UM NOVO “ROSTO” PARA YAHWEH: a imagem do Deus de amor
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UM NOVO “ROSTO” PARA YAHWEH: a imagem do Deus de amor
1 UM NOVO “ROSTO” PARA YAHWEH: a imagem do Deus de amor em Oséias a partir da experiência amorosa do profeta com Gomer (Oséias 1-3) Juscelino Silva RESUMO À luz de Oséias, como a tradição e a experiência de vida articulam-se de modo positivo no profetismo atual já que, muitas vezes, há uma ruptura entre as duas coisas? Este artigo visa a dar as pistas deixadas pelo profeta Oseias na construção do seu discurso teológico e iluminar, com isso, a teologia atual. A teologia da vida que Oseias faz, abrange pelo menos duas dimensões: a reinterpretação de si e da comunidade à luz do projeto de Deus. São essas as duas subcategorias que também serão privilegiadas na configuração da imagem de Deus que se tem em vista. Elas são matrizes importantes de uma teologia viva composta tanto da imersão do profeta na sua tradição quanto de sua visão crítica da sociedade. Isso ocorre, a partir do engajamento radical de Oséias: a masculinidade humilhada é relida à luz da fé em Yahweh. Nessa releitura, o profeta sublima a sua dignidade ofendida na dor de Yahweh traído por Israel na aliança sinaítica. ABSTRACT In the light of Hosea, as tradition and life experience are articulated in a positive way as prophetic today, there is often a split between the two? This paper seeks to give the clues left by the prophet Hosea in the construction of its theological discourse and light, with that, the current theology. The theology of life that Hosea does covers at least two dimensions: the reinterpretation of self and community in the light of God's plan. These are the two subcategories that are also privileged setting in the image of God that is in view. They are important matrices for a living theology composed of both immersion in the tradition of the prophet and his critical view of society. This is from the radical engagement Hosea humiliated masculinity is reread in the light of faith in Yahweh. In this re-reading, the prophet exalts his dignity offended in pain betrayed by Israel of Yahweh in the sinaitic alliance. 1. INTRODUÇÃO Trataremos da crítica documental, do texto e do contexto, da recepção de Oséias, da nossa proposta e do método. Com isso, formataremos o caminho da nossa passagem por Oséias. A crítica documental - O livro de Oséias não é obra direta do profeta. O texto é resultado de um longo processo formativo que culminara provavelmente, no reino de Judá para onde os oráculos dos profetas foram levados pelos fugitivos do Norte por ocasião da Guerra Siro-efraimita1. Embora o texto não conserve a ipssima verba de Oséias, o que temos reflete bem de perto os ditos dele devido “às características pessoais de linguagem e do estilo...”2 que o livro apresenta. O texto e o contexto- [A] O que o profeta fala? A maioria dos exegetas afirma que os três primeiros capítulos de Oséias constituem uma unidade à parte dos últimos e, em certo sentido, eles resumem a trama desenvolvida nos capítulos seguintes. Oséias, a partir de seu drama pessoal, obtém um novo sentido da relação de Deus com Israel. O esquema teológico que se abre para Oséias a partir de sua própria vida está fundamentado na aliança sinaítica. Mas, à medida que o profeta faz uma 1 2 AMSLER, S. et al, os profetas e os livros proféticos. