do Arquivo
Transcrição
do Arquivo
Da música à Literatura Inglesa: Iron Maiden, Samuel Taylor Coleridge e Edgar Allan Poe1 Eduardo Henrique Marinheiro2 Resumo: A música e a literatura estão no cerne deste trabalho como dois elementos diretamente relacionados. Isso porque, por meio da música, é possível espalhar e difundir literatura para o maior número de pessoas possível, e vice-versa. As duas músicas escolhidas para serem abordadas foram compostas pelo Iron Maiden, banda britânica criada nos anos 70 pelo baixista Steve Harris (1956), que ainda realiza turnês mundiais – a última delas realizada de 2010 a 2011, denominada The Final Frontier. Neste texto, serão comentados os textos literários e as músicas de nome “Rime of the Ancient Mariner” e “Murders in the Rue Morgue”. A primeira música possui cerca de treze minutos e faz parte do álbum Powerslave, lançado em 1984. A obra homônima na qual a música foi inspirada foi escrita por Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e inaugurou a fase do Romantismo na Inglaterra ao ser lançada em um livro de poemas chamado Lyrical Ballads (Baladas Líricas). Conta a história de um velho marinheiro que mata uma ave fazendo com que a embarcação seja amaldiçoada. Sua tripulação morre de sede, e o velho marinheiro fica só, à deriva em alto-mar. No fim, depois de ser salvo por um eremita, é fadado a contar sua história por inúmeras vezes até o fim de sua vida. A história nos mostra como respeitar tudo o que Deus criou. A segunda, por sua vez, foi lançada no álbum Killers de 1981, e possui cerca de quatro minutos. A obra, também homônima, foi escrita por Edgar Allan Poe (1809-1849) e conta a história de um crime que abala a cidade de Paris. O narrador principal, juntamente com seu amigo Dupin, investiga a fundo o assassinato de duas mulheres em um apartamento. Extremamente brutal e desumano, o crime intriga não só a população, mas a polícia parisiense. Após minuciosa investigação, chega-se à conclusão de que o autor do crime fora um grande orangotango que fugira de seu dono. Essa obra revolucionou os contos policiais e investigativos da literatura. Essa fusão “literatura e Heavy Metal” será o principal tema deste artigo, que conta com duas grandes obras da literatura em língua inglesa. Palavras-chave: Iron Maiden. Samuel Taylor Coleridge. Rime of the Ancient Mariner. Edgar Allan Poe. Murders in the Rue Morgue. Orientador: Renato Alessandro dos Santos. Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Mestre em Estudos Literários e Licenciado em Letras pela mesma Instituição. Autor de “Mercado de Pulgas” (2011). E-mail: <[email protected]>. 1 Especialista em Formação de Tradutores em Língua Inglesa pelo Claretiano – Centro Universitário. Graduado em Letras pela mesma instituição. E-mail: <[email protected]>. 2 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 55 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tratará da música como meio de divulgação e difusão da literatura por meio de canções cujas letras são baseadas em temas literários e/ou obras de grandes autores. Uma vez que a música é, por si só, um elemento com um elevado e rápido grau de divulgação, a literatura tem um imenso ganho em relação a isso, visto que a probabilidade de mais leitores interessados aumenta consideravelmente com os ouvintes interessados em conhecer e aprofundar-se no estudo de obras que serviram de base e de inspiração para a composição de determinada canção. Dessa maneira, duas obras de dois grandes autores estrangeiros serão abordadas a seguir. Estas duas obras – “A Balada do Velho Marinheiro”, de Samuel Taylor Coleridge e “Assassinatos na Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe – serviram de inspiração para, respectivamente, a composição de “The Rime of the Ancient Mariner” e de “Murders in the Rue Morgue” da banda britânica Iron Maiden. Originada em Londres, Iron Maiden teve o nome inspirado em uma câmara de tortura medieval – a “dama de ferro” (Figura 1). Outras fontes defendem que o nome da banda esteja diretamente relacionado à primeira-ministra britânica Margaret Hilda Thatcher, cujo apelido era “Dama de Ferro”, em razão do governo de convicção que escolhera seguir, em que a única coisa que importava era sua opinião. 