Centro de Estudos Anglicanos

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Centro de Estudos Anglicanos
As Quatro Marcas da Igreja e
a Tarefa de Koinonia Eclesial no Contexto da IEAB.1
Richard M. Fermer*
Desde o Concilio de Nicea (325AD) as quatro marcas da igreja – unidade,
catolicidade, santidade e apostolicidade - foram reconhecidas como propriedades
indispensáveis do ser da igreja. Como tal, elas foram usadas como modos de
identificar a verdadeira igreja, e exprimir sua índole. Na teologia atual as quatro
marcas da igreja com freqüência são discutidas no contexto ecumênico, onde ainda há
bastante desacordo. A questão nesse campo é a seguinte: Como outras denominações
poderiam ser parte da verdadeira igreja se, do ponto de vista de uma igreja
particular, não for possível identificar nelas essas quatro marcas? Esta questão é
bastante difícil para a Igreja Romana, com seu auto-entendimento atual, mas o
problema não exclui a Comunhão Anglicana também. Assim, na Europa, por exemplo,
as igrejas anglicanas britânicas assinarem o Acordo de Porvoo (1996) com as igrejas
luteranas da Escandinávia que têm um episcopado histórico, embora quebrada à
Reforma, mas não chegaram a um acordo com a Igreja Luterana da Alemanha que
não tem bispos.2 É bom lembrar que o episcopado histórico é uma feição tradicional
de um entendimento católico da marca da apostolicidade.
De qualquer forma, isso não é do meu interesse.3 Em vez disso, gostaria de
apresentar uma abordagem das quatro marcas que mostra a riqueza desses conceitos
não simplesmente na eclesiologia, mas como marcas de Deus mesmo, o Deus Triúno
e, por analogia, de suas criaturas. Colin Gunton argumentou que é uma “analogia de
1
Este artigo foi apresentado primeiramente ao Seminário do CEA sobre eclesiologia, em São Paulo, 23 a 25
de Março 2006.
*
Doutor em Teologia e professor no SETEK – Porto Alegre, RS.
2
Note que a Igreja da Índia do Sul criada em 1947 uniu anglicanos, metodistas, igrejas presbiteriana e
congregacional que não manteve o episcopado na maneira rígida. Assim, a Conferência de Lambeth de
1930 escreveu que a Igreja constituiu “uma Província distinta da Igreja Universal”, e disse que “nenhuns
ministros que não foram ordenados por um bispo têm o direito de presidir nas Igrejas desta Comunhão
(Anglicana)”. Lambeth disse que a união criará entre a Comunhão Anglicana e os anglicanos da Igreja da
Índia do Sul “um rompimento provisório dos relacionamentos próximos e valorizados, em concílio e sínodo.”
3
Minha discussão não explorará esta linha da investigação. Acho que esta questão pode ser superada, em
parte, através de um entendimento da riqueza dos conceitos das quatro marcas, e também seu rico papel
analógico. Espero que minha exposição mostre esta riqueza, e assim evitar qualquer tendência de reduzir
as marcas a só uma definição. Como tal, a Comunhão Anglicana pode não partilhar alguns aspectos de sua
interpretação das quatro marcas com uma outra denominação, mas isso não impediria um reconhecimento
que as duas denominações têm outros entendimentos das marcas em comum, e, portanto, podem
reconhecer mutuamente suas igrejas e um nível da comunhão.
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ecoar”, que “a Igreja é o que é por causa de seu chamado ser um eco temporal da
comunidade eterna que é Deus.”4 Minha resposta à pergunta – por que as quatro
marcas são importantes hoje? – é a seguinte: são importantes devido à sua riqueza e
ressonância teológica. Elas revelam não simplesmente a índole essencial da igreja,
mas mostram a missão e o caráter de Deus mesmo, e assim apontam também para a
antropologia teológica, para a realização de nosso ser humano. Como o teólogo
ortodoxo, Metropolitano João Zizioulas escreve: a igreja é “a imagem do Deus
Triúno.”5 Daí, o ponto final desta apresentação será uma espiritualidade e ética
eclesial onde se veja a manifestação prática da koinonia da igreja. A igreja é o
espaço, na luz das ações salvíficas de Cristo, em que a reconciliação entre Deus e o
ser humano, a cura e os relacionamentos transformadores entre a humanidade,
acontecem pela poder do Espírito Santo.6
Trindade, Cristologia e Koinonia.
É muito interessante a declaração do Arcebispo de Cantuária em sua palestra
ao terceiro Encontro Global Sul-a-Sul (Global South to South Encounter), no Egito em
Outubro de 2005, uma reunião em que o convite para a província brasileira foi
revogado. Rowan Williams falou sobre as quatro marcas da igreja. Sua abordagem foi
uma exposição das quatro marcas centradas em Cristo. Ele levou a discussão sobre
em que consiste a igreja às portas de um encontro em que alguns partidos estavam
agindo de maneira perigosa para a fraternidade da Comunhão Anglicana. Sua
aproximação da questão, tal como na Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas em
Porto Alegre em 2006, foi seguir uma hermenêutica cristológica que perguntou: Onde
é o lugar de Cristo? E se nós estamos nesse lugar com ele, com nossos olhos, mentes
e corações abertos a sua vista? Ele escreveu:
Quero dizer que todas quatro marcas da igreja estão sob Jesus Cristo. A
igreja é una porque Jesus Cristo é um; a igreja é santa porque Jesus
Cristo é santo; a igreja é católica porque Jesus Cristo é o salvador de
todos; a igreja é apostólica, porque como o Pai enviou Jesus, então Jesus
nos envia. Em outras palavras, se formos entender a natureza da igreja
4
C.E. Gunton, “The Church on Earth: The Roots of Community,” in On Being the Church, eds. C.E. Gunton
& D.W. Hardy [tradução minha] (Edinburgh, T&T. Clark, 1989), p. 75. É sempre importante estar ciente dos
limites desta analogia, e num outro artigo eu argumento exatamente isso: R.M. Fermer, “The Limits of
Trinitarian Theology as a Methodological Paradigm,” Neue Zeitschrift für Systematische Teologie und
Religionsphilosophie, 41. Bds., S. 158 – 186.
5
John Zizioulas, Being as Comunion. Studies in Personhood and the Church (London, 1995).
6
A eclesiologia é um desenvolvimento da cristologia e da redenção porque Cristo é revelado na nova
comunidade da igreja e seu trabalho de reconciliação é centrado lá. Deus se oferece através uma
incorporação do ser humano na koinonia de seu Reino. A igreja como a manifestação desse Reino é assim
interna e não externa à revelação de Deus na Trindade.
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de alguma maneira, temos que entender quem Jesus Cristo é, e o que
ele faz.7
Isso significa que as quatro marcas não são, primeiramente, propriedades de
uma igreja, que tenha que se defender ou se definir, mas pertencem ao Cristo e a
Deus. O texto principal que Williams usa é João 17, e particularmente versículo 17.