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 71 Bíblia Tradução Ecumênica, ed. em língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 1994. p. 879 2 teologia da história, ele descobre um fundamento teológico vital que antecede a aliança. É a libertação do povo de Israel do Egito. Assim, Deus doa gratuitamente o seu amor a Israel mesmo na falta deste e o profeta descobre admirado que “Deus charitas est”, Deus é amor. Desta forma, Oséias lança as primeiras sementes que superarão a teologia da retribuição: quem faz o bem recebe o bem e quem faz o mal recebe o mal. Através do seu casamento, Oséias descobre que Deus está para além desse esquema porque sua misericórdia não tem fim. [B] Por quê o profeta fala? A palavra do profeta explode no século 8 ao final da pregação de Amós. Isso ocorre porque durante o governo de Manaém, em Israel, a Assíria reergue-se como potência política mundial. Seus vassalos, que sacudiram o julgo devido ao seu enfraquecimento, são obrigados a pagar-lhe impostos outra vez, dentre esses está Israel. Quem mais sofre com isso é o povo, os pequenos agricultores e os latifundiários porque é dessas três classes que sai o dinheiro para pagar aos assírios. É nesse contexto que se invoca a Baal para multiplicar “o pão, a água, a lã, o linho, o azeite e as bebidas”3. Assim, para o povo, enquanto Yahweh era o Deus das grandes conquistas e libertações, Baal era o Deus da subsistência cotidiana. Nesse embate teológico emergiu o amor, a dor da traição e o ciúme de Yahweh materializarados no casamento de Oséias e proclamados pelo profeta à nação israelita. [C] Quem é o profeta que fala e a mulher de sua paixão? Sabe-se muito pouco sobre Oséias. Ele era natural do reino do norte, era javista da linha de Elias e Eliseu. Seu nome significa “o Senhor salva”. Ele passa por um processo doído de crescimento espiritual devido ao casamento com Gomer, mas consegue dar a volta por cima. Para isso, ele identifica a dor de sua paixão por Gomer com a dor e paixão de Yahweh por Israel. Gomer, por sua vez, foi possivelmente uma participante ativa do culto a Baal e, nessas cerimônias, pratica a mímica da relação da divindade com a terra, a hierogamia. É à essa manifestação religiosa que atribuir-se-á o adjetivo prostituta. A recepção de Oséias - Ele abre um caminho teológico por onde andará um grande número de profetas e inclusive Jesus. Jeremias revisitou Oséias ao tratar da volta ao deserto e do tema da nova aliança. Mas, o tema teológico de Oséias que mais repercutiu foi o das núpcias. Jeremias voltou a esse tema, por exemplo, em 2,23. Ezequiel em 16 e 23, Segundo Isaías em 54, 4-7. No Novo Testamento não faltou a influência de Oséias na eclesiologia. Nele a igreja é retratada como a noiva de Jesus Cristo. A proposta e o método - Expomos agora qual o teor do nosso trabalho e a nossa meta. Trataremos da imagem de Deus em Oséias de 1-3 tendo como referência a experiência amorosa do profeta com Gomer. Visamos as pistas deixadas pelo profeta na construção do seu discurso teológico para iluminar a nossa teologia. Essa teologia da vida feita por Oséias abrange pelo menos duas dimensões: a reinterpretação de si e da comunidade à luz do projeto de Deus. São essas as duas subcategorias que também serão privilegiadas na configuração da imagem de Deus que se em vista. Elas são matrizes importantes de uma teologia viva composta tanto da imersão do profeta na sua tradição quanto de sua visão crítica da sociedade. Isso ocorre, a partir do engajamento radical de Oséias: a masculinidade humilhada é relida à luz da fé em Yahweh. Nessa releitura, o profeta sublima a sua dignidade ofendida na dor de Yahweh traído por Israel na aliança sinaítica. 3 Oséias 2,7b 3 Essa novidade da teologia de Oséias desafia a concepção de teologia hoje, as vezes, muito ligada à tradição, e descontextualizada. Nesse caso, a teologia perde seu encanto. O de falar diante da face do outro instigada pela profecia que vê o nãodito nas entrelinhas das palavras e o oculto por detrás das teias das relações humanas. Mas, talvez o mais impressionante em Oséias seja colocar-se como metáfora viva da paixão e da decepção de Yahweh incuravelmente apaixonado por seu povo. Aceitou-se a tese de que os três capítulos compõem uma unidade na medida em que a mulher do capítulo 