juliana rui fernandes dos reis gonçalves
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juliana rui fernandes dos reis gonçalves
JULIANA RUI FERNANDES DOS REIS GONÇALVES 2 DIREITO À VIDA E DIREITO A VIVER MELHOR Um Conflito de Direitos Fundamentais 3 CAPA: http://pixabay.com/static/uploads/photo/2014/09/29/13/47/pregnancy466129_640.jpg 4 Juliana Rui Fernandes dos Reis Gonçalves DIREITO À VIDA E DIREITO A VIVER MELHOR Um Conflito de Direitos Fundamentais II Edição Editora Vivens O Conhecimento a serviço da Vida! Maringá – PR 2014 5 Copyright 2014 by Humanitas Vivens Ltda EDITORES: Daniela Valentini José Francisco de Assis Dias CONSELHO EDITORIAL: Prof. Dr. Daniel Eduardo dos Santos [UNICESUMAR-Maringá] Prof. Dr. José Beluci Caporalini [UEM-Maringá] Prof. Dra. Lorella Congiunti [PUU-Roma] REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Rogerio Dimas Grejanim Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Gonçalves, Juliana G635d Rui Fernandes dos Reis Direito à vida e direito a viver melhor : um conflito de direitos fundamentais / Juliana Rui Fernandes dos Reis Gonçalves. – 2 ed. Maringá, PR : Vivens, 2014. 438 p. ISBN: 978-85-8401-019-6 Modo de acesso: www.vivens.com.br 1.Direito à vida – Aspectos jurídicos. 2. Direitos humanos. 3. Direitos fundamentais. 4. Promoção da vida. CDD-DIR 4.ed. 341.27 Ivani Baptista –Bibliotecária CRB-9/331 Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Sebastião Alves, nº 232-B – Jardim Paris III Maringá – PR – CEP: 87083-450; Fone: (44) 3046-4667 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected] 6 Ao meu pai (in memoriam), porque este sonho foi seu, antes mesmo de ser meu, e começou a se concretizar... Ao meu marido, Marcelo, e ao meu filho, Victor Enzo, porque o seu amor, carinho e apoio em todas as coisas é que sempre fizeram a diferença. 7 8 SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO .............................................................. 13 2 – PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO DIREITO À VIDA E O DIREITO À VIDA COM QUALIDADE ............................................ 25 2.1 – O Conceito de vida .................................................... 25 2.1.1 – Da etimologia ao conceito filosófico ................. 25 2.1.2 – Conceito bioquímico .......................................... 28 2.1.3 – Conceito biológico ............................................. 28 2.1.4 – Conceito jurídico ................................................ 29 2.2 – O direito à vida na legislação pátria ........................... 31 2.2.1 – (Breve) Análise do princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida ................................ 31 2.2.2 – Os artigos da Constituição Federal de 1988 que asseguram o direito à vida ....................................... 41 2.2.3 − Os artigos da legislação civil que asseguram o direito à vida ....................................... 50 2.2.4 − Referências à legislação penal que asseguram o direito à vida ....................................... 56 2.2.4.1 – Homicídio ................................................ 58 2.2.4.2 − Aborto ..................................................... 63 2.2.4.3 − Lesões Corporais ..................................... 76 2.2.4.4 − Periclitação da vida e da saúde ................ 78 2.2.4.5 − Rixa ......................................................... 84 2.2.4.6 − Crimes contra a incolumidade Pública .................................................................. 84 2.3 – Do direito consagrado pela norma constitucional brasileira a viver com qualidade e seus desdobramentos.................... 87 9 2.4 – Teorias sobre o início da vida ....................................109 2.4.1 – Teoria natalista ..................................................109 110 2.4.2 – Teoria concepcionista ......................................... 115 2.4.3 − Teoria da personalidade condicional .................. 2.4.4 − Teoria do embrião como pessoa em potencial ..............................................116 116 2.4.5 − Teoria genético-desenvolvimentista .................. 2.4.6 − A adoção de uma teoria como base para desenvolvimento do estudo ..................118 3 – DO CONCEITO DE PESSOA ....................................121 3.1 – Pessoa natural ............................................................121 3.2 – As novas técnicas de reprodução humana e a pessoa natural ................................................................137 3.3 – Os embriões excedentários resultantes das técnicas de reprodução assistida: o início da busca por uma tutela da vida .............................150 3.3.1 − O que vem a ser o embrião. Sua formação inicial .......................................................152 3.3.2 − Como se forma o embrião, na fertilização in vitro. A transferência e a criopreservação de embriões ...........159 4 – CÉLULAS-TRONCO ....................................................179 4.1 – O que são células-tronco ............................................179 4.1.1 − Células-tronco adultas .......................................195 4.1.2 – Células-tronco do cordão umbilical ...................206 4.1.3 – Células-tronco embrionárias ..............................223 4.2 – Origem e função das células-tronco ...........................236 4.3 – Possibilidades de uso de terapia com células-tronco e seus riscos .........................................237 4. 4 – A pesquisa com células-tronco ..................................248 10 4.4.1 – Estágio atual das pesquisas 248 com células-tronco ......................................................... 248 4.4.1.1 – Nos Estados Unidos ................................ 250 4.4.1.2 – Na Coréia do Sul ..................................... 4.4.1.3 – A legislação em alguns países 254 da Comunidade Européia ....................................... 254 4.4.1.3.1 – Alemanha ................................... 256 4.4.1.3.2 – Inglaterra ................................... 258 4.4.1.3.3 – França ........................................ 258 4.4.1.3.4 – Espanha ..................................... 260 4.4.1.3.5 – Portugal ...................................... 261 4.4.1.3.6 – Itália .......................................... 263 4.4.1.3.7 – Dinamarca ................................. 264 4.4.1.3.8 – Finlândia .................................... 265 4.4.1.3.9 – Áustria ....................................... 265 4.4.1.3.10 – Bélgica ..................................... 266 4.4.1.3.11 – Grécia ....................................... 267 4.4.1.3.12 – Irlanda ....................................... 268 4.4.1.3.13 – Luxemburgo ............................. 268 4.4.1.3.14 – Holanda .................................... 269 4.4.1.3.15 – Suécia ....................................... 271 4.4.1.3.16 – União Européia ......................... 275 4.4.1.4 – No Brasil ................................................. 4.5 – Visão científica das pesquisas 279 com células-tronco .............................................................. 4.6 – Visão religioso-cristã das pesquisas 281 com células-tronco ............................................................. 4.7 – O papel das associações que lutam 286 pela liberação da pesquisa com células-tronco ................... 4.8 – A recém aprovada Lei de Biossegurança 289 (Lei n° 11.105/2005) .......................................................... 11 5 – O DIREITO À VIDA DO EMBRIÃO E OS FUNDAMENTOS ÉTICOS 301 RELACIONADOS À MATÉRIA ...................................... 5.1 – Do Direito à vida do embrião, na legislação brasileira, em face das pesquisas 301 com células-tronco embrionárias ........................................ 5.2 – Fundamentos bioéticos para a não-realização 307 de pesquisas com embriões humanos .................................. 6 – DO CONFLITO GERADO ..................................... 327 6.1 – Do direito à vida do embrião 327 como ser individualizado ..................................................... 6.2 – Do direito à vida dos pacientes 336 em melhores condições ........................................................ 6.3 – Das regras de colisão para solução dos 350 conflitos de direitos fundamentais ...................................... 6.4 – Da supremacia do direito à vida sobre 366 qualquer outro direito .......................................................... 383 7 – CONCLUSÃO ................................................................ 393 8 – BIBLIOGRAFIA ............................................................ 12 1 – INTRODUÇÃO Na obra “Admirável Mundo Novo”, escrita por Aldous Huxley, em 1932, o autor descreve uma sociedade na qual os seres humanos não nasceriam mais de pais e mães, mas sim de provetas, nas quais são depositados os gametas que formarão os destinados a serem embriões manipulados, geneticamente, a fim de atender as necessidades sociais, já que, desde a sua criação e até mesmo durante o seu crescimento, seriam, manipulados, constantemente, induzidos e ensinados a serem apenas aquilo que o Estado lhes permitisse ser. Descreve, ainda, a formação de um Estado totalitário que, para manter a estabilidade, tiraria toda liberdade dos cidadãos, os quais, aliás, não teriam a mínima idéia do que seja isso, já que seriam condicionados, tanto, geneticamente, como por lavagem cerebral, na infância e na puberdade, a aceitarem sua condição social. Os avanços científicos são as grandes armas usadas por esse Estado totalitário para manter a ordem por ele estabelecida. Essa estabilidade, quando abalada por algum ser humano que se insurgisse contra essa situação (o que se explicaria por meio de manipulação genética que não teria saído em conformidade com o esperado, uma vez que este ficou mais próximo da normalidade que, hoje, se conhece), seria banido, porquanto aquele ser que “pensa” representaria 13 um risco àquela sociedade e poderia ser prejudicial à forma de governo estabelecida. Valores como família, fé, amor, amor ao próximo, relacionamentos humanos de amizade e cuidado com o ambiente em que se vive seriam eliminados. A sociedade se formaria em uma base de consumo exacerbado, em que somente se priorizaria o que fosse útil, sendo descartado tudo que não fosse perfeito; na qual haveriam diversas castas, as quais seriam geneticamente desenvolvidas para desempenhar certo tipo de serviço por toda a vida, sem que houvesse qualquer oportunidade de mudanças; e na qual, ainda, os problemas surgidos seriam resolvidos com o uso de drogas que manteriam as criaturas tranqüilas, a ponto de nunca questionarem o meio em que vivem. Considerada uma obra de ficção científica, há muito tem sido analisada, causando estremecimento em relação ao que está ali descrito, tem levado a se questionar até que ponto, realmente, sugere que a humanidade deva se preocupar acerca do desenvolvimento científico. Pergunta-se, portanto, até onde deve ir o desenvolvimento da ciência? Quais são os limites a serem estabelecidos para as pesquisas científicas, principalmente, em relação àquelas que envolvem seres humanos? Esta análise deve ser realizada, exclusivamente, pelo meio científico-médico-biológico, ou – indaga-se – deverá ser por intermédio de uma equipe multidisciplinar, na qual profissionais de várias áreas deverão ser ouvidos e cujus pareceres deverão ser considerados para a formação de um regramento que determine os parâmetros éticos, morais e 14 legais a serem utilizados em pesquisas científicas que envolvam seres humanos? Essas questões, que muito têm incomodado a toda sociedade, não poderiam deixar de serem analisadas pelo Direito, tendo em vista que, nos dias atuais, a pesquisa na área biomédica tem conseguido grandes descobertas, as quais têm gerado as mais diversas discussões sobre temas que antes pareciam estar já pacificados. E, por isso mesmo, não se pode furtar o operador do Direito a delas participar, como um dos muitos colaboradores na formação de uma equipe multidisciplinar de análise dessas novas descobertas. Contudo, para tanto, entende-se necessário buscar antes o conhecimento acerca dos temas que as envolvem, para melhor colaborar com os resultados que se buscam alcançar quando se realizar a análise. E essa é a razão do presente estudo, buscar esse conhecimento de um dos assuntos que, atualmente, tem se mostrado como uma das mais recentes e prodigiosas descobertas da área biomédica, ou seja, o poder de cura das mais diversas doenças por meio da aplicação de célulastronco. Contudo, mais ainda do que analisar essa descoberta buscar-se-á tratar de um bem de suma importância a todo ser humano, ou seja, o bem jurídico vida. Esta, como é consabido, é o valor considerado primordial a todo ser humano, posto que a partir dela, tudo que é inerente ao ser humano passa a ser possibilitado, tendo em vista que todas as situações decorrem do fato de se ter ou não vida. 15 Em vista da sua importância, esse bem foi alçado à categoria de bem inviolável pela Constituição Federal de 1988, que determinou, claramente, em seu texto, a sua primazia, estabelecendo, ainda, em diversos artigos, situações que primam pela sua manutenção. Estatuiu, ainda, que a vida deve ter qualidade, incumbindo ao Estado tomar as providências necessárias à sua implementação e efetivação de sua garantia, adotando, assim, medidas necessárias à proteção da saúde, da moradia, educação, aposentadoria, segurança, desenvolvimento científico, econômico e produtivo equilibrado, a fim de se promover o crescimento do País voltado à sadia qualidade de vida envolto em um meio ambiente equilibrado, para formação do real Estado Democrático de Direito. O caráter fundamental do direito à vida, então, implica manter-se afastado todo ato que possa gerar uma privação arbitrária da vida a qualquer ser humano, bem como impõe ao Estado o dever de criar e implementar diretrizes destinadas a assegurar os meios necessários à sobrevivência de todos, independentemente de raça, cor, credo, religião ou estágio de desenvolvimento. Contudo, esses deveres, por vezes, podem conflitar-se e gerar situações que levem o operador do Direito a questionar quais são os valores preponderantes, considerados, mesmo, fundamentais à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é considerado valor fundante de todo ordenamento. Em sendo assim, buscar-se-á investigar os valores descritos, e, como já foi dito, analisando-os a partir dos 16 grandes avanços biotecnológicos que têm, a cada dia, criado novos problemas ao Direito posto e, por isso mesmo, têm gerado diferentes posicionamentos doutrinários em relação ao que se entende como vida humana, seu início e, ainda, sobre o direito a viver em melhores condições. Contudo, para a análise em questão, entendeu-se ser necessário discorrer, anteriormente ao conflito gerado, acerca dos conceitos que permeiam as discussões, trabalhando-se desde o significado do termo vida, nas mais diversas conotações, bem como, também, as teorias sobre seu início, até o conceito de pessoa e personalidade no direito civil. Trazidas algumas considerações acerca destes temas, discorrer-se-á sobre como se forma o embrião humano, analisando-se desde a sua formação natural até aquelas realizadas em laboratório, as quais, pretende-se analisar, sucintamente. Seguindo com o raciocínio, passar-se-á ao estudo das células-tronco e nas implicações que essa descoberta tem gerado no ordenamento, a partir de princípios, tanto bioéticos como daqueles considerados alicerces da estrutura que forma o Estado brasileiro, ou seja, os direitos fundamentais. Por meio de uma breve análise desses regramentos, mais especificamente do caput do art. 5º e do § 3º, do art. 1º da CF, pode-se pressupor que a intenção do legislador tenha sido a de dar proteção à vida humana e, ainda, determinar que essa seja respeitada em sua dignidade. Contudo, como anteriormente descrito, entendeu, ainda, esse mesmo criador de regras ser necessário estabelecer que esse direito à vida poderia ter, também, uma outra conotação, qual seja, a de que se deve buscar, além daquela, garantir vida com qualidade, determinando em outros artigos situações que lhe pudessem dar efetividade. 17 Porém, questiona-se como essas leis podem ter relação com as pesquisas com células-tronco, ao que se responde que elas são diretamente ligadas, porquanto aquelas é que devem estabelecer os limites destas. E é nessa proposição que se encontra o objetivo do presente estudo, de demonstrar os limites legais que devem nortear as pesquisas com células-tronco, que envolvam embriões humanos, discutindo-se várias questões que muito têm polemizado o assunto. Por outro lado, tais questões não poderiam ser respondidas sem antes se estabelecerem referenciais teóricos que lhe dessem fundamentação para a solução dos conflitos suscitados, o que se intenta demonstrar no estudo. Sendo assim, a primeira parte do trabalho, intitulada princípio fundamental do direito à vida e o direito à vida com qualidade, está voltada, inicialmente, a uma análise conceitual do que representa o termo vida, sobre o qual, apesar de sabido por todos do que se trata, cabe tecerem-se algumas considerações, tendo em vista que recebe os mais diversos tratamentos, nos vários campos do conhecimento e ao longo dos tempos, tendo diferentes significados a partir do observador. Mas, como não se poderia furtar o operador do Direito de o fazer, o presente trabalho põe-se o desafio de demonstrar como se encontra, no ordenamento pátrio, a consagração desse direito, apresentando-o de uma forma global, haja vista que tratará, também, do que se entende por viver com qualidade. Contudo, somente esses conceitos não seriam suficientes para se entender a ligação, antes citada, entre os artigos elencados na Constituição e as pesquisas com células-tronco, sendo necessário demonstrar-se, ainda, o que explicitam as teorias acerca do início da vida, 18 deixando claro, desde já, que se trabalhará apenas com aquelas mais conhecidas e respeitadas, doutrinariamente. Por fim, decidiu-se por tomar posicionamento em relação a teoria concepcionista, adentrando, com isso, à segunda parte do trabalho, a qual, por sua vez, também se presta como base para melhor explicar a ligação citada. Trata-se, assim, do conceito de pessoa, visto desde o conceito de pessoa natural, estabelecido no Código Civil, até as novas formas de concepção que a reprodução humana assistida trouxe a lume. Necessário se fará, então, discutirem-se questões como o início da personalidade na legislação em face da reprodução humana in vitro, discussão essa que abrange não somente os nascituros, senão, também, os embriões excedentários das técnicas de reprodução em clínicas de fertilização, os quais têm sido alvo de constantes polêmicas. No entanto, com alicerce na idéia inicial de se buscar um conhecimento global acerca da matéria, entendeu-se conveniente enfrentar o mister de demonstrar, de forma mais precisa, como se dá a formação de um embrião humano nos seus primeiros dias de vida, anteriormente à formação da placa neural, esclarecendo as dúvidas, com arrimo em doutrina especializada, dos acontecimentos ocorrentes no período entre a fecundação e o décimo-quarto dia de formação do embrião humano, em seu desenvolvimento normal e pleno, ou seja, dentro do corpo humano. Mas, como essa não é a única forma de desenvolvimento humano hoje existente, atentou-se para o fato de que, não se poderia deixar de descrever como se forma um embrião humano in vitro, como se verificam a sua transferência e a sua criopreservação, matérias estas que, todavia, são suscitadas mais à guiza de alargamento do 19 espectro da base de análise do fenômeno sob o ponto de vista genético-biológico. A partir desse entendimento, pode-se, então, lançar-se à tarefa de definir o que vêm a ser as tão comentadas células-tronco, as quais, pela sua relevância, vêm compor a parte final do terceiro módulo do trabalho. Trata-se, portanto, do seu conceito, das suas formas, das suas origem e função, para, posteriormente, se chegar à análise da possibilidade do seu uso em terapias para cura das mais diversas doenças e dos riscos que elas implicam. Por outro lado, não há como se falar nessas células sem se demonstrar em que fase se encontram suas pesquisas pelo mundo, elegendo-se, para análise dessa situação, alguns países, com maior ênfase para o Brasil. Julgou-se necessário, ainda, demonstrar-se, sucintamente, qual é a visão científica e religiosa dessas pesquisas, dando, contudo, exclusividade a cientistas nacionais, no tocante à primeira, e à visão das Igrejas Cristãs, católica e evangélicas, no tocante à segunda. Procura-se discutir, também, o papel das associações que lutam pela liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, destacando-se o Movitae, antes da aprovação da Lei n° 11.105/20051 ou Lei de Biossegurança. 1 Em data de 03 de março de 2005, a nova Lei de Biossegurança foi votada, no Congresso Nacional em sessão extraordinária. Acompanhando esta votação, encontravam-se vários manifestantes ligados à Associação Brasileira de Distrofia Muscular e ao MOVITAE (Movimento em prol da vida), estando entre eles, ainda, o médico Drauzio Varella e a geneticista da USP, Mayana Zatz, a fim de apoiar a aprovação do projeto de lei no tocante às pesquisas com células-tronco embrionárias. Inicialmente, se discutiu sobre a manutenção do texto do art. 5°, o qual trata do uso em pesquisas dos embriões congelados em clínicas de fertilização in vitro, dentro do texto de lei da forma como foi modificado no Senado Federal, mantendo, assim, o projeto integral, ou o seu destaque para ser tratado em matéria diferenciada, já que esta matéria não teria ligação alguma com os outros assuntos do texto. Tendo sido levado à discussão, somente o PRONA se manifestou contrário à manutenção do texto introduzido pelo Senado, tendo todos os outros partidos votado 20 Quanto a esta Lei, a qual foi votada no Congresso Nacional, em 03 de março do corrente ano, e sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 24 daquele mês, buscar-se-á destacar o tratamento que esta deu, em seu art. 5°, ao uso de embriões humanos congelados em pesquisas com células-tronco embrionárias, os quais devem ser remanescentes de clínicas de fertilização assistida, que estejam congelados por, no mínimo, há três anos. Ressalta-se que esta Lei veio substituir a Lei n°. 8.974/95, que tratava, anteriormente, dessa matéria e é possibilitada pela introdução na Constituição Federal de 1988, do art. 225, §1° e incisos, que disciplinam a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País em relação à pesquisa e manipulação de material genético, que importem em risco para a vida e a qualidade de vida assegurados no caput deste artigo e no caput do art. 5° do texto constitucional. Surge, ela então, como implementadora do mandado descrito na Carta Magna que impõe ao legislador infraconstitucional o dever de criar regras que regulem a preservação da diversidade, da integridade do patrimônio genético do País e a sua biossegurança. Dessa forma, regulou desde o uso de embriões humanos em pesquisa científica até a questão dos favorável à manutenção do art. 5° inserido no texto da lei de biossegurança. Havia naquela casa, no momento, 429 deputados votantes, dos quais 366 votaram, favoravelmente, à manutenção integral do texto; 59 votaram pelo seu destaque, e 3 deputados se abstiveram de votar. Passada a votação da lei, quando quase que se repetem os mesmos números, houve, então, a aprovação do projeto de lei n° 2.401/2003 que gerou a nova Lei de Biossegurança (Lei n° 11.105/2005), a qual foi sancionada pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 24/03/2005. A partir deste momento, os embriões que se encontram congelados, há mais de três anos, em clínicas de fertilização assistida, em todo o Brasil, poderão ser usados em pesquisas com células-tronco embrionárias, desde que sejam considerados inviáveis e o procedimento seja autorizado pelos pais. 21 produtos, modificados, geneticamente, ou, como são conhecidos, os transgênicos. Tratam-se ambas de matérias polêmicas, as quais suscitaram grandes questionamentos por toda a sociedade, interessando a este estudo, em específico, o tema acerca das pesquisas com embriões humanos. Tal situação, de extrema relevância, acirrou o debate acerca dos conceitos sobre o que seria a vida, como se inicia, se se pode considerar com vida um embrião congelado, que tenha menos de 14 dias, ou se este é apenas um amontoado de células, se há vida extra-uterina ou se esta se dá apenas após a nidação no útero materno e, ainda, se há preponderância da vida humana, seja ela em qualquer estágio, ou da qualidade de vida daqueles que buscam nas pesquisas embrionárias uma esperança de cura para diversas patologias. Entendendo ser esta última a discussão de maior relevância, já que, dentro dela, todas as dúvidas acima suscitadas deverão ser trabalhadas, elegeu-se esta como tema central da dissertação a ser desenvolvida, a fim de se buscarem esclarecimentos que possam responder tais questionamentos. Então, estabelecidos os conceitos, dedica-se a pesquisa, a partir do determinado no caput do art. 5° da Constituição Federal de 1988, a explorar o tema que trata da quarta parte do trabalho, o qual discorre sobre o direito à vida do embrião e sobre os fundamentos éticos relacionados à matéria, demonstrando tanto os fundamentos legais quanto os bioéticos que embasam as teorias a respeito. E, somente a partir desta, então, é que se pode chegar à citada última parte do estudo, a qual apresenta 22 o conflito gerado entre o direito à vida do embrião humano e o direito a um viver melhor. A vida com qualidade é buscada por todos aqueles que acreditam que, por meio das células-tronco embrionárias, poder-se-á chegar à cura das mais diversas doenças genéticas e adquiridas, bem como, também, ao tratamento de males como a tetraplegia. Para a solução do conflito, apresentam-se regras propostas, doutrinariamente, para a solução de conflitos de direitos fundamentais, posicionando-se a presente dissertação pelo que reputa ser o mais correto acerca da matéria, do ponto de vista do ordenamento nacional. Mas, por se entender que este tema tão polêmico, em que se destacam os mais diversos posicionamentos, está longe de ser superado, buscar-se-á apenas contribuir para com o desenvolvimento da matéria, sem, contudo, pretender esgotá-la, já que se entende que muito há, ainda, que se discutir e pesquisar antes de se chegar a um consenso. Cabe destacar, ainda, que do ponto de vista metodológico, se buscou orientar por meio de obras atuais de metodologia, elegendo como base de estudo aquelas que foram, seguramente, sugeridas na disciplina de Metodologia da Pesquisa Jurídica, realizada como matéria obrigatória no presente curso de Mestrado em Direito, as quais se encontram devidamente citadas na bibliografia de base do estudo, orientando-se, também, pelos ensinamentos ministrados pelo atento orientador. 23 24 2 – PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO DIREITO À VIDA E O DIREITO À VIDA COM QUALIDADE 2.1 – O Conceito de vida 2.1.1 – Da etimologia ao conceito filosófico A palavra vida, como tantas outras, em cada língua tem sua forma de ser escrita. Derivada do grego ßo, escreve-se em latim e italiano como sendo vita; no inglês, life; no francês, vie e, no alemão, Leben. Mas, independentemente da forma como se escreve, indica o fenômeno que ocorre com os mais diversos seres por um determinado período de tempo, ou seja, do início ao seu término, a qual pode, ainda, transcender de acordo com a crença. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, por vida, tem-se “1. conjunto de propriedades e qualidades graças as quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo (2), o crescimento (1), a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução (1), e outras; 25 existência. 2. estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; existência; 3. a flora e/ou a fauna; 4. a vida humana; 5. o espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte; existência;2, sendo, portanto, no sentido em que se analisará, uma atividade funcional peculiar aos animais, vegetais e ao homem. Na Antigüidade, os fenômenos da vida eram “caracterizados com base em sua capacidade de autoprodução, vale dizer, com base na espontaneidade com que os seres vivos se movem, se nutrem, crescem, se reproduzem e morrem, de um modo que, pelo menos aparente e relativamente, não depende das coisas externas”3. O filósofo grego Platão identificava vida à alma, já que ele “considerava própria da alma a capacidade de mover-se por si”4; Aristóteles entendia por vida “a nutrição, o crescimento e a destruição que se originam por si mesmos”5. Na idade média, São Tomás de Aquino entendia que vida significava “a substância à qual convém por natureza mover-se ou conduzir-se espontaneamente e de qualquer modo à ação”6, sendo a alma o seu princípio. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O Dicionário Aurélio Eletrônico (Novo Dicionário Aurélio) ─ Século XXI. Lexicon Informática Ltda (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira), 1999. Verbete: Vida. 3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 1.001. 4 Ibid, p. 1.001. 5 Ibid, p. 1.001. 6 Ibid, p. 1.001. 26 Com Descartes e Hobbes foi que surgiu o conceito mecanicista de vida, comparando o homem e os organismos vivos em geral à máquina bem montada, onde se manteve, portanto, o sentido de autonomia separado da ligação com a alma que fora anteriormente tratado7. Leibniz, para quem o conceito de vida se faz de acordo com o princípio da física que diz que um corpo só se move se impelido por um corpo vizinho e em movimento, “considerava que a única teoria da V. compatível com esse princípio é a da harmonia preestabelecida, segundo a qual a V. consiste na concordância da ação das substâncias, preestabelecidas por Deus”8. Kant asseverava que a vida “é a capacidade de atuar segundo a faculdade de desejar”9. Hegel identificava vida com o “princípio que dá início e movimento a si mesmo”10, e Bergson entendia a fonte da vida como sendo a consciência criadora que extrai de si mesma tudo o que se produz. Extrai-se, portanto, que o conceito filosófico para vida demonstra uma idéia de poder de autonomia, de se autoregular, mover-se sem depender de coisa alguma, o que, para alguns, dependia, também, da alma (do latim animus), sendo por isso ligados. “A disputa entre vitalismo e mecanicismo versa sobre o seguinte: o mecanicismo afirma que a V. é devida a certa organização físico-química da matéria corpórea, enquanto o vitalismo considera que essa organização não é suficiente, e que a V. depende de um princípio de natureza espiritual”(Ibid, p. 1.001). 8 Ibid, p. 1.001. 9 Ibid, p. 1.001. 10 Ibid, p. 1.001. 7 27 2.1.2 – Conceito bioquímico Para a bioquímica, “vida é um processo químico envolvendo milhares de reações diferentes de forma organizada, as chamadas reações metabólicas, ou, mais simplesmente, metabolismo”11. 2.1.3 – Conceito biológico Tendo em vista que a vida está em constante evolução, os biólogos elaboraram alguns princípios com os quais entendem poder demonstrar os requisitos para se determinar a vida, sendo eles: 1) o fato de que todo organismo vivo tem que existir tanto no tempo quanto no espaço; 2) apresentar auto-reprodução ou se reproduzir em outro organismo; 3) armazenar informações sobre si próprio; 4) alternar-se por metabolismo, sendo capaz de transformar matéria em energia; 5) agir no seu próprio ambiente; 6) conter partes interdependentes, e 7) manter a estabilidade durante as mudanças das condições ambientais, evoluir e crescer ou expandir.12 11 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004. p. 116. 12 Conceito biológico de vida. Disponível em: <http://www.geocities.com/Eureka/3211/v– biol.htm>. Acesso em: 02/09/04, às 14:00 hs. 28 2.1.4 – Conceito jurídico Pode-se afirmar que boa parte dos juristas, pelo menos os aqui consultados, não tiveram a pretensão de estabelecer um conceito para se estabelecer o que seria vida, em sua respectiva ótica, prendendo-se mais em realizar uma análise do que esta representa dentro do ordenamento pátrio (para tanto, transcreve-se o que dizem alguns doutrinadores acerca do termo). José Afonso da Silva assevera: Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada. Mas alguma palavra há de ser dita sobre esse ser que é objeto de direito fundamental. Vida, no texto constitucional (art. 5°, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que 29 interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida13. Segundo Pietro de Jesús Lora Alarcón, É uma preocupação constante do ser humano conhecer sua origem e sua essência. Desde o começo e até hoje, a pesquisa biológica e a filosófica, bem como aquelas realizadas em outras áreas do conhecimento para descobrir o espinhoso tema, foi acompanhada, de maneira natural, por conquistas do homem no plano jurídico para a proteção da sua vida. Isso significa que o conceito vida, no sentido assinalado por outras ciências distintas da Ciência Jurídica, concebe-se em termos jurídicos como a (sic) idéia de direito à vida, e ainda em temos de dever de respeito à vida do outro.(...) (...) Juridicamente, as sucessivas dimensões protetoras do direito à vida passaram a ser um ponto de referência sistêmico para a própria teoria da Constituição e do Estado. Assim, qualquer interpretação constitucional précompreende uma teoria dos direitos fundamentais. Reafirme-se, o foco constitucional desde sempre tem sido o ser humano. Logo, o homem ligado à sociedade e, por último, o homem cada vez mais limitado por uma sociedade de massas que cresce e se desenvolve marcada por desigualdades profundas.14 13 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 200. 14 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 85. 30 Sendo assim, pode-se dizer que a vida é um processo por qual passa todo ser vivo e, em relação aos seres humanos, tem seu início com a concepção, perfaz-se por todo período que se dá entre aquele momento inicial até a morte, passando, ainda, durante esse processo, por diversas transformações de ordem física e psíquica, o que faz com que cada ser humano se torne mais diferente do que era no momento da sua concepção, tendo em vista que, desde esse momento, já é único. 2.2 – O direito à vida na legislação pátria 2.2.1 – (Breve) Análise do princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida Os direitos fundamentais constituem o “conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito”15, sendo, portanto, assim considerados na medida em que são reconhecidos e inseridos na Constituição e em face dela gerem conseqüências jurídicas, o que quer dizer 15 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 32. 31 que a interpretação das normas deverá ser feita de acordo com o que está ali inserido16. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, a positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados ‘naturais’ e ‘inalienáveis’ do indivíduo. É necessário assinalar-lhes a dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem esta positivação jurídica, os << direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política >>, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechtsnormen).17 De acordo com a necessidade de positivação dos direitos fundamentais, José Afonso da Silva sustenta que as regras que exprimem direitos fundamentais correspondem a preceitos positivos constitucionais, os quais somente seriam considerados assim desde que inseridos na Constituição.18 Por outro lado, há aqueles que entendem que, em face da importância do que se dispõe nas regras que imprimem existência positiva aos direitos fundamentais, estas podem 16 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora, op. cit., p. 77, observa sobre o descrito que “assumidos como direitos subjetivos, os direitos fundamentais são direitos de defesa perante os poderes estatais. Como elemento da ordem coletiva, traduzem uma competência negativa dos poderes estatais perante o status do indivíduo, ainda que uma positiva de respaldo à concretização desse mesmo status”. 17 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. p. 353. 18 SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 48. 32 ser consideradas supra-estatais, tendo em vista o fato de que estas decorrem de uma ordem superior e são inerentes ao ser íntimo de cada homem, sendo repugnante pensar que estas, para serem reais, necessitem, antes, de serem dispostas em lei.19 Mas a prática tem-se demonstrado que esses direitos, tanto quando expressamente descritos no texto constitucional quanto decorrente destes, imprimem valores máximos, inerentes à pessoa, devendo, portanto, serem seguramente resguardados, já que estes direitos são, na sua essência, as bases condicionantes da formação do real Estado constitucional democrático. Como bem asseverado pela doutrina: Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material. Para além disso, estava definitivamente consagrada a íntima vinculação entre as idéias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais. Assim, acompanhando as palavras de K. Stern, podemos afirmar que o Estado constitucional determinado pelos direitos fundamentais assumiu feições de Estado ideal, cuja concretização passou a ser a tarefa permanente.20 19 MORAES, Guilherme Peña de. Direitos Fundamentais: conflitos e soluções. Niterói: Labor Juris, 2000. p. 19. 20 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 59. 33 Expressa a doutrina, ainda, acerca dos direitos fundamentais, que: (...) os direitos fundamentais constituem, para além de sua função limitativa do poder (que, ademais, não é comum a todos os direitos), critérios de legitimação do poder estatal e, em decorrência, da própria ordem constitucional, na medida em que ‘o poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a idéia de justiça é hoje indissociável de tais direitos’. (...) (...) os direitos fundamentais passam a ser considerados, para além de sua função originária de instrumentos de defesa da liberdade individual, elementos da ordem jurídica objetiva, integrando um sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico. 21 Essas normas, então, revelam as “necessidades básicas” inerentes a qualquer ser humano, tendo em vista que protegem seus bens mais importantes que se personalizam tornando mais justo o texto de lei, sendo, por isso mesmo, considerado o “núcleo substancial”22 de toda Constituição. Sua proeminência se deu, principalmente, após o advento da 2ª Guerra Mundial, em face das atrocidades nesta cometidas, principalmente contra judeus, tendo sido, de certa forma, uma resposta àquelas e uma tentativa de controle para evitar novos desmandos. 21 22 Ibid, p. 60/61. Ibid, p. 62. 34 Dentro da Constituição Federal de 1988, no rol de direitos do art. 5°. encontra-se grande parte dos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, mas não somente no artigo citado, bem como em outros (por exemplo, alguns incisos do art. 1°.) e em direitos decorrentes do disposto em tais artigos, cujos direitos não foram claramente especificados, como hoje se fala no direito de ser diferente ou à diferença, que decorre do disposto nos incisos XLI e XLII do art. 5°., os quais tratam da discriminação e do racismo. Mais especificamente, no caput do artigo citado, temse determinada, expressamente, a inviolabilidade do direito à vida, especificando, ainda, os parágrafos daquele mesmo artigo a sua aplicação imediata e a não exclusão de normas “decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.23 Teria, assim, sido plenamente assegurado o direito à vida a todos, sem se poder fazer qualquer exceção que já não estivesse naquele texto declarada. Para proteção desse direito, como dos direitos fundamentais em geral, em âmbito normativo, foi-lhes assegurada limitação material explícita ao poder de reforma constitucional inserido no art. 60, § 4°., inc. IV da CF/88, ou seja, o respeito às cláusulas pétreas, as quais têm como função “evitar a destruição ou a radical alteração da ordem constitucional” e, assim, “assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda 23 § 2°., do art. 5° da Constituição Federal. 35 mudança de identidade”. que: 24 Acerca da matéria, profliga-se a norma veiculada pela Emenda à Constituição tendente a (sic) abolir direitos fundamentais é reputada por materialmente inconstitucional (...), sendo cabível, inclusive, a impetração de mandado de segurança por quaisquer dos membros do Congresso Nacional, como forma excepcional de controle de constitucionalidade jurisdicional e preventivo, ante ao direito líquido e certo de não se submeterem à tramitação de Proposta de Emenda Constitucional que não encontre fundamento de validade na Constituição da República. Na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o cabimento de mandado de segurança, cuja legitimação ativa é conferida a membro do Congresso Nacional, ‘com o objetivo de impedir a deliberação, em plenário, da Proposta de Emenda à Constituição’, tendo havido violação de limitação ao poder de reforma constitucional, porquanto a tramitação da referida proposta ‘ofende direito líquido e certo’ do impetrante, uma vez que ‘tem ele, na condição de parlamentar, o direito subjetivo de prevenir a deliberação congressual de tal proposta, que no seu entendimento ofende cláusula pétrea da Carta da República. 25 24 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 96/98. 25 MORAES, Guilherme Peña de. op. cit., p. 45/46, citando o julgamento do STF, MS n°. 22.449, Rel. Francisco Rezek, J. 15.03.1996, DJU 20.03.1996. 36 Pode-se dizer, portanto, que, em sendo a garantia do direito à vida inserido no texto constitucional pátrio no rol dos direitos fundamentais, como texto cimeiro, torna-o direito inviolável e não passível de exceções, não sendo possível que lei alguma, seja ela inserida no âmbito constitucional ou infra, venha a renunciar ou mesmo relativizar esse direito26, já que, do modo como se forma o ordenamento, segundo a pirâmide de Kelsen, a qual é seguida por todos os ordenamentos que têm na Constituição o seu texto hierarquicamente superior a todos os outros e ao qual aderiu também o Brasil, o mandamento constitucional deve ser seguido e respeitado em todas as leis ordinárias, principalmente no tocante aos direitos fundamentais. Em relação à garantia constitucional do direito à vida, aduz Canotilho que, ele “significa não apenas direito a não ser morto, mas também direito a viver27, no sentido do 26 CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos Jurídico-Penais da Eutanásia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), 2001. p. 99, assevera sobre o assunto: “(...) a previsão constitucional do direito à vida como um direito fundamental, de cunho nitidamente garantista, impõe deveres ao Estado e aos particulares. De primeiro, resulta na obrigação concernente às demais pessoas de respeitá-lo, o que se traduz no dever de não realizar condutas – comissivas ou omissivas, dolosas ou culposas – que impliquem a sua destruição. De outro lado, ao Estado competem deveres muito importantes na consecução do exercício efetivo do direito à vida, com o escopo de que não seja vulnerado”. 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 377, discorre ainda que o “direito à vida (CRP, art. 24.°) é um direito subjectivo de defesa, cuja determinabilidade jurídico-constitucional não oferece dúvidas, pois reconhece-se, logo a nível normativo-constitucional, o direito do indivíduo afirmar, sem mais, o direito de viver, com os correspondentes deveres jurídicos dos poderes públicos e dos outros indivíduos de não agredirem o ‘bem da vida’ (‘dever de abstenção’). Isto não exclui a possibilidade de neste direito coexistir uma dimensão protectiva, ou seja, uma pretensão jurídica à protecção, através do Estado, do direito à vida (dever de protecção jurídica) que obrigará este, por ex., à criação de serviços de polícia , de um sistema prisional e de uma organização judiciária. Todavia, o traço caracterizador do direito à vida é o primeiro – direito de defesa – e é esse traço caracterizador que, prima facie, justifica o enquadramento deste direito no catálogo de direitos, liberdades e garantias”. 37 direito a dispor de condições de subsistência mínimas e o direito a exigir das entidades estatais a adopção de medidas impeditivas da agressão deste direito por parte de terceiros”.28 No mesmo sentido é o posicionamento de Alexandre de Moraes, quando pondera: A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em prérequisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de E, na p. 384/385, observa que “muitos direitos impõem um dever ao Estado (poderes públicos) no sentido de este proteger perante terceiros os titulares de direitos fundamentais. Neste sentido o Estado tem o dever de proteger o direito à vida perante eventuais agressões de outros indivíduos”. (...) “Diferentemente do que acontece com a função de prestação o esquema relacional não se estabelece aqui entre o titular do direito fundamental e o Estado (ou uma autoridade encarregada de desempenhar uma tarefa pública) mas entre o indivíduo e outros indivíduos. Esta função de protecção de terceiros obrigará também o Estado a concretizar as normas reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar nestas relações a observância dos direitos fundamentais (...)”. 28 Ibid, p. 375. 38 continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à sua subsistência.29 Ainda, acerca da matéria, aduz Pietro de Jesús Lora Alarcón: A proteção da vida humana pelo Direito é dialética. Nesta afirmação inicial não há duvidas nem inovação nenhuma. Mas, o que se deve frisar é que essa evolução se confunde com a evolução do próprio Direito e, particularmente, com a evolução do Direito Constitucional. Tal afirmação se comprova examinando que a preocupação constante da positivação constitucional, a partir da própria Carta Magna, passando pelas Declarações30 de Direitos, 29 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2000. p. 61/62. 30 A preocupação com relação a deixar claro e escrito o direito primordial à vida foi concebida após o advento da 2ª Grande Guerra, com as atrocidades cometidas pelo nazismo/stalinismo, sendo o primeiro documento a demonstrar tal prerrogativa a Declaração Universal de Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 criada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual, em seu art. 3°. dispõe que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”. “Ainda nessa trilha, a imensa maioria dos pactos e convenções internacionais contêm menções ao direito à vida, com escassas diferenças de conteúdo. É assim que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de setembro de 1966, assinala em seu art. 6.1 que ‘o direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito estará protegido pela lei. Ninguém será privado da vida arbitrariamente’. Também nesse passo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), editada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 22 de novembro de 1969 prescreve que ‘toda pessoa tem direito a ter sua vida respeitada (...). Ninguém poderá ser privado da vida arbitrariamente’ (art. 4.1). Mencione-se ainda o Convênio Europeu para a proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, aprovado em 4 de novembro de 1950 pelo Conselho da Europa. O documento estabelece que ‘o direito de toda pessoa à vida está protegido por lei. Ninguém poderá ser privado de sua vida intencionalmente, salvo em execução de uma condenação que imponha a pena capital ditada por um tribunal ao réu de um delito para o qual a lei preveja essa pena (...). A morte não será considerada infligida com violação do presente artigo 39 por Constituições consideradas marcos na história jurídica do mundo como a Constituição soviética e a Constituição de Weimar e ainda, finalizando com documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, é a proteção do direito à vida. Pode-se dizer que o conjunto positivado de liberdades e garantias de alguma maneira forma o desdobramento do direito a viver, seja direito a existir, direito a conviver, ou direito a viver protegido dos impactos e choques do convulsionado mundo contemporâneo.31 Isto demonstra que cabe ao legislador ordinário, na elaboração de leis, criá-las de acordo com o texto constitucional32 que, no caso, implica respeitar a quando se produza como conseqüência de um recurso à força que seja absolutamente necessário: a) em defesa de uma pessoa contra uma agressão ilegítima; b) para deter alguém conforme o direito ou para impedir a evasão de um preso legalmente detido; c) para reprimir, de acordo com a lei, uma revolta ou insurreição’ (art. 2.°)”. (CARVALHO, Gisele Mendes de. op. cit., p. 97). 31 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 85. 32 “O fato de alguns institutos migrarem do Código (melhor: do direito civil) à Constituição indica que as coordenadas traçadas na Constituição devem ser seguidas por todo o aparelho regulamentador que lhe é inferior. Não basta que o legislador inferior passe a expedir normas que vão ao encontro da ordem constitucional. É essencial que mesmo as normas ditas inferiores já existentes sejam analisadas, interpretadas e aplicadas de acordo com o preceito constitucional. A Constituição passa a constituir-se como o centro de integração do sistema jurídico de direito privado. Assim é que as normas constitucionais de proteção à personalidade não devem ser vistas apenas como normas programáticas (portanto não dotadas de concretude). Ao contrário. Se todo o sistema jurídico gravita em torno da Constituição, tudo o que nela se contém forma e informa o direito ordinário. (...) A norma constitucional é parte integrante da ordem normativa, não podendo restringirse a mera diretriz hermenêutica ou regra limitadora da legislação ordinária. Aplicase (direta ou indiretamente, mesmo porque constituição também é norma) a Constituição ao caso concreto, dando-se vida à norma constitucional. A normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos 40 inviolabilidade do direito à vida e, ainda, dentro da sistemática constitucional, entender que da garantia constitucional do direito protegido resulta o dever do Estado de adotar as medidas necessárias positivas a fim de proteger o efetivo exercício do direito fundamental em risco de violação por terceiros, ou seja, com a criação de normas protetivas do direito assegurado constitucionalmente33. 2.2.2 – Os artigos da Constituição Federal de 1988 que asseguram o direito à vida Na Carta Magna, há vários artigos que asseguram o direito à vida, mesmo que não seja de forma expressa como o disposto no art. 5°. citado34, mas que, da análise valores”. (CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando os fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Renovar, 2000. p. 37/38 citando na parte em itálico Pietro Perlingieri na obra “Perfis do Direito Civil”). 33 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 83 e 85, assevera que “ (...) o constitucionalismo teve, e tem, ainda, como eixo determinante, a proteção da vida do ser humano, isso significa que seus momentos de qualificação evolutiva são o reflexo de uma nova forma de entendimento da proteção da vida humana. Assim, as diversas maneiras de abordar essa proteção ocasionam o salto a uma nova dimensão protetora, que é exatamente o ponto em que o constitucionalismo avança e em que, por fim, as Constituições se aperfeiçoam. Em suma: as dimensões, ou como prefere N. Bobbio, as gerações de direitos fundamentais, são apenas modalidades novas de amparo da vida humana, por isso são a essência do movimento constitucionalista de hoje e de sempre”. 34 São estes os artigos da Constituição Federal mencionados: Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 41 O art. 3º. dispõe como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização, fatores estes que têm levado diversas pessoas a óbito, principalmente crianças, tanto em razão da desnutrição e doenças que o primeiro pode causar como em razão dos altos índices de criminalidade que se tem registrado no Brasil. A fim de tentar amenizar a primeira situação, o governo nacional criou o Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza denominado “Fome Zero”, com o fito de financiar, por exemplo, a distribuição de alimentos as pessoas pobres da região Nordeste, entre outros programas como o bolsa-escola e vale-gás, os quais vieram a implementar o disposto no art. 79 introduzido pela Emenda Constitucional nº 31, de 14/12/00, o qual diz: Art. 79. É instituído, para vigorar até o ano de 2010, no âmbito do Poder Executivo Federal, o Fundo de Combate a Erradicação da Pobreza, a ser regulado por lei complementar com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida. Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo. No art. 4º dispõe-se que o Brasil reger-se-á, nas suas relações internacionais, mediante a prevalência dos direitos humanos, da defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo, entre outros. Um país que tem esses princípios assegurados em seu texto constitucional, assim o faz, principalmente porque por meio desses meios assegura o direito à vida, posto que em todos os termos citados vê-se que há preponderância por ações humanitárias e pacíficas, as quais contribuem para a manutenção da vida como um todo. Como exemplo, só o fato de a norma constitucional pregar a paz e buscar soluções pacíficas para conflitos, pode-se interpretar como forma de salvar muitas vidas que poderiam ser cerceadas, caso houvesse uma guerra. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; 42 LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; § 1º. – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º. – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Tendo em vista que no corpo do texto já se tratou do caput do art. 5°, passar-se-á diretamente à análise de seus incisos. Quanto à competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo júri popular, entende-se esta como uma forma de coibir de forma mais expressiva tais crimes, os quais têm penas mais severas que outros tipos de crimes, a fim de tentar diminuir o número de delitos cometidos através do exemplo e da comoção social. A punição, por lei, de atos atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais também busca a tutela da vida, já que a manutenção desses direitos acaba por coibir práticas que venham atentar contra esse bem. Assegura a norma constitucional o direito à vida do nascituro quando permite às presidiárias a permanência com seus filhos durante o período de amamentação e, estabelece, o mandado de injunção como meio processual assecuratório de defesa do regular exercício dos direitos e liberdades constitucionais. Art. 6°. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Ao assegurar, no art. 6°, o direito à saúde, a proteção à maternidade, à infância e a assistência aos desamparados, busca, novamente, a tutela da vida, resguardando-a, principalmente, em relação àqueles que mais necessitam dessa proteção, como, por exemplo, o nascituro, a criança e aqueles que não têm acesso à moradia e às condições mínimas para sobrevivência, entendendo o legislador como necessário assegurar-lhes direitos de defesa mais específicos, por se tratarem estes de pessoas mais necessitadas. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; Na mesma linha de raciocínio do artigo anterior, o 7°, nos incisos retro citados, também tutela do direito à vida, resguardando aquelas pessoas mais sensíveis de sofrer lesão quanto a esse bem, sendo redundante na proteção à maternidade (o que 43 entende-se necessário, já que se trata da formação de uma nova vida, a qual, em relação a outras, acaba por ser uma das mais frágeis) e mais específico no tocante à infância. Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. O mesmo se repete no art. 203, com a proteção daqueles mais necessitados e da sociedade como um todo, ao proteger a família. Dispõe, ainda, especificamente, sobre a vida do idoso e do deficiente sem condições de se manter ou de ser sustentado pela família, dispondo que caberá ao Estado suprir essas necessidades, sem permitir, novamente, que a vida destes seja ameaçada pela falta de suprimentos. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 4º – A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 6º – As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. Ao assegurar normas que buscam a preservação do meio ambiente equilibrado no art. 225, o faz com a intenção de criar condições de sobrevivência a todos os seres humanos, desta e de outras gerações, numa visão da natureza a partir do homem, a qual tem assegurado sua existência como meio de manter a subsistência da própria raça humana, dependente que é do meio ambiente. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 44 interpretativa de seu texto, vê-se a intenção legislativa de resguardar a vida35. Por outro lado, dentro do próprio art. 5°, § 1º – O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: I – aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; VII – programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. § 4º – A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. § 5º – A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 35 Acerca da matéria, aduz-se que: “No Brasil, resistiu-se ainda por longa data à outorga de proteção constitucional explícita ao direito à vida, muito provavelmente porque, como sem vida humana não seria possível o exercício dos demais direitos individuais, não se considerava necessária sua menção expressa no mais alto nível normativo. É assim que a Constituição Imperial de 1824 resguardava tão-somente ‘a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que têm (sic) por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade’ (art. 179). Mais tarde, a Constituição de 1891 manteve-se na mesma linha, não divulgando expressamente a tutela do direito à vida, mas resguardando aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, nos moldes da Carta anterior, ‘a inviolabilidade dos diretos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade’ (art. 72). Adiante, porém, prescrevia que a especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não excluía outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo estabelecida e dos princípios nela consignados (art. 78), com o que restava tutelada a vida humana, base de todos os demais direitos. Nessa mesma trilha seguiu a Constituição de 1934 que, ademais da inviolabilidade dos direitos ‘concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade’ (art. 113), cuidava ainda de garantir outros direitos não expressos no texto constitucional que resultassem do regime e dos princípios nele adotados (art. 114). A Carta de 1937 não operou maiores modificações: o direito à vida continuou a não ser tutelado de modo explícito, em detrimento das garantias ao direito de liberdade, à segurança individual e à propriedade (art. 122). A vida humana só ganhou menção expressa nas Constituições a partir de 1946, quando a Lei Maior passou a assegurar, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país ‘a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade’ (art. 141). Redação semelhante teve o art. 150 da Constituição de 1967, que também cuidou de elencar expressamente a vida como entre os direitos e garantias individuais. Esse preceito não foi alterado pelas sucessivas emendas constitucionais àquela Carta. 45 além do caput, há outros dispositivos diretamente relacionados com o direito à vida, que são: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; A inserção tardia do direito à vida de modo explícito no texto constitucional permite assinalar que o reconhecimento desse direito pelas Constituições tem, antes de tudo, um valor simbólico, porquanto é um direto inerente ao ser humano, que para existir não necessita seu reconhecimento expresso e que já dispõe de tutela na legislação ordinária, qual seja a lei penal. Mas não se esgota apenas nessa função simbólica, vez que ‘comporta ainda uma direta, efetiva e vinculante referência ao marco dentro do qual a vida humana deve ser protegida, gerando um autêntico dever jurídico para os destinatários da norma contida no referido preceito’”. (CARVALHO, Gisele Mendes de. op. cit.., p. 98/99). 46 e) cruéis; Além de encontrar-se no regramento anteriormente descrito, o direito à vida vem claramente disposto nos arts. 227 caput e 230 do texto constitucional: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. No inc. III do art. 5°, quando o texto constitucional determina que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, está, de certa forma, assegurando a manutenção do direito à vida, visto que tais formas de tratamento, no passado (e, com tristeza, pode-se dizer que até hoje isso ocorre, como o caso do oriental que morreu em uma cadeia, na cidade de São Paulo, após ser torturado para entrega de dinheiro), acabaram por exterminar diversas vidas humanas no Brasil e em todo mundo. O que dizer do nazismo de Hitler e da ditadura no Brasil. Vê-se, portanto, tal medida como meio assecuratório 47 do direito à vida. O inciso XLIII elenca como crimes inafiançáveis, insuscetíveis de graça ou anistia, crimes como a tortura, o tráfico, o terrorismo e os crimes hediondos, por estes atentarem diretamente contra a vida humana, já que, em todos eles, normalmente, o bem que é atingido acaba por ser este, e, ainda, determina no XLVII que não haverá pena de morte ou pena cruel, sendo este também interpretado como instrumento protetor da tutela da vida. Os artigos 227, 229 36 e 230 da Constituição Federal tratam do dever de resguardo da vida e da saúde da criança, adolescente e idoso pela família, sociedade e pelo Estado. Estes artigos vêm a complementar o dever geral de proteção da vida elencado no artigo 5°. outrora analisado, especificando a sua prioridade, especialmente em relação às pessoas ali contempladas, por se tratarem estas de figuras especiais que, por sua fragilidade, devem ter seu direito claro, posto que, nem mesmo assim, muitas vezes, vê-se que nenhum dos obrigados em relação ao dever de proteção e cuidado tem realizado bem esse papel. Pode-se, perfeitamente, perceber esta falha pelo sem número de crianças abandonadas pelas ruas das grandes cidades que vêm sendo constantemente abusadas (de todas as formas) tanto por seus pais, que, muitas vezes, delas se utilizam para auferir vantagens financeiras, quanto pela sociedade em geral e pelo Estado, que deixa de cumprir seu papel, quando não toma uma atitude prática e efetiva que ponha termo com essas situações. Vê-se, ainda, essa falha ao se constatar grande número de idosos deixados em asilos e nas ruas, sem qualquer auxílio financeiro ou emocional por parte de suas famílias, os quais ficam verdadeiramente abandonados, dependentes de qualquer ajuda que lhes possa ser oferecida 36 Citado em nota anterior. 48 por outros meios como a sociedade e o Estado. Mas este, para piorar, tem constantemente desrespeitado esses idosos, quando não lhes oferece condições mínimas de sobrevivência com as enxutas aposentadorias, as quais, após anos e anos de trabalho e contribuição à previdência social, não são devidamente remuneradas.37 Pode-se perceber, então, que em lei constitucional, buscou o legislador pátrio proteger direito à vida não somente de forma direta como expressado no art. 5°., mas, também, de forma indireta, determinando regras que impliquem a sua proteção, demonstrando sempre o valor que se dá a esse bem como primordial e essencial a todos, posto que somente a partir dele outros direitos são resguardados. Assegurar esse direito, constitucionalmente, ainda mais da forma como fora assegurado, demonstra a preocupação do legislador constitucional em não vê-lo infringido por qualquer meio, visto que se trata do maior bem que os seres humanos têm que é a vida e seu direito de exercê-la em qualquer situação. E se, apesar de toda essa proteção, mesmo assim, esse direito não é devidamente respeitado nem pela sociedade e tampouco pelo Estado, o qual deveria ser o seu maior “guardião”, imagine-se quando normas são estabelecidas que direta ou indiretamente violem esse direito, tutelando na contramão da Constituição, o que irá ocorrer? Essa é uma preocupação constante para aqueles que entendem a vida, em todas as suas formas, como o maior bem existente, a qual deve ser assegurada a todos os seres humanos, sem exceção. 37 Quando o são, já que muitos não a recebem em face das inúmeras irregularidades que pairam no sistema previdenciário e também por causa da burocracia que impera nos diversos órgãos governamentais. 49 2.2.3 − Os artigos da legislação civil que asseguram o direito à vida No Código Civil, têm-se alguns artigos que asseguram o direito à vida, os quais, semelhantemente à Constituição Federal, não se apresentam de forma expressa, mas que, da análise interpretativa de seu texto, vê-se a intenção legislativa de resguardar a vida. O primeiro artigo que defende a vida, paralelamente àquilo para o que foi criado, é o art. 2°. que estatui que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Este trata, especificamente, do começo da personalidade natural, tema que será posteriormente tratado, mas assegura direitos ao nascituro desde o momento inicial de sua vida, ou seja, a concepção. A ele assegura, então, o direito à vida, do qual derivam outros direitos especificados em outros artigos como o direito à filiação, à integridade física, a alimentos, à assistência pré-natal, a ter curador que zele por seus interesses, quando houver incapacidade dos genitores de receber herança ou doação e o direito de ser reconhecido como filho, entre outros. Em relação ao art. 15 que estatui que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, entende-se doutrinariamente que o artigo foi criado exaltando, antes de qualquer coisa, o direito de escolha ou a autonomia do paciente de se submeter ou não a tratamento, já que os 50 profissionais da saúde deverão agir de forma que seja respeitada a vontade do paciente, ou de seu representante quando se tratar de incapaz, buscando sempre agir de acordo com o princípio da beneficência e da não-maleficência (os quais implicam buscar-se o bem-estar e evitar danos ao paciente). Mas, ao se realizar uma interpretação extensiva do artigo, vê-se que seu fim também é resguardar a vida e a saúde do paciente, o qual tem o direito de não se submeter a tratamentos que possam lhe cercear esse bem. Quanto ao art. 229 que expressa, em seu inciso III, que ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato que o exponha a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato, ensina a doutrina que no inciso terceiro, resguardou-se, entre outros bens, a vida, desobrigando qualquer pessoa de testemunhar sobre fato que sabe, quando isto lhe implicar risco. Mas o risco, aqui, não se aplica apenas à vida do depoente, mas estende-se, também, ao seu consorte, parentes ou amigos.38 Têm-se, no art. 557, casos de possibilidade de revogação de doação realizada, em caso de tentativa de homicídio ou da ocorrência deste e, ainda, no caso de haver recusa em prestar alimentos ao doador que deles necessitava, tendo o donatário condições de fazê-lo. Estatuem os incisos citados: Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I – se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; 38 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 207. 51 IV – se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava. Cabe observar que a revogação, no caso do inciso I, somente poderá ocorrer quando o atentado contra a vida do doador for doloso, não cabendo, aqui, a figura do crime culposo ou o caso de legítima defesa, posto que, nestes, não se poderá revogar a doação. Mais uma vez, percebe-se a proteção da vida inserida no texto, visto que se busca retirar o prêmio recebido daquele que atenta contra a vida de quem o premiou. Analisando, extensivamente, pode-se até mesmo dizer que o artigo busca coibir que se atente contra a vida de alguém visando a obtenção de benefício financeiro, já que o agente poderia, mediante ameaça à vida, buscar a doação de bem patrimonial, o qual, por força deste artigo, acaba por ficar sem razão para fazê-lo. Com relação à questão dos alimentos, vê-se, aqui, também, a proteção da vida, já que todo ser humano necessita de alimentos para sua sobrevivência, contemplando o artigo a obrigatoriedade de se prestar alimentos àquele que deles necessita, quando se tem condições de fazê-lo (claro, que é específico a essa situação, já que não se está, neste artigo, tratando do dever geral de prestação de alimentos). Ao tratar do seguro de vida, estatui o art. 790: Art. 790. No seguro sobre a vida de outros, o proponente é obrigado a declarar, sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado. 52 Parágrafo único. Até prova em contrário, presume-se o interesse, quando o segurado é cônjuge, ascendente ou descendente do proponente. A professora Maria Helena Diniz aduz sobre o de seguro de vida que: O seguro de vida terá por escopo a garantia, mediante pagamento de prêmio anual ajustado, de uma indenização a determinada pessoa, em razão de morte do segurado. (...) visa garantir a pessoa do segurado contra riscos a que estão expostas sua existência, sua integridade física e sua saúde, não havendo reparação de dano ou indenização propriamente dita, pois não se pretende eliminar as conseqüências patrimoniais de um sinistro, mas sim pagar certa soma ao beneficiário designado pelo segurado. (...) O seguro pode compreender a vida do próprio segurado ou a de terceiro; todavia, nesta última hipótese, dever-se-á justificar o seu interesse jurídico ou econômico pela preservação da vida que segura, sob pena de o seguro não ter validade se se provar a falsidade do motivo alegado. Dispensar-se-á tal justificação se o terceiro, cuja vida se pretende segurar, for descendente, ascendente, ou cônjuge do proponente, porque a afeição e o vínculo familiar revelam o natural interesse pela vida de qualquer 53 dessas pessoas. Todavia, tal presunção é juris tantum, prevalecendo até prova em contrário. 39 E o art. 948, quando trata da indenização dada pelo homicida a vítima estatui que: Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. No início do inciso I, tem-se a proteção da vida e da saúde da vítima não fatal, devendo-se indenizar, em caso de haver despesas com tratamento médico e, no caso do inciso II, demonstra-se a proteção da vida, estendendo àquele que causou a morte o dever de sustento daquelas pessoas que dependiam do de cujus para sobreviver. De acordo com a Súmula 37 do STJ, serão cumuláveis as indenizações por dano material e moral que forem oriundas do mesmo fato e, pela Súmula 491 do STF, “é indenizável o acidente que causa a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”.40 39 Ibid, 477. NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 329. 40 54 O art. 951 continua a tratar dos casos de indenização, ao estabelecer quando esta é devida pelo executor de atividade profissional: Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicase ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. Este artigo tem a intenção primeira de demonstrar a responsabilidade subjetiva dos profissionais da saúde, como médicos, enfermeiros, dentistas, farmacêuticos etc, a fim de que seja reparado o dano causado por um destes que, no exercício de sua profissão, cause a morte, ferimento ou inabilite o paciente por imprudência, negligência ou imperícia. Discorre a doutrina que, nestes casos, a prova deverá ser realizada pelo próprio autor da pretensão, havendo, na relação estabelecida entre o profissional e o paciente apenas uma obrigação de meio, que se demonstra por intermédio da tentativa de cura deste por meio da aplicação dos cuidados necessários para isso, sem, contudo, isso se efetivar em obrigação de resultado (a cura efetiva), só havendo este último, em casos como os das cirurgias estéticas, nos contratos de hospitalização, nos quais o “médico assume o dever de preservar o enfermo de acidentes, hipóteses em que sua responsabilidade civil será objetiva e não subjetiva”.41 Mas, vê-se, aqui, de qualquer forma, a mesma preocupação com a proteção da vida que foi inserida em outros artigos, já que se busca a prestação de serviço por profissional da saúde que seja voltada à prática 41 Ibid, p. 951. 55 efetiva de cuidados que possam preservar a saúde e a vida do paciente. 2.2.4 − Referências à legislação penal que asseguram o direito à vida Na legislação penal, há um capítulo específico que assegura o direito à vida, onde, de forma expressa, são descritos os atos que podem ser considerados condutas típicas, sendo às mesmas cominadas penas tanto de detenção como de reclusão. Este capítulo insere-se no Título I, que trata dos crimes contra a pessoa, sendo intitulado “dos crimes contra a vida”, o qual inicia-se no art. 121 sobre o homicídio simples, e vai até o art. 128, que trata do aborto42. Como em relação à matéria não se tem pretensão de análise, até porque o estudo sob o ponto de vista penal não faz parte do tema central desta dissertação, foram os artigos trazidos apenas para ilustrar e complementar, demonstrando que há uma preocupação constante do legislador pátrio em 42 Mas, ainda, dentro da parte especial do Código Penal, há diversos artigos que, indiretamente, tutelam a vida como os artigos referentes às lesões corporais (art. 129), da periclitação da vida e da saúde (arts. 130 a 136), sobre a rixa (art. 137), incêndio (art. 250), explosão (art. 251), uso de gás tóxico ou asfixiante (art. 252), inundação (art. 254 e 255), desabamento ou desmoronamento (art. 256), subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento (art. 257) e as formas qualificadas desses crimes (art. 258). Pode-se, ainda, perceber que na parte geral, o art. 61, no inciso II, letras “d” e ”h” dispõe sobre situações que sempre agravam a pena, as quais implicam, quando realizadas, prováveis danos à saúde e à vida tanto da coletividade quanto apenas em relação a determinadas pessoas. 56 dar proteção ao bem maior que é a vida humana43. Sendo assim, far-se-ão referências apenas aos artigos e, algumas vezes, comentários sucintos acerca do assunto tratado. São os artigos citados: Art. 61 – São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II – ter o agente cometido o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum; 44 Gisele Mendes de Carvalho pontua acerca do direito à vida: “O bem jurídico vida humana, erigido à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal, constitui suporte indispensável para o exercício de todos os demais direitos, o que explica a especial proteção que lhe é outorgada pela lei penal. Exsurge como o primeiro e mais importante direito do homem e, embora se discuta essa afirmação no que tange à preponderância da autonomia e da liberdade individual, impõe observar que esses direitos se referem exclusivamente ao homem enquanto ser vivo, independentemente de qualquer reconhecimento pelo ordenamento jurídico”. (CARVALHO, Gisele Mendes de. op. cit., p. 96). 44 PRADO, Luiz Régis. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Anotado e legislação complementar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 321, comentam acerca do inciso citado: “Relaciona-se, (sic) aqui, exemplificativamente, os meios de cometimento do crime, que caracterizam-se pela insidiosidade ou crueldade. Meio insidioso (veneno) é aquele capaz de iludir a atenção da vítima. Meio cruel (fogo, explosivo, tortura) é aquele que causa, desnecessariamente, maior sofrimento à vítima, “ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade” (Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, n. 38). Meio de que pode resultar perigo comum (fogo, explosivo) é o que pode atingir indeterminado número de pessoas ou coisas. Por razões óbvias, esta agravante não se aplica aos crimes de perigo comum, por integrá– los”. 43 57 h) contra criança, velho, enfermo ou mulher grávida; (Redação dada pela Lei nº 9.318, de 5.12.1996) (Vide Lei nº 10.741, de 2003).45 2.2.4.1 – Homicídio Do art. 121 ao art.123, têm-se como bem jurídico a vida humana, em geral, sendo considerado crime, em qualquer dos artigos citados, a ação humana que resulte na morte de outra pessoa, estando estabelecidas nos artigos citados, formas diferenciadas de cometimento que podem diminuir ou agravar a pena. 46 Ibid., p. 322, aduzem acerca do inciso II, h: “Considera-se, nas quatro hipóteses, a presumida menor capacidade de defesa dessas vítimas, além da perversidade e covardia do agente. Conseqüentemente, se trata de presunção juris tantum.(...) Enfermo é a pessoa doente, cuja resistência tenha sido diminuída pela enfermidade. Enfermo, no entanto, deve receber interpretação ampla, para abranger, por exemplo, os deficientes físicos e os portadores de moléstias, física ou mental”. 46 Homicídio simples Art. 121 – Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Caso de diminuição de pena § 1º – Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Homicídio qualificado § 2º – Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; 45 58 Vê-se, claramente, neste capítulo, a importância que o legislador pátrio dá à vida humana, prevendo os artigos citados nesta parte penas severas que podem chegar até 30 anos de reclusão. Nestes casos, entende a doutrina que a vida protegida é, aquela que se estabelece com o “início do parto, com o rompimento do saco amniótico. Antes do início do parto, o crime será de aborto”.47 Aduzem, ainda, os V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. Homicídio culposo § 3º – Se o homicídio é culposo: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Aumento de pena § 4º – No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 13.7.1990) (Vide Lei nº 10.741, de 2003) § 5º – Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977) Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único – A pena é duplicada: Aumento de pena I – se o crime é praticado por motivo egoístico; II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. Infanticídio Art. 123 – Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. 47 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 2 – parte especial, arts. 121 a 183. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 45. O autor assevera, sobre o crime de homicídio, que o “sujeito passivo é o ser humano com 59 doutrinadores que, para que se estabeleça a conduta típica, a qual consiste em matar alguém, nesses crimes, “é suficiente a vida, sendo indiferente a capacidade de viver”48, bastando, portanto, “para a caracterização do delito em tela, que o sujeito passivo esteja vivo”, não importando, dessa forma, “seu grau de vitalidade ou a existência ou não de capacidade de sobrevivência. A presença de condições orgânicas precárias que impeçam a continuidade da vida não afasta a configuração do delito”.49 E esta vida é manifestada por meio da respiração. Contudo, este não é um conceito absoluto, posto que se sabe vida. No homicídio, o sujeito passivo será também o objeto material do delito, pois sobre ele recai diretamente a conduta do agente. Observe-se que a destruição da vida intra-uterina configura o delito de aborto (art. 124, CP). De outro lado, a morte dada ao feto durante o parto perfaz, em princípio, o delito de homicídio. Se o sujeito ativo for a mãe, sob a influência do estado puerperal, tem-se identificado o crime de infanticídio (art. 123 CP). Infere-se daí que o delito de homicídio tem com limite mínimo o começo do nascimento, marcado pelo início das contrações expulsivas. Nas hipóteses em que o nascimento não se produz espontaneamente, pelas contrações uterinas, como ocorre em se tratando de cesariana, por exemplo, o começo do nascimento é determinado pelo início da operação, ou seja, pela realização da incisão abdominal. De semelhante, nas hipóteses em que as contrações expulsivas forem induzidas por alguma técnica médica, o início do nascimento será sinalizado pela execução efetiva da referida técnica ou pela intervenção cirúrgica (cesárea)”. 48 Contudo, há julgados no sentido de entender como homicídio privilegiado, ou seja, para o qual se impõe pena mais branda, casos que se refiram à eutanásia, quando o agente tem com a vítima estreitos laços de afeição, e, em face disto age por compaixão a pedido daquela, sendo entendido como valor moral, descrito no parágrafo, aquele “que se adeqüe aos princípios éticos dominantes, segundo aquilo que a moral média reputa nobre e merecedor de indulgência. O valor social ou moral do motivo deve ser considerado sempre objetivamente, segundo a média existente na sociedade, e não subjetivamente, segundo a opinião do agente”. (PRADO, Luiz Régis. BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 486). Cita-se, ainda, julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca da matéria: “Por motivo de relevante valor moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico)” (TJSP – AC – Rel. Denser de Sá – RJTJSP 41/346) (Ibid, p. 492). 49 PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 46. 