e as elites paulistas

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e as elites paulistas
retrato
doBRASIL
O NÓ DE LULA Por que o governo não baixa os juros e aumenta as despesas para combater a crise
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | NO 22 | MAIO DE 2009
ÀS ARMAS! A nova
política de defesa do País,
candidato a grande potência
BURLE MARX Cem anos
de nascimento de um
mestre do paisagismo
ISRAEL O mal-estar
de um país que segue
cada vez mais à direita
COMPUTAÇÃO A
mecânica quântica pode
trazer outra revolução
SERRA
E AS ELITES
PAULISTAS
De olho em 2010,
o governador de São Paulo
quer revalorizar a Revolução
Constitucionalista de 1932
na história política brasileira
PEDOFILIA O escândalo predomina e pouco se fala em tratar os que sofrem do distúrbio
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doBRASIL
retrato
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | N O 22 | MAIO DE 2009
Ponto de vista O GOVERNADOR E SUA HISTÓRIA À PAULISTA A Imprensa Oficial de São Paulo
lançou livros que revalorizam a elite paulista. Uma manobra de Serra, de olho na sucessão 6
Clima OS MALES DO AQUECIMENTO LOCAL O inverno se aproxima e com ele agravam-se os
problemas de saúde. Mas não apenas a natureza é responsável por isso Rafael Hernandes 9
Crise O NÓ DO ORÇAMENTO O governo está reduzindo as previsões de gasto. É porque está
amarrado a um modelo que não está voltado para o crescimento do País Lia Imanishi Rodrigues 12
Sociedade UM DRAMA EM BUSCA DE EXPIAÇÃO A mídia e políticos conservadores confundem a
opinião pública ao dizerem que a pedofilia é coisa de “monstros” Léo Arcoverde 22
Defesa O PAÍS VAI ÀS ARMAS O governo faz grandes planos para modernizar as Forças Armadas
e se prepara para defender a Amazônia da ambição de “uma grande potência” Carlos Azevedo 30
Israel UM ACORDO. E MUITO MAL-ESTAR O governo liderado pelo Likud confirma o rumo que o país
tomou há anos Armando Sartori e Yuri Martins Fontes 36
Ciência A PRÓXIMA REVOLUÇÃO Os computadores pessoais promoveram mudanças em escala
planetária. A computação quântica pode ser ainda mais avassaladora Flavio de Carvalho Serpa 41
Paisagismo O MARX DOS CACTOS E DAS CURVAS Um dos principais paisagistas do século XX,
Burle Marx completaria cem anos se fosse vivo Ana Castro 45
Política CASO DANTAS: UM DEBATE O presidente da Previ, Sérgio Rosa, e o repórter Raimundo
Rodrigues Pereira discutem as conclusões do artigo publicado na última edição de Retrato do Brasil 48
EXPEDIENTE
SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia Imanishi •
Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht EDIÇÃO DE ARTE Ana Castro • Pedro Ivo Sartori REVISÃO
Silvio Lourenço • Gabriela Ghetti [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Alex Silva • Carlinhos Mueller • Flavio de
Carvalho Serpa • Giuseppe Bizarri • Léo Arcoverde • Yuri Martins Fontes
CARTAS
AS FORMAS DE DITADURA
O artigo “As formas de ditadura”, publicado na edição 21,
foi muito elucidativo e didático. Ao usar o termo
“presidente” e “regime militar”, quando se referem à
ditadura brasileira, entretanto, o texto corrobora a
afirmação da imprensa burguesa de que houve realmente
uma “ditabranda”, já que não houve ditadores e ditadura
e sim uma variante da democracia, chamada de “regime
miltar” por oposição ao “regime civil”, que é o que
estamos vivendo agora.
Miguel Boeira Vianna [por e-mail]
45 ANOS DO GOLPE
Em 31 de março último, o Clube Militar, em sessão solene
realizada no Rio de Janeiro, convidou mais de 2,5 mil
membros das Forças Armadas para a comemoração do
quadragésimo quinto aniversário do golpe militar de
1964. Dada a manifesta ilicitude da solenidade e o
nefasto silêncio da mídia, inúmeros intelectuais
firmaram um manifesto de repúdio, reproduzido abaixo.
Entre outros, subscreveram o texto Dalmo de Abreu
Dallari, Fábio Konder Comparato, Ivan Valente ,
Margarida Genevois, Maria Luiza Marcilio, Maria Victoria
Benevides e Roberto Romano da Silva.
Miguel Chibani Bakr Filho, presidente da “Associação E
vamos à luta” [por e-mail]
Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A.
EDITORA MANIFESTO S.A.
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CAPA Governador José Serra (20/8/2007)/ Foto Ed Viggiani/ AE
Manifesto de repúdio: “Lastimável equívoco. Profundo
gravame à consciência coletiva do povo brasileiro, que,
por mais de 20 anos de violência política institucionalizada,
assistiu ao desmantelamento dos mais altos princípios da
democracia e dos direitos humanos. Afinal, comemora-se o
quê? [...] A sobredita festividade não tem mínima
justificação ética. Não há oratória que possa acobertar o
espancamento da cidadania levada a feito no Regime Militar.
Não há jogo de palavras que dissimule os excessos
cometidos no exercício do poder. Não há qualquer apelo
emocional destinado à sedução do auditório que contrafaça
os atentados à integridade física e moral perpetrados pelos
idealizadores do Estado de Exceção.”
Ponto de vista:
O GOVERNADOR E SUA HISTÓRIA À PAULISTA
A Imprensa Oficial de São Paulo lançou livros que
reinterpretam o passado e revalorizam a elite
paulista. Uma manobra de Serra, de olho na sucessão
O PAPEL DAS ELITES PAULISTAS na história do País está sendo revalorizado pelo governador José Serra. No fim de 2007, por meio
da Imprensa Oficial (Imesp), o governo de São
Paulo lançou a Coleção Paulista, conjunto de
livros que se propõe a levar aos estudantes e
ao público em geral “a história de São Paulo e
dos seus personagens” que influenciaram a vida
brasileira. No lançamento, o organizador da
coleção, o historiador Marco Antônio Villa, disse que ela tinha um objetivo político: “acabar
com o mito de que todo político paulista tem o
ranço do conservadorismo e desmascarar a história de que resgatar o discurso político paulista
é conspiração da elite do estado de São Paulo”.
Nas comemorações do 76º aniversário da
Revolução Constitucionalista de 1932, a polêmica rebelião de São Paulo contra o governo
de Getulio Vargas, o governador escreveu na
Folha de S.Paulo sobre o movimento. Em 2007,
em seu primeiro ano à frente do governo, Serra foi vaiado nas comemorações do 9 de Julho,
data da deflagração da revolta. Com certeza,
para muitos conservadores paulistas – que consideram o golpe militar de 1964 como a Revolução de 1932 que deu certo –, Serra ainda é o
político de esquerda que foi presidente da União
Nacional dos Estudantes (UNE) e o aliado de
João Goulart, o presidente deposto pelo golpe.
O texto do governador, surpreendentemente, foi uma defesa da Revolução de 1932. Ele
escreveu que o movimento tinha sido demonizado como separatista, mas que seu significado era outro: a sua direção “era exercida por
setores identificados com valores democráticos, com a modernidade de então”, e que isso
explicaria “o amplo apoio” obtido pelo movimento “em todas as camadas sociais”. Serra
colocou a rebelião paulista no primeiro plano
da história do País. “Enganam-se os que imaginam que recordar 1932 é simplesmente remexer no velho baú da história. É muito mais que
isso: é uma bela data da história do Brasil e de
São Paulo”, escreveu, em conclusão.
Uma semana depois, reafirmou esse ponto
de vista. Compareceu ao lançamento, na Casa
das Rosas, na avenida Paulista, de 1932: imagens de uma revolução, livro do mesmo Villa,
também editado pela Imesp (imagem na pág.
ao lado). Lá, repetiu que a guerra paulista foi
“um movimento hegemonicamente democrático” e elogiou o livro de Villa como uma grande
contribuição histórica.
A Coleção Paulista é parte de um projeto
maior. Ainda neste ano, o governo quer criar
um Museu da Memória Paulista, na Mooca, tradicional bairro operário paulistano onde o go6
vernador nasceu. O museu abrigará um Centro
de Memória e Documentação de São Paulo. O
modelo é o Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea (Cpdoc), que
funciona na Fundação Getulio Vargas, no Rio
de Janeiro. Pela escolha de Villa como
organizador da Coleção Paulista, a linha editorial a ser seguida não é de complementação,
mas de contestação ao trabalho do Cpdoc, criado em 1973 e administrado durante longo tempo pela neta de Getulio, Celina Vargas.
Villa é autor de uma biografia de Goulart,
considerado o herdeiro de Vargas, na qual multiplica detalhes da vida íntima do ex-presidente, com o intuito claro de desmoralizá-lo. E, sem
qualquer documento relevante para provar sua
tese, atribui às fraquezas pessoais de Goulart
pelo menos metade da responsabilidade pelo
próprio golpe que o depôs. O historiador também é o criador do extravagante conceito de
“ditabranda” (ver a edição anterior de Retrato
do Brasil), com o qual tentou caracterizar como
não ditatorial metade do período dos governos
militares pós-1964 – os primeiros anos, do golpe até o AI-5, em 1968, e os últimos, a partir da
anistia de 1978 até a posse do governo Tancredo
Neves–José Sarney, no começo de 1985.
VARGAS E OS “TENENTES”
Na história da Revolução de 1932, Villa comete um desatino semelhante. A guerra
paulista é a rebelião armada contra o governo
Vargas, organizada a partir de dois partidos
políticos do estado: o pequeno e novo Partido
Democrático (PD, de 1926) e o grande e antigo
Partido Republicano Paulista (PRP, de 1873). O
PD apoiara a Revolução de 1930. Já o PRP pode
ser considerado a viga mestra das forças derrotadas pelo movimento liderado por Vargas.
Representava o grande poder econômico do
País na época, o dos cafeicultores paulistas.
Indicara o paulista Júlio Prestes para presidente nas eleições de 1930, na disputa contra
Vargas, da Aliança Liberal. Prestes ganhou, mas
não chegou a tomar posse, em virtude da vitória armada dos aliancistas.
Vargas chegou ao poder como comandante militar e líder de um grupo de jovens oficiais
das Forças Armadas, conhecidos genericamente como “tenentes” e que, ao longo dos anos
1920, tinham se rebelado contra o coronelismo
e os costumes políticos corrompidos da Primeira República (1889-1930), também chamada de
República Velha.
Com a vitória em 1930, “tenentismo” passou a caracterizar uma corrente política. A definição clássica do termo é a de Virgínio Santa
Rosa (1905-2001), intelectual e político
paraense. No livro O sentido do tenentismo, de
1933, Rosa diz que os “tenentes” constituem a
corrente mais radical dos vitoriosos na Revolução de 1930, a dos que pleiteavam profundas
modificações sociais no País, ao contrário da
corrente moderada, dos que desejavam realizar somente as reformas de natureza política.
Villa redefine o significado do tenentismo a
partir da Revolução de 1932, que, segundo ele,
opôs dois grupos. De um lado, estavam os “tenentes”, um “grupo eclético que pressionava pelo
adiamento das eleições para a Constituinte, previstas para 1933”. Eles “não tinham um projeto
claro para o País”, diz Villa. Seus adversários
“eram as reivindicações dos paulistas”. E, do lado
paulista, completa Villa, estavam os democratas.
É uma redefinição tão radical quanto sem
fundamento. É claro que o conceito de
tenentismo de Santa Rosa merece – como de
fato já mereceu – estudo e crítica. A questão
levantada por Villa é outra, no entanto. Ele
endeusa o PRP e define a revolta da aliança
PD-PRP como uma defesa da “questão democrática”, pura e simples, como “uma espécie de
tesouro perdido, muito valioso, especialmente
em um país marcado por uma tradição conservadora, elitista e antidemocrática”. Esquece
que o PRP era justamente o representante da
tradição conservadora, elitista e antidemocrática da República Velha.
Villa faz o milagre ideológico de recuperar
o PRP na escolha dos cinco primeiros títulos da
Coleção Paulista e seus trabalhos de apresentação. O personagem e o livro principais desses
primeiros títulos são Manuel Ferraz de Campos
Salles (1841-1913), e o livro de sua autoria Manifestos e mensagens. Campos Salles, o paulista
que governou o Brasil de 1898 a 1902, foi também governador de São Paulo e um dos criadores do PRP. No texto de apresentação do livro,
Campos Salles aparece, com razão, como o homem que montou o “mecanismo central da Primeira República”, uma combinação da chamada política dos governadores – o acordo entre
os chefes considerados naturais das oligarquias nos estados – com uma política federal de
arrocho fiscal e saneamento monetário, feita a
partir de um acordo com os credores externos
da dívida brasileira.
Esse mecanismo, diz a apresentação, permitiu ao PRP “controlar o centro da política brasileira por meio de negociações regulares com
as demais oligarquias locais e o comando contínuo dos processos sucessórios”. O problema
dessa apresentação é que seu autor, Júlio
Pimentel, do Departamento de História da Uni-
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nejas e Procellarias; o professor Paulo Duarte
(1899-1984), com a edição de seu livro Agora
nós!, sobre a Revolução Paulista de 1924; e Joaquim Floriano (1826-1902), com a reedição de
sua A província de S. Paulo, um trabalho estatístico e geográfico que D. Pedro II levou à Exposição Industrial da Filadélfia, em 1876.
1924, A OUTRA REVOLUÇÃO
A seleção de nomes sugere uma diversidade de opiniões dentro do campo liberal paulista
que é bem maior que a importância dos políticos apresentados. O moço Bonifácio, sobrinho
de José Bonifácio, o “Patriarca da Independência”, apresentado pelo próprio Villa, é um liberal cujos melhores momentos parlamentares
ocorreram no combate à escravidão. Nessa
frente, no entanto, é um retardatário: ainda em
1867, em defesa dos fazendeiros, pedia tempo
para substituir o “braço escravo” que garantia
as exportações do País.
Ribeiro é mais conhecido por seu romance
naturalista A carne. No livro da Coleção, é crítico das eleições de Campos Salles e Prudente
de Morais pelo PRP. Mostra-se um republicano
decidido, ateu e abolicionista radical. Mas não
se vê sinal de que tenha tido qualquer peso na
política das elites paulistas.
Dos outros dois autores, merece destaque
Paulo Duarte, que foi do PD, fundado por republicanos divergentes do PRP. Ele comandou, em
1932, o trem blindado que apoiava as tropas
rebeladas no Vale do Paraíba, entre São Paulo
e Rio de Janeiro. O texto de apresentação de
Duarte é do conhecido historiador Boris Fausto.
Ele lembra que Duarte é autor de Palmares ao
avesso, sobre sua experiência na Revolução de
1932, livro no qual manifesta sua dúvida sobre
o próprio movimento: admite que ele pode servir para fortalecer o reacionário PRP. Em Agora nós!, o tema é outro: o movimento dirigido
pelo outro grupo político presente na história
de São Paulo daqueles anos, o dos “tenentes” –
a Revolução de 1924, contra o PRP e contra a
República Velha. Derrotados depois de sofrerem intensa repressão – quase 500 mortos e
mais de 4,5 mil feridos –, os “tenentes”, sob o
comando de Miguel Costa, retiraram-se para o
Sul do País após controlarem a cidade por cerca de um mês. No Sul, os revoltosos se uniram
Gilberto Marques/ Divulgação
versidade de São Paulo (DH-USP), a despeito
das cores aparentemente sombrias com que
pinta a ação política de Campos Salles, considera “que não havia alternativa” à sua política
econômica de submissão aos interesses dos
banqueiros internacionais, especificamente,
aos “termos ditados pelos Rothschild”, os donos da banca inglesa. E, por esse motivo, acaba
chegando à conclusão de que a política conservadora de Campos Salles também era a única
possível. Ele termina sua apresentação afirmando que “Campos Salles, dentro dos limites
da política oligárquica da Primeira República,
pensou o Brasil de forma ampla, concebeu seu
papel na América, achou o lugar para o liberalismo possível, governou com austeridade
incomum para os padrões brasileiros, deixou
sua atuação documentada e comentada”.
Campos Salles, cujo reacionarismo é assim
disfarçado, é acompanhado na Coleção Paulista
por quatro outros personagens: José Bonifácio,
o Moço (1827-1886), que teve reeditados seus
Discursos parlamentares; o escritor Júlio Ribeiro (1845-1890), com a publicação de duas séries
de seus artigos políticos e sociais, Cartas serta-
retratodoBRASIL 22
7
Reprodução do livro 1932, Imagens de uma Revolução
vou à escolha de Júlio Ribeiro – filho de pai
americano e nascido em Minas Gerais –, como
um personagem da história das elites paulistas,
Costa também merecia um título. Mas a Coleção Paulista, pelo menos nessa sua primeira
fornada de obras, não aparenta ser voltada para
esse lado do espectro político. Sua preocupação se parece mais com a de Washington Luiz,
o paulista que presidia o Brasil nos idos da Revolução de 1930 e considerava a questão social
como um caso de polícia.
às tropas de Luiz Carlos Prestes, com as quais
formaram a famosa coluna Miguel Costa–Prestes (1925-1927), que percorreu o País fazendo
propaganda armada da ampliação dos direitos
democráticos e de reformas sociais.
Costa se refugiou com Prestes primeiro na
Bolívia, depois na Argentina. De lá, Prestes aderiu ao Partido Comunista e recusou a Aliança
Liberal. Costa voltou com Vargas, passou com
ele por São Paulo, vitorioso. Ali, tornou-se comandante da Força Pública e auxiliar do
interventor no estado, o “tenente” João
Alberto. Miguel Costa fundou em São Paulo o
Partido Popular Paulista. É na tentativa de in8
vasão da sede do PPP, na rua Barão de
Itapetininga, perto da praça da República, no
Centro paulistano, que, a 23 de maio, são feridos e depois morrem os famosos Miragaia,
Martins, Dráusio e Camargo, da sigla MMDC, da
Revolução de 1932. No seu livro, ao contar o
fato, Villa fala de uma grande batalha na qual
os estudantes paulistas mobilizaram armas e
recursos em todo o Centro da cidade para, depois de horas, vencer os militantes do PPP –
que eram, afinal, apenas seis pessoas.
Costa nasceu em Buenos Aires, filho de pais
espanhóis, mas viveu em São Paulo praticamente toda a sua vida. Pelo mesmo critério que le-
DISPUTA DE PREFERÊNCIA
A adulação da elite paulista nos termos das
citadas iniciativas do governo de São Paulo é
uma operação com objetivo claro: as eleições
de 2010. O governador Serra é o grande candidato à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Mas, desde o segundo turno da eleição
de 2002, que ele perdeu para Lula, seu partido,
o PSDB, compete com dificuldade com o PT
pelas doações de campanha do grande
empresariado. Sua adversária provável na disputa pela preferência da elite endinheirada,
concentrada em São Paulo, é a ministra Dilma
Rousseff, candidata de Lula. Infelizmente, no
contexto atual, de baixa mobilização popular,
as eleições muitas vezes se convertem num
espetáculo midiático, financiado por essa elite.
Adular as elites paulistas é uma lástima.
Debatê-las é um tema atual. O vencedor do
mais recente festival de documentários “É
tudo verdade” foi Cidadão Boilesen, de Chain
Litewski, sobre o assassinato, por guerrilheiros urbanos, em 1971, no bairro paulistano dos
Jardins, de Henning Boilesen, presidente do
Grupo Ultra. O empresário dinamarquês é considerado o principal mediador dos contatos entre os empresários paulistas e os militares no
apoio financeiro para a montagem da Operação Bandeirantes (Oban), responsável pela
criação do centro de tortura sistemática de
presos políticos em São Paulo. Em A ditadura
escancarada (Companhia das Letras, 2002),
Elio Gaspari conta detalhes do encontro entre
o então ministro Delfim Netto e banqueiros,
cerca de 15 pessoas, no qual cada um contribuiu para a Oban com o equivalente, na época,
a 110 mil dólares. Gaspari afirma que, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp), eram feitas reuniões ao cabo das quais
se recolhiam as contribuições com o mesmo
objetivo. Diz que empresas também participavam com contribuições em espécie: a Ford e a
Volkswagen forneciam carros; o Grupo Ultra,
caminhões; e a Supergel, refeições congeladas para o centro de torturas.
retratodoBRASIL 22
Folha Imagem
Clima:
OS MALES DO
AQUECIMENTO
LOCAL
O inverno se aproxima
e, com ele, agravam-se
os problemas de saúde.
Mas não apenas a
natureza é responsável
por isso | Rafael Hernandes
Maio já foi conhecido como o “mês das
noivas”, numa referência à grande quantidade de casamentos realizados no período. Hoje, segundo as estatísticas oficiais, maio perde em número de casamentos para setembro e dezembro. O
mês, que corresponde à segunda metade
do outono e antecede, portanto, o inverno, é mais lembrado atualmente pelo
aumento do número de ocorrências de
problemas respiratórios em algumas
grandes cidades brasileiras.
O inverno é naturalmente propício para
a elevação do número desses casos. Durante a estação, diversos fatores, alguns naturais, contribuem para a piora das condições
de saúde da população. Redução de ventos
e chuvas, as bruscas mudanças de temperatura (as chamadas inversões térmicas), além
da tendência à concentração de pessoas em
lugares fechados e sem ventilação, favorecendo o contágio por agentes infecciosos,
são algumas delas. E, claro, a queda da temperatura, que exige um dispêndio maior de
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energia por parte do organismo para se
manter aquecido, o que contribui para a redução de sua resistência.
No inverno, registra-se um índice até
40% maior de casos de resfriado, gripe,
bronquite, asma e até pneumonia. As principais vítimas estão entre os grupos com
menor proteção imunológica, idosos e crianças. Pesquisa realizada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) sobre mortes por causas não
externas (mortes naturais) constatou que,
para cada diminuição de um grau na temperatura abaixo de 20°C (o que é comum
no inverno), há um aumento de 4% no número de mortes de crianças e de 5,5% no
de idosos.
EMARANHADO DE CLIMAS
Além dos aspectos naturais, muitos dos
problemas de saúde são produzidos por
mudanças decorrentes da ação humana.
São Paulo é um dos locais do País onde o
clima tem sido mais intensamente alterado devido a elas. Isso ocorreu especialmente no século passado, em consequência
do processo de urbanização, como mostra o Atlas Ambiental do Município, elaborado pelas secretarias municipais do Verde
e Meio Ambiente e de Planejamento. Trata-se de um estudo que compara o clima
atual da cidade e sua diversidade com o
encontrado pelos europeus no século XVI,
quando ali só habitavam poucas tribos in-
dígenas. Na época da colonização, predominavam quatro climas em toda a área
ocupada hoje pela cidade, os quais, devido a fatores como relevo, altitude e circulação dos ventos, dividiam-se em 26
microclimas – que, como o próprio nome
dá a entender, são uma variação do clima
geral da região que os cerca, encontrados
em uma área de pequena extensão.
“Existiam elementos naturais na cidade que condicionavam diferenças
microclimáticas. Por exemplo, os dois
grandes rios [Tietê e Pinheiros] correm
por dois grandes vales em que há um
microclima natural”, diz a geóloga Patrícia Sepe, uma das organizadoras do estudo. “Na várzea do Tietê, havia um tipo de
clima; na do Pinheiros, outro.” Ela destaca também que, devido à altitude, locais
como aquele onde hoje está a avenida
Paulista e a Serra da Cantareira também
tinham climas diferenciados.
Hoje, devido às intervenções humanas,
a variedade do século XVI foi multiplicada por três, transformaram-se em um emaranhado de ao menos 77 microclimas. Diferentes tipos de construção (vertical ou
horizontal), a existência de bairros
arborizados, a predominância de comércio ou indústria, a presença de favelas, parques e áreas de proteção ambiental, etc.
criaram essa diversidade. As maiores diferenças produzidas por essas modificações realizadas pelo homem, chamadas
antrópicas, são sentidas com as mudanças
9
QUANTO MAIS URBANIZADO... NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, AS ZONAS CENTRAL E LESTE SÃO
AS MAIS QUENTES E ONDE OCORREM MAIS MORTES POR DOENÇAS RESPIRATÓRIAS E CARDÍACAS
de temperatura, de umidade do ar e até
do regime de chuvas.
Segundo a professora Magda Lombardo, do Centro de Análise e Planejamento Ambiental da Universidade Estadual Paulista (Ceapla-Unesp), a raiz do
problema está na forma como a cidade
foi urbanizada: “Asfalto, depois construções, que acabam com as áreas verdes,
arbóreas e corpos d’água. A cidade se
tornou um grande concreto armado,
verticalizado”, diz. Esse processo transformou aceleradamente, em pouco mais
de cem anos, a pequena São Paulo da segunda metade do século XIX em uma
megalópole, que viu sua população crescer de 30 mil para mais de 10 milhões de
habitantes. Essa explosão fez a cidade,
concentrada inicialmente em torno de seu
centro histórico, espalhar-se pelas dezenas de bairros de periferia atuais, onde
vive, muitas vezes em péssimas condições
de moradia, a população mais pobre.
Esse processo desorganizado de urbanização exigiu obras de “melhorias”, na tentativa de minorar o problema das inundações
e enchentes, por exemplo. Muitas dessas realizações foram executadas com a canalização
e a entubação de córregos que cortam o
município, sobre os quais foi construída boa
parte das grandes avenidas da cidade. Aos
poucos, as várzeas dos cursos d’água foram
ocupadas e a impermeabilização do solo acabou por comprometer a capacidade natural
de absorção das águas das chuvas. O que era
apresentado como uma solução para as enchentes acabou transformando-se numa de
suas causas.
