Eros e Diáspora

Transcrição

Eros e Diáspora
Eros e Diáspora
Kobena Mercer
Tradução de Marina Santos
O erotismo é o espaço entre o início do Eu e o caos dos nossos sentimentos
mais fortes… O termo provém do vocábulo grego Eros, personificação do
amor em todos os seus aspectos, que nasce do caos e simboliza o poder
criativo e a harmonia.
Audre Lorde1
O prazer está de tal modo próximo da dissipação ruinosa, que nos referimos
ao momento do clímax como ’pequena morte’.
Georges Bataille2
Rotimi Fani-Kayode criou um universo fotográfico em que o corpo constitui o ponto
de partida para uma exploração da relação entre a fantasia erótica e os valores
espirituais ancestrais. No seu projecto artístico, encontrou a liberdade para usar a
complexidade da sua experiência como ponto de partida para uma viagem a
estados emocionais em que é difícil saber onde a sexualidade acaba e a
espiritualidade começa. Das suas viagens a tais espaços nocturnos, trouxe
vislumbres de um universo, iluminado pelo enigma antigo de algo tão violento, tão
maravilhoso e tão trágico, que chega a ser irrepresentável: a experiência humana
do êxtase.
Fani-Kayode delineou o seu programa estético em ‘Traces of Ecstasy’, o ensaio de
1988, que se seguiu à publicação de Black Male/White Male, a sua primeira
colecção de fotografias, surgida em 1987.3 Embora muita gente se tenha deixado
iludir pela multiplicidade de adjectivos com que Kayode procurou definir a sua
identidade – um artista africano moderno, um negro urbano homossexual, uma
personagem chave da fotografia britânica negra – a ironia é que a vida e a obra de
Fani-Kayode nunca se confinaram ao conforto e à segurança de uma identidade.
Pelo contrário, a sua visão caleidoscópica - que filtra os elementos africanos e
europeus através do nervo óptico da máquina fotográfica - e a sua demanda
apaixonada do prazer carnal visual revelam um encontro intenso com a realidade
emocional da carne, em que se celebra precisamente a perda de identidade do Ego
num estado de êxtase. No panteão de Fani-Kayode, constituído por ‘deuses com
varíola, sacerdotes transsexuais e negros objecto de desejo num estado de
frenesim sexual’4, o corpo é transfigurado a fim de criar uma nova beleza plural a
partir daquilo que Wilson Harris definiria como ‘a ruína do ser humano
despedaçado’.5
Nascido, nas vésperas da independência da Nigéria, no seio de uma família
proeminente, Fani-Kayode cresceu entre três continentes – a África, a Europa e a
América – e entre as três décadas que medeiam entre os anos sessenta e os anos
oitenta do século XX, anos em que se assistiu à transformação do mundo pela
emergência do pós-moderno e do pós-colonial. A sua biografia foi assim moldada
pelas experiências características da diáspora, como a migração e a deslocação, o
trauma e a separação e o regresso imaginado. Observando a forma como a estética
de Fani-Kayode se desenvolveu a partir da reacção aos acontecimentos que
marcaram a sua vida, apercebemo-nos da importância central que a sexualidade
teve para a descoberta das suas raízes artísticas no domínio do sagrado, já que a
afirmação exultante do amor pela vida, que perpassa as suas obras, testemunha o
poder redentor de Eros.