60 da possibilidade de “haver vida sem a presença dos movimentos respiratórios regulares (v.g. recém-nascido apnéico)”50, quando aquela será aferida mediante outros sinais vitais como, por exemplo, as pulsações cardíacas, sendo somente possível a prática desse delito enquanto houver a vida. Mas, como elucida o professor Luiz Régis Prado, a determinação do momento da morte, porém, é altamente controvertida. E isso porque a morte não se produz instantaneamente, mas é o resultado de um processo que afeta de modo gradual e progressivo os diferentes órgãos e tecidos do corpo humano. Para fins jurídico-penais não é possível aceitar um conceito de morte puramente biológico, mas imperiosa é a formulação de um conceito legal, que deverá necessariamente apresentar um conteúdo médico-valorativo. Sendo a morte um processo irreversível, “seu momento será determinado em função dessa peculiaridade, isto é, quando verificada a lesão irreversível e irrecuperável de alguma função vital do corpo humano”. Atualmente, médicos e juristas concordam que o momento da morte ocorre com a cessação irreversível das funções cerebrais. O critério da morte encefálica baseia-se na irreversibilidade da morte. Considera-se que uma lesão ou deterioração substancial do cérebro é totalmente irrecuperável e, por isso, irreversível, pois a medicina, hoje, não logra uma recuperação das funções do cérebro e a cessação destas conduz ao não funcionamento autônomo do organismo. O critério da morte encefálica – acolhido 50 Ibid, p. 46. 61 expressamente pela legislação pátria (art. 3°, Lei 9.434/97) – respeita as garantias de proteção da pessoa humana, já que “pressupõe a perda da consciência e de outras funções superiores, sem as quais o indivíduo não pode realizar sua condição de pessoa.51 Por outro lado, enquanto houver possibilidade de vida, mesmo que precária, é ela valorosa e irrenunciável para o Direito, sendo considerada mesmo um “bem jurídico de incontestável magnitude”52, porquanto “a garantia da vida humana não admite restrição ou distinção de qualquer espécie. Ou seja, protege-se a vida humana de quem quer que seja, independentemente da raça, sexo, idade ou condição social do sujeito passivo”.53 Pelo simples valor que cada vida humana alberga em si, deve ser resguardada de toda e qualquer violação de direito que possa vir afligí-la ou diminuí-la, não devendo nenhum ser humano agir de forma que venha a cercear a vida de outro. 51 Ibid, p. 45/46. Ibid, p. 66. 53 Ibid, p. 44. 52 62 2.2.4.2 − Aborto54 Tratam os artigos 124 a 128 do Código Penal acerca do delito de aborto, o qual tem como bem jurídico tutelado “a vida do ser humano em formação”55, protegendo-se “a vida intra-uterina, para que possa o ser humano desenvolver-se normalmente e nascer”.56 Nestes, em consonância com o regramento constitucional, busca-se a proteção integral do ser humano desde o momento de sua formação até o momento da sua morte, relatando o autor por último citado que “o direito à vida, constitucionalmente assegurado (art. 5.°, caput, CF), é inviolável, e todos, sem distinção, são seus titulares. Logo é evidente que o conceito 54 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único – Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 55 PRADO, Luiz Régis. BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 501. 56 PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 94. 63 de vida, para que possa ser compreendido em sua plenitude, compreende não somente a vida humana independente, mas também a vida humana dependente (intra-uterina)”.57 Para a medicina, o aborto58 é conceituado como sendo “a interrupção prematura do desenvolvimento e refere-se à expulsão de um embrião ou feto antes de se tornar viável – (sic) capazes de viver fora do útero”.59 Para este, a medicina o classifica em diferentes tipos, sendo eles: Ameaça de aborto (sangramento com a possibilidade de aborto) é uma complicação que ocorre em cerca de 25% das gravidezes clinicamente aparentes. A despeito de todos os esforços para impedir o aborto, cerca da metade destas gravidezes acaba em aborto (Filly, 1994). Aborto acidental é aquele que ocorre por causa de um acidente (p. ex., durante a queda de uma escada). Aborto espontâneo é aquele que ocorre naturalmente, sendo mais comum durante a terceira semana após a fertilização. Cerca de 15% das gravidezes identificadas terminam em aborto espontâneo, geralmente durante as primeiras 12 semanas. Aborto habitual é a expulsão espontânea de um feto morto, ou não viável, em três ou mais gravidezes consecutivas. 57 Ibid, p. 94. A palavra aborto, etimologicamente, significa malogro, sendo derivada do latim aboriri ou abortus (morrer, perecer). 59 MOORE, Keith L. PERSAUD, T. V. N. op. cit., p. 3. 58 64 Aborto induzido significa um nascimento induzido antes das 20 semanas (i.e., antes de o feto tornar-se viável). Este tipo de aborto refere-se a expulsão intencional de um embrião ou feto (p. ex., por curetagem a vácuo – remoção do concepto após dilatação por meio de uma cureta oca introduzida no útero e através da qual é feita a sucção). Aborto completo é aquele no qual todos os produtos do concepto são expelidos do útero. Aborto criminoso é o executado ilegalmente. Abortos induzidos legalmente, eletivos, justificáveis ou abortos terapêuticos, geralmente são induzidos por drogas ou curetagem por sucção. Alguns abortos são induzidos por causa da má saúde da mãe (física ou mental), ou a fim de impedir o nascimento de uma criança com deformações graves (p. ex., sem a maior parte do cérebro). Aborto frustrado é aquele no qual há retenção do concepto no útero após a morte do embrião ou feto.60 Nos crimes de abortamento, tem-se como sujeito passivo o “ser humano em formação (óvulo fecundado/embrião/feto), titular do bem jurídico vida”61, sendo resguardado em todas as etapas do seu desenvolvimento dentro do útero materno. Mesmo sendo um bem jurídico individual, há um interesse social protegido, o qual se “manifesta na proteção da vida do 60 61 Ibid., p. 3. PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 95. 65 produto da concepção”.62 Expõe a doutrina penal que “a mera interrupção da gestação, por si só, não implica aborto dado que o feto pode ser expulso do ventre materno e sobreviver ou, embora com vida, ser morto por outra conduta punível (infanticídio ou homicídio)”.63 Averba, ainda, que: Atualmente, com as modernas técnicas de reprodução assistida, não é possível sustentar tal relação de causa-efeito (interrupção da gravidez/ destruição do nascituro), pois pode o embrião ser transferido para outra mulher. Além disso, é bem possível a destruição de um dos embriões ou fetos – na hipótese de gravidez múltipla – sem a interrupção da gravidez do processo de gestação. De outro lado, também a expulsão do feto não é imperiosa para a configuração do aborto. Nos primeiros meses de gravidez, é possível que o embrião seja objeto de um processo de autólise, que termina com sua reabsorção pelo organismo materno. Ademais, pode o embrião passar por um processo de calcificação (litopédio) e permanecer no útero como um corpo anexo. Nesses casos, se exigível a expulsão do produto da concepção, não haveria aborto punível. Não será bastante também a morte do feto, se não resultar esta dos atos praticados ou dos meios utilizados para a interrupção da gravidez ou da própria imaturidade do feto, que não sobrevive à expulsão prematura provocada por aqueles atos ou meios. 62 63 Ibid, p. 95. Ibid, p. 96. 66 O aborto consiste, portanto, na morte dada ao nascituro intra uterum ou pela provocação de sua expulsão. O delito pressupõe, por óbvio, gravidez em curso. É indispensável a prova de que o ser em gestação se encontrara vivo quando da intervenção abortiva e de que sua morte foi decorrência precisa da mesma. Assim, a morte deve ser conseqüência direta das manobras abortivas realizadas ou da própria imaturidade do feto para sobreviver, quando sua expulsão for provocada prematuramente por aquelas manobras. O estágio da evolução do ser humano em formação não importa para a caracterização do delito de aborto.64 O aborto ocorre com a provocação da expulsão do concepto que se encontra no útero, independentemente da fase em que se encontra, havendo, doutrinariamente, uma classificação quanto ao tipo de aborto em relação ao tempo de gravidez, sendo chamado de ovular quando praticado até a oitava semana ou dois primeiros meses de gestação; embrionário, quando realizado até a 15ª semana ou até o terceiro/ quarto mês de gestação; fetal, quando ocorrer daquela data a diante, ou seja, a partir do quinto mês de gestação. Discute-se, doutrinariamente, acerca do exato termo inicial da gravidez, já que, com o início desta, se dá o ponto de partida para a prática do delito. Assevera-se que, “do 64 Ibid, p. 96. 67 ponto de vista biológico, o início da gravidez é marcado pela fecundação. Todavia, sob o prisma jurídico, a gestação tem início com a implantação do óvulo fecundado no endométrio, ou seja, com a sua fixação no útero materno (nidação)”.65 Por outro lado, há aqueles que entendem, como, Aníbal Bruno, Nélson Hungria, Damásio de Jesus, que o aborto se dá com a interrupção da gravidez, com ou sem a expulsão do produto da concepção, antes que esteja maduro, sendo este período aquele que vai desde a concepção (fecundação do ovo pelo espermatozóide) até o início do parto, e, por isso, para alguns, o aborto põe em risco, não somente a vida do feto, mas outros interesses que se encontram a ele ligados.66―67 Tema que se encontra, atualmente, em discussão é a questão do aborto eugênico de bebês com deformidades congênitas, mais especificamente no caso de fetos com anencefalia. Trata-se esta de uma “má-formação do tubo neural em que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais, 65 Ibid, p. 97. RODRÍGUEZ DEVESA, José María. Derecho Penal español: parte especial, p. 77 apud PRADO, ibid, p. 94, nota 12 diz que: “o aborto lesiona ou põe em perigo diversos bens jurídicos. Em primeiro lugar está a vida do feto. Trata-se de uma vida humana na fase anterior a seu nascimento e a proteção outorga-se desde o momento mesmo da concepção. O aborto lesiona também o interesse do Estado em manter uma elevada quota de natalidade e põe, ademais, em perigo a vida ou a saúde da mãe. O ponto de vista determinante para sua inordinación sistemática deve ser a vida humana, por ser o de maior importância ética”. 67 “O aborto criminoso constitui um delito contra a vida, consistente na intencional interrupção da gestação, proibida legalmente, pouco importando o período da evolução fetal em que se efetiva (RJTJSP, 35:237). 66 68 uma condição popularmente conhecida como 'ausência de cérebro’”.68―69 Tal questão veio à discussão após ter sido impetrado junto ao Supremo Tribunal Federal pedido liminar que possibilitasse a realização de aborto em mulher grávida de feto anencéfalo, o que, de acordo com o voto do Min. Celso de Melo deveria ser permitido. Esta situação ainda está para ser analisada perante a Suprema Corte para que esta dê uma decisão final em relação a este tipo de aborto, devendo ser determinado por aquele tribunal se tal conduta continuará a ser crime ou não. Aqueles que são favoráveis a este tipo de aborto o defendem, alegando principalmente, que a manutenção de uma gravidez de um bebê que tem essa deformidade – e que por isto deverá morrer logo após o parto – é traumática para a mulher que a tem, ferindo a sua dignidade, já que esta não poderia gozar do privilégio de ser mãe, apesar de ter passado pela gravidez, não vendo – principalmente se comparado à questão da legalidade de aborto resultante de estupro – razão para não se descriminalizar essa conduta, 68 DINIZ, Débora. Gestação sem sentido. Jornal do Brasil em 29/07/2004, Disponível em: <http://brownzilians.het.brown.edu/noticias/news_item.2004– 07– 29.4415713734 > Acesso em: 13/10/2004, às 16:10 hs. 69 DI FRANCO, Carlos Alberto, Aborto e Democracia. O Estado de S. Paulo, 02/08/2004, p. A2, Disponível em: <http: www.oestadodesaopaulo.com.br>. Acesso em: 13/10/04, às 14:00 hs, ao discorrer sobre a anencefalia, apresenta os seguintes dados: “É uma malformação grave caracterizada por ausência dos ossos do crânio, exceto pelo osso frontal, e inexistência dos hemisférios cerebrais. O feto costuma ter uma sobrevida extra-uterina curta. A incidência é de 0,1 a 0,7 caso em cada mil nascidos, com predomínio do sexo feminino. Segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem no Brasil, em média, 616 mortes por ano. Atualmente, em países do norte da Europa é preconizado o uso do ácido fólico no primeiro trimestre da gestação para prevenir a anencefalia. O resultado, notável, indica uma redução de um terço na incidência da patologia. Alguns autores afirmam que o nãoaparecimento de defeitos no tubo neural chega a atingir 85%”. 69 porquanto naquele, em que o bebê é normal, é permitido e, neste, em que não é, proíbe-se a medida abortiva.70 Alegam, ainda, que por se tratar de uma criança sem cérebro ou partes dele, podem ser comparados àquelas pessoas com morte cerebral71, e, por isso, não se estaria falando em tirar sua vida, já que esta não existiria. Por outro lado, aqueles que entendem que o aborto não deve ser permitido em lei, o fazem com base, entre outras considerações, na garantia constitucional do direito à vida, elencando que ele não estabeleceria exceções e que mesmo os casos de aborto legal não teriam sido recepcionados pela lei maior.72 Ademais, Segundo Luiz Flávio Gomes: “Não existe razão séria (e razoável) que justifique a não autorização do aborto quando se sabe que o feto com anencefalia não dura mais que dez minutos depois de nascido. Aliás, metade deles já morre durante a gestação. A outra perece imediatamente após o parto. A morte, de qualquer modo, é inevitável. (...) Os que sustentam (ainda que com muita boa-fé) o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte: em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. Se até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não pode impedir o exercício do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento”. (GOMES, Luiz Flávio. Nem todo aborto é criminoso, Revista Jurídica Consulex eletrônica n° 191, Ponto Net, Categoria: Doutrina, Brasília: Editora Consulex, 2004). 71 CARVALHO, Gisele Mendes de. op. cit., p. 109 destaca na nota 22: “Em se tratando de recém-nascidos anencéfalos (criança nascida sem cérebro ou sem algumas de suas partes essenciais), se afigura ainda como impossível uma completa equiparação entre a ausência de cérebro e a morte encefálica, visto que é comum registrarem certa atividade bioelétrica comprovada por meio de EEG. Nessa trilha, os recém-nascidos anencéfalos não poderiam ser distinguidos de outras crianças portadoras de anomalias e enfermidades diversas, sendo-lhes aplicáveis as regras gerais de constatação da morte encefálica em seres humanos, ainda que evidente sua falibilidade nessa situação”. 72 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Como se faz um aborto. Disponível em: <http://jbonline.terra.com.br/papel/opiniao/2004/08/11/joropi20040811001.html>. Acesso em: 13/10/04, às 16:21, alega acerca da matéria: “Assisti a um programa de televisão em que uma obstetra, Dra. Marli Virgínia Lins e Nóbrega, ao falar do sofrimento do feto ou do bebê já formado, durante o abortamento, lembrou que, em alguns países, já se estuda a possibilidade de 70 70 questiona-se, doutrinariamente, se, em existindo legalmente a possibilidade do aborto eugênico, este não estaria apenas viabilizando outras formas de aborto, as quais também são consideradas ilegais. Em 19 de dezembro de 1992, na cidade de Londrina, fora permitido pelo juiz Dr. Miguel Kfouri Neto o abortamento de um bebê anencéfalo com 20 semanas de gestação; na mesma linha, em 4 de novembro de 1993, na cidade de São Paulo, o juiz Dr. Geraldo Pinheiro Franco autorizou o abortamento de um feto portador de acrania e anestesiá-los, antes da prática do ato, para que não sofram tanto, quando lhes for tirada a vida. No referido programa (Tribuna Independente, da Rede Vida), os pais de uma criança anencéfala – que não optaram pela antecipação da morte de seu filho, e sim por deixá-lo nascer e viver algumas horas – depuseram relatando que acompanharam o desenvolvimento da criança, por ultra-som, no ventre materno, e que seus gestos demonstravam, ao passar, nos primeiros meses de vida, as mãozinhas pela cabeça, que sentia a perda gradativa ou a má-formação de seu cérebro. (...) No caso dos anencéfalos, em que a autorização para a realização do aborto – segundo decisão do meu caríssimo amigo e brilhante jurista ministro Marco Aurélio de Mello – pode ser dada até o último dia da gravidez, está-se perante a seguinte absurda situação: matar a criança no ventre materno, em momento anterior ao parto, é permitido, não sendo tal ato de eliminação da vida considerado crime; já matar o anencéfalo um minuto depois do nascimento, é proibido e o ato é considerado criminoso. José Renato Nalini, presidente do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, no programa Caminhos do Direito e da Economia, promovido pela Academia Internacional de Direito e Economia (da qual o eminente ministro Marco Aurélio de Mello é um dos mais destacados acadêmicos), mostrou que, nos casos de aborto legal – para ele e para mim a lei penal não foi recepcionada pela Constituição de 1988, que garantiu o direito à vida sem exceções –, a interrupção da gravidez, teoricamente, pode ser realizada a qualquer momento, durante os nove meses de gestação, dependendo, exclusivamente, da decisão da mãe. O que vale dizer, a mãe está, inclusive, autorizada a realizar uma cesariana e a jogar o indesejado bebê no lixo, para ali morrer abandonado, tal como ocorre nos abortários americanos. Um último aspecto é de se realçar. A anencefalia pode ser parcial ou total, de tal maneira que, mesmo com os mais modernos equipamentos, não é possível garantir 100% de precisão diagnóstica, o que, de resto, acontece em todos os exames que dependem da habilidade do profissional que os realiza e elabora o laudo médico. Segundo o depoimento de uma aluna minha, em seu caso foi diagnosticada a anencefalia, e esse diagnóstico, felizmente, estava errado”. 71 enfalocele. Outros tantos foram os pedidos de interrupção da gravidez de fetos com este tipo de má-formação que foram autorizados (estima-se em cerca de três mil) pelo país alegando os juízes que possibilitaram o aborto que não havia violação da vida porque estes fetos, cientificamente, não teriam vida. Esta situação, segundo a professora Maria Helena Diniz, poderia abrir precedentes para haver outros pronunciamentos judiciais que permitam a prática do aborto por outros motivos que possam vir a se enquadrar em uma interrupção seletiva da gestação, ou até mesmo a liberação de outras práticas ainda mais absurdas do que esta. Em síntese, assevera: Se uma deficiência física ou psíquica fosse motivo para eliminar fetos, o que se deveria fazer com os que nasceram perfeitos e, por uma ironia do destino, contraíram enfermidades ou sofreram acidentes que os tornaram defeituosos? Matá-los? O aborto eugenésico é um retrocesso, pois não passa de uma eutanásia de seres humanos na fase intrauterina, que em nada se diferencia, como diz Paulo Eduardo Razuk, da matança de recém-nascidos imperfeitos praticada na era pagã em Esparta. Em Atenas, no ano de 466 a. C., promulgou-se a lei de exposição, pela qual se colocavam crianças deformadas numa mesa em praça pública até que alguém as adotasse. Se na Antigüidade grega procurou-se evitar que continuassem sendo mortas, não seria um contra-senso, ou um retrocesso, admitir o aborto eugênico em pleno século XXI? Não se pode 72 aceitá-lo em nome do humanitarismo porque estarse-ia com a eliminação de fetos deficientes acatando os princípios da eutanásia e da política da pureza racial. Admitir o aborto eugênico para eliminar fetos defeituosos e obter uma sociedade formada por pessoas fisicamente perfeitas conduziria a um holocausto, como o pretendido pelos nazifacistas. Se alguns países admitem isso, por que, então, o mundo tanto se orgulha da vitória sobre o nazismo, que não só preconizou como pôs em prática tais medidas seletivas? O aborto eugenésico é uma barbárie e um sintoma de desumanização, aliás, uma escalada para a instalação de câmaras de extermínio de recémnascidos defeituosos, para a eutanásia de deficientes físicos e mentais e para a eliminação de velhos não produtivos. Que tipo de motivos ‘caridosos’ os filhos não poderiam alegar para justificar a ‘boa ação’ de eliminar seus pais idosos e doentes? Urge amparar, proteger e respeitar a vida intra ou extra-uterina. Poder-se-ia, ainda, indagar: o aborto eugênico estaria motivado por um estado de necessidade, que o enquadraria como excludente de antijuridicidade? Parece-nos que não. Sacrificar embrião defeituoso para evitar que nele se gere um bem valioso como a vida humana, apesar de estar destinado irremediavelmente a morrer, não é conduta 73 legalmente amparada como causa de justificação do estado de necessidade.73 Feitas estas considerações, destaca-se que, após o estudo realizado nos textos apresentados e, em outros, vê-se a necessidade de dar prioridade à vida, não realizando o aborto do bebê anencéfalo. Pelos relatos, percebe-se que, apesar do sofrimento de se saber que o filho gerado padece de uma anomalia fatal, ainda assim, isso não legitimaria provocar a sua morte prematura. Ademais, pôde-se ver que, aqueles que optaram por manter a gravidez tiveram, de acordo com os dados analisados, menos danos psicológicos do que aqueles que optaram pelo aborto do bebê com anencefalia, eis que puderam “trabalhar” o luto e assim 73 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 51/52. Continuando, nas págs. 53/54 faz os seguintes questionamentos acerca da matéria: “Como, então, estabelecer limites gestacionais a esse aborto seletivo? Seria possível efetuar um rol seguro, cientificamente, das patologias incuráveis que justificam a interrupção da gravidez? Se muitas moléstias consideradas incuráveis no momento do diagnóstico poderão ter cura dentro de alguns anos, como admitir o aborto seletivo? Em que medida o conhecimento médico poderia oferecer suporte científico para o aborto seletivo sem margem de erro no exame fetal? Seria a anencefalia razão suficiente para pôr fim ao feto e legitimar o aborto seletivo pelo simples fato de a vida estar fadada ao fracasso porque a criança não terá capacidade, se nascer, de dar continuidade à pouca vida que lhe resta? O aborto seletivo não seria, na verdade, uma forma de violência contra um ser indefeso, diante do fato de que a natureza apenas deixará sobreviver aquele que tiver condições autônomas de sobrevivência? Para que matar o anencéfalo na vida intra-uterina se poderá haver aborto espontâneo ou morte natural se nascer com vida? Para que, então, o aborto, que poderá trazer graves conseqüências à mãe? Não seria preferível um parto seguido de morte do anencéfalo a submeter a mãe a um aborto seletivo, que poderia provocar-lhe alguma seqüela? Seria possível ainda alegar que o prosseguimento da gravidez de feto anencéfalo poderia causar dano à higidez psíquica da gestante, situação que tornaria o aborto necessário? Parece-nos que não, uma vez que a vida da mãe não está em jogo, assim sendo, seria legítimo sacrificar alguém com o escopo de beneficiar outrem? Para que interromper a gravidez de anencéfalo ou de qualquer feto portador de moléstia grave e incurável? Ninguém é tão desprezível, inútil ou insignificante que mereça ter sua morte decretada, por meio de interrupção da gestação, uma vez que a natureza é sábia e se encarregará de seu destino se não tiver condições de vida autônoma extra-uterina”. 74 aceitar o ocorrido. Em vários estudos, demonstrou-se ser o aborto, como medida cirúrgica, causador de maiores danos ao físico da mulher do que a manutenção da gravidez do anencéfalo, a qual estudiosos da área afirmam não causar dano algum. Entende-se que deva ser grande o sofrimento daqueles que passam por esta situação, mas não se vê como o abortamento poderia simplificá-lo ou diminuí-lo; contudo, por outro lado, acredita-se que com o apoio especializado e a vivência do luto.74 Ressalta-se, aqui, que se chegou a esta conclusão após a análise de diversos documentos tanto contrários quanto a favor do abortamento nos casos de anencefalia, entendendose que tanto os argumentos contrários como os favoráveis têm razão em alguns pontos, os quais devem ser levados em conta ao se posicionar acerca do assunto, sendo os contrários ao abortamento os mais convincentes. Ressaltase, ainda, a questão que tem sido levantada pelos estudiosos de que a possibilidade em lei de se realizar tal aborto seria apenas a “porta de entrada” para a liberação de outros tipos de aborto, visto que grande parte daqueles que o defendem entendem que a mulher tem direito ao seu corpo, podendo escolher se deseja ou não manter a gravidez. Encerra-se a questão do aborto dentro da proteção ao bem jurídico vida pelo direito penal com a seguinte assertiva: É de enfatizar, todavia, que o reconhecimento do direito à vida como bem jurídico digno de tutela 74 A vivência do luto, segundo encontra-se comprovado na psicologia, é necessária para assimilar a morte, já que nele é que se “trabalha” na psiquê o início, o meio e o fim. Haveria, assim, maiores possibilidades do total restabelecimento dos envolvidos na situação. (Nota do autor) 75 penal independe de valorações sociais, uma vez que essa proteção deve existir sempre que presentes aqueles pressupostos bio-psicológicos, sem quaisquer considerações a respeito da perfeição física ou da viabilidade do ser humano, o que não supõe que as condições valorativas devam ser desprezadas (...).75 Ao direito penal cabe proteger o bem jurídico vida independentemente da sua viabilidade ou não, mas, simplesmente, pela sua condição de existência que, por si só, valora esse bem como valor a ser protegido a todo ser humano. 2.2.4.3 − Lesões Corporais Nos delitos de lesões corporais, o que se protege, em primeiro lugar, é a incolumidade da pessoa humana, ou seja, sua integridade física é psíquica. Não há, aqui, uma proteção direta ao bem jurídico vida, mas sim, uma proteção indireta, posto que a conduta punível é causar lesões em outrem buscando-se, assim, evitar que se ponha em risco a saúde ou mesmo a vida do ofendido. Isto fica mais claro na hipótese que se refere sobre a gravidade da lesão que põe em risco à vida. Contudo, assevera a doutrina que o perigo de vida não se presume, mas sim, deverá ser real, efetivo e atual, sem importar o local ou a extensão da lesão; contudo, ”é indispensável a ocorrência de processo patológico que sinalize perigo concreto de superveniência da morte do 75 CARVALHO, Gisele Mendes de. op. cit., p. 101. 76 ofendido, não sendo suficiente para tanto a mera ‘idoneidade genérica’ da lesão”76. 77 76 PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 131. Lesão corporal Art. 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. Lesão corporal de natureza grave § 1º – Se resulta: I – incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 (trinta) dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV – aceleração de parto: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. § 2º – Se resulta: I – incapacidade permanente para o trabalho; II – enfermidade incurável; III – perda ou inutilização de membro, sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. Lesão corporal seguida de morte § 3º – Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. Diminuição de pena § 4º – Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Substituição da pena § 5º – O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção pela de multa: I – se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior; II – se as lesões são recíprocas. Lesão corporal culposa § 6º – Se a lesão é culposa: Pena – detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano. Aumento de pena § 7º – Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qualquer das hipóteses do art. 121, § 4º. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 13.7.1990) § 8º – Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977 e alterado pela Lei nº 8.069, de 13.7.1990) 77 77 2.2.4.4 − Periclitação da vida e da saúde Neste, o bem jurídico protegido é a saúde física da pessoa humana, sendo imprescindível para a configuração do delito descrito no artigo, que o agente causador do perigo esteja ciente de que poderá contaminar outrem. Também se vê, aqui, uma proteção indireta do bem jurídico vida, dado que o contágio de doença venérea prejudica a saúde e, em certos casos, pode mesmo levar a vítima à morte. 78 78 Perigo de contágio venéreo Art. 130 – Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1º – Se é intenção do agente transmitir a moléstia: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º – Somente se procede mediante representação. Perigo de contágio de moléstia grave Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Perigo para a vida ou saúde de outrem Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) Abandono de incapaz Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos. § 1º – Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. Aumento de pena 78 No artigo 131 do Código Penal, o bem jurídico protegido é a incolumidade física da pessoa humana, cuja saúde o artigo busca proteger de modo a não ser prejudicada em face de contaminação por moléstia grave por meio de outra pessoa que sabia que a tinha e com seu ato, teve a vontade de disseminá-la. Na época em que se começou a § 3º – As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço: I – se o abandono ocorre em lugar ermo; II – se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima. (Vide Lei nº 10.741, de 2003) Exposição ou abandono de recém-nascido Art. 134 – Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. § 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Omissão de socorro Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Maus-tratos Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena – detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. § 3º – Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.069, de 13.7.1990). 79 falar sobre a AIDS (a qual, inicialmente foi chamada de “câncer gay”, tendo em vista que as pessoas que mais a apresentavam eram os homossexuais), não se sabia, ao certo, como se adquiria ou que se estava contaminado; então, várias pessoas acabaram sendo contaminadas por esse vírus por falta de conhecimento. Nos dias atuais, muito já se sabe acerca dessa doença, modo de evitá-la e até formas de não passá-la, grupos de alto risco etc. Se uma pessoa, por exemplo, sabendo que é portador dessa doença fatal, toma atitudes voluntárias buscando contaminar outras, incorre no crime acima disposto, uma vez que a intenção de transmitir a moléstia configura dolo específico do delito acima disposto. Tais doenças, muitas vezes, podem levar à morte da pessoa contaminada, vendo-se, assim, uma proteção indireta da vida humana no disposto. No tipo legal do art. 132 do CP, o bem jurídico tutelado é a vida e a saúde da pessoa humana, expostas a perigo direto e iminente, sendo, então, o direito à vida, aqui, também protegido. Este crime necessita, para sua configuração, de que o perigo seja em relação à pessoa ou pessoas determinadas, perfeitamente individualizadas (direto), e, ainda, que esteja prestes a acontecer (iminente). É considerado crime subsidiário, o qual fica subsumido a crime mais grave, já que se a vítima vier a morrer em decorrência da ação, passar-se-á a ter a conduta descrita no crime de homicídio culposo; se ocorrer lesão culposa, o delito será o do art. 132, visto que a pena deste é mais grave do que aquela disposta no crime de lesão culposa.79 Um exemplo desse crime é o caso da usuária de drogas que, conscientemente, permite que seus filhos fiquem expostos à 79 PRADO, Luiz Régis. BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit. , p. 132. 80 inalação de produto entorpecente80 ou, do médico, o qual permite a transfusão de sangue, sem que antes se realize o exame sorológico, sabendo das conseqüências que isso pode acarretar ao paciente.81 Entende a doutrina acerca da matéria, que, neste, também se tutela a vida e a saúde da pessoa humana, mais especificamente daqueles que não têm como defender-se do perigo de se encontrarem em abandono, oriundo este da violação do dever de guarda, assistência e proteção, podendo esse dever resultar tanto de lei quanto de contrato ou, ainda, da própria situação fática que deverá ser anterior à conduta delitiva. No artigo em questão, considera-se como possível sujeito passivo todo aquele que estiver sob a guarda ou assistência do agente, podendo ser deficiente, ébrio, enfermo ou infante, dispondo a doutrina que “a aferição da incapacidade da vítima para defender-se é questão a ser apreciada pelo juiz em cada caso concreto”.82 Sobre o disposto, aduz Luiz Régis Prado: A conduta típica consiste em abandonar o incapaz, expondo a perigo concreto sua vida ou saúde. Abandonar significa desamparar, deixar sem assistência a vítima, inapta a defender-se dos riscos resultantes da conduta do agente. Exige-se, em geral, o afastamento físico do incapaz, com quem o agente está ligado por vínculo especial de assistência. PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 160, cita o julgamento do TACRIM– SP – AC 1.083.267/1 – j. 27.01.1998 – Rel. Oldemar Azevedo – RT 753/625. 81 Ibid, p. 160, cita o julgamento do TACRIM– SP – AC – Rel. Penteado Navarro – RJD 13/108. 82 Ibid, p. 165. 80 81 O abandono importa deixar a pessoa desamparada ou sob o poder de quem não possa dispensar-lhe a assistência adequada, de modo a dar lugar a uma situação de perigo para sua incolumidade. A duração do abandono é indiferente. Pode ser temporário ou definitivo, desde que perdure por lapso temporal hábil a permitir o delineamento de uma situação de perigo para o bem jurídico protegido. 83 Neste, o bem jurídico tutelado é a vida e a saúde do recém nascido, sendo o sujeito ativo a mãe ou o pai que concebe filho fora do matrimônio para ocultar sua desonra, devendo, para se ter a configuração do crime em questão, sigilo quanto ao nascimento do filho ilegítimo, porque se este for de conhecimento público e ocorrer o abandono, configurar-se-á o crime previsto no art. 133, § 3.°, II do Código Penal que dispõe sobre o abandono de incapaz. Entende-se, ainda, como “indispensável para a caracterização do delito em tela, a existência – ainda que momentânea – de perigo concreto”84, o qual deverá “ser efetivamente demonstrado, não bastando a mera presunção da ocorrência do risco”85, não havendo a configuração do crime se o agente, após o abandono e por meio de medidas acautelatórias, tentar evitar que haja lesão à incolumidade do recém-nascido. Também no artigo sobre a omissão de socorro há a tutela da vida e da saúde da pessoa humana, sendo esse bem jurídico considerado indisponível, ou seja, ainda que a 83 Ibid, p. 165. Ibid, p. 176. 85 Ibid, p. 176. 84 82 vítima recuse ou dispense o auxílio, esse deverá ser buscado pelo agente junto à autoridade competente, sob pena de se configurar o delito descrito, a menos que a oposição realizada pelo sujeito passivo represente óbice intransponível ao auxílio. Cabe, ainda, salientar “que o dever de prestar assistência ou de solicitar o socorro da autoridade pública limita-se à preservação da vida ou da saúde alheias, não abarcando outros bens jurídicos eventualmente em perigo (v.g. patrimônio, honra etc.)”.86 Destaca-se, também, o fato de que “a situação de perigo não pode ter sido provocada – dolosa ou culposamente – pelo próprio sujeito ativo. Com efeito, se este deu lugar ao perigo, responderá por lesão corporal ou homicídio, restando a eventual omissão de socorro absorvida pelo delito mais grave”.87 Tutela-se, no art. 136, a vida e a incolumidade pessoal que se encontram “expostas a perigo pela privação de alimentação ou dos cuidados indispensáveis, pelo trabalho excessivo ou inadequado, ou pelo abuso dos meios correcionais ou disciplinares”.88 Para a configuração desse crime, “exige-se expressamente uma específica relação jurídica entre os sujeitos ativo e passivo, que se encontra sob sua guarda, vigilância ou imediata autoridade daquele (v.g. pais, tutores, curadores, professores, diretores de estabelecimento de ensino, enfermeiros, carcereiros etc.)”89, sob pena de, inexistindo essa relação, se configurar o crime disposto no art. 132 do CP que trata do perigo para a vida ou saúde de outrem. 86 Ibid, p. 183. Ibid, p. 184. 88 Ibid, p. 196. 89 Ibid, p. 196. 87 83 2.2.4.5 − Rixa90 Também no artigo que trata do crime de rixa há a tutela da vida e da saúde da pessoa humana, já que este, pela legislação, caracteriza-se como “crime de perigo para a incolumidade pessoal”91, buscando-se com a sua tipificação em capítulo próprio “a proteção da vida e da integridade corporal do ser humano, expostas a perigo pelo tumulto e confusão em que se digladiam três ou mais pessoas”.92 Por outro lado, busca-se, ainda, nesta tutela preservar a paz e a tranqüilidade públicas que se findam com a perturbação que se dá em razão da rixa, mas apenas de modo secundário, sem desviar-se, portanto, do bem jurídico verdadeiramente tutelado já especificado. 2.2.4.6 − Crimes contra a incolumidade pública Como asseverado no próprio título dessa parte, o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública, sendo esta definida como “a segurança de todos os membros da 90 Rixa Art. 137 – Participar de rixa, salvo para separar os contendores: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa. Parágrafo único – Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. 91 Ibid, p. 207. 92 Ibid, p. 207. 84 sociedade, que têm sua vida, integridade pessoal e patrimonial sujeitas a acentuada probabilidade de lesão”93. 94 93 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 3: parte especial, arts. 184 a 288. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 437. 94 Incêndio Art. 250 – Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Aumento de pena § 1º – As penas aumentam-se de um terço: II – se o incêndio é: a) em casa habitada ou destinada a habitação; b) em edifício público ou destinado a uso público ou a obra de assistência social ou de cultura; c) em embarcação, aeronave, comboio ou veículo de transporte coletivo; d) em estação ferroviária ou aeródromo; e) em estaleiro, fábrica ou oficina; f) em depósito de explosivo, combustível ou inflamável; g) em poço petrolífico ou galeria de mineração; h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta. Incêndio culposo § 2º – Se culposo o incêndio, é pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. Explosão Art. 251 – Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 1º – Se a substância utilizada não é dinamite ou explosivo de efeitos análogos: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Aumento de pena § 2º – As penas aumentam-se de um terço, se ocorre qualquer das hipóteses previstas no § 1º, I, do artigo anterior, ou é visada ou atingida qualquer das coisas enumeradas no nº II do mesmo parágrafo. Modalidade culposa § 3º – No caso de culpa, se a explosão é de dinamite ou substância de efeitos análogos, a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos; nos demais casos, é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. Uso de gás tóxico ou asfixiante Art. 252 – Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, usando de gás tóxico ou asfixiante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Modalidade Culposa Parágrafo único – Se o crime é culposo: 85 Há aqui, então, uma forma indireta de proteção da vida, já que se proibindo a ação do agente que se configure na conduta típica que é descrita nos artigos acima citados, como, por exemplo, a proibição de causar incêndio, tutela-se a vida daqueles que poderiam tê-la violada por meio daquela ação. Só que não se trata, neste, de situação direcionada a pessoa certa e determinada, mas sim a pessoas indeterminadas que podem ser lesionadas pela conduta do agente. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. Inundação Art. 254 – Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, no caso de culpa. Perigo de inundação Art. 255 – Remover, destruir ou inutilizar, em prédio próprio ou alheio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, obstáculo natural ou obra destinada a impedir inundação: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Desabamento ou desmoronamento Art. 256 – Causar desabamento ou desmoronamento, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Modalidade culposa Parágrafo único – Se o crime é culposo: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento Art. 257 – Subtrair, ocultar ou inutilizar, por ocasião de incêndio, inundação, naufrágio, ou outro desastre ou calamidade, aparelho, material ou qualquer meio destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro ou salvamento; ou impedir ou dificultar serviço de tal natureza: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Formas qualificadas de crime de perigo comum Art. 258 – Se do crime doloso de perigo comum resulta lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resulta morte, é aplicada em dobro. No caso de culpa, se do fato resulta lesão corporal, a pena aumenta-se de metade; se resulta morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio culposo, aumentada de um terço. 86 Posto isto, viu-se que em vários artigos do Código Penal, e não somente naqueles que diretamente tratam da tutela da vida (capítulo que trata “Dos crimes contra a vida”), a vida da pessoa humana é erigida a bem da maior proteção, de acordo com a sistemática imposta pelo art. 5°. da CF/88 que trata da inviolabilidade do direito à vida como bem supremo e primordial do ser humano. 2.3 – Do direito consagrado pela norma constitucional brasileira a viver com qualidade e seus desdobramentos A Constituição Federal, no seu art. 5°, determinou a inviolabilidade do direito à vida, dando a esta a segurança plena de que ninguém poderá ser violado nesse direito fundamental. Sedimentou, ainda, mais especificamente, no art. 225, o qual está inserido no capítulo que trata do meio ambiente, o direito à qualidade de vida, como se pode ver, a seguir: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1°. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: 87 (...) II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (...) V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida e qualidade de vida e o meio ambiente; (...). Erigiu o legislador variantes de direitos fundamentais, das quais interessam à matéria em estudo as já elencadas, cuja descrição se entende ser necessária para melhor se definirem os parâmetros a serem seguidos pelo legislador infra-constitucional, no momento de criar as leis que ponham em prática o mandamento constitucional. Cabe, então, analisar o que se entende por qualidade de vida. A palavra qualidade, originária do latim qualitate, pode ter diversos significados, dos quais, vão-se buscar aqueles que mais tenham sentido em relação ao estudo desenvolvido. No Dicionário Novo Aurélio da língua portuguesa, por qualidade entende-se: 1. Propriedade, atributo ou condição das coisas ou das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza. 2. Numa escala de valores, qualidade (1) que permite avaliar e, conseqüentemente, aprovar, aceitar ou recusar, qualquer coisa: A qualidade de um vinho não se 88 mede apenas pelo rótulo; Não há relação entre o preço e a qualidade do produto. (...). 95 Vê-se dos significados destacados que a qualidade pode tanto ser atribuída a seres humanos como a coisas, apenas a primeira importando para a análise da questão em tela. Pode ser parâmetro, ainda, para avaliação de algo. Cabe, então, determinar, também, o que vem a ser valor. Do latim valore, por valor, entende-se a qualidade pela qual determinada coisa ou pessoa é estimável e a importância que lhe é dada, de antemão.96 Mas, esse seria um significado, dentre tantos outros, mais etimológico, tendo em vista que o que se busca para o presente estudo é algo mais relacionado a uma teoria acerca dos valores que tenha no ser humano o seu ponto central. Deste ponto de vista, pode-se dizer que não existem valores, em si, como entes ideais ou reais, existindo, contudo, bens que somente possuem valor, potencialmente, quando se encontram relacionados ao ser humano, com os seus interesses ou necessidades, posto que somente a este é possível reconhecer a aptidão de atribuir valor. Portanto, vê-se que somente deste modo aquilo que apenas valia, potencialmente, passa a adquirir um valor efetivo, graças à sua relação com o homem.97 E essa valoração, a qual só é possível ao ser humano, é necessária, quando se determina o que vem a ser qualidade, principalmente, em relação à idéia que se tem como central, no texto, que é aquela relacionada 95 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio. O Dicionário da Língua Portuguesa. Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1.675. 96 Ibid, p. 2.044. 97 COHEN, Claúdio. SEGRE, Marcos. Breve Discurso sobre Valores, Moral, Eticidade e Ética. In: SIMPÓSIO ABORTO, 1994, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 2, n. 1, p. 19-24, 1994, p. 21. 89 à qualidade de vida daquele (ser humano) na sua condição humana e social. Ligado o conceito de qualidade ao conceito de vida – entendendo-se esta a partir da conceituação apresentada por José Afonso da Silva, no início do trabalho, como um processo vital dinâmico, iniciado com a concepção e que se transforma, incessantemente, e se desenvolve a todo momento, até que mude de qualidade, deixando de ser vida para ser morte – entende-se a qualidade de vida, em um processo interpretativo, como um atributo de todos os seres humanos, capaz de distingui-los dos outros seres e de lhes determinar a natureza. Este processo se inicia com a concepção e perpassa por todo o seu desenvolvimento, e que faz com que o próprio ser humano, durante o seu processo vital, avalie a forma como passa e passará por este processo. É claro que nos primeiros momentos de vida e até, praticamente, a fase adulta, esse processo valorativo não é realizado pelo homem, conscientemente, haja vista que, para isso, necessário se faz que se tenha um mínimo de conhecimento para essa avaliação; mas, isso não diminui o valor que o ser humano carrega em si pela sua própria condição natural humana98, porquanto, se assim não fosse, 98 Acerca da proteção que se deve dar ao ser humano pela sua valoração como ser, Judith Martins-Costa, assevera: “(...) se, ao invés da relação entre a pessoa e os bens em primeiro plano (sic) estiver a pessoa humana valorada por si só, pelo exclusivo fato de ser ‘humana’ – isto é, a pessoa em sua irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular – , passa o Direito a construir princípios e regras que visam tutelar essa dimensão existencial, não-patrimonial, mas ligada fundamentalmente à proteção da pessoa e da personalidade humana e daquilo que é o seu atributo específico, a qualidade de ‘ser humano’”. (MARTINS-COSTA, Judith. A universidade e a construção do Biodireito. In: SIMPÓSIO A UNIVERSIDADE E A CONSTRUÇAO DO BIODIREITO, 2000, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 8, n. 2, p. 229246, 2000, p. 234-235). 90 poder-se-ia dizer que todo ser humano que não tem consciência de si mesmo, que é o que ocorre com as crianças pequenas e os deficientes mentais, não teria direito a ter qualidade de vida ou à própria vida, em si mesma. Superada a análise do termo qualidade de vida, entende-se necessário vê-la a partir da conotação social que, hoje, ela implica, uma vez que, nos dias atuais, dela muito se tem falado como “grande aspiração da humanidade”.99 Nesse sentido, pode-se dizer que a aspiração de se ter qualidade de vida se relaciona, em muito, com o princípio da dignidade da pessoa humana elencado no inc. III, art. 1° da Constituição Federal de 1988, o qual é norteador desta e de todas as constituições que sejam textos basilares da formação de um Estado Democrático de Direito. Como bem ensina Flávia Piovesan, ao dizer que a Constituição de 1988, já no seu preâmbulo, “projeta a construção de um Estado Democrático de Direito, ‘destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)’”,100 o que, na sua visão, estaria consagrado no texto constitucional pátrio, mais especificamente nos arts. 1° e 3°, que tratam, respectivamente, dos elementos essenciais e objetivos da formação do Estado Democrático de Direito, destacando, entre todos os fundamentos albergados no art. 1°, o direito à cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana, os quais seriam os alicerces de formação deste Estado. Acerca 99 LINHARES, Paulo Afonso. Direitos fundamentais e qualidade de vida. São Paulo: Iglu, 2002, p. 17. 100 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 54, citando, em destaque, o texto do preâmbulo da Constituição de 1988. 91 destes, expõe que há, assim, “o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático, tendo em vista que exercem uma função 101 democratizadora”. E continua, citando Jorge Miranda, quando diz que “a Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais”102, o que, segundo este autor, “repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”103, e, em sendo essa pessoa assim reconhecida, cabe ao Estado, então, de acordo com os objetivos propostos no art. 3° da Carta Magna, propiciar condições para a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”104, garantindo o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, e, ainda, a promoção do bem de todos, independentemente da origem, raça, sexo, cor, idade. A qualidade de vida, nesse sentido, e como atributo intrinsecamente humano, se afirma pela garantia de que todas as necessidades do ser humano possam ser satisfeitas, a fim de que este possa viver, plenamente. E estas, em um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil, devem ser acolhidas no texto constitucional e efetivadas pelo governo por meio da implantação, real, de todos os direitos e garantias elencados no texto constitucional. 101 Ibid, p. 54. Ibid, p. 54. 103 Ibid, p. 54. 104 Ibid, p. 55, onde transcreve o inciso I do art. 3° do texto constitucional. 102 92 Contudo, cabe ressaltar, inicialmente, que os direitos fundamentais, apesar de serem, muitas vezes, apresentados como sinônimos de direitos humanos105, com estes não se confundem, posto que os primeiros, são aqueles direitos positivados na esfera do direito constitucional de cada Estado, enquanto, os segundos, são aqueles direitos resguardados por documentos de ordem internacional, os quais são conferidos a todos os seres humanos, tendo um caráter mais abrangente do que os primeiros, embora, também, mais impreciso. Porém, mesmo tendo essa distinção entre os dois direitos, eles ostentam relação muito próxima, tendo, mais recentemente, sido chamados de “direitos humanos fundamentais”, nomenclatura adotada no Brasil por Manoel Gonçalves Ferreira Filho106. Para este autor, os direitos fundamentais – os quais eram, inicialmente, conhecidos como “direitos do homem”, e já estavam consolidados no século XVII, tendo grande expansão, no século seguinte, ao se tornar “elemento básico da reformulação das instituições políticas”107 – não são conhecidos mais como direitos do homem, em razão, principalmente, do movimento feminista, com a conseqüente conquista de direitos pelas mulheres, as quais consideravam o nome anteriormente citado, de cunho “machista”. Em face desta situação, convencionou-se como politicamente correto chamar esses direitos de “direitos Ou, ainda, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, como sinônimos de “direitos do homem”, “direitos subjetivos públicos”, “liberdades públicas”, “direitos individuais”, “liberdades fundamentais” ou de “direitos humanos fundamentais”. (SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 29). 106 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2004. p. 13. 107 Ibid, p. 14. 105 93 humanos” ou “direitos humanos fundamentais”, dos quais “direitos fundamentais são uma abreviação”.108 Explicita, ainda, o autor, que o fundamento desses direitos, para os adeptos do direito natural, é a natureza humana. Para aqueles que rejeitam essa doutrina como fundamento dos direitos humanos, estes estariam, por um lado, baseados “numa experiência comum às sociedades contemporâneas”, o que, Manoel Gonçalves Ferreira Filho considera insustentável, posto que, nem todas essas sociedades crêem nesses direitos e, ainda, sua prática, “é antes a negação que a afirmação desses direitos”.109 De outro lado, acreditam alguns que esses direitos “constituem um ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”.110 Continuando seus ensinamentos, ele cita alguns autores que, segundo ele, dão fundamento à nomenclatura adotada em sua obra como “direitos humanos fundamentais”, a qual, embora apresentada de forma que possa parecer que nega qualquer diferenciação entre direitos fundamentais e direitos humanos, não tem essa função. O primeiro autor apresentado é Maurice Cranston, segundo o qual um direito humano por definição é um direito moral universal, algo que todos os homens em toda parte, em todos os tempos, devem ter, algo do qual ninguém pode ser privado sem uma grave ofensa à justiça, 108 Ibid, p. 14. Ibid, p. 31. 110 Ibid, p. 31. 109 94 algo que é devido a todo ser humano simplesmente porque é um ser humano.111 O segundo é F. G. Jacobs, o qual salienta três critérios relevantes para se reconhecerem os direitos humanos fundamentais: 1) o direito deve ser fundamental; 2) o direito deve ser universal, nos dois sentidos de que é universal ou muito generalizadamente reconhecido e que é garantido a todos; e 3) o direito deve ser suscetível de uma formulação suficientemente precisa para dar lugar a obrigações da parte do Estado e não apenas para estabelecer um padrão.112 E, por último, traz a opinião de Philip Alston, o qual apresenta alguns critérios para a inserção de direitos entre os direitos humanos no plano internacional e na ONU: – refletir um fundamentalmente importante valor social; – ser relevante, inevitavelmente em grau variável num mundo de diferentes sistemas de valor; – ser elegível para reconhecimento com base numa interpretação das obrigações estipuladas na Carta das Nações Unidas, numa reflexão a propósito de 111 112 Ibid, p. 68. Ibid, p. 68. 95 normas jurídicas costumeiras, ou nos princípios gerais de direito; – ser consistente com o sistema existente de direito internacional relativo aos direitos humanos, e não meramente repetitivo; – ser capaz de alcançar um muito alto nível de consenso internacional; – ser compatível, ou ao menos não claramente incompatível com a prática comum dos Estados; e – ser suficientemente preciso para dar lugar a direitos e obrigações identificáveis”.113 Ingo Sarlet, acerca da diferenciação da nomenclatura dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, indo mais além, diz que os direitos humanos também não podem ser equiparados aos direitos naturais, uma vez que a positivação daqueles direitos em normas de direito internacional, já revelou “a dimensão histórica e relativa dos direitos humanos, que assim se desprenderam – ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) – da idéia de um direito natural”.114 Completa, ainda esse autor seus ensinamentos ao dizer: 113 Ibid, p. 69. SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 32. Este autor, neste trecho, diz que essas idéias são, inicialmente, apresentadas por Norberto Bobbio, na obra “A Era dos Direitos”. 114 96 Todavia, não devemos esquecer que, na sua vertente histórica, os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento, pelo direito positivo, de uma série de direitos naturais do homem, que, neste sentido, assumem uma dimensão pré-estatal e, para alguns, até mesmo supra-estatal. Cuida-se, sem dúvida, igualmente de direitos humanos – considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condição humana – mas de direitos nãopositivados.115 Robert Alexy116 entende como necessário para a efetivação dos direitos humanos, para o seu desenvolvimento em pleno vigor, que estes direitos sejam garantidos por meio de normas de direito positivo, o que pode ser demonstrado ao se incorporarem, como direito obrigatório, essas normas no catálogo de direitos fundamentais de uma Constituição; mesmo tratando-se de direitos que se distinguem, muitas vezes aqueles acabam por incorporar estes e, assim, são por meio destes positivados na esfera de cada Estado, tendo em vista que ambos os direitos têm entre si uma íntima relação e, por isso mesmo, podem ser incorporados pelos segundos para uma melhor efetivação. E isto é assim porque os Estados têm melhores condições, em razão de terem as instâncias necessárias, para dar efetividade a esses direitos, e, por isso mesmo, muitos direitos humanos integram o rol de direitos fundamentais 115 Ibid, p. 32. ALEXY, Robert. Teoria del discurso y derechos humanos. Traducción e introducción de Luis Villar Borda, Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2001. p. 93 ss. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 2ª. ed., Madrid: Centro de Estúdios políticos y constitucionales, 2001. p. 81ss. 116 97 (dizendo até alguns autores que todos os direitos fundamentais são direitos humanos, pelo simples fato de serem voltados, principalmente, para a proteção do ser humano, mesmo que não seja apenas na sua singularidade, mas, também, na sua coletividade), sendo permitido a cada Estado, em relação àqueles direitos humanos que não integram o rol de direitos fundamentais, mas apenas figuram em documentos internacionais, serem recepcionados por meio de instrumentos constitucionalmente consagrados que possibilitem essa inserção, como no Brasil onde se recebe como lei válida, também no direito interno, alguns tratados e convenções, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica. E, ainda, aduz Celso Lafer, acerca dos direitos humanos, quando trata da obra de vida de Hannah Arendt: Com efeito, no plano político o liberalismo trouxe, com a expansão geográfica do constitucionalismo, a positivação crescente das declarações de direitos pelo Direito Público dos Estados nacionais e, concomitantemente, um interesse internacional pela tutela dos direitos humanos, exemplificado pela proibição e repressão ao tráfico de escravos; pelo esforço de proteger os indígenas; pelo início da proteção internacional em matéria de condições de trabalho; pelo surgimento, com a Cruz Vermelha, do Direito Humanitário e, por intervenções das grandes potências, em prol de súditos perseguidos pelos próprios Estados de que eram nacionais.117 117 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 138. 98 Por outro lado, assevera este autor que apesar da intenção inicial de que, com a positivação dos direitos inseridos nas declarações advindas da Revolução Francesa e Americana, eles pudessem ter uma dimensão mais permanente e segura, isto não ocorreu, tendo em vista que esta função estabilizadora tornou-se uma variável em razão do tempo e espaço, ou melhor dizendo, em face das mudanças que ocorreram nas condições históricas, afirmando o autor que “é difícil, conseqüentemente, atribuir uma dimensão permanente, não-variável e absoluta para direitos que se revelaram historicamente relativos”.118 Contudo, ressalta que Hannah Arendt explicita que esses direitos, mesmo aqueles considerados inalienáveis como o direito à vida, a liberdade e a igualdade, “não eram evidências nem constituíam um absoluto transcendente”, representando, sim, “uma conquista histórica e política – uma invenção – que exigia o acordo e o consenso entre os homens que estavam organizando uma comunidade política”.119 E, em segundo lugar, no tocante aos direitos fundamentais, o aparecimento destes foi obra de todo um processo de luta por direitos, os quais evoluíram durante décadas, e ainda estão a se desenvolver. A primeira geração a aparecer, foi a daqueles direitos relativos à liberdade, os quais foram, basicamente, inspirados em institutos como a Declaração Francesa de 1789, a Constituição Francesa de 1791, a Declaração Estadunidense de 1776 e a Constituição Estadunidense de 1789, documentos estes que guardaram em seus textos 118 119 Ibid, p. 124. Ibid, p. 124. 99 noções básicas de direitos e garantias oponíveis ao Estado, e cuja interferência, de qualquer natureza ou modalidade, era vedada, no exercício de certas faculdades ou atributos pelo indivíduo.120 Essa pletora de direitos tinha o escopo de atingir a plenitude da dignidade humana e, nesse contexto, foi que aconteceu o surgimento do Estado Liberal, dado que, até então, o Estado era o maior opressor do povo que carecia de defesa contra ele. Acerca desses direitos, expõe Guilherme Braga Pena de Moraes que: Os direitos fundamentais próprios desta geração são caracterizados pelo estabelecimento, relativamente ao Estado, de um dever de abstenção, isto é, são direitos asseguradores de uma esfera de ação pessoal própria, inibidora da ação estatal, de modo que o Estado os satisfaz por um abster-se ou não atuar. Portanto, segundo a classificação dos direitos fundamentais quanto à prestação estatal, adotada por Pontes de Miranda, são direitos fundamentais negativos (aqueles que determinam um non facere ou uma prestação negativa por parte do Estado e o comprometimento, do organismo estatal, de assegurar a sua inviolabilidade, de maneira que são correlatos a obrigações de conduta passivas e a sua violação consiste, necessariamente, em uma atuação). 121 120 PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 72. MORAES, Guilherme Braga Peña de. Dos direitos fundamentais: contribuição para uma teoria. São Paulo: LTr, 1997. p. 70-71. 121 100 A idéia da necessidade de garantia desses direitos foi se tornando parte do contexto social, surgindo um segundo momento na sua história, nomeadamente, daqueles que fundamentaram uma segunda geração conhecida como dos direitos sociais e que se traduzem, principalmente, no conceito de igualdade. A atuação do Estado, agora, já não é mais de abstenção em relação aos cidadãos, mas, sim, de realizar algo concreto, efetivo, que venha a proporcionar melhores condições aos seus nacionais. Sobre os direitos de segunda geração, aduz o autor citado: Os direitos fundamentais típicos dessa geração são qualificados pela Constituição, com referência ao Estado, de um dever de prestação, ou seja, são direitos fundamentais satisfeitos por uma prestação ou fornecimento de um bem por parte do corpo estatal. Destarte, consoante a classificação dos direitos fundamentais quanto à prestação estadual122, são direitos fundamentais positivos (aqueles que determinam um facere ou uma prestação positiva por parte do Estado, decorrendo da classe e técnica da igualdade, acentuando-se na medida em que esta é obtida, de modo que são correlatos a obrigações de conduta ativas e sua violação consiste, obrigatoriamente, em uma atuação).123 Posteriormente a isso, nascem, ainda, os direitos de terceira geração, os quais transcendem a esfera do indivíduo 122 Os autores lusitanos empregam o termo estadual não só para se referir ao estadomembro de uma Federação, mas sim referindo-se ao Estado, para o qual, no Brasil, se utiliza o adjetivo estatal. (Nota do autor) 123 Ibid, p. 71. 101 ou de categorias específicas de pessoas e passam a abranger toda a comunidade. Estes são chamados de direitos de fraternidade ou solidariedade, outrora também conhecidos como direitos difusos124, e perfazem-se por intermédio de direitos como o direito ao desenvolvimento, à comunicação, a “um meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e outros direitos difusos”.125 Aduz-se, em relação a eles: Os direitos de solidariedade ou fraternidade, cuja origem encontra-se no Direito Internacional, são dotados de cunho humanista e universalista, tendendo, contemporaneamente, a cristalizar-se, estando em vias de consagração no Direito Constitucional. É mister afirmar que a diferenciação entre direitos coletivos e direitos difusos reside na individualização do destinatário, posto que aqueles apresentam diversos destinatários individualizados, enquanto que estes possuem, como destinatários, uma coletividade sem individualização daqueles que a constituem.126 Consagradas essas três gerações de direito, no texto constitucional, completa-se, assim, a tríade liberdadeigualdade-fraternidade, a qual permite que a vida humana em comunidade ganhe novos contornos, ou seja, a de uma sociedade que busca qualidade de vida ou, melhor dizendo, uma vida com dignidade. 124 LINHARES, Paulo Afonso. op. cit., p. 89. MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 58. 126 MORAES, Guilherme Braga Peña de. op. cit., p. 72. 125 102 Mas, em que consiste esse principio da dignidade da pessoa humana? Falar-se-á, então, do significado da palavra dignidade que mais se aproxima ao contexto do estudo. Do latim dignitas (o qual significa respeitabilidade, prestígio, consideração, estima, nobreza, excelência), por dignidade entende-se a qualidade moral que infunde respeito e a consciência do próprio valor, ou, ainda, o respeito aos próprios sentimentos e valores.127 Na mesma linha de raciocínio, pode-se conceituar dignidade, semanticamente, como “qualidade daquilo que é digno e merece respeito ou reverência”.128 Por outro lado, o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana não pode ser conceituado de forma “fixista”, como bem ensina Edilsom Farias, eis que pode ser considerado “uma categoria axiológica aberta”129, que tem como fundamento jurídico, “num approach universalista, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, promulgada pela Organização das Nações Unidas – ONU”,130 a qual determina, em seu art. 1°, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.131 Contudo, pode-se dizer que há uma concordância doutrinária constitucional em se entender o princípio da dignidade da pessoa humana a partir da idéia de que a pessoa humana constitui um valor em si mesma, sendo dotada, portanto, de dignidade própria, a qual não 127 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit., p. 370. ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 109. 129 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2ª. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000. p. 61. 130 Ibid, p. 62. 131 Ibid, p. 62. 128 103 pode ser sacrificada em benefício de qualquer interesse coletivo. Em sendo assim, tendo em vista que “o Estado se erige sobre a noção de dignidade da pessoa humana, constitui uma de suas finalidades, propiciar a verificação das condições necessárias para que as pessoas tornem-se dignas”.132 Este princípio é “valor refundante”133 do ordenamento, considerando-se que é a partir deste princípio que se tem o indivíduo como limite e fundamento da formação do Estado Democrático de Direito, porquanto é a pessoa humana “a fonte e a base mesma do direito, revelando-se, assim, critério essencial de legitimidade da ordem jurídica”.134 Em relação à matéria, Ingo Wolfgang Sarlet observa Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1°, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder 132 MORAES, Guilherme Braga Peña de. op. cit., p. 101. “Por isso é que, mais do que uma ‘vazia expressão’, como poderiam pensar os que estão ainda aferrados à concepção legalista estrita do ordenamento jurídico, a afirmação do princípio, que nos mais diferentes países tem sido visto como um princípio estruturante da ordem constitucional – apontando-se-lhe inclusive um valor ‘refundante’ da inteira disciplina privada – significa que a personalidade humana não é redutível, nem mesmo por ficção jurídica, apenas à sua esfera patrimonial, possuindo dimensão existencial valorada juridicamente na medida em que a pessoa, considerada em si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico”. (MARTINS-COSTA, Judith. op. cit., p. 235). 134 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 57. 133 104 estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.135 Expressa a tese exposta que o Direito existe para regular as relações humanas, cabendo ao Estado o papel de tutelar essas ações, possibilitando a todos a plena convivência em harmonia. O Estado é, nesse sentido, voltado para o bem comum, devendo estabelecer regras que protejam os valores que a sociedade elenca como importantes. Em sendo assim, o princípio da dignidade da pessoa humana tem esse papel de proteger o ser humano, já que ele traduz o valor da pessoa humana, assegurando um “minimum de respeito ao homem só pelo fato de ser homem, uma vez que todos os homens são dotados por natureza de igual dignidade e ‘têm direito a levar uma vida digna de seres humanos’”.136 Pietro de Jesús Lóra Alarcón, acerca da matéria pontifica: (...) merece menção especial na análise do nosso tema, pela sua estreita conexão com a defesa da vida humana, e por encontrar-se na cimeira da hierarquia de valores reconhecidos pela Constituição Federal, o 135 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 101. FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 60. Na p. 63, o autor assevera que “o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana refere-se às exigências básicas do ser humano no sentido de que ao homem concreto sejam oferecidos os recursos de que dispõe a sociedade para a mantença de uma existência digna, bem como propiciadas as condições indispensáveis para o desenvolvimento de suas potencialidades”. 136 105 princípio da dignidade da pessoa humana, colocado no art. 1.°, inciso III. Trata-se de um valor intangível, que dota de sentido o futuro leque de direitos fundamentais consagrados pelo constituinte, uma espécie de positivação suprema que concentra outros valores recolhidos pela Constituição, e que, por isso, ostenta uma força normativa superior dentro do ordenamento jurídico. Como em todo Estado Constitucional, no Estado brasileiro a salvaguarda dos direitos fundamentais não se expressa exclusivamente no âmbito legal, mas que a lei subordina-se aos direitos fundamentais da Constituição. É vedado, então, aos poderes constituídos, criar dispositivos legais que se contraponham aos direitos fundamentais. Contêm vícios de inconstitucionalidade os atos normativos que ofendam a dignidade da pessoa humana ou o direito à vida em quaisquer das suas manifestações.137 E, ainda, Gustavo Tepedino, manifesta-se acerca do princípio: A dignidade da pessoa humana constitui cláusula geral, remodeladora das estruturas e da dogmática do direito civil brasileiro. Opera a funcionalização das situações jurídicas patrimoniais às existenciais, realizando assim processo de verdadeira inclusão social, com a ascensão à realidade normativa de interesses coletivos, direitos da personalidade e renovadas situações jurídicas existenciais, 137 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 177. 106 desprovidas de titularidades patrimoniais, independentemente destas ou mesmo em detrimento destas. Se o direito é uma realidade cultural, o que parece hoje fora de dúvida, é a pessoa humana, na experiência brasileira, quem se encontra no ápice do ordenamento, devendo a ela se submeter o legislador ordinário, o interprete e o magistrado.138 Pode-se dizer, portanto, que esse princípio põe o ser humano no centro das relações do direito e valoriza-o, de forma a que ele tenha valor pela simples condição de sua existência, e não mais em razão de outros bens que a ele possam estar atrelados. O Estado de Direito forma-se, então, voltado para proteção desse ser e suas ações devem ser para garantir que isso ocorra e, ainda, permitir que todo e qualquer ser humano possa alcançar a plenitude de seu desenvolvimento, sob o risco de que, se assim não fizer, o Estado possa perder sua legitimação na sua qualidade de Estado Democrático de Direito139. Como bem acentua Edilsom Farias: Vale dizer: que o respeito da dignidade da pessoa humana constitui-se em um dos elementos imprescindíveis para a legitimação da atuação do 138 TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 2, abr/jun. 2000, Rio de Janeiro: Padma, 2000. editorial. 139 Guilherme Braga Peña de Moraes ensina que, segundo a teoria de Jorge Miranda, “o Estado Democrático de Direito é conceituado como corpo estatal em que a organização e o exercício do poder político estão sujeitos a uma limitação material, através da norma jurídica, equivalente à divisão e organização dos Poderes do Estado e enumeração e asseguramento dos direitos fundamentais” e, ainda, que este Estado “possui os seus fundamentos elencados no art. 1° da Lei Magna, ou seja, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político”. (MORAES, Guilherme Braga Peña de. op. cit., p. 97 e 101.) 107 Estado brasileiro. Qualquer ação do Poder Público e seus órgãos não poderá jamais, sob pena de ser acoimada de ilegítima e declarada inconstitucional, restringir de forma intolerável ou injustificável a dignidade da pessoa. Esta só poderá sofrer constrição para salvaguardar outros valores constitucionais. 140 Em sendo assim, poder-se-ia dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana, mesmo sendo valor base do ordenamento, não é absoluto, podendo sofrer restrição quando colidir com outro princípio fundamental, sendo esta situação resolvida por meio das regras estabelecidas para colisão de princípios, das quais tratará em capítulo próprio. Finalizando, pode-se, então dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana é basilar para a construção da prerrogativa constitucional que dá o direito a se ter vida com qualidade, sendo esta possibilitada no seu exercício, apenas se, verdadeiramente, efetivados pelo Estado os direitos e garantias resguardados, constitucionalmente, que elencam deveres àquele em relação aos cidadãos. Contudo, cabe lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana tem por base o ser humano integral e valorado pelo simples fato de sua humanidade, ou seja, por sua condição humana de ser, não se podendo, portanto, excluir da proteção ser humano algum que se encontre em desenvolvimento. 140 Ibid, p. 63. 108 2.4 – Teorias sobre o início da vida 2.4.1 – Teoria natalista Os seguidores desta teoria asseveram que a personalidade somente se inicia com o nascimento com vida, sendo somente após este fato que a este ser humano seria possível dar proteção jurídica independentemente da mãe. Para esta corrente, o nascituro tem apenas expectativa de direitos, mas não direitos propriamente ditos. Sobre a matéria, afirma a Profª. Silmara J. A. Chinelato e Almeida que a teoria “natalista – encontra grande número de adeptos que afirmam que a personalidade civil começa do nascimento com vida, alicerçando-se na primeira parte do artigo 4°. Do Código Civil (...). Mencionada corrente não explica, no entanto, porque o mesmo artigo reconhece direitos e não expectativas de direitos ao nascituro (...)”.141 São adeptos dessa teoria Vicente Ráo142, João Luiz Alves143, Silvio Rodrigues144 e Eduardo Espínola145, entre outros. 141 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. Direitos de personalidade do nascituro. Revista do Advogado n. 38, dez/92, São Paulo: AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, 1992. p. 22. 142 GONÇALVES, Suzana Valéria Galhera. Aspectos jurídicos da clonagem humana terapêutica sob o prisma dos direitos da personalidade. 2003. Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Direito Civil, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2003. p. 81. 109 2.4.2 – Teoria concepcionista Para os adeptos desta teoria, a vida deve ser protegida desde a sua concepção146, independentemente da forma em 143 Ibid., p. 81. Ibid., p. 81. 145 Ibid., p. 81. 146 SILVER, Lee M. De volta ao éden: engenharia genética, clonagem e o futuro das famílias. tradução de Dinah de Abreu Azevedo, São Paulo: Mercuryo, 2001. p. 49/51. “Milhões de óvulos imaturos – chamados ovócitos – são armazenados nos ovários de uma mulher. Todo mês, aproximadamente, durante o período fértil de uma mulher, mensagens hormonais fazem com que um desses ovócitos amadureça e se torne um óvulo que tem condições de ser fertilizado. Quando se completa o processo de amadurecimento, o óvulo é liberado do ovário – um evento chamado ovulação. Ao deixar o ovário, o óvulo começa sua lenta jornada através da trompa de Falópio, onde permanece receptivo ao esperma por cerca de 20 horas. (...) Se houver uma relação sexual no período de um dia antes ou depois da ovulação, o esperma sobe pela trompa de Falópio em direção ao óvulo. O espermatozóide humano provavelmente não tem capacidade de ir realmente atrás do óvulo; esta é a razão pela qual os homens ejaculam 100 milhões ou mais desses gametas, quando todos, exceto um – no máximo – estão destinados a morrer. Pela pura força do número, um espermatozóide – por acaso – vai fazer contato com o óvulo. A própria célula do óvulo é circuncidada por uma cobertura de material elástico chamada zona pellucida, ou zona, abreviadamente. O óvulo é como uma bola flutuando num fluído dentro da esfera oca da zona. Quando um espermatozóide invade a zona que circunda o óvulo não-fertilizado, os dois se colam um no outro. A zona agora faz com que a extremidade da frente do espermatozóide libere uma essência concentrada de enzimas digestivas e, com o movimento para a frente impulsionado pelo seu flagelo, o espermatozóide percorre uma trilhazinha demarcada através da zona no fluído que fica entre a zona e a célula do óvulo. Assim se completa o primeiro passo da fertilização. Muitas vezes um punhado de espermatozóides chega a esse espaço isolado, ainda nadando por ali. Por acaso, um deles será o primeiro a se colar à membrana da célula do óvulo. Quando isto acontece, as células do espermatozóide e do óvulo começam o processo de fusão. Durante esse processo, uma pequena porção da membrana do óvulo estica-se para circundar o espermatozoidezinho, e o engole. O espermatozóide continua intacto e continua nadando, primeiro dentro do citoplasma do óvulo. Mas, depois de poucos minutos, seu flagelo e a membrana que circunda sua cabeça começam a se desintegrar. O segundo passo da fertilização se completa. 144 110 A fusão do óvulo e do espermatozóide desencadeia respostas rápidas para evitar a entrada de outro espermatozóide no óvulo; entre essas respostas, há um endurecimento da cobertura da zona para que outros espermatozóides não possam penetrar, e uma cortina elétrica em torno da membrana do óvulo, para que o espermatozóide que já está dentro da zona seja repelido pela superfície do óvulo. É claro que esses eventos não são instantâneos e, de vez em quando, um segundo espermatozóide penetra durante os segundos que são gastos para se levantar as barreiras. Esses óvulos duplamente fertilizados são sobrecarregados com material genético e não conseguem se desenvolver direito, e morrem depois de alguns dias. A fusão põe o óvulo fertilizado – agora chamado de zigoto – na rota lenta, mas segura, do desenvolvimento embrionário. E uma das primeiras tarefas que o óvulo assume é a redução pela metade do material genético da mãe. (...) enquanto isso, o núcleo que estava contido na cabecinha comprimida do espermatozóide está sofrendo uma lenta expansão e se tornando do mesmo tamanho que foi a contribuição do óvulo. Esses dois núcleos são efetivamente chamados de pronúcleos pelos cientistas, porque cada um contém apenas a metade do material genético encontrado nos núcleos normais de células somáticas. Portanto, não são núcleos completos, mas apenas os precursores de núcleos completos. Entretanto, contrariamente à crença popular, os dois pronúcleos nunca se fundem em um só. Em vez disso, durante a vida de um dia do zigoto, o material genético proporcionado por papai e mamãe permanece enclausurado em suas próprias esferas separadas. (...) O que realmente acontece é que os cromossomos nos dois pronúcleos se duplicam separadamente e depois cópias de cada um deles se juntam dentro dos núcleos efetivos formados depois da primeira divisão celular. É dentro de cada um dos dois núcleos presentes no embrião de duas células que se combina pela primeira vez um conjunto de quarenta e seis cromossomos humanos. Agora o processo de fertilização está completo”. Continua, nas págs. 61– 63, asseverando acerca da divisão celular, de forma mais específica: “No começo do segundo dia depois da fusão do óvulo e do espermatozóide, o embrião tem duas células. Cada uma dessas células se divide para produzir quatro e cada uma dessas se divide novamente para produzir um total de oito células, lá pela metade do terceiro dia. Embora o embrião tenha aumentado o número de suas células, ele não fez muito mais do que isso. Cada uma de suas oito células, quando separadas das outras, ainda tem o potencial de se tornar um embrião por si mesma e de formar uma vida humana separada. Com outra rodada de divisões celulares, produzindo dezesseis células no total, está iniciando o primeiro passo para fora da uniformidade. O embrião ainda se parece com uma bola, ou melhor, com uma amora microscópica. Mas as células do lado de fora são capazes de sentir sua posição em relação às células do lado de dentro e, em resposta, elas se diferenciam em células que eventualmente se tornarão a placenta e outros tecidos que funcionam para proteger o feto em crescimento. Quando os biólogos usam a palavra diferenciar, eles querem dizer tornar-se diferente. Quando uma célula se diferencia, ela se torna diferente da célula-mãe que lhe deu origem. Normalmente, a diferenciação causa uma redução no potencial de uma célula. Por exemplo: as 111 que esta ocorreu (seja in vivo ou in vitro), sendo o “nascimento com vida requisito apenas para a defesa de células orientadas para a placenta, que se formaram como a camada externa do embrião de dezesseis células, só têm o potencial de produzir outras células que se tornarão parte da placenta ou de outros tecidos localizados entre a mulher e seu feto. Estas células perderam o potencial de se transformarem em coração, em pulmão ou em qualquer outro tecido do feto em desenvolvimento. Depois que uma célula se diferencia, todas as células que descendem dela, assim como as descendentes de suas descendentes, também se manterão diferenciadas. Mas essas células ainda podem passar por outras diferenciações, com outras reduções em potencial. Por exemplo: na altura de quatro semanas de idade, um embrião contém células diferenciadas que têm o potencial de produzir apenas células sangüíneas. Com divisões celulares posteriores e diferenciação posterior, aparecem células que têm o potencial de produzir apenas glóbulos brancos ou glóbulos vermelhos, mas não ambos. São necessárias outras rodadas de diferenciação para converter os glóbulos brancos progenitores num tipo específico de glóbulo branco que segrega anticorpos ou outro tipo que engole bactérias invasoras. Neste ponto, depois de dezenas de rodadas de divisão celular, é atingido um estado de diferenciação terminal. Diferenciação e desenvolvimento andam juntos.O desenvolvimento de um organismo como um todo ocorre através da diferenciação de células individuais dentro dele. Células terminalmente diferenciadas podem expressar funções extremamente especializadas, como aquelas descritas acima para glóbulos brancos ou outras, como para produção dos pêlos corporais ou de unhas. A maior parte das células de nosso corpo é terminalmente diferenciada, inclusive todos os componentes microscópicos de órgãos complexos como os pulmões, o coração, os rins ou o cérebro. Mas sempre existirão algumas células, mesmo num adulto maduro, que ficam num estágio anterior de diferenciação. Essas células são chamadas de células-mãe. Elas continuam se dividindo para produzir, por exemplo, uma nova fonte de células de pele, de sangue ou de outros tipos especiais de células que devem ser regeneradas constantemente para você continuar vivo. Os biólogos moleculares têm agora uma compreensão sofisticada do que acontece dentro de uma célula quando ela se diferencia. Na realidade, a coisa mais importante é a que não acontece – uma célula diferenciada não perde nenhuma informação genética. Toda célula somática de seu corpo tem um conjunto completo de quarenta e seis cromossomos com todo o DNA que estava presente nos núcleos do embrião bicelular do qual você surgiu. Ora, se todas as células têm a mesma informação genética, por que elas não se parecem umas com as outras e não agem da mesma forma? A resposta é que cada célula é programada para usar apenas uma pequena parte da informação total para continuar viva e desempenhar as tarefas para as quais ela foi especialmente projetada através da evolução. As células que parecem diferentes umas das outras e se comportam de forma diferente umas das outras – como resultado da diferenciação – foram programadas para usar partes diferentes da mesma informação genética total. E, a cada passo da diferenciação, o programa da célula muda pelo menos um pouco”. 