A luta dos seringueiros e a criação das reservas extrativistas: os

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A luta dos seringueiros e a criação das reservas extrativistas: os
A luta dos seringueiros e a criação das reservas extrativistas:
os trabalhadores da borracha numa perspectiva histórica
Marco Aurélio Maia Barbosa de Oliveira Filho 1
Durante muito tempo, a atividade de coleta do látex da seringueira2 com o intuito de
transformá-lo em borracha foi realizada somente por algumas comunidades indígenas. No ano de
1736, a borracha foi anunciada pelo pesquisador francês La Condamine, que descreveu seu uso por
nativos do rio Solimões. Seu valor comercial, entretanto, veio a adquirir importância somente em
1839, ano em que Charles Goodyear descobriu o processo de vulcanização da borracha, processo
este que conferiu maior durabilidade e resistência ao material. Deste modo, a borracha passou a ser
absorvida pela indústria no decorrer da denominada Segunda Revolução Industrial, sobretudo pela
indústria automobilística, que a popularizou no início do século XX.
Os primeiros seringueiros, aqueles trabalhadores que retiram o látex da seringueira,
chegaram à Amazônia na década de 1870. Oriundos do Nordeste, milhares de indivíduos escaparam
da seca em direção à Amazônia, terra considerada superabundante e inabitada. Quando chegaram,
no entanto, se depararam com diversos povos indígenas que viviam de forma harmoniosa com a
natureza, e entraram em confronto para poderem se estabelecer nos seringais. Além disso, estes
retirantes envolveram-se num regime de intensa exploração do trabalho, realizada pelo seringalista
(o senhor dos seringais), que os escravizava inserindo-os num círculo vicioso de dívidas. Deste
modo, o sonho de voltar com uma boa quantia de dinheiro à terra natal se tornava uma utopia
inatingível.
Um seringal é formado por várias colocações, e cada uma destas, por sua vez, são compostas
por uma humilde casa construída numa pequena clareira com produtos da floresta e adaptada à vida
amazônica, e pelas estradas de seringa – trilhas que passam entre as cerca de 150 seringueiras de
cada colocação. O seringal ainda possui um barracão, onde são vendidos gêneros alimentícios e
demais produtos aos seringueiros a preço de ouro. O sistema formal deste tipo de venda, que
culmina na escravidão por débito, é denominado de aviamento. Além disso, os seringueiros eram
proibidos de desenvolver qualquer tipo de atividade que os desviassem da coleta do látex, mesmo
que esta se destinasse à sua subsistência; eles também deviam pagar um “aluguel” pela utilização
das estradas de seringa e entregar parte de sua produção ao seringalista. A grande maioria dos
seringueiros era composta de analfabetos, que mal podiam perceber as trapaças do patrão com a
contabilidade, e, aqueles que questionavam as contas do patrão sofriam coação pela violência,
sendo muitas vezes queimados vivos com a borracha sobre eles.
Este período, que vai do final da década de 1870 até o início da década de 1910, ficou
conhecido como o “primeiro ciclo da borracha”. Ao longo destes anos a borracha se tornou o
segundo produto no ranking de exportação do país, perdendo apenas para o café, e as cidades de
Belém e Manaus passaram por grande modernização, sendo a construção do ostentoso teatro de
Manaus o maior legado da opulência deste período. Os barões da borracha auferiram grandes
lucros, enquanto que os seringueiros permaneciam endividados. O renomado escritor Euclides da
Cunha percorreu, no ano de 1905, mais de três mil quilômetros pelo Rio Purus, e teve a
oportunidade de presenciar e registrar as mazelas enfrentadas por estes trabalhadores da borracha.
1
2
Graduado em Ciências Sociais pela UFSCar, mestre em Sociologia pela FCLAR (UNESP).
A seringueira é uma árvore da família das Euphorbiaceae (Hevea brasiliensis), originária da bacia hidrográfica do Rio
Amazonas, onde existia em abundância e com exclusividade. O látex é encontrado na secreção esbranquiçada produzida
por algumas plantas, dentre elas a seringueira, quando seus caules são feridos, e tem como função, uma vez consolidada
com a oxidação, provocar a cicatrização do tecido lesado.