56 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 Figura 1. Câmara de tortura: “dama de ferro”. Fonte: Vilarino (2009). Criada em 1975 pelo baixista Steve Harris – que, 37 anos depois, ainda continua como líder – Iron Maiden ficou conhecida por ser uma das bandas pioneiras no surgimento da NWOBHM (New Wave of British Heavy Metal), nome criado pela imprensa para designar o que, no Brasil, ficou conhecido como a Nova Onda do Heavy Metal Britânico, em uma influência notada até hoje em grupos como Slipknot, Metallica, Dream Theater e até mesmo no Guns n’ Roses. Com sonoridade pesada e melódica e batidas marcantes, suas letras são geralmente inspiradas em lendas (como em “The Number of the Beast”, “Flight of Icarus”), livros (como em “Seventh Son of a Seventh Son”, baseada no livro The Seventh Son, de Orson Scott Card, de 1951, Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 57 que conta a história de uma criança que possuía o dom da clarividência), filmes, histórias e poemas (como em “The Trooper”, baseada em “The Charge of the Light Brigade”, de Alfred Tennyson). Nomes como William Shakespeare (1564-1616) são também muito explorados, como na canção “Dance of Death” (baseada em Hamlet) e na canção “The Evil That Men Do” (baseada em uma citação do mesmo poeta, que o vocalista Bruce Dickinson sempre recita no início da música: “The good that men do is oft interred with their bones; but the evil that men do lives on”. Essa citação do vocalista foi inspirada em um dos versos da peça Julius Caesar de William Shakespeare, no Ato III: Friends, Romans, countrymen, lend me your ears! I come to bury Caesar, not to praise him. The evil that men do lives after them; The good is oft interred with their bones. So let it be with Caesar […]. (THORNLEY, 1968, p. 45). Na obra, Julius Caesar é assassinado por Brutus e por Cassius, pois estes acreditavam que ele queria fazer de si mesmo rei. Esses versos fazem parte de um grande discurso que Antony faz para uma multidão de romanos, sobre o corpo de Julius Caesar. A canção em si nada diz sobre a peça de Shakespeare, apenas utiliza a ideia retirada desses versos, de que o bem que os homens fazem é geralmente enterrado com seus ossos, porém o mal que eles fazem sobrevive. Da mesma maneira, várias citações são feitas, como “introduções” às músicas, como é o exemplo da música “The Trooper”, já citada anteriormente, em que o vocalista recita parte do poema “The Charge of the Light Brigade”: “Into the valley of death, Rode the six hundred [...] Cannon to right of them, Cannon to left of them, volley’d and thundered”. Na canção Aces High, há um pronunciamento de guerra de Winston Churchill (1874-1965), presente em um dos seis volumes de The Second World War, escritos por ele, que, como detentor do maior posto da Marinha Real britânica na época (First Lord of the Admiralty), pôde relatar as histórias do modo que realmente aconteceram: 58 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 We shall go on to the end. We shall fight in France, we shall fight in the seas and oceans, we shall fight with growing confidence and growing straight to the air; we shall defend our island whatever the cost may be. We shall fight on the beaches, we shall fight on the landing-grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender. (THORNLEY, 1968, p. 168). Isso coloca em evidência a maestria e as referências culturais contidas nessas canções, algo que apenas aqueles que passam a conhecer a fundo tais composições têm a oportunidade de saber. Sendo assim, esse tema nos remete a uma questão: até que ponto a difusão de grandes bandas cujas músicas são compostas com base na literatura estrangeira serve de veículo mediador para o conhecimento de tais literaturas pelos respectivos ouvintes ao redor do mundo? Elaborar uma resposta plausível para essa pergunta não é tarefa fácil, uma vez que boa parte dos fãs de bandas como o Iron Maiden – pelo menos no Brasil – não conhece a fundo a origem das músicas e composições, talvez pelo pouco