Williams comenta sobre a passagem assim:
Jesus ora para seremos santos, porque ele se consagra. Jesus diz que
envia-nos ao mundo e a palavra em grego é de fato apostele, de onde
vem a palavra “apóstolo”. Jesus ora por esses de todas condições e todas
origens, espalhados pelo mundo, que acreditarão por causa dos
discípulos; ora para que sejam um, como ele e o Pai são um.8
Seguiremos as idéias de Williams mais adiante. Agora acrescentarei à nossa
perspectiva uma exposição de dois feitos chaves na cristologia e na doutrina da
Trindade que providenciarão as bases para nosso tratamento das quatro marcas da
Igreja. Primeiramente, cristologia numa perspectiva aberta pelos antigos pais,9 é a
reconciliação em Cristo das duas naturezas: divina e humana. A cristologia das duas
naturezas do Concílio de Calcedônia (451 AD) oferece uma analogia com o ser da
igreja. A argumentação é a seguinte: segundo o Credo Niceno, Cristo é verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. De modo analógico, a Igreja e seus sacramentos
representam a reconciliação e unificação da natureza da criação com a natureza divina
pela ação do Espírito Santo. Assim, a igreja segundo São Paulo é o corpo de Cristo e o
Filho é a cabeça da Igreja (Efésios 1: 22,23), o “mysterion” de um casamento com
Cristo (Efésios 5:32) e daí a igreja é o templo do Espírito Santo (Efésios 2:21-22; 1
Pedro 2:5) em que Ele habita e manifesta Cristo (João 14-16). Destarte, a Igreja é
um organismo teantrópico, isto é, uma natureza criada por Deus e unida a Ele na
pessoa de Cristo.10
7
R. Williams, “One Holy Catholic and Apostolic Church”, Archbishop's Address to the 3rd Global South to
South Encounter Ain al Sukhna, Egypt, 28th October 2005 (minha tradução). Este texto está no site do
Arcebispo de Cantuária, “Sermons and Speeches 2005”: www.archbishopofcanterbury.org
8
ibid.
9
Note que um apelo aos Antigos Pais da Igreja, dos primeiros cinco séculos do cristianismo foi uma feição
importante da Reforma da Inglaterra, por exemplo, John Jewel (1522 – 71), “A Treatise of the Holy
Scripture” (1570), ou Rei James I, “A Premonition to All Most Mighty Monarchs, King’s, Free Princes and
States of Christendom,” (1609).
10
Vladimir Lossky dá vários exemplos desta analogia: o sacerdote que consagra o pão e o vinho, invoca o
Espírito Santo, e o Espírito efetua o sacramento; o confessor pronuncia as palavras da salvação e o perdão
é outorgado; o bispo impõe suas mãos na cabeça do diácono e o Espírito outorga a graça da ordenação. No
livro dos Atos dos Apóstolos, o Concílio de Jerusalém é descrito, em que uma decisão é feita porque, “Na
verdade pareceu bom ao Espírito Santo e a nós......” (15.28), isto é a sinergia da combinação de graça
divina e ação humana. See The Mystical Theology of the Eastern Church [minha tradução] (Cambridge,
James Clarke, 1991), p. 187-188.
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Numa outra perspectiva, desde o Segundo Concílio Vaticano, tem havido mais
discussões sobre a igreja como sacramento na perspectiva de que Cristo é o primeiro
sacramento. Essa argumentação foi adotada pela Segunda Comissão Internacional
Anglicana-Romana (ARCIC II 1991/99) que descreveu a igreja como “um sinal visível
que aponta e encarna nossa comunhão com Deus e uns com os outros; como um
instrumento que Deus efetua através desta comunhão; e um antegozo da plenitude
de comunhão que será consumada quando Cristo for tudo em todos.” A igreja é sinal
e instrumento do plano de Deus, assim como os discípulos de Cristo são descritos
como “sal da terra”, “luz do mundo”, “cidade edificada sobre um monte” (Mt 5:1316), e “testemunhas” (Lucas 24:28). Esta abordagem depende da analogia entre a
Encarnação e a Igreja, como Henri de Lubac escreve: “Se Cristo é o sacramento de
Deus, a igreja é para nós o sacramento de Cristo; ela o representa ..... realmente o
faz presente. Ela simplesmente não continua seu trabalho, mas é mesmo seu
prolongamento, no sentido muito mais real do que o prolongamento de uma
instituição no modo de seu fundador.”
A percepção da índole sacramental da Igreja levanta a perspectiva escatológica
e pneumatológica, que nunca podemos esquecer em nossa discussão eclesiológica.
Um sacramento tem caráter duplo, no sentido que se relacionam ambas as realidades
criadas, a visível e a nova ordem da salvação e redenção em Cristo, a graça invisível.
Assim, a igreja é ao mesmo tempo uma sociedade humana e uma corporificação da
plenitude prometida da comunhão (koinonia). Um sacramento é um sinal que sempre
aponta para além de si mesmo, nunca é completo, porque a consumação de tudo é
uma realidade no futuro, a que o Espírito nos atrai. Deste modo, a igreja é ao mesmo
tempo um sinal que aponta para o fato de que, na redenção de Cristo, a salvação já é
uma realidade realizada, e uma reunião de pecadores que precisam de reconciliação e
cura, ou seja, apropriam-se da realização da salvação pela graça do Espírito. Em
resumo, a igreja peregrina existe entre o evento da salvação já realizada por Cristo
que lhe dá seu ser e a ânsia de uma promessa que ainda tem que alcançar
acabamento, o que significa que ela sempre está no processo de se desenvolver.
Assim sendo, a igreja como o ponto do encontro central do divino e humano tem uma
dinâmica ou dialética escatológica de promessa e realização, de ser e tornar-se. Ela é,
ao mesmo tempo, promessa da plenitude da koinonia do Reino de Deus e antecipação
desta realização através do poder de Cristo e do Espírito. Este caráter escatológico
significa que qualquer coisa estrutural da igreja, que é chamada “marca da Igreja” ou
uma realização de uma das quatro marcas tem que ser subserviente a esta dialética e
não reivindica um ponto fixo ou completo. Tanto a eucaristia e o ofício de episcopado
por exemplo, tem que suportar esta gramática escatológica.
A dimensão trinitária está somente implícita no texto de Arcebispo Williams.
