Olhares Luso-Brasileiros - Centro de Documentação do

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Olhares Luso-Brasileiros - Centro de Documentação do
Olhares Luso-Brasileiros
1
Edição conjunta de:
MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO
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Palácio da Independência, Largo de São Domingos, n.º 11
1150-320 LISBOA
e
DG Edições
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2795-151 Linda-a-Velha
Selecção, ordenação e revisão de textos por António Braz Teixeira e
Renato Epifânio
Composição e maquetagem: DG edições
Impressão e acabamento:
ISBN: 978-989-8661Depósito Legal:
Primeira edição: Novembro de 2015
© 2015, Constança Marcondes César e MIL - Movimento Internacional Lusófono.
Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
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Constança Marcondes César
Olhares Luso-Brasileiros
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ÍNDICE
Prefácio, por António Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Pessoa, Liberdade e Direitos dos Índios em António Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Vieira e Las Casas: a questão indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
As “Reflexões” de Matias Aires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
A metafísica de Tobias Barreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Sílvio Romero e a Escola do Recife . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Literatura e Sociedade em Sílvio Romero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Filosofia do Direito em Sílvio Romero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Antero de Quental: ética e epistemologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Biografias e modelos paradigmáticos do ethos: São Paulo de Teixeira de Pascoaes . . . 63
Diálogo da Renascença Portuguesa com o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Verdade, ciência e poesia em Milton Vargas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Liberdade e reconhecimento em Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Filosofia e Poiésis: Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Pensamento originário e filomitia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
A filomitia de Eudoro de Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
A compreensão heterodoxa do sagrado: Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa,
Vicente Ferreira da Silva . . . . . 133
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Agostinho da Silva e o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Ética e liberdade em Agostinho da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
Natural:mente, de Vilém Flusser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
A metafísica conjetural de Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Axiologia e crise segundo Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Ética e liberdade em Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
Aspectos da teoria da justiça em Reale e Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
A filosofia do Direito em Aquiles Cortes Guimarães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
O conceito de razão atlântica em António Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
António Braz Teixeira e a Filosofia Portuguesa Contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Arte e tempo em Maria do Carmo Tavares de Miranda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
5
Axiologia e ética em Eduardo Abranches de Soveral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
A tradição escatológica da filosofia portuguesa da história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Aspectos das filosofias brasileira e portuguesa depois de 1950 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Antônio Paim e a história das idéias filosóficas no Brasil: questão de método . . . . . . 233
O orientalismo de Cecília Meireles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
Contemplação e Sabedoria nos Cânticos de Cecília Meireles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
Guimarães Rosa: Travessias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
A viagem como peregrinação e redenção em Dalila Pereira da Costa . . . . . . . . . . . . . 267
A Celebração dos Deuses: Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva . . . . . . . 273
Dora Ferreira da Silva: caminhos em direcção ao Sagrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
Talhamar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
A dança, a música e a poesia em Dora Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301
Poesia e transcendência em Hilda Hilst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Ariano Suassuna: O Romance d’A Pedra do Reino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
PROVENIÊNCIA DOS TEXTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
6
Agradecimentos
Aos Amigos António Braz Teixeira e Renato Epifânio,
pela generosidade e empenho que demonstraram na busca, apresentação
e organização dos textos
ao Instituto de Filosofia Luso-Brasileira
o apoio à edição
Em memória de
Afonso Botelho
Agostinho da Silva
Dora Ferreira da Silva
Eduardo Abranches de Soveral
Francisco da Gama Caeiro
Maria do Carmo Tavares de Miranda
Maria Helena Varela
Miguel Reale
Sándor Pethö
E aos Amigos
Ana Maria Moog
Antonio Paim
Amon Pinho
Cristiana de Soveral e Paszkiewicz
Irene Borges Duarte
José Esteves Pereira
Jorge Teixeira da Cunha
Leonel Ribeiro dos Santos
Manuel Cândido Pimentel
Manuel Ferreira Patrício
Maria Celeste Natário
Maria de Lourdes Sirgado Ganho
Maria Fernanda Henriques
Paulo Borges
Pedro Calafate
Romana Valente Pinho
Samuel Dimas
7
8
Prefácio
Intelectual e investigadora bem conhecida no meio filosófico e universitário
português, pela sua frequente participação em colóquios, congressos, seminários, conferências, júris de provas académicas e comissões de aconselhamento de
centros de investigação, membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, Constança Marcondes César, actualmente Professora na Universidade Federal de Sergipe, depois de, durante largos anos, haver ensinado na Universidade Católica
de Campinas e aí ter dirigido a revista Reflexão, tem repartido a sua inteligente e
sensível atenção hermenêutica e reflexiva por diversas áreas, desde o pensamento brasileiro, português e latino-americano, até à filosofia francesa contemporânea ou à moderna especulação grega, como, expressivamente, o ilustra a vasta
bibliografia que foi produzindo ao longo de quase meio século.
Autora de obras como Vicente Ferreira da Silva: trajectória intelectual e contribuição filosófica (1980), Filosofia na América Latina (1988), Bachelard: Ciência e Poesia (1989), A hermenêutica francesa: Bachelard (1966), Papéis filosóficos
(1996), O Grupo de São Paulo (2000), Filosofia da Cultura Grega (2008) e Crise
e Liberdade em Merleau-Ponty e Ricoeur (2011), Constança Marcondes César
dedicou, ainda, inúmeros escritos a figuras maiores da filosofia e da cultura brasileira e portuguesa contemporâneas, com especial relevo para os consagrados
e mais destacados membros da Escola de São Paulo – Miguel Reale, Vicente
Ferreira da Silva, Milton Vargas, Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva e Vilém
Flusser – e a algumas das mais altas expressões da criação poética e literária
luso-brasileira da centúria finda, como Teixeira de Pascoaes, Cecília Meireles,
João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Dora Ferreira da Silva, Sophia de Mello
Breyner Andresen, Dalila Pereira da Costa ou Hilda Hilst, com algumas da quais
teve a oportunidade de privar, com especial destaque para a grande poetisa de
Retratos da Origem.
Encontrando-se a quase totalidade desses escritos dispersa por revistas, actas de colóquios e congressos ou obras colectivas, entenderam alguns dos seus
amigos portugueses aproveitar a oportunidade da sua jubilação para reunir, em
volume, a maioria desses textos, escritos e publicados de 1969 até ao presente,
testemunho vivo da sua subtil penetração hermenêutica e da sua amorosa compreensão da cultura que nos é comum e dos princípios e dos mais altos valores
especulativos e estéticos que a individualizaram.
9
Coube a Renato Epifânio, um dos mais recentes amigos portugueses da pensadora paulista e ao signatário, decerto o mais antigo desses amigos, o grato
encargo de, com a colaboração e a supervisão da autora, seleccionar, ordenar
e rever os textos da presente colectânea, que documentam as superiores qualidades exegéticas de Constança Marcondes César, enriquecendo, significativamente, a bibliografia sobre os caminhos e os modos do pensar em português, e
contribuindo para uma mais profunda e compreensiva autognose do espírito de
uma pátria de língua portuguesa.
A esta quase meia centena de estudos e ensaios, assim como aos reunidos, anteriormente, em O Grupo de São Paulo, editado, há quinze anos, pela Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, acha-se subjacente uma atitude hermenêutica que se
funda numa razão filosófica aberta a outras formas gnósicas matriciais dela complementares, como a intuição sensível e supra-sensível, a imaginação e a memória inventiva e criadora, que a leva a valorizar o “poetar pensante” e o mais fundo
sentido e valor simbólico e ontológico da palavra poética e as suas essenciais
relações com a “arte de filosofar” e com a qual se articula o conjunto de autores e
de temas a que a investigadora brasileira tem conferido primordial atenção.
É aqui que deve buscar-se a génese e a explicação para o interesse que, desde
cedo, lhe mereceram o pensamento grego pré-socrático e a filosofia indiana, mitólogos como Kerény, Eliade ou Eudoro de Sousa, especulativos como Vicente
Ferreira da Silva, Agostinho da Silva, Bachelard, Scheler, Heidegger, Ricoeur ou
Moutsopoulos, poetas como Hölderlin, Rlke, Tagore, Celília Meireles, Dora Ferreira da Silva ou escritores como Kazantzaki, Guimarães Rosa ou Suassuna, bem
como temas como o sagrado ou o divino originário, de que Deus e os deuses
são imperfeita e parcial manifestação, o numinoso que se exprime nos mitos, na
poesia e na mística, as fundas e essenciais relações entre mito e logos, mito e símbolo e mito e história, o sentido ontológico da liberdade e as suas relações com a
ética, o direito e a justiça, presentes, praticamente, em todos os textos aqui coligidos e que, pelo modo como são tratados, permitem apreender ou surpreender
o pessoal pensamento, discreta e indirectamente expresso da filósofa brasileira.
Esse pensamento implícito ou apenas sugerido, profundamente marcado
pela lição de Vicente e Dora Ferreira da Silva, e em que razão filosófica e razão
poética são indissociáveis, afigura-se ser uma filosofia hermenêutica da cultura,
claramente distinta da visão que desta apresenta o moderno culturalismo brasileiro que, reivindicando a lição pioneira de Tobias Barreto, foi profundamente
renovado, desenvolvido e ampliado por Miguel Reale e exemplarmente sistematizado por António Paim, invocando a sua matriz neo-kantiana, o seu historicismo axiológico e o seu fundamento na moralidade.
Diversamente, a pensadora paulista, mais próxima de especulativos como
Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, José Marinho, Dalila Pereira da Costa, An-
10
tónio Quadros, Afonso Botelho ou Adolpho Crippa, atende, na sua compreensão
filosófica da cultura, à natureza fundadora e originária dos mitos e ao sentido escatológico da história, dando prevalência ao sagrado, aos valores religiosos e ao
carácter ontológico e simbólico da arte, da poesia e da cultura, ao mesmo tempo
que, na linha de Farias Brito e Álvaro Ribeiro, vê na verdade o fundamento da
liberdade e do agir ético e confere à justiça uma radicalidade antropológica e
ontológica que excede a simples igualdade ou a mera repartição de coisas ou de
bens materiais, referindo-a à própria existência humana intersubjectiva.
António Braz Teixeira
11
12
Pessoa, Liberdade e Direitos dos Índios em António Vieira
A obra de Vieira se inscreve no horizonte de uma problemática filosófica que
o precedeu1, caracterizando o século de ouro do pensamento ibérico e que teve
em autores espanhóis e portugueses seu vôo e sua expressão2.
Referimo-nos à célebre Escola de Salamanca, da qual Francisco de Vitória foi
um dos expoentes, renovando a Teologia e o Direito e meditando sobre a questão
indígena e a da colonização. Ao lado de Vitória, os nomes de Bartolomé de las
Casas e de Luís de Molina, assim como de outros professores de Évora e Coimbra3, atestam a importância da problemática suscitada pela defesa dos direitos
dos índios, nas universidades da península ibérica, nos séculos XVI e XVII4. A
respeito disto, diz Pedro Calafate: “No cômputo global, a escola peninsular, onde
temos que incluir não apenas Salamanca, mas também Coimbra e Évora, nega o
princípio da autoridade universal do imperador em matéria temporal; recusa a
autoridade espiritual do papa sobre os infiéis, e não aceita o princípio jurídico que
aponta o direito de mover guerra aos infiéis pelo simples fato de o serem (...)”5.
Na perspectiva de Pedro Calafate (ibid., pp. 35-49), a contribuição portuguesa residiu, num primeiro momento, “na atribuição de expressão concreta ao
ideal cristão de unidade da natureza humana (...) e, num segundo momento, na
afirmação da existência de direitos humanos inalienáveis, independentes da raça
GUY, Alain., Histoire de La Philosophie Espagnole, Tolouse, Association des Publications de
l’Université de Tolouse-le Mirail, 1983, pp. 70 e segs. Ver também, do mesmo autor: Esquisse des
progrès de la spéculation philosophique et théologique à Salamanque au cours du XVIè siècle. Paris:
Vrin, 1943 (Tese complementar para o doutorado em letras na Universidade de Grenoble).
2
CALAFATE, Pedro, “A mundividência de António Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do Pensamento Português, vol. II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Caminho, 2001,
pp.703-731.
3
Posições análogas às desses autores já encontramos em autores como Frei Serafim de Freitas,
como evidencia Pedro CALAFATE, in op. cit., p. 44.
4
GUY, Alain., op. cit. Ver também VV.AA. Francisco de Vitória y La Escuela de Salamanca. La
ética en la conquista de América. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1984.
Nessa obra, consultar também a lista dos professores espanhóis e portugueses, bem como seus
principais escritos, que circularam em Salamanca, Évora e Coimbra, dentre outras cidades importantes (Apêndices, pp. 661 e segs). Ainda sobre esse assunto, ver CLANET, Christian, “Las Casas
et Vitoria, suspects d’ortodoxie?”, in VV.AA., Penseurs hetérodoxes du Monde Hispanique. Tolouse:
Association des Publications de l’Université de Tolouse-le Mirail, 1974, pp.81-194.
5
CALAFATE, Pedro, “A antropologia portuguesa da época dos descobrimentos”, in id., op. cit, p.
43. Cf. também BRAZ TEIXEIRA, António, “A reflexão portuguesa sobre o Direito nos séculos
XVI e XVII”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op. cit., pp. 647-662.
1
13
e do credo” (ibid., p. 35). Esse reconhecimento de um núcleo comum a todo ser
humano evoluiu do plano filosófico para o jurídico, implicando: a aceitação da
pluralidade dos povos, dos governos, das confissões religiosas; a afirmação da
noção de comunidade internacional; e culminaria na compreensão, alcançada
progressivamente, do gênero humano “como um todo, na diversidade de raças
e culturas.”
É no âmbito da evangelização, do projeto do estabelecimento do império de
Cristo no mundo, que deve ser compreendida a atuação das ordens religiosas no
continente americano.
Os temas do valor da pessoa humana, da liberdade, da guerra justa, estão
presentes no filosofar dos séculos XVI e XVII.
Assim, para Las Casas (1474-1566), “o cristianismo não se impõe (...) pela
força”6 e a tutela provisória dos índios deve levá-los à civilização e à liberdade.
O amigo de Las Casas, Francisco de Vitória (1480-1546), jurista e teólogo,
professor em Salamanca, introduziu temas importantes tais como: o da responsabilidade moral dos espanhóis na colonização; o da exigência de uma colonização
pacífica; o do reconhecimento de que os índios não são infra-humanos. Adota,
assim, uma posição análoga à de Las Casas, quando este afirma que “todas as
populações do mundo são humanas (...) todos os homens têm entendimento e
vontade, todos têm os cinco sentidos externos e os quatro internos, percebem
prazer e alegria, e repudiam o mal”.7
Para Vitória não há, como pretendia Aristóteles na Política, homens escravos
por natureza. A liberdade e a razão são componentes essenciais do humano. A
condição inferiorizada dos índios, em relação aos europeus, é remediável, não
constitucional.
Há, na perspectiva desses autores, a idéia de uma identidade da condição
humana, para além da diversidade das culturas, como evidencia Clanet8. Em
conseqüência da igualdade essencial entre as raças, a desigualdade acidental dos
índios pode ser remediada por uma “tutela emancipadora”, provisória, que assegure sua liberdade e sua cristianização, sendo, pois, insustentável a subordinação
e escravização dos diferentes (ibid., p. 97). Vitória condena a guerra ideológica, afirmando que a diversidade de religiões e culturas não é causa justa para
a guerra. Assim, os índios, capazes de razão, são proprietários de suas terras;
não podem ser escravizados, torturados ou obrigados a aceitar o cristianismo.
Por isso, a presença dos europeus na América só se justifica como direito à livre
circulação no mundo mas não como direito à invasão; a exploração escravagista
é escandalosa e ilegítima9.
LAS CASAS, Bartolomé, Tratados, V, pp. 507 e 509, apud CLANET, C., op. cit., p. 104.
Id., op. cit., pp. XVIII e XIX, apud CLANET, C., op. cit., p. 96.
8
CLANET, C., op. cit., p. cit.
9
GUY, A., Histoire de la philosophie espagnole, pp. 74 e segs.
6
7
14
Como bem assinalou Manuel Cândido Pimentel10 dois sermões de Vieira
mostram, o primeiro, a correlação entre evangelização e proteção dos mais frágeis
(Sermão da Epifania)11; o segundo, a afirmação da liberdade como valor fundamental da existência, assim como as condições que tornariam a escravidão
e a guerra justas (Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma, ibid., vol III, pp.
5-24). É nesse último sermão que aparece, em primeiro plano, o questionamento
da escravidão dos índios que se desdobrará na condenação da avareza e da cupidez, características do comportamento de alguns colonos, no belíssimo Sermão
de Santo Antonio (ibid., vol VII, pp. 223-254) pregado em Sâo Luis do Maranhão
em 1654. Veremos, nos argumentos elencados por Vieira contra a escravidão dos
índios, ressoar a enorme erudição, o gosto pela estrutura lógica, a extraordinária
sensibilidade que animam o debate filosófico que o precedeu e que se impõe
como fio condutor das discussões na fina flor do pensamento dessa época. Não
por acaso vários dos mestres-filósofos que o precederam eram jesuítas ou pertenceram a ordens religiosas importantes.
Vieira é, no Brasil e no pensamento luso-brasileiro, o equivalente de um Las
Casas na América Hispânica12.
Para compreender o alcance de sua reflexão e de sua atuação, o alcance do
impacto que provocou com sua palavra, focalizaremos nossa atenção, sucessivamente, no Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma, pregado em 1653 em São
Luís do Maranhão; no Sermão de Santo Antônio, pregado em 1654 na mesma
cidade; e, finalmente, no Sermão da Epifania, pregado em Lisboa em 1662, na
Capela Real, à Rainha D. Luiza (então regente do reino) e ao rei D. Afonso VI
(ainda menor, na ocasião).
O Sermão de 1653 é uma meditação sobre a liberdade. O ponto de partida é
uma hermenêutica das tentações de Cristo, pondo em foco a última das tentações na qual, segundo o texto bíblico, o demônio teria oferecido a Cristo o poder
sobre o mundo, caso este aceitasse ajoelhar-se e adorá-lo.
As razões da escolha da última tentação como tema de reflexões são, segundo
o pregador: primeiro, porque a tentação do poder é “a maior (...) a mais universal
(...) a mais poderosa das tentações”; segundo, porque refletir sobre ela é refletir
sobre a mais “própria desta terra em que estamos”, diz ele referindo-se ao Maranhão13.
10
PIMENTEL, Manuel Cândido, De Chronos a Kairós. Aparecida: Idéias e Letras, 2008, pp. 25 e
segs. Cf. também as referências de Pedro CALAFATE, no seu livro já citado supra, pp. 233-234, ao
Sermão da Epifania , assim como às cartas do Pe. Manoel da Nóbrega.
11
VIEIRA, António, Obras Completas. Sermões. Porto: Livraria Chardron – Lello & Irmão Ed.,
1907, vol II, pp. 5-55.
12
Cf. CALAFATE, Pedro, “A mundividência de Antonio Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op.
cit., p. 722.
13
VIEIRA, António, op. cit., vol III, p. 6.
15
A recusa de Cristo ao oferecimento do demônio põe em relevo, diz Vieira,
que a alma vale mais que qualquer poder. E o pregador estabelece uma analogia
entre a importância da salvação da alma e a recusa de Cristo do poder temporal.
Poder mundano e salvação da alma aparecem, assim, como pólos antitéticos.
Aponta ainda outra passagem bíblica que se refere a uma situação análoga: na
última ceia, Cristo se ajoelha para lavar os pés de Judas. Busca, assim, pela humildade e pelo exemplo sem palavras, demovê-lo da traição, salvar sua alma.
O sem preço da alma, quando comparada a qualquer bem mundano, é reiteradamente afirmado pelo jesuíta. Donde o escândalo: a banalização do valor
do homem, sujeito espiritual, vendido em terra brasileira. Essa banalização está
associada ao pecado da venda da própria alma por ganância e busca de lucro;
mais escravo é, para Vieira, quem compra o índio ou o negro, do que o próprio
escravo: ao comprar um ser humano, o comprador simultaneamente se escraviza
ao demônio, à corrupção e à injustiça.
Evocando a passagem bíblica, que narra a punição do faraó egípcio com pragas e danos por se recusar a libertar os judeus de um cativeiro injusto, Vieira estabelece um paralelo entre a punição do faraó e a punição do povo do Maranhão,
acometido por pragas, fome e invasão, retribuição divina da escravidão injusta
dos índios.
A liberdade é dom de Deus aos homens; não implica merecimento da parte
daqueles que a recebem. É, pois, escandaloso o cativeiro, dado que a condição
natural do homem é a liberdade. Apontando como causas de procura por escravos: a ambição e a cobiça de riquezas obtidas à custa da indignidade imposta ao
outro, o pregador condena a preguiça, a ignorância, a brutalidade dos colonos
em relação aos índios.
Desmontando, com uma lógica impecável, os argumentos dos fazendeiros e
colonos a favor da escravidão, Vieira exalta o valor do trabalho, do esforço para
ganhar a vida e obter o próprio sustento, evocando Cristo como modelo paradigmático do trabalhador, que em vez de viver do sangue e suor alheios, obtém,
com seu esforço, o necessário para si e para os seus. Exorta, assim os colonos a
trabalharem para viver, em vez de explorarem o trabalho dos índios.
Às ponderações de que os escravos índios eram tratados como filhos e que
tinham tão boas relações com seus donos que estes lhes atribuíram criar os próprios filhos; que libertá-los seria como decepar uma parte do corpo dos senhores, Vieira responde que é melhor perder riquezas, que a alma.
Assim, o pregador critica duramente a hipocrisia e a ambição que falseavam
as relações, edulcorando-as. Mostra que os índios são forçados a sair de um estado de liberdade em que viviam, nas aldeias e no sertão e obrigados a ir para
as cidades, onde são vendidos. Afirma ainda que só seria lícito mantê-los como
serviçais, se estes escolhessem ficar nas cidades e trabalhar. Caso contrário, de-
16
veriam ser encaminhados a outro lugar, tendo sempre o trabalho pago. O missionário repetidamente põe em relevo a necessidade de o trabalho ser pago e não
escravo; de não ser excessivo, possibilitando tempo livre de que o índio poderia
dispor como quisesse.
Ou seja, Vieira: a) reconhece a necessidade da convivência entre colonizadores e nativos; b) percebe a importância da colaboração dos índios para que a
colonização seja possível; c) concorda com a necessidade da aculturação, meio
para se obter a convivência pacífica e tornar possível a evangelização, objetivo
último da presença dos missionários no país.
Invocando o tema da guerra justa, já abordado no século XVI por Vitória,
Vieira admite a escravidão, nos seguintes casos: a) de todos os que, cativos, viviam à espera de ser devorados pelos índios. Resgatados, a morte seria comutada
em prisão perpétua, caso tivessem sido aprisionados em guerra justa; b) de todos
os que tivessem sido vendidos como escravos por seus inimigos, desde que satisfeita a condição anterior. E para avaliar se a guerra podia ser considerada justa,
seriam chamados a opinar os governadores, os vigários e autoridades constituídas. Caso a guerra não fosse justa, os prisioneiros seriam libertados, passando
a viver em aldeias e trabalhando mediante pagamento metade do ano, tendo a
outra metade livre, para cuidar de suas terras e famílias.
Mesmo pagando, o custo do trabalho dos nativos seria baixo, de modo que a
objeção levantada pelos colonos de que o trabalho pago implicaria em pesados
sacrifícios, é descartada pelo missionário.
Os argumentos de Vieira contra a escravidão fundam-se numa ética do respeito ao ser humano como pessoa, ser espiritual. Afasta, desse modo, a injustiça
e a crueldade no trato com os mais frágeis, advertindo severamente os cristãos e
exortando-os a viver de acordo com os princípios religiosos que assumiram.
No entender do missionário, essa atitude, além de ética, é política: possibilita
aproximação pacífica e colaboração entre índios e colonizadores, de um lado; de
outro, resguarda a autoridade do rei, cujo dever é ser o guardião da justiça, proibindo a ilicitude no trato com os nativos. Daí o pensador dizer: “El-rei poderá
mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá
sua jurisdição” (ibid., vol. III, p. 21). Quer dizer: o rei não tem autoridade para
decretar o ilícito.
Caso a proposta seja lícita – isto é, caso não transforme homens livres em
escravos – tudo convergirá para a ajuda recíproca e, visando o bem de todos, terá
o favor de Deus, “Autor do bem”.
A palavra de Vieira, no sermão, é dura, direta, de advertência contra o mal e
de reprovação dos vícios: ambição, cobiça, preguiça, falta de generosidade e de
compaixão.
17
No belíssimo Sermão de Santo Antonio, pregado no ano seguinte no Maranhão, a linguagem se abranda. O pregador recorre a metáforas e analogias pondo
em paralelo sua situação e a história de Santo Antonio, o qual, não ouvido por
seus contemporâneos, faz-se ao mar e vai pregar aos peixes. Diz a lenda que, por
milagre, os seres marinhos teriam acorrido para ouvir o Santo.
Como Santo Antonio, Vieira faz um sermão dirigindo-se aos peixes. Desse
modo, louva virtudes e critica vícios dos seus contemporâneos, aparentando falar aos peixes.
A grande virtude desses animais, segundo o pregador, foi a de terem sido
bons ouvintes; seus vícios: comerem-se uns aos outros. Analogamente, os homens de entredevoram por soberba, vingança, cobiça, crueldade, sensualidade.
A superação dos vícios dá-se através da busca do bem comum, fazendo-o
prevalecer “contra o apetite particular de cada um” (ibid., vol VII, p. 243); dáse também pelo exercício da humildade, medindo o próprio valor na ótica da
divindade, que a todos e a tudo supera. A insignificância do homem perante
a grandeza de Deus, assim reconhecida, funcionaria como um antídoto para a
soberba.
A ética, em Vieira, é sempre uma ética das virtudes, pensada à luz da finalidade transcendente da vida humana.
E é na perspectiva da dupla dimensão da vida humana: vida no mundo, com
os outros, levando em conta o valor do homem e da liberdade; vida em vista da
finalidade última do homem: o encontro com Deus, a salvação da alma – que o
pregador considera o problema da escravidão dos índios e a ética da colonização.
É no Sermão da Epifania (ibid., vol. II, pp. 5-55), pregado na Europa, que
sua reflexão leva às últimas conseqüências o binário: evangelização-proteção dos
índios. Nesse sermão ressoam a valorização mítica da América como o lugar
da utopia, do novo tempo, da nova época na qual ocorreria a cristianização do
mundo.
Caberia aos portugueses a criação de uma nova igreja, mais universal, instaurando, num mundo mais amplo, “a luz do Evangelho e o conhecimento de
Cristo” (ibid., p. 13). Nessa tarefa, as ordens religiosas teriam um papel central.
Mas o projeto luminoso, a afirmação do sagrado, da conversão e da liberdade,
foi desvirtuado. Vieira prega na Europa, expulso do Brasil com outros jesuítas,
por defender os índios, por criticar a ambição e a avareza dos colonos, por recusar a escravidão de homens livres, por denunciar a exploração dos mais frágeis,
o fechamento de claustros, a profanação das igrejas.
O tema da evangelização e da proteção aos índios esbarra na problemática
característica do tempo de Vieira. Os costumes bárbaros dos “gentios” – e o pre-
18
gador se refere explicitamente à antropofagia (ibid., vol II, Sermão da Epifania,
p. 20) – podem ser amenizados, uma vez que as “feras”, os “brutos”, “acolhem” e
“veneram” os padres pela diligência, solicitude, serviço e cuidado que estes têm
em relação aos naturais da terra.
Associando o trabalho dos jesuítas ao da estrela que guiou os magos, reis
“infiéis” e “idólatras”, até o Cristo; comparando esse trabalho ao do bom pastor,
que vigia e protege seu rebanho; estabelecendo analogias entre a conversão da
Arábia e da Mesopotâmia, metafóricamente representadas pelos negros, e a conversão da América, representada pelos índios, Vieira assinala a enormidade da
nova missão.
Tratava-se de converter gentios, vivendo em condições precárias, numa terra
sem fé, sem lei, de gente inculta e paupérrima.
Gente tão rústica, que “uma árvore lhe dá o vestido e o sustento, e as armas,
a casa, a embarcação”, pois “com as folhas se cobrem, com o fruto se sustentam,
com os ramos se armam, com o tronco se abrigam e sobre a casca navegam”.
Para os jesuítas, ir para a América era abandonar conforto, honras e buscar o
Cristo na pobreza extrema das novas terras. Era aprender, visando a persuasão e
o diálogo, línguas bárbaras num curto espaço de tempo. Era, por seus cuidados
com os índios, alcançar a estima e afeição destes.
A esse trabalho imenso de conversão, de pacificação, os portugueses se opuseram: os próprios cristãos, movidos por cobiça, em vista da exploração escrava,
expulsaram os padres que denunciavam suas injustiças.
O sermão mostra, no Brasil da época, uma ruptura profunda entre a Igreja
e o Estado, entre os pregadores e os colonos. E diz Vieira: “não é esse o governo
de Cristo”14, não é possível separar ética e política, razão cristã e interesses da
comunidade.
É preciso que quem converta possa defender; e que a ação dos missionários
favoreça não o lucro de alguns, mas o rei – que teria mais vassalos – e a Cristo,
que contaria com mais almas salvas.
Denunciando a torpeza dos colonos, afirma que estes não só expulsaram os
padres, mas também “maquinaram contra o rei” (ibid., p. 40 e segs), associando
a sua presença na América à morte e ao sangue de homens inocentes, destruindo
igrejas, hospitais e toda a ação pacificadora e protetora dos missionários. A expectativa dos colonos, de que a evangelização servisse para a captura dos índios
e favorecesse a sua completa submissão à condição de escravos, é mostrada por
Vieira como absurda e escandalosa. Suporia que os missionários consentissem
que os índios perdessem “a pátria (...), a soberania (...) a liberdade” (ibid., p. 41)
e ainda mais: que os padres os persuadissem a perdê-las. Pedro Calafate assinala
Id., ibid., p. 32. Podemos assinalar aqui uma semelhança entre a afirmação de Vieira e a de Las
Casas: “O cristianismo não se impõe pela força” (cf. n. 4, p. 6).
14
19
que Vieira é “o crítico mordaz e impiedoso da tirania e da corrupção; a finalidade
do poder [para o jesuíta] é o bem comum, alcançado no respeito pela dignidade
ética da pessoa humana, na justiça como fundamento da comunidade política,
e na afirmação da igualdade substancial entre todos os homens, cristãos, índios,
negros, asiáticos ou judus, igualdade fundada na paternidade divina”15.
Apesar dessas dificuldades apontadas, o pregador,no Sermão da Epifania,
propõe, não o impedimento da colonização, mas remédio aos males dela decorrentes. E os três remédios que elenca, os caminhos que sugere à realeza, para a
reinstauração da justiça em terras brasileiras, são os seguintes: o primeiro, que
a nova terra seja povoada por indivíduos de boa conduta ética e não por criminosos, de modo que o bom exemplo facilite a conversão; o segundo, que sejam
mandados muitos padres para o Brasil, de modo a superar o obscurantismo e a
ignorância reinantes, pois “quem não tem luz, não pode guiar; quem não tem
espírito não pode converter” (op. cit., vol. II, p. 53); o terceiro, consiste no efetivo
cuidado com os novos convertidos: tratamento justo, garantias de sua liberdade,
paz e segurança.
É dever do rei promover a justiça, “procurar efetivamente a conversão e salvação dos gentios” (ibid., p. 55). Esse dever se estende a todo o reino, a todos os
portugueses, posto que a colonização foi concedida pelos Papas visando a propagação da fé16. Daí o pregador propor a direta intervenção do rei, possibilitando o
retorno dos jesuítas ao Brasil e garantindo a proteção aos índios.
A perspectiva de Vieira tem pontos de analogia, como dissemos, com os mais
ilustres pensadores que o precederam. Algumas das teses, como a “colonização
justa”, defendida por Vieira, já se acham presentes em mestres como Francisco de
Vitória, já no século XVI. Para este, o poder político, para ser legítimo, deve estar
fundado na busca do bem comum. Assim, a colonização só é legítima em nome
da livre comunicação e circulação dos homens no mundo, pátria comum de todos os humanos. A barbárie dos índios não anula sua dimensão humana, só os
torna mais vulneráveis à opressão e à injustiça de quem os escraviza. Finalmente,
a propaganda cristã é um direito e um dever dos europeus da época.
Podemos perceber, pelo que foi dito supra, que Vieira se inscreve na linhagem dos grandes estudiosos que tematizaram a ética da conquista da América,
exercendo, no horizonte do mundo luso-brasileiro, um papel comparável ao de
Vitória e de Las Casas no mundo hispânico.
Vieira compreende claramente as dificuldades da presença dos portugueses
no Brasil. Pouco numerosos, precisavam do apoio e da colaboração dos naturais
da terra para poderem se instalar num mundo selvagem, e aí habitar. Precisavam
CALAFATE, Pedro, “A mundividência de António Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op. cit.,
p. 721.
16
CALAFATE, Pedro, “A antropologia...”, in id., op. cit., p. 39 e segs.; p.722 e segs. Cf. também
BRAZ TEIXEIRA, António, op. cit., in CALAFATE, Pedro, op. cit., p. 656 e segs.
15
20
de colaboração pacífica e enfrentavam as dificuldades de comunicação – pois
ignoravam as línguas dos índios – e enfrentavam a primitividade e a barbárie de
alguns costumes, como, por exemplo, a antropofagia ritual dos inimigos.
O enorme esforço de aprendizagem de línguas indígenas, de instauração de
escolas e hospitais, de proteção dos mais frágeis, levado a efeito pelos jesuítas,
encontrou na palavra estupenda de Vieira sua celebração e sua defesa.
Uma última observação: a oratória de Vieira apóia-se numa hermenêutica
sacra, da qual assinalamos duas características: primeira, a narrativa bíblica é
utilizada como modelo inspirador da ação ética do homem no mundo, mediante
a interpretação dos eventos do tempo presente à luz dos paradigmas de ação
válida encontrados nas narrativas do texto religioso; segunda, o texto bíblico
narra exemplos de atuação providencial de Deus na história, orientando o agir
humano numa via salvífica que abarca a humanidade como um todo, para além
das diferenças evidentes de estruturação da vida social, cultura, raça, etc., que
opõem os diferentes povos.
Para nosso autor, o homem é pessoa, dotado de razão e alma e a liberdade é
seu apanágio fundamental.
Na nova etapa da vida mundial em que nos encontramos, na qual se faz urgente o diálogo e o entendimento entre povos de diversas culturas, confissões
religiosas, raças e perspectivas, o verbo iluminado e o exemplo de Vieira, com
todas as limitações que sua época e seu tempo impuseram à sua reflexão, permanece um marco em direção a um mundo futuro de convivência e liberdade, que
ainda buscamos.
21
22
Vieira e Las Casas: a questão indígena
A afirmação de Vieira dos direitos dos índios inscreve-se na linhagem do debate
que o precedeu, em que a Escola de Salamanca desempenhou papel crucial.
O “século de Ouro” do pensamento espanhol, que se desenrola do século XVI
até a primeira parte do século XVII, foi palco do embate de idéias entre aristotélicos tradicionalistas, dos quais Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) é um dos
representantes, e a Escola de Salamanca da qual Francisco de Vitória (1480-1546),
Francisco Suárez (1548-1617) e Luiz de León (1528-1591), foram os expoentes.
Amigo de Francisco de Vitória. Las Casas se inscreve nas hostes dos religiosos
que, entre 1511, até 1550, se ocuparam da questão ética da conquista. Entre 1511
e 1534, sucessivas denúncias de abusos acompanharam a colonização espanhola:
Fr. António de Montesinos, Fr. Alonso de Loyosa, entre outros dominicanos, e
o bispo Juan de Quevedo, precederam Las Casas na sua atuação. Reiteraram a
exigência de uma ética que orientasse a presença e ação dos colonizadores na
América, bem como a exigência da salvaguarda da liberdade dos índios. O fulcro
da discussão é o tema da guerra justa. Ou seja, trata-se de responder à questão: em
que condições a guerra contra os índios pode ser considerada justa? Respondem:
quando os índios transgredirem o direito natural; quando a finalidade missionária
o impuser, quando for necessário aumentar o número de vassalos do imperador;
quando os chefes índios convertidos forem infiéis à Igreja. Vivendo em atraso
cultural, os índios precisariam ser governados pelos mais evoluídos, de modo a
facilitar a evangelização.
Entre 1511 e 1548, contudo, sistematicamente foram feitas denúncias contra os
abusos dos conquistadores. E se alguns autores consideram a conquista eticamente
lícita, outros, como Las Casas, a vêem como “ilícita (injusta, tirânica), porque
sua regulação legal vigente se opõe aos princípios éticos do direito natural...”17.
Assim, Las Casas propõe “a supressão das conquistas e sua substituição pela (...)
‘penetração pacífica’...”, o tratamento amistoso dos índios.
As teses de Sepúlveda, apoiadas na ética, na política e nas constituições de
Aristóteles, são libelo contra o pacifismo e afirmação do direito dos civilizados
de “submeterem, pela força, as nações atrasadas e, em consequência (...) [a afirmação] de que a guerra contra os índios é plenamente legítima...”18, assim como
sua escravização.
17
18
VV.AA., La Ética en la conquista de América, Madri, CSIC, 1984, p. 162.
GUY, A., Histoire de la philosophie espagnole, APLTTM, Toulouse, 1983, p. 63.
23
A Escola de Salamanca caracterizou-se pelo fecundo diálogo entre o tomismo
e o Renascimento; foi centro irradiador de cultura, desde o século XV, tornandose, no Século de Ouro, o grande polo da Escolástica espanhola. O eixo em tomo
do qual, no século XVI, essa Escola gira, é a obra de Francisco de Vitória, cujos
trabalhos, no campo ético-jurídico, serão especialmente importantes e originais. Na
polêmica com Sepúlveda, após a condenação, em 1548, das teses deste último pelas
Universidades de Salamanca e Alcalá, Las Casas apoia-se nas idéias de Vitória.
Francisco de Vitória pronuncia-se, pela primeira vez, entre 1535 e 1536, afirmando o direito dos índios à liberdade, à igualdade, à posse de bens e à escolha
de ocupação e governo, uma vez que constituem comunidades autônomas. Para
Vitória, a barbárie dos índios não os faz perder seus direitos como homens, pois,
a seu ver, o Imperador não é o senhor do mundo, nem o Papa tem poder temporal sobre pagãos. O não-reconhecimento do valor do cristianismo, por parte
dos índios, não autoriza os cristãos a escravizá-los ou matá-los. A barbárie é
remediável pela educação, pois todos os homens são iguais. Afirmando a igualdade essencial das raças, e distinguindo entre diferença cultural e subordinação
cultural, Vitória denuncia o etnocentrismo subjacente à dominação desses povos
e considera ilícita sua expropriação. Antecipando as teses de Lévy-Strauss, e da
escola fenomenológica, Vitória assinala que o pensamento indígena expõe uma
das modalidades da razão humana; é diverso do nosso, mas ainda razão: “Esta
racionalidade é indicada pela sua cultura, definida objetivamente pelas obras e
instituições dos índios”19. O pensador sugere a evangelização pela não-violência,
e levanta o problema da justiça e liceidade da guerra colonial. O modo inovador
de Vitória encarar a colonização está expresso na denúncia da injustiça de guerra
colonial, na condenação do racismo e do etnocentrismo. Afirma que a soberania
papal e régia vale apenas para os cristãos; no que diz respeito aos povos das novas terras, estes não são vassalos nem submetidos ao Papa: “a tese defendida por
Vitória é que nem no direito natural nem no direito positivo (...) se encontra uma
base firme para um poder universal do imperador” (op. cit., p. 355). Somente no
caso de uma livre eleição da soberania espanhola e da aceitação do cristianismo,
poderiam os índios ser constrangidos à obediência; caso contrário, fazer guerra
contra eles, é injusto e viola os direitos elementares.
Os espanhóis teriam, a seu ver, direito de estar na América, porque a terra, o ar,
são propriedades comuns de todos os homens. Os colonizadores podem intervir,
para defender e proteger inocentes, caso os Índios os matassem; podem também
defender aliados, amigos e convertidos dos não-convertidos. A colonização se
justificaria se promovesse e protegesse os índios, se oferecesse a livre escolha de
novos soberanos, se facilitasse o comércio, a evangelização, a cristianização. Nessas
condições, a presença dos europeus na América seria lícita.
VV. AA., Penseurs hétérodoxes du monde hispanique, Toulouse, Univ. de Toulouse-le-Mirail,
1974, p. 100.
19
24
Entre 1531 e 1549, vários missionários denunciaram os abusos dos conquistadores. Dentre eles, o amigo de Vitória, Las Casas, assinala a injustiça da guerra
contra os índios, a sua escravização e a ocupação de seu território. Denunciando
a conquista como eticamente ilícita, a partir dos princípios éticos do direito dos
povos, propõe a evangelização sem armas, a cargo da Igreja. Insiste, de modo análogo a Vitória, “na identidade da condição humana, ultrapassando a diversidade
de culturas” (op. cit., p. 96).
Quatro anos após a morte de Vitória, Las Casas e Sepúlveda se confrontam
em longo debate.
Expressava esse debate a polarização de duas tendências éticas: a ética da
força, por parte do colonizador, como “instrumento legítimo e necessário para a
pacificação e plena incorporação do índio ao império” (op. cit., p. 233) e a ética
da evangelização pacífica, como “único instrumento legítimo e necessário para a
livre conversão e a plena incorporação do índio à Igreja”. Na primeira perspectiva,
achava-se Sepúlveda, humanista, historiador e teólogo a serviço de Carlos V; na
segunda. Las Casas, missionário dominicano, bispo de Chiapa e historiador das
índias, amigo de Francisco de Vitória – este, antigo professor de Paris, Valladolid
e expoente da Escola de Salamanca: “Sepúlveda sustenta que é preciso salvar
os índios – inclusive à força e contra sua vontade – da terrível barbárie que os
esmaga como indivíduos e povos. E que para alcançar esse objetivo, a justiça e a
caridade fraterna nos obrigam a utilizar todos os meios necessários, inclusive os
da violência institucional” (op. cit., p. 236).
Las Casas, contrapondo à tese do índio bárbaro o bom selvagem, que não
podia ser considerado como rebelde e passível de submissão pela força, uma vez
que não era súdito do rei; que não podia ser considerado como herege ou infiel,
porque previamente não era cristão – foi “o teólogo-jurista espanhol do século de
ouro que mais profunda, expressa e radicalmente reafirmou o direito à autonomia, à auto-determinação e à plena independência, do índio e de seus senhores
naturais, em todas as ordens da liberdade política, cultural, sócio-econômica
e inclusive estritamente religiosa (liberdade de consciência, de religião e de
culto)” (op. cit, p. 272).
Em vez de enfatizar os direitos dos colonizadores, Las Casas acentuou os
deveres do Velho Mundo em relação aos índios, denunciando a tentação do
poder. Tratava-se de implantai’ o Reino de Deus na terra, mediante a luta pêlos
direitos humanos (id., p. 281).
As posições de Vitória e Las Casas foram objeto de ampla discussão nas
Universidades da época. Em Portugal, Évora e Coimbra mantiveram estreito
contato com a Universidade de Salamanca, no século XVI. Em Coimbra, Martin
de Ledesma (1509-1574) questiona o poder temporal do Papa sobre o mundo
e a liceidade da guerra de conquista; Antônio de Sto. Domingo, assim como
25
Fernando Pérez e Pedro Barbosa, discutem o problema da escravidão e as condições da guerra justa. Na Universidade de Évora, destaca-se a atuação de Luis
de Molina (1535-1600), afirmando o direito à liberdade de crença e discutindo,
como também Pedro Simões, as condições da guerra justa.
As idéias de Vitória floresciam plenamente “na Universidade, Colégio Real
e Colégio de Coimbra, na Universidade e Colégio da Companhia de Jesus em
Évora e no Colégio de S. Bento, em Lisboa”; nesses centros, eram formados os
religiosos que depois “iam pregar nas índias Orientais e Ocidentais portuguesas”
(op. cit., pp. 476-477).
Para Molina, “são legítimos os escravos provenientes de uma região onde se
saiba que os portugueses fizeram uma guerra justa; os escravos de direito penal;
os condenados à morte resgatados; e, ainda, os escravos que, quando eram livres,
se venderam a si próprios, e aqueles que foram vendidos por seus pais”20.
Vieira é a figura dominante do século XVII português. Entre 1653 e 1694, desenvolveu no Brasil uma intensa atividade missionária, convertendo maciçamente
os índios. Tratava-se de proteger os nativos, impedindo sua escravidão, e o jesuíta
o fez, pronunciando sermões, escrevendo cartas, exercendo a diplomacia. O tema
da “guerra justa” é retomado, associado ao exame das condições de legitimidade
de escravidão e do tratamento dispensado aos índios, pêlos colonizadores. Nas
suas cartas, acolhe como legítima a escravidão dos índios aprisionados em guerra
justa; a dos que fossem malfeitores, a dos que não cumprissem seus deveres como
súditos do rei, a dos que fossem antropófagos, a dos que auxiliassem os inimigos, a
dos que impedissem a divulgação do Evangelho e a dos já escravizados por outros
índios (op. cit., pp. 23-24).
Na verdade, o que Vieira buscava era a progressiva substituição do poder dos
colonizadores sobre os índios, pela proteção das ordens religiosas, que mediariam as relações entre ambos (ibid., p. 27 e segs). Procura, então, levar os índios
a aceitarem a soberania do rei de Portugal, comprometendo-se a respeitar a paz
com os portugueses e, se convertidos, a serem fiéis ao cristianismo. Entretanto, o
jesuíta esbarrou, como Las Casas, no conflito com os colonos, que não queriam
desfazer-se de seus escravos.
O tema da guerra justa pode levar-nos a compreender, em Vieira, a coexistência,
de um lado, da luta pela liberdade dos nativos e de outro, a aceitação da escravidão
dos negros. Na perspectiva de Luís de Molina, por exemplo (op. cit., p. 64 e segs),
a escravatura é considerada lícita se resultado de uma “guerra justa” defensiva,
e que possibilite aos missionários o exercício de seu ministério. A guerra contra
a África negra, contra os muçulmanos, garantia a legitimidade da escravatura
negra; nessa perspectiva inscreve-se também Las Casas. No caso da América, a
situação era diversa: os índios não eram inimigos, não se opunham aos cristãos,
não eram infiéis: sua escravização era, pois, ilícita.
20
SARAIVA, A. J., História e Utopia, Lisboa, ICALP, 1992, p. 67.
26
Vieira adota essa perspectiva, em parte. No século XVII, chegou a sugerir
“a substituição dos escravos índios por escravos negros importados de Angola”
(ibid., p. 55). Aceita, no entanto, valorizá-los como membros da Igreja, desde que
balizados. Trata, mesmo, da vantagem da vida, apesar de escrava, caso o negro
aceite o cristianismo: embora prisioneiro e arrancado de seu país, pode abrir-se
à salvação. Compara os sofrimentos dos negros com os de Cristo e chega mesmo
a dizer que os negros são “bem-aventurados”, se souberem reconhecer, no seu
estado, “a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança” e aproveitarem, na sua miséria a ocasião de santificação21. Em sermões, o padre chama-os
de “irmãos pretos”, assinalando que o cativeiro do corpo não submete a alma e
que, por misteriosos desígnios de Deus, o cativeiro pode dar acesso à fé cristã: “Os
escravos devem aceitar a sua situação como um meio de salvação” (ibid., pp. 6061). Vieira lembra, contudo, aos senhores, a necessidade de tratarem os escravos
com humanidade, dado que todos os homens são livres, por natureza.
Fernando Cristóvão22 mostra Vieira como um homem do seu tempo, lutando
contra a escravização dos índios, mas sem consciência clara da contradição entre a idéia de que todos os homens têm direito natural à liberdade e a prática da
escravatura decorrente da guerra justa. Na mesma perspectiva, inscrevia-se Las
Casas, no século anterior23.
Vieira, no entanto, nos seus sermões, já sugere “uma escalada para a libertação”,
em três etapas, conforme assinala Fernando Cristóvão (op. cit., p. 393): a primeira,
distinguindo a escravidão justa da injusta, ressalva a necessidade de atenção aos
direitos espirituais dos escravos e condena os maus tratos a eles; a segunda, afirma
o direito natural de todos os homens à liberdade; a terceira, enfatiza o papel da
Igreja na libertação dos escravos convertidos, que culminou, dois séculos depois,
na abolição.
Paulo Borges24 vincula a atuação de Vieira à sua compreensão filosófica e
messiânica da história, na qual os missionários teriam um papel decisivo no que
diz respeito à conversão universal, que favorecerá a generalização dos dons do
Espírito. Nessa perspectiva é que deve ser compreendida a tarefa de proteção e
conversão dos índios, a conversão dos negros e a afirmação de que “os homens de
qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem
e adoram a Cristo”25.
Em resumo, pode-se dizer que entre os séculos XVI e XVII, Vitória, Las Casas
e Vieira foram, na Espanha e em Portugal, os expoentes de uma decisiva mudança
VIEIRA, A., in SARAIVA, op. cit., p. 57.
CRISTÓVÃO, F., “O Padre Antônio Vieira e a escravatura dos negros”, in Cruzeiro do Sul, a Norte,
Lisboa, INCM, 1983.
23
Cf. op. cit., p. 384; cf. também VV.AA., Penseurs hétérodoxes du Monde Hispanique, p. 108, nota 90.
24
BORGES, P., A Plenificação da História em Pe. António Vieira, Lisboa, INCM, 1995, p. 188 e segs.
25
VIEIRA, A. Sermões, 4, pp. 509-537, in BORGES, P., op. cit., p. 197.
21
22
27
de consciência. Os pontos axiais de sua meditação ética envolveram a discussão das
condições da justiça quando em guerra e da liberdade da contraposição barbáriecivilização. Questionaram o direito de os mais civilizados imporem, pela força, seu
modo de viver e seu império às nações mais atrasadas; questionaram a escravidão
fundada em diferenças de cultura; abriram caminho-sobretudo Las Casas e Vieira – para a discussão contemporânea da tolerância e da convivência pacífica da
pluralidade de culturas, abalando o etnocentrismo então vigente. Privilegiando
a persuasão e a evangelização pacífica, a conversão pelo exemplo, assinalaram a
primazia da paz sobre a guerra, da palavra sobre a violência. A importância do
que semearam talvez só possa começar a ser medido no nosso século, onde a
afirmação dos direitos humanos, da tolerância, da responsabilidade em relação à
humanidade como um todo, assume o primeiro plano das discussões.
28
As Reflexões de Matias Aires
O Brasil do século XVIII é o Brasil das bandeiras: a conquista do sertão e a
procura das riquezas alia-se à expan­são política, artística e literária.
A aventura da conquista da terra está sincronizada com a aventura no plano
intelectual e político – é o século das academias, onde poetas e prosadores se reunem para ler seus trabalhos e discutir as novas idéias que marcam os caminhos
da Europa: as obras de Voltaire e de Rousseau inspirando as idéias revolucionárias da Inconfidência Mineira.
Êste movimento expansionista, que toma impulso a par­tir do segundo quartel do século XVIII, no início do mesmo estava apenas esboçado. Na província
de São Paulo, os je­suítas ensinavam a tradicional filosofia escolástica, dando aos
seus alunos uma formação humanística e o estudo apro­fundado do grego e latim; havia pouca sensibilidade aos problemas sociais e políticos do século.
Nêste contexto nasceu Matias Aires Ramos da Silva Eça, em 1705, em São
Paulo; foi o primeiro brasileiro a escrever uma obra original de filosofia, na qual
reflete a formação que teve com os jesuítas, desenvolvendo um forte espírito
crítico.
Em 1722 está em Coimbra, onde recebeu o título de “Licenciado em Artes”.
Abandonando a faculdade, dedicou-se a aprofundar o estudo de autores grecoromanos; algum tempo depois, foi para a França, onde tomou contato com as
ciências naturais, matemáticas e hebráico e com as gran­des correntes filosóficas
da época.
A Europa de 1730 é pura efervescência: morre uma con­cepção do mundo
para emergir outra; em todos os campos do saber – filosofia, matemáticas, física,
étc. – surgem novos valôres que substituem os antigos. É a decadência da filosofia escolástica, sob influência do racionalismo inspirado em Descartes, Malebranche, Leibniz, Spinoza e a publicação das obras de Voltaire e da Enciclopédia
dirigida por D’Alem­bert e Diderot. Na Academia de Ciências de Paris predomi­
nam as matemáticas e a física de Newton.
Em Portugal – onde Matias Aires se retirou para viver, gozando enorme fortuna herdada do pai, na côrte de D. José I – o clima é o mesmo: o Marquês de
Pombal expulsou os jesuítas da terra, passando a favorecer a Ordem dos Orato­
rianos, mais preocupada com a filosofia do tempo que com a tradicional escolástica.
29
Nesta época Matias Aires começa a elaborar o seu livro: Reflexões sôbre a Vaidade dos Homens26. A obra tem um duplo interêsse: é sensível à problemática do
tempo, porque nela são abordados algumas questões a que os filó­sofos do século
XVIII vão dar muita importância: os temas relativos ao relacionamento homemsociedade, ao direito divino dos reis, à decadência da nobreza puramente heredi­
tária e a conseqüente valorização da aristocracia, conceito que desde o século
XVII começara a se afirmar como depen­dente do sangue, da posição econômica
e, principalmente, das virtudes individuais, por oposição à nobreza – aparecem
em seu livro, considerados sob o ponto de vista moral. As Reflexões... são reflexões morais. O segundo aspecto in­teressante do livro reside no distanciamento
crítico, no olhar agudo e implacável, com que o filósofo encara o mundo da
época. Nesta face de Matias Aires percebemos claramente a repercussão profunda da formação humanística que teve com os jesuítas – um certo desdém pelas
inquietações sociais e revolucionárias da época, uma recusa de hipervalorizar a
razão, mestra do século, e a centralização do interêsse no homem e no seu valor
ético. É o ser humano, dividido entre o amor, fôrça espiritual, e as paixões, das
quais a prin­cipal é a vaidade, que vai ser a preocupação fundamental de Matias
Aires.
O ponto de partida para elaborar sua filosofia é a refle­xão sôbre a vaidade, que
leva o homem a preocupar-se apenas com a aparência das coisas. Aqui, a palavra
vaidade tem um sentido muito amplo; não significa futilidade, preocupação com
coisas vãs, apenas, mas antes, amor-próprio, aprovação de si mesmo, dependência
da opinião alheia, engano, aceitação de opiniões errôneas, perda do sentido mais
profundo das coisas – tanto no plano do relacionamento interpessoal, quanto no
das ciências, pela exagerada importância atribuída à razão. A vaidade apresenta
um duplo movimento: a) nega­tivo, destruidor, quando é uma paixão da alma, um
vício do entendimento, e se opõe ao amor; b) construtivo, quando o impulso vaidoso serve para fundamentar e incitar a repre­sentação27 de atitudes de coragem,
sabedoria, obediência, virtude, e defender de vícios: deslealdade, ingratidão, etc.
A vaidade é pois uma paixão básica, sôbre a qual se constrói a vida humana.
Estabeleci o seguinte esquema gráfico para maior clareza:
Vaidade
Amor
Paixões
(movimento construtivo) (movimento destrutivo)
As vaidades podem, portanto, ser construtivas ou des­trutivas; quando são
construtivas, fundam-se no afeto, que em si mesmo é positivo, só se deturpando
1.a edição em 1752, em Lisboa.
Que são os homens mais do que aparências de teatro?”, Ref lexões sôbre a Vaidade dos
Homens, Ed. Martins, SP, s/d., p. 49.
26
27
30
pela orientação vai­dosa que recebe da inteligência; as vaidades destrutivas são as
vaidades da inteligência orgulhosa, que levam o homem a uma pseudo-sabedoria
e se reduzem a posturas pretensiosas.
As múltiplas vaidades que Matias Aires enumera podem, a meu ver, ser reduzidas a modalidades das vaidades positiva ou negativa, e distribuídas do seguinte
modo28:
A) Vaidades positivas ou construtivas
a) vaidade dos místicos – é a de se sentirem superiores aos outros por causa
das boas obras que realizam. É cons­trutiva, porque leva o homem a realizar benefícios aos outros e a si próprio;
b) vaidade da ascese – que Matias Aires distingue da vaidade dos místicos
– é a recusa do consôlo e procura da solidão para obter a admiração do
mundo. É construtiva porque pode conduzir a uma real ascese e porque
apresenta um modêlo de santidade que, mesmo não sendo subjetiva­mente
verdadeiro, o é, para todos os efeitos, aos olhos do não asceta, servindolhe de exemplo;
c) vaidade da honra – é a maior preocupação com a honra que com a vida:
em conseqüência, maior preocupação com a opinião ou conceito que os
outros têm da pessoa ou que a pessoa tem de si próprio que com a vida,
dom maior, existência no ser. É construtiva na medida em que apresenta
um código de conduta, orientado por certos valôres morais, que serve
para a grande maioria, permitindo, dêste modo, a vida em sociedade;
d) vaidade da ação heróica – é o desejo de imortalidade, pelas ações valorosas. É uma vaidade inútil, porque, como diz Matias Aires, sempre houve
combates e batalhas, ven­cidos e vencedores, na história no mundo. Pouco
sabemos, no entanto, das maiores civilizações e seus heróis – no mun­do
tudo é fluxo, tudo está em contínua mudança, e os feitos se perdem num
contôrno nebuloso e pouco preciso29. É uma vaidade construtiva, porque
leva os homens a realizarem obra civilizadora;
e) vaidade do reconhecimento – é a daquêles que por confessarem o recebimento de um benefício, já consideram paga a dívida pela própria confissão. É construtiva, porque torna público o merecimento de alguém;
f) vaidade da origem – surgiu da distinção entre o sangue vil e o sangue
nobre, fundada não no sangue, mas no dinheiro. A vaidade da nobreza
é a vaidade do luxo, é uma superstição formada de muitas vaidades. O
Tr at a - s e, é cl aro, ap e nas de u ma te nt at iv a de siste mat i z ar o te x to assistemático de M. Aires, que apresenta, no livro todo, uma sucessão pouco ordenada de
ref lexões mais ou menos no estilo das máximas de L a Rochefou­c auld. Indicarei
justificativas que me levaram a colocar certas vaidades como positivas.
29
Diz Matias Aires: “O s m o n u m e n t o s , q u e f a z e m d a H i s t ó r i a a m a i o r p a r t e e a
m a i s visível, não só se estragam mas desaparecem e de tal sorte que nem os vestígios deixariam por onde ao menos lhes recordemos as ruínas. Não têm mais duração as cinzas dos heróis...”, op. cit., p. 50.
28
31
sangue de todos os homens é igual, e as distinções estabelecidas entre
sangue vil e nobre são pura vaidade. A nobreza é vã enquanto se funda
em mitos, brasões e só pode merecer respeito, diz Matias Aires, quando
é uma nobreza resultante da nobreza das ações. Neste caso, é qualidade
pessoal, não hereditária, e depende do heroísmo de cada um. A vaidade
da origem é uma vaidade construtiva enquanto fôr uma primeira sugestão, através das lendas, brazões e mitos do passado heróico, para a nobreza
fundada na virtude individual e no espírito, conquistada pouco a pouco
em cada um;
g) vaidade do conquistador – é a daquêle que procura reunir, sob suas ordens, tôdas as terras, homens e países, como se apenas nêle estivesse
plenamente realizada a natu­reza humana, cabendo-lhe, dêste modo, por
direito, o domínio do mundo. É construtiva porque permite a unificação de povos diferentes, promovendo a fecundação recíproca de cul­turas,
enriquecendo-as;
As vaidades positivas, embora subjetivamente não sejam virtudes, têm a
possibilidade de apresentar certos valôres e certos modelos de conduta
virtuosa perfeitamente aceitáveis como tais.
B) Vaidades negativas ou destrutivas – são as se­guintes:
a) vaidade da sabedoria – é a daquêles que acreditam saber mais que os
outros, enganando-se, porque “o que bus­cam é a utilidade e o aplauso”
(ibid., p. 175) e o seu valor se mede pela extensão e não pela qualidade
das obras que escrevem. Além disso, “o que a ciência nos traz é sabermos
errar com método” (ibid., p. 166) – isto se prova pelo desacôrdo entre os
filósofos e entre os sábios em geral. Por outro lado, não conhecemos as
coisas tais quais elas são mas apenas os efeitos que produzem em nós. Por
isso, tôda ciência é vai­dade e se perde tentando compreender aquilo que
a inteli­gência não pode penetrar30.
b) vaidade dos letrados – que pode ser:
I. vaidade metafísica – quando tem por objetivo as discussões vãs, as opiniões mal fundadas mas que impres­sionam as pessoas não iniciadas nos
temas abordados;
II. vaidade da obstinação – é a de insistir no erro;
III.”vaidade de adquirir nome” – é a de mostrar-se sábio aos olhos dos outros; ostentação de ciência para obter reputação;
Talvez pudéss emos reconhecer aqui cer t a antecipação de Kant, bem como na
recusa de atribuir ao entendimento humano o conhecimento da coisa em si. A
valorização do amor, como meio de nos levar à comunhão com as coisas, talvez
possa indicar a mesma contraposição feita por Kant na Crítica da Razão Pura e na
Crítica da Razão Prática entre o entendimento – incapaz de levar ao conhecimento da
coisa em si – e a lei moral, fundada no afeto (imperativo categórico), que permitenos reconhecer a validade das idéias de Deus, Alma e Mundo corno Totalidade.
30
32
c) vaidade da certeza e da sutileza – nosso conhecimento das coisas é imperfeito e duvidoso, mas a vaidade não con­fessa a sua ignorância, fingindo saber tudo31. Prefere o êrro com aspecto requintado que a verdade
formulada tôscamente;
d) vaidade da malícia – preferência em ser tido como malicioso, porque a
malícia revela agudeza e inteligência, prevendo antecipadamente o mal;
e) vaidade da justiça – é a de parecer justo, sem ser;
f) vaidade de agir mal – as más ações também são me­moráveis, pela sua
gravidade, como as boas;
g) vaidade da ingratidão – ter recebido um benefício significa ter estado
numa posição inferior à de quem o fêz; portanto humilha e fere a vaidade.
Quanto à sua extensão, podemos dividir as vaidades em:
a) universais – são as que unificam os homens de um país, cidade ou nação
entre si;
b) particulares – são as próprias de cada indivíduo, dando origem às discórdias entre os homens32.
No progresso da vaidade é possível distinguir as seguintes etapas, deduzidas das Reflexões:
a) nascimento – estado sem vaidade, porque pré-refle­xivo;
b) estado de inocência – é a época da vaidade latente, não desenvolvida ainda. A alma não está preparada para receber as impressões da vaidade;
c)aparecimento da reflexão – princípio da vaidade, que se manifesta e desenvolve. Dura sempre, até o fim da vida e mesmo depois da morte procuramos eternizar-nos pelos tú­mulos suntuosos ou ações heróicas praticadas, que perduram na memória dos homens.
A vida social também está fundada na vaidade. O contato entre os homens faz
emergir a corrupção latente em todo homem, dando origem ao ódio, à soberba,
crueldade e inveja. A vaidade permite a estruturação da sociedade em diversas
camadas, estabelecendo a desigualdade entre os homens, porque é próprio da vaidade separar e distinguir as coisas que são semelhantes, ocultando o verdadeiro
ser. Por outro lado, permite a conservação da sociedade, porque faz os ho­mens interdependentes pelas opiniões e conceitos que emi­tem a respeito uns dos outros:
a vaidade do saber, a vaidade da lealdade, da reputação, etc., regulam suas ações.
A fonte das disputas e do ódio é a vaidade ofendida. Por isso “a vida civil se reduz
a um cerimonial, composto de genuflexões e de palavras” (ibid., p. 64).
Diz Matias Aires: “não vemos, nem buscamos os objetos, mas a sombra dêles”, op. cit., p. 59.
Diz Matias Aires: “A vaidade é de todo o mundo, de todo tempo, de tôdas as profis­sões e de todos
os estados”, op. cit., p. 76.
31
32
33
Os seres humanos são animados por um mesmo princí­pio, por isso sua forma
é semelhante, bem como suas paixões e vaidades. Estão situados num mesmo
mundo, a que todos têm direito, e sujeitos ao fluxo do tempo. A vida de cada um
é uma alternância constante de prazer e alegria – infelici­dade, dor. As diferenças
entre eles, dissemos, são estabeleci­das pela vaidade. Assim, o homem muda de
atitude, quando muda seu traje, porque tornou diferente o seu parecer. A vaidade
leva continuamente os homens a se identificarem não com o seu ser, revelando-o
no parecer, mas, antes, identificados com o parecer, confundem-no com o seu
próprio ser33.
Contudo, os reis, porque representantes da divindade, diferem, no entender
de Matias Aires, dos homens comuns no pensamento, esfôrço, grandeza. Sua
vaidade é justa, por­que ocupam um lugar sagrado. Dependem diretamente de
Deus, contràriamente aos outros homens, que dependem da aprovação da sociedade: é por ela que conservam sua digni­dade, reputação ou pôsto. Os verdadeiros reis são aquêles que enobrecem os homens; êste seu poder é concedido
por graça divina. Matias Aires considera os reis como sêres à parte, em contradição quase com as idéias que tem a respeito da vaidade dos homens. Talvez
isto se explique pela grande admiração que votava a D. José I – de Portugal, ou
pela crença, geralmente aceita em seu tempo, no direito divino dos reis. O rei
é a configuração do herói-sábio, que concilia, como entre os antigos, a virtude
e o poder.
Opondo-se a Platão, para quem os sábios devem reinar, Matias Aires afirma
que “os sábios da terra não são mais próprios para o govêrno dela”. Cruel e ímpio,
o cientista é capaz de dar ao erro uma aparência de verdade34.
Por isso, o poder, que na sua origem representava a divin­dade, tendo um caráter sagrado, na medida em que se difunde por uma hierarquia representativa
do govêrno, degenera, caindo na mão de cientistas, contaminados pela vaidade
da ciência, corruptos e em contínuo desacôrdo.
Trata ainda da vaidade em relação ao amor e à beleza. É difícil, diz o filósofo,
falar do amor, porque nos invade e domina totalmente, impedindo-nos de refletir com clareza. Não é comparável a outra coisa qualquer, por isso falamos do
amor sempre através de imagens, aproximativamente. Diverso das paixões, tem
um objeto corporal; é a fôrça con­servadora do mundo35, pois penetra todo ser,
33
Id., op. cit., p. 96: “a más cara, que encobre, f ica identif icada, e consubstancial à
coisa encoberta (...) e assim não olhamos para o homem; olhamos para aquilo que o cobre” (ibid.,
p. 122).
34
Id., ibid., p. 180. Par a M . Ai re s , o c i e nt ist a é i d ent if ic ado com o s of ist a e o rei
com o sábio verdadeiro, cujo poder é sagrado, participando da sabedoria infinita
de Deus. O rei é o símbolo do amor; o cientista é o símbolo da vaidade.
35
id., op. cit., p. 122: “ Tu d o e nt r a e m nó s ou p or fôrç a do amor, ou p or fôrç a d a
vaid a d e ; a quem a vaidade não vence, vence o amor”.
34
que é tanto mais perfeito quanto mais capaz de amor. É amável tudo aquilo que
nos causa admiração.
O amor pode ser:
a) medíocre – quando se ocupa do prazer dos sentidos e, nascendo da posse
do objeto amado, é um impulso quase instintivo, que pode ser saciado e
provocar uma certa inquie­tação ou dor. Depende sempre de outro ser;
b) sublime – quando é contemplação do objeto de amor, emergindo das
profundezas da alma e encontrando sua felicidade num plano puramente espiritual.
A infância é a idade do amor e da esperança, é puro entusiasmo pelas coisas.
Mudamos constantemente o objeto do nosso amor porque a todo momento estamos sendo dife­rentes do que fomos no anterior e êste puro movimento é vida.
Aqui vemos claramente o antigo princípio aristotélico: vida é movimento e o que
atrai nosso agir é um objeto amável.
O amor e a vaidade se apresentam como princípios opos­tos, mas profundamente interdependentes: “ama-se por vai­dade, e também por vaidade não se
ama” (ibid., p. 114).
Tratando da beleza, diz que o amor nasce da beleza e depende dela, para sua
duração e florescimento. Neste ponto Matias Aires não é muito claro, pois confunde a beleza com ser belo. É configurada num ser humano: daí o filósofo cha­
má-la de “soberba, vaidosa, ímpia e arrogante”. Certamente aqui não é criticada
a própria beleza como tal, mas estamos diante da personificação de possíveis
atitudes desagradáveis de uma pessoa bela. Logo em seguida, trata da vaidade da
mulher bela – com quem parece identificar as personifica­ções da beleza. A mulher bela é, diz o filósofo, quase insu­portável, e acaba por afastar o amor. A beleza é vaidosa, porque as próprias paixões e os próprios vícios, iluminados pela
proximidade do belo, servem para torná-lo ainda mais evidente. A beleza escapa
à nossa compreensão, porque se apresenta a nós como uma unidade e é próprio
da razão dividir para compreender. É um encanto, cujo poder é tão grande que
ninguém pode resistir. Daí estar tão próxima da vaidade e das paixões (impulsos
básicos, motivadores do agir).
A filosofia de Maitas Aires gira em tôrno de dois pontos fundamentais: a
vaidade e a corrupção humana. Para êle, o homem tem uma natureza a tal ponto
corrompida que só a Providência o arranca à vaidade; tem ciência prévia do mal,
mas aprende a virtude. Tudo nêle é vaidade, inclusive a pró­pria razão (e aqui o
filósofo se opõe frontalmente ao “século das luzes”), que o conduz a um tipo de
conhecimento muito falho. Na verdade, só conhecemos a existência, não a natureza das coisas. O universo em si é uno e só pode ser conhecido como totalidade,
de modo que qualquer tentativa de conhe­cimento global das coisas, segundo o
35
ponto de vista parcial das ciências, é invalidado desde o princípio. Conhecer é
co­nhecer a sombra das coisas36.
A natureza humana tende para o mal; para escapar a esta perversão natural o
homem deve refugiar-se na religião (temor de Deus) e nos bons costumes (temor
dos ho­mens)37.
Seu livro enfoca, a partir do problema da vaidade e da corrupção natural de
todo ser humano, os mais variados temas: o direito divino dos reis, a idéia da
igualdade entre os homens, a libertação do homem pela graça – marcados por
um certo pessimismo e pela recusa constante do racio­nalismo que caracterizou
o século em que viveu. Elabora, assim, uma filosofia de fundo moral (Reflexões
sôbre a Vai­dade dos Homens ou Discursos Morais Sôbre a Origem da Vaidade),
em oposição ao espírito do século XVIII, mas sen­sível à problemática que o preocupou.
Matias Aires tem sido freqüentemente deixado de lado e esquecido; aqui,
procuramos recordar suas idéias fundamen­tais, e certos aspectos de uma originalidade que as faz inte­ressantes e válidas até hoje. Reflete um traço cultural
que nos marca ainda: o distanciamento face às grandes linhas do pensamento
europeu, a necessidade de viver certos estilos de vida já ultrapassados pelos estrangeiros e a exigência im­portantíssima de afinar-nos aos problemas do tempo.
Além disso, o fato de Matias Aires ter tratado o problema da vai­dade como algo
inerente à natureza humana permite-nos desligar Reflexões do seu contexto histórico e apreciar o problema em têrmos da sua validade universal.
Difere da maioria dos pensadores que viviam na Europa de sua época. Sua
cosmovisão é fruto de uma aventura, ou­sada e enriquecedora: o esfôrço reflexivo
pessoal sôbre suas idéias correntes, antecipando posições que florescerão plena­
mente na obra de Kant, o grande renovador que marca o início de uma nova
época filosófica.
Aqui percebemos outra vez nitidamente a antecipação de Kant em Matias Aires
– a impossibilidade de conhecer a coisa em si e o conhecimento apenas da sombra
ou representação das coisas. É a imanência, no real, do mundo das idéias platônico,
que se revela apenas como sombra ou representação. A idéia do Mundo como Totalidade, impossível de ser atingida – como se demonstra na Crítica da Razão
Pura – também está presente, na impossibilidade, reconhecida por M. Aires, de um
conhecimento do universo uno pelas ciências, que dividem o real para captá-lo. Tal
como em Kant, noss a inteligência não pode penetrar o real como totalidade, nem captar
sua estrutura mais íntima.
37
id., ibid., p. 86: “Par a obr ar mo s b e m nã o te mo s mais que consu lt ar a nature za e
fazer o contrár io”. Veja-s e a máxima jesuít a “agere contra naturam”, nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, onde a virtude é conce­bida como uma reação contra a
natureza, a fim de se atingir um plano sobrenatural.
36
36
A metafísica de Tobias Barreto
A obra de Tobias Barreto inscreve-se no movimento que se chamou Escola do
Recife, do qual participaram Silvio Romero, Clóvis Brevilacqua, Graça Aranha,
entre outros, no final do século XIX e que se caracterizou por uma tentativa de
crítica à metafísica clássica.
Na reflexão inicial de Tobias Barreto, esta crítica se faz primeiramente através
de uma aproximação ao espiritualismo e pela recusa da subordinação da filosofia
à teologia, expressa no artigo polêmico: “Teologia e Teodicéia não são ciências”.
Seu interesse em fazer da filosofia uma ciência leva-o a uma certa simpatia pelo
positivismo, no que tange à crítica religiosa. Mas, já nesse namoro, Tobias Barreto
assinala o interesse pela metafísica, como marco distintivo do seu pensar. Mas
qual metafísica?
A breve aproximação com o ecletismo espiritualista não resiste ao impacto da
crítica veiculada então, na Alemanha, pela esquerda hegeliana: Strauss, Feuerbach
e, na França, por Taine, Renan.
Assim, a metafísica encarada como ciência das essências, meditação sobre
o ser, reflexão sobre o supra-sensível, vai ser enfaticamente rejeitada por nosso
autor. É polemizando e ridicularizando o tomista Soriano de Souza, no trabalho
“O Atraso da Filosofia entre nós”, que Tobias indica a questão que o inquieta: o
sentido da Filosofia.
Um escrito de Silvio Romero, asseverando que a metafísica estava morta, é
tomado como ponto de referência para Tobias Barreto reafirmar a metafísica. Mas
não a metafísica tradicional.
É a época, então, do surto do positivismo no Brasil: Miguel Lemos, Teixeira
Mendes, Pereira Barreto publicam, e as novas idéias repercutem em diversos pontos do país: Rio de Janeiro, Bahia, Recife. As críticas ao espiritualismo e ao tomismo
são marcantes; e é nesse clima intelectual que nosso autor rejeita o positivismo,
despertando para uma reflexão sobre a metafísica, entendida como “discussão de
problemas filosóficos”38, discussão dos limites, alcance e valor da filosofia.
Impossível retomar o tomismo; impossível aceitar o materialismo positivista;
impossível a aproximação ao ecletismo, dado seu caráter mais literário que filosófico.
38
PAIM, A., A Filosofia da Escola do Recife, Londrina: UEL, 1999, p. 41.
37
É na obra de Kant que o filósofo pernambucano vai buscar a possibilidade de
renovação da metafísica. A inspiração kantiana é clara no pensamento maduro
do nosso autor: vai entender a filosofia como crítica do conhecimento e reflexão
sobre a cultura. No seu Recordação de Kant, Tobias Barreto encara a metafísica
como filosofia crítica, reflexão sobre as ciências. Considera a oposição natureza/
cultura e, a partir daí, as ideias de finalidade, liberdade e evolução do homem.
A restauração da metafísica consiste, para o filósofo brasileiro, na redução da
filosofia (e da metafísica) à teoria do conhecimento, que tem por objetivo discutir os limites, o valor e o alcance do conhecimento humano. As ciências não se
explicam a si próprias, daí a necessidade da filosofia. Tal filosofia não é “ciência
do absoluto (metafísica), nem explicação do universo (cosmogonia), nem qualquer dessas grandes sistematizações, conhecidas pelos nomes dos seus autores
(darwinismo, comtismo, spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina
mental, sobre a qual se apoiam todas as ciências constituídas e por constituir”39.
Criticando o psicologismo e a possibilidade de uma ciência da alma, o brasileiro
afirma a unidade da alma e do corpo, a consciência como função do organismo
humano.
A nova metafísica critica, como assinalamos, no neotomismo, a subordinação
da filosofia à teologia; para nosso autor, Deus não é objeto de conhecimento, mas
de amor. Por isso, refuta as provas tomistas da existência de Deus, bem como a
prova da existência de Deus proposta por Santo Anselmo e retomada por Descartes, baseada na idéia de perfeição. Esta prova está fundada num paralogismo,
segundo Tobias.
Por sua vez, o positivismo não foi capaz de superar validamente a metafísica
tradicional; ao invalidá-la, o positivismo recusou, simultaneamente, qualquer metafísica, expondo o nosso autor as limitações do materialismo vulgar de Comte.
Para Tobias Barreto, a solução não consistiu numa simples volta a Kant, mas
em inspirar-se em Kant, apontando novos caminhos à reflexão e respondendo à
crise filosófica do final do século passado.
Seu grande mérito foi ter aberto a discussão em torno da importante corrente de
que foi contemporâneo, o neo-kantismo, cuja ressonância, no Brasil de hoje, se faz
sentir numa das mais importantes escolas atuais de pensamento: o culturalismo.
39
BARRETO, T., apud PAIM, A., op. cit. p. 90.
38
Sílvio Romero e a Escola do Recife
A obra de Sílvio Romero inscreve-se no movimento filosófico chamado de
“Escola do Recife” pelos estudiosos da História da Filosofia no Brasil. Abrangendo o final do século XIX e o início do século XX, foi inspirada na obra de Tobias
Barreto e seus autores relevantes, Clóvis Bevilacqua, Artur Orlando e o próprio
Silvio Romero, dentre outros. Desenvolvida em Recife, a partir da obra de Tobias
Barreto, teve ressonâncias em Sergipe e no Rio de Janeiro. A efervescência do
cientificismo encontrou em Silvio Romero um pensador que ao lado da valorizaçào da ciência, que o encaminhou para o “entendimento da filosofia como síntese
da ciência”40, o levou a fazer a crítica do positivismo à luz do neo-kantismo e a
desenvolver estudos no âmbito da Sociologia.
É na perspectiva do neo-kantismo e do cientificismo que Romero assinala a
morte da metafísica clássica. Entende como válida a metafísica kantiana que se
reduz à crítica das ciências e limita o conhecimento válido ao mundo fenomênico.
Tal crítica, Romero a chama de metaempírica, cuja finalidade é sintetizar e unificar
os resultados das ciências. Nessa linha de reflexão, abandonará a investigação da
cultura na perspectiva desenvolvida pelo neo kantismo, restringindo-se a um
culturalismo sociológico, no dizer de Paim (op. cit., p. 413), onde “a cultura será
objeto de descrições sociológicas sempre mais circunstanciais e abrangentes”.
O interêsse filosófico da obra de Sílvio Romero consiste, a nosso ver na crítica
ao positivismo, exposta na obra Doutrina contra Doutrina, publicada em 1894, que
aponta para o declínio do pensamento de Comte, no contexto da crise do cientificismo e da emergente reflexão espiritualista. Essa crítica encontrará em Farias
Brito seu maior expoente, pois, partindo de uma perspectiva inicial semelhante à
da Escola do Recife, Farias Brito vai fazer a ponte para a inscrição do pensamento
brasileiro nas grandes linhas do filosofar contemporâneo ocidental.
Em Sílvio Romero, a metafísica é entendida como “uma disposição natural do
espírito humano a sondar as raízes últimas e a natureza intrínseca das coisas”41.
A síntese do saber científico caberia à filosofia e à metafísica, a investigação de
problemas “ïnsolúveis”, ïndestrutíveis”42. Tal investigação, embora não científica,
PAIM, A., História das Idéias Filosóficas no Brasil, Convivio | INL | Fundação Pró-Memória,
1984, p. 411.
41
ROMERO, S., O. C., 2ª ed., Livraria Clássica de Alves e Cia., RJ, pp. 261 e segs., apud MACHADO, G. P., A filosofia no Brasil, p. 68.
42
ROMERO, S., op. cit. p.274, apud MACHADO, G. P., op. cit, p. 69.
40
39
corresponderia a uma tendência natural do espírito humano de indagar a respeito das razões últimas das coisas, a uma atitude geral que assumimos perante o
mundo e a vida. A referência a Kant evidencia uma vez mais a fonte romeriana.
Movendo-se no âmbito de uma crítica ao cientificismo positivista, o qual, a nosso
ver, constitui o desdobramento e a degradação última da redução kantiana do saber
válido ao saber restrito ao mundo dos fenômenos, o retorno a Kant tentado por
Sílvio Romero esbarra numa dificuldade epistemológica grave, assinalada pela
filosofia contemporânea. A superação do cientificismo não pode se dar por um
mero retorno à metafísica transcendental, mas implica numa nova fundação da
metafísica, como bem Husserl e a escola fenomenógica tentaram, ou mesmo numa
redefinição do próprio objeto da filosofia, conforme Heidegger. Nem mesmo os
autores que se reportam a uma inspiração kantiana como Cassirer e Bachelard,
para citar apenas alguns, cometem a ingenuidade de meramente repetir os ensinamentos da Crítica da Razão Pura. Na opinião de Paim, Pinheiro Machado
e Reale, a grande contribuição de Romero foi a proposta de um culturalismo
sociológico. É nesse horizonte que pode ser considerado um precursor do culturalismo, corrente filosófica de relevância no pensamento brasileiro atual. Como
bem o assinala Pinheiro Machado, a ênfase “na perspectiva nacional da cultura”
(id., p. 58) vai caracterizar a abordagem do pensador sergipano, constituindo, a
nosso ver a antecipação de um dos temas relevantes na ulteritor discussão que se
instala no século XX, a respeito das filosofias nacionais. Paim43 aponta o culturalismo sociológico de Romero como ponto de partida da sociologia brasileira e a
reflexão de Alcides Bezerra, seguidor da escola, como uma restauração do culturalismo filosófico. Para Reale44, o conceito de cultura em Romero é essencialmente
sociológico, e não mais filosófico, como em Tobias Barreto. É na sua História da
Literatura Brasileira que Romero tenta conciliar Kant e Spencer, autores aos quais
se refere na obra madura.
A obra máxima de Sílvio é a História da Literatura Brasileira, na opinião de
diversos autores (op. cit., p. 58); ensina a ver “um Brasil que não sabíamos que
existia”45, esclarece o significado da cultura brasileira, evidenciando a formação
do seu ethos46. Por literatura Sílvio Romero entende “todas as manifestações da
inteligência de um povo: política, economia, arte, criações populares, ciências...”47:
ou seja, cultura, na acepção famosa de Herskowitz – toda criação humana. A tarefa
que se propôs ao longo de toda a obra, foi a de crítica. Entendia por crítica a parte
da lógica aplicada que, estudadas as condições que originam, e as leis que regem
o desenvolvimento de todas as criações do espírito humano, científicas, artísticas,
PAIM, A., A Filosofia Brasileira, Lisboa, ICALP, 1991, pp. 108-109.
REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994,
pp. 110 e segs.
45
José Lins do Rêgo, in ROMERO, S., op. cit., p. 93.
46
Gilberto Freyre, in ROMERO, S., op. cit., p. 94.
47
ROMERO, S., História da Literatura Brasileira, RJ: Garnier, 1902, t.1, p. 9.
43
44
40
religiosas, políticas, jurídicas e morais, aprecia as obras dos escritores que de tais
fatos se ocuparam” (op. cit., p. 82). Ou seja, para Sílvio Romero, crítica literária
pode ser compreendida como crítica da cultura. Na crítica de Romero, a “aplicação ao Brasil é a preocupação constante; as considerações etnográficas, a teoria
do mestiçamento, já físico, já moral, servem de esteios gerais; o evolucionismo
filosófico é a base fundamental” (op. cit., vol. 1, Prólogo, p. XXVI).
Caracterizando o povo brasileiro como resultado da fusão das raças branca,
indígena [tupis-guaranís] e negra [grupo bantu], Silvio, escrevendo no final do
século XIX, assinala que dentro “de dois ou três séculos a fusão étnica estará
talvez completa e o brasileiro mestiço bem caracterizado” (op. cit., vol. 1, p. 55).
A importância desta mescla é também indicada por Romero: não se dá apenas
no plano físico, mas no psicológico, daí resultando um tipo humano singular.
Na formação do povo brasileiro o “lugar de honra deve ser dado ao português;
porque êle, sem ser o único, é o principal agente de nossa cultura” (ibid., p. 57).
Assim, nossa lingua dominante é o português, mas podemos, como o demonstra
Romero, encontrar cantos anônimos populares, misturando português, tupi e
africano; contos e lendas de origem portuguesa, americana e africana. O traço
dominante desse povo é o lirismo e a busca da liberdade.
No séulo XVII, o autor que expressa, no plano da vida e das idéias tal fusão,
é Antonio Vieira, que “nascera em Portugal, mas educara-se no Brasil; era filho
do Colégio da Bahia [...] É um dos nossos pelo destino, pelos acidentes da vida
[...]”48. Vieira se destaca pela luta em favor dos índios, e Romero o vê como “um
benemérito da liberdade e da consciência” (op. cit., p. 87). Inscreve-se, deste modo
no grande debate que caracterizou na Europa do final do século XVI e início do
XVII, a Escola de Salamanca e a atuação de Bartolomé de Las Casas; inscreve-se
também na luta mais ampla pela liberdade, que se expressa em Palmares e na
literatura e história do Brasil. Diz Romero: “Nações estrangeiras e poderosas
investem contra a nova colônia [o Brasil]; é travada a luta contra os holandeses
em Pernambuco e franceses no Maranhão [...]. Na luta contra os estrangeiros
acrisola-se o sentimento nacional. Em todos estes fatos as tres raças aparecem
quase no mesmo pé de igualdade. O entrelaçamento é perfeito, o brasileiro é já
uma realidade.”49. Se Vieira é representativo do Brasil do século XVII, através de
seus sermões e de sua luta em favor dos índios, Gregório de Matos, pela sátira e
irreverência, pelo emprego de termos puramente brasileiros, é visto como “o genuino iniciador de nossa poesia lírica e de nossa intuição étnica. O seu brasileiro
não era o caboclo, nem o negro, nem o português; era já o filho do país, capaz de
ridicularizar as pretensões separatistas das três raças” (ibid., p. 154).
A brasilidade encontra sua afirmação e expressão na poesia da Escola Mineira,
no século XVIII. Aí estão presentes o lirismo e a tematização da liberdade, sinteti48
49
Id., A história do Brasil, ensinada pela biografia de seus heróis, RJ: Agir, 1959, p. 80.
Id., História da Literatura Brasileira, vol. 1, p. 131.
41
zados os feitos e lutas e os povos que nos originaram. Para Romero, a história da
literatura brasileira nada mais é que a “descrição dos esforços diversos do nosso
povo para produzir e pensar por si” (ibid., p. 181). Daí êle assinalar o poema O
Uruguai, de Basílio da Gama e O Caramuru, de Santa Rita Durão, como exemplos
maiores da mestiçagem intelectual e resumo da nossa vida histórica. Por sua vez,
a poesia dos inconfidentes expôs um ideal político que ainda fulgurava, pois, no
dizer de Romero, “aquele punhado de sonhadores pressentiu, no vago de suas
crenças, todas as vastas idéias que êste povo deve esforçar-se por levar a efeito
[...] Independência da pátria, emancipação dos escravos, unidade federal, vida
autônoma e democrática, prosperidade material, alento científico [...] tudo foi
antecipado naquele devanear de heróis” (op. cit., p. 208). Apontamos somente alguns exemplos da abordagem de Romero; sua obra é
demasiado vasta para podermos abrangê-la no quadro restrito de uma comunicação. Acreditamos, porém, que a grande contribuição do crítico foi ter apresentado, através do painel da literatura brasileira, uma história social que nos leva
a compreender, na perspectiva do evolucionismo que a inspira, o próprio ser do
homem brasileiro. Se dos pontos de vista epistemológico e metafísico Romero
não alcançou grande densidade, sua leitura magistral da cultura brasileira abriu
caminho para a meditação da contemporânea escola culturalista, como o reconhecem Paim e Reale.
42
Literatura e Sociedade em Sílvio Romero
O exame de um livro de Luiz Murat, jovem poeta estudado por Romero, serve
de exemplo do procedimento metodológico que Sílvio utiliza para estabelecer
relações entre literatura e sociedade.
Romero começa apresentando um amplo painel do século XIX, apontando,
como sua nota dominante, a doutrina da evolução nos planos da natureza, da vida
biológica, da vida política, dos fenômenos artísticos e sociais.
Razão dessa efervescência em todos os campos do conhecimento e da vida
cultural foi o surto e a afirmação dos estudos históricos. Por estudos históricos
Sílvio entende as criações humanas, abarcando a psicologia, a moral, o estudo
das línguas, mitos, religiões, folclore; em suma, “todas as manifestações da vida,
todas as projeções da alma humana”50. Podemos talvez encontrar aqui um prenúncio, em sua obra, da célebre oposição ciências da natureza/ ciências do espírito,
proposta por Dilthey.
Romero está impressionado e pinta com vivas cores o cenário do final do século:
o surto das ciências da natureza e o surto das ciências humanas, privilegiando a
abordagem histórica, o exame comparado das contribuições das ciências da vida,
as ciências morais. Estas últimas seriam superiores às ciências da natureza. Romero
inverte, assim, a perspectiva dominante da filosofia moderna, que privilegiou as
ciências físico-matemáticas, as ciências da natureza, inscrevendo-se decisivamente
como precursor da contemporaneidade, onde a abordagem histórica, comparativa,
hermenêutica, acha-se em primeiro plano.
Não se trata, para ele, de reduzir as ciências modernas ao modelo das ciências
da natureza; estas, ditas “inferiores”, é que podem, recorrendo ao método histórico e comparativo, próprio das ciências morais, obter benefícios e “estupendo
progresso”. Afirma como idéia diretriz, que compatibiliza as diferentes orientações
das ciências, a noção de vir-a-ser, “da evolução constante, do desenvolvimento
perpétuo” (ibid., p. 15).
No campo das artes, especialmente no da poesia, essa mutação, essa transformação, é essencialmente evidente.
Assim, Romero indaga: “qual o estado atual de arte neste final de uma fase
centenária da história? Ainda vive a poesia, que a ciência prometera tantas vezes
matar? (...) Qual o estado destas questões na Europa e no Brasil?” (ibid., p. 16).
50
ROMERO, S., Literatura Contemporânea, RJ: Garnier, s/d, p. 16.
43
Seu tempo é marcado pelo abalo nas velhas concepções de filosofia; pela ascensão do proletariado, pela profunda alteração da vida social. Aparentemente,
o triunfo da ciência anularia as contribuições da filosofia, da arte, da religião.
A poesia, sob a ótica do positivismo e dos críticos E. Scherer, Lefèvre, estaria
inteiramente superada. Sobreviveria como expressão da vida primitiva da humanidade, como expressão da imaginação, da linguagem carregada de imagens,
característica da criança e dos primórdios da humanidade. A ciência não precisa
de poesia; é desenvolvimento de reflexão, que supera as faculdades do homem
primitivo.
Contra essa visão evolutiva do saber e do homem, na qual ressoa a lei dos três
estados, de Comte, é que se levanta Romero. Concorda que a poesia é uma das
manifestações antigas da alma humana, como linguagem e religião também o
são. No entanto, antigüidade e morte não são termos equivalente. A poesia, uma
das expressões mais antigas de nossa humanidade, é também um componente
essencial da vida humana: “acabará o último poeta, quando acabar o último homem” (ibid., p. 22).
A rápida sucessão de escolas literárias é uma das características, na perspectiva
de Sílvio, da literatura do século XIX. Assim, o classicismo e o Romantismo, nas
suas várias manifestações, foram se sucedendo. O autor examina essa sucessão de
autores e escolas na França, modelo paradigmático de nossa cultura, então.
No Brasil deu-se algo de análogo ao que se passou na França: a poesia da fase
clássica foi sucedida por “cinco ou seis escolas [românticas], até entrar em 1870
em plena decadência” (ibid., p. 23).
A riquíssima história da poesia dos últimos 20 anos do século XIX é mostrada,
por Sílvio, na sua relação com os eventos históricos – guerra do Paraguai, abolição
da escravatura – e com os eventos políticos: decadência da monarquia, revolução
e república. Face objetiva da história, tais eventos têm sua contrapartida na face
subjetiva, o mundo do pensamento.
“Na ciência, na filosofia, nas questões sociais é igual o fervor. Há uma sede
imensa de saber, de indagar das correntes novas da inteligência européia”1. Assim,
a sucessão de escolas: positivismo, darwinismo, monismo, criticismo naturalista,
entre outras, repercute entre nós; o pensamento alemão ressoa na filosofia e no
direito, na história; a literatura realista francesa e a inglesa são estudadas. Diz Sílvio:
“Em poesia todas as grandes escolas contemporâneas contam representantes no
Brasil” (ibid. p. 25): a poesia científica, o parnasianismo, o pessimismo, o diletantismo, o lirismo tradicionalista, dentre outras orientações, são examinados.
A nova poesia, que emerge desse quadro sócio-histórico, encontra, segundo
Romero, em Luiz de Murat uma de suas expressões.
44
Essa nova poesia é uma retomada do lirismo, que rompe com as concepções
de arte engajada, a serviço do social, da veiculação de princípios morais ou científicos.
O poeta é homem de seu tempo; na sua arte perpassa a problemática vivida
por sua época; seu interesse não são as idéias, mas a emoção e o sentimento. O
poeta, na visão de Romero, diz, no plano da emoção, a problemática de sua época.
Desencadeia, pela obra, o sentimento da beleza, daquilo “que nos agrada (...), que
em nós desperta o sentimento da admiração”.
Assim, a poesia não é meio para educação do homem (utilitarismo), não é
serva da ciência (cientificismo), não está a serviço de ideais morais: “... a nova
lírica nacional não pretende ser doutrinária, nem moralizante” (ibid., p. 34), não
é expressão da melancolia, da morbidez, da tristeza (ibid., pp. 34-35).
Pode ser pessimista, uma vez que expõe “o fim de um mundo, não um mundo
político (...), mas um mundo do pensamento, que se modificou radicalmente”(...)
“A revolução nas idéias, em marcha ascendente nos últimos tempos, acabou
por alterar a emocionalidade...” (ibid., p. 36).
Na poesia de Luiz Murat, o lirismo expõe a superação da melancolia romântica, mostra “o fervor pelas novas idéias, pelo progresso (...), pela história da
emancipação humana...” (ibid., p. 44); e faz ouvir um brasileirismo, que é elogio
do país, tomada de consciência de si por parte de um povo, entusiasmo e força,
celebração do mundo.
A abordagem de Sílvio Romero caracteriza-se por essa metodologia: primeiro,
apresenta um painel do século, caracterizando o grande contexto histórico, as
notas dominantes da vida cultural mundial em que a literatura floresce; em seguida, elenca os eventos marcantes no país e sua ressonância nas obras literárias;
finalmente examina um caso concreto, exemplar, no qual a história, o acontecer,
são expostos através da ótica de um sujeito criador. O individual e o social, a vida
da cultura, aparecem entretecidos e espelhados, desse modo, na obra de arte, na
literatura.
Em resumo, podemos dizer que, para Romero, a relação literatura – sociedade
se explica pondo em evidência os grandes movimentos filosóficos, a luta entre as
antigas idéias e a emergência do novo. No século XIX, esse embate é mostrado
como luta entre duas concepções de filosofia, duas concepções de arte: uma, ligada
ao surto cientificista da modernidade, privilegiando as ciências físico-matemáticas,
outra, prenunciando as grandes tendências do século XX, valorizando a vida,
afirmando a prioridade das ciências históricas, das ciências humanas.
Na literatura do século XIX perpassaria esse embate, especialmente na luta
entre concepções de poesia. Para alguns autores, impregnados de cientificismo,
45
a poesia seria expressão do imaginativo e do sentimento, não tendo mais lugar
num mundo civilizado pela ciência, pela razão; para Romero, atento ao novo
sopro de idéias, que a França, a Inglaterra e Alemanha lançavam, a poesia sempre
terá lugar como componente essencial de vida humana, expondo, pela imagem,
a pertinência do homem ao mundo da cultura e traduzindo em novo lirismo
dimensões essenciais do ser.
46
Filosofia do Direito em Sílvio Romero
Nascido em 1851 e falecido em 1914, Silvio Romero é um dos expoentes da
Escola de Recife, como já vimos. Essa denominação abarca os estudiosos de Filosofia que se congregaram em torno de Tobias Barreto, no final do século XIX,
propondo um monismo evolucionista51.
Sergipano, Romero estudou no Rio e em 1868 ingressou na Faculdade de
Direito de Recife, na qual Tobias Barreto frequentava o último ano; tornaram-se
amigos. Concluída a faculdade, Romero foi nomeado promotor na cidade de
Estância, em 1873. Tentou o magistério universitário em Recife, em 1875, mas o
concurso que fez foi anulado.
Indo para Rio de Janeiro, nosso filósofo viveu em Parati como juiz municipal
entre 1876-1879, quando se mudou definitivamente para o Rio. Na capital do
Império, lecionou Filosofia no Colégio Pedro II, a partir de 1880. Com outros
intelectuais, fundou, no Rio, a Academia Brasileira de Letras em 1879.
Advinda à República, elegeu-se deputado Federal por Sergipe, em 1878.
Antônio Paim distingue quatro fases na obra de Romero: a primeira, de adesão
ao positivismo, corrente então imperante, entre 1869 e 1875, a segunda, de 1876
até 1886, de conciliação entre positivismo e evolucionismo; a terceira, de 1888
até o final do século, de ruptura com o positivismo e aceitação do evolucionismo
de Spencer; a quarta fase, de 1900 a 1914 (op. cit., p. 202-208).
Braz Teixeira52 assinala a importância da segunda e terceira fases no que diz
respeito à filosofia do Direito de Romero, correspondendo ao “período de apogeu
e expansão da Escola do Recife”, no qual Romero e seus companheiros publicaram
“as suas obras de maior significado”.
A obra do autor sergipano é complexa, ampla, caracterizada pela polêmica e
busca da originalidade, de atenção à problemática brasileira e recurso a fontes
europeias, nos mais variados campos do saber. Consultou e mostra conhecimento
de estudos que se tornaram paradigmáticos, em seu tempo, passando de epistemologia à lógica, biologia, ciências sociais, história, etnologia, crítica literária,
antropologia, filosofia da religião. Escolhe, muitas vezes, como referenciais teóriCf. PAIM, A., A Escola do Recife. Londrina: UEL, 1999, p. 200-201; BRAZ TEIXEIRA, A., A Filosofia jurídica brasileira do século XIX. Lisboa: CHCUL/FCT/HUMUS, 2011, pp 78-79.
52
BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., pp. 78-79.
51
47
cas de seu pensamento, autores pertencentes a correntes filosóficas opostas e até
mesmo rivais, como Kant, Mill, Spencer, Hartmann e Ihering.
No prefácio à primeira edição do Ensaio de Filosofia do Direito, em 1895,
Romero diz que pretende oferecer uma “nova compreensão da ideia do Direito
e de seu desenvolvimento (...) a datar de 1880” em diante53. Nesse prefácio, reconhece a importância de Ihering para a “darwinização do Direito”, bem como das
propostas de Benjamin Constant, “propagador do positivismo evolucionista” e
das de Tobias Barreto na Escola de Direito do Recife, para a constituição de um
“monismo evolucionista” (ibid., p. 14).
Romero assevera que não aceita o positivismo e que escolhe Ihering e Spencer
como seus mestres, assim como Hartmann (ibid., p. 14 e segs). Quanto a Tobias
Barreto, afirmando sua importância e amizade, para a constituição de seu pensamento, nosso autor aponta as diferenças entre as concepções filosóficas de ambos
e reafirma sua autonomia em relação à obra de Tobias.
No prefácio à segunda edição do Ensaio de Filosofia do Direito, em 1907, Romero põe em relevo as diferenças de apresentação da obra quanto à primeira edição;
mas reitera que manteve as ideias defendidas na primeira edição, “reforçadas aqui
e ali” (ibid., p. 19). Reafirma as fontes em Kant, Spencer, Darwin, Hartmann,
Schopenhauer, Gobineau, Max Müller, dentre outros. Novamente pretendeu
dissolver o problema de conciliar correntes rivais, através da busca dos autores
mais significativos nas diferentes áreas a que recorreu. A amplitude das referências
através das quais Romero mostra um saber enciclopédico, esbarra no problema da
compatibilização das contribuições hauridas em correntes filosóficas diversas.
No que segue, tentaremos de expor sua filosofia do Direito.
Para abordar o Direito, começa por situá-lo no contexto mais amplo da filosofia.
Recusa a formulação de um sistema, a vinculação estrita a uma escola. Entende
a filosofia como expressão do espírito crítico, atividade constante. Inicialmente
simpatizante do positivismo, afasta-se da corrente em favor da doação de uma
perspectiva evolucionista, no horizonte do qual escreve seu Ensaio de Filosofia do
Direito. Trata de sintetizar o criticismo kantiano e o evolucionismo de Spencer.
Desenvolveu uma teoria das criações fundamentais da humanidade, que
constituem fenômenos irredutíveis entre si e compõem a civilização, ao longo de
seu desenvolvimento: religião, arte, ciência, filosofia, política, moral, direito, indústria. Para ele, a filosofia é um saber geral, que unifica a totalidade das ciências:
propedêuticas (lógica e matemática); naturalísticas (mecânica, física, geologia,
mineralogia, geografia, química, biologia, psicologia); de transição (antropologia,
etnografia, linguística); socialísticas (economia, política, arte, religião, direito,
moral, ética).
53
ROMERO, S., Ensaio de Filosofia do Direito. São Paulo: Landy, 2001, p. 13.
48
A filosofia tem como função sintetizar as ciências particulares. As ciências
socialísticas obedecem, também elas, à ideia de evolução. Esbarram todas no
incognoscível, limite do que é acessível e o conhecimento humano. Religião e
ciências são formas de busca de compreensão do desconhecido, indagação sobre
a origem e o destino do Universo.
Ciência, para ele, é “o Universo interpretado pelo raciocínio e pela observação”;
filosofia, é “sua síntese racional”; religião, é “o embate com o desconhecido”, “a
origem universal” (id., Filosofia Brasileira, p. 208). Crítico de metafísica clássica,
sua reflexão se inscreve na perspectiva que atribui à filosofia a síntese do saber
científico.
É nesse horizonte da classificação das ciências que é preciso compreender a
filosofia do Direito de Romero.
Para ele, o Direito é fenômeno evolutivo, que se desenvolve em correlação
com o desenvolvimento da sociedade e da vida cultural e política. Expressa a
busca da liberdade, a criação da instituição que asseguram a coexistência social
e possibilitam superar conflitos.