conhecimento literário e também pela imposição da língua estrangeira. Porém, há uma parte de fãs que passaram a conhecer (e até mesmo a gostar dela) a literatura estrangeira a partir do anseio pelo conhecimento profundo da origem das composições, assim como as obras nas quais seus ídolos se inspiraram para a composição de tais músicas. Foram escolhidas, então, as duas obras já mencionadas – “The Rime of the Ancient Mariner”, de Samuel Taylor Coleridge, e “Murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe – para serem analisadas. A primeira, que será abordada em seguida, é baseada no poema homônimo do autor Samuel Taylor Coleridge, poeta que, com Wordsworth, inaugurou o Romantismo inglês com o livro de poemas Baladas Líricas. A segunda, da qual trataremos mais adiante, é baseada na obra também homônima de Edgar Allan Poe, outro grande e renomado poeta da Literatura escrita em língua inglesa. Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 59 2. DESENVOLVIMENTO “The Rime of the Ancient Mariner” (“A Balada do Velho Marinheiro”) é o poema mais extenso de Samuel Taylor Coleridge, e um dos poemas estrangeiros mais estudados. Seu autor foi uma criança com vasta imaginação e, aos oito anos de idade, “já era uma personalidade”, como citam Henry Thomas e Dana Lee Thomas em Vidas de Grandes Poetas (1956). Entrou para o Christ’s Hospital em Londres, escola onde o ensino era rigoroso e o tratamento, severo. Coleridge parecia viver em uma outra dimensão e, certa vez, enquanto perambulava pelas escuras ruas de Londres, encontrou um cavalheiro que lhe forneceu um cartão de biblioteca, o que lhe permitiu o acesso e fez com que o garoto devorasse vários livros. Quando completou dezoito anos, entrou para a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, numa época em que os professores seguiam uma severa política de disciplina. Enquanto isso, na Europa, a Revolução Francesa estava a todo vapor. “The Watchman” (ou “O Sentinela”, em português) foi sua primeira tentativa fracassada de alavancar uma carreira como escritor. Tratava-se de um jornal de caráter político que não teve boa aceitação por parte dos leitores. Conheceu, ainda na juventude, o poeta William Wordsworth (1770-1850), jovem com quem Coleridge cultivou a amizade digna de dois grandes amigos. Os dois discutiam ideias pessoais e chegaram a planejar um livro de versos juntos. Samuel Taylor Coleridge disse, ainda, em uma nota à edição de 1817: “Estou em débito para com o Sr. Wordsworth pelos dois últimos versos dessa estrofe. Foi num passeio agradável de Nether Stowey a Dulverton, em companhia dele e de sua irmã no outono de 1797, que este poema foi planejado e em parte composto” (FRANCA NETO, 2005, p. 212). Tal nota fazia referência aos versos de número 224 a 227 do poema “A Balada do Velho Marinheiro”, que dizem: I fear thee, ancient Mariner! I fear Thy skinny hand! And thou art long, and lank, and brown, As is the ribbed sea-land. 60 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 A tradução escolhida para ser analisada foi a de Alípio Correia de Franca Neto, que traduziu esses versos da seguinte forma: Me assustas, velho Marinheiro; Me assustam as mãos fracas! És alto, esbelto, a tez, curtida Como o areal com marcas (FRANCA NETO, 2005, p. 145). Coleridge era também vívido usuário e dependente de ópio, numa tentativa de amenizar as dores causadas pelo reumatismo, doença que o acompanhou durante toda a vida. Uma de suas obras mais conhecidas, Kubla Khan, foi escrita em boa parte sob influência da droga. Segundo Vidas de Grandes Poetas, de Henry Thomas e Dana Lee Thomas, em uma de suas alucinações pelo uso do ópio, Coleridge3 passou a escrever os seguintes versos de Kubla Khan: In Xanadu did Kubla Khan A stately pleasure-dome decree; Where Alph, the sacred river, ran Through caverns measureless to man Down to a sunless sea […]. (THOMAS; THOMAS, 1956, p. 114). Quanto à tradução dessa estrofe, não há especificações do autor no livro, talvez por se tratar de uma obra dos anos 1950. Porém, é feita da seguinte forma: Em Xanadu ordenou Kubla Khan Que majestoso palácio de delícias fosse construído; Onde o Alph, o rio sagrado, corre, Através de cavernas imensuráveis para o homem, Rumo a um mar sem sol [...]