Como as quatro marcas estão mostradas na doutrina da Trindade? As formulações dos
antigos pais da igreja que são resumidos nos credos produzem uma gramática
trinitária. Esta gramática tenta equilibrar a unidade da Trindade, o Deus Triúno é só
um Deus, um ser ou ousia, com a particularidade distinta e única de cada uma das
três realidades pessoais ou hypostaseis, que a Bíblia chama o Pai, o Filho e o Espírito
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Santo, que são unidos numa comunhão ou koinonia de ser e de uma interpenetração
do amor e vida, ou perichoresis. Desta gramática é possível perceber que obviamente
a doutrina da Trindade mostra a marca da unidade pela igreja, mas é uma unidade,
tal como a igreja, é constituída pela participação e comunhão (koinonia) de uma
pluralidade.11
O Deus Triúno é santo, ou mais verdadeiramente Ele é supra-santo, ou seja,
sua santidade é transcendente. Nós não podemos simplesmente projetar nossas
limitadas noções de bondade sobre Deus; o ser de Deus define a santidade e nossa
santidade é sempre uma resposta à santidade de Deus. A santidade divina é a
combinação de todas as qualidades de Deus concentradas num amor pleno que
mostra a luminosidade e mistério ativo da presença do divino. Dionísio, o Aeropagita,
identifica a santidade de Deus com sua pureza absoluta perante a qual nós somente
podemos sentir humildade, temor e alegria. Os antigos pais da igreja usavam a
metáfora da luz que brilha, uma transparência da comunicação que vem de uma
vontade completa de dar a si mesmo. O teólogo ortodoxo Dumitru Staniloae escreve
sobre o relacionamento entre a trindade e a santidade assim:
Se santidade é a transparência comunicativa pura de uma pessoa para
outra pessoa, tem sua fonte final na tri-personalidade de Deus. (...) A
santidade se realiza na pureza e delicadeza do relacionamento perfeito
de uma pessoa em direção da outra pessoa.12
Ao mesmo tempo, a santidade implica em uma compaixão incessante e um
amor que suporta as cargas dos outros. Segundo São Cirilo de Alexandria, a santidade
é interligada com o conceito do sacrifício; a palavra em grego hieron significa
“sacrifício” e “sagrado.” A autodoação de Deus em amor é este brilho e comunicação
da santidade. A ação salvadora do Filho na paixão e ressurreição restaurou a
santidade do povo de Deus uma vez e por todos (ephapax).
Como o Arcebispo Williams observou, a apostolicidade vem do sentido do
“enviado,” e assim é ligada teologicamente com o conceito da missão, do envio de
Deus. Na doutrina da trindade as três pessoas têm uma configuração fundada em dois
conceitos dinâmicos: o da ordem e o da missão. Na discussão dos antigos pais sobre a
ordem da Trindade, o Pai é a fonte, o arche, da Trindade, o locus ou centro/âncora; o
Filho é “gerado” do seu Pai; e o Espírito Santo é “procedente” do Pai, e os dois
eternamente. Esta generação (termo técnico significando a ordem ou taxis trinitária) e
procissão eterna do Filho e do Espírito do Pai, não cria uma assimetria, porque ao
mesmo tempo o Pai é constituído pelo Filho e pelo Espírito. Estas dinâmicas de ser
envolvem um sentido de envio que é uma permuta que sustenta a própria koinonia ou
11
Como tal, Zizioulas descreve a comunhão (koinonia) da Trindade como “uma categoria ontológica”, e daí,
“A natureza de Deus é comunhão” Being as Communion, p. 134.
12
D. Staniloae, Orthodox Dogmatic Theology. The Experience of God, trans. & ed. I. Ionita & R. Barringer
(Brookline, Holy Cross Orthodox Press, 1998), p. 235-6.
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comunhão da Trindade. É interessante que os antigos pais falam sobre o paradoxo de
movimento e da tranqüilidade em Deus, como São Gregório de Níssa: “Isto é a coisa
mais maravilhosa de todas: como a mesma coisa é uma posição imóvel e um mover.”
Stanilaoe descreve o paradoxo no modo seguinte:
Cada pessoa divina sai totalmente de si mesma em direção aos outros.
(...) É totalmente com os outros ou tem os outros totalmente em si.
Porque todos estão dentro dos mesmos movimentos integrais, eles
podem ser ditos imóveis. Mas desde que eles não são confundidos um
com o outro, amor ainda é um sair, doravante um movimento de um ao
outro. 13
Muito mais evidente, na economia da Salvação, a missão de Deus é baseada no
envio do Filho na Encarnação e no envio do Espírito Santo para trazer a criação à
perfeição ou consumação. Estes dois eventos envolvem um ekstasis (São Maximo o
Confessor) que significa ir ao exterior de si mesmo num ato do amor.
A marca da catolicidade revela mais uma vez a importância da koinonia entre
as pessoas divinas. A palavra “católica” com freqüência é traduzida com o sinônimo
“universal”, mas de fato tem outro sentido mais profundo precedente. De fato a
universalidade é somente uma conseqüência da catolicidade, que significa plenitude
ou totalidade, ou integridade, ou seja, a integração das coisas para formar um
conjunto. A plenitude do todo não é a total soma das partes, pois cada parte possui a
mesma plenitude como o todo. Assim, o teólogo Vladimir Lossky escreve:
“Catolicidade consiste na concórdia perfeita entre os dois termos: unidade e
diversidade.”14 Esta permuta e interpenetração das três pessoas é o que sustenta a
koinonia trinitária e é uma interdependência radical do ser: “o Pai está em mim e eu
nele” (João 10:38). Cada pessoa divina não é uma entidade isolada e afastada, mas
carrega dentro de si as outras pessoas divinas, e só pode ser constituída nesta
habitação dentro das outras pessoas e elas dentro de si. O Filho só é Filho na medida
em que o Pai e o Espírito habitam Nele; sem esta realidade interna do Pai e do
Espírito, não haveria nenhum Filho. O mesmo se aplica ao Pai e ao Espírito. Num certo
sentido, cada pessoa divina é as outras pessoas, embora o seja conforme seus
próprios meios. Não é uma escolha entre unidade ou particularidade, com o triunfo de
um sobre a outra. Cada hypostasis é ao mesmo tempo uma pessoa única, em sua
imparidade mesma, mas uma pessoa divina completamente católica, ou seja,
complemente integrada, e um todo com seu ser compartilhado e definido
mutuamente.
O conceito chave no entrelaçamento das pessoas é o da koinonia (que tem
ressonâncias de confraternidade ou comunhão e participação). As pessoas da
Trindade não são autônomas, mas são constituídas por sua participação na realidade
13
14
Ibid., p. 240.
V. Lossky, “The Third Note of the Church,” In the Image and Resemblance of God (Paris, 1967), p. 173.
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compartilhada, a saber, a koinonia trinitária. Na nova comunidade da Igreja a
autodoação de Deus é revelada como a koinonia do Reino. O fim de tudo é a
reconciliação em Deus e o plano de Deus é para restaurar a unidade quebrada do
universo, “isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas,
na dispensação da plenitude dos tempos” (Efésios 1:10). Segundo Gunton Colin: "De
acordo com o Novo Testamento, a comunidade humana se torna concreta na igreja,
cujo chamado é ser o meio e realização da koinonia: com Deus em primeiro lugar e
com outras pessoas em segundo, e em conseqüência do primeiro.”15 A igreja é a
corporificação ou encarnação da redenção do sacrifício do Filho e a comunhão divina
do amor triúno.
