Patricia Franca-Huchet

Transcrição

Patricia Franca-Huchet
Montagem no tempo
o bricoleur o livro e o fotógrafo
Patricia Franca-Huchet1
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Esta intervenção pretende discutir a experiência entre a fotografia, a literatura e a montagem através de
fragmentos e mostrar como objeto central nossa relação às imagens da história, sobretudo da história da arte,
que são resignificadas pela prática fotográfica. Estas se tornam o material para uma ficção e a experiência
com o heterônimo. Desenvolvo o trabalho Os quatro fotógrafos; quatro personalidades fictícias, com
diferentes individualidades tanto em suas imagens como em suas abordagens. Um livro em forma de
entrevista interroga as fronteiras da ficção e da não ficção. Nesse universo, privilegio para esta apresentação
o trabalho de Zénon Piéters, o heterônimo que procura fotografar a pintura, mas não sem constatar a sua
impossibilidade.
Palavras chaves: tempo montagem fotografia
RESUMÉ
Cette intervention prétend discuter l’expérience entre la photographie, la littérature et le montage à travers
des fragments; montrer comme objet central notre relation aux images de l’histoire, et surtout de l’histoire de
l’art, qui sont resignifiées par la photographie. Celles-ci deviennent le matériau d’une fiction et de
l’expérience de nos hétéronymes. Nous développons Les quatre photographes, quatre personnalités fictives,
avec des individualités très différentes aussi bien dans leurs images que dans leur démarche. Un livre en
forme d’interview interroge donc les frontières entre la fiction et la non-fiction. Dans cet univers, nous
privilégions pour cette apresentation le travail de Zénon Piéters, un photographe qui essaie de photographier
la peinture, non sans en constater l’impossibilité.
Mots cléfs: temps montage photographie
Esta intervenção, em parte, já foi apresentada em outros eventos. No entanto, à cada vez,
procuro variações para expressar a questão tratada pelo momento. Partes dela já estão
publicadas e outras, mescladas, vêm se ajustar a um processo de montagem e edição do
texto e das imagens. Forma que revela a minha atual maneira de construir o trabalho em
apresentações, exposições, publicações, ensino e sobretudo a pesquisa; em um processo de
temporalidades observadas e praticadas.
O IV Coma propõe uma reflexão sobre o papel e o Lugar In Comum dos artistas, teóricos e
educadores comprometidos com a questão da arte, visando perceber e analisar como os
acontecimentos e as transformações do contexto atual se fazem presentes em suas
produções.
Para pensar o lugar do artista, precisamos pensar sobre uma possível definição para a
figura do mesmo, definição que evoluiu muito com o tempo e que hoje possui muitas
variações possíveis. A noção de artista é muito recente e, pensar sobre a questão “o que é
um artista” pode ser tão abismal quanto se perguntar porquê fazemos arte. Algumas ideias
passam em minha mente; existem os artistas que querem liquidar toda herança, se
orientando para a idéia de progresso e o desejo de propor algo inédito. Outra visão sobre o
1
Patricia Franca-Huchet é artista e Professora Titular. Ensina na Escola de Belas Artes da UFMG na
Graduação e no PPGArtes. É Mestre e Doutora pela Université de Paris I. Coordena o grupo de pesquisa BEIT: Bureau de estudos sobre a imagem e o tempo, que se dedica às práticas artísticas cujos propósitos se
voltam para o estatuto da imagem com abordagem aberta à história, literatura, psicanálise e à antropologia do
visual.
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45 artista é o “artista-pleno” 2, herdeiro de uma postura que procura através de sua obra atingir
a um ponto sublime, tentando participar do mundo com vivência máxima, como uma covariação de intensidades; algo como se ele dissesse: o mundo está em mim e estou
inteiramente nele. Existe o artista que não se importa com o anonimato, ele vai seguindo
com o seu trabalho; este artista tem uma visão muito clara daquilo que o seu trabalho
representa para ele. Há também o artista contemporâneo: “a arte contemporânea em parte
das sociedades modernas tornou-se um segmento especializado de consumo cultural muito
mais do que um agrupamento real de produções. Quando se fala atualmente em arte
contemporânea, observamos que em qualquer parte do mundo a encontraremos. Os
artistas contemporâneos por vezes, perdem a relação com as tradições, histórias e
vivências locais”3. Marcel Duchamp disse que era um anartista; interessante pensar na
possibilidade de uma escuta negativa para o universo do artista. Hoje em dia, somos muito
voltados para o exterior, e arte, para mim, ainda tem a ver com o tempo, com a necessidade
de contemplar, olhar, perceber. Estamos cada vez mais afastados da natureza. O artista
canadense Jeff Wall ficou sete anos sem produzir arte. Penso que, na verdade, ficou sete
anos trabalhando de outra forma para abordar a arte no seu tempo justo.