Expoente da Escola do Recife, movimento inspirado na obra de Tobias Barreto
e com repercussões em Sergipe e no Rio de janeiro, onde lecionou, foi contemporâneo o de Clóvis Bevilacqua, Artur Orlando e Fausto Cardoso, também como
ele alunos de Tobias. Esses discípulos e companheiros intervieram na vida cultural brasileira, fazendo a crítica do ecletismo espiritualista inspirado em Victor
Cousin e propondo um monismo evolucionista, constituindo a terceira fase da
Escola e publicando nos anos 80 e início dos 90 do século XIX, suas obras mais
significativas, conforme assinalam Antônio Paim (op. cit., passim) e António
Braz Teixeira (op. cit., pp. 69-100), assim como Miguel Reale54. Romero e seus
companheiros repensam o lugar e o significado do Direito na renovação cultural
do país, que tentaram implantar.
No prefácio à primeira edição, publicada, como já vimos, em 1895, Silvio
refere-se à Taine, Spencer, Ihering, Benjamin Constant, Tobias Barreto, como
defensores de novas ideias. Escolhe Spencer como um de seus mestres, e afirma
ter sido o introdutor de Ihering no Brasil. Este último, autor inspirado no darwinismo, considera as repercussões desta última concepção no Direito. Recusa o
laço com o materialismo e estuda as novas ideias como um realismo científico,
um monismo filosófico (op. cit., p.18).
No prefácio à segunda edição de sua obra, Romero reforça suas teses, à luz das
contribuições de autores como Kant, Spencer, Darwin e Haeckel, Huxley, Mill,
Noiré e Hartmann, Schopenhauer, Max Müller, Renan, Taine, Savigny, Fustel de
Coulanges, dentre outros.
54
REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994,
pp. 125 e segs.
49
A pluralidade de nomes e fontes, mostram o nosso autor procurando, nos expoentes de diversas disciplinas, filosóficas ou não – como a Psicologia, a História,
a Etnologia, a Crítica Literária, a Antropologia Cultural, a Fisiologia – os pontos
de apoio para uma espécie de enciclopédia.
Tivemos acesso apenas à segunda edição do Ensaio sobre Filosofia do Direito,
publicada com os dois prefácios anteriores de Silvio, numa edição recente, de
2001, pela Landy Editora.
A obra está dividida em três partes. Na primeira, situa o Direito no contexto
mais amplo da Filosofia e da Sociologia. Propõe uma epistemologia, que oferece
uma classificação das ciências e uma concepção evolutiva do saber e das atividades humanas, inscrevendo o conhecimento no horizonte de uma interpretação
da história.
A segunda parte do livro mostra a evolução das criações político-sociais e o
surgimento do Direito. Na terceira parte, caracteriza o Direito e seus elementos
componentes.
Por Filosofia, entende a ciência mais antiga, ciência geral, conjunto do saber
humano. Ao longo da evolução desse saber, as ciências foram-se emancipando da
Filosofia, de modo que as quatro ciências que aparentemente ainda eram abarcadas
pela Filosofia – a Lógica, a Psicologia, a Estética e a Moral – foram se constituindo
como disciplinas independentes. A Lógica, graças aos esforços de Morgan, Mill,
Spencer; a Psicologia, através dos estudos de Flechner Webs, Spencer, Wundt; a
Estética, a partir das contribuições de Taine, Guyau, Hartmann; a Moral, graças
a Spencer, Renouvier, Simmel.
O significado da Filosofia, para Romero é propiciar a síntese das ciências, como
Comte e Spencer a compreenderam. Evocando Kant, entende a Filosofia como
crítica do conhecimento, epistemologia. Remontando à tradição antiga, afirma
que a perspectiva monista foi representada pelos Jônicos, Pitagóricos, Eleatas,
Atomistas, caindo depois em descrédito com Sócrates, Platão e Aristóteles – propositores de um dualismo.
Romero afirma que a oposição monismo/dualismo é o fio condutor da história
da Filosofia, emergindo com força, novamente, na filosofia moderna. E só uma
doutrina da evolução restabelece a unidade entre o mundo do pensamento e o
mundo exterior, alcançando plena expressão no agnosticismo evolucionista de
Spencer.
Assim, na modernidade, a Filosofia assumiu as características de um saber
mono-evolutivo, crítico, dependente das ciências, “formada por processos a
posteriori” (op. cit., p. 26).
Evocando Kant, contra Comte, Silvio o situa como fonte importante de seu
pensamento, tornando-o capaz de conciliar o criticismo e o evolucionismo,
50
constituindo um monismo superior, do qual Hartmann e Spencer seriam, na sua
época, os representantes exponenciais.
Nesse horizonte, entende o Direito como saber científico, luta por civilização
e cultura. Resulta do fazer humano consciente, é produção espiritual, atividade
criadora da humanidade, como a ciência, a política, a moral, a arte, a religião, a
indústria.
Nos três séculos que precederam o século XIX, Romero assinala o surgimento
de uma tendência nova, que floresceu em sua época: a ideia da historicidade,
entendida como evolução e progresso, e cujo impacto no âmbito do Direito foi
sinalizado pelas contribuições de Savigny, Ihering. O primeiro, representante da
escola histórica; o segundo, da escola naturalista. Para Romero, as contribuições
de ambos convergem, resultando numa renovação profunda do Direito, pela
formulação de um único método, que conjuga as contribuições das ciências
naturais e morais.
O Direito aparece, assim, como produto da evolução social, mediante seleção
e adaptação.
Moral e Direito têm faces complementares: a Moral é “disciplina da vontade
individual (...) pela compaixão, benevolência, caridade (...) o Direito (...) é disciplina da liberdade, modelando-a no conflito com a liberdade dos outros; dirige-se
à sociedade (...) [regularizando-a] pela pena, pela coação” (ibid., p.143).
O Direito surge num mundo onde impera o conflito. Representa a intervenção
da razão, para disciplinar e regrar a convivência. Seu fundamento “é a autonomia
individual, contrastada pela autonomia social (...) seu lema (...) é atribuir a cada
um o que lhe é devido; seu alvo, o justo”.
O princípio do Direito é por em ação as energias individuais até “onde não
entrem em conflito com as energias alheias” (ibid., pp.143-144). A formulação
lembra a do imperativo categórico kantiano, fonte da reflexão romeriana.
Considerando a doutrina do Direito-Força, em Tobias Barreto, Silvio pensa as
categorias que possibilitam compreender o mundo da natureza, o mundo social e
o lugar, neles, do sujeito individual. No mundo social, “a categoria é a sociedade,
o conteúdo são os homens, a relação é o Direito (...).
Assim, para Silvio Romero, o Direito representa na vida humana, a superação
da força bruta, pela força da razão, da justiça, que ultrapassando os conflitos, afirma
o justo. Reúne, na sua esfera, “os fatores da natureza e da civilização, os filósofos
e os psicólogos, os biólogos e os sociais” (ibid., p.150).
Na perspectiva que propõe, nosso autor se diz naturalista, entendendo o Direito, como a arte e a educação, como produtos da cultura: “forma-se segundo a
índole dos povos”, resulta do estímulo “à natureza do homem (...) pela natureza
exterior” (ibid., p.162).
51
Posto isso, Silvio recusa toda concepção que afirme “um Direito eterno, anterior
e superior aos povos” e procura mostrar que qualquer modificação em qualquer
ramo da atividade humana repercute sobre todos os outros campos dessa atividade,
implicando uma evolução orquestrada. Mostra que isso ocorreu através de três
correntes da filosofia moderna: – hegelianismo, positivismo, evolucionismo.
Afirma que há “elementos naturais e biológicos no Direito (...) na intuição que
lhe aplicam um Spencer, um Von Ihering, um Tobias Barreto” (ibid., p. 165).
Em razão de seu caráter evolutivo, o Direito, como disciplina prática, “varia
conforme os meios, as circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociais”,
de cada povo.
Entende o Direito também como um princípio regulador das ações sociais.
Seus diferentes ramos são elencados a partir da divisão entre Direito Público e
Direito Privado, ambos comportando um aspecto interno e um externo; o Direito
Criminal constitui um ponto, um polo do Direito situado entre o Direito Público
e o Direito Privado.
Criticando a concepção metafísica da justiça, Romero afirma que o naturalismo evolucionista moderno parte da vida complexa dos povos, da multiplicidade
das ações humanas. Daí considerar o Direito quando ao seu fundamento, à sua
finalidade, ao seu desenvolvimento e seus elementos.
Quanto ao seu fundamento, o Direito exprime que a ação de cada indivíduo
é em favor de si mesmo, da própria felicidade. Ao encontrar a ação análoga nos
outros, passa a existir a necessidade das regras, das disciplinas, que na sua variedade, através dos tempos, buscam assegurar a possibilidade de coexistência dos
sujeitos.
Quanto à sua finalidade, busca assegurar que os indivíduos exerçam variadas
atividades, e no âmbito da sociedade, que seus componentes possam efetivamente
realizar-se.
Quanto ao seu desenvolvimento, consiste no exame da história das diferentes
expressões das leis.
No Direito, é preciso considerar a intuição íntima do justo em cada um; as leis
de cada Estado; as modalidades que o Direito assumiu ao longo do tempo e nas
diferentes nações; sua morfologia; tudo isso, para mostrar que “o Direito é um
grande todo, regulador da vida social” (ibid., p. 173).
Em suma, podemos dizer que a filosofia do Direito de Romero se caracteriza:
a) pela abordagem epistemológica e histórica da disciplina;
b) pela inscrição do Direito no horizonte de um monismo evolucionista, que
embora pretenda superar o positivismo, apenas oferece uma formulação
mais moderna das fases centrais deste: antimetafísicas e redutoras da filo52
sofia a uma crítica das ciências, como bem assinalou Patrão Neves em seu
estudo sobre Romero55.
O texto Ensaio de Filosofia do Direito, do nosso autor, termina de modo abrupto.
A ênfase na perspectiva epistemológica e histórica dá a impressão de o texto ser um
misto de anotações de aulas sobre Filosofia do Direito e uma tentativa de reflexão,
a partir de fontes que possibilitaram uma visão histórico-crítica da disciplina.
Antônio Braz Teixeira mostrou que a inflexão do culturalismo filosófico de
Tobias Barreto em Silvio Romero, deu-se num sentido sociológico, que o afastará
do mestre, formulando “um ecletismo sui-generis” (op. cit., p. 77 e segs). Romero
integra o Direito na Sociologia, apontando seu caráter evolutivo e recusando
qualquer referência a um Direito Natural. Entende o Direito como criação cultural, buscando harmonizar natureza e cultura, na perspectiva de um monismo
evolucionista. Produto da atividade humana, o Direito emerge das condições
externas em que o homem vive, daí decorrendo sua divisibilidade e variedade
no tempo e no espaço. Suas fontes principais são, no entender de Braz Teixeira,
a Escola Histórica de Savigny e a Escola Naturalista de Ihering, conduzindo-o a
compreender a evolução do Direito de modo linear e ascendente, partindo do
impulso instintivo primitivo até a sua formulação nas democracias modernas.
Direito e Moral seriam, para Romero, as duas faces narrativas que regulariam
as ações dos homens na sociedade. O Direito regularia os atos no plano da vida
pública, servindo-se até mesmo da coação; a Moral inspiraria os atos individuais
segundo regras auto-impostas, fundadas “na consciência da identidade dos destinos humanos” (ibid., pp. 82-83).
É, no entanto, no horizonte da concepção romeriana de cultura, de criações
culturais, das quais o Direito é uma das expressões, que Saldanha, Reale e Paim,
assinalam sua importância para a formulação, no Brasil, do culturalismo, vertente
filosófica que alcançará, com Miguel Reale e sua escola, importante repercussão
no país56.
55
PATRÃO NEVES, M. do C., “Do positivismo (conteano) ao positivismo (spenceriano): o assomar de uma filosofia”, in Actas do III Colóquio Tobias Barreto. Silvio Romero e Teófilo Braga. Lisboa:
IFLB/ Fundação Lusíada/CTT, 1996, pp. 303-312.
56
REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira, passim; PAIM, A., A Escola do Recife, passim; PIMENTEL, M. C., “A crítica do positivismo conteano em Teófilo Braga e Silvio Romero”, in Actas
do III Colóquio Tobias Barreto, pp. 17-55; SALDANHA, N., “Sobre a Filosofia do Direito de Silvio
Romero”, in Actas..., pp. 301-338.
53
54
Antero de Quental: ética e epistemologia
Um escrito tardio, Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século
XIX57, mostra nosso autor em busca da formulação de uma “teoria geral do universo” que sintetizaria “as grandes criações espirituais que, ao longo dos séculos,
expressaram a vida criadora de cada período histórico (ibid., p. 56). A tarefa da
filosofia é procurar explicitar a “convergência gradual dos sistemas uns para os
outros”. Como a síntese é apenas um valor-horizonte, posto que irrealizável, o
que nos resta é o sincretismo. Tal sincretismo ocorre periodicamente no final
das grandes etapas históricas; estaria ocorrendo em sua época. Até que ponto
poderia ser conseguida, ou só indicaria o surgimento de um vago ecletismo, é a
indagação de nosso autor. Para respondê-la, Antero focaliza crítica e historicamente a evolução da filosofia moderna.
Entende a filosofia como busca da verdade, não a total e absoluta, porque se
fosse possível alcançá-la não haveria busca, não haveria mais filosofia. A verdade
filosófica expõe a “imagem imperfeita da verdade incognoscível”, distorcida e
alterada, mas ainda assim verdade. Ela é a “equação do pensamento e da realidade (...) equilíbrio momentâneo entre a reflexão e a experiência (...) adaptação
(...) em cada momento histórico (...) dos factos conhecidos às idéias diretoras da
razão” (ibid, p. 54). Para nosso autor, a relatividade da expressão histórica não
implica relativismo ou ceticismo; mostra que há, entre os diferentes sistemas,
afinidades e concordâncias, às vezes obscuramente pressentidas, mas reais.
Em carta de 1885, o pensador declara que pretende formular a expressão
poética “de um misticismo moderno (...) científico e positivo”58. A correlação
poesia-filosofia, entrevista no seu fundamento comum, a busca da verdade,
mostra nosso autor inquieto, tentando formular uma teoria do conhecimento
numa perspectiva otimista e racional e marcada pela preocupação com a liberdade. Está votado, nessa etapa, à construçãode uma interpretação do universo
que vincula estreitamente conhecimento e moral. Procura mostrar que sob o visível e a natureza, oculta-se o mundo moral, “que é o verdadeiro mundo”, ao qual
são inerentes “a harmonia, a liberdade o optimismo” (op. cit., pp. 729-730, apud
QUENTAL, A. De, Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. O texto foi publicado originalmente na Revista de Portugal,
dirigida por Eça de Queirós, em 1890.
58
Id., Carta II, Obras Completas, vol. III, pp. 729-730, apud SERRÃO, J., “Em busca do sentido do
último escrito filosófico anteriano”, in QUENTAL, Tendências..., p. 9.
57
55
SERRRÃO, op. cit.), por oposição ao mundo da natureza, que se caracterizaria
pela luta, fatalidade e pessimismo. A vida tem uma razão de ser e isso valida a
existência; nisso consiste, o Evangelho eterno, expressão da essência do homem e
das coisas mas do qual só o homem tem consciência (Carta a Fernando Leal de
13 de Novembro de 1886, apud SERRÃO, J., op. cit). O homem é livre, superior
à natureza; sua expressão própria é o sentimento, a consciência moral entendida
como consciência de seu ser verdadeiro. A ação humana expõe a liberdade, eixo
da vida moral, da vida criadora das obras e instituições. Antero estabelece analogias entre a liberdade moral e o princípio de atividade do universo. Só desse
modo, a seu ver, escapamos do risco de um existir absurdo, sem finalidade. O
poeta-filósofo pretende alcançar uma síntese superadora das oposições: naturalismo/idealismo, otimismo/pessimismo, através da formulação de um panpsiquismo. Para ele, a finalidade da vida é a beatitude e a consolação que decorre
do contemplar. E o que se contempla? Uma verdade para além da “presunção
da inteligência” e mais próxima do coração. O grande desafio é investigar “ o
paradoxo das coisas”, visto como um “ divino paradoxo” que inquieta o homem
(ibid., pp. 841-842, apud SERRÃO, J., op. cit.).
A proposta de Antero, já nas Cartas que precedem o Tendências..., aparece
como uma aliança entre o kantismo e o espiritualismo, visando “a explicação do
Universo pela consciência, mas ao mesmo tempo, a interpretação da consciência
por princípios análogos às leis fundamentais do Universo, a unidade do Ser e
do Universo” (ibid, pp. 900-901, apud SERRÃO, J., op. cit.). Para nosso autor, a
consciência do homem é um elemento essencial do universo e a mais importante expressão de sua verdade; a arte é só um reflexo, um símbolo da vida moral
e a virtude, o bem, são mais significativos do que a arte (ibid., Cartas II, p. 953,
apud SERRÃO, J., op. cit). O exame da evolução de Antero da poesia à filosofia,
feita por Joel Serrão (op. cit. pp. 27-28), mostra que na trajetória de Antero ocorreu uma crescente aproximação à filosofia e um abandono gradual da poesia,
mas também o surgimento de uma filosofia enraizada nas vivências poéticas,
um poetar-pensante. Tal filosofia reflete sobre as implicações sociais e políticas
da liberdade, sobre a necessidade de uma ética social fundada na virtude dos
indivíduos e na afirmação dos laços entre Ser e Bem, fim último da evolução do
universo.
Se nas Cartas e textos filosóficos anteriores ao Tendências... a ênfase se dá na
formulação de uma ético-ontologia, no Tendências... a ênfase se proporá como
ético-epistemológica, expondo a atenção de nosso autor à evolução da filosofia
moderna e às preocupações e tendências de seu tempo.
A análise crítica da filosofia moderna ocorre pela busca de compreensão de
suas grandes etapas.No início da filosofia moderna, um substrato metafísico inspiraria as noções comuns aos diferentes sistemas, assim como a vida criadora da
56
arte, poesia, religião, política. As idéias centrais são, segundo Antero, as “de força, de lei, de imanência ou espontaneidade e de desenvolvimento”59. Por enfatizar
essas idéias, a filosofia moderna se diferencia da filosofia antiga, assumindo um
caráter decididamente realista. Caracteriza-se por focalizar a realidade como “ o
fieri incessante do ser em si só potencialmente existente e que só realizando-se
atinge a plenitude” (ibid., p. 60); nessa perspectiva, matéria e forma são indissociáveis e o movimento presente na realidade é permanente criação, metamorfose
e renovação. Para nosso autor, a filosofia moderna vê a realidade como uma
totalidade, uma substância única, da qual todos os seres são expressão, relacionando-se entre si permanentemente. O universo assim entendido é um ser vivo,
com uma unidade imanente, intrínseca e fundada na diversidade dos seres que
o compõem. Essas idéias foram propostas no início do Renascimento por Nicolau de Cusa, Agripa, Paracelso, Giordano Bruno, dentre outros. O despertar das
ciências modernas anunciou um espírito novo, com Descartes, Bacon, Leibniz
e Spinoza. Descartes, por exemplo, extraiu conseqüências do princípio da identidade entre ser e saber, retomado por Spinoza nos seu panteísmo e por Leibniz
na Monadologia. As idéias centrais que foram consolidadas com esses autores
foram as de força e lei. No século XVIII, nova etapa da filosofia moderna: a idéia
de desenvolvimento é acrescentada às noções-chave já discernidas, fazendo com
que o universo seja concebido como totalidade em expansão, com ilimitada e
inesgotável virtualidade; dá-se um surto de desenvolvimento das ciências, que
inspira autores como Diderot, Lessing, Vico, Voltaire, Rousseau. Ainda no século XVIII a idéia de lei encontrará em Kant nova formulação, associada a novas
inquietações: que podemos conhecer? Que podemos fazer?
Promovendo a crítica à metafísica tradicional, Kant centra a reflexão sobre
a epistemologia, buscando fundamentar nossas certezas. O impacto de sua reflexão faz-se sentir nas filosofias de Schelling e Hegel, que, embora “ repetindo
o naturalismo e o panteísmo do período anterior”, reveste-os do novo ponto de
vista do idealismo, contido na Crítica da Razão Pura” (ibid., pp. 66-67). É com
Schelling e Hegel que, no início do século XIX, as idéias de força, imanência e desenvolvimento são sintetizadas na idéia de evolução,” processo dialético do ser”,
fundado na natureza e na busca da consciência de si (ibid., p. 67).
Mas, assinala Antero, no mesmo século XIX a perspectiva do romantismo foi
contestada pelo surgimento de um naturalismo que questionava os grandes sistemas, em favor da busca de inspiração diretamente na realidade. Tal naturalismo mostrava que se a filosofia fecunda a ciência, não pode, contudo, substituí-la
no processo do conhecimento: “A cada ciência preside uma idéia fundamental.
Pode a filosofia, e essa é uma das suas funções, apropriar-se dessa idéia e de todas
elas, para as tornar matéria de suas especulações” (ibid., p. 69). Cabe à ciência “
desenhar, com os traços firmes das leis positivas, o quadro do universo na sua
59
QUENTAL, A. de, Tendências..., p. 59.
57
variedade e complexidade fenomenal;à filosofia, a missão de interpretar superiormente a significação desse quadro” (ibid., p. 70). A grande idéia filosóficocientífica que torna possível esse diálogo é uma nova compreensão da noção de
evolução. Mostra, sob a variedade dos corpos e formas, uma mesma matéria fundamental, inspirando as investigações da astronomia, da física, da antropologia,
da biologia, da geologia, da paleontologia, dentre outras ciências.
Na segunda metade do século XIX, o surto de desenvolvimento das ciências
levou à recusa da metafísica; no âmbito da ciência histórica, refutava-se a construção interpretativa de Hegel: história não é metafísica, não existe uma ordem
necessária dos fatos humanos que conduza à afirmação da liberdade e da consciência. Surge a Psicologia e o que isso produz é o “reconhecimento da unidade e
autonomia do eu e daquele fundo sentimento da sua própria liberdade e íntima
dignidade moral” (ibid., p. 75).
É no horizonte desses debates que emerge o espiritualismo francês, representado por Maine de Biran, Cousin, Ravaisson, dentre outros. Para muitos – assim
como para Antero – o espiritualismo não constituiu propriamente uma filosofia,
por reduzir-se à meditação sobre o homem moral, Deus, alma, infinito; recusara
a aliança com a ciência e tornou-se, na opinião do nosso pensador, uma “ontologia de mitos” (ibid., p. 77). Entretanto, ao fazer a crítica da metafísica tradicional
e do idealismo alemão, o espiritualismo assinalou o surgimento de uma crise que
foi crucial para a renovação da filosofia do tempo de Antero.
Na segunda metade do século XIX, o descrédito da metafísica e do idealismo
alemão teve como contrapartida a renovação do criticismo kantiano e o surgimento de uma nova filosofia vinculada às ciências. Nela, não há renúncia à
filosofia nem descrédito da razão, mas, antes, a filosofia “de metafísica torna-se
científica; de transcendental, realista; de dedutiva, indutiva” (ibid., p. 81). A resposta à crise é dada pelas filosofias de Comte, Spencer, Stuart Mill, dentre outros.
Mecanicismo, determinismo, necessidade são as notas dominantes, as palavraschave da nova filosofia da natureza; não há lugar para acaso, Providência, mas
apenas ordem invariável e fatal, previsível e cognoscível. A idéia dominante é a
de evolução, explicável pela sucessão de fatos e seu encadeamento e entendida
como “um estado progressivo de complicação e nada mais” (ibid., p. 84). Antero
reconhece nessas concepções algo grandioso e, ao mesmo tempo, “tenebroso e
desolado”, produto da inteligência científica; provavelmente, suspeita nosso autor, “envolve algum (...) problema ontológico, que lhe escapa” (ibid., p. 85); seu
fundamento é sempre a experiência, a generalização, o mecanismo; falta-lhe a
espontaneidade, “a realidade viva e misteriosa das idéias, da ‘ consciência’ para
além da sensibilidade”.
Aqui, a grande crítica do cientificismo do século XIX assinala a direção do
pensamento de nosso autor como busca de algo vivo e que diga respeito ao co-
58
ração, às aspirações morais. As perguntas: para que? por que? existe o universo e
qual o sentido da nossa vida nele, não são respondidas pelo cientificismo. Seria
então “ uma ilusão monstruosa essa concepção mecânica do universo?” (ibid.,
pp. 86-87). Não é assim que o poeta-filósofo vê. O cientificismo tem sua verdade, mas circunscrita aos limites dos dados empíricos, do mundo sensível. Sua
incompletude exige, da parte do homem, uma nova luz, que será representada
pela crítica do espiritualismo e pela volta a Kant e às suas fecundas idéias. A
posição de Antero prefigura, de certo modo, o imenso papel de renovação das
relações entre filosofia, ciência e ética que será epresentado mais tarde pelo neocriticismo e pela fenomenologia. Voltaremos a isso adiante.
Diz o poeta-filósofo: “O influxo do kantismo é bem sensível em todo este
processo de dissolução do velho espiritualismo” (ibid., p. 88). A crise profunda do espiritualismo antigo apela à renovação do espiritualismo pelo criticismo
kantiano. Esta renovação funciona como anteparo ao ceticismo e ao raso materialismo. A obra de Laplace, no entender de nosso autor, representa o novo espírito, pois, para ele, como destaca Antero, há uma tendência, na espécie humana,
para expressar o racional e o progresso nessa direção é o que a caracteriza.
A mecânica ignora as “causas, o ser íntimo e a realidade substancial das coisas” e é isso que a consciência conhece por si, “porque nela reside a noção de
que não é sensível (...) só ela tem a percepção imediata desse estrato mais fundo
do ser, inacessível [a partir] da pura sensibilidade” (ibid., p. 92). Consciência é
energia, sua essência é a espontaneidade; percebe o universo adaptando-o a si,
de modo que os fatos, inertes e inexpressivos, adquirem significado pela inteligência. Espontâneo na apreensão do conhecimento, o espírito o é também no
âmbito da vontade, Determina sua ação em função da própria vontade, da sua
força consciente. Conhece, não só a natureza, mas também a si próprio, gradualmente se identificando com o Eu Absoluto ou Deus, plenitude de Ser. A vida
moral consiste na realização dessa busca, finalidade do existir humano e da sua
liberdade. A síntese do pensamento moderno é, para nosso autor, a aproximação
entre o dinamismo mecânico da natureza e o dinamismo psíquico, estudados
respectivamente pela ciência e pela filosofia, sob a noção convergente de força.
Daí o poeta-filósofo dizer: “O espiritualismo dará ao materialismo o que lhe
falta, completando-se, por esta insuflação do espírito na matéria, a compreensão ao mesmo tempo positiva e especulativa do universo”. Pensar o mundo é
reconhecer a analogia entre pensamento e mundo; é postular, como princípio e
fundamento dela, a “identidade (...) do objeto e do sujeito”, sem a qual não seria
possível nenhuma reflexão sobre a realidade ou sequer a consciência da existência da realidade: “na espontaneidade da consciência, tem o caráter de evidência”
(ibid., p. 95).
Há uma racionalidade no universo e ela supõe uma unidade entre nosso espírito e a substância do mundo. O númeno, para Kant incognoscível, para Antero
59
existe em nós, está em nós. Essa afirmação do poeta-filósofo não é mera retomada do idealismo alemão do início do século XIX; expressa, antes, a renovação
do espiritualismo e o surgimento do neo-kantismo, de modo que o processo
do conhecimento é compreendido como uma interpretação da realidade, a qual
não é criada pela consciência, mas mostra-se a ela. Daí nosso autor dizer que
“a metafísica e a ciência não são (...) rivais, mas colaboradoras na obra do conhecimento (...) [não como] duas esferas opostas, mas como dois círculos concêntricos” (ibid., p. 97). Assim, o saber, compreendido na totalidade, implica o
experimental e o reflexivo, abarcando desse modo o ser.
O núcleo essencial da síntese proposta por Antero é a contraposição determinismo/liberdade, antítese que trata de superar mediante a introdução da idéia
de espontaneidade. Em tudo “ palpita (...) uma vontade própria, a vontade de
realizar o próprio fim. Há algo de espontâneo e um “acordo do Ser com a sua
verdade profunda e com a sua infinita virtualidade ainda nos fenômenos mais
elementares da matéria” (ibid., p. 98). Mesmo no nível mais elementar da expressão do ente, o ser “ é sempre causa: a sua idéia latente [é] a virtualidade
da afirmação plena de si mesmo (...) seu fim último vem já envolvido (...) nas
suas determinações mais elementares”. Isto quer dizer que todo ser busca sua
plena realização; no homem, a realização se chama liberdade. Daí nosso autor
dizer: “A liberdade (...) é (...) a espontaneidade quando plena” (ibid., p. 99), que
cria conscientemente a orientação da vida do ser, em vista de sua realização. No
caso do homem, determinar a si mesmo é expandir-se, buscando a perfeição da
liberdade no plano moral. Se Deus existisse, seria o ser no qual se expressaria a
plenitude absoluta da liberdade; no caso do homem, a liberdade está in fieri, é
plenitude nunca alcançada, em razão da sua essencial incompletude, como ser
moral.É identificando-se com o próprio ideal que o ser humano se torna o que
ele é.
Há graus de liberdade: no ser inconsciente de si mostra-se como espontaneidade, até mesmo das “simples atrações materiais” (ibid., p. 101); no caso do
ser humano, é consciência de uma ascensão, com o objetivo de expressar maximamente suas virtualidades. Daí nosso autor dizer: “A cadeia universal das
existências (...) aparece-nos como ascensão dos seres à liberdade” (ibid., p. 102).
A evolução não é cega, mas racional, tendo como finalidade a plena expressão
da liberdade, “aspiração profunda” do universo; não é casual, mas expõe um
progresso, uma mudança qualitativa, por uma irresistível atração em direção a
um ser mais.
A liberdade, a que o universo inteiro aspira, só se realiza no plano humano,
no plano da história, da construção do mundo da razão, da ordem moral e do
direito. Implica esforço sempre renovado em direção à justiça, que consiste no
desdobramento, no plano social, da energia moral.
60
O direito cria uma ordem, que sintetiza moralidade e liberdade; representa
a superação do jugo da fatalidade, a coincidência entre bem e dever. Renúncia
do egoísmo, “o caminho do direito (...) leva à liberdade, à perfeição, à beatitude”
(ibid., p. 107). Tornando-se, por essa renúncia, instrumento do bem universal,
o homem expressa a união do bem e da virtude, síntese que realiza a “ liberdade
suprema” e o conduz à aproximação a Deus, entendido por nosso autor como a
perfeição absoluta.
Liberdade, virtude, busca da perfeição: esse é, para o poeta-filósofo, o único
culto, a única inspiração válida, o único saber: “ Se só a perfeita virtude (...) define (...) a liberdade, e se a liberdade é a aspiração secreta das coisas e o fim último
do universo, concluamos que a santidade é o termo de toda evolução” (ibid., p.
108. Grifo nosso).
A trágica morte de Antero renova a indagação: até que ponto um poeta pode
ser filósofo? A filosofia e a poesia são ramos de um mesmo tronco, como diz
Heidegger no Da experiência do pensar?60. O dizer poético pode ter implicações
filosóficas; mas tentar dizer a filosofia pode silenciar o poeta? A trajetória de Antero não teria sido uma experiência dessa aporia, experiência do silêncio ou da
impossibilidade da linguagem, quando confrontada com o mistério? Ou indica,
antes, a impossibilidade da escolha entre filosofia e poesia, indissociavelmente
ligadas e reciprocamente fecundadas;duplo dizer que, focalizando o ser e o sagrado, fala de uma unidade originária, apenas entrevista mas permanentemente
buscada, do Bem, Beleza e Verdade.
A abordagem histórico-crítica da filosofia moderna, empreendida no Tendências... visa a compreensão de uma profunda crise e também entrevê a possibilidade de renovação que a aliança entre a filosofia e a ciência poderia trazer para
o homem do final do século XIX.
Antero, a nosso ver, antecipa e sintetiza, nos seus escritos, a grande problemática que encontrará em Husserl e Heidegger, no início do século XX, alguns de
seus expoentes: a discussão da crise da razão, que só pode ser ultrapassada por
uma meditação que examine, em profundidade, a finalidade da vida humana e
sua eticidade e liberdade. Antecipa também a renovação da compreensão dos laços entre filosofia e ciência, representada pelas contribuições do neo-criticismo
do início do século XX, e exposta nas investigações de Brunschvicg e Bachelard,
dentre outros, os quais, como Husserl, embora sob outra luz, também buscaram
estabelecer laços entre filosofia e ciência, ética e epistemologia.
60
HEIDEGGER, M., Da experiência do pensar. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 49. Tradução de Maria do Carmo Tavares de Miranda.
61
62
Biografias e modelos paradigmáticos do ethos:
São Paulo de Teixeira de Pascoaes
Na mais antiga tradição ocidental, Homero, Hesíodo e os trágicos gregos
narraram histórias dos deuses e heróis, propondo aos homens da cidade antiga
um ethos, um modo de ser que se caracterizava pela busca da areté, a excelência moral. Não se tratava de uma conformação a um modelo coletivo, mas da
individualização através do belo gesto que possibilitava ao indivíduo a auto-superação contínua. Indo além do vigente, imitando os deuses e heróis, instaurava
novos modos de ser e de realizar o humano. Assim concebida, a areté implicava
uma maturação, uma compreensão e uma disciplina que desencadeavam o salto
qualitativo em direção a um ser-mais. O que caracterizava o homem bom, era,
exercendo o hábito e a disciplina, expressar o ethos: ser o que verdadeiramente é,
realizar as possibilidades mais altas da própria existência. Tal realização não se
esgota na afirmação do sujeito como indivíduo isolado, mas encontra sua plena
expressão na comunidade, na cidade.
Sabedoria e prudência, fundindo conhecimento e ação, acham-se, nas obras
de Platão e Aristóteles, associadas à realização do Bem, na cidade perfeita. Assim
a reflexão sobre o ethos alcança, na tradição filosófica, sua culminância nas obras
de Platão e na formulação das éticas, de Aristóteles: a Nicômaco, a Eudemo, a
Grande Ética e mesmo na Política, afirmando a responsabilidade do indivíduo
por seus atos, pela escolha intencional que orienta a ação segundo o que o pensamento, o conhecimento reconhecem como bom. Aristóteles assinala também a
perfectibilidade do caráter, do ethos, que faz do homem adulto um bom cidadão,
realizando a felicidade própria e a dos outros. Abandonando o mal intencional,
a inteligência prática assinala como agir, de modo a expressar as qualidades propriamente humanas: razão e virtude, excelência moral61.
A tradição agostiniana acrescenta, às virtudes que possibilitam o bem-viver
no mundo, as virtudes teologais, que conduzem à salvação da alma. O objetivo
da vida humana não é apenas a expressão da prudência, da excelência moral,
mas da santidade: a caridade, a fé e a esperança. O santo é quem, na história do
Cristianismo, imita o Cristo, modelo paradigmático que inscreve, no tempo, o
caminho que conduz à eternidade.
Essa perspectiva está presente, como veremos adiante, na leitura de Teixeira
de Pascoaes da vida de São Paulo.
61
Solange VERGNIÈRES, Éthique et politique chez Aristote. Paris: PUF, 1995.
63
Um contemporâneo de Teixeira de Pascoaes, o filósofo alemão Max Scheler,
em uma obra importante, Modelos e Líderes62, fala do papel da pessoa na história
e dos modelos que marcam a vida humana no tempo: o santo, o gênio e o herói.
No caso do santo, o santo absoluto é Deus; o santo da origem é sempre uma
figura onde o real histórico e o mito, o dogma se confundem. Voltado para Deus,
o santo – como por exemplo Jesus Cristo – é oferecimento de um caminho, a
revelação de uma vivência profunda que repercute na posteridade tornando-se
presente, primeiro através de “seus discípulos imediatos e também pelos santos
seus imitadores (...) pela autoridade e tradição” que dele se originaram. O santo
é “presença viva nos que lhe dão continuidade” (ibid., p. 65.), influindo pelas
virtudes que expressou, e através de seus discípulos, manifestando a “misteriosa
(...) presença continuada do seu ser e agir” (ibid., pp. 67-68).
Em Teixeira de Pascoaes a biografia de São Paulo faz papel análogo ao sinalizado por Scheler, quando se refere aos modelos paradigmáticos do ser humano.
É um romance, uma narrativa, extremamente vívida e colorida, da existência
do santo. Supõe um conhecimento histórico das fontes, uma sólida ancoragem
na documentação que trata da época. Mas implica também uma liberdade criadora que descreve o acontecer como se o tivesse testemunhado pessoalmente.
É ocasião para importante obra poética, que também desvela o pensamento de
um grande artista, cujos comentários expõem, pouco a pouco, no desdobrar da
narrativa, sua própria perspectiva acerca do homem e do sentido da história.
A obra de Pascoaes apresenta pontos de analogia com grandes poetas contemporâneos, como Kazantzakis: também ele fala de Odisseu, fala do Cristo e da
tradição cristã, numa perspectiva muitas vezes heterodoxa, que resultou na sua
excomunhão e na proibição de ser enterrado em solo consagrado. Seu túmulo,
em Creta, fica no alto de uma colina, de onde se vê o porto e o mar. Voltando
a Pascoaes: a biografia é pretexto para o poeta compreender o Cristianismo, a
mudança histórica que representou, figurada pela trajetória de São Paulo. Com
Unamuno, citando Pascoaes, dizemos: “A idéia de Deus, no homem é o próprio
Deus a revelar-se humanamente” 63.
O que caracteriza o homem, na perspectiva de Pascoaes, é exceder “ seus
limites”, buscando um Deus que é “ sentimento da Origem e da unidade moral
das criaturas (...) força espiritual humanizada, convertida num ser perfeito ou
modelar”64. Para ele, São Paulo é o homem paradigmático que, na decadência do
Império Romano, busca expressar a esperança, o amor, a criatividade espiritual:
“Deu asas à besta trôpega, aproximou-a de Deus” (ibid., p. 29).
Pascoaes se interessa pela religião como revelação da poesia, expressão da
vida criadora, energia viva, superação da morte. O Cristianismo nascente asMax SCHELER, Modelos e Líderes. Curitiba: Champagnat, 1998.
Miguel de UNAMUNO, San Pablo y abre España!, in TEIXEIRA DE PASCOAES, São Paulo.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 19.
64
TEIXEIRA DE PASCOAES, “Prefácio”, in op. cit., pp. 24-25.
62
63
64
sumiu a perspectiva oposta às da decadência e da morte, que caracterizavam o
Império Romano no seu declínio. O Cristianismo afirmava a caridade, a igualdade, a imortalidade – para os escravos e os pobres, os marginalizados da época. Nosso poeta entende a relação entre Deus e as criaturas, entre eternidade e
tempo, como um movimento circular, onde o ímpeto criador inicial regressa ao
ponto de partida. Para ele, a eternidade contém todos os séculos e a totalidade
do tempo (ibid., p. 31). Na sua concepção, o homem existe e vive: “Existir é ser
abrangido pelo espaço; viver é abranger o tempo (ibid., p. 32).
O homem é o ponto central do universo, onde a natureza se torna consciência; é a consciência universal, que espiritualiza o mundo. Estabelecendo um
paralelismo entre o Paganismo e o Cristianismo, nosso autor mostra que, no
primeiro, as criaturas são sacrificadas aos deuses; no segundo, o filho de Deus
é sacrificado às criaturas. Paganismo e Cristianismo seriam faces da “mesma
religião eterna”, que põe os opostos em relação de complementaridade: “Deus
e o Universo, o Espírito e a Matéria (...) a Vida e a Morte” (ibid., pp. 33-34). O
Cristianismo representaria “a espiritualização do paganismo” (ibid., p. 36) e São
Paulo foi o intérprete do Cristo, da esperança, da religião que sintetiza a dor e o
amor (ibid., p. 37). Num sentido amplo, todo homem é religioso; não há ateus
nem crentes absolutos (ibid., p. 38), o que existe é o homem, vivendo um conflito, uma ambiguidade: participa do mundo, mas quer superá-lo. Seu viver é
contínua busca de ir além do já dado, pois “pressente a outra face das cousas – o
Infinito”, “o Criador (ibid., pp. 39-40).
O poeta entende que “a finalidade da nossa existência“ é o “aperfeiçoamento,
a redenção” (ibid., p. 40), a caminhada em direção ao futuro, à realização do impossível, da utopia. São Paulo representa, aos olhos do nosso autor, a promessa,
a aspiração à liberdade, à igualdade, à imortalidade, à instauração do Reino de
Deus. Como os poetas, o santo imagina um mundo futuro e afirma, apaixonadamente, sua possibilidade: um mundo onde cabem todos os sonhos, todas as
fantasias, “todas as estrelas” (ibid., p. 42).
Deus, para nosso poeta, é o Espírito, a Origem; o universo é “um sistema
de vibrações sensíveis, que se conjugam num todo harmonioso e numa aspiração ao estado consciente, a realizar-se na Humanidade” (ibid., p. 56). Para ele,
a tarefa do homem é “conhecer e adorar”; conhecer a matéria, o mundo, é fazer
ciência; conhecer o Espírito é religião, íntima crença, visão. Ambas convergem
no infinito e em nós, seres ambíguos, “encontro do corpo com o espírito”.
Pascoaes entende Jesus como um dos nomes de Deus, uma das revelações do
Espírito. Não é o Cristo histórico dos Evangelhos que o interessa; mas a lembrança da Origem, presente naquele. Cristo representa a esperança do renascimento,
da imortalidade, da redenção. Na sua opinião, podemos discernir na história
sinais da intervenção da Providência, que tece o sentido do tempo. A época em
65
que São Paulo viveu teve essas características; o poeta entende São Paulo como o
que encontrou o Cristo, quer dizer, o que encontrou “aquele profundo ser moral,
que principiava a revelar-se na Humanidade” (ibid., p. 44). A descrição da pessoa e da época de São Paulo é extremamente vívida: deve ter-se apoiado numa
sólida documentação histórica, que possibilitou ao poeta descrever, como se os
testemunhasse, a vida e o contexto do apóstolo.
Descreve a cidade de Tarso, onde o santo nasceu: montanha e planície; narra
que o avô de São Paulo recebeu em uma ocasião um importante general romano
em sua casa, dele recebendo, como pagamento pela hospitalidade, o título de
cidadão romano, estendido aos seus descendentes. Judeu, Paulo é também cidadão romano, título que lhe valerá como salvo-conduto em diferentes ocasiões.
Na juventude, foi enviado a Jerusalém, para estudar. Pascoaes descreve a surda
tensão da cidade: nela viviam diferentes seitas de judeus ortodoxos, que odiavam
Roma, que os oprimia. Na cidade, dentro da comunidade judaica, sucessivos indivíduos se apresentavam como o Messias, incitando o povo contra a dominação
romana. A opressão gerou ódio, fanatismo, assassinatos. Bom religioso, educado
no estudo da lei judaica, Paulo perseguirá os cristãos, vistos pelos judeus ortodoxos como heréticos.
A conversão, o apostolado, as prisões e a chegada de São Paulo a Roma –
como prisioneiro e como romano – são descritos pelo poeta num crescendo, que
culmina com o estabelecimento de um paralelismo, nos últimos capítulos do
livro, entre Nero e São Paulo.
Nos capítulos que falam da chegada de São Paulo a Roma, Pascoaes medita
sobre o sonho humano, a revelação da Verdade: a mensagem sobre a morte e a
ressurreição de Cristo, é acolhida pelos pobres e escravos, que se alegram com
a religião do amor e do espírito. Diversamente dos intelectuais e da plebe livre e
bruta, que experimentam, os primeiros, o tédio em relação à vida e aos festins,
e os segundos, o vazio da embriaguez e da ferocidade, do pão e circo – os mais
desvalidos, os mais pobres e excluídos se rejubilam com a descoberta da nova
irmandade. São Paulo apresenta a eles um “guia moral ou protótipo” (ibid., p.
243): o Cristo como modelo do novo homem.
No grande circo, o Coliseu, cem mil espectadores, “ébrios de vinho e de sangue” (ibid., p. 245); nas ruas, nos subúrbios pobres, os doentes, os famintos, as
prostitutas e os criminosos, os escravos, procuram o santo, que neles inspira
esperança, falando de Cristo. Mostra “ que tudo é em Deus”, que “o amor transformou os deuses em Deus e (...) os homens no Homem, naquele protótipo idealizado, que é Jesus Cristo” (ibid., p. 252).
Que é o homem? “Um impossível realizado”, a ponte entre o céu e a terra,
“espírito e matéria em busca da liberdade, da imortalidade” (ibid., p. 265). Quer
edificar o reino de Deus, o reino da esperança, da igualdade, da universalidade.
Diz Pascoaes: “uma nova alma embriaga tudo; e tudo é alma (...) O período clás66
sico é o da arte, da sensualidade e da riqueza (...) [ o Cristianismo é o período]
dos pobres e dos poetas, fora de todas as muralhas (...) na amplidão do mundo”
(ibid., p. 257).
Nosso autor tece um paralelismo entre a decadência de Roma e nossa época,
que vive o inferno da fábrica, a adesão ao mecânico, o prestígio da técnica. A analogia não se detém aí. O poeta anuncia a chegada de uma nova onda do espírito,
que levará o homem a cumprir seu destino “religioso ou de elevação perpétua
para Deus, seu destino de conhecer e amar” (ibid., p. 263). A crítica à civilização
técnica é retomada no último capítulo do livro, quando o poeta contrapõe poesia
e técnica, e denuncia a “orgia industrial moderna”, que produz a morte da alma:
a “existência delirante”; e a morte do corpo, num mundo de “gases asfixiantes,
máquinas perversas”; mundo que depende de materiais esgotáveis, de recursos
não renováveis (ibid., p. 263).
O Cristianismo é o mundo da poesia, da caridade, da pobreza, da confraria
dos irmãos.
No último capítulo do livro, Pascoaes contrapõe Nero e São Paulo, apresentando-os como as duas faces da mesma moeda. Os atos de Nero, que culminam no incêndio de Roma imputado aos cristãos, são a metáfora da decadência
do Império. Nero, imperador e artista, representa o niilismo e a canalha, que o
aplaude e nele se vê, engrandecida.
Como se assemelham Nero e São Paulo? Ambos concorrem para a destruição
de Roma, símbolo da mentalidade antiga. Nero a incendeia concretamente; Paulo a incendeia pela palavra. Ambos exprimem, de modos diversos, a “História
(...) feita por um Espectro invisível, que nos dirige para fins só dele conhecidos”
(ibid., p. 287).
A espantosa decadência de Roma é descrita no capítulo sobre o espetáculo do
circo, onde serão massacrados os cristãos, aos quais fora imputado o incêndio da
cidade. O espetáculo da morte, o sofrimento atroz, representam cenas de mitos
antigos: “Hércules, nas chamas, Orfeu devorado por um urso, Pasifae entregue às
fúrias dum touro, Laureolas crucificado e as Danaides, com todos os ultrajes ao
pudor” (ibid., p. 290).
O poeta vê, no martírio, a metáfora da condição humana: natureza que sofre,
ama e se transfigura em Cristo (ibid., p. 291). Os cristãos eram oferecidos à fome
de feras que não comiam há vários dias. O pesadelo dos mártires é celebrado
pela turba que enche o Coliseu, ávida de álcool e de sangue. Na destruição, despedaçamento dos cristãos, as feras, diz o poeta, comungam os santos e a ferocidade é convertida em santidade, irmanando homens e feras “em Deus, criador
dos homens e das feras” (ibid., p. 293). Os espetáculos se sucedem, até o por do
sol: “ a morte é vermelha”, diz o poeta. Descreve o anoitecer: Nero canta e dirige
as corridas de carruagens, ele próprio cocheiro. Os postes das avenidas de Roma
67
estão cheios de corpos de cristãos, amarrados, envolvidos em sacos de resina e
enxofre. Os cristãos serão tochas humanas, que iluminarão “ as avenidas, durante as corridas de quadrigas e folguedos populares” (ibid., p. 295).
A transfiguração do mundo, o surgimento de uma nova época da história
tem em São Paulo seu arauto emblemático. Ele e Nero concorrem “para a destruição do Paganismo” (ibid., p. 300): Nero, pela loucura e devastação que provoca ao seu redor; São Paulo porque interpreta a verdade, identificando-se com
Cristo e afirmando que Deus é liberdade e amor. Situa-se, “para lá do Bem e do
Mal”, valorizando o homem, não o pecado (ibid., p. 302). Precede, assim, Santo Agostinho, Bossuet, Dostoievski, Nietzsche, na opinião do poeta. São Paulo
representa a nova face do mundo, a reiteração do valor do sagrado, da poesia;
assinala a possibilidade da superação da decadência, do ateísmo, do ceticismo e
do racionalismo estéreis. Representa uma nova etapa da expressão do Espírito
na história. Contrapõe a pobreza à riqueza, a caridade à violência, o silêncio e
meditação ao circo e ao prostíbulo, a vida eterna à vida terrena, o reino de Deus
ao Império, o passado ao futuro, o sonho à realidade imediata.
Na perspectiva de Pascoaes, como na do romantismo alemão, sobretudo em
Hegel, para quem os povos e personagens históricos são expressões do Espírito
no tempo; bem como na perspectiva de Scheler, na importante obra Modelos e
Líderes, as figuras emblemáticas das diferentes épocas são modelos do ethos e
expressam a evolução da humanidade em direção a um ser-mais.
Ao recriar, na literatura, a vida de São Paulo, Pascoaes expôs sua própria concepção do homem e sinalizou o papel do Cristianismo numa profunda mudança
da história, através da atuação dos santos que a protagonizaram, como instrumentos do Espírito. Ao traçar, brevemente, um paralelismo entre a queda de
um Império e a nossa época, o poeta assinalou a decadência contemporânea
espelhada no homem que perdeu a consciência crítica acerca de sua existência,
seduzido pelas máquinas, “desviado de seu destino”. Mergulhado nas exigências
crescentes da civilização técnica, o homem contemporâneo se embrutece. A decadência da civilização técnica precisará ser superada, para que a alma floresça,
para que a liberdade e a poesia sejam novamente possíveis. O poeta acredita que
a santidade e o amor, a esperança e a fé, a expectativa da intervenção providencial na história, são os caminhos de uma renovação possível.
Estaríamos vivendo um ponto de ruptura, uma virada histórica análoga à que
o surgimento do Cristianismo representou na época do fim do Império Romano. E o poeta nos convida a escolhermos a direção da mudança profunda, que
assegure que o sonho e a imaginação predominem e que o sagrado de novo se
avizinhe.
68
Diálogo da Renascença Portuguesa com o Brasil
Movimento filosófico-cultural, fundado no Porto, em 1912, por Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Leonardo Coimbra, visava mobilizar as “reservas espiriturais”
do povo português, a fim de superar a crise em que o país se achava mergulhado.
Seus expoentes são: Leonardo Coimbra, o filósofo do criacionismo, e Teixeira
de Pascoaes, o poeta da saudade. Seus temas comuns: a crítica da modernidade,
do positivismo, a meditação sobre Deus e o mal, a nostalgia do Absoluto, a valorização da liberdade.
O movimento buscava fazer emergir em Portugal um pensamento novo, inspirado nas correntes filosóficas “em ebulição na Europa (…) do anarquismo ao
cristianismo”65.
Em 1910, estudantes que lutavam contra o ditador João Franco criaram a
revista A Águia; são eles: Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra e Álvaro Pinto.
Com a adesão ulterior de Teixeira de Pascoaes, foi fundada a associação cultural Renascença Portuguesa, que adotou a revista A Águia como seu órgão de
expressão.
Leonardo Coimbra é considerado como um dos autores que representam a
reflexão filosófica mais fecunda em Portugal no século XX66. Sua meditação se
caracterizou por uma recusa do positivismo e do evolucionismo, que o conduziu
a propor uma filosofia de caráter espiritualista e metafísico, o criacionismo, que
tem como eixo uma inspiração cristã. Concebia a criação como um espelho do
amor divino e o mal como decorrência da liberdade do homem quando este se
recusa a percorrer a via ascensional em direção à plenitude do ser.
Teixeira de Pascoaes propõe uma mitopoética da saudade, entendida como
nostalgia do Absoluto e como síntese de paganismo e cristianismo. O neo-paganismo de Pascoaes expresso na poesia como “messianismo profético” e celebração da natureza sacralizada67, tem como contraponto e expressão filosófica o
criacionismo de Leonardo Coimbra.
O movimento se propõe, no plano prático, a atuação no campo da educação,
lugar privilegiado da renovação e resgate espiritual do povo português. Mostra
SEABRA, J. A., “Da Renascença Portuguesa à Nova Renascença: ponte para o futuro”, in Actas
do Colóquio Internacional de Pensadores Portuenses Contemporâneos. Lisboa: UCP/INCM, 2002,
vol. I, p. 23.
66
Id., op. cit.; PINHARANDA GOMES, J., A “Escola Portuense”. Porto: Caixotim, 2005.
67
PASCOAES, T. de, Maranus. Lisboa: Assírio e Alvim, 1999, passim.
65
69
essa inquietação a criação de universidades populares e livres, a edição de obras
filosóficas, artísticas, científicas, históricas e a criação em 1919 da Faculdade de
Letras do Porto.
Com a ascensão de Salazar, A Águia deixa de ser publicada e a Faculdade de
Letras é extinta. Os intelectuais que fundaram o movimento ou se afastaram da
vida pública – como Pascoaes – ou se encaminharam para o exílio, como Jaime
Cortesão.
Em 1932, um novo grupo inspirado pelos ideais da Renascença Portuguesa
emerge, aglutinando antigos alunos da Faculdade de Letras: dentre eles Delfim
Santos, Adolfo Casais Monteiro.
Em Lisboa, outros discípulos de Leonardo atuam através de grupos de estudo
e de revistas, retomando os ideais da Nova Renascença. São seus antigos alunos
que propõem “um diálogo entre as civilizações e as culturas, no horizonte de
uma civilização do universal (…)”68. Destacamos dentre os participantes, Agostinho da Silva.
Braz Teixeira mostra, em um texto apresentado no Congresso de Pensadores
Portuenses Contemporâneos69, as diferentes etapas da reflexão filosófica desenvolvida no Porto e seus laços com o Brasil entre 1840-1950. Assinala a importância, em um primeiro momento, das filosofias de Sampaio Bruno, Leonardo
Coimbra e Farias Brito (pensador brasileiro), assim como a sua inspiração para
as duas escolas filosóficas mais importantes “de Portugal e do Brasil no século
XX” (ibid., p. 235).
Discípulos de Leonardo, como Agostinho da Silva e Delfim Santos, bem
como outro intelectual que não foi aluno de Leonardo, mas tinha orientação
filosófica análoga à dos membros da Renascença Portuguesa – Eudoro de Sousa
--pertenceram a um grupo de estudiosos que “no início dos anos 40, em torno de
Álvaro Ribeiro, José Marinho e Sant’Anna Dionísio, tomaram em mãos o legado
de (…) Leonardo, Pascoes (…)” (ibid.). Do grupo participaram Afonso Botelho,
Antonio Quadros, assim como outros filósofos, poetas, escritores, artistas.
É através dos discípulos de Leonardo que “a fecunda lição”do mestre repercute no Brasil70. Os ideais da Renascença Portuguesa são amplificados, tornandose projeto de reformulação e resgate do sentido do homem e da vida social. O
diálogo se dá através da relação dos pensadores portugueses com membros da
SEABRA, J. A., op. cit., pp. 33 e segs.
BRAZ TEIXEIRA, A., “O Porto e o diálogo filosófico luso-brasileiro”, in Actas…, vol. I, p. 217242. Ver também: id., O essencial sobre a filosofia portuguesa (séculos XIX e XX), Lisboa, INCM,
2008.
70
Id., ibid., passim. Ver também LEITE, R. M., e LEMOS, F. (orgs.), A missão portuguesa. Rotas
entrecruzadas. Bauru/SP. EDUSC/Editora UNESP, 2003, passim; e GOBB, M. V. Z.; FERNANDES,
M. L. O.; JUNQUEIRA, R. S., Intelectuais portugueses e a cultura brasileira. EDUSC/UNESP, 2002,
passim.
68
69
70
Escola de São Paulo, exponencialmente representada por Vicente Ferreira da Silva e Miguel Reale.
É através da criação do Instituto Brasileiro de Filosofia, por Miguel Reale,
em 1949, e da Revista Brasileira de Filosofia, em 1951; da revista Diálogo (1955),
fundada e dirigida por Vicente Ferreira da Silva, e da revista Cavalo Azul, criada
e dirigida por Dora Ferreira da Silva, sua esposa, após a morte repentina de Vicente – que o diálogo também ocorreu.
No Brasil, Agostinho e Eudoro mantiveram por breve tempo, mas com intensidade, contato direto com Reale e Vicente; o diálogo à distância, epistolar, e
durante a visita que fez ao Brasil, foi o realizado com Delfim Santos71.
Os temas comuns foram a meditação sobre o sagrado, a reflexão sobre a cultura, a afirmação da liberdade e do laço profundo entre filosofia e poesia. Como
na Renascença Portuguesa, no Brasil os expoentes dos dois campos – filosofia
e poesia – tornam seus caminhos complementares. A poesia de Dora Ferreira
da Silva e a reflexão de Vicente Ferreira da Silva e de Reale evidenciam aspectos desse diálogo. Um texto importante de Vicente, Sobre a poesia e o poeta, foi
escrito por Vicente, asseverava Dora, com sua colaboração; Reale aventurou-se
pela poesia, e fez estudos sobre os laços entre Direito e Literatura, que ainda
repercutem.
A participação de Agostinho e de Eudoro, nas três revistas, mostra o diálogo
continuado entre autores brasileiros e portugueses. Os temas do sagrado, da filosofia da mitologia e da mística são axiais nessa troca. Por sua vez, Reale, presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia, promoveu o estreitamento de laços entre os pensadores–herdeiros dos ideais da Renascença Portuguesa, como: Delfim
Santos, Antonio Quadros, Afonso Botelho, acolhidos em congressos e reuniões
científicas no Brasil e como colaboradores da Revista Brasileira de Filosofia.
Neopaganismo, cristianismo, mística72: impossível não lembrar a síntese da
vertente leonardina e da vertente pascoalina realizada na trajetória dos escritos
de Dalila Pereira da Costa, pensadora do significado simbólico de Portugal e
de seus laços com o Brasil. Emblema dessa reflexão é o texto: “A ‘Peregrinação’:
uma ascese portuguesa”, publicado na revista Cavalo Azul73. O texto aborda os
temas do sagrado, do sacrifício, do amor, do significado da aventura marítima
dos portugueses. Nele repercute a dupla inspiração de Leonardo e de Pascoaes:
dizer o sentido do homem e do mundo, mediante a reflexão sobre a travessia da
vida e do tempo, entendida como caminho ascensional e resposta à nostalgia do
Absoluto.
SANTOS, F. D. e CARVALHO, J. M. de., Delfim Santos e o Brasil. Lisboa: Arquivo Delfim Santos,
2011.
72
SILVA, C. H. do C., “Filosofia e mística na Escola Portuense ou destino místico de uma literatura
pensante?”, in Actas..., vol. I, pp. 291-322. Menções a Dalila Pereira da Costa, pp. 297 e 306.
73
COSTA, D. P. da., “A Peregrinação: uma ascese portuguesa”. SP: Cavalo Azul, n. 8, Maio-Junho,
1979, pp. 85-108. Ver também, infra: Dora Ferreira da Silva. Caminhos em direcção ao sagrado.
71
71
A repercussão no Brasil dos ideais da Renascença Portuguesa se efetuou pelo
recurso a fontes comuns da tradição filosófica ocidental destacando-se a mística de inspiração neoplatônica e agostiniana, na qual o percurso do homem
no tempo e no espaço é lido como possibilidade aberta de uma via ascensional
em direção a Deus, como se pode ver na leitura da história de Dalila Pereira da
Costa, Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Antonio Quadros, Vicente Ferreira
da Silva. E também o recurso a fontes fenomenológicas na axiologia de Reale,
na fenomenologia da religião e nas obras de Husserl, Heidegger, em Eudoro de
Sousa, Vicente e Dora Ferreira da Silva. Na confluência do rigor crítico e da
formulação de um poetar pensante, podemos ver ainda, nesses autores a busca
da matriz grega, a retomada dos pensadores originários; a valorização do mito
como acesso ao limite extremo da possibilidade da linguagem, tal como encontramos, por exemplo, na lição de Eudoro de Sousa e seus discípulos brasileiros
– dentre os quais destacaria o esplêndido trabalho de Ordep Serra, de traduções
críticas e comentadas dos hinos homéricos.
A repercussão se dá também através de uma importante ação educativa e
cultural, realizada exponencialmente por Casais Monteiro, Eudoro de Sousa,
Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, representada: a) pelo oferecimento de cursos de altíssima qualidade e, mais profundamente, pela contribuição na criação
de universidades e bibliotecas, centros de estudo, e atuação em universidades
recém-criadas no Brasil:Brasília, Federal da Paraíba, Federal de Santa Catarina,
criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia,
para citar apenas algumas; b) pela promoção e participação importante em eventos e congressos: o congresso do IV Centenário da fundação de São Paulo; o
Congresso Luso-Brasileiro de Escritores na Bahia; a participação nos congressos
realizados pelo Instituto Brasileiro de Filosofia; c) mediante a atuação editorial
e em jornais de grande porte em São Paulo e Rio de Janeiro; estudos de Jorge
de Sena74sobre cultura e literatura brasileira, mencionando uma das mais importantes vozes da poesia brasileira contemporânea, Hilda Hilst; d) através da
contribuição de Jaime Cortesão como historiador e investigador, promovendo
a publicação de textos portugueses na Editora Livros de Portugal; e) através das
lições de Casais Monteiro, Jorge de Sena, Vitor Ramos, em Assis e Araraquara,
e mesmo fora das universidades, como escritores, jornalistas, artistas, eruditos,
promovendo a renovação do teatro, concertos e recitais.
Essa espantosa atuação dos intelectuais portugueses na vida universitária e
cultural do país levou o Professor Antonio Cândido de Melo e Sousa, da Universidade de São Paulo a falar de uma “missão portuguesa”75, por analogia com
SENA, Jorge de, Estudos de Cultura e Literatura Brasileira. Lisboa: Edições 70. Aborda o livro da
poetisa Hilda Hilst (que era amiga e frequentou a casa de Vicente e Dora Ferreira da Silva), Trovas
de muito amor para um muito amado Senhor. São Paulo: Ed. Quíron/INL, 1980, p. 273.
75
MELO E SOUZA, A. C., in GOBBI, FERNANDES, JUNQUEIRA, Intelectuais portugueses e a
74
72
a chamada de “missão francêsa”, colaboração de professores franceses que, com
sua atividade e presença, marcaram profundamente a Universidade de São Paulo
nos anos de sua fundação. A expressão “missão portuguesa” designa a atuação
dos intelectuais portugueses, com resultados convergentes, apesar de terem vindo individualmente, como exilados, num primeiro momento.
É sobretudo na área de Letras que a compreensão do ideal da Renascença
Portuguesa se expõe, no Brasil. No campo da Filosofia, o Grupo de São Paulo, a
Escola de São Paulo, polarizados em torno de Vicente Ferreira da Silva e Miguel
Reale, expressou o acolhimento das teses centrais da Renascença: a concepção
de uma ética voltada para o amor e o serviço ao outro, para a promoção de ser;
a concepção da história como projeção, no tempo, dos mitos fundadores que
inspiram a ação; a expectativa de uma superação possível da crise da civilização
ocidental, na direção de uma nova concepção do homem e do sagrado; a prioridade do mito e do símbolo sobre a razão discursiva e instrumental.
A fundação em 1990 do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira com o apoio
em Portugal de Francisco da Gama Caeiro e de Miguel Reale no Brasil, assim
como os colóquios Tobias Barreto e Antero de Quental, promovidos desde então
alternadamente, ora em Portugal ora no Brasil, visaram favorecer o estudo sistemático das relações Brasil-Portugal no âmbito da especulação filosófica. Mostraram a repercussão contemporânea do projeto de renovação da vida do espírito
e da valorização do diálogo, assim como possibilitaram o exame sistemático dos
marcos dessa tradição espiritual76.
Num tempo mais próximo de nós, as revistas Nova Renascença, fundada em
1980 por José Augusto Seabra (entretanto extinta), e Nova Águia, lançada em
2008 (e que se mantém: novaaguia.blogspot.com), reativam as propostas dos
mestres inspiradores, ampliando-as na direção de um aprofundado diálogo internacional, que visa sugerir alternativas de ultrapassamento da nova e grave
crise contemporânea na qual todos os povos se acham mergulhados. Uma dessas
alternativas é o estímulo e o favorecimento de uma aproximação entre os povos
lusófonos.
Uma última observação: à margem da universidade mas com repercussão intensa, a poesia de Carlos Maria de Araújo tem ressonâncias importantes na obra
poética de Hilda Hilst. Ao poeta português, que viveu vários anos no Brasil, ela
dedica no grande poema Trajetória Poética do Ser, os versos da parte intitulada
“Iniciação do Poeta”; e na morte do amigo, dedica a êle os belíssimos versos de
Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araujo, série de poemas
divididos em duas séries: Corpo de Terra e Corpo de Luz.
cultura brasileira. São Paulo: EDUSC/UNESP, 2002. Ver também LEMOS, F., e MOREIRA LEITE,
R. (orgs.), A missão portuguesa. Rotas entrecruzadas. São Paulo / Bauru: EDUSC/UNESP, 2003.
76
BRAZ TEIXEIRA, A., O Porto e o diálogo..., pp. 217-241.
73
São de Corpo de Terra os versos:
Dorme o amigo no seu corpo de terra/ E dentro dele, a crisálida amanhece: / ouro primeiro, larva, depois asa/ hás de romper a pedra, pastor e
companheiro.
E de Corpo de Luz os versos:
Teu sono não é o sono vulgar. Estendes a vigília/ E apareces através da
opacidade / Também assim / Repousa o mar77.
A música dos versos de Carlos Maria Araújo parece estar presente na poesia
de Hilda. Um estudo comparado para estabelecer a profundidade e os limites do
diálogo entre os dois poetas assinalaria, a nosso ver, aspectos ainda pouco estudados do significado amplo e marcante, no Brasil, das relações inspiradas pelo
movimento da Renascença Portuguesa.
77
HILST, H., Poesia. São Paulo: Ed. Quíron/INL, 1980, pp. 273-274.
74
Verdade, ciência e poesia em Milton Vargas
1. Introdução
Nascido em Niterói, Milton Vargas foi cedo com a família para São Paulo.
Estudou no Colégio de São Bento, com Vicente Ferreira da Silva, do qual desde
então tornou-se amigo.
Fez o curso superior de Engenharia na Escola Politécnica da USP e em 1946,
o Mestrado em Harvard, tornando-se ulteriormente em 1952 professor da Escola
Politécnica da USP, aí chegando a ser catedrático e professor emérito.
Como engenheiro, recebeu diversos prêmios, dentre os quais o Jabuti e o Roberto Simonsen; foi agraciado com medalhas de mérito, pelo governo brasileiro,
por sua contribuição ao país.
Sua obra, como cientista e pesquisador, desenvolveu-se nos âmbito da Mecânica dos Solos, Metodologia da Pesquisa Tecnológica. Fez importante contribuição para Filosofia da Tecnologia, publicada em 1994. Foi um dos fundadores da
Sociedade de estudos sobre a História da Ciência, campo ao qual dedicou vários
livros e artigos.
A vertente científica da obra de Milton Vargas, resumida em dois escritoschave: Verdade e Ciência (1981) e Para uma filosofia de tecnologia (1994), mostra
uma reflexão original, aberta à inovação e aos valores do saber científico, pensado
a serviço do homem.
Essa vertente é contraponteada por uma série de artigos, a respeito da essência
do poético, publicados nas revistas Diálogo, a partir de 1955, encerrando-se em
1979; e na Cavalo Azul, dirigida pela poetisa Dora Ferreira da Silva, ulteriormente
enfeixados no livro Poesia e Verdade78.
Paralelamente ao exercício do magistério e ao trabalho como engenheiro na
THEMAG, firma que ajudou a fundar, dedicou-se à Filosofia e à crítica literária.
António Braz Teixeira o situa como um dos membros da Escola de São Paulo
e Gilberto de Meio Kujawski como um representante do Grupo de São Paulo79.
A presença de autores que pertenceram ao círculo ou foram aí estudados, citados
nas obras de Vargas, assim como a corrente filosófica a que se vincula, evidenVARGAS, M., Poesia e Verdade. São Paulo: Duas cidades, 1991.
Veja-se também nosso O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000. E o texto de BRAZ
TEIXEIRA, A., “Conhecimento e ‘senso comum’ no pensamento de Heraldo Barbuy e Gilberto de
Melo Kujawski”, in Revista Cultura, nº 29 (nova série), 2013.
78
79
75
ciam os laços estreitos que manteve com o Grupo de São Paulo e com o campo
da Filosofia. Em 1951, foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia,
tornando-se seu vice-presidente por vários anos, aí ministrando cursos de Filosofia e História da Ciência. Fundou, em 1983, a Sociedade Brasileira da História
da Ciência, da qual se tornou o primeiro vice-presidente.
2. Verdade e Ciência
Considerado um autor que se caracteriza pela busca inovadora, nas perspectivas de Shozo Motoyama e de Jorge Pimentel Cintra80, no que tange ao exame
do significado e papel da ciência e da tecnologia, assim como de suas implicações éticas no mundo de hoje, Milton Vargas tem como ponto de partida de sua
meditação81 a afirmação de Jaspers de que a ciência é conhecimento irresistivelmente certo, cuja verdade independe de ideologias, princípios religiosos, opiniões pessoais. Ao tentar compreender por que Jaspers vê na ciên­cia uma “certeza
irresistível’’ (ibid., p. 7), nosso autor busca uma resposta examinando a história
da ciência, mostrando que a ciência se apresenta como uma invenção dos gregos
no século VI a. C. Estuda, assim, a caracterização da ciência ao longo dos séculos
da sua história, no Ocidente.
A investigação de nosso autor seguia essa direção quando descobriu, em 1960,
um texto de Popper, A lógica da investigação científica, no qual Popper introduz a
noção de falseabili­dade como elemento demarcador entre ciência e não ciência.
Vargas vê, nesse texto, uma tese complementar à de Jaspers. A ciência implica,
segundo Jaspers, uma certeza irresistí­vel que torna suas verdades compulsórias,
mas cuja “validade se restringe às circunstâncias em que foram experimentadas”
(ibid., p. 9. Grifo nosso). Por sua vez, Popper diz que as teorias devem poder ser
falseáveis, para serem científicas; mas diz também que “não são verdadeiras fora
de circuns­tâncias experimentais em que se expõem como tais” (ibid. Grifo nosso)
como já o afirmara Jaspers, diz Vargas.
Qual o valor da complementaridade percebida por nosso autor entre as teses
de Jaspers e as de Popper? É a de ajudar a compreender a demarcação entre filosofia e ciência. Esta demarcação está intimamente relacionada com o problema
da “verdade das asserções científicas e filosóficas” (ibid., pp. 91 e 93) e com o
esclarecimento do que é ciência.
Para realizar esse intento, o de esclarecer o que é ciência e o que é verdade, nos
âmbitos da ciência e da filosofia, Vargas retoma o confronto das teses de Jaspers e
de Popper, bus­cando novamente mostrar que são complementares e não opostos
absolutos. Apresenta, para tanto, inicialmente, a concepção de ciência de Jaspers,
80
MOTOYAMA, S., “Apresentação”, pp. IX e X, in VARGAS, M., Para uma filosofia da tecnologia.
SP: Alfa-Ômega, 1994; CINTRA, J. P. Prólogo, p. XI, in op. cit.
81
VARGAS, M., Verdade e Ciência. SP: Duas Cidades, 1981.
76
evidenciando sua pretensão à validade universal, a referência às hipóteses que a
fundamentam e o caráter de conheci­mento que vale por si, que se impõe por si.
Em seguida, Vargas apresenta a concepção de ciência de Popper, mostrando
que nela teoria e experiência se conjugam e que o saber daí resultante é essencialmente um saber capaz de falseação. O critério de cientificidade de um saber é
pois a falseabilidade, não a verificabilidade. A característica da ciência é ser conjecturai, teoria só validada enquanto não refutada por fatos, quer dizer, enquanto
teoria “potencialmente refutável”.
Para nosso autor, Jaspers e Popper são opostos complementares, uma vez que
a ciência exige o contínuo confronto com a realidade, para assegurar suas certezas; mas se impõe a nós como verdade inexorável. A idéia de um saber cuja verdade é provisória, compor­tando reformulações para se aproximar do real seria
o denominador comum entre Jaspers e Popper. A busca do conhecimento é a
busca da verdade e da compreensão de um con­junto de coisas, decifração de um
mundo. A decifração repercute sobre o homem, modificando sua relação com os
outros homens e também com seu próprio compreender, con­sigo mesmo e com
seu modo de ser.
Milton Vargas recorre, para expor sua concepção de ciência e verdade, a textos de Vicente Ferreira da Silva e de Eudoro de Sousa, assim como a Husserl,
Heidegger, De Waelhens, Delfim Santos. Apóia-se, portanto, na escola de inspiração fenomenológica e heidegge­riana que, em Portugal e no Brasil, difundiu
uma nova visão de ciência, verdade, homem, marcante desde então na filosofia
luso-brasileira.
O pensador aplica ao campo da epistemologia a tese central de sua leitura
da história da ciência: uma nova teoria não exclui totalmente a anterior, mas
responde a novos desafios, aos quais a teoria anterior não foi capaz de responder.
Assim, todas as teorias devem ser focalizadas à luz do contexto histórico-cultural
em que nasceram e ter sua validade cir­cunscrita aos paradigmas e eventos que
pode abarcar, nos marcos de sua atuação possível.
Mantendo a sua adesão inicial à escola fenomenológica, Vargas discute a
questão da relação entre verdade e não-verdade à luz dessa escola. Faz, para tanto, o confronto das teses da fenomenologia com as do neopositivismo. Afirma
que verdade é “algo que se diz de alguma coisa; está portanto [relacionada com
a] linguagem (...) [mas] também [é] alétheia, descobertura (...) de uma realidade
que tendia a encobrir-se por trás das aparências enganosas dos fenômenos (...)
[daí] verdade é dizer teoricamente o que a realidade (...) é” (ibid., p. 111).
Outro marco importante da meditação de nosso autor foi a leitura da obra
Lógica, Semântica, Metamatemática, de Tarski, cujo capítulo dedicado ao conceito de verdade em linguagens formalizadas o impressionou vivamente. O texto
de Tarski, descoberto em, 1960, na tradução brasileira, fora publicado em 1935.
77
Põe em relevo as dificuldades para se falar da verdade no âmbito da linguagem
coloquial. As linguagens formalizadas valem­-se da escolha de sentenças axiomáticas das quais deduzem conseqüências consideradas verdadeiras, desde que
obedeçam a regras de inferência previamente definidas. Para que tais sentenças
possam ser verdadeiras em relação ao mundo, as linguagens formalizadas deverão ter sentido material. Utilizando o recurso a sentenças comprováveis por
dedução de axiomas verdadeiros, Tarski construiu uma definição geral das sentenças verdadeiras, propondo uma classe a que estariam submetidas todas as
sentenças verdadeiras. Chamou a essa classe de definição adequada de verdade,
quando dela resultaram sentenças verda­deiras, isto é, sentenças que satisfaziam
todos os objetos de uma classe.
Em 1952 Tarski publicou outro escrito, Semântica e filosofia da linguagem, no
qual expôs a concepção semântica de verdade, estudando a aplicação da noção a
outros ramos de ciência, como a Matemática e a Física.
Inspirado em Tarski, Vargas entende a verdade como expressão adequada à
realidade como experiência. Essa adequação supõe a coerência lógica do sistema
científico como sua condição; e também a verificação, que interpreta os dados e
o que é expresso por ela. Realiza, assim, uma concepção de ciência que implica:
coerência lógica, adequação epis­temológica, verificação empírica e certeza irresistível, como suas características, fundindo as três vertentes em que se apóia:
Jaspers, Popper, Tarski.
Essa concepção de ciência, fundada na coerência lógica e verificação empírica, deve contudo levar em conta que há graus de universalidade, de modo que
uma teoria científica só tem validade no horizonte das circunstâncias em que
“suas asserções são satisfeitas com seus objetos”, tanto no âmbito das ciências
dedutivas quanto no das ciências empíri­cas. Assim, a teoria aceita como válida,
em uma dada época, só pode ser substituída por outra mais ampla, que a englobe
e responda a novas indagações.
Mas esse saber, o da ciência, não esgota as possibilidades de conhecimento e pode estar sendo posto em uma posição secundária, com a emergência da
“tecnicização da ciência” (ibid., p. 130) que caracteriza o mundo moderno. Essa
reflexão abre o livro Para uma filosofia da tecnolo­gia (ibid., p. 15). Na primeira
parte do livro, dedicada ao tema filosofia e ciência, o capítulo inaugural aborda a
relação entre ciência, técnica e realidade; na segunda parte, o primeiro capítulo
estuda o logos da técnica.
Entendendo a ciência como atividade e saber – vinculada desde a sua origem
com a noção de teoria, que, como assinala, é palavra derivada do grego theoria,
significando ver, contemplar -, nosso autor faz uma abordagem histórica desse
tipo de conhecimento. Mostra que, a partir do Renascimento, a ciência deixa de
78
ser apenas um contemplar, um ver o essencial, para ser também um atuar, em
busca do domínio da natureza.
A ciência não apenas se torna uma via teórica de compreensão do mundo,
màs tam­bém implica uma face prática, um atuar sobre o mundo. É esquema interpretativo, modelo lógico que comporta hipóteses, antecipações e conjecturas
sobre sua finalidade e/ou sobre fatos. A teoria é interpretação da realidade, e
há três tipos de modelos interpretati­vos fundamentais: a filosofia, a história e a
ciência. Há um vaivém entre a interpretação do real pela teoria e a modificação
do real interpretado, moldado pelo homem. A ciência é um tipo de saber teórico,
tem estrutura lógica claramente posta; é também atividade e por isso, inscrita
“na história (...) e deverá ser encarada como um processo” (ibid., p. 15). Como
a filosofia, a ciência surge do espanto perante o mundo, é teoria que visa conhecer de modo competente a ordem do mundo e solucionar problemas práticos.
Estreitamente associada a ela, a técnica (techné) é habilidade em realizar modificações no mundo, servindo ao homem para que aí ele viva melhor. O campo da
techné abrangia, nas suas origens, as habilidades profissionais, como a medicina,
a arquitetura, a mecânica. É um “saber que só se realiza como aplicação prática
e não como contemplação” (ibid., p. 18). Visa modificar o mundo, intervir na
natureza. A transformação da natureza, feita pelo homem, leva-o a construir a
cultura, campo de realidade preenchido por todos os produtos das atividades
humanas.
Relacionando filosofia, ciência e técnica, como expressões da cultura e inspirando-se em Ortega, Cassirer e Bunge, Vargas discute o logos da técnica.
Entendendo, na esteira de Cassirer, a cultura “como um sistema simbólico”
(ibid., p. 172 e segs), mostra que esta vincula-se estreitamente à técnica e à linguagem, evoluindo graças à associação entre símbolos, que representam a coisa
percebida e organizam a utilização humana dos artefa­tos. Perspectiva análoga
encontra em Ortega, quando este examina, no Meditação sobre a técnica, o papel
da técnica: levar o homem a viver melhor.
Mostra que no Renascimento ocorreu “uma confluência entre técnica, arte
e ciência” (ibid., p. 178), dado que, a partir de então, o saber fazer da técnica é
orientado pela ciência. O saber teórico abandonou o critério de verdade baseado
apenas na coerência lógica e buscou, formulando conjecturas, confrontar teoria
e experiência, aproximando-se da técnica. Mas é só no mundo contemporâneo
que surge a indagação sobre o logos da técnica. Tal logos é a tecnologia, realização
conduzida pelo conhecimento científico: “(...) a tecnologia (...) visa específica e
diretamente as obras ou produtos (...) estuda os materiais, os processos e os métodos de projeto, construção e fabricação que são empregados pela engenharia e
pela indústria” (ibid., pp. 179-180).
79
A essência da técnica é adaptar a natureza ao homem para que ele viva melhor no mundo; a da tecnologia é empregar o saber científico para solucionar os
problemas da técnica (ibid., p. 180).
Situando-se entre o saber teórico, que busca a verdade, e a técnica, que busca
a utilidade, – a tecnologia também constitui um saber.
Vargas se propõe a construir uma filosofia da tecnologia, centrada na indagação sobre a sua essência, seu critério de verdade, sua caracterização como
saber e seus valores. Aspectos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e éticos
estão envolvidos nessa meditação. A essência da tecnologia é expressa em sua
maneira de ver o mundo, que permite ao homem realizar sua busca de uma
vida melhor. Modo de ver, modo de desvelar, de descobrir e conhecer o mundo, a tecnologia sintetiza, na verdade que estabelece, duas fontes diversas das
quais emerge: a ciência e a filosofia. Da ciência, guarda o critério de adaptação
entre teoria e experimentação e o dever de passar pelo teste da utilidade para ser
considerada válida. Da filosofia retém a idéia de método, que a torna “um instrumento de conhecimento do mundo (...) que emerge da própria tecnologia”
(ibid., p. 185).
Invocando o texto de Julián Marías Cara ou coroa da eletrônica, Vargas mostra que não é possível “eliminar a utilização da tecnologia, nem esperar que ela
se auto-limite”, mas sim que submetamos à apreciação axiológica e ética suas
implicações, de modo a orientar sua utilização.
Afirmando a exigência da liberdade política, que possibilita subordinar a utilização da tecnologia à valorização da liberdade dos povos e aos direitos humanos,
Vargas reconhece que, numa civilização técnica planetária, é preciso garantir a
defesa do homem. Fala da necessidade de o desenvolvimento técnico ser submetido ao que chama de filtros sociais. Mostra que as sociedades contemporâneas
são dotadas de um sistema tecnológico, que deve funcionar harmoniosamente,
para que o objetivo de viver melhor seja alcançado.
Em resumo, a meditação sobre as relações entre ciência e verdade, fio condutor de toda a reflexão de nosso estudioso, parte da demarcação entre saber
comum e saber científico, entre ciência e filosofia, e se desdobra, através de uma
abordagem das relações entre ciên­cia e técnica, e no pensar a respeito da técnica
e da tecnologia. Esse percurso é feito sob quatro ângulos filosóficos: o ontológico,
o axiológico, o epistemológico e o ético.
Inspirado na tradição da escola fenomenológico-existencial e na filosofia
de Heidegger, dialoga também com a obra de Popper e discute criticamente o
neopositivismo lógico e as contribuições de Popper. Estabelece, desse modo,
uma tentativa de superar as oposições vigentes entre as correntes filosóficas,
mostrando a complementaridade e a convergência de algumas posições, apesar de sua oposição aparente. O lugar privilegiado dessa conver­gência é a me-
80
ditação sobre a linguagem, denominador comum de todas as correntes. É na
linguagem que se dá a verdade, que o significado aparece ao homem. E Vargas
conclui apresentando sua concepção de ciência: saber válido que se impõe irresistivelmente, mas restrito ao marco teórico que o inspira; e saber de caráter
provável, em transformação, em evolução, pela substituição de teorias vigentes
por teorias mais amplas, sem que haja des­truição do já alcançado. Assume, no
que tange à ciência, uma atitude análoga à de Gaston Bachelard, expressa nas
obras do filósofo francês sobre o caráter aproximado do conhecimento científico e no La Philosophie du non. Mas, no que tange à técnica, ao discutir suas
implicações éticas, inspira-se em Heidegger, de modo que, apesar de considerar
o saber tecnológico um saber que se afirma como incontornável, no mundo
contemporâneo, também aponta seus riscos – inevitáveis – e a necessidade de
se subordinar a ciência, a técnica e a tecnologia a uma ético-axiologia que busque, como na antiga tradição grega, o bem viver como seu objetivo último. E na
esteira da releitura dessa tradição nosso autor vincula estreitamente verdade e
arte, imaginação e razão, conhecimento e beleza, como o atesta seu último livro,
Poesia e Verdade. Ainda aqui a linguagem aparece como o lugar privile­giado do
conhecer, fio condutor do pensar, no labirinto do mundo. Poesia e Verdade: a
poética de Milton Vargas.
3. Poesia e Verdade
A apresentação do livro de Vargas, Poesia e Verdade, escrita pelo crítico José
Geraldo Nogueira Martinho, em 1990, destaca a originalidade de reflexão aí desenvolvida a respeito da essência do poético.
Em que consiste essa originalidade? Em meditar sobre a poesia como forma
espiritual, abordando o fenômeno poético a partir da compreensão da poesia
na perspectiva dos próprios poetas. Para tanto ­­­­adota como fio condutor do seu
pensar a tese da estreita ligação entre poesia e verdade, já afirmada por Keats,
Hölderlin, Novalis.
A tese diz que a poesia desvenda o real como beleza, alcançando o real absoluto,
o real como verdade. Nessa direção, Vargas retorna as teses do romantismo e da
grande tradição que vem de Píndaro a Petrarca, Milton, Yeats, Antero, Pessoa.
A essência da poesia é desvendar, fazer ver de modo inaugural o mundo, desvelar aspectos do real ainda não apreendidos.
Milton Vargas se inscreve na perspectiva proposta por Dora e Vicente Ferreira
da Silva, frequentando o grupo da Diálogo e mantendo, a vida toda, a amizade
com Dora Ferreira da Silva, como bem assinala Nogueira Moutinho82.
82
NOGUEIRA MOUTINHO, J. G., “Entre Orfeu e Dioniso”, in VARGAS, M., Poesia e Verdade,
pp. 12-13.
81
Com Vicente, Milton evoca o caráter poético do pensar, já presente na mais
antiga tradição filosófica do Ocidente: os pré-socráticos diziam o filosofar através
de poemas.
Na introdução ao seu livro, Vargas diz que os ensaios nele presentes “nunca pretenderam ser crítica literária”, mas só buscaram evidenciar “o conceito romântico
de poesia como verdade” (ibid., p. 15), sem confundir os dois campos. Tratava de
investigar “como e porque a poesia é essencialmente verdade (...) dando a palavra
aos próprios poetas” (ibid., p. 16).
É na linguagem que se dá a verdade da poesia. A inspiração reflexiva é buscada
em Heidegger, no ensaio Sobre a essência da obra de arte e nos estudos heideggerianos sobre a poesia de Hölderlin. Para este, poesia é a palavra originária, que
dá nome aos deuses e funda o mundo.
Outro texto importante de Heidegger a que Milton se refere é Ser e Tempo,
como veremos adiante.
Na “Introdução” ao seu livro, Vargas faz referência ao valor simbólico da
palavra, da poesia, expondo a unidade dos opostos e a polaridade do real, no
qual convivem luz e trevas, razão e intuição. Recorre a Lawrence – autor também
estudado, como Hölderlin e Heidegger, por Vicente e Dora Ferreira da Silva, seus
companheiros na investigação do homem e do poético.
Ainda na “Introdução”, Milton aponta a importância da obra literária para
desvelar a essência da regionalidade, nela descobrindo o universal humano.
Examina, para tanto, a pintura da realidade brasileira nas obras de Euclides da
Cunha e de Guimarães Rosa.
Veremos, no que segue, mais detidamente, esses temas fulcrais. Não são os
únicos.
Vargas escreve sobre Eliot e sobre Lawrence em Poesia e Verdade. Não abordaremos aqui esses estudos, que também refletem a meditação de Dora e Vicente
expondo temas significativos da Escola de São Paulo.
Vamos nos ater essencialmente aos dois primeiros capítulos de Poesia e Verdade
e aos que se referem a Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, por considerá-los
importantes trabalhos sobre o significado do homem brasileiro e sua contribuição
para compreender a universalidade do humano. A partir do Brasil, do sertão,
Vargas fala da condição humana, espelhada nas obras monumentais de prosa
poética de Euclides da Cunha e de Rosa.
No primeiro ensaio, “Poesia e Verdade”, que dá nome ao seu livro, nosso autor defende a tese de que o romantismo, “mais que um estilo (...) mais que uma
atitude diante da vida”, mais que movimento literário de uma época histórica, é
um pensamento, atitude e ação englobantes, buscando “abarcar a realidade como
82
totalidade”, identificando verdade e realidade, verdade e beleza. Para Vargas,
citando Keats, a “beleza é revelação estética da realidade e essa é a essência da
verdade”, assim como a essência do romantismo (ibid., pp. 22-23).
Nessa concepção de verdade, entendida como reflexão que sintetiza os contrários, “o hegelianismo (...) o idealismo alemão e o marxismo [podem ser vistos
como] doutrinas românticas” (ibid., p. 25).
Partindo de Keats, que identifica poesia e verdade, percorre largamente, no
Holzwege, o texto de Heidegger sobre “A origem da obra de arte”, e expõe sua
própria concepção das relações entre poesia e verdade. Com o pensador da Floresta Negra, entende a obra de arte como revelação do ser do homem enquanto
existente. Na poesia, pela palavra, o homem funda seu mundo, descobre seu laço
com o sagrado. Repetindo o verso de Hölderlin [citado por Heidegger] lembra
que “Tudo o que é permanente o inauguram os poetas”83.
E lembrando outros ensaios de Heidegger “Hölderlin e a essência da poesia”,
Sobre a essência da Verdade e Ser e Tempo, Vargas mostra que a ontologia fundamental aí proposta é uma “volta às coisas mesmas”, no sentido de indagar o
que é o ser do ente. Interpretando, descreve a radical existencialidade do ser-aí,
o Da-sein, o homem, cuja essência é estar lançado no mundo, com a tarefa de
compreender, descobrir possibilidades de realização da existência.
Assim, Milton entende o homem como um existente aberto ao futuro, projetando seu poder-ser. Existir, para o homem, consiste em articular o sentido do
seu ser-no-mundo pela linguagem. Angustiado, preocupado, vivendo uma existência precária e sempre ameaçada pela possibilidade da morte, o homem pode
recusar-se a meditar sobre ela, esquecê-la. É a existência inautêntica que então o
caracteriza. Ou pode assumir a sua precariedade, buscando construir no mundo
o sentido do seu existir. Tal é a existência autenticamente humana, que busca o
significado do indivíduo e da vida. Desdobrando sua temporalidade, o Da-sein
produz o tempo, estabelece o significado do mundo. O homem está, assim, fundado no passado; mas vive no presente, no qual toma decisões, projeta o futuro.
Continuamente sendo, o homem é perpassado pela historicidade, a “mobilidade
de sua própria existência” (ibid., p. 32).
É meditando sobre a linguagem, a verdade, que o homem vivencia o aberto, seu
campo de atuação e de emergência do que é, da verdade entendida como Alétheia,
desvelamento, apreensão interpretativa de tudo que existe, deixando ser aquilo
que é. Verdade é liberdade, deixar ser, deixar emergir o mistério da totalidade.
Seu oposto é o erro, o errar pela via extraviada: a existência inautêntica.
A essência da poesia, “ocupação inocente”, é testemunhar o que é; é expor o
diálogo entre os homens e o mundo; entre os homens e os deuses; dos homens
83
HÖLDERLIN, apud VARGAS, M., op. cit., p. 27.
83
entre si. Assim, a poesia instaura “o que é permanente, verdadeiro e sagrado (...),
o que é essencial para a existência humana”: aquilo que é (ibid., pp. 35-36).
A linguagem inicial, primitiva, era poética. Com ela, os homens denominavam
as coisas e instauravam um mundo, aí fundando a sua existência, tornando possível o advir as coisas como verdade: “A linguagem (...) possibilitando o aberto,
possibilita ao homem o seu ser-no-mundo” (ibid., p. 37).
Como o homem e o mundo são essencialmente temporalidade, permanente
mutação, “caberá à Poesia (...) a redenominação constante dos aspectos mutáveis
das culturas (...) o reestabelecimento constante do que deve perdurar e permanecer”; a partir disso é possível pensar o ente.
A síntese proposta Vargas, invocando primeiro o romantismo, e depois Heidegger, não é casual. Mostra claramente a meditação na vertente do imaginário e do
poético, vigente na Escola de São Paulo, constituída em torno da figura marcante
do filósofo Vicente Ferreira da Silva, amigo de Milton. E faz vir à luz o pano de
fundo sobre o qual se constituiu seu pensamento, nascido dos diálogos com Vicente, Dora Ferreira da Silva, Eudoro de Sousa, como ele próprio a explicita, no
texto esplendido do segundo capítulo da Poesia e Verdade, intitulado: “Poesia,
filosofia e imortalidade”.
Nesse texto, a meditação de Vargas vai de Orfeu a Vicente e Dora. Aí, a verdade da poesia é a que emerge para o homem, como meditação sobre a morte,
e busca de transcendência e imortalidade. Fazendo da reflexão sobre a morte o
eixo da discussão que empreende, nosso pensador busca responder à inquietante
pergunta sobre o seu sentido.
Para tanto, recorre à tradição que fez surgir na Ásia os shamãs, “homens
extraordinários (...) que, sobre uma determinada concepção de imortalidade,
fundamentaram uma forma cultural”. Descrevendo a iniciação que os levava a
serem capazes de abandonar o corpo e viajar, entendiam a alma com a verdadeira realidade, de que o corpo era apenas um repositório. Recorrendo ao livro de
Doods, Os gregos e o irracional, Vargas menciona a hipótese de que Orfeu tivesse
sido “um shamane mítico ou um protótipo dos shamanes” (ibid., p. 39): poeta,
mago, mensageiro dos deuses, revelador dos mistérios, afirmava que o corpo é a
prisão da alma imortal.
Nos poemas de Homero, nos Cantos de Ezra Pound, afirma-se que o homem
pode, em circunstâncias especiais, comunicar-se com os deuses, alcançar a imortalidade. A importância do mito órfico da imortalidade da alma, Vargas a reconhece
nos textos de Eudoro de Sousa, de Romano Guardini, no Fédon de Platão, na
tradição cristã que assinala a presença, na alma, de um impulso ascensional, que
salva o espírito e o corpo. A ressurreição é descrita por Dante na Divina Comédia
e referida pelos textos dos Evangelhos.
84
Mostrando que as idéias sobre a imortalidade da alma perpassam a filosofia
ocidental desde a Antiguidade, Milton Vargas aponta várias concepções de salvação e de imortalidade, através do tempo e das culturas. O tema inquietou Vicente
Ferreira da Silva, constituindo “assunto frequente de suas conversas, como foi
também o [assunto] de sua notável contribuição ao IV Congresso Brasileiro de
Filosofia em 1963 [e] o motivo principal de seu Diálogo da Montanha, um de seus
últimos escritos (ibid., pp. 52-53).
Na revista Diálogo, número V, editada por Vicente e Dora, o pensador paulista
se refere ao poema de Lawrence, “O barco da morte”, traduzido por Dora: “A noção
de vida, em Lawrence (...) é complexa (...) abrangendo o duplo domínio da vida e
da morte”84. A proposta lawrenciana, aceita por Vicente e Dora e mencionada por
Vargas, é a de “Superar a separação entre a vida e a morte, é habitar esse domínio
unitário (...) do viver e do não viver”85. Milton menciona o tema, abordado no
artigo “O duplo reino da vida e da morte”, publicado na Diálogo, número 15.
Ser imortal é ser capaz de viver nessa totalidade, em que os opostos – vida e
morte – estão sintetizados.
Essa concepção, em Vicente, mostra a repercussão de uma concepção de Deus
e do sagrado, exposta, diz Vargas no artigo “O Deus vivo de Lawrence”, publicado
na Diálogo, número 9. Para Vargas, o mundo de Lawrence é aparentado com o da
Grécia primordial, campo de fascinação onde os deuses – “poderes desvelantes
primordiais” – se manifestam.
Existem muitas imortalidades, como há muitas manifestações do divino,
desvelamentos diversos do significado do mundo, diferentes acessos às múltiplas
faces da “verdade eterna”86, para Vicente.
E foi no Diálogo da Montanha que Vicente teria apresentado a última formulação de seu pensamento acerca da morte, da poesia e da imortalidade. Nela,
assinala o avizinhar-se de uma nova concepção do sagrado, através da linguagem
simbólica dos mitos e da grande poesia, expressa por Eliot, Lawrence, Hölderlin.
Esses poetas sinalizaram a emergência de forças transformadoras do significado
do mundo, do “salto para fora da atualidade vigente” (ibid., p. 56-57).
Ainda no horizonte das discussões sobre poesia e verdade, acha-se a meditação
de Vargas sobre a literatura brasileira e sobre o significado mito-poético do Brasil.
Os polos dessa meditação são as leituras do Brasil a partir da compreensão do
interior do país, do sertão tematizado por Euclides da Cunha e por Guimarães
Rosa.
FERREIRA DA SILVA, V., apud VARGAS, M., op. cit., p. 53.
VARGAS, M., op. cit.
86
FERREIRA DA SILVA, V., apud VARGAS, M., op. cit., pp. 54-55.
84
85
85
Nosso autor contrapõe as duas perspectivas: a de Euclides da Cunha e a de
Guimarães Rosa, dois romancistas-poetas. Euclides é poeta, não só por ver a realidade do sertão, mas por revelar o Brasil que opõe a população do litoral, voltada
para a ordem, o progresso, a ciência e a técnica; Brasil “eurocentrado, ilustrado”
(ibid., p. 136) que esquece, recusa, a outra população “caótica, arcaica [mas plena]
de afetiva passionalidade” (ibid., p. 135).
A dimensão sertaneja, em nós, diz Vargas, é a “dimensão do sonho, da fantasia
e da vivência; enfim: do que fomos em nossas origens” (ibid., p. 136).
Euclides opta, decisivamente, pelo Brasil litorâneo, como se vê nos textos de
Vargas dedicados a eles: “Dois Sertões: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa”
(ibid., pp. 133-138) e “O interior de Canudos”.
Rosa, no Grande Sertão: Veredas, recupera, diz Vargas, componente essencial
da nossa brasilidade, a “dimensão da nossa própria alma” (ibid., p. 136), através
da descrição da vida do sertanejo, intuída no seu significado essencial. Daí Milton dizer: “esses dois sertões [o de Euclides e o Rosa], tão dispares (...) se complementam para revelar poeticamente a complexidade de nossa nacionalidade.
Uma oposição entre a urgência de uma eficiência técnica (...) e a necessidade de
continuarmos (...) aprendendo a viver perigosamente em sonho e imaginação”
(ibid., p. 138).
Assim temos: de um lado, a exterioridade, a razão, a ciência, a técnica, o progresso; de outro, o sonho, a imaginação, a mais funda interioridade, a poesia.
Mas a perspectiva de Vargas, é preciso dizer, é mais sutil: ele entrevê poesia
também no desvendamento de quem nós somos, os brasileiros, nos Sertões de
Euclides.
De que modo se expressa essa poética? Como descrição arrebatadora “de
verdades objetivas sobre nossa terra e nossa gente” (ibid., p. 157).
A descrição do interior de Canudos, por Euclides, reflete a concepção de
Cunha sobre o movimento e a cidade de Antônio Conselheiro. Recordando as
outras lendas associadas à busca de uma sociedade arcaizante, que recusa o progresso e a ciência – tais como a lenda da Pedra Bruta e dos Serenos – Euclides se
comporta como um cientista. Descreve o clima, a hidrografia e a flora da região,
depois, estuda as características do homem do sertão, seu meio e sua religião. São
mestiços, jagunços, que constituem a própria “negação de mortalidade positiva
de Euclides” (ibid., p. 140). São vistas por ele como brutos, que identificam uma
terra miserável como “a terra de promissão” (ibid., p. 142). Euclides ignora o sonho, a bravura, a religiosidade de Conselheiro e dos que defenderam Canudos.
Os Sertões expõe a ruptura que caracteriza o país: a face litorânea, vinculada ao
progresso técnico, às grandes cidades, aos portos de mar, contraposta ao Brasil
das favelas, do interior ainda agreste, selvagem, imenso e intacto.
86
Milton Vargas opta decisivamente a favor de Guimarães Rosa. Grande Sertão
nos ensina a nossa mais profunda intimidade, desvenda “o sertão em nós, [mostra]
o quanto fazemos parte dele” (ibid., p. 159).
Alçada ao universal, a vivência do sertão descreve, no brasileiro, a condição
humana. Três aspectos principais propiciam a compreensão do ser humano, na
obra de Rosa:
a) O primeiro, na textura do romance: pura temporalidade, puro fluxo, sem
divisões em capítulos, mas “cheia de recorrências rememorativas”;
b) O segundo, mostra o fluir de uma energia poderosa: o da vida humana
em seu fluir inesgotável, do qual “Deus (...) é o ‘gatilho’ deflagrador”;
c) O terceiro consiste na trama, que não descreve a natureza ou a subjetividade do escritor, mas mostra o sertão como englobante do mundo
objetivo e da interioridade do homem (ibid., p. 160).
Vargas lê a obra de Rosa com as categorias de Bergson, o qual afirmou a temporalidade como a essência do ser e mostrou o valor, não só da razão científica,
mas da intuição, como caminho privilegiado de conhecimento da realidade, da
duração.
Em Rosa, haveria a adoção de uma atitude intuicionista, com repercussão direta na própria forma literária da [sua] obra. Esta “deixa de se apoiar na aparente
verificabilidade dos fatos narrados (...) para adquirir o tom de sugestibilidade
próprio da poesia” (ibid., pp. 162-163). Por isso, Vargas acredita “que Grande
sertão: Veredas pode ser colocado entre aqueles raros livros que escritos em prosa,
são na verdade poesia” (ibid., pp. 163-164).
Guimarães Rosa teria recorrido ao que Milton Vargas chama de “técnica das
lendas”: narra, através de situações-padrão, a condição humana; “torna o sertão
próximo e compreensível”, na sua realidade abarcante “e medida da maior grandeza”. Tentar dizer objetivamente a realidade complexa do sertão – metáfora da
condição humana – é perder seu significado essencial. Este estende-se no tempo,
flui como um rio. Só o narrar desvenda o sertão em nós e fora de nós; e o desvenda a partir da vida humana, considerada como centro de uma energia que
impregna o todo e como fornecedora de tipos, modelos ou padrões que tornam
“os acontecimentos e as coisas (...) compreensíveis” (ibid., p. 166).
Narrando a partir dos dois personagens principais, Riobaldo e Diadorim, polos
opostos que “formam a totalidade do que existe e dão sentido às coisas”, como “o
fogo e a água, o corpo e o espírito” (ibid., p. 168), Rosa nos oferece, diz Vargas, a
visão da aventura humana, que, passando pela aprendizagem do viver, conquista
o segredo da vida e da morte (ibid., p. 170).
Denominando a totalidade abarcante de sertão, Rosa não o mostrou apenas
como “fato geográfico, geológico ou botânico”, como frisava Euclides. O romancista
87
de Grande Sertão o instaura em nós e nos faz “conhecê-lo intimamente (...), pois
tornou-se poesia” (ibid., p. 171).