Segundo Lombardo, com “a construção da cidade totalmente impermeável”,
10
sem arborização e a concentração da população nas zonas central e leste, estas se
tornaram o epicentro das mudanças climáticas, especialmente do fenômeno das chamadas “ilhas de calor”. As ilhas de calor
são eventos dinâmicos que ocorrem durante o dia, responsáveis por agudas variações de temperatura. Em São Paulo, em
2007, foi batido o recorde de variação de
temperatura em um mesmo dia – num
mesmo momento, foi registrada uma variação de 12°C em locais diferentes da cidade, diz Lombardo.
DIFERENÇA DE 9°C
Em menor intensidade, esse tipo de
evento ocorre também em outras grandes
e até médias cidades brasileiras. Medições
já comprovaram diferenças de aproximadamente 8°C em Porto Alegre, de 4,6°C
em Salvador e de quase 4°C em Belo Horizonte. Mesmo uma localidade menor,
como Piracicaba, cidade do interior
paulista, chegou a apresentar a assombrosa diferença de 9,2°C entre a temperatura
medida nas zonas rural e urbana.
De forma geral, as grandes e médias cidades brasileiras sofrem alterações climáticas devido a um conjunto de fatores. Um
deles é o asfaltamento excessivo de ruas, o
que faz que, durante o dia, o calor da radiação solar seja intensamente absorvido em
vez de refletido. Isso eleva a temperatura e
diminui a umidade do ar, um dos principais fatores para a criação das “ilhas”.
A redução das áreas verdes também
tem seu papel, já que a vegetação é responsável por manter umidade e temperaturas mais baixas por meio da evapotranspiração (eliminação da água capta-
da pelas plantas e não utilizada na
fotossíntese, realizada por meio da
transpiração das folhas). As áreas verdes
também contribuem para a redução da
amplitude térmica, impedindo que haja
grande variação entre os períodos mais
quentes e frios do dia.
A aglomeração de pessoas pode, igualmente, contribuir para a elevação da temperatura. Segundo Lombardo, ao contrário das plantas, cujas trocas de calor com
o ambiente o esfriam, as nossas o aquecem, pois o ser humano emite calor e,
quando reunido em grande quantidade,
eleva a temperatura local como um todo.
Em São Paulo, os bairros com maior aglomeração urbana, como a Lapa, também
correspondem aos locais mais quentes.
Helena Ribeiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica que essas alterações climáticas e atmosféricas aumentam a incidência de determinadas doenças, pois fragilizam sobremaneira o organismo dos habitantes dos centros urbanos. Da mesma forma que o corpo tem
de gastar mais energia para se aquecer no
frio, “quando você tem um aumento da
temperatura atmosférica, o indivíduo força seu metabolismo para manter a temperatura corporal em nível constante de
37°C”. Dessa forma, a energia do corpo
é desviada para manter sua temperatura
na faixa de normalidade. Ele é obrigado
a acelerar o metabolismo, a respiração e
as trocas gasosas. O coração tem de trabalhar com maior intensidade, o que pode
causar estresse nos sistemas circulatório
e respiratório, ainda mais nas faixas mais
suscetíveis da população. “É por isso que,
quando há uma onda de calor na Europa,
retratodoBRASIL 22
RICO X POBRE UMA FAVELA RODEADA POR UM BAIRRO DE
ALTA RENDA É VÍTIMA DAS VARIAÇÕES CLIMÁTICAS
são basicamente os idosos e cardíacos que
falecem”, diz Ribeiro.
A poluição do ar das cidades, favorecida pelas condições do inverno, é igualmente prejudicial. Como o organismo humano precisa de certa quantidade de oxigênio para funcionar, é necessário respirar
mais vezes para compensar a composição
alterada do ar. “Por isso não se recomenda fazer exercícios em lugares poluídos”,
diz Ribeiro. Isso acelera ainda mais o metabolismo, o que pode levar ao desenvolvimento de doenças respiratórias e cardíacas. “As [doenças] respiratórias são causadas também pela poluição inalada, que
causa a produção de muco no sistema respiratório, como uma defesa. Com isso, as
pessoas têm os brônquios obstruídos,
além de possíveis reações alérgicas”, diz a
professora.
Em São Paulo, as áreas mais densamente urbanizadas (zonas central e leste) são
as campeãs em casos dessas enfermidades,
não por coincidência. Além desses problemas, a mudança climática paulistana é responsável também pela alteração do regime de chuvas. Como a cidade está a apenas algumas dezenas de quilômetros da
AE
Lombardo: aquecimento local é confirmado
Dentre o emaranhado de causas que levam às mudanças dos climas locais e a seus perversos
efeitos sobre a população, destacam-se os relacionados com as condições de vida da população mais pobre. Uma amostra disso pode ser observada no estudo conduzido por Helena
Ribeiro, vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP, juntamente com pesquisadores
do Departamento de Saúde Ambiental da entidade.
A pesquisa foi realizada no bairro do Morumbi, situado na zona sul paulistana. O trabalho
comparou o microclima da favela Paraisópolis – local densamente urbanizado, sem arborização
e sem ventilação, encravado em meio ao bairro (ver “Paraisópolis, um lugar como poucos” em
Retrato do Brasil edição 21) – com o seu entorno. A região apresenta, no geral, características
muito diferentes das específicas da favela: é muito arborizada e tem densidade populacional
baixa (além da renda média muito superior).
Segundo Ribeiro, “na favela existe uma oscilação térmica maior [que a do bairro ao redor]
durante o dia. De madrugada é mais frio, e durante o dia é mais quente, o que leva a uma
amplitude térmica maior, que faz mal à saúde. Há uma diferença entre calor e frio em um curto
espaço de tempo”, diz. O resultado: entre os habitantes de Paraisópolis, ocorre uma proporção
muito elevada de doenças do sistema respiratório, maior que a do restante do bairro.
costa, recebe boa parte de umidade das
brisas marítimas, trazidas pelos ventos. No
entanto, quanto esta chega, não se espalha
por toda a região, pois a brisa se depara
com grandes massas de ar quente na parte
central da cidade, onde ficam as maiores
ilhas de calor.
Quando esse encontro se dá, a umidade é carregada com o ar quente (e mais
leve) para as camadas mais altas da atmosfera, onde se choca violentamente com o
ar frio encontrado lá, causando as fortes
e corriqueiras chuvas de verão, o que resulta em um número cada vez maior de
enchentes, especialmente nas regiões sob
as ilhas ou próximas a elas. Estudo do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP apontou que,
entre 1999 e 2002, 60% das chuvas que
ocasionaram enchentes na região foram
causadas pelo encontro de ilhas de calor
com brisas do mar.
SEM COBERTURA VEGETAL
No caso da capital paulista, há ainda um agravante: os locais onde costumam ocorrer essas precipitações são
muito distantes das reservas de abastecimento de água da cidade, localizadas
ao norte e ao sul do município. Parte
da umidade e das chuvas que deveriam
ocorrer nessas áreas e encher os reservatórios é “perdida” no meio do caminho, tornando mais complicado o abastecimento de milhões de pessoas.
Como se percebe, as mudanças climáticas não são apenas algo que ocorre
em escala global e cujas consequências
só serão sentidas no futuro, quando, segundo pesquisadores, a elevação da temperatura da atmosfera terrestre, causada pelas emissões de poluentes, poderá
retratodoBRASIL 22
levar ao derretimento do gelo dos polos,
à elevação do nível dos mares e à
savanização da Amazônia. Para Lombardo, “é preciso pensar primeiro no aquecimento local, porque esse já é verdadeiro, confirmado”. Segundo ela, a cidade
de Nova York teve acréscimo de 0,8°C
no último século, e São Paulo, de 1,2C°.
“Tenho certeza da interferência do homem na questão local, pois é possível
medir, localizar, mais fácil de aferir que
as mudanças globais. Essas só são medidas por modelos, previsões”, diz.
A geóloga Patrícia Sepe considera importante que sejam adotadas medidas
para reduzir o número de ilhas de calor
em São Paulo, para impedir que as enchentes se tornem ainda mais catastróficas:
“Para uma cidade ser sadia, ela tem de
ter 30% de cobertura vegetal espalhada
de forma homogênea pelo território”, diz
Lombardo. “Nas áreas centrais das regiões metropolitanas, esse índice às vezes não chega a 1%”.
Em São Paulo, a prefeitura divulgou
a meta de construir cem parques até 2012,
prometendo a criação de áreas verdes por
todo município, um objetivo que dificilmente se realizará. Sepe diz que parte do
problema vem da falta de locais apropriados. “Toda vez que você vai lotear
uma grande área, as chamadas glebas, o
loteador é obrigado a doar um percentual
da área ao município para a instalação de
escolas, postos de saúde, ruas e áreas verdes. Muitas das áreas verdes atuais são resultantes desses loteamentos”, explica. Segundo ela, a partir da década de 1970, no
entanto, a maior parte dos loteamentos
localizados foi feita de modo irregular e
não observou a doação obrigatória de
áreas à prefeitura.
11
Crise:
O NÓ DO
ORÇAMENTO
1. NA ONDA
No dia 3 de fevereiro, ao participar
de uma cerimônia de entrega de casas
populares a moradores do Morro Dona
Marta, no Rio de Janeiro, o presidente
Lula disse que estava otimista com os
rumos da economia nacional, que estaria mais preparada do que outras para
enfrentar a atual crise econômica mundial: “Sempre trabalho com a hipótese
de que poderemos ter uma retração na
economia brasileira, mas não acredito
que o Brasil sofra o mal que estão sofrendo os países desenvolvidos. Estou
convencido de que, se há um país no
mundo preparado para a economia se
recuperar mais rapidamente, esse país
é o Brasil”.
O presidente parece confiar no que fez
antes e, para o Orçamento deste ano, não
anunciou qualquer grande mudança. Sua
grande esperança é o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado
em 2007 e carro-chefe de seu segundo
mandato, com previsão de investimentos
em infraestrutura na ordem de 634 bilhões de reais, dos quais apenas 67,8 bilhões do Orçamento fiscal e da seguridade social – a parte do Orçamento que inclui a arrecadação de impostos e contribuições. O PAC é, principalmente, um
programa de investimentos das estatais –
a maior parte da Petrobras – e da iniciativa privada.
Apesar do atraso no cronograma de
muitas obras, o PAC até que vai bem.
Os órgãos do governo desembolsaram,
entre 2007 e 2008, 18,7 bilhões de reais,
aproximafdamente 56% dos empenhos
feitos no biênio. As estatais federais, por
sua vez, investiram 50,6 bilhões em 2008,
quase 83% do autorizado, ante 37,64 bilhões de reais no ano anterior, 78% do
autorizado. Nos setores de energia, pe12
tróleo e gás, de cerca de 119,5 bilhões
de reais em investimentos previstos por
empresas estatais e privadas, foram investidos efetivamente 97,1 bilhões de
reais nos dois anos, também perto de
80% do previsto.
Boa parte da confiança do presidente vem também dos resultados obtidos
nos últimos quatro anos. Nesse período,
o Brasil mais do que dobrou seu ritmo
de expansão em relação às décadas de
1980 e 1990. O Produto Interno Bruto
(PIB), soma de todas as riquezas produzidas no País, teve crescimento médio
anual de 4,7% entre 2004 e 2008. O aumento foi 5,7% em 2004, 3,2% em 2005
e 4% em 2006. E, mesmo após meados
de 2007, quando irrompeu a crise no
mercado de imóveis nos EUA, que acabou arrastando consigo outros setores
da economia daquele país e o levou à
recessão já em dezembro de 2007, o Brasil parecia distante do olho do furacão.
O PIB brasileiro ainda cresceu 5,7% em
2007 e 5,1% em 2008. O País não crescia tanto assim desde o período 19761981. E, mesmo no segundo semestre de
2008, enquanto o PIB dos países ricos
começava a se contrair, os economistas
discutiam por aqui a tese de descolamento das economias emergentes – da nossa em particular – da crise que afetava
gravemente o centro do mundo capitalista desenvolvido.
Entre 2004 e 2008, de um modo geral, o governo Lula surfou numa onda
de bonança. Bateu recordes de arrecadação, retomou investimentos e ampliou a rede de proteção social. Hoje
11 milhões de famílias, ou 40 milhões
de pessoas, são atendidas pelo Bolsa
Família. O salário mínimo também teve
reajuste real de 45,5% no período – 17,8
milhões de pessoas recebem benefícios
previdenciários e assistenciais de até um
salário mínimo.
Nesse ambiente otimista, em agosto do ano passado, o governo federal
enviou ao Congresso sua proposta de
Lei de Orçamento Anual (LOA) – que
juntamente com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Plano Plurianual de Investimentos (PPA) são as três
leis que concretizam o Orçamento Público, de acordo com a Constituição. A
LOA previa um aumento expressivo das
receitas, das despesas e dos investimentos do Poder Executivo para 2009.
Além do reajuste de 12% do salário
mínimo, que acabou definido em janeiro deste ano (de 415 reais para 464,72
reais), ela previa que o total de investimentos, incluindo verbas do governo
federal e das estatais federais, deveria
subir para 119,1 bilhões de reais em
2009, em comparação com os 95,8 bilhões de reais projetados para 2008.
A LDO estimava que as receitas primárias do governo federal – obtidas com
a arrecadação de impostos, contribuições
e da seguridade social – teriam um aumento de 12,5% sobre os resultados de
2008. Já as despesas cresceriam por volta
de 12%, cerca de 13% as despesas obrigatórias – com funcionários, previdência
– e cerca de 11% as despesas livres, não
obrigatórias, chamadas de discricionárias,
dentre as quais também se incluem os investimentos, que passariam de cerca de
135 bilhões para pouco mais de 150 bilhões de reais.
A proposta do Orçamento ainda previa um elevado “superávit primário”, de
3,8% do PIB. Esse superávit merece um
capítulo à parte em nossa história. Para
entendê-lo melhor, é preciso ver outro número importante do Orçamento apresentado pelo governo ao Congresso em mearetratodoBRASIL 22
Com a crise, para estimular a economia, as contas
públicas deveriam prever mais despesas. Ao contrário,
o governo está reduzindo as previsões de gasto. É
porque está amarrado a um modelo que não está
voltado para o crescimento do País | Lia Imanishi Rodrigues
dos do ano passado: o das receitas totais a
serem obtidas em 2009, de 1,664 trilhão de
reais. Esse total correspondia a mais que o
dobro das chamadas receitas primárias, estimadas em 805 bilhões de reais.
A receita total não é composta apenas
por impostos e contribuições devidas por
pessoas físicas e empresas. Inclui dinheiro
obtido pelo Estado brasileiro com a venda, a empresas e pessoas físicas, de títulos
retratodoBRASIL 22
da dívida pública, feita para obter recursos
suficientes para pagar, basicamente, essa
própria dívida. A cada ano, o Orçamento
deve prever o pagamento dos compromissos que vencem no ano e mais os juros desses compromissos. Além disso, o governo
brasileiro, desde o segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso, comprometeu-se a reduzir a dívida do País nesses papéis, que atualmente é de cerca de 1,38
trilhão de reais. O superávit primário é justamente a quantidade de impostos e contribuições que devem ser arrecadados acima
do necessário para que o governo pague
todos os seus gastos obrigatórios, mais todos os gastos discricionários. Com esse excedente, deve pagar parte da dívida pública, para que ela não cresça a ponto de sair
de controle. Mas isso é o que se verá, com
mais detalhes, na terceira parte deste texto.
13
14
os com carteira assinada e os informais.
Fevereiro, segundo ele, deu um alívio nessa queda: o saldo foi positivo em 9 mil
postos de trabalho com carteira assinada. “Mas, se comparado a fevereiro do
ano passado, quando foram contratados
200 mil com carteira assinada, o saldo é
ridículo”, afirma Sicsú. O desemprego no
Brasil, que foi de 6,8% no ano passado,
em março estava em 8%.
Em dezembro passado, o Congresso
votou o projeto da LOA deste ano. Os
parlamentares já não estavam tão otimistas quanto o governo quando elaborou o
projeto. Cortaram 18,1 bilhões de reais nas
despesas: 9,7 bilhões de reais de custeio, 8
bilhões de reais de investimentos e 0,4 bilhão em despesas de pessoal. Em janeiro,
o próprio governo tinha tomado precauções: o Ministério do Planejamento determinou um contingenciamento, um bloqueio temporário de 37,2 bilhões de reais
nas despesas não obrigatórias aprovadas
pelo Congresso. O contingenciamento de
despesas é promovido todo início do ano
para, conforme determina a legislação, assegurar o cumprimento da meta de superávit primário, ou seja, da parcela da arrecadação destinada ao abatimento da dívida pública.
Este ano, ele foi maior, quase o dobro do contingenciado no ano passado.
Nos últimos anos, esse bloqueio era relaxado no correr do ano, à medida que a
receita tributária sempre confirmava ou
mesmo superava as projeções iniciais.
Neste ano, no entanto, a arrecadação de
impostos no bimestre janeiro–fevereiro
caiu 10 bilhões de reais. Em março, continuou caindo. No dia 30 de março, depois de várias reuniões que envolveram o
presidente da República, seus conselheiros econômicos – dentre os quais se destacam o ex-ministro Delfim Netto e Luiz
Gonzaga Belluzzo –, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, e os
ministros da área econômica Guido
Mantega e Paulo Bernardo, o Ministério
do Planejamento publicou o decreto que
determina o contingenciamento oficial.
Para isso, o governo refez suas estimativas de desempenho da economia,
basicamente para pior. O principal indicador revisto foi o do crescimento do
PIB, estimado em 4,5%, cerca de um ano
antes, reduzido para menos da metade,
2%. Com essa queda no crescimento da
economia, a previsão de receita caiu muito. Estimava-se arrecadar 805,2 bilhões
em impostos e contribuições na lei aprovada em dezembro (o Congresso cortou
apenas 6 bilhões da estimativa do governo). Com a reprogramação, a estimativa
foi para 756,9 bilhões de reais, mais de
50 bilhões abaixo da proposta original.
Reprogramada a receita, fez-se a estimativa de reprogramação da despesa. O
decreto do governo fixou em 25 bilhões
de reais o contingenciamento de gastos
não obrigatórios previstos na Lei do Orçamento, valor correspondente, basicamente, a investimento e custeio. Descontadas todas as despesas obrigatórias, a
redução incide sobre dotações orçamen-
DOS CUMES AO VALE AS DESPESAS
COM JUROS , COMO PORCENTAGEM DO
PIB, ALCANÇARAM PICOS EM 1999 E 2003,
HOJE, ESTÃO QUASE NO NÍVEL DE 1997
MUITAS BOLSAS FAMÍLIAS POR ANO
DESDE 2005, AS DESPESAS COM JUROS
EQUIVALEM ANUALMENTE, EM MÉDIA, A 12
VEZES O VOLUME DO PROGRAMA SOCIAL
9
170
8
140
DESPESAS COM JUROS,
EM BILHÕES DE REAIS
(1997-2009)
7
100
6
DESPESAS COM JUROS
COMO % DO PIB (1997-2009)
5
60
2000
Fonte: Banco Central do Brasil
*estimativa, Paribas
2005
2009*
2009*
1997
2005
40
4
2000
Em fevereiro passado, já se via, nitidamente, que os tempos de bonança tinham passado. O Ministério do Trabalho e do Emprego anunciou que 655 mil
postos de trabalho com carteira assinada haviam desaparecido em dezembro.
Mas foi exatamente no dia 10 de março,
quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou as contas nacionais do último trimestre de 2008,
que a mudança foi escancarada e mostrou-se dramática. Houve uma ruptura
no padrão de crescimento dos últimos
quatro anos, disse a pesquisadora Isabella
Nunes, do órgão federal. “Nunca se viu
uma queda tão forte num espaço de tempo tão curto.” A ruptura de padrão fez
que a produção de bens e serviços – que
crescia num ritmo anual de mais de 7%
até setembro – no último trimestre sofresse uma retração que, se anualizada,
seria de -13,6%. Os industriais decidiram cortar gastos com investimentos
produtivos – aquisição de máquinas,
equipamentos e construção civil –, e a
produção fabril decresceu 7,4% de outubro a dezembro. No último mês do
ano passado, a produção industrial chegou a cair 14,5% em relação a dezembro de 2007, o pior resultado da indústria desde 1991, quando a série do IBGE
teve início. O instituto também mostrou
que o consumo das famílias, que vinha
crescendo há 21 trimestres consecutivos,
mais de cinco anos, caiu 2% no último
trimestre de 2008, no pior resultado desde o terceiro trimestre de 2003.
Segundo Isabella, a atual crise bateu
mais forte e mais rapidamente na indústria do que a crise do início de governo
do presidente Fernando Collor de
Mello, de 1990; a do México, em 1995; a
do racionamento de energia, de 2001; e
a crise política de 2002, ano da eleição
de Lula.
O resultado das Contas Nacionais do
IBGE para o primeiro trimestre deste ano
não apresentavam sinais de grande melhora no início de abril. O economista
João Sicsú, diretor da Diretoria de Assuntos Macroeconômicos (Dimac) da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, calcula que, de dezembro a março, o País perdeu mais de
1,2 milhão de postos de trabalho, entre
1997
2. A RUPTURA
Fonte: Banco Central do Brasil
*estimativa, Paribas
retratodoBRASIL 22
O PESSIMISMO DA INDÚSTRIA EM
APENAS 2 MESES, AS PROJEÇÕES DA CNI
MUDARAM RADICALMENTE
O ORÇAMENTO 2009, EM 3 ETAPAS
COMO ERA O ORÇAMENTO, COMO FOI
APROVADO E COMO FICOU APÓS O
CONTINGENCIAMENTO
Lei do
Projeto da Lei Orçamento
do Orçamento Anual 2009
Anual 2009* aprovada**
PROJEÇÕES DO DESEMPENHO DA ECONOMIA BRASILEIRA EM 2009
1/12/2008
PIB
2,00 %
PIB industrial
1,80 %
Desemprego
8,20 %
Consumo das famílias
3,00 %
Investimento
3,00 %
IPCA
4,80 %
Selic
11,25 %
Juros reais
6,60 %
Déficit público nominal/PIB
1,90 %
Superávit primário/PIB
3,35 %
Dívida líquida/PIB
37,00 %
Câmbio*
2,25
Exportações**
170,00
Importações**
155,00
Saldo balança comercial**
15,00
Saldo balanço conta corrente**
-30,00
1/3/2009
0,00 %
-4,40 %
9,10 %
-0,90 %
-4,40 %
4,20%
9,00 %
5,20 %
2,10 %
2,70 %
37,90 %
2,22
157,00
139,00
18,00
-25,00
Fonte: Confederação Nacional da Indústria
*reais por dólar **em bilhões de dólares
tárias de 151 bilhões de reais. Se for confirmada, representará um corte gigantesco. De suas despesas de custeio e investimento, o Ministério das Cidades perde
36,1%; o do Turismo, 86,4%; o da Defesa, 28,4%; o dos Esportes, 85,8%; o da
Justiça, 43,3%; o da Integração Nacional,
35,7%; o da Agricultura, 51,5%; o do
Desenvolvimento Agrário, 32,7%. Mesmo
ministérios voltados para áreas sociais críticas teriam perdas expressivas: o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
teria corte de 21,5%; o da Educação, de
10,6%; o da Saúde, 6,6%. Só o dos Transportes perderá pouco, 0,54%.
O ministro Paulo Bernardo, do Planejamento, avalia que o contingenciamento, em vez de ser relaxado, pode aumentar: “É maior a chance de ter restrição
adicional do que folga”, disse ele. E, para
compensar a queda na receita, disse
Bernardo, o governo começará por adiar
a contratação de servidores aprovados
em concursos públicos, com o que pretende economizar 1,1 bilhão de reais.
Com o contingenciamento anunciado,
que bloqueia as iniciativas de investimento de quase todos os ministérios, o governo Lula viu sua situação se inverter. O
presidente gozava de uma popularidade
enorme, de acordo com as pesquisas de
opinião pública tradicionais. No início do
ano, tivera uma reunião quase apoteótica
com milhares de prefeitos, em Brasília.
Com a crise, além de conter os gastos,
começou a fazer esforços para reanimar
a economia. Nem uma coisa nem outra
foram bem recebidas por todos. O governo já tinha cortado o Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI) dos automóveis, para favorecer essa indústria. O
IPI, juntamente com o Imposto de Renda (IR), é um dos tributos que fazem parte do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos EsretratodoBRASIL 22
Reprogramação
da LOA
2009***
Crescimento
real do PIB
4,50%
3,50%
2,00%
IPCA no ano
4,55%
4,50%
4,50%
Crescimento
da massa
salarial nominal
14,08%
12,95%
6,29%
Câmbio R$/US$
1,71
2,04
2,3
111,87
76,37
47,27
13,99%
13,57%
10,80%
Barril de petróleo,
em US$
Taxa Selic, no ano
*agosto de 2008 ** dezembro de 2008 ***março de 2009
tados. A União é que os recolhe e os repassa regularmente para os outros dois
entes da federação. No bimestre, a receita do IPI, especialmente em função da
isenção, caiu 26%. O corte teve grande
impacto na arrecadação dos estados e
municípios mais pobres. O governador
de Pernambuco e presidente do PSB,
Eduardo Campos, no começo de abril,
criticou duramente a medida. Segundo ele,
a atual política de combate à crise do governo federal tem prejudicado estados e
municípios do Norte e do Nordeste do
País. Pouco industrializados, disse ele ao
jornal Valor Econômico, eles só têm recebido o lado ruim das medidas, a redução
dos repasses federais.