Após período de grande apogeu, o mercado da borracha entra em crise. No ano de 1875, o
botânico inglês Henry Wickman, a serviço do império britânico, coletou milhares de sementes de
seringueiras no vale do Tapajós e as enviou ao Jardim Botânico de Londres. Estas sementes foram
germinadas e então introduzidas nas colônias britânicas da Ásia, dando início ao processo de
multiplicação da Hevea brasiliensis no sudoeste asiático, sobretudo na Malásia. Este episódio, que
pode ser considerado como um dos primeiros casos de biopirataria da história, acabou culminando
no declínio da economia da borracha no Brasil, pois a produção daqui não conseguiu atingir as
elevadas quantidades e os baixos preços da Ásia.
Ao passar por algumas décadas de ostracismo, o advento da Segunda Guerra Mundial
provocou a revalorização da borracha nativa da Amazônia mediante o domínio japonês sobre as
plantações asiáticas, o que acarretou no bloqueio das exportações da borracha para seus inimigos.
Em decorrência disso, o governo dos Estados Unidos estabeleceu uma parceria com o governo
brasileiro no intuito de tentar garantir o abastecimento de borracha que sua economia necessitava.
Neste momento, tem início o “segundo ciclo da borracha”, que, mais curto, durou aproximadamente
quatro anos, de 1942 a 1945.
No entanto, após o fim do primeiro ciclo da borracha, os seringais estavam abandonados e
havia neles uma quantidade muito inferior de trabalhadores do que a demanda norteamericana
necessitava. A solução que o governo de Getúlio Vargas encontrou para isto previa sanar três
problemas: produzir borracha suficiente para atender a demanda externa, povoar a Amazônia (que
sempre foi vista, pelos governantes, como um verdadeiro vazio demográfico) e resolver a crise
campesina que se instalara na região Nordeste em virtude da grave seca. Isto resultou numa forte
campanha, empreendida pelo governo federal e denominada de “Batalha da Borracha”, que tratou
de recrutar milhares de nordestinos, sobretudo cearenses, para trabalhar nos seringais amazônicos.
Estes trabalhadores eram alistados pelo recém criado SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de
Trabalhadores para a Amazônia), com sede em Fortaleza (CE), e ficaram conhecidos como
“soldados da borracha”. Somando-se a isto, o Estado Novo de Vargas criou, visando dar suporte à
Batalha da Borracha, alguns programas, tais como o SAVA (Serviço para o Abastecimento do Vale
da Amazônia) e o Banco de Crédito da Borracha.
Os trabalhadores que rumaram à Amazônia, quando sobreviviam (muitos deles morreram
por causa da malária, febre amarela, hepatite, dentre outras coisas), terminavam presos no mesmo
sistema de escravidão por dívida que seus antigos conterrâneos. Todos os benefícios e
investimentos aplicados na produção da borracha pelos Estados Unidos e o suporte oferecido pelo
governo brasileiro acabou nas mãos dos seringalistas (isso quando excetuado aquele dinheiro
desviado por alguns gestores públicos), que pretendiam alcançar os lucros do primeiro ciclo da
borracha.
Com o fim da guerra os investimentos na produção da borracha foram dissipados, o que
ocasionou o declínio da atividade, mais uma vez, nos velhos e ineficientes seringais amazônicos. A
falta de visão das classes dominante e política, que ignoraram o fomento de qualquer plano efetivo
de desenvolvimento sustentado na região, impossibilitaram a concretização desta atividade
econômica. Após mais este declínio, a atividade nos seringais permaneceu estagnada, e, aos poucos,
os seringueiros foram se unindo para combater o perverso regime de exploração no qual estavam
inseridos. Em meados da década de 1960 e início de 1970, por exemplo, os seringueiros
conseguiram eliminar o aluguel das estradas de seringa e adquirir o direito de cultivar produtos para
sua subsistência em alguns seringais. A partir da década de 1960, entretanto, com o advento do
golpe militar, a situação sofre uma reviravolta com a eminente chegada do “progresso” na região.
