Tercera Conferencia sobre Etnicidad, Raza y Pueblos Indígenas en

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Tercera Conferencia sobre Etnicidad, Raza y Pueblos Indígenas en
Tercera Conferencia sobre Etnicidad, Raza y Pueblos Indígenas en
América Latina y el Caribe
Panel 37. Turismo e Exclusão na América Latina
A arte da viagem a Terras Indígenas
Liliana Vignoli Salvo de Salvo Souza
Centro de Pesquisa e Pós-Graduação Sobre as Américas (CEPPAC)
Universidade de Brasília/ Brasil
Resumo
Essa reflexão investiga o potencial das viagens interétnicas enquanto um instrumento de
aprendizado e respeito pela alteridade e busca servir como inspiração para pensar outros modelos de
viagem junto aos povos indígenas no Brasil e na América Latina. As reflexões deste artigo são
inspiradas pelas visões de Hakim Bey, intelectual anarquista norte-americano e Moira Millan,
liderança indígena do povo Mapuche. O argumento central é de que a hospitalidade e a
reciprocidade sustentam a experiência da viagem errante dos peregrinos, em oposição à
mercantilização das relações e da cultura proporcionada pela experiência turística convencional.
Assim, questiono o turismo e proponho sua superação rumo às “viagens solidárias”, uma alternativa
capaz de valorizar as culturas indígenas e fortalecer sua autonomia e autodeterminação.
Palavras – chaves: Viagens Solidárias; Hospitalidade e Reciprocidade; Turismo - Terras Indígenas.
***
A viagem sufi: um conhecimento oculto
Na verdade, nós não apenas “suspeitamos” disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos
que existe uma arte da viagem.
Nos Velhos Dias o turismo não existia. Ciganos, Tinkers e outros nômades de
verdade até hoje vagam por seus mundos `a vontade, mas ninguém iria por isso
pensar em chamá-los de “turistas”.
O turismo é uma invenção do século 19 – um período da história que algumas vezes
parece ter se alongado em uma duração não natural. De várias formas, nós ainda
estamos vivendo no século 19.
Hakim Bey, s/d.
O que diz Hakim Bey1 (s/d) sobre a arte da viagem me pareceu fundamental e inspirador para
refletir sobre a problemática do turismo em terra indígena no Brasil. Nos dias atuais, a atividade
turística está na agenda de muitos povos indígenas no Brasil e na América Latina. Como também
está na ordem do dia das políticas públicas no Brasil: a meta de regulamentação do etnoturismo
está expressa no Planejamento Plurianual do Governo Dilma (PPA 2012-2015) 2. Deste modo, há
urgência de se refletir criticamente sobre o tema, considerando sua extrema complexidade e visando
construir uma política pública mais adequada possível às diferentes realidades dos indígenas do
país.
Os povos indígenas do Brasil3, em sua grande diversidade cultural, veem muitos sentidos no
turismo. Há casos de comunidades indígenas que desenvolvem a atividade, com ou sem
colaboração, fiscalização ou monitoramento do órgão oficial indigenista e independentemente da
regulamentação oficial. Alguns povos indígenas apostam nessa atividade definindo-a como
alternativa econômica importante; outros, tratam o turismo como oportunidade de resgate cultural e
afirmação étnica; alguns veem as articulações e a formação de redes solidárias como um benefício.
Mas, para a grande maioria dos povos indígenas do Brasil, esse assunto ainda não amadureceu. Não
se sabe o que é, nem o que representa. Acredito que mesmo os povos que já estão atuando no
mercado do turismo tem uma inserção recente e periférica, sem planejamento do fluxo turístico e
1
Hakim Bey é um pseudônimo de Peter Lamborn Wilson. Escritor, ensaísta e poeta que se intitula como um
"anarquista ontológico".