Dada a brevidade da sua vida – e a dimensão da sua produção prodigiosa, numa
carreira que durou apenas seis anos – podemos apreender o talento artístico de
Fani-Kayode reconhecendo a mescla cultural que o caracterizou. Recordando o seu
companheiro e amante, Alex Hirst revela até que ponto a experiência da diáspora
determinou a atitude geral de Fani-Kayode perante a vida e como ela condicionou a
sua auto-representação crítica como artista, ao afirmar:
É importante saber que continuou a acreditar em muitos dos valores que lhe
tinham sido incutidos no passado… O facto de ter deixado a África como
exilado aos onze anos fez com que, durante toda a sua vida, se sentisse
acometido pelo desejo de compreender determinados mistérios com que aí
se deparara: as tradições e crenças dos seus antepassados. Tentou entendêlos no contexto de um universo deslocado. Brighton e a escola situada no
campo inglês eram obviamente bastante diferentes de Lagos e Ibadan.6
Desta perspectiva, conseguimos compreender como a diáspora impôs uma ruptura
entre ‘mim e as minhas origens’, para usar as palavras de Fani-Kayode,7 abrindo
um fosso que lhe permitiu encontrar o catalisador para a sua criatividade, através
do seu compromisso para com a paixão homossexual. A sua ênfase paradoxal na
possibilidade de encontrar a liberdade através da perda das origens que, por sua
vez, só podem ser recuperadas através de uma viagem à memória ancestral do
corpo, situa-o, criticamente, num espaço que resulta numa espécie de conflito
essencial, indispensável à luta por novas visões’.8 Deste modo, a auto-
representação de Fani-Kayode acentua a sua condição de marginal, para quem este
estatuto liminar é valorizado pelas novas práticas de liberdade que aquele torna
possíveis.
A dinâmica da ira e do desejo foram decisivas para a visão de Fani-Kayode, tendo
constituído a fonte principal da sua estética ímpar. Para perceber as relações entre
os diferentes papeis que Fani-Kayode assumiu como animador transcultural, é
preciso entender como essa dinâmica moldou a sua arte de transfiguração
fotográfica, em que o corpo se transforma num local de tradução e metáfora –
transportando consigo significações através de códigos de diferença racial, cultural
e de género; a câmara transformado em luz e espelho - iluminando o desconhecido
e reflectindo a transitoriedade da carne voluptuosa; e como o próprio acto de
representação se desloca do momento de verdade documentada para a alquimia do
laboratório de fotografia.
Ao descrever as circunstâncias da vida com o seu companheiro, Hirst conduz-nos
ao corpo e alma da obra da vida de Fani-Kayode, quando partilha connosco a
memória do momento preciso em que este descobriu as fontes que configuraram o
seu projecto:
Morámos em diversos locais do Sul de Londres, marginalizados, com falta de
dinheiro, levando uma vida ‘boémia’, não porque fosse essa a nossa
intenção, mas porque as coisas evoluíram dessa forma. Timi arranjou um
emprego a tempo parcial como professor de fotografia. Nessa altura, tinha
começado a trabalhar exclusivamente em fotografia a preto e branco, o que
se deveu em parte, à necessidade de reduzir as despesas. O resultado foi,
contudo, mais abrangente, na medida em que coincidiu com o início da sua
exploração da relação entre fantasia erótica e valores espirituais ancestrais.9
Tal como o abiku, ou a criança-espírito, narradora do romance The Famished Road
(1991), de Ben Okri, Fani Kayode só esteve entre nós por um breve período de
tempo. Embora o seu trabalho tenha sido subestimado, porque estava
simplesmente à frente do seu tempo, e o seu desenvolvimento tenha sido
interrompido pela sua morte prematura, podemos ver como a generosidade da sua
visão contribuiu com inúmeras respostas de vasto alcance para uma revalorização
da diferença cultural, questão que se tornou um dos critérios de definição da arte
em finais do século XX.
O Artista como Paladino da Diferença Cultural
Na arte tradicional africana, a máscara não representa uma realidade
material; o artista procura antes aproximar-se de uma realidade espiritual
nela contida, através de imagens sugeridas por formas humanas e animais.
Penso que a fotografia pode aspirar a produzir idênticas interpretações
imaginativas da vida.
Rotimi Fani-Kayode10
Movendo-se no limiar de múltiplas diferenças, Fani-Kayode teve intervenções
decisivas na intersecção de, pelo menos, três formas de renascimento cultural.
Apesar de ter feito apenas uma exposição individual em vida – ‘Yoruba Light for
Modern Living’ (Riverside Studios, 1986) –, a sua participação em numerosas
mostras colectivas – entre as quais se incluem ‘Sacred and Profane Love’ (South
West Arts, 1985), ‘Same Difference’ (Camerawork, 1986), ‘Misfits’ (Oval House,
1987), ‘Transatlantic Dialogues’ e, com Alex Hirst, ‘Bodies of Experience’ (ambas na
Camerawork, 1989) – mostra a diversidade dos ambientes em que a sua obra se
moveu.