112 direitos patrimoniais do nascituro, e não de direitos pessoais, como o são os direitos da personalidade, dentre eles o direito à vida, à integridade física, à imagem, que merecem ser tutelados, mesmo antes do nascimento”. 147 Para eles, o art. 2° do Código Civil de 2002 (correspondente ao art. 4° do CC de 1916) não se refere a uma expectativa de direitos, quando os assegura ao nascituro desde a concepção, mas sim direitos que lhe são assegurados desde o momento em que foram concebidos148, devendo o nascimento com vida ser entendido como “enunciado negativo de uma condição resolutiva, isto é, o nascimento sem vida, porque a segunda parte do art. 4° do Código Civil, bem como outros dispositivos, reconhecem direitos (não, expectativas de direitos) e estados ao nascituro, não do 147 GONÇALVES, Suzana Valéria Galhera. op. cit., p. 82. Paulo José Leite Farias analisa a questão da seguinte maneira: “(...) procura-se analisar a clonagem humana à luz dos princípios norteadores da bioética (respeito às pessoas, beneficência e justiça) consagrados no Relatório Belmont que trata especificamente da adequação de pesquisas realizadas em seres humanos. Deve-se observar, entretanto, que há intima relação entre a análise jurídica efetuada e a análise ética em especial em matéria que se relaciona intimamente com o maior valor humano: a vida. No que se refere ao primeiro princípio ético – o do respeito às pessoas – (também chamado princípio da autonomia) o Relatório Belmont propõe, entre outras proposições, que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas. Assim, há uma exigência moral de se proteger aqueles com autonomia reduzida. Uma pessoa com autonomia é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir na direção desta deliberação. Todo ser humano deve ser amparado, no que se refere ao seu direito de existir. Nesse sentido, boa parte da doutrina à qual me filio defende que a personalidade civil começa na concepção, até no interesse de que se protejam os que têm sua autonomia reduzida. Para essa concepção, o <<nascituro>>, já existe como pessoa, sendo sujeito de direitos (conforme assegurado no Código Civil), tendo como direito constitucional prioritário, até para o exercício de outros, o de nascer com vida”. (FARIAS, Paulo José Leite. Limites éticos e jurídicos à experimentação genética em seres humanos: a impossibilidade da clonagem humana no ordenamento jurídico brasileiro. In: Jurisprudência Brasileira, JB 182, Curitiba: Juruá, 1998. p. 44.). 148 113 nascimento com vida, mas desde a concepção”.149–150 Assevera-se, ainda, acerca da matéria que “se a lei civil põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, constitui-se o ser humano, que está sendo gerado, em um sujeito de direitos, merecedor de tutela jurídica, não podendo ser afastada a idéia de que o concepturo, como sujeito de direitos, é necessariamente portador de personalidade natural”. 151 Sérgio Ferraz, acerca da matéria, assim se posiciona: Uma coisa é indiscutível: desde o zigoto, o que se tem é vida, diferente do espermatozóide e do óvulo; vida diferente do pai e da mãe, mas vida humana, se pai e mãe são humanos. Pré-embrionária no início, embrionária, após, mas vida humana. Em suma, desde a concepção há vida humana nascente, a ser tutelada.152 149 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. Bioética e dano pré-natal. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, n° 17, 1999. p. 308. 150 A mesma autora anteriormente citada no texto que leva o título de Direitos de personalidade do nascituro. Revista do Advogado n. 38, dez/92, São Paulo: AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, 1992. assevera, na p. 23, que “o nascimento com vida aperfeiçoa o direito que dele dependa, dando- lhe integral eficácia, na qual se inclui sua transmissibilidade. Porém, a posse dos bens herdados ou doados ao nascituro pode ser exercida, por seu representante legal, desde a concepção, legitimando-o a perceber as rendas e os frutos, na qualidade de titular de direito subordinado à condição resolutiva. Fundamentam o nosso entendimento os artigos 119, 1.186, 1.572, 1.778, todos do Código Civil e os artigos 877 e 878 do Código de Processo Civil, que cuidam da posse em nome do nascituro, como medida cautelar (ou processo de jurisdição voluntária, como preferem alguns processualistas)”. 151 SZANIAWSKI, Elimar. O embrião excedente: o primado do direito à vida e de nascer. Análise do art. 9° do Projeto de Lei do Senado n° 90/99. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 8, out/dez. 2001, Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 89. 152 FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 47. 114 Alguns adeptos dessa corrente são Eduardo de Oliveira Leite153, Maria Helena Diniz154, Limongi França155, Pontes de Miranda156, André Franco Montoro157, Francisco dos Santos Amaral158 e Silmara Chinelato e Almeida159, Wanderlei de Paula Barreto160, entre outros. 2.4.3 − Teoria da personalidade condicional Os teóricos desta teoria entendem que a personalidade se inicia com a concepção, dependendo do nascimento com vida para sua tutela. Esta foi a teoria adotada no art. 3° do CC de 1916 e, também, no Esboço de Teixeira de Freitas, o qual, posteriormente, concluiu-se ser um dos defensores da teoria concepcionista. Cabe salientar que, neste período, ainda não se falava em direitos da personalidade, o que somente a partir da década de 1950 vem sendo estudado e foi totalmente incorporado pelo Direito pátrio. Dentre seus 153 LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: Santos, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.). Biodireito – ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 109. 154 DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 25. 155 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 211. 156 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 24. 157 GONÇALVES, Suzana Valéria Galhera. op. cit., p. 84. 158 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 24. 159 ALMEIDA, Silmara Chinelato. op. cit., p. 23. 160 BARRETO, Wanderlei de Paula. Considerações acerca das pessoas no novo Código Civil. Revista de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual de Maringá – Publicação Oficial do Curso de Mestrado em Direito, v. 2, n.1, jan/jun 2004, Maringá: Sthampa, 2004, p. 291/293; cp. Tb. Comentários ao Código Civil Brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 45-48. 115 defensores estão Washington de Barros Monteiro161 e Miguel Maria de Serpa Lopes162, entre outros. 2.4.4 − Teoria do embrião como pessoa em potencial Seus adeptos defendem que há duas espécies de vida, uma intra-uterina que se faz pelo método natural e outra que se forma na fertilização in vitro por métodos artificiais. O embrião, então, somente seria considerado pessoa em potencial se, estando no útero, chegasse à nidação; para aqueles que fossem criados na fertilização in vitro, e não fossem devidamente implantados, não se daria a prerrogativa de ser tratado como pessoa, mas somente como uma célula especializada. 2.4.5 − Teoria genético-desenvolvimentista Seus seguidores entendem que o embrião, até o décimo-quarto dia de seu desenvolvimento, não deve ser considerado pessoa, já que somente a partir dessa data é que se desenvolvem seus neurônios, sendo apenas um agregado 161 PUSSI, William Artur. A personalidade jurídica do nascituro. 2002. Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Direito Civil, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2002. p. 86. 162 Ibid., p. 86. 116 de células antes de tal especialização. Esta teoria é defendida pelo Relatório Warnock, que entende que não há limitações ao uso de embriões em pesquisas científicas antes do período de quatorze dias. Contesta-se essa teoria com o fato de que o embrião sofre diversas mutações antes desse período, tão importantes quanto a formação da placa neural, não podendo ser esta a única razão para se considerar um embrião um ser humano. Sustenta-se, ainda, que “o conceito de pré-embrião, elaborado pela Comissão Warnock para caracterizar o concebido até o décimo-quarto dia após a fertilização in vitro, possui como único propósito ideológico garantir experimentações com seres humanos vivos”163. 163 SILVA, Reinaldo Pereira. Os direitos humanos do embrião. Análise bioética das técnicas de procriação assistida. Revista dos Tribunais, ano 88, vol. 768, out. 1999, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 86, nota 48, relata que o doutrinador italiano Angelo Serra identifica como sendo contraditório o prazo de 14 dias estabelecido pela Comissão Warnock, já que no capítulo 11 daquele se reconhece que “do ponto de vista biológico não se pode identificar um singular estágio do ciclo vital a que se possa dizer que não deve o embrião in vitro ser mantido vivo”, demonstrando, ainda, a opinião de Günter Rager, no artigo “Embrion-hombrepersona. Acerca de la cuestion del comienzo de la vida personal”. Cadernos de Bioética da Revista Trimestral de Cuestiones de Actualidad, Madrid, v. 8, n. 31, jul–set. 1997, p. 1.055/56 que diz “porquanto o conceito de pré-embrião pressupõe a idéia de que, no desenvolvimento do indivíduo, existe uma fase em que não existe o embrião. Isto não somente está em contradição com o fato de que o genoma humano, característico e individual, se constitui com a fecundação, mas também abre completamente a possibilidade da manipulação. O conceito de pré-embrião deveria ser retirado do vocabulário embriológico porque não se pode fundamentar objetivamente, porque sugere equívocos acerca do status do embrião durante as duas primeiras semanas de vida, e porque já estão bem definidos os estágios de desenvolvimento embrionário”. 117 2.4.6 − A adoção de uma teoria como base para desenvolvimento do estudo Finalizadas as citações das teorias mais relevantes e discutidas na doutrina nacional, cabe nesta dissertação posicionar-se no sentido de se desenvolver o texto de acordo com aquilo que se entende ser mais coerente, deixando, desde já, claro que se considera correta aquela teoria que protege todo ser humano desde a sua concepção. Como já exposto anteriormente, os defensores desta teoria entendem que uma nova vida se forma, desde o momento em que o espermatozóide adentra o óvulo, dando-se a concepção deste, formando um indivíduo que, desde o seu início, já é único164–165. Em sendo este um ser humano, seja ele 164 Segundo a Profª. Drª. Lygia da Veiga Pereira, Ph.D em Genética Molecular pelo Instituto Mount Sinai Medical Center de Nova York, Docente do Departamento de Biologia do Instituo de Biociências da USP e Membro do Centro de Estudos do Genoma Humano da mesma instituição, desde a 1ª célula de um ser já está contido um genoma inédito que determinará a forma e todas as características específicas do novo indivíduo, sendo que esses genes que dão as instruções da formação do ser em um ser humano, chegam a aproximadamente 30 mil, os quais determinarão desde a cor dos cabelos e olhos até o tamanho de órgãos. Esses genes são compostos pelo DNA que possui quatro letras A, C, G e T, sendo que cada instrução dele é um conjunto de milhares dessas letras, que vem parte da mãe (óvulo) e parte do pai (espermatozóide), criando um indivíduo único, diferente de todos os outros (PEREIRA, Lygia da Veiga. Clonagem, fatos e mitos. São Paulo: Moderna, 2002. p. 9 a 15.). No mesmo sentido, SILVER, Lee M. op. cit., p. 49: “Cada uma de suas células espermatozóide e óvulo contém apenas uma única edição do genoma humano dentro de apenas vinte e três cromossomos. Mas nunca a edição única é a mesma que aquela que você recebeu de sua mãe ou de seu pai. Em vez disso, logo no início do processo que leva à produção de cada gameta individual, suas edições maternas e paternas do genoma humano trocam aleatoriamente entre si páginas e capítulos inteiros de um modo muito preciso para que surjam edições inteiramente novas da enciclopédia. As novas edições têm todas os mesmos capítulos como anteriormente, mas cada uma é uma mistura aleatória do material genético de seu pai e de usa mãe. 118 concebido in vivo ou in vitro, ou seja, de forma natural ou artificial, merece proteção do ordenamento, já que o mandamus constitucional determina a garantia da inviolabilidade do direito à vida a TODOS os brasileiros, entendendo-se todos como mandamento não aberto a exceções. E apenas uma dessas edições se aloja em cada uma das células individuais de espermatozóide ou óvulo formadas em seu corpo ao final do processo. Cada espermatozóide, dos bilhões produzidos durante a vida de um homem, e cada óvulo produzido por uma mulher, possui uma composição diferente de material genético, uma mistura diferente das edições do genoma humano. É por esta razão que, com a exceção de gêmeos idênticos ou de uma criança produzida por clonagem, é impossível que um casal humano tenha dois filhos geneticamente idênticos”. 165 Acerca tema, observa o Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho que: “Existe uma definição genética proveniente de Jean Dausser para o conhecimento das combinações de grupos sangüíneos, vinculando o assunto ao genoma. Cada homem é único, com a conciliação da unidade e da diversidade. A pessoa é uma individualidade biológica, um ser de relações psicossociais, um sujeito para os juristas. Entretanto, surge a questão dos valores que têm grande importância para os limites das pesquisas científicas. Esses estudos dedicaram-se ao exame da morte cerebral e do estado vegetativo crônico, após uma doença decorrente do traumatismo craniano. Certos dados são apresentados para a compreensão de que a vida começa, não pelo nascimento, mas pela concepção, em vista da fecundação do óvulo pelo espermatozóide. O dever de conhecimento deve respeitar situações, como o respeito ao homem, a sua liberdade e dignidade. A responsabilidade do pesquisador tem grande importância pelas conseqüências que decorrem das pesquisas emanadas dos trabalhos científicos”. (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Vida humana e ciência: complexidade do estatuto epistemológico da bioética e do biodireito. Normas internacionais da bioética. Revista Forense, v. 362, jul/ago.2002, Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 77). 119 120 3 – DO CONCEITO DE PESSOA 3.1 – Pessoa natural Ao se discorrer sobre o tema, deve-se esclarecer, que este não faz parte do tema central da pesquisa, sendo aqui apenas estudado no sentido de oferecer melhores argumentos a outros posteriormente elencados que se encontram inseridos no objeto em análise, sendo esta matéria, portanto, tratada suscintamente. Externa-se que se entende por pessoa natural a pessoa física, o ser humano em si. Nos léricos, conceitua-se como sendo pessoa, “cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores”.166 O vocábulo pessoa vem de persona, sendo esta, na Antigüidade Clássica, a máscara com que atores realizavam os espetáculos teatrais167, a qual, posteriormente, passou a FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio – Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1.557. 167 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil: Teoria geral do direito civil, 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, v. I., na p. 203, diz que “pessoa (persona) é expressão cuja origem remonta à máscara utilizada pelos atores dos teatros romanos antigos, que tinha a propriedade de ressoar as palavras por eles proferidas, para que fossem nitidamente ouvidas pelos espectadores (homo plures personae sustinet)”. 166 121 ser entendida como sinônimo de personagem, até chegar ao significado de representar o ser humano, em si. Mas, este último, decorreu, principalmente, da valoração conferida pelo Cristianismo à pessoa, eis que somente a partir dos ensinamentos deixados por Cristo sobre amor ao próximo e a cada pessoa em si considerada – os quais, posteriormente, foram amplamente divulgados, principalmente, pelo apóstolo Paulo – foi que se deu ao termo pessoa conotação mais humana, voltada ao ser. E esta pessoa, a partir do Cristianismo, foi amplamente estudada por Tomás de Aquino (1225-1274), o qual desenvolveu o conceito de pessoa ligado à idéia de dignidade, eis que o ser humano não é somente aquele criado pela divindade à sua imagem e semelhança para habitar a terra, mas sim, foi concebido para fazer parte da família de Deus, atuando nesta como seu filho amado, que fora redimido através de Jesus Cristo. A visão tomista de pessoa, então, demonstra-se, principalmente, no fato de que o homem se compõe de matéria e espírito, os quais formam uma unidade substancial que não impede a alma humana de ser imortal, não sendo a noção de pessoa apenas uma exterioridade, como era na Antigüidade Clássica, mas sim a própria substância que dá a cada indivíduo a característica de ser único, individual, permanente e invariável. Este ser, portanto, distingue-se dos outros seres por sua racionalidade e intelectualidade que lhe dão a condição de se relacionar com o seu Criador e, com isto, aperfeiçoar-se, sendo, contudo, responsável por seus atos e seu destino, o que se considerava como sendo “o que há de mais perfeito em todo o universo e constituindo um valor absoluto, um fim em si”. 168 168 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 24. 122 E, neste sentido, o vocábulo passou a representar os atributos materiais e espirituais do ser, sendo preferida por Adriano de Cupis a expressão pessoa humana ao termo pessoa física 169. Cabe citar que, para Locke, a pessoa tinha consciência de sua existência e, por isso, poderia analisar-se, concluindo, desta que “a relação do homem consigo mesmo torna-se, dessa forma, a característica fundamental da pessoa” 170, sendo, portanto, a pessoa humana “considerada como o mais eminente de todos os valores, porque constitui a fonte e a raiz de todos os demais valores”171. Há, neste momento, então, uma idéia de pessoa voltada ao seu valor como ser humano que tem em si a razão da existência e o fundamento para todas as coisas. Ressalta-se, ainda, o conceito de pessoa em Kant, o qual deriva da idéia deste de que “os seres racionais são chamados de pessoas porque a natureza deles os indica já como fins em si mesmo, como algo que não pode ser empregado unicamente como meio”172, ou seja, para o pensador, a pessoa constitui-se em um status, o qual limita a ação do Estado, seu poder de atuação frente à sociedade. Outros conceitos que, em razão de sua importância, deve-se citar acerca da pessoa são os de Hugo Grotio e Savigny, eis que o primeiro, dentro da filosofia renascentista de racionalidade (a qual se opunha à visão teológica difundida na Idade Média), desenvolveu o conceito de direito subjetivo, subsumindo, então, o conceito de pessoa no conceito de sujeito de direito; o segundo, a partir desse conceito, passa a ter esta pessoa “como mero elemento da 169 PUSSI, William Artur. op. cit., p. 4. LOCKE, John. Essay on human undertanding, II, c. XXIII apud ibid, p. 5. 171 Ibid, p. 5. 172 Ibid, p. 5. 170 123 teoria da relação jurídica”173, sendo a restrição da capacidade jurídica, portanto, decorrente da sua visão sobre pessoa. Ademais, pode-se dizer que “a consideração da pessoa como unidade individual, corresponde à mesma determinação conceitual do termo como agente moral, sujeito de direitos civis e políticos ou membro de um grupo social. O homem é pessoa porque, nos papéis que desempenha, é essencialmente definido por suas relações com os outros”.174 O termo, ainda, liga-se à idéia de personalidade, a qual se traduz em um valor jurídico que possibilita aos indivíduos serem titulares de relações jurídicas. Pessoa, para o Direito, é, então, aquele que é sujeito das relações jurídicas, elemento subjetivo desta, sendo-lhe, portanto, conferida a personalidade, a qual “exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”.175 E é essa característica da personalidade176 que distingue o homem dos outros seres, sendo, então, um atributo da sua dignidade. Nos dizeres de Francisco Amaral, 173 Ibid, p.10. Ibid, p.11. 175 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4. 176 H. J. Eysenck preleciona que “personalidade é a organização mais ou menos estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa: organização que determina sua adaptação total ao ambiente. Caráter designa o sistema de comportamento conativo (vontade) mais ou menos estável e duradouro da pessoa. Temperamento designa seu sistema mais ou menos estável e duradouro de comportamento afetivo (emoção); intelecto, seu sistema mais ou menos estável e duradouro de comportamento cognitivo (inteligência); físico, seu sistema mais ou menos estável e duradouro de configuração corpórea e de dotação neuro-endócrina”. (EYSENCK, H. J. The structure of human personality, p. 02, apud XAVIER, Elton Dias. A Bioética e o conceito de pessoa: a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa. Disponível em: http://www.google.com.br > Acesso em: 13/10/2004, às 16:00 hs. 174 124 Pessoa é o homem ou entidade com personalidade, aptidão para a titularidade de direitos e deveres. (...) Ser pessoa é ter a possibilidade de ser sujeito de direitos, de relações jurídicas, como credor, devedor, pai, cônjuge etc. É na pessoa que os direitos se localizam, por isso ela é sujeito de direito ou centro de imputações jurídicas no sentido de que a ela se atribuem posições jurídicas. O termo pessoa tem um significado vulgar e outro jurídico. Na linguagem comum, pessoa é o ser humano, mas tal sentido não serve ao direito, que tem vocabulário específico. Na linguagem jurídica, pessoa é o ser com personalidade jurídica, aptidão para a titularidade de direitos e deveres. Todo ser humano é pessoa pelo fato de nascer ou até de ser concebido. Pessoa é o ser humano como sujeito de direitos.177 A personalidade, quando vista a partir da concepção naturalista, é entendida como sendo “inerente à condição humana como atributo essencial do ser humano, dotado de vontade, liberdade e razão”178; já para concepção formal ou jurídica, a personalidade não é própria do ser humano, mas sim, “é atribuição ou investidura do direito”179, que confere ao homem o status de pessoa. Mas a personalidade não se 177 AMARAL, Francisco. op. cit., p. 206. Ibid, p. 207. 179 Ibid, p. 207. 178 125 confunde com a capacidade180, para o autor citado, eis que este entende que pode existir aquela sem esta, sendo a 180 Para a doutrina tradicional, personalidade e capacidade se equivalem, se identificam, sendo sinônimos. Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery a personalidade da pessoa natural é aquela que “inicia-se com o nascimento com vida e termina com a morte da pessoa natural. O nascimento com vida caracteriza-se pelo ato de o nascituro respirar. A personalidade é inerência do homem. Personalidade é atributo da dignidade do homem. É o que faz sua figura viva se distinguir da dos outros seres animados. É o que, no direito, atribui ao homem a condição de sujeito e de deveres de obrigações. É o atributo que impede que o homem seja objeto de direito. Dá-se, por extensão, às entidades que o direito quer que também sejam titulares de direito esse atributo da personalidade, transformando-as no que se convencionou chamar pessoas jurídicas (CC Livro I, Título II, Capítulos I a III), em oposição a pessoa natural = ser humano”. Por outro lado, a capacidade de direito é um atributo que toda pessoa tem e significa “capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações. Por exemplo, menor com cindo anos de idade pode ser proprietário de imóvel, ser titular de direito de pensão alimentícia, contrair empréstimo etc”, enquanto que a capacidade de exercício é aquela “capacidade de praticar validamente atos da vida civil, os maiores de dezoito anos. Os menores relativamente incapazes podem praticar atos, desde que assistidos ou representados”. (NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. op. cit., p. 8/9). Ensina, ainda, a Prof.ª Maria Helena Diniz acerca de personalidade e capacidade jurídica que “liga-se a pessoa a idéia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Sendo a pessoa natural sujeito das relações jurídicas e a personalidade a possibilidade de ser sujeito, ou seja, uma aptidão a ele reconhecida, toda pessoa é dotada de personalidade. A personalidade é o conceito básico da ordem jurídica, que a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade. A personalidade tem sua medida na capacidade que é reconhecida num sentido de universalidade, no art. 1°do Código Civil, que, ao prescrever ‘toda pessoa é capaz de direitos e obrigações’, emprega o termo pessoa na acepção de todo ser humano, sem qualquer distinção de sexo (Lei n°9.029/95, idade (Lei n°8.069/90), credo, raça (Leis n° 7.437/85, 7.716/89, com alteração da Lei n° 9.459/97, e Dec. de 8-9-2000); CF/88, arts. 1°, III, 3°, IV, 5°, I, VI, XLI, XLII, e 19, I). (...) Daí a expressiva afirmação de Unger de que ‘a personalidade é o pressuposto de todo direito; o elemento que atravessa todos os direitos privados e que em cada um deles se contém; não é mais do que a capacidade jurídica, a possibilidade de ter direitos’. Toda pessoa, por necessidade de sua própria natureza, é o centro do direito e, assim, tem personalidade, sendo capaz de direitos e obrigações”. A capacidade pode ser, ainda, de direito e de exercício. A primeira, “não pode ser recusada ao indivíduo, sob pena de se negar sua qualidade de pessoa, despindo-o dos atributos da personalidade. Entretanto, tal capacidade pode sofrer restrições legais 126 capacidade, então, a expressão, a emanação da personalidade, tendo em vista que enquanto esta “é um valor, a capacidade é a projeção desse valor que se traduz em um quantum”.181 Seguindo a linha do Código de 1916, entendeu o legislador do Código Civil vigente por demonstrar o início da personalidade, estabelecendo no art. 2°. o momento do seu início.182 Pelo texto inserto no artigo, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida183, tendo, a partir quando ao seu exercício pela intercorrência de um fator genérico, como tempo (maioridade ou menoridade), de uma insuficiência somática (deficiência mental, surdo-mudez). Aos que são assim tratados por lei, o direito denomina incapazes. Logo, a capacidade de fato ou de exercício é a aptidão de exercer por si os atos da vida civil, dependendo, portanto, do discernimento, que é critério, prudência, juízo, tino, inteligência, e, sob o prisma jurídico, da aptidão que tem a pessoa de distinguir o lícito do ilícito, o conveniente do prejudicial. Rossel e Mentha concluem que ‘jouir des droits civils, c’est être apte à lês avoir; lês exercer, c’est être apte à en user’. Quando o Código enuncia, no seu art. 1°, que toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na ordem civil, não dá a entender que possua concomitantemente o gozo e o exercício desses direitos, pois nas disposições subseqüentes faz referência àqueles que tendo o gozo dos direitos civis não podem exercê-los”. (DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 4/6). 181 AMARAL, Francisco. op. cit., p. 208, explicando, no texto, que é possível ser mais ou menos capaz, mas impossível ser mais ou menos pessoa. 182 Art. 2. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 183 LISBOA, Roberto Senise, op. cit., p. 204 aduz que: “O início da pessoa física se dá com o nascimento com vida. Para que ocorra o nascimento com vida, é necessária a completa separação do novo ser com o organismo materno, mediante o desligamento do cordão umbilical, passando o neonato a respirar de forma independente. Pouco importa se o neonato vem a falecer instantes após o seu nascimento com vida, uma vez que o sistema jurídico brasileiro não exige a viabilidade, como o direito romano determinava, para o reconhecimento da personalidade do recém-nascido. No caso do natimorto, não houve o nascimento com vida, razão pela qual não se iniciou a existência da pessoa física em qualquer momento. O direito brasileiro não adotou o critério da viabilidade que inspirou o legislador francês ao fixar a necessidade da compleição fisiológica para viver, nem o espanhol, 127 deste momento, capacidade jurídica. Prova-se este nascimento com a primeira respiração, ou seja, com a penetração do ar nos pulmões, mesmo que venha a morrer, logo depois. Para o Código Civil pátrio, portanto, faz-se necessário o nascimento com vida, para que se dê início à personalidade jurídica. Para o direito romano, o feto, antes do nascimento, era considerado como produto do corpo humano (vísceras maternas), pertencendo, portanto, àquela que o levava em seu ventre, podendo dele dispor. No entanto, mesmo assim visto, ao nascituro atribuía-se alguma consideração, eis que se tinha “esperança do seu nascimento”184, tendo, por essa razão, alguns dos seus interesses resguardados. Apesar de considerar que a personalidade só se inicia com o nascimento com vida, buscou o legislador pátrio resguardar os direitos do nascituro desde o momento da sua concepção, entendendo parte da doutrina que não se tratam de direitos em si, mas apenas expectativas de direitos. Mas, há aqueles que, entendem que o feto não tem apenas expectativas de direitos que se confirmariam com o nascimento com vida, mas sim, direitos que são protegidos desde o momento em que se dá a fertilização do óvulo pelo espermatozóide, ou, a concepção. Concordam com esta tese, doutrinadores como Wanderlei de Paula Barreto, Silmara Chinelato e Almeida, Eduardo de Oliveira Leite, Maria Helena Diniz etc. este último fixando o prazo mínimo de 24 horas de vida sem ligação ao cordão umbilical”. 184 VIANA, Marco Aurélio S. Da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 5. 128 Acerca da matéria, o Prof. Luiz Edson Fachin tece as seguintes considerações: O artigo 2° do novo Código Civil brasileiro, para marcar o início do ingresso da pessoa no estatuto do sujeito de direito, adota a posição segundo a qual estabelece uma via de ingresso da pessoa para saber se ela herda, se pode contratar, se pode tornar-se titular de um bem, se pode testar, já que, para converter-se num sujeito de direito, há de receber sobre si o atributo da personalidade. O questionamento sobre a eventual atribuição de personalidade do nascituro, definida como de ‘política legislativa’, de há muito acende o debate no cenário nacional, não mitigado com a distinção entre personalidade e capacidade. Mesmo que a questão do início da personalidade esteja envolta na polêmica de saber se o novo Código adotou, dentre tantas doutrinas a Teoria Natalista ou a Teoria Concepcionista, ou seja, se a personalidade se dá a partir do nascimento com vida, na primeira, ou se a partir da concepção, como a última. A esse respeito, aponta-se, com equívoco, que a tendência do novo Código ainda teria sido a de adotar a Teoria Natalista, ainda que essa discussão se agrave com as demais maneiras de formação e gestação do feto proporcionadas pelas inovações da tecnologia médica. O acerto pode estar em outro caminho, como bem anota a acurada reflexão.185 185 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 32/33. 129 No Código Civil brasileiro, apesar de definir que a personalidade somente se inicia com o nascimento com vida, diversos são os artigos inseridos pelo legislador nos quais se vêem direitos sendo assegurados ao nascituro. O Código outorga ao nascituro direitos como o de receber doação186; de proteção dos seus bens em relação a novo casamento de sua genitora187; de ser considerado nascido na constância do matrimônio, desde que atendidos os requisitos estabelecidos nos incisos do art. 1.597 e no art. 1.598188; ao reconhecimento, se havido fora do casamento paterno ou 186 Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal. Art. 1.779. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro. 187 Art. 1.523. Não devem casar: II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o excônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo. 188 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III– havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597. 130 materno189; a sucessão, desde que nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão, por meio de sucessão natural ou testamentária, sendo nesta permitido, ainda, a sucessão de filhos de terceiros, indicados pelo testador, mesmo que não concebidos na abertura da sucessão.190 Além destes artigos, pode-se ver, na legislação de proteção aos menores, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, vários artigos que demonstram a preocupação do legislador em proteger aquele que está por nascer.191 189 Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes. 190 Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz. § 1°. Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela caberá à pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às pessoas indicadas no art. 1.775. § 2°. Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim nomeado, regem-se pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, no que couber. § 3°. Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. § 4°. Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. 191 Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. 131 E, também, na legislação penal encontram-se regras que confirmam a proteção ao nascituro, determinando sanções àqueles que violam essas normativas.192 Há, ainda, tratados internacionais que tutelam a vida, como a Convenção Americana sobre Direitos do Homem ou Pacto de São José da Costa Rica193, estando o Brasil Art. 8º. É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal. § 1º. A gestante será encaminhada aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema. § 2º. A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a acompanhou na fase pré-natal. § 3º. Incumbe ao poder público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem. Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou sucederlhe ao falecimento, se deixar descendentes. Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: VI – de serviço de assistência social visando à proteção à família, à maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às crianças e adolescentes que dele necessitem. 192 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único – Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. 193 A Convenção Americana sobre Direitos do Homem (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada no Brasil pelo Decreto n° 678/92, dispõe no art. 1.2: "Para los efectos de esta Convención, persona es todo ser humano"193 e no art. 4.1: "Toda persona tiene derecho a que se respete su vida. Este derecho estará protegido por la 132 vinculado a eles e, portanto, vigorando estes como lei no País. Mas, como anteriormente citado, a divergência surge no sentido de se estabelecer se a proteção dada ao nascituro é apenas expectativa de direitos enquanto não se realizar o nascimento com vida, ou direitos que se efetivam com este nascimento. Desde já, elenca-se a segunda teoria como sendo a mais correta, posto que da análise dos textos de lei apresentados, pode-se dizer que ao nascituro foram resguardados direitos (e não expectativas de direitos), os quais se aperfeiçoam, ou seja, se tornam plenamente eficazes, a partir do momento em que a criança nasce com vida. Como aduz a Profª. Silmara Chinelato, o nascimento com vida deve ser entendido como “enunciado negativo de uma condição resolutiva, isto é, o nascimento sem vida, porque a segunda parte do art. 4°. do Código Civil, bem como outros dispositivos, reconhecem direitos (não, expectativas de direitos) e estados ao nascituro, não do nascimento com vida, mas desde a concepção”.194 É esse também o entendimento do Prof. Wanderlei de Paula Barreto, que esclarece: Para que o ser humano adquira personalidade e se torne pessoa, segundo o direito brasileiro, é mister que nasça com vida. (...) ley y, en general, a partir del momento de la concepción. Nadie puede ser privado de la vida arbitrariamente". 194 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. op. cit., p. 308. 133 Como se vê, o Código afastou-se do sistema concepcionista, tendo se definido pelo natalista. Entre os romanos, o nascituro não se considerava ainda pessoa; o foetus fazia parte das vísceras da mãe (partus enim antequam edatur, mulieris portio est vel viscerum). Nas Ordenações Reinícolas (Ord. 3, 18, § 7; 4.82, § 5), a concepção determinava a aquisição da personalidade. A Consolidação das Leis Civis, de Augusto Teixeira de Freitas, no seu art. 1°, reconhecia aos seres formados no ventre materno a condição de pessoas nascidas, assegurando-lhes seus direitos sucessórios no momento do nascimento. Posteriormente, no seu monumental ‘Esboço’, Teixeira de Freitas prossegue considerando os nascituros como pessoas, mais precisamente ‘pessoas por nascer’. Enunciava o seu art. 53: ‘as que, não sendo ainda nascidas, acham-se, porém, já concebidas no ventre materno’, e no art. 221 consignava que ‘desde a concepção no ventre materno começa a existência visível das pessoas e antes de seu nascimento elas podem adquirir alguns direitos, como se já estivessem nascidas’, que serviu de modelo para Vélez Sársfield na conformação dos arts. 63 e 70 do Código Civil da República Argentina. Sobre o caráter resolutivo com que são adquiridos os direitos pelo concepturus, nos termos do art. 222 do ‘Esboço’, o seu art. 226, in fine, é conclusivo: ‘resolvendo-se por este fato (nascimento sem vida) os direitos que tiverem adquirido’. Da contundência do enunciado decorrem duas conclusões: 134 1) os direitos são integrados ao patrimônio, à titularidade do nascituro; 2) são direitos e não meras expectativas que são adquiridos. Santos Cifuentes, familiarizado com a idéia de nascituro como sujeito titular de direitos sob condição resolutiva, distingue: ‘no es la persona la que queda aniquilada desde sus inícios, sino el acto jurídico que estaba subordinado al acontecimiento futuro e incierto del nacimiento con vida’, porque ‘frente a un feto abortivo no cabe sino pensar que hubo vida en algún momento y con alguna trayectoria’. Logo, não é a personalidade que o nascituro adquire sob condição suspensiva de nascer com vida, senão os direitos, sujeitos à condição resolutiva de nascer sem vida. (...) A tendência moderna, pelo menos na doutrina, é a de se estremar a personalidade da capacidade, estendendo a primeira ao nascituro e até mesmo ao morto, restringindo a segunda às pessoas nascidas com vidas.195 Segundo o posicionamento asseverado, de acordo com o art. 2°. do Código Civil vigente (art. 4°. do antigo Código, de 1916) os direitos do nascituro já estão plenamente resguardados pela lei desde o momento de sua concepção, ou seja, desde o momento em que o óvulo é 195 BARRETO, Wanderlei de Paula. op. cit., p. 45-48. 135 fecundado pelo espermatozóide, os quais se aperfeiçoam com o nascimento porque, mesmo sendo existentes, nem todos (diz-se nem todos, porque alguns direitos são utilizados desde a concepção, como o direito a alimentos, à maternidade e ao pré-natal seguro e em boas condições, exemplos estes de direitos que são assegurados àquele que está por nascer, que são plenamente exercitados desde a concepção, a fim de assegurar a vida e a saúde daquele que está em desenvolvimento), serão plenamente úteis antes do nascimento com vida. Mas, mesmo assim, eles não deixam de existir como direitos, posto que se encontram descritos na letra da lei dependendo o destinatário dela apenas de resolver a situação pendente, no caso, o nascimento, para que exerça, com absoluta eficácia, alguns desses direitos. Pode-se exemplificar tal situação: Todos os trabalhadores têm seu direito a aposentadoria resguardado constitucionalmente pelo art. 7°., inciso XXI, o qual assegura a trabalhadores urbanos e rurais e àqueles que visem à melhoria de sua condição social o direito de se aposentar. Esse direito lhes é resguardado pelo texto da Carta Magna, sendo um direito fundamental a todo aquele que exerce seu trabalho ou se encaixa no texto de lei. Ocorre que esse direito, apesar de descrito na lei, não é exercido por nenhum daqueles que o detém até que se cumpram as condições a ele determinadas (não no art. 7°.), mas por leis, decretos e resoluções inferiores ao texto constitucional, os quais regulamentam essa determinação. Não se pode dizer, aqui, como tampouco na questão do nascituro, que há apenas uma expectativa acerca de um direito, mas sim, há um direito concreto, o qual tem a sua plenitude de exercício quando se preencherem os requisitos para tal situação. Resolvidas, então, as condições para o exercício pleno do 136 direito em questão, pode o detentor dele buscar que se cumpra o determinado em lei. Vê-se, portanto, que apesar de o legislador civil pátrio ter adotado a teoria natalista (do nascimento com vida), mantendo aquilo que o legislador de 1916 já entendia por correto, dispôs acerca da proteção a partir do momento da concepção, criando diversas diretrizes que indicam essa proteção. E, como fora aclarado, entende-se que essa proteção é um direito do nascituro que se aperfeiçoa com o seu nascimento, e, por isso, é lícito dizer-se que esse nascituro pode ser considerado uma pessoa desde o momento de sua concepção, a qual ainda não tem condições de exercer com plenitude todos os direitos que lhe são assegurados. Mas, tal questão, como se pôde ver, não é pacífica e, a cada dia, fica mais difícil discuti-la, tendo em vista as tecnologias atuais de fertilização in vitro, entre outras. 3.2 – As novas técnicas de reprodução humana e a pessoa natural Há muito tempo, o ser humano encontra-se envolvido com a idéia de reprodução, tendo-se iniciado, no passado, esse tipo de pesquisa com animais e plantas. Em séculos anteriores, já foram realizadas experiências acerca da reprodução por meio da técnica de inseminação artificial 137 desde com salmões até com cães.196 Contudo, relata-se, que já no final do século XIX, pesquisas foram iniciadas a fim de se estudar o desenvolvimento embrionário que desmistificaram o papel do espermatozóide como “responsável pela geração da vida”197, iniciando-se, assim, novas perspectivas no tocante à reprodução humana.198 196 PUSSI, William Artur. op. cit., p. 342 demonstra de forma sucinta como ocorreu a evolução da inseminação, dizendo que: “Alguns historiadores relatam que, na Espanha do século XV, Henrique IV e D. Joana de Portugal haviam tentado a concepção de um herdeiro por meios artificiais. Já no século XVII foram testadas técnicas de inseminação artificial em salmões, pássaros e ovos de bicho-da-seda, através de Marcelo Malpighi, médico do Papa Inocêncio XII. Em 1784, o cientista italiano Spallanzani, após ensaios de fecundação artificial com óvulos de rãs, prosseguiu suas pesquisas com a fertilização de uma cadela que já tivera ninhadas de filhotes. Conforme relato de experimento, o cientista teria trancado o animal em um quarto isolado, dando-lhe comida e, ao perceber que a cadela havia entrado no cio, retira o líquido seminal de um cachorro da mesma raça e injetou na vagina e útero da fêmea. Ainda, relata-se que sessenta e dois dias mais tarde a cadela deu à luz a três filhotes”. 197 PUSSI, William Artur. op. cit., p. 342. 198 PUSSI, William Artur. op. cit., p. 342/343, relata que “(...) em 1799, John Hunter teria obtido êxito com tal técnica em seres humanos, sendo que o primeiro caso de inseminação homóloga ocorreu em França no ano de 1833 e no ano seguinte, nos Estados Unidos, teria ocorrido o primeiro caso de inseminação Heteróloga. Já em 1910, foi descoberto pelo russo Ivanov a técnica de conservação do líquido seminal por resfriamento, sendo inicialmente generalizado o seu uso na pecuária, com a criação dos bancos de sêmen. Em meados do séc. XX, foi descoberto o processo de meiose celular, que originava as células reprodutoras, e, através da união do espermatozóide com o óvulo, fazia surgir um pequeno ser, possuidor de metade do material genético da mãe e metade do pai. Apenas na década de 50, graças aos trabalhos de dois grandes geneticistas, de nomes Watson e Crick, foi possível desvendar a estrutura do DNA, o material genético primordial de todo ser humano. Este, pode-se afirmar, foi o marco divisor, visto que a partir deste momento os avanços na área da genética foram espantosos e em curto espaço de tempo foi possível o desenvolvimento de técnicas de manipulação do material genético e de fertilização humana em laboratório, sendo que, no final da década de 1970 o mundo assistiu estupefato o que nunca se acreditou ser possível realizar: o nascimento dos bebês de proveta”. 138 Mas, a Reprodução Humana Assistida deu seu grande passo com o nascimento de Louise Joy Brown, em 25 de julho de 1978, filha de Lesley e John Brown, no Hospital Distrital Geral de Oldham, na cidade de Oldham, Inglaterra. Este bebê foi o “primeiro ser humano concebido fora do útero da mãe”199, em uma proveta, após a retirada de um único óvulo de Lesley, o qual fora mecanicamente fertilizado com o esperma de seu pai, John, em um pratinho de plástico por Patrick Steptoe, sendo, posteriormente, observado por Robert Edwards todo o processo de fertilização, microscopicamente, até que o óvulo se dividisse três vezes, momento em que foi introduzido no útero da mãe para ter seu desenvolvimento. Esse processo, criado pelos cientistas acima citados, é fruto de uma pesquisa de dez anos de ambos, iniciada por Robert Edwards mediante estudos desenvolvidos em embriões de ratos (já que o pesquisador era graduado na área de genética animal da Universidade de Edimburgo) e, posteriormente, também alcançada pelo ginecologista Patrick Steptoe em 1968, sendo “desenvolvida originalmente com o objetivo de curar um tipo de esterilidade”200, e, assim, permitir as pessoas com dificuldades de reprodução, a oportunidade de ter filhos. Ressalta-se que, a partir do momento desse nascimento, o método de reprodução assistida cresceu grandemente, sendo registrados em 1985, nos EUA, 337 (trezentos e trinta e sete) nascimentos; em 1990, esse número cresceu para 2.345 (dois mil, trezentos e quarenta e cinco) e, em 1993, para 6.870 (seis mil, oitocentos e setenta), somente nos Estados Unidos, tendo, ainda, esta técnica sido usada, em larga escala, em diversos outros 199 200 SILVER, Lee M. op. cit., p. 79. Ibid, p. 79. 139 países (ex.: Inglaterra, onde foi criada, Austrália, França, Bélgica e Holanda).201 Mas, em que consiste essa reprodução? De forma sucinta, pode-se dizer que a reprodução humana assistida, que também é conhecida como FIV ou Fivete, conforme acima fora relatado, é o meio pelo qual se dá a “criação” de um novo ser humano, ao se retirar um óvulo da mulher, a qual tem a intenção de ter um filho, para fecundá-lo na proveta com sêmen de seu marido, companheiro ou outro homem, para depois introduzir o embrião em seu útero (ou de outra, no caso das “barrigas de aluguel”), quando se dará o crescimento do novo ser. Chama-se, também, o processo de ectôgenese ou fertilização in vitro202 pelo método ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer). Mas, esse não é o único meio de reprodução humana assistida, tendo sido desenvolvidos também outros métodos como, por exemplo, o ZUT (zygote uterine transfer) ou transferência uterina de zigoto, o qual se dá, inicialmente por meio dos mesmos métodos da FIV; faz-se uma transferência do zigoto formado diretamente para o útero, após 24 horas contados do início da fecundação, o que não 201 Ibid, p. 80. SILVA, Reinaldo Pereira. op. cit., p. 83 assevera que “a fertilização in vitro consiste em técnica de procriação assistida mediante a qual se reúnem, extracorporeamente, numa placa de petri ou num tubo de ensaio, o material genético feminino, propiciando a fecundação e a formação do ovo, cuja introdução no útero da mulher dar-se-á após iniciada a divisão celular. Diz-se que o motivo mais freqüente da procura desta técnica não é a esterilidade feminina primária, causada pelo bloqueio da trompa de Falópio, obstrução que impede a passagem do óvulo pelo tubo onde pode ser fertilizado antes de descer no útero, mas a esterilidade feminina secundária, ou seja, a que se segue à cirurgia de laqueadura. As hipóteses de esterilidade masculina que podem se beneficiar desta técnica são muito reduzidas (15%). Aqui também é admissível a distinção entre fertilização heteróloga e homóloga”. 202 140 traz resultados satisfatórios já que coloca o zigoto diretamente no útero, quando ele ainda deveria estar nas trompas de falópio. O GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer) é o método pelo qual se faz a reprodução assistida tanto pela inoculação do sêmen do homem na mulher203, sendo tal procedimento realizado sem qualquer manipulação externa de óvulo ou embrião, como pela aspiração do ovócito e sua transferência para as trompas em conjunto com os espermatozóides. Esta, foi desenvolvida pelo argentino Roberto Asch, em 1984, e se dá com a transferência dos gametas feminino e masculino para as trompas de falópio pela laparoscopia, o que torna a reprodução mais próxima do natural possível, já que ocorre a fecundação in vivo. A técnica relatada só pode ser utilizada por mulheres que não têm problemas nas trompas de falópio. A TIALS consiste na transferência intra-abdominal mediante a punção vaginal, no fundo do Saco de Douglas do líquido folicular pré-ovulatório e do esperma colhido, Ibid, p. 82 discorre sobre a inseminação artificial, afirmando que esta “consiste em técnica de procriação assistida mediante a qual se deposita o material genético masculino diretamente na cavidade uterina da mulher, não através de um ato sexual normal, mas de artificial. Trata-se de técnica indicada ao casal fértil com dificuldade de fecundar naturalmente, quer em razão de deficiências físicas (impotentia coeundi, ou seja, incapacidade de depositar o sêmen, por meio do ato sexual, no interior da vagina da mulher; má-formação congênita do aparelho genital externo, masculino ou feminino; ou diminuição do volume de espermatozóides [oligoespermia], ou de sua mobilidade [astenospermia], dentre outras), quer por força de perturbações psíquicas (infertilidade de origem psicogênica). Nesta hipótese, em que a solução da infertilidade é buscada pelo próprio casal, sem a intervenção de terceiro, diz-se que a inseminação artificial é homóloga. Caso seja infértil o marido ou o companheiro, não se recorrendo ao seu material genético, fala-se de inseminação artificial heteróloga”. 203 141 fazendo com que a fecundação ocorra in vivo e o método seja o mais natural possível. O GIAT se dá com a transferência intra-abdominal de gametas masculino e feminino no fundo do Saco de Douglas e na cavidade peritonial. “POST é a técnica utilizada para recuperação de óvulos que são transferidos logo, juntamente com o sêmen ao peritônio”. 204 A inseminação direta intrafolicular ou DIFI consiste na inserção de espermatozóides, previamente escolhidos, dentro dos folículos ovarianos, antes da maturação dos óvulos, ocorrendo este ato quando o óvulo encontra-se ainda dentro do ovário, ou seja, antes do que ocorreria se fosse uma fecundação natural, a qual ocorre quando o óvulo se encontra com os espermatozóides no início das tubas uterinas ou trompas. É muito utilizada quando há baixo número de espermatozóides e de pouca qualidade, sendo rápida sua aplicação e sem necessidade de anestesia. “S.U.Z.I. (ou Subzonal insemination), consiste em ‘inocular’, por intermédio de uma micropipeta, uma quantidade determinada de espermatozóides selecionados, debaixo da zona pelúcida, no denominado espaço perivitelino”. 205 A PZD é uma técnica em que ocorre a micromanipulação do óvulo, já que se perfura a zona pelúcida para facilitar o acesso do espermatozóide nela e, 204 MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2003. p. 49. 205 Ibid, p. 49. 142 assim, chegar ao ovócito; mas, é de risco, no sentido de poder haver uma fertilização anormal, já que possibilita a inserção de mais de um espermatozóide, o que acaba por inviabilizar a fecundação. O ICSI ou técnica de inseminação intracitoplasmática consiste na injeção do espermatozóide dentro do citoplasma do óvulo, por meio do uso de uma agulha e é uma das mais avançadas técnicas de reprodução humana assistida206, sendo usada, principalmente, naqueles casos em que os homens têm um número muito reduzido de espermatozóides, os quais, antes, eram considerados estéreis, e, hoje, podem se reproduzir. Quanto à reprodução por fertilização in vitro (FIV) ou ectogênese, em cuja pesquisa tem-se maior interesse, relata a professora Maria Helena Diniz que, nesta, podem surgir as seguintes situações: a) fecundação de um óvulo da esposa ou companheira com esperma do marido ou convivente, transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher; b) fecundação in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra; Ibid, p. 48, ressalta, quanto a esta técnica que: “A manipulação de gametas, a fim de injetar espermatozóides selecionados do homem no interior dos óvulos, já se tornou operação de rotina nas clínicas de reprodução humana, em que se utiliza a ICSI. Destaca-se dessa forma, a nova finalidade eugênica que vai adquirindo passo a passo a fecundação in vitro. Essa técnica, inicialmente apresentada como solução para os casais inférteis, parece estar desviando seus objetivos, diante de certos procedimentos como na manipulação de gametas”. 206 143 c) fecundação, com sêmen do marido ou companheiro, de um óvulo não pertencente à sua mulher, mas implantado no seu útero; d) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela; e) fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente); f) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantando em útero de outra mulher; g) fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou no de outra.207 Ao analisar, rapidamente, cada situação suscitada pela autora, vê-se que diversas são as implicações que dessa forma de reprodução podem surgir, como por exemplo: Na alínea a) tem-se a seguinte situação: há a fertilização homóloga, ou seja, quando esta ocorre por meio da fertilização de um óvulo da esposa ou companheira com esperma de seu marido ou companheiro, transferindo o 207 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 476. 144 embrião para o útero de outra mulher, tem-se a famosa “barriga de aluguel”, “mães substitutas ou subrrogadas”208; pode ocorrer tanto o fato de a gravidez ocorrer, normalmente, e, no seu término, a pessoa contratada para gestar o bebê entregá-lo àqueles que são os pais biológicos, como, a pessoa contratada para gerar o bebê, se apegar a ele afetivamente e não querer entregá-lo aos pais biológicos (que doaram o material genético), havendo, assim, o disputa judicial em torno do conflito gerado, sendo que se tem visto como uma certa propensão, em diversos países, em se dar a paternidade àqueles que doaram o material biológico e desejaram aquela paternidade 209 208 FERRAZ, Sérgio. op. cit, p. 55. FERRAZ, Sérgio. op. cit, p. 57/58, relata que: “Há, na crônica da maternidade subrogada, nos Estados Unidos, o registro, já infelizmente, de uma tragédia de inspiração emocional. Beverly Seymour, 45 anos, foi condenada, em princípio de dezembro de 1990, por um juiz de Ohio, a onze anos de prisão, pela morte de seu marido Richard Reams, de 47 anos, o qual, após uma luta judicial de quatro anos, ganhara a custódia da filha do casal, Tessa, no dia 27.8.90. O assassinato ocorreu poucas horas após a vitória do ex-marido. O casal, anos antes, soubera que não poderia gerar filhos. Celebrara, então, um contrato de maternidade subrogada, pelo qual pagara dez mil dólares para que Norma Lee Stotski carregasse em seu útero uma criança gerada por inseminação artificial, em óvulo seu, com esperma do Sr. Reams. O contrato foi celebrado a prazo, prazo esse decorrido sem que se registrasse o estado de gravidez. Pouco depois, entretanto, Norma Lee procurou a Sra. Seymour e lhe revelou que estava, realmente, grávida, oferecendo-lhe o bebê a nascer. Ao completar um dia de nascida, em janeiro de 1995, a criança foi entregue ao casal Beverly-Richard. Na certidão de nascimento, o nome do pai, inicialmente registrado como sendo o marido de Norma, foi trocado, passando a figurar Richard Reams como tal. No ano seguinte, Richard e Beverly se divorciaram, iniciando uma luta pela guarda da filha. Testes periciais provisórios, no curso da demanda, sugeriram que Tessa não seria filha seja de Richard, seja do marido de Norma Lee, mas de um terceiro homem então não identificado. Nessa altura, a própria Norma pediu a custódia de Tessa, mas desistiu do pleito antes de uma decisão. O litígio entre Beverly e Richard prosseguiu por mais um ano, durante o qual Tessa ficou morando com Beverly, assegurado a Richard o direito de visita. Finalmente, em 27-8-90, decisão judicial assegurou a Richard custódia permanente, com base na dúvida razoável, sob o fundamento de que indubitavelmente Beverly não era a mãe natural da criança, pendendo ainda 209 145 Na alínea b) vê-se o presente caso: há a fertilização in vitro heteróloga, ou seja, com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra, pode suscitar controvérsias como por exemplo se os pais doadores do material genético buscarem quais seriam seus direitos com relação àquele nascimento (o que não é muito discutido pela doutrina, entendendo-se, em razão disso, que não deve ser corriqueiro; mas, há, nestes casos, uma certa tendência em não reconhecer quaisquer direitos aos doadores do material210, principalmente em se tratando de clínicas de doação de material biológico); o caso de a mulher do casal estéril gestar, normalmente, a criança, o que, em tese, não geraria conflitos211; ou, no caso de outra ser contratada para a gestação, aplicar-se-iam os casos suscitados no exemplo decorrente do caso a). Da terceira e quarta questão relatada pela autora, ou seja, letras c) e d), denota a seguinte situação: no caso de ocorrer fecundação heteróloga, com sêmen do marido212 ou dúvida sobre se Richard era seu pai natural. Ao ir a casa de Beverly, para tomar a criança em definitivo, Richard foi mortalmente Baleado por Beverly. As entidades que lutam nos Estados Unidos contra a admissão da maternidade subrogada, viram no fato poderoso argumento a seu favor, salientando tratar-se de situação geradora de graves incertezas e angústias emocionais, capaz da geração de reações extremas por parte de qualquer dos personagens nela envolvidos”. 210 FERRAZ, Sérgio. op. cit, p. 60, discorre que “segundo a Lei australiana de concepção artificial (n° 74, de 12.4.85), o filho nascido por FIV será do casal que consentiu no procedimento”. 211 Fala-se, em tese, porque há casos de ações judiciais em que se discute sobre a paternidade da criança em face de um divórcio, querendo ambos sua guarda, o que fica mais difícil estabelecer quando levada em conta a origem biológica. Em sendo esta retirada de questão, no caso citado, pode-se utilizar as regras básicas de guarda estabelecidas na lei. (Nota do autor) 212 FERRAZ, Sérgio. op. cit, p. 60, relata-se acerca da paternidade no caso de inseminação heteróloga, a qual ocorrerá para o pai somente se este tiver consentido, 146 companheiro, de um óvulo não pertencente à sua mulher, mas implantado no seu útero, e, também, do caso em que há fertilização, igualmente heteróloga, com esperma de terceiro ou com um óvulo não pertencente à esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela, pode-se concluir que ambos podem suscitar alguma controvérsia, se o doador ou a doadora do material biológico quiser ter certos direitos sobre o bebê nascido do sêmen ou óvulo, tendo-se as conseqüências citadas acima na questão b), quando tratou da doação de material biológico. Quanto à quinta situação, de letra e), vê-se que: esta se caracteriza pela fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente), pode-se ver gerado um conflito, aqui, somente se, quando fecundados vários óvulos para ocorrer essa fertilização (o que, normalmente, ocorre), estes se tornarem excedentes, em razão de ocorrer uma gravidez logo na primeira tentativa e os pais não decidirem o que fazer com o restante dos embriões que permanecerem congelados, podendo, ainda, aumentar essa divergência, se expressamente, sendo alguns casos citados, dos quais chamam a atenção por sua diversidade as seguintes situações: “O Tribunal Superior de Paris, a 19.2.85, em caso de inseminação heteróloga, deu ganho de causa ao marido, em ação negatória de paternidade, por ter a fecundação ocorrido quando ele estava no exterior. A Corte decidiu nem investigar se o marido teria, ou não, consentido na inseminação (caso R. vs. Dame F.; Recueil Dalloz Sirey, n° 19, pág. 223, 15.5.86)”. “Em decisão por certo desconcertante, uma Corte de Família de Nova York, a 16.1.85, teve de enfrentar o caso K. T. vs. M.T.: tratava-se de duas mulheres, que viviam conjugalmente. A certo momento, firmaram acordo, pelo qual a segunda litigante se comprometia a receber como seus os filhos que a primeira tivesse, por inseminação artificial. Quando o fato previsto ocorreu, M. T. negou-se ao reconhecimento. A Corte afirmou a prevalência da obrigação, sob o fundamento de que, sem ela, a procriação não teria ocorrido”. 147 houver divergência do casal quanto ao direito sobre os embriões. Mas, os casos suscitados serão, posteriormente, tratados, já que de relevante interesse a matéria. Em relação à letra f), tem-se o seguinte caso: ao se realizar a fertilização com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantado em útero de outra mulher, podem ocorrer, aqui, os conflitos anteriormente relatados nas questões a) (barriga de aluguel) ou d) (no sentido de o doador do sêmen pretender direitos sobre a criança gerada). E, quanto à última questão analisada pela autora, de letra g), tem-se várias situações: na primeira parte do texto, ou seja, fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, podem surgir problemas tanto com relação à “barriga de aluguel” como quanto à questão da herança, situação que não será discutida. Com relação à segunda parte, que descreve a situação da fecundação in vitro homóloga para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou no de outra, tem-se que, no artigo 1.597, inciso III, do Código Civil vigente, considera-se filho concebido na constância do casamento aquele que for havido por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, sendo, portanto, previsto na legislação brasileira o caso de implantação, na mulher, de embrião do de cujus, que deixou embrião pré-concebido antes de sua morte. Mas, não há previsão de lei para o caso da implantação em outra mulher, o que deverá ser resolvido nos tribunais, podendose, ter aqui, as situações já suscitadas quanto à “barriga de aluguel”. 148 Vale acrescentar que, com relação às “barrigas de aluguel”, o professor Sérgio Ferraz aduz que será mãe “aquela que gerou o óvulo fecundado pelo sêmen”213; será pai, quando houver fertilização homóloga (doador é o marido ou companheiro) o doador e, na heteróloga (material biológico de terceiro), será o mesmo marido ou companheiro “desde que, expressamente, tenha ou anteriormente concordado com a inseminação, ou posteriormente aceito sua realização” 214, devendo haver, em face das novas formas de reprodução uma adaptação da máxima mater semper certa est que determinava como certa a maternidade daquela que dava à luz, o que hoje não é mais a única realidade. Citadas tais situações elencadas como fonte de possíveis problemas a surgirem para o Direito no campo das fertilizações, discute-se, aqui, a questão desses embriões formados e a sua situação a partir de uma perspectiva éticojurídica com enfoque na pessoa humana, entendendo-se, desde já, que esses embriões, sendo ou não colocados no útero, por derivarem de gametas humanos, formarão, necessariamente, novas vidas humanas e, por isso, devem ser tratados com o respeito e a dignidade devidos a todos esses seres. Como anteriormente registrado, tem-se o início da personalidade, para o direito pátrio, a partir do nascimento com vida; todavia, protege-se o nascituro desde o momento de sua concepção, do que se pode deduzir que, apesar de estar descrita na lei civil uma proteção à personalidade, de acordo com a teoria natalista, houve uma real intenção do 213 214 FERRAZ, Sérgio. op. cit, p. 60. Ibid, p. 60. 149 legislador em se estender essa proteção ao momento da concepção, porque é esse o momento que aquele entende como inicial para o ciclo da vida. Mas, e quanto aos embriões excedentários, os quais se encontram congelados em clínicas de reprodução humana assistida, qual o seu destino? Reconhecendo-se, como anteriormente demonstrado, tratar-se de verdadeiras novas vidas humanas, que tratamento devem elas receber por parte do Direito? Podem ser tutelados da mesma forma os embriões congelados e os que se encontram já implantados? Para melhor entendimento, buscar-se-á dar resposta às questões suscitadas, nos itens seguintes. 3.3 – Os embriões excedentários resultantes das técnicas de reprodução assistida: o início da busca por uma tutela da vida Diante do atual estado de desenvolvimento tecnológico, na biomedicina, muitos cientistas têm visto os embriões excedentários apenas como rico material para a pesquisa científica, por meio do qual se busca a cura de diversas doenças dos seres humanos já formados, bem como, também, outras possibilidades de manipulação genética, que têm nessas pesquisas um alvo, a meta a ser conseguida, a qualquer custo. Há, assim, uma coisificação da raça humana, já que se têm depreciado esses novos seres humanos a simples material biológico, a um amontoado de células, no qual é 150 possível qualquer tipo de manipulação, mesmo que esta implique sua destruição, ou seja, sua morte. Em relação às possibilidades que a reprodução humana assistida trouxe com as novas tecnologias, ressaltase que: Essa nova técnica para criação de ser humano em laboratório, mediante a manipulação dos componentes genéticos da fecundação, com o escopo de satisfazer o direito à descendência, o desejo de procriar de determinados casais estéreis e a vontade de fazer nascer homens no momento em que se quiser e com os caracteres que se pretender, tendo em vista a perpetuação da espécie humana, entusiasmou a embriologia e a engenharia genética, constituindo um grande desafio para o direito e para a ciência jurídica pelos graves problemas ético-jurídicos que gera, trazendo em seu bojo a coisificação do ser humano, sendo imprescindível não só impor limitações legais às clínicas médicas que se ocupam da reprodução humana assistida, mas também estabelecer normas sobre responsabilidade civil por dano moral e patrimonial que venha causar. (...) Tema delicadíssimo e de grande atualidade, pelas implicações valorativas e éticas que engendra, pois as novas técnicas conceptivas, de um lado, ‘solucionam’a esterilidade do casal, que terá seu filho, com interferência de ambos, de um só deles ou de nenhum deles, mas, por outro lado, acarretam graves problemas jurídicos, éticos, sociais, religiosos, psicológicos, médicos e bioéticos. Por 151 isso, urge regulamentar a fecundação humana assistida, minuciosamente, restringindo-a na medida do possível porque gerar um filho não é uma questão de laboratório, mas obra do amor humano.215 Contudo, antes de se adentrar a discussão acerca dos embriões excendentários existentes nas clínicas de reprodução assistida, cabe tecer algumas considerações acerca do embrião em si. 3.3.1 − O que vem a ser o embrião. Sua formação inicial Embrião, do grego embryon, vem a ser o “ser humano durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento. O período embrionário vai até o fim da oitava semana, quanto já tiveram início todas as principais estruturas. Somente o coração e a circulação estão funcionando”. 216 Seu desenvolvimento começa com a fertilização, que é o “processo durante o qual um gameta masculino, ou espermatozóide217, se une com um gameta feminino, ou 215 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 478. MOORE, Keith L. PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. 6° ed., tradução de Ithamar Vugman e Mira de Casrilevitz Engelhardt. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S. A., 2000. p. 3. 217 Ibid, p. 2, ensina que o termo espermatozóide é originário do grego spermatos que significa semente conjuntamente com zoon de animal, e “refere-se à célula germinativa masculina produzida no testes (testículos). Os espermatozóides são expelidos através da uretra masculina durante a ejaculação”. É uma célula sexual altamente especializada que contém metade do número de cromossomas (número haplóide) em relação às células somáticas que se encontram no corpo, sendo esse 216 152 ovócito218, para formar uma única célula denominada zigoto219. Esta célula, altamente especializada, totipotente, marca o início de cada um de nós como um indivíduo único”220, já que ela contém “toda a informação genética necessária para dirigir o desenvolvimento de um novo ser humano”.221 O local onde ocorre normalmente (e, diga-se, naturalmente), a fertilização é a ampola da tuba uterina222, podendo, contudo, ocorrer em outras partes da tuba, mas não no útero. Ela se inicia com a perfuração na parede do acrossoma (corona radiata) do ovócito pelo espermatozóide por meio da ação da enzima hialuronidase (existente no acrossoma do espermatozóide), de enzimas da mucosa da tuba uterina e da movimentação de sua cauda, o qual vai número reduzido durante a meiose (divisão celular que ocorre durante a gametogênese ou formação dos gametas). Este processo, onde há a maturação dos gametas chama-se espermatogênese. 218 Ibid, p. 2, a palavra ovócito deriva do latim ovum, ou ovo, e “refere-se à célula germinativa, ou sexual, feminina produzida no ovário. Quando maduro, o ovócito é denominado ovócito secundário”. O mesmo que fora especificado para o espermatozóide quanto às fases, cabe, aqui, chamando-se o processo de maturação dos gametas femininos de ovogênese. Acrescenta-se que “as histórias da formação dos gametas masculino e feminino são diferentes, mas a seqüência é a mesma” (Ibid, p. 16), sendo que a diferença entre os dois sexos encontra-se no momento em que ocorrem os eventos durante a meiose. 219 Ibid, p. 2, zigoto vem do grego zyg ō tos, que significa unido e é uma célula que “resulta da união de um ovócito com um espermatozóide. Um zigoto é o começo de um novo ser humano (i.e., um embrião). A expressão ovo fertilizado refere-se a um ovócito secundário penetrado por um espermatozóide; ao fim da fertilização, o ovócito torna-se um zigoto”. 220 Ibid, p. 16. 221 Ibid, p. 13. 222 Ibid, p. 22, as tubas uterinas são partes do aparelho reprodutor feminino que tem de 10 a 12 cm de comprimento e se estendem lateralmente dos cornos (do latim cornua) do útero, sendo elas as transportadoras dos ovócitos, que vêm dos ovários, e dos espermatozóides, os quais vêm do útero, até sua ampola onde ocorrerá, normalmente, a fertilização. Essas tubas também transportarão o zigoto em divisão celular até a cavidade uterina. 153 “digerindo um caminho através da zona pelúcida pela ação de enzimas liberadas pelo acrossoma”223, até ocorrer a fusão das membranas plasmáticas do espermatozóide com a do ovócito para a penetração daquele no citoplasma deste. Com a entrada do espermatozóide no ovócito, este, “que estava parado na metáfase da segunda divisão meiótica, termina esta divisão e forma um ovócito maduro e um segundo corpo polar”224 (o qual, juntamente com o primeiro, irá se degenerar com o início da clivagem), havendo, posteriormente, a descondensação dos cromossomas maternos e a formando do pronúcleo feminino do ovócito (que deriva do núcleo do ovócito maduro). O espermatozóide, que se encontra dentro do citoplasma do ovócito, tem seu núcleo aumentado de tamanho e forma o pronúcleo masculino, havendo, após isto, a degeneração da cauda do espermatozóide. Relata-se que, “morfologicamente, não é possível distinguir os pronúcleos masculino e feminino”225, os quais, durante o seu crescimento, replicam seu DNA-1 n (haplóide), 2 c (duas cromátides). As membranas dos pronúcleos dissolvem-se no processo, havendo, então, a fusão dos cromossomas e a formação do zigoto que, agora, conta com 46 cromossomas 223 Ibid, p. 32. A penetração da zona pelúcida se faz por meio da ação das enzimas esterases, acrosina e neuraminidase liberadas pelo acrossoma, com as quais o espermatozóide causa a lise na zona pelúcida (ou caminho) levando ao ovócito. Quando um espermatozóide alcança essa fase, ou seja, a zona pelúcida, esta reage mudando suas propriedades a fim de torná-la impermeável a outros espermatozóides, acreditando os pesquisadores da área, que esta reação “resulte da ação de enzimas lisossômicas liberadas pelos grânulos da cortical perto da membrana plasmática do ovócito” (Ibid, p. 34), o qual também se torna impermeável a outros espermatozóides, em razão do conteúdo dos grânulos liberados no espaço perivitelínico (camada interior à zona pelúcida e que circula o citoplasma do ovócito). 224 Ibid, p. 32. 225 Ibid, p. 32. 154 (diplóide), ou seja, 23 do espermatozóide e 23 do ovócito. Este zigoto, “é geneticamente único, porque metade dos seus cromossomas vem da mãe e metade do pai. O zigoto contém uma nova combinação de cromossomas, que é diferente das células de ambos os progenitores. Este mecanismo forma a base da herança dos dois progenitores e da variação da espécie humana”.226 Com a formação do zigoto, tem fim o estágio 1 do desenvolvimento humano, já que este vai da fertilização na tuba uterina até a formação do zigoto.227 A fertilização, então: - estimula o ovócito secundário a completar a segunda divisão meiótica; - restaura o número diplóide normal de cromossomas (46) do zigoto; - promove a variação da espécie humana através do embaralhamento dos cromossomas maternos e paternos; - determina o sexo cromossômico do embrião; um espermatozóide contendo X produz um embrião feminino e um espermatozóide contendo Y produz um embrião masculino; - causa a ativação metabólica do ovócito e dá início à clivagem (divisão celular do zigoto).228 226 Ibid, p. 32. Ibid, p. 41. 228 Ibid, p. 41. 227 155 O zigoto formado passa, então, a se dividir, e esse processo chama-se clivagem (ou segmentação), a qual ocorre cerca de 30 horas após a fertilização. Esta consiste em uma “série de divisões mitóticas das células do zigoto, que resultam na formação das primeiras células embrionárias, os blastômeros. No início, o tamanho do embrião permanece constante, porque, a cada divisão de clivagem, os blastômeros se tornam menores”. 229 Essa clivagem ocorre ao longo da tuba uterina e inicia-se com a divisão do zigoto em duas células, que se dividem em mais duas, formando quatro células, posteriormente em oito e, assim, sucessivamente, até que, havendo a formação de doze ou mais blastômeros, há sua junção (compactação) que forma a mórula. Esta, com seu nome derivado do latim morus (amora), tem a forma de uma “bola compacta de células”230, formando-se “3 a 4 dias após a fertilização, no momento em que o ser humano em desenvolvimento penetra no útero”. 231 Ela termina com a formação do blastocisto, evento este que ocorre no útero. Há, aqui, a finalização do estágio 2 do desenvolvimento humano, e este ocorre nos dias 2 a 3 após a fertilização, iniciando-se com a clivagem até que esta forme a mórula.232 O blastocisto, derivado do grego blastos (germe) combinado com a palavra kystis (bexiga), se forma quando a mórula, ao penetrar no útero, produz dentro de si uma cavidade cheia de fluído (cavidade blastocística), sendo ele todo rodeado por uma zona pelúcida que entra em degeneração, o que, ocorrendo, fará com que o blastocisto 229 Ibid, p. 2. Ibid, p. 2. 231 Ibid, p. 2. 232 Ibid, p. 41. 230 156 passe a crescer consideravelmente, tendo em vista que até esta fase, apesar do aumento do número de blastômeros, não houve aumento do tamanho do embrião em desenvolvimento, já que “cada uma das células-filha é menor que as células que lhe deram origem”.233 No blastocisto, “a massa celular interna, ou embrioblasto, dá origem aos tecidos e órgãos do embrião” 234, enquanto a camada celular externa, ou trofoblasto, dá origem à parte embrionária da placenta. Dá-se, então, o estágio 3 do desenvolvimento humano, que consiste no blastocisto livre e ocorre nos dias 4 a 5 após a fertilização.235 Esse período é conhecido como pré-implantação. Esse blastocisto, cerca de 6 dias após a fertilização, fixar-se-á no epitélio do endométrio, ou seja, na membrana mucosa que reveste o útero, mais precisamente em sua parede posterior (local usual da implantação), e, após esta, começa a proliferação do trofoblasto, o qual diferencia-se em duas camadas, sendo a interna chamada de citotrofoblasto e, em uma massa externa conhecida como sinciciotrofoblasto (7°. dia). “No fim da primeira semana, o blastocisto está implantado superficialmente na camada compacta do endométrio e nutre-se dos tecidos maternos erodidos”. 236 O sinciciotrofoblasto, no 8°. dia após a fertilização, invade o epitélio endometrial e o tecido conjuntivo subjacente, o que permite o aninhamento do blastocisto no endométrio, passando a formação do hipoblasto e do epiblasto, os quais, conjuntamente, formam um disco embrionário bilaminar, sendo que este será 233 Ibid, p. 37. Ibid, p. 37. 235 Ibid, p. 41. 236 Ibid, p. 39. 234 157 responsável pela formação das camadas germinativas que formam todos os tecidos e órgãos do embrião. Diversas são as transformações, nesta fase, já que, com a implantação, há a formação da circulação uteroplacentária primitiva (dias 11 e 12), entre outras, e há, aqui, a preparação da placa precordal (espessamento localizado do hipoblasto ou endoderma primitivo), o qual indicará “a futura região cefálica do embrião e o futuro local da boca”237, sendo, também, “um organizador importante da região da cabeça”.238 A implantação do blastocisto, então, inicia, ao final da primeira semana de vida do novo ser, tendo seu fim no término da segunda semana, sendo, somente agora, conhecidos os eventos moleculares relativos à implantação humana. Estariam, aqui, então, resumidos os primeiros dias de vida de todo ser humano ao qual fora permitido o normal desenvolvimento. Podem-se perceber as diferentes e constantes mutações sofridas, sem as quais tornar-se-ia impossível, a formação, por exemplo, do tubo neural, considerada por muitos cientistas como sendo o principal indicativo de início da vida embrionária. E, na fertilização in vitro, como isso seria? É o que se buscará demonstrar, sucintamente, a seguir. 