3, 1-5 é Gomer. A princípio reluta-se em admitir isso porque no texto isso não parece claro. Na verdade, ele não parecia indicar Gomer. Suspeitou-se que a decisão esmagadora dos exegetas por Gomer era uma estratégia inconsciente ou não para proteger a dignidade do profeta e valor da sua profecia. Mas, como não se encontrou apoio para essa tese, prevaleceu a posição mais acordada entre os eruditos. O argumento mais contundente a favor de Gomer no capítulo 3 foi o de Sicre-Diaz e Alonso Schökel ao dizerem que “esta identidade da esposa concorda melhor com o simbolizado, que são as relações de Deus com um seu povo”4. Assim sendo, a perícope está dividida em três partes, mas respeitou-se a sequência do texto como apresentada pelos redatores finais da profecia e adotou-se a classificação dos gêneros literários de Silva Retamales, assim: biográfico ( 1,2-9), autobiográfico (3,1-5), oráculo de juízo (2,4-17) e oráculo de salvação (2,1-3 e 2,1825)5. Alinhava-se o texto com a seguinte indagação: à luz de Oséias, como a tradição e a experiência de vida articulam-se de modo positivo no profetismo atual já que, muitas vezes, há uma ruptura entre as duas coisas? Responder-se-á gradativamente a esta indagação no casamento de Oséias com Gomer, na remodelação da imagem de Yahweh proposto por Oséias 1-3 e, finalmente, na revelação do amor incondicional de Yahweh. 2. DE YAHWEH IMPASSÍVEL A YAHWEH SOFREDOR: A METÁFORA DO MARIDO TRAÍDO (1-2,1-3) Até Oséias existe um predomínio da teologia da retribuição que perpassa a tradição deuteronomista. Embora essa historiografia tenha sido concluída no pós-exílio cerca de 400 a.C. após um longo processo redacional, ela revisita acontecimentos e tradições teológicas anteriores a Oséias das quais pode-se deduzir a presença marcante da teologia da retribuição. Como exemplo podemos citar Deuteronômio 28, Êxodo 20, Josué 1, dentre outros. Pode-se incluir nesse mesmo contexto a imagem do Deus Guerreiro que destroça seus inimigos. A teologia da retribuição também existia na adoração baalista. Quem agradava Baal teria a chuva e o pão, quem desagradava-lhe teria sua maldição. Nesse duplo contexto teológico configura-se a imagem do Yahweh impassível, isto é, insensível para as questões cotidianas. Nessa perspectiva, esse Deus só funciona dentro de um determinado modelo: é o Yahweh das grandes coisas. 4 ALONSO SCHÖKEL, L. SICRE-DIAZ, J.L. Profetas II. Grande comentário bíblico. Madrid: Cristiandad, 1980. p. 909. 5 SILVA RETAMALES, S. Oseas 1-3: Interpretación e Teologia. Teologia y Vida, v. 38, 1997. P. 354 4 O casamento de Oséias com Gomer dará a ele a chave que revolucionará a imagem do Deus mecânico e dará para a teologia bíblica do Antigo Testamento um novo rosto para Yahweh, fundando assim a teologia do Deus de amor que primeiro elege os judeus não por suas qualificações pessoais, mas por pura graça. É sobre o nascimento dessa teologia do Deus de amor que se discutirá nessa seção. Oséias percebe através de sua paixão por Gomer a eleição e a aliança de Deus com Israel, e daí ele concluirá que o amor de Deus, como seu amor, é a história de um amor ferido, mas decidido a amar até o fim. 2.1 O ato profético de Oséias: um modo de “encarnar” a dor de Yahweh A teologia do Deus de amor que marcará o pensamento de Oséias e a teologia bíblica posterior começa com uma ordem estranha. Deus manda o profeta casar com uma prostituta. Ele casa-se com Gomer. Essa ação do profeta transformar-seá num ato profético de profundas possibilidades teológicas que refletirá a relação de Deus com Israel. Na metáfora, Oséias representa Deus e Gomer representa Israel. Deus estava profundamente ofendido com Israel porque este voltou-se para Baal em agradecimento pelas bênçãos “recebidas”. Suas palavras nos lábios do profeta escancaram o seu coração: “Eu não existo para vós”6 e ainda: “Mas ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o mosto e o óleo, quem multiplicavalhe a prata e o ouro que eles usavam para Baal.”7 Esse Deus que sofre por causa de Israel já não é o mesmo Deus impassível e vingativo das tradições anteriores. Ele é um Deus passional, aficcionado por seu povo e que sente, à semelhança dos humanos, quando seus filhos e filhas o ignoram ou atribuem a outro a glória e o amor que são seus. 2.2 O casamento do profeta: símbolo da aliança de Yahweh com Israel Os filhos do casal também fizem parte da metáfora viva que se tornou a vida familiar de Oséias. Os nomes das crianças eram representações encarnadas das futuras ações de Yahweh contra Israel. A princípio, parece que se retroage à concepção do Deus da retribuição, mas na sequência dos versículos, percebe-se que não. Nasce o primeiro filho de Oséias e Gomer e Deus manda que o chamem Jezrael, Deus semeia. Nasce Lo-Ruama, Não-Amada, e, por último, nasce Lo-Ami, Não-MeuPovo. Os nomes indicavam uma ruptura crescente entre Israel e Yahweh para a qual é preciso uma solução. Deus tomou a iniciativa para resolver a questão falando através do profeta e de sua família para chamar seu povo à razão. O amor de Deus não fica sem resposta. Ele encontra seu lugar no coração de Israel e, quando isso ocorrer, onde se dizia Não-Meu-Povo se dirá “filhos do Deus vivo”. De Jezrael se dirá: meu povo! E de Lo-Ruama, Não-Amada, será dito: Amada. Israel foi arrasado por Sargão II em 721/722. Isso poderia indicar que o amor de Deus pregado por Oséias não funcionou, mas isso não é assim porque a palavra do profeta pedia um reconhecimento por parte de Israel do amor do seu Deus. Esse 6 7 Os 1,9b Os 2,10 5 reconhecimento deveria levar Israel a amar a Deus também, isso não aconteceu. Israel continuou com Baal e confiou mais nas alianças politiqueiras do que na força e nos cuidados do Deus vivo. Mas, mesmo diante disso, Deus manteve a promessa de buscar entre os (as) filhos (as) dos homens, pessoas que o adorassem em espírito e em verdade. Essa promessa, segundo Paulo, foi consumada na Igreja. Esse primeiro recorte do casamento de Oséias que focalizou o ato profético e os seus desdobramentos permite descobrir um pouco da outra face de Deus na teologia do Antigo Testamento. Deus é amor e, nessa condição, quer ser correspondido. Ele não cala seus sentimentos, mas utiliza de todos os meios disponíveis, mesmo os mais estranhos, para dizer ao seu povo que seu amor infinito busca continuamente a finitude de nosso amor. Yahweh quer muito ligar-nos à história do seu amor sem fim, cujo clímax é a absorção da nossa morte na vida divina. Este é o primeiro elemento da teologia fundamental de Oséias a ser recebida hoje pela teologia contemporânea. Finda-se aqui a primeira seção. A seção seguinte trata do amor de Deus em oposição a Baal a partir do discurso judicial, 2,4-17, e do oráculo de salvação, 2,-18-25. 3. DE YAHWEH DAS GRANDES COISAS A YAHWEH DAS COISAS PEQUENAS: A TEOLOGIA DO PROFETA QUE NASCE DA DOR DA VIDA E DO VIVER (2,425) O tema da paixão incondicional de Deus por Israel é retomado mais uma vez a partir da vida amorosa de Oséias. Isso, provavelmente, porque Gomer comunica a Oséias sua decisão de retomar a sua atividade hierogâmica no culto a Baal. Deduz-se que após algum tempo com Oséias, Gomer com saudades de sua pátria e de seu deus decide deixar Oséias e voltar para sua antiga vida. Parece que, mesmo antes de fazê-lo, ela já estava realizando em casa alguns ritos próprios da adoração a Baal. É sobre esse momento crítico do casamento do profeta que se trata nessa seção. Esse empenho visa a ampliar a teologia do Deus de amor que Oséias quis transmitir. 