Poesia é, para Vargas, um fazer ver, um desvelar a dimensão profunda, essencial, da realidade. Fazendo ver o significado do sertão, Rosa devolveu-nos o
Brasil poético, mítico, metáfora do mundo, onde o narrar desvenda o significado
da realidade e onde, no mais regional e arcaico, na profundidade intocada de
imensas terras, espelha-se a aventura humana de viver.
Milton Vargas: cientista e poeta. Na sua obra, legou-nos um exemplo da complementaridade entre ciência e poesia, como expressões da verdade.
88
Liberdade e Reconhecimento em Vicente Ferreira da Silva
Os estudos sobre a ética de Vicente Ferreira da Silva87 centram-se na problemática da liberdade, do lúdico, da autenticidade e do amor, presente nos diversos
escritos do nosso autor.
Braz Teixeira reconhece três etapas na trajetória intelectual do pensador brasileiro: a primeira, voltada para os escritos sobre lógica simbólica, entre 1939 e
1942; a segunda, iniciada pelos Ensaios Filosóficos, de 1948, e que se desenrola
expondo a temática antropológica e ética, até 1955, ano que marca o início da
terceira etapa, com a publicação da Introdução à Filosofia da Mitologia e se estenderá até sua morte, em 1963.
A nosso ver, na obra do filósofo (1916-1963), a meditação sobre a liberdade
e o reconhecimento de si e do outro são temas correlatos e recorrentes. Desde os
Ensaios Filosóficos, de 1948, até os escritos de 1962, pouco antes de sua morte,
Vicente a retoma, sob vários aspectos.
Veremos, no que segue, o percurso de filósofo em torno desses temas, bem
como a sua evolução progressiva da abordagem fenomenológico-existencial a
uma leitura crescentemente original, inspirada no romantismo alemão e em
Heidegger, do significado da liberdade, do reconhecimento, na sua vinculação
com o tema do sagrado e com exame crítico de nosso tempo e das possibilidades
de transcendência propostas ao homem contemporâneo.
Publicado no Ensaios Filosóficos, “Utopia e Liberdade” mostra o homem sempre aberto a novas alternativas de ser, tecendo, no plano da ação histórica, a
responsabilidade essencial sobre suas decisões. Não tendo modelo invariável a
seguir, o ser humano, no seu íntimo, funda poeticamente sua essência, “autoprojetando sua fisionomia humana (...)”88.
No Exegese da Ação, livro de 1949, o pensador propõe “uma moral lúdica”
(ibid., p. 137 e segs), para o homem que experimenta a ampliação da consci87
BRAZ TEIXEIRA, A., “A Aventura Filosófica de Vicente Ferreira da Silva”, in FERREIRA DA
SILVA, V., Dialéctica das Consciências e outros ensaios. Lisboa: INCM, 2002, pp. 7-34. Ver também:
PEREIRA, J. E., “Filosofia como idioma de Apelo e de Liberdade”, pp. 43-50; MOOG RODRIGUES, A. M., “A moral lúdica na obra de Vicente Ferreira da Silva”, pp. 61-72; RODRIGUEZ, R.
V., “Aspectos Éticos e Antropológicos do pensamento da Vicente Ferreira da Silva”, pp. 73-84, in
Mito e Cultura. Actas do V Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira,
2001.
88
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. S. P.: IBF, 1964, Vol. I, p. 65.
89
ência e da liberdade através da beleza. Não dispondo de “um modelo prévio
de existência (...) [o homem] não tem outro recurso senão transcender imaginativamente para o seu poder ser (...)”, diz nosso autor. Invocando Hölderlin e
Heidegger, entende que a poesia e o mito – expressões da linguagem original do
sagrado – imprimem “um paradigma de ser sobre a nossa consciência” (ibid.,
p. 121). Para Vicente, como para Ortega, explicitamente citado por ele, “a vida
é uma faina poética” (ibid., p. 122), pois a palavra poética, linguagem originária, descortina nossas possibilidades de ser, uma vez que é “um verbo distensivo
e libertador, uma franquia para a transcendência” (ibid., p. 123). Enfatizado o
papel emancipador e de libertação, desencadeado pela obra de arte, vê nesta a
expressão do sagrado que arrebata o homem, transfigurando-o e impelindo-o a
metamorfoses e realização das potencialidades mais altas do seu existir (ibid., p.
122 e segs). É no horizonte do Exegese da Ação que o filósofo fala de uma “moral
lúdica”. Nesse texto, Ferreira da Silva diz o que o homem contemporâneo vive
uma vida degradada, tem “consciência de uma privação” (ibid., p. 137 e segs), da
perda do sentido da existência numa sociedade técnica, subordinando o viver à
finalidade econômica.
Ora, nas tradições filosóficas antiga e medieval, a felicidade e o bem-viver –
objeto da ética – estão vinculados à expressão da vida do espírito, à contemplação, ao exercício da racionalidade; hoje, o jogo, o lúdico, consistiriam no “mais
próximo paradigma de um sentido de felicidade que o homem moderno perdeu
quase inteiramente” (ibid., p. 141).
Um ensaio importante do livro é o que aborda as figuras emblemáticas de
Novalis e Rilke, poetas que visam captar o sentido da realidade via intuição emotiva e artística, afirmando a existência de uma liberdade transcendental, símbolo
de vida do espirito e do transcender permanente do mundo e do homem. Aqui,
a meditação sobre a liberdade aparece como reflexão sobre a vontade de ultrapassar limites, sobre a busca permanente de transcendência que caracteriza os
humanos, uma vez que “não temos uma forma de ser [previamente estabelecida]
e que nossos limites se apresentam como convite e proposição a superá-los (...)”
(ibid., p. 115).
É no âmbito da crítica ao mundo contemporâneo, à civilização técnica que
nosso filósofo afirma a tarefa poética do ser. Nesse horizonte surge, em 1950,
o livro Dialética das Consciências89. Recordando a tradição filosófica moderna,
representada por Hegel e na contemporaneidade, evocando “Husserl, Scheler,
Heidegger, G. Marcel, Jaspers” (ibid., p. 146), o filósofo paulista neles encontra as
balizas de sua meditação sobre a alteridade e a intersubjetividade. É sob a égide
do verso de Hölderlin: “nós, homens somos um diálogo” e do Fenomenologia do
Espírito, no qual “Hegel anuncia que somos a luta do mútuo reconhecimento
89
Id., Dialética das Consciências, in id., OC., vol. 1, pp. 145-230.
90
(...), processo de conhecer no outro a subjetividade que somos”90, que Vicente
desenvolve sua ética da alteridade e sua reflexão sobre o reconhecimento.
O outro é tematizado como problema teórico e como problema prático, partindo da dialética do senhor e do escravo, proposta por Hegel no Fenomenologia do Espírito. Mas Vicente também aborda o homem como ser continuamente
aberto à transcendência, à ação que o conduz “ao conhecimento de si mesmo
e do outro, ao cogito ampliado que revela seu ser-com-o-outro”91. Retomando
a questão da existência compartilhada com os outros homens, Ferreira da Silva evoca as categorias heideggerianas da analítica existencial proposta em Ser
e Tempo: o homem é um ek-sistente, um ser-no-mundo, um ser com-o-outro.
Evoca também Jaspers, Buber e Sartre, para os quais a correlação eu-outro é axial
para o reconhecimento e a compreensão de si. Diz ainda, com Heidegger, que o
modo de ser próprio do homem se expressa como cuidado e solicitude (ibid., p.
111).
Na ética da alteridade assim evidenciada, Ferreira da Silva afirma, com Heidegger, o valor da palavra criadora, da poiésis, como fundadora do mundo e da
história. Cita expressamente “Hölderlin ou a essência da poesia” e conclui que é
na linguagem originária dos mitos – poesia primordial – que é preciso buscar o
“elo primigênio” que unifica as consciências (ibid., pp. 310-397). Sinaliza assim o
surgimento de uma temática que aprofundará na sua filosofia da mitologia e nos
Diálogos, publicados póstumamente92.
Ainda no Dialética das Consciências, a questão do reconhecimento aparece no
capítulo “O processo do reconhecimento”, no qual invoca as contribuições convergentes de Gabriel Marcel, Berdiaeff e Jaspers, os quais falam sobre o ser humano como aquele que busca em si a sua verdade. Na filosofia contemporânea,
o reconhecimento é enfocado como uma manifestação do “nosso ser (...) como
liberdade”93. Evocando Sartre e Jaspers, nosso filósofo descreve o outro como um
análogo a nós, consciente de si. Nesse reconhecimento, dá-se a comunicação e a
luta entre os homens, intrínsecas “à dialética das consciências” (ibid., p. 168).
O reconhecimento de si implica a auto-superação, o ir além de si mesmo, diz
nosso filósofo, apoiando-se em Hegel, Grassi. Para ele, a alegria, a felicidade, a
realização do valor pessoal, a fidelidade a si mesmo, constituem as vias heróicas
da consciência, no exercício do viver.
Id., ibid., p. 149. António Braz Teixeira, no seu prefácio, “A aventura filosófica de Vicente Ferreira da Silva”. In: FERREIRA DA SILVA, V., Dialética das Consciência e outros ensaios, pp. 8-27,
particularmente, considera o livro como marco principal da segunda fase do pensamento do filósofo de São Paulo.
91
FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 159.
92
Id., O. C., vol. II, 1966, pp. 569-538.
93
Id., Dialética das Consciências, O. C., vol. I, p. 167.
90
91
É da dialética entre o si e o outro que surge a confirmação de nós mesmos:
“a presença do outro nos arroja da minoridade do ser-entre-as-coisas (...) é
diante do seu testemunho (...) que devemos operar a emancipação do nosso ‘em
sí’ (...) O homem [é] um mais que sua própria vida, um mais que procura o seu
direito e o seu reconhecimento” (ibid., p. 170).
Mas o filósofo percebe que o laço entre o eu e outro está sempre ameaçado
pelo conflito, pela luta das consciências, como bem vira Hegel.
E é criticando Hegel, o qual pensa o reconhecimento apenas no âmbito da
luta e do trabalho, que o pensador brasileiro, citando Huizinga, mostra que no
Homo Ludens este evidencia “o que há de festa, regozijo e pura expansão lúdica
na evolução da cultura e da consciência humana” (ibid., p. 171). Para Vicente,
o homem não se esgota no existir coletivo, mas expressa a verdade existencial
da interdependência entre os sujeitos individuais. Assim, podendo reconhecer a
consciência e a liberdade dos outros, reafirmamos as mais profundas significações de nós mesmos (ibid., p. 173).
As formas do reconhecimento do outro variaram ao longo da história; nelas
se desenvolve a “patenteação da presença pessoal (...) [que] é o resultado do entrechoque formador do consciências e da verdade que nasce da dor, do esforço
e do sofrimento” (ibid., p. 174). Elenca, assim, a caracterização da noção de reconhecimento:
- em Hegel: o amor é o que conduz à unificação das consciências; o reconhecimento é sua face, no plano universal;
- em Ortega, quando este mostra que o jogo, a atividade lúdica, é “o lugar das
emulação e da luta pelo reconhecimento”;
- em Huizinga, que afirma que o lúdico abrange a totalidade da cultura, todos
os seus fenômenos;
- em Schiller e Frobenius, o jogo é expressão da liberdade e do reconhecimento
reciproco, desde a mais remota tradição, a dos jogos olímpicos, que implicavam a expressão criadora da consciência de si, a transcendência do mero viver, a
abertura de novas possibilidades de ser (ibid., p. 177).
Dialética das consciências ainda aborda a solidão e o encontro, pondo em relêvo a ambiguidade essencial da existência pública: nela, duas faces antagônicas
do si são postas ao outro. De um lado, o sujeito se oculta, se mascara, fazendo da
esfera pública o campo “da contrafaccção, dissimulo e hipocrisia” (ibid., p. 182)
como vários moralistas já assinalaram, dentre os quais Scheler, Gabriel Marcel
e Buber. Estes descrevem a esfera pública como o lugar do ódio e da objetivação do outro. Mas também mostram que ela pode ser o lugar da superação do
isolamento, se houver autêntica comunicação, autêntico viver no qual a pessoa
se abre ao diálogo, à alteridade e expressa seu poder-ser e sua liberdade, como
Buber e Jaspers já mostraram.
92
A dialética das consciências patenteia, na opinião de Ferreira da Silva, a busca
de um ser-mais, cuja via é o amor, visando a realização, pelo indivíduo, das possiblidades mais altas de sua natureza. A arte e o amor seriam as formas de aproximação a esses ideais, como nos dias de hoje Scheler, na obra O Santo, o gênio e
o herói já indicou, assim como Platão o fizera no Banquete. Através da arte e do
amor, “o mundo abre-se para o valioso e para o sagrado (...)” (ibid., p. 211).
A primeira aproximação ao tema mostrou que “o homem é o revelador da
verdade das coisas, aquele que transforma (...) em linguagem (...) o que jaz na
obscuridade do irrevelado” (ibid., p. 219). A palavra reveladora do sentido do
real comparece, de modo “eminente, na poesia, na filosofia e no verbo anunciador das religiões”.
Na sua busca de transcendência e liberdade, o ser humano apresenta-se como
“o ato vivo do reconhecimento: [ele é caracterizado pela] luta, o esforço, a aproximação e o zelo pelo advento de suas mais altas possibilidades”, que testemunha
a si e aos outros (ibid., p. 218).
Expõe-se como um poder-fazer, uma capacidade de ir além do imediatamente dado, uma ampliação de si pela ação que tende à veracidade, à liberdade e o
amor, diz Ferreira da Silva, apoiando-se nos escritos teológicos de Hegel e no
Sobre a verdade, de Jaspers.
A correlação liberdade-reconhecimento é ainda uma vez afirmada na conclusão do livro quando o pensador brasileiro mostra que o homem, aberto à transcendência, é convocado à realização de si voltando-se à intersubjetividade, que
se traduz pelo reconhecimento.
Apresentando a concordância entre diversos autores que examinaram a dialética intersubjetiva, nosso filósofo entende o homem como um ser-com-outro,
que só assim alcança sua expressão mais própria: “Através da interação dos comportamentos humanos a consciência vai desabrochando (...) para sua conduta
fundamental (...) como existir aberto à transcendência, como viver na proximidade daquilo que o supera” (ibid., p. 213). Testemunhando a si mesmo, o ser
humano tornou-se “o ato vivo do reconhecimento” (ibid.. p. 218).
É pelo diálogo – esse transcender que expõe um poder-fazer – que a liberdade
se desdobra “como promoção do outro, acesso à verdade do ser” (ibid., p. 222).
Liberdade e veracidade, reconhecimento de si e promoção do outro coincidem,
na ética vicentina.
As temáticas da liberdade e do reconhecimento são novamente abordadas em
diversos textos, escritos entre 1961 e 1963: “O homem e a liberdade na tradição
humanística”94; Liberdade e imaginação” (ibid., pp. 385-392); “A filosofia do reconhecimento” (ibid., vol. II, pp. 217-233); “Ciclo e Liberdade” (ibid., pp. 259-262).
94
Id., O. C., vol. I, pp. 205-215.
93
Sob o impacto das obras de Heidegger e de Ernestro Grassi, Carta sobre o
humanismo, do primeiro, e Defesa dos Vidas individuais, do segundo, Vicente
assinala que “o ente é uma realidade fundada”, resultante de “um ciclo de vivências típicas de uma certa variedade histórico-natural” e que “a essência do
homem não é ontomórfica”, constituindo-se, antes, como liberdade, exposição à
revelação do ente95. Mostra que essa perspectiva é ancorada no pensamento renascentista, quanto este apresenta o ser humano como “um ser pluridimensional
(..) capaz de revelar (...) criativamente os diferentes aspectos do mundo” (ibid.,
p. 212), tal como Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, dentre outros, o conceberam. Contemporaneamente, tal concepção das qualidades humanas ressurge no
pensamento de Husserl e no de Heidegger. Este último entende a liberdade como
“a entrega do homem ao desvelamento do ente enquanto tal” (ibid., p. 213). Diz
ainda o pensador brasileiro: “O pluralismo da manifestação do ser encontra sua
contrapartida na receptividade livre do homem às suas proclamações soberanas”
(ibid., p. 214).
No seu conjunto de escritos sobre a Filosofia da Mitologia e da Religião, um
dos tópicos é intitulado “Liberdade e Imaginação”. Nele, a valorização da imaginação criadora está associada à vontade do poder nietzschiana, entendida como
“vontade de plasmação artística (...)”, que não está centrada no homem, mas em
um deus. Para Nietzsche, diz Ferreira da Silva, “somos os personagens que passam no sonho de um deus e que se tornam o que ele sonha”96.
A superação da noção do sujeito aparece como crítica do eu intramundano, em favor “de uma força poética excêntrica, universal (...) paixão plasmadora
transcendental (...) As coisas e o próprio sujeito se originam de uma transcendência, de um desenhar prototípico” (ibid., pp. 387-388). É no universo da linguagem, especialmente na linguagem da poiésis, que se dá a abertura do sentido
do mundo, pela imaginação prototípica. Na disponibilidade do homem ao apelo
do Ser, como mostra Heidegger em A origem da obra de arte, diz Ferreira da Silva, consiste a sua liberdade: a da conformação a modos de ser oriundos do ditado
do Ser, a consagração da vida e da história.
No artigo de 1962, “A Filosofia do Reconhecimento”, os problemas da alteridade e da comunicação, da coexistência, põem-se como indagação sobre a veracidade da constatação do próprio eu, da corporeidade, da efetiva realidade do
mundo e do outro. Inspirado no célebre texto de Husserl, Meditações Cartesianas,
Ferreira da Silva refaz o percurso da superação do cogito cartesiano, a partir da
noção de intencionalidade, que postula a alteridade como conteúdo intencional
da consciência e, com Scheler de Sobre a essência e as formas da simpatia, conId., O. C., vol I. p. 210.
Citação de Nietzsche, La Volonté de puissance, Paris: Gallimard, 1942, apud FERREIRA DA
SILVA, O. C., vol. I, p. 387.
95
96
94
sidera a percepção emotiva da reciprocidade entre os homens, tema que servirá
também como foco da atenção de Heidegger, em Ser e Tempo.
Explanando a problemática do reconhecimento proposta por Fichte, examina “a ação recíproca das consciências como comportamento e práxis”, pois “na
ação recíproca de seres racionais (...) pode nascer a experiência do outro. Só na
ação e na influência recíproca pode originar-se a consciência de si e o reconhecimento do outro”97. Ainda com Fichte, entende o mundo como “a auto-intuição
da liberdade (…) [e o corpo é visto] como “a auto-intuição do eu na esfera material” (ibid. pp. 331-332).
Herdando de Fichte e Hegel a ideia da consciência como liberdade, e a da
epifania do humano na descoberta do outro, Ferreira da Silva desdobra sua reflexão, apoiando-se em Heidegger de Ser e Tempo, que formula o ser-com-o-outro
como uma categoria existencial. Daí Vicente afirmar que: “o desvelamento de
nós mesmos, no interior do mundo é, simultaneamente, o desvelamento da possibilidade do outro (...)”, aquilo a que Heidegger dará o nome de solicitude (ibid.,
pp. 231-232).
Em “Ciclo e Liberdade”, publicado postumamente em 1966 (ibid., vol. II, pp.
259-262), uma vez mais reaparece o tema da liberdade, desta vez relacionado a
uma interpretação da história. Recusa simultaneamente as teses do progresso
contínuo e a da subordinação do homem a leis cósmicas (ibid., p. 261). Para Vicente, a história humana é um avançar em direção a um sentimento crescente de
liberdade e de apropriação de si ao longo do acontecer temporal (ibid., p. 262).
É nos Diálogos: do Mar, da Montanha, do Espanto e do Rio (ibid., pp. 493-538),
dos quais o único datado de 1962 é o Diálogo do Mar, os demais aparecendo sem
data na edição das Obras Completas – que a díade liberdade/reconhecimento assume claramente uma nova formulação.
Assinalados por Braz Teixeira como pertencentes ao terceiro estádio do caminho especulativo do Vicente, é no horizonte de uma filosofia da mitologia
e da religião que é preciso ver a problemática a liberdade e do reconhecimento.
O homem é compreendido “como um princípio derivado e subordinado, que
supõe (...) um princípio original”98; o mundo é a obra do Ser como Fascinador,
a transcendente liberdade que outorga à liberdade humana a possibilidade de
escolha entre possibilidades diversas.
No Diálogo do Mar, diversos personagens falam da ampliação do horizonte da existência, da abertura a uma plenitude do ser, da aproximação de “um
novo universo prototípico”, da irrupção de uma nova compreensão do sagrado.
A abertura ao transcendente é a exposição a um “Poder de Luz, de ConhecimenId., O. C., vol. II, p. 221.
BRAZ TEIXEIRA, A., “A aventura filosófica de Vicente de Ferreira da Silva. In FERREIRA DA
SILVA, Dialética das consciências e outros ensaios, p. 28.
97
98
95
to (...) deflagrador de um mundo de possibilidades”: é a descoberta de uma nova
expressão de liberdade, pela identificação do homem com o Ser transcendente
e fascinante99.
Entre 1962 e 1963, o pensador brasileiro escreveu os outros diálogos: o da
montanha, o do espanto e do rio.
O Diálogo da Montanha aborda “a aparição de outros aspectos luminosos das
coisas” (ibid., p. 512), a libertação da estreiteza vigente na atual imagem do mundo e do homem, expondo-nos ao “campo arrebatador” do mito e da poesia.
No Diálogo do Espanto – no qual o espanto é a admiração perante o mundo e
as coisas, representada pela atitude filosófica – Ferreira da Silva diz estarmos no
limiar de uma nova época, uma nova concepção do mundo, uma nova cultura,
em que o homem se identifica com uma “vida pletórica”, um estado de entusiasmo, de proximidade com o divino. A partir da crítica herdeggeiana à essência
da técnica, o tema do reconhecimento reaparece, sob o aspecto negativo. Hegel,
diz o filósofo brasileiro, já mostrava que o reconhecimento é sempre “reconhecimento do outro, é a expressão da [nossa] liberdade na liberdade do outro (...)
é a cadeia infinita dos eus iguais em direitos e possibilidades” (ibid., pp. 532533). Essa concepção do mundo, diz Vicente, resulta no império da técnica, no
antropocentrismo, que nos envolve até hoje. Relacionando antropocentrismo e
teocriptia, como já fizera no Teologia e Anti-humanismo 100, de 1953, o filósofo
brasileiro sublinha que outras possibilidades de desempenhos existenciais podem arrebatar-nos, “revelando-nos dominações imortais e imortalizantes. As
cenas eternas do mundo que constituem o universo prototípico dos deuses, podem abrir-se à nossa passagem, convocando-nos (...) para as diversas moradas
indestrutíveis (...)”101. A liberdade assim alcançada será libertação do tédio e da
angústia, característicos do mundo contemporâneo, uma vez que “O essencial
em nós (...) é descoberto como inerente ao ‘nunc stans’ da cena sagrada propiciada por um deus (...). Assistimos à nossa devolução a um universo sempre
presente e actualizável” (ibid., p. 520).
No Diálogo do Mar, um dos melhor sucedidos do conjunto dos Diálogos, Ferreira da Silva, evocando Schelling, Rilke, Walter Otto, afirma que assistimos a
uma mudança profunda da história, à irrupção de uma nova concepção do sagrado, do mundo e do homem.
Os Diálogos retomam temas do conjunto de escritos Sobre Filosofia da Mitologia e da Religião, publicados entre 1955 e 1962 e que constituem o fulcro da
contribuição original de nosso autor. Aqui, liberdade é abandonar-se às faces do
sagrado que emergem e nos resgatam da derrelicção e de perda de significado da
FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. II, p. 505.
Id., Teologia e Anti-humanismo, O. C., vol. I, pp. 275-298.
101
Id., Diálogo do Espanto, O. C., vol. II, p. 519.
99
100
96
existência no mundo contemporâneo; é reconhecimento de nosso laço com uma
liberdade originária que desencadeia, no tempo, novas possibilidades de existir
e novas etapas da história.
Segundo o percurso do filósofo, vemos a progressiva passagem de uma abordagem fenomenológico – existencial a uma leitura original, inspirada no romantismo alemão e em Heidegger, do significado de nossa época e das possibilidades
abertas ao homem contemporâneo. Uma leitura surpreendente, que invoca a experiência fundadora do Ocidente, na mitologia grega, vista como exemplo dessa
proximidade criadora com o sagrado originário.
A obra de Ferreira da Silva se caracteriza por uma atualidade, uma capacidade de responder aos desafios presentes. Sua tematização da liberdade e do
reconhecimento antecipa a ressurgência desses tópicos em alguns dos mais significativos autores contemporâneos, que fazem dessas palavras o eixo de suas
éticas: Ricoeur e Honneth. Mais ainda: Vicente formula uma hermenêutica do
mito, explicitando suas implicações ético-ontológicas, numa direção ainda pouco explorada, abrindo horizontes de reflexão que convidam à frequentação de
seus escritos e sugerem novos caminhos, novas indagações.
97
98
Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva
Amigos e participantes do chamado Grupo de São Paulo, Delfim Santos e
Vicente Ferreira da Silva representaram aspectos significativos das escolas de
inspiração fenomenológica e heideggeriana, em Portugal e no Brasil.
Leitores originais de Heidegger, ambos se apresentavam como introdutores
ou primeiros filósofos que, nos dois países, reconheceram a importância da obra
do pensador alemão para a reflexão contemporânea102.
Abordamos o tema das relações entre Delfim Santos e Vicente Ferreira da
Silva sob três aspectos: no primeiro, mostraremos as características da trajetória
dos autores até a sua descoberta da obra de Heidegger; no segundo, pomos em
relevo o encontro pessoal que tiveram em São Paulo e o diálogo aí mantido; no
terceiro, examinaremos a contribuição original de cada um que tange à formulação de seu conceito de filosofia.
Por ocasião das comemorações do 80º aniversário de Delfim Santos, Antonio
Quadros fez uma conferência abordando sua vida e obra, em Lisboa, na Escola
Preparatória e Secundária Professor Delfim Santos.
Nesse texto103 assinala que no início da década de 30, Delfim Santos fez estágios como bolsista da Junta de Educação Nacional em Viena, Berlim, Londres e
Cambridge, encontrando os mestres neo-positivismo, como Moore. Na mesma
ocasião, teve seu primeiro contato com Husserl, Heidegger, Frobenius, Klage,
Hartmann104.
Com formação matemática, a primeira orientação do filósofo foi na direção
da epistemologia e da filosofia das ciências, interesse que é atestado por sua participação, em 1937, em Paris, no Congresso Descartes e no Congresso para a
Unidade das Ciências.
Ver nosso “Heidegger no Brasil”, in MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa:
INCM, 2000, pp. 231-236. Ver também nosso “Delfim Santos e Heidegger” (13 p., digitado), no
qual estudamos o assunto a partir da correspondência do filósofo português. Ver ainda nosso
Vicente Ferreira da Silva, trajetória intelectual e contribuição filosófica (Tese de livre-docência).
Campinas: PUC-Campinas, 1980 (digitado), passim.
103
QUADROS, A., Delfim Santos, Introdução à vida e à obra (digitado). Lisboa, 1987, pp. 7-8.
104
Ver, a propósito, A. SOVERAL PASZKIEWCZ, C., “A Filosofia de Delfim Santos”, in CALAFATE, P. (org.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol I, tomo 1. Lisboa: Caminho, 2000,
pp. 425-433. Ver também SIRGADO GANHO, M. de L., O essencial sobre Delfim Santos, Lisboa:
INCM, 2002.
102
99
O largo pendor do filósofo para a epistemologia e a caracterização do conhecimento científico, distinguindo-o do filosófico, é indicado por Quadros e
Sirgado Ganho105.
Leitor na Universidade de Berlim, de 1937 a 1942, nosso autor foi aluno de
Hartmann e “aproximou-se de Heidegger e do seu pensamento, que o marcou
profundamente”106.
Talvez pudéssemos ao dizer, entre o início da década de 30 ao início da década de 40, uma ruptura na orientação reflexiva de nosso autor, uma vez que parte
da meditação sobre a ciência e volta-se para a metafísica e a ontologia, quando
se aprofunda o encontro com a obra de Heidegger.
Essa ruptura marcaria o afastamento de Delfim Santos também quanto ao
positivismo de inspiração francesa, vigente em Portugal na época, mas cuja critica já principiara, entre 1912 e 1930, através do magistério de Leonardo Coimbra,
ao qual Delfim Santos dedica diversos trabalhos.
A sua crítica ao positivismo contemporâneo é feita, inicialmente, a partir das
teses do neo-positivismo das Escolas de Viena, Berlim e Cambridge107.
O laço entre ciência e epistemologia levou-o a tentar aproximar idealismo e
realismo, metafísica e ciência positiva, numa abordagem que tem pontos de convergência com o idealismo crítico desenvolvido por Brunschvicg e Bachelard, sobretudo nas obras deste: O materialismo racional e o Racionalismo Aplicado108.
Contrariamente a Comte e adotando posição que se aproxima da metafísica
e da epistemologia neo-kantianas de Brunschvicg e Bachelard o pensador português trata de mostrar “conotação do pensamento metafísico com a realidade
sensível e com seu estudo pelo método científico”109.
O exame de bibliografia consultada por Delfim Santos, indicada na obra Situação Valorativa do Positivismo, mostra o conhecimento não apenas dos autores
do Círculo de Viena, do neo-positivismo, que se dedicaram à crítica da ciência,
mas também do idealismo crítico francês, como Renouvier, Ravaisson, dentre
outros, o que teria possibilitado a atitude crítica em relação não apenas ao positivismo, mas também em relação ao neo-positivismo que aparece claramente
nessa obra. A bibliografia também mostra a amplitude do conhecimento das teorias de Física e da Matemática contemporânea e da Filosofia das Ciências, numa
perspectiva extremamente interessante, com posições análogas às de Brunschvicg e de Bachelard, ou até mesmo inspiradas nestes.
SIRGADO GANHO, M. De L., op. cit., pp. 27-36.
QUADROS, A., op. cit., p.7.
107
SANTOS, D. Situação Valorativa do Positivismo (Texto de 1938), in O. C., Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, p. 12.
108
BACHELARD, G., Le materialisme rationnel. Paris: PUF, 1963; Le rationalisme appliqué. Paris:
PUF, 1970. A citação das obras de autores franceses, representantes do idealismo crítico, tais como
Ravaisson, Brunschvicg, Bachelard, aparece na bibliografia de Situação Valorativa do Positivismo.
109
QUADROS, A., op. cit., p. 14.
105
106
100
Assim, o itinerário de nosso autor vai da epistemologia para a metafísica,
“itinerário que ele irá seguidamente percorrer” diz Antonio Quadros, colocando
a metafísica como o estágio mais alto na atividade mental orientada para o conhecimento e para a procura da verdade (ibid., p. 15).
O enfoque crítico da filosofia da ciência e o contato aprofundado ulteriormente com a obra de Heidegger, em 1937-1938, marcam a ruptura com as preocupações essencialmente epistemológicas da primeira fase da obra de Delfim
Santos e preparam o terreno para o surgimento de uma segunda vertente de
inquietações, redefinindo a tarefa da filosofia na perspectiva da analítica existencial, e dando ênfase à problemática da ontologia.
A obra Da Filosofia, de 1939 e as obras seguintes de nosso autor mostrarão a
guinada temática, vinculada ao primeiro e segundo Heidegger, numa escala de
crescente interesse de Delfim Santos pela obra do pensador alemão.
Por razões diversas, a trajetória de Vicente Ferreira da Silva fez percurso análogo.
Se o despertar para a filosofia deu-se no jovem Vicente, através do contato
com a obra de Nietzsche, como escrevera Milton Vargas em seus depoimentos110,
a primeira publicação relevante do filósofo paulista foi contudo, o estudo sobre
Lógica Simbólica111 em 1940. Pouco depois, em 1942, nosso filósofo tornou-se
assistente de Willard van Orman Quine, na Universidade de São Paulo.
O livro é considerado por Newton da Costa – o mais significativo investigador da lógica matemática no Brasil – um marco dos estudos da nova lógica entre
nós112.
O interesse pela lógica matemática, ao menos como exercício intelectual, persistiu durante toda a vida de Ferreira da Silva, e é atestado pelos cursos que periodicamente ofereceu sobre o assunto, no Instituto Brasileiro de Filosofia.
Assim como em Delfim Santos, a guinada da lógica para a metafísica e ontologia fez-se, em Ferreira da Silva, através do encontro com a temática da fenomenologia existencial, de que Dialética das Consciências e Ensaios Filosóficos (1948) são
o marco. Vicente já conhece, certamente, nessa ocasião, a obra Ser e Tempo.
Em Idéias para um novo conceito de homem, de 1954, o encontro com a obra
de Heidegger é assinalada e o exame da contribuição desse pensador surge como
o coroamento da nova visão de homem, que o pensador paulista busca, apoiada
na Carta sobre o Humanismo.
Em Vicente, a ruptura entre a primeira perspectiva, voltada para a lógica matemática e a segunda, inspirada na fenomenologia existencial e na filosofia heiVARGAS, M., “O jovem Vicente Ferreira da Silva”. São Paulo: Convivium, Convívio, nº3, MaioJunho 1972, pp. 194-201.
111
FERREIRA DA SILVA, V., Elementos da Lógica Matemática. In Obras Completas. São Paulo:
IBF, Vol II, pp. 9-94.
112
COSTA, N. da., Vicente Ferreira da Silva e a Lógica. São Paulo: Revista Brasileira de Filosofia.
IBF, Vol XIV, fasc. 56, pp. 499-508.
110
101
deggeriana, é mais profunda que a ruptura ocorrida entre as duas fases da obra
de Delfim Santos. Para este pensador, na verdade, o diálogo com a escola fenomenológica – que se tornou, a partir de seu estágio em Berlim, a sua orientação
filosófica dominante – embora imprima uma orientação nitidamente metafísica
a seus escritos, fazendo emergir temas que envolvem a meditação sobre o ser e
sobre o homem – é marcado também, por um amplo esforço de reflexão, dedicado ao problema do conhecimento.
A dissertação de doutoramento de Delfim Santos, de 1940, terá como título
Conhecimento e Realidade. Aí, o filósofo busca “a determinação ontológica da
realidade”113, compreendendo a filosofia como ciência de rigor, que fundamenta
as demais ciências e estabelece níveis de objetividade, regiões da realidade a serem metodicamente exploradas através de formas diversas de aproximação.
Em Vicente Ferreira da Silva, a ruptura é mais radical, como dissemos. A
questão lógico-epistemológica passa a segundo plano e a análise da existência,
no horizonte da fenomenologia existencial perpassa os seus escritos, de 1948 a
1953: Ensaios Filosóficos, Exegese da Ação, Dialética das Consciências, Idéias para
um novo conceito de homem, Teologia e Anti-humanismo.
Aí, os temas da alteridade, da solidão, da angústia, são sucedidos por uma
compreensão histórico-crítica de uma nova resposta ao significado do homem,
pensado à luz de sua relação com o Ser. O Heidegger da primeira Kehre está presente no comentário ao Holzwege, publicado por Vicente em 1951, bem como na
raiz da compreensão do Ser como origem, nos escritos sobre Filosofia da Mitologia
(1956), que constituem a mais original contribuição do pensador brasileiro.
O breve exame da cronologia dos textos da primeira fase de Delfim Santos
e Vicente Ferreira da Silva mostra que: em épocas muito próximas, estavam se
dedicando a estudos da filosofia da ciência e da lógica simbólica; conheceram as
obras do Círculo de Viena e dos neo-positivistas. Isso ocorre no final da década
de 30, início da de 40.
Mas assim como Delfim Santos, que paralelamente aos estudos sobre filosofia
da ciência descobre a fenomenologia e a obra de Heidegger, sobretudo o Heidegger de Ser e Tempo, da analítica existencial, também Ferreira da Silva conhecia as
obras de Nietzsche e estudou a filosofia existencial, fazendo, por volta de 1940, a
primeira conferência sobre Sartre, no Brasil.
O encontro com a obra de Heidegger, da primeira Kehre, é atestado, em Delfim Santos, através dos ensaios “Heidegger e Hölderlin” de 1938 e “Sentido epocal das formas de pensamento” (1939).
“Heidegger e Hölderlin” é o marco da mudança de orientação de Delfim
Santos, indicada pela crescente aproximação à fenomenologia. Esta tendência
113
QUADROS, A., op. cit., p. 16. SANTOS, D. O. C., Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
p. 266 e segs.
102
se tornará, ulteriormente, a nota dominante de seu pensamento, perfeitamente
consolidada nos escritos da década de 50: “Temática existencial” (1950), “Fundamentação da Filosofia” (1954), “Filosofia como Ontologia Fundamental” (1955).
O escrito “Heidegger” sem data, reitera essa direção de seu pensamento.
Os temas apontam um laço de Delfim Santos sobretudo com o primeiro Heidegger, da analítica existencial, apropriado criticamente pelo filósofo português,
como atestam os estudos sobre o assunto de Cristiana Abranches de Soveral e
Paszkiewicz114, de José Maurício de Carvalho115, Maria Adelaide Pacheco116 e
também nosso “Delfim Santos e Heidegger117”.
A evolução da filosofia de Ferreira da Silva em direção ao diálogo com a obra
de Heidegger, também mostra o início da década de 50 como o período em que
este se consolida; o marco dessa consolidação é o livro publicado em 1951, Idéias
para um novo conceito de homem.
O encontro entre o filósofo português e o filósofo paulista pode ter ocorrido, inicialmente em Mendonza, na Argentina. Mas certamente conviveram em
1954, data do congresso comemorativo do IV centenário da cidade de São Paulo,
do qual Vicente foi um dos organizadores, e no qual Delfim Santos apresentou
a comunicação “Fundamentação da Filosofia”. Nela, distingue entre filosofia e
ciência, considerando aquela um saber fundador, “que origina a ciência”118.
Delfim Santos freqüentou o círculo Vicente Ferreira da Silva, em São Paulo,
como o atesta em carta sua dirigida à Dora Ferreira da Silva, esposa de Vicente.
Convergências entre os dois pensadores em relação à fonte heideggeriana,
envolvem a tematização dos laços entre filosofia e poesia, a concepção epocal do
pensamento e do ser, a ligação – aceita ou recusada – entre filosofia e filomitia,
que emergem, na década de 60, como ponto focal da atenção de ambos.
É como se o encontro pessoal entre os dois filósofos tivesse sido longamente
preparado, nas décadas de 30 e 40, por trajetórias filosóficas que apresentam
pontos de analogia na sua evolução.
Vejamos as posições de cada um quanto aos tópicos supra-indicados.
A relação filosofia-poesia é estudada por Delfim Santos no texto “Heidegger
e Hölderlin”, publicado em 1938. Apresenta as grandes linhas do ensaio heideggeriano Hölderlin e a essência da poesia. Resenha didática, não constituindo
abordagem original, é contudo importante divulgação, quase imediata, de um
escrito marcante do pensador alemão.
114
SOVERAL E PASZKIEWICZ, C. A. de., A Filosofia pedagógica de Delfim Santos. Vila Real:
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 1977, 1ª parte.
115
CARVALHO, J. M. de, A idéia de Filosofia de Delfim Santos. Londrina: UEL., 1966.
116
PACHECO, M. A., in A herança de Heidegger, op. cit.
117
MARCONDES CÉSAR, C., Delfim Santos e Heidegger (digitado).
118
SANTOS, D., O. C., vol II, p. 209.
103
Delfim Santos destaca a poesia como “atividade lúdica” (id., vol. III, p. 335),
“ocupação inocente”, mas também “o mais perigoso dos bens” oferecido aos homens, como Heidegger afirma, evocando Hölderlin.
Perigoso bem, a linguagem, porque pode exprimir o mais alto e o mais vulgar,
o mais luminoso e o mais obscuro que nos habita. E bem, porque expressa a
possibilidade de diálogo, de comunhão com os outros homens e com os deuses;
porque expressa, na temporalidade, a descoberta de um destino.
A poesia é assim, “antecipação e interpretação” (ibid., p. 339) do significado
do tempo em que estamos: tempo de carência e fuga dos deuses, tempo de anúncio dos deuses por vir.
Citando o poema de Hölderlin, visto à luz da interpretação heideggeriana,
Delfim Santos põe em relevo a importância da linguagem para a fundação do
mundo humano, da vida ética, que implica decisão, responsabilidade, criação da
história, reconhecimento do ser do homem.
A poesia é, assim, o dizer que põe à luz a essência da realidade; é invocação dos deuses, interpretação e antecipação da história, prenúncio de uma nova
compreensão do sagrado (ibid., p. 336 e segs).
No livro Idéias para um novo conceito de homem de Vicente Ferreira da Silva,
publicado em 1951, acha-se o capítulo “ A intuição hölderliniana do mundo”.
O livro é considerado por Braz Teixeira como um dos marcos de ruptura de
Vicente com a lógica matemática, bem como do surgimento de uma nova orientação de sua filosofia, inspirada em Heidegger e em outras fontes119.
No texto sobre Hölderlin120, o pensador brasileiro fala sobre o papel do poeta,
homem que vive no umbral do sagrado e imprime novo sentido à vida coletiva,
como mediador entre os deuses e os homens. Diz ele: “o poeta é um propiciador
de destino”, expondo as concepções de Hölderlin, invocadas por Heidegger em
Aproximação à poesia de Hölderlin e em Caminhos de Floresta.
Escrito em colaboração com a esposa, Dora Ferreira da Silva, o texto de Vicente Sobre a Poesia e o Poeta data de 1953. É a Rilke, Hölderlin, mas também
a Schlegel, Stefan George, Fernando Pessoa, Yeats, Miloz, Eliot, que recorrem,
para expressar a crítica ao mundo contemporâneo e ao cientificismo que o caracteriza. A arte é abertura à transcendência e ao mistério e o lamento pela perda
de sentido do religioso, no mundo actual (ibid., p. 382 e segs).
Os autores recordam a abertura ao mundo divino através da poesia, invocando as perspectivas de Walter Otto, de Rilke e de Eliot; e, mencionando Yeats,
referem-se às “figuras” do divino que transportam o homem para o mundo originário. A arte torna-se “encontro e anunciação”, invocação do sagrado e fundaBRAZ TEIXEIRA, A., “O Sagrado e a experiência religiosa na Escola de São Paulo”, in Cultura,
Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol XII, p. 109 e segs,
2000-2001.
120
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. São Paulo: IBF, 1964, vol I, pp. 250-252.
119
104
ção de um mundo, na medida em que oferece aos homens “modelos do valioso
e significativo”, “epifania do Deus” (ibid., pp. 385-386).
Ainda em 1951, Vicente publica um comentário ao Holzwege, mencionando os textos: “Sobre a origem da obra de arte” e “Por que poetas em tempos de
carência?”. Reitera o caráter fundador das obras de arte e evoca os poetas Hölderlin e Rilke como anunciadores de um novo sentido da existência. No mesmo
comentário, Vicente se refere ao ensaio “A época das imagens do mundo”, enfatizando o caráter epocal das manifestações do ser e assinalando que a época
moderna transforma o mundo em imagem do mundo e reduz a realidade ao
instaurado pela técnica121.
Os temas do nihilismo e da crise de valores, mencionados a propósito do
estudo sobre Nietzsche, na mesma obra de Heidegger, também apontam os interesses de Vicente, bem como a perspectiva que adota a partir de 1953, nos textos
Teologia e Anti-Humanismo e em Filosofia da Mitologia e da Religião, escrito
entre 1954 e 1962 e que constituem, a nosso ver, seus escritos mais originais e
mais importantes. Quando comentou Holzwege, Vicente já conhecia Ser e Tempo
e Carta sobre o humanismo, explicitamente citados (ibid., p. 287).
Outro aspecto comum a Delfim Santos e Ferreira da Silva é a reflexão sobre a
filomitia. Em Delfim Santos, o tema aparece em um texto de 1962, publicado em
Lisboa122. Numa acentuada crítica às filosofias ditas nacionais, o texto do pensador
português é uma afirmação da universalidade da filosofia. A seu ver, não se pode
falar, senão numa perspectiva histórica, de filosofia portuguesa ou de qualquer
nação: espanhola, francesa, alemã. Não há, na opinião do filósofo, uma filosofia
nacional, pois a filosofia não se confunde com a visão do mundo típica de um povo
ou em o estudo dos mitos que orientam sua ação: “Mundividência, Sociologia,
Filomitia alicerçada na interpretação dos poetas” (ibid., p. 328) não são filosofia;
podem ser campos que interessem à filosofia, mas não a circunscrevem.
O que caracteriza a filosofia é a “valorização do diálogo e da interpretação”, a
oposição às idéias vigentes, numa “dialética ascensional” que recorda o método
platônico, de questionamento constante em busca da verdade (ibid., p. 330).
Diz o filósofo: “A filosofia não tem pátria”, é universal “busca da verdade, do
bem e do belo”, atendo-se, não a tal ou tal país, mas “ao ser do homem na sua
correlação com o ser do tempo”, como proposição de um futuro que questiona as
idéias vigentes, em favor da utopia, tempo próprio do filósofo (ibid., p. 330).
Reconhecendo embora a existência de nomes de relevo na cultura portuguesa,
que se dedicaram à filosofia, deixa um opúsculo em que examina a sua contribuição, intitulado O pensamento filosófico em Portugal, escrito em 1946123. Delfim
decisivamente afirma, no texto de 1962, que “se há filósofos portugueses, eles não
Id., Holzwege, O. C., vol. II, pp. 287-289.
SANTOS, D., O. C., vol. II, pp. 327-330.
123
Id., O. C., vol. I, pp. 438-454.
121
122
105
expõem uma filosofia ´portuguesa´, embora mais tarde (...) suas filosofias sejam
incorporadas no patrimônio cultural comum dessa nação”124.
Para ele, a filosofia não surge como conseqüência direta da cultura, da língua
ou do povo a que o pensador pertence, mas em oposição ao seu tempo e ao seu
mundo, tornando-se freqüentemente, em sua época, um “indesejável, perseguido
e até excluído da comunidade de seus compatriotas (...) [ou até mesmo] excluindose a si pelo exílio, pelo silêncio ou pelo suicídio” (ibid., p. 329). Como exemplos
dessa ruptura, Delfim cita Sócrates, Bruno, Kant, Kierkegaard (ibid., p. 330).
A fonte heideggeriana aparece, na concepção de filosofia do pensador português, na distinção entre ser e sendo; busca do conhecimento do ser é filosofia;
a do sendo é conhecimento existencial, científico. O primeiro é busca de princípios; o segundo, examina o mundo de experiência. A distinção entre o campo de
filosofia, entendida como ontologia fundamental, do campo das ciências, voltadas para o mundo empírico, acha-se presente no Heidegger da analítica existencial e é retomada por Delfim Santos, em “Situação e Mundo”.
Entre 1939 e 1962, a reflexão de nosso autor mostra a meditação filosófica
voltada para a busca da universalidade do humano e inspirada, decisivamente,
pelo primeiro e segundo Heidegger.
Numa perspectiva diversa, Ferreira da Silva considera o mito como prioritário ao logos125, entendendo a filosofia, na última fase de seu pensamento como
meditação sobre o Ser, fundamento originário.
Entre 1954 e 1962, Vicente aborda o tema da filosofia da mitologia e da religião.
A filomitia de Vicente não é um puro retorno aos mitos arcaicos, mas a retomada, na senda de Walter Otto, de Kerényi, do romantismo alemão, da poética
de Heidegger, do valor fundante do mito. É reflexão sobre o mito e a poesia, vistos como via de acesso ao Ser, entendido como “Poder Pulsional, Fascinação”126.
É meditação sobre o sagrado, como bem viu Braz Teixeira127.
Constituindo o cerne da contribuição filosófica de Vicente, a Filosofia da Mitologia e da Religião encontra seu complemento nos Diálogos do Mar, da Montanha e do Espanto, nos quais os personagens, que evocam Vicente, sua esposa e os
amigos, conversam sobre a realidade abissal, o mundo contemporâneo, o mundo
futuro – apenas pressentido – e uma nova concepção do sagrado.
A busca da beleza, do ser, de universalidade, da verdade, do sagrado, características da filosofia desde seus primórdios, recebe, em Ferreira da Silva, um tom
de descoberta, de admiração, de espanto perante o real.
O filósofo paulista assinala claramente a sua originalidade em relação a Heidegger e suas outras fontes, reconhecendo-se, contudo, tributário delas128.
Id., O. C., vol. II, p. 329.
Cf. O nosso O Grupo de São Paulo, passim.
126
FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. I, pp. 303 ss.; pp. 309-310; p. 315 e segs.
127
BRAZ TEIXEIRA, A., “O Sagrado e a experiência religiosa na Escola de São Paulo”, in Cultura.
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, vol. XII, 2000-2001, pp. 155-181.
128
FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. I, pp. 310 ss.; vol. II, p. 341 e segs.
124
125
106
Assim, as teses de Vicente, são:
- a desocultação dos entes é proto-poesia (ou mitologia);
- a aproximação entre o Heidegger da primeira Kehre e a filosofia da mitologia de Schelling;
- a experiência do Ser entendida como Fascinação, encontro com um Poder
Passional;
- a concepção da mitologia como proto-poesia, que condiciona toda linguagem;
- a compreensão do desenrolar da História a partir do tema hölderliniano
da conversão infinita.
Um aspecto da originalidade de Vicente consistiu em ter percebido a conexão
essencial entre o romantismo alemão e o pensamento Heidegger, e em ter lido a
obra deste último através dessa ótica.
A grande contribuição do romantismo, reconhecida por Vicente em seus Ensaios Filosóficos, foi a intuição emocional e artística da realidade, que traz como
conseqüência a união entre poesia e filosofia e se expressa através de uma “lógica
da paixão”, abordagem emotiva – intuitiva do mundo129.
Outro tópico abordado por Delfim Santos e Vicente, que atesta o laço de ambos com a obra de Heidegger e com Schelling, é o sentido epocal do Ser e das
formas de pensamento.
O texto de Delfim Santos sobre “A epocalidade das formas de pensamento”,
mostra a sucessão dos modos de compreensão que caracterizam, nos diversos
tempos, “a mentalidade característica de determinado século”130, expressando
algo “que ultrapassa o homem e se serve do homem para se revelar (...)”. Podemos recordar, aqui, o tema da epocalidade do Ser, abordado por Heidegger.
Esse tema reaparece em Ferreira da Silva e está claramente presente nos Diálogos, quando o filósofo fala de um novo tempo. O pensador diz: “somos seres do
limiar (...) só podemos pressentir a sombra das coisas por vir”131.
De modo análogo, a história do Ser segundo Heidegger, condiciona a existência humana. O homem vive no aberto, na clareira do Ser, no oferecido pelo
Ser em cada época132.
Em resumo, podemos dizer que a obra de Delfim Santos atém-se sobretudo
ao primeiro Heidegger, de Ser e Tempo; e a alguns aspectos do segundo Heidegger, sobretudo dos Ensaios e Conferências.
A leitura de Delfim Santos situa Heidegger na esteira da filosofia existencial.
Os textos de Delfim, de 1950 a 1956, quando certamente estava em contato com
Para um estudo mais detalhado dessa perspectiva, ver nosso Vicente Ferreira da Silva: trajetória intelectual e contribuição filosófica (tese de livre-docência). Campinas: 1980, p. 124 e segs. (digitado).
130
SANTOS, D., O. C.. vol. I, p.. 248.
131
FERREIRA DA SILVA, V., Diálogos do Mar. O. C., vol. II, p. 507.
132
HEIDEGGER, M., Paris: Gallimard, 1962, p. 260.
129
107
Ferreira da Silva, – sobretudo o texto de 1954, apresentado no IV Centenário
de São Paulo, do qual Vicente participou, mostram a permanência da temática
heideggeriana, impregnando posições do filósofo português.
É no escrito de 1954, “Fundamentação da Filosofia” que, distinguindo entre
saber filosófico e saber científico, o filósofo português assinala a prioridade da
filosofia sobre a ciência, dado que “não é a ciência que origina a filosofia mas a
filosofia que origina a ciência” 133.
O domínio próprio da filosofia é o “transobjetivo”, dado que a filosofia é
“constituinte da objetividade”, “promoção da coisa a objecto” (ibid., p. 210). A
filosofia é um saber autônomo, “que origina e garante as ciências”134.
Embora inspirado em Heidegger, Delfim Santos não se alinha completamente às posições do filósofo alemão. Aberto às idéias de seu tempo, o filósofo português desenvolve uma reflexão que amalgama várias fontes, resultado de um
diálogo continuado com os principais pensadores de seu tempo”135, privilegiando a vertente alemã, mas estabelecendo também estreito vínculo com autores
franceses, espanhóis, ingleses, brasileiros.
O pensador se apóia na tradição filosófica, sendo Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás, algumas de suas fontes. A obra de Mounier não lhe era estranha e a ênfase na noção de pessoa, com suas implicações sociais e educativas,
separam-no da abordagem heideggeriana136.
Por sua vez, Vicente Ferreira da Silva, inspirando-se em Heidegger, atém-se
sobretudo ao segundo Heidegger, o da primeira Kehre, lido com as categorias do
romantismo. E aqui vê-se a radical distinção que opõe Ferreira da Silva a Delfim Santos: o recurso do primeiro não à tradição aristotélica-estóico-cristã, que
caracteriza o pensador português, mas sim à filosofia da mitologia de Schelling,
que leva Vicente a postular: o Ser como Fascinação, a prioridade do mito sobre o
logos, a existência de uma Poiésis originária e o caráter poético do pensamento.
Dois autores importantes, com leituras diversas de uma fonte comum: Heidegger. O encontro deles deve ter sido fascinante e explosivo, pois a aproximação
aparentemente estreita, à primeira vista, revelou-se, no exame do diálogo que
estabeleceram e na leitura de suas obras, impulso para a constituição de filosofias
originais, que põem em questão o sentido mesmo do filosofar, em duas perspectivas contrapostas.
SANTOS, D., O. C. vol. II, p. 209.
Id., ibid., apud. CARVALHO, J. M. de, A idéia de Filosofia em Delfim Santos. Londrina: UEL,
1996, p. 216.
135
Cf. a tese de doutorado de ABRANCHES DE SOVERAL E PASZKIEWICS, C., A Filosofia pedagógica de Delfim Santos, Lisboa, INCM, 2000.
136
CARVALHO, J. M. de., Filosofia da Cultura. Delfim Santos e o Pensamento Contemporâneo.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, pp. 59-67; SIRGADO GANHO, M. de L., O essencial sobre Delfim
Santos. Lisboa: INCM, 2002, p. 68 e segs.
133
134
108
Filosofia e Poiésis: Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva
Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Souza são pensadores que convergem
na meditação sobre os laços entre filomitia e filosofia. Essa convergência expressa, em ambos, a busca de um pensar originário, que tem no mito e na religião seu
modo de se manifestar. Esse tipo de pensar, que prioriza, ou ao menos valoriza
o mito em relação ao logos, torna-se o fulcro de uma reflexão que supera a perspectiva tradicional a respeito do papel e do significado da filosofia.
Em Vicente, o mito é a poiésis primordial, o desvelamento, para o homem, do
dizer originário do Ser. Sua filosofia da mitologia trata de explicitar esse modo
de ver, apoiando-se em Schelling e em Heidegger, assim como na fenomenologia
da religião.
A partir desse enfoque, Vicente tece as relações poesia–filosofia, no texto
“Sobre a poesia e o poeta”137. O horizonte de meditação assim aberto tem amplas analogias com o pensamento de Heidegger tal como se acha exposto, dentre
outras obras, no A origem da obra de arte. O texto de Vicente a que aludimos,
foi escrito em 1953, em colaboração com a poetisa Dora Ferreira da Silva, sua
esposa. Aí é feita a crítica da sociedade técnica e das concepções de arte nela
vigentes: a que entende a poesia como expressão da subjetividade emotiva, dos
impulsos e emoções coletivas, ou então, a que vê a poesia como mero jogo, ornamento, reduzindo o fenômeno estético à expressão do mundo psicológico. Para
Vicente, a obra de arte se caracteriza por ser revelação, desvendamento de uma
transcendência que nos põe em face do sagrado. Invoca o significado da poesia
inscrevendo-o numa tradição que chama de “órfica”, na linhagem “de um Fernando Pessoa, de um Rilke, de um Milosz, de um Yates, de um Stefan George ou
de um Elliot” (ibid., p. 382). Evoca também a queixa de Hölderlin a propósito
da ruptura dos laços entre o homem e o sagrado, presente nas Grandes Elegias,
bem como a concepção da poesia como “a mais perigosa e grave das ocupações”
(ibid.,p. 383). Recorda, na mesma senda, o verso de Rilke nos Sonetos a Orfeu:
“o canto é existência”, para significar que a poesia é “condição do aparecimento
de um mundo (...) tarefa órfica de suscitação do real” (ibid. O grifo é nosso),
imperativo de metamorfose, ruptura “ do confinamento do aqui e do agora, remetendo-nos ao reino da ‘relação pura’” (ibid., p. 384) com as coisas.
FERREIRA DA SILVA, V., Sobre a poesia e o poeta, in id., Obras Completas. SP: IBF, 1966, vol.
II, pp. 381-386.
137
109
Do romantismo alemão, da fenomenologia da religião, da reflexão heideggeriana, provém a outra face da poiésis, tal como Vicente a compreende. De
Schelling, o filósofo paulista retém a afirmação de que “o cerne da (...) poesia
encontra-se na mitologia e nos mistérios dos antigos” (ibid., p.383. O grifo é nosso); de Walter Otto, guarda a concepção do poético, em cada um, como “ o que
(...) põe em contato com o divino, isto é, com a mais alta realidade”. O poeta inato
é, por natureza, aparentado com o ser do mundo, de tal modo que,” como que
tocado por um relâmpago divino, dá nascimento ao canto da infinitude”138; de
Heidegger, citando a exegese dos versos de Hölderlin, feita no A origem da obra
de arte -- texto ao qual Eudoro também faz menção explícita, nos escritos sobre
a figura emblemática de Orfeu – Vicente considera a compreensão da arte como
“ projeto instituidor de um mundo”, pois é “através dela que um povo recebe os
paradigmas, medidas e valores que determinarão sua história” e o “próprio homem é instituído através das possibilidades emergentes do verbo poético”139.
A afirmação mais importante, que sucede imediatamente no texto do pensador brasileiro e que mostra o parentesco entre Vicente e Eudoro é a seguinte:
“A obra de arte assim compreendida é por essência mitologia” (ibid. O grifo é
nosso). Eudoro não é citado, em nenhum momento do texto. É a Schelling que
Vicente se reporta, para afirmar, com o romântico alemão – que será uma das
fontes importantes da filosofia da mitologia e da religião que proporá – um novo
tipo de pensar, que prioriza o mito em relação ao logos, não como pura sucessão
temporal, mas como fonte de cada ciclo de revelação do Ser, do Sagrado, em cada
época histórica.
A obra de arte originária é, para Schelling, retomado por Vicente, a formação
mítico-religiosa. Assim, diz o pensador paulista, no “fenômeno da festa, que é
ao mesmo tempo dança, canto, representação e iniciação está implicado o fenômeno germinal de toda arte”, pois “a arte não é magia humana, mas magia
divina” (ibid., p. 386). O poeta é “o homem sacral”, “ligado ao absolutamente ‘
outro’, à transcendência, representada, na poesia de Hölderlin, pela aproximação
ou afastamento cíclico dos deuses, e na poesia de Rilke, pelo ‘Anjo terrível’, que
aniquila a entidade demasiado humana do poeta, para convertê-lo num arauto
do real” (ibid., p. 385).
Mito e mistério, filomitia e filosofia aparecem na “ carta de navegação” da
vida do espírito (que o texto de Vicente representa e sintetiza) como faces de um
pensar que anuncia a superação do esquecimento, a superação da noite e ausência dos deuses. Tal pensar é ultrapassagem da crise contemporânea, recordando
ao homem de nosso tempo a antiga tradição que faz do poeta o “ mediador entre
os deuses e os homens” e da arte “ Encontro e Anunciação” do sagrado, revelação
da verdade originária.
138
139
OTTO, W., Der Dichten und die alten Götter”, apud FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 385.
FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 385.
110
Para Eudoro, o diálogo filomitia-filosofia, representado pela figura de Orfeu,
emerge na aurora do pensamento ocidental e, de modo cada vez mais intenso, na
tradição neo-platonica. Simboliza “a vida interior de todo o filosofar”140 e mostra,
de modo metafórico, “ o que não se pode dizer, diretamente, da própria natureza
da filosofia” (ibid., p. 384). Um ponto merece destaque: segundo nosso autor, as
doutrinas derivadas do orfismo, no final do Império Romano, convergem na meditação sobre os laços entre a vida e a morte, o destino das almas (ibid., p. 284);
mais ainda: o exame dos textos e fragmentos, levado a efeito por Eudoro, põe à luz
um vínculo estreito entre o orfismo e os sistemas de Pitágoras e de Platão.
O orfismo é, antes de mais nada, uma teogonia, marcadamente abstrata, que
supõe o Tempo como fonte originária dos deuses. Nela a catábase aparece como
um tema central. Mas é a Proclo, comentador de Platão, que nosso autor recorre para caracterizar Orfeu como o teólogo da Grécia, revelador dos deuses
aos homens, filho de Apolo e da musa Calíope. Sua música despertava homens
e outros entes para uma vida superior, para uma ascensão a um nível superior
ao que se encontravam; apaziguava as feras e propiciava as divindades subterrâneas. Poeta, sua poesia seria “ naturalmente melódica (...) sobrenaturalmente
catártica” (ibid., p. 294), emblemática da transcendência da morte, que o mito
narra como descida e retorno dos infernos. Orfeu seria também o fundador dos
mistérios. A catábase é essencialmente a experiência arquetípica do confronto
com a morte, que a filosofia platônica traduz no entendimento do filosofar como
aprendizagem da morte (ibid., p. 298 e segs), encontro com o mistério. Música,
dança, rito141, revelam e imitam a antiga história dos deuses. Assim, “a ‘músicafilosofia’ [e] a ‘música-religião’ (...) [aparecem] emblematizadas (...) pela figura
de Orfeu”142.
Para Eudoro, assim como para Jaeger, explicitamente referido pelo filólogo, o
pensamento grego mostra-se “ no diálogo entre a philomythia e a philosophia (...)
[expondo] a perenidade de uma recíproca relação entre as formas da consciência
religiosa e da consciência filosófica” (ibid., pp. 308-309).
Criticando a tese tradicional de que a filosofia surge da transição do mito ao
logos, nosso autor mostra que ambas, a philomythia e a philosophia correm juntas e que poesia, mito e filosofia expressam um certo tipo de pensar que não tem
linguagem própria e onde se expõem “ duas objetividades complementares” que
se referem a uma realidade situada além da experiência religiosa ou científica.
Orfeu representaria a busca da síntese dessas duas linguagens, síntese irrealizável, mas que poderia achar-se em vias de realização no Cristianismo, diz Eudoro
(ibid., pp. 318-319).
SOUSA, E. de, Dioniso em Creta e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades, 1973, p. 281.
Cf. FERREIRA DA SILVA, n. 6, 9 e 10.
142
SOUZA, E. de., op. cit., p. 305.
140
141
111
Orfeu é o nome da vida interior da filosofia. A teogonia e a escatologia a ele
atribuídas podem ser sintetizadas pelas seguintes afirmações: a) a da imortalidade da alma; b) a da dualidade do homem, “filho da terra e do céu estrelado”143; c)
a da existência de um percurso de libertação da matéria, conduzindo a alma ao
retorno a seu lugar de origem, um lugar supra-celeste. Diz Eudoro: “(...) filomitos, por excelência, são os poetas: Homero, Hesíodo, Orfeu (...)”144; mas também
Parmênides e Empédocles, que exibem a correspondência entre mitologemas
e filosofemas. O pensar das origens mostra coincidências de significado entre
o mito e o logos, denunciando a existência de uma correlação entre poiésis e
noésis: “(...) no pensamento dos órficos (...) a mitologia e a filosofia parecem (...)
duas cifras de um pensar que não tem linguagem própria (...) [e] que os Antigos
cifraram (...) no mito de Orfeu” (ibid., pp. 108-109).
Assim, o que se mostra, através da figura do músico-poeta-hierofante, é o fato
de que não há um abismo entre a poesia e a razão, mas uma perene e recíproca
relação entre a consciência poético-religiosa e a filosofia, diz Eudoro, apoiandose em Jaeger (A teologia dos antigos filósofos gregos) e em Frobenius (A cultura
como ser vivente) (ibid., p. 137 e segs).
Orfeu, o “mais músico” e o “mais filósofo”145, expressaria a revelação da verdade, a busca do saber sobre o homem e o mundo, característicos da filosofia e da mitologia, sintetizados na experiência religiosa do homem arcaico. O
mito põe à luz a complementaridade da vida e da morte, a unidade dos opostos,
profundamente enraizada na alma do homem. A figura de Orfeu-poeta põe em
relevo ainda o denominador comum a todas as artes, que é poesia: “poesia das
palavras, que é poema (...), poesia do som, que é música, poesia da cor e da luz,
que é pintura (...)”146.
A intuição da essência é o objetivo da poesia e da filosofia. Na arte, é invocação, visão que se manifesta no discurso sobre a beleza. Para os Antigos, a arte é
mimésis, imitação do real; para o Romantismo, arte é criação. Para Aristóteles,
invocado por Eudoro, a arte é imitação criadora da própria origem dos entes. Por
isso, a poesia é busca do mistério, “revelação da origem, no originado” (ibid., p.
172). Ou seja, a arte é Alétheia, desvelamento, saída de um estado de ocultação,
diz Eudoro, reportando-se ao célebre texto de Heidegger A origem da obra de
arte (ibid., pp. 172-173). A arte imita, desvela, a origem do ser, mediante símbolos. Por isso Orfeu, emblema da unidade entre poesia, religião e filosofia, desce
aos infernos, isto é, transpõe “o horizonte que envolve todo o campo da experiência comum” (ibid., p. 179).
CARRATELLI, G. P., Les lamelles d’or orphiques. Paris: Belles Lettres, 2003.
SOUSA, E. de, Origem da Poesia e da Mitologia. Lisboa: INCM, 2000, p. 105. Cf. também FERREIRA DA SILVA, n. 4, 8, 9, 10, 12.
145
Eudoro cita Otto KERN, Orphicorum Fragmenta. Testimonium. 46, p. 14.
146
SOUSA, E. de, Dioniso em Creta, p. 165.
143
144
112
O que Eudoro se propôs fazer foi a hermenêutica do mito, desdobrando o
significado da poesia e da filosofia. Interpretar é exprimir, e o que a poesia e a
filosofia tratam de expressar é um outro mundo, um outro nível de realidade,
que coincide só parcialmente com o nosso, com a realidade material. Mas como
não coincide totalmente nos planos da sensibilidade e da inteligibilidade, o que a
interpretação faz é mostrar como, no símbolo artístico, “se altera este mundo, no
sentido do outro” (ibid., p. 182). A poesia, no limite entre o dizível e o indizível,
põe à luz o mundo simbólico, que sintetiza o particular e o universal, o sensível
e a significação.
Em resumo, na hermenêutica do mito de Orfeu, Eudoro assinala:
- a coexistência da filomitia e da filosofia;
- a tese de que poetar e pensar são duas cifras, dois modos de abordar o
mundo simbólico, a realidade para além do dado imediato;
- a catábase, entendida como metáfora da transcendência da vida comum,
confronto com a equivalência entre a vida e a morte;
- a indissociabilidade entre religião, arte e filosofia;
- a complementaridade entre mito e filosofia.
Vicente e Eudoro convergem na proposição de um novo tipo de pensar, que
retoma a tradição originária do Ocidente e a relê a partir das contribuições do
romantismo alemão, da fenomenologia e da hermenêutica.
Esse novo tipo de pensar propõe uma reformulação da idéia de sagrado e
assinala a poesia como seu lugar de expressão, no mundo contemporâneo.
Nesse pensar filomitia e filosofia, filosofia e poiésis são aspectos indissociáveis de uma interrogação que sonda o mistério do Ser.
113
114
Pensamento originário e filomitia
É no horizonte da meditação sobre a tradição grega e sobre os mitos que
é preciso compreender a aproximação ocorrida entre os pensadores da Escola
do Porto – Delfim Santos, Agostinho da Silva –, o filólogo e filósofo Eudoro de
Sousa e Vicente Ferreira da Silva – este, o mais importante autor brasileiro de
inspiração heideggeriana.
À luz do magistério de Leonardo Coimbra, «o primeiro que [...] se referiu [...]
à analítica existencial heideggeriana»147, os estudiosos portugueses abordaram,
em seus textos, a filosofia e mitologia gregas.
Por volta de 1950, nossos autores acham-se em São Paulo, convivendo com
Ferreira da Silva. Mantêm entre si um im­portante diálogo espiritual, lançando o
germe do Grupo de São Paulo148.
A nosso ver, os filólogos Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, sob o impacto
directo da reapropriação do pensamen­to grego, levada a efeito por Heidegger,
buscaram a Grécia viva, originária, raiz da civilização ocidental. É possível que
o magistério de Leonardo Coimbra, conhecedor da obra de Husserl, Heidegger,
tenha impulsionado tal busca, pois na Faculdade de Letras do Porto o filósofo
formou «um numeroso e valioso grupo de discípulos que, sem prejuízo da diversidade de caminhos especulativos que cada um deles veio a trilhar, permaneceram sempre fiéis»149 ao mestre.
A diversidade dos «caminhos especulativos» é menos evi­dente na orientação inicial de Agostinho da Silva. Poderíamos distinguir, na sua trajectória intelectual, ao menos três mo­mentos. Nascido no Porto, nosso autor formou-se
em Filologia Clássica na Faculdade de Letras. Foi aluno de Leonardo Coim­bra
e sua tese de doutorado foi sobre O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas
(1929). A Religião Grega (1930) e Con­versação com Diotima (1944) exemplificam a primeira fase de sua obra, marcada pelo interesse pela Grécia Antiga. A
se­gunda fase seria constituída pelos textos que anunciam o mo­ralista de estilo
aforismático: Considerações (1944), Glossas (1945), Sete Cartas a um Jovem Filósofo (1945). Esses escritos reúnem as meditações de Agosti­nho sobre o mundo contemporâneo e prenunciam a terceira fase, mais conhecida, sob a influên147
BRAZ TEIXEIRA, A., «A filosofia portuguesa do século XX», in Ética, Fi­losofa e Religião,
Évora, Pendor, 1997, p. 26.
148
CÉSAR, C. M., O Grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000.
149
BRAZ TEIIXEIRA, A., op. cit., p. 15.
115
cia do joaquimismo. É pre­ciso dizer que o pensador emigrou para o Brasil, em
1944, trabalhando, na Universidade Federal Fluminense, com Jaime Cortesão.
O encontro será decisivo para o compromisso com uma visão profética, inserida «numa linha escatológica e paraclética, próxima do joaquimismo e na qual
é assinalável um franciscanismo essencial» (ibid., p. 19), que marcará a terceira
fase de sua trajectória. São dessa época Reflexão (1957), As Apro­ximações (1960)
e os vários escritos reunidos em Dispersos (1988-1989), de entre outros.
O fio condutor da sua meditação, que parte da apropria­ção da Grécia, vista
como metáfora do espírito, e desemboca na celebração de Portugal como instrumento de construção do império do Espírito e superação da conturbada civilização téc­nica em que nos encontramos, é a busca do sagrado, traduzida, no
plano do sujeito individual, como fidelidade ao deus inte­rior. Na caminhada de
Agostinho encontramos, num primeiro momento, a tradição socrático-platónica; na sua obra de matu­ridade, a repercussão dessa temática na afirmação do
dever essencial de santidade, numa perspectiva inspirada em Joa­quim de Fiore.
A íntima relação entre pensamento e vida «deve entender-se à luz dessa preferência pela transformação da vida, em ordem à libertação e realização pessoal e
comu­nitária»150. A passagem da ênfase na Grécia metafórica ao Por­tugal metafórico dá-se a partir da vida no Brasil e da medi­tação sobre o sentido da cultura
portuguesa: «assumindo o franciscanismo e paracletismo que Jaime Cortesão
vislumbra nos Descobrimentos, passa a assumir Portugal, o Brasil e a comunidade de lingua portuguesa como sujeitos histórico-cul­turais de uma privilegiada
missão, visando unificar fraternal­mente o planeta, numa idade final de plenitude
e convergên­cia entre tempo e eternidade e o divino e o humano, referida como o
Império do Espírito Santo» (ibid., p. 3).
Mais conhecida, esta última fase de seu pensamento, a do «paracletismo
franciscano»151, a do «homem de Deus»152, é preci­so compreendê-la no horizonte
de um ecumenismo, pois sua opção pelo cristianismo deve-se mais «a motivos
de ordem geográfica, histórica e sociológica, porque sendo a religião dos portugueses foi naturalmente para ele a mais próxima» (ibid., p. 292). Aberto a todos
os caminhos que conduzem o homem à perfei­ção moral, afirmando um Deus
impessoal e conciliador dos contrários, nosso autor está longe de uma ortodoxia
católica. Propõe uma ética das virtudes, que privilegia a sabedoria e o amor, apontando a santidade como «o único fim de todos os homens» (ibid., p. 282).
Nesta fase, Agostinho diz o sagrado a partir das categorias do cristianismo,
mas apresenta, na sua concepção, uma radical abertura a todas as religiões, entendidas como plurais expres­sões da busca de Deus. Diz Abranches de Soveral:
150
BORGES, P., «Agostinho da Silva» (dactilografado), p. 2.
BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., p. 19.
152
ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Agostinho da Silva: um homem de Deus», in CALAFATE, P.
(dir.), História do Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 1, Lisboa, Caminho, pp. 273-295.
151
116
[Agostinho] «Pensava que cada um deveria ter a sua religião, mas olhar também,
como se fosse sua, a religião dos outros; e acolher o que há de religioso no próprio ateísmo». E ainda: «o proble­ma de Deus apresenta-se basicamente idêntico
para todos, e as soluções encontradas têm também um idêntico valor existencial,
pelo que haverão de ser respeitadas e olhadas com simpatia». Agostinho vê nos
ateus «uma inquieta busca da verdade», a qual expressaria, de certo modo, «uma
exigente religiosidade, mais louvável que a fé acomodatícia de muitos crentes...»
(ibid., p. 281).
Sublinhamos a presença da temática do religioso em Agos­tinho, desde os
seus primeiros textos (v. g., A Religião Grega, 1930). Essa temática será um dos
denominadores comuns, como veremos, entre Agostinho, Eudoro e Vicente Ferreira da Silva, entre a Escola do Porto e a Escola de São Paulo153. Embora Eudoro tenha estudado na Universidade de Lisboa, frequentou, na cidade, a casa de
Antonio Sérgio, onde um grupo de discípulos de Leonardo Coimbra se reunia;
nessa casa «circulavam [...] Delfim Santos e Agostinho da Silva»154.
Na primeira fase de seu pensamento, marcada por um «neoclassicismo de
matriz helénica»155, Agostinho faz uma lei­tura «crítica e heterodoxa» do cristianismo” (ibid., p. 12), «destacando o ‘carácter social’ da pregação de Cristo» (ibid.,
p. 13) e propondo uma con­cepção imanentista e transcendente de Deus, fusão
do Espíri­to e Matéria, expressão da Inteligência e do Amor. Uma leitu­ra crítica
do cristianismo estará presente também em Vicente Ferreira da Silva, no seu
Teologia e Anti-Humanismo156, e em Eudoro de Sousa.
Os textos mais importantes que expõem o vínculo à Grécia, na primeira fase
do pensamento de Agostinho, são: A Religião Grega (1930), Conversação com
Diotima, Pólicles e Apólogo de Pródico de Ceos (1944).
Em A Religião Grega, a Grécia é vista como metáfora do espírito: a «característica essencial do espírito grego [...] é [...] o amor insaciável pela Beleza»157. E a religião grega «é a pro­jecção, no eterno, no sagrado, no divino, do amor da Nature­za,
do amor da Vida e [...] do amor da Beleza» (ibid., p. 11). E ainda: «por todo o
tempo ficará no Homem a saudade, o anseio de reencontrar essa Grécia divina
onde se adoravam, sobre todos os deuses, a Beleza e a Vida» (ibid., p. 103).
Conversação com Diotima é reconhecida, por Paulo Bor­ges (op. cit., p. 17),
como uma das mais significativas obras de nosso autor, do ponto de vista filosófico. Escrito sob a forma de um diálogo entre um Estrangeiro e Diotima, a
sacerdotisa de Mantinéia que, no diálogo de Platão – O Banquete –, é interlocuBRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., passim.
ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in CALAFATE, P., op. cit., p. 298.
155
BORGES, P., «Estudo introdutório», in Agostinho da Silva, Textos e Ensaios Filosóficos, vol. I,
Lisboa, Âncora, 1999, p. 11.
156
Texto de 1953, publicado em São Paulo, em edição do autor.
157
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 5.
153
154
117
tora de Sócrates, o texto de Agostinho é riquíssimo: apresenta uma pluralidade
de facetas, onde a meditação alcança enorme pro­fundidade. A Grécia viva, a
temática da beleza, a indissolúvel ligação entre o conhecer e o contemplar, o
artista encarado como aquele que desvela a maravilha do mundo, a reflexão
sobre a felicidade e a íntima relação entre felicidade e sabe­doria, entre verdade e
amor, estão presentes nesse escrito. Mas Agostinho ressalva: «A Grécia, que me
encanta, tem todas as qualidades, Diotima, mas falta-lhe talvez a do Amor». E
afir­ma: «se um dia surgir na terra o amor [...] que morrerá pelos escravos, pelos
humildes [...] então [...] a vida seguirá rumos que hoje nos parecem totalmente
fechados»158.
Em Pólicles, a forma dialógica também é a escolhida. Nesse escrito Agostinho
aponta a exigência de auto-superação do homem; ao mesmo tempo, recria a
paisagem da Grécia e recorre ao mito de Héracles – símbolo, para ele, do destino
heróico, proposto a cada um. A menção a Héracles já aparece em Conversação
com Diotima, onde a personagem o Estran­geiro diz: «Entre os deuses e os homens, se não venerasse o que é ainda mais alto do que os deuses e os homens,
tomaria para meu guia e modelo o gigantesco Herácles»159.
Na filomitia, na apropriação da Grécia como paisagem, na referência à experiência originária de pensamento e do encon­tro entre filosofia e vida, Agostinho
expressa o modelo para­digmático do existir humano. Trata de construir uma
ponte entre o finito e o eterno, mediante a fidelidade à inspiração dos deuses e
o reconhecimento de que o caminho mais áspero é o que melhor possibilita a
transcendência.
Filologia, filomitia, filosofia da mitologia: a trajectória de Eudoro de Sousa segue percurso análogo ao de Agostinho da Silva. Eudoro estudou Filologia
Clássica e História Antiga em Heidelberga, onde foi leitor de português, por indicação de Delfim Santos. Conheceu, aí, o pensamento de Heidegger e foi amigo
pessoal de Jaspers. Estudou, depois, Filosofia, no Insti­tuto Católico de Paris.
A convite de Agostinho da Silva, emigrou para o Brasil, vindo ter a São Paulo,
onde encontrou Vicente Ferreira da Silva e os pensadores da revista Diálogo –
dirigida por este. Esses pensadores eram, na sua maioria, também participan­tes
do Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado em 1949 por Miguel Reale. Constituíam o chamado Grupo de São Paulo, ou Escola de São Paulo, nas acepções de
António Paim e António Braz Teixeira160.
Em 1953, passou a lecionar na Universidade de São Paulo e na Pontifícia
Universidade Católica. Nesse ano, Vicente Ferreira da Silva publicou um artigo
na Revista Brasileira de Filosofia, no qual examina as teses de Eudoro.
SILVA, A. da, Conversação com Diotima, in Textos e Ensaios Filosófi­cos, vol. 1, Lisboa, Âncora,
1999, p. 167.
159
Idem, p. 134. Cf. também Pólicles, in ibidem, pp. 190-191.
160
MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo, op. cit.
158
118
São muitos os escritos de Eudoro abordando a Grécia ar­caica. Já no ensaio
de 1946, Origem da Poesia e da Mitologia no Drama Ritual, nosso pensador
estudara as relações entre mito e rito, utilizando uma abordagem fenomenológica, con­cluindo que «da filosofia mitológica nasce a necessidade de revalorizar
os ritos abandonados»161. Formula, aí, as grandes linhas de sua Filosofia da Mitologia.
Vamos nos deter em dois estudos que parecem evidenciar a correlação entre filomitia e pensamento originário. Os estu­dos são intitulados: a) «Orfeu e os
comentadores de Platão» (comunicação apresentada no XIII Congresso LusoEspanhol para o Progresso das Ciências, em 1950); b) «Orfeu ou acerca do conceito de filosofia antiga» (artigo publicado na Revista Brasileira de Filosofia, em
São Paulo, em 1953).
Escolhemos os dois trabalhos por serem comentados por Vicente Ferreira da
Silva, o que permitirá entender a aproxi­mação entre os dois autores.
Em «Orfeu e os comentadores de Platão», Eudoro assinala que Aristóteles,
na Metafísica, «equipara o filósofo ao filomito pela admiração ante o ser tal qual
é»162. Para o nosso autor, «a verdade do pensamento grego se nos revela sempre
em transe do mito para o logos...» (ibid., p. 106) e o exame das relações entre
ambos sempre consistiu, na filosofia neoplatónica, num esfor­ço «por reintegrar
a filosofia grega na sua origem» (ibid., p. 108). Orfeu simbolizaria, segundo Eudoro, a relação entre o mito e o logos, entendidos, pelos comentadores de Platão,
não como «duas linguagens que exprimem o mesmo pensamento, mas sim duas
cifras de um pensar que não tem linguagem própria»; e ainda: «as coincidências
de significado entre o mito e o logos» mos­tram que, «enquanto viveu, circulou a
verdade do pensamento grego, no âmbito da religião, entre a poiesis e a noesis»
(ibid., p. 109).
Assim, para Eudoro, «o pensamento filosófico diz-se origi­nalmente pelo silencioso gesto do drama ritual, originalmente pela harmoniosa sonoridade desse
gesto, originalmente pelo ritmo do verso, originalmente pela articulação do discurso» (ibid., p. 108).
O outro texto, «Orfeu ou acerca do conceito da filosofia antiga», publicado
em São Paulo, retoma a tese de que «a ver­dade do pensamento grego se nos revela sempre no trânsito da philo-mythia para a philo-sophia»163. Fazendo apelo
a Frobenius e Kerényi, trata de mostrar que poesia e mitologia são a linguagem
primordial e reafirma que «mitologia e filoso­fia parecem [...] duas cifras de um
pensar que não tem lin­guagem própria» (ibid., p. 140). Orfeu – «teólogo, poeta,
ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in ibid., p. 301.
SOUSA, E. de., Origem da Poesia e da Mitologia, Lisboa, INCM, 2000, p. 105.
163
Idem, «Orfeu ou acerca do conceito da filosofia antiga», ibid., p. 136.
161
162
119
hierofante» – simbolizaria tal pensamento, pois na Grécia, mito e logos se­riam
expressões da busca de compreensão dos deuses, do universo e do homem (ibid.,
p. 141).
E ainda, num texto ulterior, «Orfeu – músico», afirma: «Phi­lomythia é isso
mesmo [...]: no poeta-filósofo ou no filósofo-poeta, nostalgia de religião que a
filosofia não pode ser»164. Pois «o intérprete da poesia e o estudioso de mitologia
encontram-se diante da mesma necessidade de invocar a transcendência; uma
transcendência que não fala linguagem alguma»165.
O tema da religião está, assim, presente em Eudoro, no exame das relações
entre razão e fé, cultura helénica e cultura pré-helénica, mito e mistério, como
bem assinalou Abranches de Soveral166, nos sucessivos textos que o filósofo publicou.
Vicente Ferreira da Silva, que Eudoro encontra em São Paulo, em 1953, é,
como dissemos, o mais importante autor de inspiração heideggeriana no Brasil167. Na última fase de seu pensamento, formula uma Filosofia da Religião e
da Mitolo­gia, sua contribuição mais original. Nela, afirma «a primazia do Mito
sobre o Logos»168. O saber a que aspira é a busca do ser como Fascinação; sua
filomitia está expressa nossa busca. Diz o filósofo: «A primazia do mito sobre o
logos implica a precedência da Abertura do Ser sobre a esfera total do inte­ligível
[...] O Logos ata-nos ao já oferecido, o Mito nos trans­porta para o domínio desvelante primordial»169.
A verdade do Ser é, para ele, poesia transumana, fulgura­ção fascinante das
potências divinas, arrebatamento da cons­ciência pelo abissal e o sagrado: «O
domínio do Ser é um Poder Passional» (ibid., p. 317).
Visando instaurar uma nova compreensão do homem e de sua relação com o
meta-humano, afirma que «mais forte e mais profundo que o dizer filosófico está
sempre o mitologema ini­cial de uma cultura»; «o filosofar [...] deve ceder lugar
a um pensamento que está além de todo ente, não é mais pensa­mento humano,
mas pensamento do Sugestor».
Frobenius, Eliade, Heidegger, Schelling, Otto, são os auto­res nos quais Vicente se apoia para expor sua concepção filo­sófica. Particularmente interessante é
o artigo: «A fonte e o pensamento», publicado na revista Diálogo, em São Paulo,
em 1957. Nele, Vicente mostra que «a dimensão da origem é o fundo de um saber mais original que o querer-saber do ente originado; na Matriz originante já
Idem, Dioniso em Creta, São Paulo, Duas Cidades, 1973, p. 318.
Idem, «Mito pré-helénico e mitologia grega», in Origem da Poesia e da Mitologia, p. 145.
166
ABRANCHES DE SOVERAL, E. «Eudoro de Sousa», in op. cit., pp. 301 e segs.
167
REALE, M. «Prefácio», in FERREIRA DA SILVA, V., Obras Com­pletas, São Paulo, IBF,
1964, vol. 1, p. 7.
168
Idem, ibidem, p. 11. Cf. também nossa abordagem em O Grupo de São Paulo, passim.
169
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. 1, p. 397.
164
165
120
estão dadas todas as filoso­fias possíveis de um lapso histórico» (ibid., p. 344).
Nos Diálogos (do Mar, da Montanha e do Espanto) (ibid., vol. 2, 1966, pp.
493-538), es­critos por volta de 1962, nos quais intervêm as personagens George
(Agostinho da Silva?), Mário (Vicente?), Diana (Dora Ferreira da Silva, a poetisa, esposa de Vicente) e Paulo, Vi­cente aponta a necessidade de superação do
antropocentrismo contemporâneo, em direcção a uma nova mitologia, um novo
universo prototípico, um novo tipo de pensamento (ibid., Diálogo do Mar, pp.
500 e segs), capaz de «fazer reverdecer e florescer as vertentes polimórficas da
Vida», uma vez que «nossa realidade é posta por uma Ori­gem» e «na Origem
estão os Deuses» (ibid., p. 506).
A crítica ao mundo contemporâneo, visto como vazio e marcado pela fuga
dos deuses, pela ausência do sagrado, ins­pira-se em Rilke, Heidegger (ibid., Diálogo do Espanto, pp. 526 e 533). O novo tipo de pensar é aber­tura «à nova rotação
da roda do Divino» (ibid., Diálogo do Mar, p. 506), que permitirá ao homem
libertar-se do «ideograma científico-construtivo», ca­racterístico de nossa época.
Como isso se dará? Vicente não sabe. Diz-nos apenas que «somos seres do limiar
[...] Só podemos pressentir a sombra das coisas por vir» (ibid., p. 507).
Perante a crise de um mundo, só nos resta uma ética do telurismo, inspirada
em Lawrence, e aberta a todos os deu­ses (ibid., «O deus vivo de Lawrence», pp.
389-400). É ainda em Lawrence que se inspira para propor uma ética das virtudes:
temperança, silêncio, ordem, resolução, fru­galidade, trabalho, sinceridade, justiça, moderação, limpeza, tranquilidade, castidade, humildade. E ainda esta ética
que o leva a afirmar o religioso numa perspectiva ecuménica, dizen­do, de modo
análogo a Agostinho: «Comei e festejai com Baco ou mastigai pão seco em companhia de Jesus, mas não vos senteis à mesa sem um dos deuses» (ibid., p. 405). E
adiante: «Sois res­ponsáveis para com os deuses que habitam em vós e para com os
homens através dos quais esses deuses falam»; «Não deveis perder tempo com as
ideias, mas servir o Espírito Santo. Jamais servir a humanidade»; «Deveis encarar
todo homem e toda mulher relativamente ao Espírito-Santo que os habita», pois
«o valor do homem, para Lawrence, reside em sua disponibilidade infinita em
relação ao ‘Holy Ghost’ que habita sua alma» (ibid., p. 407).
No texto Orfeu e a Origem da Filosofia, em que fala sobre Eudoro, Vicente reconhece o filósofo português como «expoente do espírito português» (op. cit., p.
153) e enfatiza o caráter mito-poético do pensar grego, repetindo, com Eudoro,
que «mitologia e filosofia [são] duas cifras de um pensar que não tem linguagem
pró­pria» e que «a presença do divino [...] seria o solo [...] donde teriam surgido
a poiesis mitológica e a noesis filosófica» (op. cit., p. 155).
Há, pois, nos três autores – Agostinho, Eudoro, Vicente – uma filomitia e uma
busca da raiz da vida espiritual do Oci­dente. Tal retorno se expressa como recusa
121
e crítica da socie­dade tecnocrática, como tentativa de instaurar uma meta-filo­
sofia, no sentido heideggeriano do termo. Ou seja, tratam de redescobrir, na
retomada da Grécia e de seus mitos, um poetar-pensante, uma nova linguagem
que expresse o surgir de um novo tempo, a profunda mudança que o esgotamento das formas de viver, características de nossa época, estaria anunciando.
O diálogo entre os três pensadores se apoia em fontes comuns: a tradição
órfico-platónica, a filosofia da mitologia de Schelling, a ontologia fundamental
de Heidegger, a fenomeno­logia da religião. Não é por acaso que autores como
Eliade, Kerényi, Otto, Frobenius, são mencionados, especialmente por Eudoro e
Vicente.
Os laços entre os três aparecem, primeiro, no comentário extremamente favorável de Eudoro ao livro de Agostinho, A Re­ligião Grega170, e na convivência
pessoal que mantiveram, em Portugal, de início, depois no Brasil. Eudoro veio
ao Brasil em 1953, a convite de Agostinho, que já se achava no país; os três se
encontram, em São Paulo, em casa de Vicente.
Esse encontro de almas, de uma mesma família espiritual – como assinala
Dora Ferreira da Silva, esposa de Vicente e membro do Grupo de São Paulo
–, dá-se pelo interesse por fontes filosóficas comuns, mas, essencialmente, pela
tentativa de pensar as Origens, o sagrado abissal, reflectido no deus presente em
cada um. E de viver, não mais a partir de si mesmos, mas a partir dos deuses
assim celebrados171.
Tal pensar é pensamento do limiar, pensamento «nos limi­tes da filosofia
[...] nos limites do pensar e do pensável, porém convertendo-os sempre em
limiares»172. É uma meta-filosofia, como o próprio Vicente assevera e como bem
compreendeu Fernando Bastos, referindo-se a Eudoro173.
O diálogo entre os três autores, examinado por Gilberto de Mello Kujawski174,
por António Braz Teixeira175, por Eduardo Abranches de Soveral, de entre outros176, aponta para uma retomada da matriz grega.
170
SOUSA, E. de, «Duas perspectivas da helenidade», Origem da Poesia e da Mitologia, op.
cit., p. 46.
171
FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 528: «Não viveremos mais a partir de nós mesmos, mas sim a partir da sabedoria dos Deuses que irrompem em nosso caminho.»
172
BORGES, P., «Eudoro de Sousa ou o helenista saudoso da ante e trans-helenidade», in SOUSA, E. de., Origem da Poesia e da Mitologia, op. cit., p. 8; cf. também FERREIRA DA
SILVA, V., ibidem, Diálogo do Mar, p. 507: «Somos seres do limiar [...] só podemos pressentir a sombra das coisas por vir.».
173
BASTOS, F., Mito e Filosofia, Brasília, EDUNB, 1992, p. 25: «Uma ‘filosofia’ [...] ‘cuidado em pensar’ um pensamento que se aproxime mais do Ser nas suas origens.».
174
Discurso sobre a Violência e Outros Temas, São Paulo, 1985.
175
O Espelho da Razão, Londrina, UEL, 1997, pp. 223 e segs.
176
VARELA, M. H., Microfilosofia(s) Atlântica(s), Braga, APPACDM, 2000, pp. 198 e 250 e
segs; MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo, passim; Paulo BORGES, op. cit. na
nota 63, p. 7.
122
Não se trata, em qualquer deles, de uma simples volta à Grécia primordial,
um simples retorno ao mito. Trata-se, em todos eles, de uma reapropriação, uma
redescoberta do valor do mito. A Grécia como inspiração de um novo modo de
ser: tal é o que buscam nossos três pensadores.
O pano de fundo dessa retomada, que ocorre de modos diversos nas obras
dos três autores, é, certamente, a poderosa irradiação do pensamento de Heidegger, que influi directamen­te em Eudoro e Vicente e que talvez, de modo indirecto, atra­vés do magistério de Leonardo Coimbra – é a nossa hipóte­se – tenha
ressoado em Agostinho.
A busca de uma linguagem originária, que em Heidegger é levada a efeito a
partir da meditação sobre os pré-socráticos, em Vicente, Eudoro e Agostinho é
feita pela recuperação do valor de verdade do mito, pela busca da mito-poiesis
entendi­da como tentativa de dizer o sagrado abissal.
Nos três autores, dá-se uma apropriação da riqueza origi­nária da língua grega,
na qual se expressam os mitos. Eudoro e Agostinho são filólogos; e é desvelando
os mitologemas fun­dadores que Vicente constrói sua filosofia da mitologia.
Nos três ocorre ainda a superação do mero retorno ao mito. Tal superação, em
Agostinho, é recriação da Grécia como paisagem, é narração do mito e exposição
de seu conteúdo moral. A Grécia é, assim, em sua obra, inspiração e modelo da
tarefa imposta a todo homem: a busca da perfeição, da plenitude, apontada nos
mitos e lendas dos heróis (Héracles).
Em Eudoro, a superação do mito dá-se como redescoberta de Orfeu, reconhecido como emblema do pensador e de Dioniso, presença arrebatadora do divino.
Orfeu e Dioniso simbolizam, em seus escritos, o papel gnósico do mito, via de
acesso, «via de regresso ao Sagrado»177.
Em Vicente, a superação do mito resultou numa Filosofia da Mitologia e da
Religião, que busca decifrar, nos mitos, a fascinação espiritual que nos orienta
em direcção a valores, à transcendência: «os deuses [...] abrem campo a efectuações existenciais eternizantes [...] os deuses são a própria orienta­ção do nosso transcender [...] [pois] nosso coração é uma chis­pa do coração selvagem do
divino»178.
A extraordinária contribuição desses três mestres do pen­samento, o privilegiado diálogo que mantiveram, consistiu na resposta criadora que deram ao
enorme desafio lhes foi pro­posto: a constituição de um novo tipo de pensar, a
ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in op. cit., p. 312.
FERREIRA DA SILVA, V., Religião, Salvação e Imortalidade, in Obras Completas, vol.
1, pp. 395 e segs.
177
178
123
fundação de um novo modo de ver, a recuperação da nossa axial tradi­ção, tendo
em vista o mundo futuro.
Filosofia: filomitia, pensamento originário, poetar-pensan­te – tarefa da Escola do Porto e da Escola de São Paulo.
124
A filomitia de Eudoro de Sousa
Eudoro de Sousa foi um dos mais expressivos representantes do que António
Cândido chamou de A Missão Portuguesa179 e António Braz Teixeira de O Grupo
de São Paulo180, pondo em relevo o diálogo espiritual entre estudiosos portugueses e brasileiros a partir de 1940, e enfatizado em 1950.
Os textos Dioniso em Creta, Mitologia e História e Mito abor­dam aspecto
essencial do pensamento de nosso autor, conforme o afirma Fernando Bastos:
«Desde seus primeiros escritos, Eudoro de Sousa se preocupa com a problemática do mito [...] tema central de suas indaga­ções filosóficas [...] o escopo dessa
mitosofia (ou filomitia) é [...] o hele­nismo e o paganismo»181.
Bastos assinala a importância desses escritos que constituem a «sín­tese e sistematização do pensamento de Eudoro de Sousa [...] sua ‘obra programática’ [que
abrange] Horizonte e Complementaridade (1975) [...] Sempre o mesmo acerca do
mesmo (1978), Mitologia (1980) e História e Mito (1981)». A estes se vinculam
os escritos da antologia Dioniso em Creta (1966/1973), que retomam trabalhos
já publicados em Portugal, bem como os editados no Brasil, como informa Joaquim Domingues182.
Publicado em 1966, «Dioniso em Creta» é o ensaio que abre o volu­me editado pela Livraria Duas Cidades em 1973, em São Paulo, reunin­do outros estudos
de Eudoro sobre as origens pré-helénicas dos mitos e da filosofia grega.
Na perspectiva de Eduardo Abranches de Soveral183, os temas axiais do pensamento de nosso autor são a relação entre mito e rito, mitologia e filosofia, a
universalidade da cultura grega, a busca da convergência entre o mito e o logos,
a meditação sobre o mistério e sobre as relações entre o homem e a natureza, que
precedem Dioniso em Creta.
Atendo-se ao mundo pré-helénico, à cultura minóica, Eudoro mostra que
nela o kosmos é deus, ou deus se revela na diacosmese, princípio e «plenitude
179
MELO E SOUSA, A. C., «Prefácio», in Fernando LEMOS, F. e MOREIRA LEITE, R. (orgs.),
A Missão Portuguesa, SP/Bauru, UNESP/EDUSC, 2003, pp. 15-20.
180
BRAZ TEIXEIRA, A., O Espelho da Razão. Estudos sobre o Pensamento Filosó­fico Brasileiro.
Londrina:UEL, 1997, pp. 223-226.
181
BASTOS, F., «Escatologia e soteriologia no paganismo mitopoético e onto-teo-lógico de Eudoro de Sousa», in LEMOS e MOREIRA LEITE, op. cit., p. 89.
182
DOMINGUES, J., «Eudoro de Sousa perante a Filosofia portuguesa», in V Colóquio Tobias Barreto: Mito e Cultura: Braga e Viana do Castelo, 1998.
183
ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in CALAFATE, P. (dir.), História do Pensamento Filosófico Português, vol. V, O Século XX, tomo 1, pp. 207­-315.
125
de uma ordenação do céu e da terra e de todos os seres natu­rais, humanos e
divinos»184. Aborda a relação entre o pensar e o conhecer, no pensamento simbólico, que enlaça mito e ritual, poetar e pensar, mito e mistério. Nesse texto, o
pensador afirma que «a mitologia não nasceu de qualquer anseio por explicar o
Mundo, o Homem e Deus: é pura expres­são do encontro de homens com deuses,
em um mundo que é, para cada encontro, o cenário em que o mesmo decorre»
(ibid., p. 118). Tal mitologia é música e poesia, celebração de uma realidade que
não pode ser dita através de outra linguagem. É intuição da origem, revelação do
mistério, da ver­dade das coisas, pela mediação do símbolo – que funde o ideal
e o real.
Hermenêutica de uma realidade outra, a arte, de modo análogo ao mito,
aproxima os planos da inteligibilidade e da sensibilidade, este mundo e o de uma
transcendência que transpõe todos os horizontes da experiência comum.
Fazendo a exegese dos mitos, Eudoro mostra esta experiência de transcendência através do exame dos mitos associados ao tema do ouro, símbolo da
imortalidade, da vida que supera a morte, do mito de Psiqué e da simbólica da
luz, vistos como alegorias «da teoria do conhecimen­to e [...] do ritual dos mistérios» (ibid., p. 238), do laço entre mito e dialéctica em Platão, encarado como
transposição intelectual do mistério. Considera ainda a teogonia e escatologia
órficas, a filomitia aí presente, que ressoa no pensamento platónico e neoplatónico, em Píndaro, Empédocles e nas Lamelas Áureas – narrando a história da alma,
sua trajectória em busca do mundo supraceleste. Orfeu representaria, segundo
Eudoro, o diálogo entre a filomitia e a filosofia, a razão e a poesia, integrando
teologia, antropologia, cosmologia, na sua relação. Filomitia e filosofia aparecem
«como linguagens das duas objectividades complementares, me­diante as quais [...]
uma realidade situada para além do horizonte da experiência religiosa ou científica» (ibid., pp. 318-319) se deixa entrever.
Dioniso em Creta é uma das obras mais bem sucedidas de Eudoro; nela se
aliam a linguagem elegante, a originalidade da temática e da perspectiva propostas e uma riquíssima e erudita bibliografia, pontuan­do a inscrição de nosso autor
junto à tradição do romantismo, via Schelling, e situando-o ao lado de mestres
como Bachofen, Eliade e Kerényi.
O texto Mitologia data de 1980. O próprio autor o situa como uma continuidade e aprofundamento da reflexão desenvolvida no escrito de 1975, Horizonte
e Complementaridade.
Na «Apresentação» da 3ª edição, publicada em 1988 pela Univer­sidade de
Brasília, Fernando Bastos faz uma advertência, repetindo pa­lavras do próprio
Eudoro, no prefácio à 1ª edição: Mitologia não é «colectânea de mitos, nem filosofia da mitologia».
184
SOUSA, E., Dioniso em Creta. São Paulo: Duas Cidades, 1973, p. 93.
126
A ousada aventura do pensador português consiste na investigação do mistério, do originário; é tentativa de dizer o indizível, abordando o campo das cosmofanias, das teocriptias, através da meditação sobre a lin­guagem simbólica.
Na reflexão assim encaminhada cruzam-se o Das Ding heidegge­riano, as filosofias pré-socráticas de Heraclito e Parménides, as tradições platónica e judaicocristã, a redescoberta do mito nas obras de Frazer, Jensen, Otto e Kerényi, resultando uma abordagem original e instigante do ofício do pensar.
O livro se desdobra em três partes: na primeira, o tema é o triângu­lo – mundo, homem, deus – da complementaridade e do simbólico; a segunda, aborda
o tema do diabólico e do simbólico, concluindo com a definição da mitologia
como cosmofania. A terceira parte consiste na tra­dução de A Coisa, de Heidegger, precedida de uma introdução, na qual Eudoro mostra o texto heideggeriano
como fio condutor da sua medita­ção em Mitologia.
O ponto de partida da investigação é a pergunta: que é o homem? A resposta
de Eudoro mostra o ser humano como aquele que recusa a identificação imediata
com o mundo, como alguém que se define pela recusa. E recorre ao mito adâmico, interpretado como a expressão do «acontecer humano, a primeira afirmação
do homem, que é um querer firmar-se ele em si mesmo»185, exibida na recusa do
paraíso por Adão, em vista da construção de um mundo, que se torna seu afazer.