237 238 Ibid, p. 55. Ibidem. 158 3.3.2 − Como se forma o embrião, na fertilização in vitro. A transferência e a criopreservação de embriões A fertilização in vitro é uma técnica de reprodução humana criada para facilitar que pessoas, com problemas para se reproduzirem, possam ter filhos. Esta ocorre da seguinte maneira: - O crescimento e a maturação de folículos ovarianos são estimulados pela administração de gonadotrofinas; - Vários ovócitos maduros são aspirados de folículos ovarianos maduros em uma laparoscopia – observação dos ovários com um laparascópio. Os ovócitos também podem ser retirados com uma agulha de grande calibre239, orientada por ultrasom, através da parede vaginal até os folículos ovarianos (Ritchie, 1994); 239 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 44 aduz que, nos dias atuais, a coleta de óvulos tem sido realizada mais por meio da punção, já que para a laparoscopia (exame endoscópico da cavidade peritonal) ou para a laparatomia (incisão cirúrgica no abdômen) é necessária anestesia geral. “Com os problemas decorrentes do uso da anestesia geral, passaram os médicos a procurar um método menos agressivo. Atualmente, quase na sua totalidade, as punções são realizadas através do controle ecográfico (a agulha de aspiração atravessa o abdômen e a bexiga, o fundo da vagina ou a uretra e a parede posterior da bexiga). A ecografia permitiu a punção folicular ecoguiada, um modo menos traumatizante, com leve anestesia (local ou geral) de curta duraçao e perfeitamente suportável pela paciente. O conteúdo dos folículos (cerca de 5cm³ de líquido que traz o óvulo), é aspirado com ajuda de uma bomba a vácuo, e imediatamente levado para o laboratório, onde é colocado em um tubo, que contém os meios adequados para cultivo dos ovócitos”. 159 - Os ovócitos são colocados em uma placa de Petri contendo um meio de cultura especial e espermatozóides capacitados; - A fertilização dos ovócitos e a clivagem dos zigotos são acompanhadas ao microscópio; - Os zigotos em divisão (embriões clivados) no estágio de quatro a oito células são transferidos introduzindo-se um cateter através da vagina e canal cervical até o útero; aumenta-se a probabilidade de uma gravidez inserindo-se até três embriões; - A paciente permanece em posição supina (face para cima) durante várias horas. Obviamente, a probabilidade de uma gravidez múltipla é maior do que quando a gravidez resulta de uma ovulação normal e da passagem da mórula para o útero através da tuba uterina. A incidência de abortos espontâneos na transferência de embriões também é maior do que o normal. Isto pode resultar da alta incidência de anormalidades cromossômicas e outras presentes em conceptos fertilizados in vitro (Winston, 1996). Embriões e blastocistos resultantes de fertilização in vitro podem ser preservados por longos períodos se congelados com um crioprotetor (p.ex.: glicerol). Hoje em dia, é prática comum a transferência de embriões de quatro a oito células e de blastocistos 160 para o útero, depois de descongelados (Fugger et al., 1991).240 Esta técnica, mais especificamente, é utilizada em casais que sofrem de esterilidade, a qual, normalmente, se encontra na mulher em razão de uma obstrução em suas tubas, o que não permite que haja o encontro dos gametas masculino e feminino. Contudo, há também outros tipos de esterilidade como a esterilidade imunológica (esta é um tipo raro de esterilidade e ocorre quando o organismo feminino destrói os espermatozóides que nele se alojam durante o ato sexual), baixa contagem de espermatozóides normais insuficientes para a reprodução (esterilidade masculina) ou outros casos de esterilidade, cujas causas não podem ser estabelecidas com precisão. Essa fertilidade (ou seja, a possibilidade de ter ou não filhos) poderá ser avaliada por meio de exames, tanto no homem quanto na mulher, sendo nesta por meio de um controle da morfologia do aparelho genital e dos parâmetros indiretos da ovulação, dos hormônios e da curva de temperatura e, naquele, por meio de um controle da qualidade do esperma. Com estes exames, poder-se-á atestar a normalidade do útero e a acessibilidade dos ovários, a fim de saber se é possível a recepção e o implante do embrião, sendo submetida a interessada neste tipo de reprodução a um rígido controle dos ciclos menstruais, o qual se dá por meio da obtenção da curva de temperatura, diariamente, e de exames de sangue, matinalmente, coletados a fim de saber a dosagem hormonal; o interessado deverá submeter-se a um controle de qualidade do esperma, a espermocultura (exame 240 MOORE, Keith L. PERSAUD, T. V. N. op. cit., p. 36/ 37. 161 bacteriológico que atesta se há germes no esperma) e, ainda, ao teste de HIV. Realizados os exames acima especificados, e constatada a necessidade de se recorrer à fertilização humana in vitro (FIV), passa-se à indução da ovulação para sua posterior coleta e cultura, a preparação do esperma e a colocação destes junto àqueles para a fecundação na placa de Petri, como anteriormente descrito. A superovulação feminina é estimulada “através do tratamento feito a partir do segundo-quinto dia até o nono dia do ciclo mestrual, com medicamentos de atividade estimuladora da maturação ovular ou com hormônios (tais como gonadotropinas coriônicas humanas HCG), ou, ainda, induz-se a maturação mais ou menos simultânea de um número maior de óvulos”. 241 Esta superovulação traz como vantagens o fato de não ter a mulher que se submeter a várias extrações de folículos ovarianos, aumentando, assim, as chances de se terem embriões para a implantação, o que, conseqüentemente, aumenta as chances de uma gravidez e, ainda, diminui os riscos com doenças que podem vir a surgir com a realização de diversas extrações. Para a técnica da FIV, então, esta estimulação traz maiores chances de eficácia na aplicação deste método de reprodução, sendo muito freqüente o seu uso nas clínicas que realizam esse tipo de tratamento. Contudo, ressalta-se, que tal técnica não traz somente vantagens aos dela necessitados, já que diversos são os 241 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 42. 162 riscos242 que ela imprime àqueles que dela se utilizam, como colapsos cárdio-vasculares, ascite, anemia, efeitos colaterais da aplicação de hormônios, gravidez múltipla, etc. MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 42/44, assevera que “a utilização da técnica de FIV resulta, em contrapartida, numa série de desvantagens, tendo em vista os riscos que poderá trazer à vida e à saúde da mulher, diante das complicações que poderão surgir e o risco de vida, durante a estimulação da ovulação, ou das tentativas de fecundação in vitro, como: colapsos cárdio-vasculares, ascite (presença de líquido intra-abdominal), anemia e outras conseqüências. Além disso, este tratamento baseado na aplicação de hormônios, deve rodear-se de estudos necessários a fim de serem evitados efeitos colaterais e transtornos não desejados, a curto, médio e longo prazo. Outro inconveniente na fertilização in vitro é a ocorrência de gravidez múltipla. A fim de controlar a possibilidade de gravidez múltipla, encontra-se determinado, mundialmente, um número limitado de embriões a serem transferidos. Esse número varia entre três e quatro embriões. A Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou relatório denunciando a quantidade cada vez maior de nascimentos múltiplos de bebês, cujo peso é muito baixo, além da capacidade de sobrevivência ser muito limitada. No início da utilização da técnica de fertilização em laboratório, a situação era de assassinato de fetos em massa. É como pode-se classificar a atitude dos médicos que implantavam até dez embriões no útero. A fim de resolverem o problema de excesso, os especialistas em medicina fetal localizavam no útero, os embriões ou fetos e através de uma injeção de cloreto de potássio no coração, matavam três dos cinco, ou quatro dos seis fetos. Com o tratamento hormonal a base de drogas, tornase difícil prever o número de embriões, e a solução, ainda continua sendo a morte dos fetos excedentes. Nos casos de gravidez pelos meios normais, a possibilidade de nascerem gêmeos é de 1%, os trigêmeos surgem a cada 10 gestações e os quadrigêmeos, a cada 100 mil, daí em diante, é raríssimo acontecer. Com a fertilização assistida, segundo o médico carioca Luiz Fernando Dale, especialista em reprodução humana, pelas estatísticas norte-americanas, a incidência de nascimento de gêmeos é de 20%, de trigêmeos de 4%, e de quadrigêmeos de 1%. As gestações múltiplas proliferam, e cada vez se tornam mais freqüentes, as polêmicas notícias sobre nascimentos de gêmeos, trigêmeos, sêxtuplos e até sétuplos, como ocorreu nos Estados Unidos, em 19.11.1997, com Bobby McCaughey que, de uma gravidez de alto risco, deu à luz a quatro meninos e três meninas, no Centro Médico Metodista, em Des Moines, Iowa. No mesmo período, na Arábia Saudita, uma mulher também teve sétuplos, sendo que seis nasceram mortos. No Brasil, muito embora o Conselho Federal de Medicina estipule em quatro o número de embriões a serem implantados, a regulamentação nem sempre é obedecida, como no caso da jornalista Patrícia Calazans, que, através de uma renomada clínica de São Paulo, teve oito embriões implantados em seu útero. 242 163 Passada a fase de retirada dos óvulos e dos espermatozóides para a fertilização na placa de Petri, como anteriormente citado, passa-se à sua análise, o que, desde aquele momento anterior, deverá ser realizado em ambiente climatizado a 37°C, totalmente esterilizado, com pouca iluminação e observação microscópica rápida, a fim de se aproximar ao máximo daquilo que seria o natural do aparelho genital. Em microscópio, o líquido folicular é examinado aos poucos dentro da câmara do fluxo laminar para evitar qualquer tipo de contaminação, buscando o examinador a constatação de algum óvulo, a fim de se retirar para realizar a ovulação. Todo o líquido folicular será analisado para que se consigam os óvulos necessários à fertilização. Após esta etapa, eles serão lavados e transferidos, cada um para um tubo com cultura (1 ml), o qual, sendo colocado dentro de uma incubadora por mais ou menos quatro horas, levará o óvulo à maturação necessária à fertilização. De outro lado, os espermas coletados serão colocados para se liquefazerem em contato com o ar (em temperatura ambiente), por aproximadamente 20 minutos, sendo submetidos, posteriormente, à lavagem dos gametas e à escolha de espermatozóides vivos, de acordo com sua As notícias sobre o nascimento de gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos, tornaram-se uma constante. Conforme depoimento do médico Roger Abdelmassih, de São Paulo, especialista em inseminação artificial, e responsável pelo nascimento de 1/3 dos bebês nascidos no Brasil através de inseminação, dos 1.500 bebês inseminados artificialmente e nascidos sob sua responsabilidade, 27% são gêmeos (enquanto pelos meios normais é cerca de 1%), e 5% são trigêmeos, além de quatro casos de quadrigêmeos, sendo que, um desses quartetos se constituía inicialmente, de cinco bebês, morrendo o quinto (o mais pesado dentre eles) na maternidade, muito embora, afirme ser contra a redução por eliminação de fetos no útero, (morte através de injeção de cloreto de potássio), até para os casos de gestações quádruplas ou quíntuplas”. 164 mobilidade e aspecto morfológico. Serão depositados de 10.000 a 100.000 espermatozóides em cada tubo contendo um óvulo, os quais ficarão mantidos em incubadora por, aproximadamente, 18 horas, a 37°C, para haver a fusão dos gametas, do que se passará à análise do ovócito para verificação se ocorreu a fertilização. Entende-se que esta ocorreu, quando os prenúcleos (fusão dos núcleos masculino e feminino do ovo, logo após a fecundação, com cromossomos paternos e maternos que conferem ao indivíduo sua individualização) encontrarem-se no centro do ovo. Fecundados os novos seres, estes serão colocados em novo tubo com cultura, nos quais eles crescerão até o momento em que se realizar a transferência embrionária, ocorrendo tal fato em um prazo, aproximado, de 48 horas desde a retirada do líquido folicular da mulher. Far-se-á, então, a transferência do embrião por meio de um cateter muito fino, quando houverem condições físicas para tanto no aparelho reprodutor feminino, podendo ser usado um cateter rígido, por meio de uma incisão cirúrgica e anestesia local, se não houver acesso fácil ao colo do útero. Dessa forma, dá-se início à gravidez, a qual deverá ser constantemente vigiada, controlando-se a secreção hormonal por meio da ecografia, até que se completem dois meses de gestação, período a partir do qual poder-se-á ter acompanhamento normal da gravidez. Por outro lado, ressalta-se que: A grande dificuldade ainda existente no sucesso da fecundação artificial encontra-se na fixação dos 165 embriões no útero da mãe, para dar início efetivo a uma gestação. Mas, para melhorar a taxa de fixação de embriões no útero, tornou-se possível, utilizandose a ICSI, outra técnica denominada assisted hatching laser. O hatching a laser consiste em, através do uso do laser, abrir um minúsculo orifício no embrião, para que o miolo embrionário se libere mais facilmente, aninhando-se na parede uterina. Os primeiros números já disponíveis, atestam um aumento de até 25% nas chances de sucesso na gravidez. O ICSI foi utilizado de forma pioneira na América Latina, pelo médico Franco Júnior, em Ribeirão Preto/ São Paulo, em Março de 1997, resultando na gravidez de Fátima Bernardes, inseminada com espermatozóides de seu marido Willian Bonner. Dos quatro óvulos fertilizados, três se fixaram no útero, nascendo os trigêmeos em 21 de Outubro/97 (depois de 7 meses e 25 dias). 243 Por norma do Conselho Federal de Medicina e em face de documentos internacionais, tem-se, como regra, que deve ser implantado somente o número máximo de quatro embriões, sendo esta a prática, pelo menos a noticiada, que tem sido utilizada por médicos, nessa área. Ocorre que, é estimulada, por esses médicos a superovulação, havendo, portanto, um número remanescente de embriões que serão criopreservados, a fim de permanecerem resguardados, caso haja necessidade de nova implantação. Ocorre que muitos destes não têm sido utilizados para implantação, havendo um número grande de embriões criopreservados abandonados nas clínicas de fertilização in 243 Ibid, p. 48. 166 vitro, cuja possibilidade de uso em pesquisas com célulastronco embrionárias, discute-se em projeto de lei (de n° 2.401/2003). Mas, será que esses embriões criopreservados não podem ser considerados pessoas humanas, assim como aqueles que foram implantados? Trata-se, esta, de matéria polêmica, em que diverge muito a doutrina. A criopreservação de embriões é uma técnica que permite preservar embriões e blastocistos remanescentes das técnicas de fertilização in vitro por longos períodos, sendo os novos seres congelados em tubos com um crioprotetor como o glicerol, por exemplo, podendo ali permanecer vários anos, até que sejam descongelados para a implantação. Algumas legislações, como a inglesa, estabelece em cinco anos o prazo máximo para a criopreservação de embriões, devendo até o final deste período ser dado destino a eles, sob pena de serem destruídos, como outrora já ocorreu naquele país. Voltando à questão da divergência acerca da polêmica em torno dos embriões excedentes congelados, ressalta-se que, para muitos juristas, esses embriões não podem ser considerados como nascituros ou pessoas, somente podendo ser assim considerados quando estes forem, devidamente, implantados no útero materno, para se desenvolverem, plenamente. Asseveram estes juristas que nascituro é aquele que está para nascer, e aquele embrião que se encontra congelado não tem essa prerrogativa, visto que não poderá nascer sem ser implantado no útero materno. 167 Por outro lado, também há aqueles que entendem que o embrião criopreservado pode ser considerado pessoa, mesmo neste estágio, já que, havendo a fecundação do espermatozóide pelo óvulo e a fusão dos gametas, há a constituição de um novo ser, único, distinto de todos os outros (mesmo daqueles que lhe deram a herança genética, ou seja, pai e mãe), que tem seu desenvolvimento iniciado na fecundação e terminado com a morte, sendo este um processo continuado e que, mesmo sendo atrasado em face da criopreservação, não pode ser impedido já que se trata de um novo ser humano. Segundo esta linha de raciocínio, o que se preserva então, é a constituição de um novo ser, seja ele concebido dentro ou fora do útero materno, já que, sendo advindo da fecundação de um gameta feminino humano por um gameta masculino humano, somente poderá formar, como resultado, um ser humano e, como tal, deve ser protegido. Como determinam as Recomendações de n°s 1.046/86 e 1.100/1989 do Conselho da Europa, que destacam em seu texto o respeito à dignidade inerente a toda forma de vida humana, assegurando-se esta proteção desde o momento da fecundação, não se pode deixar de conferir proteção a um ser humano, mesmo que este não possa gozar da plenitude de desenvolvimento. Fazendo uma analogia com pessoas portadoras de deficiência mental grave, como aquelas que não têm entendimento algum de sua condição como pessoa, poder-se-ia dizer que estas, por lhes faltar um desenvolvimento pleno, não podem ser consideradas pessoas humanas, mesmo tendo prerrogativas físicas para tal, o que é um total absurdo, tanto que a lei as protege, de forma que não sejam lesadas em seus direitos básicos. 168 Não são os embriões criopreservados, dessa forma, menos humanos, porque não podem se desenvolver, normalmente, como aqueles que foram implantados. São seres humanos em potencial, que estão naquela condição porque foram ali colocados e, em sendo devidamente implantados, poderão ter um desenvolvimento pleno como qualquer outro ser humano. Como ressalta Maria Dolores Vila-Coro: En lo que se refiere a si debe asimilarse a la condición de ‘nasciturus’ el embrión que está en el laboratorio, hago mías las palabras de Zannoni: ‘Si biológicamente la fecundación extrauterina implica la fusión genética del espermatozoide y del óvulo y si esa fusión de células germinales masculina y femenina constituye la primera célula del nuevo ser, es indudable que la protección jurídica debe alcanzarle del mismo modo que si esa fusión hubiese ocurrido en el seno materno’. 244 E, nas palavras do autor citado: Sabido es que para el derecho la personalidad comienza, no con el nacimiento del ser humano, sino antes: la concepción determina el momento a partir del cual existe el sujeto, al que se denominará Em tradução livre: “No que se refere se deve assimilar-se a condição de nascituro ao embrião que está no laboratório, faço minhas as palavras de Zannoni: ‘se, biolologicamente, a fecundação extrauterina implica a fusão genética do espermatozóide e do óvulo e se essa fusão de células germinais masculinas e femininas constitue a primeira célula do novo ser, é certo que a proteção jurídica deve alcançá-la do mesmo modo que se essa fusão houvesse ocorrido no seio materno’”. (BARRACHINA, Maria Dolores Vila-Coro. Introdução a la biojurídica. Madrid: Servicio de Publicaciones Faculdade Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995. p. 122). 244 169 persona por nacer, cuya existencia distinta, si bien biológicamente dependiente de la madre, ha de reputarse tal jurídicamente, consolidando definitivamente esa personalidad si nace con vida (art. 70, cit., Cód. Civil). (…) La fecundación extrauterina provoca la concepción fuera del medio físico natural y facilita el encuentro de las células germinales a través de procesos físicos y químicos adecuados. Sin embargo, ahí, in vitro, en la ‘probeta’, existe, a partir de ese momento, el embrión humano, el ser en potencia. ¿Está allí la persona? Es posible que para muchos – incluso para el biólogo o el fisiólogo que operan en el laboratorio – el embrión aún no implantado en el útero sea solamente un ‘compuesto’, un mero proyecto genético del cual todavía se es dueño. Quizá esta mentalidad haya debido prevalecer en la serie de experimentos previos a su culminación exitosa. Y cuántos óvulos habrán sido fecundados in vitro hasta que, finalmente, se logró el embrión que fue implantado en el útero de Lesley Brown! Pero, es claro, no será la primera, ni la última vez, que la vida humana es sacrificada en holocausto al progreso científico, y, en este caso particular, a la creación de nuevas vidas. Es cierto que literalmente, nuestro Código Civil reputa el comienzo de la existencia de las personas desde su concepción en el seno materno. Y ello 170 podría llevar a decir, como en realidad se ha dicho ya, que hasta que el embrión no sea implantado en el seno materno, esto es, en el útero, no existe, jurídicamente, la persona. Razonando así se llegará a concluir, inevitablemente, que en los casos de fecundación extrauterina, el comienzo jurídico de la personalidad no coincide con la concepción, que lo es ‘fuera del seno materno’– sino con la implantación del embrión. Por nuestra parte, creemos que no es así. El comienzo de la existencia biológica del ser coincide con la concepción, ahora, dentro o fuera del seno materno. El art. 70, Cód. Civil, no puede ser, en este punto, interpretado literalmente. A mediados del siglo pasado, aludir a la concepción humana ‘en el seno materno’ era, normativamente, una redundancia. Pero no lo es hoy. Se impone, entonces – y ello no es ninguna novedad – una interpretación funcional acorde con la evolución de los conocimientos de la biología y las posibilidades que brinda la genética humana.245 Em tradução livre: “É sabido que, para o Direito, a personalidade começa não com o nascimento do ser humano, mas um pouco antes: a concepção determina o momento a partir do qual existe o sujeito, a que se denominará pessoa por nascer, cuja existência é distinta, se bem que biologicamente dependente da mãe, deve reputar-se tal juridicamente, consolidando, definitivamente, essa personalidade se nascer com vida. (art. 70, cit., Cód. Civil) (...) A fecundação extra-uterina provoca a concepção fora do meio físico natural e facilita o encontro das células germinais por meio de processos físicos e químicos adequados. Sem embargo, ali, in vitro, na ‘proveta’, existe, a partir desse momento, o embrião humano, o ser em potencial. Está ali uma pessoa? É possível que para muitos – inclusive para os biólogos e os fisiológos que operam no laboratório – o embrião humano ainda não implantado no útero seja somente um 245 171 Indo mais longe, em suas ponderações, citado autor faz alusão ao crime de aborto, discorrendo acerca da proteção ao feto que se encontra no seio materno, na lei penal argentina, a qual conceitua tal crime como sendo aquele provocado no sentido de “matar ou destruir o feto”, dizendo que esta proteção, em lei, abarca apenas aqueles que se encontram concebidos no útero materno, não sendo possível, inicialmente, se considerar aborto, em sentido típico, a destruição de embriões in vitro. Assevera, ainda, que dentro da perspectiva da lei, poder-se-ia se pensar, então, na tese de que o feto deveria ser viável para se configurar o aborto, tendo em vista que o conceito de aborto não foi especificado em lei, mas sim, tem sido mais trabalhado doutrinaria e jurisprudencialmente. Ressalta, todavia, que, nessa perspectiva, dever-se-ia se analisar a destruição de embriões como uma nova possibilidade de ‘composto’, um mero projeto genético do qual ainda se é dono. Quiçá esta mentalidade deve ter prevalecido na série de experimentos prévios a sua cominação exitosa. Quantos óvulos devem ter sido fecundados in vitro, até que, finalmente, se logrou um embrião que foi implantado no útero de Lesley Brown! Mas, é claro, não será a primeira, nem a última vez que a vida humana é sacrificada em holocausto ao progresso científico, e, neste caso em particular, a criação de novas vidas. É certo que, literalmente, nosso Código Civil reputa o começo da existência das pessoas desde a sua concepção no seio materno. E isto poderia levar a decidir, como na realidade se tem decidido, que desde que o embrião não seja implantado no seio materno, isto é, no útero, não existe, juridicamente, a pessoa. Raciocinando assim, se chegará a concluir, inevitavelmente, que nos casos de fecundação extra-uterina, o começo jurídico da personalidade não coincide com a concepção – que for ‘fora do seio materno’ – sem a implantação do embrião. De nossa parte, cremos que não é assim. O começo da existência biológica do ser coincide com a concepção, agora, dentro ou fora do seio materno. O art. 70, Cód. Civil, não pode ser, neste ponto, interpretado literalmente. Em meados do século passado, aludir a concepção humana ‘no seio materno’ era, normativamente, uma redundância. Mas, não é hoje. Impõe-se, então, – e isso não é novidade alguma – uma interpretação funcional de acordo com a evolução dos conhecimentos da biologia e das possibilidades que brindam a genética humana”. (ZANNONI, Eduardo A. Inseminación artificial y fecundación extrauterina: Proyecciones jurídicas. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1978. p. 88/90). 172 aborto, o qual não pressupõe a morte do embrião no seio materno e nem a interrupção da gravidez, mas sim, a destruição de uma vida viável mediante a implantação no útero, a qual se encontra fora deste e é suscetível a manipulação em laboratório, devendo ser dada a mesma proteção jurídica assegurada aos embriões implantados ou naturais também àqueles que se encontram in vitro. Nas palavras do autor: La sumisión a conceptos seculares que han delimitado el delito de aborto a la muerte del embrión o del feto en el seno materno, no podría constituir – al menos en las legislaciones que no contienen una definición legal del aborto – un obstáculo para reformular el concepto recogido, como decimos, de la observación de la realidad biológica que con la posibilidad de la fecundación in vitro muestra una nueva posibilidad biológica de engendrar vida. Diríamos que lo esencial, lo común a todo tipo o forma de aborto es la destrucción provocada del embrión humano. Que hasta ayer sólo se formaba en el seno materno, pero que hoy puede formarse fuera de el. Si no se aceptan estas ideas proponemos la segunda observación: es imperioso recoger penalmente el tipo que reprima el aborto mediante destrucción del embrión in vitro, en las mismas condiciones que el que reprime la destrucción del feto en el seno materno, interrumpiendo el embarazo. 173 La previsión se impone ya que no podría aceptarse que, sob pretexto de experimentación o de investigación, se estuviese manipulando con células germinales que han constituido ya el nuevo ser que requiere la protección jurídica. Y ello viene a cuento a raíz de cierta información periodística que alude al procedimiento utilizado para lograr la fecundación. Según esa información no se extraería de la mujer un óvulo y con el esperma del marido se obtendría un embrión que luego es implantado, sino que se operaría extrayendo varios óvulos y luego de ser todos fecundados, se escogería uno, el que mostrase mayor vitalidad o viabilidad. Si ello fuese así, el ‘descarte’ de embriones constituye, se mire por donde se mire, una forma de destrucción de vida humana, genéticamente ya perfecta. Podrá decirse, no sin algo de razón desde el punto exclusivamente científico, que el ensayo de fecundación múltiple y la posterior selección del embrión ‘óptimo’ es ineludible para superar los riesgos a que conduciría operar con un solo óvulo. Pero aunque fuere así, es insoslayable el problema ético implicado. Cada embrión es ya la síntesis incipiente de la individualidad genética del ser humano: su destrucción por ‘descarte’ importa – por qué no decirlo – un nuevo modo de ‘aborto eugenésico’que no está fundado en el peligro para la vida de la madre o del hijo, sino en una selección eugenésica mediante fecundaciones provocadas extrauterinamente. Quizá en este punto se muestre 174 una importante limitación ética a la investigación científica. 246 Vê-se, portanto, que de acordo com o autor, não se pode falar em descarte de embriões excedentes, já que estes têm em si todos os elementos necessários à formação de um novo ser humano, desde o momento da fecundação, a qual, ocorrendo, naturalmente ou não (in vitro), não altera o fato de que aqueles guardam em si, o mesmo material genético, Ibid, p. 94/96. Em tradução livre: “A submissão a conceitos seculares que tem delimitado o delito de aborto à morte do embrião ou do feto no seio materno, não poderia constituir – ao menos nas legislações que não contêm uma definição legal do aborto – um obstáculo para reformular o conceito recolhido, como dissemos, na observação da realidade biológica que com a possibilidade da fecundação in vitro mostra uma nova possibilidade biológica de criar vida. Diríamos que o essencial, o comum a todo tipo ou forma de aborto é a destruição provocada do embrião humano. Que até ontem, somente se formava no seio materno, mas que, hoje pode formar-se fora dele. Se não se aceitam estas idéias, propomos a segunda observação: é imperioso recorrer penalmente a um tipo que reprima o aborto mediante destruição do embrião in vitro, nas mesmas condições em que reprime a destruição do feto no seio materno, interrompendo a gravidez. A previsão se impõe, já que não se poderia aceitar que, sob pretexto de experimentação ou de investigação, se estivesse manipulando com células germinais que tenham constituído já um novo ser que requer proteção jurídica. E isso vem à luz à raiz de certa informação jornalística que alude ao procedimento utilizado para lograr a fecundação. Segundo essa informação, não se extrairia da mulher um óvulo e com o esperma do marido se obteria um embrião que logo é implantado, mas sim se operaria extraindo vários óvulos e, logo que todos fossem fecundados, se escolheria um, o que mostrasse maior vitalidade ou viabilidade. Se isso fosse assim, o ‘descarte’ de embriões constitui, de qualquer forma, uma forma de destruição da vida humana, geneticamente já perfeita. Poderá dizer-se, não sem algo de razão do ponto de vista exclusivamente científico, que a experimentação de fecundação múltipla e a seleção posterior do embrião ‘ótimo’ é inevitável para superar os riscos a que se submeteria operar-se com um só óvulo. Mas, mesmo assim, é indisfarçável o problema ético implicado. Cada embrião é já síntese incipiente da individualidade genética do ser humano: sua destruição por “descarte” importa – porque não dizer – um novo modo de aborto eugênico que não está fundado no perigo para a vida da mãe ou do filho, mas em uma seleção eugenésica mediante fecundações provocadas extra-uterinamente. Quiçá, neste ponto, se mostre uma importante limitação ética para a investigação científica”. 246 175 no sentido de que têm todos os elementos necessários para se desenvolver ali um novo indivíduo, ressaltando, ainda, que a sua destruição acaba por ser uma forma de seleção eugênica ou eugenia, atitude esta tão temida dentro da sociedade como um todo. Dar um tratamento diferenciado aos embriões excedentários daqueles que foram devidamente implantados no útero materno, não passa de uma idéia utilitarista, que tem tomado conta do meio biológico-científico, a qual não deve prosperar, sob pena de “coisificar” o ser humano, dando-lhe apenas a conotação de um mero objeto existente para satisfação alheia. Todo ser humano que tem vida, seja ela passível de ser exercida de imediato ou não (porque se encontra paralisada por circunstâncias alheias) deve ter (e tem) o direito de ser protegido por leis que lhe assegurem a manutenção daquele status, ainda mais quando no Texto Maior do Estado a que este pertence, esta proteção encontra-se destacada, como é o caso da Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°., caput, que assegura a inviolabilidade do direito à vida. A fim de regulamentar os incisos II e V, do § 1º, do art. 225, da Constituição Federal, o qual estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética no Brasil, foi promulgada, em 05 de janeiro de 1995, a Lei nº 8.974, a qual vedava especificamente, em seu art. 8°., inciso III, a intervenção em material genético humano in vivo, exceto quando necessária para o tratamento de defeitos genéticos naquele ser, e, no inciso IV, vedava, também, a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível. Elencava, também, no seu art. 13°. e incisos que, 176 constituiam crimes tanto a conduta descrita no art. 8°., inciso III, como a manipulação genética de células germinais humanas. Esta Lei foi revogada pela nova Lei de Biossegurança (lei nº 11.105/2005) recentemente aprovada, da qual falar-se-á, posteriormente, em capítulo próprio. Viu-se, portanto, até a aprovação da nova Lei de Biossegurança, a intenção do legislador em manter aquilo que está previamente determinado no texto constitucional acerca da inviolabilidade do direito à vida, não permitindo manipulação dos embriões excedentários, a menos que seja para cura de doenças nestes mesmos, o que se entende estar de acordo com uma visão integral do ordenamento brasileiro, e mesmo quando analisado do ponto de vista de tratados internacionais aos quais o Brasil se integrou, como o Pacto de São José da Costa Rica. Tratar esses embriões excedentes como mero material biológico, suscetível, portanto, de servir à pesquisa científica, como foi permitido no novo texto de lei (Lei n° 11.105/2005), nada mais é que extirpar qualquer indício de respeito à dignidade humana daqueles seres em formação, os quais passam, como já fora anteriormente especificado, por um processo contínuo de mutações genéticas que se iniciam a partir do momento da fecundação, não sendo esse processo passível de divisão em um antes e um depois da formação de uma parte deste novo ser humano (ou seja, da formação do tubo neural, no 14° dia); mas, como dito, tratase todo ele do desenvolvimento de um ser único, irrepetível e insubstituível. Defende-se, portanto, a tutela da vida em sua absoluta preponderância, entendendo que devem os embriões 177 congelados ter o mesmo tratamento, no que tange à sua proteção em lei, daqueles que foram devidamente implantados no útero materno, posto que a diferença daqueles para estes é somente quanto ao momento em que se inicia o seu pleno desenvolvimento, que se dará com a implantação, e nada mais. E, em sendo assim, são plenamente protegidos pelo texto constitucional que determina a inviolabilidade do direito à vida, o que não permite exceções que possibilitem a sua manipulação ou destruição, como é determinado na nova Lei de Biossegurança, aprovada este ano, no Congresso Nacional. Entende-se que esta, quando aprovou a pesquisa com células-tronco embrionárias de embriões excedentes congelados por três anos, tratou de matéria já especificada no Texto Maior como sendo inviolável, o que tornou essa lei inconstitucional, posto que se desencontra da proteção dada no ordenamento pátrio, que prima pela tutela da vida. 178 4 – CÉLULAS-TRONCO 4.1 – O que são células-tronco247 Células-tronco, por definição, são células indiferenciadas capazes de proliferar-se amplamente, ou seja, elas têm capacidade de se dividir em células idênticas a elas ou em diferentes tipos de células, originando “célulastronco adicionais (auto-renováveis) ou células progenitoras comprometidas com a formação de derivadas diferenciadas”.248 Para a Dra. Lygia da Veiga Pereira, A definição geral de ‘célula-tronco’(CT) é ‘célula com capacidade de auto-renovação ilimitada/prolongada, capaz de produzir pelo menos um tipo de célula altamente diferenciada’ — ou seja, uma célula que tem a capacidade de se dividir em células idênticas a ela ou em diferentes tipos de células.249 No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, célula-tronco é uma “célula indiferenciada capaz de gerar, por divisão mitótica simétrica, duas células-filhas idênticas a ela ou, por divisão mitótica assimétrica, uma célula-filha diferenciada e outra nova célula que permanece indiferenciada e mantém a linhagem original”. (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 669). 248 NUSSBAUM, Robert L; MCINNES, Roderick R; WILLARD, Huntington F. Thompson & Thompson Genética Médica. 6ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p. 300. 249 PEREIRA, Lygia da Veiga. op cit., p. 65. 247 179 Segundo Luiz Régis Prado: Por célula-tronco, célula-mãe, entende-se qualquer célula que tem a dupla capacidade de dividir-se ilimitadamente e de dar lugar a diferentes tipos de células especializadas. De acordo com esta segunda capacidade, as células-tronco podem ser totipotentes, pluripotentes e multipotentes. Célula totipotente250 contribui a todos os tipos celulares de um organismo adulto; tem a capacidade de dar lugar a um indivíduo completo. As células totipotentes de um embrião recente têm a capacidade de diferenciar-se em membranas e tecidos extraembriônicos, em embrião e em todos os tecidos e órgãos pós-embriônicos. No embrião humano são totipotentes os blastômeros até o estado de mórula de 16 células. Célula pluripotente251 não é capaz de desenvolver-se em um organismo completo, mas tem a capacidade funcional de dar lugar a várias linhagens celulares ou tecidos diferentes. Célula multipotente252 encontra-se presente em tecidos ou órgãos adultos que têm uma capacidade limitada de reativar seu programa genético como resposta a determinados estímulos que lhes permitem dar lugar 250 As totipotentes são as células embrionárias, as quais conseguem dar origem a qualquer um dos 216 tecidos que formam o corpo humano. 251 As pluripotentes são as células-tronco que conseguem diferenciar-se na maioria dos tecidos humanos. 252 As multipotentes são as células-tronco que conseguem diferenciar-se em alguns tecidos humanos. 180 a algumas, porém não todas, as linhagens celulares diferenciadas.253 Seu nome, célula-tronco, deu-se em razão de ela agir como uma árvore de cujo tronco derivam vários galhos, as quais seriam as diferentes categorias de células que se originam a partir do zigoto (fruto da união do óvulo com o espermatozóide). Essas células têm, então, um grande potencial auto-replicativo, sendo consideradas por pesquisadores como as “células-alvo”, por causa da sua duração in vivo, no caso de ser necessária uma transferência, tendo em vista que “a introdução do gene nas células-tronco pode resultar na expressão do gene transferido em uma grande população de células filhas”.254 Elas também existem nos animais, e suas propriedades podem ser definidas da seguinte forma: 01. As células-tronco não são terminalmente diferenciadas, isto é, não são o fim de uma via de diferenciação; 02. Elas podem dividir-se sem limite, ou pelo menos por toda a vida do animal; 03. Quando se dividem, cada filha pode escolher permanecer como célula-tronco, ou, pode embarcar num caminho que leve à diferenciação terminal.255 253 PRADO, Luiz Régis. Direito Penal do Ambiente: Meio ambiente. Patrimônio Cultural. Ordenação do Território. Biossegurança (com a análise da Lei 11.105/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 578/ 579. 254 PEREIRA, Lygia da Veiga. op cit., p. 238. 255 ALBERTS, Bruce. BRAY, Dennis. LEWIS, Julian. RALF, Martin. ROBERTS, Keith. WATSON, James D. Biologia Molecular da Célula. 3ª. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 1.155. 181 Desde o início do século XX, vários foram os embriologistas que começaram a decifrar os segredos das células-tronco por meio de experimentos engenhosos com células de embriões. Entre eles, destacaram-se os alemães Hans Spemann (1869-1941) e Jacques Loeb (1859-1924) que, em pesquisas, revelaram que: (...) quando as duas primeiras células de um embrião de anfíbio são separadas, cada uma é capaz de gerar um girino normal, e que, mesmo após as quatro primeiras divisões celulares de um embrião de anfíbio, o núcleo dessas células embrionárias ainda pode transmitir todas as informações necessárias à formação de girinos completos, se transplantado para uma célula da qual o núcleo tenha sido retirado (célula enucleada).256 Desse experimento, Spemann formulou em 1938, uma questão fundamental para a biologia moderna do desenvolvimento, ou seja, se “o núcleo de uma célula totalmente diferenciada seria capaz de gerar um indivíduo adulto normal, se transplantado para um óvulo enucleado?”.257 Em 1997, com o nascimento da ovelha Dolly, a resposta à questão formulada por Spemann foi respondida, de certa forma (porque a Dolly teve alguns problemas como o fato de nascer geneticamente idosa), positivamente. Com a continuidade das pesquisas acerca das células-tronco, pode-se constatar que elas têm como características, como anteriormente descrito, o fato de serem indiferenciadas e com capacidade de gerar não só novas 256 CARVALHO, Antônio Carlos Campos. Células-tronco: a medicina do futuro. Revista Ciência Hoje – SBPC, vol 29, nº 172, junho de 2001. Disponível em: http://www.cienciahoje.com.br > Acesso em: 10/10/03, às 11:00 hs. 257 Ibid, p. 2. 182 células-tronco como “grande variedade de células diferenciadas funcionais”.258 A fim de realizar essa dupla tarefa consistente na replicação/ diferenciação, as célulastronco podem seguir dois modelos básicos de divisão, ou seja, “o determinístico, no qual sua divisão gera sempre uma nova célula-tronco e uma diferenciada, ou o aleatório (ou estocástico), no qual algumas células-tronco geram somente novas células-tronco e outras geram apenas células diferenciadas”.259 A divisão das células-tronco embrionárias segue dois modelos: o determinístico (A), que gera sempre uma célulatronco e uma célula diferenciada, e o aleatório (B), em que podem ser geradas diversas combinações de células. Gravura 1: Divisão das células-tronco embrionárias: 258 259 Ibid, p. 2. Ibid, p. 3. 183 A B Destaca-se, ainda, que as células-tronco conhecidas há mais tempo são as embrionárias, as quais, aos poucos, no desenvolvimento do embrião, “produzem todas as demais células de um organismo. Mas nas últimas décadas descobriu-se que tecidos já diferenciados de organismos 184 adultos conservam essas células precursoras”.260 Pode-se dizer, ainda, acerca das células-tronco que elas são requisitadas em qualquer lugar onde exista a necessidade de substituir células diferenciadas que não podem dividir-se. Em vários tecidos, o estado terminal da diferenciação é obviamente incompatível com a divisão celular. O núcleo da célula pode ser digerido, por exemplo, como nas camadas mais externas da pele, ou pode ser expelido, como nas células sangüíneas vermelhas (hemáceas) dos mamíferos. Como alternativa, o citoplasma pode ser pesadamente bloqueado com estruturas, tais como as miofibrilas das células de músculos estriados, que poderiam dificultar a mitose e citocinese. Em outras células terminalmente diferenciadas, a química da diferenciação pode ser incompatível com a divisão celular de uma forma mais sutil. Em qualquer um desses casos, a renovação deve depender das célulastronco. O trabalho das células-tronco não é conduzir a função diferenciada, mas produzir as células que farão isso. Conseqüentemente, células-tronco com freqüência têm uma aparência não-descritível, tornando-as difícil de identificar. Mas isso não quer dizer que todas as células-tronco são iguais. Embora não terminalmente diferenciadas, elas são, entretanto, determinadas: a célula muscular satélite como uma fonte de músculo esquelético; célulatronco da epiderme, como uma fonte de célulasepidermais queratinizadas; a espermatogonia, como 260 Ibid, p. 3. 185 uma fonte de espermatozóides; a célula basal do epitélio olfativo, como uma fonte de neurônios olfativos; e assim por diante. Aquelas células-tronco que dão origem a somente um tipo de célula diferenciada são chamadas de unipotentes, e células que dão origem a vários tipos de células são chamadas de pluripotentes.261 Um exemplo de célula-tronco pluripotente é a hematopoiética, já que dela originam-se todas as classes de células sangüíneas, dando tanto origem a células-troncofilhas com a mesma capacidade de transformação da célula inicial, bem como a células que são terminalmente diferenciadas.262 A grande promessa das células-tronco, então, está na sua capacidade de diferenciação, já que elas atuam como células virgens capazes de serem programadas para formar tecidos específicos, que poderiam ser usados no tratamento de doenças, como, por exemplo, para repor células produtoras de insulina em diabéticos, ou para reproduzir neurônios em portadores de Alzheimer. Essas células, por meio do cultivo com a ação de reagentes químicos, podem diferenciar-se nos mais variados tipos de tecido como células do sangue, pele, fígado, intestino, 261 ALBERTS, Bruce. BRAY, Dennis. LEWIS, Julian. RALF, Martin. ROBERTS, Keith. WATSON, James D. op. cit., p. 1.155/ 1.156. 262 ALBERTS, Bruce et al. op. cit.,, p. 1.169: “O sistema hematopoiético, portanto, pode ser visto como uma hierarquia de células. Células-tronco pluripotentes dão origem a células progenitoras comprometidas, que são irreversivelmente determinadas como ancestrais de somente uns poucos tipos de células sanguíneas. As progenitoras comprometidas dividem-se rapidamente, mas somente um número limitado de vezes. No fim dessas séries de divisões de amplificação, elas se desenvolvem em células terminalmente diferenciadas, que geralmente não se dividem mais e morrem depois de vários dias ou semanas. Células também podem morrer em qualquer uma das etapas iniciais no caminho. Estudos em cultura fornecem uma forma de se encontrar com estes eventos celulares – proliferação, diferenciação e morte – são regulados”. 186 pulmão, etc, tendo os experimentos se iniciado com a injeção de células-tronco adultas da medula em camundongos adultos. No quadro263 a seguir, pode-se perceber, com mais clareza, algumas formas de aquisição de células-tronco para terapia: Gravura 2: Quadro “células para reparo”. Célulastronco podem ser obtidas de duas maneiras: ESCOBAR, Herton. Células-tronco: novas esperanças de terapia – duas pesquisas feitas nos EUA mostram que elas podem ser usadas para curar doenças. Disponível em: http:// www.oestadodesaopaulo.com.br. > Acesso em: 21/06/2002, às 14:00. 263 187 O primeiro caso apresentado no quadro refere-se à clonagem terapêutica, a qual trata-se da clonagem realizada a fim de buscar a cura de doenças, até hoje, impossíveis ou de extrema dificuldade de cura, como as doenças degenerativas ou a leucemia. Afirma-se que a “‘clonagem terapêutica’ consiste em todas as aplicações das técnicas e da ciência da clonagem para fins não-reprodutivos que tragam reais melhorias à qualidade de vida humana”.264 Para melhor entendimento, do que trata a clonagem terapêutica apresentada, cabe definir, inicialmente, o que vem a ser clonagem. A palavra clonagem vem de clone, a qual é derivada do grego klón, klonós que é o mesmo que broto, rebento, pequeno ramo, mas, cientificamente, este termo tem o sentido de cópia, geneticamente idêntica de um ser a partir de outro. Clonar alguém, portanto, significa fazer uma cópia exata, idêntica de outro indivíduo, mediante a reprodução do seu genoma contido no núcleo da célula. Aquele (genoma), na forma reprodutiva normal ou sexuada, se forma com a junção do espermatozóide com o óvulo, ou seja, quando os genes contidos nas células germinativas do homem (espermatozóide) se unem aos genes das células germinativas da mulher (óvulo), contendo cada uma a metade da “receita”265, as quais se fundem formando, assim, um genoma inédito que conterá todas as instruções para determinar como será o novo indivíduo criado. Em seres humanos, o genoma chega a ter aproximadamente 30 mil genes, os quais determinarão desde a cor dos cabelos e olhos 264 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 61. Ibid, p. 17. A autora se refere, na obra citada, à palavra “receita” como sinônimo de um genoma completo. 265 188 até o tamanho de órgãos. Os genes são compostos pelo DNA que possui quatro letras A, C, G e T, sendo que cada instrução dele é um conjunto de milhares dessas letras, que vêm parte da mãe (óvulo) e parte do pai (espermatozóide), criando um indivíduo único, diferente de todos os outros, o que é contrário à clonagem, que gera uma cópia idêntica à sua matriz. Da primeira célula até se chegar a um ser humano, há várias divisões celulares, dividindo-se, primeiramente, em duas, que novamente se dividem em mais duas, até se fazer um amontoado de células, trilhões delas, que conterão, em seu núcleo, o genoma completo do indivíduo, bastando o conteúdo de uma destas para fazer o clone. Mas, as células do corpo não são todas idênticas à original, posto que, na multiplicação, vão se diferenciando para chegar à sua forma e função (200 tipos diferentes no organismo humano), e isso se dá pela diferenciação, que, no início, divide as células do embrião em três grupos, os quais, a cada divisão, vão se especializando, cada vez mais, formando uma parte do indivíduo. Isso tudo é muito organizado e é regido pelo genoma, que faz com que, apesar de a célula ter em si o genoma completo, só fração dele trabalhe para desenvolver certa parte específica do ser humano.266 266 SILVER, Lee M. op. cit., p. 61/63. Ensina esse autor acerca da divisão celular de forma mais específica: “No começo do segundo dia depois da fusão do óvulo e do espermatozóide, o embrião tem duas células. Cada uma dessas células se divide para produzir quatro e cada uma dessas se divide novamente para produzir um total de oito células, lá pela metade do terceiro dia. Embora o embrião tenha aumentado o número de suas células, ele não fez muito mais do que isso. Cada uma de suas oito células, quando separadas das outras, ainda tem o potencial de se tornar um embrião por si mesma e de formar uma vida humana separada. Com outra rodada de divisões celulares, produzindo dezesseis células no total, está iniciando o primeiro passo para fora da uniformidade. O embrião ainda se parece com uma bola, ou melhor, com uma amora microscópica. Mas as células do lado de fora são capazes de sentir sua 189 posição em relação às células do lado de dentro e, em resposta, elas se diferenciam em células que eventualmente se tornarão a placenta e outros tecidos que funcionam para proteger o feto em crescimento. Quando os biólogos usam a palavra diferenciar, eles querem dizer tornar-se diferente. Quando uma célula se diferencia, ela se torna diferente da célula-mãe que lhe deu origem. Normalmente, a diferenciação causa uma redução no potencial de uma célula. Por exemplo: as células orientadas para a placenta, que se formaram como a camada externa do embrião de dezesseis células, só tem o potencial de produzir outras células que se tornarão parte da placenta ou de outros tecidos localizados entre a mulher e seu feto. Estas células perderam o potencial de se transformarem em coração, em pulmão ou em qualquer outro tecido do feto em desenvolvimento. Depois que uma célula se diferencia, todas as células que descendem dela, assim como as descendentes de suas descendentes, também se manterão diferenciadas. Mas essas células ainda podem passar por outras diferenciações, com outras reduções em potencial. Por exemplo: na altura de quatro semanas de idade, um embrião contém células diferenciadas que têm o potencial de produzir apenas células sanguíneas. Com divisões celulares posteriores e diferenciação posterior, aparecem células que têm o potencial de produzir apenas glóbulos brancos ou glóbulos vermelhos, mas não ambos. São necessárias outras rodadas de diferenciação para converter os glóbulos brancos progenitores num tipo específico de glóbulo branco que segrega anticorpos ou outro tipo que engole bactérias invasoras. Neste ponto, depois de dezenas de rodadas de divisão celular, é atingido um estado de diferenciação terminal. Diferenciação e desenvolvimento andam juntos. O desenvolvimento de um organismo como um todo ocorre através da diferenciação de células individuais dentro dele. Células terminalmente diferenciadas podem expressar funções extremamente especializadas, como aquelas descritas acima para glóbulos brancos ou outras, como para produção dos pêlos corporais ou de unhas. A maior parte das células de nosso corpo é terminalmente diferenciada, inclusive todos os componentes microscópicos de órgãos complexos como os pulmões, o coração, os rins ou o cérebro. Mas sempre existirão algumas células, mesmo num adulto maduro, que ficam num estágio anterior de diferenciação. Essas células são chamadas de células-mãe. Elas continuam se dividindo para produzir, por exemplo, uma nova fonte de células de pele, de sangue ou de outros tipos especiais de células que devem ser regeneradas constantemente para você continuar vivo. Os biólogos moleculares têm agora uma compreensão sofisticada do que acontece dentro de uma célula quando ela se diferencia. Na realidade, a coisa mais importante é a que não acontece – uma célula diferenciada não perde nenhuma informação genética. Toda célula somática de seu corpo tem um conjunto completo de quarenta e seis cromossomos com todo o DNA que estava presente nos núcleos do embrião bicelular do qual você surgiu. Ora, se todas as células têm a mesma informação genética, por que elas não se parecem umas com as outras e não agem da mesma forma? A resposta é que cada célula é programada para usar apenas uma pequena parte da informação total para continuar viva e desempenhar as tarefas para as quais ela foi especialmente projetada através da evolução. As células que parecem diferentes umas das outras e se comportam de forma diferente umas das outras – 190 No clone, isso não ocorre da mesma forma, posto que este se forma por multiplicação assexuada, o que quer dizer que não há a junção de células germinativas, ocorrendo aquela por meio da cópia do genoma de células somáticas, que originará um indivíduo idêntico ao que cedeu o genoma.267 A idéia de clonagem data do final do século XIX, quando se demonstrou que todas as células de um ser vivo contêm seus genomas completos, iniciando-se no século XX, técnicas para cultivar células de animais em laboratório. Apesar de parecer simples a idéia de clonagem (apenas retirar o genoma e reproduzi-lo), isto não é assim, posto que para uma célula qualquer dar origem a um organismo, aquela primeira célula que originou o indivíduo deverá se dividir e diferenciar, organizadamente, a partir de algo, inicialmente despreparado para essa tarefa, o que é fácil ser feito em plantas, mas difícil no tocante a animais.268 como resultado da diferenciação – foram programadas para usar partes diferentes da mesma informação genética total. E, a cada passo da diferenciação, o programa da célula muda pelo menos um pouco”. 267 DÍAZ-FLORES, Mercedes Alberruche. La Clonación y Selección de Sexo – Derecho Genético?. Madrid: Centro Universitário Ramon Carande – Dykinson, 1998. p. 19. A autora aduz acerca da clonagem: “Talvez debamos comenzar por la etimologia del término clonación para acercarnos al sentido actual. Derivado del griego “KLON”, esqueje, es decir, la reproducción asexual de espécies que se reproducen por unión de células germinales de amvos sexos. Hoy hablamos de CLONACIÓN como reproducción exacta de segmentos de ADN o genes mediante su inserción en microorganismos. También obtención de indivíduos geneticamente idênticos a otros por técnicas de reproducción asexual en laboratorio. La reprodución clónica está basada en una relación totalmente asexual configurándose como una de las más claras manifestaciones de lo que se viene llamando “manipulación genética”. Podemos defirla como el proceso mediante el cual, sin la unión de dos células sexuales, y a partir de la implantación del núcleo de una célula con una dotación cromosómica completa en un óvulo, al que previamente le ha sido extraído la célula dotada de la totalidad de cromossomas”. 268 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit, p. 19. 191 Inicialmente, imaginou-se retirar o núcleo de um óvulo fecundado e substituí-lo pelo núcleo de uma célula qualquer do indivíduo a ser clonado, contendo seu genoma completo, e buscava-se com isso que o núcleo desse óvulo passasse a agir como o de um óvulo fecundado. Dessa forma, durante o desenvolvimento do embrião, o genoma contido no núcleo transferido seria seguido, gerando um ser geneticamente idêntico àquele do qual foi retirada a célula. Isso, inicialmente, foi realizado com sapos, na década de 1950, que no começo não passaram de girinos; mas, na década de 1960, conseguiu-se clonar sapos que chegaram à fase adulta.269 Depois, se criou a forma de clonagem a partir da bipartição de embriões, a qual realiza-se em um microscópio, onde um embrião de oito células é mecanicamente dividido ao meio por uma lâmina finíssima, sendo, posteriormente, cada um dos meio-embriões transferidos para uma barriga de aluguel, podendo ser feita, mais uma vez, essa divisão em cada meio embrião para transferir depois. Dessa forma, a partir de um óvulo e um espermatozóide, podem ser gerados até quatro indivíduos idênticos. Essa é a sistemática da natureza, quando nascem gêmeos univitelinos, com a particularidade que, nesse tipo de clonagem, não se sabe quais as características que o animal adulto desenvolverá e, por isso, não é o método de clonagem que se estava buscando. Em 1997, o cientista Ian Wilmut anunciou a geração do primeiro animal clonado a partir de células de um animal adulto, a ovelha Dolly, sendo gerada pelo método de transferência nuclear, mas com pequenas modificações que 269 Ibid, p. 23. 192 fizera o experimento funcionar em animais. Isso foi realizado por meio da célula da mama de uma ovelha de seis anos que foi fundida a um óvulo de outra ovelha, cujo núcleo, contendo seu genoma, havia sido eliminado, tendo sido utilizado um choque elétrico para fundir aquela célula ao óvulo vazio, simulando a fecundação e induzindo esse óvulo a iniciar o desenvolvimento por divisão. Posteriormente, essa célula foi introduzida em uma barriga de aluguel que deu à luz Dolly, criatura geneticamente idêntica àquela ovelha que doou a célula da mama. Antes, ainda, de ser introduzida na barriga de aluguel, a célula da mama clonada sofreu um tratamento que fez com que fossem reduzidas as reações químicas ocorridas dentro das células, ficando parecido com o metabolismo da primeira célula resultante da união do óvulo com o espermatozóide, reproduzindo-se, mais fielmente, as condições naturais pósfertilização. Mas, para criar Dolly, foram feitas mais de quatrocentas transferências nucleares e, destas, apenas 29 embriões sobreviveram e foram transferidos para barrigas de aluguel, sendo que destes todos apenas Dolly nasceu. No quadro apresentado, uma célula humana é retirada e implantada em um óvulo humano enucleado (sem núcleo) doado, sendo, posteriormente, colocado em cultura no laboratório para, assim, formar uma célula embrionária com material genético idêntico àquele do doador da célula que formou o núcleo do óvulo enucleado, servindo a célulatronco, constante nesse embrião clonado, para realização de transplante da parte deficitária do indivíduo doador com a aplicação de células-tronco embrionárias modificadas em laboratório no local danificado. Em tese, essa clonagem evitaria problemas relacionados à rejeição que poderia haver por parte do organismo do indivíduo transplantado, já que a 193 célula clonada veio dele mesmo e foi induzida em laboratório a se diferenciar em um tipo celular correspondente à necessidade daquele paciente.270 Acerca da matéria, observa-se que, por meio da clonagem terapêutica, poder-se-ia fazer, em um caso de queimadura, células da pele; em um caso de doença de Parkinson ou Alzheimer, neurônios; no caso de cirrose hepática, células do fígado etc, sendo essas células totalmente compatíveis com o paciente, não havendo, portanto, rejeição por parte deste.271 E, ainda, que: É possível que daqui a alguns anos cada um de nós tenha preventivamente criadas suas linhagens de CTs embrionárias particulares. Essas células ficarão guardadas congeladas em um laboratório. Ao longo de sua vida, caso você precise de algum transplante, suas CTs embrionárias serão descongeladas, multiplicadas e induzidas a se diferenciar de acordo com sua necessidade. Assim, quando transplantadas, poderão regenerar o órgão/ tecido danificado sem o risco de rejeição. 272 No segundo quadro, amostras de células são extraídas da medula óssea ou de outros órgãos do paciente, sendo, posteriormente, identificadas as células-tronco, as quais, sendo selecionadas, serão cultivadas, de acordo com a necessidade de cura e transplantadas ao paciente, a qual as receberá sem risco de rejeição, pois se trata de célula-tronco adulta originada dele mesmo. 270 Ibid, p. 71. PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 71. 272 Ibid, p. 72. 271 194 Relata-se, no quadro, ainda, a possibilidade de reimplantar diretamente as células-tronco selecionadas e retiradas do paciente, diretamente, no órgão com problema, para que, assim, em contato com estas, aquelas se diferenciem, sem passar pela cultura em laboratório. 4.1.1 − Células-tronco adultas A partir da definição geral de célula-tronco como sendo uma “célula com capacidade de auto-renovação ilimitada/prolongada, capaz de produzir pelo menos um tipo altamente diferenciado — ou seja, uma célula que tem a capacidade de se dividir em células idênticas a ela ou em diferentes tipos de células”273, pode-se definir as célulastronco adultas como tais quando encontradas nos mais diferentes tecidos de um indivíduo adulto, as quais, “em cada um deles dão origem aos diferentes tipos celulares que constituem aquele tecido”.274 Elas, como células tecidoespecíficas “são responsáveis pela regeneração parcial275 273 Ibid, p. 75. Ibid, p. 75. 275 “Sabe-se, desde os anos 60, que alguns tecidos de um organismo adulto se regeneram constantemente. Isso acontece com a pele, com as paredes intestinais e principalmente com o sangue, que têm suas células destruídas e renovadas o tempo inteiro, em um complexo e finamente regulado processo de proliferação e diferenciação celular. Os estudos feitos há décadas sobre a hematopoiese (processo de produção de células sangüíneas) a partir de células-tronco multipotentes, localizadas no interior dos ossos, mostraram que elas originam células progressivamente mais diferenciadas e com menor capacidade proliferativa. Essas células-tronco podem gerar as linhagens precursoras mielóide e linfóide, que terminam por dar origem a todos os nove tipos celulares presentes no sangue, de hemácias a linfócitos. A renovação do sangue é tão intensa que diariamente entram em circulação cerca de 8 mil novas células sangüíneas. É assombroso que o 274 195 que nossos órgãos sofrem ao longo da nossa vida, dividindo-se em outras células-tronco e em células mais diferenciadas daquele tecido”276, como anteriormente explicitado, posto que as células-tronco tanto podem diferenciar-se em outras células como podem formar novas células-tronco idênticas à anterior. Acerca da matéria, expõe Lygia da Veiga Pereira: Até 1999, acreditava-se que, uma vez que uma CT tivesse sido programada para produzir um determinado tecido, seu destino estava selado, e ela não poderia se reprogramar para produzir outro tipo de tecido. Desde então, uma série de experimentos vem demonstrando que as CTs adultas são mais maleáveis do que imaginávamos 277. Por exemplo, em organismo consiga controlar um processo proliferativo tão exuberante, impedindo, em circunstâncias normais, que o número de células produzidas exceda o necessário e que as células liberadas na circulação estejam no estágio correto de diferenciação”. (CARVALHO, Antônio Carlos Campos de. op. cit., p. 03). 276 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 75. 277 “É relativamente recente a constatação de que, além da pele, do intestino e da medula óssea, outros tecidos e órgãos humanos – fígado, pâncreas, músculos esqueléticos (associados ao sistema locomotor), tecido adiposo e sistema nervoso – têm um estoque de células-tronco e uma capacidade limitada de regeneração após lesões. Mais recente ainda é a idéia de que essas células-tronco ‘adultas’ são não apenas multipotentes (capazes de gerar os tipos celulares que compõem o tecido ou órgão específico onde estão situadas), mas também pluripotentes (podem gerar células de outros órgãos e tecidos). O primeiro relato incontestável dessa propriedade das células-tronco adultas foi feito em 1998 por cientistas italianos, após um estudo – liderado pela bióloga Giuliana Ferrari, no Instituto San Rafaelle-Telethon – em que células derivadas da medula óssea regeneraram um músculo esquelético. Embora esse tipo de músculo também tenha células-tronco (‘células-satélite’), os pesquisadores usaram células da medula óssea, geneticamente marcadas para identificação posterior. Essas células, quando injetadas em músculos (lesados quimicamente) de camundongos geneticamente imunodeficientes, mostraram-se capazes de se diferenciar em células musculares, reduzindo a lesão. 196 Em outro experimento, em vez da injeção de células medulares diretamente na lesão muscular, os camundongos imunodeficientes receberam um transplante de medula óssea. Feito o transplante, os pesquisadores verificaram que as células-tronco (geneticamente marcadas, e por isso identificáveis como do animal doador) migraram da medula para a área muscular lesada do animal. Isso demonstrou que, existindo uma lesão muscular, células-tronco medulares adultas podem migrar até a região lesada e se diferenciar em células musculares esqueléticas. O trabalho, portanto, estabeleceu duas novas e importantes idéias: células-tronco de medula óssea podem dar origem a células musculares esqueléticas e podem migrar da medula para regiões lesadas no músculo. Nesse trabalho, porém, as células-tronco de medula, de reconhecida plasticidade, deram origem a células não medulares mas de mesma origem embriológica, já que tanto o tecido muscular quanto as células do sangue derivam do mesoderma (uma das três camadas germinais que aparecem no início da formação do embrião). Um resultado ainda mais surpreendente foi relatado, em janeiro de 1999, por cientistas liderados por dois neurobiólogos, o canadense Christopher Bjornson e o italiano Angelo Vescovi. Em seu trabalho, publicado na revista Science, com o título ‘Transformando cérebro em sangue: um destino hematopoiético adotado por uma célula-tronco neural adulta in vivo’, eles demonstraram que células-tronco neurais de camundongos adultos podem restaurar as células hematopoiéticas em camundongos que tiveram a medula óssea destruída por irradiação. Esse achado revolucionou os conceitos até então vigentes, pois demonstrou que uma célula tronco-adulta derivada de um tecido altamente diferenciado e com limitada capacidade de proliferação pode seguir um programa de diferenciação totalmente diverso se colocada em um ambiente adequado. Também deixou claro que o potencial de diferenciação das células-tronco adultas não é limitado por sua origem embriológica: células neurais têm origem no ectoderma e células sangüíneas vêm do mesoderma embrionário. Ainda em 1999, em outros estudos, células-tronco adultas da medula óssea de camundongos transformaram- se em precursores hepáticos e, pela primeira vez, células-tronco adultas de medula óssea humana foram induzidas a se diferenciar, in vitro, nas linhagens condrocítica (cartilagem), osteocítica (osso) e adipogênica (gordura). Em junho de 2000, um grupo do Instituto Karolinska (Suécia), liderado por Jonas Frisen, confirmou que células-tronco neurais de camundongos adultos têm capacidade generalizada de diferenciação, podendo gerar qualquer tipo celular, de músculo cardíaco a estômago, intestino, fígado e rim, quando injetadas em embriões de galinha e camundongo. Esse resultado quebrou todos os dogmas, indicando que uma célula-tronco adulta é capaz de se diferenciar em qualquer tipo de célula, independentemente de seu tecido de origem, desde que cultivada sob condições adequadas. Essa pluripotencialidade das células-tronco adultas coloca a questão do uso medicinal dessas células em bases totalmente novas. São eliminadas não só as questões ético-religiosas envolvidas no emprego das células-tronco embrionárias, mas também os problemas de rejeição imunológica, já que células-tronco do próprio paciente adulto podem ser usadas para regenerar seus tecidos ou órgãos lesados. Torna ainda possível imaginar que um dia não haverá mais filas para os transplantes 197 camundongos, células-tronco do cérebro são capazes de se diferenciar em vários tipos diferentes de células. E células do músculo, quando transplantadas em camundongos irradiados, conseguem reconstituir toda a linhagem de células hematopoiéticas desses animais. As CTs hematopoiéticas parecem ser ainda mais reprogramáveis. Essas células retiradas de crianças e adultos podem ser transformadas no laboratório em células precursoras de cérebro e de fígado, e em células de músculo, osso e cartilagem. Já existem diversos testes clínicos em seres humanos em terapias reparadoras de enfarto utilizando-se CTs de diferentes tecidos. Os primeiros resultados mostram que essas células são capazes de se diferenciar em células do músculo cardíaco, regenerando parcialmente esse músculo em um coração enfartado.278 As células-tronco adultas ou CTAs podem ser encontradas, então, em tecidos como o hematopoiético, o muscular, epitelial, nervoso e hepático e, por meio delas, foram realizadas as primeiras aplicações terapêuticas com células-tronco. Essas primeiras experiências com CTAs se deram por meio de transplantes autólogos (células do próprio paciente) ou alogênicos (células de doador aparentado ou não), sendo as experiências com as célulastronco do tecido hematopoiético como alternativa ao uso do de órgãos, nem famílias aflitas em busca de doadores compatíveis. Em breve, em vez de transplantes de órgãos, os hospitais farão transplantes de células retiradas do próprio paciente. Não há dúvida de que a terapia com células-tronco será a medicina do futuro”. (CARVALHO, Antônio Carlos Campos de. op. cit., 03). 278 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 76. 198 transplante de medula óssea no tratamento de leucemia aguda e leucemia mielóide crônica as que têm gerado melhores resultados. Mas, não é esse o único uso da CTA. Em cardiologia, as células-tronco hematopoética coletadas do próprio paciente têm tido sucesso em procedimentos que visam regenerar o músculo cardíaco afetado por infarto, atenuando, ainda, danos ao coração causados pelos mais diversos males, como, por exemplo, insuficiência crônica, doença da artéria coronária e os decorrentes de hipertensão. Em neurologia, busca-se por meio da terapia celular o tratamento da esclerose múltipla (doença inflamatória do sistema nervoso central, de natureza autoimune, com déficit neurológico progressivo), tendo sido realizado, no Hospital Albert Einstein, um estudo no qual as células-tronco hematopoiéticas do paciente com esclerose múltipla refratária, depois de, devidamente, coletadas e congeladas para que o doente possa submeter-se a imunossupressão com quimioterapia, são novamente colocadas no paciente para reconstituir seu sistema celular que estava defeituoso. Esse procedimento consiste, então, em intensa imunossupressão por quimioterapia e/ ou radioterapia, seguida da reconstituição do sistema imune com célulastronco hematopoiéticas do próprio paciente ou podendo mesmo ser de outro doador familiar ou não. Busca-se, com esta terapia, eliminar as células do sistema imune do doente que estão agredindo seu sistema nervoso e substituí-las por novas células derivadas das CTAs. Esse tipo de pesquisa tem se desenvolvido tanto no hospital citado como em outros no mundo todo com resultados satisfatórios, os quais chegam a 70% dos 199 pacientes com melhora em seus quadros clínicos, ou estabilização do quadro, quando submetidos a essa terapia.279 Mostra-se, portanto, como altamente promissor o potencial terapêutico das células-tronco adultas na cura de doenças antes sem qualquer esperança de cura, o que se tentará exemplificar, a seguir, com relatos recentes acerca de pesquisas relevantes realizadas por pesquisadores, no Brasil e no mundo. Em 26/04/2005, a BBC Brasil noticiou que célulastronco do cérebro, possivelmente, poderão ser usadas para a cura de diabetes. Em recentes pesquisas na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, um grupo de cientistas liderado pelo pesquisador Seung Kim realizou pesquisas com células-tronco do cérebro de animais adultos e, por meio da indução de células imaturas daquele órgão em cultura foi possível desenvolver células produtoras de insulina, as quais são escassas em pessoas portadoras de diabetes. Relata a notícia que a equipe do cientista descobriu que, ao adicionarem um coquetel de produtos químicos às células-tronco do cérebro de animais adultos, elas se transformaram e, embora não fossem idênticas às células produtoras de insulina, conseguiram produzir essa substância como resposta aos níveis de açúcar do sangue. Aqueles cientistas implantaram essas células em uma cavidade nos rins dos ratos, onde outros tipos de células produtoras de insulinas já sobreviveram e, ao subir o nível de açúcar no sangue daquelas cobaias, as células-tronco 279 LOTTENBERG, Cláudio L. MOREIRA-FILHO, Carlos A. Aplicações terapêuticas das células-tronco: perspectivas e desafios. Disponível em:: http://www.comciencia.br/reportagens/celulas > Acesso em: 23/05/05, às 10:11 hs. 200 maduras do cérebro implantadas começaram a produzir insulina, continuando a sua produção ainda quatro semanas depois (ou seja, as células ainda estavam vivas), sem, no entanto, terem desenvolvido qualquer tipo de câncer.280 Esses pesquisadores, anteriormente, vinham trabalhando com o uso de células-tronco retiradas de embriões para o tratamento de diabete, já que estas teriam a possibilidade de serem programadas para se transformar em diferentes tipos de tecidos. Contudo, tendo em vista a grande preocupação de que essas células pudessem se tornar cancerosas por causa do seu grande poder de diferenciação, pela dificuldade de manipulação em laboratório e as grandes questões éticas que envolvem tais células, desestimularam o uso destas por estes cientistas, os quais buscaram nas células-tronco adultas retiradas do cérebro o material necessário para pesquisa em busca da cura da diabete. Para os pesquisadores liderados por Seung Kim, embora essa pesquisa seja recente, há fortes indícios de que as célulastronco adultas possam ser usadas para substituir as células defeituosas produtoras de insulina, tornando possível àqueles portadores de diabete tipo 1 deixar o uso constante de injeções de insulina.281 Em 30/04/05, foi noticiado, no Jornal O Globo, acerca da recuperação da visão de cegos por meio da terapia com células-tronco adultas. Em um procedimento pioneiro, pesquisadores britânicos do Hospital Rainha Vitória, em 280 BBC Brasil, Célula-tronco cerebral poderia levar à cura de diabetes. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u13229.shml > Acesso em: 23/05/05, às 11:19 hs. 281 MAGALHÃES, Katiucia. Ribeirão faz cirurgia inédita com células-tronco em São Paulo. Matéria apresentada no Jornal Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uo..com.br/folha/ciencia/ > Acesso em: 23/05/05, às 11:19 hs. 201 Londres, conseguiram recuperar a visão de pacientes cegos por meio do uso de células-tronco cultivadas em laboratório para induzir a regeneração. Os pacientes cegos tratados tinham desde cegueira adquirida por acidentes como por problemas congênitos, tendo alguns deles até mesmo passado por transplantes de córnea mal sucedidos. Esses pacientes, em razão do dano sofrido em suas córneas, não apresentavam células-tronco nas mesmas, mas por meio da doação de células-tronco das córneas de outros indivíduos sadios, as quais foram, posteriormente, cultivadas em laboratório e transplantadas para a superfície dos olhos dos pacientes, houve a regeneração natural das áreas danificadas dos olhos, sem que houvesse qualquer sinal de rejeição, posto que, em exame realizado cerca de um ano depois, não havia qualquer indício de DNA do doador das célulastronco nos olhos dos pacientes. Isso significa, na verdade, que a recuperação foi realizada pelas próprias células do paciente, o que descarta a necessidade do uso prolongado de remédios imunossupressores. Os cientistas acreditam, ainda, que a técnica usada para cura da cegueira poderá ser reproduzida em outros órgãos reduzindo, consideravelmente, a necessidade de transplantes.282 Em 05/05/2005, foi declarado por cientistas americanos da Universidade do Tennessee, os quais foram chefiados pelo Dr. Antonin Bukovsky, que foram criados óvulos a partir de células-tronco retiradas do exterior dos ovários de cinco mulheres com idades entre 39 e 52 anos, o 282 Cegos recuperam a visão com célula-tronco. Jornal O Globo. Disponível em: http://www.cordvida.com.br/shownoticia.asp?noticia_id=60 > Acesso em: 06/06/05, às 10:00 hs. 202 que poderá, quando devidamente confirmado, resolver problemas de infertilidade feminina, menopausa precoce e, ainda, adiar a menopausa em até 12 anos. As células retiradas do exterior dos ovários (as quais são facilmente colhidas da superfície daqueles) foram expostas a uma solução estimulante de fenol vermelho em laboratório e completaram o primeiro estágio da divisão necessária para que os óvulos evoluam e se tornem embriões. Essa pesquisa, então, no futuro próximo, poderá propiciar que mulheres jovens congelem suas células e, possam, assim, ter uma gravidez mais tardia sem qualquer risco.283 Em 13/05/05 284, foi noticiado que no Hospital Especializado de Ribeirão Preto (privado), no Estado de São Paulo, três pessoas foram submetidas a cirurgias para a regeneração de nervos periféricos de mãos e pulsos, com aplicação de células-tronco adultas retiradas da medula óssea, tendo sido essas intervenções já realizadas, anteriormente, em hospitais em Porto Alegre e Recife. Os pacientes tinham lesões graves nas mãos e nos pulsos e, por procedimento cirúrgico com aplicação, por meio de um tubo de silicone, tiveram a aplicação das células-tronco retiradas de suas medulas, no mesmo dia. Em um período de 45 dias, estima-se que os pacientes possam recuperar até 90% dos 283 BBC Brasil. Cientistas criam óvulos a partir de células-tronco. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u13229.shtml > Acesso em: 23/05/05, às 11:19 hs. 284 Na mesma data, o Ministério da Ciência e Tecnologia anunciou uma previsão de investimento de R$ 11 milhões em projetos de pesquisas de procedimentos com o uso de células-tronco adultas. A proposta fora publicada, oficialmente, no edital do dia 20/04/05 e, segundo a assessoria do ministério, os projetos dos pesquisadores que se interessarem em recursos para tais pesquisas, deveriam ser entregues até 04/06/05, tendo as pesquisas, seu início, previsto para o dia 05/09/05. (MAGALHÃES, Katiucia. Pesquisa com células-tronco receberá R$ 11 milhões. Folha Ribeirão. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia > Acesso em: 23/05/05, às 11:50 hs). 