O Arcebispo Michael Ramsey exprime a origem da igreja na morte e na
ressurreição de Cristo, e assim o desafio da igreja encarnar esta realidade salvadora:
Aqui então é a exposição completa do significado da Igreja; o amor
eterno do Pai e do Filho é proferido na auto-negação do Cristo à morte, a
fim de que homens possam incorporá-lo e serem feitos um. A unidade,
em resumo, significa morte. A morte ao próprio eu como ego, primeiro
em Cristo e dali nos discípulos, é a fundação e essência da Igreja.16
É importante deixar claro que Ramsey não está advogando a destruição do
próprio eu, mas salientando um eu realizado dentro de uma koinonia, constituído em
parte por relacionamentos, não autônomo, mas heterogêneo. Com Cristo como nosso
modelo isso é mostrado em seu relacionamento da obediência completa ao Pai, que
Ramsey descreve assim:
O Filho não tem nada, sua própria vontade não manda nada, sozinho não
é nada. O eu tem seu centro num Outro. Esta atitude e ação do Filho na
história revela o caráter do Deus Eterno, o amor mútuo do Pai e do
Filho.17
O desafio que as palavras de Ramsey nos apresenta é exatamente em relação à
nossa vontade de encontrar nossos centros no Outro, e através do sacrifício, assim
entra a obra da reconciliação e transformação de Deus.
15
C.E. Gunton, The One and the Many. God Creation and the Culture of Modernity (tradução minha]
(Cambridge, CUP, 1993), p. 217.
16
O original é o seguinte: “Here then is the complete seeting forth o f the meaning of the Church; the eternal
love of Father and Son is uttered in the Christ's self-negation unto death, to the end that men may make it
their own and be made one. The unity, in a word, means death. The death to the self qua self, first in Christ
and thence in the disciples, is the ground and essence of the Church.” The Gospel and the Catholic Church
(London, Longman, 1959), p. 25-26.
17
Mais uma vez, o original é o seguinte: “The Son has nothing, wills nothing, is nothing of Himself alone. The
self has its centre in Another. And this atitude and action of the Son in history reveals the character of the
eternal God, the mutual love of Father and Son.” Ibid., p 25.
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É mesmo um paradoxo que a morte de Jesus, um evento de isolamento
total dos homens, deva ser o meio de confraternidade entre homens e
Deus, e entre homens uns com os outros (...) Todavia nesta morte
solitária já está presente a verdade que é a base das palavras “igreja”,
“confraternidade” [koinonia] e “unidade”.18
Prosseguiremos este caminho agora para investigamos as quatro marcas em
relação especifica à Igreja.
A Igreja e as Quatro Marcas.
O Deus Triúno que exprime seu amor na encarnação determina as quatro
marcas da Igreja e como elas assim se tornam meios de participar na vida divina.
Consideremo-las agora no contexto de sua articulação das controvérsias da igreja
primitiva e também relacionando-as ao nosso contexto na IEAB.
Na igreja primitiva dos primeiros séculos houve vários debates e lutas sobre
quem deve ser incluído e excluído na comunidade dos fiéis. No ano 250 d.C. a igreja
enfrentou uma perseguição intensa pelo estado Romano sob o imperador Decius.
Muitos cristãos desistiram e apostataram de sua fé, oferecendo o sacrifício requerido
aos deuses pagãos. Depois a igreja foi confrontada com um problema: muitas pessoas
cristãs queriam voltar à fé. Elas podem ser restituídos novamente à comunhão? A
resposta da maior parte da Igreja foi que, com arrependimento sincero e penitência
elas podiam voltar, pois A igreja é a arca da salvação em que animais limpos e sujos
são encontrados, o campo em que crescem o trigo e o joio juntos (Mt 13:24-30).
Todavia, outro grupo liderado pelo bispo de Roma, Novaciano, argumentou que a
igreja é santa, e como nas palavras da carta aos Efésios semelhante a uma noiva
“sem mácula, nem ruga, mas santa e irrepreensível” (5:25-27) e daí excluiu os
apóstatas anteriores. O mesmo problema surgiu novamente um século depois com o
cisma dos donatistas na África do norte como o resultado de uma nova onda de
perseguição. Os donatistas insistiam na necessidade da santidade pessoal por parte
do ministro que presidia os cultos. Um ministro profano e pecaminoso, isto é, um
apóstata, não poderia dispensar os sacramentos, e do mesmo modo os sacramentos
não seriam eficazes em suas mãos.
As respostas a estas posições bastante puritanas foram misturadas e
mostraram às vezes a mesma lógica da exclusão. Por exemplo, Cipriano de Cártago
(faleceu em 258 d.C.) afirmou que a igreja é só uma, o corpo de Cristo, e não se pode
encontrar salvação exceto pela incorporação neste corpo. Mas Novaciano e seus
18
Ibid., p.21. Ramsey também escreve sobre a identificação entre Jesus e o povo de Deus: “Jesus Cristo,
em sua obediência solitária, é a Igreja. Sua existência não começa com a adição de Jesus aos homens,
nem dos homens a Jesus. O Israel de Deus é Jesus na Cruz; e esses que serão unidos com Ele entram um
Israel que existe já”. (ibid., p. 21)
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seguidores, apesar de acreditaram na mesma fé e prática e serem pessoas
extremamente morais, tinham se afastado da igreja católica. Portanto, segundo
Cipriano, ficaram fora da única arca da salvação. Sua ortodoxia e piedade foram
irrelevantes - eles foram afastados e seus sacramentos considerados ineficazes.
Enfim, os novacianistas não eram diferentes dos pagãos!
Porém, em Roma, outra abordagem mais pastoral foi adotada. Os cristãos de
Roma aceitaram o batismo dos novacianistas e acolheram aqueles que quiseram
voltar. Igualmente, com o cisma dos donatistas, Santo Agostinho afirmou a mesma
posição: aqueles que voltassem à igreja católica não precisariam de um novo batismo.
Não obstante, Estéfano da Roma e Santo Agostinho nunca deixaram de sustentar a
crença na unidade da Igreja, ou seja, que a igreja católica é a única e verdadeira
igreja. Ambos as igrejas, de Novaciano e dos donatistas não representavam a igreja
verdadeira.