2 Por pressões institucionais e do movimento indígena, a FUNAI estabeleceu como meta “Regulamentar o
etnoturismo e ecoturismo em terras indígenas de forma sustentável”, Programa 2065, “Proteção e Promoção dos
Direitos dos Povos Indígenas”, Objetivo 0945. (FUNAI, 2012:132)
3 Conforme a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), vivem hoje no Brasil 817 mil índios, cerca de 0,4% da
população brasileira, segundo dados do Censo 2010. Eles estão distribuídos entre 688 Terras Indígenas e algumas
áreas urbanas. Há também 82 referências de grupos indígenas não-contatados, das quais 32 foram confirmadas.
Existem ainda grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal
indigenista. Disponível em: www.funai.gov.br. Acesso em: 30/09/2013.
Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), as Terras Indígenas no Brasil (TIs) ocupam uma extensão total de
112.984.696 hectares (1.129.847 km2) ou 13.3% das terras do país. A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia
Legal: são 414 áreas, 111.108.392 hectares, representando 21.73% do território amazônico e 98.47% da extensão de
todas as TIs do país. O restante, 1.53% , espalha-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do
Sul. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis.
Acesso em 30/09/2013.
sem compreensão da complexidade do processo; à possível exceção dos Pataxó da Terra Indígena
de Coroa Vermelha, no sul da Bahia, que há décadas atuam na arena turística como prestadores de
serviços, e de certos povos indígenas do Acre4 que estão propondo um modelo de visitação turística
de cunho cultural/espiritual, com o apoio do governo do estado e de instituições parceiras. O
universo indígena representa uma das últimas fronteiras ontológicas de um mundo quase que
totalmente esquadrinhado, dominado e dividido. Esse mundo desconhecido é extraordinariamente
atraente para certos perfis de turistas e o mercado do turismo, que tem no lucro seu maior sentido,
espera, impacientemente, para abocanhar o segmento.
No Brasil, existem muitos relatos e análises de experiências e estudos de caso, sob várias
abordagens metodológicas, tratando das tipologias do turismo - étnico, cultural, de base
comunitária, ecoturismo, turismo de aventura, turismo social - que têm a natureza e a cultura dos
povos tradicionais como atrativo turístico principal. E uma diversidade de pesquisas sobre os
impactos sociais, culturais, ambientais e econômicos da visitação turística em localidades onde
vivem populações autóctones ou, em particular, indígenas. Minha intenção, nesse artigo, não é
exatamente fazer coro com esses estudiosos que se preocupam com o efeito da mercantilização das
culturas indígenas e tradicionais face à atividade turística e à voracidade do mercado. Minha ideia é
debater um modo de enxergar o turismo e as possíveis alternativas ao modelo turístico por meio de
um viés singular, o das viagens intencionais, como formulado por Hakim Bey.
No texto Superando o Turismo5, Hakim Bey (s/d) pretende influenciar viajantes individuais
para que possam melhorar suas pegadas turísticas, ainda que reconheça que não é possível eliminálas totalmente. Bey oferece elementos reveladores sobre o que chama de “a arte da viagem”.
Elementos que considero essenciais para a reflexão sobre turismo, etnoturismo ou turismo em Terra
Indígena.
Portanto, na primeira parte desse artigo vamos caminhar na trilha proposta por Bey; a seguir,
avistaremos novas paisagens, dialogando com outros interlocutores, em especial, com Moira
Millan6. Para entender a argumentação de Bey, algumas perguntas são chave: O que é um peregrino
viajante e o que é um turista? E qual é a diferença do efeito da presença de um peregrino e de um
turista em um lugar? Vamos descobrindo pelas pegadas...
4 Precisamente os povos Huni Kuin e Yawanawá, que realizam festivais de cultura abertos a visitantes e convidados.
Para mais informações: NEGRET, J. F. ; ALMEIDA, L. M..Desafios na formulação de políticas públicas: a
regulamentação do etnoturismo e seu processo de tradução. VI Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia,
2012. (formato digital).