. (THOMAS; THOMAS, 1956, p. 114). 3 Coleridge morreu em 25 de Julho de 1834, em Highgate, Inglaterra. Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 61 O poema, como já citado, foi escrito com a ajuda de seu amigo William Wordsworth, inaugurando o período do Romantismo na Inglaterra. Uma parte de três de seus Mystery Poems (ou Poemas de Mistério, em português), a “Balada do Velho Marinheiro” marcou a abertura das Lyrical Ballads (ou Baladas Líricas, em português). Como relatado por G. C. Thornley, em An Outline of English Literature, Coleridge’s poem, The Rime of the Ancient Mariner, appeared in the first edition of the Lyrical Ballads. An old sailor describes some strange misfortunes that happened to his ship. It was in the ice of the South Pole when he shot a great bird; for this crime a curse fell on the ship. The wind failed, the water-supply ended, and all the other sailors died of thirst. The old mariner was then left […]4. (THORNLEY, 1968, p. 91-92). A obra foi escrita em sete partes e conta a história de um velho marinheiro (o adjetivo “velho” foi adotado e preservado no título por já ter sido o nome como foi consagrado em português, diferentemente de “ancient”, que em português se traduz por “antigo”) que aborda uma de três pessoas em uma festa nupcial a fim de contar-lhe uma história. A princípio, o convidado nupcial tenta ir embora, porém é pego numa espécie de feitiço do velho marinheiro, e passa a ouvir a história “como uma criança de três anos”. Trata-se de uma embarcação, com destino ao Polo Sul, navegando por lugares jamais vistos por nenhuma criatura viva, até que sua tripulação é surpreendida por uma ave marinha de bom agouro, o albatroz. 4 Tradução: “O poema de Coleridge, A Balada do Velho Marinheiro, apareceu na primeira edição das Baladas Líricas. Um velho marinheiro descreve algumas estranhas desgraças que ocorreram com seu navio. Isso aconteceu no gelo do Polo Sul, quando ele acertou um grande pássaro; por esse crime uma maldição caiu sobre o navio. O vento cessou, os suprimentos de água acabaram, e todos os outros marinheiros morreram de sede. O velho marinheiro então foi deixado [...]” (Tradução nossa). 62 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 The Sun came up upon the left, Out of the sea came he! And he shone bright, and on the right Went down into the sea. Segundo Franca Neto, quatro versos (25 a 28) indicam o rumo tomado pela embarcação: “As direções do nascer do sol e do seu ocaso indicam que o navio está seguindo para o Sul.” (FRANCA NETO, 2005, p. 211). Vale a pena citar, também, a forma como Coleridge personificava o Sol, com a utilização do pronome “ele” – em inglês “he” – ao passo que o pronome a ser utilizado no caso do Sol seria o pronome “it”. Várias figuras de linguagem – como a prosopopeia, neste caso, que ocorre quando características humanas são atribuídas a seres inanimados – se fazem presentes na obra. A embarcação recebe uma maldição depois que o velho marinheiro, com sua balestra (uma espécie de arco e flecha parecido com uma espingarda) abate o pássaro de bom agouro que seguia a embarcação. A sede chega e deixa a todos com a garganta tão seca que mal conseguem proferir sequer uma palavra. Uma estrofe muito difundida e popularizada que retrata essa sede é: Water, water, every where And all the boards did shrink Water, water, every where Nor any drop to drink (FRANCA NETO, 2005, p. 126). A banda Iron Maiden, em sua música “The Rime of the Ancient Mariner”, resgata essa estrofe e a anterior, do mesmo modo como ela foi escrita por Coleridge em seu poema original, num sinal de que a Literatura Inglesa está presente nas letras da banda. A estrofe anterior, que ajuda na tarefa de relatar as consequências da maldição sobre a embarcação, é: Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 63 Day after day, day after day, We stuck, nor breath nor motion; As idle as a painted ship Upon a painted ocean. (FRANCA NETO, 2005, p. 126). Então, após dias parados e com sede, o marinheiro avista uma embarcação que se aproxima ao longe, mesmo sem vento e sem maré. Tal parte é especificada pela música: “But how can she sail with no wind in her sails, with no tide?”