A intenção da equipe econômica do
governo, até o impacto da divulgação dos
dados do IBGE, em março, era perseguir
a meta de um superávit primário de 3,8%
do PIB, estabelecida pelo governo na
LDO e na LOA aprovadas em 2008. Não
se pretendia utilizar um mecanismo,
avalizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2005, que permite ao
governo deduzir da meta de superávit
primário 0,5 ponto percentual para gastos no Programa Piloto de Investimentos (PPI), no qual se inclui o PAC. O governo estimava ainda que poderia economizar mais 0,5% do PIB para alimentar o
Fundo Soberano do Brasil (FSB), aprovado no Congresso para ser usado com
vistas a aquecer a economia doméstica em
momentos de crise. Na prática, o esforço de economia de receitas primárias seria, então, de 4,3% do PIB.
Com a deterioração da situação, esses planos desmoronaram. O governo
incluiu os gastos do PAC no PPI, reduzindo, na prática, o superávit para 3,3%
do PIB. E até mesmo a oposição, que
criou dificuldades e limites para a aprovação do FSB, passou a defender o seu
uso para compensar municípios e estados
afetados pela perda de receitas decorrentes das isenções feitas para estimular setores industriais.
No início de abril, apesar de o ministro da Fazenda, Guido Mantega, continuar a afirmar que o governo não mexeria no superávit primário de 3,8% – ou
de 3,3%, excluindo-se os investimentos
do PPI –, no próprio ministério havia
documentos que estimavam que, sem um
corte maior na economia de recursos para
pagar os juros da dívida pública, o governo federal teria de reduzir mais os investimentos e outros gastos programados, além do que foi contingenciado em
março. Também não conseguiria realizar
a meta que é considerada a prioridade das
prioridades: as obras de infraestrutura do
PAC programadas para o ano.
Por que o governo Lula não faz o que
a maioria dos países está fazendo? Por que
não baixa os juros básicos? Por que não
aumenta os gastos do governo incorrendo em déficits para estimular a economia?
Por que o ministro Mantega fala em corte
de despesas de custeio e o ministro Paulo
Bernardo fala em interrupção da contratação de funcionários concursados? A taxa
de juros americana, por exemplo, que já
era baixa, de 1% ao ano, caiu para 0,25%
em meados de dezembro passado. E o
Orçamento dos EUA, anunciado no início de março, prevê um déficit de 1,75
trilhão de dólares para este ano, o equivalente a 12% do PIB americano. Com isso,
a diferença entre o quanto o governo arrecadará e o quanto gastará será equivalente
a mais do que o PIB do Brasil.
3. O NÓ
Delfim Netto, um dos conselheiros
econômicos do presidente, após a reunião
com Lula do início de março para tratar
da crise, apresentou aos jornalistas o que
o governo não faria: tomar medidas que
elevassem a relação entre a dívida líquida
do setor público e o PIB, de 35,8% em
2008. É famosa a Carta aos Brasileiros, de
meados de 2002, quando o então candidato Lula se comprometeu, se eleito, a
manter a política de pagar a dívida pública contraída pelos governos liberais, até
então duramente criticada por seu partido e outros grupos da oposição. De lá
para cá, o governo Lula cumpriu rigorosamente essa sua promessa.
15
O governo Fernando Henrique Cardoso teve duas fases. A primeira, até
1998, quando manteve uma política de
juros altíssimos para atrair capitais estrangeiros e valorizar a moeda nacional,
para estabilizá-la. Nesse período, a dívida pública disparou para mais de 50%
do PIB. As políticas atuais, a de pagamento da dívida pública com um superávit expressivo e a de juros altos internos para estimular os que tomam dólares lá fora a juros mais baixos, para se
aproveitar da diferença entre as duas taxas, são uma continuidade da política de
estabilização e foram adotadas com a
crise vivida pela economia brasileira em
fins de 1998. Naquela ocasião, o Brasil
quebrou, teve de internar-se no FMI, que
o socorreu com três pacotes de ajuda, o
último dos quais no ano da eleição que
Lula ganhou. E, simultaneamente, teve
de criar uma Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF) – que Fernando Henrique
Cardoso negociou secretamente com o
FMI, como Retrato do Brasil já relatou
diversas vezes. Essa norma estabeleceu
o superávit primário expressivo como
centro da política fiscal do País.
Como vimos, no Orçamento Geral da
União, as receitas primárias vêm dos impostos e contribuições e das chamadas
receitas não administradas, que incluem
venda de concessões pela União, dividendos recebidos por empresas das quais o
governo participa e outras. Já as receitas
financeiras vêm de empréstimos e, principalmente, da emissão de títulos da dívida pública federal (DPF), que é determinada pelo Tesouro.
Embora os valores financeiros do
Orçamento – tanto os das despesas quanto os das receitas – sejam iguais ou maiores do que os primários, mais que o dobro, no caso deste ano, como mostramos,
essa parte do Orçamento é quase oculta,
não há nenhum destaque na imprensa para
os seus números. Os títulos da dívida do
setor público – do dinheiro que o governo toma emprestado – vencem regularmente, e praticamente todas as semanas
o BC, em nome do Tesouro Nacional,
realiza leilões de venda de títulos novos
para substituir os títulos que estão vencendo. A parte financeira do Orçamento
seria, então, mera rolagem da dívida.
Mas não é bem assim. Os juros brasileiros são uma espécie de anomalia inter16
nacional. O País tem as maiores taxas do
mundo desde 1992, ainda no governo
Collor, quando teve início o esforço de
estabilização da moeda brasileira pela
atração de capitais internacionais interessados em se aproveitar da diferença de
taxas, entre nosso mercado financeiro e o
dos países ricos do exterior. Ainda hoje,
numa lista de mais de cem países produzida pela agência de avaliação de risco
Standard & Poor’s, a Selic (Sistema de
Liquidação e Custódia do Banco Central),
a taxa básica praticada pelo BC, é a terceira mais alta do mundo (11,25% ao
ano), só abaixo das praticadas na Islândia
(18%) e na Turquia (11,50%).
Até a quebra do País em 1998, a dívida externa e a dívida interna do Brasil
cresceram. A partir do primeiro acordo
com o FMI, do fim daquele ano, a dívida
externa começou a ser paga. O superávit
primário expressivo – de 2,92% do PIB
em 1999 e crescente até 2005, quando
chegou a 4,35% – foi a forma de conter a
demanda interna e estimular as exportações, com as quais se obtiveram as divisas para pagar o endividamento no exterior. A dívida pública tem papel central
nessa história.
O BC usa a dívida para fazer uma
política monetária de contração do mercado interno. Ele compra, no mercado
secundário, os títulos públicos já vendidos ao mercado nos leilões públicos. E,
com esses títulos, regula a oferta da moeda no mercado interno com vistas a conter o consumo. Para isso usa como referência a Selic, fixada pelo Comitê de Política Monetária (Copom). Quando há
muito dinheiro no mercado e os juros
começam a cair abaixo da meta estipulada pelo BC para a Selic, o banco oferece
títulos do Tesouro a juros mais altos e
paga mais pelo dinheiro – com isso tira
dinheiro do mercado, ou seja, reduz a
liquidez. Normalmente, qualquer banco
central faz isso. Mas faz também a operação oposta. Quando tem pouco dinheiro
no mercado, injeta dinheiro, compra títulos públicos, dá liquidez ao mercado, reduz a taxa de juros. Em relação aos juros
praticados em outros países, no entanto,
sistematicamente, desde 1992, o BC brasileiro, na média, sempre se empenhou em
manter os juros mais altos.
Durante o recente boom da economia
mundial – entre 2002 e 2007 –, a econo-
mia internacional cresceu como nunca, as
commodities que o Brasil vende subiram de
preço espetacularmente e o País acumulou, como muitos outros emergentes,
grandes reservas – no caso, cerca de 200
bilhões de dólares, que seriam suficientes
para cobrir a dívida externa pública e a
dívida externa privada juntas. Isso permitiu ao presidente Lula dizer que nossa dívida externa estava zerada.
Mas as reservas não vão efetivamente
pagar a dívida. No mesmo período de
crescimento da economia mundial, o capital estrangeiro realizou enormes aplicações aqui, principalmente na compra de
empresas, mas, mais ainda, em investimentos de curto prazo, em aplicações na
bolsa e mesmo em títulos do Tesouro. As
reservas são, em boa medida, a contrapartida desses investimentos externos de
curto prazo. Enquanto o investidor de
fora mantiver o dinheiro aplicado no País,
esse dinheiro compõe as reservas.
Os prejuízos do País com a política
de juros aparecem de várias formas. As
reservas estão aplicadas a juros internacionais, que tradicionalmente já são baixos, mas, nesse primeiro trimestre de
2009, estão praticamente negativos. Enquanto isso, o BC está pagando ao investidor na dívida pública interna 11,25% ao
ano. A diferença entre o juro externo e o
interno vira prejuízo do BC que é inteiramente coberto pelo Tesouro.
Outro problema das reservas é que,
quando o investidor fica satisfeito com seus
lucros, quer repatriar seu dinheiro. Se ele
entrou com 1 milhão de dólares e a moeda estava cotada a 2 reais, ele converteu
seu dinheiro em 2 milhões de reais. Se aplicou o montante a 10% ao ano, por exemplo, gerou 2,2 milhões de reais ao fim de
12 meses. Se, quando saiu, o dólar estava a
1,70 real, ele levou 1,3 milhão de dólares.
Ganhou 30% no ano. Foi isso o que aconteceu no período em que o real se valorizou, de 2005 até setembro do ano passado. Foram realizados enormes ganhos pelos capitais que especularam na valorização de ações na bolsa brasileira, por exemplo, e na valorização do real, movimentos
que lhes permitiam ganho duplo com a
bolsa e a moeda nacionais.
Nos discursos oficiais do governo, nos
relatórios sobre as contas do País divulgados pelo BC, a economia parecia “blindada” contra a crise até pelo menos o fim
retratodoBRASIL 22
do ano passado. Isso ficou claro quando,
em 20 de março, o BC divulgou as atas
das reuniões do Copom de outubro e
dezembro. Em outubro, o comitê avaliou
“que o risco de materialização de um cenário inflacionário menos benigno segue
elevado” e, em dezembro, que havia “riscos para a dinâmica inflacionária, derivados da possível persistência da elevação
da inflação observada neste ano [2008]”.
Para afastar um suposto risco de inflação de demanda interna, o BC manteve a taxa de juros em 13,75% anuais nessas duas reuniões. Foi só em janeiro que
ele resolveu adotar uma política monetária mais expansionista, baixando os juros
em um ponto percentual, para 12,75%.
E, dois dias depois da divulgação dos
dados do IBGE, em março, uma segunda reunião do Copom reduziu em mais
1,5 ponto a taxa, para 11,25%.
Esses dois cortes na Selic representam para o governo uma economia de
até 14,5 bilhões de reais em gastos com
juros da dívida pública em 2009 (caso a
Selic continue em 11,25% até dezembro).
Mas o dinheiro poupado, de acordo com
a LRF, não pode servir para a realização de investimentos ou o pagamento de
outras despesas que não aquelas com abatimento de encargos da dívida pública.
A lei negociada com o FMI pelo governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso em 1998 começou a valer em
2000. Ela alterou o Código Penal Brasileiro com o objetivo de estabelecer penas para “crimes contra as finanças públicas”. Como exemplo, “ordenar despesa não autorizada por lei”, que é autorizar despesa não prevista no Orçamento. A pena para o administrador
público que transgride a regra é de um a
quatro anos de prisão.
A LRF também determina que, quando o BC lucra em suas transações, esse
lucro não pode ser usado pelo Tesouro
para gasto público; deve ser aplicado no
pagamento da dívida pública. Já quando
o BC tem prejuízo, o prejuízo é arcado
pelo Tesouro. Entre o fim de 2006 e o de
2007, as reservas internacionais do País
passaram de 85,8 bilhões de dólares para
180,3 bilhões de dólares. No mesmo período, a moeda americana se desvalorizou 16,8% frente ao real. Com o dólar
valendo menos, todas as aplicações do
banco nessa moeda (como os títulos da
retratodoBRASIL 22
dívida americana, por exemplo) passaram
a valer menos, dando prejuízo ao BC.
Agora, com a disparada do dólar
provocada pelo agravamento da crise internacional, a situação se inverteu. O BC
lucrou 140 bilhões de reais em 2008, revertendo um prejuízo de 47,5 bilhões de
reais que havia apurado em 2007. O resultado positivo do ano passado foi transferido ao Tesouro, mas os recursos só
podem ser usados no abatimento de parcelas da dívida. Ou seja, existe um verdadeiro nó no Orçamento que impede que
os recursos primários e financeiros sirvam
à execução de obras e programas necessários para o crescimento e o desenvolvimento tecnológico do País.
4. A ESPADA
Diz a lenda que Alexandre, o Grande,
ganhou um presente de Zeus por ter cortado, com sua espada, o complicado “nó
górdio”, que por 500 anos desafiava os que
tentavam desamarrá-lo. Talvez o nó do
Orçamento também não se resolva com
delicadezas. Em uma entrevista coletiva
concedida no início de março em Brasília,
Sicsú espantou os jornalistas acostumados
a cobrir as falas de autoridades econômicas e monetárias brasileiras quando defendeu que o BC deveria promover um corte
de 5,75 pontos percentuais na taxa Selic
até outubro. Ele disse que, com isso, o
governo economizaria 30 bilhões de reais
e poderia manter os gastos públicos.
17
“O BC tem de acelerar”, explicou ele
a RB dias depois. “Tem de reduzir o espaço entre uma reunião e outra do
Copom. Atualmente é de 45 dias, é muita
coisa. Numa crise, o governo deve estar
em assembleia permanente. O BC também tem de ter esse grau de mobilização.”
Ele diz que o BC precisa parar de se
preocupar com a inflação. “Só aqui no
Brasil alguém pode ter essa desconexão
com a realidade para pensar em inflação
quando temos acumulados aí, em três
meses, mais de 1,2 milhão de desempregados. A expectativa de inflação está em
torno de 4%. Grande parte das instituições financeiras está dizendo que o Brasil
vai crescer 1%, e algumas delas estão dizendo que o Brasil vai ter crescimento
negativo. Se na cabeça desses analistas financeiros a economia, quando cresce, gera
inflação, então, se ela não vai crescer, ela
não vai gerar inflação.”
Para Sicsú, não há “a menor conexão
entre juros e inflação”, há ligação “entre
juros e crescimento, geração de emprego.
Na entrevista coletiva, os jornalistas perguntavam: ‘Mas, se baixarmos os juros
dessa forma, não vamos ter inflação?’ Eu
falei: ‘Vamos ter inflação por conta de quê?
Porque as pessoas estão comprando muito, os produtos estão faltando nas prateleiras, os preços começaram a subir?’ Se
acontecer isso, ótimo, nós seremos os únicos do mundo que teremos inflação de
demanda em 2009. Se tivermos inflação
por excesso de crescimento em 2009, que
viva a inflação! Quando ela chegar, vamos
tratar dela, porque já teremos resolvido o
problema do desemprego”.
Sicsú diz que a diferença dessa crise
para as anteriores é que ela tem como
núcleo os países ricos: “Nas outras, os
países em desenvolvimento estavam em
crise e as recomendações de aumentar os
juros vinham dos países desenvolvidos.
Mas os países desenvolvidos não fazem
o que eles recomendam. Quando estão
em crise, baixam a taxa de juros. Agora
não dá para eles dizerem para aumentar
os juros. Os EUA fizeram a redução da
taxa de juros mais brusca de toda a sua
história. Só os brasileiros que têm interesses de rentistas podem pensar em cortar gastos públicos e manter os juros nesse patamar”.
Para ele, o Brasil pode crescer muito
mais pelo estímulo dos gastos públicos do
18
que pelo investimento do setor privado:
“O setor privado já se retraiu. Para impedir isso, o BC tinha de ter promovido uma
redução drástica da taxa de juros já em
agosto ou setembro do ano passado. Aí
sim estimularia o investimento privado.
Agora, há um espaço para o investimento
público. Miséria e pobreza dão espaço para
fazer políticas sociais. Quem mais empregava no período pré-crise, de janeiro a setembro, era o setor privado. De outubro
até janeiro, o setor público empregou mais
do que o privado. Isso mostra que o aparelhamento que o Estado brasileiro precisa está em curso. Tal como ocorria no período pré-crise, estavam sendo feitos concursos, gente estava sendo efetivada. Agora estão pressionando o governo, dizendo
que não é hora de concurso, de contratar,
mas acho que essa é uma oportunidade de
transformarmos essa crise em mudanças
estruturais que terão impactos
macroeconômicos. Podemos sair dessa
crise com taxas de juros e de câmbio compatíveis com os países mais desenvolvidos
do mundo. Podemos sair com uma maior
cobertura social. O gasto social mediante
ampliação de programas como o Bolsa
Família e o Bolsa Atleta tem velocidade
máxima de impacto na capacidade de gerar emprego e renda, pois quem recebe
esse gasto transforma-o quase imediatamente em consumo. Agora, o gasto com
pagamento de juro, por exemplo, quase
não gera renda e emprego”.
Ouvindo Sicsú, parece coisa simples
reduzir os juros e aumentar os gastos públicos para estimular a economia. Por
que será que o governo não faz isso de
modo mais radical? Em um subsolo do
anexo II da Câmara dos Deputados, em
Brasília, trabalha o economista e assessor parlamentar Flávio Tonelli, um dos
maiores especialistas brasileiros quando
o assunto é orçamento público. Em
2003, no primeiro ano do governo Lula,
ele disse à repórter que o fato de as metas de resultado primário e as metas fiscais da LDO condicionarem o conteúdo e a execução do Orçamento era uma
inversão que estava de acordo com o
modelo econômico: sem capacidade de
intervir na produção e construção de
infraestrutura pública, o Estado se reduzia ao papel de fixar regras claras e
estáveis para garantir o retorno financeiro dos investidores privados. Ele citou
na ocasião uma frase do ex-ministro do
Planejamento e atual banqueiro João
Sayad: “O déficit público é o programa
de renda mínima do capital”. “Essa expressão sintetiza o fato de que, atualmente, no Brasil, como em muitos países, um
dos rendimentos do capital é obtido do
Estado, por meio dos juros da dívida
pública, que reduzem os gastos sociais
dos orçamentos”, disse Tonelli.
Hoje, ele afirma que, após dois mandatos do presidente Lula, a situação não
mudou muito: “O programa de renda
mínima do capital continua rolando. O
dinheiro que o governo paga pelos títulos, para os especuladores, os rentistas,
ele continua pagando a juros altos. Alguns dados mostram que o Bolsa Família melhorou a renda de 11 milhões de
famílias. Mas, do ponto de vista do Estado, isso foi uma permissão. Ou seja, o
Estado não diminuiu os juros para dar
dinheiro ao Bolsa Família. Ele não diminuiu o que dá para o andar de cima
para dar mais para o andar de baixo. Ele
aproveitou a arrecadação recorde de
2008 para dar mais de 96 bilhões em juros para o andar de cima [os juros pagos pelo governo federal em 2008] e 13
bilhões para o de baixo, com o Bolsa
Família”.
Tonelli destaca outro aspecto que não
se alterou entre 2003 e 2008: o excesso
de superávit primário. “De 2003 a 2008,
a meta de superávit não só foi mantida
como foi praticado um superávit muito
acima dos níveis legais. Mecanismos como
o PPI não foram utilizados, mesmo estando à disposição do governo. O governo poderia ter lançado mão desse mecanismo desde 2005, quando o FMI deu
aval para ele. Vamos ver se, com essa crise, ele realmente lança mão disso.”
Usando dados da Secretaria do Orçamento Federal, da Receita Federal, do
Orçamento de 2008, da Proposta Orçamentária de 2009 e de relatórios do IBGE,
Tonelli mostra que desde 2006 o governo poderia ter gastado mais do que gastou descontando 0,5 ponto percentual da
meta de superávit para fazer investimentos com o PPI. No ano passado, por
exemplo, poderia ter empregado 20,2
bilhões, mas gastou apenas 7,8 bilhões.
“Só nesses três anos deixou de investir
mais de 15,3 bilhões de reais, que foram
para baixo do colchão”, diz.
retratodoBRASIL 22
Tonelli lembra que gasto público
“não é necessariamente investimento.
Muitas políticas públicas não funcionam
sem despesas de custeio. Mas, se a arrecadação está caindo e a meta de superávit continua constante, alguém vai
perder, e esse alguém, com certeza, vai
ser o orçamento primário”, no qual estão as despesas de custeio. “Cortar no
custeio é bastante grave”, diz. Serão
afetadas as escolas, os hospitais, a proteção social, os assentamentos de reforma agrária, o financiamento dos demais
programas de governo que não sejam a
dívida, etc.
Tonelli acrescenta que, além de ser a
renda mínima do capital, “o déficit público é um entrave para a produção.
Quem vai montar uma fábrica se pode
ganhar, sem risco, 11,25% ao ano com os
títulos do governo? Como o setor privado vai para o investimento produtivo,
colocar em risco o seu capital, enquanto
pode ter 11,25% sem risco?”.
Ele concorda com Sicsú quanto ao
corte radical da taxa de juros: “É preciso reduzir a taxa Selic. Não vou dizer
nem para patamares europeus nem
americanos, que estão praticando juros
reais negativos [quando a taxa de inflação prevista é maior do que a dos juros
praticados], mas, se o BC baixasse imediatamente quatro ou cinco pontos percentuais, de 12% para 8%, para 7%, nós
teríamos investimentos produtivos, seria viável as pessoas colocarem o dinheiro em circulação”.
Tonelli, assim como Sicsú, acha que
a crise é uma oportunidade para o governo construir infraestrutura: “O País
não tem estrutura, por exemplo, para explorar toda a riqueza do pré-sal. Precisamos de um determinado nível de maturidade de investimento. Vamos exportar gasolina, nafta, diesel, ou vamos exportar óleo cru? Com a infraestrutura
atual, vamos exportar óleo cru, porque
não temos refinaria suficiente para fazer
outra coisa. Teríamos de aproveitar este
momento para construir refinarias. Nós
temos dinheiro e temos de fazer investimentos públicos. O BNDES [Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], por exemplo, deveria ter
uma linha de crédito para montar fábricas de ração. Se o sujeito aparece querendo plantar soja, ele deveria dizer: ‘LaretratodoBRASIL 22
mento, mas agora o crédito é para fábrica de ração’. O BNDES está apoiando
os exportadores antigos, porque não tem
um projeto que condicione o crédito
público a um determinado resultado de
longo prazo. Falta ao governo a capacidade de dirigir o País para outros
paradigmas”.
O economista diz que “o governo, até
agora, pôde dar uma esmola para os pobres, com o Bolsa Família, e um saco de
dinheiro para os ricos, com os juros dos
títulos da dívida pública. Mas, com a crise,
ele vai ter de escolher. E ele tem de ser
muito fiel aos interesses dos especuladores
para manter esse superávit e os juros nesse
patamar. Porque, em consequência dessa
política econômica, a crise será ainda maior
para os brasileiros, crescerá o desemprego e diminuirá a proteção social, os bilhões
em cortes no Orçamento prejudicarão a
vida de milhões”.
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Sociedade:
UM DRAMA EM
BUSCA DE EXPIAÇÃO
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A mídia e políticos conservadores confundem a
opinião pública ao dizerem que a pedofilia é coisa
de “monstros”. No entanto, nem todo agressor
sexual de crianças é pedófilo e nem todo pedófilo
agride crianças | Léo Arcoverde
O pequeno bairro de Jardim Alpino II
está situado na margem direita da rodovia Washington Luiz, na periferia
de Catanduva, a 390 quilômetros a
oeste da capital paulista, na região de
São José do Rio Preto, interior do estado de São Paulo. É uma área desolada, que nasceu a partir da construção de 267 casas populares com 3
metros de largura por 4,5 metros de
comprimento. O lugarejo começou a
ser habitado em 1992, e seus primeiros moradores pagavam, na época, o
equivalente a 17 reais de mensalidade (hoje pagam 97 reais). As ruas
eram, até menos de cinco anos atrás,
de barro. A maioria das casas permanece sem acabamento, com blocos de
concreto cinza à vista, rejuntados precariamente com cimento.
Até certa madrugada, em meados de
dezembro do ano passado, o Jardim Alpino II era um lugar desconhecido e remoto até para a maior parte dos 115 mil
catanduvenses. Foi quando policiais
militares prenderam um homem de
meia-idade no bairro vizinho, o
Residencial Cidade Jardim. Tudo começou com a denúncia de Roseli
Cristina Prudêncio, 30 anos, diarista,
mãe de quatro filhos, que acionou o telefone 190 depois de estranhar o fato de
sua filha, de 8 anos, ter chegado em casa,
por volta das 22h de 14 de dezembro,
com uma foto.
“Na hora em que eu vi a foto da minha filha, da cintura para cima, de roupa, mas com os olhos cheios de lágrimas, o sangue subiu”, lembra Roseli.
O autor da fotografia era José Barra
Nova de Melo, o Zé da Pipa,
retratodoBRASIL 22
bicicleteiro, 46 anos, que se apresentava a crianças da região como um
fazedor de pipas, antes de levá-las para
casa e supostamente abusar sexualmente delas.