Como membro fundador e primeiro presidente da Autograph – Associação de
Fotógrafos Negros – Fani-Kayode assumiu um papel que, na efervescência do meio
artístico britânico negro dos anos oitenta do século XX, deu voz à reivindicação
colectiva de um programa autónomo, face à incompreensão institucional por parte
de forças, que foram, ao mesmo tempo, responsáveis pelas transformações
decisivas que ocorriam a nível da cultura visual crítica. O seu papel altamente
influente como mentor da ruptura com o realismo documentário e da criação de
novas trajectórias estéticas no interior do construcionismo imagético também
associado a contemporâneos seus como Joy Gregory, Dave Lewis e Roshini
Kempadoo está patente no terceiro número da Revue Noire, de Dezembro de 1991.
É também evidente em edições temáticas da revista Ten.8 – tais como Bodies of
Experience (1991) e Critical Decade (1992) – e na espectacular exposição
Rencontres Au Noir que constitui o ponto culminante da antologia audio-visual da
fotografia britânica negra, exibida pela primeira vez no Festival de Fotografia de
Arles, em 1993, e, posteriormente, também mostrada sob a forma de vídeo.
Ao mesmo tempo, os nus homoeróticos de Fani-Kayode encontravam uma recepção
favorável por parte da cultura gay metropolitana. Desde as suas primeiras
experiências com fotografia a cores, tais como Nude With a Raffia Head-dress (c.
1986) até à publicação de Black Male/White Male pela Gay Men’s Press,11 FaniKayode foi um elemento importante nas transformações que permitiram o
florescimento da cultura queer em finais dos anos oitenta do século XX. Foi
colaborador de Square Peg e contemporâneo de Grace Lau, Gordon Rainsford e
outros artistas gay e lésbicas que se moviam num espaço influenciado por
precursores como o cineasta Derek Jarman e o empresário Andrew Logan. O total
envolvimento de Fani-Kayode na divulgação da cultura gay pós-liberacionista
reflectiu-se na utilização de imagens suas por Jonathan Dollimore em Sexual
Dissidence (1991), uma obra artística inovadora no âmbito da teoria queer.12 Do
mesmo modo, Ecstatic Antibodies: Resisting the AIDS Mythology (1990) da autoria
de Tessa Boffin e Sunil Gupta,13 homenageia The Golden Phallus (1989), um dos
mais importantes trabalhos de Fani-Kayode em colaboração com Alex Hirst.
No seu conjunto, os diversos contributos de Fani-Kayode para a formação de uma
diáspora cultural negra gay transatlântica sintetizam o seu papel de tradutor
migrante. A cena gay negra de Washington DC teve uma influência fundamental na
sua formação, durante o tempo que passou nos E.U. Black Male/White Male foi
dedicado a ‘Toni e [a]o espírito do Clubhouse, DC’. Dos três tipos de representação
que perpassam o corpo da sua obra – retratos, estudos de nus e quadros
encenados – são os retratos íntimos do poeta Essex Hemphill, do activista Denis
Carney, do músico Blackberri e da diva da poesia-performance Assoto Saint que
nos falam do seu envolvimento na criação de uma cultura transnacional vibrante,
que também estava a ser configurada por estes artistas seus amigos. Juntamente
com os filmes de Isaac Julien, Marlon Riggs e Pratibha Parmar, ou as fotografias de
Sunil Gupta e Lyle Ashton Harris, a obra de Fani-Kayode foi como que um arauto do
surgimento de novas políticas da diferença, que não deixaram de causar
controvérsia pública.
Em 1987, foi escolhida uma fotografia do modelo Michael de Black Male/White Male
para a capa de Tongues United, uma antologia de poesia que integrava Isaak
Jackson e Dirg Aarb-Richards, bem como Essex Hemphill and Assoto Saint.14 O livro
serviu de inspiração ao filme inovador de Marlon Riggs, Tongues United, de 1989,
que usou o mesmo título como tropo da tradução intra-diaspórica, potenciadora da
dimensão intertextual que sugere que toda e qualquer cultura é criada com base
em actos de citação e reiteração. Ao mesmo tempo que contribuia para o
enriquecimento da cultura literária, cinematográfica e fotográfica do Atlântico Negro,
o filme de Riggs viu-se envolvido nas ‘guerras culturais’, quando um clip por ele
realizado foi aproveitado como exemplo de um imaginário publicamente inaceitável
pelo demagogo de direita, Pat Buchanan, nas eleições presidenciais de 1992 nos
E.U.A. Se, por um lado, este episódio sugere que a arte ultrapassa sempre as
intenções do artista, por outro, a dinâmica subjacente permite-nos compreender a
razão por que a obra de Fani-Kayode foi sempre subvalorizada: a sua recepção foi
prejudicada por uma comparação superficial com as fotografias de Robert
Mapplethorpe.