O mito nos mostra, assim, o homem e o mundo como «parceiros do mesmo
jogo», ambos em permanente mutação e correlação. Cada época expres­sa um
tipo de homem e um tipo de mundo, configurados em seu mito instituidor.
Investigar o que correlaciona homem e mundo, sem reduzir um ao outro,
mas mostrando-os dependentes de um projecto instituidor; exibir a relação entre mundo e deuses, dizendo que «cada deus munda, faz seu mundo do que ainda
o não era – diacosmiza, numa palavra só» (ibid., p. 42); estabelecer a sinonímia
entre Projecto, Mito, Mítico, Cultura, Drama, significando o plano desconhecido
do jogo que o homem joga com o mundo e consigo – tudo isso, para Eudoro é
mitologia.
Assim, «o mito é o modo de se falar do homem e do mundo» (ibid., p. 45);
precede o logos, não só cronologicamente, mas enquanto significado institutidor
da correlação. É um falar sobre os deuses, é «tautegoria dos deuses e alegoria
do Homem e do Mundo». Inspirando-se em Schelling, afirma que «um mundo
seria um deus visível e um deus, um mundo invisível» (ibid., p. 48). A mitologia
se entenderia, assim, como cosmofania teo­críptica, isto é, como desvelamento de
uma ontofania, cosmofania e antropofania, que seria, simultaneamente, ocultação dos deuses.
Eudoro afirma que os mitos apontam para um Deus além dos deu­ses, que ele
chama de a Excessividade Caótica, o Abismo sem fundo que está fora de todos os
185
«Mitologia», p. 28. Todas as remissões serão para a edição da INCM (Lisboa, 2004).
127
limites. Assegura também que em qualquer dos deuses vê-se uma imagem desse
Deus. Buscar esse abismo é o caminho e a tarefa do homem.
Daí Eudoro abordar, no segundo capítulo da primeira parte, catába­ses, teogonias e metamorfoses. Esses três elementos são os três ramos da mitologia enquanto investigação das origens. Os mitos da descida aos infernos relatam os
rituais de passagem, vivências de situações liminares, de mudança de sentido do
mundo: «já não sou o que fui, mas ainda não sou o que serei» (ibid., p. 58). O
homem comum vive num mundo único; aquele que excede a si mesmo, aquele
que transcende a experiência humana comum, vivencia o limite de um mundo
e o limiar de outro. Em termos religiosos, a experiência da transcendência, diz
Eudoro, «é um ritual de iniciação», é «ver-se suspenso sobre o abismo do entremundos» (ibid., p. 59).
Tais relatos estão associados à metamorfose, à mudança profunda de quem se
pôs a caminho: «De modo que ‘iniciação’ nos põe a caminho de um mundo para
outro; ‘passagem’ é o de um mundo para outro e ‘me­tamorfose’ minha é também
metamorfose do mundo» (ibid., p. 61).
Mitologia é falar desse caminho, onde a Excessividade Caótica, o Abis­mo sem
fundo se mostra nos deuses que descem ao mundo da matéria e dos homens que
ascendem para a divindade: «a meio do caminho, os ho­mens se reconhecem nos
deuses e os deuses, nos homens... Os deuses, descendo, iniciam-se no Homem;
os homens, subindo, iniciam-se em Deus» (ibid., p. 65). Os mitos referentes às
catábases, exemplificadas pelo autor atra­vés do mito de Inana, falam do caminho
que une os deuses e os homens.
Tal caminho é percorrido «por nostalgia». É sempre uma odisseia, a da superação da vida imediata, por iniciação, metamorfose, em busca do Deus «que se
entrevê na passagem de mundo para mundo» (ibid., p. 66).
Outro aspecto da mitologia é o das teogonias. Na Teogonia de Hesíodo, por
exemplo, o mundo aparece como a complementaridade entre terra e céu, deuses
e mortais, que resulta do «transbordar das águas primordiais do Grande Abismo» (ibid., p. 72).
A teogonia «se desdobra em cosmogonia e antropogonia», não é «biografia
dos deuses» (ibid., p. 73), mas fala da relação entre a cosmogonia, a antropogonia, vistas como rememoração, «acenos dos deuses», os quais, por sua vez, são
«acenos da divindade» sem forma. Assim, a mitologia é biografia, não dos deuses, mas do homem e do mundo, entretecidos por um deus que neles se oculta.
Daí Eudoro falar do triângulo cosmogónico, de que o homem e o mundo constituiriam a base e cujo vértice seria ocupado pela divindade. A relação dinâmica
entre esses elementos faz surgir uma sucessão de mundos, na sucessão dos deuses que os instau­ram e significam.
128
O terceiro elemento da mitologia é a tematização da metamorfose, associada
por nosso autor à permanente mutação, transformação, trânsi­to do «mesmo»
ao «outro», à relação entre a vida e a morte. O pensa­dor, aqui, estabelece uma
equivalência entre morte e iniciação, entre sair de si e tornar-se outro, em vista
de desocultar o que se é, na própria subjectividade irredutível. No jogo das catábases, cosmogonias, metamor­foses, nos iniciamos no caminho que nos leva à
divindade e cuja mensa­gem é superar-se continuamente, vivendo, assim, a única
«vida que mereça chamar-se de humana» (ibid., p. 86).
Na segunda parte do livro o filósofo aborda os temas do diabólico e do simbólico.
Recorrendo à linguagem metafórica, refere-se ao diabólico para de­signar o
mundo do homem comum, o mundo da objectividade técnica, do predomínio
do intelecto e da vontade, da atenção à realidade vista como coisa, é o mundo do
homem-humano, do homo faber, marcado pela concupiscência. É o mundo do
trabalho, do «afazer sem gosto de o fazer» (ibid., p. 102), da escravidão aos objectos, da busca angustiada pela ascensão social. É o mundo que permanece sempre
o mesmo, que tem horror à mudança, ao ultrapassamento de limites.
A este mundo se opõe o dos marginalizados, vinculados ao ócio cria­dor, ao
inútil, à contemplação que os liberta e os torna disponíveis a uma outra dimensão da realidade.
Ao diabólico, Eudoro opõe o simbólico. Para ele, «‘coisas’ são símbo­los desintegrados; como ‘símbolos’ são coisas reintegradas» (ibid., p. 108).
O símbolo possibilita a abertura ao mistério, descentrando o homem do imediato e abrindo-o a um além-horizonte, a uma transcendência. No símbolo cintilam as «Fulgurações Ofuscantes do Ser», a «Caótica Exces­sividade», ou Deus,
que é «Real Absoluto», «Trans-Objectividade» (ibid., pp. 119-120).
E Eudoro afirma: «Na trans-objectividade, o homem, já não-só-hu­mano, é
excêntrico» (ibid., p. 127); distrai-se do mundo objectivo, do mundo das coisas,
encontrando-se em outro mundo, onde as coisas se convertem em símbolos.
No símbolo se conjugam um homem e um mundo, lançados por um deus
(ibid., p. 137); e estes são figurações do Macro-Símbolo, da Divindade. O ho­mem
da trans-objectividade é o distraído, o excêntrico, em relação ao mundo das coisas; é a «‘subjectividade irredutível’, rebelde a toda a objec­tivação» (ibid., p. 141).
A experiência da trans-objectividade é a experiência da filosofia, da religião,
da poesia, enquanto reconhecem, nos símbolos, modos de expres­são do MacroSímbolo: é iniciação para a morte, enquanto esta significa metamorfose e renascimento.
Eudoro identifica a superação da objectividade com a experiência da iniciação nos antigos Mistérios. Os mistérios menores consistiriam na morte do
129
«homem-humano», do homem comum, que opõe sujeito e ob­jecto, para renascer no trans-humano, na apreensão simbólica da reali­dade. Os mistérios maiores representariam a morte do homem trans­-humano, que renasce no divino,
na sua «subjectividade irredutível». No primeiro momento, o homem passa da
objectividade para a trans-objecti­vidade; no segundo, mergulha além da transobjectividade, na aproxima­ção com o Deus que se acha acima e além de todos
os deuses.
Religião, arte e filosofia são «códigos de decifração das cifradas men­sagens
da Divindade» (ibid., p. 161); expõem-nos à «Fulguração Ofuscante», à «Ex­
cessividade Caótica» da transcedência, da qual os deuses são «acenantes mensageiros» (ibid., p. 156).
Para que o acesso à trans-objectividade se dê, é preciso que o ho­mem se torne disponível à possessão pelos deuses. Primeiro, pela experiência religiosa do
drama ritual, que simboliza a mensagem da Ori­gem. Depois, no campo da arte,
pois é por meio dela que «o deus come­ça a falar uma linguagem humana» (ibid.,
p. 170), através da superlatividade do simbólico. Enfim, na filosofia, «experimento de linguagem I...] desti­nado a encher de significação o silêncio insignificado
por entre as sig­nificativas palavras dos mitos» (ibid., p. 171), o que vem à luz é
que os deuses são «mensageiros da Divindade», e esta aparece apontada no seu
ser, atra­vés do «oculto reinar» daqueles (ibid., p. 175). A filosofia indica, assim,
a possibi­lidade de superação da própria trans-objectividade, da transcendência
de «qualquer dos mundos acenados pelos deuses», levando-nos à beira do «Horizonte Extremo», além do qual habita a «Caótica Excessi­vidade», que nos envia
«Fulgurações Ofuscantes. Fulgurações que são mundos manifestos. Ofuscantes
porque no manifestado não se alcança o ser do Manifestante» (ibid., p. 177). A
filosofia leva-nos, assim, ao limiar máxi­mo do conhecimento, só desocultado
completamente na experiência da morte.
O pensador afirma que a vida humana é circunscrita por dois hori­zontes possíveis: o primeiro é o «da objectividade, que é limite da objec­tividade e liminar
da trans-objectividade; [o segundo é] o horizonte da trans-objectividade, que é
limite da trans-objectividade e liminar da Rea­lidade» (ibid., p. 181). No primeiro
horizonte, o homem reina num mundo de coisas; no segundo, reina um deus,
num mundo de símbolos, como acenante mensageiro da Origem.
Recorrendo aos fragmentos de Heraclito e à afirmação de que a morte de um
deus é vida de um mundo, perspectiva adoptada por Jensen, Otto e Kerényi e
reconhecida pelo nosso pensador, este procura mostrar que toda «Cosmofania
é Teocriptia» (ibid., p. 187), e que o conteúdo essencial de todo pensar é reflexão
sobre o que acontece no mundo, sobre o drama ritual, sobre o sacrifício que
torna a vida possível.
Mitologia é, então, para ele, relato da Origem, «enredo do drama ritual em
que se representa a origem» (ibid., p. 188), e o pensar sobre esse relato, a aproximação ao mistério.
130
No livro intitulado História e Mito, Eudoro reitera, no prefácio, que não se trata
de filosofia da mitologia nem de filosofia da história, mas daquilo que ele chama
de mitologia, ou seja, de tentar dizer o indizível, investigar o Originário, mediante
o exame da relação do homem com o mundo e com o sagrado. Trata-se de meditação sobre a «Presença do Presente – Presença do Passado»186. Aqui, o mito aparece
como «‘medi­da’ da sensibilidade e da natureza» (ibid., pp. 295 e segs), e a relação
mundo-homem-deus é figurada por um triângulo equilátero, em cujo vértice está
a divindade e em cujos pólos opostos da base estão o homem e a natureza.
O mito trata da lonjura e do outrora, categorias que o pensador utiliza para
abordar o além-horizonte, o além-tempo, do mistério.
O homem habita o presente, a actualidade. Cada época se define por «um
regime de fascinação, por uma fulguração ofuscante» que «diacos­miza», isto
é, «configura homem e cosmo» (ibid., p. 230). Presente, passado e futuro são o
campo de possibilidades aberto ao homem no tempo concreto. Cada época se
vê reflectida no passado que actualiza; o antigo é apenas actua­lidade atenuada
(ibid., p. 236) e por isso «cada actualidade tem sua antiguida­de; e há sempre uma
antiguidade esperando ser descoberta (ou inventada?) pela actualidade que a merece» (ibid., p. 233); «cada época ostenta um projecto do passado-lonjura ou do
passado-outrora» (ibid., p. 235), formando uma sucessão de leituras do passado,
uma sucessão de projecções do passado, que não são falsas, mas que não esgotam o passado.
O passado de nossa cultura ocidental tem a Grécia como referência; e há
«UMA GRÉCIA ANTIGA que só o Romantismo mereceu» (ibid., p. 233), como
há as imagens da Grécia apresentadas no Renascimento, no Iluminismo, no NeoHumanismo. A imagem da Grécia que surge aos olhos do homem de hoje é a da
atenção às infra-estruturas, à economia agrícola, mercan­til, à vida dos artesãos,
às relações entre capital e trabalho, etc.
Nessa sucessão de leituras que cada época faz do passado, mostra-se o limite
da história, a qual busca, para trás e para frente do agora, «a presença do presente», a «atenuada presença do presente» (ibid., pp. 240-241).
Para Eudoro, trata-se de investigar o além da história, o mítico como matriz
da história. Recorrendo novamente à imagem do triângulo, que expõe a complementaridade do simbólico, afirma que na base do triângu­lo opor-se-iam o actual
e o antigo e no vértice, dominaria o outrora, a experiência originária do além da
história. Daí o pensador afirmar: «O mito e o rito põem o agora no outrora» na
«hora dos deuses» (ibid., p. 242), no tem­po dos deuses.
A história não tem sua significação em si mesma; é «projecto de uma realidade inexaurível», seu tema constante é o homem e o mundo. No campo do mito
e do mítico, encontramos o mistério: aqui, «a natureza é mistério da inexaurível
186
«História e Mito», p. 219. Todas as remissões serão para a edição da INCM (Lisboa, 2004).
131
sensibilidade» (ibid., p. 272) e fala a mesma linguagem da religião, entrelaçando
«o reino dos vivos e o reino dos mortos, presença do presente e presença do
passado» (ibid., p. 280). O mito aparece, assim, como a «linguagem da transcendência do sensível» (ibid., p. 289), é «‘medida’ da sensibili­dade e da natureza»
(ibid., p. 295). Expressa o regime «nocturno» da consciência (ibid., p. 298), como
o logos expressa seu regime diurno (ibid., p. 299).
Pensar o mito, na sua relação com o homem e a história, é pensar o Caos
originário, o Abismo sem fundo, o laço entre a vida e a morte. Pensar o mítico é
«pensar o ‘antes’ I...1 a metamorfose, a vida que de­corre de mudança em mudança [...1 para realização de possíveis sempre outros» (ibid., p. 302).
Eudoro imagina, como dissemos, um triângulo com três pólos: deus, homem,
mundo; supõe também ter ocorrido uma catástrofe, que provoca­ria a ocultação
do divino na natureza e na sensibilidade; afirma também, como vimos, que a
cada divindade corresponde um tipo de homem e um tipo de mundo. Nessa linha de reflexão, vê o mito como a expressão da presença do passado e a história,
da presença do presente. Aquele mos­tra, no drama ritual, a morte de um deus e
sua ocultação, que põe à luz um certo tipo de homem e um certo tipo de mundo.
Por sua vez, «a História, em qualquer época, desenha os contornos da presença
do pre­sente» (ibid., p. 342).
A referência à Grécia, como lugar privilegiado em que história e mito se defrontam, possibilita ao nosso autor o reconhecimento de muitas «Grécias» na
Grécia, pois a «actualidade lê-se na antiguidade que ela reflecte» dando-nos, assim, «uma Grécia renascentista, uma Grécia iluminista, uma Grécia romântica;
e agora temos a Grécia [...1 neo‑humanista» (ibid., p. 341), expondo a riqueza
de uma história tão densa que não se esgota nessas sucessivas projecções. Essas
diferentes leituras do signifi­cado da Grécia põem-nos em contacto com a beleza
e o mistério de uma inesgotável profundidade que se acha além do tempo e do
espaço, o mis­tério de uma transcendência balbuciada no mito e no tempo.
A filomitia de Eudoro, expondo um tipo de pensar «trans-racional», superador do logos moderno, aponta o laço entre uma tradição filosófica que se enraíza
na Grécia mitopoética de Homero e Hesíodo e nos pré‑socráticos, abrindo-se a
uma transcendência que nos leva a romper com os limites do homem actual, e
nos instaura no limiar do mistério.
Filomitia que recupera uma sabedoria ancestral, que fez da Grécia a matriz
inspiradora de nossa civilização e a utopia que nos apela à meta­morfose, à superação do presente – o pensamento de Eudoro de Sousa se inscreve na linhagem
dos grandes mestres de nossa época.
132
A compreensão heterodoxa do sagrado: Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Vicente Ferreira da Silva.
do.
Uma das expressões da crise actual dá-se na relação do homem com o sagra-
Essa crise se mostra, de um lado, como abandono e perda do sentido do
religioso, como dessacralização, identificação com o mundo das coisas, com a
vida voltada para a exterioridade; de outro lado, é busca de um encontro com a
transcendência, de uma religiosidade outra, diversa das concepções institucio­
nais vigentes.
Nos dois casos, a consciência de estarmos numa virada histórica, que põe em
jogo a forma do homem se relacionar com o mundo, consigo mesmo, com os
outros homens e com a transcendência, marca a atitude contemporânea.
Na filosofia luso-brasileira, três pensadores do chamado Grupo de São Pau187
lo , que mantiveram entre si fecundo diálo­go, assinalam o momento de profunda mudança que se anun­cia no horizonte contemporâneo.
A reflexão desses autores – Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa e Vicente
Ferreira da Silva – teve como ponto de partida a crítica da sociedade actual e,
particularmente, a crítica das religiões institucionais.
Como fontes comuns que inspiraram a atitude crítica dos três autores podemos apontar a fenomenologia da religião, a filosofia da mitologia, as obras do
romantismo alemão, sobretu­do as de Schelling, e os escritos de Nietzsche e de
Heidegger.
Em maior ou menor grau, todos levam em conta essas fon­tes, como se pode
perceber nos trabalhos de Agostinho da Sil­va, por exemplo, em A Religião Grega,
belíssimo estudo sobre os mitos vivos, sobre a Grécia no seu esplendor originário; nos escritos de Eudoro de Sousa, que evidenciam sua filosofia, como Dioniso
em Creta, Mitologia, História e Mito; na Filosofia da Mitologia e da Religião, de
Vicente Ferreira da Silva.
Exemplos de expressão dessas fontes em Agostinho da Silva foram também
os cursos dados por ele em casa de Vicente Ferreira da Silva sobre a contraposição Apolo/Dioní­sio em Nietzsche; os diálogos que teve com o pensador brasi­
leiro sobre a filosofia da mitologia, testemunhados pela poeti­sa Dora Ferreira da
187
Ver nosso O Grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000.
133
Silva, esposa do filósofo brasileiro e também amiga de Agostinho da Silva, assim
como de Eudoro de Sousa, com o qual, na opinião da poetisa, deu-se um dos
mais profundos diálogos do pensador paulista.
Para os três autores, trata-se de pensar a crise contempo­rânea e, nela, as questões de secularização e do sagrado.
Conhecendo o mundo contemporâneo, os três autores ten­tam compreender
o sagrado de dois modos: primeiro, expõem suas fontes comuns na tradição grega, na fenomenologia da religião em Heidegger e que consiste na reapropriação
do pas­sado, encarado como inspiração para o homem actual. O segundo modo
consiste na proposição de utopias ou ucronias ou, ao menos, na sinalização de
uma profunda mudança his­tórica, no surgimento de indícios da emergência de
um novo tempo e de uma nova concepção de Deus.
O recurso à tradição, aos mitos da Grécia arcaica, não é pura e simples volta
ao mito, nem aceitação do mito como tal. É, antes, recuperação do valor simbólico da sua linguagem, é tentativa de recuperação da proximidade com o sagrado
atra­vés da hermenêutica dos mitos.
Esse dizer o sagrado a partir das categorias dos mitos gregos explica-se, em
parte, pela formação dos pensadores portugueses: ambos são filólogos e Eudoro
estudou na Alema­nha, tendo contacto directo com as obras da escola fenomeno­
lógica e com os textos de Heidegger, do qual também foi tradutor188.
O percurso da filologia à filosofia, característico de Nietzsche, também foi
feito por Agostinho da Silva e por Eudoro de Sousa.
As mesmas fontes: a tradição clássica, a fenomenologia da religião, o romantismo alemão e as obras de Nietzsche e de Heidegger, acham-se nas obras de
Vicente Ferreira da Silva.
O encontro de Vicente com Eudoro foi o mais importante, em vista do diálogo muito próximo de ambos com os textos de Heidegger, Otto, Kerényi e das
próprias posições filosóficas que assumiram.
O ponto de partida dos três para a discussão do problema do sagrado é a proposição de uma concepção heterodoxa da religião. Por concepção heterodoxa
entendemos uma busca que se realiza fora do âmbito das religiões institucionais
e pela crítica do cristianismo, no caso desses autores.
Para Agostinho, a crise actual se mostra como a escravi­dão do homem ao
trabalho, como esmagamento da vida cria­dora, como prioridade do fazer sobre
a contemplação.
A planetarização da crise evidencia-se, por exemplo, pelo desemprego crescente, cuja contrapartida é a sobrecarga dos que ainda estão empregados, forçados a suportar o ónus do desequilíbrio existente.
188
Veja-se, por exemplo, a sua tradução do Das Ding, publicada em Mitologia. História
e Mito, Lisboa, INCM, 2004, pp. 191-215.
134
Essa crise é, exponencialmente, ruptura do homem com o sagrado. Aparece,
nos escritos de Agostinho da Silva, em pri­meiro lugar, como esgotamento do
catolicismo tradicional e dessacralização da vida na sociedade técnica.
A ruptura do pensador com a face do catolicismo vigente em Portugal durante o regime salazarista tem ponto de ori­gem na crítica do cristianismo feita por
Nietzsche, bem como na valorização da religião grega, vista como paradigma da
abertura ao sagrado, na primeira fase da obra de nosso autor.
A retomada da tradição grega é também recuperação do mito vivo, do sagrado arcaico na sua plenitude e no seu es­plendor.
Já no Brasil, em 1954, o contacto de Agostinho da Silva com Jaime Cortesão
o conduziu ao encontro com as teses de Joaquim de Flora e à redescoberta de
uma certa formulação do cristianismo. Propôs, a partir daí, uma religiosidade
hete­rodoxa, inspirada na obra do monge calabrês.
A busca da proximidade com o sagrado mostra-se nos seus escritos mediante
a recomendação do recolhimento monástico, da simplicidade de vida, da afirmação do amor e da exigência de aperfeiçoamento pessoal permanente, assim
como no senti­do social e mesmo epocal da acção. O agir deve visar a cons­trução
de um novo mundo, através do estreitamento de laços entre pessoas e grupos, a
fim de favorecer a eclosão das qua­lidades mais altas de cada um, nos planos do
coração, da inteligência e da vida do espírito.
Exemplos dessa busca do sagrado, fora dos quadros reli­giosos institucionais
vigentes, se expressam através do pro­fundo amor aos outros seres humanos; da
grande fé no poder transformador da vida e da acção; da imensa esperança que
o leva a afirmar a possibilidade da renovação dos laços do ho­mem com a divindade.
Trata-se, para nosso autor, de propiciar, através da acção, o advento de uma
nova concepção de Deus, vivificadora do mundo e do homem. Trata-se de construir, de instaurar o reino do Espírito Santo, em nós e fora de nós.
Exemplo de como essa concepção heterodoxa do sagrado o caracteriza e inspira sua acção foi a experiência levada a efei­to no Itatiaia.
Com um grupo de amigos, dentre os quais se achavam Vicente e Dora Ferreira da Silva, Agostinho criou uma comu­nidade estruturada segundo regras inspiradas pelas comuni­dades monásticas medievais. Tentou a implantação de um
novo modo de viver e de ser, com repercussão sobre a popu­lação circundante
da casa em que vivia. A tarefa educativa junto à população empregava teorias e
técnicas de vanguarda e visava lançar as bases de uma nova sociedade.
O Deus que é buscado por Agostinho, embora este se atenha a um vocabulário cristão, inspirado em Flora, para designá-lo – o Espírito Santo –, não pode
ser reduzido à sua compreensão ortodoxa na Igreja actual.
135
Na ideia de Deus de Agostinho cabem todas as formas de religião e de culto,
todas as alternativas, todos os caminhos, todos os opostos, todos os paradoxos.
De Buda a Maomé, pas­sando pela religião afro, Deus é a transcendência que
inspira a acção, a ética das virtudes, a realização do homem no mun­do. Trata-se,
para ele, de libertar o homem contemporâneo de suas escravidões, do trabalho
repetitivo, das confissões reli­giosas, das autoridades de todos os tipos.
Assim, no caso de Agostinho da Silva, podemos falar de duas fases de seu
pensamento a respeito da religião e do sagrado. Na primeira, a filosofia o leva
a celebrar a religião grega; na segunda, a propor uma concepção utópica ou ao
menos ucrónica do mundo vindouro do Espírito, valorizando uma religiosidade
ecuménica, que acolhe as contribuições e as virtudes reconhecidas por diferentes
vias de acesso a diferen­tes faces de Deus.
Uma religião não-institucional, um cristianismo do qual retém apenas valores da verdade, do amor, como ponto axial. Um cristianismo considerado independentemente da hierarquia eclesiástica, dos ritos e das igrejas, assim como
de qualquer autoridade exterior. Uma religião do Espírito Santo, inspirada nas
teorias do monge calabrês Joaquim de Flora.
A ideia de que o mundo vindouro pode ser mais amoroso e mais fraterno, e de
que é possível começar a construí-lo imediatamente, através de acções culturais
que eduquem e disponibilizem o homem de hoje às suas finalidades mais al­tas,
foi expressa por Agostinho da Silva. Uma das expe­riências mais interessantes, à
qual já aludimos, e que pode ser considerada emblemática dessa nova vida foi a
comuni­dade de poetas, artistas plásticos, cientistas e filósofos que viveu durante
dois meses na montanha do Itatiaia e consti­tuiu o chamado «Grupo do Itatiaia»,
do qual fizeram parte, como dissemos, o filósofo Vicente Ferreira da Silva e sua
esposa, Dora, poetisa e tradutora de Hõlderlin, Rilke, Saint John Perse, Jung. A
comunidade vivia segundo uma regra de vida análoga às da vida monástica, explicitada no texto Alcorão, escrito de Agostinho da Silva, que recebeu publica­ção
póstuma recente189.
Nesse novo mundo espiritual em construção, o que se espera é o surgimento
de «uma realidade mais alta e mais bela que o amor, uma força em que se fundem o entendimen­to e o amor, um acto pelo qual compreender e adorar sejam
apenas as várias gradações da mesma chama eterna»190.
Dois textos, As Aproximações e Só Ajuntamentos, publica­dos em Lisboa, em
1960 o primeiro e em Salvador, em 1962, o segundo191, abordam, a nosso ver de
SILVA, A. e AGOSTINHO, P. (orgs.), Agostinho da Silva no Brasil, Rio de Janeiro, Casa
Rui Barbosa, 2007.
190
SILVA, A., «Conversação com Diotima», in Textos e En­saios Filosóficos I, Lisboa: Âncora, 1999.
191
Idem, Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 168. Veja-se, a propósito desse texto, publicado originalmente em Portugal em 1944, o estudo de Romana Valente Pinho em Religião e
Metafísica em Agostinho da Silva, Lisboa, INCM, 2004, que o assinala como um marco na
passagem da inspiração grega para a cristã.
189
136
modo exponencial, a crítica à civilização tecnológica. A crítica é exposta através
de meditações pontuais, que também apontam possibilidades de superação da
crise. E no belíssimo Pensamento à Solta, publi­cado pela primeira vez em 1999
(ibid., pp. 145-179), o autor reúne reflexões sobre Deus, o homem, o mundo. E
afirma o carácter parado­xal do sagrado: «Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada uma delas só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém
no total.» (ibid., p. 145). Assim, o paradoxo é a via de acesso ao sagrado, que não
tem nome, pois está além de toda lingua­gem.
Esse Deus «não exige de nós nenhum culto; prestamos nossa homenagem
[a Ele] quando desenvolvemos nossa inte­ligência e nosso amor; um laboratório, uma biblioteca [...], uma escola [...], uma oficina [...], um homem [...] é um
tem­plo de Deus [...]. Todos podemos ser sacerdotes, porque todos temos capacidades de inteligência e de amor; e praticamos o mais elevado dos cultos a
Deus quando propagamos a cultu­ra, o que significa o derrubamento de todas as
barreiras que se opõem ao Espírito.»192
A redescoberta do sagrado, da vida do Espírito, é o cami­nho que Agostinho
aponta para a superação da crise actual.
A busca de compreensão da crise à luz de uma nova con­cepção do sagrado
está presente também em Eudoro de Sousa, mas numa perspectiva diversa da
escolhida por Agostinho da Silva.
Como denominadores comuns, podemos assinalar a filo­mitia193 e a crítica à
civilização técnica, ao predomínio do homo faber, do trabalho, à escravidão aos
objectos, ao homem-humano – isto é, ao homem encerrado em si, avesso à trans­
cendência.
A esse mundo, do qual o sagrado se ausentou, Eudoro opõe o ócio criativo,
a contemplação que liberta, a valorização do simbólico e a abertura ao mistério.
Associando a filosofia, a religião e a poesia à antiga iniciação aos mistérios, o
pensa­dor fala da religião como código de decifração das mensagens da divindade, vista como «Fulguração Ofuscante», «Excessivi­dade Caótica»194, «relato
da Origem». A religião é aproxima­ção ao abismo sem fundo, vida no limiar do
sagrado.
Dois textos importantes e complementares que se acham em História e Mito
tratam de: «O que é religião nas religiões antigas...» e «Também é religião, nas religiões modernas?» (ibid., p. 188).
A frase interrogativa abarca a totalidade dos dois capítu­los, nos quais Eudoro
de Sousa pretende mostrar que «o que é religião, nas religiões antigas, não pode
ser religião, nas modernas»195.
Idem, «Doutrina cristã», in Textos e Ensaios Filosóficos I, pp. 81­-82.
Ver, infra, A Filomitia de Eudoro de Sousa.
194
SOUSA, E. de, Mitologia I, Brasília, UNB, 1995, p. 156.
195
Cf. nota da p. 33 da edição brasileira e p. 263, epígrafe, da edi­ção portuguesa.
192
193
137
Reportando-se à religião da natureza, dentre os gregos antigos, procura evidenciar que a natureza, para o homem arcaico, não se reduzia ao apresentar-se
da realidade circun­dante, composta de coisas, mas, antes, expressava uma qua­
lidade, uma realidade indescritível, mas presente, através «do bosque, da gruta,
da voz, da melodia, do gesto»196.
A contemplação da natureza, para o homem do passado, era celebração de
uma fascinação arrebatadora perante o mistério.
Eudoro de Sousa mostra, assim, que para o homem anti­go havia uma relação estreita entre mistério, religião e natu­reza. Tratava-se, para esse homem, de
entregar-se «ao misté­rio inexaurível da sensibilidade», onde coincidem os contrários, a vida e a morte, a concretude e a transcendência. Daí o pensador dizer:
«na presença do passado, uma só linguagem é a que falam religião e natureza e
[...] essa é a do mito» (ibid., p. 40).
É nesse horizonte que nosso autor discute a possibilida­de da existência de
religiões modernas. Coloca-nos diante de duas alternativas: ou não há religiões modernas, ou o senti­do do religioso hoje é diverso do das religiões antigas.
Re­cusando a primeira alternativa, propõe-se a investigar os de­nominadores comuns entre as religiões do passado e as do presente.
Criticando a concepção moderna, que se expressa essen­cialmente no iluminismo e no neo-humanismo actual, que con­sidera «a religião como intromissa,
inoportuna e incómoda sobrevivência do passado»197, trata de assinalar a carência da religação do homem com o sagrado na actualidade.
A causa dessa ruptura é o próprio homem, que vive numa natureza sem espírito, circunscrito a uma racionalidade e objectividade estreitas.
Nessa redução, o pensador vê o auge do mito teândrico, a hominização. O
homem que se considera a si próprio como centro expõe «um mito que se desconhece como mito» (ibid., p. 46). Dá­-se, assim, «a ocultação do deus, no mundo
e no homem» (ibid., p. 70).
A recuperação do sentido do religioso é vista como «dispo­nibilidade para o
‘aceno’»198 da divindade, na perspectiva de Eudoro.
Nos mitos, o sagrado se mostra sob a forma de símbolo, de diacosmese, de
desencadeamento, pelos deuses, do homem e do mundo. Para além da linguagem do mito acha-se, entre­tanto, uma «Realidade Absoluta, a Existência Essencializante, a Excessividade Fulgurante, o Ser Entificante» (ibid., p. 89), o mistério
abissal. O transobjectivo, o além-mundo, «é a ambiência natu­ral do Religioso, do
Poeta, do Filósofo» (ibid., pp. 87 e segs), e de todo aquele que vive no limiar «do
Ser ou do Ultra-Ser, do Absoluto-Secreto, de Deus [...]» (ibid., p. 94).
Id., Mitologia I, Brasília, UNB, p. 36.
Idem, História e Mito, Brasília, UNB, 1995, p. 42.
198
Idem, Mitologia I, pp. 95-104.
196
197
138
Assim, para nosso autor, os mitos, os ritos são possessões do homem pelos
deuses, primeiro nível de contacto com o sagrado. Os deuses são, diz Heidegger
– repetido por Eudo­ro –, «os acenantes mensageiros da Divindade»; um «mun­do
é a desocultação do oculto reinar dos deuses», isto é, «os acenantes acenam e [...]
faz-se mundo» (ibid., p. 79). Os deuses são in­termediários entre Deus e o mundo
e o macrossímbolo de Deus é a quadratura: terra e céu, deuses e mortais, que se
reflete nos microssímbolos: objectos sacralizados pela acção ritual.
Os deuses acenam para o «Original-Originário de todos os dramas representativos das mensagens do Ser»: o que se si­tua além do Horizonte Extremo, a
Fulguração Ofuscante, a Origem, que só se deixa entrever no originado (ibid.,
p. 91).
Hoje, religião, arte e filosofia são os «códigos de decifra­ção das cifradas mensagens da Divindade» (ibid., p. 94).
No mundo contemporâneo, o homem acha-se mergulhado na objectividade,
que reduz a religião ao «acto rotineiramente repetido», a arte à procura de «tornar mais grata a vida», a filosofia ao mero «reflectir sobre princípios e métodos
da ciên­cia e da técnica» (ibid., p. 95).
Numa sociedade caracterizada pela competição, pela figu­ra do trabalhador,
pela realidade encarada como um amon­toado de coisas, rompe-se com o mundo
mítico, onde o deus, «mensageiro da Origem», se apossa do homem, «para que
ele gesticule a mensagem cifrada» (ibid., p. 97). Como a religião, o mito e a arte
põem o homem em contacto com a transobjectividade, abrindo-o à possessão
pelos deuses.
O sentido religioso da arte e da filosofia consiste, hoje, em por o homem
perante a divindade, perante o silêncio pre­nhe de significação que remete, ao último limite, ao «Horizon­te Extremo», à «Caótica Excessividade», à «Fulguração
Ofus­cante» (ibid., pp. 99-100).
Comentando Heidegger, que trata de superar, Eudoro se refere a um Deus
que está além de toda a linguagem, além dos deuses, das formas, da vida (ibid.,
pp. 80 e segs).
No mundo do mito, morre o humano «para renascer no [...] transumano»;
no mundo actual, morre o transumano «para renascer no divino [...]. Mas o que
entre eles [...] há de comum é o morrer-renascer da metamorfose.» (ibid., p. 82)
A religião, para o homem actual, converge com a filosofia e a arte: «talvez
porque são o mesmo», remetendo ao trans­objectivo, ao limiar «do Ser ou do
Ultra-Ser, do Absoluto Se­creto, do Deus [...]» (ibid., p. 84).
Há um certo tipo de filosofia que encerra o homem no mundo objectivo e se
reduz à crítica das ciências; mas há também uma filosofia que é aparentada com
a religião e a arte, expondo a experiência fundamental da superação da objectividade, lançando o homem em direcção ao Absoluto.
139
Eudoro pontua suas reflexões por uma constante referên­cia a Heidegger; mas
para ir além de Heidegger, para com­preender, interpretar o pensador da Floresta
Negra e desco­brir novos caminhos a partir de sua obra.
Esses novos caminhos são os da compreensão de Deus como «Excessividade
Caótica», «Ultra-Ser», «Absoluto Secreto», como já assinalamos.
Numa linha análoga de reflexões, mais próxima de Eudoro que de Agostinho
da Silva, acha-se o pensador brasileiro Vicente Ferreira da Silva.
Vicente é um crítico do cristianismo, como se pode ver em diferentes escritos, como, por exemplo, Natureza e Cristianismo199.
O mundo contemporâneo se caracteriza pela crise, diz o filósofo: é contestação do valor e das possibilidades de conhe­cimento verdadeiro; é afirmação do
antropocentrismo.
A apoteose da metafísica antropocêntrica dá-se no início da modernidade.
Postula a hegemonia da consciência traba­lhadora e uma natureza dessacralizada, mero objecto nas mãos do homo faber.
O cristianismo aparece, na reflexão de nosso autor, como responsável pela
«negação do paganismo [...], rebaixamento e demonificação das antigas postestades religiosas [...] O cris­tianismo afirmou-se como teocriptia [...]».
Para Ferreira da Silva, a «religião cristã representa a culminância de um processo de humanização do divino, com a consequência de que o extra-humano foi
gradativamente ba­nido do cenário mundial [...]» (ibid., vol. I, p. 285).
Em decorrência da hipervalorização do homem, ofusca-se o sol do espírito, a
proximidade com o divino. A natureza passou a ser considerada «como esquema
utilitário-industrial», produzindo-se um «lamentável aniquilamento das coisas,
como resultado do pensar científico industrial» (ibid., p. 292).
Alienado de si mesmo, o homem vê a sua própria acti­vidade como um valor
em si, de modo que «maquinismo e cristianismo são duas expressões de um impulso em desenvol­vimento»: «a fúria do fazer [...] expressão da vontade calcula­
tória-industrial [...] advento da noite dos deuses» (ibid., p. 292).
E Vicente recorda os versos de Hõlderlin, citados por Heidegger, para descrever nossa época: «é o tempo dos deuses em fuga [...] tempo de carência» (ibid.,
p. 295).
Vendo no cristianismo a negação do paganismo, que re­sulta na teocriptia e
na afirmação do homem, Vicente mostra que o cristianismo é um criptograma, a
ocultação das antigas manifestações religiosas e expressão de uma antropofania,
anunciadora do niilismo e da técnica planetária, sua máxima eclosão. Assim, «o
regime de Fascinação que comandou a parusia do homem recebeu historicamente o nome de Cristia­nismo».
199
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, São Paulo, IBF, pp. 195-201.
140
Nossa época, que se caracteriza pelo declínio da civiliza­ção em que vivemos,
assinala o apocalíptico fim de um mun­do, marcado pela emergência da barbárie,
do monstruoso e do niilismo. A destruição se anuncia «através de um sem-número de guerras, convulsões, catástrofes [...], [da] pulverização das consciências
e multiplicação das linguagens» (ibid., vol. II, p. 177), diz o filósofo, em um texto
de 1951.
A catástrofe, fim de um mundo, anuncia, contudo, a pos­sibilidade do surgimento do novo.
E o novo está associado, para o nosso pensador, a uma reformulação da noção de sagrado, exposta no Filosofia da Mitologia e da Religião, assim como nos
Diálogos: do Mar, da Montanha, do Espanto e do Rio200.
O novo tipo de pensar, que impulsiona o homem em di­recção ao sagrado, é
um pensar «livre em relação ao ente revelado, livre em relação ao comércio humano [...]»201; é aber­tura ao Ser, concebido como Fascinação, Poesia em si, Poder
Selvagem, Poder Passional, abismo (ibid., pp. 315-317).
A presença e apelo do Ser são presença e apelo do sagra­do, instituição de um
mundo. Para o homem actual, esse apelo desencadeia uma Kehre, no sentido
heideggeriano da palavra. Desse modo, ele é exposto ao «aórgico», isto é, ao «não
posto pelo homem» (ibid., pp. 323-324).
A tarefa do pensamento é a superação do meditar cen­trado no homem, abertura a «uma sabedoria não-humana, do trans-humano, ou do meta-humano».
Tal pensar é metafilosofia, regresso à fonte, pensamento da Origem.
Há uma primordialidade, segundo Ferreira da Silva, do fenómeno religioso,
do sagrado, na inauguração, na instaura­ção de um mundo, na abertura das possibilidades do existir histórico, fixando seus limites e sua ordem.
Assim, o ocaso do humanismo, a ameaça da técnica pla­netária, teria como
contrapartida e exigência de uma busca, de uma nova formulação do sagrado,
de abertura a modos desconhecidos de ser202. Diz o filósofo: «o novo só poderá
sur­gir sob o império [...] de um novo universo prototípico». Estaríamos vivendo
a emergência de uma nova concepção do sagrado, como «seres do limiar», que
pressentem as «coisas por vir», a «nova rotação da roda do Divino» (ibid., pp.
506-507).
O sagrado é, para Vicente, a irrupção de um regime de fascinação, que nos
leva além de nós mesmos, abrindo-nos a aspectos insuspeitados e espantosos do
nosso existir.
200
Idem, Filosofia da Mitologia e da Religião, in Obras Completas, vol. I, pp. 299-397; idem, Diálogos, in Obras Completas, vol. II, pp. 493-538.
201
Idem, Filosofia da Mitologia, p. 313.
202
Idem, Diálogo do Mar, in Obras Completas, vol. II, pp. 494 e segs.
141
A formidável prostração que sentimos e o vazio do mundo em que vivemos, a
angústia e a ausência dos deuses são si­nais do esgotamento de uma forma de ser
e de viver, são in­dicação de uma mudança profunda na concepção do mundo e
de Deus, experimentada como tédio e náusea, negatividade e desgosto: o existir
espúrio.
Na poesia de Hõlderlin e de Rilke, nas obras de Schelling, Heidegger, Kerény,
Otto, estão assinaladas as possibilidades de superação da situação contemporânea, assim como nas obras de Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa e Vicente
Fer­reira da Silva.
Em resumo, para os três pensadores, a via de acesso ao sagrado é a vida como
poiésis: celebração, embriaguez e entu­siasmo, que os caracterizou na vida pessoal
e na actuação cultural que desenvolveram.
O sagrado é abordado numa perspectiva heterodoxa, que principia com a
crítica do cristianismo e da civilização técnica e se desdobra numa busca que
recorre ao passado, à lingua­gem simbólica e aos mitos, num processo de remitização, que fala de epocalidade do Ser, da sucessão de mundos como epifanias das
diferentes faces de uma realidade originária, inesgotável e fascinante.
Essa busca se abre também ao futuro, mostrando-se como expectativa: de
um deus vindouro, da revelação iminente de um novo aspecto da divindade, ou
como advento e instaura­ção da Idade do Espírito.
142
Agostinho da Silva e a construção do mundo do Espírito
Para compreendermos o significado do reino do Espírito, na obra de Agostinho
da Silva, é preciso tomarmos como ponto de partida suas considerações sobre o
mundo atual, sobre a crise da sociedade contemporânea.
O tempo em que vivemos apresenta, na ótica de nosso autor, várias analogias
com o fim do Império Romano. Tais analogias são levadas ao extremo quando
o pensador julga poder reconhecê-las na oposição entre o hemisfério Norte e o
hemisfério Sul. O hemisfério Norte e suas “sucursais”, como ele chama a Austrália
e a África do Sul, são as regiões mais desenvolvidas. Na periferia dessa área, e
mesmo dentro dela, acham-se inúmeros desempregados.
A área desenvolvida é identificada com um segundo Império Romano. As
menos desenvolvidas, cheias de famintos e sem trabalho, são os novos bárbaros,
que já começam a invadir a área “civilizada”. Os pólos de entrada desses novos
bárbaros serão o que nosso autor chama de as duas Penínsulas Ibéricas: a primeira,
constituída por Portugal e Espanha; a outra, pelos países da América Latina203.
O desafio consiste no fato de as áreas desenvolvidas enfrentarem uma persistente crise, decorrente de um progresso tecnológico desordenado, produzindo
efeitos indesejáveis, do ponto de vista humano.
Assim, de um lado, temos desumanização e desmoronamento de um mundo;
de outro, o alvorecer de uma nova época.
No mundo que se desmantela, encontramos o conflito entre liberdade e sobrevivência. Agostinho se refere explicitamente ao conflito que opunha, na década
de 80, as duas grandes potências: EUA e Rússia. A primeira celebra a liberdade de
pensamento, mas estoca alimentos enquanto parte da população mundial morre
de fome; aqui se vê crescer o uso de drogas e o suicídio de jovens; e aumentar a
violência e o número de prisioneiros. A outra potência celebra a eliminação da
fome; mas essa foi feita à custa da instauração de governos ditatoriais, totalitários
e repressivos204.
A organização atual da sociedade parece fadada a desencadear uma crise de
enormes proporções. Ela se expõe no amplo desemprego dos que não podem ser
absorvidos pelo mercado de trabalho; no desespero dos jovens que “educados para
trabalhar, chegam à idade de trabalhar e não trabalham. Não podem comer sem
203
204
SILVA, A. da., “Carta Vária XLI”, in id., Dispersos. Lisboa, ICALP, 1988, p. 830.
Id., “Carta Vária LIV”, in op. cit., pp. 842-843.
143
trabalhar; e não podem sequer divertir-se sem trabalhar”205. O impasse vem se
acentuando e duas saídas igualmente difíceis se anunciam: a ampliação da busca
das drogas e do álcool ou a violência.
A crise ocorre por falha do Estado, que foi incapaz de orientar corretamente
os resultados da capacidade inventiva do homem. Trata-se, para Agostinho, de
reduzir o tempo de trabalho de todos; de possibilitar o amplo acesso a alguma
tarefa; de canalizar o tempo livre de todos para o lazer e o aprimoramento.
O Estado atual só melhorou as condições daqueles que já têm acesso ao trabalho. Acentuou, assim, a divisão entre empregados e desempregados.
O caráter burocrático e desumano da sociedade atual vai perdurar muito tempo.
Mas já começam a surgir sinais de que a situação pode ser superada. É “só a fé
no homem, nas possibilidades divinas do homem [que] nos pode levar de novo
à Idade de Ouro (...), [ao] tempo de fraternidade e de amor, sem angústia e sem
dramas, tempo de contemplação e de absorção em Deus, tempo de ação mental,
a mais verdadeira e a mais eficaz de todas as ações”206.
A possibilidade está aberta para sairmos dessa circunstância opressiva: cabenos, diz o mestre, usar a imaginação.
É recorrendo à teoria da história de Joaquim de Flora, que pensa a sucessão do
tempo à luz das três figuras da Trindade, que Agostinho vai oferecer alternativas.
O reino do Espírito será construido ao buscarmos novos modos de viver e ser,
ousando o impossível.
O impossível é a realização do reino de Deus na terra, o reino do Espírito
Santo, caracterizado pela liberdade, criatividade, plenitude. Do lado do império
econômico e político que se desmantela, não há liberdade política, não há liberdade econômica: há “coação exercida pelos que dispõem dos meios de produção,
de transportes e de crédito (...)”, [há] “fácil corrupção do voto” (...) [e] “a miséria
nem pensar pode”207.
A sociedade atual está baseada na opressão de uns sobre outros, na idéia do
homem como instrumento de produção; baseia-se na concorrência e no lucro,
na propriedade.
Ora, “a questão é que não se pode ser capitalista e religioso”, diz Agostinho.
Não se pode afirmar a fraternidade, sem o respeito ao outro; e ainda: “Não há
propriedade alguma que Deus possa abençoar; Deus só pode abençoar a nãopropriedade”, o serviço a todos. Trata-se, para o nosso autor, de instaurar a
liberdade econômica, mediante a “propriedade coletiva da terra”, como “ponto a
Id., “A minha meta é o ponto sem dimensão” (entrevista ao Diário de Notícias) in id., op. cit.,
p. 142.
206
Id., “A Comédia Latina”, in id., op. cit., p. 190.
207
Id., Considerando o Quinto Império, in id., op. cit., p. 193.
205
144
que se dirigem, convergindo, o progresso da consciência ética e o progresso da
utilização técnica das ciências”, estabelecendo cooperativas.
Se essa iniciativa não for levada a efeito imediatamente, “conseqüências graves
[advirão] para todo o mundo”, na opinião de nosso autor (ibid., p. 194).
Uma revolução está em marcha, provocada pela automação: “um futuro tempo
em que todo o produto manufaturado, pelo emprego das fábricas automáticas,
não exigirá de ninguém trabalho involuntário (...)”208.
Essa revolução virá; caso a propriedade seja coletiva, virá mais depressa. No
capitalismo, com a automação, só vai crescer o número de desempregados e os
trabalhadores em atividade acabarão por não ser capazes de pagar o subsídio para
os outros. Desse impasse, decorrerão guerras ou revoluções, dando lugar a uma
nova etapa: a de luta entre a não-propriedade e a propriedade coletiva, luta do
hemisfério sul contra o hemisfério norte (ibid., p. 232).
Daí a exigência de se construir uma nova ordem, aquilo que Agostinho chama
de reino do Espírito. Essa nova ordem é uma nova concepção do religioso, das
virtudes, com ressonâncias no âmbito da economia, da política, da educação.
No plano religioso: a religião do Espírito Santo não é confessional, mas resulta
da convergência de três princípios: “o homem deve dominar as coisas e não ser
dominado por elas (...) deve obedecer ao que o transcende e não aos seus caprichos; nenhum corpo deve fazer o que a alma reprova, nenhuma alma deve fazer
o que reprova o corpo”209. As virtudes de “humildade (...), generosa alegria (...),
imaginação (...), inocência”, presentes nas crianças, consideradas como modelo
de vida, de entusiasmo, tiveram grande expressão nos momentos históricos de
maior criatividade, como ocorreu entre os gregos, os árabes de Córdoba, os italianos do Renascimento.
Recriar esse espírito de entusiasmo, de invenção, de sacralização da vida e do
mundo, é a proposta de Agostinho.
A instauração do reino se inicia, diz nosso autor, no espírito dos homens;
consiste na celebração de uma nova ordem, a partir de três votos essenciais: “o
de criar beleza (...), o de servir (...), o de rezar (...)” (ibid., p. 198).
Esse espírito é essencialmente religioso: a religião do Espírito propõe a cada
um a fidelidade a si e o amor aos outros, como princípios essenciais210. Religioso
é tudo o que enfoca como valor essencial a unidade; é o “desejo supremo de fusão
no Uno”211, é o desejo de fraternidade, acima da busca do saber ou do conhecimento (ibid., p. 228).
Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 231.
Id., Considerando o Quinto Império, in id., Dispersos, p. XXXXXX.
210
Id., Carta chamada Santiago, in id., op. cit., p. 586.
211
Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 227.
208
209
145
No reino do Espírito, o ideal de governo é “o não haver governo”212; o “de
economia, o não haver economia” eliminando-se a oposição produtor/consumidor, patrão/operário (ibid., p. 200); no plano de vida política, é a superação das
antinomias entre criança/adulto, ignorante/sábio, homem/mulher213.
Definindo a política como “uma ponte de passagem entre um hoje e um futuro”
(ibid., p. 233), trata de discernir as características da política que possa conduzir
ao reino do Espírito, de modo que este não seja apenas uma utopia, um sonho,
mas irrompa no agora. Para tanto, uma “política sem partidos” é condição de nos
irmanarmos, de acentuarmos não o que nos opõe, mas o que nos une.
Trata-se, assim, de levar o homem a chegar a compreender “a mais alta idéia,
a de que o sonho vale mais do que a realidade, a de que o contemplar sobrepuja
o agir” (ibid., p. 239).
As escolas, por sua vez, terão que acentuar a capacidade de criação, de invenção, em todos os campos; serão “escolas sem professores, apenas com o encontro
quotidiano de pesquisadores e inventores e criadores em vários graus de progresso
(...)”214.
A escola atual segrega o aluno, faz dele um especialista, dócil às expectativas
dos adultos e o torna ferozmente competitivo.
A escola do futuro dará a prioridade à criança, levando o adulto a reaprender
a imaginação, o jogo, o sonho215. Nosso autor busca criar “o lugar cívico de educação e de vida (...) em que o criar vá muito além do saber (...) em que o jogar se
encontre com o trabalho, em que a liberdade crie sua própria disciplina e em que
o contemplar domine o agir, e o adorar se sobreponha ao poder” (ibid., p. 237).
A construção do reino do Espírito passa pela atuação importante de Centros
de Estudos, de Universidades. Atribuindo um papel essencial ao Brasil, nessa
abertura de um novo tempo, Agostinho assinala a importância do surgimento
da Universidade de Brasília, que ajudou a fundar.
Estabelecendo analogias entre a época em que vivemos e a do surgimento das
ordens monásticas, propõe como inspiração o lema de São Bento: ora e trabalha.
Ou seja, acha importante associar o estudo e o trabalho, de modo que o povo se
reúna à volta das Universidades, como outrora, dos agrupamentos circundantes
aos mosteiros, surgiu o que hoje é a Europa. Talvez desse modo, diz o pensador,
possa surgir, num mundo “frágil e ameaçado”, uma nova raça “de sábios, monges
e soldados”216 que possa superar as guerras e conflitos em que estamos mergulhados.
Id., Considerando o Quinto Império, in id., op. cit., p. 199.
Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 232.
214
Id., Considerando o Quito Império, in id., op. cit., p. 199.
215
Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 235 e segs.
216
Id., Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília, in id., op. cit.,
p. 252.
212
213
146
Agostinho, a partir de sua atração nas Universidades brasileiras, criou Centros de Estudo que realizaram, concretamente, o estabelecimento de laços entre
América, África, Europa e Ásia.
O grande projeto de fundação de Centros Universitários interligados está exposto no texto Bahia: Coleção de Folhetos. Refere-se a um projeto feito no Brasil,
mas publicado em Lisboa em 1971 (op. cit., pp. 493-499).
Aí, narra a criação, em 1959, do Centro de Estudos Afro-Orientais, na Bahia;
a criação, em 1962, do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos
Clássicos, na Universidade de Brasília. Refere-se à formação de grupo de colaboradores, professores pesquisadores de diferentes áreas: História, Filologia, Arte,
Filosofia, Música, Poesia.
Mirar o sonho, ousar o impossível; e com fé, alegria, paciência, persistência,
realizar o possível, nas circunstâncias dadas. Foi o que Agostinho fez, ao longo de
sua vida inteira. Reuniu grupos de estudiosos que abraçaram o sonho e trataram
de pô-lo em andamento.
O entusiasmo, a profundidade de sua contribuição, fizeram de nosso autor
um mestre, a semear uma espantosa obra cultural, e a ascensão humana e pessoal
daqueles que tiveram a felicidade de encontrá-lo e com ele colaborar.
A fé no sonho, na capacidade do homem de realizar o melhor de si mesmo;
o convite a traduzir em ação e em vida o conhecimento, o saber; a poderosa
inflexão de suas idéias e de seus projetos, tiveram impacto decisivo na transformação das regiões do Brasil onde esteve. Fundador de Centros de Estudos e de
Universidades, fez de sua atuação em diversos deles uma ponte para o futuro: a
construção do reino do Espírito. Entendendo o mundo novo também como um
mundo profundamente interligado e dialogante e considerando que esse diálogo
teria que se estabelecer acima dos conflitos e interesses, acima dos jogos de poder
e das lutas que contrapõem culturas, religiões, economias, filosofias – Agostinho
estabeleceu metas concretas para o papel a ser desempenhado pelas universidades,
nesse campo.
Assim, diz: “suponho ter ficado mais ou menos definido (...) que, a poder-se
um dia voar mais largo, teria que se estabelecer os Centros, não [só] no Brasil, mas
nas regiões em que se estivesse interessado, criando junto de todas as Universidades brasileiras postos de recrutamento de bolsistas e, nas respectivas bibliotecas
centrais sessões especializadas”217.
O Brasil seria, na perspectiva de nosso autor, o novo ponto focal entre Europa, Ásia e África uma vez que já representa esse encontro, dos pontos de vista
cultural e racial.
217
Id., Bahia: Coleção de Folhetos, in op. cit., p. 494.
147
O grupo de estudiosos que se reuniu em Brasília, na fundação da Universidade,
em torno do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos Clássicos,
em colaboração com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, teve, dentre outros,
nomes como os de Ordep Serra, Emanuel Araújo, altamente expressivos no cenário nacional.
O projeto da Universidade de Brasília enfatizava os estudos clássicos, a tradução
direta do latim e do grego, a organização de coleções de edições bilíngües, assim
como a tradução de manuais básicos de diferentes áreas. A Universidade deveria
ter postos avançados em diferentes pontos do mundo.
A certeza de que o sonho é possível, a fé no homem e nas suas potencialidades
criadoras, a esperança no futuro, que conduz a ações concretas para a realização
do melhor em nós e nos outros, talvez seja o grande legado de Agostinho.
O sonho impulsiona; funciona como valor-horizonte, meta que produz uma
orientação geral da vida para a realização de um novo mundo. O grupo que trata
de instaurar o novo, “é fundamentalmente do lugar em que qualquer um de nós
reside e da obra que estivermos realizando (...)” (ibid., p. 497).
O importante não é esperar, para agir, circunstâncias absolutamente favoráveis; é, antes, ter um projeto e pautar a vida por ele; é por o sonho em marcha,
realizando o que for possível.
O legado de Agostinho é uma ética do possível, uma ética do sonho. Como ele
mesmo diz, “o sonho vale mais que a realidade”, a contemplação conduz a ação. E
se não é possível realizar de uma vez por todas e de imediato o mundo sonhado,
é, contudo, um convite e uma incitação começar realizá-lo no instante presente,
na circunstância dada, com os instrumentos, alternativas e pessoas disponíveis.
Em resumo, pode-se dizer que:
a) o ponto de partida da interpretação da situação contemporânea, em
Agostinho, é a constatação da crise presente. Tal crise é analisada como
resultante de uma ruptura entre o fazer técnico e o significado profundo
do existir humano. As atuais estruturas economico-políticas só acentuam
essa ruptura, produzindo fome e desemprego, contraposição entre países
desenvolvidos e não-desenvolvidos, guerras e conflitos entre culturas,
gerações, trabalhadores e desempregados;
b) recorrendo à interpretação da história de Joaquim de Flora, monge medieval discípulo de Santo Agostinho, nosso pensador se refere à Idade do
Espírito, como objetivo a ser buscado, ideal a ser concretizado. Afirma
a fé nas possibilidades criadoras do homem como fio condutor para
sairmos do impasse atual; afirma o amor como via privilegiada dessa
realização, e a esperança não como espera vazia, mas como certeza de
que a utopia é possível.
148
Fé, esperança e amor se unem na férrea disciplina intelectual, no exercício
quotidiano da busca de conhecimento e na repartição desse conhecimento através de ações concretas, educativas, e do estreito diálogo com
grupos de intelectuais atentos às possibilidades abertas pelos recursos
da ciência atual;
c) a crítica à sociedade contemporânea e a afirmação das virtudes está vinculada, em Agostinho da Silva, a uma ética do possível.
Por ética do possível entendemos sua concepção de agir voltado para a realização do melhor, a cada momento dado. É uma sabedoria prática, interessada em
solucionar problemas concretos, visando alcançar a máxima expressão do humano
como resultado. Trata-se de suscitar, em si e nos outros, a coragem transformadora
do mundo, libertando o ser humano da servidão do trabalho repetitivo, para a
vida criadora, na qual “o sonho vale mais que a realidade”.
149
150
Agostinho da Silva e o Brasil
A vida e a obra de Agostinho da Silva estão semeadas de referências ao Brasil.
Tendo vivido no país durante anos, Agostinho da Silva marcou definitivamente
o seu desenvolvimento cultural: fundador de Universidades importantes, em todos os pontos cardeais, como a de Brasília, a de Florianópolis, a de João Pessoa;
criador de Centros Culturais, como o de estudos Afro-Orientais, na Bahia, e o
Centro de Estudos Portugueses de Brasília, dentre outros; mestre de vida, com
um profundo sentimento ético da existência, mestre de amor aos homens, dialogou com pensadores brasileiros do porte de um Vicente Ferreira da Silva – um
dos nossos mais originais filósofos contemporâneos – com poetas, como Santiago Naud, Dora Ferreira da Silva.
Mestre de vida, Agostinho levava cada um a acreditar nos seus próprios sonhos, a realizar os seus sonhos, a ser fiel a si mesmo. Ele próprio foi o exemplo
vivo dessa ética onde simplicidade, humildade intelectual, vão associadas a um
grande amor, um grande optimismo, uma grande esperança. Uma ética que encontrava na acção cultural, na acção educativa, o caminho de expressão do espírito, a construção do reino do Espírito Santo.
«Sou é do Espírito Santo», escreveu-me um dia, quando iniciando os estudos
sobre o seu pensamento, buscava compreender as fontes e a referência de sua
reflexão a Joaquim de Flora.
Este sopro do Espírito, a sua palavra iluminada, o seu coração amoroso derramaram no nosso país. Tentou realizar a utopia do amor fraterno, em toda a
extensão de suas possibilidades, de suas virtudes pessoais e intelectuais.
Homem do fazer, aliava a uma espantosa erudição o senso agudo do político,
a compreensão profunda do mundo em gestação, do tempo novo em que estamos vivendo.
Tive o privilégio de conhecê-lo e de experimentar a surpresa e a alegria de um
acolhimento em Lisboa que superou qualquer expectativa; imaginava uma visita
formal, académica, uma entrevista conseguida a duras penas com um homem
importante, que veria apenas uma vez. Fui recebida inúmeras vezes, acompanhada por ele para ver o Museu das Janelas Verdes, o painel que retrata Portugal,
como os estudos de Afonso Botelho tão bem mostraram.
Tive o privilégio de o ouvir, encantada, e sair desses encontros com a certeza
íntima de estar aberta a múltiplas alternativas de ser, de poder realizar os meus
151
projectos. Essa certeza, Agostinho da Silva a viveu, intensamente, quanto a seu
projecto de vida, o de construção de uma comunidade de língua portuguesa,
que fosse inspiradora, no nosso tempo, de um mundo de paz e de cultura. Essa
certeza, essa busca da metamorfose, legou-a a cada um de nós, na sua palavra,
nos seus escritos.
Na sua obra, o Brasil é o lugar da utopia. Nas suas cartas, nos seus escritos, o
Brasil aparece, repetidamente, como um novo pólo de expansão espiritual.
Diz ele, em carta a Milton Vargas, engenheiro e filósofo de ciências, que pertenceu ao círculo de Vicente Ferreira da Silva: «Aqui no Brasil, sirvo mais e melhor.» Está ao serviço da construção de um mundo que leve cada um a «ser fiel a
si próprio, cumprir-se, realizar-se, no exemplar único que é [...]».
E mais ainda: «Minha fé no Brasil não morre, ele será guia do mundo, já que
seu diálogo com os outros povos é mais fácil [...]. E com ele, todo o Ibérico».
É a partir do Brasil que ele busca, num dado momento da sua vida, educar
para o mundo vindouro, o mundo onde «a grande força será a do Amor», o
mundo da «Poesia à solta».
E com o Brasil, juntos, Europa, Ásia e África, que ao ver de Agostinho, nosso
país de certo modo sintetiza – caldeirão de raças e culturas. Pois, «de qualquer
modo, fabricamos o futuro».
152
Ética e Liberdade em Agostinho da Silva
Agostinho da Silva, nascido em 1906 e falecido em Lisboa em 1994, passa por
diferentes fases em seu pensamento. Na primeira fase, marcada pela licenciatura
e doutoramento em Letras na Faculdade de Letras do Porto, é inspirado por um
neo-classicismo. Fatos importantes nessa fase são: a demissão do ensino público,
pelo Estado Novo, em 1935 e sua detenção em 1943, por motivos ideológicos.
Desse período data sua colaboração na Seara Nova, reunida nos três volumes de
Glossas (1934), onde uma reflexão sobre o cristianismo, a meditação sobre o reino
de Deus na terra, a discussão crítica da sociedade contemporânea e um profundo senso ético da existência desembocarão no texto importante publicado em
1944, Considerações. No mesmo ano, publica Conversação com Diotima, diálogo
de estilo platônico entre um Estrangeiro e Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia,
sobre a verdade, a felicidade, o sentido da vida humana, sua concepção de Deus,
numa perspectiva de inspiração estóica e agostiniana. Da mesma época, os textos:
Parábola da mulher de Loth (1944), Pólicles, Apólogo de Pródico de Céos (1944),
apresentam os temas de liberdade, do amor, de exigência ética de ser si mesmo,
retomados em Diário de Alcestes (1945) e no Sete Cartas a um Jovem Filósofo
(1945), no qual enfatiza o papel e o significado ético do afazer filosófico.
Esse primeiro período se encerra com a vinda de Agostinho ao Brasil, em
1944, onde viveu por vários anos. É no Brasil que Agostinho elaborará a sua
reflexão sobre os laços entre as culturas portuguesa e brasileira, já sob a inspiração do pensamento de Joaquim de Flora, e onde tematizará o Quinto Império, o
Reino do Espírito Santo e onde sua meditação sobre o sentido da história, a ética
e a educação receberá importantes formulações, reunidas no volume Dispersos,
publicado pelo ICALP.
Na primeira fase, destacamos o texto Considerações, que reúne, num estilo
análogo ao de Glossas, meditações temáticas sobre questões éticas. Abre-se com
uma discussão sobre o significado da virtude, mostrando que esta é voluntária
e implica em coragem: “É um contínuo querer e uma contínua vigilância, uma
batalha perpétua (...)218” Virtude, para ele, é o desejo de auto-superação, “luta
entre a natureza e a vontade” (ibid., p. 84).
A meditação sobre a liberdade assume, aqui, o caráter de um monólogo: “O
discurso da serpente”, no qual Agostinho, personificando a serpente, se dirige a
218
SILVA, A. da, Textos e Ensaios Filosóficos I, Lisboa, Âncora, 1999, p. 83.
153
Eva, e mostra a importância da ruptura com as leis e barreiras impostas por Deus
à vida no Paraíso, de modo a se alcançar “a liberdade plena “(...)” e, “banidos os
deuses” (ibid., pp. 87-88), o homem tornar-se Deus.
A liberdade associada à virtude é esforço de libertação de todas as tiranias, luta
em favor dos fracos contra os opressores que os prendem “à bruteza e escuridão”
obrigando-os “a serem piores do que são” (ibid., pp. 88-89). Para o homem virtuoso, a liberdade se confunde, na sua forma mais perfeita, com a razão e a justiça,
com o bem” (ibid., p. 88).
A excelência moral consiste em realizar atos de grandeza e generosidade, não
apenas para sermos dignos dos antepassados, mas por um padrão de futuro,
pelo que tivermos feito em favor dos que vierem depois de nós. E, para tanto, é
necessário não ceder à crítica fácil, à moda, mas mantermos coração e vontade
abertos à vida criativa, à fidelidade ao que há de essencial: a coragem para viver,
a despeito de todas as dificuldades.
Esse viver ético é o viver para a vida do espírito, entregar-se à reflexão, à contemplação, sonhando “com o século em que seja possível, feito rapidamente, em
parte mínima do dia, o trabalho material que houver a realizar” (ibid., p. 91).
Na ética de Agostinho, cumprir o dever, fazer o que se deve fazer, não significa
obediência a regras impostas, mas “aspiração sempre mais larga à posse de todo
o mundo racional” (ibid., p. 97), fidelidade a si mesmo, domínio dos sentimentos
pela razão, buscando expressar, na própria vida, amor, beleza e justiça. Trata-se,
para ele, de fortalecer a vontade, de modo que o querer “tenha sua origem e seu
apoio em coração aberto à nobreza, à beleza e à justiça (...) vontade inteligente
e não manhosa, altruísta, e não virada ao sujeito, pedagógica e não sedenta de
domínio” (ibid., p. 105). Nosso filósofo procura encontrar o ponto de equilíbrio
“pelo culto da razão, da serenidade, da beleza harmoniosa, da medida atitude”,
exercitando a calma alegria, a piedade, a paciência, a veracidade, a tolerância,
a compreensão e a coragem. Recorda que “a primeira condição para libertar os
outros é libertar-se a si próprio” (ibid., p. 107).
A finalidade da ética, para ele, é, assim a auto-superação contínua e a liberdade,
o desenvolvimento do espírito criador, da inteligência e do amor219.
A qualidade literária da escrita de Agostinho acompanha a profundidade e a
riqueza de seu pensamento. Um bom exemplo dessa dupla dimensão, literária e
reflexiva, de sua obra, é Conversação com Diotima.
Nesse diálogo, no qual se entrecruzam ecos do pensamento de Platão, Sto.
Agostinho, Schopenhauer e Nietzsche, os personagens são um Estrangeiro e
Diotima, a sacerdotisa que fala sobre o amor, no Banquete platonico. Os temas do
diálogo são: a busca da verdade, o problema do mal, a concepção de um deus que
se desdobra constituindo uma alma e um corpo universais, que englobam todas
219
Id., Doutrina Cristã (1943), in Textos e Ensaios Filosóficos, I, pp. 81-82.
154
as almas e todos os corpos. Na alma desse deus residiria a expressão da liberdade, em seu corpo, a da fatalidade. Corpo e alma, liberdade e fatalidade, prazer e
dor, vida e morte, existem como opostos. Seu confronto pode ser atenuado pela
arte, religião, filosofia e ciência que, elevando-nos do particular ao universal,
promovem a libertação de aparência e da temporalidade, conduzindo à unidade,
à vida divina, onde os opostos se fundem. A via para essa superação é o amor,
que leva à união com a divindade, à inteligência autocontemplativa. A tarefa dos
seres humanos, o seu dever, é, através do amor, caminharem, como espécie, em
direção à unidade divina.
O diálogo aborda a relação consciência-natureza que, no artista, é admiração
e busca de universalidade. Cabe à arte facilitar a contemplação do mundo, mas
supõe-se, da parte do sujeito contemplante, a capacidade de apreender a beleza. As
“almas de escravo” são as daqueles incapazes de tal felicidade, uma vez que para
elas a felicidade não consiste na beleza, mas no ódio, na inveja, na dureza.
O artista e o filósofo são mais felizes do que os “escravos”, porque, se no mundo
real há dor e sofrimento, os contemplativos têm a esperança de que seja possível
o regresso ao paraíso. Falando através do personagem do Estrangeiro, Agostinho
chega mesmo a levantar a hipótese de que, para o homem, só existe a marcha
contínua em direção a um ser mais e que o seu melhor modelo é a figura mítica
de Hércules, que combate e morre por amor.
O horror pela tragédia do existir, claramente inspirado em Nietzsche, é exposto
pelo personagem do Estrangeiro. Diotima, expressando a verdade poética, mostra
a superação do horror, numa perspectiva schopenhaueriana, spinozista, falando
de uma divindade que contém em si a totalidade, age e contempla, e engloba as
consciências individuais. Para além das aparências de individualização dos entes,
nosso corpo seria fragmento de um grande corpo universal; nossas almas, fragmentos da grande alma universal – de modo que tudo é interdependente, embora
exista uma batalha entre o corpo e a alma.
Essa batalha gera o sofrimento e, para atenuá-lo, o caminho é, para o sujeito
individual, a busca da liberdade, que o leva à supressão de dor, à integração na
alma divina. Na contemplação de obra de arte, na devoção religiosa, na busca
da verdade pela ciência e na meditação filosófica – ou seja, na vida do espírito
– dá-se a superação do tempo e da individualidade, a experiência da harmonia,
do repouso feliz. Assim, amor e conhecimento são fundidos numa unidade mais
alta, de modo a fazer ressoar, na alma individual, a grande alma divina.
O tema de liberdade reaparece na Parábola da mulher de Loth, confronto entre
a moral aberta, representada pela mulher e a moral do rebanho, obediência sem
questionamentos à autoridade religiosa, à ordem social, que o marido simboliza.
A cidade que vai ser destruída é a daqueles que ignoram “as ordens dos tiranos” e
“sobre todas as coisas adoram a liberdade” (ibid., pp. 174-175). É também a cidade
155
para qual a mulher retorna, para viver a mesma sorte dos que “vão morrer pela
liberdade”, recusando a opressão dos sacerdotes e o deus punitivo, que representa
essa opressão.
Em Pólicles (ibid., pp. 177-202), a liberdade é mostrada como o “bem supremo” (ibid., p. 179), suprema dádiva do mestre ao discípulo: aprender a navegar
no mundo do espírito. A tarefa dos mestres é esculpirem na criança um ideal de
homem, desenvolvendo “o que neles há de verdadeiramente humano (...) [levandoos] a que tenham as idéias como guias da vida” e conduzindo-os a reconhecer que
“todo homem que pensa e se obedece é um caminheiro da estrada da verdade”
(ibid., pp. 186).
No Apólogo de Pródico de Céos, Agostinho apresenta as alternativas de vida
oferecidas ao homem: a) o caminho do amor, prazer e riquezas; b) o da ciência e
da busca da imortalidade; c) o caminho do herói.
As virtudes do herói, isto é, do homem que procura sua realização como ser
humano, são elencadas por Agostinho da Silva, no Diário de Alcestes: sacrifício,
lealdade, tolerância, justiça, persistência, sabedoria, amor, fortaleza, coragem.
Trata-se de “não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos
rancores (...) [de] não quebrar as leis eternas, as não escritas, ante a lei passageira
ou os caprichos do momento (...)”220.
Na transição de primeira para a segunda fase de seu pensamento, sob o impacto da obra de Rilke, Agostinho escreve o belíssimo Sete Cartas a um jovem
filósofo, regra de vida para tornar-se verdadeiramente um homem. Dentre as
muitas sugestões do mestre ao discípulo, presentes nas cartas, destacamos a
referência, na Carta II, à busca de um núcleo de ser, imperturbável, que permita
resistir às crises da existência e faça do sofrer e o amar “um todo único, em todo
o seu esplendor”221.
A ética das virtudes, proposta por Agostinho, na primeira fase, é busca de
plenitude do humano, da vida subordinada à alma racional. É também a busca
da liberdade, da autarquia, da felicidade contemplativa, da sabedoria.
O tema do amor, numa perspectiva cristã, já está presente na primeira fase.
Na segunda, sob a inspiração de Joaquim de Flora, às virtudes que tornam o homem bom, características de ética clássica, são acrescidas as virtudes teologais:
fé, esperança, caridade.
A fé é fé no homem, na “fraternidade (...) na liberdade (...) na unidade do
mundo (...) [no] Reino de Deus” 222. É fé no Espírito Santo, como “o centro absId., Diário de Alcestes, in op. cit., p. 218.
Id., Sete Cartas a um jovem filósofo, in op. cit.
222
Id., Prefácio a As Três Taças – Os Atlantes (1980), in Dispersos, p. 678.
220
221
156
trato, o ponto simultaneamente ideal e existente (...) em que se encontram todas
as religiões”223.
A esperança é a da construção do reino do Espírito, em que a técnica nos leve
à não-propriedade, a economia seja “de generosidade e desprendimento” 224, a política sem partidos, a educação ofereça às crianças a possibilidade de desenvolver
suas capacidades de invenção, de criação, de sonho, de modo que “o criar vá muito
além do saber (...), o contemplar domine o agir” (ibid., in op. cit., p. 237).
A caridade é a qualidade de pessoa que, por sua personalidade, presença,
estimula os outros a realizarem sua humanidade no que esta tem de mais alto.
É o esplendor do cuidado consigo e com os outros; é desejar que os outros nos
superem, de modo a atingirem sua plena expressão, é sermos capazes de admirar
quem ajudamos, ou seja, é desapego, serviço ao outro225
Os princípios práticos que regem tal ética são: viver, saber, fazer, poupar, servir ; as virtudes: sentimento, humildade, generosidade, confiança, entrega227,
despojamento, disponibilidade, criatividade, porque “somente como Poeta, isto
é, criador, na Arte, na Ciência, na Técnica, na Ação e na Contemplação, será o
Homem verdadeiramente à imagem e semelhança do Divino: Centelha em nós
do Pensamento eterno”228.
226
O viver, disciplinado e ascético, desapegado, deve unir saber e amor, de modo
a fazer brilhar no mundo a centelha da alma, através da ação.
A exigência, para cada homem, é que “se cumpra e que, cumprindo-se, desempenhe seu papel na representação geral (...)”229, de modo a fazer de existência “um
tranqüilo assumir do que acontece, graça ou desgraça, conflito ou amor”. Assim,
o ser humano, “agora livre, se chegue a mais alta idéia, a de que o sonho vale mais
do que a realidade, a de que o contemplar sobrepuja o agir (...)” 230.
Se o sagrado é o valor supremo, se o dever é de tornar-se santo, a felicidade
reside no vir a ser si mesmo, na liberdade. A grande mensagem é a da liberdade,
“do comunitarismo econômico (...) de educação de todos para todos, e daquela
universal religião de fidelidade a si próprio e de amor aos outros, que juntará
crentes e descrentes (...) 231.
Id., Goa – Cadernos Teológicos (1971), in op. cit., p. 472.
Id., Ecúmena (1964), in op. cit., p. 232.
225
Id., O Baldio do povo (2) (1971), in op. cit., pp. 537-539. Ver também Estilo e conteúdo (1972),
op. cit., pp 565-566.
226
Id., Quinze Princípios portugueses, in op. cit., pp. 253-268.
227
Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., pp. 253-268.
228
Id., Virá a Revolução (1981), in op. cit., p. 707.
229
Id., De como os portugueses retomaram a Ilha dos amores (1982), in op. cit., p. 721.
230
Id., Ecúmena, in op. cit., p. 239.
231
Id., Carta chamada Santiago (1974), in op. cit., p. 586.
223
224
157
A ação deve visar a liberdade, própria e alheia, de modo que haja coincidência
entre pensar e ser e que com nossa liberdade e generosidade possamos auxiliar o
desabrochar da liberdade, da largueza de espírito, da generosidade alheias232.
De todas as liberdades: econômica, política, de crença, etc. a mais importante é a de pensamento, “condição fundamental de ser homem”233, pois implica
em responsabilidade em relação a si e dever “de garantir aos outros a mesma
liberdade”234. O ser humano realiza sua humanidade quando se cumpre como ser
livre, nos planos da inteligência, da criatividade, da vontade235.
Três liberdades são essenciais: “não possuir coisas, não possuir pessoas, e não
se possuir a si próprio”236, obedecendo ao que nos transcende. O sentido religioso
de vida se expressa no pedir que se cumpra o plano de Deus e que “sejamos nós
os seus dóceis, fiéis e preparados instrumentos (...)” eis que a vida seja “louvor de
Deus e agradecimento do milagre que somos”.
Na ética de Agostinho, o sentido religioso de vida é busca da totalidade, da
comunhão com o universo, respeito ao mistério237; é procura da justiça e da
paz238, é “desejo de fusão no Uno”239, afirmação da unidade essencial de todos os
seres (ibid., p. 229), reconhecimento de que a vida propriamente humana é via
de redenção, de retorno a Deus240.
Se na primeira fase de seu pensamento Agostinho da Silva é nitidamente
inspirado pela ética clássica das virtudes e da auto-superação, na fase iniciada
com sua vinda ao Brasil, e que se prolongará até o final de sua vida, a regra de
ouro da ética pode ser resumida em: criar beleza, servir e rezar241. E o essencial
é o rezar, porque a vocação do homem é a santidade, a revelação do Espírito, “o
florir como pode...”242.
Vicente Ferreira da Sila, filósofo brasileiro e interlocutor de Agostinho da Silva
no período em que esteve no Brasil, também apresenta uma ética, centrada nos
temas da liberdade e das virtudes.
Sob o impacto da escola fenomenológia existencial e da obra de Heidegger, de
quem foi um dos introdutores no Brasil, Vicente em Exegese da Ação, de 1949,
fala de uma moral lúdica, como antídoto à crise contemporânea.
Id., Ecúmena, in op. cit., p. 234.
Id., Composição do Brasil (1972), in op. cit., p. 560.
234
Id., Proposição (1974), in op. cit., p. 662.
235
Id., O Baldio do Povo, in op. cit., p. 538.
236
Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 198.
237
Id., Quinze Princípios Portugueses, in op. cit., p. 258.
238
Id., O Espírito Santo das Ilhas Atlânticas (1972), in op. cit., pp. 570-571.
239
Id., Ecúmena (1964), in op. cit., p. 227.
240
Id., Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília (1964-1965), in
op. cit., pp. 241-252.
241
Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 198.
242
Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 200.
232
233
158
A experiência das duas guerras no século XX, o vazio e a angústia a elas ligados
mostram o existir como “ consciência de uma privação”243. A crise atual explicita
uma atitude mais antiga, apoiada na revolução industrial e na civilização do trabalho, que representa a recusa da plenitude da vida, da transcendência, da ação
voltada para a utilidade imediata, num mundo de coisas.
Em todos os planos, no econômico, na política, na tecnologia, na arte, na filosofia, cresce o “ conhecer monstruoso”, “desarticulador e analítico” (ibid., p. 138),
que se caracteriza pelo antagonismo “ entre a teoria e a ação, entre o conhecimento
e a vida” (ibid., p. 139), pela escravização do homem ao trabalho, à produção, ao
consumo. A civilização tecnológica é destruidora das forças do espírito; é marcada pela situação moral de tolhimento, constrangimento, infelicidade e angústia.
Nela, o homem perde o sentido do instante, dissolvendo-se “contínuamente numa
transitividade insubstancial” (ibid., p. 140).
Invocando Aristóteles, para quem a atividade mais perfeita, plenamente humana, é a filosófica, a contemplativa, e acrescentando às vitudes dianoéticas a
virtude cristã do amor e a busca da liberdade criadora, Vicente propõe a “moral
lúdica”, cujo símbolo é a gratuidade do jogo.
A gratuidade da ação, presente no jogo, exercício de liberdade que rompe com
o utilitário, a mesquinhez do dia a dia, é o símbolo da conduta ética desejável para
que o homem recupere a felicidade.
O “sentido lúdico da vida (...) não deve ser confundido com a frivolidade, a
irresponsabilidade ou a diversão” (ibid., p. 141), mas expressa a alegria, o entusiasmo, o desapêgo em relação ao imediato, a possibilidade de nos relacionarmos
com o infinito, com a vida, a generosidade, a criatividade.
A moral esboçada em Exegese da Ação encontra seu pleno desdobramento na
“ética do telurismo”, inspirada em Lawrence, cuja obra Vicente analisa em dois
textos de 1958 e 1962, publicados na revista Diálogo: “O Deus Vivo de Lawrence”
e “Uma Floresta Sombria”.
No neo-paganismo e no dionisimo de Lawrence ecoam os próprios princípios
éticos de Vicente. O romantismo, “renovado telurismo”, “hierofania de Afrodite”,
encontra em Lawrence, na celebração do “ poder obscuro” do sangue e da vida,
na crítica à civilização tecnológica e seu conhecimento profano e dessacralizado,
uma nova expressão.
Enfatizando o lado dionisíaco de Lawrence, vendo a realidade “ como o firmamento dos deuses, como o próprio vir-a-ser desses deuses e não como facticidade
banal ou objeto cognoscível”244, nosso filósofo caracteriza a “ética do telurismo”
inspirada no romancista. Tal ética é “um sentido de consagração à verdade do
homem e das coisas. Viver na ‘ morada da vida’, dormir ‘perto da lareira do mun243
244
FERREIRA DA SILVA, V., Exegese da Ação, O. C, vol. 1, S. P., IBF, 1964, p. 137.
Id., “O Deus Vivo de Lawrence”, in O. C., vol. 2, pp. 393-394.
159
do vivo’, ‘diante do fogo da vida’, tudo isto é o mesmo que se integrar à chama
omni-compreensiva da existência, abandonando-se ao fluxo criador que subjaz
a tudo” (ibid., p. 394).
O homem deve, nessa ética, tornar-se um “servidor da vida”, transformando
em culto e adoração essa proximidade com a terra, com “ o júbilo das apoteoses
cósmicas” (ibid., p. 395), incorporando a “fulgurante beleza dos deuses sem mensagem”, liberto da estreiteza quotidiana num “estar fora-de-si na grande morada
da vida e não na morte da autoconsciência”.
A vida assim se torna recepção e acolhimento ao meta-humano, reconhecimento dos deuses que estão em nós. Para Vicente, como para Lawrence, “a alma
[é] uma potência aórgica, devotada ao serviço das cenas primordiais”245, pois
“nosso ser mais profundo não é reclusão (...) mas entusiasmo, estar-fora de si na
presença dos deuses” (ibid., p. 404).
Nessa perspectiva, Vicente faz a releitura das virtudes tradicionais, contestando
“o ‘teclado apoticário ‘das virtudes da respeitabilidade social, do existir unicamente
em sociedade do homem moderno” (ibid., p. 402).
Tais virtudes são: a temperança, o silêncio, a ordem, a resolução, a frugalidade, o trabalho, a sinceridade, a justiça, a limpeza, a tranquilidade, a castidade, a
humildade.
Na releitura de Vicente, a temperança é comunhão com o cosmos, rememoração da presença dos deuses. Daí, o que importa, na temperança, é esta abertura à
presença dos deuses. E Vicente diz: “comei e festejai com Baco ou mastigai o pão
sêco em companhia de Jesus, mas não vos senteis à mesa sem um dos deuses”
(ibid., p. 405).
Comer e beber não são pura busca de conservação do indivíduo, mas encontro com o cosmos, fusão com os deuses, reconhecimento do significado da obra
humana e de seu lugar num mundo que celebra a divindade.
O silêncio é consonância com o entusiasmo criador, com “a vontade colérica
da vida”. Assim, não é uma regra absoluta, mas uma fidelidade ao que emerge do
mais profundo em nós; daí, na ética vicentina, a recomendação: “ permanecei
silenciosos quando não tiverdes nada a dizer; quando uma verdadeira cólera
dominar-vos, dizei o que deveis dizer, e com ardor” (ibid., p. 406).
O homem é responsável pelos deuses que o habitam; é um porta-voz da divindade que está presente nele: “ao agir, o homem revela-se e ao revelar-se revela
os princípios tutelares de seu ser, isto é, seus deuses” (ibid., p. 408).
Como há deusues maiores e menores, estabelece-se uma hierarquia, uma escala
de valores, da qual decorre nossa relação com os outros.Nessa hierarquia consiste
a ordem das relações interpessoais e sociais. Na ética de nosso filósofo, “através
dos homens. São os deusus que falam”.
245
Id.,”Uma Floresta Sombria”, in O. C., vol. 2, p. 403.
160
Daí a exigência de se obedecer ao mais profundo em nós, de sacrificar o superficial ao essencial, a persona social, o pequeno eu, ao testemunho dos deuses. Nisso
consiste a virtude da resolução: obedecermos “ao Espírito Santo (...) marcando
assim as obras do sentido reverencial aos deuses” (ibid., p. 401).
A frugalidade consiste em não nos abandonarmos às questões menores da
existência, em não nos desgastarmos com os pequenos problemas.É respeito e
amor ao “ inaudito, o irrevelado e oculto em nós”, “o ilimitado que nos habita”,
sem nada pedir e aceitando o que parecer justo. É ênfase no ser e não no ter.
A virtude do trabalho não consiste em amontoar tarefas, no existir para a sociedade. É serviço ao “ Espírito Santo” (ibid., p. 409), é cumprir a tarefa própria
do homem: pôr-se à escuta dos deuses.
A sinceridade é reverência à nossa alma, à verdade de nossa alma: “ser sincero
é ser livre e desobstruído (...) para os deuses que vão e vêm na representatibilidade
da nossa ação”. Assim também a justiça é obediência “à intuição sincera da alma,
seja ela de cólera ou de doçura” (ibid.,p. 411).
A moderação consiste no não-dogmatismo, no reconhecimento da pluralidade
das manifestações do sagrado, do religioso. Recusando absolutos, reencontraremos, diz Vicente, o absoluto da Vida e a polivalência do religioso (ibid.,p. 412).
A limpeza consiste em reconhecer no próprio corpo uma manifestação do
divino, contra as perspectivas puritanas e negativistas em relação a este (ibid.,pp.
412-413). A tranquilidade é a pleniude que resulta da obediência ao mais
profundo, a fidelidade ao Espírito Santo em nós (ibid.,p. 413). A humildade é
reconhecimento de que o Espírito Santo habita todo homem e toda mulher; é
“disponibilidade infinita em relação ao ‘Holy Ghost’” (ibid.,pp. 414-415) que está
presente em cada um.
A castidade é reconhecimento do caráter sagrado da sexualidade, não considerada em vista de finalidades como a geração, a saúde, o prazer, mas como
“oferenda aos deuses sombrios e todo-poderosos – nada mais”, pois “ no amor,
é o amor que se realiza através de nós” (ibid.,p. 414), são forças não criadas pelo
homem que se manifestam.
Nas axiologias de Agostinho e de Vicente, o sagrado é o valor supremo e o
sentido ético da existência consiste no reconhecimento desse valor, na disponibilidade para a transcendência, na fidelidade ao deus que nos habita, ao Espírito
Santo presente em nós.
Nessa abertura ao Transcendente, residem a plenitude, a felicidade, e a liberdade do homem, cuja pequena vida é então impregnada pela “prodigiosa vida
dos deuses”, como afirma Vicente.
O diálogo entre o neo-paganismo do filósofo brasileiro e a celebração do Espírito Santo, em Agostinho da Silva, ocorre através da valorização de sacralidades
diversas,” máscaras da Vida una”.
161
Nos Diálogos Filosóficos, de Ferreira da Silva, principalmente no Diálogo do
Mar, no Diálogo da Montanha e no Diálogo do Espanto, através dos personagens Mário, George, que representam, nos diálogos, respectivamente Vicente e
(George) Agostinho da Silva, como bem assinalou Antonio Braz Teixeira, é que
encontramos as possibilidades de convergência entre os dois autores, explicitamente reconhecidas.
Diz Vicente, através do personagem Mário: “(...) embora diferentes, somos
tripulantes do mesmo barco e, no fundo, concordamos num ponto fundamental: é
preciso superar o velho mundo do humanismo antropocêntrico. Devemos tender
para uma realização vital policêntrica”246.
E o personagem George afirma: “Toda forma pessoal ou individual de ser não
seria mais do que uma das máscaras da Vida unitária...” (ibid., p. 505).
Em ambos, constatamos o horror ao mundo caracterizado pela fuga de Deus
ou dos deuses, e a busca de uma plenitude, de um estado de entusiasmo, de arrebatamento pela divindade, de disponibilidade para uma outra forma de viver
e de ser.
Para ambos, a experiência da liberdade é a da máxima disponibilidade à Transcendência; e a obediência ao mais alto em nós, é o sentido ético fundamental da
existência.
246
Id., Diálogo do Mar, in O. C., vol. 2, p. 494.
162
Natural:mente, de Vilém Flusser247
Natural:mente, cujo subtítulo é “vários acessos ao significado de Natureza”,
aborda a questão das relações natureza-cultura.
Flusser, num estilo revelador das leituras de Husserl, Heidegger, Wittgenstein, trata de compreender o que acontece com a relação homem-natureza, num
mundo que se caracteriza pela crise da ciência. “Tal crise da ciência”, afirma, “exige uma reformulação radical tanto dos métodos da ciência quanto do interesse
da ciência pelas coisas” (ibid., p. 143).
O reconhecimento da importância crescente das ciências humanas, leva o
homem contemporâneo a inverter a perspectiva tradicional, que conferia à física
o papel de modelo do saber. Por isso, “de certa maneira está recomeçando (...) o
esforço todo de conhecer cientificamente o mundo que nos cerca”. Pertencer a
esse grupo de pioneiros, criar uma nova forma de ver o mundo, um novo conceito de ciência: tal é a aventura que Flusser se propôs, reconhecendo como seus
precursores Husserl, Ortega e Bachelard.
Pondo em jogo o conceito de natureza, Flusser escreve, filosófica e poeticamente em torno de temas aparentemente banais: caminhos, vales, pássaros, chuva, o cedro no parque, vacas, grama, dedos, a lua, montanhas, a falsa primavera,
prados, ventos, maravilhas, botões, neblina.
Nosso autor pretendia submeter as “coisas naturais a testes sucessivos”. Estabelecia, nesses testes, várias e sucessivas negações da noção de “natureza”. Assim, em “chuva”, procurou negar a natureza pela “cultura”, com o significado de
“manipulação planejada” (...). Em “Falsa Primavera”, procurou opor o conceito
grego da natureza (physis) ao conceito da ciência da natureza (...). Em “Botões”,
procurou opor os dois climas que emanam da natureza: o do sentimento trágico
e o do absurdo. E, em “Neblina”, opôs a mistificação da natureza pelo espírito
ideológico ao “autêntico mistério de uma realidade que se enconde ao revelar-se”
(ibid., p. 139).
O livro de Flusser se lê com o encantamento de quem descobre novos poemas;
e com a admiração de quem se surpreende perante o enigma do mundo desvelado a partir do quotidiano mais banal, da paisagem de uma casa de campo.
A refinada erudição que transparece no texto, Flusser a usou apenas como
instrumento para aguçar a profundidade da sua leitura.
247
FLUSSER, Vilém, Natural:mente. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.
163
A partir da natureza européia – o livro foi escrito na Europa – nosso autor
oferece ao leitor brasileiro um “guia turístico”, entendendo por turismo a “visão
interessada mas despreconcebida daquele ente provisório e estrangeiro no mundo chamado ‘homo viator’” (ibid., p. 148).
Escrevendo a partir da natureza européia. Vilém Flusser medita sobre a inserção do homem no mundo, numa renovada abordagem.
Encantamento: é isso que o mágico da palavra nos oferece.
164
A metafísica conjectural de Miguel Reale
Se a fonte remota do pensamento de Miguel Reale é a obra de Kant, a fonte
próxima da ulterior evolução de seu pensamento é a Escola fenomenológica.
No texto que expressa de modo exponencial esta trajetória, Verdade e Conjectura248, nosso autor busca “elaborar ideias metafí­sicas” que levam a compreender
sujeito e objeto “na sua essencial correlação” (ibid., p. 13).
A metafísica conjetural que Reale propõe consiste “numa tentativa de ir além
dessa complicação dialética “do sujeito e do objeto, visando a algo que transcendentalmente a condicione” (ibid., pp. 13-16).
O ponto de partida da sua metafísica é a constatação de que o homem, na busca da verdade, se orienta por conjeturas. Reale começa por distinguir entre pensamento conjetural e discurso probabilístico, dizendo que o primeiro é apoiado
em elementos qualitativamente considerados, em verossimilhança (ibid., p. 15),
e recorre à imagi­nação, à intuição e à linguagem metafórica.
Negligenciado, desde a Antiguidade, que privilegiou o pensamento analógico
e probabilístico, o pensamento conjetural não é um ceticismo, um relativismo,
mas resulta da compreensão de que verdade e conjectura são termos complementares.
Quando há impossibilidade de se atingir diretamente o ob­jeto visado, no plano do conhecimento ou da ação, a conjectura serve de fio condutor de reflexão:
daí a volta, na filosofia contemporânea, ao mundo da vida e do senso comum, e
à meditação sobre os futuríveis.
Reale pretende dar a conjectura, não apenas a função de predição, mas “verificar se é possível atribuir ao pensamento conjectural um status lógico ou epistemológico próprio” (ibid., p. 18). Sua indagação encontra pontos de convergência
com a temática da conjectura em Popper (ibid., pp. 18-20), pondo em evidência
o valor desta, no que diz respeito à busca da verdade, e distinguindo-a do palpite
gratuito.
A fonte kantiana do pensamento conjectural é evidenciada por nosso autor,
quando mostra que o pensador alemão, já na Críti­ca da Razão Pura, caracterizava a metafísica “como expressão de um raciocínio problemático” (ibid., p.
26), sem, contudo, abordar sistematicamente o assunto. O pensamento problemático, em Kant, exprime possibi­lidades lógicas; seu âmbito é delimitado por
248
Lisboa: Fundação Lusíada, 1996.
165
intuição e entendi­mento, diversos do conhecimento racional; utiliza conceitos
pro­blemáticos, que abordam objetos não-experienciáveis, mas passí­veis de conhecimentos válidos, enquanto estes constituem princípi­os reguladores da razão
pura. Kant estabelece correlações, ainda, entre pensamento problemático e pensamento analógico, fixando “as grandes linhas de uma metafísica problemática”
(ibid., p. 31), diz Rea­le, indagando sobre o sentido da história, da liberdade, da
cultura (ibid., p. 33).
Um aspecto importante que o filósofo brasileiro põe em relevo, na obra de
Kant, é a distinção entre conjectura e quimera: a conjetura “não contradiz a experiência, mas com ela se compatibiliza”, tendo “o raciocínio problemático valor
provisório, ou de mediação” (ibid., p. 34).
O pensamento conjectural se caracteriza, segundo Reale, por quatro pontos:
a) surge, quando precisamos compreender o que não é abordável a partir das evidências empíricas; b) busca trans­cender a experiência, através do que é plausível
aceitar, isto é, re­cusa contradições lógicas, recusa o absurdo; c) desenvolve-se no
plano das idéias, porque não pode abordar seu objeto no plano dos conceitos; d)
conjuga intenção, racionalidade e imaginação, para “pensar além daquilo que é
conceitualmente verificável” (ibid., p. 36). É sempre tentativa de ir além da experiência, respondendo às ques­tões como se fosse possível solucioná-las.
Mais ampla que a probabilidade e a analogia, aliando razão e imaginação
criadora, a conjectura busca superar a experiência, estabelecendo vetores de sentido.
O ponto de partida da metafísica realeana é Kant (ibid., p. 37); mas a filosofia
de Reale quer ir além de Kant, colocando o pensamento conjectural como cerne
de toda metafísica. Essa filosofia é, a seu ver, uma metafísica crítica, que “reivindica a validade do conjectu­ral” (ibid., p. 41), afirmando-se como pluralista,
hipotética, e considerando a intuição como um dos elementos necessários do
saber, mas só va­lidada, na medida em que se apresentar correlacionada aos outros elementos. Tal metafísica não é ciência; esta última procede de problemas a
soluções, enquanto aquela procede de problemas a conjecturas, isto é, “passa de
um problema a soluções razoáveis ou plausíveis que envolvem outros problemas,
até chegar-se a ‘conje­turas fundantes’” (ibid., p. 42). Seu objeto é a validade, não
a verdade ou a certeza.
E é recorrendo ao diálogo com a fenomenologia, especial­mente a de Husserl e
Merleau-Ponty, que o filósofo brasileiro afirma a necessidade da metafísica e a faz
desenrolar-se entre dois horizontes: o do âmbito da experiência e o da “transcendental razoabilidade”, o de confronto com o transcendente (ibid., p. 43).
A validade da metafísica consiste em nos possibilitar uma certa perspectiva,
uma apreensão mais clara de nosso desejo de transcendência e de significado,
uma resposta às exigências espi­rituais de nossa época, uma “busca do sentido da
totalidade” (ibid., p. 113).
166
Os temas privilegiados de sua metafísica são a liberdade, os valores, a cultura
(ibid., p. 115). Não se trata, aqui, de retomar o cogito de inspiração cartesiana;
antes, deve-se buscar o que é comum a todos os eus, dialeticamente considerados, na sua relação inter-humana e na sua relação com o Lebenswelt. É ainda esse
novo sentido da ontologia, inspirado em Hartmann, Husserl, Scheler, que aparece na meditação de Reale sobre a ontologia dos valores249, e na sua leitura do
primeiro Heidegger, para quem a temporalidade e a historicidade são dimensões
essenciais da existência humana.
A referência à corrente fenomenológica, pólo que marca o pensamento de
Reale, não é, contudo, a de alguém que assume a escola como discípulo. A partir
de Husserl, Heidegger, para além de Husserl, Heidegger: tal é a atitude de Reale,
que estrutura uma filosofia própria. Correlacionando ontognosiologia e histori­
cismo axiológico, nosso filósofo pretende “superar a atitude estáti­ca, puramente
descritiva, do sujeito cognoscente perante a realida­de, como ocorre na filosofia fenomenológica, para [levar] em conta a originária historicidade do ser que
conhece”250.
Contra o cogito cartesiano Reale põe o homem como um ser que pensa, buscando alcançar novas verdades, novas realiza­ções de seu ser, no tempo. A abertura para a temporalidade instau­ra o homem no mundo da cultura, do qual é
inseparável. A perma­nente busca de aperfeiçoamento, de transcendência, é também bus­ca de comunicação, de intersubjetividade. Para além de Husserl, que
postula o eu transcendental, Reale propõe a intersubjetividade transcendental, de
um ser que se caracteriza pela linguagem e pela abertura à alteridade.
Por essa razão, reconhece que pensamento e linguagem, “atos concomitantemente individuais e coletivos”, [são] condicio­nados por quatro fatores, a saber:
a) a consciência intencional (...)
b) a natureza infinitamente determinável de algo (...)
c) a igual natureza de todos os homens (...)
d) a historicidade originária do homem” (ibid., p. 91).
Para Reale, o homem, ser perfectível, ser pessoal, tem como mundo o da
cultura, acervo espiritual comum, pro­gresso em direção a valores – objetivados
e traduzidos em obras criadoras, bens constituídos.
Daí, criticando Husserl, Reale afirmar o pensamento conjectural, que “não
pode (...) ser reduzido a mero momento provisório de uma intuição eidética,
porque já assinala o ponto culminante de nossa meditação ontológica sobre a
Veja-se, sobre isso, o importante artigo de Reale, intitulado Invariantes Axiológicas.
Id., Verdade e Conjectura, p. 89. O próprio Reale assinala, em nota, na mesma página, os textos
em que eplicou sua posição original: Experiência e Cultura, capítulos VI e VII; Filosofia do Direito,
p. 87 e segs; Teoria tridimensional do Direito, capítulo V; Introdução à Filosofia e Paradigmas da
Cultura contemporânea, passim.
249
250
167
insuperável relação eu-mundo, ou o que vem dar no mesmo, espírito-natureza”
(ibid., p. 97). E ainda: “Se, de um lado, a Lebenswelt condiciona as estruturas objetivas das ciên­cias, estas, de outro lado, ‘afluem no mundo da vida’, de tal modo
que (...) ele se converte (...) em um mundo transformado segundo variáveis condições históricas” (ibid., p. 100). Há, dessa forma, uma dialética de complementaridade entre a experiência estruturada segundo es­quemas lógicos, culturais,
dominantes em certo tempo ou história, e a criação de conjeturas e hipóteses.
As conjecturas metafísicas, enunciadas apesar de sua inverificabilidade, delineiam o horizonte do mundo cultural, uma vez que constituem “o horizonte
envolvente, englobante da cultura” (ibid., p. 102).
É recorrendo ao conceito gadameriano de efetividade his­tórica que Reale
medita sobre correlação entre valor e tempo: o tempo histórico é tempo axiológico, a experiência da temporalida­de humana é uma experiência de valores. Esses
valores, apesar da multiplicidade com que se apresentam na história, são constantes que asseguram a harmonia do mundo da cultura, porque, para Reale, há
uma identidade essencial do espírito humano, apesar da pluralidade de indivíduos
e de tempos. O tempo qualitativo, o tem­po axiológico é o tempo da liberdade,
que instaura, na natureza, o mundo da cultura.