“Ah! Eu catei a foto e fui na casa
dele. Chamei, chamei... E o Zé da Pipa
não saía. Aí dois dos meus filhos o
chamaram e ele saiu.” Não satisfeita
com as explicações do bicicleteiro
sobre a fotografia, Roseli ligou para
a polícia. Uma hora e meia depois, os
policiais chegaram e começaram o interrogatório. Qual o sentido daquela
foto? O bicicleteiro se defendeu, dizendo que sua ideia era usar a imagem da menina numa pipa que ele e a
menina fariam juntos: um “papagaio
personalizado”.
Já passava da meia-noite e a esquina da rua Ipatinga com a Marandiba
concentrava um público que só situações dessa natureza são capazes de
atrair. Intrigados com a história, os policiais resolveram revistar a
bicicletaria. Queriam tirar a limpo tudo
aquilo que os vizinhos vinham lhes
contando desde que chegaram ao local: que crianças, muitas crianças, a
maioria delas moradoras do Jardim
Alpino II, eram molestadas pelo
bicicleteiro ali dentro. Que ele teria,
ainda, o hábito de filmá-las enquanto
abusava delas.
A bicicletaria ocupa um dos dois
cômodos erguidos nos fundos de
uma casa de esquina em construção
na rua Ipatinga. Lá, os policiais
constatam algo que batia, em tese,
com o que diziam os vizinhos: eles
apreenderam 28 fitas de vídeo VHS,
aparelho MP4, que reproduz DVDs,
brinquedos e balas.
Zé da Pipa recebeu voz de prisão
por suspeita de crime de atentado violento ao pudor com base no depoimento de duas crianças que afirmaram terem sido molestadas pelo bicicleteiro.
Ele foi levado para o plantão policial.
O boletim de ocorrência dizia: “No
local, o suspeito teria foto de dois menores [...] Em contato com um dos
menores, ele disse que teve contato
sexual por diversas vezes com o suspeito e que o homem teria praticado
sexo com o garoto. Entretanto, a última relação teria ocorrido há três meses. Na noite de domingo [14 de dezembro de 2008] os menores informaram que não houve contato sexual,
mas o suspeito teria passado a mão nas
costas e no cabelo de dois menores”.
Com relação ao material apreendido, recaiu a suspeita de violação ao artigo 241 do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), o qual sofrera alteração três semanas antes, quando o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva
sancionou, em meio ao Congresso
Mundial para o Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, no Rio de Janeiro, uma lei criada
pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, do Senado Federal, para punir pornografia infantil
na internet. Segundo a nova legislação, quem produz, reproduz, dirige,
fotografa, filma ou registra cena de
sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente passa a
estar sujeito à pena de reclusão de quatro a oito anos, além de multa.
23
Mesmo com tudo isso sobre seu costado, Zé da Pipa neg ou qualquer
envolvimento com crianças do Jardim Alpino II e acabou liberado. O inquérito policial prosseguiu.
ESCÂNDALO NACIONAL
Fim do ano passado, 29 de dezembro,
faltavam quinze minutos para as dez horas
da manhã. Cristiane chegou à Escola Municipal Nelson Macedo Musa, onde três dos
seus quatro filhos estudam, sem grandes
expectativas: é o dia de entrega dos boletins com as notas obtidas pelos alunos na
prova de recuperação e ela já sabe que seu
filho de 10 anos terá de cursar, no ano que
vem, novamente o terceiro ano (antiga segunda série) do ensino fundamental.
Cristiane tem 38 anos e uma história
triste. Nascida no Recife (PE) e criada em
Olinda (PE), ela deixou a casa onde morou até os 11 anos ao ser expulsa pela mãe.
O motivo? Cristiane se queixou a ela do
fato de seu padrasto a molestar sempre,
“quase todos os dias”, durante três anos,
enquanto a mãe estava fora, trabalhando
como diarista.
“Eu tinha oito anos quando meu padrasto começou a me estuprar. E o pior:
minha mãe achava que eu era a culpada,
que eu dava corda para ele fazer aquilo
comigo! Eu sou a segunda de quatro irmãos: eu e meu irmão mais velho, filhos
do meu pai, que tinha deixado minha mãe
quando eu era bem novinha, e outros dois
menores, filhos do meu padrasto. Esses
dois pequenos estudavam, e, como o meu
irmão começou a trabalhar muito cedo, de
ambulante, e minha mãe também trabalhava fora, eu passava a maior parte do tempo em casa, com esse meu padrasto.”
O padrasto era quem a salvava dos espancamentos da mãe. “Ela pegava eu [sic]
e meu irmão mais velho, amarrava a gente
com uma corda e batia sem dó.” Cristiane
conta que via nos olhos da mãe o ódio ressentido desde que o primeiro marido a deixou. O padrasto, enquanto a molestava,
usava isso como moeda de troca: dizia que,
se Cristiane contasse algo à mãe, não seria
mais salva das surras que sofria junto com
o irmãozinho... Mesmo assim, Cristiane
contava.
Cristiane deixou Olinda e foi trabalhar
como empregada doméstica na Vila
Mariana, bairro da zona sul paulistana. Seis
anos depois, casou-se com o carteiro que
24
passava toda semana na casa da patroa,
onde morava. O carteiro, que é de
Catanduva, a levou para morar na cidade.
É pai de sua filha de 17 anos e do filho de
10. Viveram juntos durante anos, até que
se separaram. Pouco depois, Cristiane decidiu viver com Zé Jardineiro, seu vizinho.
Cristiane conversava com o diretor da
escola, Edmilson Sidnei Marques, 47 anos,
pedagogo e professor de educação física,
há quase duas décadas e meia trabalhando
com crianças. A escola que dirige tem 840
alunos matriculados, uma média de 28 estudantes por funcionário.
“Você sabia, Cris, que o Zé da Pipa foi
preso?”
“Sei, meu filho me contou que ele tava
vendendo cerol [material composto de
cola e vidro usado na confecção de pipas,
proibido de ser comercializado] lá na
bicicletaria. Por isso, os policiais o pegaram...”, respondeu ela já se encaminhando na direção do portão da escola para
voltar para casa.
“Não, não, não! Ele foi preso por
pedofilia!”
Para Cristiane, aquelas palavras foram
como um soco. Um pensamento, de imediato, irrompeu em sua cabeça: “Esse não
é o mesmo Zé da Pipa com quem meu filho anda faz uns seis meses?”. Daí, a lembrança: meses antes, no fim de julho, o
menino pediu a ela e a Zé Jardineiro para
ir até a casa de Zé da Pipa aprender a consertar bicicletas e fazer pipas. Na época,
seu marido foi na casa do bicicleteiro para
averiguar que tipo de ambiente o menino
estaria frequentando e quais companhias
teria por ali. “Não se preocupa, seu Zé Jardineiro, que seu filho vai ser sempre muito
bem tratado aqui. Pode ficar sossegado...”,
disse o bicicleteiro.
A conversa de Cristiane com Edmilson não precisava ir adiante. Ela, enquanto juntava peça com peça do quebra-cabeça que se tornou a vida de seu
filho nos últimos meses, culminando na
sua reprovação, ensaiou passar mal ali
mesmo. A volta para casa, uma caminhada de dez minutos, foi penosa.
Ao chegar, aos prantos, o marido a
acudiu. Queria saber o motivo daquilo
tudo. Já não tinha conhecimento de que o
menino seria reprovado? Foi quando Cristiane contou o que havia sabido por
Edmilson.
Zé Jardineiro, desnorteado sobre que
rumo tomar – afinal, sabia-se, Zé da Pipa
estava solto por aí, – decidiu seguir o conselho de um amigo do bairro: foi procurar a imprensa, botar a boca no mundo! À
Rádio Jovem Pan Catanduva fez um apelo, em forma de entrevista de uns dez minutos, para que pais do lugar onde vive que
tivessem qualquer desconfiança quanto ao
comportamento de seus filhos e sobretudo desconfiassem de que eles frequentavam, por algum motivo, a bicicletaria do
Zé da Pipa, denunciassem.
A denúncia fez que mães, muitas que
assistiram, acabrunhadas, ao episódio da
prisão do Zé da Pipa com uma desconfiança martelando na cabeça, fossem à Justiça.
Resultado: em menos de duas semanas a
investigação teve de ser retomada. Dias
depois, descobriu-se algo maior: que
William Mello de Souza, 19 anos, sobrinho de Zé da Pipa, e dois travestis menores de idade participariam de um esquema
de aliciamento de crianças. Zé da Pipa e o
sobrinho foram presos e mantidos sob custódia no Centro de Detenção Provisória
de São José do Rio Preto, enquanto os
menores foram mandados para a Fundação Casa, antiga Febem. Todos foram denunciados pelo Ministério Público, e o inquérito, encerrado.
Inconformadas, mães de crianças supostamente molestadas voltaram à carga
para denunciar que havia muitos outros
suspeitos além dos quatro detidos. A denúncia, que se desenhava a cada novo depoimento de uma criança que se dizia abusada, agora era outra – e muito mais grave: a de que Zé da Pipa e seus três comparsas integrariam uma rede de molestadores de crianças formada por outros seis
suspeitos, dentre eles o médico Wagner
Rodrigo Brida Gonçalves, filho do também médico Wagner Gonçalves,
endocrinologista muito conhecido em
Catanduva, e o empresário José Emanuel
Volpon Diogo, casado com uma das herdeiras da poderosa usina de açúcar e álcool
Cerradinho, uma das maiores da região.
Depoimentos de quase 20 crianças dão
conta de que as vítimas eram molestadas na
casa do médico, sempre no período da tarde. Por quê? Simples: por participarem de
um chamado projeto de contraturno escolar desenvolvido por meio de parcerias da
prefeitura local com entidades do terceiro
setor, alguns alunos da escola de Edmilson
estudavam de manhã e passavam a tarde em
retratodoBRASIL 22
Reprodução
uma ONG ligada a uma importante escola
particular da cidade, para onde eram levados num ônibus da prefeitura.
Uma notícia especialmente devastadora para Zé Jardineiro, já que suas duas filhas menores, de 8 e 5 anos, participavam
do projeto e afirmavam que eram levadas
para a casa do médico para serem molestadas. Conseguiram precisar, por meio de
fotografia, até o nome de cada um dos
suspeitos.
O ônibus da prefeitura pegava os alunos, por volta do meio-dia, num ponto que
fica na parte lateral da escola, fora do campo de visão dos funcionários do estabelecimento. No esquema de aliciamento, de
acordo com depoimentos de crianças que
constam do inquérito policial, existiria uma
caminhoneta modelo S10, de propriedade de um dos supostos molestadores, que
apanhava as crianças no local em que elas
aguardavam o ônibus.
A essa altura, o caso tornou-se um escândalo nacional. Representantes da CPI
da Pedofilia e da Polícia Federal (PF) foram a Catanduva para colher informações
e tentar descobrir se a suposta rede local
de molestadores de crianças tinha ramificações em São José do Rio Preto, São Paulo e Rondônia. Os parlamentares ouviram
depoimentos de suspeitos e de familiares
das vítimas, que falaram com o rosto coberto por máscara para preservar a identidade das crianças.
Hoje, a suspeita é de que pelo menos
retratodoBRASIL 22
dez pessoas componham uma rede de molestadores que abusaram de cerca de 50 crianças de 5 a 12 anos. O desafio da dupla de
delegados Silas José dos Santos e Margarete
Franco, nomeados para investigar o caso
em meados de março, será justamente elaborar um inquérito que inclua provas materiais que sustentem os depoimentos das
crianças supostamente molestadas, fazendo
da suspeita uma tese de acusação que será
analisada posteriormente pela Justiça após
chancela do Ministério Público.
A “CÓPULA VAGÊNICA”
Instituído pelo decreto-lei número
2.848, de 7 de setembro de 1940, o Código
Penal brasileiro não prevê um tipo específico para pedofilia. Por esse motivo, o repórter não usou (nem usará), em momento algum desta história, o termo pedófilo para
descrever os molestadores ou autores de
violência sexual contra crianças.
Em vários países, há dispositivos que
tornam a pedofilia um crime, mas, no Brasil, para punir essa modalidade de agressão sexual é necessário se valer de outros
crimes tipificados pelo Código Penal,
como estupro, atentado violento ao pudor,
presunção de violência, lesão corporal,
corrupção de menores e, se for o caso,
homicídio.
A punição, porém, se efetua basicamente condenando o agressor ou pelo crime de estupro – “constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou
grave ameaça” – ou pelo crime de atentado violento ao pudor – “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Para ambos, a pena estipulada é de reclusão de seis a dez anos.
O promotor de Justiça André Nogueira da Cunha, que está envolvido na investigação do caso de Catanduva, explica que
inquéritos envolvendo molestadores de
crianças não são investigações simples de
serem feitas: “A investigação de pedofilia
é complicada porque envolve, primeiro,
uma questão muito íntima, que é o sexo.
Segundo, pelo fato de envolver crianças e
adolescentes como testemunhas, o que torna o processo mais dificultoso. Por isso se
exigem os estudos sociais, técnicos e psicológicos que vão aferir até que ponto
aquela informação presente no depoimento é imaginação ou fato”.
Chegando ao Judiciário, os casos de
crimes sexuais vão se diferenciar entre atentado violento ao pudor e estupro única e
simplesmente por uma evidência: se houve ou não a conjunção carnal, conhecida
no mundo jurídico, também, por “cópula
vagênica”.
“Tecnicamente, o ato sexual é a cópula
vagênica”, diz Cunha. “O atentado violento
ao pudor engloba todos os outros atos libidinosos que não envolvam a conjunção
carnal. Por essa razão, o estupro só pode
ser caracterizado quando envolve uma
mulher como vítima.”
O que quer dizer, na prática, que, se
uma mulher de seus 40 anos obrigar, mediante violência, um menino de 6 anos a
fazer sexo com ela, esse ato vai ser caracterizado como atentado violento ao pudor. Jamais estupro. Outro exemplo: se um
homem maior de 18 anos praticar sexo
anal com um menino ou menina e isso for
comprovado judicialmente, ele será condenado, da mesma forma, pelo crime de
atentado violento ao pudor.
A instituição do ECA reforça a presunção da violência ao se praticar ato sexual
com um menor de 14 anos, mesmo quando
houver o alegado consentimento da criança ou adolescente. Isso acabou com a chance
de o agressor afirmar que a menina ou o
menino queria praticar sexo ou até pediu.
Qualquer caso desse tipo pode recair sobre o costado do agressor o crime de estupro ou de atentado violento ao pudor.
>>
25
Reprodução
>>
A popularização da internet mudou radicalmente tanto a prática de crimes sexuais contra crianças e adolescentes quando
o seu combate. Ela estimulou a propagação desse crime ao facilitar a troca de material pornográfico infantil e aproximou os
predadores de suas vítimas potenciais –
inocentemente expostas nos chamados
sites de relacionamento. Só em 2008, a
Safernet Brasil, organização não governamental que cataloga denúncias de crimes
cibernéticos, recebeu 57,5 mil denúncias de
pornografia infantil eletrônica – uma média de quase 160 por dia.
OS BOY LOVERS
Com a sanção da lei criada pela CPI
da Pedofilia para punir a pornografia infantil na internet, o cerco policial aos
chamados boy lovers, como se denominam
alguns desses agressores nos sites de relacionamento, se fechou, muito pelo fato
de tornar crime a simples posse de material pornográfico infanto-juvenil. Quanto
à competência sobre a investigação, a mudança trazida com a nova legislação é brusca: se o processo de veiculação e acesso
de material pornográfico infantil se der no
âmbito estadual, cabe à Polícia Civil, ao
Ministério Público e à Justiça do estado
dar curso ao processo. Agora, havendo a
comprovação de que esse material pornográfico foi acessado em outros pontos do
território nacional ou do exterior, o processo de elucidação do crime ficará a cargo da PF, do Ministério Público e da Justiça federal.
Instalada em março de 2008, como
consequência da Operação Carrossel I, da
PF, que desbaratou uma rede de molestadores de crianças na internet, a CPI da Pedofilia,
do Senado Federal, completou um ano sem
que se atingisse o grande objetivo de seu presidente, o senador Magno Malta (DEM-ES):
a tipificação, no Código Penal, do crime de
abuso sexual contra crianças, denominado
pedofilia e encarado como crime hediondo,
com pena de 30 anos.
“Não vou propor nada menor do que
isso”, bradava o senador dias antes de a CPI
ser instalada. “Hoje ficam juntando um
monte de coisa: aliciamento de crianças,
atentado violento ao pudor, formação de
quadrilha... Chega um bom advogado e
consegue descaracterizar. O cara sempre
fica livre!” Malta prometeu: “Será uma CPI
corajosa. Vamos pegar todo mundo. Tenho
28
muito material. Há muitas redes internacionais infiltradas no Brasil para a prática da
pedofilia e do tráfico de pessoas”.
A euforia, ao que parece, ocultava dois
possíveis trunfos certamente calculados
por Malta àquela altura. Primeiro: o impacto midiático que a CPI teria, pela natureza do tema tratado. Segundo: o lastro
eleitoral que as notícias sobre as atividades da CPI dariam a seus integrantes de
maior destaque.
Malta sabe de cor e salteado que tipo
de colheita se faz depois de protagonizar
uma comissão de inquérito de grande popularidade: em 1999, ele presidiu a CPI do
Narcotráfico, que ajudou a mandar para a
cadeia 348 pessoas, incluindo o traficante
Fernandinho Beira-Mar, e deu a visibilidade que ajudou Malta a, três anos mais tarde, na eleição de 2002, ser eleito com 867,5
mil votos, o senador mais votado na história do Espírito Santo, o que consagrou
uma carreira política meteórica iniciada dez
anos antes, quando Malta se elegeu vereador de Cachoeiro de Itapemirim.
REAÇÕES DE VINGANÇA
Como presidente da CPI da Pedofilia,
Malta procura fundir a imagem de defensor das crianças vítimas de abuso sexual à
sua condição de pastor evangélico da Igreja Batista, arvorando-se, ao final, como o
líder religioso destemido que, ao lado de
Deus, vai “enjaular” os pedófilos de toda
parte do Brasil, onde quer que atuem.
Sob esse manto nasceu a hoje badaladíssima disposição do Congresso para tratar de um assunto tão delicado, liderada
por um parlamentar que acha que pedofilia
não é doença, diferentemente do entendimento da medicina. “Só se for 5%, 95% é
safadeza”, Malta costuma afirmar.
As ações de Malta são reverberadas
por parte dos jornalistas, sempre no encalço do senador em seu périplo em busca dos “monstros pedófilos”. É o caso
de José Luiz Datena, ex-repórter esportivo e apresentador do telejornal policial
Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. O
programa faz a mesma linha “sangue, suor
e ouriço” que consagrou, em termos de
audiência, na década de 1990, o lendário
Aqui Agora, do SBT. Quem não se lembra do slogan “um jornal vibrante, uma
arma do povo, que mostra, na TV, a vida
como ela é”?
Nesse contexto que se verifica o bombardeio de notícias sobre casos de agressão sexual contra crianças e adolescentes,
como explica a psicanalista Fani Hisgail,
em seu livro Pedofilia – Um estudo psicanalítico (Iluminuras, 2007), baseado em sua pesquisa de doutoramento em comunicação
e semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), feita entre 1998 e 2001.
“As mídias tradicionais e novas dão
maior visibilidade ao problema, enfocando
o caráter criminal da conduta do pedófilo.
As informações, contidas nos meios de
comunicação de massa, procuram reproduzir, na íntegra, a ação do transgressor e
as penalidades envolvidas. Assim, a opinião pública continua desinformada, fomentando o preconceito e as reações de
vingança.”
A psicanalista cita, em outro trecho do
livro, a pesquisa “O grito dos inocentes”,
realizada em 2001 pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) em parceria com o Instituto WCF/Brasil e a Fundación Arcor, que trata justamente da cobertura pela imprensa brasileira de casos
de crimes de exploração e abuso sexual infantil. Diz Hisgail que “a polícia figura
como fonte principal dos noticiários [...]
retratodoBRASIL 22
Do material classificado, 95% são reportagens enfatizando o crime, o que reduz o
espaço dos especialistas e dos acadêmicos
da área de saúde e de educação, além dos
organismos internacionais. Nessa linha,
quando a mídia expõe a identidade dos envolvidos, costuma induzir à prévia condenação social dos suspeitos e a visões preconceituosas sobre o ato pedófilo”.
O QUE É PEDOFILIA
A pedofilia é um transtorno de personalidade da preferência sexual por crianças,
quer se trate de meninos ou meninas, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade. É o que diz a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), compilação
de todas as doenças e condições médicas
conhecidas instituída pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) no fim da década
de 1940 e adotada desde então para diagnósticos no mundo inteiro.
Segundo os critérios estabelecidos pelo
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV), a classificação dos
transtornos mentais feita pela Associação
Americana de Psiquiatria, as crianças prépúberes ou no início da puberdade que são
escolhidas pelos portadores do transtorno
de pedofilia têm, geralmente, 13 anos de
idade ou menos. O agressor deve ter 16 anos
ou mais e ser pelo menos cinco anos mais
velho que a criança. Do ponto de vista médico, só o indivíduo portador de pedofilia
é considerado pedófilo. Não basta que sinta desejo sexual por menores de 14 anos e
nutra fantasias constantes com eles.
Isso não quer dizer que o diagnóstico
de pedofilia corresponde ao de todo e
qualquer indivíduo que cometa crimes sexuais contra crianças, os chamados molestadores de crianças. É o que explica Danilo
Baltieri, psiquiatra e autor da tese de
doutoramento Consumo de álcool e outras drogas e impulsividade sexual entre agressores sexuais, apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em 2006. O trabalho foi publicado
em 2008 na americana Forensic Science
International, uma das melhores revistas de
medicina forense do mundo. Baltieri entrevistou 218 detentos na Penitenciária
Doutor Antônio de Souza Neto, em
Sorocaba, interior de São Paulo – todos
condenados unicamente por crime de estupro ou por atentado violento ao pudor.
retratodoBRASIL 22
“A pedofilia é uma doença com raízes
neurobiológicas, neuropsicológicas, com
características clínicas bastante distintas e
diagnosticáveis. O fato de um indivíduo
agredir sexualmente uma criança não significa que ele é portador de pedofilia. Significa que ele é um agressor sexual de crianças ou um molestador de crianças. Ponto. Se ele é ou não portador de pedofilia é
um outro assunto. Existem indivíduos
portadores de pedofilia que não vão para
o ato sexual, não praticam o sexo com crianças. São indivíduos que apenas fantasiam intensamente, que se masturbam pensando em crianças, mas conseguem evitar
esse passo grande que é ir da fantasia para
o ato sexual.”
Os números obtidos por Baltieri ao
término da pesquisa não batem, em absoluto, com a convicção do senador Malta
de que “95%” dos molestadores de crianças são nada menos que “safados”: “Numa
amostra de cem molestadores de crianças,
a porcentagem de indivíduos que padecem
de pedofilia varia de 20% a 30%; de 40%
a 55% são dependentes sérios de álcool –
isso quer dizer que o álcool é um fator
bastante intercambiável, um facilitador.
Há, também, com abrangência de 20% a
25% desses indivíduos, histórias de abuso
sexual durante a infância dos agressores”.
Já entre os molestadores considerados seriais, que agridem de três a mais
vítimas, explica Baltieri, há uma diferença de diagnóstico: “Eles têm, naturalmente, uma impulsividade sexual em
geral muito maior. São indivíduos que
tomam decisões de maneira súbita e
agem sem pensar. Neles, a gente não vê
muita diferença, em termos de consumo
de álcool e droga, em relação àqueles que
não são seriais. Entretanto, o risco de os
seriais terem o diagnóstico de pedofilia
é quase sete vezes maior. Eles têm fantasias recorrentes, intensas e impulsivas
com relação a crianças e adolescentes”.
TRATAR, NÃO PUNIR
Os molestadores de crianças devem passar por um tratamento psiquiátrico específico. É fundamental saber se esses indivíduos sofrem de algum tipo de distúrbio. “A
primeira coisa que deve ser feita é avaliálos do ponto de vista psiquiátrico, para ver
se são portadores de algum transtorno psiquiátrico”, diz Baltieri. Os possíveis transtornos são de personalidade ou de pedofilia,
dependência de álcool ou droga. “De acordo com a doença, esse indivíduo será tratado, desde que ele queira.”
Ainda que nada seja diagnosticado e
mesmo assim o indivíduo queira entender
o que aconteceu, para chegar ao ponto de
ter tido uma relação com crianças, ele será
submetido a um processo psicoterapêutico, explica o psiquiatra. Há casos de portadores de pedofilia que não respondem a tratamento algum. Quando isso ocorre, o indivíduo pode solicitar uma medicação à
base de hormônio feminino para aplacar seu
impulso sexual, geralmente muito grande.
Como explica Baltieri, o uso de hormônios “é algo realizado em vários locais do
mundo e recomendado, do ponto de vista
médico, apenas para aqueles indivíduos
portadores de pedofilia que querem se tratar”. Nesses casos, é assinado um termo
segundo o qual o paciente é plenamente
capaz de entender o que está acontecendo.
Estatísticas internacionais da área da medicina forense dão conta que apenas 5% do
universo de pedófilos poderia necessitar desse tipo de tratamento, realizado com doses
muito baixas de hormônios. “Nunca sozinhos, sempre com outras medicações. E a
medicina entende que o tempo de uso dessas medicações é de, no máximo, três a seis
meses”, diz o psiquiatra. Sobre o fato de o
tratamento ser tachado, até por médicos, de
“castração química”, Baltieri é incisivo: “A
medicina abomina esse termo. Quando usado, é entre aspas e, mesmo assim, altamente
criticado. Desde que administrada adequadamente, é mentira afirmar que a medicação
hormonal provoca impotência sexual ou causa sérios efeitos colaterais”.
