projeto humanarte – valores humanos através da arte

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projeto humanarte – valores humanos através da arte
PROJETO HUMANARTE – VALORES HUMANOS ATRAVÉS DA ARTE
2012
Estudo de caso
O Beijo (1889). Auguste Rodin
Uma das esculturas mais populares da história da arte, “O Beijo” causou polêmica por onde
passou. Na Inglaterra, em 1914, foi cuidadosamente “vestida” para não excitar os soldados
que partiam para a Guerra. Nos EUA, em 1997, a peça já centenária foi banida da Brigham
Young University, que a considerou “ofensiva às idéias morais e religiosas da comunidade”.
O escândalo nos EUA foi denunciado pela National Coalition Against Censorship
(www.ncac.org). Desta obra existem três versões em mármore de grandes dimensões, hoje
expostas no Museu Rodin de Paris, na Tate Gallery de Londres e no Museu Rodin da Filadélfia.
O próprio Rodin produziu várias cópias em bronze, de menores dimensões.
A primeira versão foi encomendada pelo governo francês ao escultor para integrar a coleção
de um museu de Paris. Originalmente faria parte de uma composição mais ambiciosa chamada
Portas do Inferno, inspirada no poema medieval de Dante Alighieri (1265-1321), A Divina
Comédia. Mas nem o destino nem o tema foram mantidos e a peça ganhou autonomia e hoje
“mora” no Museu Rodin de Paris.
Podemos abordar esta obra-prima através de três aspectos: o literário, o estético e o
psicológico. O primeiro diz respeito ao nome original da escultura - “Francesca da Rimini” pois de fato retrata o momento sublime e o clímax da paixão proibida entre Paolo e Francesca,
segundo contada no famoso Canto V da Divina Comédia. Francesca da Rimini (1255-1285) foi
uma dama da nobreza medieval italiana, filha do governante da região de Ravena. Seu pai,
Guido da Polenta estava em guerra com a família Malatesta. Quando um acordo de paz foi
negociado, Guido concedeu a filha em casamento com o herdeiro de Rimini, Giovanni
Malatesta (Gianciotto), filho de Malatesta da Verucchio. A paz estava selada. Giovanni tinha o
corpo deformado. Guido sabia que Francesca (conhecida por sua beleza) o iria recusar, de
modo que o casamento foi realizado por procuração através do irmão, Paolo, também famoso
pela beleza. Francesca não tinha conhecimento da fraude até à manhã seguinte ao dia de
casamento. De acordo com Dante, Francesca e Paolo foram seduzidos pela leitura da história
de Lancelot e Guinevere, e se tornaram amantes. Posteriormente foram surpreendidos e
assassinados por Giovanni.
Francesca e Paolo tinham em comum não apenas a beleza, mas a paixão pela literatura, o que
não era virtude do seu marido e de nenhum guerreiro medieval. Passavam tardes em
saborosas leituras de cavalaria. Nos contos dos Cavaleiros da Távola Redonda, Lancelot
apaixona-se por Guinevere, a bela esposa do Rei Arthur, de quem Lancelot era fiel vassalo. Os
dois leitores solitários entregam-se a um beijo irresistível e avassalador no exato momento em
que a leitura alcançava o clímax da trama, o justo momento do também irresistível e proibido
beijo entre o fiel vassalo Lancelot e a esposa de seu senhor.
Observe que Rodin insere na obra um elemento que evidencia sua fonte literária: a figura
masculina ainda segura um livro em sua mão esquerda, mesmo no calor do momento de um
beijo arrebatador.
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Fica ao leitor o desafio se este histórico dos personagens enlaçados pelo amor, alheios aos
observadores, seria necessário e indispensável, senão à compreensão, ao menos à fruição da
contagiante cena de mármore.
A sobreposição temporal de amores proibidos completa-se com o caso do próprio autor com a
jovem escultora Camile Claudel. Rodin tinha quarenta anos de idade e Camile dezoito, quando
iniciaram um turbulento relacionamento. Ele nunca se dispôs a abandonar a esposa e ela
enfrentou toda a família e a sociedade para tê-lo só para ela. Não era a primeira e nem seria a
última amante de Rodin. A esposa pressionou pelo fim deste caso e a família de Camile a
internou num sanatório. O fim de Camile foi parecido com o de Francesca. Esta foi assassinada
e lançada por toda a eternidade no segundo círculo do Inferno – reservado ao pecado da
luxúria - onde ainda queimam, segundo Dante, damas famosas como Cleópatra e Helena de
Tróia. Camile, por sua vez, amargou o resto de sua vida no hospício, trancafiada como uma
morta-viva por 40 anos até a sua morte. O caso de Camile é hoje um ícone da Reforma
Psiquiátrica e denuncia a doença social que ainda nos acomete. Não é raro a punição, seguida
de exclusão social, daqueles que não correspondem aos parâmetros morais de uma época.