. “Em inglês, a personificação da palavra “morte” é do gênero masculino, o que no caso faz da Morte e Vida-em-Morte um casal.” (FRANCA NETO, 2005, p. 212). Esse casal que se aproxima nessa embarcação “fantasma” joga dados, disputando a tripulação e o velho marinheiro. Vida-em-Morte ganha o velho marinheiro, e o deixa viver, matando sua tripulação, que cai morta, um a um. O velho marinheiro fica solitário durante uma semana, até que a maldição começa a se quebrar, e o albatroz, outrora pendurado em seu pescoço pelos outros tripulantes como sinal de culpa por sua morte, começa a cair. A chuva, sinal de mudança, chega e alivia o velho marinheiro, por graça da santa Mãe. Conforme relatado por dois autores franceses no Dicionário de Símbolos: A chuva, filha das nuvens pesadas e da tempestade, reúne os símbolos do fogo (relâmpago) e da água. Ela apresenta também a dupla significação de fertilização espiritual e material. [...] Caindo do Céu, ela exprime ainda um favor dos deuses, também de duplo sentido, espiritual e material. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 237). É quando um espírito leva o navio de volta para o Equador, país natal do marinheiro, em obediência à tropa angélica, porém ainda clamando por vingança. Sua penitência é imposta pelos espíritos, e a embarcação subitamente afunda como pedra. O velho marinheiro é salvo por um pequeno barco onde havia um eremita e mais dois tripulantes. Ao chegar à 64 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 terra firme, o velho marinheiro suplica ao Eremita do Bosque que o absolva, porém sua penitência acaba concretizada. E, até o fim de sua vida, o velho marinheiro terá que contar sua história para as pessoas que encontra; caso contrário, seu peito irá queimar como fogo. Ensinando, assim, a respeitar e a amar todas as coisas que Deus criou. 3. POE, OS CRIMES DA RUA MORGUE E IRON MAIDEN A outra obra da qual trataremos neste trabalho é de Edgar Allan Poe. Nascido em 1809, em Boston, Edgar Allan Poe ficou órfão quando criança, sendo adotado por uma rica família de quem herdou o sobrenome “Allan”. A família o mandou para a Inglaterra em um internato a fim de fazer do garoto um verdadeiro cavalheiro, o que deu certo. Porém, ao voltar para os Estados Unidos, alguns vícios adquiridos durante sua estada na Inglaterra vieram à tona, como o vinho. Chegou a alistar-se no exército, chegando ao posto de sargento, antes de abandonar a carreira. Foi o que se poderia chamar de “criança-problema”. Começou, ainda jovem, a escrever seus primeiros versos, que receberam críticas positivas da imprensa. Decidiu, então, seguir a carreira literária. Encontrou muitas dificuldades na vida. Uma delas, a enfermidade de sua esposa, que passou por fases de melhora e piora de seu estado, até que acabou por falecer após longos seis anos. Com isso, Poe passou a beber e alterou estados de insanidade antes de se recuperar totalmente. Eis que finalmente Edgar Allan Poe passa a ser reconhecido mundialmente por sua estranha poesia ao ganhar o seu primeiro prêmio pela obra “O Escaravelho de Ouro”. Lançou “O Corvo”, superando as expectativas de todos, porém não ficou rico com tais realizações, uma vez que seu primeiro prêmio lhe rendeu apenas cem dólares, e “O Corvo” foi vendido por dez dólares. Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 65 Em 1842, solucionou um crime de um caso real que intrigava a polícia de Nova York – o assassinato de Mary Cecilia Rogers – ao escrever o conto “O Mistério de Marie Roget”, cujo final que escreveu acabou sendo a solução confirmada do crime da vida real. Isso resultou em prestígio para Poe, embora não tenha sido o suficiente para lhe propiciar uma situação financeira melhor. Conheceu Mrs. Whitman em uma conferência e acabou como seu noivo. Entretanto, sua vida boêmia, marcada por bebedeiras fez, com que ela selasse por vez o fim do noivado. Ainda assim, não desistira de seu sonho de conseguir lançar uma revista. Foi para Richmond, a