Vanessa Costa e Silva Schmitt. CHARLES BOVARY

Transcrição

Vanessa Costa e Silva Schmitt. CHARLES BOVARY
1
CHARLES BOVARY, OFFICIER DE SANTÉ EM
YONVILLE-L’ABBAYE NO SÉCULO XIX
CHARLES BOVARY, OFFICIER DE SANTÉ À
YONVILLE-L’ABBAYE AU XIXe SIÈCLE
Vanessa Costa e Silva Schmitt*
Robert Ponge**
RÉSUMÉ: Élaboré à partir d’analyses présentées dans une thèse de doctorat en littératures
francophones soutenue à l’UFRGS, conçu dans un groupe de recherches qui se penche sur les
rapports entre la littérature, l’histoire et la science, reposant sur une méthodologie historique
,
et thématique cet article se propose d’étudier quelques éléments relatifs à la présence de la
médecine dans la deuxième et la troisième parties de Madame Bovary (1857), roman de
Gustave Flaubert. Après avoir rappelé quelques aspects de l’intrigue, du personnage de
Charles et des débuts de son activité médicale à Tostes, son premier lieu d’exercice, de même
que la place qu’il occupe dans la hiérarchie médicale, nous étudions ses habitudes de travail à
Yonville, c’est-à-dire quels sont ses horaires, ses déplacements, les maladies et les lésions
qu’il soigne, les traitements qu’il prescrit, ainsi que les malheurs qui lui arrivent dans son
parcours médicale.
MOTS-CLÉS: XIXe siècle; Madame Bovary; littérature et médecine.
RESUMO: Elaborado a partir de análises apresentadas em tese doutoral em literaturas
francófonas defendida na UFRGS, concebido em um grupo de pesquisa que se debruça sobre
as relações entre a literatura, a história e a ciência, apoiando-se numa metodologia histórica e
temática, este artigo propõe-se a estudar alguns elementos relativos à presença da medicina na
segunda e terceira partes de Madame Bovary (1857), romance de Gustave Flaubert. Após
*
Vanessa Schmitt é graduada em Odontologia, mestre e doutora em Letras (especialidade de literaturas francesa
e francófonas), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
**
Robert Ponge é professor titular aposentado do Instituto de Letras da UFRGS, docente convidado e orientador
do PPG em Letras da UFRGS.
2
levantar alguns aspectos da intriga, do personagem Charles e de seu começo de carreira em
Tostes, primeiro local de exercício médico, assim como o lugar que ele ocupa na hierarquia
médica, estudamos seu quotidiano de trabalho em Yonville, ou seja, quais são seus horários,
seus deslocamentos, as doenças e lesões de que se ocupa, os tratamentos que prescreve, bem
como os infortúnios que ocorrem em sua trajetória médica.
PALAVRAS-CHAVE: século XIX; Madame Bovary; literatura e medicina.
Partindo da preocupação em estudar as relações entre literatura/história/sociedade e
baseando-se em elementos de análises apresentadas em tese de doutoramento (SCHMITT,
2012)1, este artigo visa a examinar alguns elementos referentes à presença da medicina em
Madame Bovary (1857), romance de Gustave Flaubert. Na sequência de trabalho anterior
(SCHMITT, 2010) que se debruçou sobre o quotidiano do personagem Charles Bovary no
vilarejo de Tostes (primeira parte do romance)2, procura-se aqui estudar as atividades e o
comportamento médicos do mesmo personagem durante sua estada na pequena cidade de
Yonville-l’Abbaye (trata-se da segunda e da terceira partes da obra).
Começamos por uma enxuta apresentação da intriga de Madame Bovary, seguida das
outras partes: debruçamo-nos sobre o status profissional de Charles (ele é officier de santé,
oficial de saúde3), sobre seus rendimentos e sobre o padrão de vida que levam os Bovary. Em
seguida, esforçamo-nos para examinar de perto a prática médica de Charles (sua rotina de
trabalho e os dois principais infortúnios de sua trajetória profissional).