5 Texto “Superando o Turismo” (s/d). Versão em inglês: Overcoming Tourism. Brooklyn, N.Y. : Alley Publications,
1990. Versão em francês: Voyage Intentionnel, Musée Lilim, Carcassone, France,1994. Disponível em:
http://www.midiaindependente.org/pt/red/2006/05/354089.shtml Acesso em 02/10/2013.
6 Moira Millan, mapuche, madre de cuatro hijos ha sido protagonista de importantes movilizaciones y protestas para
defender los derechos indígenas. Es vocera de la Comunidad Mapuche, cofundadora de la organización “11 de
Octubre”, organismo de Comunidades Mapuche-Tehuelche e integrante del Frente de Lucha Mapuche y Campesina.
Disponível em: http://revista-elumbral.blogspot.com.br/2008/01/biografias-moira-millan.html. Acesso: 04/10/2013.
Peregrinos e turistas: apetites distintos
Conforme Bey (s/d), o santuário, local de peregrinação, produz ‘baraka’, traduzida como
benção, como algo que é sentido, vivenciado, imaginado e que o peregrino leva consigo quando
parte. Mas não é algo irreal porque vem do imaginário. O santuário é o lugar dos bens espirituais,
sua oferta é ilimitada, não importa quantos peregrinos levem bençãos, elas continuam disponíveis
para os que chegarão. Entretanto, o turista não quer baraka, mas diferença cultural. O peregrino
anseia pelo sagrado, sutil, intangível, espiritual, imaginário; o turista deseja admirar o pitoresco, ver
e consumir a diferença. Diferença que é física, situada na paisagem, na linguagem, nos costumes;
diferença que se desgasta e pode acabar. O turista destrói significados; tem fome do autêntico, mas
o autêntico se retira quando ele se aproxima (BEY, s/d, website).
Os dervixes peregrinos e sua visão
A argumentação de Bey está focada nas informações que ele traz sobre os sufis, os místicos
do Islã, considerados pelo autor como “os maiores e mais sutis praticantes da arte da viagem”. Bey
relata que, de acordo com o livro sagrado Corão, a Grande Terra de Deus e tudo nela é sagrado criação divina ou sinal da realidade divina. As viagens estão no âmago da doutrina islâmica; o
profeta Maomé7 protagonizou viagens e ainda hoje na religião a viagem é vista como um
sacramento. “Até hoje dervixes perambulam por todo o mundo islâmico – mas até o século 19 eles
perambulavam em verdadeiras hordas, centenas ou até milhares de uma vez, e cobriam vastas
distâncias. Todos em busca de conhecimento” (BEY, s/d, website). Essas viagens intencionais
tinham formas, manuais e métodos diversos, desenvolvidos para orientar seu fim meditativo, de
acordo com cada uma das diferentes ordens sufis. Embora fossem distintas, comungavam com uma
especificidade estrutural: “[…] uma visão de mundo "mágica", uma percepção da vida que rejeita o
"meramente" aleatório em favor de uma realidade de sinais e maravilhas, de coincidências cheias
de significado e "descobertas"” (ibidem).
No texto, Bey relata antigos costumes dos nômades do deserto e peregrinos dervixes, monges
iniciados, que tinham a perambulação e a hospitalidade como ato sagrado. A hospitalidade beduína
constituía-se em uma relação de reciprocidade. O autor sugere que os dervixes viajantes traziam em
si o santuário. Que recebiam hospitalidade, alimento e, em troca, distribuíam a ‘baraka’, ou seja,
felicidade, graças e bênçãos.
O dervixe retribui o presente da sociedade com o presente da baraka. Na peregrinação
comum, o viajante recebe baraka de um lugar, mas o dervixe reverte o fluxo e traz baraka a
um lugar. (…) o sufi é um tipo de santuário (per)ambulante (BEY, s/d, website).
7 Hajj, ou viagem de volta, é a viagem de retorno de Maomé à Meca. Hajj é o movimento em direção à origem e ao
centro, ainda hoje uma obrigação de cada muçulmano. A peregrinação anual dá unidade ao sistema Islã. (Bey, s/n)
[…] O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até
hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da
"mentalidade coletiva". Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser
um hóspede é também conferir mérito. [...] (ibidem).