É interessante e triste que essas mesmas questões existam agora na IEAB, no
contexto do Recife. Na superfície a igreja de Robinson Cavalcanti jogou a mesma carta
puritana de Novaciano e dos donatistas: Como pode a província brasileira ser a igreja
santa se ela não condena o homossexualismo? O assunto é bem mais complicado do
que isso. Todavia, a igreja de Robinson foi afastada da província e juridicamente eles
não são uma diocese da IEAB. Podemos perguntar com nossos predecessores da
época das controvérsias de Novaciano e os Donatistas: eles ainda são uma parte da
Igreja una? Se pessoas ligadas àquele grupo quiserem voltar a IEAB qual seria nossa
resposta? O Rev. Abimael da Silva Rodrigues (Diocese Sul-Ocidental) estava me
contando que, no momento, no Recife, há total separação entre os dois grupos. Ele
ouviu uma pessoa dizer: “Como você pode se entrosar com eles (o outro grupo)?” Ele
respondeu dizendo algo assim: “Se eles são o outro lado, eu estou com eles.” Isso
levanta a questão anterior: Como deveria ser nosso relacionamento com o “outro
grupo”? Qual seria a natureza e o alcance da exclusão? Claro que essa separação não
é necessariamente permanente, mas como nós podemos evitar uma alienação
completa? Por trás da situação no Recife há os relacionamentos difíceis atualmente na
própria Comunhão Anglicana.
Unidade
O que podemos dizer destas questões e situações de uma teologia das quatro
marcas da igreja? O Arcebispo Rowan Williams disse ao encontro do Sul Global:
A igreja é una porque Jesus Cristo é um. Isto é, há um lugar e um lugar
só onde podemos ficar e chamar a Deus de "Pai". Um lugar e um lugar
só onde essa participação na vida divina (2 Pedro).... se torna uma
realidade. No começo de Evangelho de S. João, lemos que, 'Ninguém
jamais viu Deus, mas o Deus Unigênito que está ao lado do coração do
Pai, o tornou conhecido' (João 1.18). (...) Então a questão da unidade diz
respeito à igreja enquanto comunidade desses que são levados ao único
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lugar, ao coração do Pai onde Ele pode ser conhecido, onde pode ser
visto.
Na prática da luta para manter a unidade, leio as palavras do Arcebispo como
indicativo da necessidade da busca constante por encontrar o lugar onde Cristo está
ao lado do coração do Pai. O Arcebispo acrescentou que: “Então a unidade da igreja é
a unidade de estar juntos pela fé em Jesus Cristo, orando o ‘Pai Nosso', e não o
desejo de ficar num outro lugar e contar com algo mais que rompa e quebra essa
unidade.”19 Porém a dificuldade de nossa Comunhão é que há várias opiniões sobre
onde está o lugar de Cristo, por exemplo, em relação à pratica de homossexualidade.
Então leio as palavras do Arcebispo como um incentivo a se engajar no processo
espiritual de busca deste lugar, que acontece antes e depois forma suas opiniões e
convicções intelectuais e emocionais. A chave deste processo espiritual é a humildade
e mesmo o apóstolo Paulo confessou sua fraqueza (2 Cor. 11.29). Segundo o
Arcebispo:
Somos partes de um corpo cujos fracassos são nossos fracassos comuns.
É sempre uma tentação dizer ‘Nós somos a igreja verdadeira, eles nos
abandonaram', mas mesmo quando fazemos disjunções e separações
necessárias, há um ponto em que devemos lembrar-nos de que em
nossa oração, isto é, em nosso sofrimento, em nossa perda, estamos
juntos em pecado, assim como em graça. Acredito que isso é parte da
visão de São Paulo sobre o corpo.
Acho que podemos fortalecer esta afirmação se percebemos que o lugar onde
Jesus está é sempre lá com a outra pessoa, independente da opinião que essa tenha,
das ações que pratique. Ninguém está fora da graça ou da ação providencial de Deus.
Então temos que escutar ao outro para compreender como ele pode nos revelar um
pouco sobre o lugar onde está o Cristo. Numa entrevista recente, o Arcebispo disse o
seguinte sobre o que é seu dever em relação a nossa crise na Comunhão Anglicana no
momento:
Posso tentar encontrar meios, contanto que seja possível, de encorajar
estes dois lados a se comunicar e entender melhor uns aos outros. O
maior problema é que as pessoas não escutam muito. Isso, sabe, é a
natureza humana, e a Igreja não é nenhuma exceção. E contanto que as
pessoas ainda estejam tentando – contanto que as pessoas estejam
cientes que têm bastante em comum para discordar, ao invés de
simplesmente jogar tudo para cima, contanto que isso seja verdadeiro,
vale a pena trabalhar mais. Agora é possível chegar a um ponto em que
as pessoas digam: bem, nós não temos o suficiente em comum, mas
19
Ele dá várias perguntas para nos ajudar com este discernimento: “Estamos procurando ‘ficar em outro
lugar' e não em Cristo? Dependem de algo outro que Jesus Cristo?”
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podemos alcançar esse ponto – eu não sei. Entretanto, minha prioridade
é tentar e manter a conversação aberta.
Este processo de escutar mutuamente e sempre estar ciente sobre o que temos
em comum seria a realização pratica da koinonia da igreja. Escutar é a raiz da palavra
obediência em latim; obediência dentro da igreja é escutar mutuamente com atenção
e amor. Perceber e ficar com o que temos em comum, é coerente com o princípio
anglicano de que devemos ter fidelidade nas coisas essenciais da fé (fundamentos) e
liberdade em relação ao que não é essencial (não-fundamentos), o que é chamado em
grego adiaphora. Atualmente na Comunhão Anglicana os sinais externos da unidade,
segundo o Relatório de Windsor (2004) que se chamam “instrumentos da unidade”
(seção C), são o Arcebispo de Cantuária, primus entre pares (o primeiro entre iguais)
o foco da unidade, os encontros dos primazes, o Concílio Consultivo Anglicano (ACC),
e as Conferências de Lambeth. Nenhum deles tem poder legislativo, mas são os
orgãos para ajudar o processo de escuta e comunicação entre as igrejas da
Comunhão.20
Do ponto de vista de nosso estudo trinitário, é claro que a unidade é um
mandamento cristão, e é levantada no contexto da pluralidade das pessoas da
Trindade, a combinação da unidade e diversidade e particularidade. Assim devemos
esperar que nossa unidade se manifeste através do engajamento com pluralidade e
particularidade. Unidade cristã nunca será uniformidade. É interessante que o
Arcebispo vê as discordâncias como realmente um sinal de que as pessoas têm algo
em comum. Nas discordâncias uma permuta está acontecendo, e esta troca é parte de
uma koinonia real. O fim desse processo de permuta só acontece quando houver um
afastamento terminal, o impasse do silêncio. Nossa unidade como cristãos tem que
ser fundada na base de uma permuta, uma perichoresis e no reconhecimento de
nossa interdependência uns dos outros.
