bildung e liberdade em “a montanha mágica”

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bildung e liberdade em “a montanha mágica”
8º ENCONTRO DA ABCP
01 a 04/08/2012, Gramado, RS
Área Temática 12: Teoria Política
BILDUNG E LIBERDADE EM “A MONTANHA MÁGICA”
Kaio Felipe (IESP/UERJ) 1
Resumo: Esta tese se propõe a analisar como o romance "A Montanha Mágica"
(Thomas Mann) representa as idéias de Bildung e Liberdade. Ambas são temas
centrais ao livro: a primeira, pelo caráter teleológico na trajetória do protagonista
(Bildungsroman); a segunda, por estar presente nos debates entre os personagens
Settembrini (literato de idéias liberais e iluministas), Castorp (jovem paisano de
tendências esteticistas) e Naphta (jesuíta com posições radicais e niilistas). Quanto à
Bildung, o objetivo é compreender quais as semelhanças e diferenças entre o cultivo
da individualidade dos respectivos protagonistas de "Os Anos de Aprendizado de
Wilhelm Meister" (Goethe), o 1º romance de formação, e "A Montanha Mágica". Em
seguida, serão discutidas as concepções de Liberdade apresentadas pelos três
personagens principais deste romance de Mann: Hans Castorp, Lodovico
Settembrini e Leo Naphta.
Palavras-chave: Bildung; Liberdade; Humanismo; Idéias; Formação.
1.
“A Chegada no Sanatório”: introdução
O que pensar e como agir, quando se vive em uma época de profunda crise
intelectual e moral? É possível formar adequadamente o caráter em uma sociedade
à beira de uma guerra? Como buscar a liberdade em um mundo no qual ela própria
parece estar em xeque? Estas são algumas das questões que possivelmente
motivaram o escritor Thomas Mann (1875-1955) na criação de sua obra-prima, “A
Montanha Mágica”.
Publicado em 1924, este romance tem como protagonista Hans Castorp, jovem
engenheiro de temperamento paisano. Em visita a um primo enfermo no Sanatório
Berghof, nos Alpes suíços, ele descobre que tem tuberculose, e recebe o castigo (ou
1
Kaio Felipe Mendes de Oliveira Santos é mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
1
dádiva?) de passar vários anos de sua vida no local. Durante sua estadia, ele
aprende mais sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Segundo o próprio Thomas
Mann, ele é um personagem medíocre; porém, sua mediocridade não se refere à
inteligência ou à personalidade, mas simplesmente aos impedimentos de seu
contexto histórico e social. Nas palavras do narrador:
O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades,
esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes
esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento
impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo (...) carece no
fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como
desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um
silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou
inconscientemente (...) pelo sentido supremo (...), toda atividade e
de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as
naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas,
e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da
moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.
(MANN, 2000: 47-48)
Portanto, embora possua tonalidades épicas, este romance tem como “herói”
um personagem com poucos atributos de alguém normalmente tido como “heróico”
(força, coragem. destreza...). Esta é a 1ª de várias ironias que Thomas Mann fará ao
longo de “A Montanha Mágica”, uma obra que, inspirada pelo impacto da I Guerra
Mundial, mescla tradição e modernidade: ambas transitam entre a Belle Époque que
estava sendo sepultada e os Tempos Sombrios que emergiam das trincheiras.
Enquanto representante do gênero literário Bildungsroman (romance de
formação), o foco desta obra é o amadurecimento emocional e psicológico e a
formação humanística de seu protagonista, Hans Castorp. Este livro, contudo,
também pode ser definido como um “romance de idéias”, pois o autor incorpora
vários debates filosóficos e políticos à trama, por meio de um estilo ensaístico, com
várias reflexões sobre a condição humana.
Além disso, “A Montanha Mágica” pode ser visto como o romance “em que se
pretende representar o declínio fatal da civilização alemã e européia do século XIX
rumo à Primeira Guerra Mundial, o naufrágio de seu ideal de cultura.”
(FONTANELLA, 2000: 8) Mann, durante a maior parte da guerra, assumiu posições
conservadoras e de não-engajamento, como demonstram as suas polêmicas
“Considerações de um Apolítico” (1918). Sua visão contrastava fortemente com a de
2
seu próprio irmão, o ativista socialista Heinrich Mann. Porém, nos últimos meses do
conflito, ele se desiludiu com os rumos da Alemanha – e da Europa em geral -, e
iniciou uma transição ideológica para a defesa da democracia liberal e, de forma
mais ampla, do Humanismo 2. Nesse sentido, este romance é um registro dos
primórdios da mudança de visão de mundo de seu autor.
Proponho-me a discutir como “A Montanha Mágica” pode iluminar a
compreensão das idéias de Bildung e Liberdade. Ambos são temas centrais ao livro:
o primeiro, porque há um caráter teleológico (isto é, de finalidade) na trajetória do
protagonista; o segundo, por estar presente tanto nas idéias de personagens
importantes como Settembrini (literato de idéias liberais e iluministas) e Naphta
(jesuíta com posições radicais e niilistas) quanto nas situações mais marcantes do
livro – inclusive em seu bélico desfecho.
No que diz respeito à Bildung, compararei brevemente “A Montanha Mágica”
com “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (Goethe), que é o Bildungsroman
paradigmático, para uma compreensão mais ampla do cultivo da personalidade e da
formação de Hans Castorp. Esta obra de Goethe conta a trajetória de Wilhelm, um
jovem que abandona o lar burguês para ingressar em uma companhia de teatro, pois
deseja ter uma formação universal, que lhe seria impossível em seu meio social de
origem. Ao longo da trama, ele passa por experiências e dilemas que o farão refletir
sobre as possibilidades e limitações de seu ambicioso projeto pessoal. Sendo assim,
a partir da comparação entre as obras, pretendo descobrir qual foi a contribuição de
Thomas Mann, a partir do legado goetheano, para o ideal da Bildung.
Quanto ao tema da Liberdade, pretendo averiguar se os personagens priorizam
a liberdade individual, a liberdade política ou alguma outra forma de auto-realização.
Para isso, pretendo mapear a analisar as concepções de Liberdade apresentadas
por três personagens do romance “A Montanha Mágica”: Hans Castorp, Lodovico
Settembrini e Leo Naphta. São os caracteres que apresentam perspectivas político-
2
Entendo por Humanismo a filosofia moral voltada para a excelência e a dignidade humana, visando
ao máximo aperfeiçoamento intelectual e moral do Homem. É a idéia e o imperativo de uma formação
ideal, “que tende a ter como conteúdo e escopo o próprio homem, digamos: o ideal do homem, o
homem ideal.” Vide MOURÃO-FERREIRA, David. “Do humanismo à omnisciência narrativa na obra
de Thomas Mann”. Colóquio Letras. Lisboa, v. 27, set. 1975.