Uma boa parte dos artistas são também pesquisadores, são uma safra no mundo todo que
tem laboratórios, trabalham na academia, estudam e publicam, e a grande maioria não se
importa com o mercado, ou se importa menos ou não se sente tão pressionado; salvo pelas
próprias regras acadêmicas que não raro fazem sim, bastante pressão. Mas a universidade
ainda é também compreendida por alguns como o lugar de artistas que fracassaram. A ideia
de sucesso e de reconhecimento pelo valor de mercado ainda é muito grande. Uma pequena
população de artistas pesquisadores reconhece em seus pares os seus outros “eus”. Falta
ainda, algum tipo de liderança para dar visibilidade à essa população.
Uma imagem que resume essa introdução, seria uma pedra caindo em um lago. Ela bate na
água e difunde um acontecimento, como uma irradiação. Os círculos que se ampliam
poderiam se corresponder ao universo circundante ao sujeito arte; como o artista, o
colecionador, a galeria, a exposição, o centro de cultura, o museu, o crítico, o curador, o
mercado, o livro, o catálogo, a revista, a escola etc. Existem dois acontecimentos
fundamentais na pedra que cai no lago. Um na superfície e o outro que é a trajetória da
pedra descendo para o fundo. Precisamos ter os dois momentos em mente, mas os círculos
são muito sedutores e esquecemos de olhar a pedra descendo lentamente, esquecemos de
observar a densidade de sua trajetória.
Estou interessada na questão do tempo.
2
3
CHATEAU, Dominique. Qu’est-ce qu’un artiste?. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, p.24.
Anotações minhas após palestra de Catherine David na ENSBA de Lyon, em 2006.
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46 O tempo da imagem não é somente cronológico e histórico, ele é também o resultado do
trabalho do artista que se afirma justamente como um desafio, que é o de temporalizar o
seu espaço. Seria o caso de pensar a imagem, e as artes da imagem em geral — no meu
caso, a pintura e fotografia — em termos de temporalidade perceptiva e estética para não
deixar o tempo do processo se perder apenas no campo da historicidade; o que me faz
acreditar que a arte propõe uma versão do tempo que é muito específica. Isso me fez
lembrar Walter Benjamin, que propõe uma outra concepção de progresso e que a obra
artística seria de alguma forma aquela que revelaria essa concepção de progresso.
No Livro das Passagens, Benjamin escreveu:
"Existe em todas obras de arte verdadeiras um lugar onde aquele que está nela
mergulhada é acariciado por um sopro de vento fresco como a chegada da manhã.
Resulta-se que a arte, que sempre consideramos como desprovida de relações com o
progresso, pode servir para uma possível definição legítima desse. O progresso não se
situa na continuidade do processo temporal mas nas suas intermitências, onde alguma
coisa autenticamente nova se faz sentir pela primeira vez com a serenidade de uma
nova manhã."4
Essa citação me faz acreditar que a arte lhe forneceu um modelo de uma certa
historicidade, não regido pelo princípio de causalidade, mas acreditando na inserção de
cada obra de arte em uma zona de temporalidade autônoma, gerando o seu próprio
presente, seu próprio passado e também o seu futuro. A obra de arte se torna assim uma
instância onde Benjamin pôde trabalhar com o seu conceito de história. Existe a tão
conhecida ideia de "um turbilhão no rio", que seria uma espécie de sintoma fluente, de um
mal-estar que seria interno ao devir, algo ritmando entre a destruição e a sobrevivência, de
um agora e de um outrora. Assim a origem não é entendida somente como o "lugar" de
onde tudo vem, seria uma interrupção da história entendida como uma abertura tanto
desfigurante (a ruína por exemplo) como descobridora — algo revelador, exatamente
como o objeto artístico. A partir de Walter Benjamin observa-se portanto nuances para
abordar a arte. Encarando um ponto de vista que não seja nem arquetípico, nem
modernista, nem pós moderno nem antimoderno ou contemporâneo.
No caso das imagens, como nós a percebemos, ou seja, como espectadores ou como
autores, a percepção proporciona um tempo para a nossa conduta diante destas; tempo para
sentir a intenção do artista, tempo para projetar e produzir. Digamos que a representação
proporciona também um conteúdo temporal; podemos igualmente falar de uma
temporalidade visual e outra conceitual.