No pensamento conjectural, a metafísica é “o englobante fundamental da cultura” (ibid., p. 106), dado que possibilita o transcender do individual em direção
ao eu comum. Reafirmando, para além de Kant e da fenomenologia, a possibilidade da metafísica; pondo em relevo a importância do pensamento conjectural
na busca da verdade e dos valores; medi­tando sobre o sentido ontológico da cultura e do tempo, Reale nos instaura no mundo qualitativamente considerado, no
tempo propri­amente humano da inquietação pelo dever-ser e pela liberdade.
168
Axiologia e crise segundo Miguel Reale
Ao examinar a sociedade contemporânea, Miguel Reale correlaciona ética,
axiologia, ontologia e meditação sobre a cultura e a crise atual.
Em “Os riscos da revolução tecnológica” nosso autor251 questiona a excessiva
valorização da técnica, da globalização, vista por alguns pensadores como capazes de melhorar rapidamente a vida de todos os povos.
Na verdade, o progresso técnico só será propício ao homem, se acompanhado de “medidas políticas e econômicas destinadas a promover a justiça social”
(ibid., p. 55). Mostrando a ambigüidade da crise, uma vez que todo evento importante vem sempre acompanhado de resultados benéficos e de conseqüências
nocivas não previstas, o filósofo critica a sociedade de consumo, da utilidade, na
qual o durável tornou-se um desvalor, e a busca do lucro imediato, a substituição
rápida de bens, sua característica.
As consequências dessa inversão de valores são o desemprego, a supressão
de postos de trabalho, dentre outras. A alternativa proposta por Marx e Lênin,
de recurso ao Estado empresarial, mostrou-se inviável, dado o descalabro que
representou sua adoção na União Soviética (ibid., p. 57).
A exigência de mudanças na mentalidade dominante é exigência de mudanças na escala de valores adotadas pela sociedade atual. Focalizada no poder e
no lucro, tal sociedade divorciou-se do humano, não podendo encontrar seu
caminho senão recolocando em primeiro plano a satisfação de necessidades essenciais de saúde, educação, justiça (ibid., p. 58).
A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma crise, que põe em jogo
o problema ético. Para nosso autor, a ética é “um dos aspectos da Axiologia ou
teoria dos valores (...)”252. O campo da ética é o do estudo do bem e da ação humana que visa sua realização.
A Axiologia considera a pluralidade de valores que o homem escolhe para dar
sentido à sua vida. Para alguns, tal sentido é encontrado na beleza, na concepção
estética da existência; para outros na utilidade, o valor econômico é dominante;
para outros ainda, a ética, a religião, constituem o pólo de atração, desdobrandose assim a Filosofia em Ética, Estética, Filosofia da Religião, conforme o valor
considerado dominante.
251
252
REALE, M., Variações 2 , RJ, Academia Brasileira de Letras, 2003, pp. 55-58.
Id., Introdução à Filosofia, SP, Saraiva, 1988, p. 27.
169
O valor não é um ser; é não-espacial, atemporal, não se confunde com os
osbjetos ideais. O valor não é, mas vale: “o seu ‘ser é o ‘valer”’ (ibid., p. 141),
e só existe nas coisas, nos seres valiosos, nos bens. Corresponde à ordem do
dever-ser; é bipolar, sempre supõe um anti-valor e implica reciprocamente outros valores. Não é um fato;implica a tomada de posição, o reconhecimento por
um sujeito humano, ou seja, tem como característica a referibilidade, ou seja, a
referência a um sujeito; a preferibilidade, quer dizer, a ordenação hierárquica. É
objetivo e inexaurível, não se esgota nas suas manifestações em seres, embora se
expresse historicamente.
Assim, o valor não é ser, mas qualidade do ser; põe à luz o mundo do deverser, através das criações, das obras em que se projeta e realiza o ser humano
(ibid., pp. 144-145).
O impasse em que se encontra a filosofia contemporânea, ante as concepções
subjetivas e objetivas do valor253, nosso filósofo o apresenta elencando as principais teorias do valor; trata de superar o impasse, propondo uma teoria históricocultural dos valores.
A pergunta a que todas as tendências buscam responder é: como e por que
os valores valem?
A resposta subjetivista abarca as teorias psicológicas da valoração das quais
Reale destaca as teorias hedonistas, representadas pela tradição que remonta a
Aristipo e Epicuro e se expressam, na atualidade, através das obras de Bentham e
de Meinong. Nessas teorias, valioso é aquilo que agrada, que dá prazer. O subjetivismo aparece também nas teorias voluntaristas, que se reportam a Aristóteles
e, na filosofia recente, transparecem nos escritos de Ribot e Ehrenfels. Essas teorias afirmam que o valor é o desejado ou pretendido por alguém. Reale resume
o subjetivismo dizendo que nessa corrente, “valioso é o que nos causa prazer,
suscitando nosso desejo” (ibid., p. 146). O valor é, então antes de mais nada, uma
vivência estimativa.
Na perspectiva crítica de nosso filósofo, o subjetivismo axiológico é inaceitável, pois reduzindo o valor às valorações individuais, ao ato de valorar, cairíamos
num relativismo, que impediria a distinção entre os desejos e prazeres aceitáveis
e os desejos e prazeres não-aceitáveis, para além da esfera das apreciações estritamente individuais.
O indivíduo, tomado como medida dos valores, não permite que se explique
a existência de estimativas de grupos, comunidades, nem a pressão social que
tais estimativas podem representar.
Em decorrência, nosso pensador afirma a prioridade do objetivismo axiológico, pondo em relevo três exemplos dessa posição: o das interpretações sociolóId., ibid., p. 146 e segs. Ver também FRONDIZI, R., Qué són los valores?, México, Fondo de
Cultura Econômica, 1968.
253
170
gicas, o das interpretações ontológicas e o das interpretações histórico-culturais
dos valores.
Na perspectiva sociológica, o valor expressa a consciência coletiva ou as
crenças e desejos de uma sociedade. São representantes desse enfoque Tarde e
Durkheim; o último vê “ a consciência coletiva como repositório de valores (...)
exercendo [estes] pressão ou coação exterior sobre as consciências individuais”
(ibid., p. 149).
Essas concepções tiveram especial importância no campo do Direito, representadas por Davy e Bouglé.
O grande problema não resolvido pelas teorias psicológicas e sociológicas do
valor, é, diz Reale, “explicar por que os valores obrigam” (ibid., p. 150). Reduzir
o valor a uma expressão da consciência, quer individual, quer social, não explica
a existência de mártires e de heróis, que se singularizam constestando os valores
vigentes de uma dada época, em uma dada sociedade. E mais ainda, afirma o
filósofo: “A opinião da maioria não traduz (...) a certeza ou a verdade no mundo
das estimativas” (ibid., p. 151).
As dificuldades apresentadas pelas teorias sociológicas, identificando valor
com a opinião da maioria, num dado contexto social, levou à tentativa de superação, tanto das teorias subjetivistas quanto das do objetivismo sociológico, por
duas outras teorias objetivistas: o ontologismo axiológico e a teoria históricocultual dos valores.
O ontologismo axiológico é representado por Scheler e Hartmann, que encaram os valores como realidades a priori, existentes em si, num mundo ideal e
apreendidas por intuição, quer sentimental (Scheler), quer eidética (Hartmann).
A dificuldade entrevista por Reale nessas abordagens objetivistas, é a multiplicação dos níveis de realidade, fazendo dos valores os componentes de um
“mundo subsistente e cerrado em si mesmo “e estabelecendo uma radical separação entre valor e história (ibid., p. 153).
Reconhecendo as contribuições das teorias psicológicas e sociológicas do valor: a idéia de referibilidade, ou seja, de vínculo entre valor e apreciação deste por
um seujeito; e a idéia de independência, transcendência do valor tanto em relação
à valoração individual quanto em relação à sua expressão em seres, nosso filósofo propõe, como mais aceitáveis, as teorias histórico-culturais do valor. Esta
perspectiva foi adotada, no passado, por Hegel, Marx e Dilthey. O denominador
comum desses autores é a afirmação de que o valor só pode ser apreendido na
história, “entendida esta como realização dos valores ou como projeção do espírito sobre a natureza” (ibid., p. 154).
A tese central da teoria histórico-cultural é a de que o homem é criador da
cultura, instaurando seu mundo sobre o mundo da natureza. Esse mundo é um
171
mundo espiritual, histórico, expressão da liberdade: é mundo dos valores, da
realização do espírito, da projeção da consciência dentro do tempo, através das
gerações e de suas obras. Essa expressão da auto-consciência humana no tempo,
constitui o mundo da cultura, dos ciclos culturais ou civilizações. Assim, através
do tempo, os valores se expõem como “elementos constitutivos dessa (...) experiência” (ibid., p. 156).
Daí, para Reale, os valores não constituem um mundo à parte, uma realidade
ideal em si, mas “são algo que o ser humano realiza em sua própria existência
(...) através do tempo (...)”, objetivando-os através de suas criações. Não são tampouco, totalmente independentes do sujeito que aprecia, mas não se trata, aqui
da referência a um sujetio individual, empírico, mas ao “homem como sujeito
universal de estimativa” (ibid., p. 157), ao homem na sua universalidade como
pessoa, como unidade espiritual, fonte de todo reconhecimento de valores.
Valor em si, o homem é capaz de reconhecer valores, isto é, de expressá-los
na temporalidade, através de sua ação. O valor é, para o ser humano, critério de
compreensão da sua existência, integrando ser e dever-ser.
A vida humana, voltada para a contínua superação do já dado, abre-se à possibilidade de instauração do novo, da constituição de novos modos de ser. É
nessa realização ininterrupta, nessa permanente superação de si mesmo que se
funda, para nosso autor, a característica do homem: sua capacidade de sintetizar
ser e dever-ser, existência finita e plenificação infindável, através do tempo. Por
essa qualidade sintetizadora, o homem é pessoa. Nele se inscrevem a consciência
e a liberdade, a possibilidade de escolha constitutiva de bens, poder de síntese (...)
e auto-consciência (ibid., p. 161).
A atividade da pessoa, enquanto ser espiritual, é sempre dirigida a outrem; por
isso, diz nosso filósofo, “a tomada de consciência do valor da personalidade é a
expressão histórica da atualização do ser do homem como ser social (...)”. E afirma: “entre pessoa e sociedade há (...) uma correlação primordial” (ibid., p. 162).
Por isso, alguns valores, quando chegam a ser percebidos como tais pela
consciência coletiva, tornam-se aquilo que Reale chama de invariantes axiológicas254, isto é, valores constantes, definitivamente reconhecidos pela humanidade
a partir de um certo momento. Dentre esses valores, objetivos e universais, nosso
autor elenca a dignidade da pessoa, o direito à vida e à liberdade, a isonomia, em
suma, tudo aquilo que reconhecemos hoje como os direitos fundamentais.
Conferência proferida em 1991 no Rio de Janeiro e publicada na Revista Brasileira de Filosofia em 1992, o texto Invariantes Axiológicas é considerado pelo
próprio autor como uma contribuição importante. Nesse escrito, o filósofo retoma e aprofunda o assunto, mostrando a progressiva constituição da Axiologia
e do tema dos valores, ao longo da tradição filosófica ocidental. Reitera, ainda,
254
Id., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, IFLB, 1994, pp. 207-221.
172
a importância da questão em nossa época, na qual o homem se mostra “cada
vez mais disperso na sociedade de massa, cada vez mais impotente no círculo da
absorvente comunicação cibernética; cada vez mais temeroso no meio de revolucionárias conquistas científicas e técnicas, ameaçadoras dos bens da natureza
e da vida em nosso planeta, sentindo todos os riscos de perder o valor supremo
de seu ser pessoal no Mundo” (ibid., p. 221).
Nessa conferência, Reale propõe a questão: existem ou não valores que guiam
os homens na sua vida quotidiana? Nosso autor responde afirmativamente à pergunta, chamando tais valores de invariantes axiológicas. Tais invariantes constituem o fulcro da vocação de cada um, aquilo que cada homem elege como
horizonte de sua existência: o sagrado ou a beleza, a riqueza, a verdade, a justiça
(ibid., p. 209); no embate entre o subjetivismo e o objetivismo axiológico, trata
de superar sua oposição, mediante a análise da palavra valor ao longo da sua
emergência para a filosofia. Na Antiguidade, o termo áxios, diz o autor, indicava,
para os gregos, o que é digno de estima. Em Platão e Aristóteles, a idéia correspondente à de valor é a idéia de Bem. Na tradução latina de Cícero, o termo
áxios corresponde ao aestimabile, o que é estimável; mas os romanos também
empregaram, para designar o valor, a palavra Bonum, bem, reconhecendo na
justiça o bem supremo.
Assim, na Antiguidade, as invariantes axiológicas não são percebidas como
tais, apresentando-se como ontológicas ou éticas.
É somente na Idade Média que o termo valor aparece no latim e, ulteriormente, nas línguas neo-latinas. Mas para a filosofia medieval, prevalece ainda a
palavra Bonum, para designar o ser.
Uma certa correlação entre bem e valor aparece na obra de Dante, onde “a
expressão eterno valor [indica] o supremo bem” (ibid., p. 209). E em Nicolau de
Cusa, o problema do valor aparece no exame das relações entre Deus, e na reflexão sobre a coincidência dos opostos (ibid., pp. 210-211).
Daí nosso autor afirmar: “Podemos concluir que, até a época do Humanismo,
não nos seria possível tratar de invariantes axiológicas (...) pois o que prevalece é
a subordinação do Valor (...) ao conceito primordial de Ens” (ibid., p. 211).
Em Descartes e seus continuadores, a perspectiva antropocênctrica e a nova
gnoseologia não provocaram uma independência das pesquisas sobre o valor:
reiteram “a antiga correlação entre Ens e Bonum” (ibid., p. 212).
É somente com Kant, na opinião de Reale, que se abre nova perspectiva a
respeito do assunto, como distinção entre ser e dever-ser, proposta na Crítica
da Razão Prática. Mas é a partir da concepção do valor, no plano econômico,
tal como é considerado por Adam Smith e David Ricardo, que o tema se torna
autônomo (ibid., p. 213).
173
São o questionamento da Economia Política, por Marx e a crítica do Cristianismo, por Nietzsche, que abrem a possibilidade de surgir, no final do século
XIX, começo do século XX, a Axiologia como disciplina autônoma, a partir das
obras de Hartmann e Urban, bem como a Axiologia de base psicológica e de base
sociológica. Estas últimas foram caracterizadas pelo subjetivismo, como já assinalamos, e tem em Durkheim, Bouglé e, recentemente Marcuse, seus expoentes.
Na primeira metade do século XX, entre as duas guerras mundiais, Scheler
e Hartmann propuseram uma concepção objetivista dos valores afirmando que
valor é o que vale, constituindo um mundo de objetos ideais.
Na perspectiva de Reale, superadora das posições extremas do subjetivismo
e do objetivismo, o homem é o “valor-fonte de todos os valores”, pois “o ser do
homem é seu dever ser”. O campo da realização dos valores é o da vida histórica,
uma vez que o “ser do homem é essencialmente histórico” (ibid., p. 216). Afirma a
possibilidade de “uma compreensão transcendental (...) do valor, em correlação
com a experiência histórica (ibid., p. 217), com a tomada de consciência, por
parte do ser humano, de sua comunhão com os outros e de seu valor próprio.
Nessa perspectiva, “os valores [são] concebidos como expressões ou modelos do
dever-ser (ibid., p. 218). Demarcam o universo da cultura, formulando o horizonte da vida histórica, na qual a pessoa humana se inscreve, aí realizando seu
projeto de ser. Daí nosso filósofo dizer: “(...) a história do homem não é (...) uma
aventura sem nexo (...) mas desenvolve, através de (...) inevitáveis conflitos, as
possibilidades existenciais da espécie humana (...) [segundo uma] constelação
cultural valorativa” (ibid., p. 221).
Um aspecto muito interessante dessa discussão sobre os valores e sobre a
pessoa humana como valor fundante, é exposto em Verdade e Conjectura255, publicado em primeira edição em 1983 e, a nosso ver, uma das obras mais importantes de nosso autor.
No capítulo “Ontologia da Liberdade e do Valor” (ibid., pp. 69-88), Reale
explicita tanto a inspiração kantiana da sua definição de homem, cujo “ser é seu
dever-ser”, quanto os aportes que provocaram a ampliação do tema, definindo a
pessoa pela liberdade.
Ser e dever-ser são abordados, inicialmente, como categorias lógicas, com as
quais o sujeito compreende a realidade e aprecia segundo um padrão. É a totalidade das faculdades do sujeito – não apenas a intelectual, mas também a intuitiva, volitiva, imaginativa – que está em jogo no conhecimento.
Nesse texto, nosso autor reitera a definição do mundo propriamente humano
como o mundo da cultura, “constituído pelos objetos que “são enquanto devem
ser” (ibid., p. 72), e enfoca a questão do valor numa tríplice perspectiva: a ôntica,
a gnoseológica, a teleológica.
255
Id., Verdade e Conjectura, Lisboa, Fundação Lusíada, 1996.
174
No plano ôntico, define o valor como o “que constitui o “ser” de certos objectos (ibid., p. 73); no plano gnoseológico, mostra que há seres que só podem ser
conhecidos através de juízos axiológicos, como nos campos da ética e da estética;
no plano teleológico, mostra a correlação entre valor e ação, meios e fins.
O ponto central dessa reflexão é a consideração do enigma da existência humana, cuja nota dominante é ter consciência de si, o que torna possível a cada
um ser o que é, “em sua condicionalidade ético-biológica própria intransferível;
e o de cada homem poder e dever agir com fundamento em sua liberdade, visando atingir a meta suprema de seu aperfeiçoamento moral” (ibid., p. 75).
A partir da meditação de inspiração neo-kantiana, que encontra em Bachelard e em Gonseth, no âmbito da filosofia da ciência, uma importante expressão,
nosso filósofo relaciona o caráter inventivo, criador, da investigação científica,
com a afirmação da liberdade, como “condição transcendental de todos os atos
humanos” (ibid., p. 78). Assim, a liberdade, no plano do agir, expõe o valor da
pessoa, pois diz Reale, “o problema do valor (...) é o problema do próprio homem
e de sua liberdade” (ibid., p. 74), uma vez que este se acha aberto a uma infinidade de alternativas de realização de seu ser. Aqui, a liberdade aparece como
característica de um pensamento do plausível, disponível para a variedade da
experiência e impulsionador do progresso científico.
Liberdade e valor “são termos conversíveis” (ibid., p. 82), nessa filosofia que
reconhece a liberdade como fundamento tanto da razão prática quanto da vida
teórica (ibid., p. 80).
A dignidade e a importância da pessoa consistem então, nessa característica
vinculação entre auto-consciência e liberdade, que torna o homem um ser único: a liberdade se mostra, pois, como “auto-consciência primordial, em função
[da] circunstancialidade” própria de cada um.
A existência, que se desdobra no tempo através de múltiplas direções, múltiplas opções, realiza no entanto, o dever-ser próprio do homem, tanto no que
se refere “ao eu comum (...) em sua universalidade (...) como ao eu pessoal do
destinatário da conduta desejável ou exigível” (ibid., p. 83).
A auto-consciência põe o ser humano perante alternativas, perante a possibilidade de erro e acerto, de propor-se fins e orientar a ação para realizá-los. E
é por isso, pela ‘compreensão da liberdade como fundamentum hominis”, que
nosso autor “faz do homem (...) um valor, cujas características de polaridade (...)
e de inexaurabilidade (...) não são mais do que conseqüências ou reflexos das
alternativas da liberdade” (ibid., p. 84).
O enigma e a maravilha do existir consiste nessa enorme variedade de existências, de faces múltiplas de um mesmo ser, de uma mesma raiz comum. A
igualdade, representada pela capacidade, de todos e de cada um, de realizar o seu
dever ser, isto é, de realizar o ser que especificamente corresponde ao homem,
175
leva o filósofo a supor uma raiz adâmica, original e comum a todos os homens,
e a sugerir a possibilidade “de um Ser que seja ao mesmo tempo Valor (...) o homem é o único valor que originariamente (...) é e vale (...)”, conduzindo “à idéia
de uma relação entre Criador e Criatura” (ibid., p. 86).
A correlação igualdade / liberdade tem outras implicações. Se existimos
“como seres iguais uns aos outros, mas ao mesmo tempo, diversos uns dos outros, cada um com a sua intocável liberdade” (ibid., p. 85), daí decorre a exigência ético-política do “dever de suprir cada vez mais as razões contingentes da desigualdade” (ibid., p. 86). Decorre também a exigência de “tolerância das idéias
divergentes”, associada um anti-dogmatismo, não relativismo e não-ceticismo.
Trata-se de reconhecer que o enigma fundamental é “o fato de haver indivíduos
da espécie humana, cada um deles dotado de uma subjetividade distinta e intocável” (ibid., p. 87), o que torna possível o surgimento de muitos modos de
realização da humanidade em cada um.
Desse modo, a meditação sobre a crise de nosso tempo e a reflexão sobre os
valores encontram seu ponto de convergência contínua nos valores, é, na sua
universalidade, a garantia da transcendência destes em relação à sua expressão,
num momento dado.
A crise contemporânea é sanável, na opinião de nosso autor, na medida em
que o homem se reconhecer como fonte dos valores e buscar inscrevê-los na
vida da cultura. Reconhecendo-se como pessoa, como ser espiritual, reconhecerá também sua tarefa mais própria: a de priorizar os valores do espírito, a de
constituir um mundo sobre o mundo da natureza.
Esculpir a si mesmo, de modo cada vez mais perfeito, ao longo do tempo: essa
tarefa do homem, ser perfectível, pessoa.
176
Ética e liberdade em Miguel Reale
A noção de pessoa é uma noção-chave na antropologia filosófica e na ético-axiologia de Miguel Reale. Um texto, cuja importância foi sinalizada pelo
próprio filósofo, aponta, numa perspectiva histórica, a emergência da noção de
pessoa “ como valor-fonte de todos os valores”256 e sintetiza a concepção de nosso autor, como bem assinalou Ángeles Garcia257, que a denomina “personalismo
axiológico”.
Estudando a noção de pessoa como uma invariante ou constante axiológica,
Reale a compreende como um valor universal e objetivo, que orienta a humanidade para a sua realização. Está intimamente conectada com as noções de racionalidade e liberdade, fundamentando a ética numa antropologia.
A noção de pessoa é o valor-fonte, isto é, aquele no qual todos os demais
valores estão fundados. Ser que é e deve258 ser, pois seu ser é seu dever-ser, o
homem se caracteriza pela capacidade de dar sentido às coisas e ao seu existir,
pela capacidade de invenção e superação. Centrando a definição de pessoa nessa
capacidade de valorar e de realizar valores espirituais (Ibid., p. 214), nosso autor
afirma o homem como pessoa graças ao seu poder de sintetizar liberdade e autoconsciência e de constituir o mundo da cultura. Entendendo que a condição de
ser pessoa é intrínseca ao ser do homem e, por isso, universal, Reale diz que “se
surgem sempre novos valores (...) certos valores (...) uma vez revelados à consciência humana, tornam-se invariantes axiológicas, atuando universalmente ‘como
se’ fossem inatos”259.
Que é pessoa, para nosso filósofo? É o ser “ enquanto valoriza seu dever ser”,
é uma “unidade espiritual”, é “o espírito na autoconsciência de seu por-se constitutivamente como valor”260. Com essas características, pessoa é o homem, enquanto livre dos determinismos de comportamento que caracterizam o ethos do
REALE, M., Invariantes Axiológicas, in id., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa: Instituto de
Filosofia-Luso-Brasileira, 1994, p. 216 e segs.
257
GARCIA, A. M., A teoria dos valores de Miguel Reale. SP: Saraiva,1999, passim. Ver também
OLMEDO LLORENTE, F., “A filosofia crítica de Miguel Reale”. SP: Convívio, 1985, p. 121 e segs.;
MOOG, A. M., “A perenidade dos valores no pensamento de Miguel Reale”, in Actas do IV Colóquio Tobias Barreto. Viana do Castelo: IFLB, 1998, pp. 141-151; SEVERINO, A. J., A Filosofia
Contemporânea no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 152 e segs.
258
REALE, M., Filosofia do Direito. SP: Saraiva, 20ª ed., 3ª tiragem, 2002, p. 211 e segs.
259
Id. in NOBRE, M. e REGO, J. M., Conversas com Filósofos Brasileiros. SP: Ed. 34, p. 19 e segs.
260
REALE, M., Filosofia do Direito, p. 209.
256
177
animal. Pessoa é o ser capaz de criar novos modelos de comportamento, racionalmente fundados e apoiados no que Reale chama de invariantes axiológicas,
constantes axiológicas, valores universais. Tais valores universais transcendem
os contextos históricos, apesar de se expressarem na história. Representam a tomada de consciência de si própria da humanidade, como autoconsciência do
espírito, através do tempo e da vida da cultura. Desvelam-se gradualmente, mas
fundam-se no ser humano enquanto vinculado a um fim: a realização de sua
própria significação.
No belo texto de Ángeles Garcia, a discussão sobre a noção de pessoa aparece
desdobrada em duas instâncias: a antropológica e a ética. Na primeira, a estudiosa mostra a correlação, em Reale, entre racionalidade e liberdade. Mostra,
na segunda, as fontes de sua filosofia na tradição kantiana e fenomenológica,
especialmente em Husserl, Scheler, Ortega; assinala também a originalidade da
concepção de nosso autor, quando indica a inseparabilidade entre as noções de
homem, pessoa e valor261. Reale se inscreve, pois, numa orientação personalista
e estabelece laços entre a antropologia e a axiologia, que o conduzem a formular
um personalismo axiológico262.
Reale diz, repetindo Kant, que a racionalidade humana se mostra tanto no
campo da razão pura teórica quanto da razão pura prática263.No plano do conhecimento, o homem desvela sua humanidade, atribuindo sentido a si e ao
mundo;no plano da ação, inscreve-se no âmbito da vida ético-social, transformando o mundo, construindo a história. É no tempo que, pela racionalidade, o
indivíduo se expressa e se inscreve num contexto cultural, tomando decisões,
criando obras.
Assim como a racionalidade, a realidade essencial do homem é também conotada por sua liberdade 264, entendida como “liberdade espiritual,possibilidade
de escolha constitutiva de bens”265; sua realização mostra o ser humano como
inconcluso e aberto a possibilidades sempre diversas de existência. Vinculada à
razão, a liberdade mostra sua face essencialmente teórica, gnoseológica, como
poder de criar o novo, construir o mundo da cultura;e também uma face prática,
como experiência essencial da vida ética, dado que esta é entendida, por Reale,
como “ a realização da liberdade” (ibid., p. 219). Ética e Direito expõem, através
do tempo, o destino humano de racionalidade, que concilia liberdade e norma,
vida criadora no âmbito institucional e no da comunidade.
GARCIA, A. M., op. cit., p. 73 e segs. Ver também OLMEDO LLORENTE, op. cit., cap. VI,
passim.
262
GARCIA, A. M., ibid., cap. IV, passim.
263
REALE, M., op. cit., p. 211.
264
Id., Experiência e Cultura, p. 207 e segs.; id., Pluralismo e liberdade, p. 31 e segs.
265
Id., Filosofia do Direito, p. 212.
261
178
Votado a valores, através da ação o homem busca a realização de bens, escolhendo entre alternativas266. A abertura ao possível, a expressões sempre novas de
seu existir e de seu fazer é a característica da pessoa, que inscreve suas escolhas
no tempo. Essa consciência de si, dos valores e da própria capacidade de criar
mundos e história, constituem sua dignidade. Valor incondicionado, fim em si,
capaz de liberdade porque autônomo, assim é o ser humano, como já o concebera Kant.Mas, pretendendo ultrapassar o filósofo alemão, nosso autor assinala o
formalismo que para aquele caracterizava a razão prática, assim como o esquecimento da sua dimensão histórica267, propondo um salto qualitativo que, relacionado liberdade e valor, move a reflexão do campo da ética ao da ontologia268. Diz
nosso pensador: “O problema do valor é o problema próprio do homem e de sua
liberdade,por ser ele um ser finito, aberto a inumeráveis alternativas (...)”,269 uma
vez que o dever e o poder de agir nele se acham intrinsecamente imbricados270.
Assim, a finalidade da liberdade é o aperfeiçoamento moral do homem, a sua
realização como ser.
Para nosso autor, a liberdade é a “autoconsciência primordial” (ibid., p. 83),
relacionada com a circunstancialidade do sujeito. Ela constitui, assim o “fundamentum hominis”, que o torna um valor, caracterizado pela polaridade – capacidade de discernir e de escolher entre o positivo e o negativo – e pela inexauribilidade, isto é pela possibilidade inesgotável de realização de suas virtualidades
(ibid., p. 84). Assim, reconhecendo a liberdade como característica fundamental
do homem, nosso filósofo vê que ela é o que torna possível “existirmos como seres iguais uns aos outros, mas, ao mesmo tempo, diversos uns dos outros” (ibid.,
p. 85), como sujeitos individuais. Êsse reconhecimento fornece a “base ética de
tolerância e de convivência entre os homens” (ibid., p. 87). Ética e liberdade são
termos correlatos, não existindo separadamente. Embora seja uma qualidade essencial da pessoa, a liberdade se expressa no tempo; assim, Reale, inspirando-se
em Scheler, trata de “superar o abismo marcado entre o plano do ser e o do dever
ser”271 da afirmação de que “ o homem é e deve ser “ e também que “ o ser do
homem é seu dever ser”272, pois nele se conciliam o existir presente e a abertura
a novos modos de realização. O desdobrar-se, no tempo, da vida criadora, torna a história e a cultura, nas quais o fazer se expressa, o lugar de manifestação
por excelência da liberdade e da humanização do homem. Essa humanização se
Id., Experiência e Cultura, p. 172 e segs.
Id., Teoria Tridimensional do Direito, p. 134.
268
Id., Pluralismo e Liberdade, p. 34.
269
Id., Experiência e Cultura, p.196; id., Teoria Tridimensional do Direito, p.138; id., Filosofia do
Direito, p. 204 e segs.
270
Id., Verdade e Conjectura. Lisboa: Fundação Lusíada, 1996, pp. 74-75.
271
GARCIA, A. M., op. cit., p. 89.
272
REALE, M., Experiência e Cultura, p. 196.
266
267
179
expõe como afirmação da pessoa, tanto como sujeito individual quanto como
participante da vida coletiva, da comunidade.
No livro Experiência Cultura273, Reale trata da correlação entre liberdade e
cultura. Ato de transcendência, característico da vida intencional da consciência,
a cultura é a objetivação da vida do espírito e expressão da liberdade. Esta é instauração de um mundo, cujo correlato, no âmbito do sujeito individual, consiste
no reconhecimento de si como um valor. Liberdade não é, assim, apenas livrearbítrio, mas consciência de motivos e superação da facticidade, abertura permanente a novos modos de ser. Com Lavelle, Reale afirma o laço entre liberdade,
posibilidade e temporalidade; com Ferreira da Silva, Reale converge mostrando
o laço entre liberdade e vida criadora (ibid., p. 210). É por ser livre que a pessoa
humana se apresenta “como centro polarizador da experiência cultural”, diz nosso autor, evocando Georges Bastide; e é como ser livre que se expressa no tempo,
como bem viu Bergson, que o homem não dispõe ´de um feixe pré-ordenado
de valores ou de acontecimentos” mas “assume em si e por si os riscos de suas
opções” (ibid. p. 211).
A vida cultural implica, assim, na participação criadora do homem; apresentase como uma “ aventura”, decifrando “ sempre caminhos inesperados” que supõem, de um lado, valorização da tradição e de outro, ousadia e orientação da vida
política que garantam a coexistência de pluralismo e liberdade (ibid., p. 212).
Considerada na sua dimensão social, a liberdade é entendida por nosso autor
como participação274. O texto, ulterior à primeira versão do Experiência e Cultura, parte da consideração das transformações sociais e políticas da sociedade
contemporânea, que mostram uma tendência ao concreto, à interdisciplinaridade, à busca de uma visão de totalidade que integre as diferentes perspectivas
a respeito do mundo e do homem, sem anular a sua pluralidade e diferença. A
tendência de buscar a convergência e a possível complementaridade das perspectivas, de modo a ultrapassar oposições radicais e conflitos, expressa, na visão
de nosso autor, a liberdade do homem, compreendida à luz de uma ética da situação, que valoriza a circunstancialidade humana, numa perspectiva análoga à de
Ortega e, no plano da Filosofia do Direito, à de Ricasens Siches.
Id., Expérience et culture. Bordeaux: Ed. Bière, 1990, p. 209 e segs. Utilizamos aqui a edição
francesa, revista e ampliada em relação à edição brasileira, SP: Grijalbe / USP, 1977.
274
Id., O homem e seus horizontes. SP: Convivio, 1979, cap. V, p. 91 e segs.
273
180
Aspectos da teoria da justiça em Reale e Braz Teixeira
A justiça, compreendida como virtude e como instituição, é o ponto axial das
meditações de Miguel Reale e de Antonio Braz Teixeira, no âmbito da Ética e da
Filosofia do Direito. Na intersecção da Ética e Política, Ética e Direito, o tema é
abordado numa perspectiva histórico-crítica, pelos dois pensadores.
Para Reale, na sua Filosofia do Direito, o termo aparece relacionado com as
noções de bem comum, alteridade e valores, e é enfocado numa perspectiva histórica, que parte de Aristóteles e desemboca na discussão das principais teorias
contemporâneas.
Para Braz Teixeira, no texto Sentido e Valor do Direito, a justiça é a questão filosófica central do Direito, enquanto “valor ou princípio de que o Direito
depende”275. Desta forma, o Direito converge com a Ética, na meditação sobre a
justiça, embora a abordem de modos diversos.
Nos dois autores, a questão da justiça é o ponto nodal que articula o Direito, a
Axiologia e a Ética; em ambos,no plano ontológico, a reflexão sobre a justiça põe
em relêvo a consideração do homem como pessoa e as relações interhumanas.
Reale, na meditação sobre as relações entre justiça e bem comum, mostra o
estreito vínculo entre pessoa e sociedade, apoiando-se em Aristóteles, Scheler
e Unamuno. Para êle, a pessoa é o valor – fonte do Direito, uma vez que na sua
Axiologia Jurídica busca o justo como o valor mais alto, entendendo-o como “a
coexistência harmônica e livre das pessoas segundo proporção e igualdade”276.
A justiça é expressão do bem comum, intersubjetivo, e seu pressuposto é o
valor da pessoa humana, da liberdade, como fundamento da ordem jurídica.
Para nosso autor, a experiência jurídica é histórico-cultural, “de natureza ética” e
“normativa”, e “tem como valor fundante o bem social da convivência ordenada,
ou o valor do justo” (ibid., p. 248).
Direito e Moral, Direito e Ética são, contudo, distintos; para o filósofo, “a Moral cuida, de maneira direta, imediata e prevalecente, do bem enquanto individual e (...) o Direito se preocupa, de maneira direta, imediata e prevalecente, do
bem enquanto do todo coletivo, isto é, do bem comum ou justiça” (ibid., p. 249).
A Ética abarcaria a Moral e o Direito, sendo a “ciência normativa da conduta ou
do comportamento humano”.
275
276
BRAZ TEIXEIRA, A., Sentido e Valor do Direito, Lisboa, INCM, 2000, p. 38.
REALE, M., Filosofia do Direito, São Paulo, Saraiva, 1975, vol.1, p. 247.
181
A justiça, considerada como virtude, é mostrada em Aristóteles, Santo Tomás
e os juristas romanos; hoje, o sentido que o termo assume tem, segundo Reale,
um caráter objetivo, institucional, designando a ordem social que realiza o bem
comum, segundo a liberdade e a igualdade (ibid., pp. 250-251). Optando, contra
o individualismo e o coletivismo, por uma concepção personalista do homem,
Reale afirma que a plenitude deste é a pessoa, e nesse valor fundamenta o seu
culturalismo jurídico, no qual o tema da alteridade ocupa um lugar exponencial.
Para o nosso autor, a idéia de pessoa implica um elemento ético, na medida
em que, sendo um “eu”, acha-se em relação com outros “eus” e reconhece seu
valor. Daí o filósofo afirmar: “... a relação de um’eu’ com outro ‘eu’ (alteridade) é
o fundamento da Ética”277. Nosso pensador se apoia na Escola fenomenológica,
recorrendo, para suas análises, principalmente às obras de Scheler. Afirma a pessoa como valor supremo, em torno do qual gravitam constelações axiológicas,
apoiadas no verdadeiro, belo, útil, santo e bom, sendo este último valor ligado à
Ética, Moral e Direito278.
A dimensão pessoal funda a dignidade do ente “que é e deve ser, tendo consciência dessa dignidade” (ibid., p. 192). Para Reale, “o homem [é aquele] cujo
ser é seu dever ser” (ibid., p. 193); é quem institui, com sua atividade criadora,
um mundo “à sua imagem e semelhança”, o mundo da cultura. A pessoa, como
“autoconsciência espiritual, é o valor que dá sentido a todo evolver histórico, ou
seja, o valor a cuja atualização tendem os renovados esforços do homem em sua
faina civilizadora” (ibid., p. 194).
É nesse valor e na consideração da relação pessoa-sociedade, pessoa-alteridade, que o autor fundamenta a teoria do culturalismo jurídico personalista (ibid.,
pp. 200 e 254). Criador de cultura, de bens, o homem tutela o que cria, o que realiza. O Direito consiste nessa busca de tutelar os bens, expressando o justo, isto
é, a harmonia entre “liberdade, normatividade e poder” (ibid., p. 199). Enquanto
instituição, a justiça é a expressão dos valores de convivência; “pressupõe o valor
transcendental da pessoa humana”, fundamentando toda a ordem jurídica (ibid.,
p. 247). Realizando o justo, o Direito expõe a sociedade como comunidade concreta, comunhão de fins, cooperação e coexistência de pessoas, e ordena o “bem
social ao bem comum”, visando a “justiça nos limites das circunstâncias históricosociais” (ibid., vol. 2, p. 621).
Combinando a abordagem histórico-crítica, a descrição fenomenológica e a
hermenêutica, Reale estabelece sua teoria da justiça, ponto de encontro da Axiologia, Ética e Direito.
Braz Teixeira aborda o tema da justiça na sua correlação: a) com a Filosofia do Direito, uma vez que aquela constitui a finalidade desta; b) com a Ética
Id., ibid., p. 254. Ver tb. REALE, M., Verdade e Conjectura, Lisboa, Fundação Lusíada, 1996,
passim.
278
Id., Filosofia do Direito, p. 215.
277
182
– distinguindo-a da Moral –, uma vez que a Ética Social aborda o problema da
justiça, confluindo, assim com a Filosofia do Direito; c) com a Axiologia, dado
que o valor justiça constitui o fundamento do Direito; d) com a Ontologia, posto
que esta reflete sobre o homem como pessoa, consciência e liberdade, capaz de
relações intersubjetivas e de criação de cultura.
A meditação do pensador português inscreve o tema da jusiça no contexto
mais amplo da discussão sobre o sentido e o valor do Direito, partindo de uma
caracterização da ontologia do Direito e desembocando numa reflexão sobre o
conteúdo axiológico que o caracteriza.
A metodologia histórico-crítica empregada por nosso autor o leva, no exame
da ontologia do Direito, a perpassar as orientações contemporâneas a repeito do
assunto, para, em seguida, estudar as convergências entre a Filosofia do Direito
e a Antropologia Filosófica, no que tange às relações entre o homem e a cultura. Para o filósofo, “o Direito é uma realidade radicalmente humana (...) num
duplo sentido: (...) é criação do homem e (...) refere-se direta e exclusivamente
à vida do homem”279. O homem, ser de conhecimento e ação, orienta-se por
valores, dentre os quais o verdadeiro, o belo, a justiça e a liberdade são os mais
importantes. No exame do tema, Scheler e os autores da Escola fenomenológica
são frequentemente citados, de modo que as fontes utilizadas por nosso autor
confluem com as utilizadas por Reale. Mas estão presentes, também, além de
Scheler, Hartmann, Ortega, autores como Romero, Cassirer, Berdiaeff, Zubiri,
Buber, os portugueses Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra, o brasileiro Vicente
Ferreira da Silva.
Para Braz Teixeira, o homem é pessoa, realidade espiritual, valor e fim em si,
expressão do espírito e da liberdade (ibid., p. 116); é, ainda, um ser social, dialógico, cujo verdadeiro mundo é o “da relação ‘eu-tu’” (ibid., p. 117).
Mostrando as possibilidades de aproximação e também a distinção entre Ética e Direito, põe em relêvo o tema do justo, critério de valor para solucionarmos
os inelutáveis conflitos de interêsses que ocorrem na vida social.
Caracterizado pela sua dimensão axiológica, pois pressupõe a liberdade e regulamenta condutas segundo princípios e valores, o Direito tem também uma
dimensão temporal, histórica. Daí o filósofo dizer: “Partindo da Justiça como
princípio, valor ou ideal, o Direito é, pois, o meio de que o homem se serve para
alcançar uma adequada ordenação de sua conduta social com o fim de coordenar
o exercício da liberdade de cada um com a liberdade dos restantes, realizando,
desse modo, o bem comum da sociedade política” (ibid., pp. 136-137).
Se o Direito converge com a Moral e a Ética, é, contudo, distinto destas. Ordem normativa, como o Direito, a Moral tem por objeto “o conhecimento de
como se comportam os homens (...) [é] ciência dos costumes...”, enquanto a Ética
279
BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., p. 103.
183
é “ciência especulativa sobre o dever ser da conduta em função do Bem” (ibid.,
p. 141).
Examinando o Direito como ordem normativa, Braz Teixeira se afasta tanto
dos teóricos que “identificam Direito com a Moral, considerando o primeiro
uma parte ou aspecto da segunda “como dos que distinguem radicalmente as
duas ordens280.
Nosso autor aponta quatro tópicos de distinção entre Direito e Moral: esta
última considera a conduta levando em conta “o sentido que tem para a vida do
sujeito”, vinculando-se à consciência individual,à intenção, à interioridade, e “ ao
Direito apenas importa o alcance ou a dimensão social dessa mesma conduta”,
enquanto leva em conta “ o bem social ou o bem comum”, a exterioridade da
conduta (ibid., pp. 145-147).
Ademais, a Moral se caracteriza pela unilateralidade, a sanção íntima, e “o
Direito se define (...) pela sua bilateralidade atributiva, em que a cada direito
corresponde sempre um dever, e vice-versa” (ibid., p. 221). Mas dialogam, Direito e Moral, na medida em que a concepção moral de uma época se expõe no
plano jurídico.
A reflexão do filósofo português sobre a ontologia do Direito culmina na
Axiologia do Direito. Esta é entendida como meditação sobre o justo natural e a
idéia de justiça, discussão sobre o fundamento do Direito.
A abordagem histórico-crítica da idéia de direito natural leva Braz Teixeira a
identificar os elementos comuns às doutrinas jusnaturalistas, partindo das concepções de natureza, na Antiguidade, Idade Média e pensamento moderno. Para
o autor, não se trata de fazer mera cronologia, mas de, prescindindo “de uma
visão puramente cronológica e historicista da sucessão das doutrinas...”, estabelecer uma tipologia das concepções.
Estudando a questão na filosofia contemporânea, Braz Teixeira perpassa as
teorias da escola neo-kantiana, da existencial e de seus críticos, como Kelsen,
Bobbio, Alf Ross. Enfoca ainda os autores que discutem a própria possibilidade
da existência de direitos naturais, como Hart e a fundamentação do jusnaturalismo na natureza das coisas, como Reinach, Welzel e Radbruch propuseram,
dentre outros.
É importante reter, desse panorama histórico-crítico é que o exame, feito pelo
autor português, das concepções tradicionais e modernas, põe em relêvo que “o
Direito se inscreve no domínio da cultura e das criações espirituais, apresentando, por isso, uma essencial dimensão axiológica, a referência constitutiva e
fundante a valores, princípios, idéias ou ideais”. Mais ainda: que o problema da
Filosofia do Direito é o problema da justiça, “ (...) entendida como valor, princípio, a idéia ou o ideal de que o Direito enquanto ser depende” (ibid., p. 240).
280
Id., ibid. Na primeira perspectiva, nosso autor inclui Dias Ferreira e Farias Brito; na segunda,
Thomasius, Kant, Kelsen e Hart.
184
A justiça é enfocada como virtude e como princípio, sendo a primeira, a perspectiva da Ética e a segunda, a da Filosofia do Direito e da Axiologia. Como
virtude diz respeito à ação e às relações interpessoais. Em uma perspectiva histórico-crítica ou “ tipológica”, como prefere denominá-la, nosso autor estuda a justiça como princípio, valor ontológico. Confronta tal enfoque com a tradição que,
a partir dos sofistas e ressoando em Hume, Bentham, Mill, considera a justiça
como convenção humana. Finalmente, apresenta as teorias da justiça no pensamento contemporâneo, pondo em evidência que a atualidade do tema se deve às
“aporias com que se defronta (...) o pensamento jusnaturalista”, à crise do Estado
e à necessidade de se “garantir certos princípios essenciais nas diversas ordens
jurídicas” (ibid., p. 250). Reconhece cinco grandes orientações sobre o assunto,
na filosofia atual: as concepções emotivistas, representadas por Kelsen e Alf Ross;
as formalistas, de que del Vecchio, Perelman e Walzer seriam os expoentes; as
historicistas, com Miguel Reale, Robert Nozick; as teleológicas, repesentadas por
Luigi Bagolini, Ilmar Tammelo, Emil Brunner, Sérgio Cotta; e, as deontológicas,
das quais a mais relevante é a teoria de John Rawls. Aponta também as críticas que Rawls recebeu de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Paul Riceur, de
modo a apresentar um vasto panorama do tema.
Estudioso da obra de Reale, que aproxima da del Vecchio “pela sua matriz
neo-kantiana”, mostra que o filósofo brasileiro não considera possível “ alcançar
uma idéia absoluta de Justiça, independente das conjunturas históricas” e que a
justiça “possibilita que os restantes valores valham”, garantindo “uma composição isenta e harmônica de interêsses”, de modo que tratando “igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais (...) as desigualdades progresivamente diminuam” (ibid., p. 251). Para Reale, segundo Braz Teixeira, a justiça é idéia transcendental, cultural e existencial, correlacionada com a de pessoa, “valor fonte
de todos os valores”, que se realiza “como intersubjetividade, de que a Justiça é a
medida social” (ibid., p. 277).
Braz Teixeira se interessa pela justiça “num sentido objectivo, como valor,
princípio ou idela e não subjectivo, como virtude”. Partindo da concepção tradicional, inspirada em Aristóteles, põe em relêvo as relações entre justiça e Direito,
lei, igualdade, equidade (ibid., p. 282). Para nosso autor, a justiça é o princípio
que sustenta o Direito, e este deve ser aferido por aquela. O fundamento da justiça é o respeito à pessoa humana, à sua liberdade de realizar-se como tal. A
qualidade dominante da justiça é, então, a afirmação da liberdade, da igualdade.
Esta não pode ser entendida como igualdade matemática, mas como igualdade
proporcional, imparcialidade, equidade.
O filósofo português identifica justiça e equidade, uma vez que a justiça, sendo sempre concreta, não pode ter como critério a igualdade matemática, porque
não há igualdade real de condições e oportunidades, nem a lei, dada a generalidade que que caracteriza esta última (ibid., p. 288).
185
O exame do tema prossegue, na obra de nosso autor, através da consideração
dos atributos da justiça, sua gnoseologia e sua relação com outros valores.
Atributos da justiça são a insubstancialidade, pois ela é valor-horizonte, nunca plenamente realizado; a bilateralidade, uma vez que implica as relações interhumanas; a equivalência ou proporcionalidade, equilíbrio entre as partes envolvidas. Propondo um normativismo concreto, Braz Teixeira afirma que são mais
importantes, na realização da justiça, o juiz do que o legislador, a jurisprudência
e o costume que a lei e a norma.
Sendo valor, princípio, a justiça não é objeto de um conceito, de uma definição, mas deve ser apreendida na existência, de modo intuitivo-emotivo. Relaciona-se “com a ordem, a paz, a liberdade, o respeito pela personalidade individual, a
solidariedade ou a cooperação social e a segurança” (ibid., p. 290).
A meditação metafísica sobre a justiça, que é o objetivo último de nosso autor, implicaria a interrogação sobre Deus, o mal, a discussão das “relações entre
Justiça e a caridade”, a ontologia da liberdade, de modo a se compreender o tema
no horizonte do significado do homem no universo.
Nos dois filósofos, Reale e Braz Teixeira, a reflexão sobre a justiça tem como
denominador comum a referência à obra de Scheler, à fenomenologia existencial. Para ambos, a pessoa humana é o ponto focal: é o valor fonte de todos os
demais valores, segundo Reale; é o valor que possibilita ao homem sua realização, assevera Braz Teixeira. Os dois reconhecem, assim, o homem como o polo
de referência do tema da justiça.
Reale desdobra sua reflexão no horizonte de uma meditação sobre a cultura,
cuja finalidade é expressar o bem comum, a dimensão espiritual e criadora do
homem. Braz Teixeira aprofunda sua discussão do assunto, inscrevendo-a no
horizonte de uma metafísica de cunho existencial, que põe em primeiro plano as
relações do homem com o mundo, com os outros e com Deus.
186
A filosofia do Direito em Aquiles Cortes Guimarães
Aquiles Cortes Guimarães nasceu em 1937 em Aimorés, Minas Gerais. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense, fez o Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1977 e doutorou-se em Filosofia pela Universidade Gama Filho, em 1982. Foi professor da UERJ e coordenador
do Mestrado em Direito desta Universidade, de 1988 a 1992. E coordenador da
pós-graduação em Filosofia da UFRJ, de 1987 a 1999, onde leciona atualmente.
Estudioso da fenomenologia husserliana, propõe uma interpretação da fenomenologia jurídica, inspirando-se em Husserl, Scheler e integra, na sua interpretação, alguns conceitos importantes de Miguel Reale, como o de invariantes
axiológicas, bem como algumas contribuições de Ricoeur, no que tange à meditação sobre o justo.
Preside o conselho editorial da revista Fenomenologia e Direito, da Escola
de Magistratura Regional Federal da 2ª Região EMARF, editada em cooperação
com o programa de pós-graduação em Filosofia da UFRJ, o qual conta com contribuições de especialistas brasileiros e estrangeiros de renome internacional.
Na obra Lições de Fenomenologia Jurídica editada em 2013281, estão reunidos
seus trabalhos sobre Fenomenologia e Direto.
Vamos nos ater à apropriação das perspectivas husserlianas feitas pelo autor
brasileiro, de modo a evidenciar os conceitos-chave que utilizará para elaborar
uma teoria fenomenológica do Direito que integra, numa perspectiva original,
a inspiração husserliana e a recente evolução da fenomenologia na direção de
um diálogo com a ontologia hermenêutica, com pontos da analogia com a via
ricoeuriana.
O ponto de partida de Cortes Guimarães é a caracterização da fenomenologia
de Hussel, situando sua contribuição para a filosofia do século XX. O pensador
alemão é considerado por Cortes Guimarães como “o filósofo mais produtivo
e original do século XX” (ibid., p. 1), cuja influência repercutiu durante todo o
século passado e continua a ressoar na filosofia do início do século XXI.
É examinando a filosofia contemporânea que Husserl se referirá, nas Investigações Lógicas, escritas entre 1900 e 1902, à exigência da superação dos impasses
da filosofia da época, marcada pela redução do saber a um pensar do tipo científico, caracterizado pela razão calculadora e técnica.
281
GUIMARÃES, A. C., Lições de Fenomenologia Jurídica. RJ: Forense Universitária/GEN, 2013.
187
É sob o signo da crise, não apenas da razão, mas da humanidade, assinalada
na célebre conferência de Husserl A Crise da Humanidade Europeia e a Fenomenologia e também no A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, que se desenvolverá a reflexão do pensador brasileiro.
A crise assinalada por Husserl consiste, diz Cortes Guimarães, na “matematização e logicização do mundo”; na desnaturação do real. Para superá-la, Husserl
propõe o retorno “às coisas mesmas”, sem pressupostos, considerando o que é
dado à consciência, no seu aparecer perante ela. Trata-se, para o pensador alemão, de fazer da filosofia uma “ciência de rigor não mais comprometida com
quaisquer atitudes especulativas e abstratas” (ibid., pp. 2-3), mas com o mundo
real, tal como este se mostra à consciência intencional, isto é, à consciência enquanto tende para o mundo, considerado o correlato de seu existir, o polo atrativo de seu contemplar.
A obra de Husserl é uma severa crítica da crise epistemológica do final do
século XIX, que o conduziu a repensar o papel da filosofia perante o saber científico. Husserl viveu na época caracterizada pelas especulações que conduziram
ao surgimento do neo-positivismo do Círculo de Viena.
Para Husserl, fazer da filosofia uma ciência de rigor é buscar os fundamentos
do conhecimento filosófico, postulando a problemática epistemológica do “voltar às coisas mesmas”, eliminando o peso da tradição, da história e da cultura
para apreender o objeto na sua essência, no seu eidos ou idéia. A característica do
sujeito humano, consciência que apreende o mundo, é estar sempre relacionado
com as coisas; é tender para o mundo, ser intencional. A intencionalidade da
consciência é a característica que faz com que só exista mundo para uma consciência, que por sua vez só existe como polo doador de sentido.
Husserl chama de noema, objeto intencionado, essa permanência do mundo
como o que aparece para a consciência. A atividade própria do sujeito, enquanto
sujeito cognoscente, é chamada por Husserl de noésis. O par noésis-noema possibilita a descrição do mundo como fenômeno, como aparecer que no próprio
manifestar-se revela a sua essência (eidos) (ibid., p. 12).
Fenomenologia é pois a atitude filosófica da descrição dos fenômenos mediante um método, que parte da correlação entre a consciência e o mundo, afirmando só existir consciência como testemunha de um mundo e mundo como o
intencionado pela consciência, expondo a essência universal, o eidos, presente
nos objetos intencionados, nos fenômenos que aparecem à consciência.
Descrever as essências dos objetos, do que aparece à consciência, é eliminar
as significações acessórias envolvidas nos “objetos e mostrá-los na sua visada
universal e necessária” (ibid., pp. 8-9; p. 12).
Husserl propõe a volta “às coisas mesmas”, para apreendê-las no seu aparecer
originário à consciência doadora de sentido, descrevendo o invariante originário
188
presente em toda manifestação: “Doar sentido significa (...) um empreendimento
de redescoberta do mundo.
O que é a essência do mundo assim abordada? É a “ideia universal sobre
os objetos”, apreendida no que é dado à consciência enquanto intencionalidade
(ibid., p. 12).
Husserl, diz Cortes Guimarães, no A crise das ciências europeias..., no A filosofia como ciência de rigor, fala da epoché, da suspensão do juízo sobre o objeto,
que significa no que tange ao sujeito cognoscente, recusar a tradição, as ideias
pré-concebidas e tentar intuir diretamente o que à coisa é; no que diz respeito
ao mundo, epoché significa deixar de lado os seus aspectos imediatos e empíricos, para alcançá-lo como noema, “unidade significativa ‘descoberta’ pela noésis”,
pela intuição.
Assim, diz Cortes Guimarães, no pensar husserliano, “intuição e intenção
operam juntas”. A intenção da consciência se dirige aos objetos, dos quais descrevem as essências como expressão “de conexões universais e invariáveis nos
objetos” (ibid., p. 13).
Há, no pensar husserliano que pretende fundar A filosofia como ciência rigorosa, a busca de critérios para alcançar seu objetivo. Não basta a epoché, a suspensão do juízo que “põe entre parênteses” os significados empíricos do objeto,
para voltarmos “às coisas mesmas”, na sua pureza originária. É preciso que a
descrição das essências apreenda o eidos, a ideia presente nos fenômenos que se
mostram à consciência e que nesse aparecer patenteiam seu ser. Trata-se, então,
de apreender o mundo, não na sua materialidade imediata, mas como dado.
Trata-se de buscar, nas diferentes perspectivas sobre os fenômenos, que expressam o testemunho dos sujeitos individuais acerca do mundo, os denominadores comuns a essas descrições, os invariantes presentes nas descrições do
mundo. Esses invariantes constituem o eidos, intuído nos diferentes objetos que
se mostram à consciência. É preciso alcançar o mundo como ideia, a partir das
vivências originárias que o homem tem dele. Trata-se de dizer o eidos, tal como
aparece não mais apenas para as consciências individuais, mas para o Eu Transcendental – que não é ninguém em particular, mas o nome que Husserl dá à
função do conhecimento da espécie humana.
Afirmando que o método de Husserl é de uma grande fecundidade, servindo
“a todas as vertentes do saber” (ibid., p. 16), Cortes Guimarães trata de aplicá-lo
ao campo do Direito, visando apreender o seu eidos.
No emprego habitual do termo feito pelos juristas, o objeto do Direito é “a
norma, o regulamentado, o estatuído” pelo Estado, como garantia última da justiça e da segurança dos bens.
Perguntando “o que é o ser do Direito?”, Cortes Guimarães assinala que o ser
do Direito é definido pela sua finalidade: “abrigar a justiça” (ibid., pp. 16-17); in-
189
daga também como os objetos constituídos no campo normativo se expressam.
Para nosso autor, objeto jurídico são as Instituições do Direito e todo o universo que passa ser submetido “à visada e ao controle da ordem jurídica”, tudo que
possa ser descrito como “universo da vivência jurídica”, ou seja, como pertencente ao “mundo da vida do Direito” (ibid., p. 17). É nesse horizonte que deve ser
investigada a essência do Direito e desdobradas suas significações.
Cortes Guimarães transpõe, como parece evidente, o conceito de Lebenswelt
husserliano ao campo dos objetos jurídicos, propondo o mundo da vida do Direito como campo próprio de investigação do filósofo do Direito.
A intencionalidade da consciência visaria, aqui, o desvelamento da essência
dos objetos jurídicos a partir do seu aparecer concreto, as normas. Para tanto, é
preciso investigar, diz nosso autor, “o que faz com que o Direito seja Direito (...)”;
“Descobrir o sentido do Direito”, mediante a “compreensão e interpretação da
vivência jurídica” (ibid., pp. 18-19).
O Direito, no seu aparecer, mostra-se como sustentáculo da ordem jurídica,
assegurando a possibilidade de convivência entre os homens, numa sociedade
caracterizada pelo conflito inelutável de perspectivas e interesses.
O jurista diz como funciona a ordem jurídica; o filósofo esclarece os sentidos dessa ordem, voltando-se para a apreensão de sua essência, embora partindo “dos fatos ou atos [aos quais essa ordem] se destina” (ibid., p. 19). Trata de
compreender e investigar o Direito em vista de sua finalidade: “a realização da
justiça” (ibid., p. 23).
Para Cortes Guimarães, a hermenêutica jurídica é “uma derivação da (...)
hermenêutica aplicada”, vista à luz do pensamento hermenêutico “de Heidegger,
Gadamer e Paul Ricoeur” (ibid., p. 25), que orienta a leitura do processo histórico pelo qual passamos e que se caracteriza pela busca de compreensão da vivência contemporânea em geral e não apenas “da vivência jurídica” (ibid., p. 27).
Partindo da crise histórica vivida por Husserl, que levou o grande pensador e
refletir sobre o significado da crise da razão que se apresenta no início do século
XX e a propor uma nova tarefa para a filosofia, relegada esta como o fora pelo
positivismo e cientificismo à mera função de crítica das ciências, Cortes Guimarães repassa os conceitos fundamentais da fenomenologia husserlliana. Assim,
contrapõe doxa e episteme, assinalando os termos novos que Husserl empregou,
e os utilizando para examinar a essência do Direito: fenômeno, intencionalidade,
objeto intencional, redução eidética, redução fenomenológica, redução transcendental, eu transcendental, mundo da vida, intuição, epoché, noesis, noema.
Para ele, a essência do Direito é expressa, antes de mais nada, pelo sentimento
do Direito, que busca a realização da justiça a partir da pré-compreensão do justo
e do injusto. Diz nosso autor: “A essência do Direito não está na lei, mas na ideia
190
de justiça” (ibid., p. 42), que reconhece o valor da pessoa humana e se mostra
através de regras de conduta que favorecem a realização do justo como valor.
A proposta de Cortes Guimarães é elaborar uma teoria fenomenológica do
Direito, centrada na apreensão de uma eidética do Direito. Ciência cultural, o Direito funda-se no pressuposto de uma eidética – termo grego usado por Husserl e
que significa ideia, conteúdo inteligível, reconhecimento intuitivo das essências.
A eidética sustenta o Direito. Trata-se de assegurar, de viabilizar a coexistência
entre seres humanos “como polo de significações a partir do qual é estruturada
a ordem jurídica (...) esquema normativo de vida dos povos civilizados” (ibid.,
p. 178).
A ordem jurídica é o conjunto de normas que o Estado dita, a partir do Direito, buscando realizar “a ideia do Direito e o ideal de justiça” (ibid., p. 179). Para
alcançar tal resultado, é preciso investigar o que é o Direito, desvelar as estruturas ideais e necessárias que subjazem à sua expressão como fato e como história,
ou seja, como fenômeno de vida social.
Fazendo a epoché da dogmática jurídica, Cortes Guimarães busca compreender o fenômeno jurídico na sua manifestação originária: assegurar a existência
humana como coexistência.
No seu aparecer fenomênico, o Direito se mostra na sua positividade; mas na
sua significação, o universo jurídico se mostra como aquilo que visa possibilitar
uma coexistência pacífica e civilizada entre os homens, nas sociedades que se
caracterizam pelo conflito. O ver fenomenológico, ao apreender os problemas jurídicos, aborda não apenas o Direito atualmente vigente, mas também considera
as teorias sobre o Direito que emergem ao longo da história. Trata, assim, de evidenciar os sentidos que as teorias jurídicas imprimiram “às instituições ordenadoras das relações intersubjetivas” (ibid., pp. 188-189). O que Husserl pretendia
era fundamentar, não só a filosofia, mas “as ciências do espírito ou da cultura, às
quais pertence o Direito” (ibid., p. 191), diz o pensador brasileiro.
Contrapondo-se às teorias vigentes na segunda metade do século XIX: naturalismo, cientificismo, positivismo, que enfatizavam o método das ciências
empíricas como único método válido para a constituição de um saber científico, Husserl evidenciou “a riqueza infinita da intencionalidade da consciência”,
fazendo a crítica dos fundamentos do conhecimento científico que encobriam
o mundo da vida e reduziam o conhecimento das ciências humanas a novas
especulações sem rigor.
Para Cortes Guimarães, uma teoria fenomenológica do Direito, inspirada em
Husserl, deve considerar os fenômenos jurídicos como se manifestam. Estes expõem a existência de uma “razão legisladora” que “ordena os sistemas jurídicos”
à luz do “mundo do dever-ser” (ibid., p. 197).
Os problemas centrais da teoria fenomenologia do Direito na opinião do
pensador brasileiro são os seguintes:
191
- estabelecer laços entre a universalidade dos fenômenos jurídicos apreendidos “nas suas essências e significados e a singularidade dos indivíduos
que constituem a teia das relações jurídicas”.
- buscar o encontro das verdades sentidas, expressas nas conexões das
essências com a estrutura normativa que os regula” (ibid., p. 199).
O campo do Direito, a “região ontológica” que ocupa, é o que abriga os “objetos revestidos de juridicidade” (ibid., p. 201). Que é a juridicidade? Não é só
a qualidade do que é jurídico; “é o foco intuitivo da essência mais universal do
Direito (...) a essência suprema que orienta as conexões de essências nos planos
factuais, normativos e hermenêuticas, na explicitação dos modos de ser dos objetos jurídicos” (ibid., pp. 201-202).
Um fato é jurídico porque na sua essência está conectado com a juridicidade;
a norma só efetiva a juridicidade no âmbito das relações jurídicas. A referência
da juridicidade não é só o Direito, “mas o ideal da justiça, concebida como uma
estrutura de valores”, alcançada numa intuição emocional que sustém o justo.
A juridicidade é o ato da consciência valorativa, desvelado no mundo da vida.
Provém da intencionalidade valorativa, que explicita “a tessitura normativa receptiva de valores” (ibid., p. 204). Ela é a garantia da normatividade; é a medida
do justo, quando confere caráter jurídico à conduta humana (ibid., p. 205). E
ainda: “O que confere legitimidade à positividade normativa do sistema jurídico
é a ideia de juridicidade como essência do justo (...). Por isso (...) toda norma injusta carece de juridicidade, porque desvinculada da essência do justo” (ibid., p.
207). Daí Cortes Guimarães afirmar que a juridicidade é “a medida (...) da justiça
possível, ou do justo como valor” (ibid., p. 212).
A fenomenologia é, para nosso autor, uma via para a compreensão da estrutura significativa dos fatos, ao descrever seu conteúdo axiológico. Permanentes,
os valores expõem as essências imutáveis dos objetos, intuídas emocionalmente.
Deste modo, o problema da realização dos valores torna-se a questão central da
hermenêutica jurídica. Trata-se de incorporar os valores nas leis (ibid., p. 215) de
modo que a vida jurídica se mostre como uma tessitura de regras legais destinada a garantir e expressar valores que são progressivamente desvelados ao longo
do processo civilizatório (ibid., p. 218).
As normas visam à justiça, sua realização no mundo concreto. À hermenêutica jurídica cabe assinalar os princípios que fundamentam as constituições e
garantem a cidadania e a paz social.
Para Cortes Guimarães, o fio condutor de sua teoria fenomenológica do Direito é a ideia de juridicidade, que legitima as relações jurídicas no plano dos
fatos (ibid., p. 221). Graças a esse conceito, é possível distinguir entre legalidade e
legitimidade. Legítimo é o que favorece a coexistência pacífica entre seres humanos, tornando o Estado de Direito a via para a realização do justo. A lei é neces192
sária, porque no mundo de facticidade, ela é a garantia de solução pacífica dos
conflitos, de modo a preservar a liberdade de cada um e de todos. Mais ainda:
“A formação do Direito é descobrir, perceber e preservar valores” (ibid., p. 224),
uma vez que o que fundamenta os sistemas jurídicos é o valor.
Daí Cortes Guimarães dizer que os valores se integram no sistema jurídico
através da teia normativa, meditada por uma razão jusfilosófica que apreende o
caminho possível para superação dos conflitos; daí valores como vida, liberdade,
honra, dentre outros, exigirem a proteção jurídica.
A tarefa de uma fenomenologia do Direito, na reflexão de Cortes Guimarães,
está fundada na “fenomenologia de Edmund Husserl (...) mas também nas investigações (...) de seus discípulos Max Scheler (...) e Nicolai Hartmann” (ibid.,
p. 228).
Entendendo a vida, liberdade, consciência como pilares do direito natural,
fundamentando o próprio Direito como instituição, Cortes Guimarães mostra
que essas noções constituem, no campo do saber jurídico, exigências irrecusáveis
e princípios auto-evidentes, que põem em relevo a dignidade humana e o valor
da coexistência.
Referindo-se à dignidade da pessoa humana, nosso autor afirma que o significado da justiça se apoia nesse valor. Pessoa é o homem, indivíduo único, irrepetível, valor-fonte. Seu direito decorre de sua estrutura ontológica e não das leis.
Em resumo, na fenomenologia do Direito de Aquiles Cortes Guimarães, a
problemática epistemológica que põe a questão: que é o Direito e qual seu valor
como saber?, inspira-se na meditação husserliana, na fenomenologia de Scheler,
na tradição kantiana e na reflexão de Miguel Reale sobre Invariantes axiológicas.
Para Cortes Guimarães, falar sobre a fundamentação do Direito é falar sobre o
homem como pessoa, capaz de distinguir valores, de ser-com-os-outros, de serno-mundo e nele construir sua apreensão da justiça como o que torna imperativas a lei e a norma.
O esforço sempre renovado, por parte do homem, ao longo de seu existir no
tempo, de expressar civilização, liberdade e convivência pacífica, apesar da precariedade constitutiva de seu ser e dos conflitos inelutáveis que encontra, quando busca superar essa fragilidade – é o desafio essencial com que se depara desde
os primórdios da humanidade.
A fé na razão, na dignidade e valor do homem, a busca da justiça são os caminhos que afirmavam, ao longo da história o valor e o sentido do Direito.
193
194
O conceito de razão atlântica em António Braz Teixeira
I. Introdução
O pensamento de António Braz Teixeira representa uma das mais interessantes contribuições da reflexão contemporânea em Portugal. Capaz de uma
amplitude incomum de percepção do cenário actual da Filosofia, nosso autor
se inscreve no horizonte e confluência da feno­menologia existencial, da hermenêutica, adoptando uma perspectiva de­cisivamente metafísica, de inspiração
agostiniana.
O entrelaçamento dessas vertentes ocorre no seu projecto de com­preensão do
pensamento português e de seu desdobramento no Brasil. Parte da ideia de que a
filosofia, embora seja universal como actividade do espírito humano, se expressa
como pensar em situação, dialogando com seu tempo e com seu mundo, com
os problemas específicos em que cada homem se encontra, num momento dado.
Essa expressão acontece através da linguagem e é por meio das diversas línguas
que o filosofar expõe seu horizonte de reflexão, de racionalidade.
Enraizado no mundo, é pela mediação de uma língua, de um contexto histórico-cultural, que o homem diz a si mesmo sua existência, sua circunstância.
Levando em conta essa característica do ser humano, Braz Teixeira toma
como ponto de partida do seu filosofar a condição do homem português e do
homem brasileiro, que têm língua e tradição cultural-comuns. Longos anos de
estudo de filosofia comparada levaram nosso autor a ser um dos idealizadores
e fundadores do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira cujo foco de atenção é o
exame dos pontos de convergência e também das diferenças entre o filosofar dos
dois países.
Além da consideração dos pontos de convergência dessas filosofias, tanto ao
longo dos séculos de história comum, quanto na contemporaneidade, Braz Teixeira trata de elencar os autores mais significativos que marcaram o diálogo e o
confronto de posições, no decorrer do tempo. Procura ainda explicitar a originalidade da contribuição desses pensado­res à filosofia mundial, bem como estabelecer categorias que permitam evidenciar seu enfoque característico.
Uma dessas categorias é a de razão atlântica.
Por razão atlântica nosso autor entende uma racionalidade aberta, que engloba a razão discursiva, mas também seus pólos complementa­res: a intuição, a
195
imaginação, o sentimento, a percepção; tal racionalidade caracterizaria a inclinação marcante, seria o traço distintivo do filosofar em Portugal e no Brasil. Seu
pressuposto é que o real é cognoscível e que a realidade não se esgota na alçada
da experiência sensível e imediata, mas aponta para o invisível, a radical origem,
«o mistério ou o enigma, no qual e pelo qual o ser e a verdade, simultaneamente
se ocultam e patenteiam ao espírito do homem»282. Tal racionalidade supõe a
dimensão metafísica como contrapartida invisível da realidade visível. Apoia-se
nas contribuições da experiência, nas suas múltiplas formas; na sensação, intuição e imaginação, estabelecendo um laço com o irra­cional pré-reflexivo, mas
também com o transracional, com a investiga­ção sobre o ser e a verdade.
Recorrendo a D. Duarte, que no século xv aponta a saudade como a dimensão característica de um «saber do coração», especificamente português, nosso
autor mostra a ampliação desta ideia na nostalgia do divino, posta exemplarmente por Camões, Frei Agostinho da Cruz, D. Francisco Manuel de Melo, e por
uma filosofia da história providencialista, de cariz agostiniano, que perpassa a
filosofia portuguesa em diver­sos momentos.
A dimensão metafísica do real, o problema do sagrado originário, a questão
do mal, o recurso ao paradoxo para provocar a superação dos quadros estreitos
da razão reflexiva – temas presentes na tradição mís­tica cristã medieval – encontram, na grande poesia portuguesa, de Camões a Pessoa, e nas filosofias de
inspiração neoplatónica e agostiniana de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra,
Álvaro Ribeiro, José Marinho, a expressão de um pensar original.
A razão atlântica é o nome, para Braz Teixeira, de um tipo de pen­sar que reconhece «a profunda e radical relação entre a razão e o irra­cional» buscando «a
complementar unidade dos aparentes ou supostos contrários numa ontologia do
Espírito» (ibid., p. 8), «o diálogo com as múltiplas formas da experiência», pondo
em relevo a meditação sobre o amor, «a alegria, a dor ou a saudade» (ibid., p. 9).
Essa racionalidade aberta ao mistério, à transcendência; esse poetar-pensante,
onde a filosofia e a poesia se en­contram na dimensão criadora da investigação do
ser originário e da realização da obra de arte tem sua expressão contemporânea
nas filosofias dos brasileiros Vicente Ferreira da Silva e Renato Cirell Czerna
e dos portugueses Afonso Botelho, António Quadros, Eudoro de Sousa, Agos­
tinho da Silva; na literatura de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna e na poesia de
Pessoa. Os dois primeiros meditam sobre a relação mito-filoso­fia, o sagrado originário; Afonso Botelho explora «as virtualidades deste novo conceito de razão»,
que investiga as «formas do irracional por exces­so», «o mistério e o enigma», o
«radical ponto de partida de todo o pen­samento» (ibid., pp. 10-11).
A razão atlântica é o conceito-chave elaborado por Braz Teixeira para a elucidação do pensar que se exprime em língua portuguesa. O pressuposto essencial
282
BRAZ TEIXEIRA, A., Formas e Percursos da Razão Atlântica: estudos de filosofia luso-brasileira,
Londrina, UEL, 2001, p. 5.
196
que o conduz a estudar o que chama de filosofia luso-brasileira é o de que «o
pensamento é indissociável da linguagem e de que cada língua contém virtualidades especulativas próprias» (ibid., p. 13).
A razão atlântica designa, assim, o pensamento de expressão portu­guesa que,
em Portugal e no Brasil, refere-se a uma família espiritual enraizada na tradição
de inspiração agostiniana, para a qual os temas da tristeza do finito, da graça, da
liberdade, da nostalgia do Absoluto, do «saber do coração», falam da permanente busca, da itinerância do ho­mem, que o coloca face a face com o mistério da
origem. Trata-se do reconhecimento, pelo pensar, de um secreto invisível como
contrapartida do visível e que constitui seu fundamento e significação.
Para superar a adesão à experiência imediata, tal pensar recorre ao paradoxo,
ao mito, ao símbolo, à arte, à meditação sobre o ser, à intui­ção, para encontrar a
dimensão transcendente, metafísica, do real. Ra­zão e imaginação, razão e sentimento, razão e sensibilidade, aparecem como indissoluvelmente ligados, no
itinerário dessa investigação.
II. Método
A abordagem do conceito de razão atlântica implicou, na obra de nosso filósofo: o estabelecimento de um campo de questões que caracteri­zariam a especificidade
dessa racionalidade; o exame de uma linguagem inovadora, na qual tais questões
seriam formuladas; a identificação de autores cujos escritos apresentariam temáticas que permitiriam reconhecê­-los como expressão de uma família espiritual, de
uma linhagem de pensadores; o exame comparativo dos pensadores identificados,
em Portugal e no Brasil, como pertencentes a essa tendência, apontando convergências e diferenças entre eles, a contribuição original de cada um.
A noção de razão atlântica é o fulcro dessa reflexão porque, no entender de
Braz Teixeira, «a primeira e [...] essencial diferença entre os vários filósofos e as
diversas filosofias radica no conceito de razão de que partem ou em que se fundam» (ibid., p. 6). Assim também seus denominadores comuns, sua pertença a
uma tradição filosófica, podem ser considerados a partir do conceito de razão ao
qual se encontram vinculados.
Apontando o laço estreito entre as filosofias brasileira e portuguesa, as quais
manifestam a mesma origem cultural, nosso autor estuda «as influências recíprocas das duas filosofias», as «relações profundas existentes entre elas», a partir
do pressuposto «de que o pensamento é da linguagem» (ibid., p. 13).
O estabelecimento de um campo de questões fez-se mediante o exame dos ciclos históricos da reflexão, nos séculos XVIII, XIX e XX, pondo em relevo o kantismo, o eclectismo, o espiritualismo, o krausismo, o positivismo, o marxismo,
a fenomenologia, o neotomismo, o existencialismo, a hermenêutica, nas suas
expressões luso-brasileiras.
197
A travessia dessas correntes mostrou que há confluências entre as filosofias
brasileira e portuguesa na tematização comum do «Espírito como liberdade, no
fundo interesse especulativo pelo sagrado e pela relação entre razão e irracional,
na preocupação pelos problemas antropológicos, [...], na versão positivista do
marxismo, [...] [na] preocupação […] pela epistemologia e pela filosofia das ciências, ou em recente interesse pela hermenêutica» (ibid., pp. 25-26).
Temas como o mistério do mal, a saudade e o sentido messiânico da história,
presentes na filosofia portuguesa, ressoam, no Brasil, na literatura de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Ariano Suassuna, José Lins do Rêgo, e pouco ou
quase nada na filosofia. Questões a respeito da técnica, da historicidade, da alta
expressão do positivismo lógico e da filosofia analítica, da fenomenologia e do
existencialismo, ao contrário, caracterizariam fortemente a reflexão brasileira e
começam a repercutir na filosofia portuguesa.
Apesar das diferenças, a criação de uma linguagem original tem estado associada a esse campo de questões, expressando-se, em Portugal e no Brasil, exponencialmente na filosofia mais recente, nas chamadas Escola do Porto e Escola
de São Paulo, termos também lançados por Braz Teixeira. Essa linguagem é o
veículo das categorias empregadas no exame das questões; em Braz Teixeira, por
exemplo, a palavra-chave é razão atlântica; em Vicente Ferreira da Silva, um dos
mais expressivos nomes da filosofia brasileira contemporânea, é a do ser, entendido como fascinação; em Eudoro de Sousa, estudioso português radicado no
Brasil e por longos anos professor da Universidade de Brasília, é mitologia.
A identificação dos autores representativos dessa linhagem e linguagem, foi
levada a efeito segundo duas vertentes: a histórica, que mostrou a vinculação dos
pensadores com os movimentos filosófico-literários de seu tempo, identificou as
figuras mais expressivas nos diversos ciclos históricos e mostrou analogias entre
as posições defendidas ou até mesmo algum relacionamento entre os filósofos
portugueses e brasileiros. A segunda vertente consistiu no estudo sistemático dos
autores, pondo em relevo «a unidade [...] de seu pensamento [...] o que singulariza e define a sua actividade reflexiva» (ibid., p. 13). Essa dupla vertente da
abordagem do assunto permitiu a Braz Teixeira evidenciar «os filosofemas, as
grandes teses, as tendências profundas e as atitudes comuns a ambas as filoso­
fias, bem como aquilo que as afasta uma da outra, definido a sua sin­gularidade»
(ibid., p. 15).
O diálogo entre os pensadores ocorreu de forma tácita ou directa. Inicialmente tácito, o diálogo consistiu num paralelismo entre atitudes ou tomada de
posição pelos filósofos dos dois países. Assim, a atenção à obra de Kant, assinalável nas obras de Feijó, Tobias Barreto e Reale, desenvolveu-se numa direcção
original, sem analogias com os trabalhos de estudiosos portugueses, tais como
Antero de Quental, António Sérgio e Cabral de Moncada, também interessados
na obra do mestre alemão.
198
Analogias e convergências explícitas ocorreram no ciclo filosófico seguinte,
espiritualista, de Portugal e do Brasil. Caracterizou-se pelo impacto, em Portugal, do krausismo, em Amorim Viana e do eclectismo em Gonçalves de Magalhães. Temas comuns são, dentre outros, «a ideia de Absoluto [...], a importância
conferida à percepção [...], um conceito de razão que aceita a racionalidade da fé
e da revelação [...], a [...] admissão da imortalidade [da alma] [...], uma visão [...]
optimista do universo» (ibid., p. 19).
No final do século XIX o espiritualismo foi amplamente criticado pelo positivismo e pelo cientificismo que caracterizaram a época. A colabora­ção directa
entre os autores fica evidente através da direcção conjunta da Revista de Estudos
Livres, feita pelo português Teófilo Braga e pelo brasileiro Sílvio Romero, convergentes na aceitação do «naturalismo evolucionista [...], o relativismo axiológico»
(ibid., p. 22), dentre outros aspectos de seus pensamentos.
A atenção crítica à Escola do Recife caracterizou o português Sampaio Bruno,
que, com Leonardo Coimbra, do Porto, esteve na origem do mais importante
ciclo reflexivo da filosofia luso-brasileira. O diálogo mais sig­nificativo entre os
pensadores dos dois países iniciou-se no século XX, através da Escola do Porto,
«fruto do magistério de Leonardo Coimbra e da tradição iniciada por Amorim
Viana e Bruno» (ibid., p. 24), e da Escola de São Paulo, em cuja origem Braz Teixeira situa Vicente Ferreira da Silva e Miguel Reale. A actuação se expressou, no
caso de Vicente, através da revista Diálogo, na qual colaboraram os pensadores
portugueses Delfim Santos, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva; no caso de
Reale, através da fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, em 1949, e da
Revista Brasileira de Filosofia, que aglutinou alguns dos mais relevantes autores
brasileiros e portugueses contemporâneos.
Nosso autor divide em dois períodos o recente diálogo luso-brasilei­ro, que
institui o cerne da perspectiva filosófica por ele denominada de razão atlântica.
No primeiro ciclo, o diálogo é protagonizado pela Escola do Porto e pela Escola
de São Paulo e marcado pela presença, no Brasil, daqueles estudiosos que serão
chamados, por António Cândido, de a missão portuguesa283, dentre os quais destacamos Agostinho da Silva, Delfim Santos e Eudoro de Sousa.
Esse período caracterizou-se por analogias entre os dois grupos de pensadores, inspirados no neokantismo, neo-idealismo, neo-escolástica, fenomenologia e filosofia existencial, rompendo com o positivismo. Formularam também a
questão das filosofias nacionais: em Portugal, Álvaro Ribeiro e José Marinho, e,
no Brasil, Miguel Reale.
À meditação metafísica aliou-se a reflexão sobre a história da filo­sofia em
Portugal e no Brasil, assim como o interesse pelo campo da filosofia jurídica,
283
MELO E SOUSA, A. C., “Prefácio”, in LEITE, R. M. e LEMOS, F. (orgs.), A missão portuguesa.
Rotas entrecruzadas. Bauru/SP. EDUSC/Editora UNESP, 2003, pp. 15-20.
199
pela filosofia da religião, da axiologia, pela reactivação do tomismo, aberto ao
dialogo com a filosofia contemporânea, nas Universidades Católicas de Portugal
e do Brasil,
O segundo período deu-se a partir de 1974, com a vinda ao Brasil de pensadores portugueses, iniciadores de cursos sobre o pensamento luso-brasileiro. Idealizaram a Enciclopédia Logos, feita em colaboração com estudiosos brasileiros, e
fundaram o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com apoio do Instituto Brasileiro de Filosofia, da Universidade Estadual de Londrina, da Universidade Católica
Portuguesa e da Universidade Nova de Lisboa. A colaboração assim estabelecida
envolveu, de entre outros, António Paim, Miguel Reale, o próprio Braz Teixeira, Eduardo Abranches de Soveral, Francisco da Gama Caeiro, Esteves Pereira.
Em 1981, em Braga, realizou-se o I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia; em
1990, a Univer­sidade Nova de Lisboa organizou um Colóquio em homenagem
ao brasilei­ro Tobias Barreto. A partir de então, surgiu um projecto de filosofia
com­parada, visando estudar sistematicamente as relações entre as duas filosofias, através de uma sucessão de colóquios, em Portugal e no Brasil, dedicados
ao assunto e envolvendo a presença de estudiosos brasileiros e portugueses, de
diferentes universidades, Assim, foi realizado cm Recife e Salvador um colóquio
sobre a obra de Antero de Quental, sucedendo-se alternada e anualmente colóquios em Portugal e colóquios no Brasil até hoje. Destacamos alguns desses colóquios: o dedicado a Miguel Reale; a Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa;
a Sampaio Bruno; a Antônio Vieira e Leonardo Coimbra, Em 2001 foi realizado
no Porto, pela Univer­sidade Católica Portuguesa, um importante congresso sobre
Pensadores Portuenses Contemporâneos, no qual um dos aspectos foi o estudo
dos laços entre a Escola do Porto e a Escola de São Paulo284.
Conclusão
O estudo comparado assim levado a efeito pôs em relevo a importância da
expressão razão atlântica, para designar aquele aspecto do filosofar, em Portugal
e no Brasil, que Braz Teixeira considera mais con­sistente: o da tradição inspirada
remotamente no agostinismo, em Joa­quim de Flora e na escolástica tomista; e,
recentemente, o que surge do dialogo entre neokantismo, fenomenologia, filosofia existencial e herme­nêutica, com essa tradição.
A razão atlântica é o nome, para nosso autor, de uma racionalidade aberta à
imaginação e ao sentimento; uma
racionalidade que afirma o transcendente e recusa o cientifícismo e o materialismo, em favor da metafísica, da ontologia ou de um poetar pensante, de inspiração heideggeriana. É o nome de
uma racionalidade crítica de nosso tempo, crítica da prioridade da técnica sobre
Id., “O Porto e o diálogo filosófico luso-brasileiro”, in Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), Lisboa, IN-CM/ UCP, Centro Regional do Porto,
2002, vol. I, pp. 217-242.
284
200
o humano, e afirmativa do valor da pessoa. É o nome, ainda, de uma racionalidade que propõe, como valo­res axiais, o sagrado e a justiça; que chama de saudade
a nostalgia do Absoluto, presente no «inquieto coração» do homem.
O estudo pontual, cuidadoso, de autores representativos dessa ver­tente de
pensamento vem sendo feito por Braz Teixeira há muito tempo.
Desse trabalho paciente resultaram primorosos estudos sobre o tema do sagrado, em Vicente Ferreira da Silva e em outros pensadores brasileiros e portugueses; sobre o Direito e a justiça, em Portugal e no Brasil: sobre a saudade, em
Leonardo Coimbra, Afonso Botelho, Dalila Pereira da Costa, Miguel Reale.
A precisão, as intuições luminosas, a aguda percepção de analo­gias, no vasto
panorama que as obras de nosso filósofo propõem, a partir da categoria-chave de
razão atlântica, foram inspiradoras para vários outros estudiosos do pensamento
luso-brasileiro. Assinalo a repercussão directa de tal conceito nos escritos da filósofa e poeta Maria Helena Varela, dedicados ao hetero-logos, às microfilosofias
atlânticas, às conjunções filosóficas luso-brasileiras, na sua busca de categorias
que pudessem expressar a vivência luso-brasileira do mundo e do homem285. E
de modo também directo, nos importantes trabalhos de Paulo Borges, sobre o
finistérreo pensar, sobre as filosofias atlânticas286, bem como os dedicados a um
autor que não apenas simbolizou o diálogo entre os dois países, mas efectivamente o viveu, através de sua obra escrita, sua actuação cultural, sua convivência
com pensadores brasileiros: Agostinho da Silva, mestre construtor da vida do
Espírito.
Assinalo ainda a repercussão desse conceito como fio condutor da magistral história da filosofia portuguesa287 dirigida por Pedro Calafate e nos estudos
de Manuel Cândido Pimentel sobre filosofia luso-brasileira288. Com Eduardo
Abranches de Soveral289, Francisco da Gama Caeiro, Afon­so Botelho, José Esteves Pereira290, António Braz Teixeira é um dos mes­tres fundadores dos estudos
sobre o pensamento atlântico.
VARELA, M. H., O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma antropologia filosófica situada, Rio de Janeiro, 1996; Microfilosofia(s) Atlânticas(s): confrontos e contrastes, pref. de
Jorge Coutinho, Braga, APPACDM, 2000; Conjunções Filosóficas Luso-Brasileiras, Lisboa, Fund.
Lusíada, 2002.
286
BORGES, P., Do Finistérreo Pensar, Lisboa, IN-CM, 2001; Pensamento Atlântico, Lisboa, INCM,
2002.
287
CALAFATE, P., História do Pensamento Filosófico Português (dir.), Lisboa, Caminho / CFUL/
Círculo de Leitores, 1999, 5 vols.
288
PIMENTEL, M. C., Odisseias do Espírito: Estudos de Filosofia Luso-Brasileira, Lisboa, INCM,
1996.
289
SOVERAL, E. A. De, Pensamento Luso-Brasileiro: estudos e ensaios, Lisboa, Instituto Superior
de Novas Profissões, 1996.
290
PEREIRA, J. E., Percursos de História das Ideias, Lisboa, INCM, 2004.
285
201
202
António Braz Teixeira e a Filosofia Portuguesa Contemporânea
O pensamento de Braz Teixeira sobre a Filosofia Portuguesa desdobra-se
através de diversos estudos. Examinando o tema inicialmente no horizonte da
filosofia jurídica, em A Filosofia Jurídica Portuguesa Actual (1959), O pensamento filosófico-jurídico português (1983), Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira (1991), Filosofia Jurídica Portuguesa Contemporânea (1992),
sua reflexão aborda pontualmente alguns autores (O pensamento Filosófico de
Cunha Seixas, 1971; O pensamento Filosófico de Gonçalves de Magalhães, 1994),
e apresenta um grande painel da filosofia portuguesa, tratando de encontrar seus
aspectos axiais, sua especificidade. Dessa caracterização, Filosofia da Saudade
(1986); Deus, o Mal e a Saudade (1993); Ética, Filosofia e Religião (1997) e O
Espelho da Razão (1997), representam o grande vôo compreensivo.
Identificando correntes e autores, as grandes linhas de panorama da filosofia
portuguesa acham-se sintetizadas no capítulo de abertura do livro Ética, Filosofia e Religião, intitulado “A filosofia portuguesa do século XX”, ao qual nos ateremos, para mostrar como se apresenta o seu exame compreensivo. Classificar
correntes, identificar autores, interpretar o pensamento, assinalar a relevância
de suas contribuições, vinculá-los às temáticas axiais que caracterizam a formulação original, a especificidade da reflexão portuguesa, tem sido a grande tarefa
em que Braz Teixeira vem se empenhando. Na pluralidade de idéias, autores,
publicações, que a efervescência de vida cultural portuguesa apresenta, a leitura
de Braz Teixeira possibilita a descoberta de caminhos, a apreensão sintética, a
ordenação do magma.
Seu ponto de partida é o reconhecimento dos temas que imperaram na filosofia portuguesa do século XIX: Deus, o mal, as relações entre razão e fé, filosofia
e religião, razão científica e razão filosófica. Ou seja, o cerne do debate, no século
XIX, foi constituído pela reflexão sobre a idéia de Deus e as relações entre filosofia e religião, em Portugal.
Hoje, permanecem os temas da origem, extensão e significado do mal, assim
como a indagação sobre o sentido e valor ético-religioso do cristianismo. Mas,
à medida que o século XX se desenrola a problemática antropológica assume
um papel central na meditação filosófica, em Portugal: a questão do homem é
relacionada com a meditação sobre a teodicéia, a filosofia, a história, a ética e a
filosofia da religião.
203
A antropologia filosófica, versando sobre a origem e o destino do homem,
refletindo sobre a liberdade, o mal, a morte, a imortalidade, a saudade, não se
apresenta como puramente centrada numa perspectiva humanista; antes, achase aberta ao cósmico, ao sentido escatológico do homem e do real.
Três gerações de pensadores estarão envolvidas nessa reflexão. Sob a inspiração de Guerra Junqueiro (1850-1923) e Sampaio Bruno (1857-1915), e do grupo da revista A Águia, um movimento denominado Renascença Portuguesa foi
o propulsor do mais importante centro de criação, expressão e irradiação do
pensamento filosófico. Os mentores dessa renovação filosófica foram Teixeira de
Pascoaes (1877-1952) e Leonardo Coimbra (1883-1936). O movimento ocorreu
no Porto, a partir de 1912. Três tendências marcaram seu despertar: o criacionismo, representado por Leonardo Coimbra, congregou “numeroso e valioso grupo
de pensadores, poetas, ficcionistas e dramaturgos [procurando] reagir, numa linha espiritualista (...) contra o positivismo...”291 reinante; o saudosismo, de Teixeira de Pascoaes; o naturalismo, de Teixeira Rego (1881-1934).
O grupo da Renascença Portuguesa polemizava também com ilustres membros de duas outras tendências filosóficas: o modernismo, cujo órgão de expressão
era a revista Orpheu (1915); dentre os participantes desse movimento, ressaltamos Fernando Pessoa (1888-1935), Mario de Sá Carneiro (1890-1916), Almada
Negreiros (1893-1970). E o racionalismo crítico, cujas figuras de proa foram Raul
Proença (1884-1941) e Antonio Sérgio (1883-1969), e cujo órgão de expressão
foi a Seara Nova (1921).
Leonardo Coimbra foi o orientador e diretor da primeira Faculdade de Letras
do Porto; durante seus doze anos de existência (1919-1931), o pensador “formou
aí um numeroso grupo de discípulos, que, sem prejuízo da diversidade de caminhos especulativos que cada um deles veio a trilhar, permaneceram sempre fiéis
ao seu alto magistério filosófico e espiritual” (ibid., p. 15). A chamada “Escola
Portuense” constituiu a segunda geração do movimento da filosofia portuguesa.
Abarca os discípulos de Leonardo, entre 1919 e 1931: Sant’Ana Dionisio, Delfim
Santos, Augusto Saraiva, Álvaro Ribeiro, Agostinho da Silva, José Marinho.
Apesar da pluralidade de tendências, uma certa perspectiva espiritualista
está presente em todos: assim, o ceticismo trágico caracterizou Sant’Ana Dionisio
(1902-1991), cujo pensamento evidenciava pontos de acordo com Bruno, Pascoaes, Proença. Os temas: Deus, mal, imortalidade, sentido de vida, estão presentes
em sua reflexão.
Delfim Santos (1907-1966), orientou-se em direção à filosofia existencial, de
inspiração heideggeriana; os temas: matéria, vida, existência, caracterizaram sua
meditação. A influência de Leonardo, primeiro a se referir a Husserl, Scheler e
291
BRAZ TEIXEIRA, A., “A filosofia portuguesa do século XX”, in Ética, Filosofia e Religião, Évora,
Pendor, 1997, p. 10.
204
Heidegger no A alegria, a Dor e a Graça (1916) repercute em Delfim Santos e em
seus amigos: Antonio José Brandão (1906-1984), primeiro tradutor de Heidegger em Portugal, e Eudoro de Sousa (1911-1987), amigo de ambos e que expõe
sua reflexão em torno de uma Filosofia da Mitologia e de uma Teodicéia. Antonio José Brandão concilia as vertentes fenomenológicas – Scheler, Hartmann,
Heidegger – com a tradição aristotélico-tomista, e aborda, como campo privilegiado de interesse, a Filosofia do Direito (O Direito. Ensaio de Ontologia Jurídica
(1942); Filosofia do Direito como problema filosófico (1971)).
Outro discípulo de Leonardo, Augusto Saraiva (1900-1975), marcará seus
trabalhos pela filiação a uma dialética ideo-realista, que alcança a inteligibilidade
do ser reunindo pensamento e ação, homem e universo.
Álvaro Ribeiro (1905-1981) está mais próximo do mestre, propondo uma filosofia criacionista, que tem como pontos de referência a meditação sobre o homem, o mundo e Deus. O homem é criatura de Deus, e são a dor, o mal e a morte,
conseqüências do pecado original. Razão animada, o homem tem como características essenciais o conhecimento e a virtude, a linguagem, a liberdade. Apesar
da queda e do pecado, a educação e a graça podem resgatá-lo da derilicção. Por
sua vez, o mundo é emanação de Deus; sua ordem supõe uma teleologia. Deus é
incognoscível e misterioso; só podemos apreendê-lo pela revelação.
Agostinho da Silva (1906-1994), é lembrado por Braz Teixeira a partir da última fase de seu pensamento, o de um paracletismo franciscano, que propõe uma
ética fundada na obediência e no amor, em vista da redenção e do encontro do
homem com Deus (Dispersos, 1988; Educação de Portugal, 1989).
Finalmente, José Marinho (1904-1975), com sua Teoria do Ser e da Verdade,
representou “a realização daquela ontologia do Espírito que era o escopo da meditação leonardiana” (ibid., p. 19), e retoma, sob a inspiração das metafísicas de
Bruno e Pascoaes “as noções principiais de enigma e de mistério” (ibid., p. 20).
Reflexão sobre o Espírito, a verdade, o Nada, a liberdade, a filosofia de Marinho
se inscreve na grande orientação do espiritualismo português.
Sob o impacto do pensamento de Álvaro Ribeiro, de Delfim Santos e de
Agostinho da Silva, desdobra-se a terceira geração da filosofia portuguesa, na
qual ocupam lugar expressivo Afonso Botelho (1919-1996), Antonio Quadros
(1923-1993), Orlando Vitorino (1922-2003), António Telmo (1927-2010), Francisco Sottomayor (1927-1985), Dalila Pereira da Costa (1918-2012), Pinharanda
Gomes (1939-).
Afonso Botelho aborda os temas da saudade, do amor e da morte; Antonio
Quadros propõe uma estética e uma filosofia da história, centradas, a primeira,
na fenomenologia da arte portuguesa, a segunda, na teoria do mito e na “hermenêutica da razão de ser de Portugal” (ibid., p. 31). Por sua vez, Orlando Vitorino,
sob a influência de Hegel, aborda os problemas do mal, do Direito, da justiça, e
205
da liberdade; Antonio Telmo trata do “sentido secreto da história e língua portuguesa” (ibid., p. 21); Francisco Sottomayor examina o sentido cosmológico da
ciência, da matemática; Dalila Pereira da Costa, propõe um laço estreito entre
filosofia e mística, na sua busca do sagrado primordial; Pinharanda Gomes estuda a história do pensamento português; desenvolve também meditações sobre a
experiência religiosa e o tema da morte.
É ainda sob a repercussão das filosofias de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo
Coimbra que é retomada, no século XX, a filosofia da saudade. Originalmente proposta por D. Duarte (1891-1438) e D. Francisco Manuel de Melo (16061666), a reflexão sobre a saudade, em nossa época, está centrada em dois aspectos: a análise fenomenológica da consciência saudosa, do sentimento saudoso e a
ontologia, a metafísica da saudade.
A fenomenologia da consciência saudosa encontra em Joaquim de Carvalho
(1892-1953), em Sílvio Lima (1904-1994) e em João Ferreira (1927 -), os seus
autores exponenciais.
Joaquim de Carvalho vê a saudade como uma prerrogativa do homem, pois
só este tem consciência da “presença espiritual de uma consciência já vivida
acompanhada do desejo de tornar a viver” (ibid., p. 22); Silvio Lima põe em
relevo o aspecto tridimensional da saudade, porque esta é retrotensa, intensa e
protensa, expressando o desejo de regresso ao paraíso (ibid., p. 23); João Ferreira
vê na saudade um sentimento complexo, misto de lembrança e desejo, carência.
Envolve as noções de tempo e memória como elementos essenciais.
A metafísica da saudade tem como expoentes Antonio Dias de Magalhães, S.
J. (1907-1972), Afonso Botelho, Dalila Pereira da Costa e Pinharanda Gomes.
Antonio Dias de Magalhães, discípulo de Pascoaes e Leonardo, vê na saudade o sentimento de contingência, a nostalgia do Absoluto, que habita todo
homem.
Afonso Botelho, sob o impacto das reflexões de Leonardo, Pascoaes e José
Marinho, encara a saudade como “memória da unidade originária do ser” (ibid.,
p. 23). Examina as relações entre saudade e tempo, morte e amor; afirma que a
criação se cumpre por via do amor.
Dalila Pereira da Costa vê na saudade o reencontro com a unidade originária
perdida, e Pinharanda Gomes reflete sobre as relações entre o Mesmo e o Outro,
expressões da saudade.
No vasto panorama que esboçou, Braz Teixeira assinala ainda a existência de
outras correntes especulativas, representadas por autores portugueses. São elas:
as novas formas do positivismo, a neo-escolástica, a filosofia existencial, a fenomenologia e o pensamento dialético.
Num texto de 1938, Delfim Santos aponta a influência da Escola de Viena e
do Grupo de Cambridge em Portugal. Dois contemporâneos de Leonardo, Abel
206
Salazar (1889-1946) e Vieira de Almeida (1888-1962) expõem a orientação inspirada no positivismo lógico e na lógica matemática. O primeiro, médico, artista
plástico, filósofo, deixou estudos sobre A posição atual da ciência, da filosofia e
da religião (1934) e sobre A Crise da Europa (1943). Vieira de Almeida, estudioso
de lógica, gnoseologia, filosofia da linguagem e filosofia da arte, terá influência
marcante em Edmundo Curvelo (1913-1953), também estudioso de Lógica, deixando estudos introdutórios à lógica matemática, a fundamentação lógica da
filosofia, (Decisão e Imanência, 1953). Ambos, Vieira de Almeida e Edmundo
Curvelo, inspirarão a filosofia de Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), dedicada à lógica, ao exame da estrutura da moralidade, à crítica do utilitarismo (Ética
I, 1992).
Finalmente, inscreve-se nessa orientação Amorim de Carvalho (1904-1976),
interessado em examinar O positivismo metafísico de Sampaio Bruno (1960).
O renascimento da reflexao escolástica, apoiada na tradição inspirada em Pedro da Fonseca (1528-1599), deu-se na Faculdade de Filosofia de Braga, a partir
de 1947. A Faculdade foi integrada, desde 1967, à Universidade Católica Portuguesa e dois jesuitas, Cassiano Abranches (1896-1983) e José Bacelar de Oliveira (1916-1999), representam a corrente. O primeiro se dedica à metafísica e à
hermenêutica do pensamento de Pedro da Fonseca; o segundo, à Antropologia
Filosófica e à Ontologia. O autor mais importante da corrente é, contudo, Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Abordou a Lógica, a Metafísica, a Teoria
do Conhecimento, buscando mostrar a filosofia como sistema, como explicação
racional do mundo e da vida; tratou de fundamentar criticamente a metafísica
escolástica e de mostrar os laços entre metafísica, ética e axiologia.
Com Leonardo, foi um dos primeiros a falar sobre a fenomenologia husserliana. Seus discípulos mais importantes floresceram na década de 50 e são os
verdadeiros fundadores dos estudos fenomenológicos em Portugal: Alexandre
Morujão (1922-2009), Júlio Fragata, S. J. (1920-1985), Eduardo Abranches de
Soveral (1927-2003).
Os primeiros estudaram principalmente a fenomenologia husserliana; Eduardo Soveral, enfatizou o exame do método fenomenológico, da ética e da filosofia da cultura, e, a partir de 1995, focaliza seu interesse no pensamento português
contemporâneo, no pensamento luso-brasileiro e nas relações entre fenomenologia e metafísica.