3.1. A traição de Gomer: ícone da atração por Baal A querela judicial é declarada a partir da decisão de Gomer de voltar para sua antiga vida: “quero correr atrás de meus amantes, daqueles que me dão o meu pão e minha água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e a minha bebida”8. Oséias, apaixonado por sua mulher, fica profundamente revoltado e seu primeiro impulso é abrir um processo contra ela com vistas a divorciar-se. Ele diz: “processai a vossa mãe, processai. Porque ela não é a minha esposa e eu não sou seu esposo”9. Entretanto, parece que ainda havia uma pequena possibilidade do casamento ser retomado caso Gomer se arrependesse. Percebe-se isso quando o profeta diz: “Que ela afaste de seu rosto as suas prostituições e de entre os seus seios os seus adultérios”10. Mas, se ela não desistisse de Baal e regressasse, Oséias torceria para que lá ela não reencontrasse a sua alegria e se lembrasse dele, dizendo: “quero voltar ao meu primeiro marido, pois eu era outrora mais feliz do que agora”11. 8 Os 2,7b Os 2,4a 10 Os 2,4b 11 Os 2, 9b 9 6 Gomer é Israel. A atração de Gomer por Baal era tanta que decidiu abrir mão de seu casamento por causa dele. Semelhantemente, Israel atribuía a Baal suas colheitas, especialmente sua vinha e sua figueira, “mas de mim se esquecia!”,12 disse Deus. Porém, a continuar assim, o fim dessa história seria a exposição pública de sua vergonha porque sua paixão por Baal levava Gomer-mulher e Gomer-Israel a “enfeitar-se com seu anel e o seu colar e correr atrás de seus amantes... ”13. 3.2. A dor do profeta: o padecimento de Yahweh Mas, mesmo assim o coração apaixonado do profeta fala mais alto: “Pois então vou seduzi-la. Eu a levarei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração”14. Essa confissão de amor incondicional mostra bem o que é a humilhação daquele que ama devotadamente, mas não é amado na mesma medida, mas mesmo assim insiste mais uma vez esperando sensibilizar a quem se ama. Oséias decide ir atrás de Gomer porque está convencido de que ela cava a sua própria ruína. Parece que ele se preocupa com ela não só como esposa, mas também com o seu destino último. Daí, ele decide procurá-la outra vez para, se possível, falar-lhe ao coração. Se Gomer ouvisse, então uma nova aliança seria estabelecida com novos votos de amor e fidelidade. Mais uma vez Oséias representa Yahweh e Gomer representa Israel. Assim, a nova aliança tem duplo sentido. É um homem falando à uma mulher e Yahweh falando a Israel no mesmo instante, com as mesmas palavras, no mesmo tom e com o mesmo ardor. Se Gomer-Israel decidir voltar seu coração inteiramente para Oséias-Yahweh, então... “Eu noivarei contigo para sempre, eu noivarei contigo, pela justiça e pelo direito, pelo amor e pela ternura. Eu noivarei contigo pela fidelidade e tu conhecerás o Senhor”15. Nesse ponto, as palavras amor, Os 2,21, e conhecerás, Os 2,22, expõem aquilo que é esperado das partes envolvidas na aliança. Amor, hesed, significa que Israel pode está seguro de que Yahweh será eternamente fiel ao pacto e que, em decorrência dessa aliança, Israel sempre será abençoado. Mas, Israel deveria sempre cumprir a sua parte. Ele deveria conhecer a Yahweh com seu coração, como se fosse tomado por paixão arrebatadora. Oséias é muito corajoso quando decide assumir diante da comunidade machista de Israel sua paixão por Gomer. Para escândalo de muitos, ele deixa claro a sua disposição de perdoá-la e trazê-la de volta para sua casa. Ao dar sentido transcendente a esse gesto, ele fala para Israel que Yahweh também o amava para além de suas faltas e frieza e se Israel quisesse uma história nova recomeçaria imediatamente. Assim, ele mostra que Yahweh, por amor, rompe com todos os limites culturais para revelar-se ao homem: um ato profético, um amor frustrado e um masculinismo humilhado no fogo da paixão. Procuramos apontar nessa seção que Oséias-Yahweh e Gomer-Israel reatam seu amor porque da parte de Oséias-Yahweh, no meio da indignação, também há espaço para o