Mas gostaria de pensar na possibilidade de um tempo mais desregrado, um tempo que
pudéssemos montá-lo a nossa guisa. Um tempo mais freudiano, posto que Freud dizia que
4
WALTER, Benjamin. Le Livre des passages. Paris: Éditions du Cerf, 1989, p. 492 [tradução nossa].
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47 o inconsciente não conhece o tempo. Um tempo que envolveria uma percepção do futuro
após se ter olhado para uma situação presente e ou passada. Como procurar as imagens que
alimentam a nossa vida psíquica, imagens que são uma formidável presença, que são como
um caleidoscópio e que pertencem a essa espécie de tempo aqui; o tempo psíquico elástico,
perdido, inatual e ao mesmo tempo presente e que é próximo da experiência? A arte acaba
sendo uma maneira de tomar posição frente ao tempo. O tempo desregrado, que poderia,
em meu caso, se tratar da montagem: um composto de fragmentos disjuntos que tentam
remontar uma consciência.
Outra questão que gostaria de tocar é sobre o espaço-tempo do imaginário. Esse tempo que
não é mensurável mas que pode ser controlável pelos indivíduos. Fácil compreender que o
inconsciente, ou o corpo como produtor de uma certa imagem que surge
intempestivamente possa interessar tanto aos psicanalistas. O tempo do inconsciente. Um
tempo que é feito de rememoração e de repetição e que não passa, pois poderá sempre
voltar. Um tempo desregrado então. Mas o psicanalista Jacques Lacan se preocupava com
o que ele chamava de tempo justo, isto seria: tempo justo não somente entre o tempo
formal e físico, mas o tempo justo no pensamento, no enunciado, na formulação das coisas.
Então, algo do tempo desregrado necessita ser ajustado. Na montagem, é preciso encontrar
o tempo justo, para que os diversos fragmentos desregrados do trabalho tomem a
orientação desejada.
Assim um tempo justo é introduzido pela montagem. A montagem por sua natureza aberta
é uma forma de se trabalhar com o tempo. A arte, que acolhe a montagem no cinema, na
música, nas artes plásticas e visuais, na fotografia e no teatro etc., se torna o campo das
vias inéditas das explorações temporais. Minha questão aqui, diz respeito a uma certa
invenção com inserção de fragmentos de partes que existem há muito tempo em um novo
contexto. Existe uma diferença entre colar e montar, entre dispor e montar. A montagem,
sempre a partir de certas imagens, tomadas de maneira muito especial, e o fato de as
colocar em relação ou lado a lado, produzem uma nova imagem. É como o ângulo que cria
uma espacialidade. A pintura, muito antes do cinema usava a estratégia da montagem,
como por exemplo, os retábulos góticos e os trípticos.
Entrando em um outro aspecto, faço referência a outra palavra além da montagem.
Material. É necessário para o artista agenciar os materiais. Penso na sequência de tudo isso
na palavra Bricolagem, usei intuitivamente essa palavra em uma apresentação de trabalho
e, pesquisando na sequência, fui ver que ela já havia sido pensada por Lévi-Strauss, no seu
livro O Pensamento Selvagem, quando mostra que a arte se insere no meio caminho entre
o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico; dizendo que […] todo mundo
sabe que o artista tem um pouco do cientista e do bricoleur: com meios artesanais ele
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48 confecciona um objeto material que é um objeto de conhecimento. Podemos pensar aqui
que a montagem é da ordem da bricolagem. […] Bricolage, no seu sentido antigo, se
aplica ao jogo, em particular da bola e do bilhard, bem como à caça e à equitação, mas
sempre para evocar um movimento: o da bola que repica, do cachorro que divaga, do
cavalo que se desvia da linha reta para evitar o obstáculo. […] O bricoleur sempre coloca
em seu projeto alguma coisa de si. 5
Posto isso, Levi-Strauss atribui ao pensamento selvagem uma arte do acaso objetivo cuja
lógica se constrói inteiramente sobre a relação do homem em seu meio natural, sobre a
observação a mais ínfima que se manifesta em uma paisagem. A ideia de inscrever a
natureza na história, colocar em dúvida a legitimidade de um pensamento do real,
estritamente verificável. Penso nas coincidências, por exemplo, que o acaso nos mostra,
que podem subverter a autoridade do real, no cultivo da dúvida sobre a tangibilidade deste
e a possibilidade de inscrever essa incerteza na obra, no texto, na imagem.