A intriga de Madame Bovary
Madame Bovary é a história banal de Emma Rouault, senhora Bovary. Ela é, sem
sombra de dúvida, o personagem central do romance. Mas seu marido, Charles Bovary, está
longe de ser um personagem secundário: é ele que abre e encerra a narrativa, e seu papel é
essencial.
No começo do romance, ele estuda medicina, depois passa a exercer em Tostes e casase com uma mulher bem mais velha (achado de sua mãe), que se torna uma esposa tirana. Ela
morre repentinamente após quatorze meses de casamento. Ele está livre para casar-se
novamente.
Escolhe por esposa a charmosa Srta Emma Rouault (filha de um paciente, fazendeiro)
e encontra a felicidade nestas segundas núpcias. Para ela, no entanto, este marido com o qual
3
tanto sonhou mostra-se bastante decepcionante. Sua vida é tão monótona quanto a conversa
de Charles (“plate comme un trottoir de rue”4). O quotidiano sem surpresa e sem paixão
entedia a jovem nubente. O tédio agrava-se. Como sua mulher reclama o tempo todo de
Tostes, Charles decide instalar-se em outro domicílio, após ter consultado seu antigo mestre
em Rouen, segundo o qual é necessário mudar de ares (p. 128). A cidadezinha de Yonvillel’Abbaye é o lugar escolhido. Por ocasião da mudança, Emma está grávida.
Lá, ela conhece Léon, um jovem ajudante de notário. Rapidamente, uma afeição
mútua surge, mas ela permanece virtuosa e fiel a seu marido. O nascimento de sua filha,
Berthe, não lhe traz felicidade alguma. Após a partida de Léon, que vai estudar direito em
Paris, sua melancolia aumenta e ela passa a desprezar Charles, depois deixa-se seduzir por
Rodolphe, um dos abastados proprietários de terras do local. Abandonada por seu amante, ela
adoece gravemente. Após a convalescência, por acaso, em Rouen, os Bovary encontram Léon.
Emma torna-se então sua amante. Charles não desconfia de nada.
Presa numa rede de mentiras e de acumulação de dívidas, Emma vê-se sem saída.
Léon e Rodolphe não lhe dão suporte financeiro. Desesperada diante da iminente perda por
confisco judicial de todos os bens dos Bovary, Emma ingere arsênico.
Charles assiste impotente à agonia e à morte de sua mulher. Completamente falido em
virtude das dívidas contraídas por Emma, ele morre silenciosamente.
Passemos agora à partes seguintes do trabalho. Começamos pela categoria profissional
da medicina à qual Charles pertence.
O officiat de santé
O pai de Charles tinha uma patente de auxiliar de cirurgião no exército até o ano de
1812; isto explica, talvez, por que seus pais decidem fazê-lo seguir a carreira médica: “à la fin
de sa troisième, ses parents le retirèrent du collège pour lui faire étudier la médecine,
persuadés qu’il pourrait se pousser seul jusqu’au baccalauréat” (p. 68). Seu objetivo é que ele
se torne oficial de saúde. De que se trata?
Na França, durante o Antigo Regime, as categorias médicas distribuíam-se grosso modo entre
os médicos, os cirurgiões, os enfermeiros e enfermeiras, os farmacêuticos, as parteiras, bem
como um vasto grupo compreendendo todos os empíricos sob denominações as mais diversas
(GOUBERT, 1977, p. 908-927; LÉONARD, 1981, p. 7-66; MURPHY, 1979, p. 259-278). A
formação que os médicos e os cirurgiões recebiam era bastante distinta: o ensino da medicina
para os futuros doutores consistia no estudo e na interpretação exaustivas de autores antigos,
4
ou seja, era essencialmente teórica. Por outro lado, o ensino recebido pelos cirurgiões visava à
prática, valorizando os procedimentos operatórios (WIRIOT, 1970, p. 22).