perdão. Este é o segundo elemento vital da teologia fundamental de Oséias. Assim, gradativamente, descobre-se em Oséias um novo rosto para Yahweh. Uma espécie de sublimação do amor de Oséias por Gomer, projetado na 12 Os 2,15c Os2, 15b 14 Os 2,16 15 Os 2,21-22 13 7 mente dele para a relação Yahweh-Israel. Nas palavras de Oséias: “Eu semearei para mim na terra, amarei a Lo-Ruama e direi a Lo-Ami: “tu és meu povo” e ela dira: “meu Deus” ”.16 Finda-se aqui essa seção. A próxima focalizará o discurso auto-biográfico e nele acrescentar-se-á ao ato profético e ao machismo humilhado, a eleição como elemento fundante da relação entre Yahweh e Israel. Na ordem dada ao profeta para as segundas núpcias com Gomer, Yahweh, mais uma vez, usará a vida amorosa do casal para declarar a Israel todo o seu amor. 4. DE YAHWEH VINGATIVO A YAHWEH COMPASSIVO: A PAIXÃO DO PROFETA COMO SÍMBOLO DA DOAÇÃO INCONDICIONAL DO AMOR DIVINO (3,1-5) Nesta seção ocupa-se em ampliar a teologia do Deus de amor acrescentando-lhe seu elemento primigênio: a eleição e a aliança. Yahweh quer que todos saibam que seu amor é histórico, profundamente imanente, mesmo que ao mesmo tempo seja pura transcendência. A maioria dos exegetas consultados e também a Bíblia de Jerusalém aceitam que o que se tem nesta seção é uma tentativa de reconciliação de Oséias e Gomer. Apenas a Tradução Ecumênica da Bíblia diz ser possível tratarse de um segundo casamento. Seguir-se-á a posição da maioria. 4.1. A busca frenética de Oséias por Gomer: a revelação do “hesed”, a misericórdia sem fim de Yahweh. O hesed de Oséias 2,21 é retomado aqui como ação. Oséias é compelido por Yaweh a tirar Gomer de sua idolatria. Por isso, ele paga por ela quinze siclos de prata e um hômer e meio de cevada o que correspondia ao preço de um escravo. Se Gomer aceitasse a oferta de Oséias, ela deveria seguir a seguinte regra: ficar em casa disponível para Oséias, não praticar a idolatria, mesmo em casa. Aceita a condição, Oséias também dedicar-se-ia devotadamente a ela. Há uma dificuldade de situar essa seção de Oséias no todo dos três capítulos. Sabendo que os escritores antigos não tinham preocupação cronológica porque estavam fazendo teologia e não história, opta-se por situar cronologicamente esta seção antes do oráculo de salvação do capítulo 2, mas parece adequado incluir também o verso 16. Assim, todo o oráculo de salvação acrescido do verso 16 descreveria os passos de Oséias quando este decide procurar Gomer após seu retorno à sua terra e aos seus deuses. Não era fácil para um homem fazer o que Deus pediu. Afinal, para a cultura judaica a devoção de Gomer a Baal, a ponto de renunciar seu casamento, era visto como prostituição, e não como ato religioso. Não era fácil para Oséias imaginar com quantos homens Gomer ficava por dia para agradar a Baal para que este favorecesse a sua terra e a sua gente e a ela própria. É nesse contexto, que Oséias tem que ir atrás de Gomer enfrentando suas resistências afetivas e culturais devido a uma ordem do seu Deus. Yahweh precisa mais uma vez da vida de Oséias para fazer dela um texto de seu amor à nação israelita. 16 Os 2,25 8 É aí que emerge o tema da eleição de Gomer. Não havia em Gomer nada do ponto de vista prático que pudesse deslanchar o relacionamento. Era uma empreitada destinada a novo fracasso e à abertura de antigas feridas devido às distâncias culturais que os separavam. Mas, mesmo assim, Oséias ousa ir atrás de seu amor. Pensa ele que um amor verdadeiro pode superar as barreiras culturais e religiosas que, na maioria das vezes, com maior ou menor intensidade, se interpõem na relação. Na eleição incondicional de Gomer, Oséias é tocado pela eleição incondicional de Israel por Yahweh. Entre Israel e Yaweh haviam distâncias incomensuráveis: a barreira da matéria e do espírito, a barreira dos mundos distintos, a