Baltieri tem opinião formada com relação ao bombardeio de notícias sobre
molestadores de crianças hoje em curso:
“É chocante haver, dentro da sociedade,
tantos casos de agressão sexual contra crianças. Entretanto, é um assunto que tem
de ser tratado com a máxima seriedade.
Se o indivíduo realmente cometeu algum
ato sexual contra a criança e isso é provado – ele é julgado por isso –, ele tem de
ser avaliado medicamente. É um direito
de toda a sociedade. A Lei de Execução
Penal prevê isso”.
De acordo com o psiquiatra, quando o
indivíduo é tratado, e isso não vale somente
para o portador de pedofilia, o risco de ele
reincidir é muito menor. “A sociedade paga
menos tratando do que prendendo.”
29
Defesa:
O governo faz grandes planos para modernizar as
Forças Armadas e prepara-se para defender a
Amazônia da ambição de “uma grande potência”.
Por enquanto, o Exército mata guerrilheiros das Farc
na fronteira | Carlos Azevedo
A recente reunião do G20, os 20 países
mais desenvolvidos do planeta, mostrou
o Brasil como um de seus membros influentes. Entretanto, enquanto a maioria
dos outros participantes pode calçar seus
argumentos em sofisticados parques bélicos, inclusive nucleares, comparativamente, o Brasil é um país desarmado.
Somente agora começa a implantar uma
estratégia para adquirir a musculatura
militar que lhe falta para, somada aos exuberantes recursos naturais existentes e ao
poderio econômico e tecnológico que já
vem alcançando, projetar-se efetivamente como potência em nível mundial.
A Estratégia Nacional de Defesa
(END) apresentada ao Congresso Nacional em dezembro de 2008 prevê a modernização das Forças Armadas tendo em
vista a defesa da Amazônia, do Atlântico
Sul, dos centros industriais e administrativos do Sudeste e da capital federal. A
grande preocupação é com a vulnerabilidade da Amazônia, para cuja defesa as
Forças Armadas vêm desenvolvendo cenários e traçando a estratégia de uma guerra de resistência, “guerra assimétrica”,
com forças regulares e irregulares, que
envolveria, inclusive, métodos de guerrilha para fazer frente a “um inimigo muito
superior em força militar”. A ironia dessa história é que, enquanto essas estratégias de luta contra uma certa potência invasora se desenvolvem no plano teórico,
o Exército brasileiro engaja efetivamente
suas tropas especiais da Amazônia em
choques com guerrilheiros das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia
(Farc). De acordo com um estrategista
30
militar, o Exército já executou guerrilheiros surpreendidos na área de fronteira.
Não fez prisioneiros, como não fazia na
Guerrilha do Araguaia.
Seja como for, o final de 2008 trouxe
notícias relevantes sobre o projeto da
construção do poder militar. Ao mesmo
tempo em que anunciava a primeira Estratégia Nacional de Defesa da historia do
País, o governo aproveitava a visita do
presidente francês, Nicolas Sarkozy, ao
Brasil, em dezembro do ano passado,
para estabelecer o que chamou de uma
“aliança estratégica” com a França. No
primeiro momento, essa aliança se definiu pelo anúncio de grandes compras de
armas e de cooperação tecnológica. A
Marinha brasileira, em especial, se beneficiará desse acordo: a França deverá fabricar quatro submarinos Scorpène, convencionais, movidos a diesel, e se comprometeu a transferir tecnologia para o
Brasil produzir outros do mesmo padrão.
Além disso, participará do projeto
Aramar, de construção de um submarino de propulsão nuclear, há anos em desenvolvimento, tudo a um custo de pelo
menos 7 bilhões de dólares.
Também se discutiu a aquisição, para
a Força Aérea Brasileira (FAB), de 36 caças, ao custo de 2 bilhões de dólares. A
França ofereceu o avião Rafale, da
Dassault. Mas nesse caso tem concorrentes: o Gripen NG, da sueca Saab, e o F18, da Boeing, dos EUA. O Ministério da
Defesa (MD) ainda debate com militares
e técnicos a melhor proposta, que terá de
envolver também transferência de tecnologia, para o que a França anuncia não
colocar qualquer obstáculo, ao contrário
dos EUA. A decisão está prevista para o
fim de 2009.
Ao Exército caberão 51 helicópteros
Cougar, que serão fabricados em parceria com a Helibras, de Minas Gerais (1
bilhão de dólares), mais tanques, veículos
de transporte e equipamento sofisticado
de comunicações.
Até então, o País nunca havia formulado uma estratégia abrangente para a
questão da defesa. A END não é apenas
um plano militar para ordenar a ação das
Forças Armadas. Pretende ser parte de
uma política de Estado que agrega o componente militar ao projeto nacional de
desenvolvimento. Para isso, busca elevar
a um novo status as Forças Armadas, a
tecnologia militar própria e a indústria de
defesa, com caráter dual, capaz de desenvolver armas e ao mesmo tempo produtos para o consumo civil, como faz a indústria americana.
A proposta tem três eixos: a reorganização das Forças Armadas e de seu armamento; a reorganização da indústria nacional de defesa, com capacitação nacional
(apoiar a Embraer, recuperar a Avibras e
outras empresas) e investimentos em pesquisa para autonomia tecnológica; e a
reestruturação da mobilização nacional e
serviço militar obrigatório.
Não se trata apenas de uma substituição de armamentos, mas de uma modernização do aparato bélico sob novas concepções de guerra. Para isso, propõe um
planejamento de longo prazo de aquisição
e produção própria, ou com parceiro internacional, de equipamentos os mais moretratodoBRASIL 22
Divulgação
O PAÍS VAI ÀS ARMAS
dernos. Em primeiro lugar, para tornar
operacional a Marinha – submarinos, navios e sofisticados equipamentos de comunicação – e cumprir a tarefa central de proteger duas áreas estratégicas: a bacia marítima e petrolífera que vai do Espírito Santo ao Paraná e a embocadura da bacia
amazônica, não apenas no limite de 200
milhas. O Brasil está negociando com a
Organização das Nações Unidas (ONU)
ampliar suas águas territoriais para 350
milhas, o que significaria 1 milhão de km²
a mais, para estender sua soberania a toda
a área petrolífera do pré-sal.
Também a FAB receberá grandes investimentos para a indústria aeroespacial
(projeto de desenvolvimento de mísseis
em associação com os russos) e para desenvolver a capacidade de monitorar
todo o espaço aéreo e marítimo do País.
O Exército receberá novos armamentos
e modernos equipamentos de informação e inteligência e será reorganizado
para ter presença ou possibilidade de
presença (flexibilidade) em todo o território nacional, articulado com as outras
duas forças. Para isso, deverá deslocar a
concentração de suas bases do Leste
para o Centro-Oeste e Norte, tendo
como tarefa central a defesa da Amazônia e de Brasília. O Exército terá de articular forças de grande mobilidade e elevado poder de fogo e especialização, que
possam se deslocar com rapidez para
qualquer área do território, com forças
solidamente baseadas em suas sedes em
grande sintonia com as populações locais. Também se dará grande ênfase à
ampliação do serviço militar obrigatóretratodoBRASIL 22
rio e à mobilização civil para envolver a
sociedade nos assuntos da Defesa.
O documento da END deixa aberta a
porta para a produção de armas nucleares
ao afirmar que “o Brasil zelará por manter abertas as vias de acesso ao desenvolvimento de suas tecnologias de energia
nuclear. Não aderirá a acréscimos ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do tratado: seu próprio desarmamento”.
Serão necessários muitos recursos
para viabilizar essas metas. Simulação do
site Defesa BR, do Ministério da Defesa,
estima ser necessário um gasto de 1% do
PIB durante 15 anos para realizar esse
esforço de modernização, equivalente a
uma média de 16 bilhões de dólares anuais
de 2008 a 2022. Atualmente, o orçamento das Forças Armadas corresponde a
0,3% do PIB, 4,6 bilhões de dólares. E
75% dele são gastos com pessoal, isto é,
salários e aposentadorias para 600 mil
militares, dos quais apenas 358 mil estão
na ativa. Esse é só um exemplo da distância que vai da realidade atual das Forças Armadas e o que se pretende com os
novos planos.
FALTA PODER MILITAR
Duas semanas antes da reunião do
G20, um seminário realizado em Nova
York sob o título “Brasil: parceiro global
em uma nova economia” havia sido mais
um episódio do esforço para a construção de uma imagem que o País ambiciona, a de potência mundial. A visita do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos
EUA procurou revestir-se dessa roupagem. No encontro com o presidente americano, Barack Obama, nas palestras e
entrevistas, nas repetidas menções à candidatura ao Conselho de Segurança da
ONU, estava nítida a aspiração.
É uma versão atualizada, agora com
mais possibilidade, do projeto do Brasil
Potência, acalentado pela ditadura militar
– a partir de grandes obras, da indústria
de armamentos, inclusive nucleares, e de
investimento em tecnologia –, mas que fracassou na crise econômica dos anos 1970
e por pressão dos EUA, conforme
relembram, com mágoa, setores militares.
De fato, com grande população, abundância de recursos naturais, indústria e
agricultura florescentes, grande exportador, desenvolvimento tecnológico em
progresso, o Brasil já detém uma posição
internacional de destaque. Na opinião do
governo, a oportunidade histórica para se
tornar uma potência está criada. O que
falta então ao País para ser reconhecido
como potência mundial?
“Falta poder militar”, avalia Geraldo
Cavagnari, coronel da reserva, estrategista militar e membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para quem
a proposta da estratégia de defesa é positiva e oportuna. “O Brasil não será aceito
no Conselho de Segurança da ONU enquanto não contar com poderio militar
suficiente para respaldar uma decisão da
organização que implique utilização de
armas em qualquer país”, diz. Essas condições o Brasil não tem atualmente. Suas
Forças Armadas, durante décadas ocupa31
Divulgação/ Radiobrás
das em contrapor-se aos movimentos internos de oposição, são suficientemente
fortes para dissuadir de uma aventura
militar qualquer de seus vizinhos. Mas não
estão preparadas para a defesa do imenso território contra um inimigo externo
poderoso nem para atuação numa guerra
no exterior.
A END é uma consequência da Constituição de 1988, artigo 142, que não eliminou, mas amenizou o arbítrio dos militares de intervirem “em defesa da lei e
da ordem”, o que havia dado justificativa
a tantos golpes militares desde a Constituição de 1891. Os militares intervinham
a seu critério. A partir de 1988, só podem intervir por iniciativa de um dos três
Poderes.
A criação do Ministério da Defesa,
no governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso, decorreu da nova
disposição constitucional. Por ela, transfere-se ao poder civil a atribuição de definir as hipóteses de emprego dos meios
militares. E às Forças Armadas cabe definir as estratégias e o uso da força militar. Essa questão foi tabu durante muitos anos. Os governos civis que sucederam a ditadura militar são acusados agora de ter se omitido do assunto defesa,
deixando-o por conta dos militares, ao
mesmo tempo em que reduziam à míngua os recursos para a manutenção e o
rearmamento das forças.
“OS CIVIS ASSUMIRAM”
Para o ministro Nelson Jobim, “na
Constituição de 1988, submetemos o poder militar aos poderes constituídos”. Visto com reservas por setores militares, o MD
teve um começo frágil. Mas, aos 9 anos, está
consolidado, na opinião de Jobim: “A fase
de transição está encerrada. Os militares
saíram da política e os civis assumiram”,
disse ele em meados de março.
O Congresso Nacional não começou
ainda a examinar o projeto da END. Mas,
no interior das Forças Armadas, principalmente no Exército, surgem reações. Na
primeira reunião de 2009, realizada no
início de março, o Alto Comando do
Exército, que reúne os generais de quatro
estrelas, criticou a END por, de acordo
com o diário Folha de S.Paulo, “supostamente fortalecer o Ministério da Defesa
em detrimento dos comandos das três
Forças Armadas”.
32
Jobim: para o ministro, os militares deixaram a política e são os civis que mandam
Três oficiais em fim de carreira, generais Luiz Cesário da Silveira Filho, Paulo
César de Castro e Maynard Marques de
Santa Rosa, apresentaram suas críticas por
escrito na reunião do Alto Comando. O
documento diz que “a END é de cunho
político, não é de consenso nacional e não
apresenta solução para o principal problema da defesa: orçamento incompatível com as necessidades de custeio das
instituições e de investimento para a modernização de seus sistemas de armas”.
O general Silveira Filho classificou o plano de “utópico” e ironizou: “Vai haver
dinheiro para tudo isso?”. De acordo com
a Tribuna da Imprensa e a Agência Estado, os
oficiais disseram temer pela politização
das Forças Armadas e que os militares
possam ser “ainda mais afastados dos círculos decisórios”. Criticaram a centralização de compras no MD porque permite “a introdução de idiossincrasias típicas da administração civil, como a corrupção e o tráfico de influência”. FinalretratodoBRASIL 22
mente, manifestam insatisfação com a
parte que coube ao Exército no plano de
defesa, “que evidencia uma desproporção no que tange aos objetivos das Forças Armadas, não prevendo para o Exército nenhum projeto de modernidade, ao
contrário do que ocorre com relação à
Marinha e à Força Aérea”.
Silveira Filho e Castro manifestaramse ao entrarem para a reserva, um “ato
desleal”, segundo Cavagnari: “Deviam ter
se manifestado enquanto estavam no posto”. Questionado pelo ministro Jobim, o
general Enzo Peri, comandante do Exército, respondeu que a proposta havia sido,
no geral, elogiada, com críticas secundárias, e que as manifestações de oposição
eram individuais, de oficiais que estavam
indo para a reserva.
O comandante da Marinha, almirante
Julio Soares de Moura Neto, entretanto,
apresentou evidência de que o debate entre as forças segue aceso. Respondeu a
Silveira Filho manifestando apoio à proposta da END: “Esse documento [o plano] não foi feito à revelia [dos militares].
Foi feito com a participação das três forças, que discutiram muito e houve grandes mudanças desde o primeiro documento até o definitivo”.
Para o deputado federal Aldo Rebelo
(PCdoB-SP), parlamentar dedicado às
questões militares, não é improvável que
os generais que se manifestaram contra a
END representem setores mais amplos
dentro do Exército: “Os militares podem
estar preocupados com o fato de que, com
o poder decisório passando para o Ministério da Defesa, os assuntos militares fiquem sob a influência de ingerências políticas, que as decisões deixem de ser tomadas a tempo, prejudicando a defesa do País.
Ou que as políticas para a Defesa oscilem
conforme as tendências do governante no
poder”. Por isso, ele recomenda um debate mais maduro no âmbito do Congresso Nacional para que a END se converta
“efetivamente numa política de Estado,
com atribuições e caráter permanentes, não
sujeita a desvios e interrupções do
governante do momento”.
Quando os generais se referem à “desproporção no que coube ao Exército no
plano de defesa”, externam um temor de
que a força acabe perdendo importância
relativa diante das duas outras. É porque,
no orçamento previsto para os próximos
retratodoBRASIL 22
anos, até 2022, a distribuição de verbas
deverá ficar na proporção de 46% para a
Marinha, 31% para a Força Aérea e 24%
para o Exército, de acordo com documento do site do Ministério da Defesa.
A justificativa é que os equipamentos e
sistemas demandados pelas duas primeiras forças é muito sofisticado e mais caro,
incluindo-se aí a construção do submarino movido a energia nuclear. Essa proporção é compreensível, pois, na guerra
atual, o concurso da Marinha e da Aeronáutica é fundamental, mas, para que seja
efetivo, demanda elevados recursos.
Mas as divergências podem ter outros
motivos além dos apresentados. Em 11 de
março, ao deixar o Comando Militar do
Leste para ir para a reserva, o general Silveira
Filho despediu-se com um vigoroso discurso em defesa do golpe militar de 1964. Ele
faz parte dos setores da oficialidade que
se opõem à abertura dos arquivos da repressão durante a ditadura militar e ao julgamento de militares que naquele período
tenham praticado tortura. Mesmo na ativa, participou, em agosto do ano passado,
de ato público em reunião do Clube Militar em desagravo ao coronel Brilhante
Ustra, condenado pela Justiça de São Paulo por haver torturado opositores políticos na década de 1970 (ver “Ferida aberta”, Retrato do Brasil edição 18).
Dentro do governo, avalia-se que esses setores nunca aceitaram o controle civil das Forças Armadas. Em seu último
pronunciamento, Silveira Filho afirmou:
“Tenho levado minha preocupação ao Alto
Comando do Exército. Vivemos atualmente dias de inquietude e incerteza”.
ACORDO COM A COLÔMBIA
A debilidade militar do País foi oficialmente reconhecida no texto de lançamento da Política de Defesa Nacional (PND),
em meados de 2005, e se dá num cenário
internacional em que “a unipolaridade [ou
seja, a hegemonia americana] no campo
militar, associada a assimetrias de poder,
produz tensões e instabilidades. As economias nacionais tornaram-se mais vulneráveis às crises econômicas e financeiras.
E a crescente exclusão de parcela significativa da população dos processos de produção, consumo e acesso à informação
constitui fonte potencial de conflitos”.
Além disso, “a questão ambiental permanece como uma das preocupações da hu-
manidade. Países detentores de grande
biodiversidade, enormes reservas de recursos naturais e imensas áreas para serem
incorporadas ao sistema produtivo podem
tornar-se objeto de interesse internacional”. Portanto, “neste século, poderão ser
intensificadas disputas por áreas marítimas,
pelo domínio aeroespacial e por fontes de
água doce e de energia, cada vez mais escassas. Tais questões poderão levar a ingerências em assuntos internos e a conflitos”,
refere o documento.
Em outras palavras, o governo brasileiro teme pelos seus recursos naturais,
principalmente pela integridade da Amazônia, e sabe que aí se encontra uma das
maiores debilidades de seu sistema de
defesa. E tem mais. O País é protagonista
no cenário regional em que faz fronteira
com dez países. Movimentos de afirmação nacional e de oposição às desigualdades sociais, que questionam tradicionais
oligarquias, vêm chegando ao poder em
vários desses vizinhos nos últimos anos –
Venezuela, Bolívia, Equador, Paraguai,
Uruguai, Argentina –, com pendor antiEUA. Acentuam-se as tensões no interior
de alguns desses países e também entre
eles, com repercussão em toda a América do Sul. A invasão da Colômbia ao território do Equador para combater a guerrilha das Farc no ano passado criou um
crispamento não resolvido, ainda mais
que os colombianos afirmam-se decididos a invadir de novo o território de outros países quando julgarem “necessário
para sua defesa”.
O Brasil, que também elegeu um governo originário da oposição de esquerda, mas que derivou para uma política de
contemporização na luta de classes, vem
assumindo uma liderança “natural” por
ser o país mais poderoso e o principal
representante da “esquerda confiável”,
que é como a diplomacia americana o classifica, juntamente com o Chile, e se
posiciona como um intermediário, um
poder moderador entre as contradições,
como na atuação para ajudar no resgate
de sequestrados das Farc, na Colômbia,
e nos conflitos internos da Bolívia. Em
certos episódios, porém, sua atuação parece indicar um viés mais conservador.
Por exemplo, em acordo feito com a
Colômbia, já vigente desde o governo
FHC, mas que só agora veio a público,
os dois países têm liberdade para entrar
33
“TODOS FORAM EXECUTADOS” PRIMEIRO, CAVAGNARI
DISSE QUE MEMBROS DAS FARC FORAM EXECUTADOS.
DEPOIS, DESDISSE...
ÍNDIOS MILITARIZADOS
Embora, na atualidade, não haja ameaças concretas contra o território brasileiro, a proposta da END elegeu como estratégia principal a preparação para uma
guerra defensiva na Amazônia contra uma
força muitas vezes superior em poder de
fogo e sofisticação tecnológica. A opção
é pela guerra assimétrica, isto é, não tentar confrontar-se com as forças inimigas
superiores, mas resistir dentro do território combinando táticas de guerra convencional e irregular, concentrando tropas para atacar e desconcentrando para
defender-se, apropriando-se de formas
guerrilheiras de combate. Para isso, oficiais do Exército brasileiro estiveram há
34
Credito
até 50 quilômetros no território do outro em perseguição aos guerrilheiros das
Farc e a narcotraficantes. Jobim, em reunião realizada na primeira quinzena de
março com o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Juan Manuel Santos, reforçou a decisão de colaboração
entre os dois países: “Repito o que já disse em Bogotá: as Farc serão recebidas a
bala se entrarem em território brasileiro”.
Jobim sabe o que está dizendo, mas não
conta tudo. O Exército brasileiro já está
dando tiros nos guerrilheiros. Nos últimos
tempos, teve dois confrontos com membros das Farc. Num deles, segundo relatou Cavagnari a Retrato do Brasil, “executou” um grupo de guerrilheiros.
Outro exemplo: o governo boliviano
expulsou funcionários da DEA, agência
antidrogas dos EUA, que atuavam na Bolívia, acusando-os de ingerência política.
Os americanos têm pressionado o Brasil
por um papel mais ativo no combate ao
narcotráfico na Bolívia. Seu argumento é
de que 65% da cocaína boliviana passa por
nosso território. Em seguida, o governo
brasileiro concedeu autorização para que
parte dos 50 agentes da DEA expulsos da
Bolívia fosse realocada em Brasília.
A contradição entre a retórica da estratégia de defesa anti-hegemônica e as
ações concretas, militares e diplomáticas,
do Brasil, no âmbito regional, dá espaço
a um questionamento: para onde se dirige de fato o foco da política de defesa do
Brasil? Para a defesa contra as ambições
expansionistas de grandes países ou para
se converter no xerife da América do Sul,
abençoado pela diplomacia americana?
Na primeira entrevista gravada que concedeu a RB no início de março, Geraldo Cavagnari
(foto) referiu-se assim aos confrontos com os guerrilheiros colombianos: “Nós tivemos duas
incursões, em território brasileiro, das Farcs, as duas nós conseguimos... Em uma delas
roubaram armamento nosso, nós fomos atrás e pegamos e matamos todos. Todos os guerrilheiros foram mortos, executados. Todos foram executados. Pegou-se o material e executou-se [sic] todos eles. Disso o governo da Colômbia foi avisado. E teve uma segunda também. Então, eles não tentaram mais. Queriam
fazer de homizio, área de santuário. Ficamos ali
atentos para não deixar que aquilo se transforme em santuário. E eles sabem que, se forem
pegos, serão executados”.
Para o jurista Pedro Estevam Serrano, professor
de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), se confirmadas, essas ações do Exército foram ilegais, pois
caracterizam “homicídio e abuso de poder”. Segundo ele, a Constituição brasileira, no artigo 5º,
e a doutrina do direito têm um entendimento universal que é o da garantia do direito à vida de
qualquer ser humano.
Como o Brasil não está em guerra com outro país,
não se trata de invasão por tropa estrangeira. A
presença dessas pessoas em território nacional é
caracterizada como entrada ilegal. Contra elas
cabe ação de polícia, que é o que o Exército faz ao
vigiar as fronteiras. Portanto, esses invasores
deveriam ser presos e deportados para a Colômbia. “Só no caso de haver combate ou de reação à
voz de prisão poderiam ser mortos, o que caracterizaria legítima defesa, como em qualquer ação
policial”, diz o jurista.
Voltando a falar com Cavagnari três semanas
depois, o repórter lembrou o que ele havia dito.
Ele respondeu: “Sim, foram executados. O Exército brasileiro retaliou e eles foram executados”.
RB Sim, eles foram detidos?
Cavagnari Executados é uma maneira meio forte... porque eles reagiram e foram mortos...
RB Em combate?
Cavagnari Sim, em combate, porque eles foram surpreendidos, não é? E, surpreendidos,
reagiram.
RB Sim, essa é uma situação, porque a situação de eles serem detidos, desarmados e, em
seguida, executados...
Cavagnari Não, eles não foram detidos [...] não houve prisão.
RB Não houve prisão? Por que aí seria indicado entregá-los ao governo colombiano, não é?
Cavagnari Não, ali foi o seguinte, eles deram de cara com os caras e começaram a atirar, dos
dois lados provavelmente [...] O termo execução seria mais de maneira genérica, não é? [...]
Eles surpreenderam eles [sic] nas selvas. [...] Foi rápido. Pelo que eu sei, nós estávamos em
situação de superioridade, e eles foram surpreendidos...
alguns anos no Vietnã com o objetivo de
se familiarizar com as estratégias e táticas
usadas na guerra de resistência contra os
EUA nas décadas de 1960 e 1970.
Essa parte da estratégia já vem sendo
posta em prática. O Exército tem se empenhado, há alguns anos, na militarização
ou naquilo que chama de “doutrinação”
das populações indígenas e ribeirinhas da
Amazônia, recrutando maciçamente os
jovens para suas fileiras. Essas populações
têm conhecimento privilegiado do terreno e capacidade incomparável de sobrevivência no ambiente de selva, têm tradição guerreira e também são de grande
eficiência na vigilância e percepção de
presenças estranhas no território, o que
dá ao Exército condições vantajosas de
combate em tal meio. Essa tropa já conta
com 18 pelotões de fronteira, 17 mil solretratodoBRASIL 22
dados, 90% indígenas ou descendentes.