Turismo e guerra, qual é a semelhança?
Conforme Hakim Bey, três razões arcaicas dão sentido às viagens: “ a guerra”, “a troca” e “a
peregrinação”. Sobre qual dessas bases se originou o turismo? Bey responde que o senso comum
diria peregrinação - o peregrino vai ver algo ou vai em busca de algo; normalmente traz algum
souvenir na volta; dá um tempo na vida diária e tem objetivos não-materiais. Contudo, a
peregrinação possibilita alteração na consciência ordinária; é uma forma de iniciação e uma
abertura para outras formas de cognição.
No decorrer dos séculos, talvez, um dado lugar sagrado tenha atraído milhões de
peregrinos – e ainda assim, de algum modo, apesar de toda a contemplação e admiração e
reza e compra de souvenirs – o lugar reteve seu significado. E agora – depois de 20 ou 30
anos de turismo – esse significado se perdeu. Aonde ele foi? Como isso aconteceu? (BEY,
s/d, website).
As verdadeiras raízes do turismo não se encontram na peregrinação (ou mesmo na troca
"justa"), mas na guerra. Estupro e pilhagem foram as formas originais de turismo, ou
melhor, os primeiros turistas seguiram diretamente rumo à agitação da guerra, como
urubus humanos procurando em meio à carniça do campo de batalha por um butim
imaginário – por imagens. (BEY, s/d, website).
Bey afirma que o turismo é uma invenção do século XIX, apêndice do imperialismo e da
sociedade de consumo,
[...] o turista procura Cultura porque – no nosso mundo – a cultura desapareceu no bucho
do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show –
porque a nossa educação é nada mais que preparação para uma vida inteira de trabalho e
consumo – por que nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar
fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade podemos chamá-los de
fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de
verdade, mas sim movem-se por uma paisagem natural, uma abstração (“Natureza”,
“Cultura”), coletando imagens mais que experiência. Muito frequentemente suas férias são
passadas em meio à miséria de outras pessoas e até somam-se a essa miséria. (ibidem,
website)
No evento do turismo não há reciprocidade entre anfitrião e hóspede, pois [...] O turista é um
parasita – pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. (ibidem) O turista é um
consumidor voraz de imagens e lhe falta corporeidade para relacionar-se.
O sentido da viagem intencional
O dervixe realiza a viagem intencional com o propósito de ser resgatado dos efeitos
hipnóticos do mundo ordinário/cotidiano (Bey, s/d). A viagem permite ao peregrino experimentar
um estado de consciência particular; o estado espiritual de Expansão. Neste estado, o mundo
material e “o Mundo da Imaginação” se interpenetram, revelam e unificam; e os dervixes
experienciam uma consciência profunda. O estado da Presença.
O dervixe viajante procura a Expansão, alegria espiritual baseada na verdadeira multiplicidade da generosidade divina na criação material. De modo a apreciar os múltiplos indicadores da Grande Terra precisamente como o desenvolvimento dessa generosidade, o sufi cultiva o que pode ser chamado de olhar teofânico: – a abertura do "Olho do Coração" às experiências de certos lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da passagem do brilho da
Luz divina. (BEY, s/d, website)
Bey assegura que, ao resgatar o sentido da peregrinação dos dervixes, não o faz por nostalgia. Apenas quer demonstrar que existe um outro modelo de viagem. Uma viagem sustentada pela
economia secreta de baraka, onde não somente o templo (o lugar), mas também os peregrinos têm
bençãos a distribuir. Pergunta “se queremos e se vamos superar 'o turista interior'”, essa falsa consciência que nos separa da experiência dos sinais da Grande Terra e nos impede de vivenciar essa
identidade profunda a todo momento.
Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso
desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência
viral – nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de
alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do
turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação
produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião – uma forma
de sinergia intercultural em que o todo excede a soma das partes. (BEY, website).
Sugere, portanto, que a chave essencial para a viagem é a atenção. Atenção no sentido de tomar consciência da vida, da existência e da experiência do Outro. Com uma postura de reconhecimento e de confiança para com a pluralidade da vida. Essa atitude, esse “coração de viajante”, diz
ele, nos permite “experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático”.
[...] Dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós nos convencêssemos que a
atenção segue uma regra de "sinergia" mais que uma lei de investimento, nós poderíamos
começar a superar em nós mesmos a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a abrir
nós mesmos a "estados mais elevados". [...] Em qualquer caso, permanece um fato que a
não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. (BAY, s/d, website).
O autor chamou ‘economia do Presente’ esta relação permeada pela atenção. Que tem, em seu
bojo, a reciprocidade, a sinceridade e a abertura do “olho do coração” como condição essencial para
se realizar uma outra forma de viagem.
Arte da viagem a Terras Indígenas?
Após sintetizar o que propõe Hakim Bey, volto ao tema central – o etnoturismo ou o
ecoturismo, ou ainda, a viagem a Terras Indígenas. Algumas perguntas devem reorientar nossa
breve reflexão: O que significa uma viagem à Terra Indígena? O que busca o visitante? Que
impactos o turismo em TI pode trazer para as populações anfitriãs? Que tipo de trocas culturais
estão previstas e quais são os seus reflexos? O turismo pode ser encarado como uma alternativa de
desenvolvimento sustentável para as comunidades indígenas no Brasil? Em que condições? Há
outra viagem possível?
Moira Millan (2006), trata do tema com uma visão bastante crítica:
A indústria do turismo é talvez a invenção mais recente do capitalismo, já que não se
contenta a ter o controle absoluto dos espaços de produção e suas grandes massas de
trabalhadores, submetendo milhões de homens e mulheres a suas regras de jogo, senão que
também julga conveniente controlar seu lazer, sua mal chamada recreação, tempo este
aonde longe de criar ou “recriar-se como humanos” estes homens e mulheres são
enganosamente induzidos a consumir os “produtos turísticos que oferece o mercado”, os
quais tentam reproduzir o mesmo modo impessoal de relação que tem a sociedade
econômica não somente entre os indivíduos mas também com o entorno. Esta forma de
andar e transitar por diversas geografias e culturas impede as pessoas de um encontro
profundo com a natureza e com os povos que a habitam. O desprezo pelo natural, o afã de
conforto e, sobretudo, o vírus do consumismo que injeta esta sociedade geram desencontros
nocivos entre o turista e as comunidades indígenas que tentam abrir-se a esta nova
perspectiva de trabalho. (MILLAN, 2006:67).
O turismo, enquanto viagem de lazer e descanso, coloca o tempo livre em oposição ao tempo
do trabalho. Usualmente, o turista deseja romper com a rotina da vida cotidiana. Entretanto, mantém
os hábitos e pensamentos como companheiros de viagem, viaja sem sair da própria pele e deixa, por
onde passa, um rastro da sua cultura e da sua visão de mundo. Ao usar seu tempo mercantilizando
relações, objetos e desejos, o turista tem pouca condição de se ver e de ver o Outro. Como reflete
Millan (2006), “o turista consome sem comprometer-se, seu único interesse é abstrair-se de sua
cotidianidade”.
Millan participou de algumas edições do Fórum Social Mundial 8 e trouxe para o evento suas
reflexões enquanto liderança feminina do povo Mapuche. Na sua visão, a sociedade capitalista criou
o ecoturismo, o etnoturismo, o turismo indígena e o turismo solidário como alternativas para
satisfazer a demanda de mercado que não se identificava com o turismo convencional sem, no
entanto, mudar a sua essência mercadológica. Além de alertar para o risco de “coisificação” da
cultura indígena, afirmou que as comunidades mapuches que se inseriram na atividade turística
perceberam que o círculo da reciprocidade não se completava, e que não havia dinheiro capaz de
equivaler ao que ofereciam aos visitantes: sua cosmovisão e sua sacralidade.