Durante a Revolução, são dissolvidas as faculdades e as organizações de ensino, bem
como as corporações e as associações profissionais. Como consequência direta, a prática e o
ensino médicos conhecem a desordem; patentes podem ser compradas, o que permite que
pessoas sem formação exerçam a medicina.
Porém, segundo Armelle Le Goff, o ano de 1803 corresponde ao começo de uma nova
organização do corpo médico:
“C'est sous le Consulat qu'est mis en place le système des grades
nécessaires pour exercer les professions de santé. La loi du 19 ventôse an XI
(10 mars 1803) instaure des écoles de médecine. La distinction est abolie entre
médecins et chirurgiens. La médecine comporte désormais deux niveaux: celui
des docteurs, issus des écoles de médecine devenues facultés en 1808 et dont le
titre confère le droit d'exercer la médecine et la chirurgie sur tout le territoire;
celui des officiers de santé, pratiquant une médecine restreinte après des études
plus brèves. Jusqu’en 1855, les officiers de santé sont reçus par des jurys
médicaux dans les départements. L’officier de santé ne peut exercer que dans
les limites du département où il a été reçu. L’officiat de santé est aboli en
1892.” (LE GOFF, 2005, p. 1)
Em virtude desta lei, duas ordens de médicos passam a existir: os doutores, oriundos
das escolas de medicina e com poder de exercer em todo o território, e os oficiais de saúde,
praticando uma medicina restrita ao local de origem, após estudos mais breves5.
Charles Bovary situa-se, logo, nesta escala inferior da hierarquia médica, este tipo de
profissional preenchendo uma lacuna no sistema: não há médicos suficientes para o interior.
Os rendimentos de Charles e o padrão de vida dos Bovary em Yonville
Após tornar-se oficial de saúde, Charles instala-se em Tostes para exercer a medicina,
onde adquire uma pequena reputação. Quatro anos depois de seu começo neste vilarejo,
quando Bovary começava “à s’y poser” (p. 128, grifado por Flaubert), ele precisa mudar-se
para agradar sua esposa, escolhendo Yonville-l’Abbaye como seu novo local de exercício.
Em Yonville, Bovary e sua mulher instalam-se na casa anteriormente ocupada pelo
antigo médico do lugar. Espaçosa e confortável, a casa comporta também o consultório,
situado ao rés do chão (entre o galpão e a estrebaria), onde estão dispostas uma pequena
biblioteca, uma poltrona e uma escrivaninha.
5
O acerto de honorários não é necessariamente imediato, podendo ocorrer após o
restabelecimento do doente. Assim como em Tostes, Emma encarrega-se de manter o registro
das consultas e de escrever aos pacientes para lembrar os honorários devidos a seu marido,
tarefa à qual se entrega com grande habilidade: “Elle envoyait aux malades le compte des
visites, dans des lettres bien tournées qui ne sentaient pas la facture” (p.101).
Às vezes, os honorários não são fixados pelo próprio profissional, o paciente
decidindo, segundo a complexidade do caso ou os esforços do médico, quanto ele lhe deve.
No episódio em que Charles realiza uma sangria em um empregado de uma fazenda, é o
patrão deste, Rodolphe Boulanger, o responsável pelo pagamento, sem que haja qualquer
referência aos honorários que o oficial de saúde deve receber: Rodolphe “déposa trois francs
sur le coin de la table, salua négligemment et s’en alla” (p. 195).
Os rendimentos de Charles são escassos. Oriundo de uma família de poucas posses,
ele herdou da primeira esposa apenas a casa, em Tostes, e o mobiliário. Os bens do casal
Bovary são, logo, limitados: um cavalo, instrumento de trabalho, uma égua e um tílburi usado
que ele compra para agradar sua esposa (ele mesmo o conduz). Seu padrão de vida é modesto.
Já era o caso em Tostes, e continua sendo em Yonville (à exceção das compras extravagantes
que Emma se permite para ela mesma e, escondida, para seus amantes, despesas criadoras de
dívidas).