No mesmo horizonte da escola fenomenológica, inscrevem-se: Gustavo Fraga (1922- 2003), interessado no percurso da fenomenologia, de Husserl a Heidegger e nas relações entre fenomenologia e dialética; Maria Manuela Saraiva
(1924-2002), autora de importante tese sobre Husserl, publicada em Louvain;
Fernando Gil (1937-2006), na esteira da escola, trata de antropologia filosófica,
epistemologia, lógica; e José Enes (1924-2013), fazendo da filosofia um saber
207
que, através da experiência estética e religiosa, aborda o Ser, a linguagem, fundamenta um diálogo entre o tomismo e a fenomenologia e a hermenêutica.
A abordagem existencial, instaurada a partir do magistério de Leonardo, o
primeiro a se referir a Husserl, Scheler, Heidegger, além dos discípulos imediatos: Delfim Santos, Antonio José Brandão, Eudoro de Sousa – encontra ressonância em Diamantino Martins, S. J. (1909-1979), Virgilio Ferreira (1916-1996)
e Fidelino de Figueiredo (1889-1967).
Diamantino Martins aproxima Bergson, Sto. Agostinho, Unamuno, pondo
em primeiro plano as questões da antropologia filosófica e da teodicéia. Assim,
os problemas de Deus, mundo e homem, constituem o cerne de sua reflexão.
Ateísta, a reflexão metafísica de Vergílio Ferreira examina a trajetória da Fenomenologia de Sartre; e Fidelino de Figueiredo põe em relevo uma reflexão
antropológica, agnóstica e histórica, na esteira da fenomenologia existencial.
O pensamento dialético, na sua dupla vertente: hegeliana e marxista, também encontra, em Portugal, os seus cultores. A inspiração hegeliana está presente
nos escritos de filosofia jurídica e política de Antonio José de Brito (1927-2013),
Afonso Queiró (1914-1995) e Orlando Vitorino (estudioso de Hegel); e nos estudos de ética e metafísica de Augusto Saraiva.
A inspiração marxista tem em Alberto Ferreira (1920-2000) e Maria Carmelita Homem de Sousa (1934-1995) seus expoentes. O primeiro vê na dialética
um instrumento de transformação das estruturas sociais; a segunda, partindo
da fenomenologia, direciona-se a um “transrelativismo dialético”, que exclui a
separação entre natureza, homem e estruturas sociais.
A grande figura inspiradora da filosofia portuguesa e da filosofia em Portugal, no século XX, é Leonardo Coimbra. De modo direto, deveu-se à sua atuação
e ao seu magistério a grande renovação levada a efeito pelo movimento da filosofia portuguesa na Faculdade de Letras do Porto; de modo indireto, está presente
nos estudos de Delfim Santos, acerca do positivismo, e no confronto com seus
contemporâneos; ressoa na filosofia existencial e, através dos discípulos de Miranda Barbosa – estudioso, como Leonardo da fenomenologia husserliana – no
despertar de interesse pela fenomenologia; está presente, através de Augusto Saraiva e Orlando Vitorino, representantes, respectivamente da segunda e terceira
geração da filosofia portuguesa – no desenvolvimento do pensamento dialético
de inspiração hegeliana.
208
Arte e tempo em Maria do Carmo Tavares de Miranda
Maria do Carmo Tavares de Miranda é uma das representantes da Escola heideggeriana no Brasil. Nasceu em Vitória de Santo Antão da Mata, em Pernambuco, a
6 de agosto de 1926. Seu pai radicou-se em Recife, onde nossa pensadora estudou.
Aprendeu, em casa, grego e latim, descobrindo os filósofos: Platão, Aristóteles,
Santo Agostinho. Bacharelou-se e licenciou-se em Letras Clássicas e Filosofia
pela Universidade Federal de Pernambuco. Na França, doutorou-se em Filosofia
pela Sorbonne (1956); fez estudos pós-doutorais na França e na Alemanha. Foi
assistente de pesquisa e de seminários em Metafísica e Filosofia Geral, na Sorbonne. E também na França estudou Física, Matemática e Teologia. Essa formação
repercutiu em seu pensamento e na temática filosófica que abordaremos e que
consideramos o fulcro de sua obra: o problema do tempo.
Retornando a Recife, em 1957, organizou cursos de especialização sobre a
ontologia fundamental de Heidegger, de quem fora aluna; em 1961 planejou o
doutorado em Filosofia da Universidade Federal de Recife, e de 1969 a 1981 dirigiu
o Seminário de Pesquisa Filosófica, na mesma Universidade. Lecionou também
na França, na Alemanha, na Grécia, nos Estados Unidos, como convidada, sempre mantendo o vínculo com a Universidade de Recife. Participou das atividades
da Fundação Joaquim Nabuco e da Fundação Gilberto Freyre, em Recife, onde
dirigiu o Seminário de Tropicologia.
Dentre os temas do Seminário de Pesquisa Filosófica, podemos destacar o
sobre o problema da verdade, enfocado com nítida acentuação heideggeriana. A
abordagem oferecida por Maria do Carmo é exemplar: estuda o Sobre a essência
da Verdade, o De Veritate, bem como as posições de Aristóteles e Santo Agostinho
sobre o assunto292. Maria do Carmo mostra assim como, em sua reflexão, a vertente
heideggeriana estará sempre contraponteada pela filosofia de inspiração cristã.
Vivendo “a vida como dimensão do espírito”293, nossa pensadora entende a
filosofia como um “ trazer à claridade”294 o sentido do homem e do tempo. O
filosofar, para ela, é estar perante o mistério do Ser, Presença que sustém o homem. Ek-sistente, ser-no-mundo, ao filosofar o homem se conforma ao logos, pois
TAVARES DE MIRANDA, M. C., Caminhos do Filosofar, Recife, Fundação de Cultura Cidade
do Recife, 1991, pp. 100-104.
293
Id., Conjugando Memórias, RJ, Tempo Brasileiro / Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, 2ª parte, pp. 49-104.
294
Id., Caminhos do Filosofar, p. 32.
292
209
“filosofar é um pathos – o com-padecer – e converter-se de cada um a si mesmo,
ao outro e com os outros. Este com-padecer ou sofrer a revelação dos seres é estabelecer a relação de integração, medida e coexistência de todas as coisas” (ibid.,
p. 23). Marcada pela reflexão de inspiração cristã, como já dissemos, o filosofar,
na sua perspectiva, é busca da verdade, busca de comunhão com todas as coisas,
ascultação amorosa, dialógica, do outro e do mundo.
A filosofia é experienciar metafísico, reflexão sobre o Ser, epistéme theoretiké,
busca da ousia, arché, alétheia. Investiga, assim, a relação entre ser e pensar, ser e
verdade, ser e nada, ser e tempo (ibid., pp. 27-32).
A meditação sobre a experiência ontológica do tempo é reiterada em diversos escritos da pensadora: Pedagogia do Tempo e da História (1965), O homem
e o tempo (1983), Conjugando Memórias (1987), Caminhos do Filosofar (1991),
Aventura Humana (1996): “No sempre, no advém, no há, e no que passa está presente o tempo, não só numa de suas modalidades, mas indicando e anunciando
o que é junto ao Ser, possibilitando-o” (ibid., p. 33). A reflexão sobre as relações
entre Ser e tempo, sobre o fluir da existência como viver entre, como caminho – o
homem é um viandante, no dizer de Maria do Carmo – desdobra-se no exame
dos sentidos gregos do presente: chrónos, aion, nun, exáiphnes, kairós, hora: “A
forma do presente, o é de todos os modos, é enquanto se mensura – chrónos, mas
é também em sua totalidade – aion, como é neste momento presente, o agora –
nun, e no de repente do instante, também algo eterno – exaíphnes, e é enquanto
hora oportuna ou conveniente, ocasião – kairós, enquanto período ou momento
favorável – hora” (ibid., p. 39).
Falar sobre o presente é falar sobre o Ser enquanto revelação, Presença; ao
homem “compete dizer o que é e consiste, através do presentificar do Ser e dos
diversos modos do seu movimento de presentar” (ibid., p. 44). É no tempo que
se revela o Ser, nos diferentes modos temporais.
O “pensar orante”295 de nossa filósofa busca, na reflexão sobre o tempo e a
existência, um caminho: a apreensão amorosa do existente, a superação da fugacidade, ao captar o divino em cada ser. Seu modelo é São Francisco, que integra
temporalidade e graça, na acção (ibid., pp. 73-88).
Ser-no-mundo, o homem vive o seu ser-entre nascimento e morte, memória
e esperança: “determina-se pelo daimon que é nous/nomos”296. Sua destinação é
antes de mais nada ética pois, situado no mundo, sua própria condição reclama
o reconhecimento do outro e da transcendência, o totalmente Outro. É confronto
consigo mesmo e com o secreto do real, com o mistério, contínuo criar e recriar
de sentido: “vislumbra-se apenas uma radiação constante do Ser que se mantém
oculto, deixando-se, porém, entrever” (ibid., p. 55). O acontecer do homem é
295
296
Id., Conjugando Memórias, p. 70.
Id., Caminhos do Filosofar, p. 52.
210
atividade criadora, aventura e transfiguração, revelação da verdade e ascultação
do mistério. A ciência, a filosofia e a arte são seus campos privilegiados de manifestação.
É principalmente na meditação sobre o sentido da obra de arte que o pensamento de Maria do Carmo expõe essa dimensão criadora. Alguns de seus escritos
tanto podem mostrar a presença da temática heideggeriana como a originalidade
da abordagem da nossa filósofa.
Assim, no “A existência humana segundo Rilke”297, ela apresenta o homem
como aquele que está diante do Aberto, no esplendor do instante e da metamorfose contínua do tempo, buscando dizer o indizível, celebrando a terra. Poeta do
“duplo domínio”, habitante do estar-entre o céu e a terra, a vida e a morte, Rilke
certamente inspirou o texto seguinte, “ Morte e vida transfigurada” (ibid., pp. 94102), do mesmo livro Conjugando Memórias. Diz a autora: “A vida diz seu próprio
caminhar à morte (...). A finalidade deste processo é a Vida que nasce da morte,
Vida, pura Vida, porque libertada de mudanças, metamorfoseada (...) Não mais,
após a morte, os tempos das mutabilidades. Mas o tempo ilimitado (...) Este tempo
dirá o Ser (...) Como todo caminho é sempre o mesmo, ascendendo ou descendo
(...) o Fim é sem fim, porque (...) é, ao mesmo tempo, um Começo, como a Morte
(...) é Vida como Presença Definitiva” (ibid., pp. 100-102).
A obra de arte é, para Maria do Carmo, descoberta, transfiguração, desvelamento “do ser do ente”298, “manifestação da quaternidade do Ser, sua unidade,
verdade, atração, manifestação radiosa, por algo (...) diferente dele” (ibid., p. 70). O
tema da quaternidade, que em Heidegger expõe a relação entre céu e terra, deuses
e mortais, aparece aquí reformulado, na linha da meditação tomista: a beleza é
o que se caracteriza pela claritas, integritas, proportio, sendo atributos do Ser a
unidade, a verdade. Esta integração entre a fonte heideggeriana e outros autores,
essa leitura original que recoloca o problema da obra de arte como sondagem do
mistério, são a característica distintiva da hermenêutica de nossa filósofa.
A arte, como desvelamento, retomada contínua do espaço e do tempo, “magnifica o real” (ibid., p. 71), falando do Ser, pondo à luz a totalidade: “a obra de
arte é uma existência que clarifica o real e pronuncia o Ser em sua magnificência”
(ibid., p. 72).
O tema da relação entre arte e mistério reaparece em dois textos apresentados
por Maria do Carmo na terceira Semana Internacional de Filosofia da Arte299 e
na sessão de 1984 da Academia Internacional de Filosofia da Arte300. A obra de
Id., Conjugando Memórias, pp. 89-93.
Id., Caminhos do Filosofar, p. 69.
299
Realizada em Corfu, 1984: “L’ oeuvre d’art et le mystére de l’être”, Diotima, Atenas, Sociedade
Helénica de Estudos Filosóficos, n.14, 1986, pp. 59-61.
300
Calamata-Messênia: “Art et Mystère”, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosóficos, n.18, 1990, pp. 30-33.
297
298
211
arte é portadora do sentido do ser, revelação da totalidade, magnificando o real301.
Assim, a obra de arte “veicula o mistério do ser no ente” (ibid., p. 60), nisso consistindo o segredo de sua permanência e de sua profundidade. Exemplificando essa
compreensão da arte, Maria do Carmo examina a obra de Niemeyer, focalizando
sua atenção no Memorial da América Latina, um dos trabalhos do arquiteto. A
obra de arte engendra um novo espaço. Transfigurando o real, estabelecendo relações entre o que ela é, o que mostra e o que coloca como apêlo (...)”302, a busca
de transcendência. Transfiguração do espaço, refiguração do tempo, a obra fala
“de uma contemporaneidade de todos os presentes comemorados no passado, no
presente, no futuro, porque ela é celebração” (...) “jogo do possível” (...) “um jogo
que ‘ordena o mundo’ como diz Heidegger (...)”. Nela se fundem sentimento e
contemplação; testemunho do mistério do Ser; nela o inefável, o totalmente Outro
se apresenta ao homem. Interpretá-la, é desvelar a verdade, indagar a intimidade
do real, da totalidade.
A meditação ontológica sobre o tempo reaparece em dois outros textos, apresentados em congressos da associação Cosmos e Filosofia303, bem como no livro
Aventura Humana304.
No primeiro, “L’avenir: une aventure pour l’homme”, Maria do Carmo combina
a referência à tradição grega (Heráclito) e às fontes contemporâneas: Heidegger,
Jonas, Arendt, Moutsopoulos. O homem exposto ao surto da tecnociência está
também exposto à sua ambiguidade. A vida humana assume uma conotação
dramática, em virtude das transformações da ação humana. É em relação ao
poder da técnica que as meditações heideggerianas são invocadas, em especial
as da Introdução à Metafisica e da Carta sobre o Humanismo. Os desafios que se
apresentam hoje dizem respeito ao sentido do futuro, da vida em comunidade:
“ameaças pesam sobre o futuro humano, sobre a biosfera e sobre a natureza
inteira”305. É desse modo que a autora aponta o nexo entre o imperativo indicado
por Hans Jonas em O princípio responsabilidade, em Técnica, Medicina e Ética:
“que a humanidade exista” – e o dever de existir, a questão do ser e do não-ser,
em Heidegger (ibid., p. 93).
A situação do homem atual exige uma reflexão ético-ontológica sobre o tempo,
de modo a levar a compreender o sentido da condição humana e as implicações da
civilização técnica. Inscrito no mundo, por sua temporalidade, o homem necessita
tecer seu destino, articulando bios e logos, liberdade e solidariedade, memória e
esperança (ibid., pp. 94-95).
Cf. nota (20), pp. 59-60.
Id., cf. nota (21), p. 31.
303
“L’avenir: une aventure pour l’homme”, in Espace cosmique et Philosophie, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosóficos, n. 24, 1996, pp. 91-95; “Le rythme cosmique”, in L’homme
et le cosmos, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosóficos, n. 29, 2001, pp. 10-15.
304
Recife, Ed. Comunicarte, 1996.
305
Id., “L’avenir...”, p. 92.
301
302
212
O segundo texto, “Le rythme cosmique”, novamente recorre à tradição grega,
vista como “fonte da cultura filosófica ocidental”306. Mostra que o homem é um
ser que, existindo no tempo, experimenta aí o desenrolar de suas possibilidades.
A tradição grega perpassa o Ocidente e ressoa em Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel, Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Lévinas, Habermas.
Estes últimos, contemporâneos, mostram a necessidade de uma “racionalidade
transcultural” (ibid., p. 11), aberta ao outro, ao conviver num mundo complexo.
Vemos, assim, uma vez mais, a problemática do tempo associada, por nossa autora,
a uma ético-ontologia, que parece ser o eixo de sua meditação recente. Assim,
indaga a filósofa: “Pela compreensão do que é o mundo na sua marcha rítmica, o
homem, enquanto ‘operador’ das possibilidades do ser, terá a sabedoria de decidir
corretamente...” (ibid., p. 15), de fazer escolhas que o conduzam à expressão de
sua humanidade, e não à destruição?
A reflexão ético-ontológica sobre a condição humana e sobre a sociedade atual,
reaparece no livro Aventura Humana, no qual a temporalidade é o fio condutor
que tece as contribuições de Jonas, Bachelard, Marcel e Heidegger às meditações
da autora.
Podemos dizer então, em resumo, que a filosofia de Maria do Carmo, inspirando-se em Heidegger, constroi uma reflexão sobre a arte e o tempo, combinando
o recurso à tradição grega e às filosofias de vertente cristã e às de autores contemporâneos. Essa meditação é, de início, uma ontologia do tempo e da história,
uma filosofia da arte; desemboca gradualmente numa ético-ontologia, ao abordar
a nossa época, examinando a situação do homem atual.
A obra da filósofa brasileira, da qual destacamos apenas alguns aspectos,
tem repercussão internacional. Pomos em relêvo, a título de exemplo, o estudo
dedicado a ela e a tradução, para o francês, de um extrato do livro Pedagogia do
tempo e da história, feitos por Marie Laffranque307, membro da equipe do CNRS
então dirigida por Alain Guy, na Universidade de Toulouse-le Mirail. Assinalamos
também as menções, do próprio Alain Guy, aos seus trabalhos308, bem como a
atenção de Gilberto Freyre, de quem foi colaboradora e amiga309.
Id., “Le rythme cosmique”, p. 10.
Marie Laffranque, “Maria do Carmo Tavares de Miranda”, in A. Guy (org.), Le temps et la mort
dans la philosophie contemporaine d’ Amérique Latine, Toulouse, Éd. Universitaires du Sud, 1992,
2a edição, pp. 11-23. Marie Laffranque pertence ao grupo do Centro de Investigações de Filosofia ibérica, ibero-americana e comparada, da referida universidade. O grupo é reconhecido pelo
CNRS.
308
GUY, A., Panorama de la philosophie ibero-américaine, Genebra Patiño, 1989, p.212; id., La
philosophie en Amérique Latine, Paris, PUF, 1997, p. 96.
309
Sobre os laços de cooperação entre ambos, veja-se o testemunho da filósofa, em Aventura Humana, pp. 68-70.
306
307
213
214
Axiologia e ética em Eduardo Abranches de Soveral
Definindo o homem como pessoa, isto é, como indivíduo capaz de reconhecer
a si a partir de um valor, a liberdade, e a exigência de expressá-la na vida intersubjetiva, na vida interhumana, Soveral se inspira em um humanismo cristão de
matriz próxima à do neo-humanismo de Maritain coordenando-o com as filosofias
de Kant e Scheler, como assinala Luís de Araújo310.
Partindo de uma reflexão sobre as noções de pessoa, subjetividade e intersubjetividade, na edição de seus cursos sobre Filosofia Moderna e Contemporânea
na Universidade do Porto311 e mencionando explicitamente Soi-même comme
um autre, de Ricoeur, como o dialogante implícito nas suas reflexões, o pensador português desenvolve uma sugestiva meditação, iluminada pela linguagem
fenomenológica, a respeito da consciência, da intersubjetividade e da liberdade
(ibid., p. 73 e segs).
A partir da compreensão do eu, entendido como eixo da vida espiritual, “sujeito de todas as vivências conscientes”, atuais e passadas, nosso autor o vê como
“consciência de”, aberta ao futuro, imanente, “para-si” de uma subjetividade mas
voltado à transcendência por vivências novas, como “titular de uma liberdade
responsável” que o torna sujeito ético (ibid., p. 77).
O eu se caracteriza pela finitude, mas também pela vocação para a plenitude,
para a “apropriação e participação no Ser” (ibid., p. 78). A plenitude, experiência
de transcendência da precariedade do finito, é sempre buscada pelo “eu” que,
ao buscá-la, desvenda o mundo interior como imensidão sem fronteiras, que o
deslumbra e atemoriza. Na história da Filosofia, Sócrates, Platão, Santo Agostinho
assinalaram essa descoberta; na investigação psicológica, Freud e Jung mostraram
sua riqueza; na poesia e na mística, é visto como habitação das musas ou lugar de
ascensão para Deus.No caso do pensador português, é como fenomenólogo que
irá considerar as estruturas do eu.
Eixo do mundo interior consciente, caracterizado pela singularidade, o eu
busca entrar em contato com as consciências alheias, das quais tem conhecimento
indireto e analógico, nelas reconhecendo como nota dominante a liberdade.
A primeira experiência do eu em relação a si é reconhecer-se como eu potencial
concreto, “situado no contexto de uma inter-subjetividade onde se define e valida,
por assimilação analógica, ou por contraste” (ibid., p. 81).
ARAÚJO, L de., “A modo de Prefácio”, in SOVERAL, E. A. de, Sobre os valores e pressupostos da
vida política contemporânea e outros ensaios, Lisboa: INCM, 2005, p.10 e segs.
311
SOVERAL, E. A. de., Fenomenologia e Metafísica. Porto: Centro Leonardo Coimbra, da Universidade do Porto, VI capítulo, 1997, p. 73 e segs.
310
215
Inscrito no mundo pela mediação de seu corpo, o eu se inscreve na comunidade
intersubjetiva, que lhe faculta falar de si e de nós, da relação eu-tu, possibilitando-lhe
“o conhecimento do outro e, correlativamente, de si mesmo também” (ibid., p. 82).
O “eu” se afirma, no plano biológico, como busca da sobrevivência; mas no
plano ontológico, só a admiração e o amor o fazem passar de indivíduo a pessoa,
sujeito capaz de laços comunitários e do exercício da liberdade e da responsabilidade (ibid., p. 85), ou seja, de uma vida ética (ibid., pp. 86-87).
Num texto publicado em 2005312, Soveral retoma a meditação sobre a liberdade,
aprofundando a discussão. Falando da liberdade individual, nosso autor mostra
a consciência de si como capacidade do homem apropriar-se de si mesmo e de
orientar-se intencionalmente em direção a valores, de modo a conferir à vida a
melhor realização possível. A afirmação de liberdade individual esbarra na existência da liberdade dos outros e na possibilidade de um conflito das liberdades.
A solução desse conflito aponta para duas alternativas: a imposição da vontade
de uns à dos outros, pela violência ou a limitação das liberdades pela justiça. No
primeiro caso, a afirmação de liberdade de um é “desvalorização de liberdade
dos outros”, “luta sem regras”, “competição desleal” (ibid., p. 21), defendida por
Maquiavel e Hegel. No caso do primeiro filósofo, é garantia “de interesse público”,
de governabilidade; mas impediria “a dignidade e a liberdade dos súditos”. No caso
de Hegel, este afirma que “é o egoísmo dos heróis que fez avançar a humanidade”
(ibid., p. 22). E mencionando Darwin, mostra como, para o biólogo, a supremacia
dos mais fortes caracterizaria a evolução das espécies.
Todos esses autores: Maquiavel, Hegel, Darwin–teriam atribuído um sentido
positivo à luta sem regras, no conflito das liberdades.
Para outros autores, a competição é saudável, mas deve ocorrer dentro de
limites éticos. É a ética do guerreiro, que valoriza, no conflito, o adversário,
respeitando-o e admirando-o, mas, caso vença a luta, despreza os fracos.
Para nosso filósofo, a solução do conflito das liberdades dá-se na perspectiva
de uma ética cristã, que aceita a liberdade de todos, afirmando a exigência suprema de caridade, do repúdio à violência, de responsabilidade do forte pelos mais
fracos, subordinando a violência à justiça.
É na meditação sobre a liberdade cristã, desdobrada nesse texto, que nosso
autor assinala a correlação liberdade / igualdade; liberdade / justiça.
O fundamento de “liberdade das criaturas é condição de seu mérito”; constitui
sua dignidade essencial, pois todos os homens, como filhos de Deus, têm “idêntica
capacidade potencial” (ibid., p. 24).
A liberdade se reconhece como qualidade essencial, na medida em que, descrevendo os outros homens “como titulares potenciais de capacidades idênticas
às nossas e como estando potencialmente abertos também a um número não definido de possíveis identificações conosco” (ibid., p. 44), permite aí reconhecemos
a manifestação de sua liberdade.
SOVERAL, E. A. de, Sobre os Valores e Pressupostos da Vida Política Contemporânea e outros
ensaios. Lisboa: INCM, 2005.
312
216
Considerando as características essenciais do homem, percebemos neles a
igualdade como capacidade potencial análoga à nossa, e como correlato dela, a
exigência de limites éticos à liberdade.
Esses limites consistem na não instrumentalização de sujeitos livres, o que
implica não apenas na exigência ética, mas também na estruturação de parâmetros jurídicos para a existência, de modo a impedir a violência, nos inevitáveis
conflitos das liberdades. Para nosso filósofo, “o único antídoto da violência é a
justiça” (ibid., p. 45).
A justiça consiste no reconhecimento de uma igualdade originária entre os
homens; sua função não é apenas impedir conflitos, mas apontar “idealmente
para a plenitude da conciliação de todas as virtudes éticas (...) realizando a mais
perfeita convivência intersubjetiva (...)” (ibid., p. 49).
O estudo do problema ético de liberdade aparece ainda uma vez, no mesmo
texto, quando Soveral aborda uma tipologia dos comportamentos éticos, debatendo as relações entre causalidade / liberdade; espontaneidade / liberdade; dualismo
metafísico / liberdade.
A liberdade, nesse estudo, implica as capacidades do homem de autonomia,
antecipação do futuro “e poder para modificar o real” (ibid., p. 277). Para que essa
autonomia assuma uma dimensão ética, é preciso que o agir esteja orientado segundo
valores, aos quais o homem seja fiel e que tenha por objetivo realizar o melhor.
É nesse horizonte que se situam, historicamente, os temas e os debates em
torno da liberdade. O primeiro aspecto assinalado pelo nosso autor é a discussão
da relação causalidade / liberdade.
Diversamente da compreensão de fenômenos naturais, onde a relação causaefeito auxilia o conhecimento e a atuação sobre eles, no âmbito de liberdade, da
vida subjetiva, a noção de causalidade não se põe. A liberdade implica “o que
não tem causa, que é espontâneo” e mais ainda, “a iniciativa da ação” (ibid., pp.
278-279), isto é, a decisão do sujeito.
Assim, a espontaneidade só está associada à liberdade quando atinge o plano
de consciência, aí recebendo um significado. Distinguindo entre instinto, desejo
e razão, Aristóteles e Kant reconhecem só a ação racional como ação ética. Descartes, por sua vez, só considera como ação voluntária a que se processa no plano
consciente, relegando a vida instintiva ao âmbito da paixão. Freud partiu de uma
concepção complexa de vida anímica, pensando a sexualidade e a corporeidade no
âmbito de uma configuração biológica, dirigida à fruição de prazeres. Contestando
a arqueologia da psique proposta por Freud, embora reconheça a importância,
para este, da consideração do “homem como titular de uma acção espontânea cujo
afloramento, a nível da consciência, observou com rara penetração” (ibid., p. 281),
nosso filósofo procurou mostrar que uma causalidade subconsciente das ações
compromete a liberdade. Para assegurá-la, só o exame das noções de esforço e de
criação humana o permitiria, possibilitando a compreensão do ato voluntário.
217
A noção de determinismo, examinada a seguir, exprime a relação causa-efeito
no plano do conhecimento e no plano metafísico. Postulando a existência de leis
ou constantes no mundo natural, o determinismo epistemológico se expressa, no
âmbito da Filosofia, como base explicativa do mecanismo do mundo, em Descartes;
em Kant, é a estrutura a priori das categorias que possibilita o conhecimento do
mundo; em Hegel, expõe a repetição que caracteriza o mundo orgânico; em Spinoza,
“o determinismo tem uma configuração metafísica e é absorvido pela noção mais
ampla de razão divina” (ibid., p. 283-284), de modo análogo à noção leibniziana
da harmonia pré-estabelecida.Na perspectiva do determinismo, as concepções
filosóficas que o apóiam “envolvem o problema da naturalização do homem e a
negação de sua liberdade” (ibid., p. 284). O determinismo, exigido pelas ciências
empíricas”, impôs uma visão naturalista (...) a toda a cultura” (ibid., p. 286).
Sua superação, como atitude epistemológica, dá-se a partir da cibernética
atual, que mostra ser possível a existência de máquinas finalizadas, capazes de
auto-correção, cuja existência implica, não a negação de liberdade, mas a possibilidade de se “inscrever, de fora, no sistema de relações causais, uma finalidade”,
reafirmando que a característica de liberdade é a eleição dos fins” (ibid., p. 287).
É recorrendo a Kant que nosso autor procura superar a contraposição determinismo / liberdade.
Para Kant, o homem é corpo e espírito; por seu corpo, acha-se sujeito aos fins
sensíveis; mas pelo uso de razão, transcende o determinismo, inscrevendo a dimensão meta-empírica no seu existir, pela observância das máximas da razão prática,
que o conduzem ao “respeito pela autonomia própria e alheia” (ibid., p. 289).
A partir de Kant, aprofundando a posição kantiana, mas inspirada em Husserl,
acha-se a ética de Scheler, que pode ser sintetizada do seguinte modo: na existência
humana concreta acha-se “uma pluralidade de valores realizáveis” (ibid., p. 290),
sendo alguns preferidos, outros excluídos da realização. A escolha de um valor
como valor supremo possibilita ao homem hierarquizá-los, por uma opção livre,
e assegura o comportamento ético, entendido como fidelidade à opção feita.
Desse modo, recorrendo à noção de intencionalidade da consciência e à
proposição de valores como modelos paradigmáticos da ação, Soveral afirma o
homem como sujeito ético, pessoa, capaz de reconhecer racionalmente o melhor
e orientar a ação segundo esse reconhecimento.
Consciência de si, escolha de valores, proposição de uma finalidade para a
ação, foco da totalidade de vida na afirmação dessa consciência e desses valores:
condições da vida ética e da liberdade, assim como a abertura ao outro, com o
qual se constrói a vida propriamente humana.
Liberdade responsável que faz o sujeito tender para sua realização como ser
humano: indivíduo e participante de uma comunidade de seres livres, convivendo
para a realização de objetivos análogos.
218
A tradição escatológica da filosofia portuguesa da história
Um exame comparativo das filosofias da história em Portu­gal e no Brasil põe
em relevo alguns traços comuns: fontes no agostinismo, no romantismo alemão
e afirmação da prioridade do mito na hermenêutica da história.
A grande síntese de António Quadros313 servirá de fio condutor para nossa
abordagem inicial. A oposição entre mito e história, marcada pelo início do pensamento grego, leva Quadros a examinar a noção de causa final em história, a busca
da verdade, do sentido, que existe nos textos dos pensadores portugueses.
Santo Agostinho, que propõe uma história filosófica, é a fonte principal do pensamento português. Seu discípulo, Paulo Orósio, estabeleceu “nexos comparativos
entre várias evolu­ções nacionais” (ibid., p. 32). Sua concepção providencialista
da história ressoa no pensamento português, de Vieira a Sampaio Bruno, a Jaime
Cortesão e a Agostinho da Silva (ibid., p. 33).
Vieira tematiza o Quinto Império, teoriza a ucronia, e reper­cute em Bruno,
Pessoa, Agostinho da Silva. Anunciando o Quinto Império, Vieira propõe uma
leitura do sentido da histó­ria, que floresce no messianismo judaico-português e
no mito sebastianista, impregnando sua reflexão com uma espécie de “mitologia
cristã (...) mitologia do futuro” (ibid., p. 57).
Há, na história, um dinamismo prospectivo, sem o qual a apreensão de um
mero suceder de fatos seria caótico; não basta recolher os fatos, registrá-los: a
história exige sempre análise e interpretação dos documentos, sem poder nada
desprezar. Deve tratar, pois, de encontrar, mediante a filosofia da história, “o critério de integração universal, capaz de desco­brir a relatividade de todas as partes
perante um todo que lhe seja simultaneamente imanente e transcendente” (ibid.,
p. 67).
E foi a partir “de Oliveira Martins, Cunha Seixas e Sampaio Bruno” (ibid., p.
92), que a filosofia portuguesa buscou um elemento universal, um fundamento
meta-nistórico para a compreensão da história.
Outra vertente importante do pensamento português deve-se ao também discípulo de Santo Agostinho, Joaquim da Flora, o qual propõe a teoria da sucessão,
na história, das três ida­des – a do Pai, do Filho e a do Espírito Santo – e tematiza
o Evangelho Eterno. Seu pensamento teve ressonância profun­da em Portugal e
313
Introdução à filosofia da História, Lisboa, Verbo, 1982.
219
influiu na obra de Cortesão e de Agostinho da Silva, e, de modo particular, no
Brasil, inspirou indiretamente movimentos populares, como a pregação de António Conse­lheiro e, na literatura, um Jorge de Lima, um Suassuna, uma Neide
Archanjo.
O pensamento de Joaquim de Flora teria inspirado, segun­do A. Quadros,
através do martinismo, autores românticos franceses e alemães, e a reflexão de
Sampaio Bruno (ibid., p. 109 e segs); inspi­rou ainda, por leitura direta dos textos
medievais, autores recentes, como Agostinho da Silva.
Teleologia, escatología e profetísmo combinam-se, no dizer de A. Quadros, na
reflexão filosófica sobre a história, ern Portugal: “Toda a história é teleológica. Toda
a história é escatológica. Toda a história particular se subordina a causas finais.
Todas as causas finais, na história universal, se subordinam à causa última (...). A
atividade profética é própria do homem” (ibid., p. 207), e o historiador traduz o
finalismo da história “em termos de futuras realidades concretas” (ibid., p. 209).
Assim, a leitura da história a partir de um mito fundador, levaria à compreensão do acontecer e das suas possibilidades de resolução futuras: no sebastianismo,
mito fundador de Portugal, pode ser lida a busca permanente de redenção do
homem, assim como no mito do Quinto Império. É esta hermenêutica do mito,
como ponto de partida para a compre­ensão da história, para a busca de redenção
e sabedoria, que caracteriza o pensamento português: “O mito exprime de forma
narrativa e simbólica o enigma de existir e ser (...) a relação do homem com Deus”
(ibid., p. 229).
Nesta perspectiva, autores portugueses, como Cunha Seixas, buscaram “uma
fórmula compreensiva de toda a história humana”, abertos ao “enigmático do mito
e ao misterioso da religião” (ibid., p. 263), encontrando sua fonte principal em
Joaquim de Flora, e em variantes do neo-platonismo, como Sampaio Bruno, que
tematiza como finalidade da história o “regresso ao homogéneo” (ibid., p. 265),
ou “uma espiralada ascensão” (ibid., p. 270 e segs), como diz Leonardo Coimbra,
em direção a um mundo fraterno, cuja garantia é o Cristo; ou ainda, como a caminhada da humanidade em direcão ao paraíso perdido, em Teixeira de Pascoaes
e em Pessoa” (ibid., p. 273 e segs). Sua expressão maior, no plano filosófico, vai se
encontrar na ontoteologia de José Marinho, para quem a finalidade da história
é a revelação do ser do homem e do sentido de sua caminhada em direcão ao
“ime­morável” (ibid., p. 274 e segs); no paracletismo de Agostinho da Silva e de
Jaime Cortesão (ibid., p. 280 e segs): “Agostinho da Silva visava a Humanidade em
marcha para o reino da fraternidade universal e do amor (...) para o império (...)
do Espírito da Verdade (...) entendendo o D. Sebastião coletivo [como] o povo
luso-brasileiro” (ibid., p. 282).
Estes temas, que Agostinho da Silva desenvolveu e reto­mou em múltiplos
textos, constituem o núcleo de um pensa­mento cuja irradiação será sentida atra-
220
vés da atuação inces­sante deste pensador, que irá realizando, no desenrolar da
história concreta das universidades e centros de cultura brasi­leiros, a ponte entre
o valor – horizonte, representado pelo mito do Reino universal do Espírito, e a
sua expressão no fluir do tempo.
Outra vertente do pensamento português prende-se mais diretamente ao
pensamento filosófico grego, ao romantismo alemão, ao heideggerianismo, à
fenomenologia da religião. Refiro-me aos textos magistrais de Eudoro de Souza,
pensa­dor português radicado no Brasil, cuja contribuição para a decifração dos
mitos gregos, e do laço entre filosofia e mito, mito e história, foram amplamente
estudados por Fernando Bastos314.
No Brasil, a meditação sobre o sentido da história, a sua compreensão a partir
do mito fundador do cristianismo, é posta em primeiro plano por Vicente Ferreira
da Silva e seu discípulo, Adolpho Crippa, e pelos autores da escola heideggeriana,
da qual destacarei Maria do Carmo Tavares de Miranda.
Os laços de amizade de Vicente com Agostinho da Silva não assinalam fontes
comuns; este sinal aparece, contudo, nitida­mente, no diálogo com Eudoro de Souza, voltado para a filosofia grega e para as obras de Kerényi, Eliade, e os românticos
alemães. O denominador comum a todos eles reside na “hermenêutica da época
humana”, na hermenêutica da história através de mitos fundadores.
Alguns textos de Vicente são especialmente sugestivos: “Sobre a Origem e o
fim do mundo”, “Sobre a Teoria dos Modelos”, “Hermenêutica da Época Humana”,
“História e Meta-história”, “Diálogo do Mar”.
Em “Sobre a Teoriados Modelos”, Vicente diz: “Corno matriz transcendente
dos sucessivos modelos históricos, as protoformas mítico-religiosas agiriam como
princípios supe­riores de plasmação histórica. Evidencia-se aqui a tese de Schelling
e Bachofen, segundo a qual é o mito que explica a História e não a História que
explica o mito”315. Ou seja, o mito fundador é aberto pela iluminação do Ser,
como pensava Heidegger, e o sentido da história é dado através de uma sucessão
de mundos; as diferentes etapas históricas são instauradas pela emergência de
sucessivas e exclusivas con­cepções do sagrado; história é teomaquia. Estaríamos
viven­do, diz Vicente, o fim de um mundo; um apocalipse que se caracteriza pelo
surgimento do monstruoso e pelo tédio; mas também vivemos a alvorada de um
novo modo de ser, apenas entrevisto. O mito propicia o desvelamento do ser do
homem, abre o horizonte das nossas possibilidades; o mito é a poesia primordial
do Ser, fundadora dos mundos: “O regime de Fascinação que comandou a parusia do homem, recebeu historicamente o nome de Cristianismo” (ibid., p.177);
estaríamos esgo­tando as possibilidades abertas pelo mito cristão e vendo emergir,
ainda sem clareza, um novo sentido do sagrado; “Somos seres do limiar (...) só
314
315
Mito e filosofia, Brasília, UnB, 1991.
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II.
221
podemos pressentir a sombra das coisas por vir” (ibid., vol. I, p. 507); pois “todo
o processar-se da História cumpre-se no interior das sugestões consignadas pelo
Fascínador” (ibid., vol. II, p. 187). A história é a sucessão de ciclos numinosos,
a suces­siva possessão da consciência humana por diferentes deuses, diferentes
sentidos do sagrado: “A catástrofe mundial é ao mesmo tempo uma nova epifania
mundial” (ibid., p. 189). E é a Schelling que Vicente tributa esta leitura teogônica
da história, sem contudo identificar-se inteiramente com as propostas desse autor,
como já mostramos em outros estudos.
Nessa perspectiva, há “uma primazia do futuro na estrutura do mundo” (ibid.,
vol. II, p. 536), na prospecção do mito vindouro, na busca de um pôr-se à escuta
do tempo de uma Fascinação, de um domínio projetante: “Creio que o mundo
flui do futuro para o presente e daí para o passado (...) o poder-ser é mais forte e
decisivo que o estar-aí do real” (ibid., p. 536).
A história caminha para uma superação do humanismo, para a emergência
de novos deuses, de novas possessões da consciência por formas ainda desconhecidas de ser.
Maria do Carmo Tavares de Miranda, aluna e discípula de Heidegger, representa, no plano do pensamento, um laço entre a inspiração heideggeriana e a
tradição portuguesa. Vamos nos ater ao seu texto Conjugando Memórias316, onde a
autora tematiza “a vida como dimensão do espírito” (ibid., p. 47), como medita­ção
sobre a fugacidade do existente, dilaceramento entre o passado e o futuro. Mas
o tempo é também recordação e espera, por-se à escuta do sentido do Ser, busca
da liberdade e da verdade. O filosofar é ponte e palavra, “caminho do pensar e
do agir” (ibid., p. 53), em direção ao Bem, entendido em sentido agostiniano: “A
finalidade deste processo é a Vida que nasce da morte, Vida, pura Vida, porque
libertada de mudanças, metamorfoseada” (ibid., p. 101). Pensar o tempo, assim, é
pensar a “ges­tação do ad-vir” (ibid., p. 69), é pensar o homem como ser suspenso
entre a finitude e o infinito.
É à luz desta compreensão do sentido da história e do homem que Maria do
Carmo interpreta a ação dos portugue­ses, o sentido do homem português: “A
consciência portugue­sa é como o fluir do Tejo e o ondular do mar: faz-se e opera
entre o fatalismo do que a abarca em imensidão e ativa as ações pontilhando
todos acontecimentos” (ibid., p. 60). É a partir de Fernando Pessoa que nossa
autora reconhece o português como um peregrino, que constrói passagens; com
o homo viator, cuja audácia expansionista se explica pela exigência interna “de
estabelecer relações vitais com o mundo” (ibid., p. 61), de ampliar o sentido do
humano, universalizá-lo, construindo o futuro. Herdeiro do messianismo hebraico,
o povo português tece seu destino, através de “aventuras de cooperação”317. Lendo
316
317
Tempo Brasileiro, RJ, 1987.
FREYRE, G., in TAVARES DE MIRANDA, M. C., op. cit., p. 62.
222
o sentido de Portugal e a universalidade de sua experi­ência através do Mensagem,
de Pessoa, Maria do Carmo entende sua história como a do homem peregrino,
em busca do Ser.
Não esgotamos as possibilidades de reflexão sobre ser e tempo, na escola heideggeriana; seria preciso examinar os textos sobre o sentido da história de Ernildo
Stein, Carneiro Leão; o hegelianismo do Pe. Lima Vaz; a meditação culturalista
de Reale; o tomismo aberto de Van Acker, dialogando com Bergson; os estudos
sobre Teilhard de Chardin, de José Luis Archanjo.
Escolhemos nos deter em alguns autores cuja meditação-de inspiração agostiniana e/ou romântica e heideggeriana, estudiosos da mitologia – estabeleceu
pontos que servem para refletirmos sobre o contato entre o pensamento português
e brasileiro, ao afirmar a importância do mito, do futuro, para a compreensão da
história.
223
224
Aspectos das filosofias brasileira e portuguesa depois de 1950
Entre 1950 e 1955, Vicente Ferreira da Silva, pensador reconhecido como
uma das mais originais expressões da atual filosofia brasileira318, afirmava uma
vinculação com a cultura ocidental e sua representação da vida pondo em relevo
a “isocracia” e a “isocronia” entre os pensamentos americano e europeu319.
É nesse horizonte, de permanente diálogo com a filosofia européia, que autores como o próprio Ferreira da Silva320, Renato Cirell Czerna321, H. Cláudio de
Lima Vaz322, Lídia Acerboni323, L. Washington Vita324, A. Paim325, assinalam, de
modo convergente, a presença de três grandes orientações na filosofia brasileira,
a partir de 1950: a corrente existencial, a culturalista, a reflexão sobre a ciência.
Esses três eixos, a nosso ver, estão polarizados por três pensadores: Vicente Ferreira da Silva, Miguel Reale, Newton da Costa.
Foram eles os autores que dialogaram, de modo mais fecundo, com o pensamento ocidental de nossa época e cujas obras alcançaram maior repercussão fora
do país. Todos reuniram, em torno de si, outros estudiosos e exprimiram uma
reflexão original através de seus escritos.
Vicente Ferreira da Silva, nitidamente apoiado em Heidegger326, expõe e acolhe os temas-chaves do pensamento heideggeriano: a finitude; a liberdade como
exercício num campo aberto de possibilidades; o Ser como o Nada, em relação
ao mundo dos entes; a ruptura com a metafísica tradicional; a relação entre o ser
e o sagrado. Mostrando aquilo que o diferencia de Heidegger, Vicente interpreta
o Ser como Fascinação e a mitologia como protopoesia. A obra de Heidegger
318
PAIM, A., História das idéias filosóficas no Brasil, Londrina, UEL, 1997, pp. 696 e segs; KUJAWSKI, G. De M., Discurso sobre a violência e outros ensaios, S. P., 1985, pp. 149-153; BRAZ TEIXEIRA, A., O Espelho da razão, Londrina, UEL, 1997, pp. 223-226.
319
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, S. P., IBF, 1966, p. 256.
Id., “Discurso sobre o pensamento filosófico contemporâneo”, 1950; “A situação atual da filosofia”, 1954; “Enzo Paci e o pensamento sul-americano”, 1955; “A situação da filosofia em nossos
dias”, 1955 (todos os textos se acham no volume II das Obras Completas).
321
“Panorama da Filosofia no Brasil”, Anais do 1º Congresso Brasileiro de Filosofia, S. P., IBF/
EDUSP, 1950, p. 257.
322
“O pensamento filosófico no Brasil de hoje”, in L. Franca, Noções de História da Filosofia, R. J.,
Agir, 1969, passim.
323
A filosofia contemporânea no Brasil, S. P: Grijalbo, 1969, passim.
324
Panorama da filosofia no Brasil, Porto Alegre: Globo, 1969, passim.
325
Op. cit., passim.
326
Cf. nosso “Heidegger no Brasil”, in O grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000, pp. 231-236.
320
225
respondeu às indagações do próprio Vicente, confirmando sua problemática e
possibilitando a caminhada de nosso pensador em direção à sua própria filosofia. Este propôs a supremacia do mito sobre o logos, de modo a tornar o pensar
teofania religiosa e poética. Sua filosofia da mitologia representa a leitura mais
interessante, no país, sobre a questão do mito. Pode ser considerado, por isso,
como um precursor das atuais reflexões sobre o simbólico e o imaginário, na
filosofia hermenêutica. A ressonância da obra de nosso filósofo é testemunhada
por seu diálogo com pensadores do porte de Luigi Bagolini, Ernesto Grassi. Mas
o diálogo maior foi sem dúvida o estabelecido com Eudoro de Sousa, que tem
fontes comuns com o filósofo paulista.
Numa identidade quase textual com os escritos deste, os temas da oposição
entre o mito e o logos, a aproximação entre a mitologia e a filosofia, a apreensão
da corporeidade como expressão de um rito originário e de uma sacralidade
meta-humana, apareceram como alguns dos pontos de convergência entre os
filósofos brasileiro e português327.
A permanência do interesse pela obra de Heidegger é atestada, em Portugal,
pela publicação, em 1989, de um número especial da revista da Sociedade Portuguesa de Filosofia328, com a colaboração de Nuno Nabais, Irene Borges Duarte,
José A. Bragança de Miranda, apresentando artigos e um repertório bibliográfico das publicações (traduções, resenhas, monografias, artigos), em Portugal e
no Brasil, sobre o filósofo alemão. Os números especiais da Revista Portuguesa
de Filosofia329, o primeiro, dedicado a Heidegger; outro, no centenário de seu
nascimento – trazem artigos de Carlos Henrique do Carmo Silva, Jorge Cesar
das Neves, Carlos Estevão e, novamente, uma bibliografia de obras de e sobre
Heidegger.
Retomada recente do assunto foi feita por Irene Borges Duarte e Alexandre
Franco de Sá, examinando a recepção de Heidegger em Portugal e atualizando a
bibliografia disponível até 1999330, reune a colaboração de Fernando Bernardo,
João Constancio, Helder Lourenço, Vitor Moura, Bernhard Sylla, num projeto
do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Irene Borges Duarte criou
um grupo de estudos sobre Heidegger em Português. Teve apoio da Fundação
Gulbenkian para publicar, com o grupo, traduções e edições críticas de textos de
Heidegger: Caminhos de Floresta, em 1998; Lógica, em 2008. Publicou ainda os
textos do Colóquio Internacional A Morte e a Origem, realizado em colaboração
SOUSA, E, de, Orfeu ou Acerca do conceito de Filosofia Antiga, S. P., RBF, IBF, vol. III, fasc. 3,
nº 11, julho-set., 1953, pp. 384-399; FERREIRA DA SILVA, V., Orfeu e a Origem da Filosofia, in
Obras Completas, vol. II, pp. 153-155. Cf. também ABRANCHES DE SOVERAL, E., Pensamento
luso-brasileiro, Lisboa, ISNP, 1996, pp. 213-227.
328
Filosofia, Lisboa, vol. III, nºs 1/2, outono.
329
Braga, 1977; julho-set, tomo XLV, 1989, fasc.3.
330
Philosophia, Departamento de Filosofia da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, nº 13, Abril de
1999, pp. 151-167.
327
226
com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e a secção de Filosofia da
Universidade de Évora, em torno de Heidegger e Freud em 2008, e em 2014, seu
livro Arte e Técnica em Heidegger. Promove Seminário permanente dedicado à
obra de Heidegger, em Évora. Destaque-se também a sua participação na publicação de número especial da RPF, em 2003, sobre a Herança de Heidegger.
Do lado brasileiro, as traduções e estudos sobre Heidegger estão presentes
desde as décadas de 60/70, desdobrando-se até a década de 90, com os trabalhos
de Carneiro Leão, Maria do Carmo Tavares de Miranda, Benedito Nunes, Gerd
Bornheim, Ernildo Stein331. Muito importantes também: o estudo de João Amazonas Mac Dowell, A gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger332,
publicado em 1970 e reeditado recentemente pela Loyola; a tradução de Ser e
tempo333, por Márcia de Sá Cavalcanti, prefaciada por Emmanuel Carneiro Leão;
e o aparecimento de Heráclito – mesma tradutora334 -, em 1988.
A permanência de estudos acadêmicos sobre a obra de Heidegger mostra o
interesse das filosofias brasileira e portuguesa por esse autor. Mas a direção fecunda, presente em Vicente e Eudoro, ressoando em Adolpho Crippa de modo
imediato, parece-nos provir de um diálogo, não apenas com Heidegger, mas
com autores da Escola de Eranos, como Kerényi, Eliade, Jung. A apresentação
da revista Diálogo, publicada em São Paulo e escrita por Vicente, mostra essa
convergência. Estudos mais recentes, no Brasil, mostrou a crítica às associações
da filosofia de Heidegger com o nazismo. Trata-se do ensaio Heidegger Réu, de
Zeljko Loparic, publicado em 1990; os trabalhos de Leda Miranda Hühne (org.),
sobre o poetar pensante em Pessoa e Heidegger, editado em 1994; as traduções,
retomadas pela editora Vozes, de vários textos de Heidegger: os Seminários de
Zollikon, A Caminho da Linguagem, Parmenides, Metafísica de Aristóteles 1-3, Ser
e Verdade, e do estudo introdutório, Compreender Heidegger, por seu tradutor
brasileiro, Marco Antonio Casanova. Destaque-se a realização, em Santa Catarina, do I Simpósio Internacional Hermeneia, dedicado a Heidegger, organizado
por Roberto Wu e Claudio Reichert do Nascimento, publicado com o título de
A obra inédita de Heidegger, em 2012, com o apoio da CAPES e da Universidade
Federal de Santa Catarina.
E é nessa direção, de um diálogo amplo com outras fontes: os autores presentes na Escola de Eranos, que a importante meditação sobre o mítico e o simbólico ressurge, nos escritos de Gilbert Durand, da Escola de Grenoble, e de
que, em Portugal, o livro Cavalaria Espiritual e Conquista do Mundo é exemplo
paradigmático, como no Brasil o são os estudos de José Carlos de Paula Carvalho
e Denis Badia, em São Paulo, e os de Danielle Rocha Pitta, em Recife.
Cf. Heidegger no Brasil, in O Grupo de São Paulo.
São Paulo, Herder/EDUSP.
333
Petrópolis, Vozes, 1988, 2 vols.
334
R. J., Relume-Dumará.
331
332
227
A outra grande vertente do pensamento brasileiro é o culturalismo, cuja figura de proa é Miguel Reale335. Na sua obra, três momentos são marcantes: sua
inspiração inicial, na filosofia kantiana, que tem como ponto importante O direito como experiência, de 1968; o encontro com o pensamento fenomenológico,
ultrapassando Kant, na direção do neo-criticismo de Brunschvicg e Bachelard e
na descoberta das obras de Husserl, Scheler, Merleau-Ponty, de modo a ser superada a oposição entre natureza e espírito, ser e dever-ser; a leitura da hermenêutica heideggeriana e de seus desdobramentos em Gadamer, bem como o relevo
atribuido às hermenêuticas de Betti e Habermas, levando Reale além da posição
husserliana e desenvolvendo uma reflexão crítico-histórica. Tal reflexão põe em
primeiro plano a dialética homem-mundo, valoriza a intersubjetividade e descobre o ato interpretativo na sua natureza axiológica. A trajetória dessa superação
acha-se sintetizada na obra Experiência e Cultura336, cuja primeira edição é de
1977, conforme mostrou Antonio Paim337 e em Verdade e Conjectura338.
A obra de Reale não sintetiza apenas sua trajetória; representa, também, a
própria evolução histórica do pensamento brasileiro, que encontra na difusão da
fenomenologia husserliana, nas de Scheler e de Merleau-Ponty, cultores expressivos. O trabalho sistemático de exame e difusão desses autores foi feito exemplarmente por Creusa Capalbo, através de seu livro sobre Fenomenologia e Ciências
Humanas, conforme mostram diversos estudiosos339. Diz José Maurício de Carvalho: “A contribuição de Creusa Capalbo foi a interpretação inovadora do método
fenomenológico” (op. cit., p. 223), entendido como hermenêutica e dialética.
A escola fenomenológica é uma das mais representativas da nossa filosofia
atual; dentre tradutores e intérpretes de Merleau-Ponty, por exemplo, temos: José
Anchieta Correa, Salma Tannus Muchail, Antonio Muniz de Rezende, Marilena
Chauí. Traduções e estudos das obras de Scheler também devem ser postos em
relevo, como atestam as publicações feitas pela Editora Vozes, de Petrópolis.
Por sua vez, a escola hermenêutica, na tríplice orientação: como ontologia, a
partir de Heidegger, Gadamer, Bachelard, Ricoeur; como metodologia, a partir
de Betti; como crítica das ideologias, na linhagem de Habermas, Apel – vem desencadeando estudos, traduções, colóquios.
Cf. “A hermenêutica de Miguel Reale”, in O grupo de São Paulo, pp. 161-168.
Há nova edição, em 2000, pela Bookseller, de Campinas.
337
“Um marco fundamental da filosofia contemporânea”, S. P., Caderno de Sábado, Jornal da Tarde, 16/09/2000, p. 30.
338
R. J., Nova Fronteira, 1983; Lisboa, Fundação Lusíada, 1996.
339
CORTES GUIMARÃES, A., O pensamento fenomenológico no Brasil, RBF, fasc. 198, AbrilJunho de 2000, pp. 266-267; SEVERINO, A. J., A Filosofia contemporânea no Brasil, R. J., Vozes,
1999, p. 107; A. Paim, op. cit., p. 691 e segs.; CARVALHO, J. M. de, Curso de introdução à filosofia
brasileira, Londrina, CEFIL/UEL, 2000, pp. 221-232.
335
336
228
Assim, temos as traduções de Verdade e método340; da Hermenêutica, de Schleiermacher341; de A transformação da filosofia, de Apel342; dos textos de Habermas: Dialética e hermenêutica343; Pensamento pós-metafísico344; Consciência moral e agir comunicativo345. Dentre os cultores da obra de Habermas, podemos
destacar: Flávio Siebeneichler, L. Bernardo Leite Araújo, Álvaro Valls.
A hermenêutica francesa, de Bachelard, foi objeto de um colóquio em Campinas, na PUC, reunindo estudiosos como Maria do Carmo Tavares de Miranda,
Elyana Barbosa, Marly Bulcão, Mirian de Carvalho; a filosofia de Ricoeur foi
tema de congresso no Rio de Janeiro, organizado por Alino Lorenzon. As obras
de Ricoeur foram divulgadas em traduções e escritos de Hilton Japiassu e foi
objeto do Colóquio na UNICAMP, editado em 2011; do II Simpósio Hermeneia,
na UFSC em Santa Catarina, organizado por Roberto Wu e Claudio Richert do
Nascimento e de inúmeros eventos, no Brasil e na América Latina, destacandose o importante Congresso Internacional realizado na PUC do Rio de Janeiro:
Paul Ricoeur. Ética, Identidade e Reconhecimento, em 2011 e cujas conferências
plenárias foram publicadas pela Ed. Loyola/PUC do Rio, em 2013. A obra de Ricoeur vem sendo traduzida pela editora Loyola e editada também pela Martins
Fontes e editora da UNICAMP.
Estudos sobre o filósofo foram organizados por Ruth Rieth Leonhardt e Elsio
José Corá, na UNICENTRO, e publicados em 2011; e dentre os estudiosos de seu
pensamento, destacamos Hélio Gentil, Jeanne-Marie Gagnebin, Maria da Penha
Villela-Petit, que trabalham em colaboração com o Fonds Ricouer, de Paris.
No âmbito da filosofia do direito, a hermenêutica é estudada por Nelson Saldanha, de Recife e professores do Rio Grande do Sul. Ricoeur e Gadamer, Betti,
despertam interesse.
As traduções portuguesas das obras de Bachelard; as dos livros de Palmer e
Bleicher, respectivamente sobre história da hermenêutica e sobre as suas correntes contemporâneas346; os artigos de Dias Costa, Estanqueiro Rocha, F. Henriques, Sirgado Ganho e M. Sumares, sobre Ricoeur, na Revista Portuguesa de
Filosofia347; o estudo crítico sobre o problema do conflito das interpretações,
de Maria Portocarrero348, que já publicara texto sobre Gadamer; as traduções
de Ricoeur pelo Instituto Piaget (O justo), bem como do importante estudo de
Petrópolis, Vozes, 1997.
Petrópolis, Vozes, 1997.
342
S. Paulo, Loyola, 2000.
343
Porto Alegre, L&PM Ed., 1987. Tradução e introdução de Álvaro Valls.
344
R. J., Tempo Brasileiro, 1990.
345
Mesma editora.
346
Lisboa, Ed. 70.
347
Janeiro-Março de 1990.
348
Ed. Univ. de Coimbra. Maria Luiza Portocarrero mantém um Seminário permanente, na Universidade de Coimbra, dedicado a Paul Ricoeur.
340
341
229
Mongin, A promessa e a regra – parecem assinalar a vitalidade, em Portugal, dos
trabalhos sobre tais autores. Em Évora, Maria Fernanda Henriques organizou
congressos internacionais sobre Ricouer; e Margarida Amoedo organizou um
acervo bibliográfico sobre Ricouer em português.
As filosofias fenomenológica e hermenêutica, valorizando a dimensão simbólica do pensar, podem ser um fio condutor para a compreensão de pensadores
portugueses contemporâneos que, meditando sobre os mitos, buscam decifrar o
significado do mundo de língua portuguesa: Afonso Botelho – Teoria do amor
e da morte; Antonio Quadros, – Portugal: razão e mistério; Agostinho da Silva –
Dispersos, Escritos filosóficos I, II; Francisco da Gama Caeiro; Dalila Pereira da
Costa – são impulsionadores desse tipo de reflexão.
Compreender a repercussão da filosofia hermenêutica, na linhagem de Heidegger, Gadamer, Bachelard, Ricoeur, em Portugal e no Brasil; entender o significado dessa valorização do mítico, do poético, do simbólico, nesses grandes
mestres – é examinar como, dando a pensar, tal filosofia pode sugerir-nos caminhos para decifrarmos a nós mesmos.
Por sendas análogas, dialogando com esses autores, Reale elaborou sua ontologia centrada no valor da pessoa. Em Portugal, fontes semelhantes podem
indicar uma comum experiência da mesma vida do espírito.
Com papel aglutinador semelhante ao de Miguel Reale, trabalhando no campo de uma meditação sobre a filosofia do Direito e propondo uma concepção
metafísica do homem, tem Portugal, a nosso ver, António Braz Teixeira. Esses
filósofos – Reale e Braz Teixeira, não têm as mesmas posições filosóficas, não
utilizam as mesmas fontes. Mas convergem no interesse pelo axiológico e na
tematização da justiça, na afirmação do valor da pessoa humana, no reconhecimento de uma dimensão transcendente, no interesse pelas filosofias nacionais e
no esforço de dialogar com as diferentes correntes contemporâneas.
O livro de Braz Teixeira, Sentido e valor do Direito (Lisboa, Imprensa Nacional); seus estudos sobre a saudade; seu trabalho de altíssima qualidade no exame
comparativo das filosofias brasileira portuguesa349 – fazem de nosso filósofo um
dos autores mais expressivos da atualidade, em Portugal.
A terceira direção significativa, entre nós, brasileiros, pode ser representada
pela obra de Newton da Costa, que constituiu uma original versão de lógicas
não-clássicas: a lógica paraconsistente.
Newton da Costa é um dos autores que, meditando sobre a lógica, a filosofia
da ciência, é considerado criador de uma modalidade das lógicas difusas. Nessa
349
Como atestam, v. g.: O Espelho da Razão: estudos sobre o pensamento filosófico brasileiro (1997),
dentre muitos outros escritos. E os recentes: História da Filosofia do Direito Portuguesa (2005);
A Filosofia Jurídica Brasileira do século XIX (2011); A Teoria do Mito na Filosofia Luso-Brasileira
Contemporânea (2014).
230
lógica, a reflexão sobre o tema da quase-verdade o levou a desenvolver o conceito
de verdade pragmática, a partir da constatação de que “as teorias científicas possuem campos de aplicação limitados, não sendo verdadeiras de forma irrestrita”350.
Nosso filósofo teria reformulado as noções de indução e probabilidade, criticando Quine e Popper. Sua concepção de racionalidade científica mostra o cientista
como um elaborador de conceitos; o procedimento racional é identificado ao
“proceder conceitualmente” (ibid., p. 275). O critério para escolhermos determinada lógica ou determinada teoria “é o critério pragmático (...) [que leva] em
conta a clareza, a intuitividade, a expressabilidade (...) das entidades envolvidas”
(ibid., p. 276). O pensador reconhece a existência de entidades contraditórias,
uma vez que a lógica paraconsistente recusa o princípio de não-contradição e
aceita teorias inconsistentes.
Os campos privilegiados de interesse de Newton da Costa e de seu grupo de
pesquisas – é preciso dizer que ele influiu largamente no surto de estudos de
lógicas não-clássicas – são as implicações filosóficas da matemática e da física,
pois, “como é bem sabido, duas das teorias mais importantes de nossa época (...) a
mecânica quântica e a relatividade (...) apesar de aparentemente elas serem complementares (...) são incompatíveis” (ibid., p. 277). Daí Newton da Costa supor, no
dizer de Krause, que “talvez a lógica dedutiva usada pela física possa ser a lógica
paraconsistente”.
Newton da Costa não é o único cultor de lógicas não-clássicas entre nós. Mas
é sem dúvida aquele cujos trabalhos alcançaram repercussão internacional. A
Sociedade Brasileira de Lógica, atualmente dirigida por Ítala d’Ottaviano, mostra, nas suas investigações, a influência marcante das pesquisas do nosso autor. A
lógica matemática teve entre seus divulgadores Leônidas Hegenberg; a filosofia
da ciência e da tecnologia foram abordadas por Milton Vargas em Ciência e Verdade e em Filosofia da Tecnologia, obras em que a investigação das implicações
humanas da ciência e da técnica ocupam o primeiro plano das reflexões. A filosofia analítica, nas suas variadas manifestações, vem representando um campo
importante na atual filosofia brasileira, especialmente através das divulgações de
Danilo Marcondes, Alberto Oliva, Maria Cacília Carvalho351, culminando com a
criação, em Campinas, da Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica.
Um filósofo que trabalhou largo tempo na Universidade de São Paulo, convivendo com Newton da Costa e seu grupo, é um dos representantes da meditação
sobre a ciência em Portugal. Trata-se de João Paulo Monteiro, cujos trabalhos
sobre Hume e sobre o ceticismo são especialmente interessantes.
350
Cf., a propósito da importância de Newton da Costa, o artigo de Décio Krause, “Newton da
Costa: homenagem aos seus 70 anos”, publicado na Revista Brasileira de Filosofia, vol. L, fasc. 198,
Abril-Junho 2000, pp. 268-280. A citação acha-se na p. 274.
351
A filosofia analítica no Brasil, Campinas, Papirus.
231
E, numa outra direção, mais próxima da inspiração fenomenológica, os escritos de Miranda Barbosa sobre a Lógica Pura352, entendida como fundamentação da axiologia mostram a presença desse tipo de inquietação na atual filosofia
portuguesa.
Nossa abordagem está longe de ser exaustiva; busca apenas indicar três grandes direções, centradas em pensadores representativos, dos dois lados do Atlântico. Essas orientações da filosofia atual emergiram do exame cronológico das
principais correntes européias depois de 50. Um levantamento bibliográfico das
publicações apenas começa a ser feito, bem como a identificação dos grupos de
pesquisa. A criação da Associação Nacional da Pós-graduação em Filosofia, que
reune junto ao Ministério da Educação grupos de trabalho interuniversitários e
promove encontros bi-anuais, a cada vez em um ponto diferente do país e tem
publicado os resultados das pesquisas e as listas dos grupos de estudos no Brasil.
Nesses encontros as principais editoras brasileiras apresentam os trabalhos mais
recentes publicados pelos pesquisadores.
Os trabalhos de A. Paim, António Braz Teixeira, Eduardo Abranches de Soveral, Esteves Pereira, começam a indicar as imensas possibilidades de estudos
comparados, que podem e devem ser feitos, sobre a riquíssima produção da segunda metade do século, em nossos países.
SOVERAL, E. A. de., “Algumas notas sobre a gênese do pensamento de Miranda Barbosa”;
“Sobre a essência do conhecimento”, in Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, ISNP, 1996, pp. 89-98
e 99-110.
352
232
Antônio Paim e a história das idéias filosóficas no Brasil:
questão de método
Falar sobre a História da Filosofia no Brasil, na década de 90, é falar sobre a
contribuição essencial de António Paim para nossa atual compre­ensão do assunto.
O grande texto publicado em 1967, História das Idéias Filosóficas no Brasil,
lhe valeu o Prêmio do Instituto Nacional do Livro em 1968 e o Prêmio Jabuti
de Ciências Humanas em 1985; foi sucedido por diversos trabalhos, dos quais
destacaremos, na mesma linha de visão de conjunto: O Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro, de 1979, que conheceu uma segunda edição em 1986, enriquecida e atualizada, com a indicação de obras gerais e de novos autores e correntes;
e A Filosofia Brasileira, de 1991, editada pelo ICALP.
Sua abordagem da história do pensamento brasileiro surge, confor­me depoimento do próprio Pairn, a partir de dois elementos centrais: a crítica a Sílvio Romero, Cruz Costa e Leonel Franca, buscando precisão metodológica na escolha
de autores relevantes; a inspiração na obra de Miguel Reale, que o leva a tratar
da história da filosofia a partir da iden­tificação de problemas e temas dominantes, em cada época, e a resposta peculiar dada aos mesmos em cada momento
histórico.
Podemos indicar, assim, o estudo do ecletismo, do kantismo, do sur­to do positivismo, da Escola de Recife, do neo-kantismo, marxismo, fenomenologia, culturalismo, filosofia analítica e liberalismo contempo­râneo, como assuntos que
vão sucessivamente despertar seu interesse.
Na obra História das Idéias Filosóficas no Brasil Paim estabeleceu as linhas
mestras de sua investigação ulterior. Sua formação inicial foi marxista; depois, na USP, dedicou-se à leitura direta dos autores – Aristóteles, Kant, etc.
-, que conhecera anteriormente apenas através da crítica marxista. Estudou
detalhadamente a obra de Kant, daí decorrendo sua aproximação com a escola culturalista atual. Sob a influência do marxismo e de Hegel, bem como
de Cousin, entende a história da Filosofia de modo cíclico. A história da Filosofia seria caracterizada por uma regularidade de ascensão e decadência das
escolas, a partir do desenvolvimento de problemas centrais.
Na história da filosofia brasileira, nosso autor identificou três temas recorrentes: o do homem como liberdade, que implica uma acepção de pessoa e um
233
ideal de homem e que comporta duas respostas antagônicas: a que afirma o
homem como ser livre e a que o considera como alguém que pode ser manipulado. O outro tema é o das relações entre filosofia e ciência; ao longo de
nossa história do pensamento essa relação foi apre­sentada ora sob a égide do
cientificismo, ora de sua crítica.
A questão das relações entre ética e política, o papel da filosofia política
também é considerado por António Paim como um dos assuntos que tem
merecido atenção constante dos nossos estudiosos.
Vamos nos deter, para exemplificar a metodologia de Paim, nas duas escolas
filosóficas em cujo exame o emprego do método pareceu-nos mais evidentes: o
ecletismo e o positivismo.
A indagação que serve de ponto de partida para o exame do ecletismo foi: Por
que tal escola se tornou a corrente dominante no Brasil do século XVIII?
A resposta a esta questão o levou a avaliar o ciclo da meditação que se seguiu
à reforma pombalina. O empirismo mitigado da era pombalina, expresso na crítica à Escolástica feita por Vemey, implicava na redução da filosofia à ciência; foi
sucedido pelo tradicionalismo, que reafirmou os valores da antiga Escolástica. É
nesse contexto que surge a figura de Silvestre Pinheiro Ferreira, cujas principais
contribuições foram: a “crítica aprofundada do empirismo, a tematização da
linguagem e do homem como liberdade, a proposta de uma ética inspirada no
utilitarismo e a defesa do liberalismo político. Sua ênfase no tema da liberdade
o aproximou, segun­do Paim, das teses de Maine de Biran; sua meditação “era a
ante-sala do que veio a ser chamado de ecletismo espiritualista”353.
Silvestre Pinheiro Ferreira teria sido o iniciador do pensamento brasileiro, na
medida em que, embora português por nascimento, residiu lon­go tempo no Brasil,
aqui ensinando a filosofia e marcando a formação da elite brasileira.
O exame do ecletismo obedece aos parâmetros metódicos que assina­lamos
anteriormente: a formação, o apogeu e o declínio da escola. Segun­do Paim, entre
1833 e 1848 surge o ecletismo espiritualista, como “pri­meira corrente de filosofia
rigorosamente estruturada”354.
O problema que se apresentava para os intelectuais da escola era o de integrar
a liberdade e o liberalismo político numa visão empirista coeren­te355.
Os critérios para a seleção dos autores relevantes da Escola eclética, no seu
período de formação, foram:
a) a atividade de vulgarização das idéias ecléticas, mediante cursos, por Frei
José do Espírito Santo (Olinda), Salustiano José Pedroza (Bahia), GonçalA Filosofia Brasilei­ra, p. 31.
“A trajetória da filosofia no Brasil”, in FERRI & MOTOYAMA, História das ciências no Brasil,
vol I, p. 14.
355
O estudo do pensamento filosófico brasileiro, p. 46.
353
354
234
ves de Magalhães (Rio de Janeiro), os quais valorizam as obras de Cousin,
Royer-Collard, Jouffroy;
b) as traduções das obras de Cousin, por António Pedro de Figueiredo, em
Recife, e por Moraes e Vale, professor da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro;
c) o conhecimento dos autores franceses, por nossos estudiosos (alguns deles
tendo vivido na França como Magalhães e Pedroza), e atestada pela correspondência de Gonçalves de Magalhães e Mont’Alverne, mencionando
Cousin, Jouffroy (ibid., p. 43).
d) as publicações de manuais de difusão da escola eclética, como o Esboço da
História da Filosofia e o Compêndio de Filosofia Elementar, de Salustiano
Pedroza, e o Compêndio de Filosofia Elementar, de Frei Itaparica, mestre
de Tobias Barreto;
e) o exame das revistas e publicações periódicas dedicadas à difusão do ecletismo, como a Minerva Brasiliense (Rio de Janeiro), O Progresso (Recife,
direção de António Pedro de Figueiredo) com, respec­tivamente, 3 e 2
anos de duração; o Mosaico (Bahia), O Crepúsculo (Bahia);
f) a discussão filosófica nas Faculdades de Direito de São Pau­lo e Recife, e
nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia;
g) “o concurso para provimento da cadeira de filosofia (o gri­fo é nosso) no
Colégio Pedro II (...) em 1844 (...) é transformado em evento consagrador
do ecletismo”356.
No momento de formação, a escola eclética aparece pois ligada ao debate
filosófico, polemizando contra o espiritualismo de João da Veiga Murici e contra
os naturalistas, de que Manoel Genésio Oliveira e Eduar­do Ferreira França são
os representantes. O tema da liberdade e a ação política levam os espiritualistas
a polêmicas com os tradicionalistas, que então propunham “a pura e simples
adesão aos dogmas cristãos”357.
No período de apogeu, a relevância dos autores é estabelecida a par­tir de:
a) identificação de obras importantes, com ressonância na Eu­ropa, como
Fatos do Espírito Humano, de Gonçalves de Magalhães, que publicou
também A alma e o cérebro, e o Ensaio sobre o direito adminis­trativo, do
Visconde de Uruguai;
b) a difusão do ecletismo nas escolas oficiais, como o Colégio Pedro II e os
liceus estaduais, nas décadas de 50 a 80 do século passado. No Colégio Pedro II, por exemplo, foi adotado o compêndio de Janet “e até
cuidou-se de sua tradução” (o grifo é nosso)358;
A filosofia brasileira, p. 40.
O estu­do do pensamento filosófico brasileiro, p. 44.
358
A filosofia brasileira, p. 59.
356
357
235
c) o exame do debate sobre o fundamento da moral, através dos periódicos
da época: O Progresso, A Carteira.
A seleção dos autores é feita a partir da expressão social, política e
literária destes e da ressonância de sua obra; assim, com Sílvio Romero,
Paim põe em destaque: “Monte Alverne, famoso pregador na sede do
Im­pério; Moraes e Vale, que foi diretor da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro; e Domingos de Magalhães, figura de proa do romantismo e
da vida política” (ibid., p. 49).
No período de apogeu, a temática filosófica da escola eclética assu­me
cunho ético-político; está vinculada à busca dos fundamentos “da moral, em bases modernas, que Biran não lograra estabelecer” (ibid., p. 50).
Gonçalves de Magalhães aparece como o autor mais representativo desse
momento, sendo reconhecido como alguém que buscou “um caminho
pró­prio, independente de seus mestres franceses (...)”, abandonando “o
espiritualismo realista de Cousin (...)” por um “idealismo espiritualista”
(ibid., p. 53-54).
Combatido intensamente pelo tradicionalismo católico, de que D.
Romualdo de Seixas, primaz do Brasil, foi expoente – através da im­
prensa católica, e pelo tradicionalismo de cunho político, de que José de
Gama e Castro seria figura destacada, o ecletismo começa a declinar a
partir da ascensão do positivismo, do chamado “surto das ideias novas”
que reafirmava o científicismo e da queda do Império.
Assim, a ascensão do positivismo dá-se de modo significativo a par­
tir da República, pois a “maioria dos espíritos aderiu à suposição de que
haveria filosofia, política e moral científicas”359.
O pensamento de Comte se adequava a um modo de encarar as rela­ções entre
filosofia e ciência que encontrava ressonâncias entre nós, pre­parado que foi pelo
cientificismo do século XVIII, apoiado por Pombal. No seminário de Olinda e
na Real Academia Militar, o cientificismo se difundiu, afirmando a relação entre
filosofia, ciência, política e moral.
É sobretudo na vertente chamada de positivismo ilustrado que a re­lação entre
filosofia e política alcança, no Brasil, maior expressão: com o castilhismo, Borges
de Medeiros, Pinheiro Machado e Getúlio Vargas. Sob a inspiração de Comte,
Júlio de Castilhos elabora uma Constituição estadual e relaciona poder e saber.
O positivismo, no seu apogeu, expressa-se por uma filosofia política de feição
autoritária; uma filosofia da educação que recusa a Universida­de, em favor do
ensino profissionalizante; e uma filosofia moral que subordina toda conduta às
normas da Igreja positiva.
359
O estudo do pensamento filosófico brasileiro, p. 104.
236
A relevância dos autores é estabelecida pela ressonância de sua atuação, bem
como pela difusão do positivismo nas escolas e junto às elites: Alberto Sales, Luís
Pereira Barreto, Benjamin Constant são alguns dos nomes relacionados.
O período de decadência do positivismo ocorre no momento em que uma
nova concepção de ciência – e das relações entre filosofia e ciência – emerge na
vida brasileira. Sinais marcantes disso: a mudança de orienta­ção do ensino no
Colégio Pedro II, que deixa de se inspirar na corrente francesa, e a crítica à concepção de ciência do comtismo, pela elite da Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
que tem como figuras de proa Otto de Alencar e Amoroso Costa.
No âmbito da filosofia política e das relações entre filosofia e eco­nomia, o cientificismo sobreviveu, por algum tempo ainda, na variante marxista. No Rio de
Janeiro, na Faculdade de Direito, Leonidas de Rezende, Hermes Lima e Edgard
de Castro Rebelo desenvolveram o chamado marxismo acadêmico.
A relevância dos autores foi estabelecida a partir da contribuição original a)
que puderam fazer, ao enfocar as relações entre filosofia e política, b) a ressonância de suas idéias até mesmo na “pregação de repre­sentantes dos profissionais de
polítíca” (ibid., p. 115).
A atuação de Cruz Costa na USP e a adesão de Álvaro Vieira Pinto na Universidade do Brasil à corrente marxista, deram origem à tentativa de aproximação entre positivismo e marxismo e à “versão positivista do marxismo” (ibid., p.
116).
É, contudo, no âmbito das relações filosofia-ciência e da filosofia política que
o cientificismo de inspiração marxista encontra maior ex­pressão. Paim assinala
a contribuição original de Caio Prado Jr., cujo economicismo, no dizer de Paim,
influi sobre sociólogos e economistas brasileiros, fazendo escola. Ele aponta ainda a tradução de livros de Kautsky, Labriola e Engels, como instrumentos de difusão de ideias, bem como os recentes estudos e divulgação das obras de Lukács
e Gramsci.
Em resumo, podemos dizer que a temática das relações entre filoso­fia e ciência, da filosofia política e da filosofia moral persistem como axiais no pensamento
brasileiro de inspiração positivista; e que a escolha e de­terminação da relevância
dos autores deu-se, analogamente ao exame do ecletismo e segundo os mesmos
critérios metodológicos, mediante: a) a atividade de vulgarização (Seminário de
Olinda, Real Academia Militar), b) o conhecimento da obra de Comte (Benjamin
Constant), a açao políti­ca (Castilhismo, Pinheiro Machado, Getúlio Vargas), c)
a repercussão na educação (ênfase no ensino profissional, orientação filosófica
dominante do Colégio Pedro II), d) a importância da filosofia moral (A Igreja
positivista); e) a significação e originalidade de seus intérpretes (positivismo ilustrado, versão positivista do marxismo: Álvaro Vieira Pinto, Cruz Costa).
237
A crítica ao positivismo terá sua primeira grande expressão na cor­rente neokantiana, que inspirou a trajetória da filosofia na Escola Poli­técnica do Rio de
Janeiro, a partir da obra de Brunschvicg (ibid., p. 125 e segs), bem como no
culturalismo, a partir de Lask, Radbruch e Cabral de Moncada – seu introdutor
em Portugal.
A larga influência ulterior do culturalismo, sobretudo através da obra de Miguel Reale, assinala um novo ciclo do pensamento brasileiro, cuja ascensão se
inicia na primeira metade do século e cujo apogeu se expressa contemporaneamente, tendo como eixo de manifestação a plural atividade do Instituto Brasileiro de Filosofia. No exame da crítica ao positivismo, o critério metodológico
será compreender como os ciclos de ascensão e do apogeu das novas idéias se
manifestam: questão de método.
238
O orientalismo de Cecília Meireles
Cecília Meireles nasceu no Brasil, no Rio de Janeiro, a sete de novembro de
1901; aí faleceu, a nove de novem­bro de 1964. De ascendência açoriana, pelo lado
materno, dedi­cou-se ao estudo das línguas, do canto e do violino, da literatu­ra,
filosofia e história. Foi professora, a partir de 1935, na Uni­versidade do Distrito
Federal, aí oferecendo cursos sobre literatura luso-brasileira, literatura comparada e literatura ori­ental. Fez inúmeras conferências sobre Gandhi, Tagore, Sarojini Nidu, traduzindo poemas destes últimos. Em 1953 viajou à Índia, tornandose sócia do Instituto Vasco da Gama, em Goa, e rece­bendo o título de Doutor
Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Entre 53 e 59 colaborou no “Suplemento Literario” do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. Em 1953 publicou, no
Rio, pela Livraria São José, os Poemas Escritos na Índia. E entre 60 e 63, publicou
“Gandhi, um herói desarmado?” in Grandes Vocações (S. P., Donato Ed.).
A orientação metafísica dos escritos de Cecília Meireles é marcante, como o
assinalam Nuno Sampaio, Paulo Ronai, Darcy Damasceno, entre outros. Vamos
nos ater à imagem da Índia, tal como esta emerge nos textos da poetisa. Que é
a Índia, para Cecília? É, antes de mais nada, o mundo sensível e seus elementos: cores, tipos, animais, eventos naturais dominantes. É o percurso através das
cidades aborda­das naquilo que as caracteriza como paisagem, personagens ou
trabalhos.
A Índia é, nos poemas, o espaço sagrado por excelên­cia, onde o tempo imemorial, das origens, marca a existência quo­tidiana. É a sacralidade da existência
concreta, onde a casa, as fa­mílias, sugerem a doçura e o mundo venerável onde
os homens e os deuses mesclam suas trajetórias. Aí, os gestos hieráticos repe­tem
os ritos, tornando os homens graves e serenos.
É nesse quotidiano que se explicita o princípio en­raizado na grande tradição
dos Vedas, do bramanismo e do bu­dismo: Ahimsa, o amor a todos os seres, traduzido na não-vio­lência e na compaixão, notas dominantes do comportamento
indiano que alcançam expressão nas palavras iluminadas de Tagore e Gandhi.
A pobreza é vista como despojamento, como ideal de vida e de ascetismo; há
também o reconhecimento da unida­de de todas as coisas, exposta miticamente
na tradição indiana pela harmonia criada pelos Gandharvas, músicos celestes.
Detalharemos a seguir os temas supra. Nestes, os perfumes e cores descrevem os homens e a terra: é o vermelho e o azul, ouro, prata, negro, rosa, açafrão.
239
São as especiarias, o sândalo, os “Aromas de frutas, incenso, flor, óleo fervente.”
(Bazar).
Das crianças aos adultos, a poetisa mostra com enor­me delicadeza, o povo
oriental. Meninos e seus afazeres, meni­nos e seus brinquedos, têm “rosto de tâmara, / tênue como a palha de arroz / (...) os meninos de retrós e sândalo” (Canção do menino que dorme).
No tempo arcaico em que vivem mergulhadas, na civilização milenar que
representam, “as mães contam histórias à sombra dos templos / para meninos
tênues, fluidos como nuvens” (Os jumentinhos).
A adolescência também é abordada por Cecília que recria as lendas, a convivência harmoniosa da jovem com o mundo, a solidão lúdica: “As solas de teus
pés pintados de ver­melho. De teus pés correndo no verde chão do parque / (...)
sob a orla dourada da seda azul/ (...) (A moça brincava sozinha, / ia e vinha assim
com o ar, com a luz...) (Adolescente). A beleza e o mistério, a nobreza dos gestos
e das pessoas são evidenciados pela descrição das jovens: “E havia a moça, pássaro, princesa, / com uma diáfana voz de sol e de flores” (Aparecimento).
As mulheres resplandecem, mesmo nas tarefas mais humildes: “os vasos de
cobre polido que elas carregam / como coroas (...)” (Manhã de Bangalore); seu
andar é “o passo rítmi­co das mulheres majestosas” (Bazar).
E tudo é cor e perfume, altivez de um povo sagra­do: “Os saris de seda reluzem / (...) Nas narinas fulgem diaman­tes / (...) e luar e lótus entre os cílios. / Há
pimenta, erva doce e cravo, / crepitando em cada sorriso” (Família Hindu).
A humildade, a abertura ao sonho, mostram-se nos homens e na família. Até
o pedinte, no gesto de pedir, revela a transcendência: “Ele estava de mãos postas
/ e, ao pedir, aben­çoava. / Era um homem tão antigo / que parecia imortal. / Tão
pobre / que parecia divino” (Pobreza).
O pobre e o santo, o homem-santo, tão popular na tradição indiana se assemelham: “O Santo passou por aqui. / Tudo ficou bom para sempre / tal foi sua
santidade. / Tudo sem temor” (Santidade).
O cego para o mundo, vidente ao nível do espírito, sonha e vê, como o astrólogo: “A mão do cego vai na mão do menino. / Suas barbas são do vento. / Seus
olhos são do sonho” (Cego em Haiderabade). O astrólogo, “Era o vidente do ar.
/ Tinha uma loja azul-cobalto, / claro céu dentro do bazar. / Teto e paredes só de
estrêlas: e a lua no melhor lugar.” (Loja do astrólogo).
Varrendo, tecendo, os homens e as mulheres cinti­lam: a mulher “Varre seu
próprio rastro. / (...) Recolhe à som­bra/ suas luzes; ouro / prata, / azul” (Humildade); os bordadores de Cachemir, de “finos dedos”, tecem, voam, como pássaros,
“inventando flores / que não morrem nunca” (Canto aos Bordadores de Cachemir). O sagrado, o amor, mesclados ao quotidiano, ex­pressam-se nos gestos de
240
amizade e caracterizam “os homens altivos, / serenos e graves, / com um sangue
sem violência/ e um coração de liberdade.” (Parada), pois “quando alguém fala é
tão doce / como o claro cantar dos rios, / numa sombra de cinamomo, / açafrão,
sândalo e colírio” (Família Hindu). Nessa mesma perspectiva, a poetisa vê as
casas do Oriente: “A casa cheirava a especiarias / e o copeiro deslizava descalço /
(...) / anjo da aurora entre paredes brancas” (Aparecimento). No meio do campo,
a casa é celebração da vida; seus donos, mostram nas suas pessoas o hierático
ancestral: “O dono da casa era ao mesmo tempo / inatual como um rei antigo / e
simples e próximo como um parente / (...) Sua mulher ainda usava um diamante
na narina/ e em sua cabeça pousavam muitas coroas / de histórias antigas e canções de amor.” (id.).
O colorido e os perfumes, a serenidade dos tipos humanos, mostram-se até
mesmo num bazar: “Jardins borda­dos: roupas, sandálias / como escrínios de
sêda para alfanges. / E negros olhos. / Molhos de penas de pavão. Colares de
nardo / a morrerem entre tufos de fios de ouro. / E os delicadíssimos dedos. /
Pratos de doces verdes e cores-rosa: / pistache, côco, amêndoa, gulah. / Lábios
de veludo.” (Bazar).
A descrição do mundo feita nos poemas põe em evidência a sacralidade da
existência e os ritos que assinalam seus momentos importantes. A vida é rito,
no espaço sagrado e no tempo ancestral, que regem o quotidiano. Aí, “invisíveis
ca­banas acordam, / cinzentas e obscuras, / porém cheias de deuses sob os tetos
de palha.” (Manhã de Bangalore). Nesse mundo, “Tudo está coberto de aroma. /
Em cada gesto existe um rito.” (Família Hindu). E os homens são associados aos
deuses, nas suas tarefas: “Bem de madrugada. / deuses? Sacerdotes? Mági­cos?
Patriarcas? / (...) Os homens esposam a terra, semente, água, / (...) com reverentes gestos” (Bem de madrugada).
A sacralidade da ação expõe o amor reverente do homem pela natureza: “Não
deixaremos o jardim morrer de sêde. / Mali asperge com um pouco d’água as
plantas. / Como quem rega? Como quem reza.” (Romãs).
A sacralidade da ação expressa-se também na repe­tição dos gestos ancestrais,
no reconhecimento da transcendência através da música; não esqueçamos dos
Gandharvas, músicos celestes, símbolos da harmonia cósmica, na mitologia indiana: “Pelos degraus daquela música, Bhai, / podia-se ver além do mundo, além
das formas / e do arabesco das estrêlas do céu, / (...) na clara noite – toda azul
como o deus Khrisna -/Tão frágil sopro em flauta rústica, Bhai – como o da vida
em nossos lábi­os provisórios... / – um amor? queixume, pensamento? /(...) / da
vida é morte, que dizemos, Bhai, e a quem?” (Música).
O mundo indiano é o mundo onde ainda se reco­nhecem os animais como
sagrados e onde a não-violência se ex­pressa como respeito e acolhimento às diferentes formas de vida. Nos poemas de Cecília, além da descrição dos tipos
241
humanos, encontramos a da terra e dos animais, pondo em relêvo a con­vivência
pacífica dos diferentes reinos. Assim, “Mulheres de saris vermelhos e azuis, /
homens com velhas tangas / crianças more­nas e dóceis, / tudo se mistura com
veneráveis bois (...)/ E de­pois há campos verdes, campos. / campos de mostarda
em flor, campos...” (Campo na Índia, in Dispersos).
Os animais são búfalos, pássaros, macacos, elefan­tes, cavalos, jumentos, camelos: “De uma exígua moita/ sai de repente um bando imenso de pássaros: /
como um fogo de artifício todo de estrêlas azuis” (Campo na Índia); “E no parque, os pavões, também vestidos de sol e céu” (Adolescente).
Os macacos, os camelos, os jumentos, acham-se mis­turados à vida da cidade: “Ah, os macaquinhos do templo de Rama/ constroem rendadas pontes de
bambu.” (Canção do me­nino que dorme); “E os camelos parecem moldados no
barro” (Campo na Índia); “Então, à tarde, vêm os jumentinhos / de movimentos
um pouco alquebrados, / cinzentos, brancos – e car­regados/ com grandes trouxas das lavadeiras” (Os jumentinhos).
A ancestralidade dos movimentos, o tempo ime­morial de que a Índia emerge,
aparecem através da descrição dos búfalos: “Búfalos negros, curvos e mansos,
/ – oh, movi­mentos seculares! – / odres de leite, sonho e silêncio.” (Banho de
búfalos).
Os elefantes, Cecília os vê como: “fatigado patriar­ca” ou “avô complacente”,
“ancião” (O Elefante, Jaipur).
Os cavalos são os “cavalinhos de Delhi”, colori­dos, enfeitados; são “os cavalos
do Marajá”, cobertos de sêda (Cavalariças).
Na descrição do país, Cecília evoca as cores da ter­ra: “A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha” (Cidade Sêca). Aí estão o pó, a solidão, as tamareiras; aí “Os rios – valas amarelas. / O pó que o vento levantava/ (...) O sol baço
de névoa e pó. O sol que os monges de Ajanta viram / quando lavravam seus
mosteiros nestas rochas” (Horizonte).
A Índia é o país das grandes tempestades de verão: “relâmpagos azuis voavam
entre os cântaros, / retalhando os la­gos. /Tremiam veludos e sêdas. / e o pólem
delicado, / na noite violenta.” (Tempestade).
A Índia é o Ganges, o rio sagrado, que percorre a existência do nascimento à
morte: “Eis o Ganges que vem de longe para servir aos homens / (...) Eis o Ganges que diz adeus à terra, / (...) que recolhe as cinzas dos mortos em seu- regaço
d’água: / (...) Eis o Ganges que sobe as escadas do céu. / Que entrega a Deus a
alma dos homens. / Que torna a descer, no seu serviço eterno” (Ganges).
Cecília narra a sua trajetória através do país, des­crevendo sua vivência das
cidades. Assim, nos Poemas escritos na Índia há referências a Bangalore, Cachemir, Puri, Patna, Burma, “Haiderabade: / anel de prata/ com a só turquesa da
242
água parada.” (Haiderabade); ao esplendor do Taj Mahal, supe­ração da morte e
do tempo: “Eis o sono da rainha adorada: / longo sono sob mil arcos, de eco em
eco / (...) Entre a morte e a eternidade, o amor, / essa memória para sempre.” (Taj
Mahal); à presença da dança, sons, perfumes, na colorida Jaipur: “Adeus, Jaipur,
/ (...) pórticos, peixes azuis nos arcos de entrada. / (...) Adeus, cortejos dourados,
música de casamentos, / festa bailada cintilante das ruas, o trinado da flauta. /
Adeus, sacerdote de candeia fumosa, / (...) e os gonzos e os sinos e a porta de
prata/ a Deusa antiga, / e a existência fora do tempo. / (...) adeus, tarde morna
de erva-doce, canela e rosa, / cravo, pistache, aça­frão. / Adeus, cores. / Adeus,
Jaipur, sandálias, véus.” (Jaipur).
A Índia é o caminho, a Índia é a passagem para o transcendente, encontro
marcado com Gandhi, Tagore, Kali.
Gandhi é o mestre, o arquitéto do indiano: o ho­mem que se caracteriza pela
não-violência e o amor à liberdade, o sentido ético-religioso da existência, a busca da justiça e da paz. Homem para quem a pobreza é simplicidade e ascetismo,
e cuja grandeza moral é celebrada em poemas e escritos em prosa de Cecília.
Gandhi representa “Acima de tudo, meus irmãos: a Não-Violência”; é a última
voz de concórdia, com a qual a po­etisa se identifica: “Que correntes havia entre
o teu coração e o meu. / Para que sofra meu sangue, sabendo o teu derramado?”
(Elegia sobre a morte de Gandhi, in Dispersos). Gandhi foi, para a nossa autora,
o “Construtor da esperança, mestre da li­berdade, o Mahatma. / (...) No trabalho,
no sonho, falando lúcido, / o Mahatma.” (Mahatma Gandhi). Sua mensagem
perma­nece, para além das contingências: “De dentro da morte falando vivo, / o
Mahatma.” (Id.).
Tagore, por sua vez, significa, na obra da poetisa, o caminho poético em direção a uma trans-vida, o mergulho no mundo divino. Tagore é o mestre de sabedoria, cuja palavra iluminada se desdobra em poemas: “Chegaremos de mãos
da­das, / Tagore, ao divino mundo / em que o amor eterno mora/ e onde a alma é
o sonho profundo / da rosa dentro da aurora.” (Cançãozinha para Tagore).
Superação do tempo, superação da morte, a via­gem para a Índia culmina no
encontro com o mistério tremendo de Kali. Kali a tenebrosa, a inviolável, a destruidora, a Grande Mãe que nos acolhe. O poema de Cecília, a ela dedicado, não
ousa se­quer mencionar o seu nome. Chega-se a Kali pelos atributos indicados
verso a verso, onde a deusa aparece fascinante e ter­rível: “Todos querem ver a
Deusa. / (...) queremos ver Aquela que reina entre os paludes. / a do tenebroso
cólera, / a das alastrantes febres. / E ela brilha entre chamas lanceoladas, / com
dentes triangulares que ameaçam o mundo, / Ela resplandece em lugar inviolável/ entre enormes chamas também triangulares: / altos dentes de fogo. / (...) de
sinal vermelho na testa / (...) Todos seremos destruídos por ti, / deusa! Somos
todos irmãos. Em ti, afinal, irmãos! (...) deixando-nos devorar por tua fome, / ó
243
Deusa! ó Morte! Mas pairamos com asas inolvidáveis / acima de tuas chamas.”
(Deusa).
Impossível não recordar a pira funerária, tradição que visa libertar a alma do
peso do sensível. Na Índia, Cecília, através da descrição do mundo perpassado
pela sacralidade e pela imemorial busca do eterno, na arquitetura do Taj Mahal,
na poesia metafísica de Tagore, nos ensinamentos do Mahatma, na Deusa que é,
a um tempo, destruição e metamorfose.
Da passagem pela Índia, Cecília guarda a percep­ção da unidade do universo,
pois “Caminham os búfalos ao lado dos homens, / como uma só família” (Campo na Índia). Daí a poetisa reconhecer a “Unidade, alegria, (...) inocência do
mun­do” (Manhã). Esta unidade mostra-se no som de todas as coi­sas: “(...) aérea
música azul que a flauta ondula. / Por um mo­mento, o universo, a vida/ podem
ser apenas este pequeno som / enigmático / entre a noite imóvel e o nosso ouvido.” (Som da Índia).
Ao encerrarmos, voltamos ao princípio: aos versos que abrem o livro Poemas
escritos na Índia e que falam da ilusão e sua ultrapassagem, pelo viandante: o
poeta que rasga o véu de Maya – “Passante quase enamorado / nem livre nem
pri­sioneiro / (...) a escutar o chamado / o apelo do mundo inteiro / (...) Passante
quase enamorado. / pelos campos do inverdadeiro.” (Lei do Passante).
A trajetória de Cecília pela Índia dói a experiência da explosão de cores e
perfumes, e do lento reconhecimento, nos tipos que se apresentavam, na vida
exuberante, da sacralidade que os perpassa. Foi a experiência da ruptura com a
morte, pelo encontro com a divindade, com a poesia, com a estupenda gran­deza
moral de um povo e de seus mestres. A Índia imemorial, trazida até nós por esses
versos, ensina a sábia e fina trama que tece juntos o visível e o invisível.
244
Contemplação e Sabedoria nos Cânticos de Cecília Meireles
Em uma entrevista publicada por uma revista brasileira de grande circulação, Cecília Meireles fala do sentimento da precariedade do existir, mas também
da beleza do mundo, do silêncio e da solidão que caracterizaram sua infância.
Encantada com livros, partituras, canto, violino; mas também com a Grécia e o
Oriente das línguas, história, filosofia.
Entre 1940 e 1958, a poetisa viajou muito, lecionando Literatura e Cultura Brasileira no Texas e fazendo conferências no México, Uruguai, Argentina,
Açores, Índia, Porto Rico, Israel. Foi sócia honorária do Gabinete Português de
Leitura no Rio, do Instituto Vasco da Gama em Goa, Doutora Honoris Causa
da Universidade de Delhi; recebeu o grau de Oficial da Ordem do Mérito no
Chile.
Escreveu peças de teatro, prosa poética, crônicas; traduziu Rilke, Lorca, Tagore, dentre outros poetas. Sua poesia inspirou composições musicais de autores
populares como Chico Buarque, Aldir Blanc, Fagner; mas também de compositores eruditos como Camargo Guarnieri, Mignone, dentre outros. A musicalidade da poesia de Cecília aparece todo o tempo em seus escritos.
Experiência de solidão e de liberdade, de encontro com a vida do espírito,
sua obra tem pontos de acordo com a tradição do pensar originário da Grécia e
com os grandes poemas sagrados indianos, com a poesia e a obra de Tagore, que
desvenda no cotidiano o pulsar do eterno.
Na tradição grega, na qual ela explicitamente se inspira, os “mestres da verdade” são os adivinhos e os poetas, mas também os filósofos360.É a primeira vertente à qual ela se atém.
Nas lâminas de ouro órficas361, encontradas nos túmulos de iniciados órficos,
as instruções para a viagem no além-túmulo, que possibilitariam a libertação
das encarnações sucessivas, a purificação da alma era obtida pela filosofia (Mousiché) “constituindo o conjunto de experiências intelectuais às quais as Musas,
filhas da Memória, presidem”362.
Se Orfeu, ancestral mítico dos “Mistérios” e da poesia, faz do canto aquilo
que possibilita ultrapassar a barreira da morte, unindo os opostos: vida e morte
DETIENNE, M., Les maîtres de vérité dans la Gèce archaïque. Paris: La Découverte, 1990.
CARATELLI, G. P., Les lamelles d’or orphiques. Paris: Belles Lettres, 2003, passim.
362
Id., ibid., p. 20. Também Platão se refere, no Fédon, à filosofia como “arte das Musas”, “música
suprema” (Fédon, I, 61 a-b).
360
361
245
– numa totalidade, são os “pensadores originários”363 – Parmênides – Heráclito
– que buscam a sabedoria, entendida como apreensão da totalidade una.
Na mais antiga tradição filosófica, representada pelas figuras emblemáticas de
Parmênides e Heráclito, o pensar sobre a physis, a natureza, era dito em versos.
Parmênides distinguia dois caminhos: o da verdade (episteme) e o da opinião
(doxa) baseada nas evidências empíricas. Para ele, filosofia é o saber sobre o Ser
inteligível e se opõe à opinião da maioria.
O caminho ascendente, descrito no poema, é seguido pelos que amam a justiça e a verdade (fr.1) e escolhem a razão como via para pensar o Ser e suas características: não-divisibilidade, permanência. Idêntico a si mesmo, o ser é pleno,
imóvel, sem início nem fim, sem nascimento ou morte (fr.8).
O caminho de opinião é o que afirma as oposições: nascimento e morte, ser e
não-ser, mutação, como absolutamente verdadeiras.
Heráclito pertencia a uma família de sacerdotes, ligada às cerimónias dos
Mistérios de Elêusis. Temas centrais dos fragmentos do pensador são: a sabedoria consiste na fusão do logos do indivíduo com o Logos do universo; a afirmação da unidade dos contrários, pela sua convertibilidade. (fr. 60,62,76,88);
a proposição de um caminho que se afasta daquele do homem comum, pois o
sábio prefere o eterno ao perecível, enquanto o homem comum se satisfaz com
o efêmero (fr.28).
Denominadores comuns unem os dois pensadores gregos: para eles, a via da
razão é a que apreende a realidade essencial, na qual os opostos se encontram indissociavelmente unidos, numa totalidade. Ser sábio é ver através da razão, superando a opinião comum, centrada nas evidências empíricas. Ser sábio é sondar o
invisível, é ver a totalidade do existente do ponto de vista do eterno, dos deuses.
Na vertente grega do pensar, em Heráclito, assim como em Parmênides, o caminho da sabedoria é o caminho em direção aos deuses. Para Heráclito, o fogo é
a metáfora da razão, no homem, e do Logos que perpassa o universo, eternamente vivo. É apreensão da imutabilidade e permanência do Ser, em Parmênides.
Para Heráclito e Parmênides, o dizer filosófico se faz através de poemas. Mas
o recurso ao verso, em Parmênides, não é um dizer que se refere apenas ao mito.
Através do poema, o que se mostra é a busca da verdade, a sabedoria daquele
que se distancia da adesão imediata e exclusiva ao sensível, para compreender
o real na perspectiva do eterno. A linguagem é poética; recorre a metáforas e a
imagens; mas o que é dito, “embora conserve a métrica e os modos da poesia tradicional, se enche de conteúdos novos (da ética à teologia, da política às ciências
naturais”364.
CARNEIRO LEÃO, E. e WRUBLEWSKI, S. (introdução e tradução), Os pensadores originários:
Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991. Ver também: BORHEIM, G. (org.),
Os filósofos pré-socráticos. S. P.: Cultrix, 1967, pp. 35-46; 53-59; Les pré-socratiques. Bibliothèque de
la Pléiade. Paris: Gallimard, pp.129-187, p. 233-272.
364
CASERTANO, G., Os pré-socráticos. São Paulo: Loyola, 2011.