A CHEGADA DO “PROGRESSO”
Os militares chegam ao poder em 1964 e voltam seus olhos para o Norte do país com a
justificativa de o Brasil estabelecer ali sua presença, tomar posse real de seu território, proteger suas
fronteiras, recolher suas riquezas e levar o desenvolvimento àquela região. O interesse do governo
federal pela Amazônia havia surgido, de forma mais contundente, quando Getúlio Vargas, ao
decretar o Estado Novo (1937-1945), tratou de observar o Brasil em toda sua dimensão no sentido
de promover uma unificação nacional. Juscelino Kubitschek, que governou o país de 1956 a 1961,
estabeleceu a dispendiosa tarefa de alterar a distribuição de colonização do Brasil, onde a grande
maioria da população vivia na região costeira. Após colocar em prática o plano de deslocar a capital
federal do Rio de Janeiro para o planalto central, Kubitschek iniciou o projeto de construção da
estrada Belém-Brasília, cuja inauguração previa por fim ao isolamento em que a Amazônia sempre
esteve.
Entre 1966 e 1967 uma série de atos, conhecidos como Operação Amazônica e cujo lema era
“Integrar para não Entregar”, teve início, de acordo com Alex Schoumatoff3, com um elaborado
programa de construção de estradas, além de um programa de colonização. Criações como a Sudam
(Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), o BASA (Banco da Amazônia S/A) em
substituição do antigo Banco de Crédito da Borracha, e de polpudos incentivos fiscais para a
indústria e agropecuária, fizeram parte da estratégia utilizada pelo governo federal para incluir a
região Amazônica à ordem moderna.
O plano do governo militar de estabelecer ao longo das estradas construídas na Amazônia
famílias provenientes do sul do país, onde a questão agrária tornava-se problemática e, sobretudo,
do nordeste, região que abrigava um grande número de flagelados em decorrência da presença do
latifúndio e da seca, veio a fracassar pouco tempo depois de instaurado. Com o objetivo inicial de
assentar 100.000 famílias na Região Amazônica (sendo 75% oriundas do nordeste), verificou-se,
em 1980, que somente oito mil famílias haviam se estabelecido nos lotes do INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ao longo da rodovia. Além disso, a maioria dos
imigrantes era oriunda do Sul do país, com hegemonia paranaense, e menos de um terço dos
colonizadores provinha do nordeste.
Este fracasso deveu-se, sobretudo, a pobreza do solo amazônico, que dificulta sobremaneira
a prática da agricultura, a ausência dos benefícios e infra-estrutura prometida pelo governo e a
perseguição por parte dos grandes latifundiários, tudo isso somado às dificuldades próprias da
região, como o alto risco de contrair malária por exemplo. Ao invés de pequenos proprietários, as
terras amazônicas passaram a ser ocupadas, principalmente, por fazendeiros e grandes empresas que
visavam obter lucro da forma mais fácil e rápida possível. Deste modo, ao propiciar lucro fácil, a
especulação fundiária foi largamente utilizada. Os beneficiários teriam que demonstrar à Sudam a
utilização produtiva da terra antes que esta lhes fornecesse o título definitivo de propriedade, e a
maneira mais barata e prática de fazer isso era derrubar as árvores, queimar o terreno, semear grama
e soltar ali algumas cabeças de gado. Com o título de propriedade em mãos e a estrada finalizada,
podia-se vender a terra por um valor muito superior àquele aplicado, obtendo-se altas taxas lucro.
Um dos recursos mais importantes utilizados pelo governo para atrair gente para a Região
Amazônica, lado a lado ao incentivo à iniciativa privada, foi, segundo Andrew Revkin4, a
construção de uma enorme rede de estradas. Ao mesmo tempo em que propiciou a abertura das
portas do progresso, a construção das estradas também cedeu espaço ao desmatamento e à
violência. Na medida em que a construção das estradas avançava, uma série de mazelas surgia:
desmatamento, invasão de terras indígenas, especulação fundiária, queimadas intensas e expulsão,
por meio da violência, daqueles que ocupavam a área há bastante tempo e conviviam com a
natureza de forma pacífica. Este efeito ficou bastante claro no caso de Rondônia, pois, quando
alcançou este Estado, a BR-364 trouxe consigo um rastro de devastação jamais visto na região
Amazônica.
Nesta época, endividados com os Bancos e sem esperança de voltar a lucrar com a borracha,
os seringalistas ficaram vulneráveis à nova política do governo militar. Mediante a criação de vários
programas para incentivar os fazendeiros a expandir projetos agropecuários na região, grande parte
dos seringalistas vendeu as terras que estavam sob seus domínios, terras estas que seriam fatalmente
3
SHOUMATOFF, Alex. O mundo em chamas – a devastação da Amazônia e a tragédia de Chico Mendes. São
Paulo: Editora Best Seller, 1990.