3
filosóficas mais amplas; suas digressões e debates são os mais recorrentes e
profundos dentre os apresentados ao longo da obra.
Um dos fundamentos epistemológicos para este estudo da Teoria Política por
meio da Literatura foi encontrado no elogio do conhecimento de senso comum do
sociólogo Luis de Gusmão. Segundo ele, a Literatura é fonte rica de conhecimento
social e humano, constituindo “um saber acerca das motivações, sentimentos e
paixões dos seres humanos, cujo valor cognitivo se coloca acima da dúvida sensata”
(GUSMÃO, 2012: 38). O conhecimento de senso comum relativo à psicologia
humana e aos fenômenos sociais que se encontra na obra dos literatos de gênio –
por exemplo, Goethe, Dostoievski e Thomas Mann – reúne um acervo de
observações e análises penetrantes sobre a condição humana, além de “vívidas e
circunstanciadas
descrições compreensivas de
mundos sociais particulares
encontradas na melhor historiografia.” (Ibidem: 43) Sendo assim, os clássicos da
literatura fornecem reflexões para o estudo de idéias políticas.
Assim como Isaiah Berlin, considero a Teoria Política como um ramo da
Filosofia Moral; ela consiste na descoberta ou aplicação de conceitos morais na
esfera das relações políticas (BERLIN, 1981: 135). Porém, conceitos também
refletem experiências humanas e têm o poder de mudar o ethos vigente. Sendo
assim, é importante investigar empiricamente como eles são formulados; no caso
deste trabalho, o faremos por meio da obra literária de Mann.
Este estudo combinado de Literatura (Arte) e Política também se utiliza da
noção de “arte crítica”, segundo a qual “a arte aparece como forma de conhecimento
e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo
e sintetizar a realidade.” (CHAIA, 2007: 22) Na medida em que o artista possui a
capacidade de “expressar poeticamente a sua sociedade” (Ibidem: 13), sua obra de
arte ajuda na apreensão dos limites e paradoxos da política.
Wellek e Warren, contudo, são mais céticos quanto a essa relação entre
literatura e idéias: “o conteúdo ideológico, no seu devido contexto, parece realçar o
valor artístico”, mas “o artista será prejudicado por demasiada ideologia se esta não
for assimilada” (WELLEK & WARREN, 1962: 155) Ambos chegaram a criticar “A
Montanha Mágica” pela sua guinada temática, do poético ao intelectual: “as
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primeiras partes, com a sua evocação do mundo do sanatório, são artisticamente
superiores às últimas – de tão amplas pretensões filosóficas.” (Ibidem: 155)
Porém, por mais que a hipertrofia do debate político-filosófico deixe o próprio
Hans Castorp consternado, estas discussões são pertinentes na medida em que são
um retrato de uma controvérsia intelectual que atravessou a Europa a partir do fim
do século XIX. O duelo entre Settembrini e Naphta é um sintoma da excitação
nervosa que precedeu a I Guerra Mundial, uma das premonições de uma catástrofe
próxima. (cf. KAUFMANN, 1973: 111)
Em autores como Thomas Mann, esta abordagem torna-se especialmente
proveitosa, na medida em que é um autor que discute explicitamente com várias
tradições e correntes de pensamento. O cunho realista de seus romances permite
uma ampla compreensão de seu contexto social e histórico. Por ajudar a esclarecer
a atmosfera intelectual de uma Europa em crise, “A Montanha Mágica” assume o
caráter de um objeto de estudo dos mais fascinantes – e sintomáticos.
2. Operationes Spirituales: Bildung, Bildungsroman e Conceitos de
Liberdade
2.1. Bildung, a Paidéia alemã
O conceito de Bildung teve suas origens na teologia pietista, a qual se
caracterizou por reforçar o lado introspectivo do cristianismo praticado entre os
germânicos após a Reforma. Porém, no fim do século XVIII, a idéia de Bildung
começou a ser associada com um projeto humanista, tanto filosófico quanto
educacional, de aprimoramento e harmonização dos talentos individuais.
Traduzível por “formação” ou “auto-cultivo”, a Bildung é um processo de
desenvolvimento da personalidade. Este aperfeiçoamento não se resume ao “apelo
à Razão” pregado pelo Iluminismo, tampouco à valorização da sensibilidade que é
cara ao Romantismo, mas combina aspectos de ambos. Ela ambiciona a elevação
espiritual, o refinamento emocional e o aperfeiçoamento moral do indivíduo; em
outras palavras, visa a uma formação universal. A definição clássica de Bildung foi
enunciada por Wilhelm von Humboldt (1767-1835): “A verdadeira finalidade do
Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em
5
direção a uma totalidade completa e consistente.” (HUMBOLDT, 2004: 143) Análoga
à “Paidéia” grega3, tal formação ampla consiste na “realização de uma
individualidade nutrida pela diversidade da experiência.” (Ibidem: 76)
A ânsia por pureza, verificada na busca incessante pela autonomia do
conhecimento e da arte, em oposição ao “utilitarismo” da vida prática (o que inclui,
de certa maneira, a esfera política), é uma marca da Bildung de muitos intelectuais
alemães. (cf. CALDAS, 2007: 4) Aliás, o próprio Thomas Mann foi um “prototípico
intelectual da Bildung”, mesmo quando suas posições ideológicas mudaram e ele
passou a defender a “politização do espírito” e “a consideração simultânea dos dois
lados da liberdade: a pessoal e a política.” (SOUZA, 2000: 150)
2.2. Bildungsroman: O Romance como Formação Cultural e Humanística
A concepção canônica sobre Bildungsroman é de Karl Morgenstern, pensador
do início do Século XIX segundo o qual esta forma de romance “representa a
formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau
determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a
formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que
qualquer outro tipo de romance”.
Morgenstern coloca “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” como
paradigma do gênero, dentre outros motivos, por este livro ter representado “em tão
alto grau e em tão vasta dimensão o aperfeiçoamento universal harmônico daquilo
que é autenticamente humano e de ter aspirado ao mais belo ideal da formação da
humanidade neo-européia e da época.” (MAAS, 2000: 46-47). De fato há no Livro V
de “Wilhelm Meister” uma passagem em que fica explícito esse propósito de autocultivo do protagonista:
Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como
sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde
a infância. (...) Pois bem, tenho uma inclinação irresistível por
essa formação harmônica de minha natureza, negada a mim por
meu nascimento. (GOETHE, 2006: 284-286)
3
“Paidéia” era o processo educacional de formação cultural e intelectual dos jovens nobres na Grécia
Antiga. Segundo Werner Jaeger, “a palavra alemã Bildung (...) é a que designa de modo mais intuitivo
a essência da educação no sentido grego e platônico.” Vide JAEGER, Werner. “Paidéia: a formação
do homem grego”. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13.
