ella diremmo oggi - si trova in una situazione paradossale, per usare l'espressione cara a Husserl (1), di essere contemporáneamente colui che fa l'analisi e colui che la subisce. I termini che ormai usiamo come consolidati tradizionalmente per indicare tale situazione, quelli, cioé, di soggetto e oggetto, debbono essere esplicitati e la loro esplicitazione consente di comprendere che l'essere umano é inteso come qualche cosa su cui é possibile esercitare la riflessione, quindi ob-jectum e come luogo dal quale inizia la riflessione stessa, luogo profondo che si trova "sotto", nel senso che é all'origine di tutte le sua capacita e determinazioni, il sub-jectum, appunto. Tale definizione ha nella tradizione filosófica, in particolare da Boezio, il senso di una realtá meta-fisica: infatti con l'espressione subjectum si traduce il termine aristotélico di upokeimenon, cioé il núcleo profondo soggiacente a tutte le determinazioni contingenti. II termine soggetto, ormai entrato nel linguaggio filosófico, non si riferisce sempre ad un'entitá che possiede tale spessore. Lo troviamo anche in Kant e in Husserl, i quali non muovono da una definizione metafísica. Ma entrambi sonó interessati a penetrare in questa realtá per sondarla, analizzarla, sezionarla si potrebbe aggiungere, riconoscendone il ruólo attivo, perché ció che sta al fondo di tutte le determinazioni é, anche per la filosofía classica, non un momento di assoggettamento o di passivitá, come potrebbe far ritenere il termine per la sua assonanza con ció che é "assoggettato", al contrario un centro di attivitá. Ció sará sempre piü tenuto presente e specificato nella speculazione moderna che si impegna, come é stato detto, in un'opera di penetrazione analítica. In questo contesto é opportuno inseriré la posizione della fenomenología classica, la quale procede ad uno scavo su'igeneris movendo non dalla superficie, ma daH'interioritá. La via di accesso é individuata a iniziare dal modo stesso in cui noi essere umani cogliamo noi stessi e il mondo circostante, dalla dimensione e dal terreno della nostra consapevolezza di noi stessi e di ció che é fuori di noi. Questa é la dimensione degli atti, delle operazioni di cui abbiamo consapevolezza, che "viviamo" in ogni momento della nostra esistenza, questi sonó gli atti che sonó da noi vissuti, i nostri "vissuti", parola con la quale traduciamo in italiano il termine tedesco Erlebnisse, non possedendo la nostra lingua un sostantivo equivalente. Gli atti che viviamo sonó da noi colti coscienzialmente, ció vuol diré che ci rendiamo contó di viverli; esemplificando si possono indicare quello della percezione, del ricordo, deN'immaginazione, del pensiero, e cosí via. Particolare importanza riveste l'atto percettivo, perché ci pone in modo diretto e immediato in contatto con il mondo esterno; Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ¿^ la percezione, perianto, é il vissuto dal quale muovere per iniziare un'indagine che conduce successivamente ad esaminare la vasta gamma degli altri vissuti. A sua volta la percezione puó essere sottoposta ad analisi ed a questo punto che ci rendiamo contó di compiere tale atto attraverso il médium della sensibilitá ed é a questo punto che diventa esplicito il tema della corporeitá. Proprio perché Merleau-Ponty consente nel considerare la percezione come l'avvio dell'indagine, possiamo definiré il suo approccio fenomenologico. Tornando a Husserl, per procederé nell'indagine ci puó aiutare l'analisi da lui compiuta nel secondo volume delle Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica, trascritto dagli appunti stenografici da Edith Stein (Husserl, 1977/ 2002); infatti, la percezione in quanto atto da noi vissuto ci rimanda alie sensazioni che la costituiscono e fra queste importanza primaria hanno le sensazioni tattili e visive. Esse si distinguono perché le prime sonó localizzate e le seconde non lo sonó. In ogni caso, entrambe sonó fondamentali per la conoscenza delle cose fisiche, ma anche per il loro rimando al corpo proprio. Quest'ultimo, da un lato, si presenta come una cosa fisica, dall'altro come un corpo senziente {Leib); molto diverse anche in quest'ultimo caso sonó le sensazioni attraverso le quali cogliamo un oggetto fisico inanimato e quelle che riguardano il corpo proprio: E cosí - scrive Husserl - il mió corpo proprio, entrando in una relazione fisica con altre cose materiali (colpo, pressione, spinta, ecc), non offre soltanto l'esperienza di eventi fisici, in riferimento col corpo proprio e con le cose, bensl anche specifici eventi somatici del genere che abbiamo denominato sensazione localizzata. Simili eventi non si danno nelle cose "meramente" materiali (Husserl, 1977/2002, p. 148). Alia percezione della cosa fisica va aggiunta la percezione del corpo proprio che é in contatto con la cosa fisica. Si delinea, in tal modo, una serie di percezioni che assumono un'importanza straordinaria, perché costituiscono la ragione per cui sentiamo il nostro corpo e lo consideriamo come proprio. Le sensazioni tattili in questo caso hanno un'assoluta precedenza rispetto alie altre sensazioni, ad esempio quelle visive, perché possiedono il doppio riferimento che si é indicato: «Quello che chiamo corpo proprio visto, non é una cosa che é vista e che vede, mentre il mió corpo proprio, quando lo tocco, é qualcosa che tocca e che é toccato» (ídem, p. 150). Ció significa che il ruólo della sensazione visiva é diverso da quello della sensazione tattile; la vista da sola non da il corpo proprio e neppure l'udito, se non ci fosse il tatto non avremmo la sensazione del corpo che possediamo. L'analisi, che si é condotta, é solo la base per ulteriori sviluppi estremamente significativi. Le sensazioni localizzate, insieme con quelle che derivano dagli altri sensi, ci danno la possibilitá di cogliere gli oggetti nello spazio, «esercitano una funzione costitutiva per la costituzione delle cose sensoriali» (ídem, p. 154), come si esprime Husserl; siamo in quella sfera che egli definisce largamente hyletica, usando la parola greca nel tentativo di indicare una dimensione che non é stata esaminata in tutta la sua potenzialitá e che é la base per formazioni di grado superiore come, appunto, la costituzione di oggetti fisici. Tale sfera non riguarda solo il rapporto del corpo proprio con ció che é esterno, ma comprende anche altri gruppi di sensazioni che sonó definiti "sentimenti sensoriali", come il piacere, il dolore, la tensione e il rilassamento, il benessere e il malessere che sonó alia base della vita dei sentimenti e delle valutazioni. Che cosa é la hyletica fenomenologica Se l'individuazione dei vissuti costituisce la geniale scoperta husserliana e ció che caratterizza la sua indagine, l'analisi dei vissuti stessi pone in evidenza la duplicitá fra il momento noetico intenzionale e il momento hyletico o materiale. La descrizione di questa duplicitá, giá contenuta nel primo volume delle Idee per una fenomenología pura, é approfondita, come si é detto sopra, nel secondo volume in correlazione con l'analisi del corpo vívente {Leib), il quale non ha soltanto localizzazioni relative alie sensazioni Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ^ sensoriali, che esercitano una funzione costitutiva per gli oggetti che appaiono nello spazio, ma anche relative a sensazioni di gruppi completamente diversi e l'esemplificazione é efficace, perché Husserl si riferisce ai sentimenti sensoriali e questo é un punto particularmente importante. Che tale argomento continui ad essere presente nelle sue ricerche é confermato da un cospicuo numero di manoscritti degli anni Trenta dei gruppi C e D, nei quali i due momenti sopra indicati sonó presentí. In particolare, nel Ms. trans. C 10, senza titolo del 1931 (Husserl, 1931/1973) , si coglie il nesso fra le unitá hyletiche e le affezioni, perché anche se l'universo hyletico é un universo non egologico, in quanto si costituisce senza l'intervento dell'io, tuttavia, l'io é sempre presente, come luogo delle affezioni, e sempre attivo. Una preziosa esemplificazione in questa direzione é contenuta in un testo nel quale non si sospetterebbe certamente di trovare una simile applicazione, La struttura della persona umana, che raccoglie le lezioni tenute da Edith Stein nel semestre invernale 1932-33 presso l'Istituto di Pedagogía Scientifica di Münster. Riflettendo sul tema dello spirito, l'autrice afferma che il mondo dello spirito abbraccia Tintero mondo creato. Per dimostrare ció Edith Stein esamina un blocco di granito. Indubbiamente, a suo avviso, si tratta di una formazione materiale nella quale, tuttavia, si rivela un senso, essa é plena di senso, perché, anche se non percepiamo una spiritualitá personale, tale formazione é costituita secondo un principio strutturale proprio, del quale sonó parte essenziale il suo peso specifico, la sua consistenza, la sua durezza; anche la massa, il fatto che "si presentí" in blocchi enormi, non in granelli o frammenti (Stein, 1992/2004, p. 166), ma ció che é importante per noi e che vale sul piano delle affezioni di cui parlava Husserl, consiste nel fatto che esso «richiama la nostra attenzione in modo singolare». Infatti, la sua irremovibile consistenza e la sua massa non sonó solo qualcosa che cade sotto i nostri sensi e che la ragione constata come una realtá. I sensi e la ragione sonó colpiti interiormente; in essi si rivela a noi qualcosa; in questa realtá leggiamo qualcosa. II "qualcosa", che viene a questo punto individuato, non é soltanto un senso simbólico, che puré é presente, ma ecco emergeré il momento hyletico del vissuto, perché il blocco ci parla di un'imperturbabile stabilitá e di una sicura affidabilitá come qualitá ad esso adeguate; Timperturbabilitá, la stabilitá, Taffidabilitá sonó risonanze interiori, danno un senso di benessere o malessere, quello descritto da Husserl a proposito dell'aspetto hyletico del vissuto, senso che non é lo stesso che puó essere suscitato dalTargilla o dalla sabbia. Per continuare il paragone con le analisi husserliane e cogliere le assonanze, le quali, nel reciproco rimando, chiariscono i risultati ai quali giungono i due fenomenologi, é opportuno riprendere alcuni passi del manoscritto husserliano sopra citato. Si tratta del riferimento a quei gruppi di sensazioni localizzate, che svolgono un ruólo análogo, di materiali appunto, a quello delle sensazioni primarie per gli atti vissuti intenzionali, quali la durezza, la bianchezza ecc. Questi gruppi di sensazioni, in quanto sensazioni localizzate, - secondo Husserl - hanno un'immediata localizzazione somática, talché per ogni essere umano riguardano in modo immediatamente intuitivo il suo corpo vívente (Leib) in quanto suo corpo proprio, come un'oggettivitá soggettiva, che si distingue dalla cosa puramente materiale "corpo proprio" attraverso lo strato di sensazioni localizzate (Husserl, 1977/2002, p. 155). Queste ultime «difficili da analizzare e da ¡Ilustrare» continua Husserl - formano la base della vita del desiderio, della volontá, le sensazioni di tensione e di rilassamento dell'energia, le sensazioni dell'inibizione interna, della paralisi, della liberazione (idem). Con questo strato si connettono, pero, le funzioni intenzionali, i materiali assumono una funzione spirituale, cosí come accade per le sensazioni primarie che vengono a far parte di percezioni, sulle quali, poi, si costituivano giudizi percettivi,ecc. (idem). Si indica, perianto, una stratificazione, che ha un doppio versante: uno conoscitivo, formato dalle sensazioni primarie, percezioni, giudizi percettivi e uno psichico-reattivo, formato da sentimenti sensoriali e valutazioni. II livello percettivo, giudicativo e valutativo sta dalla parte della noetica. Si delinea cosí chiaramente il rapporto fra hyletica e noetica, ma il momento hyletico sembra trascinare quello noetico, da qui la perentoria affermazione husserliana: « Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,„ ...Tiritera coscienza di un uomo é in un certo modo legata al suo corpo vivo attraverso la sua base hyletica » (idem), tuttavia la duplicitá non é eliminata; infatti, gli atti vissuti intenzionali non sonó localizzati e non costituiscono uno strato del corpo proprio. L'autonomia del momento spirituale rispetto a quello materiale, che puré ne consente la manifestazione, é, in tal modo, ribadita; la percezione, in quanto afferramento tattile della forma, non sta nel dito che tocca, in cui sonó localizzate le sensazioni tattili; il pensiero non é veramente localizzato intuitivamente nella testa come le sensazioni localizzate di tensione (idem). Husserl osserva che spesso ci esprimiamo cosí, e ci si puó domandare perché ció avvenga; si potrebbe rispondere che la forza attrattiva della localizzazione hyletica fa concentrare l'attenzione sul corpo proprio, dove il termine hyletica non sta ad indicare la materia nel senso tradizionale, ma un tipo nuovo di materialitá, giá da lui proposto nel § 85 del I libro delle Idee,{ 1952/2002) per il quale, chiaramente, egli é alia ricerca di un termine nuovo e crede di poterlo trovare nel vocabolo greco hyle. Si tratta dell'individuazione di una dimensione prima mai ben delineata e per questo mancano anche le parole per esprimerla. Hyletica e intenzionalitá Se la hyletica si manifesta in modo preminente nell'ambito gnoseologico, numerosi accenni di Husserl ne indicano una piü ampia funzione. La hyletica coinvolge, come si é visto, in primo luogo la sfera affettiva e impulsiva che é alia base - e in questo senso si puó parlare di hyle, cioé di materia - della valutazione noetica. Analizzando gli atti umani nella loro stratificazione, Husserl afferma che in essi é presente un'entelechia "cieca" e "orgánica" che agisce a livello impulsivo, essa diventa esplicita a livello volontario, passando da un'intenzionalitá impulsiva ad una consapevole. Seguendo la via del comportamento pratico-etico e non di quello puramente gnoseologico, é possibile approfondire il tema dell'entelechia e il suo senso teleologico. Certamente piü nota é l'insistenza di Husserl sulla teleología della storia, da intendersi come scoperta di un fine immanente in essa e come appello etico alia realizzazione del fine stesso. Ma le ragioni ultime dell'esistenza di questa dimensione sonó da rintracciarsi in quello che egli definisce necessario «rinvio ai fatti originari della hyle» (Husserl, 1973, p.386), che sembrerebbe incomprensibile se non si fosse messa in risalto l'intenzionalitá presente a livello impulsivo. Si manifesta anche in questo caso il rimando, sempre attuato da Husserl, dalla sfera della consapevolezza, conoscitiva ed etica, quella da lui definita categoriale, alia sfera pre-categoriale. E' il cammino da lui indicato che, sulla via della lógica, va da quella fórmale a quella trascendentale {Lógica fórmale e trascendentale) (Husserl, 1929/1966) e, sulla linea della gnoseologia, dalla coscienza alie sintesi passive {Lezionisulle sintesipassive) (Husserl, 1966/1993), le quali sonó, come si noterá piü avanti, alia base della formazione di ogni conoscenza nell'intreccio fra soggetto e oggetto, prima che questi due momenti siano effettivamente distinti. Non a caso, in appendice alie Lezioni sulla sintesi passiva, si trovano le considerazioni preliminari alie lezioni sulla lógica trascendentale. Si é giá detto che, attraverso l'analisi genética, Husserl scende nelle formazioni di senso fino ad arrivare ai gradi piü nascosti della passivitá. Questo cammino a ritroso proprio di quella che egli chiama Rückfrage, é una regressione che é difficile operare, perché gli esseri umani vivono alia superficie del processo, dove si danno giá i risultati e per "sciogliere" tali risultati e cogliere la loro genesi é necessario uno sguardo atiento, consapevole, "scientifico", ma di una scientificitá che non é di tipo costruttivo, bensl decostruttivo, non perché rinunci alia ricerca di senso, ma perché scava per trovare sempre sensi ulteriori. La dimensione hyletica é quella che beneficia di piü da questo scavo, perché, mentre le sedimentazioni culturali, come prodotti noetici, si presentano ben strutturate, anzi strutturate in un modo che é comunemente considerato definitivo, e che cresce attraverso continué ulteriori stratificazioni, la via genética, che conduce alia sfera della passivitá, rimane ignorata per un duplice motivo: chi vive a livello prescientifico, che in questo caso vuole diré acritico e ingenuo, non si accorge del processo genético presupposto da ogni conoscenza e da ogni risultato ottenuto a livello della prassi; d'altra parte, chi vive a livello scientifico, proprio a causa della sempre maggiore Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,, specializzazione del sapere, della sua ramificazione e della sua complessitá naturalmente qui ci si riferisce in particolare alia cultura occidentale -, crede di giustificare tutto attraverso questo tipo di sapere e non si pone la questione della stessa genesi del sapere. E' in questo contesto che la filosofía ha assunto fin dalla cultura greca antica un ruólo critico, ma non é ancora riuscita, secondo Husserl, a smascherare l'origine delle sedimentazioni. Ció é chiaramente espresso in quello che si puó chiamare il suo testamento spirituale (Husserl,1992/2004). La fenomenología husserliana é nata con l'intento di procederé a questo smascheramento e ha esaminato le scienze matematiche, fisiche e quelle riguardanti la sfera umana, allora chiamate scienze dello spirito. Accanto a queste e aN'interno di queste, i problemi dei procedimenti logici, cioé dell'organizzazione del pensiero assumevano per Husserl un ruólo sempre piü importante e si erano sedimentati nella lógica fórmale, certamente di origine aristotélica, ma sempre piü raffinata ed astratta come stavano dimostrando i neopositivisti. Husserl é d'accordo che questo tipo di lógica possa essere utile strumento nell'elaborazione delle scienze, ma il problema si sposta: come si sonó elabórate le scienze e la stessa lógica fórmale? Questa domanda é stata sempre presente nel percorso husserliano e la risposta, seguendo il filone delle sue opere sulla lógica - filone molto importante perché confinante con quello delle scienze matematiche, con le quali era avvenuta la sua prima formazione intellettuale - é data non sul terreno della stessa lógica, ma su quello piü profondo della genesi delle operazioni logiche all'interno della struttura trascendentale dei vissuti. I due scritti piü significativi in questa direzione sonó Lógica fórmale e trascendentale, in cui si muove dal terreno giá costituito della lógica fórmale, per retrocederé fino alie operazioni e agli atti che, pur non essendo tutti di tipo conoscitivo, debbono essere studiati sotto un profilo conoscitivo, quindi sul piano gnoseologico, ed Espeñenza e Giudizio (Husserl, 1948/1995), in cui si percorre il cammino che va dal primo coglimento percettivo delle cose al livello giudicativo. In realtá, si tratta di un duplice lavoro ascendente e discendente compiuto correlativamente, con grande capacita di andaré dalle formazioni giá costituite alia loro genesi e, viceversa, di ripercorrere dalle prime operazioni costitutive il processo fino a raggiungere i livelli piü alti. Nel lavoro di scavo si inseriscono, come si é giá indicato, le Lezioni sulla sintesipassiva, che studiano le operazioni preliminari rintracciabili per la formazione della conoscenza percettiva, la quale non é il primo gradino della conoscenza, ma é giá il risultato di un processo anteriore basato essenzialmente sull'associazione, cioé sulle operazione primitive che, attraverso il contrasto, la successione e la coesistenza consentono di definiré, in prima istanza, i campi percettivi. In questa fase, soggetto e oggetto sonó ancora indistinti e solo a livello percettivo avviene la distinzione. In tale prospettiva, il problema della "sensazione" e della sua origine é rivisitato ed anche il rapporto fra la noesi intenzionale e la hyle, materia che si presenta. E', perció, possibile rintracciare due modi in cui si parla di questo particolare materiale della sensazione interna ed esterna, che si chiama hyle. Secondo l'analisi statica, condotta nelle Idee per una fenomenología pura, la hyle é la materia a cui la noesi dá un significato, e diventa materia per ulteriori operazioni, ad esempio la piacevolezza data dalla visione di un colore mi spinge a scegliere quel colore, a valutario positivamente e, quindi, diventa "materia" di un giudizio. Al contrario, nella prospettiva genética, che mette in evidenza la sfera passiva, la hyle possiede giá una sua struttura intenzionale, che consente ad essa di presentarsi in modo configúrate Piü in genérale lo scavo "archeologico", che qui si tenta di ricostruire movendo dalle sparse analisi di Husserl, serve alia scoperta delle "ragioni ultime", che si congiungono con le ragioni prime o piü palesi. Per comprendere tale scavo, é opportuno esaminare un testo scritto nel 1931, intitolato "Teleología" (Husserl, 1931/1973), che compendia tutto ¡I cammino finora descritto, aggiungendo nuovi ed inediti elementi. II sottotitolo suona "Implicazione dell'eidos: intersoggettivitá trascendentale nell'eidos: io trascendentale". II manoscritto inizia con una tensione riscontrata a livello trascendentale fra l'orientamento dell'essere umano verso la perfezione, verso l'autoconservazione e la Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,,, presenza di sempre nuove contraddizioni. Ma l'idea di perfezione si presenta, secondo Husserl, come un'idea-guida nella sua valenza etica. Si tratta di una "nozione" preontologica, cioé presente fin dall'inizio, che acquista valore ontologico attraverso la riflessione e puó assumere un valore tramante per la volontá «che in tal modo ha il suo fine esplicito e la forma esplicita della meta, dello scopo, della totalitá di tutti gli scopi individúan e sopraindividuali (intersoggettivi, riguardanti tutta l'umanitá) » (Husserl, 1931, p. 379). Ed é qui che si innesta il tema della storia e del suo senso e bisogna ricordare che per Husserl la storia ha un senso e un fine, essa é percorsa da una volontá "metafísica", che produce un processo infinito o meglio tendente all'infinito. Ogni elemento finito, pur nella sua oscuritá, vive nella forma dell'infinitá. E l'infinitá appare nella forma temporale come successione temporale di momenti finiti, ma la sua ultima vera natura é quella del nunc stans, quindi dell'eternitá qualitativamente diversa dal tempo. Tutto il discorso di Husserl ruota intorno ad una realtá profonda che guida la storia, manifestandosi come volontá infinita, giustificante i vari gradi di volontá; infatti, ogni essere umano dapprima senté un'oscura volontá di vivere, poi, tende verso mete di perfezione, anche se non giunge mai a realizzare tale perfezione; in altri termini, come si evince dai testi husserliani rivolti alie questioni etiche, come mai l'essere umano vede ció che é buono e riconosce ció che é male? Perché ha una sorta di nostalgia di una situazione migliore di quella in cui é costretto a vivere? A questo punto della sua riflessione Husserl ipotizza una situazione di comprensione collettiva di ció che é buono e positivo e si domanda che cosa accadrebbe se tutti i soggetti potessero destarsi in senso etico, cioé comprendere ció che é positivo. E si chiede, ancora, come puó accadere la diffusione di ció che é stato coito in modo genuino da alcuni, e si riferisce al ruólo di alcune comunitá, ad esempio le Chiese, sottolineando la funzione che esse hanno nella diffusione di ció che é buono, oppure si pone su un piano etico-religioso, quando pensa all'opera missionaria o alia spinta verso Yimitatio e, presumibilmente, si tratta dell'imitatio di Cristo. Accanto al livello etico-religioso, si delineano quello pedagógico e quello etico-politico. Tutte queste dimensioni tendono ad un fine e si tratta di stabilire perché e se sonó connesse ad un elemento sotterraneo unitario, costituente la "forma di tutte le forme". Tutti i livelli di realizzazione umana lungo il cammino storico trovano la loro giustificazione in Dio. Scrive Husserl: La volontá assoluta universale che vive in tutte le soggettivitá trascendentali e che rende possibile l'essere individúale-concreto della soggettivitá totale trascendentale, é la volontá divina, la quale presuppone pero tutta l'intersoggettivitá non nel senso che quest'ultima preceda la prima e sia possibile senza di essa (e neppure nel senso in cui l'anima presuppone il corpo) ma come strati strutturali, senza i quali questa volontá non puó essere concreta (Husserl, 1931/1973, p. 381). In tal modo si stabilisce una correlazione profonda fra gli esseri umani e la divinitá, che non si presenta lontana ed estranea, ma vicina e attiva. II testo, che si sta esaminando, é particolarmente significativo, perché in esso si medita ancora di nuovo sul rapporto fra la dimensione esistenziale umana, la capacita, sempre umana, di cogliere ció che é essenziale e, quindi, di individuare la sfera trascendentale, la "lastra trasparente", come mi sembra di potería definiré, su cui si imprimono i vissuti in un processo di continuo rimando. Husserl osserva che, mentre, in genérale, é possibile cogliere il momento essenziale o eidos di qualunque realtá, prescindendo dall'essere o dal non essere della realizzazione dei momenti essenziali, nel caso dell'essere umano «l'eidos: io trascendentale é impensabile senza l'io trascendentale come fattuale» (Husserl, 1931/1973, p. 385). Questo significa che si stabilisce una correlazione fra l'ontologia mondana e l'ontologia assoluta, cioé fra le strutture esistenziali del mondo e quelle essenziali, e la correlazione trova il suo nesso proprio nell'essere umano. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,,, Ed é proprio a livello della sfera trascendental che si chiarisce la struttura del "fatto". II "fatto" essere umano, attraverso la ricerca regressiva, é individuato nelle sue strutture originarle che si configurano in un primo momento a livello hyletico; la hyle originaria si presenta con le cinestesi, cioé con i movimenti originan, con i sentimenti originari, con gli istinti originari. E tutto questo materiale originario si trova in una forma di unitá, che é la forma essenziale prima della mondanitá. Proprio perché questo si mostra nell'essere umano immediatamente, appare giá indicato a livello "istintivo", la costituzione di tutto il mondo, che é contenuto nella sua "grammatica essenziale", nel suo alfabeto essenziale nei livelli profondi dell'essere umano stesso, e ció che é indicato, non é solo una struttura passiva, inconscia, istintiva unitaria, ma anche possedente una sua finalitá. La teleología si manifesta a livello trascendentale, ma ha la sua origine nei fatti «...originari della hyle (nel senso piü ampio); senza essi nessun mondo sarebbe possibile e nessuna soggettivitá totale trascendentale. Stando cosí le cose si puó diré che questa teleología, con la sua fatticitá originaria, ha il suo fondamento in Dio? Perveniamo alie ultime "questioni di fatto" - alie questioni di fatto originarie, alie ultime necessitá, alie necessitá originarie » (Husserl, 1931/1973, p. 385). Non solo si dice genéricamente che tutte le cose hanno un fine, ma si analizza partitamene la stratificazione della realtá attraverso la stratificazione presente nell'essere umano per giungere alia conclusione, secondo la quale non solo le opere culturali o quelle dello spirito, i processi volontari, che caratterizzano gli esseri umani, non solo Tésame degli organismi e dei loro livelli di sviluppo e di perfezione - come si legge nel testo citato delle Idee -, ma anche quel mondo oscuro, degli istinti originari, dei sentimenti, dei movimenti fisici e psichici inconsapevoli hanno un senso. E senso e fine, causa fórmale e causa finale, come direbbe Aristotele, sonó correlativi, perció la teleología é definita "la forma di tutte le forme": infatti, é riscontrabile a tutti i gradi della realtá. E se tutto, non solo i livelli di razionalitá, le opere dello spirito, ma anche le dimensioni considérate caotiche e magmatiche, nonostante l'apparente irrazionalitá, hanno un senso, allora non si puó fare a meno di attribuire l'origine di questo senso a Dio. Nel caso di questo percorso, che si potrebbe definiré come quello della hyletica, l'inizio si ha, come sempre in Husserl, nella dimensione dell' esperienza vissuta, ma si esce da essa perché le "ragioni ultime" anche sul piano della hyletica, si trovano nel fatto che nulla é "a caso", al contrario é necessario rintracciare fin dalle dimensioni piü profonde una "teleología", una finalitá e, quindi, il rimando ad una "fatticitá originaria" puó essere compreso fino in fondo, se si constata che essa ha il suo fondamento in Dio (Husserl, 1931/1973, p. 385). Hyletica fenomenologica ed Essere grezzo In quale senso si puó stabilire un rapporto fra i risultati delle analisi husserliane sopra indicati e la proposta teorética di Merleau-Ponty? A mió avviso si possono individuare tre punti, riconducibili al grande tema del visibile e dell'invisibile: 1) l'analisi husserliana del corpo con le sue dimensioni tattili e visive, che corrisponde al tema merleau-pontiano della "carne", 2) il rimando alia dimensione hyletica con la sua intenzionalitá impulsiva, che trova echi in quella dell'Essere selvaggio, 3) la ricerca di una nuova ontologia che accomuna i due pensatori. Si tratta, in ultima analisi, di esaminare il contenuto delle due ontologie per coglierne le affinitá ed anche le differenze. Si é visto che per Husserl fundaméntale é la dimensione trascendentale come luogo di individuazione di strutture universali che si declinano, pero, sempre in modo singolare ed empírico. Negli appunti preparati per la prosecuzione della stesura del suo libro, Merleau-Ponty individua la sua nuova ontologia come capace di metiere in crisi le nozioni di soggettivitá trascendentale, di soggetto, di oggetto in favore della presa di coscienza della filosofía come pre-scienza, «...in quanto espressione di ció che é prima dell'espressione e che la sostiene a tergo» (Merleau-Ponty, 1993, p. 185); infatti, « tutte le analisi particolari sulla Natura, sulla vita, sul corpo umano, sul linguaggio ci faranno entrare nella Lebenswelt e nell'essere "selvaggio"; e, cammin facendo, io non dovró astenermi dall'entrare nella loro Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,. descrizione positiva, e nemmeno nell'analisi delle diverse temporalitá - dirlo sin dalla introduzione» (ídem, p. 185). Si possono notare, perianto, due cose, sulle quali é necessario soffermarsi: in primo luogo che la regressione, di cui parla Husserl, non si risolve in una contrapposizione fra soggettivitá trascendentale e Lebenswelt, perché i due termini si comprendono solo attraverso un reciproco rimando e, in secondo luogo, che Merleau-Ponty stabilisce un' identitá fra Lebenswelt ed essere selvaggio. D'altra parte, mi sembra che ci sia una vicinanza nel modo di intendere la Lebeneswelt da parte di Merleau-Ponty: «La ricerca della visione "selvaggia"» (ídem, p. 199). La critica di Merleau-Ponty contro il trascendentale non é esplicitamente rivolta a Husserl, potrebbe essere, piuttosto, rivolta a Kant, ma, in ogni caso, anche Husserl considera la soggettivitá trascendentale come un punto di partenza e di arrivo imprescindibile. La novitá, come si é visto, é costituita dall'individuazione della sfera coscienziale con i suoi vissuti, che non é presa in considerazione da Merleau-Ponty. Ció consente di capire come mai egli proceda dall'individuazione dell'importanza della corporeitá, ma come non possa cogliere il senso ultimo della dimensione hyletica. Eppure le analisi husserliane su di essa hanno straordinarie affinitá con quelle condotte dal fenomenologo francese sul tatto e sulla vista. Vale la pena soffermarsi su queste per procederé ad un paragone. Si puó prendere l'avvio dall'analisi del colore rosso, condotta da Merleau-Ponty nel capitolo dedicato a "L'intreccio - II chiasma" . Dall'analisi di molteplici oggetti che offrono il colore rosso egli ricava, in primo luogo, che esso é « ... una specie di stretto fra orizzonti esterni ed interni sempre aperti, qualcosa che viene a toccare dulcemente e fa risuonare a distanza diverse regioni del mondo colorato o visibile, una certa differenziazione, una modulazione effimera di questo mondo, e quindi meno colore o cosa che differenzia fra cose e colori, cristallizzazione momentánea dell'essere colorato o della visibilitá» (Merleau-Ponty, 1993, p. 149). Ed é rivelativo, perianto, di un tessuto che fodera i visibili, che li sostiene, che é carne. Ció accade, in veritá, perché, se ci si pone dalla parte del védente - e qui c'é lo spostamento verso il soggetto proprio dell'indagine fenomenologica -, si nota che lo sguardo "avvolge, palpa, sposa le cose visibili" non a caso, ma secondo una "legalitá" direbbe Husserl, che stabilisce una correlazione per cui non si puó diré chi comanda, se il soggetto o le cose. Tale correlazione é comprensibile attraverso la palpazione, perché é li che l'interrogante e l'interrogato sonó piü vicini. Se leggiamo le analisi husserliane sul tatto, si coglie il senso di tale correlazione. Infatti, nel tatto non solo é coinvolto il corpo, ma si costituisce il corpo stesso, perché imprescindibile é il riconoscimento delle sensazioni légate alia mano, ma anche a tutta la corporeitá. II tatto diffuso sul corpo é, in realtá, l'origine dell'esperienza dei confini del corpo e, quindi, della consapevolezza del corpo stesso; infatti, posso diré che ho un corpo, perché c'é un'esperienza tattile diffusa e localizzata. Come si é visto sopra, la localizzazione é fundaméntale per comprendere il senso della sfera hyletica nel doppio versante egologico e non egologico, tatto delle cosa esterna o di quella cosa che chiamo il mió corpo, che risponde con le sue sensazioni alia mia mano senziente e senso della gradevolezza o meno nel caso del liscio o del ruvido, che si manifesta, allora, come reazione psichica, facente parte anch'essa della sfera hyletica. Mentre Husserl afferma la supremazia della sensazione tattile su quella visiva per la costituzione del corpo proprio, Merleau-Ponty, che pur riconosce il sorgere di un sentimento passivo - cosí egli lo chiama - del corpo e del suo spazio attraverso il tatto, stabilisce una sorta di paritá o addirittura di scambio di validitá fra tatto e vista: « Dobbiamo abituarci a pensare che ogni visibile é ricavato dal tangibile, ogni essere tattile é promesso in un certo qual modo alia visibilitá; e che c'é sopravanzamento, sconfinamento, non solo fra il toccato e il toccante, ma anche fra il tangibile e il visibile che é incrostato in esso, cosí come reciprocamente, il tangibile stesso non é un nulla di visibilitá, non é privo di esistenza visiva. Poiché il medesimo corpo vede e tocca, visibile e tangibile appartengono al medesimo mondo» (Merleau-Ponty, 1993, p. 151-152). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,. Indubbiamente non si tratta di stabilire semplicemente la circolaritá fra i due tipi di sensazioni. Anche Husserl accetta che il medesimo corpo vede e tocca e che visibile e tangibile appartengono al medesimo mondo, si tratta, piuttosto di individuare le caratteristiche essenziali dei due ordini di esperienze e, quindi, sulla base delle sue analisi sempre rigorose, si puó diré che non accetterebbe che la visione sia palpazione con lo sguardo se non in senso metafórico, ma accetterebbe che «occorre che anch'essa si iscriva nell'ordine d'essere che essa ci svela, occorre che colui che guarda non sia estraneo al mondo che guarda» (Merleau-Ponty, 1993, p. 151). A proposito di tale estraneitá si puó diré che Husserl, scavando nella sfera passiva, constata l'indistinzione originaria fra soggetto e oggetto, esplicitando analíticamente ció che Merleau-Ponty pone solo come rimando al terreno indistinto dell'Essere "grezzo". Alcuni tratti fondamentali dell'ontologia di Merleau-Ponty Poiché il fenomenologo francese non é riuscito a completare il suo lavoro, non possiamo pretendere un'analisi della regione dell'Essere grezzo. Ci sonó, tuttavia, alcune "Note di lavoro", che possono essere indicative. In particolare, un brano che potrebbe essere accostato alia descrizione condotta da Husserl. Si é notato che quest'ultimo si riferisce ad una sfera profonda, istintiva, la quale, tuttavia, possiede una sua intenzionalita. MerleauPonty individua un'intenzionalitá latente che identifica con la struttura fondamentale della Zeitigung. L'intenzionalitá latente cessa di essere vita della coscienza per diventare vita intenzionale. Si tratta di quello che Husserl chiamava Triebintentionalitát? Di questa, in realtá, non parla Merleau-Ponty, é come se non conoscesse quest'aspetto delle analisi di Husserl, non coglie lo scavo archeologico che egli ha compiuto, se lo accusa di essersi fermato alia coscienza immanente senza aver individuato «...il doppiofondo della mia vita di coscienza» (Merleau-Ponty, 1993, p. 191). Husserl, al contrario di quanto ritiene Merleau-Ponty, lo ha individuato tanto é vero che paragona questo sottofondo addirittura all'inconscio, di cui parla la psicoanalisi, nelle sue Lezioni sulle sintesi passive (2). D'altra parte, Merleau-Ponty sembra riconoscere ció, soprattutto commentando le Meditazioni cartesiane. Un punto di convergenza rispetto al trascendentale di cui parla Husserl é rappresentato, infatti, dalla nota del febbraio 1959, in cui egli riconosce, rimanendo all'interno delle Meditazioni cartesiane, la validitá del campo trascendentale come superamento, da parte di Husserl, della concezione cartesiana della mens sive anima, ma anche del superamento della stessa soggettivitá trascendentale sulla linea della sintesi passiva che in quell'opera di Husserl é legata alia conoscenza deN'alteritá, che inizia, secondo Husserl, come egli si esprime nel § 5 1 , dalla ursprüngliche Paarung, l'appaiamento originario. Pur non facendo riferimento esplicito a tale espressione, Merleau-Ponty individua la dimensione passiva attraverso il tema dell'intersoggettivitá, piuttosto che quello della conoscenza del mondo fisico, in altri termini tiene contó, come si é detto, delle Meditazioni cartesiane e non dei manoscritti husserliani che sonó, in seguito, stati pubblicati sotto il titolo di Sintesi passive. L'analisi delle Meditazioni q\\ consente di cogliere attraverso l'intersoggettivitá uno degli itinerari che Husserl privilegiava, come é stato indicato sopra, quello che conduce alia storia. Nei suoi appunti Merleau-Ponty scrive: II passaggio all'intersoggettivitá é contraddittorio solo nei confronti di una riduzione insufficiente, Husserl ha ragione a dirlo. Ma una riduzione sufficiente conduce al di la della pretesa "immanenza" trascendentale, conduce alio spirito assoluto inteso come Weltlichkeit, al Geistcome Ineinander delle spontaneitá, esso stesso fondato suW Ineinander Q.sXe.s\o\oq\zo e sulla sfera della vita come sfera dell'Einfühlung e di intercorporeitá (Merleau-Ponty, 1993, p. 189). Si apre, come si é giá visto in Husserl, anche per il fenomenologo francese la questione della storia riconducibile al tessuto connettivo óe\Y Ineinander, che costituisce la dimensione mondana delle spirito (ídem, p. 191). Lo spirito rimanda, perianto, alia sfera del tessuto connettivo intersoggettivo, fondato sul rapporto fra le corporeitá dei singoli. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf ~¿ Appare, a questo punto, un termine che finora non era stato usato, quello di Geist, da ricondurre sempre, e in questo caso esplicitamente, alie analisi husserliane. Gennaio 1959, scrive Merleau-Ponty: « Husserl: i corpi umani hanno un "altro lato", un lato "spirituale"» (ídem, p. 185) ed espone il suo progetto: «Nel Io volume, - dopo natura fisica e vita, fare un 3o capitolo in cui il corpo umano sará descritto come dotato di un lato "spirituale"» (ídem, p. 186). Si tratta di un ampio progetto che riprende e approfondisce « i miei primi due libri» dice Merleau-Ponty, nella prospettiva dell'ontologia. // visibile e l'invisibile rappresenta, come si é giá potuto constatare, un compimento del cammino di ricerca iniziato nella Fenomenología della Percezione. Sempre desenvendo il suo progetto di una nuova ontologia, Merleau-Ponty propone di metiere il evidenza tutte le radici ed apre la via all'analisi del linguaggio. II trascendental é, allora, inteso come evidenziazione dell'agente sensoriale che é il corpo e l'agente idéale che la parola (ídem, p. 189). Le parole conclusive della parte dell'opera elaborata da Merleau-Ponty sonó dedícate al ruólo del linguaggio. « In un certo senso, come dice Husserl, tutta la filosofía consiste nel restituiré un potere di significare, una nascita del senso o un senso selvaggio, una espressione dell'esperienza attraverso l'esperienza che ¡Ilumina specialmente la sfera particolare del linguaggio» (ídem, p. 170). Due punti sonó particularmente significativi in questo brano: il fatto che ció che é selvaggio ha un senso - e questo troverebbe una conferma nel tema deN'intenzionalitá latente, alia quale ci si é giá riferiti - e che ci sia un nesso fra senso e linguaggio e quest'ultimo non é solo linguaggio articolato; citando Valery, infatti, Merleau-Ponty sostiene che «... il linguaggio é tutto, perché esso non é la voce di nessuno, perché é la voce stessa delle cose, delle onde e dei boschi» (ídem, p. 170). Lo stretto légame, ma ancora meglio l'identitá fra senso e linguaggio rimanda anche, aN'interno della corrente fenomenologica, alie analisi di Hedwig Conrad-Martius, la quale afferma nei suoi Dialoghi Metafisici (Conrad-Martius, 1921/2006 e Ales Bello, 2006) (3) che le cose parlano perché esprimono la loro essenza, il loro senso, anche se non si tratta di un linguaggio articolato, e che il linguaggio articolato é l'espressione propria del senso dell'essere umano che é un essere corpóreo, psichico, ma soprattutto spirituale. Anche per Merleau-Ponty il tema del linguaggio é legato alia questione del senso e quest'ultimo a quello dello spirito. La spia di ció é la sua affermazione, secondo la quale non basta la lingüistica per capire il linguaggio. Se le parole hanno un senso ció non é finalizzato al fatto che il lingüista lo scopra, ma: «...la Parola operante é la regione oscura dalla quale proviene la luce istituita, alio stesso modo in cui la sorda riflessione del corpo su se stesso é ció che noi chiamiamo luce naturale» (Merleau-Ponty, 1993, p. 169). L'intreccio, il chiasma si istituisce fra la significazione e la molteplicitá dei mezzi fisiologici e linguistici della elocuzione cosí come la visione porta a compimento il corpo estesiologico. Merleau-Ponty lancia un'esortazione a seguiré piü da vicino il passaggio dal mondo muto al mondo parlante. Credo che questo dia la possibilitá di legare "senso" a "selvaggio", da un lato, ma anche senso e spirito, dall'altro. La nuova ontologia, che, in tal modo, é delineata da Merleau-Ponty, assume i caratteri di un nuovo umanesimo (ídem, p. 186), ma anche di una nuova metafísica, che si fonda sulla constatazione di una Offenheit, di un'infinitá che si presenta diversa dall'apertura "classica" verso la trascendenza proposta, come si é detto sopra, da Husserl, ma che in entrambi i pensatori é intesa come superamento della fattualitá, la quale, pero, non eselude la fattualitá stessa. Maggio 1960: « lo sonó contro la finitezza nel senso empirico, esistenza di fatto che ha deilimiti: ecco perché sonó per la metafísica. Ma essa non é nell'infinito piü che nella finitezza di fatto » (ídem, p. 163). Non é facile procederé ad un bilancio senza correré il rischio di schematizzare troppo la ricchezza concettuale delle analisi dei due fenomenologi. La lettura dei loro testi rivela un'aria di famiglia, che consente di ritenere Merleau-Ponty, per alcuni aspetti, uno fra i piü sensibili eredi di Husserl. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf .,., Riferimenti Ales Bello, A. (2006). Binswanger erede di Husserl. In L. Binswanger, Esperienza della soggettivita e trascenderla dell'altro: I margini di un'esplorazione fenomenologico-psichiatrica (S. Besoli, ed.) (pp.261-282). Macerata: Quodlibet Edizioni. Conrad-Martius, H. (2006). Dialoghi metafisici (A. Caputo, trad., A. Ales Bello, pref.) Lecce: Besa. (Origínale pubblicato in 1921). Husserl, E. (1960). Meditazione Cartesiane e i Discorsi Parigini (F. Costa, trad.). Milano: Bompiani. (Original publicado em 1931). Husserl, E. (1966). Lógica fórmale e trascendentale (G. Neri, trad.). Bari: Laterza. (Original publicado em 1929) Husserl, E. (1973). Teleologie: Die Implikation des Eidos transzendentale Intersubjektivitát im Eidos transzendentales Ich. (aufgrund von Noten vom 5 November 1931). Em E. Husserl. Zur Phánomenologie der Intersubjektivitát. Texte aus dem Nachlass. Dritter Te/7: 1929-1935. (Husserliana, XV; I. Kern, Ed.; pp. 378-386). La Haya: Martinus Nijhoff. (Original de 1931). Husserl, E. (1973a). Zur Phánomenologie der Intersubjektivitát, Dritter Teil (Husserliana, Vol. 15).Teh Hague: Martinus Nijhoff. Husserl, E. (1988). La crisi de/le scienze europee e la fenomenología trascendentale (E. Filippini, trad.). Milano: II Saggiatore. (Origínale pubblicato em 1976). Husserl, E. (1993). Lezioni sulla sintesi passiva (V. Costa, trad.). Milano: Guerini e Associati. (Origínale pubblicato in 1966) Husserl, E. (1995). Esperienza e Giudizio (F. Costa & L. Samoná, trad.). Milano: Bompiani. (Origínale pubblicato in 1948) Husserl, E. (2002). Idee per una fenomenología pura e una filosofía fenomenologica ( v o l . l ; V. Costa, trad.). Torino: Einaudi. (Origínale pubblicato in 1952). Husserl, E. (2004). La storia della filosofía e la sua fínalitá (H. Ghigi, trad., A. Ales Bello, pref.). Roma: Cittá Nuova. (Original publicado em 1992). Merleau-Ponty, M. (1993). // visibile e l'invisibile (A. Bonomi, trad.). Milano: Bompiani. (Origínale pubblicato in 1964) Stein, E. (2004). La struttura della persona umana (M. D'Ambra, trad.). Roma: Cittá Nuova. (Original publicado em 1994). Note (1) «Ma come puó una struttura parziale del mondo, la soggettivita umana del mondo, costituire Tintero mondo, costituirlo come sua formazione intenzionale?» - scrive Husserl - « (...) Ma questo é un controsenso! O si tratta forse di un paradosso che puó essere ragionevolmente dipanato, un paradosso addirittura necessario, che sgorga cioé necessariamente dalla tensione esistente tra la forza dell'ovvietá dell'atteggiamento naturale obiettivo (la forza del common sensé) e l'atteggiamento opposto dell' "osservatore disinteressato"? » (Husserl, 1988, p. 206). «Ma il grande problema é appunto quello di capire questa "ovvietá". II nostro método esige ora che l'ego si Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Ales Bello, A. (2008). Essere grezzo e hyletica fenomenologica: I' ereditá filosófica di "II visibile e I' invisibile" Memorándum, 14, 62-78. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf -,„ interroghi sistemáticamente a partiré dal concreto fenómeno del mondo e che venga a conoscere se stesso, l'ego trascendentale, nella sua concrezione, nella sistemática dei suoi strati costitutivi e delle sue fondazioni di validitá inespresse e occulte. (...) Attraverso questo procedimento sistemático si attinge dapprima la correlazione del mondo e della soggettivita trascendentale obiettivata deN'umanitá» {Ivi, § 55, p.213). (2) Mi sonó interessata di questo argomento e del rapporto Husserl - Freud in Binswanger erede di Husserl (Binswanger, 2006) (3) Si tratta di un dialogo sull'analisi fenomenologica della costituzione della natura e del suo significato spirituale, condotto con originalitá e fine stile letterario. II libro é il primo delle opere dell'autrice tradotto in una lingua straniera. Nota al riguardo dell'autrice Angela Ales Bello é docente di storia della filosofía contemporánea presso la Pontificia Universitá Lateranense, Roma, Italia. Dirige il Centro Italiano di Ricerche Fenomenologlche. Integra il corpo editoriale de diverse riviste scientifiche italiane e straniere, tra cui: "Per la filosofía", "Segni e Comprensione", "Ana/ecta Husser/iana", "Phenomenological Inguiry"; collabora con "Recherches Husserliennes" e "Studien zur interkulturelien Philosophie". Contatto: Pontificia Universitá Lateranense, Facoltá di Filosofía, Piazza San Giovanni in Laterano n.4, Cittá del Vaticano (00120). E-mail: [email protected]. Data de recebimento: 30/07/2007 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/alesbello06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf 7( '- Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística Enlarging the horizons of the rationality Phenomenological and Trinitarians Christological perspectives about religión philosophy and mystics Patrizia Manganaro Pontificia Universitá Lateranense Italia Riassunto II tema di ricerca proposto implica l'impegno teórico di articulare nel loro nesso fecondo due saperi presentí in modo conflittuale nel soleo della tradizione occidentale - il sapere filosófico e il sapere teológico, attraverso un esercizio non ego-logico della ragione, che si pone al contempo in continuitá e in rottura con il lógos occidentale. II "filosófico" sará declinato nell'ottica segnatamente fenomenologica, e il "teológico" in quella cristologicotrinitaria, con l'obiettivo di cogliere l'unione-distinzione delle due discipline costitutivamente autonome nella condivisa esperienza della veritá - e di ció che puó essere sintéticamente definito il "filosofico-teologico". Fides e ratio - "pensare" e "credere" -sonó due dimensioni distinte ma connesse. Parole chiave: fede e ragione; sapere filosófico e sapere teológico; fenomenología. Abstract This work accepts the theoretical effort of articulating the fertile connection between two knowledges present in a conflict way in the occidental tradition: the philosophical knowledge and the theological knowledge, throw a not ego-logical exercise of the reason, which put itself in continuity and in rupture with the occidental logos. The "philosophical" will be described in the phenomenological view and the "theological" in the trinitarianchristological view, with the intention of apprehending the union-distinction of the two disciplines that have autonomy in its constitution in the shared experience of the truth. Fides and ratio - "to think" and "to believe"- philosophy and theology, are two dimensions distinguished but connected. Keywords: Faith, reason; philosophical and theological knowledge; phenomenology. Ampliare gli spazi della ragione non é solo un auspicio: é una possibilitá concreta. II tema di ricerca proposto implica l'impegno teórico di articulare nel loro nesso fecondo due saperi per la veritá presentí in modo assai conflittuale nel soleo della tradizione occidentale - il sapere filosófico e il sapere teológico -, ma che vorrei qui rilanciare nel segno di un possibile rinnovamento per l'oggi e per il futuro dell'oggi. Tenteró di assolvere tale compito attraverso un esercizio non ego-logico della ragione, che si pone al contempo in continuitá e in rottura con il lógos occidentale (Manganaro, 2008). Con un'avvertenza: declineró il "filosófico" nell'ottica segnatamente fenomenologica, e il "teológico" in quella cristologico-trinitaria, con l'obiettivo di cogliere l'unione-distinzione delle due discipline - costitutivamente autonome nella condivisa esperienza della veritá e di ció che puó essere sintéticamente definito il "filosofico-teologico". Fides e ratio - "pensare" e "credere" - sonó due dimensioni distinte ma connesse, intrecciate a quel filo d'oro che é l'essere umano con le sue molteplici, complesse potenzialitá: l'una piü spiccatamente argumentativa, discorsiva, noetica, lógica; l'altra intesa come apertura, accoglimento, disponibilitá, affidamento. Entrambe possiedono elementi razionali che sarebbe riduttivo misconoscere, tra i quali la motivazione, la Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf „„ °u decisione, la liberta, la responsabilitá, l'autonomia, la ricerca del senso, l'attribuzione di significato. Ed entrambe possono essere declínate in una pluralitá di espressioni e di manifestazioni che derivano tuttavia da un'unica radice, costitutiva dell'umano - lo spirito. Detto questo, spenderei qualche parola introduttiva sul filo che lega in un nodo complesso e sempre attuale la filosofía, l'Europa e l'Occidente. 1. Filosofía, Europa, Occidente Dobbiamo accettare il tramonto dell'occidente [untergang des abendlandes] come se si trattasse di una fatalitá, di un destino che ci sovrasta? sarebbe un destino fatale soltanto se lo accettassimo passivamente (Husserl, 1999, p. 4). Cosí Husserl ne L'idea di Europa. L'attuale orizzonte storico-culturale sembra rispondere con enigmática puntualitá al "destino" (all'identitá?) che l'Occidente - Abendland, térra del tramonto - pare portare in grembo sin dalla sua vicenda etimológica e semántica: un destino inequivocabilmente crepuscolare. Di caduta, di declino, di spegnimento come dall'interno. Nel quale pero si riflette come in uno specchio il brillare, ancora timido e fievole, dell'urgenza di un rinnovamento, di un ribaltamento. Forse anche di una trasfigurazione. L'Europa spirituale [geistige Europa] ha un luogo di nascita. Non parlo di un luogo geográfico, di un paese, per quanto anche questo senso sia legittimo, parlo di una nascita spirituale [geistige Geburtsstátté\ che é avvenuta in una nazione, o meglio per mérito di singoli uomini e di singoli gruppi di uomini di questa nazione. Questa nazione é l'antica Grecia del VII e del VI secólo a.C. Qui si delinea un nuovo atteggiamento [neuartige Einstellung] di alcuni uomini verso il mondo circostante [Umwe/t]. Da questo atteggiamento derivó una formazione spirituale di un genere completamente nuovo, la quale si trasformó rápidamente in una forma cultúrale sistemáticamente conclusa. I Greci la chiamano filosofía (Husserl, 1976/2002b, p.334). II fenómeno originario - Urphánomen - che caratterizza e individua l'Europa alio stato nascente é dunque la filosofía, fonte spirituale da cui sonó scaturite cultura e civiltá. In questo senso, soltanto lo spirito - Geist - é immortale, quale arché, inizio, primo annuncio; ma anche come presente, futuro e orizzonte deN'umanitá. La concezione eurocentrica, o presunta tale, di Husserl si tratteggia come primato della ratio, o meglio, del lógos greco: cosí l'idea di Europa necessariamente s'accompagna a quella di "spirito" e quindi di "cultura", "comunitá", "intersoggettivitá" (1); per il tramite di Franz Brentano, poi, la nozione fenomenologica di intenzionalitá risulta legata all'individuazione di un peculiare territorio ontologico - lo spirito, appunto - e al pensiero cristiano, in particolare all'istanza agostiniana deH'interioritá: Quaestio mihi factus sum. Tra cultura ellenica e pensiero cristiano, cosí ancora s'esprime Husserl: II deifico "conosci te stesso" ha ottenuto un significato nuovo. La scienza positiva vale nella dispersione mondana. Si deve prima perderé il mondo mediante Yepoché, per riottenerlo poi con la presa universale del senso di sé. Noli foras ¡re, dice Agostino, in te redi, in interiore nomine habitat veritas. (Husserl, 1976/2002b, § 64, p. 171). Volgendosi agli Erlebnisse coscienziali come al primum da cui muovere, il fenomenologo effettua un'inedita operazione di scavo neU'interioritá che attraverso Yepoché evita l'ipertrofia dell'ego, il solipsismo autoreferenziale e la dispersione nel mondano - le malattie tipiche dell'Occidente -, configurandosi piuttosto come a/7f/-egologia della Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf „, 8 ragione che si spinge sino all'analisi eidetica delle nozioni di "empatia", "comunione" e "comunitá": una sorta di capovolgimento delle moderne filosofie dell'io o del soggetto in direzione di un'accezione significativamente "noi-centrica", efero-centrata. L'atteggiamento del /ogos fenomenología) non é riducibile al modello di razionalitá delle scienze empiriche o fattuali: il desiderio di conoscenza, infatti, puó essere vanamente "riempito", e tale "riempimento" puó persino provenire da altro, da altrove, essere cioé ricevuto passivamente, in uno spostamento del centro d'irradiazione esperienziale. Come súbito si vedrá, é questo il caso paradigmático deII'Erfahrung mística. 2. Un'ottica capovolta. Pensare l'identitá nella relazione o del "filosoficoteologico" Veritá e religioni: un singolare e un plurale non scontati, stridenti sino all'urto e persino alio scontro di civiltá, se il proprio punto di vista é inteso come assoluto, ideológico e autoreferenziale. La sfida si gioca tutta nella congiunzione e, che sollecita a non essere negligenti, a non tradire l'impegno e la responsabilitá della ricerca nel pensare l'identitá e la relazione. O meglio: a pensare l'identitá nella relazione. La possibilitá di un autentico dialogo tra le varié religioni e di una vicendevole comprensione del significato originario di ciascuna passa attraverso il comune coglimento della veritá dell'esperienza religiosa nella sua universalitá. Parlare di "fenómeno" religioso consente una salutare apertura a ogni esperienza di Dio o del divino, a ogni manifestazione del sacro e persino a ogni eccedenza mística. Non si tratta infatti di un'unica religione intesa come "figura" storicamente determinata, ma di una filosofía fenomenologica deN'esperienza religiosa, al singolare, come "fenómeno" universa/mente e costitutivamente umano, che emerge quale comune denominatore, nel tempo e nello spazio, delle piü diverse e lontane tradizioni, attraversandole tutte (Van der Leeuw, 1992). Con ció, essa coglie la specifica razionalitá insita in ogni autentica religione. II compito odierno é, allora, quello di mostrare le condizioni di possibilitá di un ampliamento della ragione, di dilátame lo spazio non solo in senso orizzontale, ma anche e direi soprattutto in senso verticale, nella duplice direzione dell'altezza e della profonditá. Un risultato che si ottiene relazionando, intersecando la prospettiva cristologico-trinitaria - l'altezza, la sommitá - con quella filosofico-fenomenologica - la profonditá, la via ad intus -, con l'obiettivo di ribaltare il luogo comune che fa della filosofía e/o dello "speculativo" l'ardita e compiaciuta messa in crisi di ció che la tradizione occidentale ha chiamato revelatio (Coda, 2008, p. 13). Collocandomi in quest'ottica capovolta, intendo articulare la mia riflessione in forma interrogativa: quale lógos si sprigiona dall'evento della croce? Quale forza inaudita manifesta la "debolezza" kenotica del Lógos-V erita, del Crocifisso/Abbandonato, che separa sé da sé, che si svuota e rinuncia alia propria identitá rivelando il Deus Trinitas? La teo-logica della croce esprime un lógos-a\tro cosí potente e destabilizzante da costringere la filosofía a ridefinirsi. Qui il pensiero occidentale conosce la sua crisi e, insieme, tocca il suo vértice; e qui, proprio qui, il "filosofico-teologico" mantiene la sua promessa. La questione verte infatti sulla singolaritá-universalitá dell'evento Cristo, nella formulazione di Calcedonia vero Dio evero uomo, veritá sul divino e veritá sull'umano, su ogni essere umano: la veritá su tutti e su ciascuno, nessuno escluso. E verte altresi sulla teo-logica paradossale della croce, che non eselude vicendevolmente - aut/aut "abbandono" e "affidamento", ma li mantiene superando Turto antinómico in una "lógica" della relazione: et-et. La ragione filosófica é forse qui impotente, indigente, insufficiente, inadeguata? L'evento Cristo, infatti, non é contro ragione, ma mette in crisi la ragione. In tale prospettiva, Cristo é pietra d'inciampo per la filosofía o é pietra angolare di ogni riflessione sull'umano, e non solo teológica? In conformitá con questo spirito di ricerca, vorrei almeno accennare un'ulteriore questione epistemológica, che mi sembra di non secondaria importanza: la "filosofía della religione" puó davvero essere considerata una filosofía semplicemente "seconda", una delle tante "filosofie di..."? O, che é piü o meno lo stesso, davvero Dio puó essere considerato soltanto "oggetto" dell'indagine razionale e conoscitiva? Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf ^ ° Non dipende solo da noi conoscere Dio. Noi conosciamo Dio nella misura in cui Egli ¡iberamente si offre, si dona, si autocomunica (2), e il "modo" peculiare della sua rivelazione (non Offenbarung, ma re-velatio, manifestazione-nascondimento) é il Cristo, il suo evento di incarnazione, crocifissione, abbandono, risurrezione. Che dice súbito Mysterium Trinitatis, e lo dice nel paradosso di una "perfetta" identitá tra il Padre, il Figlio e lo Spirito Santo. Una perfetta identitá nella relazione. Si tratta dunque di indagare se e come la ratio possa pensare in modo rinnovato il mistero pasquale e trinitario, se e come la filosofía possa riconoscere la sua intima vocazione teológica all'interrogazione del principio, deW'arché. Risuona, forte e attuale, l'interrogativo che fu di Agostino: Come comprendere dunque che questa sapienza che é Dio é Trinitá? Non ho detto "come credere" (su questo, tra i fedeli, non deve esserci questione), ma se in qualche modo, per mezzo deN'intelligenza, possiamo vedere ció che crediamo, quale sará questo modo? (Agostino, 416/1968, p. 472) (3). L777fe//ecf¿/s//tfe/agostiniano conduce direttamente all'autocoscienza, alia riflessione sulla natura stessa del pensiero, cui pertiene la capacita di pensare se stesso. E getta luce sulla possibilitá di daré nuovo slancio alio studio filosófico della dimensione interiore, che l'Occidente ha prima ereditato, poi ripudiato, privándola della profonditá che in origine custodiva. In interiore nomine habitat ventas: eppure la modernitá ha risolto l'interioritá nella soggettivitá, divenendo progressivamente sistemática, monadologica, egologica. Non cosí la scuola fenomenologica, che puré ha fatto della coscienza e del suo erleben il primum da cui muovere l'analisi, anche nel caso paradigmático dell'esperienza mística. Ed ecco il punto da tenere in particolare considerazione: é possibile leggere Yepoché - l'istanza privilegiata della via ad intus, secondo Husserl - come de-costruzione dell'ego, come esercizio di volontario e libero svuotamento? 3. La forza della ragione pática. L'esperienza etero-centrata e la fenomenología della mística La mística non s'identifica con la filosofía - esse non sonó lo stesso - e non ne costituisce l'opposto - cosí come l'irrazionale (é il contrario) del razionale. II loro rapporto é complesso, di difficile declinazione e definizione. La mística é l'altro del pensiero, l'oltre del pensiero, il trascendimento stesso del pensiero, e si configura come quel momento di /70/7-pensiero o di /70/7-filosofia che viene tuttavia considerato il vértice del pensiero e della filosofía. Una filosofía della mística dovrebbe in prima istanza pensare, scavare, interrogare questo non. E vicendevolmente, lasciarsi provocare dalla potenza di questo negativo (4). La pratica a/7f/-egologica della ragione qui sostenuta si pone a fondamento della filosofía della mística quale condizione necessaria e valido sostegno, disegnando il profilo d'una etero-\og\ca: la lógica della relazione, che non eselude, bensl integra e mantiene, la lógica dell'identitá, aprendola alia pensabilitá speculativa del dinamismo d'amore intratrinitario. Come sopra rilevavo, allargare gli spazi della ragione non é dunque soltanto auspicabile: é possibile. II Lógos crocifisso, il Dio kenotico - insieme potente, impotente e onnipotente - e la forza della ragione pática: il sacrificio della crocee il sacrificio della ragione possono ora essere (ri)pensati come condizioni di quel "risorgere" che, solo, consente la costruzione d'una civiltá imperniata sulla perdita di sé per-I"a/tro. Una civiltá efero-fondata, /70/-centrica. Di contro a un Occidente che rischia l'autoimplosione, in questo nuovo "luogo" del pensare ci si avvede che la spada tagliente d'un siffatto non e ferisce e risana: et-et. Qui si gioca il superamento del "sacro" in favore del "mistico". A patto pero d'intendere il "místico" quale attiva e/o dinámica passivitá: se l'essere di Dio é ora concepito nel pathos, sará disposta la ratio filosófica a farsi crocifiggere? A inchiodare la sua vanitá, la sua arroganza, la sua sete di dominio e di possesso? A confrontarsi seriamente con l'abissale Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf „,, °ó differenza tra l'esito nichilista della cultura occidentale e la presenza-potenza dell'esperienza kenotica, la quale non dice fallimento né debolezza, ma forza della povertá e dello svuotamento volontari? Alia ragione pática viene cosí offerta la possibilitá di raggiungere, nella distanza, la vetta e l'abisso del pensiero: il Mysterium Trinitatis. L'origine e il senso della questione trinitaria risiedono infatti nella confessione in un Dio che porta su di sé il sigillo dell'abbandono. II segno del non. Nell'accezione fenomenologica, l'esperienza mística é efero-centrata, é cioé un vissuto non-egologico: un attraversare e un essere attraversati dalla differenza, dall'alteritá (5). Qui sta il significato piü profondo della continuitá e della frattura con il lógos occidentale; e ancora qui risiede la possibilitá dell'irruzione della potenza estranea, dell'invasione del divino, il quale fa dell'umana dimensione interiore, il "dove" e/o