Deverão ser ampliados para 40 pelotões,
com 25 mil homens. Receberão fuzis novos, binóculos de visão noturna e chips
para rastreamento. Todos são alfabetizados, recebem treinamento técnico e militar e, segundo Cavagnari, “imbuídos de
sentimento patriótico e de defesa do território”. “Os jovens indígenas adoram a
vida militar e se apresentam voluntariamente para o serviço”, diz o estrategista.
Esses soldados fazem carreira exclusivamente na Amazônia e o Exército tem
para eles uma rotina adaptada, de tal
modo que passam parte do tempo nos
quartéis e outra parte no convívio de suas
aldeias. A ideia é que liderem suas comunidades e as mobilizem para participar do
esforço de guerra. No dizer de Cavagnari,
“como no Vietnã, em que a mulher que
lava roupa na beira do rio é uma informante do Exército”.
Quem poderia tentar promover uma
invasão da Amazônia? Na opinião do deputado Rebelo, “há uma consciência muito clara, tanto no meio militar como entre
os especialistas civis, que o risco potencial
de conflito do Brasil não é com nossos vizinhos. A pressão potencial que existe no
nosso caso é com a presença de uma po-
tência hegemônica no hemisfério, que nós
tratamos com muito cuidado. Diante de
vizinho poderoso, em certos momentos
dotado de alguma agressividade e arrogância, o melhor procedimento é você tratar
bem, manter alguma prudente distância e
se precaver, tomar medidas. Mas todo
mundo sabe de onde provém o risco potencial para o Brasil”, diz o parlamentar.
VIETNÃ? AQUI?
É possível às Forças Armadas de um
Estado hegemonizado pela alta burguesia associada ao capital estrangeiro, os
quais mantêm a sociedade submetida a
uma grande concentração da riqueza,
mobilizar os trabalhadores à maneira
como os revolucionários do Vietnã mobilizaram seu povo? Rebelo responde:
“Aqui, eu creio que é o desafio de pôr no
centro da nossa tática a questão nacional.
O fim da União Soviética trouxe inúmeras consequências. Primeiro, fortaleceu
muito a potência hegemônica do planeta do ponto de vista econômico, político, ideológico, militar, os EUA. E
fragilizou as nações da periferia, como
o Brasil. Percebemos o primeiro movimento, mas não tiramos consequências
quanto ao segundo. Ou seja, a luta pela
Divulgação/ Radiobrás
Rebelo: a quem interessa fomentar a desconfiança com relação aos militares?
retratodoBRASIL 22
transformação social migrou para o terreno da sobrevivência da nação, para a
ampla unidade de forças sociais, políticas, econômicas, intelectuais, capaz de
fazer frente ao processo de fragilização
das nações e Estados nacionais. Isso exige que nem as Forças Armadas passem
a ver na ação das organizações avançadas do povo um risco, nem que essas
organizações continuem a ver, nas Forças Armadas, uma ameaça”.
O repórter insiste: “Mas a questão da
ditadura militar, da tortura, da anistia não
inteiramente resolvida, do debate que se
trava até hoje, essa desconfiança que existe
da população civil com relação às Forças
Armadas, ela funciona como um elemento de dificuldade para a promoção dessa
unidade, não?”
A resposta de Rebelo: “A desconfiança também deve ser vista de forma crítica,
a partir da seguinte questão: a quem interessa fundamentalmente alimentar essa
desconfiança nos dias de hoje? [...] Eu
acho que hoje essa desconfiança não serve
aos interesses da construção da defesa do
País. Pela minha experiência concreta, pelos debates dos quais tenho participado e
pela minha convivência, no âmbito das três
forças, não apenas na base, na visita aos
quartéis, mas também na convivência no
âmbito da oficialidade, creio que o Brasil
está preparado para ir superando aos poucos as desconfianças e construindo, com
base nessa relação sobre a defesa dos interesses nacionais, uma relação nova entre
as forças civis e as forças militares. [...]
Eu creio que a centralidade da questão nacional ajuda a resolver essas desconfianças e a criar um sentido mais geral de que
a estratégia de defesa exige o concurso
de forças políticas e sociais amplas, que o
apoio popular é uma coisa importante e
que as Forças Armadas também são instituições da nação”.
Certamente, essa unidade seria facilitada se a União abrisse os arquivos da
repressão do tempo da ditadura, se os
restos mortais de inúmeros oposicionistas mortos fossem apresentados a seus
familiares, se fosse alcançado um consenso sobre o julgamento dos agentes do
Estado acusados de tortura durante o regime de exceção. É um desenlace que já
tarda. Ainda mais agora que o Brasil quer
se apresentar como potência no contexto das nações.
35
Israel:
UM ACORDO.
E MUITO
MAL-ESTAR
O governo liderado pelo Likud confirma o rumo que a
sociedade tomou há anos, algo que causa desolação aos
setores progressistas | Armando Sartori e Yuri Martins Fontes
Como classificar as justificativas do primeiro-ministro israelense, Benyamin
Netanyahu, do partido Likud, de extrema direita, para manter Ehud Barak, do
Partido Trabalhista, de centro-esquerda,
no posto de ministro da Defesa de Israel? Bibi (imagem da pág. ao lado, à direita, com Barak), como é conhecido
Netanyahu, argumentou – e também
Barak, cada um a seu modo – que a continuidade reasseguraria aos árabes e ao
restante do mundo a contenção e a moderação de Israel. Com toda a razão, o
semanário conservador britânico The Economist qualificou de “bizarro” esse arrazoado, lembrando-se do massacre resultante da Operação Chumbo Derretido,
conduzida pelas Forças Armadas israelenses contra a Faixa de Gaza no início
deste ano.
Barak – que, como ministro da Defesa, foi o responsável político pela ação
militar – alegou também, no sentido de
justificar a aliança com Bibi, que, ingressando no governo comandado pelo
Likud, os trabalhistas o tornariam menos
direitista do que ele poderia vir a ser.
Apesar de toda essa retórica, o processo
de adesão a Bibi não foi tranquilo. Na
convenção trabalhista que aprovou o
acordo com o Likud, realizada na segunda quinzena de março, a adesão obteve
apenas 55% dos votos dos mais de 1,2
mil delegados. E Barak teve ainda de ouvir de Ophir Pines-Paz, da ala esquerda
do partido, que Golda Meir e Yitzhaki
Rabin, dois dos ícones do trabalhismo
israelense, estavam “se revirando em suas
tumbas” diante de semelhante acordo.
Pines-Paz pode ter expressado a opinião de muitos rebeldes trabalhistas, se36
gundo a qual o acordo fornece ao Likud
uma cobertura para disfarçar uma política que pretende agradar os 470 mil assentados judeus no território palestino
ocupado por Israel na Cisjordânia e em
Jerusalém Oriental ocupada, enquanto o
processo de paz definha. Uma avaliação
que se encaixa perfeitamente com as propostas que o Likud mantém. A sensação
desses trabalhistas parece refletir, ao menos parcialmente, o desalento e o mal-estar que tomam conta de muitos judeus
israelenses, sionistas ardorosos, alguns
dos quais integraram as Forças Armadas
israelenses, mas que agora observam a
democracia praticada no “lar nacional dos
judeus”, que foi sempre limitada, tornarse cada vez mais restrita.
“EFEITO OBAMA”
A manobra de trazer os trabalhistas
para a composição do governo liderado
pelo Likud parece ter relação principalmente com questões políticas mais amplas
– como o que se pode denominar de “efeito Obama” – do que com uma estratégia
para obter apoio parlamentar. No sistema
de governo israelense, parlamentarista, o
presidente da República nomeia primeiroministro um dos deputados (geralmente
uma liderança de um dos partidos majoritários) e este tem um prazo determinado
para negociar e submeter os nomes de seu
gabinete à aprovação de seus pares. Quando foi chamado pelo presidente Shimon
Peres para formar o novo governo logo
após as eleições de fevereiro passado, esperava-se que Bibi tentasse armar um ministério estritamente de direita, que refletisse o resultado das urnas (das 120 cadeiras do Parlamento, três quartos foram ocu-
pados por forças de direita, principalmente, e centro-direita).
O Likud, segundo colocado nas eleições, elegeu 27 representantes e, a partir de alianças com partidos afins, deixou de lado o primeiro colocado
Kadima (de centro-direita, com 28 parlamentares). Os principais aliados que
viriam dar peso à aliança direitista foram o Israel Beiteinu (IB, terceiro colocado, com 15 representantes) e o Shas
(a quinta maior bancada, com 11). Mas
ainda faltava o apoio de pelo menos
mais 8 parlamentares para atingir a necessária maioria de 61, que garantiria a
aprovação do gabinete. O Likud poderia tê-los obtido junto a três pequenos
partidos de seu campo, União Nacional, Judaísmo Torá Unida e Lar Judaico, que juntos elegeram 12 representantes. Mas só ingressou na aliança o Lar
Judaico, com três parlamentares. Desse
modo, vieram a calhar os 13 aliados trabalhistas, que deram a Bibi 69 parlamentares, uma maioria mais ampla que aquela que seria proporcionada somente
com os pequenos aliados de direita.
Já a oposição reúne 51 parlamentares,
mas está longe de se constituir num bloco unitário. Inclui, a partir da esquerda, a
Hadash (Frente para a Paz e a Igualdade), liderada pelo Partido Comunista
(quatro deputados), o Meretz (socialista,
três), a Assembleia Nacional Democrática e a Lista Árabe Unida (que representam os palestinos e, juntos, têm sete parlamentares), o Kadima e os dois partidos
de direita preteridos por Bibi.
Compondo-se com uma força mais à
esquerda, o primeiro-ministro pode pretender entrar em sintonia com os leves
retratodoBRASIL 22
Reuters
tra maior disposição para negociar com
os palestinos. Em 1992, a legenda tinha
44 parlamentares; no ano passado, 18;
agora, tem 13.
Já o fortalecido Likud claramente se
opõe à criação do Estado palestino e admite, no máximo, conceder maior autonomia econômica sob a tutela israelense.
Um indício de que Bibi manterá essa posição rígida é que, no início de abril, o
novo ministro de Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman, do IB, declarou que os acertos definidos no encontro de paz realizado em 2007 em
Annapolis (EUA) não serão levados em
consideração pelo governo. O aspecto
mais notável desse encontro é que ficou
explícita, pela primeira vez, a admissão
da existência de dois Estados, um judaico e um palestino, convivendo lado a
lado, como solução política para a paz.
DEMOCRACIA MESQUINHA
sinais de mudança da política externa dos
EUA emitidos desde a posse de Barack
Obama. Um deles veio de Hillary Clinton,
a secretária de Estado estadunidense, que
visitou a região no início de março e criticou as demolições de casas palestinas em
Jerusalém Oriental, prática comum do
governo israelense – que alega serem
construções ilegais – e apontada pelos
árabes como evidente prova de discriminação. Segundo relatório da União
Europeia (UE) divulgado no fim do ano
passado, as demolições são, no geral, “ilegais, de acordo com o direito internacional, não atendem a nenhum objetivo claro, têm graves efeitos humanitários e alimentam o rancor e o extremismo”.
O mais forte sinal de mudança da política externa dos EUA no Oriente Médio, entretanto, atinge Israel por tabela.
Obama parece empenhado em relaxar as
tensões entre seu país e o Irã. Se essa
distensão tiver bom êxito, Israel vai sentir a diferença, uma vez que Teerã é encarada como a maior ameaça externa à sua
segurança. Talvez a possibilidade de ver
os EUA, o grande patrocinador externo
retratodoBRASIL 22
dos israelenses, aproximarem-se dos
iraquianos pode ter levado Bibi a imaginar que comandar um governo de direita
puro-sangue não seria um bom negócio.
Até que ponto a presença dos trabalhistas no governo do Likud pode fazer
diferença não é claro. Com relação ao Irã,
por exemplo, não há, entre os principais
partidos israelenses, distinção substancial de opinião: todos veem na eventual
nuclearização do país uma ameaça à existência de Israel (os iranianos desenvolvem
um programa nuclear que alegam ser voltado unicamente para fins pacíficos, mas
Israel, EUA e potências europeias acusam
o país de estar se preparando para produzir armas nucleares).
Com relação aos palestinos, a situação é mais complexa. Mantê-los em regime de pão e água é uma ideia que ganha cada vez mais força em Israel, como
indicam os últimos resultados eleitorais,
obtidos logo após a operação militar
contra a Faixa de Gaza. Sinal dessa tendência é a decadência dos trabalhistas,
que, historicamente, entre as principais
forças políticas israelenses, é a que mos-
A tendência à direitização da opinião
pública israelense – e mesmo ao crescimento da direita entre os próprios trabalhistas – não é nova, diz Michel
Warschawski, diretor do Centro de Informação Alternativa em Jerusalém. O autor de Toward an open tumb: the crisis of Israel
society (em tradução livre, À beira de um
túmulo: a crise da sociedade israelense,
Monthly Review Press, 2004) escreveu,
em um artigo publicado na revista americana Monthly Review no fim de 2004, que,
com o assassinato do primeiro-ministro
Yitzhaki Rabin, em 1995, “um longo intervalo de relativa abertura, liberalização
e tentativas de paz e relacionamento com
o mundo árabe se encerrou”.
Ele considera “particularmente significativo” o fato de Uri Avnery, entre outros sionistas e patriotas israelenses, ter
chegado à conclusão de que a democracia israelense está em perigo. Avnery, um
herói da guerra de 1948 (que os líderes
sionistas de Israel intitulam de Guerra de
Independência), ex-parlamentar e jornalista conhecido, manifestou seu desconsolo citando uma declaração de Aharon
Barak, presidente da Alta Corte de Justiça israelense e sobrevivente do Holocausto, que comparou a situação interna de
seu país nesta década com a da Alemanha nazista.
De acordo com Warschawski, a mesquinha democracia israelense se baseou,
37
desde o princípio, na expressão da vontade da maioria sobre a minoria, por meio
das eleições, e em ações do governo apoiadas pela maioria parlamentar. Como Israel não tem Constituição escrita – embora esse seja um dos compromissos assumidos na fundação do Estado –, abriuse aí um enorme campo para a violação
dos direitos dos cidadãos, em especial os
de origem árabe. Em geral, atribui-se a
ausência de um texto constitucional à
grande influência dos partidos religiosos,
visto que estes acabam se beneficiando,
pois, na falta de uma Carta Magna que
torne claros os direitos e deveres dos cidadãos, muitos costumes religiosos judaicos são adotados.
Warschawski acredita, no entanto,
que a responsabilidade principal é dos
líderes sionistas: “Israel tem sido sempre definido não somente como um Estado judaico (e democrático, de acordo
com a sagrada formulação), mas também
como um país em estado de emergência
devido a muitas décadas de guerra. O
estado de emergência é tão profundamente enraizado na cultura política israelense que nem a paz com o Egito, nem
a paz com a Jordânia, nem a Declaração
de Princípios conjunta com os palestinos têm sido capazes de colocá-lo em
questão”, diz. Da flexibilidade legal que
resulta dessa situação segue que “mesmo
quando os direitos são mencionados explicitamente, são sempre condicionados:
‘contanto que não exista nenhuma lei em
contrário’, ou ‘exceto no caso de emergência’ ou ‘se isto não contradisser o
caráter judaico do Estado de Israel’”. Em
resumo: os direitos fundamentais existem formalmente até que o Parlamento
israelense resolva alterá-los “democraticamente”, isto é, por simples maioria.
Outro aspecto destacado por Warschawski é o da grande influência militar
na vida política israelense, diretamente ou
por meio de altos oficiais que se voltam
para a carreira política e continuam mantendo fortes laços com os antigos camaradas, como são os casos de Netanyahu e
Ehud Barak (no atual gabinete israelense,
dos 30 ministros, há pelo menos 12 que
foram oficias de carreira ou reservistas).
O analista diz que desde meados dos anos
1990 “o Exército tornou-se um poder
genuíno”, que rivaliza com o Judiciário,
o Legislativo e o Executivo. Warschawski
38
classifica o comportamento atual dos
militares como um golpe de Estado, pois
altos oficias, sem sofrerem maiores punições, fazem pronunciamentos políticos
ameaçando o governo quando consideram que a política militar não é suficientemente forte e dirigem-se diretamente ao
público para “explicar” a gravidade da
situação.
O enorme peso dos religiosos ortodoxos judeus (representados pelo Shas e
por outros partidos) e dos “russos” (populações que imigraram do Leste Europeu nas últimas duas décadas, representadas pelo IB) também é destacado por
Warschawski: “Essas duas forças políticas representam e dão voz a correntes da
sociedade israelense para as quais referências à democracia, governo pela lei, separação de poderes e liberdades civis não
significam absolutamente nada”. As duas
correntes, diz ele, dividem entre si o racismo antiárabe. O que as diferencia é o
ódio e o desprezo dos “russos” pelos
crentes e religiosos.
PARANOIA GENERALIZADA
Warschawski alerta que o peso das correntes políticas abertamente antidemocráticas na sociedade israelense é crescente.
“Ideologicamente, a visão do antigo sionismo ‘judaico e democrático’ laico, com
sua conotação liberal, está em pleno retraimento.” Para ele, o lugar está sendo tomado por uma nova ideologia “que combina
quatro elementos principais: um militarismo nacionalista mais ou menos associado
com fundamentalismo religioso; racismo
pronunciado; um conservadorismo impregnado com messianismo; e uma tendência a questionar cada norma democrática”. Colocados juntos, diz, “esses elementos ajudam a moldar uma paranoia generalizada, a qual leva Israel a enxergar o
mundo todo como uma ameaça à sobrevivência judaica no Oriente Médio e em
qualquer outro lugar”.
Esse ambiente tem produzido uma
sensação de desgosto nos setores mais
progressistas da sociedade israelense. Segundo o analista, famílias que pertencem
a essas camadas “estão enviando seus filhos para o exterior, comprando propriedades na Europa e tentando obter um segundo passaporte”, enquanto “somente
uma pequena minoria continua a lutar tanto pelos direitos dos palestinos quanto
para parar a transformação de Israel num
Estado fundamentalista que acabe com as
últimas pretensões democráticas”.
Entre os que examinam a sociedade
israelense de modo crítico, está Avraham
Burg, ex-presidente do Parlamento israelense pelo Partido Trabalhista. Ele está
convicto de que a fórmula que define Israel como “Estado judaico e democrático” tornou-se um dos principais problemas políticos vividos pelo país. Numa
entrevista concedida em 2007 ao diário
Haaretz, ele disse que “definir o Estado
de Israel como um Estado judaico é a
chave para o seu fim”. “Um Estado judaico é explosivo, é dinamite”, concluiu.
De fato, se o Estado é judaico e supostamente deve funcionar para abrigar privilegiadamente judeus, como pode ser democrático, já que isso requer tratar a todos que vivem no território israelense
como iguais?
As consequências dessa contradição
são sentidas cotidianamente pelos palestinos, sejam eles cidadãos israelenses ou
vivam na Cisjordânia ou em Gaza. Um
quinto dos 7,3 milhões de cidadãos israelenses é árabe. Essa parcela da população constitui grande parte dos 20% de
famílias israelenses que vivem abaixo da
linha da pobreza, uma taxa das mais altas
entre os países considerados desenvolvidos, grupo para o qual Israel entrou recentemente ao ser admitido na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Outro indicador social que tem o mesmo sentido é
o do número de crianças vivendo na pobreza, que subiu para 36% em 2007, após
o governo abolir, três anos antes, como
parte das reformas neoliberais pelas quais
o país passou, os benefícios dados às famílias com cinco ou mais crianças, atingindo principalmente a população árabe.
Além de viverem em situação econômica difícil, os árabes israelenses também
se queixam de diversas formas de segregação. Um exemplo é o da lei, aprovada
em 2003 pelo Parlamento e confirmada
em 2006 pela Alta Corte israelense, que
praticamente proíbe o casamento entre
árabes israelenses e palestinos que vivam
nos territórios ocupados, uma das principais formas de os palestinos adquirirem
cidadania israelense. Segundo essa lei, cidadãos israelenses que se casem com habitantes originários daquelas áreas não
retratodoBRASIL 22
Reuters
Demolição de casa em Jerusalém Oriental: para a UE, ação alimenta rancor e extremismo
podem viver com os cônjuges em território israelense. Um dos juízes da Alta
Corte declarou, quando da confirmação
da legislação, que a medida se baseava no
direito do Estado “de não permitir que
residentes de um país inimigo entrem em
seu território durante o tempo de guerra”. Há, no entanto, dúvidas quanto à veracidade dessa preocupação, pois a medida pode ter sido adotada com o objetivo de manter Israel com uma massiva
maioria judaica, algo que ficou explícito
nas palavras de Yoel Hhasson, do
Kadima: “[a decisão foi] uma vitória dos
que acreditam em Israel como um Estado judaico”.
EXPULSÃO DOS ÁRABES
Construir e manter um Estado com
maioria judaica é uma questão que se
apresentou aos líderes sionistas logo que
se vislumbrou mais claramente a criação
de Israel. O Estado judaico proposto
pela ONU em 1947, ao lado do Estado
palestino, teve, de início, de enfrentar a
questão demográfica: o território a ele
destinado, além de cercado de populações
árabes, era habitado, em grande parte, por
palestinos (no território designado originalmente a Israel, estima-se que vivessem
antes de 1947 até 950 mil árabes).
No entanto, quando a Guerra de Independência acabou (o conflito durou de
dezembro de 1947 a junho de 1949), a
situação era bem diferente. O Estado israelense tinha uma área cerca de 50% mais
ampla que a originalmente a ele atribuída, que foi obtida à custa do território
reservado ao Estado palestino, e a maior
parte da população árabe havia fugido.
Por meio de leis específicas, o Estado israelense tornou-se proprietário das terras que estavam anteriormente sob conretratodoBRASIL 22
trole da Grã-Bretanha (que detinha um
mandato sobre toda a Palestina desde o
fim da Primeira Guerra Mundial) e das
propriedades privadas, urbanas e rurais,
da população árabe que residia no território e que, por alguma razão, as abandonou durante o conflito. A legislação que
regulamentou essa situação considerou
como abandonada toda propriedade da
qual o proprietário estivesse ausente,
mesmo que este, temporariamente, tivesse se retirado para as proximidades à espera do encerramento dos conflitos.
Os dados não são precisos, mas, de
acordo com Don Peretz (Israel and the
palestinian arabs, Middle East Institute,
1958), esse procedimento teve um papel
crucial no sentido de tornar Israel um
Estado viável. Em 1954, segundo ele,
mais de um terço dos judeus israelenses
vivia nas ex-propriedades árabes, e perto
de um terço dos novos imigrantes (250
mil pessoas) foi assentado em áreas urbanas abandonadas por eles. Dos 370 novos assentamentos judaicos criados entre
1948 e 1954, 95% foram estabelecidos em
antigas áreas de predominância árabe.
O argumento central apresentado pelos líderes sionistas para explicar essas
ausências é o de que os árabes deixaram
suas propriedades em repulsa ao Estado
judaico, estimulados por lideranças locais
ou pelos governos árabes vizinhos. Essa
versão, contestada desde cedo pelos palestinos, passou a sofrer críticas sérias por
parte do grupo de pesquisadores israelenses conhecido como “novos historiadores”. Benny Morris, um dos destacados membros do grupo, é provavelmente quem mais contribuiu para abalar profundamente a versão sionista. Em 1948
and after : Israel and the Palestinians
(Clarendon Press, 1994), por exemplo,
Morris disseca um relatório produzido
pelo Serviço de Inteligência das Forças
de Defesa de Israel referente a seis meses
de conflitos armados, que vão do início
de dezembro de 1947 (logo após a ONU
divulgar seu plano de partição da Palestina) ao começo de junho do ano seguinte
(em seguida à proclamação da independência de Israel).Trata-se, portanto, de
uma análise do que ocorreu apenas na fase
inicial da guerra, quando o Estado israelense nem sequer existia formalmente.
Segundo Morris, o relatório estima
que perto de 390 mil árabes tornaram-se
refugiados no período analisado, com
uma margem de erro de 10% a 15%, e
que pouco mais de 100 mil permaneceram nas localidades em que viviam.
Sobre as causas do êxodo, Morris afirma que o Serviço de Inteligência aponta
não para a “oposição ao estabelecimento
do Estado ou oposição política à perspectiva de viver sob um governo judaico”. Em vez disso, o relatório conclui que
“sem dúvida, as operações hostis” das
forças oficiais sionistas “foram a causa
principal”. E que essas ações, juntamente
com a de grupos “dissidentes judaicos”,
foram responsáveis por 70% do abandono de suas propriedades pelos árabes. As
conclusões referem-se, como já dito, ao
período inicial dos conflitos. O historiador deixou claro, entretanto, como citado por Noam Chomsky em Estados fracassados – o abuso do poder e o ataque à democracia (Bertrand Brasil, 2009), que elas
devem ser estendidas para o conjunto do
processo de expulsão dos árabes. Diz
Morris: “Acima de tudo, quero reiterar,
o problema dos refugiados foi causado
pelos ataques das forças judaicas contra
aldeias e cidades árabes e pelo medo que
esses agressores inspiravam em seus habitantes, combinados com expulsões,
atrocidades e rumores de atrocidades –
além da decisão capital do gabinete de
Israel, em junho de 1948, de impedir o
retorno dos refugiados”.
Apesar disso, Morris não atribui a ação
das forças judaicas a um plano-mestre previamente arquitetado e executado pelos
líderes sionistas. Essa conclusão, entretanto, é criticada pelo historiador palestino
Nur Marsalha. Em The Israel/Palestine
Question (Routledge, 1999), Marsalha diz
que a posição de Morris é contraditória
com a enorme quantidade de declarações
39
Reprodução
Árabes abandonam área onde viviam na Palestina, 1948: a principal causa do êxodo foi a atuação das forças armadas sionistas
de líderes sionistas que ele mesmo coletou. Nessas declarações, ocorridas entre os
anos 1930 e o período imediatamente anterior à criação do Estado judaico, os líderes sionistas falam diversas vezes da
possibilidade de “limpar”, total ou parcialmente, a área da presença árabe.