fim de elaborar o projeto para tal realização, quando encontrou uma velha amiga de infância, passando a cortejá-la. Noivou novamente, anunciando seu casamento. Porém, isso nunca se concretizou. Em 1847, seu trabalho como poeta foi descoberto por Charles Baudelaire (1821–1867) – um poeta francês conhecido como um dos precursores do Simbolismo com a obra As Flores do Mal, em 1857 – o que fez com que seu nome ficasse conhecido na Europa (VEINOTTE, 2009). Foi encontrado em Baltimore em estado deplorável, e acabou morrendo no hospital, proferindo estas palavras: “O God!... Is all we see or seem. But a dream within a dream?” (THOMAS; THOMAS, 1956, p. 236). Sua obra “Assassinatos da Rua Morgue”, da qual trataremos a seguir, foi escrita em 1841 e marcou o surgimento dos romances policias da época. Assim como “Escaravelho de Ouro”, escrito dois anos depois, foi premiada. Trata-se de um conto que se passa em Paris, narrado em primeira pessoa, que relata a história de um homem que conhece um jovem muito inteligente e perspicaz chamado Auguste Dupin, com quem acaba morando e a cultivando uma grande amizade. Fica espantado com a grande habilidade que seu amigo possui de solucionar casos e mistérios e com a chamada “transparência” do homem, sendo capaz de “decifrar” o que uma pessoa esteja pensando em dado momento, algo como um Sherlock Holmes à francesa. 66 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 Um horroroso assassinato ocorre na cidade, mais precisamente na Rua Morgue, e intriga não só a polícia como toda a população parisiense. Duas mulheres (mãe e filha) foram brutamente assassinadas no quarto andar de seu apartamento. O detalhe crucial é que o cômodo onde foram encontradas estava hermeticamente fechado por dentro e totalmente destruído. A polícia não foi capaz de solucionar o caso e, após ouvir algumas testemunhas por inúmeras vezes, acabou prendendo um suspeito, Adolphe Le Bon, embora não houvesse nada que o pudesse incriminar. Dupin ficou interessado pelo caso, embora não tivesse demonstrado, e passou – juntamente com o narrador protagonista – a investigar o caso a fundo. Essa investigação representava, na realidade, certo divertimento para Dupin. Investigaram o caso com extrema minúcia, analisando a cena do crime, os relatos das testemunhas, os suspeitos, as possibilidades, tudo isso liderado por Dupin, que deixava seu amigo perplexo enquanto falava, como se fosse um monólogo. Deram atenção especial aos relatos pertinentes à voz que se ouvira antes do crime: “rápida, estridente, desigual, áspera” que cada pessoa fez à polícia (GOUVEIA, 1990, p. 28-29). No final das contas, o verdadeiro “assassino” foi capturado. O que representa uma grande surpresa, especialmente, por se tratar de um grande orangotango, da raça de Bornéu, que havia escapado de seu proprietário. Um animal desse porte teria força suficiente para ter realizado tais atrocidades com as vítimas, pois seria capaz de entrar pela janela do apartamento e fechá-la em seguida, enfim, de cometer o crime. Após o relato de Dupin ao delegado, o suspeito outrora preso foi solto imediatamente e o caso foi enfim solucionado. O narrador protagonista, assim como na obra, relata a história na primeira pessoa e, ao mesmo tempo, participa da história como personagem principal. “É o narrador que é também o personagem central” (GANCHO, 1999, p. 29). Na canção do Iron Maiden, a letra é também escrita em primeira pessoa, com narrador personagem, relatando o acontecido da mesma maneira como ocorreu na história original, porém sem a estrutura de conto policial. Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 67 O nome da canção, assim como em “A Balada do Velho Marinheiro”, permaneceu inalterado pelos compositores do Iron Maiden, seguindo o título em inglês da obra “Murders in the Rue Morgue”. A palavra “rue” é utilizada no lugar de “street” por se tratar de uma forma arcaica na língua inglesa, porém ambas significam “rua” na língua portuguesa. Algumas pequenas adaptações foram feitas na canção, em que o protagonista está andando pelas ruas de Paris em uma noite chuvosa, quando ouve gritos e corre para a cena do crime. Lá encontra duas mulheres deitadas lado a lado e grita por socorro. Uma multidão aparece e ele sente-se aliviado por terem ouvido seu chamado, porém essa multidão vem apontando para ele, que, sem falar francês, não pode se explicar e corre desesperado. E agora esse homem deve fugir da polícia, que na época era chamada de “Gendarmes”, a cavalaria francesa de polícia medieval. Diz ainda, na canção, que deve encontrar seu caminho “Down south to Italy” (em português, “para baixo em direção à Itália”), onde estará a salvo da jurisdição da polícia da França. Outra frase que retrata isso é “I’ve gotta find my way across the border for sure” – em português, “tenho que encontrar meu caminho além da fronteira certamente” (HARRIS, 1981). O protagonista mostra sinais de grande preocupação e teme a perseguição por parte de “olhos que fitam”, como fica demonstrado nestes versos: “But I can’t wipe the scene from my mind”; “And the Gendarmes are chasin’ me”; “Well I’m moving through the shadows tonight”; “Away from the staring eyes”; “And they’ll be looking for me” (HARRIS, 1981). As traduções dos trechos citados anteriormente são, respectivamente: “Mas eu não posso tirar a cena da minha cabeça”; “E os Gendarmes estão me perseguindo”; “Bem, estou andando pelas sombras esta noite”; “Longe dos olhos que fitam”; “E eles estarão procurando por mim” (HARRIS, 1981, tradução nossa). Ao final da canção, o protagonista acaba deixando um ar de mistério, dizendo que o crime não sairia de sua cabeça e confessando que já havia feito isso antes, como mostram as passagens: “But I know that it’s on my mind”; “And I’ve got to say I’ve done it before”. Em português, “Mas eu sei 68 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 que isso está em minha mente”; “E eu tenho que dizer já fiz isso antes”. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Voltamos, portanto, à ideia de que a música – não somente da banda Iron Maiden – exerce uma grande influência na cultura literária dos ouvintes, que passam de certo modo a conhecer a fundo as obras nas quais seus ídolos se inspiraram para compor uma determinada canção. A habilidade de interpretação é também extremamente explorada nesses casos, uma vez que o ouvinte, como fã, procura entender o que a música quer dizer, baseando-se nas influências de seus compositores. Isso é poesia, é literatura, e a música faz o importantíssimo papel de divulgá-las. A influência, segundo Aldridge (1918 apud NITRINI, 1997, p. 130): Ajuda a expor por que um escritor exprime um pensamento ou um sentimento daquele modo determinado. Compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor. Segundo este autor, podemos analisar uma passagem altamente poética em Shakespeare e elucidar os valores estéticos que aí encontramos, mas não podemos estar seguros de que Shakespeare passou pelo mesmo processo estético e emocional na criação da obra que passamos na nossa experiência de sua interpretação. Mas se nós conhecemos que certas passagens de A Tempestade são paráfrases de Montaigne, então ficamos sabendo algo concreto sobre o pensamento de Shakespeare e seu processo de composição. Essa citação de Aldridge representa o que alguns ouvintes de músicas cujas composições são de cunho literário procuram fazer. É impossível, por exemplo, interpretar o que Steve Harris (1956), ao escrever “Rime of the Ancient Mariner”, quis dizer exatamente com sua composição, se não tivermos o conhecimento de que, há cerca de duzentos anos, Samuel Taylor Coleridge lançava a primeira edição de Lyrical Ballads. Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 69 Não podemos, entretanto, generalizar a música como mediadora universal de divulgação anglo-literária. A razão pode estar na intensa falta de cultura que algumas músicas proporcionam aos seus ouvintes, músicas essas que fazem parte da atual indústria musical, que, diferentemente do passado, busca apenas o lucro com o curto e momentâneo estouro de vendas, e não a qualidade musical, ou, talvez, ao fato de que a música nem sempre pressupõe cultura, podendo significar apenas diversão. Do mesmo modo, os ouvintes não podem ser generalizados, uma vez que a maior parte dos ouvintes de músicas que, como as apresentadas neste trabalho, foram baseadas em obras literárias de respeitosos autores, não conhece ou até mesmo não sabe da existência de uma obra por trás de determinada canção. REFERÊNCIAS CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. COLERIDGE, Samuel Taylor. A balada do velho marinheiro. Disponível em: <http:// www.geocities.com/Athens/Troy/8413/balada.htm>. Acesso em: 21 mai. 2009. FRANCA NETO, Alípio Correia de. A balada do velho marinheiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1999. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1989. GOUVEIA, Ricardo. Os assassinatos da rua Morgue. São Paulo: Scipione, 1990. HARRIS, Steve. Murders in the rue Morgue. Intérprete: Paul Di’Anno. In: IRON MAIDEN. Killers. Londres: EMI, 1981. 1 CD. (37 min.). Faixa 03. _______. Rime of the Ancient Mariner. Intérprete: Bruce Dickinson. In: IRON MAIDEN. Powerslave. Londres: EMI, 1984. 1 CD. (50 min.). Faixa 8. NITRINI, Sandra. Literatura comparada. São Paulo: Edusp, 1997. 70 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 THOMAS, Henry; THOMAS, Dana Lee. Vidas de grandes poetas. Rio de Janeiro: Globo, 1956. THORNLEY, G. C. An outline of english literature. London: Longman, 1968. VEINOTTE, Barry. Charles Baudelaire – Biography. Disponível em: <http://www. veinotte.com/baudelaire/baudelaire2.htm#top>. Acesso em: 26 mai. 2009. VILARINO, Cristine Vieira. Compêndio de instrumentos de tortura e execução na Idade Média européia. Disponível em: <www.geocities.com/adtenebras/compendio. htm>. Acesso em: 21 mai. 2009. ______________________________________________________ Title: From music to English Literature: Iron Maiden, Samuel Taylor Coleridge and Edgar Allan Poe. Author: Eduardo Henrique Marinheiro. ABSTRACT: Music and literature are essential parts of this project, regarded as two directly related elements. This is because, through music, it is possible to scatter and to broadcast literature to the highest number of people, and vice versa. The two chosen songs were composed by Iron Maiden, a british band created on the 70’s by the bassist Steve Harris, which still goes on world tours – last tour performed from 2010 to 2011, named The Final Frontier Tour. Thus, “Rime of the Ancient Mariner” and “Murders in the Rue Morgue” are the titles of both the songs and the literary texts. The first song is about thirteen minutes long and is part of the Powerslave album launched in 1984. The homonymous poem in which the song was inspired was written by Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) and inaugurated the Romanticism in England when launched in a poems book named Lyrical Ballads. It tells the story of an ancient mariner who kills a bird causing the vessel to be cursed. His crew dies of thirst, and the ancient mariner remains alone, drifting on the high seas. Eventually, after being saved by a hermit, he is bound to tell his story several times until the end of his life. The story shows us how to respect all the things God created. The second, for its part, was launched in the album Killers from 1981, and is about four minutes long. The book, also homonymous, was written by Edgar Allan Poe (1809-1849) and tells the story of a crime that stuns the city of Paris. The main narrator, with his friend Dupin, deeply investigates the murder of two women in an apartment. Extremely brutal and inhuman, the crime intrigates not only the population, but also the police. After thorough investigation, it is concluded that the author of the crime had been an orangutan which had fled from his owner. This book made a revolution on the police and investigative tales in literature. This fusion Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013 71 “literature and heavy metal” will be the main theme in this article, which counts on two great works from the English Literature. Keywords: Iron Maiden. Samuel Taylor Coleridge. Rime of the Ancient Mariner. Edgar Allan Poe. Murders in the Rue Morgue. 72 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 3, n. 1, p. 55-72, jan./jun. 2013