il "luogo" della sua manifestazione riempiente - secondo la dizione husserliana, si tratta della "profonda profonditá" e/o della "profonditá profonda". L'individuazione della fonte o sorgente altra da cui il vissuto místico scaturisce offre occasione di ulteriore scavo nel núcleo dell'essere umano: l'anima. Nell'analisi fenomenologica dell'Erlebnis místico avviene una sorta di spostamento del centro esperienziale, nel dinamismo che va dall'/Ttfra-soggettivo all777fer-soggettivo. Se l'/nfra-soggettivo non é disgiunto dall'/nfer-soggettivo, la lógica della relazione non si oppone, si affianca a quella dell'identitá: non la elimina, l'accompagna e la completa. Ció significa che la questione sopra richiamata del núcleo dell'identitá persónate concerne al tempo stesso, e con pari dignitá, quella dell'identitá relazionale. Vi é inestricabilmente connessa. L'identitá che si svuota di sé, che rinuncia a sé e che si libera dalle catene dell'io empírico e superficiale rimanda alia possibilitá di un io non-egocentrato (Manganaro, 2006) e dunque a una ragione non-egologica, non autoreferenziale ma parimenti svuotata. Una ragione pática, kenotica. I mistici cristiani parlano di abnegare se ipsum o abnegare proprium, il cui paradigma é e rimane quello del Crocifisso/Abbandonato, attestato in FU 2,7. In conclusione, la fenomenología di Husserl costituisce il paradigma d'un pensare nuovo, diverso, origínale, che attraverso Yepoché costringe a un cambiamento di prospettiva, a una conversione dello sguardo sulla base d'una filosofía concepita quale scienza rigorosa. Essa mostra le condizioni di possibilitá del riempimento di senso, di cui descrive analíticamente anche le modalitá d'attuazione. Cosí ancora il fenomenologo, insistendo sull'atteggiamento spiritualedell'umano: Invece di permanere in questo atteggiamento , noi vogliamo mutarlo radicalmente. Ció allude a una determinata e peculiare modalitá della coscienza, che si aggiunge alia semplice tesi o posizione originaria e, sempre in maniera peculiare, le fa subiré una conversione di valore. Questa conversione di valore é cosa che riguarda la nostra piena liberta (Husserl, 1952/2002a, § 3 1 , p. 67). Ampliare gli spazi della ragione é dunque possibile in senso orizzontale everticale, e piü ancora in altezza e in profonditá, nell'esperienza di una veritá condivisa dal sapere filosófico e da quello teológico: una possibilitá che s'inserisce nella nostra vicenda esistenziale e intellettuale come fatto di liberta e di responsabilitá. Auspico che la filosofía non si sottragga all'impegno di un pensare cosí elevato. Riferimenti Agostino. (1968). De Trínitate. Turnholti: Typographi Brepols Editores Pontificii. (Corpus Christianorum Series Latina). (Original de 416 de). Coda, P. (2008). Sul luogo della Trinitá: rileggendo il De Trinitate di Agostino. Roma: Cittá Nuova. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf „. °4 Husserl, E. (1999). L'idea di Europa. Milano: Raffaello Cortina. Husserl, E. (2002a). Idee per una fenomenología pura e per una filosofía fenomenología (Vol. 1). Tormo: Einaudi. (Original publicado em 1952). Husserl, E. (2002b). La cris! delle scienze europee e la fenomenología trascendentale. (trad. ) Milano: II Saggiatore Tascabali. (Original pubblicado em 1976). Husserl, E. (2002c). Meditazioni cartesiane e Discorsi parigini ("Epilogo"). Milano: Bompiani. (Original publicado em 1931). Manganaro, P. (2006), L'anima e IIsuo oltre: ricerche sulla mística cristiana. Roma: Ed. OCD. Manganaro, P. (2008). Filosofía della mística: Per una pratica non ego-logica della ragione. Cittá del Vaticano: Lateran University Press. van der Leeuw, G. (1992). Fenomenología della religione. Torino: Boringhieri.(Original publicado em 1933). Nota (1) L'ultimo residuo della riduzione fenomenologica non é la monade soggettiva, questa sorta di ego solipsistico, bensl Yerleben intersoggettivo della comunitá: con ció viene riattualizzato il nos di Agostino - Intima scientia est qua nos vivere scimus {De Trinltate, XV, 12) - e sonó gettate le fondamenta per la comprensione della nozione filosófica di "alteritá", in un fertile dialogo con l'ontologia trinitaria e la connessa "lógica" della relazione. Sul fronte filosófico, si veda Ales Bello, A. (1997). Culture e religión: una lettura fenomenologica. Roma: Cittá Nuova; Ales Bello, A. (1993). Archeologia fenomenologica del logos occidentale. IIContributo. XVII(3), 3-12.). Roma: Cittá Nuova. Sul versante teológico, cf. Hemmerle, K. (1996). Tesi di ontologia trinitaria. Roma: Cittá Nuova.; Coda, P. (2003). IILógos e IINulla: Trinitá religionimística. Roma: Cittá Nuova. (2) Per una riflessione filosófica sul nesso linguaggio-rivelazione, rimando a Manganaro, P. (2005). L'esperienza della venta nella parola-.filosofía linguaggio rivelazione. Cittá del Vaticano: Lateran University Press. (3) Agostino. (1968). De Trinitate - Libri XIII-XV (Corpus Christianorum Series Latina). Turnholti: Typographi Brepols Editores Pontificii. [«Hanc ergo sapientiam quod est Deus, quomodo intelligimus esse trinitatem? Non dixi: "Quomodo credimus?" (nam hoc inter fideles non debet habere quaestionem), sed si aliquo modo per intelligentiam possumus videre quod credimus, qui iste erit modus?»]. (4) Cf. Stein, E. (1997). // castello interiore. In Natura persona mística: per una ricerca cristiana della veritá (a cura di A. Ales Bello). 2a ed. (A. M. Pezzella, Trad.). Roma: Cittá Nuova. (Textos origináis publicados em 1930, 1932 e 1936; pp. 115-147); Stein, E. (1982). Scientia crucis: studio su S. Glovanni della Croce. (Edoardo di S. Teresa, Trad.). Milano: Áncora. (Original publicado em 1950); Walther, G. .(1955). Phánomenologie der Mystik(2a ed.). Olten und Friburg: Walther-Verlag. (5) cf. Ales Bello, A. (1992). Fenomenología dell'essere umano: Lineamenti di una filosofía al femminile. Roma: Cittá Nuova; Ales Bello, A. (2003). Per un recupero della mística nell'ambito fenomenologico: Gerda Walther e Edith Stein. In AAVV, Esperienza mística e pensiero filosófico: Atti del Colloquio Filosofía e Mística (Roma, 6-7 dicembre 2001) (pp. 11-25). Cittá del Vaticano: Librería Editrice Vaticana. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Manganaro, P. (2008). Allargare gli orizzonti della razionalitá: prospettive fenomenologiche e cristologico-trinitarie su filosofía della religione e mística. Memorándum, 14, 79-85. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf „ " Nota al riguardo dell'autrice Patrizia Manganaro é laureata in filosofía, docente di filosofía del linguaggio presso la Pontificia Universitá Lateranense, Roma, Italia. Contatto: [email protected]. Data de recebimento: 01/03/2008 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/manganaro06.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf O comum em urna comunidade quilombola baiana no século XXI e o Terreiro de Candomblé What's common in an afro descendent community of Bahía in the 21 Century and the "Terreiro de Candomblé" Elaine Pedreira Rabinovich Universidade Católica do Salvador Brasil Resumo Este estudo tem por objetivo apontar alguns dos processos de formagao e sustentagao de urna comunidade. Para atingir tal objetivo, descreve um recorte específico de urna comunidade afro-descendente, localizada no litoral baiano, durante seu processo de reconhecimento como Remanescente de Quiolombo. Relata a entrevista com membros de urna familia realizada pela pesquisadora e por urna lider local, ao mesmo temp em que percorrem os espagos onde outrora havia um terreiro de Candomblé. Nesse percorrer, tempo e espago se entrecruzam criando pontos em comum a partir de onde se pode ler os acontecimentos atuais e passados, com vistas a um futuro desejado. Palavras-chave: comunidade; quilombo; Candomblé; ambiente. Abstract This study intends to point out some community processes of formation and support through observation and description. To accomplish this task, it describes a specific moment of an afro-descendent community located on the coast of Bahia (BR), its process of being recognized as a "Remanescente de Quilombo". The study reports an interview with the local leader, while he and the researcher walked around an área where there was a "Terreiro de Candomblé". In this journey, time and space intersected creating common points from where one can read past and present events looking for a desirable future. Keywords: community; quilombo; Candomblé; environment. O cenário Se tudo nasce da agua, ainda mais quando foram elas as nascentes de um povoado remanescente indígena e africano - em térras tórridas de um Brasil tropical e baiano, assim as aguas serao nossos guias, como certamente foram deles ao chegarem as térras localizadas em Mata de Sao Joao. Que fontes? Enterradas e contaminadas por urna barragem que barra a agua, mas principalmente barra o passado que nutre - fonte vital - o futuro e deixa urna enorme tristeza. Pois o lago construido a partir délas - sete fontes, olho d'água pura para se banhar, limpar roupas e comidas, se divertir, se encontrar, socializar e, a partir disto tudo, criar um ritual que unia e dava o significado sagrado de ligar tudo, natureza e gente - pois o lago das fontes sagradas agora está cercado de casas de temporada, turistas nacionais e talvez estrangeiros, que jogam as suas fezes no mesmo lago onde circulam seus barcos a motor, afastando os pássaros, os bichos, e enlameando a agua com outras lamas. Turistas que olham o lago da barragem como um cenário para o seu fausto, mais do que sua diversao que esta, para acontecer, precisa da fonte enterrada por eles. O passeio continua á procura da agua, e vemos a "Passagem do Boi", aonde a gente também ia, mais o boi. Este boi agora é urna vaca que ainda anda solta pelos terrenos, comendo o que nao deve e criando celeumas, resto de um passado onde todos os animáis eram criados soltos. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf „? Restos também poluem a "Fonte das Mulheres" que ainda a usam para lavar louga e tomar banho, onde um menino limpa peixe longe do cachorro para que este nao o coma antes dele - fonte cercada de dejetos humanos, garrafas de plástico e congénere: as mulheres usam o mato como ontem - quando o mato era ¡menso e a gente pouca - e o lixo é o de hoje: desperdicio. A "Fonte da Mogas" - gragas a suas gragas - continua pura e intocada, assim como dois mananciais, a serem protegidos como os tesouros mais ricos e escondidos, que realmente sao: a agua já se tornou um bem da humanidade a ser preservado, mas aparentemente outras verdades estao jorrando na frente desta: o bem de poucos frente á sede de muitos, ou de todos. Esses dois sao a "Fonte dos Indios" e a "Fontinha nos Milagres", sobreviventes porque escondidos ñas matas, enfim, fontes quilombolas. "Os objetos construidos pelos homens (...) sao substituidos. Mas, se destruírem estas matas, quem pode refazé-las? Que maos poderiam produzi-las?" (Mahfoud, 2003, p.107). Quem pode refazer as nascentes e os rios desta destruigao pelos homens que a sociedade de consumo de coisas substituíveis nao pode substituir? Estamos em térras postas a descoberto pela Linha Verde, a energía elétrica tendo chegado em 1993, e as demais melhorias do chamado progresso, aguardando a sua vinda. Televisoes monitoradas por antenas parabólicas permitindo captar 23 cañáis lá estao, ao lado da agua encanada de urna bomba instalada em um pogo artesiano que, quebrada, obriga as mulheres a retomar os velhos hábitos de lata d'água na cabega, assim como roupa e outras coisas que portam com um donaire e aptidao invejáveis! Nao há outros pogos, a agua só aparece em grande profundidade, e roupas e pratos foram levados as fontes que sobraram, e a agua trazida na cabega. As térras, de Mata Atlántica secundaria, pertencem á reserva Florestal Sapiranga, declarada Área de Protegáo Ambiental, em 1992. Estamos em um longo veráo, sem chuvas, o que afeta a quantidade e a qualidade da agua, o crescimento das plantas e o plantío. Historias que contam a historia Pelas máos de Edite - líder, coordenadora e professora da Escola Comunitaria de Pau Grande, membro e conselheira da recém criada Associagáo de Moradores Tupinambá, fui apresentada aos moradores. Estes foram surgindo cada um em seu canto, como um canto, contando mais do que vida, contando de vidas que já foram e esperando por um tempo de ser vida hoje. A historia aqui apresentada será a de Dona Dada, e de seu espago-mundo. O método seguirá a origem etimológica do termo: caminho, e irá passear pelos dominios espagos-temporais da entrevistada. Este método acompanha os acontecimentos durante o processo de estudo, de modo que as referencias teóricas foram a ele acrescidas, nao decorrendo de um posicionamento previo. Este procedimento pode ser assimilado ao que Boumard (1999, p.2) descreve como postura etnográfica, ou seja, a ida ao campo como o material indispensável para que o discurso sobre o outro tenha sentido . Dona Dada: "de mim, veio tu do isso!" Dada estava fora da casa e lá nos recebeu. Nao ser recebida dentro da casa difere de outras experiencias no Brasil, onde á porta aberta se segué um convite para ali adentrar e tomar algo, cuja recusa implica mesmo em ofensa aos donos da casa. Porém, o mesmo ocorreu em outro quilombo localizado em Sao Paulo, o Carmo (Rabinovich, 2003, 2005), onde varias entrevistas foram realizadas na porta da casa. No Carmo, a explicagao estava ligada a um trago de desconfianga atribuido aos moradores e associado aos sofrimentos pelos quais já haviam passado. Aqui, no entanto, a explicagao possível é que fora pode ser mais agradável do que dentro: os próprios moradores preferem ficar sob árvores, ou em terragos arejados. As cozinhas sao externas para evitar tanto a fumaga da lenha queimada quanto o calor do forno de barro. As casas sao pequeñas. Donde estar fora pode ser mais agradável do que dentro das casas. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em uma comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Q< Chamo Bernardina de Jesús, tenho 53 anos, já sou bisavó. Recebi meu nome de minha mae que homenageou o seu pai que se chamava Bernardo. Como foi a primeira neta, botou de lembranga do pai déla. O sobrenome Jesús, muito comum na localidade, indica uma origem africana, assim como ser nomeada pela mae, a linhagem matrilinear. Contudo, a inclusao, pela mae, da figura de seu pai ao nomear a filha, denota um ato de carinho e de afeto em relagao ao progenitor, além de reforgar, de certa maneira, a heranga e os vínculos dele advindos. I o elemento comum: a posse da térra Vim para cá com 9 anos, com a mae e uma tia. Vim de Tanagra, municipio vizinho. Meu pai morreu cedo, e veio para cá porque achava que era melhor. Negociava com animáis e achava que aqui era melhor. Ela teve um menino que morreu, só ficou eu. De mim, veio tudo istoü (o restante da familia). Para confirmar as informagoes sobre a posse da térra, sem que tenhamos pedido, traz a escritura de compra do terreno, em nome do antigo proprietário. Relata Silva (2004, p. 162) que, no sul do país, os ex-escravos e seus descendentes "foram pressionados a adquirir legalmente as porgoes de térra que ocupavam desde os anos 70 do sáculo XIX, com o objetivo de legitimar através da compra e nao perder a posse desses territorios". Ñas localidades de Pau Grande, Taquera e Barreiros, este é o momento inicial do seu reconhecimento como Remanescente de Quilombo, obtido no final de 2006, estando, em 2007, instaurado o processo de titulagao das térras pelo INCRA. Trata-se do seguimento de uma longa historia iniciada em 1549, com a chegada de Tomé de Souza a Salvador, Bahia, e com ele, García d'Ávila, cuja familia se tornou proprietária do maior latifundio já existente no mundo: uma sesmaria que ocupava 1/10 do Brasil, praticamente todo o Nordeste, térras indo do norte de Salvador até Maranhao, durante 10 geragoes sucessivas. Sao descendentes dos escravos, negros e indios, e de brancos, que habitavam e trabalhavam ñas fazendas dessa familia os atuais quilombolas dessas tres localidades. 