SOLUÇÃO BIZARRA
Um exemplo: num artigo publicado
na imprensa israelense, Morris diz que, em
1948, o futuro primeiro-ministro Ben
Gurion (o principal líder do Mapai, partido que daria origem ao Trabalhista)
compreendeu que “a guerra havia mudado tudo; um novo conjunto de ‘regras’
tinha de ser aplicado. Terra poderia e deveria ser conquistada e retida; poderia
haver mudanças demográficas”, escreveu
o historiador. Isso ficou claro num pronunciamento feito por Ben Gurion em
fevereiro de 1948, quando, nas palavras
de Morris, ele concluiu que “os distritos
árabes de Jerusalém Ocidental tinham de
ser evacuados e uma mudança demográfica similar poderia ser esperada em muitas áreas do país à medida que a guerra se
alastrasse”. Ben Gurion não foi o único.
Outro proeminente líder do Mapai,
40
Shlomo Lavi, ecoou o mesmo pensamento de forma ainda mais enfática num debate interno do partido, realizado no fim
de julho de 1948. Ele disse, referindo-se
a dois casos de expulsão de populações,
que, a seus olhos, “a transferência de árabes para fora do país” era “uma das mais
justas, morais e corretas coisas que podem ser feitas”. Como essas preocupações se articularam com o que afinal ocorreu não é claro ainda. O que é evidente é
que os líderes sionistas consideravam vital resolver a questão demográfica e isso
aconteceu. A partir daí, foi gerada a chamada questão palestina, que inclui o direito de retorno dos refugiados árabes às
suas propriedades em território israelense, ou, pelo menos, indenização material
como compensação pela expropriação,
conforme definido pela ONU. As Nações
Unidas estimam que na década de 1950
esses refugiados eram 914 mil e que hoje
essa população é de mais de 4 milhões.
O direito de retorno dos palestinos,
no entanto, choca-se com a Lei do Retorno israelense. Foi essa legislação que
permitiu transformar os imigrantes judeus de qualquer parte do mundo em cidadãos israelenses. Encontrar uma solu-
ção para a contradição entre essas duas
proposições parece hoje muito difícil. A
criação de um Estado palestino pode
contribuir para que se chegue a uma saída, desde que não se repitam graves erros cometidos no passado. Não é o que
parece estar ocorrendo, entretanto. Segundo The Economist, o medo de que os
árabes israelenses possam ameaçar a supremacia numérica da população judaica em Israel (o índice de crescimento
demográfico da população árabe é bem
maior que o da média dos não árabes)
tem levado muitos judeus a apoiar a solução dos dois Estados com o objetivo
de transferir uma parte dos árabes israelenses para o Estado palestino.
Conforme a revista, é cada vez mais
aberta em Israel a discussão da proposta de
retirar a cidadania israelense dos árabes que
vivem nas proximidades da fronteira com
a Cisjordânia, alterando a linha demarcatória entre as duas áreas, de forma a incluí-los
no futuro Estado palestino. Em troca,
Israel ficaria com as áreas de alguns dos assentamentos judaicos na Cisjordânia. Uma
ideia tão bizarra quanto as justificativas de
Netanyahu e Barak para participarem juntos do governo israelense.
retratodoBRASIL 22
Ciência:
A PRÓXIMA
REVOLUÇÃO
Os computadores pessoais promoveram mudanças em
escala planetária. O próximo salto, da computação quântica,
pode ser ainda mais avassalador | Flavio de Carvalho Serpa
Uma transformação radical pode acontecer nas próximas décadas, mandando
para o museu os mais poderosos computadores atuais. E, como quase toda
mudança científica e tecnológica arrasta
para frente (ou para trás) as relações humanas, as transformações econômicas e
sociais também podem ser formidáveis,
levando – quem sabe? – a globalização
produzida pela internet a um patamar
muito superior.
As possibilidades são mirabolantes.
Cálculos e simulações que exigem milhões
de anos de trabalho a todo o vapor dos
computadores atuais poderiam ser executados em frações de segundo. São promessas ainda distantes, mas o computador quântico (CQ), que ainda está em estágio de pesquisa e experimentação básica, pode ser um salto espetacular para a
humanidade.
Por exemplo: os mais poderosos computadores atuais gastam semanas de trabalho para simular como uma única molécula simples ou uma droga interferem
no metabolismo de uma célula, numa
doença. Um computador quântico carregado com as instruções do DNA, o material hereditário biológico, vai eventualmente simular eletronicamente o desenvolvimento e funcionamento de uma célula, levando em conta todos os fatores
genéticos e ambientais para descobrir
onde aparecem as doenças.
Outro exemplo, mais concreto: os números primos, aqueles que só são divisíveis por si mesmos e pelo numeral 1 formam a base da criptografia que protege as
transações bancárias e informações secretas. Quanto maior o número primo usado
na chave de criptografia, mais difícil para
um hacker descobrir as senhas. Um supercomputador atual leva semanas para decompor uma chave de 130 dígitos em núretratodoBRASIL 22
meros primos. Levaria nada menos que 10
bilhões de anos, funcionando dia e noite,
o fatoramento (decomposição nos fatores
que o constituem) de uma chave de 400
dígitos. Pois bem, o CQ faria isso em apenas um minuto.
Isso é possível, em princípio, porque
o computador quântico, em vez de usar um
sistema operacional ou programas criados
pela Microsoft ou IBM, vai usar como
“software” as próprias leis da mecânica
quântica e da física atômica, as mesmas
que regem o funcionamento de todos os
sistemas naturais.
Isso quer dizer que hipóteses da ficção científica, do seriado de TV e do cinema Jor nada nas Estrelas, como o
teletransporte, que exigem um CQ para
funcionar, também já estão no radar de
longo alcance dos cientistas.
BONDE DA HISTÓRIA
E como está o Brasil nessa corrida
mundial preparatória de uma nova era da
ciência, da tecnologia e de mudanças sociais? Há minguadas cinco dúzias de abnegados cientistas em todo o País tentando não perder, mais uma vez, o bonde
da história. O Brasil não tem nenhuma
estratégia detalhada, com o planejamento de estimativas de quantos físicos doutorados e pós-doutorados, técnicos, engenheiros, matemáticos, estruturas de
apoio e equipamentos serão necessários
ao menos para as pesquisas básicas.
A culpa não é só do governo. Envolve
uma vasta trama de atrasos de toda ordem,
começando pela tradicional base da pirâmide cultural brasileira. “Há um fenômeno geral, válido para todas as áreas de ciência: são poucos os jovens que escolhem a
pesquisa científica como atividade profissional, se considerarmos o tamanho da
população brasileira”, argumenta o físico
carioca Luiz Davidovich, 63 anos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). “Isso se deve, sem dúvida, à má
qualidade da educação básica e, em especial, da educação em ciências.”
A dificuldade de encontrar jovens interessados na iniciação científica no topo
da pirâmide educacional é especialmente
obser vada na área da computação
quântica, segundo explica a física carioca
Belita Koiller, da UFRJ, ganhadora, em
2005, do prêmio internacional da
L’Oréal-Unesco para mulheres na ciência:
“A computação quântica é uma área essencialmente multidisciplinar”. Depende
de muitas especialidades, abrangendo
áreas como matemática, ciência da computação, física quântica, além de outras
áreas da física, como matéria
condensada, atômica, óptica, fotônica,
nanotecnologia, tanto em atividades teóricas como experimentais. A formação
universitária no Brasil, entretanto, sempre
foi e continua sendo excessivamente compartimentalizada – em cada carreira, os currículos são preenchidos praticamente por
disciplinas obrigatórias restritas à respectiva especialização, dificultando uma formação interdisciplinar mais ampla e moderna.
Além de serem poucos, os pesquisadores dessas diversas áreas estão unidos
apenas virtualmente – o que já é alguma
coisa – no recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica. O físico Amir Caldeira,
coordenador da instituição e professor
do Departamento de Física da Matéria
Condensada da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), explica: “Temos um grupo de 66 pessoas coesas trabalhando nessa área, mas é só isso, um
grupo de pessoas coesas. É um programa de ciência básica, não temos metas
específicas ainda”.
41
Embora a ajuda do governo seja razoável para os padrões brasileiros, segundo Caldeira, o montante deixa a desejar
se comparado com outros países semelhantes. “Ganhamos no projeto passado
2 milhões de reais para o Instituto do
Milênio de Informação Quântica, para
serem gastos ao longo de três anos por
12 instituições espalhadas pelo Brasil inteiro. Quando estive na Austrália e na
Nova Zelândia, em 2005, vi que eles tinham um projeto semelhante, que envolvia quase o mesmo número de instituições, mas com um detalhe: o projeto deles recebia 2 milhões de reais por ano por
instituição. A dotação para uma única
universidade lá era equivalente ao total
para todas as instituições brasileiras em
três anos!”, lamenta ele.
“Com a criação do instituto, melhorou
– quase quadruplicou a verba – mas ainda
é pouco para coisas mínimas, como convidar um figurão de fora para dar aqui um
minicurso, participar de eventos no exterior, equipar melhor os laboratórios”, diz
Caldeira. “Não temos um instituto do qual
se possa esperar produtos num determi-
nado prazo. Para isso acontecer, todo o
direcionamento tem de ser diferente”, diz.
GARGALOS DE HARDWARE
O CQ está um pouco mais além do
estágio em que estava a computação em
1936, quando Alan Turing criou uma
máquina abstrata que permitiu definir
precisamente, pela primeira vez, noções
básicas como algoritmo, programa e
computação. Por várias décadas, a máquina de Turing foi um modelo teórico que
inspirou o amadurecimento de dispositivos de chaveamento sim/não (ou zero/
um), primeiramente das válvulas
termiônicas e depois dos transistores. Na
época, a empreitada foi tremendamente
facilitada porque o dispositivo físico necessário à materialização do computador
teórico de Turing já existia havia várias
décadas – era a válvula termiônica dos
antigos rádios. Mesmo assim, o primeiro
computador, o Eniac, só funcionou em
1946, dez anos depois da solução demonstrada por Turing. Era um
monstrengo de 30 toneladas que ocupava uma sala de 180 m2, mas tinha uma
Giuseppe Bizarri
Belita, pesquisadora: falta grupo experimental forte na área do silício
potência equivalente às calculadoras de
bolso atuais.
Isso não acontece agora. Existe quase
uma dezena de sistemas quânticos candidatos a serem o processador do CQ, cumprindo o papel das antigas válvulas ou dos
modernos transistores. Considerando-se
todos os aspectos relevantes, nenhum
desses sistemas experimentais tem vantagens claras sobre os outros.
Definir conclusivamente o hardware
adequado para processar os algoritmos
do CQ é a próxima etapa, ainda em discussão por físicos e engenheiros. “Nos
próximos cinco anos, os sistemas estarão mais bem garimpados”, arrisca
Belita, sem muita convicção. Os candidatos a hardware são os mais díspares
possíveis, como elétrons flutuando em
hélio líquido, íons presos em armadilhas
eletrônicas e até dispositivos baseados
no material clássico da computação
moderna, o silício, cuja tecnologia é familiar aos fabricantes de microprocessadores. A viabilidade do silício para essa
finalidade é assunto pesquisado teoricamente por Belita.
A vantagem do silício é que sua tecnologia já é bem dominada no mundo,
mas mesmo assim a preparação de bits
quânticos no silício exigiria uma fabricação extremamente mais refinada do que
a Intel faz hoje, por exemplo.
Para entender a complexidade e o
desafio da física, é preciso compreender
como o computador quântico poderá
funcionar. O CQ usa duas propriedades
surpreendentes da mecânica quântica para
realizar as operações de computação: a
sobreposição e o emaranhamento.
O GATO ZUMBI
A primeira delas é a que viola a ideia
aristotélica clássica de que duas coisas diferentes não podem ocupar o mesmo lugar
ao mesmo tempo. Um elétron, a partícula
de carga básica, possui um atributo quântico,
denominado spin, que poderia ser descrito
classicamente em analogia com o giro de
um pião. Mas, no mundo quântico, o giro
do pião do elétron pode ocorrer no sentido horário (para baixo), no sentido anti-horário (para cima) ou, bizarramente, para
cima e para baixo ao mesmo tempo. Isso
ocorre porque a equação que descreve o spin
do elétron pode fornecer o valor do spin
para cima, para baixo e mais uma infinida42
retratodoBRASIL 22
de de soluções que são superposições das
duas anteriores.
Os físicos discutem até hoje o significado filosófico dessa bizarrice, mas ela já
está exaustivamente provada. Não é um
problema recente. A questão foi levantada em 1935 pelo físico Erwin Schrödinger
e ficou conhecida como o “gato de
Schrödinger”. Foi uma experiência hipotética na qual um gato era preso numa
caixa com um vidro de gás letal que poderia ser quebrado por uma atividade
nuclear probabilística. Quem não estivesse vendo o interior da caixa não saberia
se o gato estava vivo ou morto. Logo, a
função de onda – o objeto quântico que
descreve coisas – daria um resultado que
seria a sobreposição do gato vivo com o
morto. O gato zumbi de Schrödinger
atormenta até hoje os físicos.
Existem outras interpretações consideradas igualmente inusitadas. Uma delas é que existem universos paralelos e
que o gato está vivo num universo e
morto em outro. Uma consequência extravagante é que, ao se abrir a caixa para
verificar o estado do gato, caso ele esteja vivo ainda, o universo no qual ele está
morto desaparece sem deixar rastro.
Punk, não?
retratodoBRASIL 22
Com essa propriedade esquisita, o CQ
pode ter bits especiais diferentes dos usados pelo computador clássico. Em vez de
ter apenas os valores um ou zero da lógica binária, o CQ pode ter os valores um,
zero e um e zero. Pode parecer uma diferença modesta, mas, à medida que se amplia a quantidade de bits, o crescimento é
exponencial. Com três bits, os valores clássicos são: 000, 001, 011, 111, 100, 110.
Mas, nos bits quânticos, batizados de qubits,
esses valores podem ser, além dos mencionados antes, também as superposições
deles, como, por exemplo, [50% 000 +
50% 001] ou [90% 000 + 10% 011] e assim por diante, gerando um número infinito de possibilidades.
O FANTASMA DE EINSTEIN
A segunda propriedade da mecânica
quântica que viabiliza o CQ é igualmente
excêntrica e foi batizada por Albert
Einstein como uma coisa “fantasmagórica”. Trata-se de algo absurdo no mundo
clássico. Se duas partículas interagem intimamente, elas passam a fazer parte de
um sistema único e ficam, como dizem
os físicos, “emaranhadas”. Quer dizer
que, se dois fótons são criados e cada um
dispara em uma direção do universo, eles
vão estar ligados. Se for feita uma observação em um deles, numa ponta da galáxia, isso se reflete imediatamente, num
tempo zero, no outro lado da galáxia.
Com essas duas características, já temos
as propriedades necessárias para resolver
problemas com o CQ. Vejamos um problema simples, como, por exemplo, achar
a saída de um labirinto complexo. No computador clássico, o processador simularia
uma partícula percorrendo o labirinto
numa determinada ordem, como entrar
sempre nas passagens à direita, por exemplo. Se não desse certo, voltaria ao começo e tentaria todas as portas à esquerda. Se
não desse certo novamente, tentaria a primeira porta à direita e depois todas à esquerda e assim sucessivamente. É uma
trabalheira.
Mas, no caso do CQ, logo na primeira
bifurcação, o processador usa a propriedade quântica da sobreposição e gera ondas que vão ao mesmo tempo pelas duas
portas. Na bifurcação seguinte a mesma
coisa, indefinidamente, gerando um batalhão de ondas fantasmas ou qubits. Aí entra
a segunda propriedade fantasmagórica da
mecânica quântica, o emaranhamento.
Todos esses fantasmas estão emaranhados e fazem parte de um único sistema,
43
não importa quão longe estejam. O fantasma que achou a porta de saída do labirinto então transmite para todos os outros
o caminho certo. Como dizem os físicos,
todo esse emaranhado de fantasmas
“colapsa” para apenas um valor certo. Os
outros vão para seus universos paralelos,
se é que isso tem algum sentido físico.
Com os progressos da física experimental, descobriu-se que a equação de
onda do gato zumbi, ou dos batalhões de
fantasmas no labirinto, não ficaria muito
tempo nessa situação de emaranhamento.
A coerência entre os estados vivo/morto logo desaparece em laboratório. Depois de um certo tempo, o gato estaria
morto ou vivo, mas de maneira excludente. Isso acontece espontaneamente sempre que há uma interferência externa,
como uma carga elétrica ou algum ruído
do mundo clássico.
O curto tempo de coerência é um dos
principais obstáculos ao desenvolvimento do CQ. Davidovich é um dos brasileiros que com frequência publicam pesquisas teóricas sobre o assunto em revistas
internacionais. Recentemente ele conseguiu, pela primeira vez, medir a dinâmica
de emaranhamento de pares de fótons, o
que vai ajudar a definir quanto tempo o
CQ pode funcionar antes de travar – no
caso, antes de perder a coerência entre os
qubits ou colapsar para um valor único,
sem superposições. Essa é igualmente a
área de trabalho de Caldeira.
O Brasil tem também trabalhos na
área teórica dos “softwares” do computador quântico, que, na verdade, são
algoritmos para resolver os problemas.
São basicamente duas áreas: os algoritmos
de busca e os de fatoração, como os usados no desmembramento de números primos para a criptografia. Renato Portugal,
do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), é um dos craques
nessa área e tenta também disseminar o
interesse pelo CQ. É um dos autores de
um dos raros livros em português para
iniciação dos interessados.
Isso é um problema sério: “Com relação à divulgação para o público leigo, as
iniciativas são muito poucas e esbarram em
um problema geral da sociedade brasileira”, avalia Portugal. “Existe um enorme
fosso entre os pesquisadores e a população em geral. Deve ter alguma relação com
a desigualdade social, tipo da favela para a
44
classe alta. É muito difícil falar sobre computação quântica ou qualquer área de ponta
da ciência para uma pessoa que não tenha
nível universitário. Se não tiver nível secundário, aí o problema é sério. Já conversei
com gente que tinha nível universitário e,
depois de muito falar que uma das
implementações da computação quântica
usa átomos em uma molécula, acabei percebendo que a pessoa não estava entendendo nada. Era porque ela não sabia que
moléculas são feitas de átomos.”
O cientista acredita que parte da culpa vai para a ala acadêmica também. “Eu
acho que há pouco estímulo, muito por
causa dos próprios pesquisadores, que
não investiram energia suficiente para
mostrar que a área é estratégica e fundamental em médio prazo. Uma das coisas
que mais freiam o desenvolvimento de
áreas novas no Brasil é a característica dos
pesquisadores brasileiros de serem resistentes a mudanças de área. Se um pesquisador fez um nome ou tem reconhecimento numa determinada área, ele não
muda e não incentiva jovens a investirem
em novas áreas”, lamenta ele.
MONTANHA DE DINHEIRO
Portugal já trabalhou na Universidade
de Waterloo, no Canadá, um dos maiores
centros mundiais de CQ, que rivaliza até
mesmo com os centros americanos. “O
investimento lá é muito maior. Somente
no ano passado, a Universidade de
Waterloo recebeu do bilionário e visionário Mike Lazaridis – fundador da RIM,
criadora do celular BlackBerry – uma
doação de 140 milhões de dólares para a
computação quântica.” Uma montanha
de dinheiro que humilha o orçamento de
vários anos do LNCC.
O maior gargalo, no entanto, é na área
experimental, como explica Belita: “Sinto falta de um grupo experimental forte.
Essa área de experimentação de silício
não é tão desenvolvida no Brasil como
seria desejável”, lamenta. Sua pesquisa é
baseada em trabalhos experimentais realizados no exterior e busca um candidato
a processador quântico viável do ponto
de vista das operações lógicas e com tempo de coerência longo.
Para isso é preciso projetar um sistema muito blindado do mundo exterior,
evitando que as interferências clássicas destruam a coerência do qubit. Um bom lugar
para fazer isso é a matriz cristalina do silício. “Essa é uma armadilha perfeita do
ponto de vista da natureza, porque o átomo está lá e não sai”, diz ela. A armadilha
pode ser feita injetando-se um átomo diferente, chamado dopante, na matriz cristalina pura do silício. “Esse átomo possui
um elétron a mais com um spin desemparelhado. É o mesmo tipo de impureza que
se usa na dopagem tradicional de
semicondutores. A diferença é que essas
impurezas têm de ser adicionadas uma a
uma, em posições conhecidas, para que
possam ser manipuladas por eletrodos,
campos magnéticos, etc. O spin do elétron
ligado ao dopante forma um qubit perfeito por ter dois estados (para cima e para
baixo). Como é um atributo quântico, o
spin interage fracamente com o meio ambiente, sendo menos contaminado pela
‘descoerência’ do que uma propriedade
clássica, como a carga”, detalha ela.
“O silício para o CQ tem de ter alto
grau de pureza e cristalinidade e, além disso – o que difere da usinagem clássica da
indústria de semicondutores –, tem de ser
purificado isotopicamente, porque 5% dos
isótopos desse material como encontrado
na natureza têm spin nuclear que interage
com o spin do elétron, representando um
fator de ‘descoerência’. Idealmente deve
ser utilizado o silício 28 purificado, cujo
spin nuclear é nulo. Já foi demonstrado que
isso aumenta muito o tempo de coerência. Se for comprovada a viabilidade de
alguma das arquiteturas propostas, a indústria teria todo o interesse em produzir esse
material”, diz a cientista.
Apesar do trabalho pioneiro, Belita percebe certa falta de interesse pela ciência no
País. Por exemplo, ao contrário da imprensa de outros países, inclusive da América
Latina, a brasileira não dá muito destaque
à ciência. “O esporte parece ofuscar todas
as outras áreas. Isso se multiplica na opinião pública e os jovens tendem a escolher
carreiras como economia, advocacia. Opções científicas, que podem ser bastante
gratificantes, não são nem sequer consideradas.” Mas nem tudo está perdido. “Sou
uma otimista. Acho importante o Brasil
acompanhar essa nova área, que é estratégica. Quem dominar a ciência e a tecnologia garante o futuro. E a ocasião é boa,
porque o hardware do computador quântico
não está definido, temos uma chance de
chegar na fronteira”, conclui a cientista.
retratodoBRASIL 22
Paisagismo:
C
O
Q
O MARX DOS
CACTOS E CURVAS
Quem não conhece o calçadão de Copacabana? As curvas em mosaico português
branco e preto emolduram a praia mais
famosa do Brasil e fazem parte do imaginário dos brasileiros. Além do calçadão na
avenida Atlântica, há o paisagismo do
Aterro do Flamengo, os jardins do Museu
de Arte Moderna do Rio, os jardins do
Edifício Gustavo Capanema (antiga sede
dos ministérios da Educação e da Saúde,
também no Rio de Janeiro), o conjunto
paisagístico da Pampulha, em Belo Horizonte, o projeto paisagístico para o parque do Ibirapuera em São Paulo (não construído), o paisagismo do Eixo Monumental em Brasília, os jardins de vários dos
palácios na capital federal e, para não citar
apenas projetos no Brasil, os jardins da
sede da Unesco em Paris e do Parque del
Este, em Caracas. Todos fazem parte da
numerosa obra de Roberto Burle Marx,
responsável por recriar a vegetação dos
trópicos em espaços públicos (e privados)
das cidades. Se fosse vivo, Burle Marx completaria cem anos em 2009.
Considerado o maior paisagista brasileiro, esse pernambucano filho de pai
alemão foi para a Europa na década de
1920 tratar-se de um problema ocular.
Em Berlim, visitou o Jardim Botânico de
Dahlen, onde se maravilhou com a flora
nativa brasileira. Na seção das plantas tropicais, cactos, bananeiras, bromélias e
toda sorte de plantas que não eram consideradas nobres o bastante para fazer
parte de um jardim surgiram diante de
seus olhos e o colocaram frente a um
mundo novo. Nessa estada, estudou canto e tomou contato com a vanguarda
Todas as imagens: Divulgação Cosac Naify
Um dos principais paisagistas do século XX, pioneiro na
criação de formas baseadas na flora brasileira, Burle
Marx completaria cem anos se fosse vivo | Ana Castro
Burle Marx no Sítio de Guaratiba em 1989
retratodoBRASIL 22
45
europeia, frequentou óperas, museus e
galerias, conheceu as obras de Van Gogh,
Picasso, Klee e visitou várias vezes o ateliê de pintura de Degner Klermn.
“VERGONHA DA MATARIA”
De volta ao Brasil, matriculou-se na
Escola Nacional de Belas Artes, da qual
frequentou os cursos de arquitetura e escultura. Em 1932, fez sua primeira obra
– os jardins da Casa Schwartz em Copa-
cabana, projeto de Lucio Costa e Gregori
Warchavchik, considerados pais da arquitetura moderna brasileira. Mas foi na experiência recifense, entre 1934 e 1937,
quando ocupou o cargo de diretor de Parques e Jardins da prefeitura, que o paisagista amadureceu. Tomando parte no governo progressista de Lima Cavalcanti, ao
lado de outros nomes importantes da arquitetura brasileira, como Luís Nunes –
que dirigia o Departamento de Obras da
Jardins do MAM do Rio: gramado em ondas dá continuidade ao piso em mosaico
capital pernambucana –, o paisagista projetou uma série de praças e jardins públicos e criou o primeiro Parque Ecológico
do Recife. O Cactário da Madalena (hoje
praça Euclides da Cunha), um exemplo
desse período, provocou horror na elite
pernambucana. Acostumada às perspectivas francesas dos jardins europeus, a
presença de plantas da caatinga em praça
pública foi demais para a oligarquia local. “Vergonha das intimidades exageradas da mataria”, diria Mario Pedrosa.