203 movimentos das áreas lesionadas, fato este que, em cirurgias comuns, levaria até seis meses e proporcionaria uma melhora de apenas 40% da área lesada. Em 28/05/05, médicos do Instituto de Moléstias Cardiovasculares (IMC) de São José do Rio Preto, no Estado de São Paulo, noticiaram a implantação de célulastronco adultas em um paciente com trombose na perna esquerda em decorrência da paralisação de suas artérias, o que tinha como tratamento, até então, a amputação do membro doente. Com a inserção de células-tronco na perna doente do paciente, os médicos constataram um aumento na circulação das artérias em 51% comparado ao estado anterior ao implante e uma melhora na pressão circulatória, podendo o paciente, até mesmo, deixar de tomar os remédios que, anteriormente, tomava, a cada seis horas, para controlar a dor que sentia no membro afetado.285 Em 30/05/05, a equipe do Laboratório de Engenharia e Transplante Celular, do Núcleo de Miocardioplastia Celular da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Paraná, noticiou que realizou transplante celular pioneiro para regeneração do coração de um paciente de 40 anos com seqüelas de um enfarte do miocárdio. Nesta pesquisa, os cientistas utilizaram como método a cultura de duas células diferentes tratadas em laboratório, conjuntamente. Por meio da coleta de células musculares e célulastronco adultas do próprio paciente, multiplicadas em cultura e, posteriormente, reimplantadas no coração doente, os 285 SIQUEIRA, Chico. Amputação está cada vez mais distante, dizem médicos que implantaram células. Matéria divulgada no Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/ > Acesso em: 31/05/05, às 8:23 hs. 204 pesquisadores puderam perceber uma melhora no quadro clínico daquele, fazendo com que as funções do coração do paciente dessem sinal de possível assimilação das células transplantadas. Esse tratamento, mais especificamente, se deu com a retirada das células do músculo esquelético da perna do paciente, o qual tem a capacidade de se regenerar, para que haja no coração a volta da função contrátil, conjuntamente, multiplicando-se em cultura com célulastronco adultas retiradas da medula óssea do doente, as quais serão importantes na criação de novos vasos sangüíneos no órgão defeituoso, sendo ambas as funções essenciais para o bom funcionamento do coração. O cardiologista Paulo Roberto Brofman, professor da Pontifícia Universidade Católica de Curitiba e pesquisador do laboratório e o cardiologista Márcio Scorsin, o qual vem desenvolvendo essa pesquisa em ratos, desde 1990, em França, afirmam ser este método pioneiro, posto que, na literatura, nada ainda foi publicado acerca dele. O primeiro expõe que o paciente com insuficiência cardíaca tem um quadro clínico que pode decorrer da falta de capacidade das células do músculo cardíaco se reproduzirem e substituírem aquelas lesadas por enfarte, doenças inflamatórias ou mal de Chagas, o que comprometeria a função contrátil do coração e dificultaria o bombeamento do sangue para o corpo, sendo o transplante cardíaco o tratamento utilizado, até então. Como a terapia é de aplicação recente em humanos, esperar-se-á o prazo de seis meses para que se conclua a fase de segurança da pesquisa, com a apresentação dos resultados do procedimento realizado no paciente citado, e em outros nove pacientes, a Comissão de Ética em pesquisa com seres humanos e, assim, prosseguir com a expansão do feito para um número maior de pessoas, abrindo, ainda, 205 espaço para que outras instituições médicas interessadas possam se juntar a eles na realização do estudo.286 4.1.2 – Células-tronco do cordão umbilical Pode-se definir as células-tronco do cordão umbilical como células-tronco hematopoiéticas adultas imaturas (em relação àquelas encontradas em indivíduos adultos), que causam menos reação imunológica, e, portanto, têm menos risco de rejeição em transplantes287. As células-tronco do 286 FADEL, Evandro. Transplante celular pioneiro regenera coração. Matéria divulgada no Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/ > Acessado em: 31/05/05, às 9:21 hs. 287 Em 20/09/2004, foi veiculada pela Agência de Notícias da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a seguinte notícia: “Em entrevista à Agência FAPESP, a pesquisadora gaúcha Patrícia Pranke, que esteve no início de setembro participando do 50° Congresso Brasileiro de Genética, em Florianópolis, mostra porque a criação de mais bancos públicos para armazenar o sangue do cordão umbilical é uma decisão inteligente e sadia. Farmacêutica de formação, Patrícia é professora de hematologia da Faculdade de Farmácia e do programa de pós-graduação em ciências médicas da Faculdade de Medicina, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também leciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Fez doutorado no Hemocentro de Nova York, instituição que criou, em 1993, o primeiro banco de sangue público para células do cordão umbilical e da placenta. Agência FAPESP – Por que é tão importante armazenar o cordão umbilical dos recém-nascidos? Patrícia Pranke – Hoje, o cordão umbilical é visto como uma excelente fonte de células-tronco hematopoiéticas (células que vão formar o sistema imunológico). Uma vez que bebês nascem todos os dias, esse material, caso seja coletado corretamente, estará sempre pronto para o uso. Não será necessário sair correndo atrás de um doador, ou fazer exames para ver a compatibilidade e assim por diante. Esses exames, claro, foram realizados antes, no momento da coleta. Agência FAPESP – Que tipos de análises são realizadas? Patrícia – O HLA (exame de compatibilidade para antígenos leucocitários humanos). O nosso sistema imunológico é bastante complexo e, por causa disso, há 206 uma chance de apenas 25% de os candidatos ao transplante de medula terem doadores compatíveis dentro da mesma família. Então, na maior parte das vezes, é preciso partir para um doador fora da família. No caso do cordão, já vai se saber o tipo de sangue e o resultado do HLA. Assim, fica mais fácil concluir a doação. Agência FAPESP – A idéia desses bancos públicos é que eles funcionem como os hemocentros tradicionais? Patrícia – Exatamente. Nós temos que pensar em um banco público de cordão umbilical da mesma forma que um banco de sangue tradicional. Se o doente sofre um acidente hoje, ele não precisa ter guardado o seu sangue periférico para poder usar em uma eventual cirurgia. Não precisa porque ele vai usar naquele dia o sangue de alguém que havia feito a doação alguns dias atrás. É dessa forma que temos que encarar um banco de cordão umbilical público. Com uma quantidade adequada de amostras armazenadas, será possível ter uma diversidade de HLA, ou seja, variação genética suficiente para se achar doadores e receptores compatíveis. Quase toda a população poderá encontrar compatibilidade nesses bancos. Agência FAPESP – Isso significa que não é preciso guardar os cordões umbilicais de todos os nascimentos? Patrícia – Ninguém precisa se preocupar. Eu, por exemplo, não tenho o meu. Vou querer guardar o do meu filho. Se existirem bancos públicos bem estruturados, todas as variedades estarão contempladas. Será possível achar um doador para cada caso. Agência FAPESP – Como funcionam esses bancos públicos em outras partes do mundo, em relação à captação de doadores? Patrícia – No mundo inteiro a estrutura dos bancos funciona praticamente da mesma forma. A equipe do próprio banco público – e isso já existe em Porto Alegre, por exemplo – faz uma avaliação inicial. Nesse processo se busca identificar quais os hospitais com alta quantidade de partos por dia e que podem ter uma diversidade genética importante de cordões. Não se pode, nesse caso, privilegiar apenas um único tipo de variabilidade. O banco é que irá determinar os locais onde serão feitas as coletas. O processo funciona assim até para facilitar a questão econômica. Uma única enfermeira, por exemplo, pode acompanhar vários partos em um mesmo dia e fazer todas as coletas. É importante as pessoas entenderem isso. Não há necessidade de todo mundo sair coletando cordão umbilical. Agência FAPESP – A vantagem dos bancos públicos é apenas a de armazenar células-tronco que podem substituir o transplante de medula óssea? Patrícia – Esses bancos públicos têm outras vantagens importantes. Eles oferecem, por exemplo, uma oferta ilimitada de material celular. Além disso, a disponibilidade também é imediata, pois o sangue já está lá coletado. Outro ponto positivo: as células do cordão umbilical causam menor rejeição para o paciente do que as células transplantadas da medula óssea. Agência FAPESP – Há desvantagens? Patrícia – A principal desvantagem desse processo é o volume de sangue que pode ser coletado de cada cordão umbilical. Essa quantidade, como é sempre limitada, não permite o uso irrestrito do cordão. Por causa dessa limitação, até hoje apenas três mil pacientes se beneficiaram de células-tronco de cordão em todo o mundo. Desse total, dois terços foram crianças e um terço adultos. O tratamento pode ser 207 sangue do cordão umbilical e da placenta são multipotentes, o que significa ter capacidade de se especializar em um limitado tipo de tecido. Ao nascer um bebê, para se obter as células-tronco do cordão umbilical, deverão ser coletados de 80 a 100 mililitros do sangue contido no cordão e na placenta, podendo estes serem estocados e congelados a, aproximadamente, –135° C. Relata-se, que, “como as derivadas da medula óssea, as CTs do sangue do cordão umbilical também podem se diferenciar em outros tipos de células em cultura, representando uma fonte potencial de CTs adultas para transplante”.288 Essas células-tronco, então, têm sido vista por muitos pesquisadores como “uma alternativa para aumentar a disponibilidade de doadores, e reduzir o custo do transplante”289, o qual, hoje, tem grande dificuldade de realização em face da demanda, ou seja, há maior necessidade de doações do que disponibilidade de doadores. O uso terapêutico das células-tronco do cordão comprovado feito exatamente para as mesmas doenças que são tratadas com o transplante das células da medula óssea, que normalmente têm a ver com o sangue e com o sistema imunológico, como as leucemias. Agência FAPESP – Há estimativas de quantas unidades de cordão umbilical estão armazenadas no mundo? Patrícia – No Brasil, existe um banco público no Rio de Janeiro. Em São Paulo e em Porto Alegre já há instituições se estruturando também para fazer isso. No mundo, são mais de 130 mil unidades de cordão umbilical armazenadas. Do total, 90 mil são controlados por uma rede internacional, chamada Netcord. Há quase 100 bancos públicos no mundo, sendo que alguns são enormes. O Hemocentro de Nova York tem, segundo a Netcord, 21.248 cordões coletados. A partir dessa rede é possível, por exemplo, encontrar na Europa algum doador compatível para um caso de doença aqui no Brasil”. (GERAQUE, Eduardo. Cordões da Vida. Agência de Notícias da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. Disponível em: <http://www.agencia.fapesp.br/boletim>. Acesso em: 06/06/05, às 10:37 hs). 288 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 76. 289 LOTTENBERG, Cláudio L. MOREIRA-FILHO, Carlos A. op. cit., p. 1. 208 é, então, a reconstituição de células do sangue, substituindo a medula óssea nos pacientes que não têm doador. Destacase, acerca da matéria: As células de SCU são menos imunorreativas que as da medula óssea, permitindo o uso em transplantes não-aparentados idênticos ou parcialmente idênticos com menos complicações. As células de SCU podem ser criopreservadas e bancos públicos dessas células existem em vários países, destacando-se a iniciativa pan-européia Eurocord2. Em 2003 esses bancos já dispunham de 130.000 unidades de SCU disponíveis para transplante e 3.000 transplantes já haviam sido feitos desde 1998, com alta taxa de sucesso. O banco público possui importantes vantagens sobre o congelamento privado de SCU. A mais importante é que o transplante autólogo (com células do próprio paciente) tem resultado pior do que o alogênico (com células de um doador, aparentado ou não) em casos de leucemia, imunodeficiências e anemia aplástica. Além disso, a probabilidade de que uma criança vá precisar de suas próprias células é, segundo a maioria dos estudos, muito baixa (1:100.000), não justificando os custos do depósito para uso próprio. Presentemente, única desvantagem do uso de SCU é o que número de CTH por cordão varia conforme a doadora e as condições de coleta, limitando o transplante a pacientes na faixa de 50-60 kg de peso. Essa limitação deverá ser superada brevemente: técnicas de expansão ex-vivo das CTH derivadas do cordão estão sendo desenvolvidas por vários grupos 209 de pesquisa, entre os quais o do IEP Albert Einstein, o que aumentará o alcance dos bancos de SCU. O desafio brasileiro é estabelecer um banco público de SCU. A meta definida pelo projeto BrasilCord, de 1999, previa a coleta de 12.000 unidades de SCU em 3 anos (com o que estaria coberta diversidade genética da população brasileira) em 4 a 8 centros de processamento no país. Estudos de viabilidade técnica e econômica dessa rede foram revisados em 2002 por um grupo multi-institucional reunido no IEP Albert Einstein. A busca de células compatíveis de medula óssea com auxílio dos bancos internacionais é de USD 40.000,00 por paciente e o sistema público de saúde deve gastar USD 2 milhões por ano apenas nesse tipo de busca, considerando-se a meta de 50 transplantes/ano autorizados nessas condições. Isso, obviamente, não inclui o custo do transplante. Complicações derivadas da menor identidade genética entre doador e receptor aumentam o risco de complicações e o custo final do procedimento. A implantação completa do BrasilCord (equipamento dos centros, treinamento das equipes e custeio das operações de coleta) não superaria USD 10 milhões em 5 anos e permitiria a realização de 190 transplantes/ ano, com economia de USD 7,5 milhões/ ano de gastos no exterior. Além da vantagem econômica, estão a garantia da disponibilidade das células, a geração de tecnologia no país e a abertura para a pesquisa de outros usos 210 terapêuticos das CTH derivadas do cordão, o que, novamente, passa pelo banco público.290 Em 27/09/2004, o Ministério da Saúde anunciou a implantação da Rede Pública de Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário, a Brasilcord291, a qual 290 Ibid., p. 1. “Desde 1998, quando o Brasil, através de centros de pesquisas e hemocentros, passou a dominar a técnica de transplante de medula óssea que utiliza o sangue de cordão umbilical, a Sociedade Brasileira de Medula Óssea tomou a iniciativa de criar um grupo capaz de estruturar uma rede nacional pública de bancos de sangue de cordão umbilical. Em agosto de 2000, uma portaria do Ministério da Saúde regulamentou os primeiros padrões e procedimentos dessa rede, batizada com o nome fantasia de Brasilcord. Nos últimos três anos, membros integrantes da rede reuniram-se várias vezes com representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com o objetivo de definir regras específicas capazes de viabilizar o funcionamento de bancos públicos e privados de sangue de cordão. Em Julho de 2003, a Anvisa publicou norma definitiva regulamentando o funcionamento e restringindo a comercialização do sangue do cordão. O diretor do Centro de Transplante de Medula Óssea (Cemo), do Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro (RJ), Dr Luis Fernando Bouzas explica que a maior dificuldade encontrada para a montagem dos bancos de sangue é a falta de investimentos. Como a maioria dos bancos de sangue são de instituições públicas é necessário que o governo federal faça os investimentos necessários. Além disso, a criação da rede coincidiu com o período de troca de comando no governo federal. Assim, a gestão passada não chegou a investir grandes somas no projeto e a nova gestão, que levou um certo tempo para entender a necessidade dos investimentos, também não os realizou ainda. Mesmo assim, o diretor do Cemo acredita que, em 2004, ocorrerão grandes avanços nessa área. Ela ressalta que a relação custo/benefício decorrente da montagem e manutenção dos bancos de sangue é excelente. Atualmente participam da rede as seguintes instituições: Hemocentro de Ribeirão Preto-SP, Hospital Albert Einsten-SP, Hospital das Clínicas-SP, Instituto Nacional do Câncer-RJ, Universidade Federal do Paraná- Curitiba-PR, Unicamp-CampinasSP. Todas essas instituições deverão cadastrar as suas unidades no Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome). Os pacientes com indicações para transplante de medula óssea também deverão estar cadastrados no Redome. Dessa forma será possível fazer um cruzamento de informações visando identificar o doador compatível. Uma grande vantagem dessa rede é que as células-tronco do cordão estão disponíveis imediatamente. De acordo com o médico hematologista Gil de Santis, do Hemocentro de Ribeirão Preto, a iniciativa de criação de um banco de sangue do cordão brasileiro se deu pela 291 211 dificuldade de localização de possíveis doadores em bancos internacionais, principalmente no Eurocord, que é o banco de sangue europeu, e também pelo alto custo que isso representa. A importação de uma unidade de sangue de cordão umbilical de bancos internacionais custa US$ 32 mil. A coleta e armazenamento de cada bolsa de sangue de cordão realizada aqui no Brasil custa ao Sistema Único de Saúde (SUS), aproximadamente US$ 3 mil. Gil explica que a miscegenação da população brasileira dificulta muito encontrar um doador europeu que corresponda às suas características. Dessa forma, a criação de um banco de sangue brasileiro aumenta as chances de localização de possíveis doadores, com maior rapidez. Dados do Redome mostram que a chance de localização de um doador brasileiro é vinte vezes maior que a localização de um possível doador nos bancos internacionais. Além disso, como a proposta é ser uma rede pública, o objetivo é atender o maior número possível de pessoas gratuitamente. Mas isso depende essencialmente de investimentos que, segundo o médico, só podem ser feitos pelas autoridades governamentais. ‘O custo de montagem de um laboratório para conservação das bolsas de sangue de cordão é muito alto. Obviamente que com o tempo e o aumento do número de bolsas de sangue, o custo tende a diminuir, mas o investimento inicial é muito alto e só o governo pode bancar’, afirma Gil de Santis. De acordo com informações do Dr. Luiz Bouzas, o INCA possui atualmente um banco de sangue de cordão capaz de armazenar 3 a 4 mil unidades e teve um custo de montagem da ordem de R$ 1,5 milhão, investimento que ele considera pequeno se comparado com o benefício que trará a população. A técnica disponibilizada atualmente nesses transplantes está voltada aos pacientes com doenças hematológicas graves como leucemia, anemia falciforme e talassemia. Mas nada impede que, com o avanço das pesquisas, o sangue do cordão umbilical possa ser utilizado na cura de outros tipos de doenças. Conservação e riscos de contaminação Uma das preocupações do processo é em relação à contaminação e aos possíveis riscos de contaminação. O início se dá na coleta do cordão umbilical, logo após o nascimento. Quando já não há mais contato com a mãe e o bebê, o sangue do cordão umbilical é retirado e armazenado em uma bolsa e depois congelado em tanque de nitrogênio líquido. Santis afirma que não há perda de qualidade no sangue congelado. ‘Já foram realizados testes com bolsas de sangue descongeladas mais de dez anos depois de colhidas as amostras e as características do sangue permaneceram inalteradas não representando, portanto, perigo algum para o receptor’, explica ele. Ainda de acordo com o hematologista, existem pesquisadores que consideram possível o congelamento do sangue por período indefinido. Mas isso só o tempo confirmará. O que se sabe, com certeza, é que o sangue pode ficar congelado por um período superior a quinze anos sem sofrer alterações e isso é bastante importante. Outro fator fundamental na manutenção da qualidade do sangue congelado é o teste de esterilidade microbiológica. Assim que o sangue é retirado do cordão uma pequena amostra vai para teste com o objetivo de confirmação da qualidade do 212 deverá ter dez unidades instaladas em hemocentros distribuídos pelas cinco regiões do país, tendo como cidades-sede dos bancos as cidades de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), na Região Sudeste; Brasília (DF), na Região CentroOeste; Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS), na Região Sul; Belém (PA), na Região Norte; Recife (PE), na Região Nordeste. O Ministério da Saúde tem planos de investir em torno de R$ 46 milhões na criação e estruturação desses bancos, sendo empregados, até 2006, R$ 18 milhões (R$ 9 milhões por ano) para implantação da estrutura física da rede. No primeiro ano de funcionamento da Brasilcord, o Ministério da Saúde investirá, aproximadamente, R$ 28 milhões para coleta e manutenção de quatro mil amostras de sangue do cordão umbilical, caindo, posteriormente, esse custo para R$ 14 milhões nos anos subseqüentes. Espera-se que, em cinco anos, toda a diversidade étnica brasileira esteja coberta com vinte mil amostras de sangue coletados e criopreservados, o que não impede que a meta do Ministério seja ainda melhorada, posto que se planeja, em oito anos, ter, em torno de cinqüenta mil cordões armazenados para atender a demanda de crianças e adultos que necessitarem de transplantes. Desse universo de amostras, estima-se que 70% serão coletados nas regiões Sul e Sudeste, ficando o Norte, Nordeste e o Centro-Oeste com os 30% restantes. sangue. Caso seja encontrada alguma contaminação no sangue recolhido a bolsa é imediatamente descartada. (Brasilcord favorece investimentos para bancos de sangue. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/celulas/07.shtml >. Acesso em: 06/06/05, às 10:31 hs). 213 Estima-se, ainda, que sejam gastos, em média, R$ 1,3 milhão para equipar cada um dos bancos com o material necessário para coleta e armazenamento, ou seja, freezers, balanças, centrífugas, estufas, botijões criógenos e tanques de nitrogênio, tendo, também, um gasto com pessoal de, aproximadamente, R$ 580 mil por ano, tendo em vista que se necessita ter, em cada banco, dois biomédicos, três enfermeiros, um hemoterapeuta e um assistente administrativo. Ter-se-á, ainda, um sistema de informação com dados de todas as unidades, a fim de manter a integração dos bancos de sangue de cordão umbilical na rede e fazer o monitoramento, o controle de qualidade e a distribuição segundo a lista única de receptores, a qual encontra-se centralizada no Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Espera-se que, à medida que haja a necessidade de transplantes, sejam consultados os bancos sobre as características das amostras de sangue de cordão umbilical e placentário armazenadas, sendo essas amostras, quando necessário, transportadas até o local onde o paciente estiver aguardando o transplante, sendo este realizado de acordo com os critérios médicos de prioridade. A Brasilcord, então, quando em funcionamento, garantirá que 100% das diversidades biogenéticas dos brasileiros estejam representadas, o que significa que um grande número de brasileiros poderão encontrar, aqui mesmo, doadores compatíveis para realização de transplante de medula óssea, representando a probabilidade de se encontrar um doador compatível, em números, um aumento de 35% para 90%. Ademais, essa medida representa, ainda, uma economia de aproximadamente U$ 21 mil, tendo em 214 vista que a busca por um cordão umbilical compatível, em bancos do exterior, custa, em média, U$ 23 mil para o País, custo este que se reduziria a U$ 2 mil por cordão, já no primeiro ano de implantação do Brasilcord. Será função da Brasilcord, também, proporcionar o desenvolvimento de pesquisas regionais em biologia molecular e genética, utilizando células-tronco adultas e criar uma rede de armazenamento de tecidos como a pele, ossos, ligamentos, vasos e válvulas cardíacas. A doação à Brasilcord do sangue dos cordões umbilicais e plancentário é voluntária e deverá ser determinada pela família do recém-nascido, antes do parto. Depois de formalmente autorizada, a coleta será realizada logo após o nascimento do bebê, quando o médico deverá extrair o sangue, rico em células-tronco adultas, do cordão umbilical descartado, o qual, após um processo de depuração (“limpeza”), será congelado a 90° negativos para, posteriormente, ser crio-conservado em tanques de nitrogênio a 180° negativos. Estima-se que, após um ano de implantação do Brasilcord, este será auditado de acordo com as normas técnicas e éticas do Netcord, que hoje é o maior banco público de células-tronco de cordão umbilical do mundo e que conta com cerca de 150 mil amostras em seu estoque e abrange todos os bancos da Europa, EUA (Nova York), Austrália, Japão e Israel, sendo, a partir do momento de ligação, também integrado ao Brasil, o que representa ter-se este acervo à disposição tanto para busca de casos raros como para intercâmbio de pesquisa. 215 Como iniciantes do Brasilcord, encontram-se já em funcionamento os bancos públicos instalados no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), localizado na cidade de São Paulo e o do Instituto Nacional do Câncer (INCA), localizado na cidade do Rio de Janeiro, recebendo os demais o dinheiro acima especificado para que, nos prazos fixados, estejam devidamente funcionando. O banco localizado no HIAE conta, ainda, com a parceria com a Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto, e a Universidade de Campinas (UNICAMP), onde funcionam hemocentros preparados para coleta e armazenamento do sangue coletado. Acredita-se que, quando se atingir a meta de 12 mil amostras coletadas e armazenadas, o tempo médio de busca por um doador compatível seja de cerca de 20 dias, o que reduz, em muito, o tempo gasto com a procura por um transplante. A formação dos bancos públicos é importante, ainda, em face de que esses bancos, pelo mundo, trabalham com excesso de oferta, não havendo fila de espera para realização dos transplantes, mas sim, dois ou mais cordões compatíveis para cada demanda, o que se espera conseguir, aqui, também. Essa notícia é relevante, no sentido de que, hoje, das cerca de três mil indicações anuais para realização de transplante de medula óssea, no Brasil, um mil e quinhentos não possuem doador aparentado, o que significa enfrentar uma grande fila de espera, ou a procura, em média, por seis meses, por um doador, no exterior, o que custa, aproximadamente, U$ 40 mil, inviabilizando o tratamento para aqueles de baixa renda. 216 As células-tronco do cordão umbilical, então, tornaram-se uma alternativa ao transplante de medula óssea, já que, com elas, é possível tratar leucemias, linfomas, anemia aplástica e doenças hereditárias do sangue com melhores resultados, posto que, em vez dos 100% de compatibilidade, necessários entre doador/receptor, para o transplante de medula óssea, o transplante com célulastronco do cordão necessita de apenas 70% de compatibilidade. Ademais, a coleta deste é também mais simples, posto que é retirado o sangue do cordão que sempre foi descartado após o nascimento do bebê, enquanto que a extração das células da medula do doador requer uma pequena cirurgia com a ministração de anestesia geral.292 Mais especificamente, a forma de coleta de sangue do cordão umbilical passa pelas etapas de triagem, coleta, análise e consulta, conforme roteiro da ABRALE e do INCA: 01) Triagem: as mães dispostas a doar passam por uma triagem desde o pré-natal. São excluídas aquelas que apresentarem desordens genéticas familiares e outros, e aquelas que tenham deixado de realizar pelo menos duas consultas no pré-natal. 02) Coleta: passada a triagem, o sangue do cordão é coletado tanto em partos naturais quanto em cesáreas. A coleta é acompanhada por três 292 Governo lança rede bancos públicos de sangue de cordão umbilical, pela Agência de Saúde, fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.sauderibeirao.com.br/ver_ noticia.asp?id=205 > Acesso em: 06/06/05, às 10:15. São Paulo terá banco público de sangue do cordão umbilical. Disponível em: http://www.hospitalar.com.br/notícias > Acesso em: 06/06/05, às 10:17. 217 formulários: um materno e familiar, um histórico do parto do recém-nascido e um termo de consentimento livre e esclarecido, que regulariza a doação do material. Também é retirado sangue materno para a triagem sorológica de doenças como hepatite (sic) e Aids. 03) Análise: o material coletado é acondicionado sob refrigeração. Depois, passa por uma contagem do número de células e de volume. Se esses números forem baixos, a coleta (sic) é desprezada. Caso apresente boa celularidade, a unidade é processada. 04) Consulta com a mãe e o bebê: há uma consulta com a mãe, de dois a seis meses após o nascimento, para novos exames de sangue e observação do estado, caso tenha ocorrido alguma anormalidade, a unidade de sangue é descartada. Só após esses exames a unidade tem sua tipagem realizada e disponibilizada no registro. Podem doar mães com menos de 36 anos, cujo bebê venha a nascer com idade gestacional maior de 35 semanas e peso maior que 2 kg. Algumas exigências são feitas antes da coleta, similares às requeridas para doação de sangue. Antes do parto, a mãe deverá passar por uma triagem clínica (entrevista). Segundo a legislação, dias após o parto, a mãe deverá retornar ao banco de sangue para uma nova 218 entrevista e coleta de sangue para a realização dos testes laboratoriais.293 Esclarece-se, ainda, que o que garante a qualidade do material armazenado é o fato de que o sangue do cordão umbilical passa por vários testes e é armazenado em tanques de “quarentena” até a liberação final, o que se dá após o retorno da mãe para a coleta do sangue. Até hoje, o relato que se tem como o mais antigo armazenamento de célulastronco do cordão umbilical por crio-preservação, são células que estavam congeladas há quinze anos e, após o descongelamento, encontravam-se intactas. Relata-se, também, que outros tipos de células humanas preservadas por criogênese mantêm-se viáveis, por mais de 55 anos, o que cria a esperança de que, em sendo corretamente armazenadas, possa ocorrer também com as células-tronco do sangue do cordão umbilical. Em estudos realizados em anos anteriores, relatava-se que o número de células-tronco do sangue do cordão e da placenta seriam insuficientes para transplantar pessoas adultas, sendo possível o transplante apenas em crianças e adultos de até, aproximadamente, 60 kg, não sendo possível tratar um adulto com apenas uma bolsa de sangue. Contudo, em 26/02/2005, pesquisadores estadunidenses da Universidade de Cleveland e do Centro Nacional de Transplante de Sangue, de Nova York, provaram o contrário acerca da matéria. Em pesquisa, descobriu-se que adultos tratados com as células-tronco do sangue do cordão Sangue do Cordão Umbilical e Placentário – SCUP. Fontes: ABRALE E INCA. Disponível em: http://www.abrale.org.br/doencas/celulas/index.php > Acesso em: 06/06/05, às 10:35 hs. 293 219 umbilical tinham as mesmas perspectivas de cura que doentes tratados por meio de transplantes de medula. Dos 682 adultos com leucemia aguda pesquisados, uma parte recebeu tratamento com as células-tronco do cordão, enquanto a outra foi submetida ao tradicional transplante de medula óssea, o que resultou que ambos os grupos foram beneficiados, não havendo diferenças significativas nas taxas de mortalidade ou alterações na sobrevida dos pacientes relacionadas ao transplante nos dois grupos, permitindo-se, então, ver as células-tronco do sangue do cordão como uma alternativa promissora para pacientes que precisam de um transplante de medula. O sangue do cordão é uma promissora alternativa na luta contra doenças que necessitam de transplante de medula para a cura, posto que este necessita de 100% de compatibilidade do doador com o receptor, ou seja, precisa atender a seis fatores de compatibilidade, enquanto que o transplante com células-tronco do cordão apenas precisaria preencher quatro dos seis fatores de compatibilidade, aumentando as chances de encontrar alguém compatível. Não se sabe, exatamente, a razão dessa menor necessidade de compatibilidade das células-tronco do sangue do cordão em relação ao transplante de medula óssea, contudo, acredita-se que isso se dá em função de as células-tronco do cordão umbilical serem mais imaturas, se comparadas com as células-tronco constantes na medula óssea, e, portanto, mais aptas a se diferenciarem, reconstruindo o tecido afetado, em sua plenitude. A pesquisa foi publicada no “New England Journal of Medicine” e trouxe um alento à comunidade científica que 220 acreditava serem inúteis as células-tronco do sangue do cordão para tratamento de adultos com mais de 60 kg.294 A primeira vez que se teve notícia, em literatura científica, acerca do uso de células-tronco do cordão umbilical como alternativa para o transplante de medula óssea foi em 1988, no Hospital Saint-Louis, em Paris, por meio da médica francesa Eliane Gluckman.295 A médica tinha um de seus pacientes com anemia de Fanconi e, não tendo tempo para buscar um doador de medula óssea compatível, ela introduziu no doente, células-tronco do sangue do cordão umbilical de sua irmã para, assim, tentar estagnar a doença. Após este caso, o uso das células-tronco do sangue do cordão umbilical tem sido visto, em todo mundo, como uma alternativa promissora ao transplante de medula, como fora especificado. Em 24/05/05, foi noticiado na mídia que as células do cordão umbilical foram essenciais no tratamento de bebês com uma desordem do cérebro (conhecida como “Krabbe disease”) que pode levar à morte. Essa doença é pouco conhecida, por ser rara, e é fatal, permitindo que os pacientes sobrevivam apenas até os dois anos de idade. Por meio do transplante com células-tronco do cordão de terceiros doadores, as características da doença, seus sinais, deixaram de aparecer nos bebês, que tiveram um 294 Células-tronco de sangue do cordão eficazes em tratamento de leucemia em adultos. Matéria veiculada pelo Jornal O Globo. Disponível em: http://cordvida.com.br/shownoticia.asp?noticia_id=56 > Acesso em: 06/06/05, às 12:00 hs. 295 GERAQUE, Eduardo. Células-tronco do cordão umbilical, o cordão da vida. Disponível em: http://brownzilians.het.brown.edu/noticia/news > Acesso em: 06/06/05, às 10:22 hs. 221 crescimento normal, contando o mais velho seis anos e meio, atualmente.296 Discute-se, ainda, acerca da relevância dos bancos públicos de sangue do cordão umbilical em relação aos bancos privados e se, quanto a estes, há verdadeira necessidade deles. No Brasil, já há diversas clínicas privadas que fazem a coleta de sangue do cordão umbilical e placentário, os quais permanecem crio-preservados para, se um dia se tornar necessário, poderem ser usados por quem os guardou. Exemplos desses bancos são o Hemomed Cordcell, o Cord Vida e o Criogênesis na cidade de São Paulo, e o Cryopraxis, na cidade do Rio de Janeiro, os quais “estocam” sangue do cordão a um custo aproximado de quatro mil reais no primeiro ano e, mais seiscentos reais por ano de manutenção e armazenamento desse sangue. Com o avanço da ciência e as notícias veiculadas pela mídia, constantemente, acerca do poder de cura de diversas doenças por meio das células-tronco, muitos têm sido os casais que têm procurado esses bancos a fim de guardar o sangue do cordão de seus filhos ao nascer. Acreditam esses casais, que, ao proceder dessa forma, estariam realizando uma espécie de “seguro de vida” da criança. A crítica que essa conduta tem recebido é no sentido de que a probabilidade de uso desse sangue pelo próprio doador é de um para 20 mil, o que não justifica a sua crio-preservação em um banco privado, devendo este ser doado a um banco público, onde poderia ser usado por qualquer pessoa, tendo em vista, ainda, o fato de, normalmente, em um transplante, 296 Cordão umbilical ajuda nenéns a sobreviver a uma doença fatal (em inglês). Disponível em: http://www.cordvida.com.br/shownoticia.asp?noticia_id=63 > Acesso em: 06/06/05, às 11:00 hs. 222 ser utilizado sangue de terceiro, posto que a maioria das doenças hematológicas está nos genes do próprio doador.297 4.1.3 – Células-tronco embrionárias O desenvolvimento de um ser humano inicia-se com a concepção do óvulo pelo espermatozóide, formando desta união uma única célula com potencial para formar um organismo inteiro. Esse óvulo fecundado é uma célula totipotente, ou seja, com capacidade de formar todos os tecidos do corpo, por meio do processo de diferenciação. 297 Em 14/03/05 a Revista Época n° 356 noticiou o seguinte quadro, destacando as diferenças entre o banco público de sangue de cordão umbilical e o particular: (BLANC, Valéria. A polêmica do cordão. Revista Época, n° 356 de 14/03/05, Disponível em: <http://www.epoca.com.br >. Acesso em: 23/05/05, às 11:00 hs.) “No banco público – A mãe doa o sangue do cordão umbilical, células são congeladas, armazenadas e usadas por qualquer pessoa que precisar de transplante, no caso de amostra compatível. – O governo federal arca com todas os custos e compromete–se a investir em sua rede de bancos, a Brasilcord, R$ 9 milhões por ano. – A meta é coletar 4 mil cordões por ano e, em cinco anos, alcançar 20 mil unidades. Hoje, há cerca de 1.500. No banco particular – Os pais pagam pela coleta, sorologia, pelo processamento e armazenamento do sangue do cordão do bebê. – A probabilidade de uso do próprio sangue armazenado é baixíssima, 1 em 20 mil, já que a maioria das doenças hematológicas está nos genes do próprio doador. As empresas incentivam a guarda dizendo ser uma aposta nas pesquisas do futuro. – Os valores de armazenamento giram em torno de R$ 4 mil no primeiro ano e os de manutenção em R$ 600 por ano. – A demanda particular cresceu entre 25% e 50% nos últimos seis meses, conforme o estabelecimento”. 223 A primeira célula do embrião, então, é vista como uma “supercélula-tronco”, que dará formação a todas as outras células e, por isso mesmo, dentro das células-tronco, uma classe considerada especial é a das células-tronco embrionárias, as quais foram isoladas, inicialmente, em camundongos na década de 1980 298. Elas são derivadas de um embrião nos estágios iniciais do desenvolvimento, antes de ser implantado no útero materno, quando ainda encontra-se como blastocisto, o qual se divide em dois grupos que dão origem à placenta e ao embrião que se desenvolverá e formará todos os outros tipos de células. Nesta fase, então, essas células com alto poder de diferenciação e replicação, podem se dividir em outras idênticas a ela, ou seja, com o mesmo poder totipotente de diferenciação (é nesta fase que se podem desenvolver gêmeos idênticos) e, elas, segundo os pesquisadores, não são encontradas no indivíduo adulto. À medida que o embrião se desenvolve, formando um novo indivíduo, suas células vão se tornando mais especializadas e deixam, portanto, de ser totipotentes, passando a ser multipotentes, sendo, então, capazes de se diferenciar apenas em alguns “As células-tronco embrionárias são estudadas desde o século 19, mas só há 20 anos dois grupos independentes de pesquisadores conseguiram imortalizá-las, ou seja, cultivá-las indefinidamente em laboratório. Para isso, utilizaram células retiradas da massa celular interna de blastocistos (um dos estágios iniciais dos embriões de mamíferos) de camundongos. Essas células são conhecidas pela sigla ES, do inglês embryonic stem cells (células-tronco embrionárias), e são denominadas pluripotentes, pois podem proliferar indefinidamente in vitro sem se diferenciar, mas também podem se diferenciar se forem modificadas as condições de cultivo (sic). De fato, é preciso cultivar as células ES sob condições muito especiais para que proliferem e continuem indiferenciadas, e encontrar essas condições foi o grande desafio vencido pelos cientistas”. (CARVALHO, Antônio Carlos Campos de. op. cit., p. 2). 298 224 tipos de células e tecidos. Pesquisas apontam que as células totipotentes estão presentes até o décimo-quarto dia após a fecundação, surgindo, depois desse período, as células pluripotentes, que conseguem diferenciar-se na maioria dos tecidos, e as multipotentes que são capazes de se desenvolver apenas em alguns tipos de tecidos. Gravura 3: Células-tronco embrionárias: As células-tronco embrionárias são denominadas pluripotentes, porque podem proliferar indefinidamente in vitro sem se diferenciar, mas se diferenciam se forem alteradas as condições de cultivo.299 O embrião, ou pré-embrião como chamado por muitos cientistas, nessa fase até o 14° dia, e por eles considerado como “um conglomerado amorfo de células”300, contém as células-tronco totipotentes que, se acredita, se tratadas em cultura, são capazes de se diferenciar em quaisquer tecidos do organismo301, posto que tais 299 Ibid., p. 2. PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 74. 301 A pesquisadora Dra. Mayana Zatz, em entrevista ao Dr. Drauzio Varella, ao ser questionada se, no momento da fecundação, quando o espermatozóide fecunda o óvulo e começam as primeiras divisões celulares, surgindo, assim, as células totipotentes que vão obrigatoriamente dar origem a todos os tecidos do corpo, se 300 225 experiências, em ratos, têm sido bem sucedidas. Por exemplo, as CTs embrionárias retiradas do blastocisto, em cultura com ácido retinóico, poderiam gerar neurônios; em cultura com fator XPTO, poderiam gerar músculo cardíaco; em cultura com fator ABC, poderiam gerar células sangüíneas. A pesquisa com células-tronco embrionárias era proibida até a aprovação da Lei n° 11.105/2005, ou Lei de Biossegurança, a qual foi votada, em 03 de março do corrente ano, pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, no dia 24 do mesmo mês, permitindo a pesquisa com embriões humanos remanescentes de fertilização assistida, que sejam inviáveis e se encontrem congelados há três anos ou mais, mediante autorização dos pais. Com a possibilidade de pesquisa com estes embriões, os pesquisadores esperam viabilizar a cura de vários tipos de doenças como as degenerativas, as genéticas e, ainda, possibilitar que membros, que se encontram inertes, possam estas permaneceriam no indivíduo adulto, respondeu: “As totipotentes não. Elas existem até quando o embrião atinge 32 a 64 células. A partir daí, forma-se o blastocisto cuja capa externa vai formar as membranas embrionárias, a placenta. Já as células internas do blastocisto, que são chamadas totipotentes, vão diferenciar-se em todos os tecidos humanos”. Falou, ainda, que as células totipotentes precisam ser colhidas “até a divisão em 64 células. Indicam as pesquisas ainda em andamento que até 14 dias depois da fecundação, as células embrionárias seriam capazes de diferenciar-se em quase todos os tecidos humanos. Depois disso, começam a dar origem a determinados tecidos. Os adultos conservam células – por exemplo, na medula óssea – que têm a capacidade de diferenciar-se em vários tecidos, mas não em todos. Elas também existem no cordão umbilical, mas já são células-tronco adultas que não conservam a capacidade das células embrionárias”. (VARELLA, Drauzio. Caracterização das células-tronco. Disponível em: <http://drauziovarella.com.br/entrevistas/celulastronco>. Acesso em: 06/06/05, às 11:44 hs). 226 voltar a ter movimentos como no caso de pessoas que se tornaram tetraplégicas em razão de acidente. Os cientistas302 que buscam as pesquisas com esses embriões alegam que eles seriam destruídos de qualquer forma, porque, provavelmente, seriam descartados e que não há vida neles, porque ainda não se formou a placa neural, que se dá a partir do décimo-quarto dia de formação, estando, os embriões congelados, em seus primeiros dias de desenvolvimento. Em abril do corrente ano, após a aprovação e sanção da lei de biossegurança foram publicados, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, conjuntamente com o Ministério da Saúde, dois editais, um de R$ 5 milhões, destinado à pesquisa na etapa pré-clínica no uso terapêutico de célulastronco adultas e, o outro, no valor total de R$ 11 milhões, envolvendo também as pesquisas com células-tronco embrionárias. Esses ministérios, ainda, criaram um grupo de 302 Uma das cientistas que mais tem se pronunciado junto à mídia acerca do uso das células-tronco embrionárias, é a Dra. Mayana Zatz, professora titular de genética e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano – Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), para a qual os embriões congelados não têm vida até que se forme a placa neural e o seu uso é que poderia, sim, gerar vida. Ela afirmou, em entrevista à Revista Consulex n° 180, de 15/07/2004, que os embriões que são descartados em clínicas de fertilização são de má qualidade e que não teriam potencial para gerar uma vida, se fossem inseridos em um útero, mas “mantêm a capacidade de gerar linhagens de célulastronco embrionárias e, portanto de gerar tecidos”. Questiona, ainda, a pesquisadora na entrevista se: “É justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar um embrião, cujo destino é o lixo? Um embrião que mesmo que fosse implantado em um útero teria um potencial baixíssimo de gerar um indivíduo? Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, não estamos na realidade criando vida? Isso não é comparável ao que se faz hoje em transplante quando retira-se os órgãos de uma pessoa com morte cerebral (mas que poderia permanecer em vida vegetativa)”. (ZATZ, Mayana. op. cit., p. 28). 227 trabalho interministerial, com membros dos dois ministérios e pesquisadores para, em 90 dias, elaborar um estudo relativo ao uso das células-tronco em pesquisas e aplicações terapêuticas, o qual subsidiará o programa de governo para a área. Pretende-se, também, que após a elaboração, este documento seja colocado em consulta pública para que a sociedade em geral e as pessoas que convivem com portadores de doenças degenerativas possam participar da discussão.303 Acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, quando realizadas com ratos em laboratório os quais foram imuno-suprimidos (sem sistema imunológico), ao receberem as células-tronco embrionárias em seu organismo, estas acabaram por criar tumores. Os pesquisadores dizem que, estas células, antes de serem injetadas no paciente, deverão ser analisadas para ver se têm compatibilidade e, ainda, deverão ser tratadas, o que implica induzi-las, in vitro, para a produção daquilo que se necessita para o tratamento (por exemplo, se necessita de neurônios, dever-se-á tratar as células-tronco com ácido retinóico; de músculo cardíaco, Fator XPTO; de células sanguíneas, Fator ABC). Quando se tratam em meio de cultura as célulastronco embrionárias, elas poderão se transformar em qualquer tecido celular específico de que se tenha necessidade. 303 Ministérios criam grupo de trabalho para estudar pesquisas com célulastronco. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=27630 > Acesso em: 31/05/05, às 9:21 hs. 228 Gravura 4: Células-tronco embrionárias se diferenciam em cultura: Estudos em laboratórios de vários países já conseguiram que as células-tronco embrionárias se diferenciassem, em cultura, em diversos tipos celulares. Ocorre que esta aplicação das células-tronco embrionárias ainda está longe de ocorrer, posto que há várias questões a serem resolvidas pelos cientistas, antes de se iniciar qualquer terapia com as células-tronco embrionárias.304 A pesquisadora da USP, Lygia Pereira da Veiga, já vem, há algum tempo, trabalhando com células-tronco 304 PEREIRA, Lygia da Veiga. op. cit., p. 66/67. 229 embrionárias importadas dos EUA e trabalhou com estas células, de camundongos, quando realizou seu doutoramento no Hospital Mount Sinai, em Nova York. Nestas pesquisas, foi que veio a perceber a necessidade de tratamento antes da implantação em face do risco de tumores. Estes ocorreriam, em tese, porque, atualmente, ainda não há total controle da diferenciação de que são capazes as células-tronco embrionárias. Um câncer ou um tumor ocorre, quando há uma produção exacerbada de novas células ou, ainda, quando há uma resistência maior de células diferenciadas à morte. Classicamente, afirmava-se que um câncer era uma célula imortal, ou uma célula que apresentava características embrionárias o que, significa, não apresentar um estado de diferenciação muito claro e que tem notória capacidade de proliferação. Este conceito, em evolução, apresentou-se, também, como sendo uma célula incapaz de diferenciar-se, refletindo isto o antigo conceito de um tumor com uma doença de células com características embrionárias, no indivíduo adulto. Nos dias atuais, seu conceito evoluiu para a concepção de que “câncer é uma doença da célulatronco”.305 Afirma-se, ainda, acerca do câncer que: (...) um tumor, seja um tumor sólido, seja uma leucemia (câncer nas células do sangue), se comporta como uma unidade tecidual, com uma dinâmica de renovação que envolve proliferação e morte de uma população celular heterogênea. Esta heterogeneidade 305 BRAGA, Flávio Henrique Paraguassu; BONOMO, Adriana. Células-tronco e câncer: vida e morte com uma origem comum? Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/celulas/13.shtml > Acesso em: 23/05/05, às 10:39 hs. 230 aparece principalmente em relação ao potencial proliferativo dessa população (...) Uma determinada leucemia pode ser vista como um tecido hematopoiético anormal iniciada por CTLs que sofrem um (sic) desenvolvimento aberrante e pouco controlado. As CTLs podem ser CTHs que se tornaram leucêmicas como resultado de alterações acumuladas ou progenitores mais comprometidos que readquiriram capacidade de autorenovação da célula tronco. Mais recentemente, isso foi demonstrado para leucemias humanas, por Blair e colaboradores e Bonnet e Dick. Utilizando camundongos imunodeficientes (animais desprovidos de sistema imune e portanto incapazes de rejeitar quaisquer células), mostraram que apenas uma fração de células leucêmicas de leucemia mielóide aguda (LMA) era capaz de gerar doença (por exemplo, proliferar). Essa população correspondia à fração com características de células-tronco, similares às células-tronco hematopoiéticas. Mais do que isso, mostraram que as outras populações, que não apresentam as características da célula-tronco não eram capazes de gerar a doença e que a freqüência das células capazes de gerar a doença era extremamente baixa, variando de 0,2 a 1% da população total de células. 231 Muitas leucemias, e alguns tumores sólidos também, apresentam anormalidades genéticas que, por sua vez, caracterizam a patologia ou, por outras vezes, correlacionam com o prognóstico da doença. De qualquer forma, tais anormalidades nos gens, que envolvem deleções ou translocações de cromossomos ou suas partes servem para identificar essas células tumorais e talvez sua origem. Ainda na leucemia mielóide aguda (LMA), a anormalidade cromossômica mais comum é a translocação de parte do cromossomo 8 que se justapõe ao cromossomo 21, identificado como um transcrito quimérico chamado AML1-ETO. Em pacientes em remissão da LMA, o transcrito AML1-ETO, pode ser encontrado nas células-tronco hematopoiéticas normais, e as mesmas células quando isoladas são capazes de gerar células sanguíneas normais, assim como não foram capazes de gerar leucemia. O que indica que a translocação ocorreu nas células-tronco, mas alguma ou algumas alterações a posteriori foram necessárias para a transformação maligna. Isto é verdade em outros tipos de leucemias, como na leucemia mielóide crônica, onde um produto de translocação gênica (específico dessa leucemia) aparece não só nas células leucêmicas, mas também em células hematopoiéticas normais e também em outros tipos celulares como no endotélio. Este último tem a mesma origem embriológica que as células do sangue, indicando que a translocação ocorreu numa célula tronco embrionária, que originou tanto o tecido hematopoiético que se malignizou quanto os vasos sanguíneos que são normais. 232 A manutenção de um tecido tumoral baseado em uma célula-tronco tumoral leva a complicações biológicas no curso da doença. A maioria dos métodos de tratamento quimioterápicos tem (sic) como alvo células em proliferação (células vermelhas). As células-tronco (células azuis) são pouco freqüentes e quiescentes portanto resistentes a esses tratamentos. A longo prazo elas voltam a compor um novo tecido tumoral. Baseados nos estudos da biologia da célulatronco, a diferenciação das células-tronco tumoral, a tornaria sensível à quimioterapia. O mesmo aconteceria ao estimular a proliferação da célulatronco tumoral (células verdes). Acredita-se que a transformação maligna se dá pelo acúmulo de mutações, que podem ser acompanhadas ou não de aberrações cariotípicas (anomalias genéticas citadas acima). A probabilidade das alterações ocorrerem se relaciona ao potencial proliferativo da população em questão. Por isso, essa transformação maligna pode não ocorrer na célula-tronco, que é uma célula com freqüência quiescente, mas pode ocorrer em seus progenitores, que são células que passam por vários ciclos de divisão para expansão da população periférica. De fato, podemos até propor que a baixa freqüência das células tronco adultas somado a sua quiescência as (sic) protegem de mecanismos de transformação maligna”.306 (grifou-se) Como se pode perceber, há estudos científicos nos quais se demonstra que há grandes possibilidades de que o uso de células-tronco embrionárias em terapia pode não ser viável, posto que seu grande potencial de diferenciação e 306 Ibidem. 233 proliferação pode, na verdade, não ser objeto de cura, mas sim, causador de um grande mal que é o câncer. Mas, tal situação será, posteriormente, analisada em capítulo acerca das terapias com células-tronco. Ademais, em um estudo estadunidense com células-tronco embrionárias que foi recentemente concluído, não houve grande esperança médica realizada, já que não se conseguiu curar paraplégicos ou não se conseguiu tratamento para doenças graves e incuráveis. Nessa pesquisa, os cientistas usaram células-tronco cultivadas em laboratório para criar um “modelo” que servisse para observação de como ocorrem as infecções pelo vírus da herpes. Por meio da técnica de transformação ou diferenciação das CTs embrionárias em vários tipos de tecidos, eles puderam perceber a forma como o vírus age, ao atacar o organismo humano. Ao detectar o vírus, a célula ativa seu sofisticado sistema de reparação do DNA, o qual existe para corrigir os danos ocorridos em seu próprio código genético por causa da doença. Ocorre que, isso é, exatamente, o que espera o vírus que aconteça, realizando este uma captação das proteínas usadas no sistema e, assim, a sua replicação, deixando todo o mecanismo celular à mercê do vírus. Contudo, nem todas as células sofrem o mesmo efeito, posto que os neurônios não têm um sistema de reparos do DNA tão agressivo, permitindo ao vírus que fique em estado de dormência até que novas células ao redor 234 dos neurônios possam ser infectadas, quando houver baixa da imunidade do indivíduo.307 Por outro lado, em um estudo realizado em Londres, na Universidade de Cambridge e publicado pela revista Nature Genetics, cientistas afirmaram que as células-tronco embrionárias extraídas de embriões humanos, descartados devido a abortos, não são tão instáveis quanto se pensava que fossem para o seu uso em terapia. Em face de fatores bioquímicos que controlam o chamado impriting (mistura genética) em cada um, o qual é herdado tanto do gene paterno quanto materno, havia um certo receio de que a combinação dos genes pudesse se tornar potente demais, desenvolvendo, de forma incorreta, numa terapia e, em análise de seis genes de quatro linhagens de células-tronco embrionárias humanas, pode-se perceber que não há tanta instabilidade nestas quanto havia nas células-tronco embrionárias de camundongos, que sofriam alterações no decorrer do processo.308 Sendo assim, acerca das células-tronco embrionárias pode-se concluir que nada, ainda, pode ser prometido como sendo certo ou realizável, posto que os cientistas em muito divergem quanto ao seu poder de cura ou não, não se podendo, portanto, falar em terapia por meio dessas células, até o presente momento. 307 NOGUEIRA, Salvador. Estudo norte-americano expõe outro lado de célulatronco. Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ > Acesso em: 23/05/05, às 11:30 hs. 308 Cientistas mostram que células-tronco são estáveis. Disponível em: http:/www.estadao.com.br/ciencia/ > Acesso em: 15/06/05, às 7:45 hs. 235 4.2 – Origem e função das células-tronco Como já foi exposto, as células-tronco são células que podem se diferenciar e constituir diferentes tecidos no organismo e, ainda, têm poder de auto-replicação, o que significa que têm condições de gerar cópias de si mesmas, sendo, por isso, possíveis substitutas em tecidos lesados ou doentes, em casos como os de mal de Alzheimer, Parkinson, doenças neuromusculares, em geral, diabetes, entre outros. Elas podem ser encontradas em embriões, em indivíduos adultos e no sangue do cordão umbilical. Mais especificamente, as células encontradas nos embriões são aquelas totipotentes ou pluripotentes. As primeiras são aquelas presentes nas primeiras divisões celulares que o embrião sofre, na fase de 16 a 32 células (aproximadamente, três ou quatro dias de vida); as segundas surgem, quando o embrião atinge a fase de blastocisto, ou seja, na fase entre 32 e 64 células (aproximadamente, a partir do quinto dia de vida). As células que se encontram internamente no blastocisto são células-tronco pluripotentes, enquanto as células da membrana externa destinam-se a produzir a placenta e as membranas embrionárias. Para alguns pesquisadores, nas pluripotentes também estariam incluídas as multipotentes (seriam sinônimas); mas, a classificação adotada seria aquela que considera estas últimas como células-tronco com capacidade de formar um número menor de tecidos do que as pluripotentes. Existem, também, células-tronco oligopotentes, as quais podem se diferenciar em poucos tecidos e que são 236 encontradas, por exemplo, no trato intestinal e as unipotentes, que conseguem se diferenciar em um único tecido, sendo encontradas, por exemplo, no tecido cerebral adulto e na próstata. Por causa do seu poder de auto-replicação e de diferenciação, elas teriam a função de ajudar no reparo de uma lesão no organismo, regenerando-o, constantemente, em face de suas próprias funções ou de partes lesadas por doenças/ acidentes, sendo um exemplo de regeneração as células-tronco da medula óssea, que têm a função de regenerar o sangue, renovando as células sangüíneas. As células-tronco, então, recebem um “comando” do próprio organismo para que, durante o desenvolvimento do ser humano (por todo ele) ajam de forma a diferenciar-se e, assim, produzam o necessário para aquele organismo. Mas, quando há uma doença ou ocorre um acidente, a parte lesada não consegue mais se regenerar, e por meio da terapia celular, realizar-se-ia a substituição de tecidos doente por células saudáveis. 4.3 – Possibilidades de uso de terapia com célulastronco e seus riscos Nos dias atuais, o que se tem já comprovado é a possibilidade de uso em terapia das células-tronco encontradas nos indivíduos adultos (sendo, nesse caso, as mais eficientes as encontradas na medula) e aquelas encontradas no sangue do cordão umbilical e placentário. 237 Como nos exemplos anteriormente expressados, as células-tronco adultas têm demonstrado que possuem uma capacidade de diferenciação muito maior do que se acreditava ter quando se iniciaram as pesquisas com as células-tronco. Hoje, já se tem conhecimento de que elas podem se transformar em tecido cardíaco, neurônios, reconstruir cartilagem309, tecidos danificados por queimaduras, atuar na cura da diabete, da leucemia etc. Já, em relação às células-tronco embrionárias, muito se tem discutido nos meios científicos se, realmente, elas têm o poder que a elas é atribuído por parte dos cientistas, e se, em razão do seu alto poder de diferenciação e auto-replicação, não seriam causadoras de tumores. Mas, antes de se falar em riscos em relação à terapia, cabe estabelecer do que se trata a terapia celular com células-tronco. Esta, segundo a Dra. Mayana Zatz, “é uma 309 Em cirurgia inédita realizada no Hospital São Luiz, em São Paulo, reconstruiu-se a cartilagem do joelho de um jovem de 18 anos que sofria de uma doença do crescimento conhecida como osteocondrite dissecante, que se caracteriza pela morte de um segmento de osso e da cartilagem que recobrem a articulação do joelho, por meio do implante de células-tronco mesenquimais coletadas da medula do osso da bacia do próprio paciente. Foram retiradas, através de uma seringa especial, aproximadamente 100 mil células, as quais foram multiplicadas em laboratório até atingir o número de 27 milhões de células, número esse acima do necessário para a reconstrução da área lesada (necessitava de 10 milhões de células para a reconstrução). O especialista que realizou a cirurgia, Dr. Ari Zecker, afirmou que o melhor da cirurgia é o fato de que não há risco de rejeição, já que as células foram retiradas do próprio paciente. Segundo ele, ainda, essa cirurgia beneficiará tanto a atletas que sofrem grandes lesões das cartilagens como poderá beneficiar, no futuro, doentes que sofram de artrose (doença articular degenerativa), já que é recomendada para quem sofre com lesões de cartilagem com tamanho superior a dois centímetros. O médico ressaltou que, no Brasil, não existe ainda um sistema que permita a realização em larga escala deste procedimento, o qual leva em torno de uma hora e meia e tem um custo aproximado de R$ 12 mil. O paciente, após cinco meses da realização da cirurgia, será submetido a uma nova cirurgia por vídeo (artroscopia), para confirmar o crescimento da cartilagem. (Célula-tronco da medula trata lesão no joelho. Disponível em: http:/www.estadao.com.br/ciencia/ > Acesso em: 15/06/05, às 7:50 hs). 238 terapia celular para tratar doenças e lesões por meio da substituição de tecidos doentes por células saudáveis”.310 Essa substituição se daria através da cultura de célulastronco in vitro com substâncias ou fatores de diferenciação que determinariam que aquelas células se transformassem em certos tecidos; pode-se, ainda, como já comprovado com células-tronco adultas retiradas da medula, realizar o transplante de células-tronco sadias que seriam colocadas no local danificado para realizarem a cura do problema que ali se encontra (ex.: tratamento de leucemia, que já é comprovadamente eficiente, onde se retira células-tronco da medula óssea de um doador e implanta no paciente com leucemia e, assim, as novas células implantadas passarão a fabricar novas células sangüíneas sadias); estuda-se, também, a possibilidade de que células-tronco, em contato com um tecido diferenciado, possam se transformar naquele tecido, como no caso das células-tronco inseridas próximas ao tecido cardíaco para regeneração de problemas no coração, já havendo vários casos de cirurgias desse tipo no órgão citado que têm gerado boas expectativas em relação a esse tipo de possibilidade (ex.: auto-transplante de célulastronco retiradas da medula do paciente e injetadas no seu coração, realizaram uma melhora significativa no quadro clínico de pessoas com insuficiência cardíaca). Os dois últimos casos, apesar de ambos tratarem de transplante de células-tronco adultas da medula, se diferenciam no sentido de que, no primeiro há renovação e multiplicação de células sadias retiradas de um terceiro doador enquanto, no segundo, há reconstrução de tecido afetado por meio de células-tronco retiradas do próprio paciente. 310 ZATZ, Mayana. O que é uma terapia com células-tronco. Disponível em: http://www.estadao.com.br > Acesso em: 15/06/05, às 8:00 hs. 239 Estabelecido o que vem a ser a terapia, cabe, também, ressaltar os riscos que ela implica. Inicialmente, destaca-se a possibilidade de haver rejeição em relação ao material utilizado pelo receptor da terapia, o que não ocorre quando há o auto-transplante, já que, neste, as células utilizadas são da própria pessoa. Um segundo risco que é discutido entre os pesquisadores é a possibilidade de que a célula transferida gere um tipo de mutação que leve, possivelmente, à malignidade. Isso, como já fora especificado, pode se dar em relação às células-tronco embrionárias, mas não no tocante às CTs adultas. Acerca desse assunto, a Dra. Lilian Piñero Eça fez o seguinte dossiê científico falando acerca do risco de uso de células-tronco embrionárias em terapias: Em nosso Congresso Nacional tem-se levado pacientes com as mais variadas doenças degenerativas para pressionar os parlamentares a (sic) liberarem as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas (CTEHs), afirmando que serão curados com estas células. Sugerem até que teremos nossa vida prolongada, pois, tais células, são imortais. Trata-se, no entanto, de propaganda enganosa. Confirmando esta afirmação, Jonathan Knight expõe a sua preocupação e da comunidade científica com as expectativas da panacéia proposta pelos meios de comunicação para as CTEHs. Diz que uma boa dose de realidade se faz necessária ao se tratar desse tema. Por que (sic) NÃO à terapia com CT Embrionárias? 240 Justificativas baseadas em fatos científicos: 1) No caso de utilização das células de embriões humanos que provêm das RA, trata-se de um transplante heterólogo, com grande possibilidade de rejeição, visto que à (sic) medida que estas células se diferenciam para substituir as lesadas (ou que desapareceram), num tecido degenerado, começam a expressar as proteínas responsáveis pela rejeição (MHC, major histocompatibility complex (sic)). A probabilidade de compatibilidade parcial é de 1 em 1 milhão, sendo que o paciente receptor das CTEHs transplantadas teria de tomar imunossupressores o resto da vida. 2) Allegrucci e col. afirmam que as CT de embriões congelados estão longe de ser a mais perfeita fonte de células para terapias, pois originam teratomas (tumores de caráter embrionário), muitos deles terrivelmente invasivos, no trem posterior de ratos ou camundongos onde são aplicadas as CTs provenientes de embrião humano. 3) Além disto ocorrem (sic) metilações no DNA dos embriões congelados que não são passíveis de identificação, aumentando o risco de silenciamento de genes importantes para função celular, nestas células provenientes de embriões humanos e desta forma não nos dará entendimento correto nos estudos dos sinais destas células que é a alegação dos pesquisadores a favor da Lei da Biossegurança. 4) Discute-se outro problema observado nas culturas de CTEHs: o total descontrole das mesmas, surgindo diferenciação em diferentes tecidos na placa de cultura, de tal modo que surgem vasos, junto de 241 neurônios e mesmo cardiomiócitos pulsantes, etc... um Frankstein em cultura? 5) Cada blastocisto dá de 100 a 154 CTEs e eu gostaria de saber quantos embriões humanos frescos deveriam ser sacrificados em tal terapia. (sic) Na terapia com autotransplante de CTs adultas proveniente da medula óssea são necessárias um total de 40 milhões desta suspensão de CTs, portanto se um blastocisto fornece uma média de 100 células necessitaremos de 400.000 embriões 311, pois não podemos expandir o número destas células em placas por motivo de contaminação. 6) (sic) rectius: Andrews e Thompson, em 2003, refere os resultados mostrando que as CT humanas mostram anormalidades cromossômicas à (sic) 311 Em matéria veiculada na Folha de São Paulo de 31/03/2005, restou demonstrado que, em um censo realizado pela Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), que há somente um décimo do número previsto de embriões congelados no país: “Censo realizado pela SBRA (Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida) revela a existência de 9.914 embriões congelados nas 15 maiores clínicas de reprodução brasileiras. Desses, 3.219 estão congelados há mais de três anos, critério essencial para a utilização em pesquisas com células-tronco (CTs) embrionárias aprovadas pela Lei de Biossegurança. O número representa, no máximo, um décimo do estimado pelos cientistas durante a tramitação da lei no Senado, em 2004. No ano passado, eles previram contar com 30 mil embriões nessas condições. Hoje, eles próprios admitem que o número foi ‘chutado’ por pesquisadores envolvidos nas pressões para que as pesquisas fossem aprovadas no Congresso. (...) Segundo a ginecologista Maria do Carmo Borges, presidente da SBRA, ainda não se sabe quantos dos embriões congelados há mais de três anos estariam disponíveis para a pesquisa. Ainda é preciso que os progenitores formalizem a doação. (...) Na avaliação de Lygia Pereira, os cientistas já contam com uma perda significativa com o processo de descongelamento dos embriões. ‘Dos sobreviventes, só uma parte conseguirá se desenvolver. Por isso, é importante que essa pesquisa comece de forma responsável, para não desperdiçarmos os poucos recursos que temos aqui no Brasil’”. (COLLUCCI, Cláudia. Total dos embriões congelados no Brasil é um décimo do previsto. Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www.folha.com.br/ciencia/noticia>. Acesso em: 06/06/05, às 10:00 hs). 242 medida que se diferenciam, havendo risco inclusive de se malignizarem. 7) (sic) rectius: Na NEWSWEEK (Nov. 8, 2004, pgs. 38-40), são (sic) relatados (sic) experimentos de CTHEs realizados na Rússia para o ‘tratamento’ do envelhecimento: suspensões de CTEHs foram injetadas em vários pontos da face e do couro cabeludo para acabar com rugas e cabelos brancos dos pacientes. Alguns dias após estes tinham, além de suas rugas e cabelos brancos, vários tumores do tamanho de ervilhas espalhados pela cabeça, confirmando o que foi dito acima. 8) (sic) rectius: Quanto à (sic) clonagem terapêutica 312 : não se conseguiu até agora clonar um primata. Ao se tentar obtém-se meia dúzia de células aneuplóides (células cujos núcleos contém (sic) 312 No editorial da Folha de São Paulo, de 23/05/05, e na Revista Ciência Hoje n° 216, de junho de 2005, foi noticiado que os mesmos cientistas que, anteriormente, tinham noticiado a primeira clonagem de embrião humano, realizaram a clonagem de 11 linhagens de células-tronco embrionárias humanas. Eles necessitaram de 185 ovócitos (sic) para a produção das 11 cepas. Com este feito, eles provaram a possibilidade de se realizar a clonagem terapêutica que produz células-tronco embrionárias sob medida, o que, em terapia, eliminaria o problema da rejeição. Mas, o experimento também possibilita que cientistas de todo o mundo conheçam a “receita” para a produção de cepas de células-tronco que padeçam de doenças genéticas, o que, segundo a notícia, pode ser fundamental para a compreensão da evolução de moléstias em nível celular. “Entre as medidas utilizadas pelos cientistas para aumentar a eficiência está a utilização de óvulos frescos (e não sobras congeladas de tratamentos de fertilidade) e de mulheres jovens (que menos freqüentemente procuram essas terapias). A pergunta que se formula (sic) é se é ético pedir as voluntárias que se submetam aos procedimentos necessários para doar ovócitos (sic) (hiperestimulação ovariana e cirurgia), que envolvem risco pequeno, mas não negligenciável, uma vez que não haverá benefício direto para elas nem para parentes que hoje sofram de moléstias incuráveis”. (Avanço da ciência. Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=28297>. Acessado em: 31/05/05, às 10:14 hs / Células-tronco sob medida. Revista Ciência Hoje de divulgação científica da SBPC, vol 36, nº 216, junho de 2005, p. 15). 243 números (sic) diferentes de cromossomos, diferente de 46 no caso humano). Assim, não se consegue um embrião humano na fase de blastocisto, cujas células seriam necessárias para se fazer um transplante homólogo de CT tiradas deste embrião clonado (produzido para tal finalidade), que para tal seria obviamente destruído. A razão do insucesso foi explicada: são necessárias proteínas provenientes do espermatozóide para guiar a divisão celular da maneira adequada. 9) (sic) rectius: Feeder layers são camadas de tecidos do feto de qualquer estágio, vendidas em U$ nos Estados Unidos, as quais estão sendo utilizadas para garantir a qualidade do cultivo das células tronco embrionárias, pois quando se utiliza: soro fetal bovino ou fígado de camundongo há contaminação das células com proteínas animais e também contaminação por vírus HIV, hepatite B e C. 10) (sic) rectius: Uma das alegações científicas para se justificar o estudo das células embrionárias, é que só através delas poderíamos estudar o tratamento das “doenças genéticas” como a distrofia muscular, pois as células-tronco não apresentariam o mesmo genoma do doente podendo desta forma curálo. Esta alegação não tem mais fundamento como podemos observar no trabalho de Joel R. Chamberlain e cols publicado na Science 2004. Neste trabalho o protocolo utilizado foi o transplante com células tronco adultas, modificadas geneticamente, na doença genética Osteogenesis Imperfecta (sic), a qual origina desordens ósseas no esqueleto. Os resultados demonstrados foram um sucesso. 244 11) (sic) rectius: ‘Célula adulta age como embrionária’313, de acordo com o cientista Rudolf 313 Em matéria veiculada no Jornal O Estado de São Paulo, de 07/05/05, falou-se acerca de experiência realizada por um cientista estadunidense e sua equipe que conseguiu, por meio da manipulação de células-tronco adultas, fazer com que estas agissem da mesma forma como as embrionárias agem. Diz a matéria citada: Célula adulta age como embrionária “Descoberta sobre células-tronco, publicada em revista científica, traz nova esperança na criação de terapias para doenças degenerativas. ‘É o melhor dos dois mundos.’ Assim a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP), define o novo trabalho de seu colega de profissão Rudolf Jaenisch, membro do prestigiado Instituto Whitehead, nos Estados Unidos. Na nova edição da revista especializada CELL (www.cell.com) ele desvenda o mecanismo que permite certas células-tronco adultas se comportarem como embrionárias, com a capacidade de multiplicar em laboratório ao mesmo tempo que se mantêm indiferenciadas. O segredo está guardado em uma ‘chave’ molecular, o gene Oct-4. A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, ‘segurando’ as células para não se diferenciarem antes da hora. No tempo certo, o gene se desliga e as células então formam os tecidos certos, como cardíaco, ósseo, cutâneo e daí em diante. Com o controle do gene, é hipoteticamente possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas neste estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos. As células-tronco têm a capacidade virtual de formar diversos tecidos do corpo e, por esse motivo, são encaradas atualmente como uma esperança na criação de terapias para doenças degenerativas como mal de Parkinson e diabete. Elas são encontradas no corpo em locais como medula óssea, sangue e cérebro. Porém, são aquelas retiradas de embriões que têm tal versatilidade multiplicada e são mais fáceis de serem cultivadas artificialmente. Por outro lado, as células-tronco embrionárias estão no centro de um debate ético sobre a validade de usar embriões humanos – que para alguns grupos, como os católicos, podem ser considerados seres vivos – na pesquisa de novos métodos terapêuticos, que podem aliviar o sofrimento de milhões de pessoas no mundo. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, onde Jaenisch está baseado, não financia o trabalho com células-tronco embrionárias, apenas adultas, por questões mais religiosas do que científicas, decisão que engessou algumas linhas de pesquisa no país. O novo estudo se esquiva da polêmica. NOCAUTE Jaenisch se firma no trabalho de um pesquisador do seu laboratório, Konrad Hochedlinger, que por curiosidade ‘ligou’ o gene Oct-4 dormente em camundongos transgênicos para saber o que ocorria. Como conseqüência, os animais tiveram tumores no intestino e na pele porque as células se desenvolviam de forma descontrolada. Por outro lado, quando o gene era ‘desligado’ ou ‘nocauteado’, como 245 Jaenisch (USA). O segredo está guardado em uma ‘chave’molecular, o gene Oct-4. A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, ‘segurando’ as células para não se diferenciarem antes da hora. No tempo certo, o gene se desliga e as células então formam os tecidos certos. Com 12) o controle do gene, é possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas neste estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu dizem os geneticistas, o tumor enfraquecia, um indicativo de que o processo pode ser revertido. ‘(A ativação do gene) Pode levar à formação de um câncer, por isso é importante saber o momento de desligá-lo’, comenta a geneticista da USP. A expressão do gene Oct-4 já havia sido observada em certos tumores, como câncer de testículo e de ovário. Já a expansão reversível ‘de células progenitoras da pele pela indução do Oct-4 pode ser de um potencial interesse médico (...), que podem ser usados na regeneração da epiderme’. Como para tratar vítimas de queimaduras, escrevem os cientistas na revista CELL. POTÊNCIA Apesar de a dupla evitar a expectativa criada em torno da descoberta, o que mais chama a atenção na experiência simples é, (sic) a possibilidade, (sic) de se manipular as células-tronco adultas da mesma forma que se trabalha com a variação embrionária. O cultivo em laboratório é um processo essencial para que o cientista possa estudálas e para a viabilidade de tratamentos. Só que, normalmente, uma célula tirada de um tecido adulto começa quase que imediatamente a se transformar. Sua manutenção indiferenciada exige o uso de substâncias químicas cujos efeitos ainda não foram completamente esclarecidos nem mantidos em longo prazo. ‘Jaenisch mostra que é possível multiplicar quase infinitamente essas células sem que elas percam a pluripotência (a capacidade de formar qualquer tecido)’, explica Lygia. A ferramenta genética, diz ela, aumenta a possibilidade de se utilizar a fonte adulta. Para o americano, a descoberta fornece uma nova maneira de encarar as célulastronco, pois torna possível implantá-las de volta no paciente sem a formação de tumores. O laboratório, localizado dentro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), continua a pesquisar o potencial do gene Oct– 4. Agora, eles testam sua ativação que (sic) pode facilitar a reprogramação de células somáticas (qualquer uma exceto os gametas sexuais) e a manipulação de células-tronco embrionárias para cada paciente. Jaenisch é um pioneiro no trabalho com transgenia. Ele foi o criador do primeiro animal transgênico e conduziu a primeira correção genética em camundongos pela clonagem terapêutica”. (Célula adulta age como embrionária. Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.cordvida.com.br/shownoticia.asp>. Acesso em: 23/05/05, às 10:00 hs). 246 campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos. (Revista cell www.cell.com) Há alternativa: Vem crescendo o número de trabalhos onde se verifica, com sucesso, a recuperação de tecidos ou órgãos lesados utilizando as CT adultas. O trabalho de Nadia Rosenthal, publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences (sic) (PNAS), sobre o sucesso em usar as CT adultas para recuperar tecido muscular.314 Vê-se que em se falando de terapia com célulastronco, o que há de certo, até agora, é que apenas por meio de células-tronco adultas tratamentos podem ser realizados, devendo, ainda, mesmo em relação a estas serem feitas diversas pesquisas para que se possa, realmente, ter certeza e segurança quanto às possibilidades que a elas são atribuídas. Por outro lado, em relação às células-tronco embrionárias, nada há, ainda, que comprove a sua eficácia em terapias ou a falta dela, já que, nesse campo, ainda vivese em uma “penumbra” de hipóteses, somente se sabendo acerca da sua totipotencia, ou seja, poder de diferenciação e multiplicação nos mais diversos tecidos do corpo humano. Ademais, em relação a estas, há muita polêmica acerca do uso de embriões humanos em pesquisas, posto que, para 314 EÇA, Lílian Piñero. Cientista brasileira entrega o Dossiê científico para o Procurador Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles em 2/05/05 em Brasília. Texto recebido por e-mail da própria autora a pedido da mestranda, por meio do endereço eletrônico [email protected]. Para melhor compreensão do trabalho apresentado pela Dra. Lílian, no Anexo de transcrição do programa, encontra-se uma entrevista desta ao programa de televisão Tribuna Independente apresentado em 06 de maio de 2005, na Rede Vida, onde melhor explicita as idéias resumidas no texto. 247 retirada das células-tronco embrionárias, deve-se sacrificar aquele que as contém, ou seja, os embriões. Esta matéria será, posteriormente, tratada a partir de uma perspectiva constitucional tendo em vista, sempre, o que determina a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°, acerca da inviolabilidade do direito à vida. 4. 