363
246
Desde as origens do pensamento filosófico grego, a reflexão sobre o mundo
o apreende como “uma realidade única, imutável, no interior da qual decorriam
as vicissitudes das coisas em devir e mudança. Não duas realidades (...) mas uma
só realidade, que pode ser entendida de dois pontos de vista: o da totalidade e da
unidade, o da particularidade e da multiplicidade” (ibid., p. 84).
Esta concepção, presente em Parmênides, se expressa como uma reflexão original sobre os métodos e os discursos usados para falar sobre os dois aspectos
do real.
O poema de Parmênides está dividido em duas partes: no primeiro fragmento, o filósofo narra uma viagem que o conduz à presença da deusa, que fez a ele
uma revelação: a perspectiva da totalidade, que mostra a verdade, abarcando o
fundo imutável, mas também a experiência do homem comum.
Assim, o conhecimento, a sabedoria que Parmênides procura engloba, “para
a deusa, todo o campo do saber humano, quer o que a deusa chama de verdade,
quer o que chama de experiência” (ibid., p. 86). Só o caminho da sabedoria possibilita alcançar a pistis alethés, a certeza verdadeira.
O discurso que conduz à apreensão da verdade acerca da totalidade una, é o
da filosofia; o discurso que conduz à apreensão da realidade como multiplicidade, é o da doxa.
Daí Casertano dizer: “A novidade da obra de Parmênides reside [em] estabelecer” que episteme e doxa “são dois métodos diferentes de ler a mesma realidade
e (...) na justificação lógica das suas afirmações” (ibid., p. 87). O saber do humano, para Parmênides, segundo Casertano, não contrapõe a “verdade da razão” e
‘opiniões enganadoras’ (...) “o saber do homem tem que englobar ambos os campos: o “discurso verdadeiro (...) e o discurso sobre as experiências” (ibid., p. 101).
Este último discurso, baseado na empiria, não tem o mesmo grau de verdade do
discurso filosófico, baseado em princípios lógicos, “discurso coerente”, fundado
na reflexão. O que importa, para o sábio, é conhecer os dois discursos e privilegiar o que torna possível a apreensão do real como totalidade, isto é, a filosofia.
Posição análoga é encontrada em Heráclito, que propunha a harmonia dos
opostos e fazia a crítica da opinião comum e dos saberes tradicionais. Heráclito
emprega, “frequentemente, as metáforas da cegueira e da surdez, como fizera
Parmênides, para indicar a incapacidade de compreensão do sentido autentico
da realidade”; utiliza também, no mesmo sentido, as metáforas “do sono e da
ausência”. A característica da filosofia de Heráclito é procurar a lei fundamental
que regula a sucessão das coisas, buscando “a razão pela qual tudo é governado
através de tudo”365.
Um dos aspectos importantes de sua reflexão é a afirmação da tensão e da
unidade dos contrários. Para ele, o caminho da sabedoria é o que leva a perceber
365
HERÁCLITO, apud CASERTANO, G., op. cit., p. 102.
247
a unidade e a convertibilidade dos opostos. O sábio vê, pela inteligência, a lei
“que regula o acontecimento de todas as coisas (...) O logos é a lei universal dos
acontecimentos (...) é simultaneamente a explicação racional desta lei (...), compreensão do mundo eterno (...), efeito da tensão dos opostos (...) é a conquista
difícil que o homem pode obter apenas se abandonar a visão limitada e particular das coisas”366.
Em ambos, Parmênides e Heráclito, a filosofia é um ver, que abarca a totalidade do real e ensina um caminho, um método, que orienta a compreensão e a
ação.
A outra vertente do poetar- pensante de Cecília é a tradição oriental, encontrada na leitura dos antigos textos sagrados, pelos quais sempre se interessou,
conforme seu próprio depoimento concedido ao jornalista Haroldo Maranhão,
em Belém do Pará, em 1949367.
Cecília não diz quais são exatamente essas fontes; mas faz referência a “clássicos orientais”; conhece a obra de Gandhi e traduziu Tagore, dedicando a eles
poemas como “Cançãozinha para Tagore” e “Mahatma Gandhi”, publicados no
livro Poemas escritos na Índia368; faz também uma comunicação sobre a obra
de Gandhi, em congresso na Índia em 1953; escreveu sobre Gandhi numa obra
intitulada Quatro apóstolos modernos369 e sobre Tagore, um folheto em 1961, em
inglês, editado pela Brazilian National Comission for UNESCO370.
Gandhi viveu de 1869 a 1948, quando foi brutalmente assassinado; Tagore
viveu de 1861 a 1941; são pois contemporâneos e exprimem de modos diversos
a releitura da tradição dos grandes textos sagrados indianos: os Vedas, os Upanishades, o Bhagavad- Gita.
Cecília visitou a Índia em 1953. Os dois – Tagore, o poeta e Gandhi, o pensador – já estavam mortos. Mas escrevendo sobre eles, na viagem à Índia, a poetisa
resume o significado de suas obras, em belos poemas.
Gandhi provinha de uma família rica e instruída; estudou na Índia e na GrãBretanha. Retornou à Índia para atuar em favor dos mais pobres, sob a influência da grande tradição dos textos sagrados, mas também de Ramakhrishna
(1836-1886), sacerdote, místico e filósofo que tratava de revitalizar o hinduísmo
e de explicitar a universalidade da contribuição do pensamento indiano. Gandhi
inspirou-se também em Vivekananda (1863-1902), pensador impregnado pelas
filosofias européia e indiana, que afirmava a necessidade de uma religião racional, que libertasse os homens. Místico, falava sobre a importância do serviço ao
CASERTANO, G., op. cit., p. 107.
DAMASCENO, D., “Notícia biográfica e bibliográfica”, in MEIRELES, C., Poesia Completa. RJ:
Nova Aguilar, 1984, p. 89.
368
MEIRELES, C., op. cit., pp. 709 e 734.
369
Id., Quatro apóstolos modernos. São Paulo: Donato Ed., s/d.
370
DAMASCENO, D., in. MEIRELES, C., op. cit., p. 96-97.
366
367
248
outro; asceta, queria desvendar a essência da alma; cientista, buscava inspirar a
ação e conciliar razão e fé.
Precedendo imediatamente Gandhi, a figura importante é a de Tagore. Filho e neto de príncipes, tornou-se célebre por sua obra teatral e por sua poesia,
expressões de um profundo amor e “comunhão com a natureza, reveladora de
Deus”371. Tagore vê a unidade da humanidade, na diversidade das culturas, complementares entre si.
Gandhi se inspira nessa grande tradição indiana, mas também em Tolstói,
Ruskin, Thoreau, nos Evangelhos. O ideal de Gandhi “é a realização da felicidade
no mundo, através de uma vida simples [devotada] ao conhecimento da verdade”, ao amor que implica a não-violência: Ahimsa, a paz a todos os seres. As
virtudes da coragem, da modéstia, da liberdade são exaltadas por ele372.
Diz Olivier Lacombe:
A originalidade (...) de Gandhi consiste essencialmente no modo que
ele soube transpor a não-violência segundo a grande tradição indiana, do
campo da moral pessoal para o da ação política373.
De que modo Gandhi e Tagore convergem? Poeta místico, Tagore “foi aclamado por Gandhi como ‘o grande mestre’ e reconhecido por todos os indianos
como ‘o sol da Índia’.” Diz Ivo Storniolo:
Desde a adolescência [Tagore] foi capaz de ver e proclamar a grandeza
que se esconde na pequenez [e nos] grandes paradoxos: triunfo na derrota, beleza no feio e [na] amizade (...) que Deus tem pelos pobres, humildes
e perdidos, como fica evidente no Gitanjali (Oferenda Lírica), obra que o
fez reconhecido mundialmente374.
*
A obra de Tagore faz-nos descobrir “a maravilha que é existir como ser humano”, tornando-nos capazes de contemplar o mistério em nós, no deslumbramento pela vida, diz Storniolo375.
Tagore, místico e poeta, também é pensador. Um exemplo da sua reflexão
pode ser encontrado na obra Sadhana376, que reúne oito conferências a propósito
dos Upanishads. Nelas, mostra que a beleza, a verdade e o amor são caminhos
BOULIER-FRAISSINET, J., La philosophie indienne. Paris: PUF, 1961, p. 106.
Id., ibid., p.108 e segs. Ver também: LASSIER, S., Gandhi et la non-violence. Paris: Seuil, 1970;
GANDHI, M. K., Tous les hommes sont frères. Paris: Gallimard, 1969.
373
LACOMBE, O., “Préface”, in GANDHI, M. K. Tous les hommes sont frères, p. 9.
374
STORNIOLO, I., “Prólogo”, in TAGORE, R., Gitanjali. São Paulo: Paulinas, 1991, p. VI-VII.
375
Id., “Prólogo”, in TAGORE, R., Passos Perdidos. S. P: Paulinas, 1991, p. VI.
376
TAGORE, R., Sadhana. O caminho da realização. São Paulo: Paulus, 1994.
371
372
249
da realização do homem e de seu destino de união com Deus. Apresentadas em
Harvard, a convite do Professor James Woods, foram traduzidas do bengali por
amigos de Tagore e por seu sobrinho. Expressam a ideia de que o homem é uno
com o mundo no qual se inscreve, exprimindo a “plenitude da (...) comunhão
com todas as coisas” (ibid., p. 61); mas é também separado de tudo, como indivíduo. O ser duplo do homem deve, para se realizar, enraizar-se no universal
“O eu sou individual atinge seu perfeito fim quando realiza a sua liberdade de
harmonia no eu sou infinito” (ibid., p. 75).
O caráter paradoxal “da coexistência do infinito com o finito” (ibid., p. 81), da
união dos opostos na harmonia do todo, se resolve através do amor: “unidade da
nossa alma com o mundo e da alma do mundo com o supremo amante” (ibid.,
p. 99).
A contemplação maravilhada do mundo permitindo aí entrever uma dimensão espiritual, que caracteriza Tagore, também está presente na poesia de Cecília.
Exemplo claro é sua visão extasiada do mais banal, fazendo-nos aí perceber a
beleza do mundo, dos seres humanos, das coisas.
Solidão, silêncio e contemplação extasiada caracterizam os dois poetas: Tagore e Cecília. De que modo se encontram, na poesia de Cecília, as duas grandes
tradições: a grega, do Ocidente, a indiana, do Oriente? No poetar-pensante que
descobre na beleza, no amor ao mundo e às coisas, a presença da divindade. As analogias entre o pensar da Grécia originária e o poetar-pensante e devocional da Índia são surpreendentes. Na Grécia é pela razão e pela argumentação
que se expressam as teses da unidade dos contrários, o homem e o mundo, e da
presença da divindade no todo. Na Índia, na poesia e na reflexão de seus sábios,
as notas dominantes são o amor, a reverência e o maravilhar-se perante o mundo, no qual palpitam a beleza e o sagrado.
Essa dupla vertente, Grécia e Índia, perpassa a poesia de Cecília; ela está encantada, como Tagore, com o esplendor que se patenteia no quotidiano. Esse esplendor é paz, música, harmonia. Mas é também algo a ser contemplado a partir
de uma perspectiva mais alta, que impede a adesão imediata ao sensível, para
apreendê-lo como a totalidade una, em que o manifesto é o reverso da divindade
presente em tudo.
O caminho da sabedoria é o que mostra esse distanciamento com liberdade,
libertação de luta dos contrários: vida e morte, dor e alegria, sagrado e profano;
como compreensão da totalidade una; como realização daquilo que se é, intrinsecamente.
Essa perspectiva impregna diversos poemas de Cecília, desde Viagem, poemas escritos entre 1929-1937, onde se lê: “Deixa-te balançar entre a vida e a
250
morte, sem nenhuma saudade (...). Não é preciso fazer nada, para se estar na
alma de tudo”377. Ou ainda:
“Por que pensar em qualquer coisa
se tudo está sobre a minha alma:
vento, flores, água, estrelas
e músicas de noite e albas?378.
A mesma perspectiva está magistralmente expressa nos Poemas escritos na
Índia379 e também em Poemas de Viagens380, nos quais há referências à Índia e
seu povo, bem como a “Elegia sobre a morte de Gandhi” e o “Cântico à Índia
Pacífica”, no qual se acham os esplendidos versos:
Os que nunca te viram,
de longe, por ti perguntam
ó Índia remota (...)
com a esperança de quem vê em ti
uma transcendente pátria (ibid., p. 1336).
E ainda no poema “Dança Cósmica” (ibid., p. 1338):
Nataraja, o senhor dos Dançarinos
dança no centro do universo (...)
Nataraja dança, invisível e visível (...)
a vida ilusória e o sonho imortal.
Mas é nos Cânticos, do qual conhecemos a edição de 1993, nas Obras Completas381, que estão sintetizadas poesia e filosofia, sentido ético da existência e via
ascensional em direção ao sagrado.
Dedicado à liberdade, sopro do espírito que desfaz a adesão imediata ao efêmero e mostra o eterno em nós, Cânticos é composto de 26 poemas, nos quais
Cecília, assumindo o papel de mestra a iniciar um discípulo – no caso, todos os
seus leitores – faz recomendações que possibilitam o distanciamento do viver o
imediato e o assumir a existência na perspectiva do sagrado.
Uma hipótese, da Professora Luísa Malato, pareceu-me muito interessante:
escritos em 1927, os Cânticos são a fala de Cecília mestra de uma iniciação, daimon de Cecília, à jovem Cecília, propondo caminhos, programa de vida a ser
realizado. A nosso ver, o desdobramento, nos poemas de Cecília em mestra e
discípula de si mesma, não exclui o fato de a poetisa dirigir-se também a seus
leitores, tornando-nos todos seus discípulos.
Id., “Êxtase”, in id., Viagem, O. C., p. 129.
Id., Vaga Música, O. C., p. 199.
379
Id., O. C., pp. 699-748.
380
MEIRELES, C., O. C., pp. 1332-1339.
381
Id., ibid., São Paulo: Nova Aguilar, 1993, 4ª edição, pp. 1408-1419.
377
378
251
A primeira recomendação, no poema I, é não ter pátria, posses, mas escolher
a perspectiva mais alta, que abarca todos os horizontes. Esse olhar nos devolve
tudo o que aparentemente perdemos: a pátria, as posses diluem-se na adesão à
totalidade do existente.
A segunda recomendação, no poema II, é o convite para superar o tempo,
reconhecendo-nos em todas as vidas e todas as mortes, vivendo ao modo de
eternidade: contínuo passar, perene mudança. O tema reaparece no poema VI,
como veremos mais adiante.
A terceira recomendação, no poema III é: não dizer “palavras vãs. As palavras
do mundo”; recusando “a vaidade do falar”. Trata-se de permanecer “completamente silencioso. / Até a glória de ficar silencioso, /Sem pensar”. Silêncio que é
plenitude, esvaziamento da mente, esvaziamento de si, para dar lugar ao divino
em nós (ibid., p.1409-1410, poema III).
O tema reaparece no poema IX, que mostra o enganoso dos sentidos e afirma
que há uma “verdade silenciosa” dentro de nós, “a Verdade sem palavras” (ibid.,
p.1412); reaparece também no poema XII, quando a poetisa diz: “Não fales as
palavras dos homens (...) Faze a tua palavra perfeita. / Dize somente coisas eternas” (ibid., p.1413).
No poema IV, Cecília indica que devemos nos abandonar à “música da vida”,
ao seu encantamento, á identificação com “a alma infinita de tudo”, trocando o
“curto sonho humano /Pelo sonho imortal” (ibid., p.1410). E ainda, no poema
V, como já fora dito na tradição dos Mistérios e de Platão, Cecília assegura que
o corpo é “um fardo (...) prisão de pedra” que precisa ser destruída, para dar
lugar à identificação com o infinito, com “o grande sopro / Que circula” (ibid.,
p.1410-1411).
A poetisa afasta o temor da morte, mostrando que morremos e renascemos
muitas vezes, ao longo de uma mesma vida, “no amor. / Na tristeza. / Na dúvida.
/ No desejo”. Morremos até percebemos, sob a mudança, a permanência do ser.
Diz Cecília, no poema III:
“és sempre outro (...) és sempre o mesmo (...)
morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno” (ibid., p. 1411).
O tema reaparece, modificado ligeiramente, no poema XI, quando a poetisa
assinala que a identificação com a totalidade do mundo e seus elementos, impede que estes se tornem ameaçadores ou inóspitos (ibid., p. 1413).
A recomendação presente no poema VII, é o desapego em relação ao amor.
Aí Cecília diz:
252
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir (...)
Sem esperar (...) (ibid., p. 1411-1412),
sem nos inquietarmos para onde o amor nos conduz: à felicidade, à morte, a
algum lugar.
Amor, diz ela, é deixar-se levar, deixar fluir, sem tentar aprisionar o que é
amado, nem aprisionar-se nele. A recomendação é que não nos identifiquemos
com finito, mas, buscando o infinito, amemos o imperecível, o que permanece o
mesmo, apesar do fluir. O tema reaparece nos poemas XV, XVI e XVII (ibid., p.
1414-1415) quando Cecília diz:
“Não queiras ser (...) a Eternidade é muito longe.
dentro dela tu te moves, eterno.
Sê o que vem e vai” (ibid., p. 1414, poema XV).
lia:
Este é o caminho proposto pela grande tradição, que fala pela voz de Cecí-
“Este é o caminho de todos os que virão” (ibid., p. 1412, poema X); é o caminho sem pressupostos, para que possamos ser “o de todos os caminhos (ibid., p.
1417, poema XVIII), fazendo-nos “à imagem do mar” (ibid., poema XXII).
E ainda:
Não há mundos nem caminhos
Para o que é maior que os caminhos
E os mundos. (...)
Circulas em todas as vidas
Pairas sobre todas as coisas (...) (ibid., p. 1416).
O tema reaparece nos poemas XX, XXI, XXII, quando a poetisa recomenda
que o discípulo se volte para si mesmo, identificando-se com o que vem de longe
e no qual fim e começo coincidem. Sugere que se volte para a totalidade, que é
sempre a mesma e sem mudança, que o homem comum não pode apreender
(ibid., p. 1416-1417): a mutação eterna e a imobilidade são o mesmo.
Os homens comuns oferecerão ao discípulo riquezas, beleza, amor; perguntarão por sua alma (poemas XIV, XVII, XVIII); rugirão de dor, temor e desejo
(ibid., p. 1414-1416).
Mas o discípulo, que renunciou a tudo – pois alcançou a perspectiva da totalidade – vê com os olhos da sabedoria, apreendendo o sagrado da unidade entre o
visível e o invisível. Assim, recusa tudo, toda posse, porque sabe que está sempre
253
em tudo: “Sem forma. Sem termo” (ibid., p. 1414, poema XIV) mostrará ao homem comum apenas a curva do seu voo (ibid., p. 1415, poema XVII).
Cecília diz a quem busca o caminho da sabedoria:
“Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza (...) sem orgulho” (ibid., p. 1418, poema XXV),
e assinala o resultado da grande renúncia:
“Verás o que vias:
Mas (...) verás melhor” (ibid., p. 1419, poema XXVI).
Os últimos poemas, que encerram o livro, ecoam o percurso da sabedoria
perfeita: após a contemplação maravilhada do sensível, a atuação no mundo –
embora sempre conservando o distanciamento que permite a compreensão da
totalidade una – a última etapa a ser cumprida é a do renunciante, a daquele que,
por amor à totalidade, tudo abandona e se retira, identificando-se com a divindade, na contemplação extática.
Dois modos de conceber a sabedoria, presentes na obra de Cecília: na vertente grega, pela afirmação do valor da razão, presença do deus em nós; na vertente
indiana, pelo desapego e pelo amor, identificação com a totalidade divina.
Nas duas tradições, a complementaridade entre o visível e o invisível, a contemplação de unidade do todo, a afirmação de convertibilidade dos contrários.
Na poesia de Cecília, herdeira dessas duas tradições, o contemplar encantado
do esplendor do mundo dá lugar, finalmente, à renúncia, que oferece ao caminhante a inscrição na totalidade e no fluir identificado com o eterno.
A existência assim percebida está além dos opostos: vida e morte, dor e alegria. Alcança a perfeita liberdade, mencionada na oferenda que abre os Cânticos
e que de certo modo sintetiza todo o percurso do discípulo.
Na poesia de Cecília Meireles, a música dos versos está associada a uma forma de ver que convida a trilhar uma via ascensional, como os antigos mestres da
sabedoria propuseram. Para ela, o dizer em versos exprime um contemplar que
permite apreender a vida sob o aspecto da eternidade: como caminho que conduz ao próprio centro, à liberdade. Nos Cânticos, contemplação e sabedoria são
tecidas juntas, exemplificando essa nota dominante de seu poetar. Os Cânticos
são caminhos.
254
Guimarães Rosa: Travessias
In memoriam: Maria Helena Varela, 1952-2004
João Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. A
casa onde nasceu e passou a infância tornou-se o Museu Casa Guimarães Rosa.
As primeiras letras e o estudo do francês e holandês, bem como do alemão, fez
com um frade franciscano. Estudava, sob a orientação deste, o mapa da Europa,
acompanhando os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial.
Entre 1918 e 1924, estudou no Colégio Santo Antonio, em São João del Rei
e depois em Belo Horizonte, com padres alemães. Continua aprendendo novas
línguas e lê os clássicos: francês, inglês, italiano, esperanto, russo, sueco, latim e
grego, húngaro, árabe, polonês, tupi, hebraico, japonês, finlandês, dinamarquês,
chinês arcaico. Estudava por prazer, por distração.
De 1925 a 1930, fez a faculdade de Medicina em Minas Gerais. Casa-se com
Lygia Cabral Pena. É agente de Serviço de Estatística do Governo de Minas Gerais
e publica os primeiros contos na Revista O Cruzeiro, O Jornal (Rio de Janeiro).
Até os 22 anos, Rosa ouvia, em Belo Horizonte, histórias de jagunços e de lutas
de batalhões do Exército; tomava conhecimento de lutas políticas – pano de fundo
de histórias recriadas depois em seu romance Grande sertão.
Entre 1931 e 1932, trabalha como médico em pequeno povoado rural; nasce
sua primeira filha. Visitava doentes a cavalo, conversava com moradores de sítios
e fazendas, trabalhadores da estrada São Paulo – Belo Horizonte. Escreve contos,
reunidos depois no livro Sagarana.
Em 1932, alista-se como voluntário da Força Pública; em 1934, torna-se oficial
médico da Força Pública, por concurso. Estuda russo e japonês, com imigrantes
russos e japoneses. Nasce sua filha Agnes, em Barbacena, Minas Gerais. Em Março, torna-se capitão-médico; em Julho, presta concurso para o Itamaraty, sendo
aprovado em segundo lugar. Trabalha, entre 1933-1935, no Serviço de Proteção
ao Índio.
Nomeado cônsul, ingressa na carreira diplomática e pede demissão do cargo
de capitão-médico. Vai para o Rio de Janeiro, onde cursa Direito e estuda línguas
eslavas.
255
Em 1936, seu primeiro livro de poemas, Magma, ganha o primeiro lugar no
concurso da Academia Brasileira de Letras; a edição só foi publicada em 1997,
após a morte de Rosa.
Em 1938, vai sozinho para Hamburgo, como cônsul adjunto. Conhece então a
funcionária do consulado, Aracy Moebius Carvalho, que se tornará sua segunda
esposa. Descreve, em um diário, os acontecimentos da 2ª Guerra Mundial.
Em 1941, passa por Lisboa, durante 15 dias, em missão diplomática.
Em 1942, o Brasil rompe relações diplomáticas com a Alemanha; Rosa fica
confinado em um hotel em Baden-Baden, com outros funcionários. Saem de lá
para Lisboa e depois para o Rio.
Em 1942-1944, é nomeado segundo secretário da Embaixada do Brasil em
Bogotá. Sozinho, fica lá por dois anos; sofre o «mal das alturas», descrito em Estas
estórias (1969). Desquita-se da primeira esposa.
Em 1945, no Rio de Janeiro, vinculado à Secretaria do Estado, termina Sagarana.
De 1946 a 1948, é chefe de gabinete do Ministro do Exterior. Em 1948 é designado para a Embaixada do Brasil em Paris. Faz viagens pela Europa: Holanda,
Bélgica, Alemanha. Frequenta o ateliê de Cícero Dias em Paris. No Brasil, viaja,
conversa com vaqueiros em fazendas de gado, com caçadores de onça. Vai a Bogotá.
Tira férias na Itália, visitando a Magna Grécia; lê e anota a Ilíada e a Odisséia.
Em 1952, em carta a amigos, fala da viagem pelo sertão. Cita Odisseus; faz,
com Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas, uma viagem ao sertão da Bahia. Relê
Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Em 1956, publica Corpo de baile e Grande sertão: veredas, que recebe os prêmios: Machado de Assis (INL), Carmen Dolores (S. P.), Paulo Brito (RJ).
Em 1962, publica Primeiras estórias; é nomeado chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras, do Itamaraty.
Em 1963, é eleito Membro da Academia Brasileira de Letras (mas adia sua
posse por quatros anos, até Novembro de 1967).
Em 1964, publica Manuelzão e Miguilim; em 1965, No Urubuquaquá, no Pinhém
e Noites do sertão, reunidos no Copo de baile. Participa do Congresso LatinoAmericano de Escritores em Gênova, com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Paulo
Cesar Sarraceno. Estreia do filme: Grande sertão, de Renato Santos Oliveira.
Em 1966, o conto «A hora e a vez de Augusto Matraga», de Sagarana, é transformado em filme, por Roberto Santos. Rosa participa do Congresso Internacional
do Pen Club em Nova Iorque, encontrando Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa,
Victoria Ocampo, Pablo Neruda, Haroldo de Campos, Arthur Miller. Recebe,
no Brasil, a Medalha da Inconfidência e é condecorado com a Ordem do Rio
Branco.
256
Em 1967, publica Tutaméia; falece no final do ano. Em 1969, surge Estas estórias;
e, em 1997, Magma, seus primeiros poemas; em 1970, Ave, Palavra.
A obra emblemática de Guimarães Rosa é Grande sertão: veredas. Nela é narrada a vida dos jagunços, descrita a luta política entre pobres e ricos – pano de
fundo do exercício da justiça como vingança. A aspereza do sertão é o lugar do
herói guerreiro – o jagunço – e do confronto entre o bem e o mal – os justiceiros
e os bandidos (estes últimos podendo ser tanto o fora-da-lei violento, sem princípios éticos, quanto o senhor tirânico). É o lugar do pacto com o poder sombrio,
do confronto com o demônio. É ainda o lugar da errância – busca do amor e da
auto-superação, mas também consciência da fragilidade do existir, da precariedade
da vida e da iminência da morte.
Para Rosa, o sertão percorrido na errância do jagunço e no trabalho do vaqueiro
– travessias do espaço – é também o emblema da travessia do tempo, exigência
do fazer heróico, que instaura uma ética: a da justiça como resistência à opressão
dos poderosos, como vingança de afrontas sofridas e de assassinatos. No mundo
arcaico, a vingança é restauração de uma ordem transcendente, quebrada pelo
homem ímpio, tirano ou bandido. Mais ampla que a dimensão política do agir,
é a compreensão do fazer como feito heróico, que assegura o viver com honra e
liberdade, mais caros que a própria vida. O modelo paradigmático de Rosa é o
herói guerreiro da epopeia homérica, como anotações feitas por ele à margem do
seu exemplar dos poemas clássicos permitem perceber.
Rosa diz que foi «médico, rebelde, soldado (...)» e que estas três experiências
«configuraram seu mundo», em entrevista feita por Günter Lorenz em Gênova,
em 1965.
O sertão roseano é um microcosmo, no qual se reflete a experiência essencial
do homem no mundo: a aventura do viver. Rosa universaliza, a partir do maximamente regional e rústico, a travessia da existência e a luta humana para alcançar
o significado da precariedade implicada na possibilidade da morte.
Diz Rosa: «Eu carrego um sertão dentro de mim, e o mundo no qual vivo é
também o sertão (...). Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito.
Vivo no infinito, o momento não conta»382.
As fontes do escritor são, dentre outras, a tradição oriental: o Tao-te-King, os
Vedas e os Upanishads; a tradição religiosa cristã dos evangelistas e de São Paulo; a
tradição filosófica platônica e neoplatônica; a mística de Ruysbroeck, o Admirável,
Bergson e Berdiaeff, mas também T. Mann, Musil, Kafka, Rilke, Freud, dentre
outros383. Escreve sobre a realidade humana e vital, sobre o mistério cósmico,
LORENZ, G., «Diálogo com Guimarães Rosa», in GUIMARÃES ROSA, J., Ficção completa, vol.
I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 31-61.
383
GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, pp. 86-91.
382
257
redescobrindo e resgatando antigas linguagens: dos clássicos, do português arcaico, para dizer o que intui, o que surge como revelação e inspiração. Esta última é
um ver que capta o momento, descrevendo a coisa vista, a ação que se desenrola,
mediante a intersecção entre os planos da exterioridade, da poesia e da metafísica;
assim, na sua obra, o sertão torna-se metáfora do universo, do ser-no-mundo384.
Nele, dá-se o «viver [que] é muito perigoso»385, em busca da sabedoria, prudência
que nasce do coração386. Assim, o romance Grande sertão é também um poema,
entretecido de sonhos premonitórios, intuições, pressentimentos, como a vida
mesma de Rosa, segundo sua própria atestação a Paulo Dantas, ao falar sobre
Sagarana e Corpo de baile387.
Declarando-se religioso, embora não vinculado a nenhuma confissão, reconhece o fundo neoplatônico e humanista dos seus escritos, em correspondência
dirigida a Edoardo Bizarri388.
Os estudos de Walnice Nogueira Galvão mostram, em Grande sertão, três
planos que se superpõem: o geográfico, pois é no sertão de Minas Gerais, Goiás
e Bahia que o romance se passa; o místico, pois a luta entre jagunços e coronéis
é inspirada tanto nos romances de cavalaria quanto na Ilíada e na Odisséia389,
conforme também assinala Elisabeth Hazin390, a partir das anotações de Guimarães Rosa feitas na edição alemã da Ilíada e Odisseia, consultadas pelo escritor e
arquivadas na pasta E17 do Arquivo Guimarães Rosa, na USP.
O terceiro plano da narrativa é o metafisico, diz Walnice Galvão, posto que no
sertão o que está em jogo é o destino do homem, no horizonte cósmico de uma
batalha entre o bem e o mal. No espaço do sertão, Rosa recria, nos moldes da
tradição oral medieval, da literatura de cordel, o drama da errância e do exílio –
símbolos primários da alienação humana, como assinala Ricouer391, mas também
busca, através da ação e do feito heróico, do sentido do existir. O confronto com
o mal é representado, no romance, pelo pacto com o demônio – confrontado
pelo personagem Riobaldo, na solidão das montanhas e da noite. Neste espaço,
na linguagem aparentemente rude do narrador, se entrecruzam o português e
o espanhol arcaicos, o tupi, o babilônico, o sânscrito, o grego, o latim, na tarefa
GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2003, pp 238-9.
385
GUIMARÃES ROSA, Carta a J.-J. Villard, 21 de novembro, Arquivo do Instituto de Estudos
Brasileiros, USP (Fundo Guimarães Rosa), 1962.
386
LORENZ, op. cit., pp. 41-61.
387
GUIMARÃES ROSA, Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n.
20-1, 2006, pp. 25-9.
388
GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor alemão…, p. 90.
389
NOGUEIRA GALVÃO, W., «Rapsodo do sertão», in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-1, 2006, pp. 144 e segs.
390
HAZIN, Elizabeth, «De Aquiles a Riobaldo: ação lendária no espaço mágico». Disponível em
http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/158/146.pdf
391
RICOUER, Paul, La symbolique du mal. Paris: Seuil, 1960, pp. 25 e segs.
384
258
roseana de explorar as possibilidades da linguagem, para dizer a alteridade e
traduzir o mistério392.
Ana Luiza Costa393 e David Arrigucci Jr. (ibid., p. 191) também assinalam o
trabalho, em Rosa, de construção de uma língua, mescla única de vocábulos garimpados em muitas línguas que se misturam constantemente. É na linguagem que
Rosa diz o mistério, tenta dizer o indizível: o significado da errância, o significado
da travessia da existência.
Uma das mais interessantes abordagens da obra é feita por Benedito Nunes,
na chave de interpretação que aproxima filosofia e literatura. Nunes mostra que
os conceitos filosóficos, com os quais o escritor expressa seu pensamento metafísico, aparecem nas vicissitudes dos personagens e na voz do narrador, elucidando
os conflitos. O conflito por excelência é expresso no pacto de Riobaldo com o
demônio, que mostra o «processo de auto-conhecimento de Riobaldo (...) seu
embate com o destino»394. A escrita, que narra a condição humana é, para Rosa,
«oração e sacrifício», o lugar onde se dá «a grande viagem, a travessia» exemplar
(ibid., pp. 242-243).
O número 8 da Revista Diálogo, editado em São Paulo por Vicente Ferreira
da Silva e tendo como redatores Dora Ferreira da Silva e Milton Vargas e como
colaboradores efetivos poetas, filósofos, artistas, estudiosos de literatura – componentes do Grupo de São Paulo, da Escola de São Paulo395 –, foi inteiramente
dedicado à obra de Guimarães Rosa. Número de qualidade excepcional, traz
estudos de Antônio Cândido, de Milton Vargas, de Dora Ferreira da Silva, para
destacarmos apenas algumas dessas importantes contribuições.
Antônio Cândido focaliza o que chama de «deslumbrante (...) jorro de imaginação criadora, na língua, na composição, no enredo, na psicologia», de modo
que «o artista, o mundo e o homem são um abismo de virtualidades», que através
da ação criadora do artista permitem entrever uma «realidade potencial, mas
ampla e significativa»396.
Os temas presentes em Grande sertão: o amor, a morte, o júbilo e a dor, diz
Antônio Cândido, mostram o sertão como microcosmo no qual se expressa o
mundo. O território percorrido pelos personagens existe, é tangível, mas é através
dele que se constrói um universo mítico, no qual a realidade física é recoberta
Cf. FLUSSER, V., Bodenlos: uma autobiografia filosófica, São Paulo: Annablume, 2007, pp. 129-142.
MARTINS COSTA, A. L., «Via e viagens: a elaboração de Corpo de baile e Grande sertão: veredas», in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-21, 2006, pp.
191-192.
394
NUNES, «O autor quase de cor: rememorações filosóficas e literárias», in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-1, 2006, p. 238.
395
Cf. MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Aí também se acham os trabalhos de
BRAZ TEIXEIRA, A., sobre a Escola de São Paulo, e os de KUJAWSKI, G. de M., sobre o Círculo
Dora-Vicente Ferreira da Silva.
396
MELO e SOUZA, A. C., «O sertão e o mundo», in Diálogo, São Paulo, n. 8, 1957, p. 5.
392
393
259
pela realidade mágica. O rio São Francisco, fio condutor do romance, separa, com
suas margens, o simbólico em direita e esquerda, o convencional e o ameaçador.
Essa dualidade, assinalada por Antônio Cândido, aparece no horizonte de vida
dos personagens: há os que vivem a vida comum e há os que vivem a vida do
jagunço, do fora-da-lei, do assassino. O romance, na sua opinião, se caracteriza
pela «coexistência do real e do fantástico, amalgamados na invenção e (...) dificilmente separáveis» (ibid., p. 8).
No romance, o herói é um filho bastardo do fazendeiro, que se alia aos justiceiros, os fora-da-lei que protegem a população e buscam, para matar, o terrível
bandido Hermógenes. Este último teria feito um pacto com o demônio, daí decorrendo seu caráter temendo e sua força.
O percurso que transforma o filho bastardo em chefe do bando de justiceiros
dá-se no espaço e no tempo, mas é também percurso interior, no qual se dá o confronto com o mal e com o próprio lado obscuro, o das paixões sombrias. O mal
é personificado pelo demônio; o confronto com as paixões é apresentado através
do amor, sempre recusado e reprimido, de Riobaldo por Diadorim, amigo da
infância. A morte violenta de Diadorim leva à revelação de que se tratava de uma
mulher travestida, filha de um justiceiro assassinado pelo bandido Hermógenes.
Diadorim é criada como menino, para ser protegida da fúria do assassino, este
último encarnação do mal gratuito, da violência. Engajando-se no bando, disfarçada de homem, Diadorim – Maria Diadorina – procura o bandido para matá-lo,
vingando a morte do pai.
Mais do que uma mulher travestida, Diadorim aparece, ao longo do romance,
como uma espécie de daimon tutelar, que apazigua Riobaldo e o chama para assumir, de modo crescente, o destino do herói. Lembra os deuses disfarçados, que
protegiam Odisseu; é descrita como «a que nasceu para guerrear e nunca ter medo
e para muito amar, sem o gozo do amor» (ibid., p. 8), de modo que a personagem
parece estar estruturada sobre o modelo de Palas Atena, protetora de Odisseu.
O jogo verdade – ilusão, associado à paixão reprimida de Riobaldo, assume
também o aspecto de um confronto do herói consigo mesmo, com suas tenebrosas
paixões: amor impossível, violência crua. E também confronto com a verdade,
entendida como superação das ilusões a respeito de si mesmo, subordinação
do mal à inclinação para o bem. A travessia do sertão, a busca do bandido para
livrar a terra do assassino cruel é também a progressiva aquisição das potências
da consciência e do poder daí decorrente. Tem o caráter, diz Antonio Cândido,
de uma «iniciação às avessas, de assimilar (...) o opressivo terror, parte, aliás, de
muitos ritos de passagem» (ibid., p. 13).
A transformação interior daí resultante torna Riobaldo capaz de assumir o
comando do grupo e levar a bom termo o feito heróico: a supressão do mal,
expresso na conduta do bandido. O texto de Antonio Cândido mostra também
260
sugestivas analogias entre Grande sertão e as novelas de cavalaria, que narram
a transformação do homem comum em paladino (ibid., p. 14). Mostra ainda a
valorização da liberdade, o viver instaurando uma ética adequada à rudeza da
vida. Os feitos de Riobaldo repercutem, culminando no prêmio da instauração de
uma ordem mais justa. Diz Antonio Cândido: «Nesta grande obra combinam-se
o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional»,
devolvendo-nos «mais claros a nós mesmos» (ibid., p. 18).
Por sua vez, Milton Vargas mostra que Grande sertão representa a travessia do
tempo e da vida, que conduz «à sabedoria e ao domínio dos poderes obscuros,
através da dor e do sofrimento»397.
Mas o texto mais interessante é o de Dora Ferreira da Silva: «O demoníaco
em Grande sertão: veredas». Abordando o tema do confronto com o mal, Dora
desdobra os vários sentidos do demoníaco e do mal no romance. O mal ora é
«os avessos» do homem, algo que se acha no seu interior; ora está presente na
deformidade física: nos bichos, pedras, plantas; ora é o angustiante inesperado, o
vazio e a falta destruidora. Lembra a poetisa que a designação indireta, por muitos
nomes, do mal, mostra sua ambiguidade essencial: é personificado pelo demônio; a
dúvida sobre sua efectiva existência perpassa toda a trajetória do herói. As noções
de privação do ser, de não- substancialidade do mal, servem de pano de fundo, de
algo subjacente e implícito, que ecoa a partir da antiga tradição filosófica, expressa
no neo-platonismo e em Santo Agostinho. Nessa inquietação do personagem, o
mal aparece ainda como a vontade submetida ao involuntário, à paixão e à violência, o «ruim-querer», como diz Rosa398, citado por Dora. A ambivalência do
herói consiste na busca de um poder, que ele crê ser alcançável através do pacto
com o demônio e que o leva a invocá-lo no deserto e na noite, na solidão mais
profunda, a fim de submetê-lo à própria vontade. O pacto é confronto com o
mal, invocado para ser submetido, para que esse poder seja assumido pelo herói
e assim possibilite a realização do que aspira. O confronto produz a mutação ontológica necessária a Riobaldo, para que assuma a chefia dos justiceiros. Riobaldo,
o herói, invoca o demônio sem obter resposta; traz em si uma força que impede
o demônio de subjugá-lo. Esta força é representada pela Virgem, pelo amor, pela
oração de outros em seu favor: «(...) entre o impulso do mal e a vontade do bem
é estabelecida uma dialética», análoga à da teologia cristã, diz a poetisa (ibid., p.
32). Diz ela ainda: «No final do livro (...) o demoníaco seria [visto] como um dos
aspectos do homem, seu avesso perverso (...)» (ibid., p. 33).
A viagem, travessia do sertão, é metáfora, para Dora, da «travessia do humano,
que significa não apenas um encontro com o elemento suave e diurno da existência
397
VARGAS, M., «Visão e descrição: uma interpretação de Grande sertão: veredas», in Diálogo, São
Paulo, n. 8, 1957, p. 27.
398
GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1965, p.
356; FERREIRA DA SILVA, D. «O demoníaco...», in Diálogo, São Paulo, n. 8, 1957, p. 30.
261
(...) mas que se assemelha às vezes a uma catábase, a uma descida aos infernos, ao
encontro com o Mal». A trajetória de Riobaldo expressaria, para Dora, a tensão
entre o lado diurno, solar, do homem e seu lado noturno. A oscilação entre os dois
pólos «se resolve no trajeto de uma vida rica e profunda, vazada no modelo e na
protoforma [do] mito (...) tema universal e imemorial» (ibid., p. 33).
É nesse horizonte de reflexões que se inscreve também a contribuição de Dalila
Pereira da Costa, amiga portuguesa de Dora. Seu amplo estudo sobre o problema do mal no Grande sertão30399 aproxima o romance também, como Antônio
Cândido e Antônio Quadros, da tradição trovadoresca medieval e da obra de
Suassuna, A pedra do reino.
Diz Dalila: «Grande sertão poder-se-á ler como uma aventura espiritual (...)
[que] revelará a trama de valores existenciais que constituem a especificidade
do homem brasileiro». Grande sertão é ainda uma busca da sabedoria, «feita de
humildade»; é «uma meditação sobre a vida (...) sempre em vias de se fazer»; é
proposta de criação de um mundo de paz, amor, liberdade; é luta contra o caos e
a loucura, triunfo da graça e da ascese. O percurso no espaço é metáfora do percurso na vida, cuja finalidade é a destruição do mal: «É a autenticidade do amor
(...) o que ressaltará no Grande sertão: veredas: aqui se descreve uma aventura
espiritual (...) na história (...) do seu herói; mas que (...) a transcende». E será um
novo humanismo, «o que o Brasil (...), pela voz do jagunço Riobaldo, proporá ao
mundo atual» (ibid., p. 143).
Numa perspectiva análoga, parcialmente inspirada por Dalila, Maria Helena
Varela400 aborda a filosofia de Guimarães Rosa; examina a meditação sobre a linguagem em Flusser e Rosa, assim como em Pessoa e Rosa, estabelecendo pontos
de aproximação e de oposição entre os autores. Também para Maria Helena, o
sertão é o mundo, o universo; está em nós e fora de nós e equivale «ao mar sem
fim português (...) indecifrável mistério» (ibid., p. 171). Com Benedito Nunes401,
reconhece essa ambivalência do sertão: é o mundo material, mas também o mundo
ético e o mundo religioso. No «sertão espiritual», dá-se «a luta entre o bem e o mal»;
nele «o não-sentido surge-nos (...) como a via meta-lógica para o impossível e o
infinito». Sua travessia é «comunhão cósmica, religiosidade palpitante»402, mas
também descoberta da linguagem da liberdade, do poder decorrente do reconhecer a si mesmo, «meditando sobre a palavra» e assim repetindo «o processo
de criação» (ibid., p. 174).
Vida e arte se inter-relacionam, diz Maria Helena, na travessia da existência,
no fluir do que Rosa chamou de terceira margem. A obra de Rosa está pontilhada
PEREIRA DA COSTA, D., Duas epopeias das Américas: Moby Dick e Grande sertão: veredas (ou
O problema do mal). Porto: Lello & Irmão, 1974, p. 137 e segs.
400
VARELA, M. H., Conjunções filosóficas luso-brasileiras. Lisboa: Fundação Lusíada, 2002, pp.
171-214.
401
NUNES, «A Rosa o que é de Rosa», O Estado de São Paulo, 22 de março, 1969.
402
VARELA, Conjunções filosóficas luso-brasileiras…, p. 173.
399
262
de referências a Dante, Ruysbroeck, Unamuno, Rilke, à tradição neoplatônica.
Como seus companheiros de viagem, Rosa apresenta-se como poeta da alma, da
solidão metafisica, da magia da linguagem que leva a ler a vida no seu aspecto
mais alto, integrando um sentir-pensar que resulta numa sabedoria do coração.
A ambiguidade permanente do sentir-pensar é meta-lógica que confina com o
ilógico, sintetizando os contrários. Diz Maria Helena: «Este modo conjuntivo de
ser e estar no mundo fará do Brasil uma sociedade (...) onde (...) o espaço entre, a
travessia será (...) o espaço brasileiro por excelência, um terceiro lugar que inclui
os opostos (...), relacionando-os» (ibid., p. 177).
A ambiguidade fundamental reaparece no personagem andrógino, «Diadorim, mulher travestida (...) ‘neblina’ de Riobaldo e, simultaneamente, elemento
mediador na travessia de um sertão originário, interior e exterior ao homem».
Rosa, homem da metamorfose permanente do ser, estabelece pela palavra o
significado do mundo, fundindo os contrários. Nela se expõe uma lógica não
bivalente, um pensar-sentir que leva à superação do mal. Sua obra expõe a magia
da vida criadora.
Análoga à tarefa de Rosa, a aventura marítima portuguesa, diz Maria Helena
«faz do espaço entre o seu império (...) mais simbólico do que real, mais espiritual (...) que material (...)». Os portugueses navegam «para existir», são os que
partem sempre, porque não sabem «viver senão partindo (...) na distância, no
movimento ou na ficção» (ibid., p. 181). Aqui também Maria Helena converge
com a perspectiva de Dalila a propósito do autor brasileiro, quando esta estabelece analogias entre a aventura marítima lusa e a celebração do aventurar-se num
amplo e perigoso território.
Para Maria Helena, Rosa faz da língua «uma porta para o infinito». O escritor é «o médico da língua», como o filósofo, na tradição antiga, é o médico da
cidade (ibid., p. 182). Escrever é, então, «uma travessia em que a língua e a vida
se fundem», recuperando o sentido originário do todo existir e todo dizer. Rosa,
conhecedor profundo da língua, cria neologismos, visando recuperar a expressividade originária da palavra. A linguagem é, para ele, diz Maria Helena, «uma ars
combinatória», que aglutina elementos aparentemente opostos: português arcaico,
tupi, expressões coloquiais. Por isso, diz ela, a língua, para Rosa, «é simultaneamente língua da Origem, e do Futuro, poética» (ibid., pp. 183-184).
Maria Helena faz, no texto sobre Flusser e Rosa (ibid., pp. 187-199), várias
consideração sobre o tema-chave do Grande Sertão e de outros escritos de Rosa,
a travessia: «No mar de territórios que é o Brasil, na terra sem fim, o rio (...) é
o sucedâneo salvífico do mar sem fim português, uma terceira margem onde
a conjunctio oppositorum lusíada ganha sentido, como fluxo de mestiçagens e
metamorfoses» (ibid., p. 190). Maria Helena assinala paralelismos entre a obra
de Rosa e as poéticas de Fernando Pessoa, Viera, Agostinho Silva e os ensaios de
263
Dalila Pereira da Costa. A língua é o fio condutor da travessia, «lugar de errância», «pátria em pátrias repartidas» (ibid., p. 191), entretecendo as experiências
portuguesas e brasileira da poesia. A nosso ver, a arquetipologia da viagem como
travessia do tempo e do espaço, travessia da alma, é mais antiga e mais ampla,
prendendo-se à viagem, para nós paradigmática, de Odisseia, como bem sabia
Guimarães Rosa.
O texto da poetisa e pensadora é esplêndido: aproxima Rosa de Heidegger,
mostrando que, no percurso da língua, os poetas são tradutores «de uma língua
que ainda não existe, na promessa de uma língua por vir (...); [são] tradutores do
intraduzível». O poeta, para ela, é o que se põe à escuta «do acontecer poético»,
do mistério e «milagre da multiplicação e migração da língua dentro da própria
língua» (ibid., p. 198).
Utilizando o conceito que forjou em sua tese de doutorado403, o de heterologos,
designa o pensar-sentir que no paradoxo, na união dos opostos, encontra sua forma
de expressão; estabelece a partir daí laços entre Mensagem e Grande sertão404.
A nosso ver, Grande sertão: veredas expõe uma metafísica fragmentária que,
através de narrativa, mostra uma iniciação, um rito de passagem cujo resultado é a
expansão da consciência, correlativo do caminho do homem em direção ao Ser.
O que Rosa pretende é, na nossa opinião, fazer a narrativa da condição humana. Nessa narrativa está presente a consciência de finitude e da precariedade do
existir, sempre ameaçado pele possibilidade da morte e do não-sentido, expostos
como exílio e errância num mundo inóspito. É também representada como consciência do mal, através do símbolo do demônio, substantivado como outro, como
um poder sombrio, que não é possível vencer diretamente, mas o qual é preciso
confrontar e com o qual é preciso até mesmo pactuar (integrar). O confronto conduz à superação, pelo herói, dos próprios fantasmas, da própria sombra e leva ao
reconhecimento da não-substancialidade, da não existência efetiva do demônio.
Como na tradição agostiniana e tomista, o mal é falta, privação do ser, ausência
de qualidade que deveria estar expressa. Diz Riobaldo, o personagem-herói: «O
diabo não há! É o que digo»405.
A travessia infinita, sempre inconclusa, é cumprimento da tarefa de cada um;
é afirmação da existência de Deus, razão do viver «para o prazer e para ser feliz»,
«saber tudo, formar alma, na consciência». A finalidade do existir é conhecer,
ampliar a consciência, saber mais, compreender «que Deus é alegria e coragem»
(ibid., p. 237), superar o temor de viver.
Daí Rosa dizer: «O correr da vida embrulha tudo (...). O que ela quer da gente
é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e
VARELA, O heterologos em língua portuguesa. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo Ltda, 1995.
VARELA, Conjunções filosóficas luso-brasileiras…, pp. 201-214.
405
GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas…, p. 460.
403
404
264
mais (...) e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim (...) de propósito
– por coragem» (ibid., p. 242).
Coragem e amizade: força, possível perante o inóspito; força entendida como
liberdade (ibid., p. 243), agir em vista da realização de uma finalidade compreendida – intuída, de um significado a ser impresso na finitude. Nosso escritor
afirma: «existe uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada pessoa
viver (...) Tem que ter (...) E (...) para cada dia, e cada hora, só uma ação possível
da gente consegue ser a certa (...) [segundo uma] lei escondida e vivível mas não
achável, do verdadeiro viver» (ibid., p. 366).
Grande sertão: veredas é o romance da ambiguidade fundamental do homem e
do mundo: inóspito, terrível, mas também beleza e liberdade, tarefa de dar sentido,
infinita, recriada em cada vida.
Romance do desvendamento da verdade, entendida como superação do engano,
ilusão e sofrimento; desvelamento da verdade em relação a si e ao outro, quer essa
alteridade seja íntima, representada pelo demônio, os «avessos», o ruim-querer;
quer essa alteridade seja a do outro ser humano e do mundo.
O tema da ascese que conduz à sabedoria aparece em diversos textos de Rosa,
como uma incessante retomada da meditação que o poeta-filósofo propõe. A
viagem interior, contrapartida das perdas e da errância é, em todos os escritos, a
cifra da busca da própria alma, do próprio centro; travessia do espaço, travessia
do tempo, travessia da língua – recriando, pela poesia, sua capacidade de dizer o
mistério da vida e da morte, do Deus que se mostra e se esconde, na pluralidade
do mundo.
Em resumo: os estudiosos convergem ao entender como metáfora-chave do
Grande sertão a travessia da existência; o sertão é o análogo do mar na Odisseia,
em Lusíadas, no Mensagem; a vida é lugar do desvelamento da verdade a respeito
de si e do outro; é descoberta do significado do viver; dado que a saga do herói é a
mesma do homem, na busca da progressiva ampliação da consciência; é realização
da areté, da superioridade moral; é cumprimento de um destino individual, mas
paradigmático, proposto a todos os homens, como tarefa essencial.
265
266
A viagem como peregrinação e redenção em
Dalila Pereira da Costa
Na obra de Dalila Pereira da Costa, o tema da viagem aparece como travessia
do mundo e metáfora da viagem interior, travessia da alma, em diversos textos.
Destacamos os escritos entre 1974 e 1999, uma vez que o tema é retomado,
neles, sob diversas perspectivas.
Publicado em São Paulo, em 1979, um artigo resume a tese central: “A ‘Peregrinação’: uma ascese portuguesa”406, descreve a aventura de Fernão Mendes
Pinto, numa acidentada viagem ao Extremo Oriente, realizada no século XVI.
Expõe a viagem como peregrinação e sacrifício. O testemunho de Fernão Mendes Pinto mostra a face do homem religioso que, após sucessivos naufrágios e
perda total de riquezas devido a ataques de piratas ao longo de sua viagem ao
Oriente, conseguiu regressar a Portugal, decorridos vinte e um anos. Retornou
pobre, mas dando graças a Deus por ter conseguido voltar à pátria; considerava a
experiência negativa como “remissão dos pecados”, aquisição de “riqueza ultraterrena”, “salvação” (ibid., p. 86). O sacrifício pessoal, a perda de bens materiais,
foi considerada como experiência do desapego, de não-tesaurização, de doação
de bens acumulados, “oferta ao sagrado”, para, em troca, “receber o dom da graça”, a salvação da alma (ibid., p. 88).
No Peregrinação, o que está em jogo é o louvor e a prece, como expressões
da relação com Deus. A religião aí aparece como confiança e amor, de modo que
qualquer resultado a que a vida encaminhe o homem, dá-se graças. A mensagem
do Cristianismo é enfatizada como a de uma religião de redenção, que justifica o
sofrimento pela aliança com o sagrado, purificação da alma; considera a evangelização como tarefa de doação de si e fraternidade. No texto em questão, o
narrador diz que, tendo encontrado, na China, portugueses lá perdidos, que já
falavam pouco a língua materna, um dos participantes da expedição escreveu,
em chinês, num caderno, para eles, “o pater noster, a Ave Maria, o credo, o salve
regina, os mandamentos e (...) outras muitas orações boas” (ibid., p. 99). Recebidos pelos aldeões da terra a que chegaram, rezaram com eles as orações da sua fé.
Daí Dalila dizer: “O reconhecimento, identificação e união fraterna entre os portugueses, através do vasto mundo”, faz-se mediante a fé e o caráter missionário
PEREIRA DA COSTA, D., “A ‘Peregrinação’: uma ascese portuguesa”. Cavalo Azul, S. P., nº 8,
Maio-Junho 1979.
406
267
das viagens marítimas (ibid., p. 101). Sabedoria, santidade, caritas: valores que
orientam a realização da igreja, “como missão sem cessar se fazendo no tempo e
no espaço (...) realização (...) do corpo místico de Cristo – pela reunião, em seu
nome, de alguns portugueses” em vários cantos do mundo (ibid., p. 103).
Evidentemente, a leitura de Dalila não é ingênua. A busca do lucro, caracterizou também, para alguns, a procura das riquezas e a violência da conquista. Mas
o projeto original, que norteia as navegações, teve um sentido mais amplo, de
evangelização e conversão do mundo à vida do espírito. Sofisticadamente preparadas pela Escola de Sagres, as viagens implicavam sólido conhecimento científico e, ao mesmo tempo, submissão a um desígnio maior: o da peregrinação em
busca da conversão pessoal e despojamento, em vista da salvação da alma.
O tema da viagem como travessia do espaço e travessia da alma já aparecia
em dois textos anteriores de Dalila: Duas Epopéias das Américas, de 1974 e A
Nova Atlântida de 1977.
Em Duas Epopéias das Américas, Dalila aborda, em parte do livro, a obra de
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. O romance do autor brasileiro estabelece uma analogia entre travessia do sertão e a aventura da alma, a progressiva
expansão da consciência do personagem principal, o jagunço Riobaldo, que o
leva a assumir a trajetória do herói, na medida mesma em que seus feitos o conduzem ao um confronto consigo mesmo. Dalila propõe uma analogia entre a
travessia do sertão e a travessia do mar, assinalada também por Elizabeth Hazin,
especialista brasileira em Guimarães Rosa, que encontrou no acervo de Guimarães Rosa, na Universidade de São Paulo, textos da Odisséia anotados por Rosa,
na época em que preparava o seu romance, e estabelecendo analogias entre viagem de Riobaldo e a viagem marítima de Odisseu.
No texto de 1977, A Nova Atlântida, dedicado à poetisa paulista Dora Ferreira da Silva – editora da revista Cavalo Azul, no qual foi publicado o artigo “A
Peregrinação” – Dalila estabeleceu uma analogia entre a ação civilizadora dos
gregos antigos e a de Portugal, na modernidade. Nos primórdios da civilização
ocidental, os gregos buscavam a verdade, tesouro supremo; na modernidade, “os
navegantes ibéricos seriam os continuadores de Ulisses”407, estabelecendo laços
entre a busca da verdade e a viagem marítima. Primeiro, os cretenses e venezianos, no Mediterrâneo; depois, no Atlântico, os ibéricos. Na viagem, metafóricamente se realiza, entre os gregos, o milagre da razão liberta do mito, o percurso
do mito ao logos; na península ibérica, dá-se a redescoberta do valor do mito,
iluminado pela razão, que desdobra seu significado simbólico. Em Portugal, D.
Henrique teria tido um papel análogo ao de Odisseu, entre os gregos: fazer nascer um cosmos do caos. Diz Dalila: “Aqui na Península, o Oriente e o Ocidente,
a pré-história e a história, o mito e a razão (...) se unirão no exacto ponto e momento de 1500” (ibid., p. 19).
407
Id., A Nova Atlântida. Porto: Lello & Irmão. Ed., 1977, p. 14.
268
Um capítulo especialmente interessante, no livro, é o intitulado: “Os Lusíadas
ou a procura da totalidade”, no qual, a partir de Camões, Dalila revê o significado e o papel de Portugal na história, no início da modernidade: unir Ocidente
e Oriente, “pela descoberta do caminho marítimo para a Índia” (ibid., p. 109),
estabelecendo, assim, uma compreensão una do mundo, pela complementaridade entre os opostos. A pensadora aponta, uma vez mais, analogias entre a saga
da viagem marítima portuguesa e as viagens descritas na Odisséia e na Eneida.
Representando seus respectivos povos, o grego e o romano, Odisseu e Enéias
têm, nos poemas, papel análogo ao que Camões atribuiu a Vasco da Gama: a
viagem não é só um percurso no espaço mas também ascese, iniciação, exposta
através das figuras exemplares dos heróis e da travessia do tempo, dos naufrágios
e da morte.
Para os portugueses, a terra sagrada que buscavam, espaço do tesouro material e espiritual, é a Índia. Chegar até lá supõe a travessia do mar, prova e confronto com o monstruoso, o terrível, assimilado, depois, ao sagrado abissal, mistério tremendo que é preciso investigar, para ter acesso ao conhecimento.
Conhecimento do caminho das Índias; mas também conhecimento que implica uma abolição do tempo e do espaço, o encontro entre eternidade e tempo. A finalidade da aventura é conhecer a verdade; unir os opostos – Oriente e
Ocidente; o serviço a Deus, a difusão da fé; o encontro do próprio centro, pelo
cumprimento de um destino espiritual. Na viagem, a Índia é a metáfora da transcendência, do espaço sagrado e paradisíaco. E a missão dos portugueses é “abrir
e possuir o mar, e salvar a terra dos homens” (ibid., p. 120).
O percurso no espaço, através do mar, é metáfora do sacrifício e ascese, tarefa
do herói que vai até o outro mundo – representado metaforicamente pela viagem ao Oriente e o retorno à pátria. Dois paraísos movem a busca: Portugal, no
Ocidente, como pátria à qual regressar; a Índia, no Oriente, como terra sagrada,
repleta de ouro e especiarias – metáforas das riquezas espirituais. Um duplo percurso: no espaço e na alma, é oferecido ao herói, Vasco da Gama; seu objetivo é a
realização de uma obra universal, que cabe a Portugal e seu povo. O mar, físico,
é caminho e perigo; o mar simbólico é encontro com o mistério cosmogônico,
com o sagrado em seu aspecto primordial. A Índia, o caminho da Índia, é também a tarefa “de reduzir as trevas à luz (...) o desconhecido ao conhecido (...)
um caos a um cosmos” (ibid., p. 125). É ainda caminho em direção a si mesmo,
busca da sabedoria, rememoração e profecia do homem vindouro (ibid., p. 133
e segs).
Em um texto mais recente, de 1999, Dos mundos contíguos, a estudiosa portuguesa oferece uma síntese, a nosso ver, de sua hermenêutica e dos símbolos
da viagem. Desdobra, uma vez mais, o significado da viagem, reiterando que o
objetivo dos navegadores era busca de saber e de riquezas materiais, mas sobre-
269
tudo de conhecimento de si mesmos, despojamento perante as perdas e naufrágios, auto-superação e obediência a uma missão de caráter religioso: difundir
o cristianismo, evangelizar os povos, unir o mundo sob a égide do espírito, da
generosidade e do amor.
Alargamento da consciência, procura do paraíso, ressonância de experiências
místicas narradas por poetas e santos: as que possibilitam a aproximação entre
eternidade e tempo, entendida como regeneração, redenção da queda e do exílio
– metáforas da condição humana precária e mortal408.
Na tradição portuguesa, herdeira dos mitos celtas e do sufismo, das tradições
medievais – a procura do paraíso é tema constante, entendida como viagem às
ilhas sem males, extra-temporais. Esses mitos são retomados por Camões em Os
Lusíadas, de modo que a viagem portuguesa aparece como caminho em direção
à Índia, ao Oriente, mas também como metáfora da busca da terra paradisíaca, da riqueza espiritual. O poema de Camões, sublinha Dalila, termina com
a entrada dos nautas na terra divina, da juventude eterna, da imortalidade: as
Ilhas Afortunadas. A viagem se faz com um duplo escopo: temporal, descoberta
e caminho através do mar; simbólico, de redenção e imortalidade, superação do
tempo.
Essa temática: de unificação do mundo, estabelecendo laços entre o Oriente e
o Ocidente; de unificação do homem, que alcança a sabedoria, o conhecimento
que leva ao mundo suprasensível, à liberdade e ao amor, está presente, diz Dalila,
no projeto de Santo Agostinho e de Paulo Orósio; o de construção, no tempo,
de uma via para o Absoluto. E se expressa na vida de Portugal, na poesia de
Camões, “na profecia de Bandarra, Vieira e Pessoa, no sebastianismo e Quinto
Império”409, como busca do encontro entre eternidade e tempo, superação da
morte, vivida na experiência extática, como a descreveram Santa Tereza, São
Francisco e os místicos sufis (ibid., pp. 25 e 27; 122 e segs).
A viagem aparece, na tradição e lendas portuguesas, como busca desse estado de consciência alargada, análogo ao êxtase ou ao sonho, que diversos mitos
assinalam. Dalila aponta similaridades entre lendas medievais, celtas, mitos sumerianos e o entrelaçamento, em Portugal, de mito e história, na figura de D.
Sebastião.
O mar, o sono e o sonho, a morte, são metáforas das vias de acesso ao além
do tempo, à eternidade. O estado alterado de consciência, que representa o reconhecimento da passagem entre tempo e eternidade, é expresso pelo herói Vasco
da Gama, nos Descobrimentos e por poetas e profetas, nos tempos ulteriores.
Dalila estabelece uma analogia entre o tempo vivido pelos heróis na Ilha dos
Amores, descrito por Camões, e a experiência iniciática dos Mistérios, na Gré408
409
Cf. RICOEUR, P., La symbolique du mal. Paris:Aubier/Montaigne, 1960, passim.
PEREIRA DA COSTA, D., Dos Mundos Contíguos. Porto: Lello Ed., 1999, p. 18.
270
cia, que implicava o confronto com a morte. Orfeu, poeta e músico, era considerado o fundador dos Mistérios; era um mestre espiritual que conhecia o poder
da música “de purgar e elevar o homem” (ibid., p. 105). É também aquele que
enfrenta a morte, desce ao mundo dos mortos e de lá retorna. .
Na poesia, na música, a inspiração estabelece o laço entre o homem e o sagrado, o encontro com o real absoluto. Poesia e música, poesia e ascese, poesia
e filosofia, são etapas da ascensão do homem na busca da verdade. Na obra de
Dionísio Areopagita, na música de Bach, Mozart, Beethoven, cumpre-se, “do
lado humano [a] subida à fonte da vida” (ibid., p. 96), análoga à viagem metafórica da alma (ibid., p. 91 e segs).
A aventura marítima aparece, para Dalila, como uma aventura soteriológica,
busca do mundo arquetípico, que une o passado e futuro. A viagem dos nautas
é uma das metáforas que mostram, no tempo e no espaço, a busca do sagrado,
do absoluto. É obediência a um mandato do céu, de criação de uma comunidade espiritual; é desindividualização, santificação pessoal, santificação do mundo,
levada a cabo por um povo e seus governantes. A ascese que este esforço implicou expõe uma tradição religiosa que inspirou reis e o messianismo português
ulterior, de Bandarra a Vieira, até “os poetas e filósofos de A Águia, Pascoaes,
Leonardo Coimbra e seus discípulos, Álvaro Ribeiro, José Marinho (...)” (ibid.,
p. 162).
O percurso dessa tradição está marcado pela aventura de partir e regressar
a uma pátria; ao cumprimento da vida como ascese e redenção, à compreensão
do tempo do ponto de vista do eterno, como o Regresso ao Paraíso, de Pascoaes,
expressaria (ibid., p. 170), bem como a atuação dos mestres da Renascença Portuguesa. Nessa perspectiva, a esperança da unificação do mundo sob a égide do
amor, expõe-se contemporaneamente como unidade do mundo de língua portuguesa, como realização do V Império mítico através do Atlântico e da união
das raças lusíada, índia e negra, tendo o Brasil, nessa renovação do mundo, papel
importante: o de expressar o amor, a sabedoria do coração, a alegria, a liberdade.
O projeto é “de instaurar sobre a terra a Cidade de Deus” (ibid., p. 177), “consumação da história, na paz e harmonia universal” (ibid., p. 178), realizando “a
única e vera revolução sobre a terra: a espiritual” (ibid., p. 181).
Para Dalila, a missão espiritual que parece ter ido assinalada ao povo português é a realização da unidade do mundo sob a égide do espírito, metafórica
e historicamente representada pelo diálogo Ocidente–Oriente, de que as navegações seriam um dos marcos, assim como o desbravamento do território do
Brasil. Na opinião da pensadora, essa missão foi retomada contemporâneamente
pelos pensadores e filósofos de A Águia e da Renascença Portuguesa.
A partir das afirmações da estudiosa portuguesa, podemos dizer que, em período mais recente, a vinda ao Brasil a partir da década de 50, no século XX, da
271
chamada Missão Portuguesa, importante grupo de intelectuais portugueses que
tiveram atuação marcante na vida cultural brasileira, atuando na Universidade
de São Paulo; na Universidade de Brasília – da qual alguns foram fundadores,
como Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva; na Universidade Federal da Bahia,
para citar apenas algumas das universidades beneficiadas com a presença desses
mestres – parece traduzir uma nova etapa do projeto de unificação do mundo
sob a égide do espírito.
O porte dessa atuação, no Brasil, ainda não foi completamente apreciado.
Estudos sobre a Missão Portuguesa vêm sendo feitos na Universidade Estadual
Paulista410, na qual foram editadas as primeiras publicações destinadas a considerar o impacto dessa presença.
A própria Dalila, entre 1959 – 1965, viveu no Brasil e seus escritos, publicados na revista Cavalo Azul, assim como a dedicatória do livro A Nova Atlântida à
Dora Ferreira da Silva, mostrou laços estreitos com o Grupo de São Paulo411, cujo
impacto na vida cultural do país e no estabelecimento de laços com Portugal vem
sendo examinados. Certo paralelismo de temáticas e fontes pode ser entrevisto
nos escritos de Dalila e Dora Ferreira da Silva e mereceria ser aprofundado.
Em resumo, podemos dizer que, partindo de estudos sobre a viagem dos navegadores, entendida no seu duplo escopo: o de unificar o mundo, estabelecendo
um diálogo entre o Ocidente e o Oriente, mediante a difusão do Cristianismo;
o de salvar a alma, realizando missão de cunho religioso, a viagem é progressivamente vista por Dalila como metáfora da missão permanente do povo português, representante emblemático da humanidade em busca de conhecimento e
mudança qualitativa de consciência, possibilitando a união entre um saber religioso e a sabedoria do coração.
Examinando, de modo análogo ao procedimento de Eliade, no estudo comparado dos mitos de diferentes povos a expressão e o significado do sagrado,
Dalila considera os mitos que narram as viagens iniciáticas dos gregos, dos celtas, dos místicos cristãos e sufis, à luz de tradição neo-platônica de Agostinho
e Dionísio Areopagita, quando tratam da construção, no tempo, da Cidade de
Deus, entendida como tarefa de cada um e de todos os homens. A mudança
qualitativa da consciência individual e coletiva é a via da salvação. A pensadora
desdobra, assim, os significados simbólicos da viagem como peregrinação no
mundo e ascese.
410
411
LEITE, R. M. e LEMOS, F. (orgs.), A Missão Portuguesa. EDUSC/UNESP, 2003.
MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000.
272
A Celebração dos Deuses: Vicente Ferreira da Silva
e Dora Ferreira da Silva
Nas obras de Vicente e Dora Ferreira da Silva – poesia, Dora (1918-2006); filosofia, Vicente (1916-1963) – há um jorro excepcional de criatividade e um tom
de festa, de celebração do sagrado, cujo avizinhar-se do mundo eles sinalizam e
pressentem. Na reflexão de Vicente, herdeira do romantismo alemão e de Heidegger, a proposição de uma filosofia da mitologia e da religião foi formulada nas
obras tardias que precederam sua morte, em 1963. São vários artigos, escritos entre
1954-1962, publicados na Revista Brasileira de Filosofia e na Diálogo; desta última
foi o editor, tendo como redatores Dora, sua esposa e Milton Vargas, seu amigo.
Na sua reflexão, Vicente aborda os seguintes tópicos: o conceito de Deus ou
deuses; as noções de mito e mitologia; o conceito de mundo; o significado da poesia e da linguagem, na constituição de uma nova concepção do mundo, homem
e Deus.
Considera a dimensão corpórea do homem como algo que é desvelado, oferecido, objetivado por uma transcendência. A “abertura projetiva” da realidade é
identificada pelo filósofo como Poder Pulsional, Fascinação, deuses.
Que são os deuses, para Vicente? São “ocorrências trópicas (...) suscitação de
marés passionais (...) potência passional”412, de que o homem seria o reverso,
o receptor. Os deuses não são representações imaginativas do homem; mas o
homem é que é posto pelas potências teogônicas, que criam a consciência. Com
Kerényi, Ferreira da Silva afirma que os deuses são origens de todos os valores e
da totalidade do real (ibid., p. 379), são “um poder transcendental constitutivo”,
são transcendência absoluta em relação ao manifestado.
A experiência do divino nos povos arcaicos que vivem o mito como forma de
compreensão da realidade, inscrevia o homem no âmbito do sagrado, do religioso; o mundo era visto como processo “dramático da vida cósmica” (ibid., p. 303),
lugar onde se sucedem “cenas passionais (...) abertura de mundos fantásticos (...)
hierofanias” (ibid., pp. 305-306). Daí nosso filósofo afirmar: os homens do mito
viviam “o arrebatamento de um modo de ser excelso e numinoso”, onde o transbordamento vital do mundo circundante aparece como o modo de manifestação
do sagrado (ibid., pp. 307-308). O mundo era, para eles, sucessão de imagens,
poesia corpórea, epifanias da transcendência.
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. SP: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. I, 1964,
p. 302.
412
273
O pensador brasileiro vê os entes como projeção do Ser e afirma que devemos
nos libertar da centração no homem, para podermos compreender isso: “o mundo é o ‘prius’ de todo o ente, de toda realidade intramundana” (ibid., p. 312). Sua
contemplação vela e desvela uma realidade meta-humana, como também Heidegger o assinalou. Trata-se, para Ferreira da Silva, de constituir um tipo de pensar
que possibilite uma nova compreensão do Ser, como Sugestor da realidade. A realidade não provém “do ente ou das coisas [mas] as próprias coisas [são] imagens
prototípicas”, expõem “o domínio projetante do Ser” (ibid., pp. 314-315).
O Ser é liberdade instauradora, que faz irromper um campo projetivo, no
qual os entes se encontram; é Fascinação, fulguração de uma Poesia em si, traduzida pelas figuras dos deuses – compreendidas como instaurações de modos
paradigmáticos do existir e expressão imagética da transcendência.
O apelo do sagrado originário – do qual todos os deuses, na sua sucessão
nas diferentes culturas são figurações – mostra-se como Fascinação que conduz
à busca de uma plenitude e instaura o sentido da vida, do mundo e do homem.
Não se trata, para Ferreira da Silva, de propor um neo-paganismo. Mas de mostrar, na celebração dos deuses – de todos os deuses – na sucessão das culturas e
dos tempos, o modo pelo qual o Sagrado originário se mostra ao homem. E de
compreender, no mundo contemporâneo, caracterizado pela planetarização da
técnica e pela dessacralização, os sinais do esgotamento da forma de expressão
do sagrado centrado na figura do homem, bem como de falar sobre o advento de
uma nova compreensão de Deus, em cujo limiar nos encontraríamos.
Para o filósofo, a mitologia representa “a abertura de um regime de fascinação”; não é uma criação imaginativa do homem, nem projeção do inconsciente
da espécie; não é pura criação literária. Mito e rito, em cada época histórica,
expõem um cenário e uma presença das imagens do sagrado. Remetem-nos ao
extra-humano como “documento memorizador e revelação histórica” (ibid., p.
319), que imprime uma certa orientação a cada época mundial.
A mitologia representa o universo prototípico; abarca, como o universo que
representa, o passado, o presente e o futuro, possibilitando novas decifrações
infinitamente, diz nosso autor, citando Schelling413. Assim, não é o homem quem
institui as possibilidades de sua própria existência. As possibilidades do existir,
em cada época, são governadas por uma matriz mítica, que constela o sugerido
pelo Imutável e Divino, que não tem uma forma fixa, mas que se torna presente,
em cada época, como desvelamento de um mundo.
O mundo contemporâneo se caracteriza, diz nosso filósofo, pela máxima expressão do homem e pelo domínio técnico da natureza, obscurecendo seu vínculo com o transcendente. Caracteriza-se ainda pela mudança, que estaria se
iniciando, no projetar do mundo, por parte do Ser. Invocando Hölderlin e vendo
nosso presente como um “tempo de carência”, de “noite dos deuses”, afirma e
413
Id., ibid., p. 380, apud SCHELLING, F. W. J., Filosofia del arte, B. Aires: Ed. Nova, 1949, p. 61.
274
necessidade do homem novamente submergir “em sua matriz transcendente”
(ibid., p. 321), sacrificando o ente que atualmente é, para abrir-se a novas possibilidades de compreensão de seu laço com o divino. Assim, a valorização da mitologia é, para o filósofo, abertura de uma nova compreensão do próprio homem,
“a partir das potências míticas”. Essa nova compreensão consiste em considerar o
ser humano como uma alternativa, uma possibilidade do vir-a-ser da divindade,
conduzindo o pensar para lançar-se “além do homem” (...) a fim de “dançar em
consonância com o movimento teogônico universal” (ibid., p. 322).
Para Ferreira da Silva, estaríamos no limiar de uma nova expressão da alteridade absoluta, na medida em que, desapegando-nos do mundo dos entes,
pensamos nossa própria realidade referida a um Sugestor, uma Origem, uma
força da qual a consciência é tributária. A tarefa reflexiva consiste em libertarnos da ocultação do sagrado e retornarmos ao princípio que se desvela como
trans-humano. Tal princípio deve ser celebrado por um novo tipo de pensar, um
poetar-pensante. Diz o filósofo: “O ‘fora’ que examinamos é, no fundo, um ‘dentro’; a objetividade com a qual concordam os enunciados do nosso conhecimento representa uma esfera previamente ‘aberta’ pela luz do mito” (ibid., p. 336).
O novo ciclo de manifestação do sagrado que se anuncia é, para nosso pensador, a superação da história centrada no sujeito humano. Diz ele:” Somos uma
possibilidade emergente de um tema que não foi proposto por nós (...) o impulso
(...) que instigou o pensamento atual [centrado no homem como sujeito] (...)
levou-nos (...) a este saber [da Origem], que se manifesta como o nada humano”
(ibid., p. 343). O mito aparece, para Vicente, como meta-filosofia, proposição do
pensável. Cabe ao filósofo pensar o mitologema que condiciona a cultura; buscar, sob o real manifesto, a Origem na qual todo o pensável está contido, como
fonte prototípica. O mito é exposição de um saber não humano, contendo em
si virtualidades que, ao se desdobrarem, possibilitam o surgimento do sentido
do mundo e do homem em cada época histórica. O pensamento deve retornar
à origem, pôr-se à espera das fulgurações do sagrado, abandonando a adesão
ao mundo dos entes. O desmantelamento cultural, espiritual, que caracteriza a
crise da sociedade contemporânea, decorre do progressivo abandono da figura
humana como lugar de expressão do sagrado. Um novo mito deve surgir; para
Ferreira da Silva, é a rememoração dos deuses antigos, modelos prototípicos de
um “plus” de que o homem é convidado a se aproximar. O mito expressa um
pensamento simbólico, uma lógica imagística que se manifesta de forma poética
ou dramática. A característica desse pensamento é “uma síntese (...) do particular e do geral, da imagem e do conceito, do singular e do universal” (ibid., p.
369). Exemplifica essa característica do pensamento simbólico através da consideração interpretativa da figura mítica de Afrodite, na qual estaria contido todo
o conhecimento fantástico- simbólico do amor: “Afrodite encarnaria enquanto
símbolo (...) a própria revelação do mundo enquanto amor”.
275
O símbolo possibilita, na forma em que se expressa, transcender o tempo e
o espaço e alcançar a universalidade da experiência. É, para Vicente, tautegoria,
tradução de uma linguagem em outra que alude a uma totalidade, em cada aspecto abordado, descritivo ou mítico. Uma imagem se torna “símbolo quando
nos dá (...) o conteúdo de uma protoforma divina (...). As metamorfoses dos
símbolos constituem a força inerente à Imaginatio Divina” (ibid., p. 373).
Assim, a linguagem simbólica é revelação, epifania; o símbolo é encontro
“com uma força plasmadora que nos oferece uma experiência de saber inesgotável”. Dioniso, por exemplo, diz nosso filósofo, é a uva, o vinho, mas também está
presente no séquito das bacantes, no coro trágico, “no sentimento que celebra o
êxtase da existência”. Compreender o mito, desdobrar seu significado simbólico,
desvendar seu valor de verdade, é a tarefa do filósofo.
O mundo não tem um significado fixo; ele é o conjunto dos seres, a totalidade
das coisas que encontramos e que constitui uma unidade de significação. Desvelar seu significado é aceder à concepção de Deus que preside a cada concepção
do mundo. A cultura tem origem religiosa, pois o sagrado é poesia em si, “inaugura poeticamente um mundo” (ibid., p. 381). Mundo não é o conjunto de objetos circundantes; é o significado aberto pelo Ser, Deus ou deuses (ibid., p. 383).
O pensamento simbólico plasma o caminho em direção a um aperfeiçoamento do homem e das coisas. É uma via poética, mediante a qual o homem se identifica com “uma transcendência, um desenhar prototípico (...) que abre o campo
(...) da história e da face dos entes no seu conjunto” (ibid., p. 388). É na linguagem
que se expressa a existência humana; sua essência é a poesia, que “nomeia as coisas naquilo que são”, como afirma Heidegger, citado pelo filósofo brasileiro.
A palavra simbólica ordena o real a partir da poesia originária; os mitos, cantos e rituais rememoram a palavra da Origem, que condiciona a totalidade dos
entes. Na medida em que o homem se orienta em direção “a um campo fascinante divino”, atualiza formas de realização, segundo “os valores [propostos numa]
diacosmese” (ibid., p. 395). Celebrar um deus é orientar-se na direção do transcender que o mito vinculado a esse deus propõe: “a relação entre o efêmero (...)
e o (...) eterno no homem” alteram-se de acordo com a perfeição proposta pela
inspiração de um deus”, através do mito que o narra (ibid., p. 396).
No horizonte dessa visão que se apresenta como uma decifração do significado da religião entre os povos arcaicos e como reflexão filosófica, interpretação do
presente à luz das possibilidades abertas em relação ao futuro pelo mito vigente,
destaca-se um texto, escrito por Ferreira da Silva em 1962: o Diálogo do Mar, no
qual os personagens: Mário, George, Diana, Paulo, são amigos que conversam
sobre a possibilidade do surgimento “de um novo universo prototípico”, “de uma
nova mitologia”, pela qual se revelaria uma nova face do Divino.
Em outro texto, de 1953, Sobre a Poesia e o Poeta, escrito em colaboração com
sua esposa, Dora, o filósofo põe à luz o significado e o papel da obra de arte: o
276
de desvelar os antigos mistérios, o de celebrar os deuses vindouros, através da
linguagem simbólica. Compreendendo “a arte como Encontro e Anunciação, e o
poeta como mediador entre os deuses e os homens”, Vicente e Dora pretendem
devolver “à arte sua veracidade e necessidade” (ibid., vol. 2, pp. 384-385). O poeta é, como afirmava Hölderlin, como assinalava Rilke, o “homem sacral”, que
celebra os deuses. Seu dizer é mitologia, festa, culto, “epifania do Deus”; “não é
magia humana, mas magia divina” (ibid., p. 386).
Como Vicente, Dora também recusa a dessacralização atual, o empobrecimento da vida na sociedade técnica, a vulgarização do homem aderido às coisas.
Como Vicente, Dora procura a reaproximação à esfera do sagrado. No que poderia parecer um neo-paganismo, reside a força da linguagem poético-simbólica
da artista que, ao modo de Hölderlin, lê nos mitos a presença viva dos deuses.
Se na primeira etapa da sua poesia a divindade se mostra a partir de uma pluralidade de deuses, vivos e presentes nos seus versos, é porque Dora busca a redescoberta do sagrado, do numinoso, sob o forte impacto das leituras que fez no
âmbito de fenomenologia da religião, da poesia romântica e de Heidegger. Como
Hölderlin, a poetisa se expõe à catadupa de imagens, à aspiração e celebração
de um novo sabor da vida, desdobrando, nos seus versos, os diferentes aspectos
dos mitologemas. Assim, expõe o significado, para o homem contemporâneo, do
apelo à Transcendência e à plenitude da vida, por esta representada.
Partindo de fontes análogas às de Vicente: a fenomenologia da religião, Heidegger, Rilke – a poesia de Dora Ferreira da Silva se caracteriza pela celebração
dos deuses arcáicos, da matriz grega; e de Cristo, da mística cristã, num segundo
momento414.
Tendo raízes ancestrais na Grécia, no Épiro, como seu livro Retratos da Origem mostra, sua poesia é evocação dos deuses, buscando a recuperação da proximidade com o sagrado pelo mergulho no mito arcáico. A vivência profunda, a
partir das imagens arquetípicas, do que chama de proximidade e atenção ao divino, propicia à poetisa uma riquíssima leitura da imagética dos mitos gregos. A
experiência de Dora é a da exposição a uma alteridade que inspira e entusiasma,
fazendo a artista viver num estado da consciência que se caracteriza pelo jorro
criativo da obra literária. A tarefa do poeta não é só escrever, mas viver poeticamente, encarnando na própria existência, no tempo e espaço quotidianos, a
mediação entre o ser humano e o Absoluto. Como Hölderlin, como Rilke ­– seus
irmãos em poesia – Dora invoca os deuses, invoca o Anjo.
O caráter sacral da arte, consistindo na mediação entre “terra e céu, deuses
e mortais”, como dizia Heidegger415, cuja obra Dora conhecia bem, é posto em
relevo em seus escritos. Diálogo entre os mortais e a divindade, possessão pelos
deuses da consciência da poeta; abertura de um ver, através de beleza, o signifi414
415
FERREIRA DA SILVA, D., Retratos da Origem. SP: Roswitha Kempf Ed., 1988.
HEIDEGGER, M., Essais et Conférences. Paris: Gallimard, 1954, pp. 170-193.
277
cado essencial do mundo e do homem; mediação entre a vida e a morte, trânsito
entre o sonho e a vigília, inspiração, premonição, taumaturgia: essa a tarefa do
poeta, essa é a poesia de Dora. Por ela, os deuses se aproximam de nós; por ela, o
mistério e o não-ainda-dito se avizinham; por ela aprendemos a contemplar, no
jardim e na noite, na montanha e no mar, a cintilação de um deus vindouro; a
ouvir o anúncio de uma nova época; a constatar o giro da roda do tempo sinalizando uma mudança civilizacional profunda, da qual somos testemunhas.
Nas obras iniciais, o apelo aos deuses gregos já está presente. A volta ao passado originário, em Dora, é também retomada de suas próprias raízes ancestrais:
seus antepassados foram da Albânia à Grécia – Kérkyra – e de lá para a Calábria,
a Magna Grécia, vindo depois radicar-se no Brasil. Mas sua poesia é também,
para todos nós, a celebração da Grécia metafórica, pátria imaginada, vida do
espírito, inspiração.
Se a filosofia é “fazer ver com as palavras”416 do discurso racional, a poesia
pode ser considerada um fazer ver com imagens, com a linguagem metafórica e
simbólica. Cabe ao filósofo desdobrar significações, cabe ao poeta fazer ver de
modo novo, pela linguagem imagética.
Dora põe à luz o sagrado, invocando os deuses, descrevendo aspectos dos
mitos arcáicos. Torna viva a presença dos deuses, faz ver a totalidade do visível
como a outra face de um transcendente invisível. Os mitos a que constantemente
se refere, na primeira fase da sua poesia, desde o livro Andanças417, que reúne
poemas escritos entre 1948 e 1970, são: Koré, Diana; mas já existe um texto de
prosa-poética, dedicado ao Cristo-Sol.
Entre 1973 e 1988, em Uma via de ver as coisas (1973)418 a referência aos deuses
gregos e aos espaços sagrados da Grécia arcáica se amplia: Mnemósina, Selene, Apolo, Orfeu, Kuros, Athena, Afrodite, Castália, Cabo Sunion; mas também comparecem os poemas dedicados aos espaços sagrados cristãos: Chartres, Roma, Assis.
Jardins (esconderijos), de 1978419, dedicado a Agostinho da Silva, abandona
a reiterada menção aos deuses antigos. O que emerge, como expressão do laço
com o sagrado é a figura de São Francisco; e a celebração de Vicente, dos amigos
poetas ou inspiradores, evocados no belíssimo poema: Inscrição para os vivos:
Cecília [Meireles], Clarice [Lispector], Guimarães Rosa, Eliot, Fernando Pessoa,
Rilke, Jung, Cannabrava.
Retratos da Origem (1988)420 mostra a trajetória da sua família, da Albânia à
Grécia, ao Épiro, a Kérkyra, à Calábria e enfim ao Brasil. Inclui também o longo
416
LEFORT, C., Préface, in MERLEAU-PONTY, M., L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1967, p. VII.
Lefort estabelece, no seu prefácio ao livro de Merleau-Ponty, uma analogia entre o ver do pintor e
o ver do filósofo. O pintor faz ver com as cores; o filósofo, com a palavra, o discurso racional.
417
FERREIRA DA SILVA, D., Andanças, 1970 (edição da autora).
418
Id., Uma via de ver as coisas. S. P.: Duas Cidades, 1973.
419
Id., Jardins (esconderijos). SP: 1979 (edição da autora).
420
Id., Retratos da Origem. S. P.: Roswitha Kempf, 1988.
278
poema Cantares do Itatiaia, montanha mágica onde Dora viveu numa comunidade alternativa, com Vicente e amigos e onde construiu depois uma de suas
casas e uma capela, aí se retirando, de tempos em tempos, para escrever e contemplar a natureza, vivenciar o silêncio.
Talhamar, de 1982421, retoma a temática grega, a partir de figura do mergulhador, pintura mural encontrada em Paestum, Magna Grécia, em 1958. Um
cartão reproduzindo a pintura serviu de imagem indutora da imaginação poética, tornando presente e viva a melancolia perante a beleza: do mar, do amor, das
amigas, do jovem que busca no mar profundo a amada, das flores que lembram
o amor e a morte. A sucessão de nomes femininos ditos nos versos: Dion, Dodona, Larissa, Trikalla, evocam as cidades sagradas de mesmo nome, e Delfos, e o
Épiro mítico. A elas, sucede a menção aos deuses: Ártemis, Afrodite e a Dioniso.
Outros poemas anunciam a vinda de um novo deus, de um novo tempo.
Apenas esboçada, nos versos sobre o mergulhador, a meditação sobre a morte vai se aprofundando, através dos poemas tematizando Nakt, figura imaginária
da escrava egípcia que desce o rio na barca dos mortos. A sequência do livro traz
uma série de poemas intitulados Tendas, que descrevem, como em uma viagem,
o encontro com os amados mortos – que vivem a “vida ígnea”, pois atravessaram
a fronteira que separa a vida da morte, mas se avizinham no silêncio de noite,
trazendo o ensinamento-chave: “vida e morte, um mesmo canto”422.
O tema do mar reaparece nos Sete poemas de Ubatuba e em Albamar, sequência de versos que evocam o mar, a morte, a casa na floresta, a identificação
com Rilke e a visita de um pássaro, metáfora da poesia e da transcendência reiteradamente escolhida por Dora.
Meditação sobre a morte, sobre a unidade entre a vida e a morte, de que a
poesia de Rilke é, para Dora, o emblema, Talhamar encerra, provisoriamente,
um ciclo centrado principalmente na temática grega. Contudo, essa permanece
sempre como fio condutor, que se torna cada vez mais evidente, como substrato,
fundamento, do poetar de Dora.
No Poemas da Estrangeira (1995)423, menções breves à Grécia, a Delfos e às
deusas e personagens míticas: Diana, Koré, Cassandra, Perséfone, Deméter, Hades, Orfeu, Apolo, Dioniso, sinalizam a continuidade, mas também a mudança
de ênfase na temática dos poemas de Dora, que tem como focos de atenção novos
espaços sagrados: a montanha mágica do Itatiaia, Alcobaça, Ravena; e não mais
apenas a referência a deuses, mas à Trindade, a São Francisco e à festa de Corpus
Christi. É tematização das referências cristãs, que já brevemente se anunciara,
em 1962, no prefácio ao livro de Hilda Hilst, Sete Cantos do poeta para o Anjo424,
Id., Talhamar. SP: Massao Ohno/Roswitha Kempf (eds.), 1982.
Id., ibid., Tendas, VII.
423
Id., Poemas da Estrangeira. SP: T. A. Queiroz, 1995.
424
Id., “Duas experiências do Angélico”, in HILST, H., Sete Cantos do poeta para o Anjo. SP: Massao
421
422
279
nas traduções: das Elegias de Duino – edição crítica dos poemas de Rilke425; na
edição de textos de Angelus Silesius426, em colaboração com Hubert Lepargneur;
nos estudos sobre a poesia de San Juan de la Cruz427; no estudo comparado de
Tauler e Jung, em colaboração com Hubert Lepargneur428.
No último livro publicado em vida por Dora, Hídrias, mitos gregos e hierofanias se apossam novamente dos versos de Dora, como bem assinalou Luiz Alberto Cabral, no prefácio429. Como Andanças e Poemas da Estrangeira, também
Hídrias recebeu o importante prêmio nacional de poesia, Prêmio Jabuti.
No Hídrias, é significativo que o poema de abertura seja A Sibila. Assumindo
a voz da advinha, Dora fala aos poetas, lamentando o mundo que contempla, do
qual os deuses se ausentaram. Só os poetas mantêm viva, diz a sacerdotisa, a palavra profética de Apolo, a celebração de Orfeu430. Dora retoma, em esplendidos
poemas curtos, os temas da genealogia e características dos deuses. Celebra –
isto é, presentífica, faz com que se aproximem os deuses e os mortais, desdobrando aspectos dos mitos referentes a Leto, Ártemis, Apolo, Narciso, Hyacinthos,
Dioniso Dendrites, Poseidon, a Grande Mãe, Koré, Perséfone, Hades, Hécate,
Afrodite; evoca Delfos, espaço sagrado por excelência. Cria também “uma nova
personagem mítica, a esquiva Tálida”, como assinala Luiz Alberto Cabral431, que
também ressalta, a propósito dos poemas que encerram o livro, o “profundo
conhecimento de tradição mítica grega, inclusive de lendas pouco conhecidas e
obscuras, como a das Hélias (...) e dos Telquines (...)”, assim como a que se refere
às jovens de Rodes, Macelo e Dexítea (ibid., pp. 22-23). Aspectos essenciais dos
mitos são narrados, na sucessão de poemas de uma “sonoridade encantatória”,
que promove “uma transferência direta para o âmago” do mito grego, conforme
diz Cabral (ibid., p. 19), desvelando “a motivação profunda que subjaz no mito
(...) sua lógica imanente” (ibid., pp.18-19), construindo “imagens míticas insólitas [e mostrando], simultâneamente, a correspondência com todos os elementos
tradicionais do mito”, vivenciando “sua primordialidade”.
A presença da poetisa, a precisão de sua linguagem, marcada até mesmo no
quotidiano “pelo ritmo da dicção poética”, mostram-se a Cabral como o aparecer, no mundo concreto, de uma musa grega (ibid., p. 24) – tal a força com que
o viver poéticamente de Dora se impunha a quem a encontrava. Carlos DrumOhno, 1962.
425
RILKE, R. M., Elegias de Duino. P. Alegre: Ed. Globo, 1972, id., A vida de Maria. Petrópolis:
Vozes, 1994.
426
ANGELUS SILESIUS. S. P.: T. A. Queiroz, 1986.
427
FERREIRA DA SILVA, D., A poesia-mística de San Juan de la Cruz. S. P.: Cultrix, 1982.
428
LEPARGNEUR, H. e FERREIRA DA SILVA, D., Tauler e Jung: o caminho para o centro. S. P:
Paulus, 1997.
429
CABRAL, L. A. M., “Mito e hierofania na poesia de Dora Ferreira da Silva”, in FERREIRA DA
SILVA, D. Hídrias. São Paulo: Odysseus Ed., 2004, pp. 9-24.
430
FERREIRA DA SILVA, D., Hídrias, p. 27 e segs.
431
CABRAL, L. A. M., Mito e Hierofania... In FERREIRA DA SILVA, D., Hídrias, p. 22.
280
mond de Andrade, em um poema a ela dedicado, descreve a poesia de Dora “
como o traço de ouro /que fixará o sonho acordado “, provocando o reconhecimento, pelo poeta, de “uma convergência extasiada” entre ambos432. E José Paulo
Paes, na apresentação do mesmo livro, refere-se à “poesia órfica” de Dora, que se
caracteriza pela “presença do sagrado”433.
A celebração do sagrado fazia da casa de Dora – oficiante de um rito – e do
espaço em que se movia, a entrada em “um mundo inesgotável (...) sem tempo
(...) miscelânea de tempos sobrepostos (...) clareira densa de vida e linguagem”434,
diz o poeta Rodrigo Petronio, no texto que apresentou a 3 de Abril de 2007, no
Centro Cultural São Paulo, em homenagem a Dora.
Em Abril de 2006, Donizete Galvão publica quatro poemas em homenagem à
Dora; e em 1º. de Julho de 2006, dia em que ela completaria 88 anos, os poetas Alexandre Bonfim, Donizete Galvão, Ruy Proença, Carlos Machado, Eric Ponty celebraram a escritora, lendo versos escritos em sua homenagem, na Casa das Rosas,
em São Paulo. Nesses poemas ela é a “Irmã das epifanias” (Alexandre Bonafim);
Diotima (“Solilóquios da estrangeira”, Donizete Galvão); um diamante (“Dora Diamante”, Ruy Proença; “Diamante”, Carlos Machado). Em Junho de 2006, Rodrigo
Petronio publica um longo poema em homenagem a ela, intitulado “Astarté”.
Identificada com os mitos que tematizava em seus poemas, imortalizada nos
seus versos e na voz de outros poetas, consuma-se a celebração dos deuses na
obra e na pessoa da poeta: “A vida é o ponto escolhido para o triunfo célere de
um deus (...) vela e desvela uma face (...) divina”435.
Vilém Flusser, seu amigo e tradutor de seus escritos para o alemão436, a descreve como aquela que vê “o pulsar do belo como o pathos religioso”; como a que
reconquista “a kallokagathia”. A sua poesia é, assinala Flusser, “elaborada sofisticadamente, tanto a nível linguístico quanto ‘simbólico’ (...)”; sua escrita resulta
de “dura disciplina” (ibid., pp. 152-153). Para ela, o símbolo é “mediação e sujeito
e o transcendente”. No seu verso,
“o Cristo enquanto logos é não apenas o símbolo máximo (a mediação
par excellence) mas também o símbolo-chave que permite (...) a descoberDRUMMOND DE ANDRADE, C., poema, datado de 5 de Maio de 1982, publicado na contracapa de Poemas da Estrangeira.
433
PAES, J. P., “A presença do sagrado numa obra sensível e plena”, in FERREIRA DA SILVA, D.,
Poesia Reunida. RJ: TOPBOOKS, 1999, pp. 410-413. A edição que contempla a obra poética de
Dora até 1999, traz na fortuna crítica que encerra o livro, depoimentos e estudos de poetas, pensadores e críticos literários como: José Paulo Paes, Cassiano Ricardo, José Augusto Seabra, Ivan
Junqueira, Vilém Flusser, Euryalo Cannabrava, Gilberto de Melo Kujawski, Nogueira Moutinho,
Agostinho da Silva e dois textos meus. A apresentação do livro foi feita pelo poeta Gerardo de
Melo Mourão.
434
PETRONIO, R.,“ A ave, o mergulho e o fogo”, in rodrigopetronio.blogspot.com/2009/11/ aveo-mergulho-e-o-fogo/html.
435
FERREIRA DA SILVA, D., “A novilha” in id., Talhamar. SP: Massao Ohno/ Roswitha Kempf,
1982.
436
FLUSSER, V., Bodenlos. SP: Annablume, 2007, p. 161.
432
281
ta de todos os significados (…); o símbolo é ambivalente(....)ponteiro da
coisa concreta e do transcendente(....) [porque ] para ela, fazer poesia é
mergulhar em prece “ (ibid., pp. 156-157).
O fascínio que a obra de Rilke exerceu sobre Dora é explicado, diz Flusser,
pela “capacidade rilkeana de fazer da língua ‘ordinária’ (...) um veículo (...) para
o significado transcendente” (ibid., p. 159). A observação de Flusser, o encantamento que a poesia de Dora desencadeia sobre o pensador da linguagem mostra
uma característica da obra da poetisa. Dora, como Rilke, parte do aparente banal
– mulher, pássaro, jardim – ou da descrição de um aspecto pouco conhecido de
um mito, para desencadear o surpreendente voo em direção ao Absoluto.
Para Vicente, a celebração dos deuses está ligada à hermenêutica do mito e
da linguagem simbólica, à crítica de nossa época – tempo de crise, de obscurecimento do mundo, da técnica triunfante, da perda de sentido do humano. Seu
pensamento é busca de uma ontologia na qual o homem e o mundo aparecem
como interligados e dependentes de uma realidade originária, entendida como
uma divindade, acima de qualquer representação e que se mostra na sucessão
de figuras dos deuses, nas diferentes épocas históricas. É busca de uma racionalidade aberta ao intuitivo, ao onírico, ao mítico, assinalando o valor de verdade
presente na linguagem simbólica. Tal razão hermenêutica, que decifra para compreender, faz da filosofia um poetar-pensante, voltado para o caminho que vai
do ente ao Ser, ao abismo da Origem.
A metodologia dessa hermenêutica é a procura sistemática de perspectivas
convergentes, procedendo de diferentes campos do saber contemporâneo: fenomenologia da religião, ontologia, poesia, como Vicente assinalou, no editorial do
primeiro número da revista Diálogo. A convergência e a concordância expressariam o surgimento de um novo tipo de pensar, onde “O pensador diz o Ser. O
poeta nomeia o sagrado”437; e onde “Cantar a pensar são os troncos/vizinhos do
poetar”438, como já indicara o mestre da Floresta Negra.
Em uma carta enviada à Dora, intitulada O verdadeiro pacto439, Vicente fala
da vocação de indagar sobre a condição humana, da tarefa de realizar a liberdade,
apesar da angústia que isso implica. Exercício de coragem, a filosofia é o esforço
de libertar o homem da prisão da subjetividade, abrindo-o novamente às suas
possibilidades criadoras. É esse o compromisso, o pacto que Vicente propõe à
Dora: viver para realizar as possibilidades mais altas do existir. E essa realização
passa pela complementaridade entre o poetar e o pensar que ambos efetivaram,
de modos diversos, num matrimônio alquímico.
HEIDEGGER, M., Que é Metafísica? SP: Duas Cidades,1969, p. 57.
Id., Da Experiência do pensar. P. Alegre: Globo, 1968, p. 49.
439
A carta foi-me cedida por Dora. Acha-se, como anexo, em minha tese de livre-docência, defendida em 1980 na PUC de Campinas: Vicente Ferreira da Silva. Trajetória intelectual e contribuição
filosófica (digitada).
437
438
282
Dora Ferreira da Silva: caminhos em direcção ao Sagrado
Introdução
Dora Ferreira da Silva nasceu em 1918 em Conchas, cidade do interior do Estado de São Paulo e faleceu na cidade de São Paulo em 2006. Casou-se muito jovem com Vicente Ferreira da Silva, que foi um dos introdutores do pensamento
de Heidegger no Brasil e um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia,
com Miguel Reale. Dora também pertenceu ao Instituto.
A obra poética de Dora é profundamente marcada pelo diálogo constante
com seu marido e com pensadores que frequentavam a casa de ambos, entre
as décadas de 1940 e 1960 e que constituíram o chamado Grupo de São Paulo,
Escola de São Paulo, por Antonio Braz Teixeira e Antonio Paim440 e de Círculo
Vicente Ferreira da Silva, por Gilberto de Mello Kujawski441. O Círculo, diz Kujawski, “ constituía-se em duplo nível. Primeiro o dos amigos que o procuravam [
a Vicente ] em sua casa (...)Segundo, o dos colaboradores da revista Diálogo, que
fundou e da qual era diretor [Vicente], cujo primeiro número saiu em Setembro
de 1955”. E ainda: “ Compunham o Círculo residencial, em primeiro lugar, sua
mulher, Dora Ferreira da Silva” (ibid., p. 241), sua cunhada, Diva Toledo Piza,
Milton Vargas, Heraldo Barbuy, Belkiss Barbuy, Eudoro de Sousa, Vilém Flusser,
Renato Cirell Czerna, dentre outros (ibid., pp. 242-243); e os colaboradores da
revista, que foi publicada durante nove anos, perfazendo dezesseis números e
dentre os quais Kujawski destaca, além dele próprio e dos já citados no primeiro
círculo, Agostinho da Silva, Antonio Cândido, Mário Chamie, Theon Spanudis
(ibid., p. 243). A menção a Dora enquanto participante da Escola de São Paulo,
é feita ainda por Braz Teixeira no estudo ‘Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?442.