Mas, em Yonville, a modéstia de seu padrão de vida esconde suas preocupações
financeiras. Eles continuam com uma criada a seu serviço. E a presença de dois animais no
estábulo do genro leva o Sr. Rouault a deduzir que os negócios vão bem. Engana-se. Por um
lado, todo o dote se foi em dois anos e as despesas de Emma aumentam progressivamente.
Por outro lado, e, sobretudo, a realidade profissional de Charles em Yonville apresenta-se
bem diferente daquela em Tostes. Ele continua a receber pacientes em consultas e a visitá-los
nas redondezas, mas, embora seja o único médico da cidade, e talvez da região, os clientes são
raros: “Charles était triste: la clientèle n’arrivait pas. Il demeurait assis pendant de longues
heures, sans parler, allait dormir dans son cabinet ou regardait coudre sa femme” (p. 152).
As rivalidades profissionais em Yonville
Por que a clientela de Bovary é rara?
Há a concorrência dos confrades da região (os outros oficiais de saúde e os doutores
diplomados), o efeito das reticências e dos preconceitos dos camponeses em relação aos
médicos, assim como a atividade de concorrentes ilegais do corpo médico: curandeiros,
6
práticos e outros charlatães (LÉONARD, 1977, p. 154; GALÉRAND, 1988, p. 42). É preciso
ainda considerar os farmacêuticos que exercem ilegalmente a medicina. É justamente o caso
em Yonville (onde a farmácia é o estabelecimento “qui attire le plus les yeux”; seu letreiro
“qui tient toute la largeur de la boutique, porte en lettres d’or: Homais, pharmacien”, p. 136):
não se limitando a preparar loções, poções e todo tipo de medicamento, Homais entrega-se ao
exercício ilegal da medicina nos fundos de sua farmácia, sobretudo em dias de mercado, ou
seja, ele transgride a lei de 19 ventôse an XI que, no seu artigo primeiro, proíbe a todo
indivíduo não portador de diploma o exercício da medicina (Décret, in CORLIEU, 1896, p.
57).
Assim, a prática ilegal da medicina por Homais é um dos fatores responsáveis, talvez
mesmo o principal, pela fraca clientela de nosso oficial de saúde6!
A rotina de trabalho de Charles em Yonville
Que seja em Tostes ou em Yonville, o quotidiano de trabalho de Bovary divide-se
entre as consultas em consultório e as visitas a domicílio. Estas ocorrem, sobretudo, fora da
cidade, às vezes em locais exigindo fatigantes marchas a cavalo. Ele cavalga em longos
percursos, examina pacientes em toda a região, prescrevendo tratamentos simples. Saindo
frequentemente ao amanhecer, ele volta tarde para casa.
No romance, são evocadas rapidamente a sua prudência (como uma qualidade
profissional: “Craignant beaucoup de tuer son monde, Charles, en effet, n’ordonnait guère que
des potions calmantes, de temps à autre de l’émétique7, un bain de pieds ou des sangsues”, p.
121) e algumas de suas intervenções clínicas. Dentre estas, citam-se a drenagem de um
abscesso bucal, extrações de dentes (pelas quais ele tem uma poigne d’enfer, p.122) e
sangrias.
No entanto, um caso bem sucedido e dois de infortúnio são relatados mais longamente:
a redução de uma fratura, a operação de um pé disforme e o suicídio por ingestão de arsênico
de sua mulher. A primeira intervenção, ainda em Tostes, é coroada de sucesso 8. As duas
outras, funestas, ocorrem em Yonville; elas marcam negativamente a trajetória profissional de
nosso oficial de saúde, situam-se sob o signo do fracasso.
O episódio do pé disforme
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Em Tostes, Charles gozava de certo renome, graças a seus esforços, à sua boa conduta
pessoal e à sua prudência. Todavia, em Yonville, ele não consegue atrair a clientela.