6
Visando a ser um homem público a despeito da origem não-aristocrática,
Wilhelm acredita ter encontrado na carreira teatral a possibilidade de atuar num
círculo social mais amplo. Para Goethe, o teatro não é mero instrumento
pedagógico: ele é a própria vida humana, fazendo prevalecer a individualidade
dentro da circunstância encontrada. A formação de Wilhelm Meister alcança um
novo patamar quando, no Livro VII, ele finalmente conhece a sociedade secreta
que o esteve vigiando durante todos os seus anos de aprendizado: a Sociedade
da Torre, que representa o viés social da Bildung; aquilo que começou como
desenvolvimento pessoal termina como utopia política. É nesse ponto que se
verifica uma espécie de neo-humanismo em Goethe: para ele, os indivíduos têm
diferentes talentos, portanto precisam viver em uma sociedade em que estes
talentos únicos se complementem, levando assim à harmonia social.
A importância do gênero Bildungsroman é considerável, pois tal estilo literário
recupera elementos do gênero épico (o protagonista passa por uma “saga”, na qual
amadurecerá), combinando-o com o lírico, pelo caráter muitas vezes autobiográfico.
Além disso, o Bildungsroman envolve simultaneamente preocupações com a ética
(isto é, os valores adequados para o pleno desenvolvimento humano) e com a
estética (a apreciação daquilo que é belo e/ou sublime).
Vemos, portanto, que o ideal da Bildung – e sua versão literária – visam a um
cultivo da moralidade e da racionalidade, mas também da sensibilidade. Friedrich
Schiller, dramaturgo e amigo de Goethe, afirma que a liberdade política é a maior de
todas as obras de arte; porém, ao invés de desenvolver no homem unicamente a
faculdade da razão, cabe educá-lo para apreciar o belo; segundo Schiller, é da
beleza que se vai à liberdade. Em “A Educação Estética do Homem”, este autor
afirma que, por ampliar a percepção sensível e abrir o ser humano a todas as
possibilidades, o estado estético é o mais fértil para o desenvolvimento do
conhecimento e da moralidade. O sentido para o belo inclina o homem a agir
virtuosamente. “O passo do estado estético para o lógico e moral (da beleza para a
verdade e o dever) é, pois, infinitamente mais fácil que o do estado físico para o
estético (da vida meramente cega para a forma).” (SCHILLER, 2002: 114)
Não por acaso, Schiller analisou “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”
munido de suas teorias estéticas, procurando no protagonista a expressão de seus
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ideais artísticos e filosóficos. Thomas Mann, que muito admirava Schiller, também
enfatizou o papel da disposição estética na formação de Hans Castorp, através da
noção de placet experiri: aprender e descobrir mais sobre si mesmo e sobre a
realidade de uma forma lúdica e empírica.
Hans Castorp pressentia, (...) com absoluta nitidez, que essas
experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não
poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não
desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. (...) O
princípio do placet experiri (...) continuava arraigado em Hans
Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade,
o que, na verdade, sempre fizera; com essa mesma curiosidade
irrestrita, própria de um viageiro ávido de formação, que, ao
saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse
próxima do domínio que agora se lhe deparava... (MANN, 2000:
904-905)
Esta passagem de “A Montanha Mágica” se parece com a carta XV do ensaio
de Schiller, na qual ele discorreu sobre o impulso experimental que caracteriza a
liberdade humana: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da
palavra, e somente é pleno quando joga” (SCHILLER, 2002: 80).4 Ou seja, para
ambos a formação da personalidade também é feita de experiências estéticas.
Aliás, além desta preocupação com a educação estética, “A Montanha Mágica”
possui outra característica que nos permite defini-lo como Bildungsroman: o seu
caráter pedagógico, pois o protagonista, ao longo de sua trajetória, apreende ao
máximo a experiência humana: o amor, a ciência, a política, a arte, a filosofia, a fé e
o próprio tempo. Hans Castorp entra em contato com toda a cultura em relação à
qual pouco se importara até então. Além disso, ele integra-se aos hábitos e
costumes daquela sociedade ao longo da trama.
2.3. Conceitos de Liberdade
Apresentarei a seguir algumas concepções de liberdade que serão pertinentes
para a análise de “A Montanha Mágica”. Começarei com uma distinção analítica: a
dicotomia proposta por Isaiah Berlin entre liberdade positiva e liberdade negativa.
4
Segundo Schiller, “jogo” é a contemplação estética que se situa entre as capacidades sensíveis e
racionais do homem; é o estado intermediário em que o homem se abre a todas as possibilidades,
ainda sem operar juízos.
8
A liberdade positiva é a auto-identificação com um ideal, visando a alcançar a
independência; é a conquista da autonomia, do domínio de si mesmo, da autorealização. Já a liberdade negativa significa não sofrer coerção pela vontade
arbitrária dos outros. Ou seja, é a ausência de restrições ou limitações externas ao
indivíduo, pois cada pessoa deve ser independente, livre de interferências e capaz
de agir segundo as próprias escolhas. Para isso, é importante estabelecer limites à
atuação do Estado, para que haja uma esfera da existência humana na qual o
indivíduo seja independente: “Quanto mais ampla a área de não-interferência, mais
ampla minha liberdade.” (BERLIN, 1981: 137).
A seguir, apresentarei cinco definições mais normativas e políticas de
liberdade. A primeira delas é a de John Stuart Mill, desenvolvida em seu “Ensaio
sobre a Liberdade” (1859). Para Mill, a única liberdade que merece tal nome é
aquela que consiste em se procurar o seu próprio bem à sua própria maneira. (cf.
MILL, 2003: 72) Sobre o seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano. Com
isso, este autor estabelece um “pacto de não-agressão”: a coerção só se justifica
para prevenir o dano de um membro da comunidade a outros. Um dos traços
principais da visão de e Stuart Mill é a sua preocupação com a individualidade, isto
é, com a realização pessoal e a aquisição de talentos, habilidades, conhecimentos e
sensibilidade, os quais só uma atmosfera de liberdade pode permitir.
Por sua vez, Hannah Arendt considera a liberdade política anterior, inclusive
historicamente, à liberdade enquanto independência. A razão de ser da política é a
liberdade, que é vivida na experiência da ação; “sem um âmbito público
politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer.”
(ARENDT, 1972: 195) Esta valorização da virtude cívica não exclui a liberdade
negativa, mas questiona a primazia que os liberais clássicos dão à interioridade
(“vida contemplativa”) e à garantia da segurança. Arendt realça a liberdade positiva
enquanto manifestação do homem no espaço público (“vida ativa”).
Com as devidas proporções, Arendt converge com os “novos republicanos” 5,
segundo os quais “um cidadão não deve apenas não sofrer interferência em sua
independência (liberdade negativa), ele deve ter a garantia institucional de que tal
5
Autores como John Pocock, Philip Pettit e o próprio Quentin Skinner, os quais procuram resgatar o
pensamento republicano por meio de uma “história dos conceitos”.