4
REVKIN, Andrew. Tempo de Queimada, Tempo de Morte – O Assassinato de Chico Mendes e a luta em prol da
Floresta Amazônica. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1990.
transformadas em pasto. Inicialmente, os novos donos encontraram os seringueiros na condição de
posseiros e recorreram à violência para expulsá-los da terra. As famílias eram retiradas da floresta
com a conivência (e algumas vezes até o auxílio) de policiais e funcionários da justiça, enquanto
que políticos, órgãos federais e imprensa permaneciam omissos.
A partir de 1970 e ao longo dos anos, as grandes fazendas e a devastação ao longo da BR364, que ia de Cuiabá até o Acre, espalharam-se de forma perversa. Conforme assinala Javier
Moro5, no contexto de “recolonização” do Acre, com sua abertura à modernidade, muitos
seringueiros pensaram que tempos melhores viriam, que sairiam do esquecimento, que a sociedade
brasileira saldaria sua dívida para com eles, ou pelo menos a reconheceria e, deste modo, os
ajudaria a se adaptarem aos novos tempos.
Mas não foi assim que aconteceu. Os fazendeiros começaram a chegar ao Acre assim que a
rodovia foi completada, atraídos pelo plano do governador Wanderley Dantas, que pretendia mudar
a base econômica do Estado de borracha para gado. Os seringueiros, que constituíam quase a
totalidade da população rural e sobreviviam do extrativismo da floresta há mais de cem anos, teriam
que simplesmente abrir caminho ao progresso (SHOUMATOFF, 1990). Expulsas dos seringais,
muitas famílias atravessaram a fronteira para a Bolívia e outras se mudaram para as cidades
acreanas, onde passaram a viver de subemprego e se amontoar em áreas periféricas que não
possuíam infra-estrutura básica.
Alguns seringueiros, no entanto, resistiram de forma tenaz aos desmatamentos para formar
pastagens. Estes trabalhadores que, segundo o descreve Mauro Almeida6, sobreviveram ao colapso
do primeiro ciclo da borracha anterior à Primeira Guerra Mundial, atravessaram o período entre as
guerras tornando-se camponeses e resistiram à tentativa de reproletalizá-los sob o comando norteamericano no período posterior à Segunda Guerra Mundial, sempre enfrentando seus patrões em
busca por melhores condições de trabalho e qualidade de vida, agora se uniam em um movimento e
articulavam alianças para salvar a floresta e os povos que nela vivem.
O MOVIMENTO DOS SERINGUEIROS
Em 1975, momento em que a repressão do latifúndio começava a dominar a região,
surgiram os primeiros sindicatos, implementados pela CONTAG (Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura). No ano anterior João Maia, representante da CONTAG, chegou ao
Acre com o intuito de organizar trabalhadores para a fundação de sindicatos. Contando com
importante apoio da Igreja Católica, o primeiro sindicato é criado na cidade de Sena Madureira, no
início de 1975, e, no final deste mesmo ano, foi fundado outro em Rio Branco, capital do Estado.
Foi no sindicato da pequena cidade de Brasiléia, entretanto, fundado em fins de 1975, que a luta dos
seringueiros fermentaria e onde ganhariam destaque dois de seus principais líderes, Wilson Pinheiro
e Chico Mendes.
A mobilização dos seringueiros para barrar os desmatamentos encontrou sua forma de luta
mais eficiente no movimento dos “empates”. Conforme relata Chico Mendes em sua entrevista à
Cândido Grzybowski7, o empate é uma forma pacífica de resistência, onde a comunidade se
organiza sob a liderança do sindicato e, em mutirão, se dirige à área que será desmatada pelos
pecuaristas colocando-se diante dos peões e jagunços para pedir que não desmatem e que se retirem
do local.
O primeiro empate aconteceu em março de 1976 num seringal nas cercanias de Brasiléia, e,
deste período até dezembro de 1988 (mês em que assassinaram Chico Mendes) foram realizados 45
empates, com um saldo de 30 derrotas e 15 vitórias. Embora os empates tenham sucesso num
5
MORO, Javier. Fronteiras de sangue – a saga de Chico Mendes. São Paulo: SCRITTA, 1993.