Persuadido pelo farmacêutico Homais e por Emma a operar o pé disforme de Hippolyte, o
claudicante ajudante da estalagem Lion d’or, Charles pensa que esta cirurgia permitirá que ele
adquira reputação, que ele seja tido pelo povo e pela comunidade científica como um grande
médico! A reparação desse pé disforme poderia assim aumentar sua magra clientela em
Yonville.
Bovary põe-se a estudar em profundidade (num livro!) o universo dos pés tortos.
Chegado o grande dia, consciente de que se encontra diante da intervenção mais difícil de sua
carreira, Bovary está tomado de pavor:
“Ni Ambroise Paré [XVIe siècle], appliquant pour la première fois
depuis Celse, après quinze siècles d’intervalle, la ligature immédiate d’une
artère; ni Dupuytren [XVIIIe-XIXe siècle] allant ouvrir un abcès à travers une
couche épaisse d’encéphale; ni Gensoul [XVIIIe-XIXe siècle], quand il fit la
première ablation de maxillaire supérieur, n’avaient certes le cœur si palpitant,
la main si frémissante, l’intellect aussi tendu que M. Bovary quand il approcha
d’Hippolyte, son ténotome entre les doigts.” (p. 244, grifado por Flaubert)
Charles perfura a pele, corta o tendão: finda a cirurgia! O membro operado é contido
num motor mecânico, concebido e elaborado (novamente a partir de um livro!) especialmente
para a ocasião.
Mas, cinco dias após o ato operatório, Charles é chamado com urgência porque
Hippolyte retorce-se em convulsões atrozes. As formas do pé haviam desaparecido em meio a
um tamanho inchaço que toda a pele parecia estar a ponto de romper-se, coberta de equimoses
ocasionadas pela máquina fixadora. Apavorado, Bovary vê seu paciente a toda hora, o tempo
todo, sempre recomendando-lhe uma dieta. Na sequência, ele põe-se a variar as poções e a
mudar os cataplasmas, adoecendo ele mesmo de preocupação. Contudo, a gangrena está
instalada e a podridão sobe irremediavelmente a cada dia.
Finalmente, Charles consente fazer vir o Dr. Canivet, doutor em medicina, célebre na
região. Jactante, este não hesita em rir diante da perna gangrenada, declarando firmemente
que é necessário amputá-la. A amputação que salva a vida de Hippolyte é uma cruel
humilhação para Bovary e um desastre para sua reputação9. A situação é ainda mais grave,
pois Charles é incapaz de compreender que errou gravemente ao ousar realizar tal
procedimento (para o qual não estava legalmente habilitado nem tecnicamente preparado),
bem como de entender quando e em que pecou no ato cirúrgico. Todavia, ele ainda não
recebeu o golpe mais duro de sua vida.
8
O suicídio de Emma
Ao fim da narrativa, Madame Bovary está desesperada. Sem dinheiro, atolada em
dívidas cuja existência Charles ignora, perturbada pelo anúncio do confisco judicial dos bens
familiares, e bastante desapontada ao perceber que Léon e Rodolphe (o amante atual e o
precedente, respectivamente) recusam-se a prestar socorro, Emma ingere arsênico. Quando
entra em casa, o marido, desconcertado, faz-lhe perguntas às quais se nega a responder.
Ingênua, deita-se na espera de uma calmaria que colocará fim às suas inquietações e à sua
mágoa. Na verdade, é o começo do calvário.
Assim que é informado por Emma que esta acaba de envenenar-se, Charles desesperase, abandona-se à emoção, depois cai em prostração.
O sofrimento de Emma é atroz. Aos momentos de paroxismo sucedem períodos de
remissão em que ela parece menos agitada.
Chamado a intervir, o doutor Canivet não oferece nenhum remédio efetivo. De Rouen
chega então o Dr. Larivière (também chamado por Charles) cuja autoridade é
indiscutível. Após analisar o caso, ele formula seu diagnóstico esforçando-se por reconfortar
Charles: “Allons, mon pauvre garçon, du courage! Il n’y a plus rien à faire” (p. 396).