Para essa elite, tratava-se de devolver a
cidade à selva.
O contato com artistas e intelectuais
na década de 1930, como Portinari (de
quem se tornou assistente) e Mario de
Andrade (de quem seguiu aulas na Universidade do Distrito Federal), e a ligação com os arquitetos modernos, como
Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso
Eduardo Reidy, Rino Levi, entre outros,
o colocaram no centro da renovação
arquitetônica nacional – e sua obra não
tem menos importância nesse aspecto. A
integração entre arte, paisagem e arquitetura, que marca a moderna arquitetura
brasileira, deve muito ao talento do paisagista, que pensava os jardins integrados à arquitetura, fazendo parte da construção tanto quanto as colunas do Palácio do Itamaraty, por exemplo, são parte daquele edifício. Nessa época, o paisagista passou a experimentar formas
orgânicas e sinuosas, projetando suas
obras mais conhecidas no Brasil, como
as citadas anteriormente.
INTERPRETAÇÃO DA PAISAGEM
Apaixonado por botânica, em 1949
Burle Marx deu início a uma coleção de
plantas ao adquirir uma área de 800 mil
m² em Guaratiba, no Rio (antigo sítio
Santo Antônio da Bica, hoje sítio Burle
Marx, pertencente ao Ministério da Cultura e aberto à visitação), e ali criou um
imenso viveiro de plantas que passou a
alimentar seus jardins.
Burle Marx realizou viagens para as diferentes regiões do País, onde coletou e catalogou exemplares, que depois seriam introduzidos em seus projetos paisagísticos.
Não foi, entretanto, a introdução da flora
nativa o seu maior feito – alguns jardins
cariocas do início do século também contavam com essas plantas –, e sim “transferir para o projeto de seu jardim a diversi46
retratodoBRASIL 22
Ministério das Relações Exteriores, Brasília: além dos paisagismo do Eixo Monumental, os jardins internos também foram contemplados no projeto
dade, a instabilidade e os complexos processos de associações naturais de plantas
tropicais, o que pressupunha um intenso
trabalho de interpretação da paisagem”,
como explica Vera Siqueira em Burle Marx
(Cosac Naify, 2001).
Em seus projetos, nota-se a preocupação com as massas de cor, que são
construídas a partir da disposição de arbustos e árvores em grupos homogêneos,
cujo potencial de variação cromática ao
longo das estações do ano também é levado em conta. São formas orgânicas dentro de contornos precisos; muitas vezes,
canteiros construídos; outras, massas de
vegetação que pouco se diferenciam aos
olhos do leigo da própria natureza, como
é o caso dos jardins da casa dos Moreira
Salles, na Gávea, no Rio (atualmente Instituto Moreira Salles, também aberto à
visitação). Ali, tem-se a impressão de estar num trecho de mata atlântica – o que
não é de todo falso, pois o jardim foi projetado pelo paisagista de forma a integrálo à mata circundante do sopé da Pedra
da Gávea.
Próximo de completar 80 anos, esse
“arquiteto de jardins” – como lhe chamou
um dia Pietro Maria Bardi –, que foi também pintor, escultor e tapeceiro, foi tema
de enredo de escola de samba no Rio e
retratodoBRASIL 22
sua obra teve a consagração definitiva com
a retrospectiva “Roberto Burle Marx –
The unnatural art of the garden”, no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova
York, em 1991, ano em que foi agraciado
com mais um título de doutor honoris causa, pela Faculdade de Arquitetura da
Università degli Studi di Firenzi, na Itália, que o considerou o mais eminente
paisagista do século XX.
OBRA EXCEPCIONAL
Burle Marx faleceu em 1994, aos 84
anos, tendo projetado mais de 2 mil jardins ao longo da vida, nos quais buscou
subordinar a natureza à linguagem
paisagística que criou. Segundo o professor de Paisagismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo (FAU-USP) Euler Sandeville, para perceber a excepcionalidade da
obra de Burle Marx no contexto da
modernidade, basta confrontar sua produção com as correntes principais dos
paisagismos europeu e americano contemporâneos, como Theo Van Doesburg
ou Robert Mallet-Stevens. Para Sandeville, “trata-se de um desenvolvimento para
além do gosto, da moda, da maneira, no
âmbito essencial da estética”.
Hoje, algumas das principais obras
de Burle Marx encontram-se num precário estado de conservação, como os
jardins do aeroporto Santos Dumont e
do Museu de Arte Moderna – ambos em
aterros na Baía de Guanabara –, os calçadões de Copacabana, parcialmente
desfigurados, ou mesmo o Cactário da
Madalena, este em processo de restauro
pela associação de um grupo de profissionais da Prefeitura do Recife e da Universidade Federal de Pernambuco. No
começo deste ano, a prefeitura carioca
anunciou o tombamento de 88 obras do
paisagista inventariadas na cidade, 22 das
quais em espaços privados, decisão anunciada pelo arquiteto Washington
Fajardo, subsecretário de Patrimônio
Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design do Rio.
Segundo Fajardo, entretanto, o tombamento – que ele considera a forma de
reconhecimento da responsabilidade do
poder público – não basta para a conservação dos jardins. Seria necessária a criação de um fundo com o objetivo de “assegurar recursos para manutenção”, disse o arquiteto em entrevista ao jornal O
Estado de S. Paulo em janeiro deste ano. E
o centenário do paisagista tem se mostrado uma boa data para se começar a
pensar sobre isso.
47
Política
CASO DANTAS:
UM DEBATE
O presidente da Previ, Sérgio Rosa, e o repórter
Raimundo Rodrigues Pereira discutem as conclusões do
artigo publicado na última edição de Retrato do Brasil
UMA VISÃO
DESEQUILIBRADA
Caro Raimundo,
Em primeiro lugar, e sem ironia,
devo dizer que seu texto será considerado, sem sombra de dúvida, a maior matéria publicada em revista em defesa do
sr. Daniel Dantas. Claramente você elegeu o próprio personagem principal
como sua principal e mais acreditada
fonte, e a maior parte do texto aborda
os argumentos que ele próprio e seus
advogados construíram para sua autodefesa. Creio que, independente das
crenças próprias do jornalista, uma vez
que parece não haver problema de espaço, faltou maior equilíbrio na apresentação de argumentos de todas as partes
envolvidas no conflito. Os argumentos
do sr. Dantas tomaram a quase totalidade da matéria, seja na remontagem do
histórico da legislação pertinente aos
fundos destinados a investidores estrangeiros, seja na descrição de todos os demais fatos selecionados.
Aliás, a seleção dos fatos também me
parece um tanto curiosa. As sentenças (ainda que preliminares) proferidas tanto pela
corte de Cayman quanto pela de Nova
York; as questões relativas ao Consórcio
Voa e outros do tipo; a curiosa matéria de
Veja sobre contas de autoridades no exterior; a polêmica contratação da Kroll; a
venda do controle da Brasil Telecom (BrT)
para a Telecom Italia (TI), bloqueada pela
Justiça; o acordo “Umbrella”; a tomada
de empréstimos junto à BrT para a compra de participação acionária em outra
empresa; todos esses fatos e outros passam completamente esquecidos, apesar da
extensão da matéria.
Quanto à parte que diz respeito aos
fundos de pensão e particularmente à
Previ, gostaria que constasse a nossa
versão, ainda que ela não conte com a
simpatia do repórter. Os fundos de pen48
são iniciaram seus conflitos com o
Opportunity a partir do ano 2000 (portanto, antes do governo do presidente
Lula), por razões bastante objetivas,
tais como cobrança indevida de taxas
de administração, falta de prestação de
contas e fragilidade dos investimentos
realizados através do CVC (perguntamos, por exemplo, se o fundo brasileiro teria tag along em relação ao fundo
estrangeiro, e o Opportunity nunca nos
assegurou esse direito).
A destituição do Opportunity como
gestor do fundo foi baseada em fatos,
apresentados à Assembleia de Cotistas,
que caracterizavam, em seu conjunto, a
“quebra do dever fiduciário”. Ficou demonstrado que o Opportunity tomou
medidas contrárias aos interesses do
próprio fundo, vale dizer, dos seus
cotistas, assim como utilizou as prerrogativas de gestor do fundo para realizar operações e estabelecer acordos em
benefício próprio.
A Previ não empreendeu “campanha”
contra o Opportunity, muito menos em
nome do governo. A Previ agiu como investidor diligente, tomando as providências necessárias para proteger seus interesses, que em última instância são os interesses dos associados da entidade. Os fundos
não “ficaram com a TI desde 2000”, em
assunto que o jornalista considera relevante e demanda que seja mais bem examinado mais adiante. Quem escolheu a TI
como sócia do consórcio foi o Opportunity. Quem negociou os acordos que regiam
os direitos da TI na empresa foi o Opportunity. Quem chegou a vender o controle
da BrT para a TI foi o Opportunity, de
maneira irregular, o que resultou na suspensão dessa venda pela Justiça e posterior suspensão da maior parte desse acordo
(embora o Opportunity tenha recebido
uma parcela dessa transação). A relação
dos fundos com a TI ocorria em torno das
matérias tratadas no Conselho de Administração da BrT, que eram objeto de reunião prévia de acionistas. O repórter parece ter confundido meus comentários
sobre a consolidação do setor de telefonia envolvendo os celulares no início dos
anos 2000 (quando o Opportunity
posicionou-se de forma a prejudicar eventual unificação de empresas como Telemig,
Americel e Telet) com a tentativa de negociação com a TI posteriormente, quando
ela manifestou interesse em adquirir o controle da BrT.
No caso da aquisição da Companhia
Riograndense de Telecomunicações
(CRT), os fundos em nenhum momento
participaram de qualquer negociação ou
tomaram qualquer decisão que não fossem as apresentadas pela diretoria da BrT,
que defendeu a aquisição como estratégica e apresentou as faixas de valores para
a negociação, bem como a proposta final
que foi finalmente fechada.
A indicação dos diretores da Previ por
parte da patrocinadora do plano (vale
dizer, o Banco do Brasil) é de responsabilidade do Conselho Diretor do Banco
do Brasil, que está formalmente vinculado ao Ministério da Fazenda.
Os acordos firmados entre os fundos de pensão e o Citibank representaram o amadurecimento das partes na
busca de uma saída comum e adequada
para seus investimentos. Ambos chegaram à conclusão de que a gestão do
Opportunity não seria capaz de oferecer uma saída justa e satisfatória para
as partes. A evolução da posição do
Citi ao longo do tempo não se deveu a
pressões, mas sim ao surgimento de fatos sucessivos que indicavam o risco que
todos os investidores estavam correndo. Todas as divergências entre o Citi e
o Opportunity foram expostas em processo aberto na corte de Nova York.
Seria demais imaginar que o Citi se arriscaria num processo desse tipo apenas por pressão dos fundos brasileiros.
A demissão do sr. Humberto Braz da
Brasil Telecom Participações e a auditoria empreendida pela nova gestão da empresa foram providências tomadas no
âmbito da própria empresa e podem ser
consideradas de praxe. A troca dos exeretratodoBRASIL 22
UMA
SIMPLIFICAÇÃO
EXAGERADA
Prezado Sérgio,
1. Você se engana quanto ao método
do trabalho jornalístico. Contar a história de um conflito não é relatar todos os
fatos e buscar um “equilíbrio” na apresentação de argumentos de todas as partes envolvidas. O jornalista não é um
anjo, equilibrado acima do bem e do
mal, de onde expõe todos os fatos. Faz
a sua crítica a partir de posições, interesses. Fatos e argumentos, há uma
miríade deles; uns e outros cercados por
um cipoal de interesses, de contradições.
Um jornalista não deve terceirizar suas
obrigações diante da aparente confusão;
não deve contar uma história dizendo que
a verdade é que fulano diz isso e sicrano
diz aquilo. Deve selecionar o que é relevante e dispensar o que não é. Pode errar, é claro. Você cita sete assuntos que
deixei, a seu ver, “completamente esquecidos”. Não tem razão: de fato, examinei todos eles. Para ficar num exemplo:
o que é a “matéria de Veja sobre contas
de autoridades no exterior”?
São várias matérias. A revista, aparentemente aproveitando informações
de Daniel Dantas, em 2005, foi atrás de
retratodoBRASIL 22
A expulsão de Daniel Dantas das
telecomunicações foi como o descarrego de um
demônio que instabilizaria o setor. Esse
exorcismo confundiu a compreensão dos
complexos problemas nascidos da privatização
das estatais brasileiras | Raimundo Rodrigues Pereira
1. Quem é Daniel Dantas?
Mundo, mundo, vasto mundo.
Se você não se chamasse Raimundo,
Faltaria uma rima,
Mas já seria uma solução.
Um abraço,
Sérgio Rosa
um ex-agente da CIA e da Kroll, em
busca de contas secretas do presidente
Lula e de outros dirigentes do governo.
Não achou prova alguma. Engavetou o
assunto por meio ano. No clima da campanha contra o governo Lula, a partir da
denúncia do chamado “mensalão”, resolveu publicar a história, mesmo sem
provas. Atacada depois, por muita gente, Veja se saiu com a desculpa de que
Dantas poderia ser um chantagista. O
que você viu de relevante nessa história?
Acho que foi mais uma oportunidade
para demonizar Dantas.
Você diz que enfiei no artigo uma
“suposta contradição” entre ser contra
as privatizações e ter lucrado com elas,
mais com a intenção de prejudicar a imagem dos fundos e defender a de Dantas.
É um erro. Não fiz uma avaliação mais
geral da pessoa de Daniel Dantas. Conto uma história diferente: dos interesses
que ele defendeu e dos que se opuseram
a ele. E fiz isso de um ponto vista explícito: o de quem acha que a privatização
das estatais brasileiras – das teles, inclusive – causou dano ao País. Nesse sentido, nossas posições divergem porque
você não vê essa contradição e para mim
ela é importantíssima. Historicamente,
nas lutas sociais, entre as camadas de trabalhadores, formam-se setores privilegiados que podem ser cooptados a defender os interesses do grande empresariado. E, na história que conto, acho que
foi isso que aconteceu: os fundos de pen-
Política
Alex Silva
cutivos mais relevantes e a realização de
uma due diligence legal são comuns em qualquer caso de troca de comando.
Quanto aos comentários sobre “o esquema de controle da BrT por Dantas” e
a suposta regra geral em que os “fundos
põem muito dinheiro e mandam pouco”,
o repórter parece encontrar aí uma espécie de justificativa para tudo que aconteceu na BrT, como se o Opportunity não
tivesse feito nada demais, mas apenas e
tão somente repetido a regra geral. Não
é o caso. Se é verdade que os gestores de
fundos de private equity têm mandato para
realizar inúmeras operações em nome do
fundo (afinal, são contratados e remunerados para isso), não podem e não devem faltar com a prestação de contas e
com a fidelidade aos seus cotistas. Ademais, no presente caso, os fundos tinham
investimentos diretos fora do fundo gerido pelo Opportunity, e o Opportunity
tomou medidas (como a assinatura do
“Umbrella”) que só o beneficiavam.
Quanto à suposta contradição entre
o posicionamento pessoal com relação
às privatizações e o dever de defender
os interesses dos fundos nas empresas,
bem, não sei bem o que esses comentários fazem nessa matéria. Poderíamos
discutir longamente o assunto, com direito e respeito à opinião das partes interessadas neste debate. Mas, no presente caso (na presente matéria), o fechamento parece apenas buscar mais uma
contradição dos fundos, mais uma incongruência a dizer que não deveríamos realmente estar onde estivemos, atrapalhando e incomodando o personagem principal que, mandatado e pago para fazer
o que fazia, bem-nascido e desde sempre a favor das privatizações, iluminado
e com competência comprovada desde
os bancos escolares, este sim deveria ter
sido deixado em paz a fazer o seu trabalho, posto que, ao contrário das citações
da abertura, o referido cidadão está mais
para cristão injustiçado e perseguido do
que para demônio.
O DIABO
DAS TELES
12
retratodoBRASIL 21
Para alguns, Daniel Dantas seria o símbolo
da “privataria”, nome que muitos dão, com
fundadas razões, ao processo de venda das
estatais brasileiras. Talvez, para mais gente
ainda, Dantas é pior que isso – é o demônio.
• Um amigo do repórter, que conhece pessoalmente o personagem e acompanha sua
história há mais de uma década, responde,
em síntese, numa conversa de uma hora e
meia no fim de fevereiro: “É um gênio do
mal, comandante de forças poderosíssimas,
articulado com o que há de pior nas estruturas do Estado brasileiro”.
• O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal, especializada em crimes contra
o sistema financeiro nacional e em lavagem
de valores, dedicou quatro páginas de sentença em que condenou Dantas a uma espécie de avaliação psicológica. Diz que ele é
de “uma individualidade ímpar e irracional, egocêntrico”, “se desvincula facilmente
dos parâmetros sociais para satisfação de
seus interesses” e conclui: “sem hesitar, acredita no dinheiro, não como instrumento
legítimo para circulação de bens, mas como
algo determinante de suas ações ou omissões, bem como de todas as pessoas que
passam por seu caminho”.
• A senadora Heloísa Helena (PSOL-AL),
falando a Dantas na reunião conjunta das
comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs) “dos Correios” e da “Compra de Votos”, em setembro de 2005: “DuDANTAS, COMO LÚCIFER, O ANJO
EXPULSO DOS CÉUS Ilustração com base
em desenho do romance gráfico Prelúdios e
Noturnos, de Neil Gaiman. No original, o
rosto do anjo é do compositor David Bowie
retratodoBRASIL 21
rante toda a minha militância no PT, eu
sempre ouvi falar de Vossa Senhoria [...]
meio como um Lúcifer, o gênio do mal,
alguém preparado para as piores coisas, para
tudo aquilo que, na minha opinião, é da
essência do capitalismo: a chantagem, o
suborno, a espionagem, a corrupção”.
• A senadora Ideli Salvatti (PT-SC), atacando Dantas na reunião da Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em
meados de 2006, à qual ele compareceu para
esclarecer a denúncia da revista Veja de ter
sido a origem das informações que levaram
o semanário a publicar uma lista apócrifa
de pessoas com contas ilícitas em paraísos
fiscais, dentre as quais o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e Paulo Lacerda, então
chefe da Polícia Federal (PF): “Eu tenho o
convencimento de que o senhor faz o que
for preciso, com quem quer que seja, utilizando todo e qualquer instrumento, legal,
ilegal, [...] todo o elenco possível e
imaginável; com este, com outro, com qualquer governo, porque, para o senhor, eu
acho que só interessa o seu interesse financeiro, em primeiro, em segundo, em terceiro e até o último lugar”.
• A revista Veja, na edição de 16 de julho do
ano passado, comentando a prisão de
Dantas, por duas vezes, uma semana antes, na Operação Satiagraha: “Ele é expoente entre os negociantes e sistemas empresariais que nunca se expuseram ao poder purificador da concorrência, que se escondem
sob as asas estatais para fugir dos rigores da
lei e do vento trazido pela abertura econômica. Nada sabem sobre inovação ou produtividade, os reais motores da criação de
riqueza no sistema capitalista. Nesta condi-
ção, Dantas envolveu-se em praticamente
todos os grandes escândalos de economia
mista – estatal e privada – da última década
no Brasil”.
Demonizar alguém não é uma boa solução para um grande problema – no caso,
o processo de privatização do sistema brasileiro de telecomunicações. Este repórter
buscou uma outra saída; e, nas três primeiras partes desta história, procurou dizer
quem é Dantas e qual o seu negócio.
No processo em que foi condenado pelo
juiz De Sanctis a dez anos de prisão em
regime fechado e ao pagamento de multa
de 12 milhões de reais, Dantas chegou a ser
acusado pelo delegado federal Protógenes
Queiroz de ter oferecido dinheiro para tentar livrar o filho da prisão. Dantas não tem
filho, mas uma filha, que vive na França.
Ele mora no Rio de Janeiro, com a mulher,
num apartamento na Vieira Souto, a avenida mais famosa de Ipanema. O repórter o
visitou em meados de setembro passado,
cerca de um mês depois de seu depoimento à “CPI do Grampo”, durante a qual ele
convidou qualquer dos parlamentares presentes a ir a sua residência para confirmar a
mentira disseminada pelo noticiário sobre
a existência de uma parede falsa atrás da
qual os agentes da PF, durante sua prisão,
teriam encontrado discos rígidos de computador com registros criptografados.
De fato, a parede falsa não existe. O
apartamento é grande, com cerca de 600
metros quadrados. O escritório onde estaria a suposta parede, ao lado do quarto do
casal, tem, de fato, um enorme armário com
portas de correr, sem qualquer sinal de arrombamento.
Dantas mostra, sobre uma mesa próxima ao armário, o monitor Apple solitário,
13
49
2. Sua posição fica mais clara quando tenta contar o que teria sido a verdadeira história. Você diz, em resumo,
que os conflitos com o Opportunity decorreram de causas objetivas. Não fizeram parte de campanhas mais amplas,
não tiveram a interferência de posições
de governo. Os fundos e o Citi se acertaram, por exemplo, pelo “amadurecimento” de ambos “na busca de uma
saída comum”.
É uma simplificação exagerada da
história. A disputa pelo controle das
teles brasileiras se dá no contexto das violentas crises do final dos anos 1990 e
início dos anos 2000. Evidentemente, ela
se materializa em torno de inúmeras divergências quanto a taxas, preços, avaliações, procedimentos, que podem ser
consideradas de praxe. Mas a característica básica do processo é de violentas disputas entre grandes grupos capitalistas,
estrangeiros e locais. O Estado brasileiro e o aparato sob seu comando – o
Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), o Banco
do Brasil (a Previ aí incluída) – serviram
a esse processo. Você diz que a disputa
da Previ com o Opportunity é “bastante objetiva” e que não é do governo
Lula, é de 2000, do governo Fernando
Henrique Cardoso, como se a continuidade assegurasse o seu conteúdo
apolítico.
Não foi assim. As estatais brasileiras
foram vendidas num processo de intensa
luta política, após a vitória dos liberais
em 1989 e 1994, com as eleições de
Fernando Collor de Mello e Fernando
Henrique Cardoso. As privatizações poderiam ser revistas depois, com relativa
facilidade, do ponto de vista econômico,
porque elas foram feitas com dinheiro
público, com grande participação de entidades que o Estado brasileiro controla
50
Folha Imagem
são de nossas grandes estatais pegaram
o bonde andando de uma privatização
que representou a divisão do patrimônio
público entre diversos grandes grupos
empresariais e o mantiveram na mesma
linha. E acabaram perdidos, sem uma
posição estratégica independente, na disputa entre os vários grupos, aliando-se
ora a uns, ora a outros. A demonização
de Dantas serviu, falsamente, para caracterizar uma posição independente.
Sérgio Rosa entre Wagner Pinheiro, da Petros, e Guilherme Lacerda, da Funcef
– como os citados BNDES, Banco do
Brasil, Previ e outros fundos. Até 1998,
no movimento oposicionista, prevalecia
a tese de rever as privatizações. Isso começou a mudar por uma decisão política, de 1999, quando o alto comando do
Partido dos Trabalhadores (PT) abandonou a campanha do “Fora, FHC” e buscou um caminho para chegar ao poder
por meio de um acordo essencialmente
por cima, que menosprezou o papel da
mobilização dos trabalhadores. Isso fez
que muitos de seus dirigentes passassem
inicialmente a considerar irreversíveis as
privatizações – deveriam ser apenas aprimoradas – e, posteriormente, como um
bem para o País. As decisões da Previ no
ano 2000, dirigida por uma coligação de
petistas eleitos e dirigentes nomeados pelo
governo FHC, correspondem a esse contexto, o das disputas para aprimorar o
processo de privatização. E é nesse contexto que se encaixa a figura do demônio
Daniel Dantas: exorcizá-lo já seria um
avanço.
Um episódio mostra como isso se
deu. Em maio de 2000, o novo presidente da TI, Roberto Colaninno, veio ao
Brasil para, explicitamente, iniciar uma
guerra para mudar o contrato da BrT e
assumir o comando da companhia. Na
Europa, Colaninno tinha iniciado um
movimento de aliança e luta com a
Telefónica de Espanha. No Brasil, a
Telefónica era obrigada a vender a CRT
à BrT em função da legislação, como se
sabe. O primeiro grande lance de
Colaninno no Brasil foi obter o apoio
do governo FHC para sua proposta de
compra da CRT nos termos em que ele
definiu, em oposição aos interesses que
Dantas defendia. O negócio só foi feito
depois de enormes pressões do governo FHC contra o bloco liderado por
Dantas, que apelou para os dirigentes da
Previ, você, inclusive. Nesse negócio, seu
argumento, ao dizer que o papel da Previ foi o de apoiadora desinteressada a
decisões que lhe chegaram prontas e acabadas do Opportunity, só deve ser aceito por aqueles que acham que: a) Dantas
é Lúcifer; b) este repórter é seu seguidor; e c) a Previ é um covil de anjos.
Um abraço,
Raimundo Rodrigues Pereira
retratodoBRASIL 22
retratodoBRASIL 22
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