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não ocorrerá”; se forem garantidas as condições objetivas, haverá uma liberdade
“que permite a todos exercer suas potencialidades.” (BIGNOTTO, 2000: 56)
Uma terceira concepção é a de Wilhelm von Humboldt, que define a liberdade
como a possibilidade de uma atividade variada e indefinida; ela é indispensável para
que o indivíduo desenvolva de forma plena as suas capacidades. Este
aperfeiçoamento consiste em permitir que o ser humano “desfrute da mais absoluta
liberdade para desenvolver a si mesmo a partir de suas próprias energias, em sua
perfeita individualidade”, sendo que “este vigor individual combina-se com a
pluralística diversidade em prol da originalidade.” (HUMBOLDT, 2004: 145-151)
Como vimos anteriormente, o que Humboldt visa é a Bildung, isto é, o cultivo
da personalidade por meio de uma formação universal. Se por um lado esta visão
estabelece uma finalidade ao Homem, o que faz dela uma “liberdade positiva com
uma ênfase cultural” (MERQUIOR, 1991: 32), ela também tem ecos de liberdade
negativa, pois Humboldt adota uma noção não-intervencionista do Estado. Humboldt
“exprimiu um tema liberal profundamente sentido: a preocupação humanista de
formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal. Educar a liberdade, e libertar
para educar – esta era a idéia da Bildung, a contribuição goethiana de Humboldt à
filosofia moral.” (Ibidem: 31)
Uma concepção mais conservadora de Liberdade, sem se ater a um autor em
específico,
defini-la-ia
como
“o
reconhecimento
voluntário
de
deveres
e
responsabilidades”; em geral os conservadores consideram “a liberdade negativa
uma ameaça ao tecido social.” (HEYWOOD, 2010: 43) Tradicionalista e cauteloso, o
Conservadorismo possui certo pessimismo antropológico, pois alega que a melhor
ordem social é aquela que limita os impulsos egoístas que são naturais ao ser
humano.
Por último, é possível afirmar que os socialistas entendem a liberdade em
termos positivos, referindo-se à “satisfação pessoal alcançada por meio do trabalho
criativo livre ou da interação social cooperativa” (Ibidem: 43), o que é ponto de
partida para sua crítica à propriedade privada, vista como antinatural. A antropologia
filosófica do socialismo é otimista: enfatiza a solidariedade comunitária e enaltece os
benefícios de uma sociedade mais igualitária.
10
3.
“Politicamente Suspeitos”: As ideologias e visões de mundo de
Settembrini, Naphta e Castorp
3.1. Settembrini, o pedagogo iluminista
Logo em seu 1º dia no sanatório Berghof, Hans Castorp conhece um peculiar
intelectual italiano: Lodovico Settembrini. Seu jeito desalinhado, mas com graça,
além do bigode levemente ondulado, fizeram Castorp pensar que era um “tocador de
realejo”. Logo na primeira conversa com o protagonista do romance, Settembrini
trata de assuntos elevados, demonstrando notável erudição. Começava ali uma
amizade na qual o “beletrista”, como se estivesse na “Divina Comédia”, tenta ser o
Virgílio que conduzirá o promissor Dante que vê em Hans Castorp, a quem chama
de “filho enfermiço da vida”.
Settembrini é explícito quanto a suas posições políticas: considera-se um
liberal, democrata e republicano. Porém, isso não o impede de cair em paradoxos: o
mesmo homem que diz que "a liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e
a maldade” (MANN, 2000: 514) é aquele que exorta a guerra em defesa dos valores
e instituições ocidentais, julgando ser “necessário ferir o princípio asiático, o princípio
servil da inércia” (Ibidem: 214).
Este italiano, que é uma paródia ao cosmopolitismo de certos intelectuais
europeus, encarna o ideal da “civilização”, opondo-se, como veremos adiante, à
preferência pela “cultura” de seu rival, Leo Naphta. Na dicotomia entre “espírito” e
“vida”, Settembrini enaltece o primeiro. Ele se alinha bastante com o Humanismo
renascentista, exaltando freqüentemente as grandes realizações do espírito humano,
como indica o seguinte trecho:
Humanista? Claro que o sou! (...) Represento o Classicismo
contra o Romantismo. (...) Não ignoro que, dentro da antítese de
corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico;
pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua
oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! (...)
Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como
o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza.
Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão.
(Ibidem: 340-341)
O próprio narrador do romance procura conceituar este Humanismo de
Settembrini: “Mas, o que era afinal o humanismo? Era o amor aos homens, nada
11
mais, nada menos e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição
contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana.” (Ibidem: 217)
Sua crença veemente no progresso é tipicamente iluminista. Um dos princípios
caros ao Iluminismo, “conhecer para prescrever”, é recorrente na retórica de
Settembrini; ele se identifica com o ideal de, por meio da Razão, libertar a ação
humana das forças naturais, estabelecendo regras de conduta para que esta
transformação seja contínua e ininterrupta. Não seria exagero considerar este
personagem como uma metáfora do ímpeto progressista do pensamento político
moderno. Vejamos as palavras do próprio “beletrista” italiano, diante das
provocações de Naphta quanto ao legado do Renascimento e do Estado moderno:
Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique
a servidão diabólica do indivíduo! (...) A democracia não tem outro
sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de
absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da
coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os
interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências
inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem
superior, ao bem supraterreno. (...) As conquistas – emprego essa
palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do
Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade,
direitos do homem, liberdade! (Ibidem: 544)
Podemos, portanto, qualificá-lo como individualista e liberal, pois uma de suas
maiores preocupações é o aperfeiçoamento moral e intelectual do homem, assim
como a construção de uma sociedade cujo governo respeite as liberdades
individuais. A concepção de Bildung de Settembrini não consiste no autodesenvolvimento (como o é em Castorp), mas sim na auto-dedicação à libertação
política de nacionalidades oprimidas e no aprimoramento das condições de vida para
todos na Terra. (cf. BRUFORD, 1975: 211-212) Ao mesmo tempo, ele valoriza o
culto às belas letras como forma de aprimoramento moral, enaltecendo “a literatura
como caminho à compreensão, à indulgência e ao amor, o espírito literário como o
fenômeno mais nobre do espírito humano em geral, o poder salvador da língua, o
literato como homem perfeito, como santo...” (MANN, 2000: 716)
Há conexões entre a visão de mundo de Settembrini com a de dois autores que
apresentei no 2º capítulo deste trabalho. Em primeiro lugar, com Stuart Mill, que
também coloca a liberdade individual como pilar de uma sociedade justa e próspera,
12
além de imprescindível ao pleno desenvolvimento humano. Tanto o personagem
italiano quanto o pensador britânico estão preocupados com a relação entre
liberdade e responsabilidade e a necessidade de estabelecer limites à coerção que o
Estado pode exercer sobre o indivíduo. Porém, Settembrini também concordaria com
Hannah Arendt quanto à importância da virtude cívica. Ele enfatiza a liberdade
política de forma bastante republicana, e assim como Arendt valoriza a “vida ativa”, a
participação no espaço público e o caráter libertador da ação política.