É escolha de certos artistas conciliar por sua vez as coincidências para apreender o sistema
de constelações que dá o seu sentido à obra. Tudo isso nos lembra o método de trabalho de
Walter Benjamin quando diz, citando-o: Método de trabalho: montagem literária, não
tenho nada a dizer. Somente mostrar. Não vou sutilizar nada precioso, nem me apropriar
das fórmulas espirituais […] não quero fazer um inventário mas justiça da única maneira
possível: utilizando-as.6 A coincidência será então a parte da imprevisibilidade temporal,
ela releva também dos acontecimentos imponderáveis. Pode ser a lógica dos ventos
contrários no seio do tempo histórico.
O pensamento ou a sensibilidade expressam uma recolta — recolher — algo de tudo
aquilo ou da totalidade do sensível e do inteligível que pudemos, um dia, tocar, e isso, dá
um caráter muito fragmentário na expressão artística em uma forma de conceber e pensar.
Recolher durante a vida as melhores coisas para um trabalho. E então perguntamos: o que é
ter um conhecimento inteligível de uma realidade que na verdade é sensível? Fazer arte
permite se mover nesse sentido: não tentar resumir a diversidade do sensível para ter um
grande conceito inteligível para tentar dizer como as coisas são, como o mundo é, mas
recolher. Recolher é um outro caminho, algo menos cultural, algo mais antropológico que
antecederia ao desejo de bricolar, por exemplo. A partir de um certo momento, o trabalho
artístico interpela mais a sensibilidade do que a inteligência. Em todo caso, trata-se de ler
um sinal, um sintoma a fim de determinar um acontecimento que não pode se realizar se
nada é recolhido, se nada vem ao nosso encontro. Em um certo sentido, importa estar
5
6
LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris: Plon, 1962, p. 33, 26 e 32.
BENJAMIN, Walter. Paris Capital do XIXe siècle. Le livre des passages. Paris, Cerf, 2006, p.476.
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49 vigilante para encontrar as coincidências, criar destinos para o que desejamos, dar uma
nova visibilidade ao assunto.
E por quê não, construir um futuro com as imagens recolhidas? Suspender a identidade
temporal para deixar coincidir os tempos a fim de restituir alguma coisa e acrescentar algo
nessa espessura?
O livro de Zénon Piéters 2011 Patricia Franca-Huchet
Como trabalho artístico estou realizando um longo trabalho com a fotografia em sua relação com a
história e a ficção literária. À imagem de Fernando Pessoa, que marcou sua obra com quatro poetas
estou também desenvolvendo Os Quatro fotógrafos, quatro personalidades fictícias, diferentes
umas das outras assim como são suas fotografias e o modo como trabalham com a imagem. Quatro
pensamentos, quatro vozes, quatro famílias de imagens. A experiência literária de contar histórias
faz parte dos modos de transmissão de imagens de forma universal. A figura do narrador fictício
determinou meu interesse pelo heterônimo. O primeiro heterônimo desta pesquisa, Zénon Piéters
— é um dos quatro fotógrafos — foi editado na forma de um livro. Neste livro, podemos ver as
fotografias, ler uma longa entrevista em que vários aspectos de seu trabalho com relação à imagem
são retratados e pensados. Nesta entrevista, ele busca esclarecer e problematizar a fotografia, a arte,
a imagem e a experiência. Esse processo foi surgindo das fotografias de fragmentos de pinturas
conhecidas ou menos conhecidas de Museus [in loco]. Essa produção foi possível pelo trabalho da
edição e montagem. Volto ao trabalho da montagem, que é um destacado ponto dessa pesquisa. A
partir do nosso trabalho com a citação — visual e textual — foi possível conceber a montagem do
texto e do livro de Zénon Piéters. A montagem expõe a construção de uma realidade transferindo as
coisas. Aqui, ela é estruturada pelo desejo de uma dramaturgia voluntária na imagem, que pode
tocar e compor a ficção. A história de Zénon, sua memória, seu ponto de vista crítico e filosófico
sobre a imagem servem para criar uma montagem cujos elementos, recolhidos na realidade,
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50 induzem um efeito de conhecimento novo que se encontra entre a intemporalidade da ficção e a
fatualidade do presente. Em consequência disso, cada um dos seus componentes, de seus elementos
constitutivos manifesta a complexidade inerente ao processo de montagem. Não posso esquecer de
dizer que Zénon Piéters é um personagem com atuação intelectual, ética e política; tem posição
crítica construída e apresentada no livro através da montagem de textos e imagens. Trata-se de
articular a ficção, a montagem e também, a teatralidade na direção de uma imagem que apresente
conhecimento. Me considero então como o bricoleur.