Rodin reconhece sua dívida – pelo menos artística – para com Camille, pois afirma que o
talento de sua aluna revigorou sua própria criação. Mas ele, que já havia sido acusado de
plagiar o estilo de Michelangelo, foi alvo ainda da acusação de se apropriar da criatividade de
Camille. De fato, é para qualquer um ficar meio persecutório. “Você roubou minha obra,
minha vida e tirou tudo de mim”, grita a personagem de Camile – papel impressionante de
Isabelle Adjani – no mais recente filme dedicado à escultora (Camile Claudel, França, 1988).
Hoje as principais obras de Camille podem ser admiradas em uma sala do Museu Rodin. Fico
sem saber se isso é uma homenagem ou mais uma agressão a ela.
Fica aqui mais um desafio ao leitor. Compare o beijo de Rodin e o de Camille em L´Abandon
(1886). A composição é diferente, bem como a fonte literária. Além disso, em Camille o
homem é suplicante, enquanto que em Rodin se o homem não chega a ser dominante e
possessivo, pelo menos há certo equilíbrio (o que não enobrece seu currículo amoroso, mas
rompe com a tradição abertamente machista da história da arte). Em ambos há uma grande
dose de entrega, sôfrega e torturante em Camille, acentuada em Rodin. Em ambos, os casais
estão alheios ao ambiente, absortos em outra dimensão da experiência humana.
A comparação nos remete diretamente aos aspectos estéticos da obra. Rodin construiu o casal
em nudez total, pois acreditava, dizia ele, que assim o observador não desviaria a atenção da
essência do drama representado, isto é, conduziria nossos sentidos diretamente à força de
atração do beijo sensual e estimulante. Como resultado, temos uma composição tomada pelo
movimento e pela energia dos amantes.
Embora nus, as figuras de Rodin apresentam um aspecto clássico, sem o predomínio do seu
caráter sexual. É sensual e romântico ao mesmo tempo. Ela está assentada sobre a perna
esquerda dele, agarrada ao seu pescoço. Ele, por sua vez, a envolve firme e gentilmente com a
mão direita sobre a coxa esquerda dela, num movimento de posse, de acolhimento e de
carinho. Em que pese toda a reprodução anatômica dos músculos, o beijo é tão envolvente
que mal se percebem os contornos das duas faces, assim quase fundidas.
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Lembra-nos da fusão das faces da pintura de Munch, também chamada O Beijo, no mesmo
estilo da tela ainda mais famosa O Grito.
Os lábios quase se tocam, os olhos se fecham, as bocas se esperam com ternura e ansiedade,
já irrefreáveis, compondo um movimento irresistível, inadiável. A paixão e o romance do Beijo
são inegáveis, de tal forma que a nudez trabalha a favor do coração, não do corpo. Veja que
não se percebem os órgãos genitais de ambos. O contraste entre a pele lisa dos amantes e a
superfície áspera da pedra sobre a qual se encontram salienta ainda mais a sensualidade deste
encontro inevitável. Nada nos sugere algum sentimento de culpa, medo, traição e tragédia.
Tudo é suave no toque dos amantes. Tudo é forte na forma como eles se entregam um ano
outro, como se disponibilizam totalmente, como se alheiam do mundo exterior. No amor nada
é proibido.
A imensa carga emocional da cena quase nos faz esquecer a dificuldade técnica da produção
em mármore. Rodin desenha suas obras para serem apreciadas em 360 graus. As obras
renascentistas foram concebidas para a apreciação frontal, enquanto que Rodin nos obriga a
dar uma volta completa sobre o bloco trabalhado. Costumava fazer em escala diminuta
inúmeros esboços em argila e depois em gesso para então entregar a seus assistentes o duro
trabalho de transferir a imagem para a pedra, em tamanho natural, reservando a si a tarefa do
acabamento final.
Michelângelo foi sempre o principal referencial para sua criação, principalmente após sua
viagem de dois meses à Itália, em 1870, ainda nos tempos de pobreza e falta de
reconhecimento. “Michelangelo me libertou da escultura acadêmica”, afirmou Rodin. Ele se
referia à representação dos sentimentos externos pelo movimento muscular. Os críticos
chegaram a apontar esta inspiração como pura cópia, principalmente quando expôs no Salão
de 1877 A Idade do Bronze, sua versão para o Escravo Agonizante, de Michelangelo, que Rodin
pôde observar no Louvre.
Foi atacado até mesmo pelo título da escultura (tarefa na qual nunca se saiu muito bem).
Primeiro argumentou que se tratava do surgimento do homem na natureza, para mais tarde
afirmar que não havia relação entre obra é título. Francesca da Rimini também não pegou. O
título, pois a obra é até hoje um ícone da história da arte.