O padre Bournisien administra a extrema-unção. Logo após o rito, Emma não parece
mais “aussi pâle, et son visage avait une expression de sérénité, comme si le sacrement l’eût
guérie” (p. 399). No entanto, uma última convulsão a leva.
Charles, vítima de seus próprios erros
Como médico, Bovary é caracterizado sem cores, ou quase, a platitude sendo sua
tonalidade principal. Praticando a medicina “à la manière d’un cheval de manège […]” (p.
68), não passa de um medíocre, incapaz de sobressair-se no seu ofício.
Sua qualidade mais notável é a prudência. Contudo, é justamente quando a abandona
(na cirurgia do pé disforme de Hippolyte) que ele comete um erro capital cujas consequências
são gravíssimas: tendo empreendido uma intervenção ilícita que estava acima de suas
capacidades teóricas e técnicas, Charles acumulou erro sobre erro. O feitiço virou contra o
feiticeiro, ou seja, a operação que deveria conduzi-lo ao sucesso resulta em catástrofe,
expondo-o às críticas, à maledicência, às reprovações, à acusação justificada de
incompetência, cobrindo-o de opróbrio e ocasionando seu infortúnio.
9
No episódio do envenenamento de Emma, Charles demonstra total ausência de
curiosidade e espírito de investigação médicos. Em nenhum momento ele assume a posição de
médico. Pode-se dizer mesmo que sua postura resume-se ao ridículo quando propõe ao doutor
Larivière a aplicação de sinapismos na tentativa de salvar Emma. Com ironia extremamente
corrosiva, Flaubert dá assim o tom da incompreensão de Charles em relação ao estado de sua
esposa.
Uma morte seguida de outra
Com Emma morta, nada mais resta a Charles a não ser cuidar da pequena Berthe e
pagar as dívidas sem fim que lhe deixou sua esposa:
“À chaque dette qu’il payait, Charles croyait en avoir fini. Il en
survenait d’autres, continuellement. […]. Il fut obligé de vendre l’argenterie
pièce à pièce, ensuite il vendit les meubles du salon. Tous les appartements se
dégarnirent […]”. (p. 416, 418)
Para coroar o infortúnio: “Il ne sortait plus, ne recevait personne, refusait même
d’aller voir ses malades” (p. 423, grifo nosso). Vê-se forçado a vender o cavalo. É o fim.
Na página seguinte, narra-se a sua morte, sobre o banco no jardim; súbita, mas serena.
O romance abre-se com o personagem Charles, que é ainda o centro do último
capítulo. Sua morte permite encerrar a narrativa. Porém o farmacêutico Homais, principal
concorrente e responsável pela magra clientela de Charles, ocupa algumas das páginas
derradeiras e, sobretudo, as últimas linhas. Homais (que Flaubert detesta) triunfa em vencedor
sem escrúpulos, tendo recebido a tarefa de levar o romance ao seu ponto final – o que nos
parece sintomático e irônico, mas não constitui assunto de discussão do presente artigo.
1
SCHMITT, Vanessa Costa e Silva. Littérature et histoire des sciences: la médecine dans trois romans français du XIX e
siècle. 2 v. Tese (doutorado). Orientador: Robert Ponge. PPG em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, 2012. Durante o período de doutoramento, Vanessa contou com bolsa CAPES, a qual agradece o apoio
financeiro.
2
SCHMITT, Vanessa Costa e Silva; PONGE, Robert. “Charles Bovary, officier de santé à Tostes. In: Actes du XVème
SEDIFRALE 2010 - 15ème Congrès latino-américain de professeurs de français, organisé par la Comission Amérique latine
de la Fédération internationale des professeurs de français (Copalc/FIPF) et la Fédération argentine des professeurs de
français (FAPF). Clé-USB/Pendrive. ISBN: 9789871315888. Rosario (Argentina): Laborde Libros Editor/Clé
international/FIPF/FAPF, 2010. p. 1-6
3
A categoria do offficier de santé, que apresentamos a seguir, não existiu no Brasil, não havendo tradução consagrada para o
termo. Optamos por recorrer à tradução literal da expressão para designá-la.