O que parece ser importante, para situar a contribuição de Dora, é a perspectiva
proposta por Braz Teixeira, que a Escola de São Paulo – grupo de pensadores
que abarcaria o Círculo Vicente Ferreira da Silva, mencionado por Kujawski, e
o Grupo de São Paulo, mencionado por Paim e pelo próprio Braz Teixeira – se
caracterizaria pelo “interesse especulativo pelo sagrado e pela religiosidade, a
440
PAIM, A., Das Filosofias Nacionais. Lisboa: Universidade Nova, 1991, pp. 72-73; BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., p. 72-73; MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM,
2000, passim.
441
KUJAWSKI, G. De M., “O Círculo Vicente Ferreira da Silva”, in MARCONDES CÉSAR, C., op.
cit., pp. 239-248.
442
BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma “Escola de São Paulo”?», in MARCONDES CÉSAR, C., op.
cit., pp. 245-248.
283
reflexão sobre a cultura, seu conceito e origem e sua relação com o mito e com os
valores, o problema do homem e da sua constitutiva historicidade, a consideração filosófica da arte e da técnica” (ibid., p. 247).
O diálogo Vicente-Dora tem um exemplo importante no texto do filósofo,
“Sobre a Poesia e o Poeta”443, que a própria poetisa assinalava como um marco
desse convívio. Aqui encontramos a caracterização do poeta como mediador
entre os deuses e os homens, tema que perpassa as fontes diversas a que Dora
recorreu.
A obra de Dora apresenta uma tríplice expressão: a poesia, o ensaio, a tradução. Nessa triplicidade, a busca apaixonada do sagrado aparece como um
denominador comum. As fontes de seus escritos, no horizonte da poesia, são:
o romantismo alemão, especialmente Hölderlin e Novalis; a filosofia de Heidegger, no que diz respeito à significação do poeta, à concepção do significado da
obra poética; a fenomenologia da religião, particularmente em Kerényi e Walter
Otto; a história das religiões de Eliade; a poesia de Rilke, autor do qual traduziu,
de modo incomparável, as Elegias e A vida de Maria; Saint-John Perse, Elliot,
Lawrence. E a psicologia analítica de Jung, autor que traduziu, participando da
equipe da Editora Vozes, no Brasil e sobre a qual deu cursos em sua casa.
O itinerário de Dora Ferreira da Silva
Numa primeira etapa do seu itinerário, a poeta retoma os mitos gregos e
procura, na perspectiva de um neo-paganismo, a celebração do sagrado, o mito
vivo, a proximidade com Deus através da pluralidade dos deuses. É na tradição
arcáica, pré-cristã, dos deuses gregos, que a poeta reencontra, num tempo de
crise e secularização, a poderosa presença do sagrado.
Desde Andanças, poemas escritos entre 1948 e 1970444, a referência aos mitos
de Koré/Perséfone, Orfeu, Diana, Dioniso, Eros e Psiqué, já aparecem445. Também são assinalados como modelos paradigmáticos e diálogo privilegiado, o
poeta Hölderlin e Guimarães Rosa446, o grande romancista brasileiro contemporâneo.
Essa referência se intensifica em Uma via de ver as coisas447, onde a linha temporal, desdobrada em presente (“Aqui”) e passado (“Antes”), dialoga com o sem
tempo determinado e a eternidade (“Quando”, “Sempre”).
A referência aos mitos de Orfeu, Apolo, Mnemósina, Poseidon, Atenas, aparece na dimensão do passado, que é trazido com toda sua intensidade e força,
FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, São Paulo, IBF, 1966, pp. 381-386.
FERREIRA DA SILVA, D., Andanças, edição da autora, SP, 1970.
445
Id., ibid., “Koré”, pp. 13-17; “Dionisio”, p. 45; “Orfeueurídice”, p. 47; “Diana nua”, pp. 90-91; “Eros
e Psiqué”, p. 71.
446
Id., ibid., “Hölderlin”, p. 112; “A Guimarães Rosa”, pp. 106-107.
447
Id., Uma via de ver as coisas, S. P., Duas Cidades, 1973.
443
444
284
no percurso de Delfos, Atenas e Cabo Sounion. Provavelmente, resultante da
visita da poetisa à Grécia, a série de poemas encontra a sacralidade arcáica, viva:
a poeta se identifica com Orfeu, modelo paradigmático do poeta, uma vez mais:
“Canto canções / para os que morreram / (...) sob as folhas vivas / sustento na
mão a lira... / É isso a solidão” (op. cit., “Orfeu”, p. 64). E no belíssimo “A Apolo”, a
celebração do deus é invocação e diálogo com a divindade: “E tu, perfeito, / estás
onde és, / no ar da safira incrustado / em teus olhos (...) és o fiel, / o que perdura”
(ibid., “A Apolo”, p. 63).
É preciso dizer que se há uma nota dominante, na evocação da sacralidade
arcaica, tornando os deuses presentes e vivos, o que sugere um neo-paganismo,
Dora, já em Andanças anuncia um certo vínculo cm o cristianismo, que será
retomado de modo a ser conciliada a sua mensagem com a dos deuses arcaicos.
Poderíamos dizer que na busca do sagrado Dora faz um itinerário que se caracteriza pela busca do mito vivo, da sacralidade arcáica, e dialoga ulteriormente
com o cristianismo, em duas etapas: na primeira, como alguém já tivesse vivido
no tempo-limite, na transição da religiosidade arcáica para o cristianismo. Em
Andanças, isso aparece no texto sobre o “Cristo-Sol”448.
No poema “Recado”, falando de um mundo sem esperança, a poeta anuncia um deus vindouro, possível renovação da idéia do sagrado; trata-se de uma
nova revelação, análoga à experimentada pelos que viveram a transição entre a
Antigüidade e o surgimento do Cristianismo: “De altos patamares / desce em
rutilância o recado do Arcanjo / (...) no arco-íris aproxima-se a Criança” (ibid.,
“Recado”, p. 93).
O diálogo entre o passado e a busca cristã da eternidade é visto como um diálogo entre o paganismo e a religiosidade apoiada na mística medieval. “Sempre”
é um conjunto de poemas que tem como prefácio um texto de Tauler, discípulo
de Mestre Eckart. É pela mística cristã, nos píncaros dessa meditação sobre o
silêncio, na vida monástica, que Dora começa a recuperar o cristianismo como
fonte de inspiração em sua busca pelo sagrado. O poema de abertura dessa parte
da obra Uma via de ver as coisas pode exemplificar a trajetória: é dedicado a
Chartres, a catedral cristã magnífica, construída sobre as ruínas de um templo
de Diana, e que conta com um subsolo, no qual se celebram missas aos mortos,
invocando a Nossa Senhora do mundo subterrâneo. Chartres é, concretamente,
a edificação que faz a síntese entre o paganismo e o cristianismo, e a poeta intui
essa possibilidade, celebrando a catedral como o lugar onde se realiza o encontro
com a eternidade: “Ave, nave, alvíssima, asas voando / no altíssimo Dia”449.
O valor místico do silêncio, abertura para a transcendência e a eternidade, aí
está presente: “O silêncio tem uma porta/ que se abre / para um silêncio maior: /
antecâmara do último, / que anuncia outro / depois” (ibid., “O silêncio”, p. 110).
Id., Andanças, “Cristo-Sol”, p. 84. Lembramos que Apolo é identificado, nos mitos, ao sol, inclusive do mundo subterrâneo.
449
Id., Uma via de ver as coisas, “Chartres”, p. 87.
448
285
Em Jardins (esconderijos), de 1979, o tema de Grande Mãe aparece brevemente no poema “Gritos”450. E o cristianismo vem à luz no tema do Anjo, símbolo
“do eterno [que] tomba no instante” (ibid., “Anjo”, p. 32); assim como na referência a São Francisco, modelo na busca da sacralização da existência, indicando
a valorização do amor, do silêncio e da vida monástica, temas que aparecem
também em Agostinho da Silva, pensador luso-brasileiro com o qual manteve
diálogo importante e ao qual é dedicado o livro. Na epígrafe de Agostinho da
Silva, estão resumidas as trajetórias do pensador e da poeta. Diz a epígrafe: “despojamento completo da vontade (...) e a vigorosa ascensão e fusão com o mito,
caleidoscópio do nada que é tudo”.
Vejamos o poema “Ícone de São Francisco”: “Peregrino / que nada guardou
de si / no alforje do destino / e no corpo tatuado / levou o Amado: / nas mãos
dois cravos os pés trespassados” (ibid., “Ícone de São Francisco”, p. 105).
Talhamar451 de 1982, abre-se também com uma epígrafe de Agostinho da Silva, provavelmente carta a Dora, comentando o ciclo de poemas que principia o
livro: “Ânforas”: a Grécia arcaica é invocada, assim como os mitos egípcios, fonte
dos poemas que inauguram o ciclo seguinte, intitulados Nakt. Seu tema é a barca
que conduz mortos.
Diz Agostinho: “Dora (...) voga (...) [e o] Atlântico de África e Brasil se transformará na Barca Divina dos mais antigos que os gregos (...) no único tempo que
verdadeiramente importa: o que é contemporâneo do eterno”452.
Novamente, nesse livro, marco de maturidade da poeta, a própria capa da
primeira edição sugere o mergulho no mar da eternidade e o trânsito permanente entre a vida e a morte. Trata-se da reprodução de pintura mural grega
descoberta em 1958 no Túmulo do Mergulhador, em Paestum, Magna Grécia,
e escolhida pela autora como capa de seu livro. Nos poemas, Dora celebra os
lugares sagrados: Joanina, Dodona, Trikalla, Delfos; e os deuses: Ártemis, Mnemósyne, Afrodite, Dionisos, pois “cada pedra, cada homem ou árvore / vela e
desvela uma face rápida e divina”453.
Celebra ainda, um deus vindouro, um “novo tempo” de plenitude e felicidade: “beberemos o vinho saboroso, o trigo terá sabor / de trigo e o deus vestirá
de amor os corpos nus” (op. cit., “O Deus que vem”). O poeta é identificado ao
sacerdote, aberto ao “antiquíssimo Som” (op. cit, “Albamar IV”).
Em Retratos da Origem454, Dora canta o itinerário da família, da Albânia à
Grécia, da Grécia à Itália e da Itália ao Brasil: “O Épiro é longe, mas é irmão de
Conchas” (ibid., “Conchas I”, p. 68). É o espaço sagrado de Joanina, Kérkyra, da
Id., Jardins (esconderijos), S. P., ed. da autora, 1979, “Gritos”, pp. 61-63.
Id., Talhamar, S. P.: Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1982.
452
SILVA, A., “Sobre Ânforas”, Lisboa, 1978, in FERREIRA DA SILVA, D., Talhamar, epígrafe.
453
Id., Talhamar, “A novilha”.
454
Id., Retratos da Origem, S. P., Roswitha Kempf, 1988.
450
451
286
Calábria; é também o laço entre paganismo e cristianismo, num outro nível: “Na
Calábria / acariciada por um vento brando / Cristo dança com toda a Natureza”
(ibid., “Bodas Místicas”, p. 64). É a abertura ao sagrado, ao indizível, já presente nas meditações e ensaios inspirados em Rilke, de que dois textos podem ser
exemplo: o prefácio que escreveu para os poemas de Hílda Hilst, Sete cantos do
poeta para o Anjo, intitulado: “Duas experiências do Angélico”455; e o artigo “O
duplo reino da vida e da morte”, publicado na Diálogo número 15456, revista editada por Dora e por seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva.
Em 1972, a poeta fez uma importante tradução comentada das Elegias de
Duino457, onde reaparece o tema do Anjo; e em 1995, traduziu, também de Rilke,
A vida de Maria458.
A referência a Rilke é uma constante nos poemas de Dora. A poeta o invoca,
dialoga com ele, assume seu olhar, para dizer o sagrado numa tonalidade inspirada no cristianismo. Assim, “Cantares do Itatiaia”, último ciclo de poemas que
encerra Retratos da Origem, tem como epígrafe um verso de Rilke: “Com todos
os olhos a criatura vê o Aberto”. Nessa seqüência de poemas, Dora celebra o
Itatiaia, a casa na montanha “cheia de deuses”, onde a poeta está exposta ao céu
noturno, às clareiras, à terra e a água, “ ao delírio de ser toda a floresta / sem
arrefecer / findo o delírio”459.
A “casa na floresta”, refúgio na montanha do Itatiaia onde a poeta retirou-se
muitas vezes, para contemplar e escrever, já aparece em Talhamar, no ciclo de
poemas “Albamar”. É a casa habitada por “milênios (...) o entrante / e os que se
foram”, é a montanha onde “em silêncio [a poeta] ouviu a terra”460. A montanha,
símbolo da transcendência, reaparece em Poemas da Estrangeira461 nos escritos
intitulados “Ciclo da Montanha”; e a temática grega, em “Heládica”, ciclo de poemas seguinte do mesmo livro, invoca Apolo, Dioniso, Hades. Aqui, novamente a
temática cristã aparece enlaçada com a grega, como dois registros da experiência
do sagrado: os poemas dedicados aos ícones (ibid., “Fim e começo”, “Ícone”, p.
230) do monte Athos marcaram a transição da religiosidade arcáica à cristã, assim
como os dedicados a São Francisco (ibid., “Il poverello”, p. 232), à festa de Corpus
Christi (ibid., “Corpus Christi”, p. 236), à Trindade (ibid., “Trindade”, p. 237).
Novamente, a epígrafe deste ciclo de poemas, “Fim e começo”, que encerra
Poemas da Estrangeira, é um texto de Agostinho da Silva, cuja obra é signifiId., prefácio cit., in HILST, H., Sete cantos do poeta para o Anjo, SP, Massaho Ohno, 1962.
Id., “O duplol reino da vida e da morte”, Diálogo, SP, 1964, pp. 53-74.
457
RILKE, R. M., Elegias de Duino, P. Alegre, Globo, 1972.
458
Id., A vida de Maria, Petrópolis, Vozes, 1995. A apresentação da obra foi feita por Dora, pp.
7-9.
459
FERREIRA DA SILVA, D., Retratos da Origem, “Cantos do Itatiaia”, “Canto II”, p. 87.
460
Id., Talhamar, “Casa na floresta”, “O banco sob a árvore”.
461
Id., Poemas da Estrangeira. S. P., T. A. Queiroz, 1995, “Ciclo da Montanha”, pp. 65-98; “Heládica”, pp. 999-112.
455
456
287
cativamente associada ao fransciscanismo, à experiência da vida monástica, a
Joaquim de Flora. Diz a epígrafe: “Viste agora, Amiga / nascer outra mandala – e
as / amamos nós, às suas folhas / e elas vão ser a plena liberdade do homem /
e a imaginação imperando / no mundo e o Paraíso enfim reconquistado / e tão
absoluto Amor que / todas as filosofias / lhe são apenas achas de / fogo e nele, por
Deus, nos consumiremos” (ibid., p. 221).
Em Cartografias do Imaginário462, de 2003, a referência aos deuses antigos
persiste: Perséfone, no poema “Flores” e no “Dá-me de beber” (ibid., p. 12; p.
29, respectivamente); Vênus, nos poemas “Vênus em flor” e “Vênus pensativa”
(ibid., p. 75 e 76, respectivamente); a celebração dos espaços sagrados, no poema
“Epidauro” (ibid., pp. 67-69), o grande centro curativo, no qual Dora encontra a
“cura” para os males do homem contemporâneo: a certeza de que “o que governa
o universo / não é a mente, é o coração. / Em Epidauro (...) ouvimos bater o coração do mundo. / E então sabemos qual é a cura: (...) / render-se para que nossos
pequenos corações batam em uníssono / com o grande coração do mundo” (ibid.,
p. 69), E o cristianismo reaparece na referência a Patmos, onde “Fim e começo
sorriem, / dançando a mesma dança” (ibid., “Patmos”, p. 97); e no poema, verdadeira prece, “A Deus” (ibid., “A Deus”, pp. 14-15), que podia ser qualquer deus,
no qual a poeta diz: “a vida que vivi sempre te continha / como a um coração”
(ibid., p. 14).
No último livro publicado, em 2005, Hídrias, a temática grega reaparece
intensamente em “Órfica”, “Leto”, “Ártemis”, “Apolo”, “Narciso”, “Hyacinthos”,
Dionisos Dendrites”, “Posseidon”, “A Grande Mãe”, “Koré”, “Perséfone”, “Hades”,
“Hécate”463. E a transição para o surgimento de novos deuses, significativamente
emerge no longo poema “A Sibila” (ibid., pp. 27-29), no qual a poeta assume
o papel da profetiza, que lamenta a ausência dos deuses antigos e pressente os
vindouros.
A redescoberta do cristianismo, através da mística
A trajetória da poetisa, do neo-paganismo ao cristianismo, recuperado através da mística cristã é feita através do encontro com a temática do Anjo na obra
de Rilke, dos poemas de San Juan de la Cruz464, de Angelus Silesius, da obra de
Tauler.
Em estreita colaboração com o Pe. Hubert Lepargneur, traduziu Angelus,
Silesius em 1986, enfatizando dísticos do Peregrino Querubínico referentes aos
Id., Cartografias do Imaginário, S. P., T. A. Queiróz, 2003.
Id., Hidrias, S. P., Odysseus, 2005, pp. 30, 31, 32, 36, 38-39, 40-41, 42, 48, 49, 50-53, 54, 55, 56,
respectivamente.
464
FERREIRA DA SILVA, D., A poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984.
Edição bilíngue, precedida de estudo do Pe. Hubert Lepargneur: “San Juan de la Cruz, místico”; e
de estudo de Dora: “Mística e poesia”.
462
463
288
temas do “Deus imanente, da quietude, da entrega amorosa ao único (...), da
Trindade (...), da voz do silêncio”465. Assinalemos mais um paralelismo entre
Agostinho da Silva e Dora: Agostinho conhecia bem os místicos espanhóis e
Angelus Silesius.
Desde 1995, a poeta participou da equipe de tradução das obras de Jung para
o português, publicados pela editora Vozes. Assim, traduziu: Memórias, Sonhos,
Reflexões, 1975; O eu e o inconsciente 1978; Psicologia e Alquimia (1991); O segredo da flor de ouro e Aurora Consurgens (1997); Estudos Alquímicos e Os arquétipos do inconsciente coletivo (2002).
O encontro com a obra de Jung foi profundamente marcante para a poetisa,
assim como o fora para seu marido, Vicente Ferreira da Silva, o qual, na apresentação do primeiro número da revista Diálogo assinala a obra de Jung como um
dos marcos que indicam o surgimento de um novo modo de pensar a relação do
homem com o sagrado. A tradução e a convivência com a obra de Jung representou um mergulho profundo da poetisa na própria alma. Esse mergulho e a descoberta, paralelamente, da mística cristã, levou Dora a escrever um importante
ensaio, em colaboração com o Pe. Hubert Lepargneur: Tauler e Jung:O caminho
para o centro, em 1997466. Ressaltamos que a publicação do ensaio corresponde
ao mesmo ano de publicação da tradução de textos de Jung:O segredo da flor de
ouro e Aurora Consurgens e estabelece uma analogia entre o Deus buscado por
Tauler e o si-mesmo jungiano. Prefaciado pelo Pe. Ivo Storniolo, que destaca a
relação entre psicologia e mística, e a busca da imago Dei, na tradição cristã, o
livro é dividido em duas partes. Na primeira, o Pe. Lepargneur aborda o tema
“Do Eu a Deus pelo Nada”, relacionando Tauler e Jung; e Dora, na segunda parte,
trata “Do inconsciente ao sagrado”. Aborda o abandono místico, a trajetória do
eu ao si-mesmo, o confronto com a sombra, a união dos opostos. Na bibliografia
utilizada, vemos a referência a Mestre Eckhart, a Eliade. É pois através da mística
de inspiração neoplatônica que Dora recupera a tradição cristã. O Deus assim
alcançado é absolutamente transcendente, está para além de todos os nomes, de
todos os credos; é encontrado no ápice da alma, como unidade primordial do
sagrado e do mundo.
É citando Tauler, no fim do texto, que a poeta reconhece um paralelismo “da
psicologia profunda, da mística e da poesia”, como temas de reflexão, mas, principalmente como “vivências de espíritos que se aprofundam em regiões abissais
(...) nas culminâncias ou profundezas da experiência humana do amor e do divino e também do conhecimento, essas confluências ocorrem e nossa atitude
afinal só poderá ser de gratidão, reverência”467.
FERREIRA DA SILVA, D. e LEPARGNEUR, H., Angelus Silesius, S. P., T. A. Queiroz, 1986, p. 67.
FERREIRA DA SILVA, D. e LEPARGNEUR, H., Tauler e Jung. O caminho para o centro, S. P.,
Paulus, 1997.
467
FERREIRA DA SILVA, D., “Do inconsciente ao sagrado”, in FERREIRA DA SILVA, D. e H.
465
466
289
O percurso de Dora, em direção ao sagrado, foi o encontro com a morte e
com a proximidade dos deuses; foi o confronto com a sombra e o demoníaco,
bem como a superação dos obstáculos no caminho. Foi a celebração da vida, da
paixão e do entusiasmo, da alegria de reconhecer, no mais elementar da natureza circundante, a secreta e silenciosa harmonia que perpassa tudo o que vive, a
totalidade do existente.
É no horizonte de todas essas confluências, da tradição grega, da mística cristã, das ordens monásticas, da psicologia profunda; é no ápice de uma reflexão
de fundo neo-platônico e da ontologia hermenêutica de Heidegger, que Dora
redescobre o sagrado.
Sua trajetória, no âmbito da poesia, do ensaio, da tradução, tem analogias
profundas com a trajetória intelectual de seu marido, o filósofo Vicente Ferreira
da Silva. Essa busca análoga está indicada na obra de Vicente pelos recursos
a fontes semelhantes: Heidegger, Kérenyi, Novalis, Hölderlin, Schelling, dentre
outros autores; na formulação de uma filosofia da mitologia, de suas contribuições mais importantes.
Dora falava de “famílias espirituais” para indicar a similaridade da busca pelo
sentido da vida, do mundo e do homem, da Transcendência, entre autores diversos.
O diálogo Dora – tradição portuguesa e brasileira
É de uma família espiritual que podemos falar, abordando a relação entre
Vicente e Dora: uma profunda convergência de vida e obra os integra. E nessa
família, podemos inscrever os seus diferentes amigos, com os quais mantiveram
fecundo diálogo. Dentre esses amigos, avulta a figura de Agostinho da Silva, cuja
trajetória é análoga, sob certos aspectos, à de Dora: também ele, pela formação
intelectual, tem na riqueza do mito grego seu ponto de partida; também ele reencontra o cristianismo, pela via de um franciscanismo inspirado em Joaquim
de Flora. Mas assim como em Dora, não existe nele uma pura e simples retomada da religiosidade cristã. O cristianismo é, em Agostinho, um dos muitos
caminhos que conduzem a um Deus que está para além de toda a linguagem, de
todo nome, de toda forma. É à linguagem cristã, mais próxima de seu horizonte
cultural, que Agostinho recorre, mas para ir além do cristianismo e de todas as
formulações institucionais da busca do sagrado.
Em Vicente, Dora, Agostinho, há espera, expectativa, de uma nova forma
de apreensão do sagrado, do surgimento de uma nova época do mundo; podemos ver isso nos diálogos de Vicente – Diálogo do mar, Diálogo da Montanha,
Diálogo do Espanto – nos quais os personagens George, Diana468 reconhecem
LEPARGNEUR, op. cit., p. 155.
468
FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. 2, “Diálogo do mar”, pp. 493-507; “Diálogo da Montanha”,
290
que são “seres do limiar (...) [que pressentem] a sombra das coisas por vir”469, a
emergência de um novo sentido do sagrado. Os personagens dos diálogos são,
no dizer de Braz Teixeira, que recorre às posições filosóficas que assumiam em
seus escritos,para identificar com o próprio Vicente, o personagem Mário;com
Dora, a personagem Diana;com Agostinho, o personagem George;com Eudoro,
o personagem Paulo470
Sobre a importância do diálogo de Dora, Vicente e os pensadores portugueses, Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, destacamos os comentários de Antonio Braz Teixeira a respeito do convívio intelectual que mantiveram; acrescentamos também o nome de Delfim Santos, que embora não tenha vivido no Brasil,
manteve, com Dora e Vicente, Miguel Reale e outros pensadores da Escola, significativa troca de cartas, como recente publicação de seu filho, Filipe Delfim
Santos, permite conhecer471. Diz Braz Teixeira472:
“(...) no verbete sobre ‘Filosofia Luso-brasileira ‘ que Antonio Paim e
eu (...) redigimos para o volume III da enciclopédia filosófica Logos, foi feita especial referência ao grupo filosófico que, na década de 50, reuniu, em
São Paulo, durante alguns anos, Vicente Ferreira da Silva e os portugueses
Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa.”
Uma última observação: dessa família espiritual fez parte Guimarães Rosa,
que não por acaso recorre a autores neo-platônicos nas epígrafes de Manuelzão
e Miguilim e de Corpo de Baile. Sobre Rosa, Dora escreveu um importante ensaio, “O demoníaco em Grande Sertão: Veredas”, publicado em 1957 na revista
Diálogo número 8, dedicado ao mestre da literatura, que também participou da
revista em três ocasiões.473
Dora, Vicente, Guimarães Rosa, Agostinho: membros de uma família espiritual que entrelaça seus itinerários individuais sobre um fundo neoplatônico,
fazendo convergir diferentes registros dessa grande tradição.
pp. 509-522; “Diálogo do Espanto”, pp. 523-533.
469
Id., ibid., p. 507. Lembramos que Agostinho se chamava George Agostinho. E que Dora se
identificava com Ártemis (Diana), a que busca o secreto inviolável da floresta para aí habitar. O
inviolável mistério do ser , na metáfora da floresta intocada, lembra a casa do Itatiaia, propriedade
do casal, a casa da floresta na qual Dora frequentemente se refugiou para contemplar e criar.
470
BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?», in MARCONDES CÉSAR, op. cit.,
p. 245-246.
471
CARVALHO, J. M. de e SANTOS, F. D., Delfim Santos e o Brasil. Lisboa: Arquivo Delfim Santos,
2011.
472
BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?», in MARCONDES CÉSAR, op. cit.,
pp. 245-246. Ver ainda do mesmo autor O essencial sobre a filosofia portuguesa (sécs. XIX e XX).
Lisboa: INCM, 2008. Ver também: LÓIA, L., O essencial sobre Eudoro de Sousa. Lisboa: INCM,
2007; PINHO, R. V., O essencial sobre Agostinho da Silva. Lisboa: INCM, 2006; SIRGADO GANHO, M. de L., O essencial sobre Delfim Santos. Lisboa: INCM, 2002.
473
Sobre Guimarães Rosa, ver COSTA, A. L. M. e GALVÃO, W. N. (cons.), Cadernos de Literatura
Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-21 (2006), edição especial João Guimarães
Rosa. Dora participa, fazendo um depomento.
291
Sobre o significado do convívio intelectual e a relevância da obra de Dora e
dos membros do grupo, a autobiografia do filósofo tcheco, Vilém Flusser, que
viveu durante trinta anos no Brasil, pode atestar474.
Outra poetisa brasileira, nascida também no interior de São Paulo, Hilda
Hilst, frequentou brevemente o círculo e a casa. Sua obra se caracteriza pela
busca da transcendência475 e teve marcante influência de Rilke, dentre outros
autores. Seu livro, Sete Cantos do Poeta, para o Anjo476foi prefaciado por Dora.
Não nos deteremos aqui a estudar os pontos possíveis de aproximação entre as
duas poetisas paulistas; mas assinalamos o tema como questão em aberto, para
futuras investigações, que julgamos relevantes, dada a repercussão nacional e
internacional das obras de ambas.
Dora (1918-2006) e Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foram contemporâneas, mas ao que parece não se conheceram. Não há qualquer menção
de uma à outra em seus escritos. Entretanto, suas trajetórias poéticas e temáticas
apresentam analogias surpreendentes. A possibilidade da analogia foi assinalada
em conversa informal com Antonio Braz Teixeira, por ocasião da minha descoberta e encantamento imediato pela poesia de Sofia de Mello. E examinada,
ulteriormente, por um poeta, Alexandre Bonafim. Alexandre é um dos jovens
poetas – dentre os quais Rodrigo Petronio, Claudio Willer, Donizete Galvão –
que participaram do Centro de Estudos Cavalo Azul criado por Dora em sua
casa a partir de 2003; com ela, promoviam grupos de estudos de mitologia, de
poesia, de psicologia centrados na leitura da obra de Jung477.
Dora e Sofia478 têm em comum a busca do sagrado e a tematização dos mitos
gregos, a releitura da tradição cristã, exposta na obra de Dora como aproximação
à mística e na de Sofia como a experiência da compaixão pelo sofrimento, como
aparece no longo poema O Cristo Cigano479. Estudiosa de Filologia Clássica, na
Faculdade de Letras de Lisboa, Sofia traduziu Eurípides, Dante, Shakespeare;
FLUSSER, V., Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2007. Sobre Dora, pp. 151 -162.
MARCONDES CÉSAR, C., “Poesia e transcendência em Hilda Hilst”, infra.
476
HILST, H., Sete cantos do Poeta, para o Anjo. São Paulo: Massao Ohno Editora, 1962.
477
Veja-se, a propósito da trajetória de Dora, a entrevista que concedeu a Donizete Galvão, publicada em São Paulo na revista CULT, em Maio de 1999, pp. 4-11, pondo em relevo sua tematização
dos mitos gregos e da tradição cristã.
478
ANDRESEN, S. De M. B., Obra Poética. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, 14 vols; id. Poemas
Escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Sobre ela ver também o número especial da
revista Colóquio Letras. Lisboa: Fundação Gulbenkian, n.176 (2011), Janeiro/Abril. E o catálogo da
exposição “Sofia de Mello Breyner Andresen: uma vida de poeta”, realizada na Biblioteca Nacional
de Portugal de 26 de Janeiro de 2011 a 30 de Abril de 2011. O catálogo foi organizado por AMADO, T. e MOURÃO, P. e editado pela Editorial Caminho, 2010.
479
Na nota que aparece na edição do Editorial Caminho, publicada em 2005 (4ª. edição) é reproduzida parcialmente a entrevista concedida pela poetisa ao Jornal de Letras e Artes, a 24 de Janeiro
de 1962, na qual afirma que o tema surgiu a partir de uma lenda contada a ela pelo poeta João
Cabral de Melo. O “tema é o encontro com Cristo” (op. cit., p. 34).
474
475
292
pertenceu à geração dos poetas que sofrerarm o impacto das obras de Hölderlin
e Rilke, Pascoaes, Pessoa, Cesário Verde, Camões, Antero; conheceu a poesia
brasileira de Cecília Meireles, Murilo Mendes, João Cabral; leu Homero, Whitman, Lorca, Éluard, Ezra Pound, Proust.
Sofia publica seu livro de estreia em 1940. Dora só tardiamente, em 1970 publica seu primeiro livro de poemas, que enfeixam os escritos entre 1948 e 1970.
Mas na revista Diálogo, dirigida por seu marido, traduções e ensaios de Dora são
divulgados. Ulteriormente, a partir de 1965, dois anos após a morte de Vicente,
à qual se seguiu a suspensão de publicação da revista, Dora funda, com apoio
de Vilém Flusser e Anatol Rosenfeld, uma nova revista, a Cavalo Azul, que terá
doze números editados e cujo nome será depois também atribuído ao centro de
estudos que criou em sua casa.
Sofia e Dora não se conheceram. Mas trabalharam temas comuns: encaram
o mundo contemporâneo como um mundo que se caracteriza pela ausência de
Deus e da beleza. Para ambas a Grécia representa o espaço sagrado por excelência e a viagem que separadamente e em momentos diversos para lá fizeram
expressa o encontro com o mito vivo, a peregrinação aos antigos santuários, nomeados nos poemas.
Em Dora, atestam o que dissemos os poemas Castália I e II (fonte do templo
de Apolo); Cap Sounion (templo de Poseidon), em Uma via de ver as coisas; Delfos (templo de Apolo), em Poemas da Estrangeira; no poema Epidauro (templo
de Asclépio) publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras.
Em Sofia, o percurso no espaço mítico e sagrado aparece nos poemas: O Minotauro, Os Gregos, No templo de Athena Aphaia do livro Dual; e No Golfo de
Corinto e em Epidauro, poemas do livro Geografia.
As duas poetisas invocam os deuses arcaicos ou se identificam com personagens míticos. Assinalaremos apenas alguns poemas, em que coincidem até
mesmo na temática ou na escolha do espaço sagrado e dos deuses e personagens
invocados. Sinalizaremos apenas alguns poemas em que a escolha recai sobre os
mesmos deuses e personagens míticos.
Em Dora, essa temática emerge em diversas obras e exponencialmente no
livro Hydrias: são poemas sobre a Koré, Dioniso e Apolo.
Em Sofia, os poemas Ariadne em Naxos, Délphica (I a IV), do livro Dual, entrelaçam Dioniso e Apolo; Koré, do livro Ilhas, expressa também essa vertente.
O paralelismo temático dos poemas de Dora e Sofia não se esgota nessa reativação dos mitos arcaicos, visando traduzir a proximidade com o sagrado. Outros
aspectos, como a celebração do sensível, do jardim como lugar de apreensão da
beleza, bem assinalados por Alexandre Bonafim em sua tese de doutorado, aproximam as duas poetisas.
293
Conclusão
Abordamos brevemente a tematização do sagrado em Dora Ferreira da Silva.
A aproximação que fizemos pretendeu oferecer um painel de sua obra, enfatizando nela a presença constante da inquietação a respeito do sagrado, nota
dominante das indagações que caracterizaram a Escola de São Paulo, como bem
assinalou Antonio Braz Teixeira, conforme já apontamos. Através da pequena
introdução à obra de Dora, procuramos esboçar campos de investigação possíveis que levem a estudar analogias e diferenças entre representantes da Escola a
que ela pertenceu. Deixamos em aberto várias questões. Acreditamos que o significado e a importância da obra de Dora, assim como dos escritos e da atuação
cultural de seu círculo de amigos e colaboradores – pintores, poetas, escritores,
filósofos – apenas começaram a ser abordados.
Um estudo sistemático, levado a efeito por vários pesquisadores que coordenassem seus trabalhos, propiciaria, a nosso ver, um fértil terreno de investigação
para os que procuram compreender a cultura contemporânea e os problemas de
uma sociedade plural, onde convivem, de um lado, uma acentuada secularização
e de outro, diferentes tentativas de compreensão da religião e do sagrado, gerando múltiplos conflitos.
A inspiração e o entusiasmo, que caracterizaram a presença e a poesia de
Dora, como testemunham seus amigos – pode ser uma via de acesso a uma renovada compreensão da vida humana e da construção do reino do espírito.
294
Talhamar480
Talhamar é o nome de um pássaro que risca a su­perfície do mar em busca de
alimentos. Na poética de Dora Ferreira da Silva, talhamar é o poeta, enquanto
mergulha no mais fundo de si mesmo, indagando a “melodia das origens ou
uma imagem do originário” (Kerényi, citado como epígrafe da primeira parte
do livro). Talhamar é, pois, o homem enquanto se interroga metafisicamente,
tentando ver além do mundo físi­co ou, melhor, querendo perceber o mundo
concreto como um véu do mundo de significados.
A citação de Kerényi na epígrafe da primeira parte do livro, intitulada Ânforas, é esclarecedora, pois evidencia a perspectiva adotada por Dora: o poema
deve mostrar a presen­ça do sagrado, falar dos deuses através dos mitos vividos
como narrativas da verdade do ser.
O poeta simboliza o homem metafísico, que é pos­suído pelo mistério do ser
e atua como porta-voz de presenças, de realidades supra-humanas, a um tempo
benéficas e temíveis; o “misterium tremendum” de que falava R. Otto.
O poeta, como o homem, é a máscara através da qual falam os deuses. A concepção do homem é, pois, em Dora, essencialmente trágica.
O fio condutor é a tematização do mar, que aparece desde os dois primeiros
grupos de poemas, intitulados Ânforas e Nakt, perpassa Tendas e é retomado em
Sete Poemas de Ubatuba e Albamar, que fecham o livro.
Que é esse mar de que Dora nos fala? E como vem tematizado nesses versos?
A poesia é uma linguagem simbólica na qual a refe­rência ao concreto vela e
desvela uma outra dimensão; busca dizer o indizível. O mar, para Dora, tem assim múltiplos senti­dos: expressa a vida maior, a presença, no concreto, do sagra­
do; a unidade entre os homens e os deuses. A poesia é vista como o resultado da
possessão da consciência pela divindade:
480
SILVA, Dora Ferreira da (1982), Talhamar, Massao Ohno, Roswitha Kempf, São Paulo, S. P.
Tradutora de Rilke (Elegias de Duino, Primeira Edição, 1986; Segunda Edição, 1972), Dora Ferreira da Silva recebeu em 1970 o Prêmio pelo livro Andanças, que reúne poemas escritos (Prêmio
Jabuti) entre 1948 e 1970, publicando, sucessivamente, em 1973 Uma Via de as Coisas (Livraria Duas
Cidades); em 1976, Menina seu mundo (Massao Ohno); e, em 1979, Jardins (esconderijos). Participou
da equipe de tradução para o português da obra de Jung. Foi membro do Conselho de redação da
Revista Diálogo e dirigiu a Revista Cavalo Azul. Em 1983, rece­beu menção honrosa do prêmio “José
Ermírio de Morais” de poesia, que lhe foi conferido pelo Pen Club de São Paulo.
295
“Mar de corais antigos
em ti adormeço
enquanto bardos murmuram em meu ouvido uma história de sangue
e papoulas:
deuses desferem arcos de prata
no ar de violetas...”
(Ânforas, Fragmento 1).
O mesmo tema reaparece em outros poemas:
“Em teu olhar iniciou-se meu viver
e à flor de teus dedos me descobri mortal”
(Ânforas).
Ou:
“Nasce teu nome de uma flauta,
pois deram-te os deuses tranças macias e túnica de linho; deram-te os
deuses...”
(Ânforas).
O mar significa, ainda, a unidade entre a vida e a morte, a ambigüidade do
ser. Esse enfoque traduz-se em diver­sos poemas de Ânforas e Nakt, tais como
os que têm por assun­to os deuses que representam essa unidade: Dionisos (“O
Deus que vem”, “A Novilha”); “Mnemosyne”, a memória primordial; “Ártemis”,
deusa que personifica o sagrado não-manifesto, o fundo intocado do ser; “Afrodite”, a ambigüidade do amor e da morte:
“o murmúrio do mar as praias inundava e a embriaguez vizinha da
morte
ameaçava os amantes...”
(Ânforas).
Em Nakt, os versos tratam da barca diurna do sol, das lendas ordinárias de
Osíris, deus da vida e da morte; da barca dos mortos, sob sua proteção:
“Entre papiros
desliza a Barca pelo rio
Osíris a conduz
pela obscura região.
Os dedos de Nakt
entrelaçados aos divinos dedos não sentem frio.”
(Nakt).
O mar representa também a unidade entre o passa­do, o presente e o futuro.
Isso é perceptível:
296
a) Quando nossa poetisa celebra os deuses originá­rios, como “Mnemosyne”;
b) Nos poemas de Ubatuba e do Itatiaia, que abor­dam o presente:
“O mar em suas vagas
o mesmo sal de sempre.”
(Ubatuba, I).
ou, através do presente, a totalidade do tempo:
“Por ser o mar, porém,
pede-te a vida
- não o pairar de agora mas toda a tua vida”.
(Ubatuba, V).
c)No poema “O Deus que vem”- pois Dionisos, o deus antigo, representa
o futuro, a renovação da vida, para os gregos:
“O Novo Tempo vem (...)
…………………………..
(...) beberemos o vinho saboroso, o trigo terá sabor de trigo (...)”
d) No poema “Casa na Floresta”, onde Dora escreve:
“Nas cinzas de ontem, a alba acende o lume”.
(Albamar).
O mar, como se vê, é, a um tempo, a referência à memória primordial (“Mnemosyne”); à presença do presente -o mar de agora, o mar de Ubatuba visitado
pela autora; ao futu­ro, anunciado pelo antigo deus marítimo e pelo alvorecer que
reaviva a cinza de ontem, na casa da floresta, em Itatiaia. A aproximação entre o
mar e a montanha será retomada adiante.
Ânforas e Nakt, os dois primeiros grupos de poe­mas de Talhamar, de certo
modo sintetizam a temática do livro. Neles aparece o mar, como dissemos, simbolizando a unidade entre os deuses e os homens, a vida e a morte, o passado, o
presente, e o futuro.
Tendas é o terceiro momento do livro. A tenda é o corpo, é o homo viator que
habita a vida e advinha a morte. O grupo de poemas enfatiza a unidade entre a
vida e a morte, mediante a invocação ou percepção da presença dos mortos:
“Não que vos chame. Ardem nomes no lume da alta noite.
Chegam sem ruído. Sinto que o ar se ocupa de presenças.”
(Tendas, III).
ou com eles dialogando:
297
“Minha tenda disputais e sua penumbra?
………………………………………….
Mas nem anjos sois, só os que se foram
e voltam numa flama.”
(Tendas, V).
A morte, aqui, não é vista como destruição; o poeta é aquele que habita o
duplo domínio da vida e da morte, a vida maior que implica a ruptura da estreita
fronteira entre uma e outra. Diz a autora:
“Vozes calaram.
Ah, mortos amores de silenciosa vida.
……………………………………….
Morta vos pareço em vossa vida ígnea?”
(Tendas, I).
A “vida ígnea” é a dos mortos. Vida mais plena que a dos vivos? E ainda:
“A partilha para os temerários na fronteira.”
(Tendas, II).
da
Os “temerários” são os poetas, que ousam aventu­rar-se na “fronteira”, fazer
“Vida e morte, um mesmo canto.”
(Tendas, VII).
Escritos no Itatiaia, esses versos mostram que, para Dora, o mar e a montanha não são opostos absolutos, mas, sim, duas cifras com as quais a poetisa
medita sobre o entrelaçamen­to entre a vida e a morte (Tendas, V).
Como o mar e a montanha, a morte simboliza a transcendência.
A quarta parte do livro, Sete Poemas em Ubatuba, traz como epígrafe versos
de Celso Luiz Paulini, indicando que a poetisa se encontra diante de um limite.
Na banalidade do concreto, a poetisa instaura a transcendência:
“Aqui me tens
e o canto:
pássaro da noite.”
(Ubatuba, I).
E ainda:
“Árvores somos
e os nosso frutos não são os pomos das Herpérides mas os de um
pomar qualquer
persistindo entre espinheiros.
E do ar, aprendizado:
não fugir ao mundo
298
mas a ele não ceder outra alma
que não a nossa.”
(Ubatuba, II).
Cidade marítima, Ubatuba é, para Dora, sinal da tarefa do poeta: o vôo sobre
o mar, confronto com a transcendência:
“Sem que me pedisses
deu-te o mar de repende
o cortejo de escuras aves de peito lampejante.”
(Ubatuba, V).
Albamar é o grupo de poemas que serve de fecho do livro. Neles, os temas
de Ânforas: unidade entre a vida e a morte, unidade entre o divino e o humano,
unidade entre passa­do, presente e futuro são recuperados. O poeta é o mediador
entre os deuses e os homens que fala o “antiqüíssimo Som”, a palavra originária,
a palavra do ser:
“Mar eis o oficiante
cego e sapiente: o poeta
e suas relíquias. No peitoral
de cascalhos, pedras e corais
as novas sílabas – o antiqüíssimo Som.”
(Albamar, IV).
a palavra que nega a morte.
Em Albamar, o poema central é o dedicado a Rainer Maria Rilke e aborda a
identificação da autora com esse poeta:
“Minha tua pele pálida
e as pálpebras de entumescidas pétalas.
……………………………………..
Abismo, abismo de tua pupila azul!
Nelas tudo vejo do que viste em Firenze, Rússia e Toledo.”
Que é ser Rilke, para Dora? É meditar sobre a mor­te, sobre a unidade entre
os deuses e os homens, pois Rilke é o poeta da transcendência, entrevista na
imanência, nas coisas mais singelas. Disso, os poemas “O Banco sob a árvore”,
onde a poetisa
“Em silêncio, ouviu a terra”,
ou o “Mulher e Pássaro”, em que
“Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
……………………………..
299
Respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par) ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro a súbita presença
do Céu”
são exemplos, assim como “Morte e Medo” e “Alba de Fina­dos” – este, último
poema do livro, em que a autora indaga:
“Que querem os mortos com nossas flores?”
Albamar fecha o livro; e nele “Alba de Finados” indica, ao mesmo tempo, em
seu título, as idéias complementa­res de morte e ressurreição: é o dia dos mortos,
mas também um alvorecer, no grande mar da vida inconsciente a que a morte
nos conduz, o “tenebroso Mar”, onde
“Borbulha o abissal; deuses se forjam e o tempo,
………………………………….
Nome não tem e a tudo nomeia
nas entrançadas raízes das coisas por narcer.”
(Ânforas, “A Novilha”).
Albamar encontra, dessa forma, a temática de Ânforas.
Para Dora, o poeta é, como dissemos, a máscara através da qual falam os
deuses, os mortos; é o porta-voz da consciência que abarca, numa totalidade, o
sujeito individual, os deuses e os mortos.
Talhamar recorda a tarefa do poeta: dizer, no imanente, a transcendência;
reativa os mitos, mostrando que os deuses vivem em nós; faz-nos experimentar
miticamente nosso tempo e sua unicidade com o passado arcaico de que somos
tributários: Egito, Grécia; evoca, pela invocação dos deuses antigos, o conteúdo
não esgotado dos mitos, o seu conteúdo vivo e não traduzido inteiramente no
âmbito da razão lógica.
Talhamar fala do sagrado que se pressente, do Deus vindouro (Ânforas, “O
Deus que vem”). Como os antigos gre­gos, estamos no limiar de uma nova concepção de deus, espera­mos uma plenitude, em nosso tempo de carência (Albamar, “A Rainer Maria Rilke”). Como o pássaro, o poeta risca nosso mar interior,
traçando caminhos para buscar o sagrado, presentifica-­lo. Tematiza a unidade
do Ser, na pluralidade da experiência:
“Trigo do mesmo pão
uvas pisadas no lagar
nada disperso em mim:
tudo corre como se fora um rio dentro do mar.”
300
(Albamar, III).
A dança, a música e a poesia em Dora Ferreira da Silva
A dança, a música e a poesia foram ocupações constantes da artista Dora
Ferreira da Silva. Essa temática aparece nos últimos poemas que escreveu, pouco
antes da sua morte.
A dança, que em Dora esteve associada ao prazer do movimento e à euritmia,
ao equilíbrio alcançado pelas danças sagradas, foi objeto de poemas curtos, intitulados O leque, que oferecem a leveza da música, do movimento gracioso, do
teatro iluminado que expressa “enigma e clareza (...) inefável melodia da grande
poesia”481, diz De Franceschi, seu amigo, na apresentação da edição póstuma.
Nesses versos, aparece claramente uma característica de poesia de Dora: partir
de um detalhe, uma referência indireta, para sugerir o clima de sedução, de um
“calado dizer” – o movimento do leque, que acompanha a música, “desvela o
perfil da beleza” (Leque II). A magia do teatro e da dança são desveladas aos poucos, na sucessão de poemas, sempre centrados no leque e no que este representa:
o acesso à música, à beleza, à sedução do movimento, que daria, a quem pudesse
apreender o momento, uma “trêmula pérola /junto a um coração. / A aragem
[brisa desencadeada pelo leque] me levaria [diz a poeta] a Mozart engastado a
Mozart / nessa emoção.” (Leque VIII).
No aparentemente banal, dá-se a apreensão da poesia do instante, do deslizar
leve e harmonioso que conjuga movimento, música e poesia.
Escritos ao mesmo tempo, num grande caderno, os poemas inspirados pela
música de Beethoven, Appassionata – que Dora ouvia todo o tempo, do acordar
até o adormecer – emergiram num jorro criativo. No verso do caderno, outra
série, que ela chama de Transpoemas, são poemas sobre a poesia e a faina do poeta. Os dois textos foram publicados em dois pequenos volumes separadamente,
pelo Instituto Moreira Salles482.
Appassionata, nome da música de Beethooven que inspira os versos, tornouse na publicação póstuma, nome do livro que os abarcava. No prefácio, escrito
por Inês, filha da poeta, o depoimento483 afirma que em conversas telefônicas
DE FRANCHESCHI, A. F., “Apresentação”. In FERREIRA DA SILVA, D., O leque. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, 2007.
482
FERREIRA DA SILVA, D., Appassionata. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007; id., Transpoemas. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.
483
BIANCHI, I. F. da S., “A poesia da dança, a poesia da música, a poesia da poesia, in FERREIRA
DA SILVA, D., Appassionata, s/ indicação do número da página.
481
301
com a mãe, esta falava sobre o ofício e a vocação do poeta, sobre a solidão criadora do artista. Appassionata era, para Dora, afirma Inês, “seu trabalho mais
importante”, “nascido de um mergulho incondicional na Sonata n. 23 de Beethoven, e o que ela queria era que as palavras se tornassem música”. Não só
as palavras: Dora tornou-se, ela própria, música, ao integrar vida e morte num
“mesmo canto”, conforme já sinalizara, em poema anterior, do livro Talhamar,
que prefigurou a expressão máxima.
Ivan Junqueira, no prefácio ao livro, caracteriza a poesia de Dora como a que
“sempre se moveu sob o signo da paixão (...) a daqueles que se entregaram à vertigem do infinito e permaneceram fiéis à perenidade da beleza”, expressando o
que ele chama de “lirismo meditativo”, que busca a proximidade com o sagrado.
Poesia e música, na sequência do Appassionata, formam uma unidade, de modo
que ao ouvir e ler os versos, somos arrebatados pela música da linguagem.
A própria Dora gostava de pedir aos amigos que a visitavam e que tinham o
privilégio de ler em primeira mão os poemas que compunha, que os falassem em
voz alta. Para ela, poder ouvir, dito por outros, a sonoridade do que escrevera,
era significativo. Associando a poesia à música e à dança – artes que também
conhecia – Dora descobre o milagre, o inesperado, no mais banal e quotidiano.
O deslumbramento súbito de um ver que abarca o invisível, resulta na serena ternura que suaviza e transfigura a extrema solidão daquela que contempla a noite,
a madrugada e experimenta a proximidade com o próprio coração: “O tempo
findando / e agora tão próximos / corpo e alma / num limiar agônico (Appassionata I). A vida inteira se resume no fluir que nada retém, mas diz “sim ao céu, à
terra, às criaturas distraídas” (Appassionata II).
A poeta deixa-se se levar pela música, que faz com que o sangue se elevasse
“em cascatas de luz” (Appassionata III), dançando além do fluir, da paisagem, das
flores: rosas, jasmins – flores do seu jardim – dizem “uma oração de primavera”
(Appassionata IV), embriagando o coração, a palavra, o silêncio e a vida.
A música, cíclica, “esplendor de sol e de chuva”, não termina: recomeça sempre, desencadeando a visão extasiada da poeta (Appassionata V). É preciso dizer que ela ouvia contínua, repetidamente, ao longo do dia, a sonata indutora
do estado de consciência que desencadeava a inspiração. Acordava e adormecia
ouvindo o som, “vinho [que] embriga / e tudo transformava em algo aéreo” (...)
“Mas até mesmo o ouvido adormecide /preserva-te a beleza” (Appassionata VI).
Experiência de liberdade, de encantamento, de mergulho na vida poética e criadora, é “sublime altura” (Appassionata VII).
Dialogando com um hipotético Beethoven, aquele ao qual tem acesso pela
música deslumbrante, entrega-se a “escalas fulgurantes” (Appassionata VIII),
submergindo em um “universo de sons”, que diz “o âmago, a essência” das coisas
e dos seres, que é um “amálgama / de soluços, sussurros, solilóquios / cósmi-
302
cas ressonâncias” arrebatando-nos em direção a uma “visão suprema” da vida
(Appassionata IX).
Appassionata representa, na obra de Dora, uma passagem: a que conduz,
como a música a conduziu, ao ponto de encontro entre o tempo e a eternidade,
à fusão de horizontes que produz o trânsito do perecível ao imortal. É esse encontro e essa passagem que Dora descreve. É a extrema solidão contemplativa,
meditativa, que conduz a um estado de embriaguez e de unidade com a natureza
“salvífica, mãe da vida” (Appassionata IX), metáfora do infinito e da renovação
permanente, do fluir para além de todo o finito, plenitude inocente (Appassionata X).
Appassionata é o legado maior de Dora. Levanta o véu que separa a vida da
morte, celebra uma continuidade e renovação permanentes, representada pela
cascata de sons, imensa, profunda, que repercute no pulsar do coração. Inscrita
no coração do eterno, Dora se imortaliza pela beleza desses versos que falam de
uma plenitude tecendo “todas as coisas num amor que ilimita” (Appassionata
IX) e pelo qual foi arrebatada.
É a celebração espantosa, comovida, do próprio trânsito entre a vida e a morte. Testemunho que oferece, não o temor ou a tristeza, mas uma serena escuta, a
liberdade do pássaro e o brilho de uma pletora de vida na qual passou a habitar.
É o legado de uma grande poesia.
Dora ao mesmo tempo escreveu sobre essa experiência espantosa, crucial,
escreveu, também, os Transpoemas. No mesmo jorro criativo, anotou à mão o
Appassionata num caderno e no verso deste, os poemas sobre a poesia, reunidos
sob o nome de Transpoemas.
Donizete Galvão, na apresentação do livro, mostra que Dora se interrogava
sobre o escrever, apesar de estar em idade avançada. E reconhecia que escrever
era, para ela, o modo de continuar viva. Diz o jovem poeta: “(...) Carlos Drummond de Andrade a chamava de Dora Poesia. Nada mais apropriado, porque
Dora vivia imersa na poesia, que transbordava para sua fala, sua maneira de ver
as coisas e sua casa”. Transpoemas é uma meditação sobre a poesia, sobre o papel
do poeta. No livro, o poema é o pássaro que visita o poeta. E a poesia é “mistério
e dádiva”, nunca “ofício ou artesanato”, diz Galvão.
A metáfora do pássaro – liberdade e inspiração, vôo em direção ao absoluto,
aparece frequentemente na obra de Dora. Mas é em Transpoemas que se torna o
tema central. O “poema não é quimera (...). É música, é coração (...) /milagre das
coisas / nunca vistas / que o olhar distante súbito avista” (Poema III); é um ver,
dádiva repentina, que põe a artista perante o mistério, o sagrado. É a eternidade
aprendida no instante (Poema IV). A poeta celebra a invenção, o momento, o ritmo. Esculpi-los é vida, porque “nasceram fugitivos / poemas”, “canção de sempre
e agora” (Poema XII).
303
Lembro-me dos primeiros versos que pude ler no caderno de Dora, falando
em voz alta, a seu pedido. Ficou-me na memória o primeiro poema, os primeiros versos (o livro ainda não estava pronto, eram as primícias que me oferecia,
privilégio de encontro com a vida criadora transbordante que neles repercutia):
“Poema pássaro predileto” (...).
Contraponto do espantoso Appassionata, o vôo do pássaro, sua aproximação,
metaforizavam o exercício da disponibilidade ao que nos ultrapassa, a atenção
ao chamado do absoluto, que possibilita fazer coincidir eternidade e tempo. É
esse o caminho que Dora nos ensinou, com aguda sensibilidade e delicadeza:
viver no tempo a fulguração do eterno. Só desse modo vale a pena o viver. Todas
as outras inquietações são menores. Só desse modo podemos nos salvar, só desse
modo a existência adquire significação. Só desse modo os deuses estão presentes
e vida e morte se tornam “um mesmo canto”, como ela disse.
304
Poesia e transcendência em Hilda Hilst
A poetisa brasileira Hilda Almeida Prado Hilst nasceu em Jaú, no interior de
São Paulo, aos 21 de Abril de 1930 e faleceu em Campinas aos 24 de Fevereiro de
2004. Após o nascimento de Hilda sua mãe separou-se do marido, mudando para
Santos, no litoral de São Paulo. Esquizofrênico, o pai de Hilda foi repetidamente
internado em um sanatório em Campinas, também no interior de São Paulo. Hilda
só o reencontrou aos 16 anos, ao visitá-lo na fazenda de propriedade da família.
Poeta, sua arte e sua doença tiveram grande impacto na vida e obra da filha.
Hilda estudou interna em um colégio de freiras em São Paulo; o colegial foi feito
no Mackenzie, instituição de ensino presbiteriana de prestígio; em 1948 entrou
no curso de Direito do Largo de São Francisco, faculdade vinculada atualmente à
Universidade de São Paulo e uma das primeiras instituições de ensino superior do
país. Pela faculdade, sempre estreitamente ligada ao Direito e à literatura, passaram
grandes nomes da poesia brasileira, destacando-se os poetas do romantismo. Em
1949, representando seus colegas, fez uma saudação à escritora Lygia Fagundes
Telles, que então lançava um de seus livros; torna-se amiga de Lygia, amizade que
perdurará a vida toda.
Mulher bonita, de comportamento livre e pouco convencional para a época,
viveu grandes amores, despertou paixões. A experiência amorosa se expressa
através de uma refinada poesia lírica, que marca a primeira fase de sua obra.
Lançou seu primeiro livro de poemas, Presságio, em 1950.
A poesia lírica é gradualmente substituída pela busca inquieta da transcendência, sob o impacto da descoberta da obra de Rilke. Na segunda fase de seus
escritos a figura emblemática do Anjo evoca o sagrado e convoca ao mais alto, a
expressão da tarefa e dom de poetar. Desta fase, Sete Cantos do poeta para o Anjo,
de 1962, é a contribuição inicial mais significativa. O livro recebe o prêmio do
Pen Club de São Paulo; é prefaciado por Dora Ferreira da Silva. Hilda freqüenta
brevemente o círculo de amigos de Vicente e Dora, durante o período de publicação da revista Diálogo, que editavam.
Leitora infatigável, dona de uma sólida cultura humanista e literária, Hilda foi
alguém que viveu intensamente o encontro e a descoberta dos grandes mestres,
numa busca permanente de respostas à inquietação existencial. É marco desta
vivência de intensas indagações, de meditação sobre o sagrado, a mudança radical
que se espelha na decisão de ir morar numa fazenda de propriedade da família,
próxima a Campinas. A leitura de Carta a Greco, de Nikos Kazantzakis a conduz
305
a abandonar a vida social e mundana que levava em São Paulo e a se dedicar
exclusivamente à literatura. Na fazenda, construiu sua casa, que chamou de Casa
do Sol. Aí permaneceu até o final de sua vida, em 2004. Casou-se em 1966 com
Dante Casarini; no mesmo ano, morreu seu pai.
Entre 1967 e 1969, escreve peças de teatro que conheceram várias encenações,
no Brasil e no exterior; uma delas, O Verdugo, recebe o Prêmio Anchieta. Entre
1970 até 1992, escreve uma série de obras em prosa, dentre as quais se destaca
Rútilo Nada, que recebeu em 1993 o Prêmio Jabuti, o mais importante prêmio
literário do Brasil. Em 1977, recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos
de Arte, pelo livro Ficções. Em 1981 recebeu novamente o prêmio da Associação
Paulista dos Críticos de Arte, agora pelo conjunto da obra. É convidada, a partir
de 1982, a fazer parte do programa Artista residente, da Universidade Estadual
de Campinas, que promovia o encontro e diálogo de artistas consagrados com
jovens estudantes.
É também em Campinas que escreve e publica até o final da vida importante
obra poética, da qual destacamos: Júbilo, Memória e Noviciado da paixão (1974);
Poesia (1959-1979); Da morte. Odes mínimas (1980); Cantares de perda e predileção
(1983 – Prêmio Jabuti e Prêmio Cassiano Ricardo); Sobre a Tua Grande Face (1986);
Cantares do sem nome e de partidas (1995 – musicados pelo compositor José Antonio de Almeida Prado, seu primo, a composição musical obteve o primeiro prêmio
no IX Concurso de Composição Francesco Civil em Girona, na Espanha).
Em 1995 Hilda sofreu uma isquemia cerebral. A partir de 1997, sua obra alcança repercussão internacional: seus poemas são lidos num recital no Canadá;
Da morte. Odes mínimas é publicado numa edição bilingüe português-francês;e.
a partir de 2000, espetáculos, exposições, leituras dramáticas de seus textos acontecem em diferentes pontos do país. Em 2002 recebe o Prêmio Moinho Santista
da Fundação Bunge e uma vez mais, o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos
de Arte pelo conjunto da obra.
Apesar da repercussão de seus trabalhos e do reconhecimento, atestado pelos
diversos prêmios que lhe foram atribuídos, Hilda queixava-se constantemente de
ser ignorada pelo público e por editores. Visando a repercussão junto a um público
mais amplo e também, com uma ponta de escárnio, provocar escândalo, escreve, a
partir de 1990, textos em prosa e poemas pornográficos, traduzidos para o italiano
e o francês. Grande escritora, ainda aqui o exercício da literatura e a perfeição da
escrita são bem sucedidos. Diz, a propósito desta fase, a amiga Lygia Fagundes
Telles, importante romancista brasileira contemporânea: “Inconformada com a
pouca repercussão prática de sua extensa obra, Hilda – pour épater – enveredou
pela aventura pornô-erótica (...) Pessoalmente, acho que mesmo dentro dessa
proposta, ela fez literatura de alto nível”484.
484
TELLES, L. F., “Depoimento”, in Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda Hilst. São Paulo: Institutto Moreira Salles, 1999, p. 17.
306
Hilda prosseguiu, paralelamente, até sua morte, em 2004, a escrever esplêndidos poemas, distinguidos por vários prêmios literários. A poesia é, a nosso
ver, o eixo e fundamento de sua obra. A artista é, antes de mais nada, poeta. Seus
escritos estão centrados em torno dos temas do amor, da beleza e da morte, e na
problemática de Deus, do sagrado.
Da lírica, o Trovas de muito amor para um amado senhor (1960) são um exemplo, assim como o tardio Júbilo, memória e noviciado da paixão (1974). Nos dois
livros, a busca do amor aparece como celebração do amado e do dom da poesia.
No Trovas... a celebração se dá ao modo das cantigas de amor e de amigo: “ Amo
e conheçe / Eis porque sou amante / E vos mereço.” E ainda “Deu-me o amor este
dom: /O de dizer em poesia”485. No Júbilo..., o lirismo atinge níveis excepcionais,
onde a contemplação da beleza das coisas reflete a memória do amor ausente: “Se
for possível, manda-me dizer: / – É lua cheia. A casa está vazia –/ Manda-me dizer,
e o paraíse / Há de ficar mais perto (...) / E se te lembras do brilho das marés / (...)
manda-me dizer: – É lua nova –/ E revestida de luz te volto a ver”486.
No mesmo livro, a relação entre o amor e a morte aparece no pedido à morte
que demore a chegar, para que a poetisa possa viver o amor: “ Morte, minha
irmã/ Que se faça mais tarde a tua visita. / (...) Esquece o poeta. Porque o amor
de Túlie / O vermelho da vida, pela primeira vez / Secreto, se avizinha” (ibid., s
/n. de página).
Hilda estava com 44 anos; a vivência de um amor tardio refulge, como se
houvesse, para a poetisa, a descoberta de um novo olhar que desencadeia a transcendência do imediato, o encontro inaugural com a poesia e a transfiguração do
mundo
A meditação sobre o tema ocorre de forma exponencial no Da morte. Odes
mínimas487, 50 poemas que mostram as diferentes faces da morte, apresentando-a
como inevitável, enigmática, libertadora alteridade à qual a poetisa se dirige.
É o inevitável, o que acompanha a vida, onipresença expressando a finitude
e precariedade do homem: “Pertencente te carrego: / Dorso mutante, morte”
(ibid., III). E ainda: “Funda, no mais profundo do osso (...)/ Em tudo és e estás”
(ibid., XIII); é o enigmático, o mistério que a poesia sonda e que a artista tenta
desvendar: “ Se sussurrares /Teu nome secreto / (...) Te prometo, morte, / A vida
de um poeta. A minha:/ Palavras vivas, fogo, fonte. / Se me tocares / Amantíssima,
branda (...)/ Ao invés de Morte / Te chamo Poesia / Fogo, Fonte, Palavra viva /
Sorte” (ibid., XIX); E ainda: “Por que me fiz poeta? / Porque tu, morte, minha
irmã/ No instante, no centre / De tudo o que vejo” (ibid., XXXII). O laço estreito
entre a meditação sobre a morte e a poesia, palavra que diz o indizível, aparece
nos versos: “Teu nome é Nada (...) Morte, teu nome” (ibid., XX).
485
HILST, H., “Trovas de muito amor para um amado senhor”, in Poesia 1959/1967. São Paulo:
Livraria Sal, s/d, p. 47 e p.63.
486
Id., Júbilo, memória , noviciado da paixão. São Paulo: Massao Ohno, 1974, s/n. de página.
487
Id., Da morte. Odes Mínimas. São Paulo: Massao Ohno/Roswita Kempf (Eds.), 1980.
307
A morte é libertação da brutalidade da existência, do conflito e da perda, da
ignorância do essencial: “Porque conheço dos humanos / Cara, Crueza, / te batizo Ventura / (...) Morte-Ventura /Quando é que vem? /Porque viver na Terra /
É sangrar sem conhecer/Te batizo Prisma, Púrpura /Rosto de ninguém” (ibid.,
XXIII).
A funda ligação entre o tempo e a morte, a angústia pela precariedade existencial e a busca da transcendência, entendida como procura do que é Nada para
o quotidiano vinculado ao trato com as coisas e o mundo, expõe as leituras da
mística tanto oriental como ocidental que perpassam a trajetória de Hilda. Uma
imensa busca, “caça de um Nada”, para quem tem consciência do “ Tempo-Morte”
(ibid., XLI, Tempo-Morte IV), imbricado consigo desde o início da vida.
Outro grande tema da vasta obra de nossa artista é a meditação sobre a beleza, apreendida pelo olhar do poeta, “olhar inaugural” sobre o mundo e as coisas,
como ela o compreendia, e também dom, dádiva, “o mais perigoso dos bens”,
como afirmava Hölderlin488, seu “irmão de sangue (de poesia)”489. A beleza é
via de superação da morte assim como busca de ir além do já alcançado, ascese
constante em direção ao divino. Diz a artista: “Não é nosso o destine / De amar e
perecer. / Antes vertiginosos / Tateamos na sombra / A lage dos abismos. / E uma
vez lacerados / Queremos a montanha. / Seu arco-íris. Seu lago (...)”490. E ainda:
“Um pouco do divino estava em nós” (ibid., p. 100); “ Dou testemunho apenas
da certeza / De uma visão suprema, luz e prata” (ibid., p. 101).
Em 1962, sob o impacto da obra de Rilke, marcante na concepção de sua
poesia, Hilda escreve Sete cantos do poeta para o Anjo, obra na qual reitera a
idéia de que o poeta é inspirado, conduzido por algo que o ultrapassa e que dita
procurar ver a transcendência: “E por que me escolheste? / Em direções menores me plasmei. / (...) E entendia / Que era preciso falar de uma ciência / Uma
estranha alquimia: / O homem é só. Mas constelar na essência. / Seu sangue em
ouro se transmuta. / Na pedra ressuscita. / No mercúrio se eleva. / E sua verdade
é póstuma e secreta”491.
O encontro com o Anjo, metáfora da transcendência e da poesia, é também
descoberta da perfeição do amar. Amor, poesia e superação estão fundidos nos
belíssimos versos do Canto Quinto: “E de súbito me tomas e me ordenas / A solidão mais funda: / Estes cantos agora, alguns poemas / Um amor tão perfeito e
indizível/ Porque não é tumulto nem tormento” (ibid., Canto Quinto). Uma solidão
anunciada no poema que se concretizou com a retirada de Hilda da vida mundana
e elegante de São Paulo, para a Casa do Sol, que construiu na fazenda da família.
HÖLDERLIN, F., apud HEIDEGGER, M., “Hölderlin und das Wesen der Dichtung in Erlauterungen zu Hölderlins Dichtung”. Frankfurt: Klostermann, 1951.
489
HILST, H., Sete cantos do poeta para o Anjo, Canto Primeiro.
490
Id., Ode Fragmentária (1961), in Poesia 1959-1967, p. 99.
491
Id., Sete cantos do poeta para o Anjo, Canto Quarto.
488
308
Uma retirada para o campo, a partir de 1963 e um jorrar de esplêndidos poemas
e obras, até sua morte. Encontra, no silêncio da casa nos arredores de Campinas,
o florescimento da poesia e a ainda mais radical busca de Deus.
Ainda em 1962, são do Sete Cantos... os versos: “Anjo, asa, / Mão poderosa
sobre a minha mãe / (...) Prisma solarizade / Transcendência primeira / Dulcíssima presença: / Alta noite / O que foi treva em mim / Em ti resplandecia” (ibid.,
Canto Sétimo). É preciso lembrar que Sete Cantos... tem como epígrafe os versos
de Jorge de Lima que dizem, rememorando a antropogonia órfica: “Nunca fui
senão uma coisa híbrida / Metade céu, metade terra”; e recordar que o livro de
Hilda foi, como dissemos, prefaciado pela poetisa Dora Ferreira da Silva, cuja
obra é também significativamente inspirada por Rilke, de quem foi tradutora, e
pela mitologia grega.
Entre 1963-1967 Hilda escreve Trajetória poética do ser, dedicado à memória de
Nikos Kazantzakis, no qual o tema de Deus reaparece com toda sua intensidade.
Aí, o sagrado é apreendido não mais como “dulcíssima presença”, mas como “ um
Todo inalterável, mude / (...) Porque não é missão da divindade / Testemunhar
o pranto e o regozijo. Que esperais de um Deus? / Êle espera dos homens que O
mantenham vivo”492.
Impossível não reconhecer aqui os temas da divindade ausente, da vida como
viagem, da exigência de permanente auto-superação, da aceitação da vida sem
queixas, como indica o Ascese, de Kazantzakis.
A poetisa diz: “Estou no centro escuro de todas as coisas. /Mas a visão é larga
/ Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar” (ibid., p. 163).
A contínua busca do sagrado aparece nos poemas que fecham o livro, intitulados Exercício para uma idéia: “Se permitires /Traço nesta lousa / O que em mim
se faz / E não repousa: / Uma idéia de Deus”. Os poemas se expressam através da
linguagem das matemáticas e da física, talvez em função da convivência da artista
com amigos da Universidade Estadual de Campinas, centro de excelência nessas
áreas, e com o físico Mário Schemberg. Mostram também o esmerado burilar da
palavra para tentar dizer o indizível, a realidade para além de todas as categorias
e formas conhecidas: o Deus da mística, através dos tempos.
Em 1986, Hilda publica Sobre Tua Grande Face493; a impossibilidade de explicitar o significado do Transcendente, leva a artista a invocá-Lo por aproximações:
é o Sem Nome, o Desejado, Cara Escura, Obscuro, Sutilíssimo Amado, Soturno,
procurado no despojamento absoluto de si e da ilusão do existir. Dizem os versos:
“De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão. / (...) Me vem a fantasia de que
Existo e Sou. / Quando sou nada: égua fantasmagórica / Sorvendo a lua n’água”.
492
493
Id., Poesia 1959-1967, p. 124.
Id., Sobre a Tua Grande Face. São Paulo: Massao Ohno, 1986.
309
Sua vida é, para a poeta, um “neblinar contínuo” em busca do “Sutilíssimo
amado, relincho do infinito”, uma procura dilacerante e ao mesmo tempo de
plenitude, pois o encontro precário, se emudece o dizer comum, tinge “o espaço.
De luzes. De sangue. De escarlate”. Ainda assim, Hilda afirma que prosseguirá sua
trajetória, através do tempo, pois esta é a tarefa do poeta. Em resumo, podemos
dizer que a caminhada espiritual e existencial de Hilda Hilst é um viver arrebatado
pelo Absoluto, quer se apresente sob a máscara do amor, da beleza ou da morte.
Marcada pela consciência da precariedade e finitude do homem face ao sagrado,
é ânsia da plenitude, sempre adiada, no tempo mortal.
310
Ariano Suassuna: O Romance d’A Pedra do Reino
Nascido em João Pessoa, em 1927, no Palácio da Redenção, Ariano era filho
do governador do Estado, João Suassuana. Em 1928, findo o mandato do pai, a
família se retirou para a sua fazenda, no sertão da Paraíba.
Em 1930, seu pai, deputado federal na ocasião, foi morto a tiros no Rio de
Janeiro por um assassino de aluguel, a mando de inimigos políticos. O assassino
foi preso, e pouco tempo depois solto; novamente preso, condenado a quatro anos
de prisão, foi liberto dois anos depois.
A família de Ariano, após o assassinato do pai, desloca-se constantemente,
para fugir da sanha de inimigos políticos. Em 1932, uma seca intensa se abateu
sobre a região em que tinha a fazenda e a família perdeu quase todo o gado. Em
1933, perseguidos, mudaram para Taperoá, no Cariri, passando temporadas longas na fazenda dos tios maternos. A fazenda que tinham acabou sendo vendida,
em razão de dificuldades econômicas. E Ariano foi estudar, interno, no Colégio
Americano Batista de Recife. Finalmente, em 1942, a família toda muda-se para
o Recife. Ariano ampliava suas leituras de clássicos e da literatura de cordel. Lê
Euclides da Cunha, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, José Lins do Rego. Em
1943, ingressou no Ginásio de Pernambuco, concluindo aí o curso clássico – estudos intermediários entre o Ginásio e a Universidade. Estuda música erudita e
pintura. Em 1945, ainda cursando o colegial, publicou seu primeiro poema no
Jornal do Comércio.
Em 1946, ingressou no curso de Direito de Recife e conheceu um grupo de
escritores, autores de teatro, atores, artistas plásticos, participando da criação do
Teatro do Estudante de Pernambuco. Descobre a obra de Lorca e, sob sua inspiração, publicou na revista Estudantes, da Faculdade de Direito, poemas que tematizavam a tradição popular nordestina. Pretendia, no Brasil, realizar projeto análogo
ao de Lorca em seus poemas: estabelecer laços entre o erudito e o popular.
Em 1947, escreveu Uma mulher vestida de sol, sua primeira peça de teatro.
Conheceu Zélia de Lima, que dez anos depois tornou-se sua esposa. Em 1950, seu
Auto de São João da Cruz recebeu prêmio da Secretaria de Educação e Cultura de
Pernambuco. Sucedem-se peças de teatros e prêmios: no IV Centenário de São
Paulo, em 1954; em 1956, dois prêmios: o da Associação Brasileira de Criticos
Teatrais e, em São Paulo, o Prêmio Vânia Santos de Carvalho.No mesmo ano,
tornou-se professor de estética da Universidade Federal de Pernambuco e escreveu
uma Iniciação à Estética, para seus alunos.
311
Em 1958, começa a redação do Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do
sangue do vai-e-volta. Publicado em 1971, obtém, em 1972, o Prêmio Nacional
do Instituto Nacional do Livro.
Em 1966, visita a Pedra do Reino, conjunto de grandes rochas que servem de
cenário e tema do romance, no sertão entre Pernambuco e Paraíba. Paralelamente
às atividades no Conselho Federal de Cultura, órgão do qual foi membro fundador, assumiu a direção do Departamento de Extensão da Universidade Federal de
Pernambuco, e articulou o Movimento Armorial ao qual se vincularam diversos
artistas: poetas, romancistas, artistas plásticos, músicos, teatrólogos.
O Romance d’A Pedra do Reino é o primeiro volume de uma trilogia, intitulada
A maravilhosa desaventura de Quaderna, o Decifrador. O segundo volume, História do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da Onça Caetana, iniciado em
1974, saiu em folhetins semanais no Diário de Pernambuco, até o ano seguinte;
foi publicado em livro em 1977. De 1976 a 1977 foi preparado o terceiro volume:
As infâncias de Quaderna.
Entre 1981 e 1988, sua obra teatral foi adaptada para cinema, vídeo, televisão,
além de ter sido várias vezes encenada no Rio de Janeiro, Recife, São Paulo. Sua
poesia foi editada em CD, com o próprio poeta recitando seus versos. Em 1989,
foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras; em 1995, foi Secretário de
Estado da Cultura em Pernambuco. E em 2000, foi eleito membro da Academia
Paraibana de Letras.
Em 2014, faleceu em Recife.
Um dos melhores depoimentos sobre a sua obra é o de Marcos Vilaça, também
seu confrade, na Academia Brasileira de Letras. Nesse depoimento, Vilaça assinala
a importância da contribuição de Suassuna: “posicionar a cultura popular em
ambientes cultos”, projeto análogo ao de outros intelectuais nordestinos, como
o do artista plástico seu amigo, Francisco Brennand; de Maximiano Campos,
romancista; de Guerra Peixe, músico; de Marcus Accioly, poeta.494
Na entrevista concedida em 2000 aos editores dos Cadernos de Literatura
Brasileira, rende homenagem a Guimarães Rosa, referindo-se ao Grande Sertão como “obra extraordinária (...) Guimarães Rosa fez (...) a mesma coisa que
Cervantes [em D. Quixote]: Através do homem mineiro, ele tratou do problema
do ser humano em qualquer lugar.”495. O romancista mineiro teria realizado, em
Grande Sertão, projeto análogo ao de Suassuna em relação à literatura de cordel
e à arte popular do Nordeste.
Indagado pelos entrevistadores a respeito de Tobias Barreto e da Escola do
Recife, importante movimento de ideias do século XIX, sublinhou a influência
494
VILAÇA, M. V. Rodrigues, “Cantigas d’Amigos”, in Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano
Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000, p. 16-19.
495
SUASSUNA, A., “Entrevista”, in Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. São Paulo:
Instituto Moreira Sales, 2000, pp. 35 -37.
312
de Silvio Romero, mas também de Euclides da Cunha e de Gilberto Freyre em
sua obra (ibid., p. 37).
Definindo-se, ao longo do tempo, como um “monarquista de esquerda” – posição que superou – Suassuna pensava em Canudos, em Quilombo dos Palmares
– movimentos que contestaram o Brasil escravocrata e/ou citadino. Associava a
monarquia à figura do rei sábio, e o socialismo à antiga tradição da Igreja Católica:
a comunidade dos apóstolos.
Tardiamente, dá-se conta de que a luta no Brasil, era entre os privilegiados da
cidade e os privilegiados do campo; não uma luta a favor de maior justiça. Isso o
levou a abandonar a preferência pela monarquia e a aceitar o governo republicano,
a favorecer a Igreja. Qual Igreja? A de “São Francisco de Assis, São João da Cruz,
Santa Tereza.” (ibid. p. 40).
A arte, para ele, representa uma possibilidade de salvação, de superação da
precariedade do existir. Entende que há uma estreita “ligação entre religião e arte:
ambas têm caráter de absolvição” (ibid. p. 41). O papel da arte é recriar o real,
magnificar a realidade: é “um acerto de contas com a realidade” (ibid. p. 43), é a
criação de algo “puramente belo” (ibid. p. 42), que possibilite superar a destruição
representada pelo fluir inexorável do tempo. Um exemplo disso, no âmbito do
diálogo com a arte popular, é a proposta de Antônio Nóbrega, cantor, musicista,
dançarino, compositor, que “faz a recriação dos nossos espetáculos populares.”.
O que Suassuna busca é a síntese da razão e da paixão (ibid. p. 47), do erudito e
do popular, a fidelidade ao que nós, brasileiros, intrinsecamente somos: próximos
de Portugal, do Norte da África, da Ásia: “isso é o que somos de verdade, é isso
que devemos procurar”, diz ele (ibid. p. 48). Fazer ver quem somos: é o papel do
artista. Em cada país, a cada povo, cabe ao artista mostrar a sua verdade essencial:
“enquanto existir o Quixote, a gente sabe o que é a Espanha verdadeira. Com Os
Sertões [de Euclides da Cunha] é assim também” (ibid. p. 51). Na sua Aula Magna496, Suassuna diz: “Ao se ver diante do povo (...) do sertão [Euclides da Cunha]
tomou de repente seu lado (...). Seu grande livro resultou, portanto de um choque,
da conversão de Euclides da Cunha diante daquele Brasil brutal, mas real, que ele
via pela primeira vez em Canudos” (ibid. p. 98-99).
A arte de Suassuna é fundada numa estética da recriação, apoiada na transtextualidade: a literatura que cria “mantém relação com a literatura oral e popular”,
apresentando analogias com as propostas de Gil Vicente, Calderón de la Barca,
Cervantes, Lorca, José de Alencar, Euclides da Cunha, como assinala a estudiosa
Idelette Muzart.497 E o fulcro dessa recriação, no Romance d’A Pedra do Reino é o
modo de vida de Canudos, símbolo da busca de uma sociedade mais justa, sob
Id, Aula Magna. João Pessoa: Ed. Univ. /UFPB, 1994, p. 46-47, apud SANTOS, I. M. F. dos, “O
decifrador de brasilidades”. In Cadernos de Literatura Brasileira, nº 10, Novembro de 2000, p. 95.
497
SANTOS, I. M. F. dos, “O decifrador de brasilidades”. In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna, pp. 98-99.
496
313
a bandeira do Divino Espírito Santo. A Pedra do Reino procura fundir, na obra,
romance, teatro, poesia, gravura, segundo o próprio autor498. Nela, utilizando da
técnica de picaresco aparece, o tom satírico com que Suassuna aborda os costumes
sociais, literários, religiosos do país. Mas é também um romance da vida pública
brasileira das décadas de 1920 e 1930, na região do Nordeste. O pano de fundo
são os anos “que prepararam a revolução de 1930” e os antagonismos políticos e
sociais da época499.
A trama do romance narra à história “ao mesmo tempo simbólica e milenarista,
conectada aos episódios tenebrosos da Pedra Bonita, ocorridos um século antes e
expõe o contraponto entre as ideias de Oliveira Viana e o pensamento marxista,
as duas grandes correntes ideológicas em que se dividiram os intelectuais brasileiros na década de trinta (...), o grande debate brasileiro travava-se entre Direita
e Esquerda, tendo no centro a figura emblemática do bem chamado Cavaleiro da
Esperança” (ibid. p. 122), Luís Carlos Prestes.
A Pedra do Reino não é apenas uma narrativa, mas “um romance de idéias”
(ibid. p. 123), no dizer de Wilson Martins. Projetado como um romance, uma
novela épica, é dividido em três partes, das quais A Pedra do Reino é a primeira
parte, constituindo “uma espécie de rapsódia introdutória dos temas”; a segunda
parte, intitulada O rei degolado é “mais épico, trágico e sertanejo-terrestre, como
a Guerra do Sertão Paraibano narrada através de seus três episódios principais –
1912, 1926 e 1930.”500 A epopéia de Suassuna estende “o conceito de herói e das
famílias trágicas (...) à aristocracia do Povo (...) à ‘Aristocracia do Couro’, do Sertão,
para chegar ao povo simples, sintetizando assim o trágico e o pícaro”.
Carlos Newton Júnior, referindo-se à obra poética de Suassuna, nela distingue
uma visão trágica do mundo, uma visão trágica da vida, que mostra o homem
consciente “da sua mortalidade e da impossibilidade de decifração do Enigma
da ‘máquina do mundo’ (...)”; como alguém que “deseja unir-se ao divino”, mas
percebe sua condição de finitude, sua precariedade existencial” 501.
Newton Jr. distingue três temas dominantes na poesia de Suassuna: a morte,
a partir do evento dramático do assassinato do pai de Ariano, quando este tinha
apenas três anos de idade, acentuado pela perseguição política, e dificuldades que
se sucederam a elas. O segundo tema é o sentimento de exílio existencial: o mundo
é “visto como um lugar de sofrimento, privação, dificuldades de toda ordem”
(ibid. p. 138-139). O terceiro tema é a redenção, a salvação, em um futuro reino de
498
SUASSUNA, A., Entrevista a Jussara Salazar. Suplemento Literário de Minas Gerais, nº 61, julho,
2000, p. 12.
499
MARTINS, W., “O Romanceiro da pedra e do sonho”, In Cadernos de Literatura Brasileira.
Ariano Suassuna, pp. 117-118.
500
SUASSUNA, A. “Nota do Autor”, in id., História do Rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol
da Onça Caetana. RJ: José Olympio, 1977, p. 16, apud MARTINS, W., ibid., p. 127.
501
NEWTON JR., C., “O pasto iluminado”. In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna,
p. 136.
314
paz e harmonia, de justiça, identificado com os reinos mencionados nos folhetos
de cordel, recriados poeticamente, onde “os fazendeiros são reis (...), suas filhas
são princesas, e os vaqueiros e cangaceiros são (...) os cavaleiros (...) vestidos de
armaduras de couro” (ibid., p. 40).
Assinalamos essas temáticas porque elas nos parecem fulcrais, não apenas nos
poemas, mas também no Romance d’A Pedra do Reino, como veremos.
Um dos mais importantes estudos sobre a obra de Suassuna, assim como sobre o elenco dos eventos aos quais Suassuna se reporta, Pedra Bonita, Canudos,
associados ao sebastianismo brasileiro, encontra-se em Antonio Quadros502.
Associado à pregação de Vieira e aos seus textos: Esperanças de Portugal, História
do Futuro e Clavis Prophetarum, “ base doutrinária do sebastianismo seiscentista”, e também às doutrinas de Joaquim de Flora e ao “ideário medieval de São
Bernardo, do Templo/Ordem de Cristo” (ibid. p. 198), difundiu-se no Maranhão
e no Nordeste, mas teve ainda ressonâncias recentes em Minas e no Rio (ibid.,
p. 201). Movimentos messiânicos se multiplicaram no Brasil, tendo como “fulcro um indivíduo que se acredita possuir atributos sobrenaturais e que vaticina
catástrofes de que só se salvarão seus adeptos; estes buscam ou desencantar um
reino ou fundar uma cidade santa (...), lugar onde não se adoece (...) onde se é
plenamente feliz” (ibid., p. 205).
Antonio Quadros vincula diretamente ao mito sebástico os movimentos
associados a “Silvestre José dos Santos, o ‘execrável’ João Ferreira e o ‘santo’ Antonio Conselheiro”, seguindo as indicações de Maria Izaura Pereira de Queiroz.503
Elenca, a partir de Gilberto Freyre no Brasil, Brasis, Brasília 504; de Oliveira Torres,
no História das Idéias Religiosas no Brasil505 e de Maria Izaura Pereira Queiroz, os
movimentos rebeldes, de contestação da República, que se difundiram no Nordeste do Brasil, a partir do “profeta” sebastianista Silvestre José dos Santos que, na
Serra do Rodeador, em Pernambuco, em 1810, “ pregou a ressurreição próxima
do Encoberto e a instauração de seu reino no Brasil”506.
Esse movimento, também referido por Suassuna, no Romance d’A Pedra Reino,
servirá de base para a estruturação do romance, assim como os outros movimentos
a ele associados: o de João Antonio dos Santos, mameluco de Pedra Talhada que
em 1836, “também anunciou o regresso de D. Sebastião” 507. Ainda no sertão de
Pernambuco, em 1836, na Serra Formosa, João Ferreira, outro “profeta” sebastianista, reuniu em torno da Pedra Bonita, “enorme menir natural” de forma bizarra
QUADROS, A. “O Sebastianismo brasileiro”, in id., Poesia e filosofia do mito sebastianista. Lisboa: Guimarães Ed. 1982, pp. 197-270.
503
QUEIROZ, M. I. P. de, O messianismo no Brasil e no mundo, apud QUADROS, A., op. cit., p. 205.
504
FREYRE, G., Brasil, Brasis, Brasília. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d, apud QUADROS, A., op.
cit., pp. 208 e segs.
505
OLIVEIRA TORRES, J. C. de, op. cit., SP: Grijalbo, 1968, apud QUADROS, A., op. cit., p. 204.
506
QUADROS, A., op. cit., pp. 204-205.
507
SUASSUANA, A., op. cit., apud QUADROS, A., op. cit., pp. 208-209.
502
315
– considerado espaço sagrado – adeptos que acreditavam que o rei D. Sebastião
e seu exército estariam encantados dentro da pedra. E que somente um banho
de sangue, realizado através de rituais primitivos, propiciatórios, envolvendo
sacrifícios humanos, poderia quebrar o encantamento508.
O impacto desses movimentos repercutiu também em outros autores, como
José Lins do Rego, no seu romance Pedra Bonita (1938), em Joaquim Cardoso na
peça O Coronel de Macambira (1963), além das obras de Suassuna, já citadas.
O último evento relacionado à crença sebástica de uma cidade santa, reino de
justiça, e mencionado por Antônio Quadros, Suassuna, Eça de Queiróz e mais
recentemente por Vargas Llosa, no A Guerra do Fim do Mundo, é o episódio de
Canudos, centrado da figura de Antônio Conselheiro.
Antonio Conselheiro fundou, no sertão, uma cidade que se contrapôs à ordem
estabelecida, à república oficial do Brasil. Nela, cidade santa, o que vale é a lei de
Deus, a autoridade moral do santo que a comanda.
O episódio teve repercussões intensas nas obras literárias ulteriores, assim
como a retomada da problemática do sebastianismo na literatura brasileira,
destacando-se a poesia de Jorge de Lima e a de Santiago Naud. A poética do antigo cancioneiro popular português encontrou ainda ecos em Guimarães Rosa,
em Cecília Meireles, em João Cabral de Melo Neto, em razão do seu conteúdo
simbólico, assinala Antonio Quadros 509.
Suassuna, no A Pedra do Reino, combina as vertentes da criação literária e os
mitos e a poesia populares. Realiza trabalho análogo ao que Villa-Lobos realizou
no campo da música, Brennand no campo das artes plásticas.
A Pedra do Reino sintetiza história, meditação filosófico-religiosa, autobiografia, criação literária. Escritos sob a forma de folhetos, seus capítulos estão encadeados como um grande romance. Narra o depoimento de Pedro Diniz Quaderna,
alter-ego mitopoético de Suassuna, ao juiz corregedor, personagem que investiga,
para reprimi-las, tentativas de insurreição contra o governo republicano vigente
no Brasil do começo do século XX.
O romance tem uma estrutura circular. Sua abertura conta, no primeiro folheto
intitulado “Pequeno contar acadêmico a modo de Introdução”, através da voz de
um prisioneiro, o que ele vê através da janela da prisão. E o que vê é uma cidade
sertaneja, “terra agreste (...) e pedregosa”, terra ardente sob um sol característico
do Nordeste brasileiro, cuja incidência é intensa. O narrador, que ainda não se sabe
quem é e que ao longo do romance, narrado em primeira pessoa, vai se mostrar
como sendo um personagem – Pedro Quaderna – descreve o que vê. E o que vê
é o sopro ardente, metafórico, de gerações de “cangaceiros [justiceiros], de rudes
Beatos e Profetas, assassinados (...) entre essas pedras selvagens”, na terra – cha508
509
QUADROS, A., op. cit., p. 211.
QUADROS, A., Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, vol. 1, pp. 249-250.
316
mada de Onça-Parda pelo narrador – sobre a qual se espraia o sopro ardente da
divindade, identificada como a Onça-Malhada “que há milênios acicata a nossa
raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.”510.
O sertão é visto como uma enorme cadeia, que sintetiza uma tríplice face:
é Paraíso, Purgatório e Inferno, a um só tempo; é prisão onde se aguardam as
decisões da justiça, que pode se expressar como destruição e morte, ataque da
“Onça-Malhada do Divino.” (ibid., p. 4).
O que o personagem descreve é a condição humana. Descobrimos, em seguida, que o prisioneiro é auto-intitulado rei D. Pedro Diniz Quaderna, alter-ego
de Suassuna. E que o romance é uma narrativa de sua história, feita nos moldes
do Compêndio Narrativo do Pegregrino da América, de Nuno Marques Pereira,
publicado em 1728.
O tempo da narrativa é o que decorre entre 1935 e 1938. O rei-personagem se
autointitula “rei do Quinto Império” – alusão ao Quinto Império de J. de Flora,
de Bandarra e de Vieira – e também “profeta da Igreja Católico- Sertaneja” e,
“pretendente ao trono do Império do Brasil” (ibid., p. 5), apesar de já ter sido
proclamada, no século anterior, a República do Brasil.
A condição humana é exílio e sofrimento, prisão no mundo concreto, áspero
e ardente; mas é também apelo de um sagrado feroz que exige do homem uma
ascensão, uma auto-superação constante.
O texto d’A Pedra do Reino é apresentado como “um memorial dirigido à Nação Brasileira, à guisa de defesa e de apelo”, mas também “à Academia Brasileira,
esse supremo Tribunal das Letras” (ibid., pp. 5-6), celebrando os reis brasileiros,
“os Reis castanhos [mestiços] e cabras da Pedra do Reino do Sertão” (ibid., p. 5),
que entre 1835 e 1838 proclamaram o Império do Brasil: mestiço, violento, mas
também santo.
A circularidade do romance – entendemos por circularidade o ponto inicial do
romance ser composto por referências a eventos que só se tornarão claros no final
da obra, o que nos convida a retornar aos capítulos iniciais, já não enigmáticos,
por apreendê-los sob nova luz; a circularidade, dizíamos, prossegue nos folhetos
seguintes do II ao IV, que descrevem, no II, uma estranha cavalgada, com um
jovem vestido de branco à frente e precedido por duas bandeiras: uma, do Divino
Espírito Santo; e outra, representando onças: uma onça pintada, uma parda e uma
negra (ibid., p. 7). Já sabemos que a onça parda representa o mundo; a pintada, o
Divino; e a negra, a noite, perigo e mistério511. O significado da chegada do jovem
de branco só será esclarecido no fim do livro.
Ainda no folheto II, encontramos a referência ao poeta como um visionário:
o que vê profundamente, o que prediz o futuro. As fontes dessa afirmação feita
SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, pp. 3-4.
CARRERO, R. e SUASSUANA, A., Romance do Bordado e da Pantera Negra. São Paulo: Iluminuras, 2014, p. 35 e p. 61.
510
511
317
através do personagem Samuel Wandernes – através de quem fala Suassuna – são
próprio Samuel, mas também Gonçalves Dias, em um poema noqual se refere a
uma cavalgada, análoga à descrita no Romance de Suassuna, no qual há menção
“ao Donzel errante”, “o Alumioso”, que serão também os nomes com Suassuna se
refere ao príncipe salvador, que libertará o sertão.
Existe ainda a menção no texto de nosso autor, ao artigo do acadêmico paraibano, Carlos Dias Fernandes, que descreve os cantadores populares nordestinos
como “trovadores do chapéu de couro”512.
O Romance narra a história de Pedro Quaderna, misto de “herói/anti-herói (...)
proprietário de uma certa taverna suspeita a que chama de Estalagem da Távola
Redonda (...).”. Ele organiza torneios, veste-se nas festas à moda dos cangaceiros.
Seus amigos eruditos representam a contraposição entre a esquerda e a direita
na vida política: São Clemente e Samuel, que, com Pedro, fundam a Academia de
Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba513.
A primeira menção a Quaderna, explicitando quem é, ocorre no fascículo III
d’A Pedra do Reino. Aí o personagem narra a rebelião de 1930, capitaneada por
José Lima Pereira, contra o governo constituído. Proclama a independência do
município de Princesa, “subvertendo o sertão da Paraíba com 2000 homens”514.
João Ferreira Quaderna, bisavô do narrador, falava de um encantamento, que,
para ser quebrado, exigia um banho de sangue. O sacrifício sangrento libertaria
D. Sebastião e seu exército, afirmava João Ferreira, instaurando um reino que
asseguraria felicidade, riqueza, beleza, poder, imortalidade a todos os adeptos.
O folheto IV narra a história do fazendeiro degolado e o desaparecimento de seu
filho mais novo, Sinésio, “rapaz alumioso, que concentrava em si as esperanças dos
sertanejos” em um reino de glória e de justiça, plenitude e felicidade para todos”
(ibid., p. 29). Nesse folheto aparece, pela primeira vez no romance, a menção a
Tobias Barreto que considerava impossível a narração, no Brasil, de um romance
genial. Ora, a pretensão do narrador é escrever um romance genial, histórico e
épico, “com cavaleiros armados (...) degolações e combates sangrentos” (ibid., pp.
30-32), narrando a história da família de reis à qual pertencia (ibid., p. 33).
Podemos considerar os quatro primeiros folhetos como introdutórios para a
história de Quaderna.
O folheto V narra as fontes histórico-arqueológicas dos eventos associados à
Pedra Bonita, onde, sob a inspiração de um sebastianismo distorcido – D. Sebastião
ressuscitaria ali, com todas as crianças que fossem aí degoladas para desencantar
o reino, mediante a oferenda propiciatória de seu sangue.
Os folhetos seguintes sucedem-se, descrevendo cinco impérios. Os impérios
são, na verdade, os movimentos revolucionários e antirrepublicanos, monarquistas
SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, p. 14.
QUADROS, A., Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Vol. 1, pp. 255-256.
514
SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, p. 25.
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de então. A menção a cinco reinos que se sucedem, lembra as teses de Vieira sobre
o Quinto Império. Fundem-se, aqui, história e ficção: o primeiro Império, era o
fundado por Silvestre José dos Santos, na Serra do Rodeador; pregava a “ressurreição de D. Sebastião”, previa a “degola dos poderosos”, instaurando um novo
Reino, com o povo no poder. Descreve também o envio das tropas governistas,
matando todos os correligionários de Silvestre.
O segundo Império, instaurou-se na Serra Talhada, nas terras dos Pereiras.
Foi proposto por José Antonio dos Santos que se auto-intitulava “profeta” do
novo Reino, que seria governado por D. Sebastião, cuja vinda próxima anunciava. Conseguiu arrecadar grandes somas, contribuições dos fazendeiros da região
do Cariri, prometendo-lhes devolvê-las em dobro, logo que se desencantasse o
Reino. Missionários católicos informaram ao governo brasileiro o que sucedia e
o “imperador” acabou se retirando da região.
O terceiro Império iniciou-se com João Antonio II, em Pajeú, associado a
matanças de partidários de D. João I.
No quarto Império, surgem “os cavaleiros sertanejos”, comandados por Manoel
Pereira, Senhor de Pajeú, que organizou uma expedição contra os “reis” e “profetas”
da Pedra do Reino. Prendeu muitos, matou vários, levou embora as mulheres e
crianças, filhos de adeptos da Pedra Bonita. No seu Romance, Suassuna mescla
realidade histórica e ficção: uma dessas crianças era D. Pedro Diniz Quaderna, avô
do narrador-personagem. Educado por um padre católico, este ocultou na cidade
que Pedro Quaderna era filho de João Ferreira Quaderna. Batizou-o e quando o
menino se tornou adulto, casou-o com sua filha bastarda, Bruna Wanderley, de
conhecida beleza. Deste casamento nasceu Pedro Justino Quaderna (Pedro III),
o qual se casou com Maria Garcia-Barreto; são eles os pais de D. Pedro Diniz, o
narrador d’A Pedra do Reino.
Estabelecendo uma genealogia, a partir da “nobreza sertaneja”, Suassuna
faz nascer, num alusivo Quinto Império, o rei-narrador. Na tessitura da história
desse rei – que ocupa todos os restantes folhetos da Pedra do Reino, contando
suas vicissitudes e formação, surge afinal o reino ao qual Pedro Diniz, alter-ego
ficcional de Suassuna, como já assinalamos, vai pretender: é o Reino da Poesia
(Folheto XII). Pedro Diniz aprende com os cantadores a música e a poesia; admira
os cangaceiros pela coragem frente à morte. Descobre as narrativas de cordel e
as cantorias sobre Carlos Magno e os Doze Pares de França: fala de romances em
versos e rimados (poesia) e em prosa.
É isso que qualifica o Romance d’A Pedra do Reino: romance em prosa e verso,
grande painel de uma concepção de vida, de sonho e de busca espiritual, mas
também das guerras, das lutas por justiça, por afirmação de vitórias e ressurreição
que marcaram o período histórico em pauta.
As lutas entre cristãos e mouros – que foram guardadas na memória do povo
e nas festas populares que as recordavam a cada ano – são celebradas nos folhetos
319
e nas cantorias. Pedro Diniz intui que, tornando-se cantador (poeta), “ poderia
reerguer na pedra do verso, o Castelo de [seu] Reino” (ibid., p. 68). O Quinto
Império seria literário; não poria a vida em risco, mas “poderoso e sertanejo
[seria] um marco, uma obra (...) um Reino varrido (...) pelo sopro sangrento do
infortúnio, dos amores desventurados (...), pelo riso violento” (ibid., p. 75). Esse
é o Império de Suassuna.
Um aspecto importante, na obra do escritor merece ser recordado: ele inclui sempre, ao longo do romance, discussões políticas, filosóficas, estéticas, históricas.
Assim,por exemplo, no folheto XXIV, aparece uma referência explícita à Escola do Recife, e novamente a Tobias Barreto; e também à acolhida, na Escola do
Recife, do laço entre filosofia e literatura, presente nas obras de Sílvio Romero,
Clóvis Beviláqua, Franklin Távora, Martins Júnior, Artur Orlando (ibid., p. 117),
mesclando aos personagens históricos efetivamente existentes, os personagens
emblemáticos de seu romance: Samuel e Clemente. Este último, irreverente, com
maneiras e opiniões novas. O modelo foi Sílvio Romero? Os estudiosos mencionam dois tios de Ariano, com características análogas. Talvez seus personagens
sintetizem os dois: um era de esquerda, comunista; o outro, tradicionalista, defensor da fé católica.
No romance, a partir dos seus personagens, perpassa menção satírica às
Academias brasileiras; e uma discussão sobre estética, sobre o papel da arte, no
Brasil. Recusados pelas Academias oficiais do Brasil de então, os três personagens:
Diniz, Samuel e Clemente criam a própria Academia, da qual são os fundadores
e únicos sócios: a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba.
Pretendendo reinar, no plano da literatura, Diniz se propõe a construir uma obra
que o leve a ser declarado Gênio da Raça Brasileira, “de modo oficial e selado pelo
governo.” (ibid., p. 137 e segs).
A proposta d’A Pedra do Reino, de sintetizar poesia e prosa e incluir também
as contribuições das artes plásticas, aparece no debate do folheto XXXI, intitulado o Romance do Castelo (literário). Busca expressar a fusão de raças que o povo
brasileiro representa, as lutas políticas e, fundamentalmente, busca a união dos
opostos, na transcendência das oposições.
Destacamos apenas alguns aspectos dessa obra monumental. Nela tudo se
cruza: história, mito, poesia, gravura, filosofia, política, indagação agônica sobre
o segredo.
É um grande poema, da prisão e exílio no mundo, de confronto com a morte, da arte entendida como possibilidade de salvação, de resgate do perecível e
trágico do existir.
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