Santidade
É evidente que a questão da santidade da igreja foi assunto de todos os casos
dos cismas e dificuldades eclesiásticas citadas em cima. O Arcebispo nos leva à cruz
como o lugar da santidade. Jesus se tornou o lugar santo no Antigo Israel, o Santo
dos Santos (Hebreus 9:3), o propiciatório (v.5), da reconciliação. Ele escreve:
Fomos feitos santos e somos chamados santos. A paz foi feita entre terra
e Céu, pela Cruz de Cristo, e nós somos feitos santos da mesma maneira
que Jesus ora em João 17. Somos feitos santos por sua santificação e
depois somos chamados a sermos santos. Por isso a santidade de Jesus e
20
Em adição, o Quadrilátero de Lambeth 1888 definiu quatro marcas da unidade anglicana: i.) as Sagradas
Escrituras como contendo todas as coisas necessário para salvação e constituindo a regra ou padrão última
da fé; ii.) o Credo Apostólico, como o símbolo batismal, e o Credo Niceno, como uma afirmação suficiente
da fé; iii.) os dois sacramentos, o batismo e a eucaristia, ordenados por Cristo; (iv) o Episcopado Histórico.
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a santidade da igreja é algo muito mais do que o que ser ‘bom' ou
virtuoso; em resumo, é ficar sob a cruz. Para um cristão ser santo é
estar sob a cruz. Uma pessoa pode levar uma vida moral profunda e de
modo impressionante; eles mesmos podem ter uma vida espiritual
profunda e impressionante, mas se eles não ‘ficam sob a cruz', não
podemos chamá-los santos, no sentido bíblico; e nesse viver sob a cruz
antes de tudo eu reconheço a dívida única que não pode ser paga que
devemos à graça de Deus na morte de Jesus, vivendo em gratidão pelo
presente dado pela morte de Cristo e buscando dia-dia, deixar essa Cruz
viver e trabalhar em nós enquanto carregamos a cruz descartando o
hábito de nos defender, nos justificar, nos proteger em cada área de
nossa vida. A santidade é viver sob a cruz, o lugar onde Jesus se faz
santo, de modo que também possamos ser feitos santos. Tudo foi
realizado por nós na cruz; louvado seja Deus; é tudo, para cada um de
nós descobrir, dia após dia, na luta de se esvaziar, se esquecer, de
deixar Jesus viver em nós. Ninguém mais, nenhum outro poder, nenhum
outro espírito.
É importante notar que ficar sob a Cruz não é estar no lugar do julgamento. Ao
contrário, é identificar-se com aqueles que sofrem. O lugar da Cruz é o lugar do
sofrimento, o lugar do marginalizado. Todavia, as disputas que vimos acima em que
um partido ou outro afirmavam que eles protegem o lugar da santidade, correm o
risco de confundir o chamado a tornar uma Igreja santa com a meta realizada. Em
resumo, eles correm o risco de esquecer a dialética escatológica em que a igreja
peregrina vive, de promessa e realização, e daí passar a julgar os outros. O lugar da
santidade não pertence a nós mesmos, mas é marcado pela cruz de Cristo. Santo
Agostinho em sua resposta à controvérsia dos donatistas argumentou que o espírito
do afastamento foi uma recusa do espírito do amor. A necessidade criada pelos
donatistas de avaliar a proeza ou fracasso da santidade nos conduz a uma
concentração nas coisas externas e superficiais que podem ser avaliadas com mais
facilidade. Porém isso infringe outra vez a dialética escatológica entre promessa e
realização. Nenhuma coisa pode ficar fora da cláusula escatológica, “ainda não....”, e
afirmar uma realização completa do Reino. Vimos acima com nossa discussão da
Trindade que a santidade vem da pureza e delicadeza do ser Triúno que devem
provocar em nós humildade, temor e louvor. Mais uma vez é feita pela permuta
transparente da koinonia do amor, em que a realidade da Cruz é vista como a autodoação de um amor compartilhado perfeitamente. Note que todas estas qualidades
citadas – humildade, auto-doação, substituição ou solidariedade com outros, gratidão,
transparência da comunicação – apontam para uma espiritualidade e ética eclesial.
Em conclusão, nesta marca, a igreja é santa realmente porque é o corpo de Cristo e o
lugar da reconciliação feita por Deus e não pelos seres humanos. Seus membros e a
instituição ainda lutam para apropriar a santidade de Cristo, e como tal, eles são, nas
palavras de Santo Agostinho, um corpus permixtum, o corpo com o trigo e joio que
somente podem ser diferenciados no eschaton, na parousia.
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Catolicidade
Já vimos anteriormente que catolicidade se refere ao todo, à totalidade,
conforme São Cirilo de Jerusalém, ao ser humano como um todo, e às boas novas
como um todo. O Arcebispo Williams escreve:
A pessoa humana inteira é tocada, curada, e transfigurada pelo
Evangelho e a igreja católica é a igreja que é capaz de tratar cada
nível de ser humano: coração, mente e corpo. Uma igreja que promete
cura através do trabalho e da oração para nossa vida material, que
enfrenta pobreza e doença. Uma igreja que não suprime, mas nutre e
purifica a vida da mente. Uma igreja que toca nossas emoções e as
disciplina santificando-as. A cada nível, a pessoa inteira é
transfigurada.
“A igreja católica não é uma igreja que busca uma cultura global uniforme,” diz
o Arcebispo e é interessante que ele aponta no contexto da Comunhão Anglicana para
a necessidade de cada província se engajar na tarefa de inculturação de sua própria
liturgia. Williams escreve:
O realmente católico é o contrário do globalizado, porque o católico diz
respeito à totalidade, se refere à totalidade da pessoa, à totalidade de
cultura local e da linguagem. Portanto, não é algo semelhante à
inauguração da mesma loja de fast food em cada cidade no mundo,
nem se assemelha à economia global, em que as pessoas são
manipuladas pelos interesses de alguns que tornam a outros pobres e
excluídos. O católico é o contrário do globalizado, porque o católico diz
respeito ao bem-estar, ao crescimento e à justiça para todos. E
particularmente em nosso mundo globalizado esta testemunha a que
eu chamaria o verdadeiramente católico é talvez mais importante do
que nunca.
A IEAB nos últimos anos tem mudado muito - de uma igreja fundada na idéia
de capelanias e uma missão no sul do país dependente nos fundos dos EUA, que criou
gerações das famílias anglicanas, para uma igreja muito mais diversa que ainda tem o
desafio criar modelos brasileiros de ser anglicano.