ALMEIDA, Mauro Barbosa W. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas. São Paulo: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n55/a03v1955.pdf. Acesso:
06/06/2011.
7
GRZYBOWSKI, Cândido. O Testamento do Homem da Floresta – Chico Mendes por ele mesmo. Rio de Janeiro:
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, 1989.
6
primeiro momento, impedindo o desmatamento imediato, Chico Mendes atesta que o fazendeiro
recorre a uma ordem judicial e, com apoio das forças policiais, acaba executando o desmatamento.
Ao mesmo tempo em que a mobilização dos trabalhadores camponeses cresce, a violência
por parte dos fazendeiros é intensificada. De acordo com Moro (1993) e Revkin (1990), os empates
fizeram com que os fazendeiros buscassem outras táticas; ao invés de intimidarem os lavradores e
seringueiros nas florestas, passariam a combater o movimento eliminando seus líderes. A partir de
1975, o número de assassinatos no campo passa a ter um crescimento vertiginoso. Wilson Pinheiro
foi vítima dessa violência, tendo sido assassinado na sede do sindicato de Brasiléia em julho de
1980.
Posteriormente, a partir de 1985, a violência no campo aumenta ainda mais com fundação da
UDR (União Democrática Ruralista). Esta entidade de classe, sobretudo da elite agrária,
notabilizou-se, como aponta Sonia Mendonça8, por inserir a violência no jogo político. Possuindo
como adversários todos aqueles empenhados no apoio à reforma agrária, bem como setores da
Igreja católica denominados por eles de “clero progressista” e políticos de esquerda, a UDR era
frequentemente envolvida com a compra de armamentos e a formação de milícias privadas visando
responder violentamente à invasão de terras.
Após a morte de Wilson Pinheiro a luta passa a se concentrar na cidade de Xapuri, cujo
sindicato havia sido inaugurado em 1977, e na liderança de Chico Mendes. Preocupado com a
questão da educação9 nos seringais há bastante tempo, Chico Mendes, juntamente com a
antropóloga Mary Helena Allegretti, implementam o Projeto Seringueiro no ano de 1981. Este
projeto corresponde a um trabalho de educação popular que foi elaborado por pessoas ligadas a
Paulo Freire e por pessoas do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), e contou,
inicialmente, com recursos financeiros provenientes da OXFAM (em português, Comitê de Oxford
de Combate à Fome). Baseado na realidade vivida pelos seringueiros, o trabalho de alfabetização
popular desenvolvido pelo projeto procurou fortalecer o processo de despertar a consciência destes
trabalhadores.
Por volta de 1985, segundo Almeida (2004), os empates haviam passado para a defensiva,
não conseguindo mais responder à escalada das queimadas e da violência. Por esta razão, prossegue
o autor, Chico Mendes começou a buscar apoio e aliados externos, recorrendo cada vez mais a
táticas de ação direta e com alta visibilidade, sempre de forma pacífica. No início deste ano, com o
apoio de Mary Allegretti e financiamento de algumas agências (dentre elas a OXFAM),
seringueiros de distintas partes da Amazônia foram até Brasília para participar do Primeiro
Encontro Nacional dos Seringueiros.
Já neste primeiro encontro foram criadas as bases para o CNS (Conselho Nacional dos
Seringueiros), que foi sendo instituído aos poucos. Almeida (2004) conta que este conselho foi
criado como forma de protesto por parte dos seringueiros uma vez que eles não conseguiram
participar das reuniões do Conselho Nacional da Borracha, grupo que representa o elo mais forte da
cadeia de produção da borracha. No documento final do encontro foi mencionada pela primeira vez,
segundo o próprio Almeida (2004), a expressão “Reservas Extrativistas” (RESEX), cunhada por um
grupo de trabalho formado por representantes de Rondônia que procurou fazer uma analogia às
reservas indígenas.
RESERVAS EXTRATIVISTAS – UMA REFORMA AGRÁRIA SUSTENTÁVEL
Pouco tempo após o Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, logo no início de 1986,
uma comissão de índios e seringueiros, organizada pelas lideranças indígenas e pelo Conselho
8
MENDONÇA, Sonia Regina. A questão agrária no Brasil: a classe dominante agrária – natureza e
comportamento 1964-1990. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
9
Durante muitos anos, desde quando tem início o sistema de trabalho no seringal, não era permitido a criação de
escolas uma vez que os seringalistas, visando uma maior quantidade de lucro, preferiam que os seringueiros
permanecessem incultos, de modo a facilitar a exploração sobre eles, e que seus filhos os ajudassem a colher látex ao
invés de permanecer na escola.