Há também um ranço de intransigência e autoritarismo em sua argumentação
em defesa da Modernidade. Para Castorp, “o Sr. Settembrini era humanitário, mas
ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, era quase explicitamente belicoso”.
(Ibidem: 978) Tal opinião foi corroborada por seu primo Joachim, o qual diz que o
italiano “prega a república universal, internacional, e abomina a guerra por princípio,
mas ao mesmo tempo é tão patriota que reclama a todo custo a fronteira do
Brenner.” (Ibidem: 527) 6
Em sua recusa teórica e defesa prática da guerra, residem um problema e uma
contradição. Um problema, porque, com isso, Settembrini acaba por aderir à
ideologia do imperialismo político, econômico e cultural, a qual é expressão
famigerada do universalismo ocidental. Tal postura imperialista do Ocidente sobre os
“bárbaros” do Oriente se refletiu no “neocolonialismo”, iniciado nas últimas décadas
do século XIX e que foi um dos fatores que levaram à 1ª Guerra Mundial. Já a
contradição de Settembrini é que sua defesa da paz e da república passa a soar
hipócrita, como se fosse um paradoxal “dogmatismo pela liberdade”.
Hans Castorp discorda do racionalismo excessivo de Settembrini, pois acredita
a sensibilidade e as paixões são também fundamentais para uma vida plena. Além
disso, o fato de a crença do italiano no potencial humano estar desvinculada de
qualquer religiosidade ou espiritualidade (Settembrini é agnóstico) a torna – aos
olhos do próprio Mann – satânica, demoníaca. Não por acaso, o capítulo em que
Settembrini é introduzido na trama chama-se “Satã”! Freqüentemente Castorp (e o
próprio leitor) sentem que o “beletrista” possui um individualismo arrogante e
moralista.
6
Alusão ao litígio entre Itália e Áustria, anos antes da I Guerra Mundial, por uma região fronteiriça.
13
Por fim, cabe dizer que Settembrini lembra a caricatura do “Literato da
Civilização”, presente nas “Considerações de um Apolítico” (1918) de Thomas Mann,
inspirado no próprio irmão do autor, Heinrich Mann; ambos tinham sérias
divergências ideológicas. O “Literato da Civilização”, fosse socialista (como Heinrich)
ou liberal, diz acreditar na Razão e no Progresso, louva a Revolução Francesa e,
embora se considere pacifista e democrata, afirma francamente a superioridade do
Ocidente, sendo por isso favorável ao imperialismo da civilização européia. Além
disso, visa à politização, à “literaturalização”, à “intelectualização”, à radicalização da
Alemanha; enfim, à sua “humanização”, no sentido latino-político. Em suas
“Considerações”,
Thomas
Mann
afirma
tudo
isso
degeneraria
em
uma
“desumanização”, no sentido alemão; portanto, a uma “desgermanização”. (cf.
MANN, 1978: 87) Em outras palavras, ele condena o cosmopolitismo exacerbado,
que renega os próprios valores e tradições culturais alemães.
3.2.
Naphta, o revolucionário conservador
Um dos personagens mais soturnos de “A Montanha Mágica”, Leo Naphta é de
origem judia e nasceu no interior da Alemanha. Seu pai, um fanático religioso, caiu
em desgraça por sua “irregularidade sectária”, e foi cruelmente assassinado em um
motim popular. Esta experiência marcou profundamente a vida de Naphta, que
passou sua adolescência absorvido em angústias intelectuais, “formando o seu
espírito de modo impaciente e descontrolado”. (MANN, 2000: 603) Ele só resolveu
sua crise existencial quando se converteu à Companhia dos Jesuítas. Naphta era
professor de latim, mas em decorrência da hemoptise (sangue no escarro), teve que
se licenciar da carreira docente e se mudar para os Alpes.
A conversão do judaísmo ao cristianismo, portanto, é 1ª das mesclas que
marcam o pensamento de Naphta. Ele também simpatizou com o socialismo, que
conheceu graças a um deputado da região e seu filho. Além disso, tinha “um desejo
apaixonado de elevar-se acima da esfera de sua origem.” (Ibidem, p. 603) Segundo
o narrador, “Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático;
era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida
soberba, distinta, exclusiva e ordenada.” (Ibidem: 605)
14
Ao longo de “A Montanha Mágica”, Naphta trava constantes e intensos
embates intelectuais contra Settembrini. É uma rivalidade que começa cortês, mas
que, como veremos adiante, se tornará literalmente mortal. Dotado de uma retórica
perigosamente refinada, Naphta muitas vezes apela para o relativismo cognitivo,
dizendo que “verdadeiro é o que convém ao homem”, pois o homem “representa a
medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade.” (Ibidem: 543)
Ao tentar defini-lo ideologicamente, o narrador nos diz que Naphta “talvez fosse
tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como
revolucionário do conservantismo.” (Ibidem: 627) Além de pregar a restauração de
vários dos costumes e hábitos da Idade Média, Naphta também nutre forte desprezo
pela burguesia. Em uma de suas digressões teológicas, ele chega a alegar que, para
os medievais, “Deus e o diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à
vida, ao modo de viver burguês, à ética, à razão, à virtude...” (Ibidem: 631). Naphta
exalta a “vida” enquanto expressão máxima da “cultura”. Assim como o próprio Mann
em suas “Considerações de um Apolítico”, este personagem recusa aquilo que os
demais povos da Europa chamam de “liberdade”. (DUMONT, 1994: 54)
Leo Naphta tem uma visão bem diferente sobre liberdade daquela apresentada
por Settembrini. Para ele, só é possível ser livre se integrando à coletividade, por
meio da auto-identificação do indivíduo com um ideal holístico. Esta tese aparece,
por exemplo, quando Naphta alega que “a liberdade era um conceito do Romantismo
antes do que da Época das Luzes, pois com aquele tinha em comum o
entrelaçamento
inextricável
dos
impulsos
de
expansão
coletiva
e
do
ensimesmamento apaixonadamente individualístico.” (MANN, 2000: 957) Não por
acaso, a Liberdade não é sua meta principal. Em conversa com Settembrini, chega a
colocá-la como um princípio ultrapassado e até mesmo anacrônico:
Se [você] acredita que o resultado das revoluções vindouras será
a liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade
cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos
quinhentos anos. (...) Todas as organizações verdadeiramente
educadoras souberam sempre o que em realidade deve ser o
último objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação
de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o
domínio da personalidade. (...) O segredo e a existência da nossa
era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela
15
necessita, o que deseja, o que criará é – o terror. (Ibidem: 545546)
Como se não bastasse esta niilista profecia do Terror, Naphta também prega o
coletivismo cristão e socialista. Sua ode à submissão do indivíduo à coletividade
ganha ares de missão política quando, em mais uma demonstração afiada de
retórica, ele coloca o socialismo como a última expressão da fé cristã:
A ditadura do proletariado (...) tem o sentido (...) de uma abrogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o
signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominandoo, (...) o sentido do Reino. (...) O proletariado retomou a obra de
Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande
papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do
derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror
para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da
redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do
Estado e das classes. (Ibidem: 550)
Com isso, Naphta atribui um sentido religioso à Revolução e à ditadura do
proletariado. Esta combinação explosiva de ideologias talvez se explique pelo fato
de Thomas Mann ter se inspirado em seu amigo Georg Lukács para criar Naphta.7
Lukács, embora marxista, até meados da década de 1920 alinhava-se com uma
espécie de “culturalismo existencial”, de forte inspiração nietzscheana. Em sua
errante necessidade de absoluto, ele apresentava o que Mann, por meio de Naphta,
descreveu como “um tremendo anelo de autoridade”. (MERQUIOR, 1982: 158)
Em sua quimera de cristianismo, socialismo, conservadorismo e niilismo,
Naphta revela muito de sua visão de mundo quando é acusado pelo humanista
Settembrini de defender “uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o
aviltamento da personalidade do homem”, ao que responde categoricamente: “o
primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar
esse medo covarde da idéia de reação.” (MANN, 2000: 552)
E como Hans Castorp lida com as idéias de Naphta? Embora inicialmente ele
se fascine por tais idéias baseadas na ânsia por absoluto e por Ordem (afinal, ele
próprio tinha uma índole conservadora), não demora muito para que o “filho
7
Vide MERQUIOR, José Guilherme. “O Marxismo Ocidental”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
16
enfermiço da vida” perceba as conseqüências destrutivas da ideologia pregada por
Naphta.