2 o elemento comum: o trabalho rural e suas implicacoes Meu pai era roceiro, roga de mandioca, feijao de corda, milho, banana. Trabalhava na Fazenda da Praia do Forte, de estrovenga e limpar coqueiro. Seu pai se mantinha á custa de uma economía de roga caseira, como a maioria dos moradores daquele tempo, ao lado do trabalho para o dono da Fazenda Praia do Forte, ácima referida, a mais antiga do país. Silva (2004, p.162) aponta, para quilombos situados no Rio Grande do Sul, o subemprego, atividades informáis, baixos salarios e aviltantes recursos de arrendamento, muitas de forma verbal, caracterizando essas comunidades. Indica, igualmente, o recurso a alimentos e ervas medicináis provenientes de suas rogas familiares, sendo que algumas familias criavam pequeños animáis domésticos, galinhas e porcos, como o caso do pai e do tio de Dona Dada, cuja intengao, ao se fixar em Pau Grande, foi comercializar com animáis. Portanto, pode-se tragar um primeiro elemento comum da comunidade: serem trabalhadores rurais, com as implicagoes deste trabalho, que nao sao objeto do presente estudo. Apenas para deixar registrada, a maior parte dos moradores de Pau Grande e Barreiras pagaram renda aos antigos proprietários. 3 o elemento comum: as parteiras e a nomeacao das changas Dada teve tres maridos. Dos 12 filhos, os primeiros receberam o nome "do Almanaque", um calendario com o nome do santo correspondente ao dia. Os demais filhos foram Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf o nomeados de modo a reforgar o sentimento de irmandade. Assim, a historia dos nascimentos, conforme a atribuigáo do nome, está ligada tanto á sua historia pessoal quanto á do povoado. Sua máe, parteira, nao quis fazer os seus partos. Assim, no parto dos primeiros filhos, a parteira foi das Dores. Já a mae do terceiro marido era também parteira e insistiu em fazer os partos. nE os filhos com Raimundo (o terceiro e atual marido), foi D. Venencia que pegou todos os cinco1.", comentou o pai orgulhoso. Nos primeiros filhos, de acordó com o costume local, a parteira deu o nome a partir do Almanaque. Repetindo a sua própria historia, Dada dá o nome do segundo marido ao filho deste, iniciando urna serie de nomes de maneira a denotar que os irmaos faziam parte de um mesmo grupo. No parto dos filhos do terceiro marido, realizados pela mae deste, os nomes passam a ser dados pelo marido: todos comegam com R. Este modo de nomear confirma o que disse, referindo-se a si própria: "De mim, veio tudo isto!" O uso do Almanaque, encontrado sistemáticamente ñas demais familias entrevistadas, indica o processo de evangelizagao ainda atuante na época pelas práticas das parteiras que realizavam a dupla fungao do nascimento: o parto biológico e o parto social. Como as parteiras eram também rezadeiras, acumulavam assim urna terceira - e tripla fungao religiosa, a de ligagao entre mundos. 4 o elemento comum: o uso de apelidos Contudo, de um modo sistemático, todos na comunidade sao, e foram, conhecidos por apelidos. Isto denota que o parto da pessoa propriamente ocorria no grupo de pertencimento pelo apelido, pelo qual continuava sendo conhecida e reconhecida durante toda a vida. Antonio Cándido (2001) relata que, na comunidade caipira por ele estudada, havia a prática de nomes patronímicos, oriundos da tradigáo medieval portuguesa de dar o nome do pai seguido da desinencia es com a fungao genitiva de "filho de". Até recentemente, nao havia sobrenomes. Segundo esse autor, na tradigáo rural, havia o "nome do papel" e o nome segundo o progenitor, marcando a importancia tradicional do genitor. "Quando a familia da máe era mais importante, ou o marido se integrava nela, o nome do avó materno predominava pois ele era o chefe." (p. 303). Na comunidade estudada, os sobrenomes sao poucos, pois além de terem sido recentemente criados, as familias sao aparentadas. Assim, como em geral no Brasil, os nomes, como sinais identificatórios, sao mais importantes do que os sobrenomes. Quando os nomes sao dados segundo urna tradigáo crista - dar o nome do santo do dia porém fruto de urna violencia simbólica - e quando estamos em urna organizagáo sóciofamiliar em que predomina o direito do útero, mais do que o do patrio poder, a parteira ficou empossada deste duplo encargo. Contudo, ante urna identificagáo "incompleta", ou mesmo de urna "manipulagáo de identidade" (Arruti, 2002), um segundo trago comum emerge: o uso dos apelidos. 5 o elemento comum: urna memoria comum a partir da marginalizacao conforme inscrita nos sobrenomes Raimundo de Conceigáo Santos, 46 anos, é o 3o marido, com quem está casada D. Dada há 21 anos. Segundo Edite, os Conceigáo sao descendentes de indígenas, pois esse sobrenome decorre da cápela de Nossa Senhora. da Conceigáo, centro religioso e de festas da comunidade. Esta cápela lá está até hoje, no Castelo da Torre, ao lado da vila dos pescadores, também um quilombo - o de Taquera. Varios foram os relatos abordando as festas ali realizadas, com as barraquinhas de sapé, muita comida e bebida, muita danga avangando noite á dentro. E nao cansava, pois no dia seguinte todos trabalhavam até com mais energía, mesmo sem ter nada dormido. Conceigáo, portanto, é festa, santa e sobrenome, urna manifestagáo sincrética. "Apreender o significado é fazer memoria, é tecer urna ponte através do qual o significado pode chegar ao presente". (Mahfoud, 2003, p.62). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf g Haveria urna ponte ligando significados no Nome? A ponte entre passado e presente seriam os encontros em noites imemoráveis que se mantém vivas na memoria e sao passadas a nos, por experiencias do que nao tivemos mas em lugares onde estamos agora? Por outro lado, há significagoes ritualísticas que se mantém porque margináis? Segundo Silva (2004, p. 162), um tecido cultural de resistencia aos processos de desterritorializagao é forjado através de aliangas matrimoniáis, festas comunitarias, redes de parentesco, amizades e compadrio e a consolidagao de urna memoria comum. Á marginalidade, como um elemento comum em populagoes mantidas fora de centros de decisao e controle políticos, corresponderiam solugoes específicas como formas de resistencia, como no caso do patronímico dos caipiras estudados por Cándido; e talvez pelos sobrenomes. Em Pau Grande, ressaltamos Jesús, Conceigao, Santos, Evangelista; no quilombo do Carmo, em Sao Paulo, encontramos Carmo, Borba, Marcelino, Guarino; e no quilombo de Sao Miguel e Rincao dos Martimianos (Anjos & Silva, 2004), no Rio Grande do Sul, Martins, Rezende de Souza e Alves da Silva. Portanto, as historias que indicam as pontes que ligam os significados variam e, percorrendo-as, pode-se chegar as experiencias que as produziram. Trata-se de algo em comum, embora diferente - urna memoria comum a partir da marginalizagao conforme inscrita nos sobrenomes. No caso da localidade do Carmo (Rabinovich, 2003), por exemplo, o mito fundador do agrupamento pode ser o elemento mais fundamental de sua historia e da historia de seus moradores e se organiza em torno da santa, Nossa Senhora do Carmo. Esta foi encontrada no rio e, para legitimar a sua posse, ou seja, a posse da térra da santa, trabalharam cerca de um ano em outra cidade. Bananal. Ocorre que aos escravos estava proibida a posse de térras, sendo a Igreja sua quardia, donde o termo "térra da santa" ou "do santo". Pode ser que os ex-escravos tenham trabalhado para pagar a sua alforria em outra fazenda do mesmo proprietario daquela onde se encontravam originalmente, a Fazendo do Carmo. Foram e retornaram com a santa que ocupa o altar principal da cápela que leva o seu nome. Essa Nossa Senhora do Carmo nao carrega o menino, como as demais Nossas Senhoras do Carmo, mas porta o seu manto. Praticamente todos os descendentes deste grupo se chamam Carmo. 6 o elemento comum: a dispersao familiar, a ruptura da convivencia e a passagem da tradigao Raimundo nasceu em Pau Grande, mas foi criado em Salvador, sendo que os irmaos, fora dois, venderam tudo. "Quando o pai morreu, venderam a térra, eu nao, dei para minha filha e neta". Conheceu Dada porque "seu pai inventou de casar no civil e fez festa, e dei para gostar déla e amasieí'. Raimundo parece muito orgulhoso de seu casamento e filhos. É bem magro, miudinho, como muitos descendentes de indios, enquanto os africanos sao maiores, mais altos, com urna musculatura mais volumosa. Apresentam doengas diferenciadas: os descendentes de indios, diabetes; os de africanos, pressao alta. Raimundo é filho de um casal fundante do local e da comunidade, Venáncia e Teotónio Batista dos Santos. Teo foi o primeiro professor do local e Venáncia foi a principal parteira da localidade. Foram proprietários de urna enorme gleba de térra que, como Raimundo descreve, foi vendida, e os irmaos, dispersaram-se, indo habitar a periferia de Salvador. Um deles retornou á sua origem indígena. Nada pode ser mais importante do que ser um professor de todos da localidade. Um ser quase venerado. A tradigao, no sentido de enraizamento (Weil, 1949/2001), foi passada a poucos filhos. Contudo, urna de suas netas tem a "memoria incorporada" dessa tradigao por ter sido criada pela avó, encarregada de acompanhar os partos, recordar as historias de ventos que falavam, de encantados que estao ñas matas assustando os moradores, de fontes que davam vida, de como eram realizados os batizados, e de muitas outras. Muitos significados sao passados pela convivencia, principalmente durante a infancia e adolescencia; é ela que permite frequentemente a ponte entre passado e presente pela evocagao na memoria dos gestos, dos cheiros, das presengas. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em uma comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf 91 Voltei para cá, onde planto aipim e fago um pouco de carpinteiro. Um irmao, motorista da Nestlé, sofreu derrame, quem cuida é a esposa, mora em Salvador. Outro irmao vive no sertao, mais na térra, mais indio. Estamos em uma regiao rural onde pouco se planta nem se cultiva. Alguns ainda plantam aipim e mandioca para que as mulheres fagam farinha ñas casas de farinha existentes no local. Há, pelo menos uma, em cada quilombo. Algumas familias sobrevivem da extragao do azeite do coco de dendé, sem se preocupar em plantar a árvore. Praticamente perdeu-se a arte de tecer a palha, embora ainda se fagam armadilhas para pegar peixe ou pitu. Muitas árvores frutíferas proliferam por si sos, seus frutos sendo colhidos as vezes. A mesma dispersao e estado de coisas é relatada por Antonio Cándido sobre os caipiras paulistas nos anos 1950 quando, com a perda da paisagem social e económica, ocorre uma incorporagao progressiva á esfera da cultura urbana. "Os desajustes se resolvem, cada vez mais, pela migragao urbana, com abandono das atividades agrícolas e passagem a outro universo de cultura" (2001, p. 271). Portanto: mais um elemento comum: a dispersao familiar e a ruptura de um tipo de convivencia ainda vista na casa de Dada. A casa de Dada ainda é um terreno familiar onde moram varios familiares, seus filhos. Um deles montou um bar ao lado da casa; um neto tem uma bandinha de pagode e treina em um espago suspenso {veja foto 01), guardando os instrumentos em uma das casas, abandonada e a mais antiga {veja foto 02) Foto 01: lugar de ensato de banda Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf 92 Foto 02: estudio de música As casas sao feitas de blocos, com teto de teína, de tamanho semelhante. Há distancia entre elas. Ainda se pode ver no local, casas de pau-a-pique e teto de sapé. Muitas foram e estao sendo construidas por mutirao. No terreno, há um jirau de tábuas fechadas para secar a louga e panelas, urna torneira ao lado e um galho que serve de paneleira {veja foto 03). O banheiro é externo, de palha, e serve para o banho, tendo um "cagador" separado. Foto 03: Jirau, paneleira, casa da filha de Dada ao fundo Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf g^ Urna filha de Dada, moradora de urna das casas ao lado da déla, aparece com um menino de 2 anos, seu filho, pois vai ao hospital ver o neto que nasceu. Bem arrumada, nao nos olha, nossa presenga nao causa estranheza. Já o menino pergunta constantemente pela mae, inconformado. A mae, antes de sair, deixa algumas instrugoes com a avó. Urna menina de 5 anos vem carregando o menino de 2 anos, sendo repreendida pelos demais. Essa filha nao nos dirigiu um olhar sequer de reconhecimento; depois, comandou a avó em sua tarefa de cuidar do filho. Repreenderam a menina por carregar a crianga. Se Dada é bisavó aos 54 anos, nada mais natural que esta jovem, que parece ter cerca de 40 anos, seja avó ao mesmo tempo que mae de urna crianga de 2 anos. Eis urna das razoes porque certas teorizagoes, como ciclo de vida, devem ser vistas como normatizadoras. A avó foi encarregada de ficar com o neto, denotando um tipo de vínculo que Sarti (2004) chama de rede de obrigagoes. Nao se trata nem de um desejo da filha nem da avó, mas de um compromisso que mantém a estrutura familiar, independente das motivagoes particulares de seus membros. Quanto á crianga ser repreendida por se ocupar de outra, deve-se observar que as changas, de ambientes semelhantes a esse, sao muito protegidas até atingir o "entendimento", em torno de 5 anos, o que se deve a dois fatores: ao alto índice de mortalidade infantil; e ao mito africano de a crianga ser especial, como representado ñas festas de Cosme e Damiao, presentes na Bahia ainda hoje quando se dá comida a todos que pegam. Enquanto eu aplaudía a menina carregando a outra crianga, em urna atitude ideológica de saudagao á autonomía, os demais ¡mediatamente a censuraram fortemente, temendo pela sua seguranga. Ao mesmo tempo, como bem apontou Bastos (2001), as criangas partilham obrigagoes domésticas desde muito cedo, com isto compartilhando a vida familiar. Sao também responsáveis por atividades fora de casa, como comprar pao em local próximo, ajudar na roga, capinar etc. Tudo isto pode ocorrer antes dos 5 anos, se houver necessidade familiar e capacidade da crianga. Sao responsáveis pelos cuidados de outras criangas, carregando-as e embalando-as no lugar da mae. O visto na cena ácima, portanto, sugere que há regras quanto a esses cuidados entre criangas relacionadas, supostamente, as idades relativas de ambas e á seguranga. Antigamente, a térra era tanta que, se alguém quería um pedago, o dono simplesmente podía dar, dizendo, por exemplo: pegue daquela jaqueira até as pedras. Andando, chegamos ao Terreiro de Candomblé de sua mae, tema que acabou por centralizar a conversa. O Terreiro é urna área grande situada ácima do local das moradias, com urna entrada independente pela rúa, atualmente nao usada. A mae de D. Dada deu térras para Moga, que morou muitos anos com ela e foi por ela "disciplinada", isto é, iniciada. No entanto, ninguém assumiu o terreiro após a morte da mae de Dada. A mae de santo Moreninha Chamava-se Cecilia de Jesús e morreu com 78 anos, de broncopneumonia. No Atestado de Óbito, aparece apenas o nome de sua mae, Francelina Francesca de Jesús. Minha mae trabalhava na roga, doente, doente, de nascimento, negocio de indio. Corría para o mato, eu tinha de chamar ela. Eu ficava com medo, meu tio me levava pra casa dele, ficava uns 8 dias.Nao conheci meu pai, meu padrasto me descadeirava, me cortou 2 dedos porque fui mexer no facao. Algo da historia de Dada comega a ser desvelado. De um lado, a heranga matrilinear. Perdeu o pai cedo, sua mae casou-se com um padrasto que a maltratava, seu tio foi seu refugio. Sua mae, por sua vez, apresentou urna manifestagao de comportamento que a apavorava e desamparava, pois estas fugas para a mata a deixavam á mercé do Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomble. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf 94 padrasto. Eis porque nao seguiu o caminho materno em relagao a se tornar zeladora do terreiro: nao Ihe foi possível realizar urna identificagao positiva com essa mae e com o seu percurso. O mato é o desconhecido, onde trevas habitam sem luz, sem consciéncia. É possível abandonar-se em um transe sem perder-se na mata? Disseram que tinha caboclo e que precisava trabalhar. Tinha de trabalhar e botaram para disciplinar. O caboclo chegou nela, recebia e tratava. Urna vez feito o diagnóstico - fora possuída por um caboclo ou orixá - tinha de trabalhar / elaborar essa possessao para deixar de ser por ela dominada. Teve o noviciado que a formou como Mae de Santo. Carneiro (1948/2003) assinala que no candomble de caboclo há a incorporagao de mais de um orixá, diferentemente de outros, como na África. Para Montes (2003, p. 17), "confiscados os seus vínculos de pertencimento, de sangue, língua ou nagao, o negro escravo os recría no interior da cultura da nova térra". Essa autora enfatiza que as religioes africanas ensinam a negociar com as forgas do cosmos os impasses do cotidiano em que o sagrado invade a totalidade da experiencia do mundo. Foi assim no tratamento de Moreninha: primeiro, a zeladora a colocou no rancor, casa onde as pessoas ficam guardadas para serem trabalhadas porque estao possuídas por um espirito. Corta-se todo o cábelo - significando a limpeza da cabega - para o espirito assentar. No rancor, há urna capelinha com um santo. A pessoa é trabalhada até poder receber a entidade com quem vai trabalhar. Durante este período, que é longo, ela muda a sua alimentagao, toma varios banhos e realiza muita oragao. Daí abriu o terreiro e recebeu diploma (veja foto 04) Foto 04: diploma Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf g, Federagao Bahiana do Culto Afro-Brasileiro Fundada em 1946 OLORUM ELE DA DIPLOMA Confere a Cecilia de Jesús Responsável pelo Centro de Caboclo Gentil das Matas - M.T. 2.364 Salvador, 24 agosto de 1990. Urna organizagao, a Federagao Bahiana do Culto Ihe conferiu o grau de Mae de Santo, responsável por um terreiro, o Caboclo Gentil das Matas. A cidade onde o quilombo está localizado chama-se ela própria Mata de Sao Joao. O candomblé é o culto dos deuses africanos, como praticado na Bahia. Segundo Verger (2003, p.16), as religioes trazidas de Daomé e da parte sudoeste da atual Nigeria, mantiveram-se principalmente nos candomblés da Bahia. Em cada terreiro, urna mae ou pai de santo é depositario dos axés, ou objetos sagrados desses deuses. Sacrificios de animáis e oferendas de alimentos sao feitos aos deuses durante as cerimónias privadas. Os deuses sao, a seguir, invocados e chamados a voltar á térra pelas cangoes, durante dangas simbólicas executadas pelas filhas e filhos de santo, ao som dos atabaques e de um sino chamado agogó. A presenga dos deuses se manifesta pelo transe das filhas e filhos do santo, no corpo dos quais se encarnam os diversos orixás. Cada filha e filho de santo é possuído apenas pelo orixá ao qual é consagrado, durante a sua iniciagao. 7 o elemento comum: a forca das mulheres congregando tres poderes: saúde, social, religioso Ela trabalhava muito bem e os outros tinha ciúmes esta zeladora trabalhava muito bem! Colocavam Exu com rifle ñas costas para por ordem, na porta déla. Entao, eu e as outras desistimos de continuar o terreiro porque tinha muito despacho. Ela foi muito experimentada. Conflitos foram vivenciados de forma muito ameagadora, levando as suas possíveis seguidoras a desistir de manter o terreiro. O motivo do confuto seria a sua supremacía em relagao as possíveis demais rivais. Edite pergunta sobre urna possível rivalidade entre as tres parteiras locáis. O significado de ser parteira era triplo, conjugando o poder "médico", o poder "civil" e o poder "religioso", pois além do nascimento biológico e do nome como nascimento social, havia a forga das rezas e da própria pessoa responsável por dar passagem entre dois mundos. Era parteira mas nao dos netos porque ficava com medo. Por isso foi D. Venáncia, mae de Raimundo, quem pegou os cinco filhos dele. Nao temos resposta quanto ao confuto. Dona Venáncia, ao realizar o parto dos netos da única filha de Dona Moreninha, estava, a nosso ver, adquirindo algum poder sobre esta, mesmo que indiretamente. Sem dúvida, mulheres fortes se confrontaram, tecendo relagoes de sustentagao da comunidade mesmo que a dividindo. Portanto, podemos enunciar mais um elemento comum: a forga das mulheres congregando tres poderes: saúde, social, religioso. 8 o elemento comum: o terreiro e o dendé Continuando, chegamos ao local onde fora o terreiro. O terreiro era ali adiante. Tinha dendé - flor azul, e mesa branca - agua. Era sessao de agua e flor. Fazia despacho no dendé. Comegou fazendo caridade, depois comegou a cobrar. Fazia trabalho de limpeza. A gameleira era o lugar onde amarrava as coisa ruim. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf 96 Segundo Edite, o dendé caracteriza a presenga africana no local {veja foto 05). O dendé marca geo-historica-culturalmente o local de terreiros porque onde era langado o carogo, ali nascia o dendé. O comum, ai indicado, é um uso comum do dendé como alimento, como festa, como religiao, elementos estes que estao comungados no terreiro de Candomblé. As cerimónias públicas do candomblé tém lugar em grandes barracoes decorados com grinaldas de papel recortado ñas cores dos orixás, que se festejam neste dia, e duram horas, durante as quais cangoes nagós sao cantadas, mantendo-se assim com grande vitalidade o patrimonio espiritual legado pelos seus ancestrais (Verger, 2003, p. 16). Foto 05 9o elemento comum: a temporalidade mítica No meio do mato, duas figuras nos espreitam: um exu, ainda com as suas cores {veja foto 06), e urna figura de preto velho. Perto deles, algumas tigelas de barro, pequeñas, ainda permanecem {veja foto 07). Os altares sao espagos sagrados em que se condensam cosmologías; sao espagos densos de significados, povoados de objetos que ao mesmo tempo captam e transmitem a forga de um misterio que só aos poucos se desvenda, na dramatizagao dos mitos que os ritos poem em cena para a iniciagao dos fiéis ou a celebragao festiva de suas obrigagoes rituais. (...) Os ritos falam de estórias dos deuses e do tempo da criagao. (Montes, 2003, p. 17). Da casinha de despacho (fotos), sobraram quatro estatuas de ferro que estao na minha casa. O resto tudo botou numa caixa e deixou no mato, Moreninha pediu, e assim foi feito: as roupas, os pratos, bacías, Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf coritas, espadas dos caboclos, vermelho (Iansa) e azul (Ogum). Foto 07: tigelas de barro Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf gj Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf 10° elemento comum: a visao cíclica do eterno retorno O que vem do mato, ao mato retorna. A visao cíclica, do eterno retorno, do uróboro - a serpente que morde a própria cauda como símbolo da transmutagao permanente de morte em vida, da dialética material da vida e da morte - está manifestada neste desejo de Moreninha. Além de se poder observar outras coincidencias, como a ¡mago mundi no Benin, térra ancestral de muitos de nossos africanos. O Uróboro, velho símbolo de um velho Deus natural destronado pelo espirito, permanece urna grande divindade cosmográfica e geográfica; como tal, está gravada na periferia de todas as primeiras imagens do mundo, como o disco de Benin, sem dúvida, a mais antiga ¡mago mundi negro-africana (Chevalier & Gheerbrant, 1982/1991, p.816). 11° elemento comum: sincretismo Santo Antonio era o padroeiro. Tinha S. Cosme, S. Raimundo, N. Sr. do Bonfim, N. Sra. da Conceigao, Candeias. Os santos déla, fiquei tudo. O primeiro que comegou a vida déla foi Santo Antonio de Lisboa. Apesar de Dada ter conservado apenas os santos da Cápela dos Santos, o candomblé incorpora, funde e resume as varias religioes do negro africano e sobrevivencias religiosas dos indígenas brasileiros, com muita coisa do catolicismo brasileiro e do espiritismo (Carneiro, 1950/2003). No terreiro havia: a Casa dos Espíritos ou Despacho, onde as fotos revelam os restos, ao lado da gameleira; a Cápela do Santo, perto do dendé, onde estavam os santos. Há inda muitas espadas de Ogum sob a árvore. Sob a gameleira, o despacho era 2a e 6a feiras. Fazia a limpeza do local. Na Casa dos Espíritos, um era Sete Facadas. Duas vezes por semana se fazia a limpeza do local, e nos Caboclos também: acordava as 5 horas, antes dos passarinhos levantar, pegava agua no brejo. Lavava as pedras, os pratos, com sabonete e alfazema. Estamos em um pleno cor/agao - em um centro de cor pulsante em que coincidem a alma e o pulso, o significado de coragao para os indios Tucuna (Chevalier & Gheerbrant, 1991, p.283). Na Cápela de Mesa Branca, tinha os santos e rezava lá e depois passava para o barracao de danga. O barracao media 10 passos de cada lado, até mais. Tinha rancor, cozinha, dois quartos de mudar roupa e dormir. Comia galinha de terreiro e carneiro, arroz, feijao, farofa; camarao no pilao. Fazia pemba, um pó com raízes para quando estava com dor. E fazia trabalho de limpeza, cruzava os dois. A limpeza pelo banho era de jurema, aroeira, espinheira cheirosa. (Carneiro, 1950/ 2003, p. 3). Há sempre um altar com imagens e registros católicos na sala de festas, mas os seres que vém ao terreiro sao legítimos deuses africanos. Assim se realiza a comunhao dos seres humanos com os deuses e com as ancestrais. Os dois mundos se confundem no Candomblé. Os deuses e os mortos se misturam com os vivos no terreiro, ouvem as suas queixas, aconselham, concedem gragas, resolvem as suas desavengas e dao remedio para as suas dores e consolo para os seus infortunios. O mundo celeste nao está distante, nem Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf g superior, e o crente pode conversar diretamente com os deuses e aproveitar de sua beneficencia. (Carneiro, 1950/ 2003, p. 109). 12° elemento comum: A Festa! A Festa! Segundo relatos de outros moradores, o terreiro era o local de festas que se estendiam noite adentro, na ausencia de qualquer outra diversao. Varios homens, moradores no local, declararam ir ao terreiro nao por acreditar, mas para se divertir. A festa sintetiza o comunitario, a vida cotidiana onde estao presentes: parentesco, meio ambiente, calendario agrícola, respeito aos mais velhos, historia dos ancestrais, lideranga feminina, conhecimento de plantas (Moura, 2004b, p. 67). Igualmente, Silva (2004, p. 195) frisa que as festas eram momentos extraordinarios que rompiam com o cotidiano das comunidades negras rurais, promovendo um sentimento especial de estar junto e configurando o espago social privilegiado do acontecimento extraordinario. Muitos possuíam habilidades como músicos, tocando instrumentos e cantando. 13° elemento comum: a cura pelas ervas Andamos pelo terreiro e sao nomeadas as plantas para a limpeza, jurema, aroeira, espinheira cheirosa, e mais: espada de Santa Bárbara (pontuda); espada de Oxuns; sangue de lavoura: para gases; abre caminho; bálsamo; bijus ou Sao Gongalo (cheiro forte) para limpar energía; juiz de paz: inflamagao para mulheres; capetinha do diabo ou avelude: para cáncer, verruga, queima demais, só urna gota; carqueja do campo; vassoura de botáo: mal olhado; anticoncepcional; mal me quer: vermífugo e antiinflamatório; cabriola: para esticar cábelo; malva branca (e vermelha): para inflamagao de dente; "sedegoso": febre, dor de cabega, conjuntivite, vermelháo (erisipela); mata-pasto: coceira; língua de vaca. E outras. Este conhecimento, elaborado e acumulado por indígenas e africanos, representa urna inestimável riqueza do país. Em um espago pequeño de terreno, proliferavam urna impressionante variedade de ervas medicináis. Um país e um povo a quem a farmacología ocidental só chegou bem recentemente, e ainda assim de modo muito incipiente porque impossível de ser adquirida devido ao custo, só pode ter sobrevivido a custas desse conhecimento. Sem esquecer que a urbanizagáo vem dos anos 1950 para cá, portanto, ainda somos rurais, mesmo que habitando em cidades. Pelos olhos de Dada e Edite, descortina-se nao apenas um monte de mato: estamos em um cor/agáo - em um centro colorido que pulsa - e que emerge das trevas deixando aflorar urna arqueología que dá sentido á vida daquelas pessoas. Clóvis Moura (2004a) conta que a retirada dos quilombolas de Alcántara deixou a populagáo sem nenhum referencial histórico e cultural, como simples aglomerados de negros. Aqui, a memoria permanece inscrita no local, pelas pequeñas figuras que nos espreitam, pelas espadas de Sao Jorge que anunciam a área protegida, pelo dendé espalhado na área, pela historia que significa este espago. Em Morro Vermelho, comunidade rural de Caeté, Minas Gerais, a populagáo mantém tradigóes herdadas dos portugueses e guarda especial atengáo ao passado, encarnado em suas origens e percursos históricos, depositando sua esperanga no futuro, representado pelas novas geragóes (Leite & Mahfoud, 2007). Seu nexo de pertenga á comunidade se manifesta em festas ligadas a datas litúrgicas. Qual a pertenga á comunidade dos candomblés? A liturgia - a fungáo pública - dos candomblés pode implicar em forgas outras além da espiritual, pois o reconhecimento de áreas, como o terreno por nos pisado, como Remanescente de Quilombo implica em urna transferencia do patrimonio da propriedade da térra e em questóes de importancia geopolítica e económica (Moura, 2004a), inclusive, como no presente caso, de interesses de transnacionais devido á proximidade com a Praia do Forte onde extensa rede hoteleira internacional está instalada. A este respeito, Frúgoli alerta para as formas de poder baseadas em distintas representagóes de temporalidade e espacialidade e sobre as diversas e intricadas mediagóes das relagóes entre sociedade e natureza (2006, p.302). Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf ,™ Á guisa de conclusao: a peregrinagao Foi urna peregrinagao - urna viagem a lugares distantes, santos e de devogao -, em térra estranha: a de um Brasil escondido. Edite e eu, retornando á térra dos vivos, perguntamos se Dada permitiría que essa área pudesse vir a se tornar um referencial de um passado nela encarnado para as próximas geragoes. Que outros pudessem percorrer os mesmos caminhos, vivenciar esta historia que está apenas ñas fimbrias, as margens. Sua resposta foi evasiva. Por ocasiao do 450° aniversario de Sao Paulo, pude contemplar, estarrecida, a carta de alforria dos negros assinada pela Princesa Isabel. Entao, pensei, houve realmente urna princesa, chamada Isabel, que se compadeceu dos pobres pretos e, pegando de urna pluma, mergulhou-a em tinta e, sabendo escrever, assinou o seu nome? Donde é venerada até hoje, como a Santa Libertadora? Qual a importancia dos gestos que permanecem? Esse caminho, se percorrido por outros, pode vir a fazer parte de um reservatório de memoria que Dada, Raimundo, Edite, eu, e as criangas que nos acompanharam, pudemos ter experiencia? A noite dos tempos cai depressa nos povos sem escrita. Esse nosso passeio recuperou urna escrita? Urna verdadeira diferenga cultural separa as sociedades que escrevem daquelas que nao escrevem. As segundas elaboraram desde muito tempo sobre a prática oral seus próprios modelos de expressao, seus sistemas de trocas e de equilibrios, assim como sua memoria. (...) Os depositarios da historia das sociedades oráis sao os seus sabios e os seus poetas. (Hagége, 1985, p.120). "Para alcangar o desenvolvimento pessoal, cada membro precisa conviver, isto é, viver com os outros" (Ales Bello, 2006, p.77) pois o lócus de realizagao da pessoa é a comunidade. O que é fundamental, se quisermos ter pessoas que possam decidir sobre os seus destinos. Assim, retomando o principio desta apresentagao - a busca do comum dessa comunidade - que termos encontramos?: a natureza; modos de partilhar; modos de morar; mutirao; ruralidade; apelidos; trabalhadores rurais; memoria comum e marginalizagao; convivencia; dispersao e sentimento de pertencimento; rede de parentesco; rede de obrigagoes; festa; forga das mulheres; dendé; coco; fusao de imagens e significados; comunhao; medicina por ervas. Para Mahfoud (2007), identificar os sustentadores da comunidade e enfocar a sustentagao interpessoal que confere funcionalidade á comunidade pode nos oferecer urna releitura dos processos comunitarios. Essa passagem por um caminho, além do desterro, evocou pontos de sustentagao que foram encontros e que sao, todavía, alimentadores de urna poética que serve de norte para as pessoas por ela tocadas. Porém, se a encruzilhada é o caminho do diverso que se encontra em um ponto onde é hora de partir de novo (segundo Souza Jr.no discurso de quatro de abril de 2006, proferido no Ciclo "Conversando com a sua historia"), entao: os elementos comuns permitem encontros, mas nao permitem prever acontecimentos que sao imprevisíveis? Referencias Ales Bello, A. (2006). Introdugao á fenomenología (J. T. García; M. Mahfoud, Trad.). Bauru: Edusc. Anjos, J. C. G. D. & Silva, S. B. D. (2004). Sao Miguel e Rincao dos Martimianos. Ancestralidade negra e direitos terrítoríais. Porto Alegre: Editora da UFRGS. Arruti, J. M. A. (2001). Agenciamentos políticos da "mistura": Identificagao étnica e segmentagao negro-indígena entre os Pankararú e os Xocó. Estudos afroasiáticos, 23(2), 215-254. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf Bastos, A. C. D. S. (2001). Modos de partilhar. A changa e a vida cotidiana da familia. Taubaté: Cabral Editora Universitaria. Boumard, P. (1999). O lugar da etnografía ñas epistemologías construtivistas. PslRevista de Psicología Social e Institucional, 1(2). Retirado em 23/10/2008, de http://www2.ccb/psicologia/revista/textolvln22.html. Candido, A. (2001). Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformagao dos seus meios de vida (9a ed.). Sao Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. Carneiro, E. (2003a). Como se desenrola urna festa de Candomblé. Em Quilombo: vida, problemas e aspiragoes do negro: Edigao fac-similar do jornal (pp.22-23). Sao Paulo: FUSP; Ed. 34. (Original em 1948). Carneiro, E. (2003). A teogonia negra. Em Quilombo: vida, problemas e aspiragoes do negro I Edigao fac-similar do jornal (pp. 109). Sao Paulo: FUSP; Ed. 34. (Original publicado em 1950). Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (1991). Dicionário de símbolos (4a ed., V. Costa; R. D. Silva; S. Barbosa; A. Melim & L. Melin, Trads.). Rio de Janeiro: José Olympio. (Original publicado em 1982). Hagége, C. (1985). L'homme humaines. Paris : Fayard. de paroles: Contribution linguistiques aux sciences Frúgoli Jr., H. (2006). A arena em rorno do futuro Plano Diretor de Sao Bento do Sapucaí 9SP): Novos significados da relagao entre cidade e campo. Em H. Frúgoli Jr.; L. T. D. Andrade & F. A. Peixoto (Orgs.), As cidades e seus agentes: práticas e representagoes (pp.277-304). Belo Horizonte: PUC Minas; Edusp. Leite, R. V. & Mahfoud, M. (2007). Cuidar da educagao, da cultura e de si: horizontes de urna experiencia de resgate da cultura popular na escola. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 17(2), 74-86. Mahfoud, M. (2003). Folia de Reis: Festa raíz: Psicología e experiencia religiosa na Estagao Ecológica Juréia-Itatins. Sao Paulo: Companhia Ilimitada. Mahfoud, M. (2007). Centro pessoal e núcleo comunitario, segundo Edith Stein: indicagoes para estudos sobre familia. Em A. M. A. Carvalho & L. V. D. C. Moreira (Orgs.), Familia, subjetividade, vínculos (pp. 107-124). Sao Paulo: Paulinas. Moura, C. (2004a). Formas de resistencia do negro escravizado e do afro-descendente. Em K. Mununga (Org.), Historia do negro no Brasil: Vol.l. O negro na sociedade brasileira: resistencia, participagao, contribuigao (pp.09-61). Brasilia: Fundagao Palmares-MinC. Moura, G. (2004b). Quilombos contemporáneos no Brasil. Em K. Mununga (Org.), Historia do negro no Brasil: Vol.l. O negro na sociedade brasileira: Resistencia, participagao, contribuigao. (pp. 62-75). Brasilia: Fundagao Palmares-MinC. Montes, M. L. (2003). Cosmología e altares. Em Negras memorias, memorias de negros: O imaginario luso-afro-brasileiro e a heranga da escravidao (p. 17). Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Rabinovich, E. P. (2008). O comum em urna comunidade quilombola baiana no sáculo XXI e o terreiro de candomblé. Memorándum, 14, 86-102. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovicri01.pdf ,^ Rabinovich, E. P. (2003). O Carmo: aspectos psico-sócio-históricos do desenvolvimento de changas brasileiras afrodescendentes. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 13(1), 79-93. Rabinovich, E. P. & Gallo, P. R. (2005). Estudo das familias de urna comunidade quilombola do Carmo, Sao Roque, SP. Em J. C. Petrini & V. R. S. Cavalcanti (Orgs.), Familia, sociedade e subjetividades: urna perspectiva multidisciplinar (pp.195-209). Petrópolis: Vozes. Sarti, C. A. (2004). Algumas questoes sobre familia e políticas sociais. Em C. Jacquet & L. F. Costa (Orgs.), Familia em mudanga (pp. 193-214). Sao Paulo: Companhia Ilimitada. Silva, D.S. (2004). Constituigáo e diferenga étnica: o problema jurídico das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Em: O'Dwyer E. C. (Org). Terra de quilombos (pp. 161-196). Rio de Janeiro: ABA; UFRJ. Verger, P. (2003). Candomblé. Em: ????. Negras memorias, memorias de negros: O imaginario luso-afro-brasileiro e a heranga da escravidao (p. 16). Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte. Weil, S. (2001). O enraizamento (M. L. Loureiro, Trad.). Bauru: Edusc. (Original publicado em 1949). Nota sobre a autora Elaine Pedreira Rabinovich é professora do Mestrado em Familia na Sociedade Contemporánea da Universidade Católica do Salvador. Psicóloga clínica, mestrado em Psicología Experimental, doutorado e pós-doutorado em Psicología Social, ambos no Instituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo onde exerce o cargo de professora convidada no Curso de Pós-graduagao Psicóloga e Historia, da Profa. Dra. Eda T. O. Tassara (IPUSP) em conjunto com o Prof. Dr. Jean-Pierre Goubert, historiador na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris VI. Exerceu o cargo de Editora Assistente da Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. Membro fundador e pesquisadora do Laboratorio de Psicología Socio-Ambiental e Intervengao, LAPSI-IPUSP. Atua na área de desenvolvimento infantil e ambiental, com interesse especial na formagáo cultural brasileira. Contato: [email protected]. Agradecimentos A Edite, que me recebeu e acompanhou esta trajetória que se tornou nossa; a Ricardo e a Dadja, por me permitirem participar de suas vidas; a todos os moradores entrevistados; e a Adelaide Brandáo que me possibilitou tal encontró. Data de recebimento: 24/04/2007 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/rabinovich01.pdf Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil. Memorándum, 14, 116-118. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf 1i¿- Resenha O poder e a cruz: colonizagao e redugoes dos jesuítas no Brasil The power and the cross: colonization and reductions of the Jesuits in Brazil Emanuele Colombo Universitá degli Studi di Milano Italia Massimi, M. (2008). IIpotere e la croce: colonizzazione e riduzioni del gesuitiin Brasile. Milano: Edizioni San Paolo. As redugoes jesuíticas no Brasil sempre estiveram no centro de vivos debates, sendo objeto de urna literatura de divulgagao que muitas vezes carece de urna investigagao seria dos documentos históricos. Ao mesmo tempo, os diversos estudos de especialistas dedicados a esse tema tiveram sempre difusao restrita. O livro de Marina Massimi, atrás de um título e de urna capa cativantes, esconde urna síntese eficaz e de agradável leitura dos mais recentes estudos a respeito da Companhia de Jesús e das próprias pesquisas da autora. 1. Mais que propor urna introdugao á Companhia de Jesús, o livro introduz o leitor na própria Companhia de Jesús, permitindo-lhe, para usar urna famosa expressao de John O'Malley, "compreender os jesuítas como os jesuítas compreendiam a si mesmos". Quem le é levado a urna viagem pelas principáis fontes que descrevem a identidade da ordem, como a Fórmula do Instituto, as Constituigóes, os Exercícios espirituais e a Autobiografía do fundador. O livro chama também a atengao para o valor da escrita, especialmente das cartas, instrumentos indispensáveis para a garantía da circulagao de informagoes e da unidade de condugao da Companhia, e, ao mesmo tempo, "remedio para a dor da ausencia" dos companheiros em missao ñas térras de além-mar. As cartas escritas pelos jesuítas no Brasil constituíam "a ponte que aqueles homens procuraram estabelecer entre o Velho Mundo - um mundo que era o próprio mundo deles, conhecido e familiar, mas agora distante - e o Novo Mundo - urna realidade estranha, desconhecida e fascinante, e muitas vezes hostil, antes conteúdo de imaginagao e de sonhos, agora realidade ¡mediata e presente" (p. 20). Sao também muito importantes as litterae indipetae, escritos pelos quais os jovens jesuítas se candidatavam as missoes, explicando ao preposto-geral as razoes de seu pedido, que este recebia de todos os noviciados da Europa. É quando procura esclarecer o que a missao significava para esses homens que o livro alcanga suas páginas de maior forga e originalidade. A formagao históricopsicológica de Marina Massimi, autora de numerosas publicagoes sobre esses temas, permite-lhe aprofundar de maneira extremamente original algumas das palavras usadas pelos potenciáis missionários: "desejo", um termo também muito freqüente nos Exercícios espirituais, e ainda "indiferenga", "tristeza", "consolagao". Compreendendo o valor desses termos para os jesuítas, o leitor pode comegar a enxergar os acontecimentos históricos relativos as missoes com o olhar dos protagonistas. 2. Para justificar a evangelizagao, sobretudo em situagoes politicamente complexas, como a brasileira, os jesuítas precisavam demonstrar que o indio era urna "pessoa", um homem para todos os efeitos dotado de alma. A evolugao dessa convicgao, que certamente nao era obvia no principio da Idade Moderna, nos é mostrada, no livro, por intermedio de fontes dos séculos XVI e XVII particularmente interessantes. As questoes, os problemas que se apresentam e os debates sao iluminados por textos fundamentáis da Segunda Escolástica (como os chamados Conimbricenses, comentarios as obras de Aristóteles muito difundidos na Companhia), além de estudos antropológicos e Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil. Memorándum, 14, 116-118. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf 117 psicológicos muitas vezes redigidos em forma de diálogo, nos quais se discute a natureza dos indios. A visao antropológica da Companhia está na origem da énfase que ela dá á educagao: se os indígenas possuíam todas as "potencialidades" da alma humana, o que Ihes faltava era a educagao, tarefa primordial dos missionários. As opinioes, no entanto, oscilavam no que diz respeito a muitos aspectos: a religiosidade tradicional dos indígenas, por exemplo, era considerada, por alguns missionários, urna idolatria que tinha de ser condenada, ao passo que, para outros, ela era urna auténtica expressao do sentimento religioso, que os aproximaría do cristianismo; o uso da forga para submeter os povos indígenas, muitas vezes violentos e antropófagos, era admitido em condigoes particulares, ao mesmo tempo em que, em outras ocasioes, era condenado sem reservas. Numerosas citagoes nos permitem compreender também a distancia que existe entre o olhar europeu e o dos missionários que atuavam no "trabalho de campo": estes frisavam sempre a necessidade de urna convivencia cotidiana com os indios, para aprender sua linguagem e compreender e amar suas tradigoes. Assistimos ainda ao desengaño de que eram acometidos alguns missionários com o passar do tempo: depois de um inicio triunfal, eles tomavam consciéncia das dificuldades de obter conversoes sinceras e duradouras, como também do caráter delicado das relagoes com o poder civil espanhol e portugués. Todos esses aspectos, que na historiografía as vezes sao reduzidos a fenómenos puramente políticos e sociais, tém um fundamento teológico e religioso que o livro revela com clareza. 3. Outro mérito da obra é a descrigao dos métodos e "estrategias" dos missionários. Também aqui, a autora retoma as origens de algumas características bem conhecidas do "modo de proceder" jesuítico, mostrando como tudo já estava presente no ensinamento de Inácio. A conversatio, cujo valor era sempre destacado pelo fundador, está na origem da importancia fundamental das pregagoes ñas missoes da Companhia. Já a insistencia de Inácio sobre a necessidade de adaptagao as diferentes circunstancias e as características do interlocutor inspirou o método jesuítico da acomodagao {accomodatió), utilizado pelos missionários durante mais de dois séculos no mundo inteiro, da China ao Paraguai. O livro mostra a unidade profunda que existia entre o conteudo teológico da pregagao e a forma como os missionários procuravam nao apenas explicar, mas também "mover" e comover seus interlocutores. Palavras, gestos, teatralidade, música, procissoes, liturgia: tudo o que os jesuítas propunham estava estreitamente ligado ao conteudo que queriam comunicar. As espléndidas igrejas que se construíam ñas redugoes, a música, que insería temas religiosos em melodías tradicionais indígenas, a utilizagao de imagens, todos esses eram instrumentos destinados a tornar evidente aos indígenas a verdade e a beleza do cristianismo. 4. O quinto capítulo nos oferece urna galería de "retratos" de "figuras exemplares" das missoes no Brasil. De fato, quando, na Companhia, eram destacados os talentos que um jesuíta deveria cultivar, essa énfase sempre passava por testemunhos a serem imitados. Antonio Vieira, missionário e "príncipe dos pregadores", é sem dúvida um protagonista indiscutível entre os jesuítas do Brasil. Em seus famosos sermoes, Vieira apresenta sua vida como caracterizada pela obediencia, sinal da imitagao de Cristo, á qual dedicou sua genialidade e grandeza. Quando o rei portugués Joao IV Ihe ofereceu o cargo de primeiro-ministro, Vieira respondeu que "prefería ser mendicante á porta do Colegio a deixar o hábito dos filhos de Inácio". Temos também Joao de Souza e Pero Correia, primeiros mártires da Companhia no Brasil, cuja biografía, por décadas, foi lida e dada como exemplo ñas casas da ordem. A vida de Antonio Nóbrega, provincial do Brasil, é apresentada como urna verdadeira ¡mitatio da vida do fundador da Companhia, enquanto José de Anchieta, o "apostólo do Brasil", homem de aguda e viva inteligencia, é recordado como autor de urna fundamental gramática da língua tupi-guarani. Por fim, vemos o retrato de Inácio de Azevedo, que morreu a 15 de julho de 1570 apertando nos bragos a imagem de Nossa Senhora, ao ser bárbaramente martirizado pelos piratas franceses ñas Ilhas Canarias, ao lado de setenta companheiros. Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf Colombo E. (2008). Resenha: O poder e a cruz: colonizacao e reducoes dos jesuítas no Brasil. Memorándum, 14, 116-118. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf 11 o 5. Nao podemos deixar de reconhecer a riqueza das fontes deste livro. Além das fontes manuscritas do arquivo romano da Companhia, como as cartas annuais do Brasil, as litterae indipetae, objeto de numerosos estudos, e os Catalogi trienales, recentemente utilizados para urna pesquisa sobre os criterios de recrutamento para as missoes, há tambem urna serie de citagoes de textos publicados nos séculos XVI e XVII que, como já dissemos, contribuem para esclarecer os debates teológicos e filosóficos daquela época. A bibliografía soma á literatura européia, já mais conhecida, urna selegao de estudos brasileiros. Estamos diante de um livro "de divulgagao" escrito por urna especialista, modelo que vem tendo crescente sucesso no mundo inteiro. Se é urna síntese, agradável de se ler, de estudos recentes e consagrados sobre a Companhia de Jesús, apresenta tambem, ao mesmo tempo, pesquisas origináis da autora. Encontramos no livro o juízo equilibrado de alguém que escreve historia por oficio, mas, tambem, a paixao pelo itinerario da Companhia - particularmente pelas missoes jesuíticas -, tema que há décadas nao cessa de seduzir geragoes de estudiosos. Podemos ver, enfim, ñas entrelinhas, o olhar crítico do historiador, consciente da dificuldade de fornecer interpretagoes e balangos sobre um tema de alto risco, mas tambem sabedor do enorme legado dos jesuítas no Brasil. A vida desses homens, seus gestos, as palavras que pronunciaram e escreveram tiveram, talvez de modo mais evidente no Brasil que em qualquer outro lugar, "urna continuidade no tempo e na memoria popular e cultural", o que testemunha a vitalidade e a eficacia de sua presenga. Nota sobre o autor Emanuele Colombo é doutor e pesquisador na área de Historia do cristianismo e das igrejas junto á Universidade dos estudos de Pádua (Italia) e desenvolve atividade de pesquisa junto á Universidade dos estudos de Milao. É autor de ensaios de historia religiosa e de dois livros: Cario Antonio Casnedi (1643-1725) e ¡I suo tempo (Soveria Mannelli & Rubettino, 2007) e Convertiré i musulmán!. L 'esperienza di um gesuita spagnolo delSeicento. Milano, Bruno Mondadori, 2008). e-mail: [email protected] Data de recebimento: 16/02/2008 Data de aceite: 15/10/2008 Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/colombo01.pdf