4
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. (1857). Edição, introdução, notas, apêndice, cronologia e bibliografia por Bernard
Ajac. Paris: Flammarion, col. “GF”, 1986. p. 101. Todas as citações do romance de Flaubert são extraídas dessa edição.
Doravante a referência das páginas será indicada diretamente no texto, entre parênteses, imediatamente após a citação.
5
Para mais informações sobre o oficial de saúde, ver SCHMITT, 2012, p. 310-312 ou, ainda, LE GOFF, Op. Cit.
6
Sobre esse assunto que ultrapassa as fronteiras do presente trabalho, ver as páginas 418-422 do romance e, sobretudo, 425;
ver também SCHMITT, 2012.
7
Emétique (em português, emético): substância vomitiva.
8
Para maiores informações acerca do episódio bem-sucedido de Charles Bovary, consultar SCHMITT, PONGE, 2010, p. 4-5
9
Para uma análise mais detalhada da frustrada operação da deformidade de Hippolyte, consultar capítulo 13 de SCHMITT,
2012, p. 308-332.
10
BIBLIOGRAFIA
“Décret du 19 ventôse an XI”. In: CORLIEU, A. Centenaire de la Faculté de médecine de
Paris (1794-1894). Paris: Imprimerie nationale, 1896. p. 57-63
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. (1857). Edition, introduction, notes, appendice,
chronologie et bibliographie par Bernard Ajac. Paris: Flammarion, col. “GF”, 1986.
GALÉRANT, Germain. Médecine de campagne : de la Révolution à la Belle Époque. Paris:
Plon, 1988.
GOUBERT, Jean-Pierre. “L’art de guérir : médecine savante et médecine populaire dans la
France de 1790”. Annales Économie, Sociétés, Civilisations. v. 32. n. 5. Set-out. 1977. p.
908-927.
LE GOFF, Armelle. “Recherches sur un médecin ou un officier de santé au XIX e siècle”.
Archives
nationales
françaises,
2005.
p.
1-4.
Disponible
sur:
http://www.archivesnationales.culture.gouv.fr/chan/chan/pdf/caran/61_medecinXIX.pdf
LÉONARD, Jacques. La Médecine entre les savoirs et les pouvoirs: histoire intellectuelle et
politique de la médecine française au XIXe siècle. Paris: Aubier Montaigne, 1981.
LÉONARD, Jacques. La Vie quotidienne du médecin de province au XIXe siècle. Paris:
Hachette, 1977.
MURPHY, Terence. “The french medical profession’s perception of its social function
between 1776 and 1830”. Medical History. v. 23, 1979. p. 259-278.
SCHMITT, Vanessa Costa e Silva. Littérature et histoire des sciences: la médecine dans trois
romans français du XIXe siècle. 2 v. Tese (doutorado). Orientador: Robert Ponge. PPG
em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.
SCHMITT, Vanessa Costa e Silva; PONGE, Robert. “Charles Bovary, officier de santé à
Tostes”. In: Actes du XVème SEDIFRALE 2010 - 15ème Congrès latino-américain de
professeurs de français, organisé par la Comission Amérique latine de la Fédération
internationale des professeurs de français (Copalc/FIPF) et la Fédération argentine des
professeurs de français (FAPF). Clé-USB/Pendrive. ISBN: 9789871315888. Rosario
(Argentina): Laborde Libros Editor/Clé international/FIPF/FAPF, 2010. p. 1-6
WIRIOT, Mireille. L’Enseignement clinique dans les hôpitaux de Paris entre 1794 et 1848.
Tese (doutorado). Faculté de médecine de Paris, 1970.

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