Hirst diz-nos que a abordagem de Fani-Kayode no seu trabalho ‘era política, mas
não continha qualquer manifesto, para além de um desejo anárquico de criar
qualquer coisa… que abalasse a visão estabelecida do mundo, incluindo a sua’,
elucidando assim a perspectiva crítica de Fani-Kyode em relação àquilo que mais
tarde viria a ser conhecido por políticas de identidade. No entanto, a afirmação de
que Fani-Kayode ‘não estava interessado em ser definido como um artista ‘gay’ ou
‘negro’’ e muito menoscomo um artista ‘gay negro’15 parece minimizar o carácter
sobredeterminado da recepção da obra por públicos diferentes e também ignorar o
jogo subtil de tendências particularizantes e universalizantes no interior da sua obra
que subvertem a lógica das oposições binárias que se excluem mutuamente.
Para compreendermos o modo como Fani-Kayode utilizou a hibridez da sua
experiência como ponto de partida para fazer algo novo, deveríamos enquadrar as
suas técnicas específicas de interculturação visual no contexto mais vasto da arte e
da história do modernismo e do colonialismo. Aí encontramos uma matriz triangular,
em vez de dicotómica, de cujos meandros labirínticos Fani-Kayode estava
inteiramente consciente. No vértice desta relação triangular está a questão
incómoda da máscara e das realidades históricas camufladas pelas narrativas
dominantes da arte moderna e do seu encontro com o ‘primitivo’. A descoberta por
Picasso das qualidades estéticas das máscaras africanas tradicionais, dos fetiches e
de outros artefactos tradicionais, nas arrecadações do museu do Trocadero, é um
lugar-comum, mas, de um ponto de vista africano, esses artefactos limitavam-se a
representar o tradicionalismo, pelo que foi antes a estética ocidental da
verosimilhança que inaugurou uma ruptura na consciência modernista africana.
Existe ainda um terceiro aspecto nesta história, nomeadamente o fascínio pela
imagem das máscaras africanas por parte dos artistas plásticos da Harlem
Renaissance. Palmer Hayden em Fétiches et Fleurs (1926), Malvin Johnson em SelfPortrait (1938) e Lois Mailou Jones em Fetishes (1938) inspiraram-se no ensaio ‘Art
of the Ancestors’16 de Alain Locke, publicado em 1925, no qual o autor sugeria que
uma alternativa de aprendizagem possível para o New Negro poderia ser
encontrado no retorno à disciplina formal das máscaras africanas que, por sua vez,
tinham entrado na consciência da diáspora através das colecções de museus
ocidentais e da fotografia etnográfica.
Quando anunciou que estava na altura de ‘nos reapropriarmos dessas imagens,
transformando-as ritualmente em imagens criadas por nós’17, Fani-Kayode falava
do conhecimento íntimo que tinha dessa história intercultural. Ao comentar o
predomínio residual do primitivismo modernista nas formas ideologicamente fixas
que determinaram a recepção institucional da sua obra, delineou a complexidade
das condições em relação às quais a sua arte se posicionava.
Consciente do papel determinante da sexualidade como elemento oculto da ligação
transcultural entre a África e a Europa, Fani-Kayode encontrou uma forma
subversiva de evitar o fetichismo racial que domina a percepção ocidental do corpo
negro. Dado que a sua relação com as fontes iorubá era mediada pelas rupturas da
diáspora, a sua concepção do corpo integrava os aspectos inseparáveis da hibridez
e da homossexualidade, o que o levou a assumir uma atitude crítica em relação ao
conforto de uma identidade igual a si mesma.