Nacional dos Seringueiros, vai à Brasília reivindicar seus direitos. Neste momento começa a se
fortalecer o movimento de “aliança dos povos da floresta”, que, tendo sido idealizado por Chico
Mendes, propõe a união dos índios e dos seringueiros para lutar em favor da preservação da floresta
Amazônica. Estas duas categorias, que viveram em conflito por muitos anos, se encontraram,
segundo Grzybowski (1989), com vários ministérios e órgãos na capital federal, e, unidas, criaram o
primeiro grupo de trabalho para discutir e aprofundar a questão da Reserva Extrativista na
Amazônia.
Conforme propõe o CNS10, a criação de Reservas Extrativistas realça a junção entre a
questão fundiária e a questão agro-ecológica, propondo novos critérios no apossamento da terra,
centrado no uso sustentado dos recursos naturais. Assim, pode-se afirmar que o programa de
RESEX para a Amazônia é parte de um modelo de desenvolvimento sustentável que respeita as
especificidades da região. Somente o Governo Federal pode criar uma Reserva Extrativista, uma
vez que se trata de reforma agrária, e sua definição a compreende na qualidade de terra da União
sobre a qual os trabalhadores possuem o direito de usufruto.
O Conselho Nacional dos Seringueiros, cujo Estatuto o define como uma associação civil,
sem subordinação partidária ou sindical, em que os membros poderiam ser “trabalhadores
extrativistas” no sentido mais amplo do termo (ALMEIDA, 2004), incluiu, neste mesmo
documento, a criação das Reservas Extrativistas como sendo objetivo da organização. Tanto o CNS
quanto as RESEX ganharam bastante expressão nos cenários nacional e internacional, sendo
amplamente debatidas por diferentes setores sociais (governamentais, não-governamentais, partidos
políticos, universidades, instituições de pesquisa e movimentos sociais) que passaram a dar
visibilidade aos seringueiros, que haviam permanecido invisíveis por muito tempo. Assim,
conforme afirma Almeida (2004), em vinte anos, os seringueiros passaram da invisibilidade à
posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular.
Esta visibilidade internacional se deve à figura de Chico Mendes. Contando com aliados,
especialmente Mary Allegretti, Adrian Cowell (cineasta de “The Decade of Destruction”) e Stephan
Schwartzman (diretor do Environmental Defense Fund), Chico Mendes inicia sua carreira
internacional no ano de 1987.
Em março ele viaja a Miami para denunciar, no Encontro Anual do BID (Banco
Interamericano de Desenvolvimento), a devastação da Amazônia e a violência praticada contra os
seringueiros que vinha sendo acarretada por projetos financiados pelos bancos multilaterais. Logo
em seguida, em Washington, Chico Mendes se encontra com o senador Republicano Robert Kasten
Jr. para pedir a suspensão da pavimentação da BR-364, o que de fato acontece cerca de um mês
depois. A grande questão ambiental que o Acre enfrentava no momento era a pavimentação da BR364 para Rio Branco. O movimento dos seringueiros, conforme dizia Chico Mendes, não era contra
a construção/pavimentação da rodovia, mas sim da maneira como ela era construída, sem que os
devidos cuidados ambientais fossem considerados.
No mês de julho Chico Mendes recebe, em Londres, o prêmio Global 500 concedido pela
UNEP (United Nations Environment Program), da ONU (Organização das Nações Unidas), em
reconhecimento à sua luta pela defesa da floresta amazônica. E, em setembro, é homenageado com
a medalha ambiental da Better World Society, da cadeia norte-americana de televisão CNN, na
cidade de Nova York.
Toda esta visibilidade não impediu, contudo, que Chico Mendes fosse assassinado por
fazendeiros em dezembro de 1988. Depois de sua morte, conforme relata Almeida (2004), o
movimento dos seringueiros havia adquirido um novo perfil de organização – uma combinação de
sindicatos (confederados pela CONTAG) com uma organização (Conselho) que contava com
aliados ambientalistas e que tinha recursos próprios. Além disso, algumas lideranças despontaram,
como é o caso, por exemplo, de Raimundo Mendes de Barros (primo de Chico Mendes), Osmarino
Amâncio Rodrigues e Antônio Macedo.