3.3.
O Amadurecimento de Castorp
Hans Castorp, durante os sete anos que passou no sanatório, teve contato com uma
diversidade de idéias e experiências que lhe permitiram amadurecer a sua
personalidade. O próprio fato de morar nos Alpes, longe da rotina da Planície,
permite-lhe a ausência de obstáculos que nunca tivera. Exemplo disso é quando
Hans considera as correspondências com a família como o último vínculo que ainda
o ligava à vida anterior. O trecho a seguir demonstra que Castorp compreende a sua
liberdade como independência:
Assinou. Estava feito o trabalho. Essa terceira carta esgotava o
assunto e teria um efeito duradouro – não segundo os conceitos
de tempo que reinavam lá embaixo, mas segundo os dali de cima.
Consolidaria a liberdade de Hans Castorp. Era essa a palavra que
ele empregava, não expressamente, e nem sequer formando as
sílabas no seu íntimo, mas sentindo-lhe o significado mais amplo,
assim como o aprendera ali, significado que pouco tinha que ver
com aquele que Settembrini dava à palavra. A isso, uma onda de
espanto e de emoção, sentimento já conhecido dele, percorreu-lhe
o interior, arrancou-lhe um suspiro e lhe fez estremecer o peito.
(Ibidem: 308)
Outra das características centrais de Castorp é a sua curiosidade. Como já foi
dito no capítulo 2, ele tem uma inclinação ao lúdico que o leva a empreender as mais
diversas experiências durante os seus anos em Berghof. Podem ser citados os
estudos autodidatas de Astronomia e Botânica, as “regências” (nome que dá para
suas tentativas de reflexão sobre assuntos “elevados”, como a vida e o tempo), as
visitas aos pacientes terminais, a fascinação pela música, as discussões filosóficas
com Settembrini e Naphta, a paixão pela russa Mme. Chauchat etc. A Bildung de
Castorp chega a ser satirizada por Chauchat: “És um filósofo abstruso – disse ela. –
Não pretendo compreender todos esses teus pensamentos confusos e alemães;
mas eles soam humanos, e certamente és um bom rapaz.” (Ibidem: 819) 8
8
Curiosamente, Thomas Mann recebeu crítica parecida de Otto Maria Carpeaux: “Thomas Mann é
um pensador confuso, é o maior dos escritores de segunda ordem, e a alemanidade não é a essência
do seu ser, mas o amor infeliz dum bastante fraco herói de tragédia”. Porém, “como figura trágica,
Thomas Mann é admirável.” (CARPEAUX, 1999: 252-258)
17
Em meio a influências intelectuais tão diversas, Castorp permanece até o fim do
livro dividido entre tendências racionalistas, religiosas e sensualistas. Porém, no
decorrer da trama, desenvolve-se bastante, justamente porque não tem medo dos
próprios limites. Ele é capaz de criar a si mesmo, usando conscientemente dos
materiais de seu mundo, apelando a seus instintos sobre a natureza humana e,
acima de tudo tendo “a coragem moral para sentir a luxúria da morte e da eternidade
e ainda assim decidir pelo futuro da vida.” (KAUFMANN, 1973: 98)
Um dos momentos decisivos da formação de Hans Castorp – muito embora ele
pouco se lembre desse acontecimento depois – ocorreu quando ele estava sozinho:
o episódio da “Neve”. Durante um passeio de esqui, Castorp é surpreendido por uma
nevasca, e se perde. Após se esconder atrás de um barraco abandonado, e
embriagado pelo vinho que tomou para se manter aquecido, ele se deixa envolver
por sonhos e devaneios dos mais estranhos, em que uma paisagem paradisíaca
subitamente se torna um banquete sangrento. Quando acorda, ainda emocionado
pelos sonhos, Castorp pronuncia a frase que pode ser considerada a sua lição de
vida: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte
nenhum poder sobre os seus pensamentos.” (MANN, 2000: 678; grifo no original)
Nesta
situação
extrema,
Hans
Castorp
sentiu
responsabilidade
pela
conservação da vida, e colocou o amor e o bem acima da morte. Esta tensão
dialética entre os impulsos de vida e morte, para Fritz Kaufmann, significa que a vida
é preservada em sua decomposição, enquanto a morte é tanto um berço quanto um
túmulo, e mais um meio do que um fim para a vida. (cf. KAUFMANN, 1975: 108)
Anatol Rosenfeld diz que “Thomas Mann reconhece o alto valor dessa morte no
suave comércio das idéias e nas aventuras do espírito.” (ROSENFELD, 1994: 26)
Por ser protagonista de um Bildungsroman, é mais do que lícito relacionar a
jornada de Hans Castorp com a concepção de liberdade apresentada por Humboldt.
O personagem principal de “A Montanha Mágica” desenvolve a sua individualidade
por meio de uma verdadeira educação humanística, na qual aprimora gradualmente
as suas faculdades e adquire, ao fim da obra, uma maior autoconsciência.