Embora o seu interesse central pelo corpo como elemento capaz de ultrapassar a
fronteira entre o mundo material e o mundo espiritual seja partilhado e explorado
por outros artistas contemporâneos da diáspora – como sucede com as esculturas
Fetish # 2 (1988) de Rene Stout, Lazarus (1988) de Alison Saar, ou as séries de
fotografias I-Traits (l989) do artista jamaicano-chinês Albert Chong –, pode dizerse que o reenquadramento do corpo proposto por Fani-Kayode se deve mais ao
potencial subversivo do elemento homoerótico. Neste campo, as observações
pertinentes de Stuart Hall ajudam a explicar a forma como a abordagem de FaniKayode penetrou nos espaços intersticiais:
O corpo negro masculino transforma-se no local de convergência de diversos
níveis de sentido. A postura hierática, cuidadosamente ritualizada, das
figuras, o seu enquadramento ao centro, o uso deliberado de vestes
tradicionais, de ornamentos do corpo e principalmente de máscaras
remetem para o interesse de Fani-Kayode pelo seu contexto iorubá… No
entanto, este plano de referência ‘africana’ é subvertido logo a seguir por
outros sentidos e linguagens. O simbolismo oscila entre um conjunto de
códigos públicos ou colectivos e um conjunto de códigos mais privados e
pessoais.18
Estes ‘outros sentidos e linguagens’ resultam do domínio de Fani-Kayode tanto das
correntes mais ortodoxas do modernismo ocidental como dos códigos subculturais
da iconografia gay moderna. Elementos desta última (tais como o enquadramento e
a pose), estão claramente presentes nos seus estudos mais formalistas de nus,
como Knave of Spades (1987) ou Joining of Equal Forces (1987), enquanto que a
mise-en-scène de uma obra como White Bouquet (1987) reformula, a Olympia de
Manet (1863), em diálogo crítico com ela, ao mesmo tempo que revela, através de
uma inversão pormenorizada das concepções raciais e de género presentes na
composição original, o leve toque de humor de Fani Kayode. Visto de costas, um
homem branco oferece flores a um homem negro reclinado: aqui não só se anula a
relação de poder entre a amante e a criada através da mesmidade homossexual,
mas também se subverte, ou melhor perverte, o gesto provocador de retraimento
de Olympia, transformando-o num acto de dádiva – é a oferta de flores que passa a
definir a relação entre as duas figuras, em vez do olhar directo para o espectador
que inicialmente provocou o escândalo na recepção do quadro.
Embora muitas vezes o homem que aparece nas fotografias seja o próprio Fani
Kayode, a obra transcende o carácter autobiográfico ou confessional, uma vez que
opta por um enquadramento que evidencia o ‘eu’ da experiência corporizada em
detrimento do ‘eu’ como personalidade finita. O que resulta deste jogo de
condensação e deslocação é o aspecto carnavalesco da máscara, salientado em
trabalhos como Ebo Orisa [1987] e Farewell to Meat (Canavale)[1987]. Ao
desconstruir a polarização do Ego entre o Eu e o Outro, a máscara não procura
esconder uma identidade, mas sim libertar elementos heterogéneos da psique e
permitir a comunicação entre eles, à medida que o Eu mergulha numa experiência
limite de prazer sexual e entra no reino da experiência indiferenciada – o caos
primordial que dá origem ao Eros. Como refere ainda Stuart Hall:
Todos os rostos estão ‘mascarados’. Na sua imagem erótica mais sugestiva,
Technique of Ecstasy, o rosto, concentrado no desejo, é, finalmente,
subtraído ao olhar do observador. Fani-Kayode ‘subjectiviza’ o corpo negro e
a sexualidade negra, reivindicando-a, sem fazer dela um objecto de
contemplação e, ao mesmo tempo, sem a ‘personalizar’. Uma vez que o
mascarar não consiste num truque de composição, mas sim num efeito
resultante de uma outra tradição iconográfica, o truncamento do corpo
condensa o efeito visual, deslocando-o para a relação entre as duas figuras
‘em repouso’, conferindo-lhe o peso e a gravidade específica do prazer
sexual concentrado, sem as transformar em fetiches.19
Em lugar das dicotomias bem definidas entre sujeito /objecto, presentes na força
escopofílica da obra de Robert Mapplethorpe, em que o corpo negro é fetichizado a
fim de evitar a ameaça da perda de controle do Ego, na fantasia de Fani-Kayode, o
olhar do observador é interpelado, acariciado e seduzido no ritual de mácaras,
através do qual se apela à protecção dos deuses. A representação de um tal acto
de propiciação é recorrente nos seus quadros, criando as linhas de visão que
convergem sobre o corpo a sensação de ‘oscilação’ entre dois mundos. Nesta
estrutura de sentimentos, é possível descortinar aquilo a que Nathaniel Mackey
viria a designar de ‘estética fugidia’, originada por uma inquietude que recusa a
ilusão da certeza, na sua busca de renovação ontológica.20 A conjura de FaniKayode da fantasia erótica e da memória ancestral transporta-nos assim para um
espaço que transcende a psicologia – uma vez que des-territorializa as fronteiras do
Ego – um espaço que está para além do bem e do mal, ou seja, um espaço que não
se atém aos limites do cristianismo.