4 – A pesquisa com células-tronco 4.4.1 – Estágio atual das pesquisas com célulastronco 4.4.1.1 – Nos Estados Unidos Quanto à legislação estadunidense, pode-se dizer que é uma das mais restritivas do mundo acerca do uso de embriões humanos em pesquisas. Naquele país, sete estados proíbem qualquer tipo de clonagem humana e onze possuem leis que impedem a pesquisa com células-tronco embrionárias. Há pouco financiamento federal neste tipo de pesquisas; no entanto, há certa liberdade no setor privado em relação a elas, já que em alguns Estados da federação estas são perfeitamente permitidas em embriões até o décimo-quarto dia de vida. Em relação ao setor privado, a empresa Advanced Cell Technology (ACT) tem se destacado 248 nas pesquisas referidas e anunciou, já algum tempo, a clonagem de um embrião humano. Em 08/03/2005, após quatro anos de intensos debates sobre o significado da vida humana, os EUA conseguiram que a assembléia-geral da ONU, com 84 votos a favor e 34 contra e com uma abstenção de 37 representantes, aprovasse uma declaração proibindo qualquer tipo de clonagem humana. Mas, esta não é vinculante a qualquer dos 191 países membros da Organização das Nações Unidas, sendo que mesmo com estas, vários são os países que continuarão a permitir a pesquisa com embriões humanos.315 Contudo, em 24/05/2005, a câmara aprovou um projeto de lei que expande o financiamento federal para a pesquisa com células-tronco embrionárias, com uma votação de 234 votos a favor e 194 contra. Esta é primeira votação acerca destas pesquisas, desde agosto de 2001, quando o Presidente Bush permitiu o uso de dinheiro federal para estudo limitado as colônias de células-tronco ou linhagens já existentes. Apesar da votação, o presidente se manifestou contrariamente ao projeto, anunciando seu veto. O projeto tem como fim a busca de financiamento do governo para estudos envolvendo embriões humanos que estejam congelados nas clínicas de fertilidade, desde que os progenitores já tenham consentido no seu descarte. A votação na Câmara se deu em meio forte pressão de ambos os lados. Em um, estava Nancy Reagan, a qual se tornou uma forte defensora dessas pesquisas durante o período em que seu marido, o ex-presidente Ronald Reagan, 315 EUA conseguem vitória com proibição de clonagem na ONU. Disponível em: http:// www.jornaldaciencia.org.br > Acesso em: 31/05/05, às 8:25 hs. 249 esteve com a doença de mal de Alzheimer. E, em outro, estava o atual presidente que, além da ameaça de veto foi amparado por várias famílias criadas por uma rara, mas crescente prática, na qual um casal doa seus embriões congelados para outro, tendo várias crianças ditas “inviáveis” lá presentes. Por outro lado, o governo estadunidense tem financiado e incentivado as pesquisas com células-tronco adultas, sendo aprovado na Câmara, por 431 votos a favor e 1 contra uma medida que criará vários bancos de sangue de cordão umbilical e placentário para desenvolvimento dessas pesquisas.316 4.4.1.2 – Na Coréia do Sul Este país tem uma legislação liberal quanto ao uso de embriões humanos em pesquisa, havendo financiamento público e particular para o desenvolvimento das mesmas, somente havendo restrição no tocante à clonagem reprodutiva, considerada crime. No ano passado, cientistas sul-coreanos, liderados por Woo SuK Hwang, na Universidade Nacional de Seul, anunciaram a clonagem do primeiro embrião humano, tendo, recentemente, surpreendido pesquisadores do mundo 316 STOLBERG, Sheryl Gay. ROSE, Jamie Câmara americana desafia veto de Bush em projeto de células-tronco embrionárias. Jornal The New York Times. Disponível em: http:// www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe > Acesso em: 31/05/05, às 8:20 hs. 250 todo com o anúncio da criação de onze linhagens de célulastronco embrionárias a partir da clonagem terapêutica. No ano anterior, necessitaram de 252 óvulos para conseguir uma única linhagem, o que diminuiu para 185 para produção de 11 cepas. Isso aumentou as possibilidades do uso da clonagem terapêutica para obtenção de células-tronco em, aproximadamente, dez vezes em relação aos resultados obtidos anteriormente. Isso foi considerado um grande avanço por parte da comunidade científica que é a favor da pesquisa com embriões humanos e da clonagem terapêutica. Nessa pesquisa, os cientistas sul-coreanos resolveram várias questões que foram suscitadas, sem respostas, na primeira experiência, como, por exemplo, modificaram o tipo de célula doadora do núcleo, sendo usada, desta vez, célula da pele, em vez do cumulus, permitindo, assim a clonagem terapêutica de homens; o uso de óvulos de outra pessoa; o uso de fibroblastos humanos como base para o crescimento das células, eliminando, assim, os fibroblastos de camundongos que eram, anteriormente, usados.317 Mas, ainda, estas células não seriam utilizáveis em terapia, posto que, além de não estarem devidamente preparadas para esse uso, ainda não foram abolidos todos os componentes de origem animal, enzimas ou fatores no meio de cultura, na realização das experiências, o que impede o seu uso para terapia em seres humanos. Estima-se que, com esta pesquisa, possam ser observadas, desde os estágios iniciais das células, a diferenciação nos diferentes tecidos e a 317 PEREIRA, Lygia da Veiga. A combinação dos grupos que fazem clonagem animal com quem trabalha com células-tronco embrionárias poderia viabilizar este tipo de trabalho no Brasil. Disponível em: http:// www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe > Acesso em: 31/05/05, às 8:15 hs. 251 contribuição de fatores genéticos em doenças dessa origem, e, ainda, a possibilidade de investigar novos medicamentos e drogas em relação a doenças genéticas de forma mais adequada.318―319 318 MENDEZ-OTERO, Rosália. Transferência nuclear ou clonagem investigativa ou clonagem terapêutica? Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe > Acesso em: 31/05/05, às 9:05 hs. 319 Nota 319: O Jornal “The New York Times” apresentou a mesma notícia acerca da clonagem terapêutica realizada pelos cientistas sul-coreanos, dizendo que, em 19/05/2005, os pesquisadores, liderados por Woo Suk-Hwang e por Shin Yong-Moon da Universidade Nacional de Seul utilizaram-se do método de clonagem terapêutica para produzir 11 linhagens de células-tronco humanas geneticamente idênticas às de pacientes cujas idades variavam de 2 até 56 anos. Com este método, eles buscaram a produção de células-tronco universais que são extraídas dos embriões (com a morte destes), e que, na teoria, podem ser orientadas a se desenvolverem em qualquer tipo de célula do corpo. Como estas células viriam de embriões clonados dos indivíduos, elas têm combinação genética exata e o objetivo de sua criação, nesse momento, era estudar a origem de doenças e desenvolver células substitutas que seriam idênticas àquelas que o paciente perdeu em uma doença como o mal de Parkinson, por isso foram retiradas de pacientes com certas desordens e males. As células-tronco produzidas são cópias exatas para 9 dos 11 pacientes, nos quais estão incluídos oito adultos com lesões na medula espinhal e três crianças – um menino de 10 anos com lesão na medula espinhal, uma menina de 6 anos com diabete, e um menino de 2 anos com hipogamaglobulinemia congênita, uma desordem genética do sistema imunológico. Para produção de um clone, os cientistas inserem o material genético de uma célula do paciente em um óvulo não fertilizado de outra pessoa, cujo material genético foi removido, assumindo, então, o controle da célula o material genético implantado, direcionando o óvulo para se dividir e se transformar em um embrião que é geneticamente idêntico ao paciente, em vez da doadora do óvulo. Aproximadamente, após cinco dias, quando o embrião clonado estiver com cerca de 100 células e possuir 0,08 polegada de diâmetro, assumirá a forma de blastocisto, a qual tem a forma de uma bola de células envoltas em uma esfera, a qual, quando removida e cultivada em laboratório, se transforma nas células-tronco embrionárias. Mas esse processo de transformação, mais fracassa do que funciona, e, relata-se que, em seres humanos, parece fracassar todas as vezes. Em relatório anterior publicado em fevereiro de 2005, os chefes da pesquisa, Hwang e Moon, usaram 248 óvulos humanos para produzir uma única linhagem de células-tronco embrionárias, ou seja, um grupo de células que vem de uma célula embrionária e que pode ser cultivado em laboratório em placas de Petri. Contudo, nesta experiência, após um grande avanço técnico que envolveram (sic) em grande parte métodos de crescimento de células e abertura de embriões, eles usaram em média 17 óvulos por linhagem de 252 Por outro lado, há pesquisadores que discordam que esse tipo de pesquisa possa ser considerado um avanço, entendendo que o uso de embriões humanos em pesquisa “concretiza a perda do limite ético”.320 células-tronco (num total de 187 óvulos) e podiam quase garantir o sucesso com os óvulos de apenas uma mulher, obtidos em um único mês. A notícia causou grande furor na comunidade científica que faz pesquisas com células-tronco embrionárias e foi considerado um grande avanço. Por outro lado, outros se manifestaram preocupados com este tipo de pesquisa, em face da criação de embriões humanos apenas para pesquisa o que, em tese, facilitaria a produção de bebês clonados e, ainda, em face da exploração de mulheres como doadoras de óvulos sem que seja para seu benefício. O Dr. Richard Land, presidente da comissão de ética e liberdade religiosa da Convenção Batista do Sul disse acerca da pesquisa: “Nós acreditamos que um embrião clonado é um ser humano. Nós não devemos ser o tipo de sociedade que mata nossos menores seres humanos para buscar tratamento para seres humanos maiores e mais velhos”. (KOLATA, Gina. Cientistas da Coréia do Sul anunciam método eficaz de clonagem de embriões humanos – clonagem terapêutica potencializa a produção das células-tronco. Matéria apresentada no Jornal “The New York Times” em 20 de maio de 2005. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jps?id=28253>. Acesso em: 31/05/05, às 8:25). 320 Em entrevista ao Jornal da Ciência, de 23/05/05, a geneticista Eliane S. Azevedo, ex-reitora da Universidade da Bahia e professora titular de bioética aduz acerca da experiência: “O sacrifício de embriões humanos, congelados ou não, para fins de pesquisa, concretiza a perda do limite ético da espécie. E, lamentavelmente, já vem ocorrendo. Agora, o anúncio da clonagem de seres humanos para produção de células tronco rompe a fronteira moral das inter-relações humanas e propõe o uso premeditado da violência: – criar para destruir. A quem compete legitimar o uso da morte para promover o avanço da ciência? Como condenar e combater a violência que, praticada por alguns, elimina vidas nas ruas, e, aceitar a destruição de vidas, praticada por outros, nos laboratórios de pesquisa? Como falar em paz para a humanidade se alguns cientistas podem conferir a si próprios o direito de criar seres humanos e destruí-los? Toda morte planejada é violência contra a espécie humana e deve ser combatida em nome da preservação dessa mesma espécie. A morte de qualquer exemplar da espécie humana não pode ser um meio para atingir-se algo, mesmo que seja o pretendido tratamento de outros. Estamos abrindo precedentes perigosos, passíveis de perda de controle para um novo tipo de poder cujas conseqüências desconhecemos”. (AZEVEDO, Eliane S. 253 4.4.1.3 – A legislação em alguns países da Comunidade Européia321 4.4.1.3.1 – Alemanha Na Alemanha, o que se diz acerca de pesquisas com células-tronco, na atualidade, é o fato de que o chanceler alemão Gerhard Schröder mostra-se “partidário” em relação à flexibilização das leis restritivas que regulam o uso de células-tronco embrionárias para a pesquisa terapêutica naquele país, posto que, aquele país tem uma das legislações mais rígidas conhecidas, no tocante a esse tipo de pesquisa. Naquele país, onde se sentiram, in loco, os horrores do holocausto em face das pesquisas nazistas de purificação da raça, vigora, desde 1947, o Código do Tribunal Internacional de Nuremberg, o qual foi criado em razão das Clonagem de seres humanos para fins terapêuticos. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe>. Acesso em: 31/05/05, às 9:00 hs). 321 Na Revista Consulex n°180, de 15/07/04, foi apresentado o seguinte quadro acerca das pesquisas com embriões humanos no continente europeu: “Finlândia – permitida a pesquisa, mas é proibida a criação de embriões exclusivamente para essa finalidade; França – proibida; Alemanha – proibida; Grécia – permitida, mas proíbe clonagem; Irlanda – proibida; Itália – proibida; Holanda – permitida, mediante aprovação por Comitês de Pesquisas; Portugal – proibida; Espanha – permitida apenas em embriões não viáveis; Suécia – permitida, mas proíbe a modificação genética dos embriões; Reino Unido – permitida”. 254 atrocidades ocorridas durante a 2ª Guerra Mundial e tratou da relação ser humano/pesquisador. Este elenca como essencial o consentimento voluntário do ser humano a ser usado em experimento, determinando os cuidados básicos a serem tomados durante a pesquisa, bem como, a possibilidade autorizada de o participante se retirar do experimento, se desejar. Há, ainda, a Reichsrundschreiben, de 1931, a qual traça as diretrizes para as pesquisas e novas terapias que sejam direcionadas aos seres humanos, determinando a necessidade de serem realizados testes prévios em animais e consentimento do paciente experimentado. E, também, a Embryonenschutzgesetz, de 1990, a qual é a lei alemã para a defesa do embrião e proíbe a fabricação ou a utilização de embriões para fins de investigação médica e que prevê penas até de prisão para quem pratique a clonagem de embriões, demonstra que este país, principalmente, em razão dos horrores da guerra, entende pela proteção total da vida, não permitindo a pesquisa com embriões. Contudo, é possível importar células-tronco criadas e estabelecidas anteriormente a 01/01/02, de outros países para projetos considerados de grande importância, o qual deverá ser, previamente, aprovado por comissão especial de ética. Mas, há uma tendência à flexibilização posto que o chanceler acredita que a Alemanha, em face nos novos conhecimentos, não pode ficar “atrás” nas pesquisas com células-tronco embrionárias, mesmo se declarando consciente das dúvidas e temores que rondam estas pesquisas. Porém, essa iniciativa foi, duramente, criticada e 255 rejeitada pelos “Verdes” que são membros da coalização de governo do chanceler, afirmando o secretário de organização desse grupo de parlamentares, Volker Beck, que “as fronteiras da bioética, não podem ser sacrificadas superficialmente ante as promessas de cura da medicina e aos interesses econômicos da industria farmacêutica”.322 4.4.1.3.2 – Inglaterra Na Inglaterra, desde a publicação da Human Fertilisation and Embryology Act, de 1990, é possível a utilização de embriões humanos como material de pesquisa em relação à clonagem terapêutica, o que foi convalidado pelo Parlamento, em 2002. Na referida publicação, no ano de 2001, houve uma alteração que permitiu a utilização de embriões na investigação e tratamento de doenças graves, bem como o estudo do desenvolvimento desses embriões até o décimo-quarto dia, quando, então, deveriam ser eliminados, havendo, ainda, posteriormente, em fevereiro de 2002, a autorização pelo Parlamento para a pesquisa da clonagem de embriões, novamente, até o décimo-quarto dia com o fim específico de investigação científica e com consentimento dos doadores. A atitude do governo inglês fez com que movimentos ativistas como o ProLife Alliance ingressassem com medidas judiciais, visando impedir a autorização dessa 322 Pesquisas com células-tronco embrionárias na Alemanha. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ciencia/biotecnologia > Acesso em: 15/06/05, às 7:30 hs. 256 espécie de clonagem, obtendo decisão favorável do Supremo Tribunal daquele país, sendo, posteriormente, revogada, o que manteve a possibilidade de realização da clonagem terapêutica de embriões humanos. No entanto, tais leis não permitem qualquer ato referente à clonagem reprodutiva, sendo tal prática vedada. A notícia mais recente que se tem acerca da matéria, naquele país, é o fato de que cientistas da Universidade de Newcastle, em 20 de maio de 2005, afirmaram ter clonado o primeiro embrião humano do país para retiradas das célulastronco. Eles usaram óvulos de 11 mulheres, removendo o material genético destas e o substituindo com o DNA de células-tronco embriônicas. Dessa experiência, resultaram três embriões clonados que viveram e cresceram no laboratório de três a cinco dias. O que eles realizaram, então, é conhecido como clonagem terapêutica, a qual tem o objetivo de criar uma linhagem de células-tronco individualizadas para tratar diversas doenças. Este tipo de pesquisa, é permitido na Grã-bretanha (mesmo tendo sido já proibido pela ONU, decisão esta que não tem força legal, apenas moral) e, no mesmo período, foi anunciado como realizado por cientistas sul-coreanos. Esta notícia, mais uma vez, foi duramente criticada pelo grupo ProLife Alliance, que considera a clonagem para fins de pesquisa uma atitude antiética.323 323 BBC BRASIL. Cientistas britânicos afirmam ter clonado o primeiro embrião humano do país. Disponível em: http:www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe > Acesso em: 31/05/05, às 8:00 hs. 257 4.4.1.3.3 – França Em França, a utilização de embriões para pesquisas científicas, independentemente da intenção do pesquisador, é totalmente vedada pela Lei n° 653, de 29/07/94, permitindo a pesquisa apenas em benefício do próprio embrião se esta não o danificar em qualquer sentido. Quanto à clonagem, a nova lei aprovada, em 2004, a proíbe, sendo ela reprodutiva ou terapêutica. A proibição sobre as pesquisas com células-tronco a partir de embriões humanos foi suspensa por cinco anos.324 4.4.1.3.4 – Espanha Na Espanha, é ilegal a produção de embriões para fins de pesquisa, sendo permitida, no entanto, a investigação em embriões inviáveis até o décimo-quarto dia. Nas Leis n° 35/1998 (reprodução assistida) e n° 42/1998 (doação e uso de embriões humanos, fetos, células, tecidos e órgãos), nas quais se proíbe a clonagem para seleção da raça ou de qualquer outro tipo que vise criar seres iguais (clonagem reprodutiva), se permite a investigação em embriões inviáveis e excedentes de fertilização in vitro para fins terapêuticos, sendo vedada a pesquisa, quando estes forem viáveis, excetuando-se o caso de a pesquisa lhe trazer 324 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. França. Disponível em: http://www.bionetonline.org > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 258 benefícios. A clonagem terapêutica é permitida, desde que realizada a partir de embriões excedentários. O Código Penal, de 1995, criminaliza a clonagem reprodutiva, a qual também foi banida no protocolo adicional da Convenção dos Direitos Humanos e da Biomedicina do Conselho Europeu, a qual integra o ordenamento jurídico espanhol. É possível a utilização de embriões para células-tronco, desde que haja autorização específica pela Comissão Nacional para Reprodução Assistida, ao que se opõe o governo conservador.325―326 325 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Espanha. Disponível em: http://www.bionetonline.org > Acesso em 20/06/05 às 20:52 hs. 326 “MADRI, quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005 (ZENIT.org) – Mais de 3.000 cientistas espanhóis rejeitam unanimemente o primeiro projeto da futura Lei de Reprodução Assistida – apresentado na terça – feira pela ministra da Saúde, Elena Salgado – porque supõe a destruição de embriões humanos. A proposta também «é incompatível com a pesquisa científica a serviço do ser humano, já que seu objetivo é duplicar seres humanos para sua utilização como material de pesquisa», adverte a Plataforma «Há Alternativas» (www.hayalternativas.org), formada por tais cientistas entre outros 300 mil cidadãos. O primeiro projeto da futura Lei de Reprodução Assistida elimina os limites ao número de ovócitos fecundados e, ao tempo que podem ser conservados criogenizados, permite a prática, com prévia autorização, de técnicas experimentais tuteladas, e amplia a terceiros, no caso de irmãos, a possibilidade de realizar diagnósticos pré-implantatórios com fins terapêuticos, explica «Análise Digital» – publicação da Fundação «García Morente», dependente do arcebispado de Madri. Em uma declaração difundida esta quarta-feira, a Plataforma «Há Alternativas» recorda à ministra que a Real Academia Nacional de Medicina, a Declaração de Bioética de Gijón, o Código Penal, a lei de Reprodução Humana Assistida (Lei 35/1988), a Declaração Universal sobre o Genoma e Direitos Humanos da UNESCO (1997), a Resolução da Associação Médica Mundial sobre a Clonagem (1997) e o Protocolo adicional ao Convênio Europeu sobre os direitos humanos e a biomedicina do Conselho de Europa (1998) são contrários a esta prática por supor a utilização de um ser humano para curar outro. «A vida humana começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, seja esta realizada no seio materno ou no laboratório, recorda a Plataforma cidadã, e, em defesa de seu direito à vida e à exclusividade e inviolabilidade do patrimônio genético» o Código Penal espanhol castiga explicitamente «quem fecunda óvulos humanos com qualquer fim distinto à 259 4.4.1.3.5 – Portugal Em Portugal, não se admite a utilização de embriões humanos na investigação médica (com exceção para aquelas procriação humana», igual que prevê medidas punitivas para «a criação de seres humanos idênticos por clonagem». Segundo os responsáveis de «Há Alternativas», «o que é reprovável desde o ponto de vista legal e médico na clonagem ou seleção embrionária é o fato da utilização de um ser humano para curar outro. A dignidade do ser humano faz que não se possa comercializar com este ou utilizar como cobaia de laboratório, nem em sua etapa embrionária nem ao longo de sua vida extra-uterina». Para o Foro Espanhol da Família (FEF), que representa mais de 4 milhões de famílias espanholas, o anteprojeto «merece uma enfática rejeição» (sic): «Com esta iniciativa, o governo vai promover a proliferação de embriões humanos e seu uso como mero material à disposição dos pesquisadores», denunciou esta quarta– feira Benigno Blanco, porta– voz da FEF. O (sic) FEF espera do governo que aposte na pesquisa com células «mãe» procedentes de adultos, pois estas não propõem nenhuma contra-indicação ética e são de aplicação terapêutica imediata, enquanto que as células embrionárias exigem a destruição do embrião e originam a aparição de tumores. «O diagnóstico préimplantatório supõe sempre a destruição dos embriões não pré-selecionados por sua incompatibilidade com a finalidade perseguida – apontou Benigno Blanco em declarações a «Veritas». Destruir embriões humanos por sua utilidade é instrumentalizar a vida desses embriões de forma eticamente rejeitável». A ministra Salgado destacou que o projeto «proíbe expressamente» a clonagem de seres humanos com fins reprodutivos. Quanto à aplicação da clonagem com fins terapêuticos, a titular da Saúde declarou que esta não é uma técnica de reprodução humana assistida, «mas de pesquisa, pelo que a regulamentação correspondente irá na Lei de Biomedicina», que seu Departamento está elaborando. É rejeitável que o anteprojeto só proíba a clonagem com fins reprodutivos, quando tanto o Convênio de Oviedo subscrito pela Espanha como o Código Penal proíbem todo tipo de clonagem, afirma FEF. É que, sublinha seu porta-voz, «parece que este anteprojeto, junto com a já anunciada Lei de Biomedicina, pretendem impor uma ótica tecnocrática de utilitarismo tecnológico à margem de todo respeito à ecologia humana». O Ministério da Saúde submeterá ao Conselho de Ministros o anteprojeto de lei em março próximo. Em datas posteriores o governo o enviará ao Parlamento para seu debate. A lei poderá ser aprovada no ano 2006”. (Milhares de cientistas espanhóis rejeitam a criação de embriões para a pesquisa. Disponível em: <http://www.portaldafamilia.org/scnews/news050.shtml >. Acesso em: 20/06/05, às 18:09 hs). 260 que beneficiem o próprio embrião) e a clonagem (criação de embriões), de qualquer tipo, sendo a vedação elaborada pela Comissão para Enquadramento Legislativo das Novas Tecnologias e pelo Decreto n° 135/VII de 1997, publicado pelo Conselho de Ministros, que dispõe sobre as técnicas de procriação assistida. Em lei sobre essa matéria, promulgada pelo Parlamento, em julho de 1999, proibiu-se, especificamente, a clonagem reprodutiva, criminalizando a sua utilização. Contudo, a comunidade científica portuguesa concorda com a possibilidade tecnológica da clonagem terapêutica, vendo esta como a medicina do futuro.327 4.4.1.3.6 – Itália Na Itália, nada existe definido acerca da clonagem (reprodutiva ou terapêutica), do uso de embriões humanos e das células-tronco. Embora eles não tenham ratificado a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina e o Protocolo Adicional que veda a clonagem de seres humanos, adotaram sua orientação e, por determinação do Ministério da Saúde, em 1997, baniu-se todo tipo de clonagem até junho de 2002. A Corte de Verona, em 1999, decidiu que uma mera ordem, que não tenha embasamento legal, não pode proibir as pesquisas científicas, o que, em tese, permitiria esses tipos de pesquisas sem infringir qualquer lei. O Comitê Nacional de Bioética daquele país se opõe à criação de embriões humanos para pesquisas e considera a 327 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Portugal. Disponível em: http://www.bionetonline.org > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 261 clonagem, terapêutica ou reprodutiva, moralmente inaceitável. Contudo, o comitê formado pelo Ministro da Saúde, em 2000, emitiu parecer favorável às pesquisas com células-tronco para fins terapêuticos em embriões supranumerários e, também, à clonagem terapêutica. Com isso, o Comitê Nacional de Bioética emitiu determinações que possibilitam a utilização de tecidos de embriões abortados ou fetos para derivação de células-tronco, desde que originários de abortos espontâneos; a utilização de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos, desde que sejam utilizados embriões inviáveis à implantação derivados dos tratamentos de fertilização in vitro. Contudo, manteve a vedação à criação de embriões com a finalidade única de pesquisas.328―329 328 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Itália. Disponível em: http://www.palazzochigi.it/bioetica > Acesso em: 20/06/05, às 21:15 hs. 329 “Campanha movida pela Igreja contra reprodução assistida e descrença em relação a discurso político levam apenas 25% dos italianos a participarem de referendo. Pode-se dizer que bispos e cardinais em Roma saíram vitoriosos das urnas. Pois a Igreja Católica havia aconselhado a população italiana a ficar em casa ao invés de dar o aval à modificação da lei sobre a reprodução assistida e pesquisas envolvendo células-tronco no país. Diante do reduzido número de votantes, o referendo realmente fracassou. O eleitorado havia sido convidado a decidir se casais que optam pela reprodução assistida poderiam passar a recorrer a bancos de esperma. Além disso, o referendo pretendia definir a necessidade de manter limitado a três o número de embriões produzidos, que podem ser implantados na mulher sem diagnóstico prévio. Outra questão dizia respeito às atuais limitações nas pesquisas envolvendo células-tronco. Dando ouvidos à Igreja? Apenas com um índice de participação de no mínimo 50% da população teria sido possível modificar as leis no país. De acordo com a mídia local, não apenas a postura contrária da Igreja, mas também um clima de decepção com a classe política provocou o desinteresse do eleitorado em relação ao assunto. ‘A Igreja nunca atuou de forma tão presente e decisiva’, reclama Stefania Prestigiacomo, ministra italina para a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Prestigiacomo é uma das poucas vozes do governo que se pronunciaram a 262 4.4.1.3.7 – Dinamarca Na Dinamarca, é ilegal a criação de embriões exclusivamente para fins de investigação (clonagem terapêutica), existindo no país a lei de fertilização artificial favor de um relaxamento das regras rígidas que regulamentam a reprodução assistida no país. A Igreja Católica, por sua vez, moveu uma campanha com todas as forças contra a participação popular na decisão, apelando para o argumento de que ‘a vida humana não pode ser exposta a um referendo’. Da campanha fizeram parte cartazes nos quais se lê a frase também eles teriam dito sim, ao lado de fotos de oficiais nazistas. Até mesmo em pequenas comunidades no interior do país houve mobilização de forças contra o referendo. Bispos envolvem-se em questões políticas O diário La Repubblica comentou o início de ‘uma nova fase’ na política italiana, aludindo ao fato de que, nas últimas décadas, esta foi a primeira vez em que a Igreja ousou intrometer-se de forma tão veemente em assuntos de ordem política. E ainda contando, para isso, com o aval do Vaticano. ‘Isso havia acontecido apenas nos referendos históricos sobre o divórcio e o aborto’, observa o jornal. Os lendários referendos causaram convulsões no país em 1974 e 1981 respectivamente. Desde então, reinou na Itália uma espécie de ‘coexistência pacífica’ entre Estado e Igreja. Embora religiosos e clérigos façam uso de temas políticos em seus sermões, não tem sido de praxe que a Igreja mobilize forças em prol de causas públicas. Questiona-se até que ponto a linha dura do novo papa Bento 16 pode ter influenciado a conduta da Igreja neste sentido. Berlusconi: assunto muito complicado Outro fator que pode ter levado ao fracasso do referendo é a omissão de boa parte da classe política em relação ao tema. O premiê Silvio Berlusconi nem se deu ao trabalho de se locomover às urnas. ‘As questões giram em torno de um assunto muito técnico e complexo’, desculpou-se. A complexidade do assunto pode ter sido, diga-se de passagem, um dos fatores que levaram à baixa participação dos italianos no referendo. Experiências com embriões, pesquisa genética e clonagem humana são temas sobre os quais o cidadão normal não dispõe de informações suficientes para emitir uma opinião segura. A ministra Stefania Prestigiacomo teme, com isso, que a Igreja tenha conseguido adeptos para seus preceitos, criando lacunas que poderiam levar até mesmo a um acirramento das leis hoje liberais que regulamentam o direito ao aborto no país”. (Referendo sobre reprodução assistida fracassa na Itália. Disponível em: <http://www.dw– world.de/dw/article/0,1564,1614985,00.html >. Acesso em: 20/06/05, às 21:00). 263 (1997), a qual permite a utilização de embriões excedentários em pesquisas para o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução artificial e para investigação em benefício do próprio embrião (ou seja, o tratamento terapêutico não está proibido e pode ser feito desde que o médico observe as regras na lei dinamarquesa sobre práticas médicas de 2001; contudo, a técnica continua a não ser utilizada para tratamento dos embriões). A clonagem reprodutiva é proibida pela lei de fertilização artificial, a qual coíbe a produção de embriões por essa técnica e a experiência com mulheres. O Ministério da Saúde permite a importação de células estaminais para fins de investigação.330 4.4.1.3.8 – Finlândia Na Finlândia, é ilegal a criação de embriões para fins de investigação médica, de acordo com a lei de investigação médica, de 1999, permitindo esta a investigação em embriões excedentários das fertilizações in vitro, desde que haja consentimento informado dos doadores, os quais não poderão ser implantados e deverão ser destruídos até 14 dias a partir da fertilização. A clonagem terapêutica de embriões excedentários é permitida e a reprodutiva é proibida por 330 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Dinamarca. Disponível em: http://www.bionetonline.org > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 264 aquela lei. A investigação em células-tronco é controlada pelo conselho ético dos hospitais.331 4.4.1.3.9 – Áustria Na Áustria, é proibida a fabricação de embriões humanos que não sejam destinados à procriação, sendo, também, proibida a utilização de embriões para fins de pesquisa. Os embriões congelados, após um ano, que não forem implantados em útero humano, devem ser destruídos (Lei de Medicina Reprodutiva-1992). A clonagem terapêutica, segundo interpretação dessa lei é proibida (interpretação do Ministério da Justiça austríaco), havendo controvérsias. Quanto à reprodutiva, não há lei regulando; contudo, havia uma proposta de emenda a essa lei proibindo a clonagem reprodutiva prevista para 2003.332 4.4.1.3.10 – Bélgica Na Bélgica, não existe legislação específica; contudo o Royal Decree (decreto), de 1999, determina as condições para o funcionamento dos centros de fertilização in vitro, 331 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Finlândia. Disponível em: em http://www.bionetonline.org > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 332 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Áustria. Disponível em: http://www.bka.gv.at/bioethic > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 265 estabelecendo que embriões não podem ser criados fora deles e, ainda, não limita as pesquisas em embriões e a clonagem terapêutica ou reprodutiva. Encontra-se em análise, no Comitê Nacional de Bioética, uma proposta de lei que versa sobre pesquisa em embriões, em suas célulastronco, terapia e clonagem humana. Nesta proposta legal, as pesquisas em embriões devem obedecer, inicialmente, à finalidade terapêutica para avanço de pesquisas sobre fertilização, doenças genéticas, esterilidade etc; deverão ser utilizados, em pesquisas, embriões de até, no máximo, 14 dias de vida, os quais não deverão ser implantados em animais ou reimplantados, exceto se para beneficiar o próprio embrião e não trouxer prejuízo para este; é proibida a criação de embriões para fins únicos de pesquisa e a clonagem reprodutiva, permitindo, contudo a clonagem terapêutica.333 4.4.1.3.11 – Grécia Na Grécia, não há uma lei específica para pesquisas em embriões humanos ou em células-tronco embrionárias, tendo este país ratificado a Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina e, também, o Protocolo Adicional, que proíbem a clonagem de seres humanos. A partir de 1998, os guideline regulam a reprodução médica assistida e controlam as pesquisas que envolvam embriões humanos. A clonagem, terapêutica e reprodutiva, é proibida, desde 1991, 333 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Bélgica. Disponível em: http://www.health.fgov.be/bloeth > Acesso em: 20/06/05, às 20:52 hs. 266 em razão da ratificação da convenção e do protocolo citados. Para pesquisas envolvendo embriões humanos, deve-se seguir as seguintes orientações: ter os embriões até 14 dias de vida; ser requerida a autorização dos doadores por escrito; haver a aprovação do comitê de ética; os embriões excedentários somente poderão ser armazenados pelo período de um ano; após este prazo, deverão ser destruídos.334 4.4.1.3.12 – Irlanda Na Irlanda, não há uma lei específica que regule pesquisas em embriões humanos; por outro lado, de acordo com a interpretação da Constituição daquele país, o embrião humano é protegido, sendo vedado o uso em pesquisa, bem como a clonagem, seja terapêutica ou reprodutiva. Em consonância com a interpretação constitucional, a proteção da pessoa se estende ao unboard ou não-nascido, do que decorre a proteção ao embrião, sendo considerados nãonascidos tanto os introduzidos no útero como aqueles que se encontram in vitro, apesar das divergências que estes causam. Tampouco há leis que regulem as pesquisas com células-tronco embrionárias, tendo sido, contudo, constituída uma comissão de reprodução humana assistida, em fevereiro de 2000, a qual foi encarregada pelo Departamento de Saúde e Criança de regular todos os aspectos de assistência humana reprodutiva e os fatores 334 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Grécia. Disponível em: http://www.bioethics.gr > Acesso em: 20/06/05, às 20:40 hs. 267 legais, éticos e sociais que devem ser considerados na determinação de políticas públicas, nesta área.335 4.4.1.3.13 – Luxemburgo Em Luxemburgo, não existe legislação que regulamente pesquisas envolvendo embriões humanos, havendo, apenas, uma proposta de lei (nº 4.567/98), a qual permite a utilização de embriões excedentes para pesquisa com fins médicos, desde que seja requerido o consentimento dos doadores, e autorização da Comissão Nacional de Medicina e Biologia Reprodutiva. Essa proposta não faz distinção entre pesquisa terapêutica e não terapêutica com o embrião, quando tem uma finalidade médica. Apesar de terem sido assinados a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina e, também, o Protocolo Adicional que veda a clonagem, não foram eles ratificados.336 4.4.1.3.14 – Holanda Na Holanda, antes da instituição do Embry Act (junho/02), não havia qualquer orientação ou regulamentação acerca da utilização de embriões humanos 335 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Irlanda. Disponível em: http://www.gov.ie > Acesso em: 20/06/05, às 20:30 hs. 336 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Luxemburgo. Disponível em: http:// www.gouvernement.lu > Acesso em: 20/06/05, às 21:00 hs. 268 em pesquisas científicas e, com base neste ato, o Ministério da Saúde se manifesta em todos os protocolos de pesquisas com embriões, submetendo-os à aprovação do CCMO, ou Comitê Central para pesquisas envolvendo seres humanos. Este, desde 1995, vem utilizando memorando que impede pesquisas com células-tronco embrionárias, exceto quanto àquelas linhas de células-tronco já existentes, e a criação de embriões para fins não reprodutivos. Estão, portanto, no Embry Act o regulamento para o uso de gametas humanos e embriões e os dispositivos em relação à doação de embriões para pesquisas, nos quais se incluem as pesquisas com células-tronco embrionárias, e também, a proibição quanto à clonagem em ambas as formas. Contudo, há uma tendência à liberação da clonagem terapêutica. A Holanda não ratificou a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, nem o Protocolo Adicional, que vedam a clonagem humana.337 4.4.1.3.15 – Suécia Na Suécia, no Ato de 1991, se definem as condições para que a pesquisa com embriões humanos e células-tronco embrionárias possam ser realizadas, vedando, especificamente, a criação de embriões para fins únicos de pesquisa. O Conselho de Pesquisa Sueco, em dezembro de 2001, editou guidelines com o fim de nortear as pesquisas com células-tronco, considerando ético o uso de embriões 337 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Holanda. Disponível em: http:// www.parlament.nl > Acesso em: 20/06/05, às 21:30 hs. 269 naquelas, desde que não haja alternativa para se obterem resultados equivalentes, e quando o projeto for essencial para o avanço das pesquisas com células-tronco. Os embriões congelados em clínicas de fertilização in vitro podem ser utilizados para pesquisas com células-tronco, quando seu prazo congelamento estiver vencendo, o que é estipulado em, no máximo, cinco anos, havendo, contudo, necessidade da autorização dos doadores. Não há legislação específica em relação à clonagem terapêutica; porém, há entendimento de que é proibida, por força do Ato que veda a criação de embriões para fins únicos de pesquisa. O mesmo ocorre com a reprodutiva. Há uma tendência para a liberação da clonagem terapêutica, a partir da revisão da legislação, posto que o Conselho entende que há diferença na criação de embriões por clonagem em relação à fertilização, tendo em vista que, no primeiro, tem-se como objetivo o avanço quanto ao tratamento de doenças, o que é defensável pela legislação.338 338 LINO, Maria Helena; DIAFÉRIA, Adriana. Suécia. Disponível em: http:// www.se/engish > Acesso em: 20/06/05, às 21:50 hs 270 4.4.1.3.16 – União Européia339 Na Comunidade Européia, não existe legislação específica para utilização de embriões humanos na investigação médica e também quanto à produção de embriões para este fim. Pelo Conselho da Europa340, foi 339 O Parlamento Europeu decidiu, em 10/03/05, que as verbas da União Européia não poderão ser usadas para financiar pesquisas em embriões humanos e com células tronco embrionárias. Uma resolução acerca da matéria afirma que “pesquisas nestes setores devem ser financiadas pelos países em que são permitidas”. Ademais, o Parlamento recomendou à Comissão Executiva da União Européia que retirasse a clonagem humana do seu programa de fomento à pesquisa, devendo concentrar– se em métodos alternativos, como a pesquisas em células– tronco adultas ou de cordão umbilical, ressaltando, ainda, a proibição do comércio com células e tecidos do corpo humano.(Notícias da Europa. Disponível em: http://www.dw– world.de/dw/article > Acesso em: 01/06/05, às 20:00 hs). 340 “O embrião é um ser humano que merece proteção idêntica à dada às pessoas humanas, Daniel Serrão*. No espaço de tempo que teve para desenvolver sua palestra sobre o Estatuto Moral do Embrião, durante o VI Congresso Mundial de Bioética, Daniel Serrão, professor de Bioética e Ética Médica da Universidade do Porto, Portugal, se dedicou a traçar um perfil histórico (quase) imparcial sobre o assunto, correspondente à visão do Conselho da Europa – organização intergovernamental da qual faz parte, que agrega 42 países europeus, cujos objetivos incluem a busca por soluções para questões complicadas, como clonagem humana, xenofobia e tráfico de drogas. A exposição de Serrão foi tão controlada que nem chegou a chocar-se contra a proferida por sua principal debatedora, a inglesa Mary Warnock – baronesa e filósofa que coordenou no parlamento britânico o Estatuto do Pré-Embrião que permite, desde a década de 80, a manipulação em laboratório de embriões de até 14 dias, para fins terapêuticos. Na verdade, se por um lado Serrão não foi tão veemente como de costume em sua postura contrária à destruição desses ‘seres’, por outro Lady Warnock demonstrouse bem mais flexível na defesa do seu Estatuto: admitiu até que está na hora de uma revisão, frente aos novos achados da ciência. Ambos se mantiveram em perfeita sintonia com o terceiro participante da mesa-redonda, o professor colombiano Guilhermo Hoyos, responsável pelo tema ‘A Moral Comunicativa e a Ética da Espécie’. Apenas para dar-se uma idéia a respeito da posição de Serrão relativa a pesquisas genéticas que levem à destruição de embriões: no ano passado, após definir-se como ‘católico que procura discernir no mundo os sinais da misteriosa presença de Deus e médico patologista dedicado aos estudos sobre a vida humana’, durante evento na PUC de São Paulo, o professor afirmou que todo o corpo, mesmo 271 nos estágios mais iniciais, tem direito biológico à sobrevivência. Extremamente simpático (por vezes, indignado) Daniel Serrão voltou a esse discurso com força total depois de sua apresentação no Congresso Mundial, quando gentilmente concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Confira, em seguida, a conversa: Centro de Bioética – Durante sua palestra, o senhor disse que o Conselho da Europa (organização da qual participa como membro do Comitê Diretor de Bioética) não possui posição clara sobre o estatuto do embrião. É difícil chegarse a um consenso? Daniel Serrão – Sim, é muito difícil alcançar-se um consenso com relação a alguns aspectos do estatuto do embrião, ou melhor, a respeito das atribuições de um determinado estatuto e suas conseqüências éticas e morais. O estatuto biológico do embrião é reconhecido: é indiscutível que se trata de um ser humano. Aquele embrião não vai dar em um cavalo ou em um eucalipto. O que é diverso é o valor que se atribui a este ser humano nas fases iniciais do seu desenvolvimento, consoante às teorias éticas e à posição das sociedades. Para as teorias éticas personalistas, o embrião é um ser humano que merece proteção idêntica à dada aos adultos humanos. CB – O senhor concorda com isto? Serrão – Totalmente. O corpo humano, na minha opinião, é a primeira apresentação pública do ser humano. Portanto, assim como não destruo o corpo humano de um adulto, porque é um corpo humano, também não destruo o corpo humano de um embrião, pois também é um corpo humano digno da mesma consideração. Como o embrião ainda não é uma pessoa, não poderei respeitar suas convicções filosóficas, por exemplo, porque ele ainda não as tem. Ainda não responde por si. Mas possui corpo humano e isso para mim é o suficiente. Eu já fui um embrião, você já foi um embrião e imagine se, na época em que era, alguém a tivesse destruído. Não estaria aqui, falando comigo! Sou absolutamente contrário a qualquer manipulação e destruição do ser humano na sua fase mais inscipiente, da mesma forma que defendo a vida dos corpos animais. Não destruo um animal por prazer, nem concordo que se coloque um animal numa gaiola, para se apresentar num jardim zoológico. CB – Os defensores da manipulação de embriões para fins terapêuticos argumentam que esta seria capaz de salvar milhares de vidas... Serrão – Admito que você possa dar a sua vida para salvar a vida de outra pessoa porque, a essas alturas, já tem consciência e liberdade para tomar suas próprias decisões. Por outro lado, se o Brasil exigisse que um certo número de brasileiros adultos dessem a vida para salvar a vida de outros brasileiros adultos, quem concordaria? Ninguém pode dispor da vida de um embrião, ainda que para um fim benéfico... Porque os fins não justificam todos os meios. Quando um meio é intrinsecamente mau e, para mim, matar um embrião é intrinsecamente mau, não podemos utilizá-lo, mesmo que seja para obter o melhor benefício deste mundo. A não ser que o embrião pudesse dar o seu consentimento. 272 Não critico os cristãos primitivos, em Roma, que deram a vida por sua fé ou os mártires islâmicos, capazes de perder a vida na defesa de seus pontos de vista. Não acho errado, visto que o fazem de forma livre, voluntária e com exercício da autonomia. CB – Então, os humanos deveriam salvaguardar os embriões de sua espécie, do mesmo jeito que buscam proteger outros humanos? Serrão – Quem protege o embrião está tentando, na verdade, defender toda a sociedade. E, como disse na minha palestra, a mãe é a primeira defensora natural da vida do embrião. Confio demais nas mães, pois é nelas que podemos substanciar a proteção de um ser humano. Continuo otimista, mesmo sabendo que algumas mulheres são capazes de produzir o abortamento, levando seus embriões ou fetos à destruição. CB – Em sua fala, a baronesa Warnock delimitou algo bem conhecido dos cientistas, que é a chamada "linha divisória" entre pré-embrião e embrião, correspondente a 14 dias. Ela considera que, até essa fase, é lícito destruir essas células para fins justos. (* o termo ‘pré-embrião’ é a denominação utilizada por alguns autores, em especial, norte-americanos, para o concepto humano nos primeiros dias de desenvolvimento, ou seja, desde a fecundação até a implantação no útero) Serrão – Isso não tem qualquer espécie de significado, primeiramente, porque não existe nenhum (sic) embrião in vitro que consiga se desenvolver para além do 7° dia. Portanto, ao contrário da fecundação natural, não há nunca (sic) embriões in vitro com 14 dias, nem com 10, nem com 8. Na época em que foi feito o Warnock Report, (o Estatuto do Pré-Embrião) não havia nenhuma (sic) técnica de laboratório que permitisse desenvolver um embrião por mais de 72 horas! Portanto aquilo foi um truque para dizer aos parlamentares ingleses: ‘Nós vamos proibir a investigação em embriões com mais de 14 dias’, o que chama a atenção, porque é uma proibição. E, abaixo dessa data, ‘faremos o que quisermos’. Isso não tem (sic) conotação ética nenhuma (sic). O argumento sobre a ‘linha primitiva’, que é o esboço da orientação do embrião no sentido longitudinal e, eventualmente, o aparecimento do primeiro tecido cerebral, não tem rigorosamente nada (sic) a ver com nada. Não faz diferença. O embrião é o mesmo ente social e o mesmo ente humano antes e depois da linha primitiva. O cérebro não faz nenhuma (sic) distinção: em sua base, um tecido nervoso muito primitivo é igual ao do adulto. É a mesma coisa que defendermos a morte de um indivíduo débil mental, só porque o cérebro dele não funciona direito. CB – Durante sua apresentação, o senhor disse que espera que até o fim de 2003 possa ser iniciada no Conselho da Europa uma nova discussão sobre a manipulação de embriões. Algo deve mudar, com relação ao que se pensa hoje? Serrão – Depende do que for aprovado. Se for aprovada uma posição ética gradualista, que permita experiências que possam levar à destruição de embriões, cada país deverá fazer uma lei específica, com os critérios para essas investigações. Se for aprovado o contrário, isto é, a proibição de pesquisas que levem à destruição desses seres, sejam quais forem os fins, como já acontece atualmente na Alemanha e em outros países, os governos deverão elaborar uma lei que as impeça. 273 Hoje, há países com leis que vedam a experimentação com embriões e outros que liberam. CB – O senhor diria que existe alguma tendência, contrária ou favorável? Serrão – A título indicativo, fizemos uma votação. Deu praticamente 50% para cada lado, fora as abstenções. Isso significa que não temos idéia sobre as posições. Como sempre estão entrando ‘novos’ países no Conselho da Europa, pode ser que em 2003 o sentido da votação seja diferente. Nós, do grupo de trabalho sobre o assunto, pretendemos dirigir nossos esforços a informar os delegados, representantes dos diversos países. Todos deverão receber um documento, trazendo argumentos contra e a favor. Só depois vamos ver o resultado. Posso ter as minhas convicções, mas como o sistema democrático dá razão à maioria, se houver os indispensáveis 2/3 favoráveis à experimentação destrutiva, será autorizada. CB – Mesmo no meio científico onde o senhor trafega, há um apelo ou uma conotação religiosa, no momento da tomada de decisões? (Daniel Serrão, por exemplo, é membro da Academia Pontifícia Para a Vida, do Vaticano) Serrão – Não! O fundamento da dignidade do embrião é puramente biológico, não tem nada (sic) a ver com religião! Se as coisas fossem simplificadas a conotações religiosas, seria muito fácil. Veja: o embrião é criado por Deus, como são todos os seres. E os seres não podem ser destruídos; nem manipulados; nem comercializados; nem utilizados para coisas que não respeitem a sua dignidade. Ponto. Matar uma pessoa é a forma mais grave de não respeitar a dignidade dela. Do ponto de vista religioso, por conseguinte, assim como a Igreja Católica, a Ortodoxa e outras não aceitam a pena de morte, também não aceitariam a destruição do embrião. A questão se coloca no plano técnico, científico e biológico. O embrião é ou não constituído por uma estrutura biológicamente humana? É! E isto nos obriga a que nível de respeito? É aí onde mora a diferença: o nível. Os ingleses dizem: ‘É humano, mas.... a gente usa, como também usamos de forma diferente outras pessoas e coisas, para obtermos os maiores benefícios. Faz parte, somos utilitaristas’. Quer dizer que a sociedade é assim, uns pagam pelos outros? Se não somos utilitaristas, somos personalistas, olhamos assim: isto é uma estrutura humana, e eu respeito a vida humana em todas as suas manifestações. Portanto, não devo destruí-la. Reflexões de um patologista católico: essa história de se poder usar e descartar embriões até o 14° dia de existência porque são ‘pré-embriões’ é invenção de britânicos, que não querem ser chamados de antiéticos. Hoje, diferente da época em que o Relatório Warnock foi lançado, sabemos que o embrião se desenvolve de forma contínua, desde a fecundação do óvulo. Para que o Conselho da Europa se defina é necessária uma definição clara a respeito do que eles chamam de ‘préembrião’. Toda pesquisa que não destrua é legítima... A descoberta da estrutura do DNA foi um dos passos mais brilhantes da ciência. Mas, se para buscar curas, for preciso realizar pesquisas que destruam embriões, isto não será aceitável no plano 274 elaborado, em 1998, um documento, Convenção Européia de Bioética, com o fim de proibir a clonagem humana terapêutica e reprodutiva, sendo que, dos quarenta países convidados a assinar o protocolo, apenas dezenove o fizeram, percebendo-se como resultado das assinaturas que os países de tradição anglo-saxônica são mais permissivos que os outros em relação à clonagem. 4.4.1.4 – No Brasil As pesquisas com células-tronco embrionárias, no Brasil, foram recentemente permitidas pela Lei de Biossegurança (lei n° 11.105/2005), desde que sejam utilizados embriões humanos inviáveis remanescentes de tratamentos de fertilização assistida, que estejam congelados há, pelo menos, três anos ou mais e, desde que haja, ainda, autorização dos pais.341 Isso demonstra, que no tocante às ético (durante seminário ‘Manipulação da Vida: certo ou errado?’ realizado em dezembro de 2001 pela PUC de São Paulo). Mesmo nos casos de doenças genéticas, a negação do sofrimento não pode ser uma justificativa para a destruição de uma vida que já existe (durante seminário ‘Manipulação da Vida: certo ou errado?’ realizado em dezembro de 2001 pela PUC de São Paulo) * Daniel Serrão é professor de Bioética e Ética Médica na Universidade do Porto, em Portugal. Membro do Comitê Diretor de Bioética do Conselho da Europa. É, ainda, membro da Academia Pontifícia para a Vida, do Vaticano”. (Daniel Serrão defende os embriões: para o professor são seres humanos, que merecem toda a proteção. Disponível em: <http://www. cremesp.com.br>. Acesso em: 20/10/03, às 10:00 hs). 341 Em matéria divulgada em 05/03/05, pela Folha de São Paulo, viu-se que, a maioria dos casais que fazem tratamento por fertilização assistida e têm embriões congelados remanescentes em clínicas no Brasil, consideram esses embriões como filhos. Em um levantamento feito em uma clínica de reprodução assistida de São 275 células-tronco embrionárias, estão se dando, aqui, os primeiros passos no tocante às pesquisas. Por outro lado, no tocante às células-tronco adultas, as pesquisas estão em estado avançado, tendo-se iniciado em vários hospitais o seu uso em terapia, como se pode observar, nos exemplos dados. Realizando um mapeamento das pesquisas, poder-seia dizer que vários são os hospitais, em várias regiões do país, que têm se dedicado a aprimorar e aplicar o uso das células-tronco adultas no tratamento das mais diversas patologias, como se verá, a seguir: Em São José do Rio Preto-SP, médicos de um hospital que faz terapia com células-tronco, realizaram uma operação em um paciente com trombose, aumentando as chances de este não necessitar de amputação do órgão com problema, em 85%. Para o procedimento, foram retirados 500 ml de sangue da medula do osso ilíaco da bacia do paciente, o qual foi, posteriormente, processado por seis horas, sendo isolados 3,6 bilhões de células-tronco (40 ml), neste processo. Na sala de cirurgia, os médicos mapearam 40 pontos do músculo da panturrilha do paciente e lá injetaram as células-tronco anteriormente isoladas. Esperar- Paulo, com cerca de 720 casais que fazem ou já fizeram tratamento para engravidar, viu-se que 20% dos casais gostariam de levar seus embriões congelados para casa, pelo fato de os considerarem como filhos. Outros 28% dos casais descartariam esses embriões após o período de três anos, 19 % permitiriam a destruição e 33% os doariam para outros casais ou para pesquisa com células-tronco. (COLLUCCI, Cláudia. Em São Paulo, 20% dos clientes consideram células como “filhos”. Jornal Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uo.com.br/folha/ciencia/ > Acesso em: 23/05/05, às 11:19 hs). 276 se-á quatro semanas para análise dos resultados, que se mostram promissores.342 Na cidade de Ribeirão Preto, também no Estado de São Paulo, no Hospital das Clínicas, médicos estão utilizando células-tronco no tratamento da esclerose lateral amiotrófica e da diabete tipo 1, com resultados promissores, até o presente momento.343 Em Recife, Estado de Pernambuco, no Hospital SOS Mão, pacientes com lesões em nervos periféricos dos braços e das mãos receberam aplicação de células-tronco do próprio organismo, e, também, até o presente, têm-se tido bons resultados na terapia. 344 Já, em Salvador, na Bahia, na Fiocruz, pesquisadores estão realizando tratamento em portadores do Mal de Chagas por meio da retirada de células-tronco da medula óssea, que são reimplantadas no coração. Até o momento, essas terapias têm gerado resultados promissores.345 No Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras (INCL) tem realizado, em pacientes com doenças cardíacas como, por exemplo, a cardiopatia dilatada, a insuficiência cardíaca do Mal de Chagas, o infarto agudo do miocárdio e doenças coronárias crônicas, tratamento por meio de células-tronco, onde se 342 Paciente com trombose é tratado com células-tronco em São José do Rio Preto. Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias > Acesso em: 15/06/05, às 8:00 hs. 343 Todos os dados utilizados na pesquisa encontram-se disponíveis em um mapa apresentado no Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias > Acesso em: 10/06/05, às 7:45 hs. 344 Ibidem. 345 Ibidem. 277 realizará, dos 1.200 voluntários selecionados para a pesquisa, tratamento de metade, convencionalmente, e, da outra metade, o convencional aliado com a terapia com células-tronco, vendo se há possibilidade de substituir o primeiro (tratamento convencional) pelo segundo (célulastronco). Esse tratamento experimental é, ainda, realizado no Instituto Nacional do Coração (INCOR) de São Paulo e no Hospital Santa Isabel, localizado na cidade de Salvador-BA. Mas, a pesquisa, a qual é patrocinada pelo Ministério da Saúde, está sendo ampliada e, envolverá, até o seu término, trinta e três instituições hospitalares localizadas em 9 estados brasileiros e no Distrito Federal.346 Ainda no Rio, no Hospital Pró-cardíaco e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, já se obtiveram bons resultados no tratamento de acidente vascular cerebral com o uso de células-tronco.347 Em Porto Alegre, um paciente, que teve rompido um nervo do antebraço, recebeu uma aplicação de célulastronco no Hospital São Lucas e voltou a movimentar os dedos, após um mês e meio.348 Viu-se, portanto, que o Brasil vem desenvolvendo uma pesquisa de ponta no tocante às terapias com célulastronco adultas e, tem conseguido, grandes avanços nas pesquisas com essas células e busca, ainda, desenvolver-se muito mais, tendo em vista que o governo já anunciou que verbas serão disponibilizadas para maiores estudos nessa área no Brasil, como foi, anteriormente, descrito. 346 Ibidem. Ibidem. 348 Ibidem. 347 278 4.5 – Visão científica das pesquisas com célulastronco Como já se pode perceber com base no descrito até o presente, as opiniões divergem, mesmo no campo científico, acerca do uso de embriões humanos em pesquisas. Vários são os pesquisadores, em todo o mundo, dando-se, aqui, ênfase aos nacionais, que se posicionam favoráveis ao uso de embriões humanos em pesquisas. Destes, a que mais tem se destacado na mídia nacional é a cientista Dra. Mayana Zatz, professora de genética humana e médica do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano. Esta, como porta-voz daqueles que defendem estas pesquisas, tem se pronunciado a favor do uso de embriões humanos, que se encontrem até o décimo-quarto dia de vida, em pesquisas, tendo em vista seu entendimento no sentido de que somente nesse período, no qual se dá a formação da linha primitiva, é que haveria, realmente, vida nesse novo ser humano. Até esse momento, para a pesquisadora, o embrião seria apenas um aglomerado de células que passaria a ter vida a partir do momento que se formasse sua linha primitiva. Ademais, ressalta-se que se defende, ainda, o uso de embriões congelados e remanescentes de fertilização assistida, o quais, acredita serem inviáveis e com pouco potencial de vida. Por outro lado, há cientistas que entendem que o uso de embriões humanos em pesquisa é antiético e imoral, 279 posto que se tratam de vidas humanas únicas e irrepetíveis que se iniciam com a concepção do espermatozóide pelo óvulo e, daí em diante, apenas continuam seu desenvolvimento iniciado naquele momento, o qual apenas cessará com a morte. Dos pesquisadores que têm se destacado na mídia com opinião contrária ao uso de embriões humanos em pesquisa, ressalta-se a Dra. Lílian Piñero Eça, biomédica e doutora em biologia molecular pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e diretora científica do Centro de Atualização em Saúde (CAS) em São Paulo. Esta ainda ressalta, como fora especificado em seu parecer anteriormente apresentado, que há vários motivos, cientificamente comprovados, que desabonariam o uso de embriões humanos em pesquisas, como, por exemplo, o risco de rejeição, de criação de cânceres349, do uso em massa de embriões para um único paciente, do uso de tecido fetal humano de qualquer idade para cultivo das células-tronco embrionárias e, ainda, da possibilidade do uso de célulastronco adultas para terapia de pessoas portadoras de doenças genéticas. Ademais, a pesquisadora, apresenta o estudo do cientista estadunidense Rudolf Jaenisch como possível 349 Philip Noguchi, do Centro de Avaliação e Pesquisas Biológicas da FDA (agência de fármacos e alimentos dos EUA), encarregado de fiscalizar a pesquisa clínica com células-tronco, ao dar entrevistas acerca da matéria, costuma alertar os jornalistas de que “a ausência de prova não é prova de ausência”, ou seja, que “não poder provar a ausência de riscos não significa que eles não existam” no tocante às células-tronco. Ele considera que, no caso das células-tronco, os jornalistas estão fazendo somente as perguntas positivas para os cientistas, como, por exemplo, perguntas sobre o que os cientistas já descobriram de promissor sobre as células-tronco, e isso tem contribuído para propagar a aura “sensacional” desse novo campo de pesquisa. Para aquele, estão faltando mais perguntas sobre o que os pesquisadores ainda não conseguiram descobrir sobre as células-tronco, como a origem de sua atividade tumorigênica. (LEITE, Marcelo. Ciência em dia: células-tronco e sensacionalismo. Disponível em: http://www.google.com.br > Acesso em: 10/08/2003, às 13:10 hs). 280 finalizador de qualquer necessidade de uso de embriões humanos em pesquisa, posto que este conseguiu, por meio da manipulação do gene Oct-4, fazer com que uma célulatronco adulta agisse como uma embrionária, quanto ao seu poder de diferenciação nos mais diferentes tecidos do corpo humano, o que expandiria muito o seu campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos. 4.6 – Visão religioso-cristã das pesquisas com células-tronco O representante maior da Igreja Católica, o Papa Bento XVI, tem se manifestado contrariamente às pesquisas com embriões humanos. Para a Igreja Católica, o embrião é uma vida humana, a qual tem seu início com a concepção, sendo o uso de embriões humanos em pesquisa prática condenada e comparável ao aborto. Como para a retirada das células-trono embrionárias é necessária a morte do embrião, esta prática seria ultrajante, pecaminosa e criminosa aos olhos da igreja católica, posto que esta defende a preservação da vida desde a concepção até a morte, como bem supremo e dom divino, posto que todo homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. No Brasil, que é um país de maioria católica, esta tem grande influência política e, como este credo defende que a vida começa com a concepção, não aceitando, de forma alguma, qualquer tipo de experiência com embriões, por entender que estes têm tanto direito à vida quanto qualquer outro ser humano, a nova legislação de biossegurança não 281 foi aceita pelos representantes dessa Igreja e por vários políticos, os quais defenderam, veementemente, junto ao Congresso Nacional suas opiniões acerca da matéria, no período que antecedeu a votação. Para melhor demonstrar como é o posicionamento da Igreja Católica em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias, transcrevem-se, como exemplo, trechos da entrevista do Cardeal Dom Geraldo Majella Agnelo, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e arcebispo em Salvador-BA, à Revista Época, edição n° 347, de 10/01/05: ÉPOCA – Debate-se no Congresso Nacional o uso de células-tronco para pesquisa de tratamentos contra males sem cura. O que dizer aos que sofrem desses males e vêem aí uma esperança? Dom Geraldo – A descoberta das células-tronco é uma conquista da Ciência, que abre a esperança de debelar doenças sem solução. As células-tronco podem ser encontradas nos embriões, mas também na placenta e no cordão umbilical e no corpo do adulto. Conhecemos cientistas sérios que trabalham com células-tronco. Eles afirmam que são mais eficazes as células retiradas do organismo sobre o qual operam, pois estão livres do problema da rejeição. Há também quem vende ilusões, quem faz a lista de portadores de doenças graves, como se, aprovada a lei, logo pudessem ser feitas terapias eficazes. Passam-se anos de experimentação em animais antes de ser liberado o uso de novas terapias em humanos. 282 O fato é que estamos diante de um grande business que pode interferir no debate. ÉPOCA – O senhor acha que está mais para um negócio? Dom Geraldo – No horizonte da fé cristã, que compreende o ser humano como criatura, imagem e semelhança de Deus criador, há uma dignidade inviolável. Pensar que um embrião possa ser destruído, manipulado, tratado como um objeto para aproveitar o poder especial de suas células não é muito diferente de comercializar crianças com a finalidade de utilizar seus órgãos, transplantando-os em indivíduos doentes. A pesquisa com células-tronco pode perfeitamente progredir usando as de organismos adultos e as da placenta e do cordão umbilical. Não é verdade que a pesquisa científica é impedida quando não se lança mão das células retiradas de embriões humanos. ÉPOCA – E quanto a embriões de fertilizações in vitro não-aproveitados e que vão para o lixo? Dom Geraldo – É mais um dos horrores produzidos nesse ambiente de sofisticada tecnologia, que movimenta grandes recursos e proporciona lucros fabulosos.350 Em relação à posição das Igrejas Protestantes (Evangélicas), fica difícil falar acerca da sua opinião como 350 BLANC, Valéria. Pela vida do feto. Entrevista concedida pelo Cardeal Dom Geraldo Majella Agnelo à Revista Época, ed. n° 347, de 10/01/05, Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/ > Acesso em: 30/01/05, às 10:00 hs. 283 um todo, tendo em vista que estas, diferentemente da Igreja Católica que é una e é representada principalmente pelo Papa, as Igrejas Protestantes têm muitos representantes, cada qual à frente da sua denominação e linha doutrinária, não havendo um consenso. Por outro lado, vê-se que aquelas que têm maior expressividade e tradição manifestam-se contrariamente às pesquisas com embriões humanos, entendendo que o início da vida se dá com a concepção e esta é um dom divino ao qual não cabe ao homem menosprezar.351 Um dos representantes dessas Igrejas que, no Brasil, mais se têm destacado é o Pastor Silas Malafaia, da Igreja Assembléia de Deus da Penha na cidade do Rio de Janeiro-RJ, o qual, em programa televisivo apresentado, em 25/06/05, na Rede TV, programa “Vitória em Cristo”, falou acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, destacando que os evangélicos não são a favor destas pesquisas com embriões, porque estes são pessoas, tendo em vista que na sua evolução, somente poderão se transformar em pessoas (o ser é inato e não adquirido). Destacou, ainda, que a diferença entre um óvulo fecundado e um indivíduo adulto é apenas o tempo decorrido e a nutrição, já que ambos são derivados de gametas humanos, que somente poderiam formar seres humanos. Ressaltou, também, o fato de que tanto a pesquisa com embriões humanos como o aborto não são questões religiosas, mas sim, biológicas e que a biologia mesma, bem como a medicina fetal, a embriologia e a genética comprovam que a vida começa na concepção, sendo deste fato em diante, contínua até a morte, seja ela intra ou extra-uterina, e sendo o embrião que 351 O Dr. Richard Land, presidente da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da Convenção Batista do Sul, nos Estados Unidos, fez a seguinte afirmação acerca das pesquisas com embriões humanos: “Nós não devemos ser o tipo de sociedade que mata nossos menores seres humanos para buscar tratamento para seres humanos maiores e mais velhos”. (KOLATA, Gina. op. cit., p.2) 284 determina todo o seu desenvolvimento desde o primeiro momento na sua concepção. Entende que a pressão para o uso de embriões humanos em pesquisas por parte de vários cientistas é porque estão preocupados com a clonagem humana, embora nenhum deles tenha domínio absoluto da mutação genética, buscam-na, o que pode ocasionar erros na genética, os quais se perpetuariam, por várias gerações. E ressaltou o fato de que a vida, como um todo, tem sido banalizada e que isso não pode acontecer, porque o ser humano é a coroa da criação de Deus, lembrando que “o homem não é produto do acaso, é imagem e semelhança de Deus”.352 Percebe-se, portanto, que a grande maioria dos representantes das Igrejas Evangélicas, nesse aspecto, concordam com a visão católica acerca do início da vida e o valor que esta tem, podendo-se dizer que a visão cristã acerca da vida é de que esta se inicia com a concepção e que se prolonga até a morte, passando este ser humano por várias etapas de desenvolvimento, as quais, em momento algum, e independentemente da forma em que se encontrem, são valorosas para Deus e não podem, por isso, ser desprezadas. Sendo assim, entende-se que a idéia de que a vida começa na concepção é aceita por grande parte daqueles que têm no cristianismo sua religião, já que os ideais deste se baseiam no respeito à vida, à dignidade humana e, principalmente, no amor a si e ao próximo. 352 MALAFAIA, Silas. Homossexualismo, aborto e células-tronco. Palestra apresentada no Programa “Vitória em Cristo”, na Rede TV de Televisão no dia 25/06/05, às 9:00 hs. 285 4.7 – O papel das associações que lutam pela liberação da pesquisa com células-tronco Dentre as várias organizações que buscaram, junto ao Congresso Nacional, a liberação das pesquisas com célulastronco embrionárias por meio da Lei de Biossegurança, uma delas, a qual sempre se destacou, foi o Movitae ou Movimento em Prol da Vida, o que tem como principal financiadora Marisa Moreira Salles, casada com o presidente do Unibanco, Pedro Moreira Salles, portador de distrofia muscular. Trata-se, portanto, de uma organização não governamental sem fins lucrativos e com atuação nacional que, como por eles é expresso, “trabalha para esclarecer a sociedade civil sobre a importância da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias e luta pela criação de leis que disponham sobre o uso de células-tronco para fins terapêuticos”. 353 Esta associação foi fundada, em janeiro de 2003, na cidade de São Paulo, por meio da união de um grupo de pais e pacientes de doenças neuromusculares com o Centro de Estudos do Genoma Humano e, ainda, com técnicos da Comissão Técnica de Biossegurança – CTNBio, os Drs. Reginaldo Minaré e Cristina Possas. Seu nome vem da fusão das palavras movi (movimento) e vitae (vida) tendo em vista que este é um movimento que se dá por meio da informação e comunicação em prol da qualidade de vida e do pleno Site oficial do MOVITAE – Movimento em Prol da Vida. Disponível no http://www.movitae.bio.br > Acesso em: 20/06/05, às 22:00 hs. 353 286 exercício da cidadania.354Eles buscam com o movimento, esclarecer a sociedade e o governo, mediante o diálogo destes e da comunidade científica, questões acerca do uso das células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias, com o fim de se criarem leis que disponham sobre a melhoria da qualidade de vida de pessoas com doenças genéticas ou adquiridas. Promove-se, ainda, o acesso à informação ao paciente, familiares e à sociedade, em geral, sobre as diversas patologias existentes e tratamentos disponíveis, alertando sobre os riscos de tratamentos alheios à ética médica e à comprovação científica. Buscam, por último, “o intercâmbio com associações, fundações e centros de pesquisas que compartilham os mesmos princípios”.355 Quando estava em análise e discussão, na Câmara dos Deputados e no Senado, o projeto que antecedeu a Lei de Biossegurança (lei n° 11.105/2005), pessoas ligadas a esta organização não-governamental, e a outras, conjuntamente com portadores de doenças genéticas e adquiridas, e, ainda, a Dra. Mayana Zatz e o médico Dráuzio Varella, estiveram naquelas casas, manifestando, junto aos parlamentares, a sua opinião acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias e sobre a necessidade de sua liberação. Podese dizer que fizeram um bom trabalho, posto que, quando se iniciaram as discussões na Câmara dos Deputados, muitos parlamentares mostravam-se contrários à liberação das pesquisas com embriões humanos. O projeto, então, foi modificado, nesta casa, e seguiu para o Senado, que, novamente, o modificou, sendo este aprovado, no dia 02 de março de 2005, com maioria no Congresso Nacional (352 354 355 Ibidem. Ibidem. 287 votos a favor e 60 contra). Quem acompanhou o trâmite do projeto nas casas pode perceber que esta associação, bem como outras envolvidas trabalharam, arduamente, em busca do que se alcançou, estando constantemente na mídia nacional falando sobre a necessidade de liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, mostrando pessoas portadoras de doenças genéticas e adquiridas que “sonhavam” com estas pesquisas, e exercendo, assim, grande comoção nacional acerca da matéria em prol da liberação. Eles crêem que por intermédio das pesquisas com células-tronco embrionárias, chegar-se-á à cura das mais diversas doenças genéticas e adquiridas (como por exemplo, mal de Parkinson, diabetes tipo 1, atrofias, distrofias, lesão medular, diabetes tipo II, etc) e, assim, os portadores delas poderiam ter melhor qualidade de vida, que se daria por meio de respeito às suas necessidades, principalmente no tocante ao tratamento médico adequado. São externados como princípios e valores do Movitae que o tratamento para todos deve ser igualitário, independentemente da condição financeira, física, genética, cultural, racial ou étnica, buscando-se o equilíbrio físico, emocional e social dos portadores de necessidades especiais e de sua família e, ainda, compartilhando os avanços científicos e o respeito às diversidades. Entende-se que por meio da comunicação e da informação chegar-se-á ao fim desejado, o qual é a obtenção de instrumentos para o exercício pleno da cidadania e de qualidade de vida. 288 4.8 – A recém aprovada Lei de Biossegurança (Lei n° 11.105/2005) Esta lei, após várias discussões, foi aprovada, em 02 de março de 2005, pelo Congresso Nacional, sendo, posteriormente, no dia 24 do mesmo mês, sancionada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Ela regulamenta os incisos II, IV e V, do § 1°, do art. 225, da Constituição Federal, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados; cria, ainda, o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS); reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio); dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB); e revoga a lei n° 8.974/95, a MP n° 2.191-9/01, e os arts. 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10 e 16 da lei n° 10.814/03. No final do seu art. 1°, ela estabelece como diretrizes “o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”. Nos incisos VII ao XI do art. 3°, estabelece que, para os efeitos desta lei, considera-se célula germinal humana a “célula-mãe responsável pela formação de gametas presentes nas glândulas sexuais femininas e masculinas e suas descendentes diretas em qualquer grau de ploidia” (VII); a clonagem como um “processo de reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em um único 289 patrimônio genético, com ou sem utilização de técnicas de engenharia genética” (VIII), sendo a clonagem reprodutiva, aquela realizada com a “finalidade de obtenção de um indivíduo” (IX), e a terapêutica, aquela com a “finalidade de produção de células-tronco embrionárias para utilização terapêutica” (X); e as células-tronco embrionárias como as “células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo” (XI). Finalmente, no art. 5° e incisos, trata do tema que tem gerado diversas controvérsias, acerca do uso de embriões humanos em pesquisa. Diz o texto do artigo citado: Art. 5° É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro (sic) e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus 290 projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n° 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Com a promulgação desta lei, então, passou a ser lícita a pesquisa com embriões humanos remanescentes de fertilização assistida, sendo tais pesquisas financiadas pelo governo federal, o qual já anunciou o repasse de R$ 11 milhões de reais para o desenvolvimento da pesquisa com células-tronco no país. Esta foi aprovada pela maioria do Congresso Nacional, ou seja, por 352 votos contra 60. Dos contrários, os que mais buscaram lutar pela sua não aprovação, no dia da votação, foram os deputados do PRONA. Estes alegaram em plenária que os embriões humanos já têm vida desde a concepção e que nada há de retrógrado (que é como são chamados aqueles que são contrários às pesquisas com embriões humanos) em se preservar a vida e permitir que ela continue a existir para esses embriões. Alegou-se, ainda, que existem apenas trinta mil embriões congelados (número esse que foi citado durante os debates antes da aprovação por aqueles que queriam a liberação e que, hoje, sabe-se, é dez vezes menor, como já fora demonstrado) e que esses não são suficientes para se fazer os transplantes que se querem fazer e que, mesmo isto, não se sabe, se é possível, porque nada há de comprovado, mesmo em países que já fazem pesquisas com embriões 291 humanos há tempos. E, por ultimo, falou-se sobre as “multinacionais da morte” (Deputado Enéas), as quais seriam os centros de reprodução assistida que têm grandes interesses econômicos na liberação destas pesquisas e, ainda, a indústria fármaco/cosmética que também os tem. Finalizou com a máxima de que os “fins não justificam os meios” e que não se pode concordar com o sacrifício de seres humanos para a melhor qualidade de vida de outros. Por outro lado, aqueles que defendiam a liberação no pleno e votaram pela sua liberação, alegavam que essa era a luta por uma melhor qualidade de vida daqueles que têm doenças genéticas e adquiridas e que os embriões não têm vida, até a formação da placa neural, e, por isso, não se estaria dispondo da vida, mas sim, permitindo melhores condições àqueles que já estão vivos. Falou-se, de forma comovente e dramática, acerca da muitas pessoas jovens que se encontram em cadeiras de rodas, em hospitais e de muitos outros doentes, mostrando constantemente cartas, e-mails e fotos de pessoas com essas necessidades especiais que estavam acreditando nessa terapia como a cura de todos os males. Chamou-se de retrógrados e ultrapassados aqueles que querem impedir as pesquisas com embriões humanos congelados sob a alegação de que estes já seriam seres humanos com vida, porque estes não teriam vida, mas somente uma expectativa, caso fossem implantados em um útero, o que não ocorreria porque são considerados inviáveis. E, por último, criticou-se a posição contrária, que se baseia em convicção religiosa e não científica. Ademais, tal lei ainda tratava da questão dos transgênicos, mais especificamente da sua liberação, matéria esta também muito controvertida e que, várias vezes, se 292 discutiu, em meio às questões relacionadas a pesquisas com embriões humanos, sendo isto duramente criticado pelos parlamentares contrários a elas. Posto isto, demonstrou-se, brevemente, o panorama em que foi votada a tão polêmica Lei de Biossegurança. Nesta, ainda, proibiu-se, no art. 6°, incisos III e IV, a engenharia genética (atividade de produção e manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante) em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano e a clonagem, de qualquer tipo. Hoje, no Brasil, o panorama que se encontra pós-lei de biossegurança é o seguinte: tem-se, atualmente, a possibilidade de se pesquisar embriões humanos congelados, remanescentes de tratamento de reprodução assistida que sejam inviáveis ou estejam congelados há três anos ou mais desde que, antes, se tenha a autorização dos pais. Os pesquisadores deverão, sempre que iniciarem uma pesquisa com esses embriões, submeter esse projeto à apreciação e aprovação do Comitê de Ética em pesquisa, vedando-se qualquer comercialização desses embriões. É proibido qualquer tipo de clonagem, ou seja, terapêutica ou reprodutiva. Em 30/05/05, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn n° 3.510) buscando impugnar o art. 5° e parágrafos, da lei de biossegurança, que trata do uso de embriões humanos em pesquisa, alegando, inicialmente, que este artigo fere o princípio constitucional elencado no art. 5° sobre a inviolabilidade do direito à vida, posto que a vida se inicia 293 com a concepção; fere, ainda, o art. 1°, inc. III que trata acerca do princípio da dignidade humana, uma vez que o embrião humano é vida humana e tem dignidade a ser protegida; e, também, que as pesquisas com células-tronco adultas são mais promissoras que a embrionária. Acerca do direito à vida constitucionalmente consagrado no art. 5°, afirma que a vida inicia-se com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, e que, desde o primeiro momento de formação do embrião, este já apresenta escritas em seu código genético todas as características que terá em toda a sua vida, o qual é único e totalmente independente da mãe quanto ao seu desenvolvimento, no sentido de que é o “agente” dele, já que o embrião é quem determina como irá se desenvolver, desde a sua concepção até a morte, só necessitando do ambiente propício para isso, ambiente este que se faz no corpo da mãe, na primeira fase de sua vida (podendo ser in vitro nos primeiros dias, quando os gametas forem unidos por inseminação artificial). Mas, em momento algum, isso indica que tenha menos vida ou direito a ela, tendo em vista que, no texto constitucional, não há ressalva alguma que determine essa possibilidade. Ampara-se o procurador na opinião de diversos médicos e pesquisadores da área biológica, os quais defendem como certa a tese de que a vida se inicia com a concepção, sendo o que ocorre depois desse fato parte do desenvolvimento o qual apenas finaliza com a morte. Dos diversos pareceres que norteiam a ação, ressalta o que expõe a Dra. Cláudia Maria de Castro Batista, professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorada pela University of Toronto, na área de células-tronco, a qual afirma: 294 No momento da fecundação, a partir da fusão do material genético materno e paterno, a nova célula formada, chamada zigoto, reorganiza-se, perde proteínas inicialmente ligadas ao DNA dos gametas, inicia um novo programa ditado por esta nova combinação de genes, comanda de forma autônoma todas as reações que o levarão a implantar-se no útero materno. Inicia-se uma ‘conversa química’ entre esta célula e as células do útero materno. Este programa é, além de autônomo, único, irrepetível e contínuo. A partir da primeira divisão do zigoto, quando originam-se as duas primeiras células, estas encontram-se predestinadas. Estudos recentes da Dra. Magdalena Zernicka-Goetz, do Departament of Experimental Embryology, Polish Academy of Science, Jastrzebiec, Poland, (Cf. Nature. 2005 Mar 17; ai434 (7031): 391-5, Development. 