Em que pese toda a polêmica sobre seus casos amorosos, a obra de Rodin inova justamente na
forma de retratar a relação entre um homem e uma mulher. Camille não gostaria deste
comentário, é verdade. Mas peço a indulgência e a paciência das leitoras para a seguinte
questão, de resto já esboçada atrás. A tradição machista da história da arte era marcada pela
construção de obras para o deleite voyeurístico dos homens: telas e esculturas sempre haviam
exibido mulheres ardentes, passivas e disponíveis ao trato (visual) masculino. O padrão gestual
e expressivo deste fetiche está na Vênus de Urbino, de Ticiano, repete-se nos Herens de Ingres
e nas inumeráveis Venus dos Salões de meados do século XIX de Paris (e do fim do XIX no
Brasil). Edouard Manet ousou romper com esta tradição ao criar uma desafiante criatura da
noite, a prostituta Olympia. Munch elaborou o tema da fusão de duas criaturas igualadas na
fruição de seus desejos em O Beijo. Rodin trafega nesta linha.
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No clássico estudo sobre a sexualidade na arte, Edward Lucie-Smith traça
detalhadamente essa tradição e a sua ruptura na escultura e na pintura e afirma:
“As obras de Rodin e Munch oferecem um exemplo da tendência crescente da arte do
século XX de usar a obra de arte como veículo de afirmações pessoais (...) Gradualmente os
artistas se mostram mais capazes de mais sinceridade sobre suas próprias atitudes em relação
à sexualidade. O tema dos casais é frequentemente usado pelos expressionistas: o sexo é
tomado como algo intimamente análogo à arte, como uma expansão de energia. A alegre e
frívola celebração dos prazeres do ato sexual, como em Fragonard, dá lugar à incorporação de
sentimentos de dúvida e angústia no expressionismo” (LUCIE-SMITH, Edward. Sexuality in Western
Art.. Thames And Hudson, London, 1997, pag 148)
Para finalizar a abordagem psicológica da obra, recorremos aqui a uma interessantíssima
palestra da psiquiatra norte-americana Leonore Tiefer, apresentada em 1998 no Kinsey
Institute. Tratava-se de um evento dedicado aos 50 anos do relatório Kinsey, obra pioneira na
pesquisa sobre a sexualidade. O evento versava justamente sobre o tema do beijo.
Tiefer lembra em sua explanação que o beijo tem um significado social muito amplo em
diversas culturas e épocas. Há o beijo da traição, nos escritos sagrados. Há o beijo de
reverência, aquele que se aplica em objetos sagrados, como o anel do Papa ou o manto do Rei.
No cotidiano há o beijo dos cumprimentos, muitas vezes um sinal para desarmar inibições,
desfazer distanciamentos entre pessoas que ainda não se conhecem e não podem saber
quanta intimidade o cargo, o título e a classe social permitem. Há culturas em que as pessoas
não se permitem o beijo em público. Nem mesmo um “selinho”.
A psiquiatra busca uma referência em Freud e afirma: “nossa experiência de segurança e
sexualidade começa na infância assim que somos amamentados”. A teoria sugere que cada
beijo na vida adulta reverbera a experiência de sugar da criança, na qual usa a língua, os lábios,
sente o aroma do adulto e sua face em seu seio. A criança apreende que para viver é preciso
sugar. Assim que a criança mama ela sente, ela não esquece. A sensação positiva e o prazer
produzirão um poder emocional para toda a vida. “O beijo (adulto) convoca os sentimentos
infantis de sermos acalmados e confortados”, afirma. Para os leitores mais incomodados com
o rumo que tomou a conversa, lembramos aqui que a psicanálise faz uma distinção precisa,
muitas vezes ignorada, entre sexualidade adulta (genital) e sexualidade infantil (“polimorfa”)
O poder do beijo é tamanho que pode se transformar em algo socialmente perigoso,
principalmente quando ocorre (em atos ou em pensamentos) no casal “errado”. Daí a
proliferação do tema do beijo proibido na literatura ocidental (e no cinema): Romeu e Julieta,
Tristão e Isolda, Francesca...Daí a fúria homofóbica diante do beijo gay em público
Agora entendemos o lugar central do beijo no cinema. O espectador prevê o momento do
beijo, suspira, sorri e as vezes chora junto com os protagonistas. O beijo da despedida, o beijo
na praia, o beijo no acampamento, o beijo da aceitação e o da traição. São tantas as cenas
clássicas do cinema, mas em todas elas tudo para, perdemos a noção de tempo e de espaço e
nos infiltramos na grande tela para compartilhar este momento de acolhimento da alma e de
pacificação dos sentidos. Há um resumo do poder do beijo no final de Cinema Paradiso. Não
vou descrever. Apenas assista, se ainda não viu.
Apaziguamento, conforto e proteção. Pense nisso no seu próximo beijo. Depois do beijo.
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