barreira da grandeza divina e da pequenez humana, da santidade e do pecado, dentre infinitas outras. Mas, nada disso foi capaz de impedir Yahweh de eleger Israel como objeto de seu amor. Desde o Egito até o deserto, ou seja antes da aliança do Sinai, Yahweh já cuidava de Israel na condescendência exclusiva de seu amor. Na força dessa paixão do humano, Yahweh rasgou seu coração, moveu os céus e a terra, usou Oséias e Gomer e neles clamou: Israel, eu rompi todos os limites e corri todos os riscos para dizer-lhe: eu te amo! Israel, você é capaz de avaliar o que significa isso para você? 4.2. A reconciliação de Oséias e Gomer celebrada no deserto: símbolo da nova aliança entre Yahweh e Israel Não sabemos o final da história de amor do profeta apaixonado. Gomer se rende ao amor de Oséias e fica com ele o resto de sua vida? Gomer fica com Oseias alguns dias só por causa do dinheiro? O romance de Oséias, como nos bons romances, tem uma terminação suspensa. É exatamente aí que parece residir também o final da história de Israel com Yahweh. Um fim em aberto onde cada um responderá ao amor incondicional de Deus à sua própria maneira. Mas, onde houver alguém com uma chama pelo divino ali estará o amor que elege gratuitamente. Eis suas mãos estendidas para fazer com seu amado (a) uma aliança para a vida cujo fim é jamais ter fim. Mas, então, de modo geral, o que Oséias nos diz com sua reconciliação com Gomer? Ele proclama que antes da aliança Israel já havia sido escolhido e que a aliança é ato segundo de sua bondade sem fim. Assim, Yahweh é reconfigurado em sua imagem porque já não pode mais ser visto somente como aquele que dá com uma mão e espera com a outra, mas aquele que eternamente é, antes de tudo, pura doação. Deus é amor. Este é o terceiro elemento da teologia fundamental de Oséias. Nesta seção nos ocupamos da eleição como ato primeiro e da aliança como ato segundo da relação de Yahweh com Israel. Oséias, que elegeu Gomer que não o via porque morria de amores por Baal, ousou acreditar numa segunda chance sem chance alguma. Por isso, no seu amor estava o rosto refletido de seu Deus numa confissão que era, ao mesmo tempo, para Gomer, para Israel e para toda a humanidade. 5. CONCLUSÃO Após esse percurso exegético de Oséias de 1-3, nos perguntamos pela hipótese que norteou o trabalho: à luz de Oséias, como a tradição e a experiência de vida podem ser articuladas de modo positivo no profetismo atual, isto é, a pregação da 9 Palavra de Deus ao homem, já que, muitas vezes, há uma ruptura entre ambas? O que isso diz para o fazer teológico contemporâneo? Os três tópicos respondem diferentemente a mesma questão. A vida de Oséias foi jogada dentro de sua teologia. Teologia e vida são inseparáveis. Isso nos revela que a teologia não está dissociada da vida, mas há um círculo hermenêutico contínuo entre ambas. A vida alimenta a teologia e a teologia alimenta a vida. Essa retroalimentação é que dá sentido tanto à teologia quanto a nossa vida. Sem isso cairíamos na palavra fria e vazia tanto para o (a) teólogo (a) quanto para o seu público. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros BLANCO, J. I. Oseas: El Dios enamorado, in: Personajes del Antiguo Testamento. v. 2. Estella: Verbo Divino, 1999, p. 67-75. AMSLER, S. et al. os profetas e os livros proféticos. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 66-89. SIMIAN-YOFRE, Horacio. El desierto de los dioses. Teologia e história en el libro de Oseas. Cordoba: El Almendro de Cordoba, 1993. p. 23-61. Artigos SILVA RETAMALES, S. Oseas 1-3: Interpretación e Teologia. Teologia y Vida, v. 38, p. 347-370, 1997. VOGELS, W. Osée-Gomer car et comme Yahweh-Israel. Os 1-3. Nouvelle Revue Théologique, v. 103, p. 711-727, 1981. __________. Hosea`s Gift to Gomer (Hos 3,2). Bíblica, v. 69, p. 412-421, 1988. Bíblias TEB Bíblia de Jerusalém