10
CONSELHO NACIONAL DOS SERINGUEIROS (1993). Diretrizes para um Programa de Reservas Extrativistas na
Amazônia. Rio Branco, Acre.
Chico Mendes ainda conseguiu ver a criação da primeira Reserva Extrativista, que
aconteceu em fevereiro de 1988, no seringal São Luís do Remanso (AC). No mês seguinte, é
desapropriada para se tornar RESEX a área do seringal Cachoeira (AC), que estava nas mãos de
Darly Alves da Silva, mandante do assassinato do líder seringueiro. Em 1990, três dias antes de
deixar o governo, o então presidente José Sarney assinou um decreto regulamentando a criação das
reservas extrativistas. Em 20 anos, de 1989 a 2009, foram criadas, segundo Juan Felipe Negret11,
cerca de 50 Reservas Extrativistas federais, cobrindo em torno de 10 milhões de hectares em
diversos biomas do Brasil (não somente na Amazônia), e existem aproximadamente outros 50
pedidos de criação para novas unidades.
Embora os números sejam expressivos, somente a criação e a delimitação das RESEX não
têm conseguido satisfazer por completo as necessidades do movimento social amazônico, pois uma
série de dilemas têm surgido no que diz respeito à implementação eficaz das unidades (NEGRET,
2010). As Reservas têm sido criadas, usualmente, sem que condições mínimas de infra-estrutura,
incentivos, subsídios, transporte ou saúde fossem asseguradas, ou seja, apesar dos investimentos e
do apoio institucional recebido, poucos são os resultados na forma de benefícios para as
comunidades envolvidas.
Este fato corrobora com a necessidade da luta permanente dos seringueiros, assim como de
todos aqueles inseridos na categoria de povos da floresta e de todas as pessoas comprometidas com
a justiça social e preocupadas com a preservação da Amazônia. A existência de Reservas
Extrativistas possibilita sanar os conflitos pela terra, o problema do alto índice de violência na
região, garante trabalho e renda às populações tradicionais, assegurando o direito de continuarem
exercendo suas atividades extrativistas, e mantém a floresta de pé, tudo isso ao mesmo tempo em
que lança as bases do que viria a ser um modelo de desenvolvimento para além do capital. Por isso,
somando-se à luta pela criação de RESEX, deve ser mantida uma atuação permanente para
pressionar os órgãos públicos de modo que toda a assistência necessária seja garantida para o bom
funcionamento das reservas e benefício das comunidades envolvidas. Deve-se, também, buscar por
mecanismos eficazes que facilitem a cooperação dentro da Reserva, de modo a facilitar a união em
torno de objetivos comuns, e por formas mais coletivas e adequadas ao ambiente para exercer as
atividades econômicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Mauro Barbosa W. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas.
São
Paulo:
Revista
Brasileira
de
Ciências
Sociais,
2004.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n55/a03v1955.pdf. Acesso: 06/06/2011.
CONSELHO NACIONAL DOS SERINGUEIROS (1993). Diretrizes para um Programa de
Reservas Extrativistas na Amazônia. Rio Branco, Acre.
GRZYBOWSKI, Cândido. O Testamento do Homem da Floresta – Chico Mendes por ele
mesmo. Rio de Janeiro: FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, 1989.
MENDONÇA, Sonia Regina. A questão agrária no Brasil: a classe dominante agrária –
natureza e comportamento 1964-1990. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MORO, Javier. Fronteiras de sangue – a saga de Chico Mendes. São Paulo: SCRITTA, 1993.
REVKIN, Andrew. Tempo de Queimada, Tempo de Morte – O Assassinato de Chico Mendes e
a luta em prol da Floresta Amazônica. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1990.
11
NEGRET, Juan Felipe. Flexibilização do capital na Reserva Extrativista Chico Mendes – o cronômetro entrou
na
floresta.
Uberlândia:
Sociedade
&
Natureza
(Online),
2010.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1982-45132010000200011&script=sci_arttext. Acesso: 07/06/2011.
SHOUMATOFF, Alex. O mundo em chamas – a devastação da Amazônia e a tragédia de
Chico Mendes. São Paulo: Editora Best Seller, 1990.