Comunhão: o amor há-de separar-nos
O diagnóstico não estabelece o facto da nossa identidade através do jogo de
distinções. Estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença
de discursos, a nossa história a diferença de tempos, e nós a diferença das
máscaras. Essa diferença, longe de ser a origem esquecida e recuperada, é
esta dispersão que nós somos e fazemos.
Michel Foucault21
Pensadores como Georges Bataille encaram a sexualidade como mero meio de
acesso ao universo do sagrado – um termo derivado do verbo ‘sacrificar’. Enquanto
os códigos religiosos procuram regular todas as experiências humana que culminam
numa perda extática do Ego, em que a noção do Eu é abandonada e dilacerada
naquilo a que poderíamos chamar ‘o êxtase da comunicação’, o dispositivo
disciplinar da sexualidade no moderno Ocidente pode ser encarado como um
empreendimento secular, em que os elementos residuais dos antigos sacrifícios
rituais se transformam em símbolos do sado-masoquismo.
Leo Bersani argumenta, na senda da teoria da psicanálise freudiana,
nomeadamente no que toca ao ir-se ‘para além do princípio do prazer’ para
descobrir a primazia do masoquismo como jouissance auto-destrutiva, que ‘ o Ego
dilacerado pelo sexual fornece a base que permite associar sexualidade e poder’.22
A alternância das posições de superioridade e inferioridade ritualizada in extremis
no sado-masoquismo apenas torna visível a oscilação do Ego entre a auto-anulação
e a tumescência psíquica, que Bersani considera a matriz polar do erotismo. O que
nos faz regressar às obras de Fani-Kayode, para concluir que, por mais que nos
esforcemos, não conseguimos descobrir nelas a representação masoquista do corpo
crucificado que está na origem do Cristianismo.
Embora obras como Epa Burial, Punishment and Reward e Bondage (todas de 1987)
apresentem traços sadomasoquistas, a crença cristã no poder de redenção pela dor
está claramente ausente do conjunto da sua obra. O simbolismo associado à
imagem de figuras cruciformes constitui um aspecto fundamental da obra de
numerosos artistas da diáspora africana. Considerando a sua recorrência, desde
The Crucifixion (1927) de Aaron Douglas, passando por Injustice Case (1970) de
David Hammons, até aos corpos esqueléticos e descarnados que povoam os
quadros de Jean-Michel Basquiat, pode parecer que, num mundo que tragicamente
condenou os corpos masculinos negros a uma sobrecarga de significados simbólicos
maior do que qualquer mortal pode alguma vez suportar, a oferta sacrificial do
corpo cruciforme exprime a convicção de que a liberdade só pode ser encontrada
na morte.
Na sua última obra testamentária, postumamente intitulada Communion (1995),
Fani-Kayode trabalhou em conjunto com Hirst, falecido em 1994, para nos fazer
regressar a uma visão de renovação redentora, marcada poderosa e quase
insuportavelmente pelo sentimento de ter sido executada em presença da morte.