Farei agora uma breve comparação entre Castorp e Wilhelm Meister.
Comecemos pelas diferenças. Wilhelm é um artista diletante, um burguês que
18
deseja se tornar nobre. À medida, no entanto, que se torna mais autoconsciente e
compreende melhor as relações sociais, abandona as inclinações artísticas e se
envolve numa sociedade secreta de viés filantrópico. Hans Castorp, ao contrário,
não anseia por uma metamorfose: “é um homem comum, um pouco apático, que
não sofre consigo mesmo nem se enoja da vida que o circunda. Ele aceita o mundo
como é e se aceita sem que isto implique resignação.” (CALDAS, 2006: 141) Porém,
como foi dito anteriormente, embora Hans pareça ser insosso e passivo, ele é
bastante curioso, além de atento ouvinte. Suas transformações ao longo da trama
são sutis, expressando-se mais em digressões do que em ações propriamente ditas.
Há, no entanto, uma interessante convergência entre ambos: a relação de
interdependência que os dois personagens traçam entre utopia e realidade. Embora
tanto Wilhelm quanto Hans não concretizem seus ideais (formação universal e amor
universal, respectivamente), estes ainda assim os orientam ao longo de suas tramas.
Tanto um quanto o outro não suplantam a realidade por projetos idealistas,
tampouco caem na amargura de resignar seus personagens às dificuldades
impostas pela vida. Em outras palavras, ambos colocam as utopias em seu devido
lugar: como um ideal de vida que dá forças diante das adversidades.
4. O desfecho dramático de “A Montanha Mágica”
O ambiente de Berghof, nos capítulos finais do livro, oscila perigosamente entre
o tédio e a irritação. Em uma obra que tanto metaforiza a dramática situação
sociopolítica da Europa, há um forte motivo para esta atmosfera hostil: a
proximidade de uma guerra...
Castorp, preocupado com as crescentes turbulências no sanatório, não deixa de
refletir sobre o espírito de discórdia que assola a todos em Berghof:
O jovem estudara aquele demônio com a curiosidade
irresponsável de um viageiro em busca de formação e até
descobrira na sua própria alma perigosas aptidões para
desempenhar um papel importante no culto abominável que todo
mundo lhe devotava. (MANN, 2000: 939)
Este Zeitgeist demoníaco leva a situações trágicas. A principal delas foi o duelo
de armas entre Settembrini e Naphta, que não conseguiam mais resolver
diplomaticamente suas discordâncias. Durante uma de suas disputationes, o italiano
19
se irrita e acusa Naphta de dizer indecências. Este, pedindo para o adversário retirar
o que disse, recebe uma negativa, ao que reage raivosamente, desafiando-o para
um duelo. O pedagogo italiano ainda tentou, até a última hora, dissuadir seu
oponente, mas não conseguiu impedir a tragédia:
– O senhor atirou para o ar – disse Naphta, controlando-se,
enquanto baixava a arma.
Settembrini replicou:
– Eu atiro como quero.
– Atire o senhor novamente.
– Nem penso nisso. Agora é a sua vez. (...)
– Covarde! – bradou Naphta, e com esse grito humano admitiu
que era preciso maior coragem para atirar do que para servir de
alvo. Levantou então a pistola de um modo que nada mais tinha
em comum com um combate, e descarregou-a na própria cabeça.
Que cena trágica, inesquecível! (...) Todos permaneceram imóveis
durante um momento. Settembrini, depois de arrojar a pistola para
longe de si, foi o primeiro a aproximar-se de Naphta.
– Infelice! - exclamou. - Che cosa fai, per l’amor di Dio! (Ibidem:
972)
Há uma interessante metáfora neste duelo de armas: o humanista reluta e por
fim desiste diante de uma situação de barbárie, enquanto que o niilista, que já não
vê sentido na vida, abandona-a deliberadamente. Verifica-se assim que, apesar de
tudo, Settembrini e Naphta são diferentes em suas atitudes existenciais; o italiano é
um personagem mais “humano” e de boa índole. Fritz Kaufmann, ao comparar os
dois personagens, foi categórico: “o abalado intelecto mundano, personificado por
Settembrini, sobrevive ao sofisticado e (...) encantador fundamentalismo, o ódio
suicida deste mundo, o espírito de Naphta.” (KAUFMANN, 1973: 25)
Em meio a essa tragédia, Hans Castorp parece desconcertado e perdido. Sem
perspectivas de sair do sanatório, até mesmo a sua concepção de liberdade adquire
um tom de indolência. Será que ele terminará o livro com a resignação que o trecho
a seguir indica?
Deixavam-no em paz, pouco mais ou menos como se faz com um
aluno que goza do estado singularmente feliz de já não ser
examinado nem ter necessidade de trabalhar, porque a “bomba” é
um fato consumado e ninguém mais se preocupa com ele; um tipo
orgiástico de liberdade – digamos isso de passagem,
perguntando-nos se a liberdade pode jamais ter outra natureza
que não precisamente esta. (MANN, 2000: 973)
20
Porém, o desfecho do romance reserva mais uma reviravolta para Castorp...
No último capítulo, “O Trovão”, o sanatório é acometido por uma notícia
devastadora: estourou a guerra entre as potências européias! Hans é convocado, e
não titubeia; após se despedir de seu mestre Settembrini, retorna à planície para
lutar no Exército alemão. Por ironia do destino, ele vai à batalha que seu primo, o
militar Joachim Ziemssen, tanto queria ir; contudo, este havia morrido de tuberculose
alguns anos antes.
À primeira vista, parece haver virtude cívica e senso de responsabilidade na
prontidão de Hans. Um observador mais otimista poderia afirmar que a escolha de
Castorp soa como se ele saísse do conforto de sua cidadela interior – a qual, aliás,
não seria tão incompatível assim com a noção de liberdade negativa pregada por
Mill – e retornasse aos desafios do “mundo”, num ato de virtude cívica que agradaria
a Hannah Arendt9. Por outro lado, uma interpretação mais desencantada poderia
sugerir que não há nada de especial na atitude deste personagem, mas apenas
desespero – o que, aliás, não seria incoerente com a postura passiva de Hans
Castorp na maior parte da trama.
Defendo, no entanto, um meio-termo entre ambas estas visões, que talvez seja
mais coerente com o caráter de Bildungsroman da obra de Mann. É possível afirmar
que a aceitação da vida terrena por Castorp veio com a morte na guerra. (cf.
KAUFMANN, 1973: 225) Concordo com Rosenfeld quando este diz que “Hans
Castorp, para realizar-se, para fechar o círculo de sua educação humanista, tem de
voltar à Planície. A vida revela-se o valor mais alto.” (ROSENFELD, 1994: 26)
Mesmo que utilizando uma situação tão cruel e desumana como a guerra como
desfecho da Bildung de Castorp, Thomas Mann ironicamente parece ver um ato de
liberdade na decisão de seu personagem. O próprio Mann, anos antes, hesitara
diante da situação política, alegando que era da índole do intelectual germânico ser
apolítico. Porém, os horrores da I Guerra lhe mostraram que não se pode fechar os
olhos para a destruição do que há de mais nobre no ser humano: a sua dignidade.