2005 Feb; 132(3): 479-90; Development. 2002 Dec; 129(24): 5803-13; Nat Cell Biol. 2002 Oct; 4 (10:811-5), mostram clara e irrefutavelmente que toda e qualquer parte do embrião ou feto é formada por células já predestinadas nas primeiras horas após a fertilização. Portanto, todo o desenvolvimento humano tem como marco inicial a fecundação e, após este evento, tem-se (sic) um ser humano em pleno desenvolvimento e não somente um aglomerado de células com vida meramente ‘celular’. Trata-se, a partir deste evento, de um indivíduo humano em um 295 estágio de desenvolvimento específico caracterizado cientificamente.356 e bem Na ação, o procurador fala ainda acerca do que são as células-tronco embrionárias e adultas e ressalta um estudo do Dr. Damián Garcia-Olmo, professor titular de cirurgia da Universidade Autônoma de Madrid, onde se demonstram os avanços da pesquisa científica com células-tronco adultas, os quais demonstram ser muito mais promissores do que aqueles realizados com as embrionárias. Finalizando, alega que a pesquisa com células-tronco embrionárias permitidas no art. 5°, da Lei n° 11.105/05, “inobserva a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana, e faz ruir fundamento maior do Estado democrático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana”357, utilizando-se das palavras do Dr. Gonzalo Herranz, diretor do departamento de humanidades biomédicas da Universidade de Navarra para concluir o expressado por ele, o que aqui se reproduz: El núcleo ético del argumento es este: no todos los seres humanos son iguales, pues unos tienen más valor y más dignidad que otros. En concreto, ciertos seres humanos, y los embriones congelados caducados se cuentan entre ellos, valen muy poco y podemos intercambiarlos por cosas más valiosas. No tienen nombre, ni son personas como las otras. Están condenados a morir y nadie los llorará ni celebrará funerales por su muerte, inevitable y autorizada por la Ley. 356 BATISTA, Cláudia Maria de Castro apud FONTELES, Cláudio. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3510, de 30/05/05, p. 7. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/35087 > Acesso em: 06/06/05, às 10:00 hs. 357 FONTELES, Cláudio. op. cit., p. 9. 296 Pero, como demócratas, se ha de replicar que no es justo ni razonable dividir a los seres humanos en grupos de valor diferente. Los embriones sobrantes son, ante todo, hijos, que forman parte de una familia. Formaban parte de un grupo de hermanos. De ellos, unos fueron considerados dignos de ser transferidos al seno de su madre y son ahora niños llenos de alegría de vivir. Pero, por un azar trágico, los otros fueron dejados de lado. La humanidad ha madurado trabajosamente la idea de que a todos los miembros de la familia humana se ha de conferir la misma dignidad, aunque sus ideas o su apariencia difieran radicalmente de las propias. (El sacrificio de prisoneros de guerra y los embriones congelados – Diario Médico – 6.11.02) (…) (sic) Las vidas humanas no valen menos porque nadie las llore. La saturación de tragedias que nos revela el telediario cada día está quemando nuestras reservas de compasión. Nuestra capacidad de comprender y emocionarnos no nos alcanza para conmovernos por los que mueren a consecuencia de catástrofes naturales, accidentes, crímenes terroristas o no, sobre todo si ocurren lejos de nosotros. No se llora por los embriones que se pierden espontáneamente o que son abortados. Pero no ser llorado, no ser conocido o no ser deseado no hace a esos seres menos humanos o menos valiosos. La deficiencia de valor no está en ellos. 297 Total, van a morir... Pero nuestra postura ante su muerte no es asunto indiferente. El modo y las circunstancias de su muerte son asuntos éticamente decisivos. Y una cosa es reconocer lo inevitable de su muerte absurda que pone fin a una existencia todavía más absurda, y otra muy distinta es consentir en su sacrificio en el altar de la ciencia y sentirse redimido y justificado. Su muerte, inevitable, no es pasivamente presenciada, sino que es activamente consentida, programada, usada en beneficio propio. Es reducir a los embriones a la condición de meros medios con los que se satisfacen los deseos de otros: al principio, para cumplir unos proyectos parentales que los han dejado en el frío; después, unos proyectos de investigación que los dejan crecer hasta blastocistos de cinco días para reconvertirlos en células que nada tienen que ver con su propio proyecto de vida. En Bruselas han optado por pensarse un poco mejor donde poner el dinero. Nosotros necesitamos también tiempo para decidir donde ponemos el alma, porque estamos ante una decisión histórica. Paul Ramsey lo dijo muy bien: ‘La historia moral del género humano es más importante que la historia de la Medicina’.358 358 HERRANZ, Gonzalo apud FONTELES, Cláudio. op. cit., p. 9. Em tradução livre: “O núcleo ético do argumento é este: nem todos os seres humanos são iguais, pois uns têm mais valor e mais dignidade que outros. Em concreto, certos seres humanos, e os embriões congelados vencidos se contam entre eles, valem muito pouco e podemos trocá-los por coisas mais valiosas. Não têm nome, nem são pessoas como as outras. Estão condenados a morrer e ninguém os quer, nem celebrará funerais por sua morte, inevitável e autorizada pela lei. Contudo, como democratas, há de se replicar que não é justo e nem razoável dividir os seres humanos em grupos, de valor diferente. Os embriões excedentes são, antes de tudo, filhos, que formam parte de uma família. Formaram parte de um grupo de irmãos. Dentre eles, uns foram 298 Cabe, ainda, ressaltar que a ADIn n° 3.510 tem sido amparada, cientificamente, pelos pareceres de vários profissionais, em um caráter multidisciplinar, com o que se busca dar maiores esclarecimentos sobre o que implica a pesquisa com células-tronco embrionárias, estando dispostos esses profissionais a comparecerem em uma audiência pública para tanto.359 considerados dignos de serem transferidos ao seio de sua mãe e são agora filhos cheios da alegria de viver. Mas, por um azar trágico, os outros foram deixados de lado. A humanidade tem amadurecido arduamente a idéia de que a todos os membros da família humana deve-se conferir a mesma dignidade, mesmo que suas idéias e sua aparência sejam radicalmente diferentes delas próprias. (O sacrifício de prisioneiros de guerra e os embriões congelados – Diário Médico – 6.11.02) As vidas humanas não valem menos porque ninguém as quer. A saturação das tragédias que os jornais nos mostram a cada dia está acabando com as nossas reservas de compaixão. Nossa capacidade de compreensão e de nos emocionarmos não nos alcança para nos comover por aqueles que morrem em conseqüência de catástrofes naturais, acidentes, atentados terroristas ou não, sobretudo se ocorrem longe de nós. Não se chora pelos embriões que se perdem espontaneamente ou que são abortados. Contudo, não ser querido, não ser conhecido ou não ser desejado não faz esses seres humanos menos valiosos. A deficiência de valor não está neles. Todos, vão morrer...Contudo, nossa postura frente à sua morte não é um assunto indiferente. O modo e as circunstâncias da sua morte são assuntos eticamente decisivos. E uma coisa é reconhecer o inevitável de sua morte absurda que põe fim a uma existência, todavia, mais absurda, e outra muito distinta é consentir no seu sacrifício no altar da ciência e sentir-se redimido e justificado. Sua morte, inevitável, não é passivamente presenciada, nem deve ser ativamente consentida, programada, usada em benefício próprio. É reduzir os embriões à condição de meros meios com os quais se satisfazem os desejos dos outros: em princípio, para cumprir os projetos parentais que uns têm desejado friamente; depois, em projetos de investigação nos quais se desejam usar blastocistos de cinco dias para convertê-los em células que nada têm que ver com seu próprio projeto de vida. Em Bruxelas tem-se optado por pensar um pouco melhor onde pôr o dinheiro. Nós necessitamos também, de tempo para decidir onde colocaremos a alma, porque estamos frente a uma decisão histórica. Paul Ramsey disse muito bem: ‘A história moral do gênero humano é mais importante que a história da Medicina’”. 359 Finaliza-se, assim, a ação: “1. Advindas informações do Congresso Nacional, da Presidência da República, colhido o pronunciamento da Advocacia Geral da União, e tornando-me os autos o 299 Posto isto, vê-se que, até o presente momento, não há certeza da continuidade da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, no Brasil, tendo em vista que o artigo da lei de biossegurança poderá, ainda, ser modificado, em sendo o disposto na ação direta de inconstitucionalidade aceito como correto. 360 parecer, peço, presentemente, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º e § § da Lei 11.105, de 24 de março de 2005. 2. À luz do disposto na parte final, do § 1º, do artigo 9, da Lei nº 9.868/99, solicito a realização de audiência pública a que deponham, sobre o tema, as pessoas que apresento, e que comparecerão à audiência independentemente de intimação, tão só bastando a este Procurador-Geral da República a intimação pessoal da data aprazada à realização da audiência pública: 1. Professora Alice Teixeira Ferreira; 2. Professora Claudia Maria de Castro Batista; 3. Professora Eliane Elisa de Souza e Azevedo; 4. Professora Elizabeth Kipman Cerqueira; 5. Professora Lilian Piñero Eça; 6. Professor Dalton Luiz de Paula Ramos; 7. Professor Dernival da Silva Brandão; 8. Professor Herbert Praxedes; e 9. Professor Rogério Pazetti”. (FONTELES, Cláudio. op. cit., p.10). 360 Em 08/06/05, no programa “Diálogo Brasil” o qual é fruto de uma parceria entre a Radiobrás, a TV Cultura, de São Paulo, e a TVE Brasil, do Rio de Janeiro, houve um debate acerca da permissão das pesquisas com células-tronco embrionárias, no Brasil. O ministro da Saúde, Humberto Costa, mostrou-se confiante de que o STF permita as pesquisas, dizendo que a “conduta de alguns setores da sociedade, como a Igreja, não pode prevalecer aos interesses da maioria da população”. Por outro lado, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em microbiologia, Lenise Garcia, disse que “a visão da igreja coincide com a da ciência. A maioria dos cientistas concorda que a vida começa com a fecundação. A visão de que o ser humano começa com o sistema nervoso é uma visão daquele que está interessado em usar células-tronco”. Acerca da discussão, a professora Cláudia Batista, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a qual é especialista em célulastronco, ressaltou que “após a fecundação, estaríamos interferindo em todo o programa de desenvolvimento de um indivíduo da espécie humana”, acrescentando que o assunto deveria ser mais debatido com a sociedade, posto que, segundo a pesquisadora, “não houve uma discussão nacional”, sendo “a informação importante para formar a opinião pública”. (REBELO, Marcelo. Governo defende o uso de células-tronco embrionárias no país, mas especialistas divergem. Disponível em: <http://radiobras.gov.br/materia >. Acesso em: 15/06/05, às 9:17 hs). 300 5 – O DIREITO À VIDA DO EMBRIÃO E OS FUNDAMENTOS ÉTICOS RELACIONADOS À MATÉRIA 5.1 – Do Direito à vida do embrião, na legislação brasileira, em face das pesquisas com célulastronco embrionárias Estabelece o art. 5°, da Constituição Federal, que a vida é inviolável, inserindo esse direito no rol dos direitos fundamentais. O valor vida, relacionado na Carta Magna, se refere ao bem maior que é essencial a todo ser humano e ao qual, se condicionam todos os demais direitos. Todo ser humano, sem exceção, tem seu início quando se dá a fusão do gameta masculino com o feminino, e desta somente podem surgir outros seres humanos, e nada mais. Disto, já se denota que, independentemente da teoria adotada para o início da vida embrionária humana, não se pode contestar que um embrião humano é um ser humano e deve, então, ser respeitado como tal. Acerca da assertiva, comenta-se: Independentemente do questionamento que persiste sobre o momento em que o embrião passa a merecer dignidade de ser humano, se desde a fecundação ou a partir e depois da nidação, o critério de humanidade do embrião, de maneira mais concreta, deve servir 301 como referência normativa para o congelamento, a manipulação, seleção (em fecundação múltipla), e perda (rejeição na implantação e aborto depois dela) desses embriões humanos. (...) Existe, atualmente, grande número de embriões congelados, ou seja, de vidas humanas em potencial, sendo deixado aos operadores da ciência, o poder de decidirem os seus destinos. Milhares deles se tornarão homens e outros milhares serão manipulados em experiências ou experimentos, conforme a técnica, por ora, ainda em fase de aperfeiçoamento, às custas de muitas dessas vidas iniciadas, outros apenas destruídos. A destruição desses embriões é imoral. Independente da discussão ou dos argumentos filosóficos a respeito, a partir de que momento se pode considerar o começo da vida humana. O fato é que, no embrião, acham-se fundidas as células germinais humanas, responsáveis pelo início de uma vida, cujo novo ser possui, a partir da fecundação, caracteres genéticos indiscutivelmente humanos, próprios, irrepetíveis e insubstituíveis, com capacidade de se desenvolverem até converterem-se em um homem. Produzir vidas humanas, com possibilidade e probabilidade de virem a ser destruídas, qualquer que seja o seu grau de desenvolvimento, não pode ser juridicamente admissível e moralmente concebido.361 361 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 85/86. 302 Acerca da proteção à vida, pode-se dizer que o descrito no artigo constitucional citado assegura a integralidade existencial a todo ser humano, simplesmente pela essência que esse carrega de ser humano, sua natureza e, independentemente do seu tempo de duração. O respeito ao ser humano, à sua vida e aos demais bens ou direitos que dela decorrem, são impostos erga omnes, inicialmente e sem exceção, pelo texto da Constituição, então, pelo simples fato da existência dessa natureza humana inerente a todos, não sendo a pessoa alguma permitido desobedecer, ou seja, agir de forma que venha a declinar esse direito. Ademais, se entender, ainda, pela teoria que defende que a vida se inicia com a concepção, a qual adotou-se para o presente trabalho e tem, adeptos, na maioria dos doutrinadores e em grande parte dos cientistas das áreas médico-biológicas, tem-se que qualquer ação que venha a diminuir, restringir ou retirar as vidas dos embriões humanos, acaba por ser inconstitucional, mesmo que permitida em lei infraconstitucional. E é assim, porque fere não só a inviolabilidade do direito à vida, consagrada no art. 5°, mas, ainda, fere, também, o princípio norteador do Estado Democrático de Direito, que é o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no inciso III, do art. 1°, também da Constituição, bem como toda a proteção que é dada pelo ordenamento pátrio à vida humana, desde a concepção, o que fora já demonstrado em capítulos anteriores. A vida humana, pelo valor que agrega, é indisponível, não se podendo dela dispor, segundo a legislação pátria, nem mesmo o seu titular (proibição do suicídio), quanto mais terceiros que sobre ela não têm direito. A liberdade científica ou o progresso da ciência não pode utilizar-se de quaisquer meios para conseguir os fins que busca, 303 principalmente, se, para isso, necessita do sacrifício de seres humanos, posto que a permissão dessa situação nada mais seria que um retrocesso a tempos anteriores, em que se cometeram várias atrocidades em nome de se criar uma raça pura ou, muito antes, quando se sacrificavam seres humanos que não eram tão perfeitos como outros. Cabe, ainda, questionar “a que e a quem servem tais progressos, especialmente, no Brasil”362, já que toda e qualquer pesquisa, antes de tudo, deve-se nortear para o bem, antes de tudo, da sociedade, em geral, e não apenas ir de encontro aos anseios de alguns, sejam eles científicos ou econômicos363―364. Toda e qualquer conduta lastreada na 362 FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família: curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 227. Aduz o autor na p. 232/233, quando fala dos dilemas éticos que norteiam as questões como doação de órgãos e reprodução humana assistida, aos quais o direito deverá analisar: “Mais do que apontar tal contexto, cabe também perguntar ‘a que’ e ‘a quem’ serve a biotecnologia. Não sem razão, é necessário um olhar crítico sobre o nosso tempo, penetrante e desconfiado desse determinisme lâche que governa a nouvelle vague da economia. Isso tudo para que o corpo do direito não ingresse tão simplesmente um novo estatuto do corpo humano a título de artefatos da mercantilização, objetos de mercadoria suscetível de trânsito na arena jurídica. Não há neutralidade na ética nem na biotecnologia, governada, de um lado, pela lógica do conhecimento e do poder, a qual está associada à lógica do lucro; de outra parte, a lógica do desejo e da livre busca da felicidade. Oscilam dois compromissos pouco sutis: o da lógica da liberdade individual e o da utilidade, marcados pelo avanço na área da medicina, na pesquisa, na competição laboratorial internacional, nos interesses econômicos das empresas de saúde. Mediante uma formulação ímpar, a professora M. T. Meuders-Klein, ao lembrar que do suposto paraíso nosso primeiro ancestral foi expulso por provar a fruta proibida da árvore da ciência e do saber, indica as quatro lógicas fundamentais que, afastando aquela suposta neutralidade, podem estar governando essa mudança fenomenal da vida e de suas condições de reprodução: de um lado, a lógica do conhecimento e do poder, à qual está seguramente associada a lógica do lucro; de outra parte, a lógica do desejo e da livre busca da felicidade, e ligando essas duas ordens está, em sua visibilidade exterior, a lógica da utilidade”. 363 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 86 explicita acerca da matéria: “Sabe-se de muitos laboratórios em que são criados embriões excedentes até de forma propositada, para serem cedidos a outros centros de reprodução, onde são 304 desigualdade total de tratamento, o que, no presente caso, implica a morte de muitos para um suposto e incerto (tendo em vista que o que se demonstrou é que, até agora, há mais chances de maiores riscos no uso de células-tronco embrionárias do que tratamentos eficazes) benefício, não se mostra em concordância com os princípios éticos que devem ser os norteadores das pesquisas e, por isso mesmo, não emancipam ou fazem crescer um bem maior que deveria ser o fim do estudo, mas sim, apenas geram maiores desigualdades, visto que, além do prejuízo direto àquelas utilizados da forma mais conveniente. O comércio de embriões, com espécies classificadas de acordo com os gens característicos e determinado tipo de pele, olhos, cabelos, já é uma realidade. Os doadores que deram origem aos embriões disponíveis são expostos em álbuns de amostras, para que sejam escolhidos segundo os padrões e vontade, ou características que mais se assemelhem com as dos adquirentes desse novo ser. Basta aos interessados, apenas, passarem no estabelecimento e adquirir o futuro filho, segundo suas preferências. Talvez nem isso, vez que, dependendo do laboratório (que fornecerá o ‘serviço’), poderão receber o álbum com as fotos e descrição das características dos doadores, para escolha, na própria residência. No entanto, por um princípio de moral universal, não se pode admitir o tráfico de forma inicial de vida humana sob pena de cair na forma equivalente ao tráfico de escravos. Além disso, basicamente, a oposição à compra e venda de embrião está na razão de que não se pode considerar qualquer pessoa como proprietária do embrião. Aí está o fundamento ontológico que proíbe a livre disposição. Não se admite falar em um direito de propriedade por idêntico motivo que não se é dono dos filhos ou de outras pessoas. De acordo com os padrões jurídicos atuais e dominantes, não há que se convalidar qualquer prática de comercialização de embriões, visto não se tratarem de coisa, e, sim, de vida humana, ainda que no seu início, mas com todos os caracteres que identificam um ser humano, único e irrepetível”. 364 Na Revista Época n° 355, de 7/03/05, ou seja, uma semana após a aprovação da lei de biossegurança foi escrita a seguinte nota: “A doação de embriões seguirá o princípio da lei de transplantes, que impede a venda de órgãos. Mas especialistas em reprodução assistida acreditam que o surgimento de um mercado em torno da distribuição dos embriões é questão de tempo. ‘Isso será inevitável. Podem não vender os embriões em si, mas o serviço de triagem, armazenagem e transporte desse material vai virar um produto como ocorre com os bancos de sêmen’, afirma Paulo Serafini, da Clínica huntington”. (SEGATTO, Cristiane. O triunfo da razão. Revista Época n° 355, de 7/03/05, Disponível em: http://www.época.com.br > Acessado em: 15/03/05, às 20:00). 305 vidas cerceadas, podem alastrar-se a outras, das mais diversas formas (ou seja, a visão, cada vez mais clara, do homem como meio, instrumento e não fim e, ainda, como um bem útil, ao qual somente se dá valor enquanto atender a interesses). O valor de toda vida humana é único como ela é em si, e não pode ser visto apenas como um meio, haja vista que é um bem inestimável de caráter fundamental e independe do fato de estar ou não na possibilidade plena do seu desenvolvimento, porque esse fato não afeta a sua qualidade ou condição de ser humano, valoroso e insubstituível como ser único que é. A vida humana, pelo próprio valor que lhe é intrínseco, deve ser, e é constitucionalmente protegida, e essa proteção, como já foi dito, não se dá apenas em razão de se ter direito à vida, mas pelo valor de vida humana que é inato a todo ser. Acerca da vida do embrião, Maria Helena Machado consigna que “precisa ser tratada como inviolável, devendo ser proibida a sua instrumentalização, com finalidades de pesquisas e experimentos científicos, fornecimento de células, tecidos ou órgãos para transplantes de outros seres”.365 E continua, em outro momento, dizendo que “a vida de um ser humano não é um recurso disponível para a satisfação das pretensões de outro”.366 Posto isto, entende-se que, no Brasil, apesar de ter sido sancionada pelo Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 24/03/05, a lei de Biossegurança, a qual, em seu art. 5°, permite a pesquisa das células-tronco de embriões humanos, 365 366 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 87. Ibid, p. 89. 306 essa não é possível, se analisado o art. 5° da Constituição Federal combinado com o inciso III, art. 1°, daquela, os quais norteiam todo o ordenamento pátrio, percebe-se que a intenção do legislador era de proteção da vida humana como valor fundamental, o que transforma em lei inconstitucional qualquer texto que trate dessa matéria diferentemente do entendimento lá determinado. 5.2 – Fundamentos bioéticos para a não-realização de pesquisas com embriões humanos Inicialmente, cabe explicitar o que vem a ser ética (do grego ethos), da qual, pode-se dizer, deriva a bioética, visto que aquela, desde os primórdios da cultura ocidental, ocupou papel importante na história do pensamento humano. No período grego, vê-se, primeiramente, o que Platão via, de certa forma, como ética. Este entendia que, para se atingir a perfeição pessoal, no sentido ético, era necessário o conhecimento da perfeição natural do universo, em que, para aquele, não se dissociava a verdade e o bem, sendo que essas idéias “encerravam em si os mais elevados critérios de equilíbrio, perfectibilidade e harmonia”.367 Para Sócrates, vê-se que o ensinamento ético ia além da comunicação de um saber para a comunicação de um poder, o qual tratava 367 SILVA, Franklin Leopoldo. Breve Panorama Histórico da Ética. In: SIMPÓSIO AIDS E BIOÉTICA, 1993, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 1, n. 1, p. 7 – 11, 1993, p. 7. 307 das questões da vida e da morte.368 Dando continuidade, para Aristóteles, a ética tinha como objetivo “determinar qual é o bem supremo para as criaturas humanas (a felicidade) e qual é a finalidade da vida humana (fruir esta felicidade da maneira mais elevada – a contemplação)”369. Determinados estes pontos, para Aristóteles caberia, ainda, investigar a melhor maneira de fazer com que isto se efetivasse, visto que, para ele, o homem é um “animal social e a felicidade de cada criatura humana pressupõe por isto a felicidade de sua família, de seus amigos e de seus concidadãos”370, sendo a melhor maneira de assegurar essa felicidade o bom governo da cidade (por meio de uma política melhor). Ser ético, então, era viver para o bem da polis (cidade), sendo a ética aquela que ensina a viver, na prática, e não somente na teoria, e que poderia ser traduzida pela prudência. Com o advento do cristianismo, a idéia antes de uma continuidade entre homem e natureza, de poder e da polis dá lugar ao pensamento ligado à interioridade, privilegiandose, neste momento, a “alma como elemento de vínculo entre a criatura e o Criador, fazendo do mundo natural apenas cenário de trajetória do espírito rumo ao seu verdadeiro destino, a eternidade”371, sendo essa dependência do homem em relação a Deus, o elemento fundamental da ética (“ética do espírito”372), a qual dava sentido e mudava a forma de se perceber o papel do homem no mundo. E é neste momento 368 VALLS, Álvaro L. M. Da ética à bioética. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. p. 15. 369 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. do grego, introdução e notas Mário da Gama Kury, 3ª. ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1999. p. 11. 370 Ibid., p. 11. 371 SILVA, Franklin Leopoldo. op. cit., p. 8. 372 Ibid., p. 8. 308 da história que se vê nascer a identificação entre Ser e Pessoa, já que, nesse momento, passou-se a ver Deus como pessoa (Jesus Cristo) e a perceber no homem algo parecido com Ele, no sentido bíblico da imagem e semelhança. Aparece, então, a idéia de dignidade do homem, a qual “introduziu na condição humana um atributo ético, doravante inseparável da natureza humana”373, e nesta interioridade, que é a “fonte da vida ética privilegia-se a razão como a faculdade que deve predominar na avaliação e decisão éticas, mesmo que a conduta envolva elementos de vontade e afetividade inerentes à condição humana”. 374 Depois, essa interioridade, atribuída à filosofia cristã, passou a ser compreendida como autonomia subjetiva, sendo essa forma de compreensão iniciada por Descartes, no século XVII, e a interpretação dela como subjetividade trouxe conseqüências que repercutiram no domínio da ética. A primeira conseqüência é que a autonomia do sujeito, conhecida como autonomia da razão, leva-o a elaborar, livremente, as condições do conhecimento e da ação moral, e se os resultados alcançados nesse exercício coincidirem, de alguma forma, com o que compõe a tradição da filosofia cristã, “isto não retirará dos resultados e dos procedimentos o caráter laico, racional e livre, uma vez que a investigação se terá guiado unicamente pelo que se denominava na época a ‘luz natural’ da razão”.375 A segunda conseqüência referese ao exercício e à finalidade dessa autonomia, realizando-se o primeiro no âmbito do conhecimento, o qual se busca a fim de se conseguir a sabedoria (finalidade), a qual é a 373 Ibid., p. 8. Ibid., p. 8. 375 Ibid., p. 8. 374 309 “perfeita conciliação entre a teoria e a prática”376, e implica “privilegiar a conquista autônoma do conhecimento, base do saber moderno e da constituição de todas as ciências e de suas aplicações técnicas”.377 E dessa prevalência do conhecimento é que decorre a dimensão intelectualista da ética, ou seja, “a idéia de que as questões morais podem ser equacionadas e solucionadas pela via racional”378, as quais, se representadas em uma escala rígida de graus de conhecimento, demonstram que “o estudo das condições éticas da vida humana deriva necessariamente de outros conhecimentos mais elevados ou mais fundamentais”.379 Contudo, esse pressuposto intelectualista revelou um problema, em face do fato de que decisões morais fazem parte da vida cotidiana e a ética não pode esperar, para se formar, pelo resultado das outras ciências e, por isso mesmo, deverá sempre haver uma moral, mesmo que provisória.380 Kant, ao criticar a continuidade hierárquica do conhecimento, inicia uma ruptura entre a idéia metafísica ligada à interioridade e à concepção do sujeito, construindoa a partir de uma constituição puramente lógica da subjetividade, em que “o sujeito não é nem substância espiritual, nem pessoa, nem consciência, metafisicamente autônoma, mas uma estrutura lógica de requisitos formais do conhecimento”381. O sujeito, para Kant, é pura forma, e este é o fundamento da moral e, em razão disto, “somente se 376 Ibid., p. 8. Ibid., p. 8. 378 Ibid., p. 8. 379 Ibid., p. 8. 380 Ibid., p. 8. 381 Ibid, p. 9. 377 310 admite como critério ético aquele que puder ser concebido como absolutamente universal”.382 Este sujeito, de um lado, está inserido num universo fenomênico sujeito às contingências naturais, sendo suas ações, motivadas por uma causa que a desencadeou, e isso, independentemente de ser essa causa nobre ou mesquinha, vicia o ato moral, tirando a sua autonomia, que perde a característica, propriamente, moral; de outro, o sujeito moral se guia apenas pela universalidade formal do critério ético, não se submete a determinação alguma, sendo sua decisão, totalmente, livre.383 E foi a partir destas conjecturas que se pôde chegar ao maior problema de todos, dentro da ética, qual seja, a adequação entre o relativo e o absoluto, haja vista que há vários graus de relatividade, de diferentes interesses, havendo, também, diversidade de valores e crenças em que os sujeitos podem basear sua conduta, os quais devem ser discernidos e analisados pela Ética, a fim de se encontrar o critério da justa escolha.384 E este critério deve ser analisado tanto a partir dos fatos como também dos valores naqueles envolvidos, eis que as proposições éticas se alicerçam naquilo que é ideal para buscar que este chegue o mais próximo daquilo que é real. Joaquim Clotet, professor de Ética e Bioética da PUC do Rio Grande do Sul, entende, então, que a concepção da ética é “a realização ou crescimento das pessoas ou 382 Ibid, p. 9. Ibid, p. 9. 384 Ibid, p. 10. 383 311 sociedades por meio da aquisição, integração e partilha dos valores”.385 Para Cláudio Cohen e Marco Segre, professores, assistente e titular, de Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a ética é vista como “algo que emerge das emoções e da razão de cada pessoa, tendo-se como pressuposto a autonomia na escolha do posicionamento no percurso que vai do coração à razão”.386 Esta, ainda, se fundamentaria em três prérequisitos, os quais seriam: a percepção dos conflitos (consciência); a autonomia (condição de posicionar-se entre a emoção e a razão, sendo essa escolha de posição ativa e autônoma); e, por último, a coerência, tendo a ética como base diferencial da moral o fato de que a primeira é atuante e deve ser apreendida pelo indivíduo, sendo sentida e percebida por este, já que emerge de seu interior (enquanto a moral é imposta, de fora) e, ainda, o fato de que ela deve ter como princípio fundamental o respeito ao ser humano.387 Olinto A. Pergoraro, em sua obra “Ética e Bioética, da subsistência à existência”, ensina que a ética é uma “concepção de vida, um estilo, um modo de existir do homem”388, sendo, então, “um horizonte que exprime o sentido, o rumo que damos ao nosso viver, o rumo que procuramos traçar para a história humana e cósmica”389, 385 CLOTET, Joaquim. Por que Bioética? In: SIMPÓSIO AIDS E BIOÉTICA, 1993, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 1, n. 1, p. 13 – 19, 1993, p. 13. 386 COHEN, Claúdio. SEGRE, Marcos. op. cit., p. 19. 387 Ibid, p. 22/23. 388 PERGORARO, Olinto A. Ética e Bioética. Da subsistência à existência. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 28. 389 Ibid., p. 28. 312 como uma “luz que aponta para frente, para a construção da existência”.390 Pietro de Jesús Lora Alárcon, exprime, acerca da ética: A Ética se ocupa de várias esferas de comportamento, e tendo em vista princípios originados na determinação de essência do ser humano, isto é, na sua natureza, se preocupa por fornecer soluções a problemas ou dilemas éticos. Marculino Camargo resume os campos e as situações problemáticas da Ética fornecendo um instrumento didaticamente interessante para entender as inquietudes da disciplina. Vejamos: a) Para a Ética, o homem, enquanto ser vivo, se obriga a respeitar e conservar tudo que é vida no ser humano. Assim, a Ética se ocupa de questões como aborto, eutanásia, suicídio, pena de morte, homicídios. b) Em segundo lugar, o homem é um ser racional, a dizer, uma pessoa, dotado de razão e liberdade para coordenar sua vida. De onde se depreende a necessidade de analisar problemas como a coisificação e massificação da pessoa e a exploração do homem pelo homem. O fato de a humanidade residir na racionalidade, na capacidade para viver em sociedade; do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Sendo assim, como enfatiza Marilena Chauí, os valores 390 Ibid., p. 28. 313 éticos se oferecem como expressão e garantia da condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.391 Desta Ética para a Bioética, longo caminho foi percorrido, surgindo esta da carência ética emergente do grande avanço das ciências biológicas e biomédicas, as quais, alteraram todos os processos da medicina tradicional, apresentando novas situações e formas de agir para o que não se tinha parâmetro ético a ser seguido. José Alfredo de Oliveira Baracho aduz, acerca da ética, que esta “significa a procura de uma boa maneira de destacar o ser ou a sabedoria da ação”392 e que, aplicada a bioética e a genética, “conduz as regras de ação de uma sociedade, com a finalidade de enfrentar as dificuldades e os dilemas nascidos da ciência da vida”.393 O termo bioética foi, inicialmente, utilizado pelo oncologista estadunidense Van R. Potter, em sua obra Bioethics, brigde to the future (Bioética, ponte para o futuro), de 1971, o qual se referia a “uma nova disciplina que deveria permitir a passagem para uma melhor qualidade de vida”394, sendo isto, posteriormente, modificado, já que a expressão adquiriu novo significado no sentido de estabelecer uma nova dimensão da pesquisa, relacionada às ciências da vida, no campo dos estudos acadêmicos, 391 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 48. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. op. cit., p. 98. 393 Ibid., p. 98. 394 BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios da Bioética e do Biodireito. In: SIMPÓSIO PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO, 2000, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 8, n. 2, p. 209 – 216, 2000, p. 209. 392 314 passando a existir, em menos de dez anos, como disciplina autônoma e, ainda, como objeto de estudo em instituições criadas para esse fim. Heloisa Helena Barbosa assinala sobre a bioética que, “em sua concepção alargada passou a designar os problemas éticos gerados pelos avanços nas ciências biológicas e médicas”395, a qual busca sistematizar o tratamento das diversas questões surgidas acerca da vida humana e tudo o que a cerca396, e, por isso mesmo, foi definido, de forma simplista, como sendo a “ética da vida”397, ou, mais especificamente, na Enciclopédia de Bioética de 1978, como sendo um “estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e do cuidado da saúde, quando esta conduta se examina à luz dos valores e dos princípios morais”.398 Mas, a bioética, como ciência, não pode ser sistematizada, de modo rígido, em que se perpetuam certas posições, dado que “a discussão bioética não é aquela que se trava para a vitória de uma tese”399, mas sim, existe com o fim de harmonizar situações e atuações, sendo que a “meta comum dos bioeticistas não é o triunfo de teses particulares, cada um tendo a sua, mas a coexistência da humanidade com constante esforço de redução da conflitividade, graças à 395 Ibid., p. 209. Posto que esta também envolve questões relacionadas ao meio ambiente e à sua preservação em função da qualidade de vida dos seres humanos desta e das futuras gerações. (Nota do autor) 397 Ibid, p. 210. 398 Ibid, p. 210. 399 LEPARGNEUR, Hubert. Bioética, novo conceito: a caminho do consenso. São Paulo: Loyola, 1996. p.16 396 315 implementação real de certas normas que obtiveram, mediante processos consensuais, ampla aprovação”400. Posto isto, pode-se dizer que mesmo as teses relacionadas à bioética, por mais conflitantes que sejam, devem buscar uma coerência entre si, ou seja, o bem maior da humanidade como um todo, o que implica respeitar-se todo e qualquer pensamento que possa surgir acerca de certa disciplina, quando este tenha grande aceitação.401 Ibid., p. 17. O autor continua seu raciocínio, dizendo que “é urgente aderir a esta concepção bioética, que respeita tanto a própria consciência como a posição do outro, porque está perpassada por uma tolerância que não implica nenhuma traição da verdade”. 401 Esta reflexão foi inserida para tentar argumentar no sentido de que a tese em prol da vida como bem inviolável em relação aos embriões excedentários, defendida por muitos pesquisadores e por grande parte da sociedade, não é retrógrada ou baseada em convicções religiosas como dizem alguns que a contestam, mas sim, uma tese com base científica amplamente aceita (ou seja, o fato de que a vida se inicia na concepção é corroborada por grande parte da comunidade científica) que deve ser respeitada como uma possibilidade. Contudo, o que se tem visto, na prática, é o contrário, já que a mídia nacional com maior representatividade, tem se mostrado “parcialmente contrária” a esta tese, dando pouco espaço para o seu conhecimento, quando analisada em relação ao tempo gasto com a “defesa” da tese de que os embriões são apenas um amontoado de células até o décimo-quarto dia. Entende-se que tema tão importante e de alta relevância para esta e para as futuras gerações, não pode ser apresentado ao debate sem que ambos os lados sejam, verdadeiramente, conhecidos e seus argumentos sejam, amplamente, divulgados a toda sociedade. Mas, não tem sido isso uma verdade, já que pouco se vê mostrar argumentos a favor da vida dos embriões, porque pouco espaço há para isto, com exceção do espaço cedido na mídia com origem religiosa. E, por isso mesmo, há hoje uma certa tendência a se entender que essa é uma discussão em que, de um lado, está a ciência (a favor) e, de outro, estão os fundamentalistas religiosos (contra), o que não é verdade, porque, como restou demonstrado, argumentos científicos há, e muitos, que corroboram a tese de que o embrião humano tem vida desde o momento da concepção. Ressalta-se, portanto, que a discussão é importante; diz-se, até, imprescindível para que se alcance aquilo que é ideal e aceitável a todos e, para isso, o conhecimento acerca da matéria deve ser amplo em relação a todas as teses, posto que, sem isso, não está se realizando uma análise ética da questão, mas apenas se impondo uma situação, o que é tão criticado por aqueles que aceitam essas pesquisas, quando alegam que os religiosos estão impondo suas crenças a todos. Fica, então, a questão: será mesmo que são os “religiosos” que estão tentando impor 400 316 Em sendo assim, tem-se que o papel da bioética é o de (...) levantar as questões, registrar as inquietações, alinhar as possibilidades de acerto e de erro, de benefício e de malefício, decorrentes do desempenho indiscriminado, não-autorizado, não-limitado e nãoregulamentado de práticas biotecnológicas e biomédicas que possam afetar, de qualquer forma, o cerne de importância da vida humana sobre a terra, vale dizer, a dignidade da pessoa humana.402 Acerca da matéria, José Alfredo de Oliveira Baracho questiona se “tudo que é técnica e cientificamente possível e factível, pode ser eticamente bom e deverá ser juridicamente obrigatório e permitido?”. 403 aquilo que acreditam ser correto, ou são alguns cientistas, apoiados por boa parte da imprensa, os quais, às vezes, até mesmo apelam mais para o emocional do que para aquilo que é científico (algo que eles mesmos criticam) que estão tentando impor a todos suas “crenças”, quando não expõem os dois lados da discussão, de forma igualitária? (Nota do autor) 402 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Bioética e biodireito. Revolução biotecnológica. Perplexidade humana e prospectiva jurídica inquietante. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino – Faculdade de Direito de Bauru, Bauru, n. 33, p. 411–425, dez./mar. 2002, p. 413/414. 403 Como uma forma de resposta à questão, ensina o autor acerca da finalidade da bioética que: “O nascimento da Bioética e do Biodireito levam à compreensão das exigências práticas e sociais de delimitar o âmbito do lícito e do ilícito provenientes das inovações técnico-científicas. A Bioética não é assimilável, nem ao cientificismo tecnológico extremo, nem ao anti-cientificismo ou anti-tecnicismo. A Bioética não pretende uma liberação indiscriminada, nem o obscurantismo do progresso científico e tecnológico da Biomedicina. Preocupa-se com a individualização e os critérios regulamentares, para definir o comportamento dos pesquisadores no momento em que interferem ou manipulam. Novas possibilidades da ciência e da técnica Biomédica sobre a vida humana e não humana surgem”. (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. op. cit., p. 88) 317 Nesse sentido, os estudiosos da matéria têm levantado diversos questionamentos quanto ao certo e ao incerto acerca das questões que permeiam a bioética, como, por exemplo, se pode o homem dispor livre e arbitrariamente da vida ou se a vida é um bem indisponível?; quando a vida deve ser vista e respeitada e passa a merecer uma tutela?; qual é o fundamento da dignidade moral e da titularidade de direito do ser vivo?; quais são as características do ser humano, da vida humana, da vida, em geral, e qual é o sentido do valor do nascer e do morrer?404; até que ponto o homem tem o direito de interferir sobre a vida de outro ser humano?; pode-se dispor da vida de terceiros, quando por eles se é responsável?; o embrião tem dignidade? E, para este estudo, a grande questão que se enfoca é: tem o embrião humano o direito de ter preservada a sua vida apenas em razão do fato de ser humano, ou, também, em face da proteção constitucional inserida no texto do art. 5°, que determina a inviolabilidade da vida humana? Para responder essas questões, frente aos princípios da bioética, adentrar-se-á mais profundamente no assunto em questão, esclarecendo quais são os três princípios éticos básicos da bioética, os quais foram citados, inicialmente, no Relatório Belmont, que foi realizado por uma Comissão Nacional nos EUA encarregada de criá-los dentro dos parâmetros necessários para encaminhar a investigação em seres humanos pelas ciências do comportamento e pela biomedicina. Esses três princípios são: 1) princípio da autonomia ou do respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais; 404 Ibid, p. 89. 318 2) o da beneficência, o qual se traduz na obrigação de não causar dano e de estremar os benefícios e minimizar os riscos, envolvendo ações do tipo positivo como prevenir ou eliminar o dano e promover o bem; 3) o da justiça ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo se houver entre ambas alguma diferença relevante. Ressalta-se, ainda, que, posteriormente, a estes foi acrescentado por Tom L. Beauchamp e James F. Childress, um quarto princípio que, por muitos, é tratado como se fosse um braço do segundo princípio e é conhecido como princípio da não-maleficência e, segundo o qual, não se deve causar mal a outro.405 E estes, surgem, principalmente, para resguardar tanto os profissionais como a sociedade, em geral, que, frente a tantas inovações, encontra-se à mercê destas novas tecnologias, afirmando, Diego Garcia, catedrático de História da Medicina e diretor do primeiro programa de mestrado em bioética da Europa, na Universidade Complutense de Madri, que “é preciso contar com alguns princípios que ajudem os profissionais a decidir agir corretamente, pois a ciência, embora sendo a grande esperança, se apresenta também como uma grande ameaça para a vida humana”. 406 Discorrendo-se mais acerca dos princípios, vê-se que do primeiro decorre que cabe à pessoa, em virtude de sua 405 406 BARBOZA, Heloisa Helena. op. cit., p. 211. GRACIA, Diego apud CLOTET, Joaquim. op. cit., p. 15. 319 autonomia como ser humano e sujeito de direitos, decidir sobre as intervenções terapêuticas que deseja sofrer, sendo a regra estabelecida aquela no sentido de limitar essa autonomia pessoal a intervenção apenas em células somáticas, sendo proibida a manipulação das células germinativas, já que os efeitos desta seriam transmitidos a seus descendentes, ultrapassando, assim, os limites de sua autonomia, já que se estaria adentrando no campo do genoma humano pertencente à humanidade.407 Quanto ao segundo, que se refere à beneficência, está relacionado à obrigação que se tem de ajudar os outros com ações positivas, ou seja, efetivamente, agindo de forma a ajudar, como, também, relaciona-se com a idéia de uma ação negativa de não causar danos (não-maleficência) e, ainda, de procurar o seu bem (sem que para isso cause qualquer mal a outrem).408 407 Vê-se, também, essa perda de autonomia no tocante à disposição da própria vida por meio do suicídio, considerando-se que, tanto etica e moralmente quanto legalmente, é proibida a conduta que leve o sujeito à morte, sendo punido todo auxílio que terceiro dê para a realização desse fato. Em interpretação analógica, pode-se pressupor que se nenhum ser humano tem o direito de dispor da própria vida, quanto menos tem direito um terceiro de dispor de outra vida, já que nem da sua pode abrir mão. Em sendo assim, não se pode concordar com a tese de que os pais têm autonomia para dispor da vida dos embriões congelados, somente podendo sobre eles decidir quando a intervenção terapêutica seja em benefício daqueles embriões. (Nota do autor) 408 Pode-se ver que, aqui, também, se encontra fundamento para não se utilizarem embriões humanos em pesquisas, porquanto eis que do dever de beneficência, no sentido de fazer o bem, decorre o dever de se decidir por intervenção em embriões humanos somente se esta for, para eles, terapêutica; e, ainda, da possibilidade de procurar o bem para si, este esbarra no fato de que é limitado pela não-maleficência, ou seja, no dever de não causar dano a outrem, o que implica o fato de que somente se poderiam realizar pesquisas com embriões humanos para benefício de outros se os embriões não fossem prejudicados por isso, o que não ocorre, já que para se realizar as pesquisas com células-tronco embrionárias, é necessário destruir os embriões congelados. (Nota do autor) 320 Quanto ao terceiro, que é o da justiça ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, este implica em não se dar a uma pessoa tratamento diverso àquele dado a outro, salvo haja entre ambas alguma diferença relevante. Contudo, em relação a este, questionase: todos os seres humanos não são iguais em alguns aspectos e diferentes em outros? Então, a cada um deles deverá ser dado tratamento de acordo com aquilo que é igual em todos e diferente nos mesmos, sem que haja maiores riscos para uns em prol de benefícios para outros. Isto quer dizer o seguinte no tocante aos embriões: todos os seres humanos, independentemente da teoria adotada para o início da vida, têm uma mesma origem, a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, seja ela in vitro ou in vivo, e, como são iguais, nesse aspecto, devem ser tratados de forma igualitária, ou seja, ter seu direito de permanecer, a partir do momento da sua concepção, em desenvolvimento. Os embriões, sendo congelados ou não, implantados ou não, têm o mesmo direito a se desenvolver, já que aqueles só não o fazem, porque foram abruptamente interrompidos no seu desenvolvimento, o que ocorrerá se forem devidamente utilizados para a função para que foram criados e, ainda, na condição de seres humanos que se iniciaram como todo ser humano existente na face da terra, devem, pelo princípio da justiça, obter o mesmo tratamento dado a todos os outros seres. A diferença entre um embrião congelado, um implantado e um indivíduo adulto é somente o tempo decorrido de seu desenvolvimento. São diferentes, portanto, nesse aspecto; mas, isso não permite que os embriões sejam sacrificados em prol de se buscar tratamentos para as doenças de outros, já que, pelo princípio 321 da justiça, não se pode criar riscos para uns em benefício de outros. Da análise dos princípios decorre, então, a impossibilidade do uso de embriões humanos em pesquisa, posto que tal situação aviltaria aos três princípios analisados (entendendo-se a não-maleficência como parte da beneficência), tendo em vista que, em face do princípio da autonomia, mesmo que fosse permitido legalmente, a qualquer ser humano, a escolha de continuar ou não a viver (caso isso fosse possível, acredita-se que todos escolheriam por viver), aos embriões esta escolha seria coibida, já que eles não têm como se manifestar em relação à sua vontade, não tendo, portanto, autonomia; de acordo com o princípio da beneficência, somente se poderia intervir em embriões humanos quando fosse em benefício destes e nada poderia ser feito que lhes causasse qualquer prejuízo, sem que este princípio fosse transgredido; e, tendo em vista, ainda, o valor justiça, do que decorre a igualdade de tratamento para os iguais, ressalta-se que já que todos têm a mesma forma de origem, devem, então, ter o mesmo tratamento e, mesmo sendo diferentes, em alguns aspectos, isso não permite que alguns possam ser sacrificados para benefício de outros. Acerca dos princípios que norteiam a bioética, aduz Heloísa Helena Barbosa: A formulação de tais princípios se dá de modo amplo, para que possam reger desde a experimentação com seres humanos até a prática clínica e assistencial. Sua observância deve ser obrigatória, sempre e quando não entrem em conflito entre si, caso em que se hierarquizam conforme a situação concreta, o que 322 significa dizer que não há regras prévias que dêem prioridade a um princípio sobre outro, havendo a necessidade de se chegar a um consenso entre todos os envolvidos, o que constitui o objetivo fundamental dos comitês institucionais de ética. 409 E, ainda, o Prof. Joaquim Clotet: A bioética precisa, portanto, de um paradigma de referência antropológico-moral que, implicitamente, já foi colocado: o valor supremo da pessoa, da sua vida, liberdade e autonomia. Esse princípio, porém, às vezes parece conflitar com aquele outro, relativo à qualidade de vida digna que merecem ter o homem e a mulher. Nem sempre os dois princípios se amoldam perfeitamente sem conflitos, no mesmo caso. Sabemos por própria experiência que, em determinadas circunstâncias, não é fácil tomar uma decisão. Constitui uma tarefa da bioética fornecer os meios para fazer uma opção racional de caráter moral referente à vida, saúde ou morte, em situações especiais, reconhecendo que esta determinação terá de ser dialogada, compartilhada e decidida entre pessoas com valores morais diferentes.410 Dentro dessa linha de raciocínio, pode-se afirmar como correta e necessária a aplicação dos princípios elencados nas pesquisas com embriões humanos, de forma a beneficiá-los, posto que toda pesquisa que envolva seres humanos, tanto em função da própria ética como em decorrência de vários dispositivos que assim determinam, 409 410 BARBOZA, Heloisa Helena. op. cit., p. 212. CLOTET, Joaquim. op. cit., p. 16. 323 deve ser realizada para o benefício daqueles que nela se incluem, e nunca para o seu sacrifício. Deve-se atrelar a ciência e a pesquisa a uma nova forma de desenvolvimento, a qual se dê sempre em prol do ser humano (de todo ser humano, sem exceções), e que se faça, voltada mais para o ser e para uma nova ética da responsabilidade, como aduz Volnei Garrafa, pós-doutor em bioética pela Universidade de Roma: Poderão resultar desastrosas as conseqüências de modificações que venham a ser introduzidas com relação a novas formas biológicas legais de controle sobre o nascimento, sobre a vida e sobre a morte do ser humano. O discurso aqui defendido ao contrário de propor um freio para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, refere-se, fundamentalmente à transformação da ética da liberdade científica em uma nova ética da responsabilidade científica (...) e a análise mais responsável de fatores que possam vir a se constituir em elementos negativos e determinantes para o futuro da humanidade. 411 E, ainda, como ensina Ernesto Lima Gonçalves, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): (...) a ‘ciência caminha mais depressa que o homem’, o que coloca a necessidade de introduzir o conceito ético nessa avaliação. É tempo de se impor limites à concepção cada vez mais utilitarista e hedonista do 411 GARRAFA, Volnei. O Mercado de Estruturas Humanas. In: SIMPÓSIO PACIENTES TERMINAIS, 1993, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 1, n. 2, p. 115– 123, 1993, p. 121. 324 homem diante da ciência e da medicina, pelo reconhecimento de que a identidade humana é estruturada a partir do conjunto corpo e espírito e de que respeitar o corpo humano, em todas as suas dimensões e fases evolutivas – antes de nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer –, significa respeitar a dignidade humana. 412 O respeito a dignidade deve ser dado a todo ser humano, sem distinção e, como disse o autor, respeitando o corpo humano em todas as suas dimensões e fases evolutivas. O embrião humano esteja com poucas células ou após a formação da linha primitiva, deve ser respeitado como um ser humano em evolução, tendo em vista que da sua primeira célula até a sua morte, o que ocorreu foram etapas do desenvolvimento do seu corpo demonstradas através das distintas fases de seu crescimento e evolução, e, por isso mesmo, esse corpo deve ser protegido de qualquer uso que o coloque na posição de bem disponível. Nenhum ser humano pode ser coisificado ou valorado como um simples objeto, já que todos têm um valor que lhe é intrínseco apenas pelo fato de ser um ser único, irrepetível e indivisível. Todos os seres humanos têm dignidade e devem ser respeitados como tal; os embriões, ou os pré-embriões, não são menos humanos porque se encontram na primeira fase da cadeia evolutiva e tratá-los como seres que foram criados, congelados e conservados para ver, sendo conveniente, seu aproveitamento para aquilo que bem entenderem os cientistas é, nada mais, do que dar a esses 412 GONÇALVES, Ernesto Lima. Situações Novas e Novos Desafios para a Bioética. In: SIMPÓSIO ABORTO, 1994, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 2, n. 1, p. 13– 18, 1994, p. 14. 325 seres humanos, um tratamento totalmente desumano e coisificado. Demonstra-se, portanto, nesse comportamento, uma valorização do ter em comparação ao ser, uma supremacia das coisas em relação as pessoas, o que vai em total desacordo com o que determina a Constituição Federal ao elencar o princípio da dignidade da pessoa humana como norteador do ordenamento. Não se pode permitir que os embriões humanos, como seres portadores de vida humana que são, sejam assim tratados, pois tendo também dignidade, devem ser respeitados e protegidos, o que demonstram os princípios bioéticos dar fundamento a esse entendimento. 326 6 – DO CONFLITO GERADO 6.1 – Do direito à vida do embrião como ser individualizado O direito à vida, dentre todos os direitos e, principalmente, em relação àqueles de ordem física, ocupa posição de primazia perante os outros direitos, dado que dele decorrem todos os demais. Como bem ensina Carlos Alberto Bittar acerca deste direito: Dentre os direitos de ordem física, ocupa posição de primazia o direito à vida, como bem maior na esfera natural e também na jurídica, exatamente porque, em seu torno e como conseqüência de sua existência, todos os demais gravitam, respeitados, no entanto, aqueles que dele extrapolam (embora constituídos ou adquiridos durante o seu curso, como direito à honra, à imagem e o direito moral de autor, a desafiar o vetusto axioma ‘mors omnia solvit’. Manifestando-se desde a concepção, sob condição do nascimento do ser com vida, esse direito permanece integrado à pessoa até a morte. (...) Esse direito estende-se a qualquer ente trazido a lume pela espécie humana, independentemente do modo de nascimento, da condição do ser, de seu estado físico 327 ou de seu estado psíquico. Basta que se trate de forma humana, concebida ou nascida natural ou artificialmente (in vitro, ou por inseminação), não importando, portanto: fecundação artificial, por qualquer processo; eventuais anomalias físicas ou psíquicas, de qualquer grau; estados anormais: coma, letargia, ou de vida vegetativa; manutenção do estado vital com o auxílio de processos mecânicos, ou outros (daí por que questões como a da morte aparente e a da ressurreição (sic) posterior devem ser resolvidas, à luz do direito, sob a égide da extinção, ou não, da chama vital, remanescendo a personalidade enquanto presente e, portanto, intacto o direito correspondente). Trata-se de direito que se reveste, em sua plenitude, de todas as características gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um direito sobre a vida.413 Tendo em vista essa conotação de valor supremo que tem a vida na sua qualidade de bem indisponível que é, denota-se sua importância do fato de que esta é necessária a todos os seres, não somente humanos como, também, animais e vegetais, pressuposto que somente a partir dela pode-se haver algo além. A vida é, assim, o mais alto valor humano e, por isso mesmo, tem-se como o primeiro bem jurídico, sem exceção alguma, que deva ser protegido por lei, tendo em vista que sem ela, é inútil falar-se em qualquer 413 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 66/67. 328 outro valor ou bem jurídico. E, por isso mesmo, é que o bem jurídico vida é a conditio sine qua non de todos os demais bens jurídicos. E a vida deve ser assegurada a todos sem distinção, sendo o Estado responsável por criar regras impeditivas de agressão a ela por meio de terceiros bem como, ainda, de abster-se de tomar medidas que agridam esse direito. Em sendo assim, entende-se como dever do Estado a proteção da vida do ser humano em desenvolvimento, o qual se inicia com a concepção e finda com a morte, devendo, ainda, aquele, proteger este ser, mesmo depois do fim da vida, em face do tempo que esta decorreu. Esse é preceito o determinado pela Constituição e o elencado na maioria dos textos infraconstitucionais que tratam do bem jurídico, vida. E isso não deve ser diferente em razão da fase de desenvolvimento do ser humano, mas sim, como outrora dito, deve-se resguardar todo o tempo de vida de um ser humano, pelo simples fato da natureza deste. E, por isso mesmo, defende-se que a vida do embrião humano é tão preciosa quanto a de qualquer outro ser humano, esteja ele no início, meio ou fim da vida. Todos os seres humanos resultam da união do óvulo com o espermatozóide, independentemente da forma em que esta ocorra, não sendo possível se iniciar qualquer vida humana de outra forma. E cada vida iniciada é única, inigualável e inestimável em valor, posto que ali se encontra a promessa de um novo ser, o qual será diferente de todos os outros. Por isso mesmo, não se pode falar em descarte de embriões ou pesquisa com os mesmos que impliquem a sua morte ou depredação. Qualquer ato que atente contra um 329 embrião, está, na verdade, atentando contra uma vida humana em potencial que tem valor como qualquer outra e, por isso mesmo, não deve ser visto como um objeto ou meio a se conseguir um fim que não lhe seja satisfatório. Como bem ensina Maria Helena Machado, ao dizer: O direito à vida, o primeiro dentre as magnas garantias constitucionais, em sua mais alta expressão, não se concebe que, antes de nascido, o ser humano decaia à condição de objeto de manipulação e investigação científica. Não se compadece com sua origem, natureza e fim, resguardados constitucionalmente, como expressão primeira dos direitos do homem, a inviolabilidade do direito à vida: deve a vida humana ser defendida e protegida em qualquer dos seus estágios.414 E, também, a Profª Maria Celeste Cordeiro: A vida dependente no interior do útero materno, a vida do concepto pré-implantatório, a vida do feto, durante ou logo após o parto e a vida independente do ser humano, após seu nascimento, são etapas do conceito total de vida e os agravos endereçados ao bem jurídico protegido, em cada uma dessas fases, corporificam condutas criminosas. Em resumo, três correntes filosóficas predominam na literatura referente ao status do embrião. A primeira promove a personificação imediata desde o início da fecundação. A segunda fixa a personificação ao nascer, quando são possíveis a vida independente e 414 MACHADO, Maria Helena. op. cit., p. 87. 330 as relações humanas e a terceira adota um ponto intermediário: há nesta um reconhecimento gradual do status do embrião a determinados estágios do desenvolvimento biológico. Na busca de soluções legais eventuais, alguns princípios precisam ser estabelecidos: 1°) o embrião é merecedor de respeito por seu valor intrínseco, inclusive na ausência de personalidade; 2°) apesar de não estar definido ainda seu status legal, o reconhecimento de sua especialidade define as limitações de seu uso; 3°) cada homem é único e insubstituível.415 É inaceitável destruir ou lesar o bem jurídico vida de qualquer ser humano, ainda que desse se diga que não tem possibilidade de viver ou, melhor dizendo, que não é viável, tendo em vista que a suposta viabilidade está mais ligada à questão da permissão ao desenvolvimento, o que implica a implantação desses embriões excedentes, do que a possibilidade, em si, de crescimento, em virtude de que, apesar da afirmação de diversos praticantes das técnicas de fertilização in vitro no sentido de que esses embriões congelados não são viáveis para implantação, na prática, tem-se visto que boa parte daqueles implantados, tiveram desenvolvimento normal e geraram belas crianças. 415 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio de um pêndulo. Bioética e a lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998. p. 159. 331 Cabe ressaltar, também, que a vida, apesar de ser um bem protegido pelo Estado, o qual merece, realmente, toda a proteção, não é concedida por ele e nem por quem quer que seja, sendo um fato natural a todo ser humano, a partir do momento em que se dê a fusão do gameta feminino com o gameta masculino. E, em sendo assim, mais um motivo há para que o Estado, que não tem o poder de concedê-la, não possa retirá-la ou permitir isso, cabendo, sim, a ele o dever de proteção desse direito, que é um direito natural de todos os seres humanos, que o Estado tem a função de reconhecer e proteger. Acerca da matéria, Elimar Szaniawski afirma que “é inadmissível que uma lei outorgue o poder de livre disposição sobre o destino de vida alheia”416, complementando, posteriormente, com a assertiva de que “um eventual poder de livre disposição sobre o destino de embriões atenta contra o direito geral de personalidade do embrião, tutelado nos incisos II e III, do art. 1°, da Constituição, que se revela como atentado ao primado do direito à vida e de nascer do mesmo, sendo, conclusivamente, sua destruição ou descarte vedados pela Constituição”.417 A indignação acerca da livre disposição da vida de embriões humanos também pode ser vista nos ensinamentos de Genival Veloso de França, professor titular de Medicina Legal e Deontologia Médica da Universidade Federal da Paraíba, o qual entende que “seria um perigo, para não dizer um absurdo, excluir da proteção legal o direito à vida de seres humanos frágeis e indefesos, o que contraria todos os 416 417 SZANIAWSKI, Elimar. op. cit., p. 106. Ibid, p. 106. 332 princípios aplaudidos e consagrados nos direitos de cada homem e cada mulher”.418 E, finalizando, corrobora-se o raciocínio com as palavras do Prof. Dalmo de Abreu Dallari: A vida é o bem principal de qualquer pessoa, é o primeiro valor moral de todos os seres humanos. (...) Não são os homens que criam a vida. No máximo os homens são capazes de perceber que em determinadas condições, quando se juntam certos elementos, a vida começa a existir. Os cientistas podem até juntar num vidrinho, numa proveta, os elementos que geram a vida, mas não conseguem 418 FRANÇA, Genival Veloso. Aborto: Breves Reflexões sobre o Direito de Viver. In: SIMPÓSIO ABORTO, 1994, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 2, n. 1, p. 29 – 35, 1994, p. 33. Dando continuidade às suas palavras, o autor traz a lume o que aduz o magistrado carioca, Dr. Celso Panza: “O Direito foi feito para realizar-se. Na sua realização, como ciência, obedece a uma programática advinda do dogmatismo que o elabora, constrói e critica. Antes de tudo é de ordem cultural; em plano segundo tem origem nos ordenamentos fundamentais do Estado – constituições escritas ou não escritas, rígidas ou não rígidas. Aqui o seu eixo, a sua matriz operacional. Em nosso país, como em todas as nações, por principio jurídico infenso de censura, inatacável ao curso dos tempos, o que for contrário à Constituição é contrário ao Direito e não pode realizar-se. Seria superfetação dizer que a vida é um bem protegido pela Constituição. Ela compõe como bem mais excelente todos os artigos, parágrafos, incisos e alíneas de todas as Constituintes. Através dela brota o senso competencial para a União legislar em matéria penal (...). O que é contrário ao Direito não pode realizar-se. Excede do lícito. A liceidade tem linhas caracterizadas visivelmente nas normas e institutos. Vulneradas, há o desequilíbrio das relações sociais. É o princípio axiomático. Tal raciocínio foi expendido para concluir-se não estar ao talante do legislador a harmonia social. A lei, como ato humano, falível, pois, sofre o policiamento da crítica, valor pensante mais alto da dogmática, e a censura dos tribunais nos limites que extravasam da legalidade. Há, contudo, conquistas sociais marcadas em lei, desnudas de crítica ou responsabilidade. Fizeram-nas os homens após a vontade infinita da criação. Uma delas é a tutela da vida, garantia revelha como o surgimento do homem”. 333 criar esses elementos. Na verdade, nenhum homem conseguiu inventar ou criar a vida, dominar o começo da vida. (...) E como não é capaz de criar a vida de um ser humano, nenhum homem deve ter o direito de matar outro ser humano, de fazer acabar a vida de outro homem. A vida não é dada pelos homens, pela sociedade ou pelo governo, e quem não é capaz de dar a vida não deve ter o direito de tirá-la. (...) É preciso lembrar que a vida é um bem de todas as pessoas, de todas as idades e de todas as partes do mundo. Nenhuma vida humana é diferente de outra, nenhuma vale mais nem vale menos do que outra. E nenhum bem humano é superior à vida. Por esses motivos não é justo matar uma pessoa ou muitas pessoas para que alguns homens fiquem mais ricos ou mais poderosos, para satisfazer as ambições ou a intolerância de alguns, nem para que uma parte da humanidade viva com mais conforto ou imponha ao resto do mundo seu sistema de vida. (...) Quando uma pessoa mata outra por ódio, por vingança ou para obter algum proveito, está cometendo um ato imoral, está ofendendo o bem maior, a vida, que a nenhum outro se iguala. (...) Além desses aspectos, é preciso ter em conta que a repetição de crimes contra a vida pode gerar a idéia de que a vida não é um bem muito importante, e com isso todas as vidas passam a ser menos respeitadas.419 419 DALLARI, Dalmo de Abreu. Viver em Sociedade. Disponível em:: http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/dallari.htm > Acesso em: 13/10/2004, às 16:00 hs. 334 Feitas as considerações salutares à matéria, conclui-se dizendo que as pesquisas com embriões humanos que implicam a sua destruição não deveriam ter sido permitidas pela Lei de Biossegurança (Lei n° 11.105 de 24/03/05) em razão, primeiramente, do disposto nos artigos da Constituição Federal, diga-se art. 5°, caput e 1°, III, os quais tratam da inviolabilidade do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, valores que dão subsídio de proteção a todo ser humano em território nacional (para não dizer da proteção que se tem, ainda, em razão de tratados dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica). Esta, então, seria a razão jurídica de se proteger os embriões humanos. Mas, essa não é a única razão, tendo em vista que a proteção deve ser dada, também, por razões éticas, morais e de necessidade prática em relação à sobrevivência da espécie, já que se trata de seres humanos que, pela sua própria natureza, devem ser protegidos, porque, não sendo assim, como já fora exposto em outro tópico, riscos há de que, em se permitindo o cerceamento do desenvolvimento de vidas humanas por outras, se inicie a dar tão pouco valor ao ser humano que matar qualquer um deles, diga-se em qualquer estágio de desenvolvimento, seja tão normal que ninguém mais se indigne com isso, situação esta que já não está distante de acontecer. Como diz o Prof. Dallari, como a nenhum homem se deu o poder de inventar ou criar a vida de um ser humano, que também não lhe seja dado o poder de retirá-la. 335 6.2 – Do direito à vida dos pacientes em melhores condições O direito à vida, em sua acepção mais comum, implica garantir a todos a defesa contra qualquer ato de outrem, que atente contra sua vida. Significa, ainda, o direito a que sejam utilizados os meios necessários para a garantia desse direito, no sentido de que o Estado tem o dever de dispor de tratamentos de que esteja necessitado o paciente. De acordo com o art. 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado, tendo isto tornado a medicina “uma instituição de interesse coletivo, pois o Estado poderá exigir mais dos profissionais da saúde para o atendimento de doentes e o estabelecimento da ordem pública e da paz social”.420 Este direito encontra-se no rol daqueles direitos chamados de segunda geração (no capítulo da Ordem Social), e é considerado um direito fundamental, junto com outros direitos como, por exemplo, o direito à educação, ao trabalho e à segurança e, pela sua importância, encontra-se entre os direitos cuja garantia foi imposta ao Estado para, por meio de ações integradas, implementar a seguridade social (art. 194), a qual é destinada a garantir a prestação de direitos inerentes à saúde, à previdência e à assistência social421. Especificamente em relação ao direito à saúde, de 420 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 150. NOBRE JÚNIOR, Edilsom Pereira. O Direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da 421 336 interesse desta pesquisa, denota-se que ele está expresso, principalmente, no art. 196 da Carta Magna, que diz: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Da forma como foi expresso, implica ao Estado, para a garantia de uma existência digna a todo cidadão, o cumprimento de prestações positivas, a qual deve se dar “mediante políticas sociais e econômicas que colimem a redução dos riscos de doença e de outros agravos, garantindo-se o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.422 Contudo, apesar dessa proteção expressa na Constituição, sua violação é latente e pode ser acompanhada nas diversas ocorrências que são mostradas, todos os dias, na imprensa nacional, como bem observa a Profª. Maria Helena Diniz: O Estado deve dar assistência integral no que atina à preservação da saúde para que não se coloque em risco a coletividade, mas, infelizmente, no Brasil, têm havido falhas gritantes nos serviços de saúde, como: hospitais péssimos e em más condições; filas imensas de pacientes à espera de um tratamento; pressão Instituição Toledo de Ensino – Faculdade de Direito de Bauru, Bauru, n. 33, p. 137 – 151, dez./mar. 2002, p. 148. 422 Ibid, p. 148. 337 para atender apadrinhado, amigo ou indicado; observância à estrita ordem de chegada, sem contemplação da gravidade de cada caso; despreparo dos serviços de urgência para os primeiros socorros, esquecimento de que o paciente é a maior prioridade de uma instituição de saúde; falta de rapidez nos procedimentos diagnósticos e terapêuticos; atendimento desatento e grosseiro; falta de verbas para aquisição de material cirúrgico e de medicamentos; deterioração da conduta ética dos profissionais da saúde; despreparo de certos médicos e psiquiatras para o exercício de determinadas tarefas; falta de humanização da assistência à saúde mental; obrigação médica de enfrentar situações que conflitam com sua formação e com o passado hipocrático, por serem de difícil solução, tais como eutanásia, antinatalidade, aborto, fecundação artificial, clonagem, uso de órgãos e tecidos em transplantes, possibilidade de não prolongar a vida de paciente terminal, esterilização humana, experiência científica em seres humanos etc.423 Ressalta-se que, dentro do rol dos direitos fundamentais, é a saúde analisada, também, sob o prisma de direito social elencado no art. 6º da CF, tendo, por essa razão, outras normas garantidoras de sua exigibilidade, as quais se expressam pelo fato de ser o Brasil um Estado Democrático de Direito, que tem como norma-fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana. Em sendo assim, pode-se dizer que o estado de saúde de qualquer pessoa deve ser expresso na qualidade de vida que essa tem como paciente. 423 Ibid, p. 150/151. 338 Como bem ensina a Profª. Flávia Piovesan: Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular. Adotando-se a concepção de Ronald Dworkin, acredita-se que o ordenamento jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio sistema constitucional. À luz dessa concepção, infere-se que o valor da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo 339 suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. 424 Em sendo analisado o direito à saúde à luz do princípio da dignidade da pessoa humana e, assim, como um garantidor de uma melhor qualidade de vida, entende-se que este deverá ser visto a partir de uma consagração da saúde e da política que a realiza, com base num serviço nacional de saúde, universal e gratuito no sentido de que ao Estado cabe não somente oferecer os serviços de saúde, mas, também, serviços de qualidade que sejam acessíveis a todos, de forma gratuita. Para este objetivo assim se realizar, portanto, coube ao legislador constitucional estabelecer algumas metas a serem seguidas no cumprimento desse dever, as quais vêm estabelecidas nos arts. 198 e 199 da CF de 1988, que elencam como diretrizes e preceitos425: a) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; b) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; c) participação da comunidade; d) financiamento do Sistema Único de Saúde nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, 424 PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 56. MORAIS, Alexandre de. op. cit., p. 633 e Constituição Federal de 1988 com a Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003. 425 340 anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados de acordo com lei complementar, com relação à União, reavaliada pelo menos a cada cinco anos, que estabelecerá os critérios de rateio dos recursos daquela vinculados à saúde que são destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e, dos Estados, destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal e, ainda, as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União. No caso dos Estados e do Distrito Federal, esses percentuais serão calculados de acordo com o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios. No caso dos Municípios e do Distrito Federal, os percentuais serão calculados de acordo o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. (Parágrafos incluídos pela Emenda Constitucional nº 29, de 13/09/00); e) liberdade na assistência à saúde para a iniciativa privada; f) possibilidade de as instituições privadas participarem de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos; g) vedação à destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos; 341 h) vedação à participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei; i) a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. Ademais, no art. 200, o legislador constitucional fez certas atribuições ao Sistema Único de Saúde, além de outras que já lhe competiam, das quais interessa à presente pesquisa a obrigação daquele de incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico. E nesse desenvolvimento científico e tecnológico426 voltado à área da saúde é que se incluem as pesquisas com O art. 5°, inciso IX da CF/88 dispõe que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, o que faz com que, no Brasil, seja considerado direito fundamental o direito à livre pesquisa científica, o que vem, posteriormente, explicitado nos arts. 218 e seguintes, do Capítulo IV, da Carta Magna, in verbis: Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. § 1º – A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. § 2º – A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. § 3º – O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. § 4º – A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho. 426 342 células-tronco, como meio possível de cura das mais diversas patologias voltadas à melhoria da qualidade de vida dos pacientes. Contudo, as pesquisas devem ser analisadas, sempre, do ponto de vista ético427, a fim de que essa liberdade de pesquisa venha, realmente, a contribuir para bem de todos os seres humanos e não somente para uma parcela da sociedade, posto que, como se viu, anteriormente, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, a promoção da saúde, e, também, da pesquisa voltada a ela, deve ser universal, aplicada a todos, igualitariamente. Tal imperativo pode ser percebido nas palavras de Alberto Silva Franco, que diz: O art. 5°, inciso IX da Constituição Federal, ao proclamar ser ‘livre’ ‘a expressão da § 5º – É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica. Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal. 427 Acerca da ética aplicada na proteção da saúde, Júlio César Meirelles Gomes, 1° Secretário do Conselho Federal de Medicina, explica que “o direito à vida, considerado pilar no montante crítico dos direitos humanos, por maioria, é por excelência garantido pela distribuição justa e magnânime dos recursos destinados à saúde, de tal forma que o mais abastado e o mais despossuído dos seres humanos tornem-se iguais diante da atenção do médico, embora desiguais entre si nos recursos materiais pretendidos para sustentação e hotelaria do ato. E só a ética garante igualdade, acima da própria Constituição, como modelo pedagógico adequado à formação do médico e demais profissionais de saúde, conforme o período de graduação”. (GOMES, Júlio César Meirelles. Atual Ensino da Ética para os Profissionais de Saúde e seus Reflexos no Cotidiano do Povo Brasileiro. In: SIMPÓSIO O ENSINO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, 1996, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 4, n. 1, p. 53– 64, 1996, p.61). 343 atividade’científica deu uma pista segura para o estabelecimento desse critério. A norma constitucional consagrou a liberdade de criação científica como um dos direitos fundamentais, tornando-a, assim, a regra que deve comandar toda atuação na área das ciências. Se tal interpretação guarda pertinência, não menos correta é a conclusão de que o texto constitucional reconheceu implicitamente o direito à liberdade de pesquisa, posto que a atividade científica é, na generalidade dos casos, antecedida por um tempo, mais ou menos largo, de trabalho investigatório. A liberdade de pesquisa é, na realidade, um pressuposto inafastável, um antecedente lógico da atividade científica. Não há como cogitar de atividade científica se a pesquisa sofre um controle rígido, submetendo-se a toda sorte de proibições ou de restrições intoleráveis. Isto não significa, contudo, que a liberdade de pesquisa seja de índole absoluta, isto é, que corra às soltas ao talante de cada pesquisador e que não contenha nenhum tipo de limitação. Há, sem dúvida, outros interesses, valores e bens jurídicos, reconhecidos também em nível constitucional, que poderiam ser objeto de ofensas de extrema gravidade, se a liberdade de investigação científica fosse considerada ilimitada. A vida, a integridade física e moral, a privacidade, a família, o casamento, etc., poderiam ser afetados, sem dúvida, pelo mau uso da liberdade de pesquisa. Destarte, fazse necessário encontrar um ponto de concordância prática entre direitos constitucionais de igual nível, evitando-se conflitos que possam surgir entre a 344 liberdade de pesquisa e outros diretos fundamentais da pessoa humana. O ponto de equilíbrio deve ser buscado num dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, isto é, na dignidade da pessoa humana. Nenhuma liberdade pode ser aceita, no campo da investigação científica, se significa o emprego de técnicas, o uso de métodos ou a adoção de fins que lesem ou ponham em perigo a dignidade que deve ser assegurada a toda pessoa humana no seu percurso vital. A liberdade de investigação encontra, indubitavelmente, as suas fronteiras onde a experiência científica colide com os interesses, valores ou bens jurídicos também tutelados constitucionalmente. Em suma, a liberdade de pesquisa é a régua, mas não é ela plena, total, irrestrita: deve sofrer as limitações imprescindíveis para a integridade e a preservação da pessoa humana na sua dignidade.428 Cabe ressaltar que o desenvolvimento da pesquisa tem tomado novos rumos, a cada dia, no Brasil, estando os estudos com células-tronco adultas bem avançados. Contudo, na prática, muitas vezes, ainda, o Estado não tem cumprido o seu papel de “promotor da saúde”, o que obriga os interessados a procurar seus direitos junto ao Judiciário para obtenção da efetivação do direito consagrado constitucionalmente, qual seja, o da saúde como direito de todos e dever do Estado. Acerca do exposto, invoca-se o 428 FRANCO, Alberto Silva. Genética Humana e Direito. In: SIMPÓSIO O ENSINO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, 1996, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 4, n. 1, p. 17 – 29, 1996, p. 22/23. 