Nossos conhecimentos culturais ancestrais que há apenas uma década devíamos ocultar
para mostrar nossa cara civilizatória e europeia, hoje são objeto de curiosidade já não
somente para os intelectuais estudiosos, os ólogos (antropólogos, arqueólogos, sociólogos,
historiadores, etc.) mas também para o homem comum convertido em turista. Estes
tecnocratas da economia pretendem que coisifiquemos nossa cultura e que a mostremos
como um produto turístico. [...] A elaboração de uma iniciativa inteiramente econômica que
invade a vida das comunidades através de um suposto intercâmbio de culturas não é outra
coisa a não ser uma nova forma de desencontro e colonização. Os membros da comunidade
alteram seus ritmos e afazeres em função dos visitantes, deixam de lado a espontaneidade
de suas condutas comunitárias e se dispõem a preparar um pacote de atividades que
resultem atrativas aos turistas. A coisificação de sua identidade, cultura e essência despoja
8 O Fórum Social Mundial (FSM) é o maior fórum de discussão sobre os problemas mundiais contemporâneos e está
em sua 13ª edição. Em janeiro de 2004, no IV Fórum Social Mundial realizado na Índia, o tema turismo entrou pela
primeira vez em pauta.
seus membros de autenticidade convertendo-lhes em um mero espetáculo pitoresco.
(MILLAN, 2006:67-68).
Para a autora, o perigo do turismo é contaminar um modo de viver que ainda resiste, apesar de
toda a pressão da sociedade envolvente: “O turismo, da mesma forma que todas as atividades
econômicas desse sistema, provoca definitivamente em si mesmo a síndrome do capitalismo e
economicismo que nos coloniza e destrói nossa visão holística do mundo”. Ela aponta a
necessidade de se construir uma alternativa ao turismo, baseada na ‘reciprocidade solidária’, onde
visitantes interessados em conhecer comunidades indígenas possam participar de cursos e trabalhos
comunitários e, assim, vivenciar o cotidiano indígena por meio de uma relação mais profunda,
comprometida e solidária.
Tessituras da jornada
Para Baptista (2002:159) a hospitalidade é um acontecimento ético, diz respeito a todas as
formas de acolhimento e de civilidade. Parodiando Baptista, acredito que a hospitalidade torna a
humanidade mais humana. Por isso, busquei ressignificar a viagem como uma via importante para a
reelaboração do mundo e a celebração do nosso próprio sentido de ser humano.
Desde a chegada dos colonizadores nas Américas, as populações indígenas são tratadas com
com enorme desrespeito e violência - uma violência física, emocional, espiritual, epistêmica.
Embora a legislação brasileira tenha construído marcos legais que garantem aos povos indígenas os
direitos sobre suas terras tradicionais e a perpetuação de seus modos de vida, o etnocídio e a
tentativa de assimilação dos grupos indígenas à sociedade nacional permanece vigente. Assim
como, devido à constante expansão da fronteira agrícola e aos interesses de grandes grupos
econômicos por minérios, petróleo e energia, crescem as ameaças e pressões sobre seus territórios e
os recursos naturais disponíveis. Nessa conjuntura adversa, talvez as viagens a Terras Indígenas
possam auxiliar a construir pontes interculturais, a partir da experiência de conviver com o Outro,
de dar-se conta do Outro, de abrir-se ao Outro, e desta forma, ajudem a dar visibilidade à realidade
que os povos indígenas enfrentam para garantir seus direitos constitucionais. Uma experiência de
viagem menos focada nas atividades externas e mais atenta aos sentidos internos, aos sentimentos,
pode constituir-se em um aprendizado para o encontro respeitoso entre mundos, o
compartilhamento de subjetividades distintas e a construção de alianças.