Contudo, ao homenagearem a mortalidade da carne, estas visões de um outro
mundo transmitem também uma aura de calma – ‘a tranquilidade da comunhão
com o mundo espiritual’23 – que emerge das energias do poder espiritual que os
iorubá atribuem ao ashe, um termo que o historiador Robert Farris Thompson
traduz por serenidade, quando escreve:
A ideia de serenidade na arte iorubá estende-se para além das
representações do acto de sacrifício e dos actos ou gestos de propiciação. O
conceito está de tal forma associado a noções de beleza, que um trabalho de
missangas de cornalina ou um solo de percussão excitante podem ser
epitetados de ‘serenos’.24
Um homem com uma máscara de pássaro olha para nós, o pénis suspenso num
pedaço de corda. The Golden Phallus, obra que faz parte da série Communion,
reúne todos os elementos iluminados pelo brilho ‘sereno’ dos valores iorubá que
perpassam os diferentes códigos da tradução secular de Fani-Kayode. A obra é
desde logo uma expressão irónica do menosprezo ocidental pela virilidade negra,
patente na obrigação simbólica de ser e não apenas de ter o falo. Como diz Essex
Hemphill no seu poema Black Machismo:
Quando a sua grande pila negra
não está erecta
ela arrasta-se atrás dele,
uma coisa pesada e obtusa, os testículos e as correntes
retinindo, fazendo tanto barulho
que não consigo ouvi-lo
mesmo que queira escutar a sua voz.25
A imagem também codifica um ícone de memória ancestral que fornece o antídoto
para a preservação da possibilidade de beleza, já que o pássaro ororo significa a
presença de Osanyn:
Se vivermos de forma generosa e discreta, revelando graça sob pressão, a
nossa aparência e os nossos actos assumem gradualmente um poder
aristocrárico potencial. À medida que nos tornamos nobres e nos damos
conta da centelha de bondade criativa que Deus nos concedeu – o cintilante
pássaro ororo do pensamento e da inspiração –, encontramos a confiança
para lidar com todo o tipo de situações. Isto é o ashe. Isto é carácter. Isto é
serenidade mística. É tudo ao mesmo tempo. O paraíso é reconquistado,
pois a arte iorubá devolve à humanidade a ideia de céu, sempre que os
ideais antigos se manifestam de forma genuína26.
Mesmo sem pretendermos idealizar a questão da relação complexa de Fani-Kayode
com as suas origens iorubá, podemos apreciar o modo como as suas ‘técnicas de
êxtase’ abrem uma porta ao mistério universal da ligação indissociável entre sexo e
morte. Numerosos homossexuais abordaram este lugar liminal nas suas obras e é
possível que um dos principais precursores da exploração de Fani-Kayode das
genealogias da fantasia erótica inconsciente, a partir dos meandros da memória
ancestral e das mitologias que lhe estão associadas, tenha sido Geoffrey Holder,
nascido em Trinidad, cujo Adam (1980) reelabora a narrativa bíblica do Génesis.
Outro possível precursor é o fotógrafo americano George Platt Lynnes, cujo
trabalho Birth of Dionysus (c. 1942) assenta numa reintrepretação do mito grego à
luz da sua configuração surrealista do nu masculino. Nos três casos, é a busca de
fontes de renovação que conduz ao erótico, em tempos, definido por Audre Lord
como ‘um recurso dentro de nós, que se situa num plano profundamente feminino e
espiritual, ancorado firmemente no poder dos nossos sentimentos não
exteriorizados, nem reconhecidos’.27 Ao invocar Eshu-Elegba, o deus iorubá da
inderterminação, Fani-Kayode partilha connosco a esperança de um renascimento,
corporizado na sua vida e obra:
É Esu que preside, não devemos esquecê-lo. É ele o senhor da artimanha e
das encruzilhadas, alterando por vezes a sinalização nos caminhos para nos
desorientar. Está presente em todas as mascaradas (hoje em dia, por vezes,
designadas por Carnaval, uma despedida da carne durante o período de
jejum), exibindo o seu falo, num momento, e, contorcendo-se , no seguinte
como se fosse dar à luz. Zomba de nós, tal como nós zombamos de nós
mesmos nas mascaradas. Mas, enquanto que a nossa chacota é alegre, a de
Fani-Kayode é potencialmente sinistra. No Haiti, ele é conhecido e temido
como o Baron Samedi… E agora receamos que, influenciadas pela maldade
de Esu, as nossas crianças envolvidas nesse ritual tenham um nascimento
difícil ou nasçam com deficiências. Talvez sejam abiku – nascidas para
morrer. Talvez voltem em breve para junto dos seus amigos no mundo dos
espíritos, para junto daqueles que não conseguiram esquecer. Encontramolas na bolsa amniótica ou no cordão umbilical enrolado à volta do seu
pescoço ou do seu pulso. Assistimos à sua luta pela sobrevivência face a
forças superiores. O falo de Esu penetra no cérebro como se este fosse um
orifício anal. Dá à luz,através de uma corrente pendente do seu próprio recto.