345 exemplo ocorrido na Justiça Federal do Estado de São Paulo: A Justiça Federal de São Paulo garantiu a um garoto de quatro anos de idade o direito de fazer um transplante de células-tronco de cordão umbilical custeado pelo estado. A liminar que determinou a cirurgia foi mantida pela desembargadora federal Marli Ferreira, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O teste de compatibilidade do cordão umbilical foi feito em 20 de abril, com resultado positivo. O garoto já está internado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná e seu transplante está marcado para 14 de junho. Ele é portador de uma doença hereditária grave, denominada Anemia de Fanconi. O mal afeta principalmente a medula óssea e reduz a produção de todos os tipos de células sanguíneas do organismo. A única chance de cura definitiva nesses casos é o transplante de células-tronco. Diante disto, os pais do garoto iniciaram uma busca em bancos de medula e cordão umbilical no Brasil e no exterior, ligados ao Ministério da Saúde. Num desses bandos de doadores, nos Estados Unidos, encontraram um cordão com células compatíveis com os dados de Rafael. Representados pelos advogados Magda Aparecida Silva e Jaques Bushatsky, do escritório Advocacia Bushatsky, os pais do menino entraram com processo contra a União pedindo a realização de exame que 346 confirmasse a compatibilidade do cordão umbilical, seu transporte para o Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná – considerado centro de excelência em tratamentos da doença – e a cirurgia de transplante. Os pais sustentaram que o garoto vinha se submetendo a transfusões de sangue semanalmente para sobreviver – fato que, além de aumentar o risco de infecções, diminui a possibilidade de cura definitiva. O processo constou de todos os relatórios médicos atestando a veracidade das alegações. Em primeira instância, a juíza Paula Mantovani Avelino, da 11ª Vara Federal de São Paulo, acolheu o pedido e concedeu a liminar aos pais do menino. A União recorreu. Ao examinar o recurso, a desembargadora Marli Ferreira acolheu em parte o pedido da União – para determinar que o estado, o município e o Instituto Nacional do Câncer sejam citados no pólo passivo da ação – e manteve a liminar que determinou o transplante. Marli Ferreira observou que “a concessão da antecipação de tutela pelo d. Juízo agravado foi muito mais lastreada em razões de ordem humanitária, do que jurídicas, com o que andou 347 muito bem S. Exa., pois o centro do direito ainda é o homem em sua dignidade”.429 Deve-se, portanto, zelar para que a pesquisa com células-tronco tenha um fim único de beneficiar a todos os seres humanos e a sua realização tenha uma finalidade prática e efetiva, para que, somente assim, se cumpra o papel de direito fundamental de proteção da saúde pela perspectiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dado que, somente assim, são alcançados os fins de um verdadeiro Estado Democrático de Direito arrimado nos direitos fundamentais, em que os valores éticos e políticos são garantidos no texto constitucional, de forma que sua aplicabilidade seja imediata, como é claramente descrito no texto da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, aduz Flávia Piovesan quando trata da efetividade dos direitos fundamentais: A Constituição vem a concretizar, deste modo, a concepção de que ‘os direitos fundamentais representam uma das decisões básicas do constituinte, através da qual os principais valores éticos e políticos de uma comunidade alcançam expressão jurídica. Os direitos fundamentais assinalam um horizonte de metas sócio-políticas a alcançar, quando estabelecem a posição jurídica dos cidadãos em suas relações com o Estado, ou entre si’, no dizer de Antonio Enrique Pérez Luño. Os direitos e garantias fundamentais são assim dotados de uma HAIDAR, Rodrigo. Direito à vida – Estado deve custear transplante com células-tronco. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br > Acesso em: 06/06/05, às 10:00 hs. 429 348 especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico. Atente-se ainda que, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5°, parágrafo 1°. Este princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a estes direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Este princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.430 Ademais, cabe acrescentar que o direito à saúde eleito constitucionalmente como direito fundamental, tem em si, como aspecto relevante, a função de resguardar a efetivação de outro direito que é o direito à vida, direito fundamental que também se encontra garantido a todos e, como outrora dito, em torno do qual gravitam todos os outros direitos, no sentido de que, somente se pode dizer que existem direitos porque, inicialmente, se tem vida. 430 PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 58/59. 349 Posto isto, entende-se que cabe ao Estado promover e financiar a pesquisa que possa vir a beneficiar a todos; contudo, esta não deve, de forma alguma vir em detrimento de alguns, ou, no caso específico dos embriões humanos, visto que a sua eliminação nada mais é do que a morte de um novo ser humano, que pode não conter, em si, ainda e aparentemente, todas as características de um ser humano completamente formado, mas já traz em seu bojo todo o necessário para assim se transformar, tendo em vista que é uma pessoa potencial, única e irrepetível. Ademais, a intervenção em embriões humanos, “independentemente do número de células existentes, quatro, oito ou mais, é reconhecidamente uma intervenção sobre uma pessoa por vir a ser e seus descendentes”431, tendo em vista que não permitir o desenvolvimento de um novo ser envolve não somente a vida dele, mas, num âmbito mais abrangente, de toda uma descendência que aquele embrião poderia, um dia, vir a ter. 6.3 – Das regras de colisão para solução dos conflitos de direitos fundamentais Quando duas normas colidem, pode-se falar, por meio de uma análise simplista, que se faz necessário somente analisar se há hierarquia entre elas, porque havendo esta, prevalece a mais importante em relação à outra. Contudo, 431 AZEVÊDO, Eliane S. Terapia Gênica. In: SIMPÓSIO ÉTICA E GENÉTICA, 1997, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 5, n. 2, p. 157 – 164, 1997, p. 162. 350 antes de se falar na colisão de normas, deve-se tratar, sucintamente, da distinção entre regras e princípios, uma vez que há diferentes tipos e qualificações de normas, cujo entendimento se faz necessário antes de se falar em solução do conflito. Acerca da diferença existente entre as espécies do gênero norma jurídica, Edilsom Farias explica: A análise da estrutura das normas jurídicas que compõem o ordenamento positivo revela que as normas jurídicas (gênero) são de suas espécies: princípios e regras jurídicas. No entanto, com relação a distinção entre princípios e regras, há pelo menos duas concepções: a que propugna que ela ocorre apenas a nível de grau; e a outra, que defende que a diferença é qualitativa entre princípios e regras. Esta pode ser denominada concepção forte; e a outra, concepção débil dos princípios.432 Para a primeira, não existiria “uma distinção clara entre princípios e regras”433, e a sua diferença seria tão somente uma questão de grau; ao passo que, para a segunda (com base na teoria de Robert Alexy), haveria entre princípios e regras “uma distinção lógica e qualitativa, enquanto normas jurídicas que apresentam entre si clara e radical distinção estrutural”.434 No entanto, cabe referir, inicialmente, do que se tratam os princípios e as regras. Princípios, em sentido jurídico, são proposições normativas básicas, que podem ser gerais ou restritivas, positivadas ou não, as quais revelam, 432 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 25. Ibid, p. 25. 434 Ibid, p. 26. 433 351 em si, os valores fundamentais do ordenamento jurídico, enquanto orientam e condicionam a aplicação do Direito. Ou, como elucida José Joaquim Gomes Canotilho, os princípios “são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas”435 e, também, Paulo Gustavo Gonet Branco, adotando a teoria de Robert Alexy, vê os princípios como “determinações para que um determinado bem jurídico seja satisfeito e protegido na maior medida que as circunstâncias permitirem”436, tratando, ainda, os princípios como “mandados de otimização437, já que impõem que sejam realizados na máxima extensão possível”.438 Acerca dos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina também que: Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores 435 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 1.123. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 181. 437 Este é o entendimento e o termo usado por Robert Alexy em sua obra Teoria de los derechos fundamentales quando trata dos princípios, já que estes seriam assim tratados porque têm como característica o fato de poderem ser cumpridos proporcionalmente às condições reais e jurídicas existentes, o que não ocorre com as regras, as quais expressam em seu bojo um mandamento, o qual deverá ser cumprido ou não, mas não de forma proporcional e sim integral. (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993. p. 86/87). 438 Ibid., p. 86/87. 436 352 fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.439 Em relação às regras, diz-se que “correspondem às normas que, diante da ocorrência do seu suposto de fato, exigem, proíbem ou permitem algo em termos categóricos”440, e que, em havendo um conflito entre elas, ou seja, entre “uma regra com outra que disponha em contrário, o problema se resolverá em termos de validade. As duas normas não podem conviver simultaneamente no ordenamento jurídico”.441 No tocante, ainda, à diferença entre regras e princípios, vê-se que, para Ronald Dworkin442, os princípios apresentam uma dimensão de peso ou de importância, a qual claramente se percebe, quando há uma colisão entre eles. Esta situação de colisão se resolveria “levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual(is) deles(s) no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que os outro(s)”.443 Ocorre que, em relação às regras, isso não ocorre assim, posto que não se vê a dimensão de peso, mas sim em relação à sua 439 MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 12a ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 748. 440 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit., p. 181. 441 Ibid., p. 181. 442 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Beira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 25. 443 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2ª. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000. p. 28. 353 validade, já que elas se resolvem prevalecendo aquela que é válida, ou seja, “não se aceitando, no ordenamento, a existência de duas regras contraditórias acerca de uma mesma situação de fato, de onde se tem que as regras não comportam exceções: eventuais exceções devem ser previstas no corpo da própria regra”.444 Já, segundo Robert Alexy, os princípios, bem como as regras, “são razões para juízos concretos de dever ser, ainda que sejam razões de um tipo muito diferente”445, considerando-se que a diferença entre elas é uma distinção entre duas espécies de normas, a qual se dá em razão de uma diferença qualitativa e não de grau. Bem ensina o autor citado: El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades juridicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. 444 BOULOS, Christianne. Colisão de Direitos Fundamentais. 2002. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Direito do Estado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p.128. 445 ALEXY, Robert. op. cit., p. 83 ensina: “Los princípios, al igual que las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente”. 354 En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces debe hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fática y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio.446 Entende, ainda, o autor que os princípios colidem na dimensão do peso, prevalecendo um sobre o outro quando dois princípios colidirem, o que não significa a invalidez do princípio menos importante, mas apenas a preferência daquele que se considera mais relevante frente ao caso concreto, se realizando, desta forma, uma ponderação dos valores ínsitos nos princípios, o que não acontece com as regras, eis que, quando estas colidem, uma delas é declarada inválida. Letizia Gianformaggio, citada por Edilsom Farias, assevera que a diferença específica entre um princípio e uma regra se percebe “no momento da interpretação-aplicação do Ibid, p. 86/87. Em tradução livre: “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que se caracterizam pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não apenas depende das possibilidades reais, como também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. Por outro lado, as regras são normas que apenas podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então se deve fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isso significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou bem é uma regra ou um princípio”. 446 355 direito”447, sendo que os princípios manifestam situações mais abertas do que as regras e, por isso, não se conformam em ter aplicação tão prática como aquelas (regras, haja vista que esta é definida para um fim certo) e, ainda, seriam os princípios entre si, apenas concorrentes e, por isso, na sua aplicação, deve-se buscar o mínimo de restrição, quando conflitarem com outro princípio, isto porque eles jamais se mostram incompatíveis entre si, no sentido de que “aplicar um princípio implica também aplicar outros princípios com ele concorrentes no sentido de se alcançar o mínimo de restrição dos princípios envolvidos”448. A regra, por outro lado, apresenta a “subsunção de uma situação de fato (fattispecie concreta) a uma previsão normativa (fattispecie abstratta)”449, o que implica ter-se descrita em seu corpo a previsão de uma situação hipotética que, em sendo realizada pelo agente, passa a ser de fato e, portanto, uma conduta antijurídica. Descreve, então, esse tipo de norma uma regra de comportamento que diz se tal situação é ou não legal frente ao Direito. Passada a fase inicial de entendimento acerca da diferença entre regras e princípios e, entrando no campo da colisão de direitos fundamentais, cabe tecer algumas considerações iniciais acerca da matéria. A doutrina cogita da existência de duas formas de colisão de direitos, que seria, uma, a colisão em sentido estrito, as quais se referem apenas a conflitos entre direitos fundamentais e, outra, da colisão em sentido amplo, a qual envolve os direitos fundamentais e outros princípios ou valores constitucionais que tenham o fim de proteger interesses da comunidade. Em 447 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 33. Ibid., p. 33. 449 Ibid., p. 33. 448 356 sendo assim, cabe estabelecer do que se trata quanto à colisão entre direitos fundamentais que é o que ocorre “quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular”450e, também, do que se trata quanto à colisão, em sentido amplo, que é a colisão entre um direito fundamental e outro princípio ou valor constitucional, significando o último, segundo Edilsom Farias, que os “interesses comunitários relevantes não são todos e quaisquer bens jurídicos, são exclusivamente aqueles bens coletivos protegidos pela constituição”451, sendo que, “somente a necessidade de salvaguardar estes últimos justifica a restrição de direitos fundamentais quando colidentes com valores comunitários”452, exemplificando, em seguida, com o bem comunitário saúde pública elencado no art, 6° da CF, quando colide com o direito de livre locomoção estabelecido no art, 5°, inc. XV da mesma. 453 Contudo, segundo Gilmar Ferreira Mendes, as colisões de direitos fundamentais em sentido estrito, ainda, podem-se dar tanto em relação a direitos fundamentais idênticos como em relação a direitos fundamentais diversos, explicando: Em relação à colisão de direitos fundamentais idênticos, podem ser identificados quatro tipos básicos: a) colisão de direito fundamental enquanto direito liberal de defesa: v.g., a decisão de dois grupos 450 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 657. FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 118. 452 Ibid., p. 118. 453 Ibid., p. 118. 451 357 adversos de realizar uma demonstração na mesma praça pública; b) colisão de direito de defesa de caráter liberal e o direito de proteção: como exemplo, mencione-se a decisão de atirar no seqüestrador para proteger a vida do refém ou da vítima. Ressalte-se que, nessa hipótese, a colisão entre a vida do seqüestrador e da vida revela apenas uma parte de um problema mais complexo (colisão complexa). A colisão poderia ser resolvida com a aceitação das condições impostas pelo seqüestrador. Não se pode, porém, desconsiderar um terceiro elemento da colisão, que é o dever de proteção em face da comunidade. Daí decorre o dever de atuar para evitar novos atos de violência. c) colisão do caráter negativo de um direito com o caráter positivo desse mesmo direito: é o que se verifica com a liberdade religiosa, que tanto pressupõe a prática de uma religião, como o direito de não desenvolver ou participar de qualquer prática religiosa. Aqui cabe perguntar, por exemplo, se o Estado pode impor que se coloquem crucifixos nas salas de aula. d) colisão entre o aspecto jurídico de um direito fundamental e o seu aspecto físico: tem-se aqui um debate que é comum ao direito de igualdade. Se o legislador prevê a concessão de auxílio aos hipossuficientes, indaga-se sobre a dimensão fática ou jurídica do princípio da igualdade. 358 Nas colisões entre direitos fundamentais diversos assume peculiar relevo a colisão entre a liberdade de opinião, de imprensa ou liberdade artística, de um lado, e do direito à honra, à privacidade e à intimidade, de outro.454 Apresentados os tipos de colisão, passa-se à forma de solução desses conflitos. Segundo Edilsom Farias, quando se tratar da solução de conflito de direitos fundamentais, em que se verifica a reserva de lei na Constituição para, pelo menos, um dos direitos que estão colidindo, “o legislador poderá resolver o conflito comprimindo o direito ou direitos restringíveis (sujeito à reserva de lei), respeitando, é claro, requisitos tais como o núcleo essencial dos direitos envolvidos”455, exemplificando esta situação com “a colisão entre o direito de greve, sujeito à reserva de lei, e as necessidades inadiáveis da comunidade”456, o que “é solucionado pelo legislador ao definir os serviços ou atividades essenciais”.457 Contudo, quando se tratar da colisão de direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei, esta solução ficaria a cargo dos juízes e tribunais, o que implica ser a questão analisada, no caso concreto, e apenas no âmbito de validade, já que se pressupõe que ambos os direitos em colisão sejam válidos. Sendo assim, a regra é a mesma apresentada para a colisão de princípios, ou seja, “a colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no 454 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit., p. 281/282. 455 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit., p. 118. 456 Ibid, p. 119. 457 Ibid, p. 119. 359 caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro”. 458 E, continua aquele autor, parafraseando José Carlos Vieira de Andrade, que, em sendo verificada “a existência de uma (sic) autêntica colisão de direitos fundamentais cabe ao intérprete-aplicador realizar a ponderação dos bens envolvidos, visando resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo”459, utilizando-se, para isso, de princípios como o da unidade da constituição (o qual implica realizar-se uma compreensão da Constituição como um todo, percebendo a norma dentro do conjunto onde está situada460); da concordância prática ou da harmonização (o qual vem da jurisprudência estadunidense e implica analisarem-se, no caso concreto, os direitos fundamentais e os valores constitucionais, de forma harmônica, o que se faz “por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens 461 constitucionalmente protegidos” ); e, ainda, da proporcionalidade (o qual Edilsom Farias chama de “princípio da concordância prática no caso concreto” 462; Canotilho trata como sendo “uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim” 463; e Robert Alexy, o qual o chama de “lei de ponderação”, entende que “quanto maior é o grau da insatisfação ou de afetação de um 458 Ibid, p. 120. Ibid, p. 122. 460 Ibid, p. 123. 461 Ibid, p. 123.. 462 Ibid, p. 123. 463 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 223. 459 360 princípio, tanto maior tem que ser a importância da satisfação do outro”).464 Acerca da matéria afirma, ainda, Gilmar Ferreira Mendes: É possível que uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passe pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre diretos individuais. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de uma rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-la por completo, desfigurando também a Constituição enquanto complexo normativo unitário e harmônico. Uma valoração hierárquica diferenciada de direitos individuais somente é admissível em casos especialíssimos. Assim, afirma-se, no direito alemão, que o postulado da dignidade humana (Grundsatz der Menschenwürde) integra os princípios fundamentais da ordem constitucional (tragende Konstitutionsprinzipien) que balizam todas as demais disposições constitucionais (LF, artigos 1°, I e 79, III). A garantia da eternidade contida no art. 79, III, ALEXY, Robert. op. cit., p. 161. “Cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del otro”. 464 361 confere-lhe posição especial em face de outros preceitos constitucionais. Da mesma forma, tem-se como inquestionável que o direito à vida tem precedência sobre os demais direitos individuais, uma vez que é pressuposto para o exercício de outros direitos. 465 Acertadas as regras que solucionam os conflitos entre direitos fundamentais, discorre-se acerca do problema que se entende como ponto culminante do estudo em desenvolvimento, ou seja, dar-se solução ao conflito existente entre a inviolabilidade do direito à vida assegurado no art. 5°, caput da CF/88, vendo questão sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, no tocante ao uso de embriões humanos em pesquisas científicas e, por outro lado, o direito à qualidade de vida dos portadores de doenças que vêem nas pesquisas com células-tronco embrionária, a esperança de uma cura. Como se resolveria a questão? Entende-se, acerca da matéria em questão, que o posicionamento mais acertado é no sentido de se tratar o embrião, ou pré-embrião 466 como é chamado por alguns, 465 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit., p. 283. 466 “A expressão pré-embrião não é mencionada na lei, que emprega o termo ‘embrião’, em decorrência da adoção, pelo ordenamento pátrio, da teoria concepticista, segundo a qual o ser humano, durante a gestação, atravessaria tãosomente duas etapas em seu desenvolvimento (embrionária, até o terceiro mês de gravidez, e fetal, do terceiro até o nascimento). Seria, porém, digno de proteção jurídica desde a fecundação. De outro lado, a teoria genético-desenvolvimentista defende a existência de três fases de evolução da vida humana dependente: pré-embrionária, embrionária e fetal, sendo que até o décimo-quarto dia de desenvolvimento não seria dispensada alguma tutela ao pré-embrião. Adota-se, aqui, a divisão prescrita pela última corrente, mas não suas conseqüências. 362 como um ser vivo desde o momento de sua concepção, não se podendo, portanto, admitir que, havendo o conflito de direitos fundamentais acima especificado, que o direito à vida seja restringido, ou, na verdade, totalmente violado, no sentido de que os embriões seriam sacrificados como meros objetos científicos467, a fim de se alçar melhor qualidade de vida de outros indivíduos. A dignidade da pessoa humana deve ser resguardada desde a concepção”. (PRADO, Luiz Régis. op. cit., p. 577) 467 Acerca do tratamento que possa ser dado ao embrião, Ferrando Mantovani, ao ser citado por Heloísa Helena Barbosa, esclarece que pode haver três soluções acerca da natureza do embrião nas diferentes ordens jurídicas: “a) a diferenciação total entre concebido e homem-pessoa, sendo o embrião simples coisa, razão pela qual não lhe é dispensada qualquer tutela jurídica, sendo total sua disponibilidade, o que possibilita sua produção em proveta para quaisquer finalidades de pesquisas ou experimentação genética ou não, bem como a utilização de fetos abortados na fabricação de cosméticos ou na indústria; b) a equiparação total entre o concebido e o homem-pessoa, reconhecendo-lhe a mesma natureza e dignidade da pessoa e, portanto, a mesma tutela jurídica, afirmando sua indisponibilidade, só admitidas intervenções terapêuticas e sacrifício apenas para salvar a vida da mãe; e c) a diferenciação parcial, segundo a qual o embrião é ‘ser humano’, mas ainda não ‘homem-pessoa’, merecendo tutela jurídica inferior a esse, havendo oscilação quanto à disponibilidade, ora relativa para permitir a pesquisa e experimentação até o décimo quarto dia da concepção, porque se desconhece a individualidade humana antes desse tempo, ora absoluta, proibindo a pesquisa e a experimentação, a partir do momento da fecundação, porque, ao contrário, se reconhece a individualidade humana ao concebido desde o início”. E continuando, esclarece, ainda, que “‘a primeira tese, por seu extremo utilitarismo, não é sustentada oficialmente por quase ninguém’, reconhecida que é alguma ‘humanidade’ ao concebido. Já a segunda, que sustenta o início da vida no momento da concepção, baseia-se no pressuposto de que, ‘sendo o concebido o ser mais jovem, débil e indefeso, o princípio personalista e o princípio da solidariedade impõem a mais rigorosa tutela’. A terceira tese tem longa tradição, sendo aceita na maioria dos países e confirmada pela legislação sobre o aborto que, ‘reconhecendo o concebido como ser humano, mas com menor valor que o homem nascido, admitem a possibilidade de seu sacrifício em benefício de outros direitos da mãe’”. Refere-se, também a duas teses contrapostas acerca do problema do início do ser humano: “a) a tese do momento da fecundação e b) a tese das fases sucessivas. De acordo com a primeira, de cunho personalista, ‘o ser humano tem início no momento da fecundação, tendo em vista a ‘racionalidade biológica’, já que a fusão representa o verdadeiro e único ‘salto de qualidade que não se repete’, gerando uma individualidade humana nova e autônoma. Segundo o 363 Entende-se que, quando ocorrer esse tipo de conflito, a inviolabilidade do direito à vida deverá prevalecer, já que este direito, como fora dito, anteriormente, por diversos juristas, é pressuposto a se obter qualquer outro direito. Na solução do conflito, em sendo adotada a teoria para a colisão de princípios de Dworkin e Alexy, que preconiza que havendo conflito, deverá ser preponderante aquele que tiver maior peso, entende-se que, no conflito especificado, o direito à vida do embrião tem maior peso do que o direito à qualidade de vida, já que o primeiro é que o podemos chamar de uma condição inicial de existência do qual decorre a aquisição de qualquer outro direito, e o autor, nessa tese ‘há mais garantia e mais fidelidade ao perfil de tutela global da vida humana...’. Nas teses utilitaristas, ‘o início do ser humano se pospõe, convencionalmente, a fases sucessivas do desenvolvimento embrionário’, correspondendo no plano filosófico aos denominados ‘indicadores de humanidade’. Nessa última tese haverá uma fase em que o concebido pode ser considerado ‘coisa’ e, por conseguinte, disponibilizado para experimentação. Inclina-se MANTOVANI pela primeira tese, asseverando que ‘o balanço crítico das teses que antecipam e as que pospõem o início do ser humano parece sugerir a crise, do ponto de vista biológico e filosófico, da concepção progressiva do ser humano por carência de bases ontológicas’. Exigível, em conseqüência, um tríplice ato de lealdade: a) lealdade científica, no sentido de reconhecer ‘a racionalidade biológica’ como fundamento do início da vida, por ser o critério da fecundação o único com base ontológica; b) lealdade jurídica, admitindo que o concebido é ser humano desde a origem, sendo seu uso um problema jurídico; e c) lealdade legislativa, no sentido de que o legislador pode fazer prevalecer, de acordo com a Constituição de seu país, a tutela sobre o concebido ou os interesses científicos e da indústria, ciente neste último caso de estar sacrificando não uma ‘coisa’, mas a vida de um ‘ser humano’”. (MANTOVANI, Ferrando. Uso de gametas, embriões e fetos na pesquisa genética sobre cosméticos e produtos industriais. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo. Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey e PUC Minas, 2002. / apud BARBOSA, Heloísa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. Disponível em: http://www.ghente.org/temas/reproducao/protecao.htm > Acesso em: 23/11/04, às 12:11 hs, p. 6.) 364 segundo corresponde a um direito que, como qualquer outro, decorre do primeiro e dele depende para existir (no sentido de que, primeiramente, deve-se ter vida para se falar em ter direito à qualidade da mesma). E, ainda, devido ao próprio avanço da ciência, sabe-se que essa melhoria na qualidade de vida pode ser satisfeita de outra maneira, ou seja, por meio da terapia com células-tronco adultas, a qual se mostra extremamente promissora e, até agora, eficaz, o que não se pode dizer acerca da outra. Em se mostrando concorrentes os princípios, mesmo assim, prevaleceria o direito à vida como direito inviolável, posto que, como foi dito, anteriormente, deste direito dependem todos os outros; e, ainda, deve-se levar em conta o fato de que, ao se realizar a ponderação dos bens envolvidos, com o fim de resolver a colisão por meio do sacrifício mínimo dos direitos em jogo, combinado com a idéia acerca da compreensão da Constituição como um todo, no qual se lastreia a necessidade de se partir da ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, para a análise de qualquer direito fundamental, torna-se inválido atribuir a restrição máxima ao direito à vida dos embriões, tendo-se em conta que a pesquisa com células-tronco embrionárias implica cerceamento total do direito à vida desses novos seres humanos, já que os condena à morte. Eleva-se como correta a tese de que a liberdade de pesquisa científica com o fito da melhoria da qualidade de vida para alguns, não se pode sobrepor à inviolabilidade do direito à vida dos embriões humanos congelados, quando esta análise for realizada com base no princípio da dignidade da pessoa humana, norteador de todo o texto constitucional e legislação infraconstitucional, uma vez que 365 este princípio, como origem de todos os direitos fundamentais, não pode ser objeto de ponderação com direitos fundamentais singulares. Contudo, deve-se ressaltar, ainda, que mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana poderia ser considerado secundário, quando se considerasse o valor vida humana, tendo-se em vista que este é inato a todo ser humano, já que é base de toda sua essência e, por isso mesmo, prepondera sobre todos os demais. 6.4 – Da supremacia do direito à vida sobre qualquer outro direito Tem-se que o direito à vida transcende a todos os ramos do Direito, tendo em vista que ocupa posição de primazia em relação aos demais, considerando-se, ainda, que como sugerido por vários autores, ao seu redor encontram-se todos os outros direitos como decorrentes dele e, por isso mesmo, ele está inserido no rol daqueles direitos que formam a base de sustentação do Estado Democrático de Direito468, ou seja, os direitos fundamentais. O texto 468 Guilherme Braga Pena de Morais, acerca do Estado Democrático de Direito, ensina que: “O Estado Democrático de Direito é provido de cinco requisitos, cuja graduação e função decorre (sic) do sistema jurídico e político adotado. A primeira condição é a existência de uma enumeração de direitos fundamentais, contendo, no mínimo, a definição rigorosa e o asseguramento efetivo do princípio da igualdade, do direito à vida e a integridade pessoal, da liberdade física, de consciência e de religião e a segurança individual. A segunda exigência é a verificação de grupos de órgãos independentes e harmônicos que exercem, preponderantemente, uma função do Estado, dentro do 366 constitucional pátrio erigiu o direito à vida em seu art. 5°, como direito inviolável e inerente a todos, sendo a dignidade humana, princípio norteador de todo texto constitucional que deve ser aplicada a todos, também decorrente do valor que aquele direito agrega, posto que tem como essência a vida humana, já que se necessita falar em vida, inicialmente, para, depois, se falar em dignidade, podendo-se afirmar que esta, “como fundamento da República, exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana”469. Acerca do exposto, justifica Pietro de Jesus Lóra Alarcon: (...) o constitucionalismo teve, e tem, ainda, como eixo determinante, a proteção da vida do ser humano, isso significa que seus momentos de qualificação evolutiva são o reflexo de uma nova forma de entendimento da proteção da vida humana. Assim, as diversas maneiras de abordar essa proteção ocasionam o salto a uma nova dimensão protetora, que é exatamente o ponto em que o constitucionalismo avança e em que, por fim, as Constituições se aperfeiçoam. Em suma: as dimensões, ou como prefere N. Bobbio, as gerações de direitos fundamentais, são apenas modalidades âmbito de suas atribuições, ou, de outra maneira, existência de Poderes constituídos do Estado que dinamizam, típica ou atipicamente, as funções deste. O terceiro quesito é a supremacia da Constituição ou superioridade do diploma constitucional em face das demais espécies normativas e a consagração, como conseqüência, do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos. A quarta necessidade é a afirmação do princípio da legalidade da Administração como orientador na atividade da Administração Pública direta, indireta ou fundacional e de qualquer dos Poderes constituídos das unidades da Federação. E, finalmente, o quinto requisito é a responsabilidade civil, subjetiva e objetiva, das pessoas jurídicas de Direito Público interno, pelos danos causados pelos seus órgãos e agentes”. (MORAES, Guilherme Braga Pena de. op. cit., p. 98/99). 469 BARBOSA, Heloísa Helena. op. cit., p. 5. 367 novas de amparo da vida humana, por isso são a essência do movimento constitucionalista de hoje e de sempre”.470 Vê-se, assim, que esse constitucionalismo em constante evolução somente se justifica quando dessa evolução dos direitos fundamentais resulta a universalidade desses direitos, já que não há mais como se conceber Estado Constitucional sem a prevalência dos direitos fundamentais e, em razão disso, foram-se, a cada dia, interiorizando, mais e mais, normas que resguardem a vida. O princípio da dignidade humana é, dessa forma, decorrente da necessidade primeira e principal de se outorgar proteção integral à vida humana e, se entendendo que a vida humana inicia-se desde o momento da concepção, não se pode falar na possibilidade de se admitir o uso das células-tronco de embriões humanos sem se adentrar o campo de proteção da Constituição Federal quanto à inviolabilidade do direito à vida. Acerca do disposto, enfatiza Gustavo Tepedino que qualquer lei que, mesmo quando age em concordância com o disposto na Constituição em relação a temas específicos, como, por exemplo, a lei de transplantes, se o faz em desacordo com a intenção do legislador constituinte em ver mantida a coerência em todo o ordenamento, quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana e à realização da personalidade, padece de vício de inconstitucionalidade471 e, portanto, nessa linha, o tratamento dado ao embrião humano 470 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. op. cit., p. 83. 471 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 48. 368 ou, mesmo ao nascituro, que se desarmonize dos princípios constitucionais pertinentes, deve ser vedada e condenada472. Ressalta, ainda, Heloísa Helena Barbosa, parafraseando Roberto Adorno, que as soluções para os problemas que as novas biotecnologias têm trazido, “dependem quase que inteiramente da resposta que se dê a pergunta sobre a pessoa”473, levando-se em conta que “os desenvolvimentos biomédicos não obrigam o direito a traduzir em termos jurídicos o laço que une a pessoa a seu corpo”474, sendo o direito apenas um “garantidor da unidade da pessoa, que de outro modo se veria afetada por uma interpretação dualista do tipo ‘sujeito-objeto’”475 , já que “não é em razão das qualidades do seu corpo que ela é a realidade mais sublime sobre a terra”476, mas sim, em razão do “seu ato (sic) de ser, dotado de uma intensidade única, que possui uma dignidade constitutiva”.477 E prossegue, dizendo: a noção de ‘dignidade’ pode também ser tomada em dois sentidos: a) a dignidade ontológica, que é uma qualidade inseparavelmente unida ao próprio ser do homem (‘al ser mismo del hombre’), sendo portanto a mesma para todos. Esta noção nos remete a idéia de incomunicabilidade, de unicidade, de impossibilidade de reduzir este homem a um simples número. É o valor que se descobre no homem pelo só fato de existir...; b) a dignidade ética, que faz referência não 472 BARBOSA, Heloísa Helena. op. cit., p. 4. Ibid., p. 4. 474 Ibid., p. 4. 475 Ibid., p. 4.. 476 Ibid., p. 4. 477 Ibid., p. 4. 473 369 ao ser da pessoa, mas ao seu atuar (‘a su obrar’)... Esta dignidade é fruto de uma vida conforme o bem, e não é possuída por todos da mesma maneira. Se trata de uma dignidade dinâmica, no sentido de que é construída por cada um através do exercício de sua liberdade. Esclarece que, quando se refere em sua obra à ‘dignidade da pessoa’, o faz no primeiro sentido, ou seja, como sinônimo de valor que se deve reconhecer no homem pelo só fato de ser homem. Entende, com relação às normas internacionais que afirmam o princípio da dignidade da pessoa humana, que isso significa que não mais se admite a existência de homens de segunda categoria, de sub-humanos, de ‘vidas sem valor vital’, sendo suficiente ser homem para ser reconhecido como pessoa. Todos os homens são igualmente dignos, em razão de sua natureza comum. Ser digno equivale, portanto a ser pessoa.478 Concorda-se com a tese exposta acerca do valor do homem, segundo a qual se diz que basta ser homem para ser reconhecido como pessoa e, por isso, ser digno. Contudo, entende-se, ademais, que esta deve ter uma abrangência ainda maior, quando se trata do valor intrínseco a todo ser humano, que é a sua vida, devendo-se, mesmo, afirmar que, em razão da grandeza desse valor, basta ser humano para ser digno, porquanto, como outrora dito, o princípio jurídico que enseja o valor dignidade exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana, sendo certo que, sem vida, não há pessoa para que se possa falar em dignidade. Aos embriões excedentários, então, deve-se consagrar, também, 478 Ibid., p. 4. 370 o direito à vida como inviolável, dado que, quando se trata da vida, em geral e, mais especificamente, da vida humana potencial ali existente, entende-se que, pelo valor que essa traz em si, deve ter tratamento igualitário, em respeito ao seu ser, por parte dos outros seres humanos, tendo em vista que a diferença existente entre um ser humano que se inicia, mesmo que extra-ulterinamente, e um já nascido, é apenas a oportunidade e o tempo de desenvolvimento, eis que ambos derivam da mesma formação, a qual é inerente a todos os seres humanos. O embrião humano não pode ser considerado um mero objeto de experimento ou, melhor dizendo, apenas como um instrumento para se conseguir um fim que a ele nada beneficia. Independentemente do debate acerca do início da existência humana, entende-se como razoável considerar que é inerente a todo indivíduo da espécie humana a dignidade, e, portanto, exige-se o respeito de todos. Acerca do disposto, Heloísa Helena Barbosa conclui, sugerindo que “o mais razoável, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, seja conferir ao embrião humano uma ‘tutela particular’, desvinculada dos conceitos existentes, mas que impeça, de modo eficaz, sua instrumentalização, dando-lhe, enfim, proteção jurídica condizente, se não com a condição de indivíduo pertencente à espécie humana, com o respeito devido a um ser que não pode ser coisificado”.479 Mas, defende-se, até mesmo, a idéia do embrião, na qualidade de ser humano que é, deva ser protegido em razão da sua condição natural, da sua essência, entendendo-se, portanto, a sua vida como inviolável, visto que este direito é, 479 Ibid, p. 7. 371 na verdade, inerente a todos e, verdadeiramente, o marco inicial dos direitos fundamentais. Acentua Jesús de Lóra Alarcon, acerca do direito à vida como direito fundamental: Com efeito, ao ingressar no texto positivo constitucional, aflora de imediato a determinação de consagrar a inviolabilidade da vida como um direito fundamental, no caput do art. 5.°. Resta dizer que esta decisão será entendida em toda sua plenitude e magnitude. Não obstante, as manifestações e problemas ocasionados pelas descobertas biomédicas, as manipulações genéticas, a clonagem, não degradam o sistema imposto pela Constituição, apenas alertam para a carência de elementos claros para resolver situações novas e de importância para toda a humanidade, o que justifica um renovado interesse acadêmico pelo assunto. Curiosamente, a vida humana como bem jurídico constitucional e direito fundamental assume uma importante função integradora dentro do sistema, pois impregna todo o corpo normativo de uma unidade de sentido, impedindo a progressão de enfoques que priorizam o Estado por cima do indivíduo. Na verdade, o direito à vida permeia todo o desenho constitucional, permanecendo sempre como uma sombra pronta para servir de vetor de interpretação das mais diversas situações jurídicas, como adiante comprovaremos. 372 Esta unidade de sentido se estabelece junto à proteção constitucional que poderíamos chamar simplesmente de tradicional da vida, que se localiza, expressamente, consagrada com todas as letras, em várias passagens da Constituição Federal e somente é possível de captar-se entendendo a múltipla instrumentalização do próprio conceito vida, em um especial exercício de hermenêutica.480 Continuando suas ponderações acerca desse direito, assevera, ainda, o autor que “a Constituição Federal, trata da inviolabilidade à vida como direito, mas também como garantia fundamental, uma garantia de usufruto de outros direitos” 481, o que implica em se garantir que esse e outros direitos possam ser usufruídos por todos, já que não se pode “admitir que está vivo apenas por mera concessão da Constituição, antes ao contrário, a Constituição garante o direito à vida porque já se tem de antemão o direito”.482 E, em face da natureza e importância desse direito, é que o assegura constitucionalmente, havendo toda uma evolução histórico-constitucional nesse sentido, a qual “considera a vida como bem anterior à construção positiva do direito”483, sendo isto, entendido por ele, como “a primeira caraterística de fundamentalidade do direito à vida, a saber, sua historicidade”484 e, em face disto, afirma que “a constitucionalização do direito à vida impõe, assim, globalmente, uma limitação a todos os que, em território brasileiro, pretendam atentar ou atentem contra a vida humana, uma proteção reforçada e imprescindível em 480 ALARCON, Pietro de Jesús Lóra. op. cit., p. 181. Ibid, p. 182. 482 Ibid, p. 182. 483 Ibid, p. 182. 484 Ibid, p. 182. 481 373 termos de criação de um Estado Constitucional”.485 Alega, portanto, em suas considerações que, por se tratar o direito à vida de um direito inviolável, pode ser considerado “intocável, intangível”, que se encontra ao “abrigo de qualquer violência” e, por isso mesmo, não pode ser abolido ou negligenciado, visto que é protegido pela norma contida no art. 60, § 4°, inciso IV, da Carta Magna que torna inconstitucional “qualquer projeto de emenda tendente a abolir a inviolabilidade do direito à vida”.486 Sendo assim, esse direito, é considerado como “pedra angular, axiológica e lógica”487 de compreensão do sistema jurídico como um todo, visto que o direito fundamental à vida se revela como “valor supremo para o ser humano”488, e, por esta razão, atribui o autor, como segunda característica de fundamentalidade desse direito, a “originalidade”; o que denota, ainda, uma terceira, ou seja, o fato deste direito ser considerado “universal”, tendo em vista que é “assim reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos quando em seu art. III expressa que ‘toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal’”.489 Cabe, ainda, ressaltar os ensinamentos da Profª. Maria Helena Diniz, que, no mesmo sentido, entende o direito à Ibid, p. 182. Completando, ainda, ao dizer que “é uma positivação histórica que representa uma opção do constituinte em torno de um valor que lhe é anterior, que vincula a todos com relação a um indivíduo em particular, e que cerca o direito de um regime jurídico qualificado como supremo, na relação lógica de supraordenação”. 486 Ibid, p. 183, continuando a afirmar que “também um projeto de lei, uma lei ou ato normativo, pode ser declarado inconstitucional quando se manifeste contrário ao postulado constitucional da inviolabilidade do bem jurídico”. 487 Ibid, p. 183. 488 Ibid, p. 183. 489 Ibid, p. 183. 485 374 vida, inserido no art. 5° da Constituição Federal, como sendo um direito protegido em cláusula pétrea, e, por isso mesmo, considerado intangível, já que, “contra ela nem mesmo há o poder de emendar”490, tendo em vista que este direito contêm “uma força paralisante total de toda legislação que, explicita ou implicitamente, vier a contrariála, por força do art. 60, § 4°, da Constituição Federal”.491 Contudo, essa autora, aprofunda suas considerações acerca do direito à vida ao considerá-lo como direito com “inviolabilidade absoluta”, o qual, em sendo restringido de algum modo, pode implicar na destruição ou supressão da própria Constituição, tendo em vista que acarretaria na “ruptura do sistema jurídico”.492 Por isso mesmo, entende a autora que, se deve buscar nos dias atuais, “uma tomada de consciência pelo mais primário e indeclinável dos direitos, que é o do respeito pela vida humana”493, sendo este um dever da sociedade em geral e do Estado, no sentido de assegurar a inviolabilidade desse direito contra qualquer atentado que se possa, contra ele, realizar, visto que, “estaria eivado de inconstitucionalidade”494, pelo fato de se considerar a vida como um bem jurídico de extrema grandeza, ao qual se deve proteger “contra a insânia 490 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 23. Ibid, p. 24, continuando suas considerações ao dizer que “o art. 5° da norma constitucional tem eficácia positiva e negativa. Positiva, por ter incidência imediata e ser intangível, ou não emendável, visto que não pode ser modificado por processo normal de emenda. Possui eficácia negativa por vedar qualquer lei que lhe seja contrastante, daí sua força vinculante, paralisante total e imediata, permanecendo intangível, ou não emendável pelo poder constituinte derivado, exceto por meio de revolução o de ato de novo poder constituinte originário, criando e instaurando uma novel ordem jurídica”. 492 Ibid, p. 24. 493 Ibid, p. 25. 494 Ibid, p. 25. 491 375 coletiva”495, que preconize a idéia da criação de leis que relativize esse direito, como, por exemplo, a legalização do aborto ou a pena de morte. Finaliza, ao dizer que “a vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido”496, tendo isto como conseqüência o fato de que este direito deverá prevalecer sobre qualquer outro, ou seja, “havendo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante”.497 Em sendo assim, e em face das considerações anteriormente exaradas acerca do direito à vida, entendeu-se que este se enquadra entre aqueles direitos aos quais se deve proteger contra qualquer tentativa de restrição, sendo indiscutível a garantia que lhe é consagrada por se tratar de um direito fundamental498, tendo em vista que os direitos Ibid, p. 25. Segue suas considerações dizendo que “governantes, legisladores, cientistas e juristas de todo mundo deverão unir-se em busca de meios para salvaguardar a vida, que é um direito inerente à pessoa humana. ‘Nesta batalha a favor da vida, ninguém deve se omitir’. Jamais se poderia legitimar qualquer conduta que vulnerasse ou colocasse em risco a vida humana, que é um bem intangível e possui valor absoluto. Diante da inviolabilidade do direito à vida (CF, art. 5°) e a saúde (CF, arts. 194 e 196), não podem ser admitidos o aborto, a pena de morte (CF, art. 5°, XLVII, a), a discriminação de deficientes (CF, arts. 3°, IV, 203, IV, e 227, § 1°, II), a eugenia negativa, a tortura e o tratamento degradante (CF, art. 5°, III) e experimentos científicos ou terapias que rebaixem a dignidade humana”. 496 Ibid, p. 25. 497 Ibid, p. 25. 498 A vida como direito fundamental inviolável garantido pela Constituição é algo que está enraizado na cultura jurídica brasileira, apresentando-se, aqui, diversos autores que se posicionam acerca da matéria: Silmara J. A. Chinelato e Almeida assevera que “o direito primordial do ser humano é o direito à vida, por isso denominado direito condicionante, já que dele dependem os demais. (...) Ainda que o direito à vida não fosse tutelado pelo sistema jurídico, sua natureza de Direito Natural legitimaria a imposição ‘erga omnes’. A Constituição Federal assegura no ‘caput’do artigo 5°. que, define, não exaustivamente, os direitos e garantias fundamentais – a inviolabilidade do direito à vida, sem definir, no entanto, a partir de que momento se daria esta proteção. O 495 376 inciso XXXVIII do mesmo artigo, reconhece a instituição do júri com competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, entre os quais se inclui o aborto. Assegura, ainda, a licença à gestante, com duração de cento e vinte dias, no artigo 6°., inciso XVII, ‘a’; a proteção à maternidade, especialmente à gestante (artigo 201, II e artigo 203, I), com a finalidade de proteger a mãe e o nascituro. Cumpre salientar que até o texto final da Constituição vigente, a questão do início da vida foi objeto de inúmeras polêmicas – se a partir da concepção ou do nascimento (...). A definição expressa do ínicio da vida, ficou, destarte, sob o encargo da legislação ordinária, embora, pareça-nos que a Constituição Federal protege inequivocamente o nascituro. No âmbito do Direito Penal, tutelam o direito à vida, os artigos 121 a 127 que incriminam o homicídio, o aborto e o infanticídio. No Direito Internacional o direito à vida do nascituro é expressamente previsto pela Convenção Americana dos Direitos Humanos, Pacto de S. José da Costa Rica, além de ter sido objeto das Recomendações n°s 934/82, 1.046/86 e 1.100/89 do Conselho da Europa. Conforme não passou despercebido a Orlando Gomes (...) – ao civilista o exame da significação, natureza e conseqüências do aborto tem de ser feito à luz dos Direitos da Personalidade. Se se entende que o feto é “pars viscerum matris” – (...) – o problema consistirá em saber se a mãe tem o direito de dispor livremente de seu corpo. A solução oposta, é a dos que entendem que há no feto outra vida sobre a qual não se consente livre disposição. Esta é, no nosso modo de ver, a solução que encontra respaldo na Biologia e Genética e no Direito dos povos cultos. Como demonstrado pelos biólogos e geneticistas, a carga genética já está plenamente diferenciada, desde a fecundação, não se confundindo com a do pai nem com a da mãe, conforme leciona com propriedade, o biólogo Jose Botella Llusia (...), encontrando ressonância nas lições do médico francês Jérome Lejeune, especialista em Genética Fundamental e Professor da Universidade René Descartes de Paris, bem como partícipe da ‘Audição Pública sobre problemas jurídicos e éticos da genética humana com especial referência aos problemas relacionados com a engenharia genética’, destinada a fundamentar as Resoluções do Parlamento Europeu sobre o assunto. O desenvolvimento do nascituro, em qualquer dos estágios – zigoto, mórula, blástula, pré-embriao, embrião e feto – representa apenas um ‘continuum’ do mesmo ser que não se modificará depois do nascimento, mas apenas cumprirá as etapas posteriores de desenvolvimento, passando de criança a adolescente, e de adolescente a adulto. (...) Cumpre enfatizar, uma vez mais, que os Direitos da Personalidade não começam com o nascimento nem terminam com a morte. Conforme vimos, iniciam-se desde a concepção e ultrapassam a morte. Se assim não fosse, a memória e a intimidade dos mortos não seria protegida”. (ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. op. cit., p. 25/26 e 28). Maria Garcia, citando Sérgio Ferraz em Conferência proferida no Seminário Internacional Clonagem Humana: Questões Jurídicas, registrou que: “ O estudo de Sérgio Ferraz abrange a questão de modo amplo, em seus pontos básicos, fundamentais: de um lado, numa profunda tensão dialética, o universo do direito à livre iniciativa e aos progressos da ciência; do outro, o direito da pessoa humana a resistir, opor– se às manipulações do ser humano. ‘São esses os dois tópicos extremados que estão em jogo no grande problema da clonagem, com um outro 377 fundamentais, em face de suas características, não são negociáveis e dizem respeito a todos em igual medida, sendo, portanto, assegurada a inviolabilidade do direito à vida como direito fundamental sobre o qual não se pode discutir, adentrando, em primeiríssimo lugar, no rol dos dado, inserido de maneira poderosa não só na clonagem reprodutiva como também na terapêutica: o interesse econômico’. (...) Quanto à clonagem regenarativa, conforme expõe, ‘não consegui até hoje compreender – há um problema de vício de lógica formal, certamente – (...) chegaram a uma conclusão, a respeito da qual tenho as maiores dúvidas (...) a de que o embrião humano até 14°. dia, não formou a cintura neural ou o sistema nervoso; conseqüentemente – não se tem ainda o homem, o que se tem é um ‘pré– homem’ que não é válido ética ou juridicamente, para que manifeste preocupação sobre o seu futuro ou seu destino’. Lembra o Preâmbulo da Constituição, ‘uma carta de princípios, uma carta de valores. Diz para quê existimos. Aparecem, dentro de vários valores consagrados, o da liberdade, o da dignidade e do da segurança, que são absolutamente inarredáveis’. O art. 5°, caput, refere o direito à vida e não apenas o direito ao nascimento. Portanto, a vida é sempre uma preocupação, e todo material vivo merece a tutela jurídica. Não há, portanto, como suplantar essa garantia para chegarmos a essa modalidade de clonagem terapêutica. O art. 226 vai mais longe, quando cuida da infância, da prole e dispõe que o ser humano tem direito ao seu desenvolvimento harmônico. Se retalho um embrião, não promovo desenvolvimento algum. Ainda na Constituição, o art. 1°., II, ressalva como um dos princípios basilares da República Federativa Brasileira a dignidade da pessoa humana. Como salvaguardá-la quando se transforma o tecido humano em mero material para pesquisa médica ou para futuras manipulações? O art. 227 repete que a dignidade da vida humana é um valor indeclinável do direito brasileiro”. (GARCIA, Maria. Biodireito constitucional: uma introdução. Revista de Direito Constitucional e Internacional n. 42, ano 11, jan/mar de 2003, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 110/111). “José Afonso da Silva, tentando definir a intenção do Legislador Constituinte ao consagrar a dignidade da pessoa humana como valor fundamental na construção do ordenamento jurídico, atribuiu diversos significados à palavra dignidade empregando-a em diferentes contextos: dignidade social, dignidade espiritual, dignidade intelectual e dignidade moral. José Afonso sustentou que esses tipos de dignidade compõem o comportamento humano, mas que a dignidade prescrita na Constituição reporta-se a um atributo inerente ao ser humano, como um valor de todo ser racional e em virtude disso é que uma pessoa não pode ser privada de seu direito fundamental – a vida – mesmo tendo violado os direitos dos outros”. (JACOBI, Carla; BIACHI, Fernanda. Direitos humanos e o princípio constitucional da dignidade humana no Brasil. Revista de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, n. 7/8, p.47/64, jan/dez de 1997, Santa Cruz do Sul: Editora da Universidade, 1997, p. 58). 378 direitos que, por sua relevância e preeminência, não são passíveis de relativização. As leis não podem ser fruto da vontade arbitrária do legislador, mas sim devem exarar um sentimento nacional de concordância e o reconhecimento da real necessidade de regulação dos fatos sociais nelas tratados e, ainda assim, deverão respeitar os limites traçados no texto constitucional, principalmente no tocante aos direitos fundamentais, porque sobre estes se forma a base de criação e manutenção do Estado Democrático e de Direito. Toda e qualquer lei que infrinja estes direitos, mesmo que fossem tratadas dentro do texto constitucional (o que se dirá então quando tratadas fora dele?), não podem modificar aquilo que foi considerado na sua criação como sendo inalterável, colocado mesmo dentro das cláusulas pétreas499, como é o caso do direito fundamental à vida. Como dito, qualquer modificação nesse sentido, mesmo que no texto constitucional, poderia ser considerada como uma lei constitucional inconstitucional, porque é contrária àquela ordem de valores que foram declarados primordiais e fundamentais para toda a sociedade, que dão base à sua formação. Se no próprio texto constitucional não é possível a sua modificação, em face do valor que se encontra protegido (o qual entende-se ser o maior e mais importante de todos, pressuposto que todos os outros somente são existentes em razão da existência primária daquele), impossibilidade total, então, encontra-se em fazê-lo em lei infraconstitucional, como é o caso da lei de biossegurança. Tal situação, não se discute, quando se tem em mente uma possível relativização daquele direito, constituindo aquela CF/88, art. 60, § 4°, IV – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. 499 379 lei, segundo o inconstitucional. entendimento aqui exposto, lei Ademais, o desrespeito a tal direito implica ainda, além da criação de lei inconstitucional, a violação de diversos tratados aos quais o Brasil está diretamente ligado, citando como exemplo O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado no Brasil pelo Decreto n° 592/92 (portanto, lei no Brasil), o qual dispõe, no art. 6°: "Every human being has the inherent right to life. This right shall be protected by law. No one shall be arbitrarily deprived of his life "500; ou a Convenção Americana sobre Direitos do Homem (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada no Brasil pelo Decreto n° 678/92, a qual é, igualmente, lei no Brasil e dispõe, no art. 1.2: "Para los efectos de esta Convención, persona es todo ser humano"501 e, no art. 4.1: "Toda persona tiene derecho a que se respete su vida. Este derecho estará protegido por la ley y, en general, a partir del momento de la concepción. Nadie puede ser privado de la vida arbitrariamente".502 Acerca do exposto, trazem-se a lume as seguintes considerações: O poder do legislador, de alterar uma Constituição, não é, nem nunca foi absoluto. É limitado pelas chamadas ‘cláusulas pétreas’, e, sobretudo, pelos Em tradução livre: “Todo ser humano tem inerente direito à vida. Este direito deve ser legalmente protegido. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua vida”. 501 Em tradução livre: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”. 502 Em tradução livre: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito é protegido pela lei, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da sua vida arbitrariamente”. 500 380 fundamentos constitucionais básicos, ou seja, pelos princípios em que se apóia a Constituição real. (...) as questões dos limites da atuação estatal em todas as suas formas – seja mesmo na veste da atuação constituinte –, da relação entre legitimidade e a legalidade, têm de pôr-se em toda e qualquer ordem soberana que se sabe vinculada ao direito e à justiça, pois elas são, em último termo, as questões da essência, do sentido, da validade e da força obrigatória do direito. Pressuposto da obrigatoriedade da idéia de justiça para o direito é, todavia, a existência de um consenso social acerca pelo menos das idéias fundamentais de justiça. Apesar de todas as divergências no pormenor, creio que deve reconhecer-se um tal consenso: o respeito e a proteção da vida humana e da dignidade do homem, a proibição da degradação do homem num objeto, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a exigência da igualdade de tratamento e a proibição do arbítrio são postulados da justiça, de evidência imediata.503 Conclui-se ao dizer que qualquer ato atentatório à vida é um desrespeito à humanidade, em geral, sendo, portanto, as pesquisas com material humano, por melhores que sejam as intenções dos pesquisadores, uma banalização do bem primordial que é a vida, eis que, depende-se dela para a obtenção de todos os outros direitos. Um ser humano, ou qualquer outro ser, sem ter vida (ou tê-la tido), independentemente do tempo que ela durou, 503 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. p. 70. 381 não pode ser reconhecido como um ser com existência, dada a premissa de que esta depende daquela. É preponderante aos seres, em geral, e mais ainda aos seres humanos, ter vida, antes de qualquer outra coisa, eis que todas as outras coisas que possam ocorrer com uma pessoa dependem, inicialmente, de que esta tenha vida para usufruir. Entende-se que a vida inicia-se no momento da fusão do espermatozóide com o óvulo e, não posteriormente no décimo-quarto dia como sustentam alguns autores, pois desde o primeiro momento diversas mutações iniciam-se naquele novo ser, o qual já é diferente de todos os outros, mesmo daqueles mais próximos, ou seja, seu pai e sua mãe, sendo um ser único e especial. E, por ser um ente único e especial, tem tanto direito à sua vida quanto qualquer outro ser humano e, enquanto não tiver como se proteger de atos que atentem contra sua vida (e mesmo quando tiver essa condição), tem a sociedade, como um todo, o dever de protegê-lo, tendo isso sido feito no texto constitucional ao determinar a inviolabilidade do direito à vida. E é este princípio a base primeira de todo o ordenamento, eis que para se ter dignidade, liberdade, igualdade e tantos outros direitos considerados fundamentais, antes se necessita ter VIDA. 382 7 – CONCLUSÃO Em análise primária acerca do princípio fundamental do direito à vida, discorreu-se sobre o que vem a ser esse direito, sua valoração, positivação e a análise como núcleo substancial da Constituição, tendo em vista a sua proteção encartada no art. 5°, caput, do texto constitucional, portanto, no rol dos direitos fundamentais, e os desdobramentos que isso implica, no tocante à realização tanto de medidas positivas que ao Estado cabe implementar e que implicam não somente o direito de viver, mas, também, o direito de dispor de condições mínimas de subsistência; bem como, ainda, acerca das medidas negativas, as quais tratam, além do direito a não ser morto, da exigência de adoção, por parte do Estado, de ações impeditivas de agressão àquele direito por terceiros. Mostra-se, assim, rapidamente, a “face” do direito à vida como direito inviolável, protegido pelas cláusulas pétreas (art. 60, § 4°) que asseguram a integridade da Constituição. Demonstra-se, em seguida, que esse direito, pela importância que agrega em sua essência, não somente está inserido no rol dos direitos fundamentais, que norteia todo o ordenamento, vendo-se, sua presença, direta ou indiretamente, em diversos artigos da Constituição, da legislação civil e, ainda, na legislação penal, demonstrando, assim, o fato de que tem o legislador pátrio interesse proeminente na proteção da vida humana. Contudo, abre-se espaço, neste momento, para se trazer a lume outro direito também assegurado pela Carta Magna como direito fundamental, a saber, o direito à vida com qualidade, o qual, 383 a partir de uma perspectiva fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, põe o ser humano como fundamento de todo o ordenamento jurídico. Fala-se, ainda, acerca das teorias sobre o início da vida humana, dando-se enfoque às mais relevantes, ressaltando, contudo, a discussão que existe em torno delas no tocante ao momento inicial da vida e, deixando claro, a partir daquele momento, qual se entende ser a mais correta e, portanto, adotada como base para o desenvolvimento do estudo. Cabe ressaltar que a teoria escolhida foi a concepcionista, ou seja, aquela que entende que todo ser é vivo desde o momento de sua concepção, e, em face disto, merece tutela que proteja o seu direito de viver. Contudo, diz-se em parte da doutrina, que o legislador civilista do novo Código Civil de 2002, seguindo a linha anterior adotada pelo Código de 1916, entendeu por manter como linha mestra aquela ressaltada pela teoria natalista, cosoante a qual se reserva a aquisição da personalidade ao nascimento com vida, o que não se entende como correto. Por outro lado, vê-se como certa a menção de que, parafraseando o Prof. Luiz Edson Fachin na citação apresentada na nota 171, “o acerto pode estar em outro caminho”, ao se adotar entendimento no sentido de que a teoria adotada pelo Código Civil, no seu art. 2°, não assegura direitos ao nascituro apenas após o nascimento com vida, mas sim, desde o momento da concepção. Concordando, então, com a tese apresentada pela Profª Silmara Chinelato, opta-se pela idéia de se considerar o nascimento com vida como sendo um “enunciado negativo de uma condição resolutiva”, o que implica que ao nascituro são concedidos direitos, e não meramente expectativas, 384 desde o momento da sua concepção, sendo o nascimento com vida o momento em que estes se aperfeiçoam. A fim de melhor entender o vem a ser essa pessoa a quem se resguardam direitos desde a concepção, entendeuse por realizar um rápido estudo sobre ela, passando pela pessoa natural até o momento em que esta se encontra com as tecnologias no campo da reprodução humana assistida, fazendo-se uma análise desta, suas técnicas, formas e resultados, até se chegar ao momento em que se entende como início da busca por uma tutela da vida. Por outro lado, cabe ressaltar que, para se chegar a esse momento, necessário se fez que alguns conceitos fossem, anteriormente, estabelecidos acerca da pessoa e da personalidade, os quais, sob a ótica da outorga de direitos desde o momento da concepção, serviram de base à defesa do nascituro como pessoa. Nesse sentido, melhor explicitam o entendimento adotado, os ensinamentos do Prof. Wanderlei de Paula Barreto, o qual, em suas considerações apresentadas na citação de nota 181, esclarece quaisquer dúvidas acerca da personalidade que é outorgada ao nascituro desde o momento da concepção, sendo o nascimento com vida, apenas um aperfeiçoamento da aquisição daqueles direitos já resguardados. Ressaltado pelo professor que, o entendimento mais atual, é no sentido de se outorgar ao nascituro direitos desde o momento da concepção, tem-se que, tal situação, é muito discutida quando se adentra a questão dos embriões concebidos in vitro, em clínicas de reprodução assistida. Tendo em vista este fato, buscou-se discorrer acerca do assunto, a fim de se trazerem alguns esclarecimentos, para os quais tornou-se necessário um estudo interdisciplinar, em 385 que foram utilizados conceitos da embriologia. Estudou-se, neste momento da dissertação, o período que se estende desde a concepção até o décimo-quarto dia de desenvolvimento dos embriões humanos, referindo-se, ainda, sucintamente, às formas de fertilização in vitro, da sua transferência e criopreservação. Passou-se, na seqüência, à análise das células-tronco, seu conceito, sua origem e função, descrevendo-se, de forma informativa, o seu uso em terapia, destacando-se, contudo, a diferença entre o uso de células-tronco adultas, encontradas no corpo humano e no cordão umbilical, e aquelas encontradas no embrião humano, nos primeiros dias após a fecundação. Para melhores esclarecimentos sobre a matéria, buscou-se exemplificar com dados reais acerca das terapias mencionadas, ressaltando-se, ainda, os riscos que envolvem a terapia com células-tronco embrionárias. Em relação a estas, discorreu-se sobre o estágio atual das pesquisas pelo mundo, destacando-se como alguns países têm se posicionado em relação a elas, buscando-se dados atualizados, até meados de junho de 2005, que demonstrassem como a pesquisa com células-tronco embrionárias tem se desenvolvido. Dissertou-se, ainda, sobre como estas pesquisas são analisadas, tanto da ótica científica como da visão religiosa-cristã, passando-se, posteriormente, a descrever o papel das associações que lutam pela pesquisa com células-tronco embrionárias, destacando-se, contudo, somente aquela que mais tem se mostrado na mídia nacional. Finalizando o capítulo que trata das células-tronco, entendeu-se como importante tratar da Lei de Biossegurança (lei n° 11.105/05), a qual foi, recentemente, aprovada pelo Congresso Nacional e que traz em seu texto normativo dispositivo possibilitando o uso de 386 embriões humanos, excedentários de tratamentos de reprodução assistida que se encontram crio-preservados há pelo menos três anos, em pesquisas com células-tronco, com o fim de se buscar alternativas de cura para doenças genéticas e adquiridas que se entende não ser possível tratar com células-tronco adultas. Então, somente estabelecidos todos esses conceitos e premissas, é que se pôde falar, especificamente, do direito à vida dos embriões excedentários, destacando-se qual é o posicionamento da legislação nacional e os fundamentos bioéticos para a não-realização de pesquisas com embriões humanos. Sobre estes, destacou-se o papel da bioética, como ciência nascida na ética tradicional e, por isso mesmo, alicerçada em princípios estruturantes, capaz de estabelecer critérios fundamentais ao entendimento racional de uma necessidade de proibição do uso de embriões humanos em pesquisa. Os critérios bioéticos estabelecidos se deram, preponderantemente, a partir de um entendimento do ser humano como centro e valor de todo o sistema, sendo este, e somente a partir dele, que se buscou identificar o embasamento principiológico para a não-aceitação das pesquisas com embriões humanos. Entende-se, portanto, que mesmo havendo um conflito de interesses relacionado a essas pesquisas, todo o embasamento para uma possível solução deverá partir do valor supremo que se dá ao ser humano e à sua vida, constituindo-se o papel da bioética em estabelecer os parâmetros éticos a serem seguidos. Ao se iniciar, então, o estudo específico do conflito gerado entre a impossibilidade de uso de embriões humanos em pesquisas científicas e a possibilidade de haver melhoria na qualidade de vida de pacientes portadores de doenças 387 genéticas e adquiridas, buscou-se, primeiramente, tratar acerca do direito à vida do embrião humano como ser individualizado, tendo como premissa o início da vida na concepção. Em vista disto, haveria a impossibilidade do uso dos embriões excedentes nos processos de fertilização assistida em pesquisas com células-tronco embrionárias. Ressaltou-se, para tanto, desde a proteção legal estabelecida nos arts. 5°, caput e 1°, inc. III da Constituição Federal de 1988 que cuidam, respectivamente, da inviolabilidade do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana, quanto da vida como bem essencial a todo ser humano e inerente a ele. A vida do embrião, deste prisma, tem tanto valor quanto a de qualquer outra pessoa, posto que somente se diferencia de outras em razão da possibilidade e tempo de desenvolvimento, e que não se pode negar que sua origem é apenas uma, ou seja, a fusão do gameta masculino com o feminino, independentemente de ter ocorrido in vivo ou in vitro. Nesse sentido, os ensinamentos da Profª Maria Celeste Cordeiro Santos, citados na nota 401, demonstram de forma clara, o fato de que, a vida é única e as diferentes fases por que ela passa, nada mais são, do que etapas do seu desenvolvimento, os quais fazem parte de um “conceito total de vida” que deve ser respeitado por todos, sendo o embrião, ou o pré-embrião, como é chamado por alguns, por isso mesmo, “merecedor de respeito por seu valor intrínseco”, já que ele, como todo ser humano, “é único e insubstituível”. À guisa de se estabelecer o conflito, falou-se acerca do direito dos pacientes à vida em melhores condições, dissertando sobre noções de direito à saúde e qualidade de vida consagrados constitucionalmente; contudo, concluiu-se que, em uma visão a partir do princípio da dignidade da 388 pessoa humana como norteador de todo o ordenamento pátrio, seria impossibilitada a pesquisa com células-tronco embrionárias sem que se ofendesse ao princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida. Entendeu-se que há uma supremacia do direito à vida sobre qualquer direito, pela própria essência do valor que ele agrega, ou seja, pelo próprio valor da vida humana que ele tutela, e que, no uso das regras de colisão para solução de conflitos, somente se pode chegar a uma conclusão: a de que a pesquisa científica que envolva embriões humanos tem seu limite estabelecido no próprio ordenamento jurídico, mas não somente nele, porque o valor vida faz parte da essência de todo ser e a nenhum ser humano deve ser restrito. Em resumo, estas foram as considerações tratadas no presente estudo, no qual não se pôde chegar a outro entendimento que não fosse em prol da tutela da vida humana em todo seu processo de desenvolvimento, entendendo-se que este vai desde o momento da concepção e termina apenas com a morte. O ser humano, em geral, não pode ser somente visto como um dado fenomênico (cultural), genético ou biológico, mas sim deve ser analisado sob o prisma de ser integral, que tem em si tanto aqueles como também as características da alma, do espírito e do físico; e, como ser integral, passa por todo um processo de desenvolvimento necessário à concretização da sua essência como ser humano. Independentemente de ter consciência dessa essência, não tem menos valor como ser humano, por causa disso, uma vez que esta existe em razão da própria humanidade que há nele e, também em função da sua individualidade, a qual, mesmo sendo “quebrada”, 389 geneticamente, não o é em outros caracteres que agrega como ser integral. Contudo, não possibilitar a qualquer ser humano o desenvolvimento dessa integralidade implica ofensa direta àquele ser e a toda humanidade, posto que cada ser humano tem um papel a ser desenvolvido na sociedade, o que redunda no fato de que nem a ele mesmo é possibilitado abster-se disso. Sabe-se que muitos são os seres humanos que não conseguem atingir a plenitude da primeira fase do seu desenvolvimento por meio do nascimento com vida, como por exemplo, aqueles que ainda não foram implantados, e outros, que são abortados, espontaneamente, ou morrem no período gestacional e têm que ser retirados; contudo, isso não basta para permitir que outros seres humanos, não diferentes daqueles em seu período inicial, venham a lhes restringir o direito ao desenvolvimento. Da mesma forma que gera indignidade ver um homem agir contra outro buscando cercear-lhe a vida, como ocorre, todos os dias com a violência existente em todo o mundo, deve indignar, mais ainda, o espírito humano, quando esse mesmo ser humano tenta manipular situações que levam outros a acreditarem que seres humanos podem ser menosprezados e diminuídos em sua humanidade. Não é o embrião humano, portanto, menos humano do que qualquer outro ser humano, para que se possa dele dispor, em qualquer tempo. Todo ser humano deve ser respeitado pela sua essência, e não deve ser tratado como coisa, ou como um mero objeto com o qual se pode realizar experimentos. Estes, somente devem ser realizados em prol do bem estar daquele que está em discussão e nunca, em prol de outros. 390 Uma vida humana não vale menos do que outra de modo a ser por ela menosprezada. Fala-se, hoje, constantemente, em direito à vida das baleias, das tartarugas, dos mico-leões dourados e de tantos outros animais legalmente protegidos, o que se entende ser correto fazer, mas não se ouve falar em proteção da vida do ser humano, posto que há uma desvalorização mundial do valor vida humana, até mesmo em função do grande número de acontecimentos que têm deixado a todos cada vez mais imunes e indiferentes a qualquer situação. Pode-se dizer que a vida humana, a cada dia, tem sido, mais e mais, banalizada e menosprezado o valor intrínseco que ela agrega. Deve-se, contudo, lutar contrariamente a essa tendência, buscando novos caminhos de valorização do ser humano, não desacreditando, em razão dos acontecimentos, de que este guarda um valor em si, importante demais para ser desperdiçado, diminuído ou ameaçado, que é a vida. Esta é a base, o começo de todas as coisas e acredita-se que somente a Deus cabe determinar o momento em que ela deve ser finalizada. Por outro lado, mostrou-se que ao próprio homem cabe buscar melhoria na qualidade de vida, o que, em relação à saúde, pode, perfeitamente, ser realizado por meio das pesquisas com células-tronco adultas, sem que se interfira na vida de qualquer ser humano. Cabe acrescentar que, em momento algum, entendeu-se serem as pesquisas com células-tronco adultas também violações à vida, mas sim, pelo contrário, defende-se que, mais e mais, devam ser realizadas e utilizadas como alternativas de cura para as mais diversas patologias. Como já se disse, defendese uma tutela da vida integral, a qual imprescinde de uma melhoria na qualidade de vida de forma igualitária e 391 universal, desde que, para isso, nenhum ser humano sofra restrições, ou seja, sacrificado em seu mais precioso valor que é a vida. Como se disse, defende-se a tutela da vida para todos os seres humanos, sem exceção, como bem maior existente e, por isso mesmo, passível de proteção pelo Direito. 392 8 – BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ABDELMASSIH, Roger. Aspectos gerais da reprodução assistida. In: SIMPÓSIO ASPECTOS GERAIS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA, 2001, Bioética – Revista publicada pelo Conselho Federal de Medicina, Brasília, v. 9, n. 2, p. 15-24, 2001. AIETA, Vânia Siciliano. Princípios do direito à integridade do corpo humano. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. ALBERTS, Bruce et. al. Biologia molecular da célula. 3ª. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. ALEXY, Robert. 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Palavras-chave: vida humana; embriões excedentes; células-tronco; qualidade de vida; direito à vida. Grande área: Ciências Sociais Aplicadas / Área: Direito / Subárea: Direito Privado / Especialidade: Direito Civil. Grande área: Ciências Sociais Aplicadas / Área: Direito / Subárea: Direito Privado / Especialidade: Biodireito. 435 Grande área: Ciências Sociais Aplicadas / Área: Direito / Subárea: Direito Público. Setores de atividade: Educação superior. 2006 – 2007: Especialização em Bioética. na Universidade Estadual de Londrina, UEL, Brasil. Título: Uma visão bioética das pesquisas com célulastronco. Orientador: Dr. Lourenço Zancanaro. 2000 – 2000: Especialização em Direito Tributário. (Carga Horária: 440h); no Instituto de Ciências Sociais do Paraná IBEJ Cursos Jurídicos Ltda. 1999 – 1999: Especialização em Direito. (Carga Horária: 882h); na Escola da Magistratura do Paraná - Coordenadoria de Maringá. 1998 – 1998: Especialização em Direito. (Carga Horária: 640h); na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Paraná. 1994 – 1998: Graduação em Bacharelado em Direito; na Universidade Estadual de Maringá, UEM, Brasil. 436 437 438