Quando conheci Putumuju9 (2009), indígena Pataxó e condutor de visitantes no Parque
Nacional do Monte Pascoal, na Bahia, ele comentou: “tem gente que nunca viu, nunca teve contato
com um indígena”. Putumuju avalia que o preconceito contra os indígenas pode ser vencido com o
9
Morador da Aldeia Pé do Monte, Terra Indígena de Barra Velha, sul da Bahia. É uma área de sobreposição de uma
Terra Indígena e um Parque Nacional, constituindo um regime jurídico de dupla afetação. Quando estive lá, em
2009, os indígenas Pataxó da Aldeia Pé do Monte eram cogestores do Parque Nacional.
convívio. Para Magalhães (2009), servidor indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o
ponto de partida do turismo em Terra Indígena tem que ser o conhecimento do Outro: “o turista
deve ir à Terra Indígena como um aluno”. Ele acredita que dar oportunidade à cultura ocidental de
se colocar diante de outra cultura de forma serena, sem superioridade, pode criar uma nova
dinâmica na sociedade “[...] porque ela pode se apropriar desses novos entendimentos, porque
estabeleceu uma relação humana, de amizade, de respeito, [...] duradoura [...]”. Em um processo
de interação cultural “aonde quem vai, volta diferente; e quem recebeu, percebe essa diferença”.
Destarte, um caminho para um desenvolvimento das viagens solidárias ou intencionais é
garantir que a experiência traga bem-estar para as comunidades indígenas, assim como para os
visitantes. Onde as relações sejam baseadas na complementaridade, na cooperação e no benefício
mútuo. Enquanto um processo pedagógico, deve desconstruir as relações mercadológicas que o
turismo promove. Concordo com Millan (2006) quando diz que:
Para transformar o sistema devemos primeiro revolucionar a sociedade, e talvez o primeiro
ato de insurgência e revolução em direção a um mundo melhor e possível seja não somente
mudar a linguagem, mas fundamentalmente criar novos conceitos de vida. O compromisso
então de contribuir para o desaparecimento do turismo para que emerja uma relação entre
culturas diferentes baseada na reciprocidade solidária. Esta última pode ser uma alternativa
ao turismo. (MILLAN, 2006:68)
Interculturalidade significa encontro de culturas, de mundos distintos, de consciências.
Culturas que se complementam em suas diversidades e que dialogam horizontalmente. Compreende
a construção de um projeto social, cultural, político, ético e epistêmico voltado à descolonização e a
transformação (WALSH, 2007:47). A compreensão da pluralidade identitária e cultural do planeta e
a aceitação do valor diferenciado do Outro. Ao desenvolver estratégias pautadas no diálogo
intercultural, podemos estar contribuindo com a luta pela autodeterminação dos povos indígenas e
com o desafio da construção de um mundo menos colonialista e mais livre de preconceitos e
subalternidades. Para tanto, é relevante um processo de educação onde os valores dos povos
indígenas sejam considerados em primeira instância. Antes de tudo, é mister construir processos
educativos abertos, em fóruns adequados, com tempos em sintonia com os tempos dos interessados.
Deve-se preparar o visitante para enxergar o humano, e não o exótico; o interior, o invisível, e não
somente o exterior dos indígenas. De modo que haja acolhimento entre as pessoas e o visitante
sinta-se convidado a mergulhar no seu íntimo, a rever o véu dos conceitos preestabelecidos e a
abrir-se para a riqueza de um outro mundo - a vida dos povos indígenas, no Brasil, hoje.
Essa ideia de viagem, desenhada com a inspiração das visões distintas apresentadas ao longo
do artigo, envolve o aprendizado da essência do que os povos indígenas têm a ensinar à sociedade
envolvente. Ao colaborar para dar visibilidade aos povos indígenas e às suas lutas, as viagens
intencionais poderão fortalecer a consciência étnica no Brasil e apoiar a necessária redefinição do
lugar que os povos indígenas ocupam na sociedade nacional e no projeto de país.
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Web:
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