Em nossa argumentação anterior sobre a Trindade vimos a catolicidade como a
permuta das pessoas trinitárias existindo em sua koinonia, e resultando numa
interpenetração radical. Na igreja do segundo século esta koinonia foi articulada,
segundo Inácio de Antioquia, como encarnada concretamente na assembléia da
comunidade cristã local em volta de seu bispo. Na presença da igreja local, todo o
corpo universal está presente. Porém, o que aconteceria se os interesses da igreja
local e da universal estivessem em conflito? Aconteceu, por exemplo, em relação à
questão da data de Páscoa, com igrejas da Ásia Menor discordando da prática da
igreja de Roma e de outros lugares. O bispo de Roma, Victor (189–197), tentou
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encorajar uma coerência de prática, mas não conseguiu. No terceiro século começava
o debate sobre a primazia da Roma. O resultado não nos preocupará. O ponto chave é
esse: a perspectiva da totalidade é vital para a igreja, um outro mandamento, e isso
significa que deve haver uma permuta profunda entre as instâncias locais da igreja. A
igreja local simplesmente tem que considerar suas irmãs e a perspectiva da
totalidade, senão ela descartaria os princípios trinitários de perichoresis e koinonia. No
centro do relacionamento entre os dois níveis da igreja, local e universal, devem estar
a paciência e confiança, uma vontade de esperar um para o outro. Aqui mais uma vez
vem à tona a espiritualidade eclesial da obediência mútua.
Na Comunhão Anglicana a catolicidade é fundada na perspectiva de um povo
biblicamente reunido nas formas de oração e louvor comuns, por isso a importância
do Livro da Oração Comum na tradição anglicana como matriz da teologia.21 Em
adição, esta catolicidade se expressa num jeito conciliar (a conciliar economy), nos
concílios e sínodos provinciais, mas também conforme os “instrumentos da unidade”
do Relatório de Windsor (2004) já citados, enfatiza a importância de escutar
comunitariamente e não agir unilateralmente. Assim, conforme o Relatório de
Windsor, o problema com a ECUSA (Episcopal Church of USA), é que eles não
entraram no próprio processo de consulta e não levaram em consideração o restante
da Comunhão, inclusive a posição da Resolução 1.10 de Lambeth e não permitiram
um período de recepção do desenvolvimento teológico e eclesiástico da decisão que
tomaram de consagrar Gene Robinson. E isso também provocou respostas unilaterais
dos conservadores dentro da Comunhão Anglicana: declarações de comunhão
enfraquecida, supervisão episcopal alternativa e outra.
Apostolicidade
Finalmente, temos a marca da apostolicidade que infelizmente com freqüência é
tratada somente em relação às ordens de ministério. O Arcebispo não se atém a esta
abordagem. Seu tratamento é focado na missão de Jesus, que vem do coração do Pai,
segundo João 17, promovida pelo poder do Espírito Santo. Ele escreve:
O papel apostólico do bispo não é simplesmente ser testemunha de
tradição, embora isso seja importante. O bispo é o guardião do que foi
transmitido, e isso é verdadeiro, mas o que foi comunicado é uma
dádiva que exige ser compartilhada para se tornar evangelismo. E o
que nós levamos não são simplesmente palavras e idéias; o que
levamos naturalmente é como São Paulo nos lembra em 1 Coríntios,
espírito e poder. Nossa missão apostólica é uma missão em espírito e
poder; isso é, uma missão que nos leva a transformação.
21
D. Sumio Takatsu, “Um Jeito Anglicano e Ecumênico de fazer Teologia,” Inclusividade (Ano IV – Julho –
No. 11, 2005).
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Mais uma vez é importante notar que conforme à gramática trinitária, o envio,
a missão é definido em relação a koinonia e perichoresis das pessoas divinas. É muito
importante para a saúde de nossa igreja que pensemos em missão não como uma
atividade isolada que a igreja faz principalmente aos domingo, ou pior, uma atividade
competidora para conseguir o maior número de pessoas em sua paróquia, mas pensar
a missão como atividade fundada na qualidade da permuta, participação e socialidade
de nossas comunidades e igreja como um todo, isto é, em termos da koinonia de
nossas congregações.
Todas as marcas da igreja falam sobre os inter-relacionamentos da igreja
através do tempo e do espaço, e sem dúvida a dimensão da continuidade que faz
exatamente esta ligação através da história. Isso tem que ser uma feição da koinonia
da Igreja. A Igreja dos primeiros séculos esteve muitas vezes sob ameaça de
desordem, transtorno e perseguição. É importante, não obstante que nossa teologia
seja expressão construtiva da fé e não uma reação às ameaças que nos enfrentam. O
ministério triplo de episcopado, presbiterado e diaconato, pode ser visto como
expressão da missão da igreja e o modo como a continuidade e verdade da fé podem
ser sustentadas e cultivadas. A sucessão do episcopado histórico foi defendida por
Santo Irineu de Lyon em seu debate com os gnósticos. Os gnósticos afirmavam que
suas crenças tinham a autoridade de uma tradição secreta que foi herdada em
privado. A resposta de Irineu foi insistir que a única sucessão transmitida é aquela
sucessão transmitida no ofício público da Igreja, dos bispos e presbíteros, de maneira
transparente.
Porém, Cipriano de Cartago sob a pressão da perseguição e o cisma de
Novaciano, afirmou a autoridade do ofício de bispo, escrevendo que cada bispo herda
as chaves do Reino de Pedro e que, portanto, se rebelar contra a autoridade episcopal
é trair o próprio Cristo. O perigo aqui é que o bispo não é mais o ponto focal da
unidade e continuidade da vida fundamental de toda a Igreja. A sucessão episcopal
tem substituído esta continuidade e unidade que pertence a toda Igreja. A
continuidade passa a não depender tanto da sucessão da vida da Igreja mas, em vez
disso, a sucessão da vida da Igreja parece depender do episcopado histórico.22 Isso
infringe a dialética escatológica de promessa e realização, no sentido que o
episcopado histórico ou o sacerdócio se torna uma coisa fixa do Reino já realizada
dentro da igreja. O perigo aqui é que apostolicidade vai ser vista em termos cada vez
mais estreitos, ou seja, referindo-se simplesmente à hierarquia da igreja. Segundo
Zizioulas, a sucessão apostólica “deve ser vista não como uma série de atos
individuais de ordenação nem como uma transmissão de verdades, mas como um
sinal e expressão da continuidade da vida histórica da Igreja em todo, como foi
22
Em sua resposta aos Donatistas o Santo Agostinho caiu no mesmo perigo. Ele disse que as ordens
sagradas da igreja Donatista podem ser reconhecidas. Esta estratégia foi uma maneira para encorajar a
volta dos Donatistas a Igreja católica. Porém, a argumentação tinha o resultado isolar as ordens ministeriais
como algo que pode existir em separação da igreja .
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realizada em cada comunidade."23 Neste sentido um bispo é, segundo Zizioulas, “um
ser eclesial”. Isto significa que seu ser é constituído por seus relacionamentos com a
comunidade da igreja, o povo. A tentação com as marcas é sempre recorrer a algo
tangível que pode ser medido como o episcopado ou a primazia de Roma que
identifica permanentemente a verdadeira igreja. Não podemos confundir esta
argumentação com uma negativa do episcopado histórico como parte de nosso
entendimento de apostolicidade; segundo a tradição católica esse é um elemento
inegavel. É somente um ponto sobre como o entendemos.