É este o teor dos seus gracejos. São estas as imagens que agora oferecem a
Esu, a divindade que preside actualmente . Talvez o renascimento se dê
através dele .28
1
Audre Lorde, ‘Uses of the Erotic: the Erotic as Power’, in Sister Outsider: Essays and Speeches
(Freedom, CA: The Crossings Press, 1984), p.54.
2
Georges Bataille, Eroticism: Death and Sensuality (Erotisme: mort et sensualité) (Londres: John Calder,
1962.
3
Rotimi Fani-Kayode, Black Male/White Male (Londres: Gay Men´s Press, 1987).
4
Fani-Kayode, ‘Traces of Ecstasy’, Ten.8, vol. 2, nº 3 (Birmingham:1988), p. 70.
5
Wilson Harris, citado in Anne Walmsley, The Caribbean Artists Movement, 1966-1972: A Literary and
Cultural History (Londres e Port of Spain: New Beacon, 1992), p. 174.
6
Alex Hirst, ‘Unacceptable Behaviour: A Memoir’, in ‘Rotimi Fani-Kayode (1955-1989), A Retrospective’,
brochura da exposição (Londres: 198 Gallery, 1990).
7
Fani-Kayode, ‘Traces of Extasy’, op.cit., p. 39.
8
Ibid.
9
Hirst, op.cit.
10
Fani-Kayode, ‘Traces of Ecstasy’, op.cit., p. 38.
11
Editora fundada por Aubrey Walters e David Fernbach dois dos principais activistas do movimento de
libertação gay do Reino Unido, nos anos setenta do século XX.
12
Jonathan Dollimore, Sexual Dissidence: From Augustine to Wilde, from Freud to Foucault (Londres e
Nova Iorque: Oxford University Press, 1991).
13
Tessa Boffin e Sunil Gupta (eds.), Ecstasy Antibodies: Resisting yhe AIDS Mythology (Londres: Rivers
Oram Press, 1990).
14
Martin Humphries (ed.), Tongues United (Londres: Gay Men’s Press, 1987).
15
Hirst, op.cit.
16
Alain Locke, ‘Legacy of the Ancestral Arts’ (1925), in Alain Locke (ed.), The New Negro (New York:
Athanaeum, 1977).
17
Fani-Kayode, op. cit., p. 39.
18
Stuart Hall, in ‘Rotimi Fani-Kayode [1955-1989] A Retrospective’,op.cit. , (emphasis added).
19
Ibid.
20
Nathaniel Mackey, ‘Other: From Noun to Verb’, Representations, no 39 (Berkeley: Summer 1992)
21
Michel Foucault, The Archeology of Knowledge (L’archéologie du savoir), (London: Tavistock, 1974).
22
Leo Bersani, ‘Is the Rectum a Grave?’, October, no. 43 (New York: Winter 1987). Ver também Leo
Barsani, The Freudian Body: Psycoanalysis and Art (New York: Columbia University Press, 1986).
23
Fani-Kayode, op.cit., p. 38.
24
Robert Farris Thompson, ‘Black Saints Go Marching In: Yoruba Art and Culture in the Americas’, in
Flash of the Spirit.: African and Afro-American Art & Philosophy (London: Vintage, 1983).
25
Essex Hemphill, Ceremonies: Prose and Poetry (New York: Plume, 1992), pp. 72-3.
26
Robert Farris Thompson, op. cit.
27
Lorde, op. cit., p. 53.
28
Fani-Kayode, ‘Abiku – Born to Die’, in Kate Smith and Kate Love (eds. ), The Invisible Man, brochura
da exposição (London: Goldsmiths Gallery, 1988).