É o que ressai de um pequeno trecho da entrevista na qual dialogo com o heterônimo, cujas
respostas constituem um núcleo significativo dessa pesquisa:
Zénon Piéters: Já faz tempo que a pintura é fotografada, especialmente para ser reproduzida
nos livros. Nos livros de escola ou mesmo em livros de história e em catálogos. Existe uma
espécie de inocência, uma suposta neutralidade e um hábito quase natural de fotografar uma
pintura e de reproduzi-la nos livros, de transferi-la para o papel, de reduzir o seu formato,
esquecer a sua matéria, seu relevo, sua maneira de aceitar a luz e de impor àquele que a
observa uma justa distância e uma justa posição. Em um livro, todas as imagens são olhadas
de uma mesma distância. [...] Parto da ideia de que existe muita teatralidade entre nossas
trocas com o real [etc.].
Quero abordar, de forma sucinta a questão do tempo do livro. Quando pensamos no tempo
do livro, associamos ao tempo de leitura, que é um tempo que se versa, que passa. Ler um
livro é tomar ao tempo um tempo. Mas no livro de Zénon, existe a montagem e a
fabricação de um tempo próprio a esse livro, livro que é ao mesmo tempo uma espécie de
envelope das construções temporais que nele estão abrigadas. A montagem é então
encarada como um trabalho na estrutura do tempo do livro, é possível também senti-la
como uma ideia de tempo dilatado pela história, pela ficção.
O livro de Zénon Piéters 2011 Patricia Franca-Huchet
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51 Essa pesquisa propõe, também, uma noção de teatralidade que exige modificarmos a visão
tradicional do teatro como apresentação cenográfica. Ela implica as formas ficcionais
encontradas na construção literária e visual. O conceito de teatralidade que elaboro
reconsidera a relação entre as fronteiras da arte — literatura, fotografia, narrativa, artes
visuais — e traz para a pesquisa uma mirada acerca da relação da linguagem com a
imagem. Nessa relação, a teatralidade se apresenta como uma mise-en-scène literária e
imagética na qual deposito a hipótese da existência paralela do heterônimo, o espectador
fotógrafo.
Metamorfosear-se no outro, desempenhar papéis na vida social, é papel do ator mas,
também, do autor. A origem grega da palavra teatro, o Theatron, revela uma propriedade
esquecida, porém fundamental, que é o local de onde o público olha uma ação que lhe é
apresentada em um “outro lugar”, um ângulo de visão, um ponto de vista sobre um
acontecimento. Trata-se de um processo que relaciono com a experiência de produção,
ficção e representação do heterônimo.
Esse ponto é importante. Ele aponta para uma característica da noção de teatralidade que
adotei: a de propiciar uma matriz espaço/temporal que evidencie o face a face relacional
daquele que olha e daquilo que é olhado, isto é, a pintura e o fotógrafo, a imagem
fotográfica e o espectador que recebe e adentra os frutos de um jogo que adquire um relevo
teatral. Essa situação repousa sobre uma dinâmica na qual o “heterônimo” toma as rédeas
do jogo para melhor articular os componentes do face a face.
O livro de Zénon Piéters 2011 Patricia Franca-Huchet
Vale ainda dizer que o resultado final da pesquisa é uma imagem da pesquisa, isto é, dos
vários lugares e das várias instâncias que a caracterizam, antes, durante e depois do
processo. Um produto final que sintetiza as diferentes fases e diferentes componentes do
trabalho: trabalho do heterônimo, aquele que visita os museus, aquele que seleciona as
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52 pinturas que vai fotografar, aquele que já assume a posição do espectador enquanto
trabalha como artista — o receptor e o produtor juntos —, aquele que toma uma posição
crítica sobre a imagem, aquele que faz o livro como montagem de imagens e textos. E,
através desse livro, leva o espectador a se apropriar do processo refazendo-o e reavivando
as suas fases e várias etapas. Isso configura o jogo teatral do heterônimo, pois é a
encenação condensada de todas as fases e papéis que se materializam como objeto
artístico. É esse objeto artístico que permite uma remontagem e uma retrospectiva de todos
esses elementos.
REFERÊNCIAS
CHATEAU, Dominique. Qu’est-ce qu’un artiste?. Rennes: Presses Universitaires de
Rennes, 2008.
LACAN, Jacques. Les séminaires de Jacques Lacan 1964-1979. Paris: Fayard, 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris: Plon, 1962.
WALTER, Benjamin. Paris Capital do XIXe siècle. Le livre des passages. Paris: Cerf,
1989.
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