Reflexões sobre uma Espiritualidade e Ética Eclesial.
Para concluir voltamos à questão de uma espiritualidade e ética eclesial para
nossa igreja de hoje. A igreja é o espaço que Jesus cria e nós somos chamados ficar
lá sob a Cruz, no lugar de Cristo, cientes e atentos, olhando, sentindo, contemplando,
agindo e amando. Ali, pelo poder do Espírito Santo, somos convidados a participar na
vida divina de um amor compartilhado na confraternidade da koinonia e na permuta
de perichoresis. Assim, a primeira tarefa de uma espiritualidade e ética eclesial é ficar
atenta à qualidade da koinonia que existe em nossas comunidades e é compartilhada
nas confraternidades da diocese e província. Como nós escutamos ao outro? - a
qualidade de nosso escutar, nossa obediência mútua. “O maior problema é que as
pessoas não escutam muito,” diz o Arcebispo. Na IEAB, tal como na Igreja da
Inglaterra, observo uma tensão às vezes entre gerações de idade em termos da
qualidade de escutar uns aos outros. Precisamos respeitar a experiência e a tradição
que pessoas têm, e também deixar que isso se desenvolva em quem ainda não tem.
Outro aspecto do escutar que a IEAB precisa estar ciente é entre as regiões diferentes
do próprio país. A qualidade de nossa koinonia é vital para a saúde da igreja e assim
precisamos perguntar: em que nível as pessoas realmente estão se encontrando? Um
encontro sempre está tentando refletir, por mais difícil que seja, a santidade de Deus,
esta pureza, transparência da comunicação, profunda compaixão e solidariedade, uma
boa vontade de se dar e se esvaziar, que provocam em nós humildade, temor, louvor
e gratidão.
Tal humildade tanto ao nível comunitário quanto pessoal, deve nos ajudar a
reconhecer e ser sensíveis à qualidade da particularidade dentro de nossa koinonia.
Quer dizer, requer atenção ao nível da particularidade de cada pessoa e também dos
caracteres de nossas paróquias, dioceses e província, o que levanta uma consciência,
às vezes dolorosa mas sempre com o potencial de ser transformadora, de nossos
talentos e nossas fraquezas. Como o lugar da reconciliação e cura a tarefa da Igreja é
sempre agir de modo a fortalecer pessoas, porque olhamos, agimos e falamos com
amor. Este é o desejo de Cristo. Se a igreja freqüentemente não faz isso, é uma
traição a Cristo e uma lembrança de que ela não tem alcançado sua meta santa, mas
ainda está na via, com o trigo e o joio junto. O perigo nestes tempos atuais com suas
pressões para mudar e muitas pessoas que estão relutantes e temerosas com as
23
Being as Communion, p. 168.
16
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mudanças, é que os relacionamentos fiquem polarizados e ainda pior, que
simplesmente descartemos as pessoas com quem aparentemente não nos damos
bem. Porém, o desafio da marca de catolicidade, e daí o princípio trinitário de
koinonia, é respeitar a particularidade um do outro e trabalhar em amor para
fortalecer o outro, e se ajudar em seus talentos e suas fraquezas. A marca da
catolicidade nos requer pensar na plenitude das coisas, na integração das coisas na
koinonia de ser. Nos relacionamentos de trabalho é muito importante pensar em como
as fraquezas de uma pessoa podem ser complementadas pelas forças de um colega,
não para rebaixá-lo, mas para fortalecê-lo e permitir que seus talentos brilhem mais.
Em resumo, a confraternidade da koinonia e o respeito à particularidade apontam
para a necessidade de pensar em catolicidade como integração em busca de
complementaridade.
Como podemos viver com a experiência e a consciência de que as pessoas da
igreja são pecadoras, que a igreja não brilha com a santidade de Deus, e que nós
mesmos estamos implicados nisso? Acho que temos voltar ao conselho do Arcebispo,
a saber, sempre tentar voltar a este lugar onde Jesus está, ou seja centrar nosso
entendimento da Igreja em Cristo e não conforme o lado negativo do ser humano. A
igreja pertence a Ele e não é definida ou possuída pelo ser humano caído. O Arcebispo
de Cantuária nos dá algumas palavras sábias:
Se estivermos focados e atraídos pelo mistério de Jesus, aquelas
perguntas [sobre as quatro marcas da igreja] se tornam assuntos sobre
os quais lutamos menos para resolver por nossas forças, mas coisas que
fluem de nosso relacionamento com Jesus. Não podemos esquecer as
questões práticas à nossa frente (...) Mas nós nunca começaremos a
respondê-las apropriadamente a menos que nossos olhos e corações
estejam com Jesus, onde Jesus está.
Então vamos ficar com a esperança do Reino e não com a decepção e desilusão
do pecado de cada um de nós. Mas igualmente a humildade de reconhecer os próprios
pecados e tentar evitá-los substituindo nossa posição de julgar os outros (“Nós somos
a igreja verdadeira; eles nos abandonaram!”) pelo lugar da Cruz. Necessitamos da
paciência e da longanimidade que Paulo descreve como frutos do Espírito (Gálatas 5).
Em última análise, a consciência de pecado nos membros da igreja nos leva a
volta à Cruz e às palavras do Arcebispo Ramsey: “A unidade, em resumo, significa
morte. A morte ao próprio eu como ego, primeiro em Cristo e dali nos discípulos, é a
fundação e essência da Igreja”.
A reconciliação do mundo não é feita pelo tremular de uma varinha de condão.
Não, reconciliação é alcançada pela morte do Filho na Cruz e por nossa participação
neste ato. Então as lutas na própria igreja devem ser esperadas, no sentido de que a
luta com pecado conduz à morte ao próprio eu como ego. Às vezes dentro da igreja
temos que sofrer pelos pecados de outros tal como outros sofrem e propiciam por
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nossos pecados. Às vezes a igreja nos crucifica, isto é, com freqüência a igreja
crucifica a si mesma. Isso é uma parte da morte que temos que suportar no processo
de morrer e renascer em Cristo. Em resumo, a unidade significa não simplesmente
morte, mas o processo de morrer em Cristo. O desafio para cada um de nós é de
encontrar nosso centro no Outro, seguir a Cristo no caminho do auto-esvaziamento e
doação e, assim, participar na obra divina de reconciliação e transformação. As quatro
marcas da Igreja, e por analogia de Deus e de toda a criação, apontam ao coração do
mistério cristão e portanto, nos levam ao lugar de Jesus ao coração do Pai e levantam
este desafio de acompanhá-lo lá, sob a Cruz.
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