Temos aqui uma mudança da concepção de Bildung em Thomas Mann. O
afastamento das questões sociopolíticas dá lugar a uma preocupação maior com a
9
Por ser ação política, apesar de realizada em uma guerra – lembrando que Arendt, de forma
normativa, dissociava a política da violência.
21
liberdade política, como nos demonstra o crescente ativismo do próprio Mann, que
abandona uma ideologia conservadora e adere a uma espécie de social-liberalismo.
Com honestidade intelectual, Thomas Mann se posicionou firmemente no
debate público, não tendo vergonha de renunciar às idéias que defendia até 1918;
além disso, aderiu à República de Weimar. Em seu ensaio “A República Alemã”, de
1923 – portanto, contemporâneo à escrita de “A Montanha Mágica” –, ele diz que a
guerra é uma mentira, e defende a república e a democracia, a qual prefere
denominar por outro termo, segundo ele menos carregado de sentido pejorativo: a
“humanidade”. (cf. MANN, 1942: 11)
É nesse sentido que se pode falar em Humanismo, pois esta visão de mundo é
uma ode à capacidade do homem de se elevar moralmente, de aprimorar a sua
percepção e entendimento da “dialética bipolar” entre espírito e natureza (cf.
KAUFMANN, 1973: 111) e, principalmente, de cultivar a sua personalidade da forma
mais completa possível, inclusive pela pluralidade de experiências (placet experiri) –
eis algo que já vimos em Humboldt! Movido por esta preocupação humanística,
Mann conclui o seu romance com a seguinte frase:
Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre
que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um
dia o amor? (MANN, 2000: 986)
Neste trecho, Thomas Mann demonstra uma mescla de melancolia e esperança.
Por um lado, o escritor percebe que, antes de qualquer coisa, é exatamente o
sentido da própria humanidade que se perdeu ali. Resta-lhe narrar as conseqüências
da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em
comum. Logo, este romance seria “a história do declínio de uma sociedade, cujos
sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que [a] compõe.”
10
Porém, o “Trovão” da guerra também pode ser o início da redenção pelos erros
cometidos. Mann nunca deixou de ter fé no potencial do ser humano, e o
amadurecimento do medíocre Hans Castorp é uma prova disso.
10
Vide “Impressões de Leitura – A Montanha Mágica”, de Francisco Escorsim. Fonte:
<http://oitocolunas.blogspot.com/2005/05/impresses-de-leitura-montanha-mgica.html>.
22
5. Finis Operis: conclusão
Estamos no fim de nossa jornada. Ao longo dela “A Montanha Mágica” revelouse um libelo pela liberdade e pela busca de um sentido existencial; é lícito
compreender esta obra como “um livro escrito contra o niilismo de seu tempo”
(FONTANELLA, 2000: 43). A partir das idéias de Liberdade e Bildung, verificamos a
presença deste debate político e filosófico nos personagens do romance, o que
corrobora com nosso pressuposto sobre a interdisciplinaridade entre a Literatura e a
Teoria Política. Este livro pode ser visto como uma representação da crise que
acometeu a Europa, a qual acabou por levá-la à 1ª Guerra Mundial – e, vinte anos
depois, a um conflito ainda mais sangrento. Historicamente falando, “A Montanha
Mágica” foi um chamado ao povo alemão, que leu e elogiou a obra, mas não seguiu
seu ideal humanista. (cf. KAUFMANN, 1973: 118)
Ao longo deste trabalho procurei mostrar que, no romance, foram apresentadas
várias possibilidades de se encarar a liberdade. Constatei, dentre outros pontos, que
o liberalismo clássico de Settembrini é combinado por Hans Castorp com as várias
outras concepções de liberdade ele conheceu ao longo da obra, permitindo-lhe ter
uma noção mais ampla do que é ser livre, mas sempre se preocupando com a
dignidade humana.
Settembrini, aliás, sentia-se livre por meio da atividade
intelectual e do ativismo político. Naphta negou o livre-arbítrio, considerou a
liberdade em termos da vontade de poder e, consumido pelo seu vazio existencial,
pôs fim à própria vida. Por sua vez, Castorp parece ter resolvido sua crise intelectual
e espiritual ao aprender a importância de se acreditar na vida e no amor, mesmo que
para isso tenha tido que lutar (e, ao que parece, morrer) na guerra.
Foi a própria mediocridade de Hans Castorp que o permitiu usufruir de tantas
experiências nos anos que passou no sanatório Berghof. Afinal, mesmo o homem
comum tem o seu quê de genial, quando consegue recombinar as velhas formas em
novas, passando da dissolução à ordem. (cf. KAUFMANN, 1973: 103) Ou seja, é
quando recusa a covardia inofensiva diante da realidade que o homem mantém a
busca pela finalidade e o sentido da vida.
A vida nos compele a fazer escolhas, tomar posições; o homem não é apenas
um campo de batalha, mas o também o objetivo desse conflito, e, no fim, o sujeito
23
que decide qual caminho tomar. É nesse sentido que identifiquei a mensagem do
romance como uma espécie de Humanismo de viés pessimista. Acredito que há um
misto de esperança e melancolia nas digressões de Mann sobre a liberdade e a
responsabilidade humanas de refletir e agir por um mundo melhor.
Darei uma última palavra sobre a comparação entre Wilhelm Meister e Hans
Castorp, na medida em que ela é importante para justificar o ideal humanista que
prevalece em “A Montanha Mágica”. Em meio a situações complicadas, os dois
personagens mantiveram a força de vontade para perseguir seus objetivos. Se
ambos tiveram algum êxito, por menor que seja, foi justamente porque souberam
lidar com o meio em que estavam envolvidos: “O tato social corresponde muito de
perto ao que seria em Goethe por excelência a arte de viver, e Thomas Mann
considera Goethe como quem consegue ligar da maneira mais feliz a arte e a arte de
viver.” (FONTANELLA, 2000: 106)
Tanto em “A Montanha Mágica” quando no romance goetheano, há uma idéia
em comum: em meio aos equívocos da vida, cabe ao ser humano escapar ao horror
e à resignação e sempre procurar, em si mesmo e nos outros, o que a humanidade
tem de melhor. O desfecho do protagonista de “A Montanha Mágica” parece
demonstrar que, ao contrário do que pensa Naphta, se a consciência é individual e
não coletiva, é mais do que legítimo fazer um apelo à responsabilidade. (cf.
ROSENFELD, 1994: 145-146) Afinal, esta é a lição central do humanismo de Mann:
a construção da liberdade ancorada na crença na dignidade humana.
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