completo - Brasil e Belgica

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completo - Brasil e Belgica
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
Brasil
e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações
Brasil
e Bélgica
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
Cinco Séculos de
Conexões e Interações
B r a si l e B é l g ic a
Cinco Séculos de Conexões e Interações
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
Brasil e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
edi çã o
Roney Cytrynowicz
p rodu ção edi tor i al
Monica Musatti Cytrynowicz
desi gn e edi tor aç ão e le tr ôni c a
Ricardo Assis
Tainá Nunes Costa
Negrito Produção Editorial
www.negritodesign.com.br
tradu ção
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Susana Rossberg
p repa ra ção de te xto e r e vi s ão
Mariangela Paganini
revi sã o de te xto e r e vi s ão das tr aduç õe s
c i p - b r a si l . c a ta l o g a ç ã o n a p u b l i ca çã o
s i n d i c a t o n a c i o n a l d o s e d i t o r e s d e l iv ro s , rj
Clodoaldo Bueno
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
B83
Brasil e Bélgica: cinco séculos de conexões e interações / organização Eddy
Stols, Luciana Pelaes Mascaro, Clodoaldo Bueno. – 1. ed. – São Paulo: Narrativa Um, 2014.
376 p.: il.; 29 cm.
ISBN 978-85-88065-34-5
1. Brasileiros – Bélgica – História. 2. Problemas sociais. 3. Política internacional. I. Stols, Eddy. II. Mascaro, Luciana Pelaes. III. Bueno, Clodoaldo.
Editora Narrativa Um – Projetos e Pesquisas de História
www.narrativaum.com.br
[email protected]
14-13963
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CDD: 305.86980493
CDU: 316.77
Os laços entre Brasil e Bélgica
Manoel Arlindo Zaroni Torres
Presidente da Tractebel Energia
S
eparados por um oceano e milhares de quilômetros, Brasil e
Bélgica são mais próximos do que se poderia imaginar. Trazer
à tona esse vínculo é a principal missão desta obra, que nos oferece um registro histórico e cultural importante da relação entre
os dois países. A tarefa de desbravar o tema, transformando uma
série de informações dispersas em um livro pujante como este, foi
brilhantemente desempenhada pelos autores e organizadores, os
quais conhecem o assunto em profundidade.
Ao longo dos capítulos, o leitor descobrirá que os laços entre
os dois países começaram a ser construídos ainda no Brasil Colônia, há mais de cinco séculos, e foram se estreitando a partir do
intercâmbio cultural e econômico que se seguiu. O relato deixa
claro que muitas pessoas e instituições colaboraram para consolidar marcas do Brasil na Bélgica e da Bélgica no Brasil. A elas
cabe nosso agradecimento, pois a proximidade resultou em trocas
importantes nas mais diversas áreas, do cinema à gastronomia,
passando pelas artes cênicas e plásticas, literatura, música, esportes e arquitetura.
Além das influências culturais, o livro revela impressionantes
alinhamentos religiosos, ideológicos e científicos entre as duas nações. Ao final de cada texto, constatamos a solidez dessa relação e,
em especial, o legado deixado por um país no outro. Fundamental
à construção desse legado, a atuação de empresas belgas, como a
Tractebel Energia, no Brasil, bem como de companhias brasileiras na Bélgica, contribuíram de forma decisiva não apenas para
o desenvolvimento econômico dos dois países, mas também para
intensificar o intercâmbio cultural.
Colaborar para que toda essa trajetória conjunta fosse registrada e se tornasse pública foi o que motivou a Tractebel Energia
a apoiar a realização desta obra. Estamos certos de que, a partir
dela, Brasil e Bélgica passam a ter uma referência bibliográfica
tão relevante quanto inspiradora, capaz de demonstrar todos os
benefícios da relação respeitosa, harmoniosa e cooperativa entre
duas nações.
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
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Apresentação
Incentive Projetos e Eventos
Florianópolis (SC)
A
presentar um livro cuja missão é tão importante não é tarefa
fácil. Uma obra que promete discorrer sobre o belo cordão
que existe entre o Brasil e a Bélgica. Essa relação, tão cordial e sólida, já vem de tempos: são cinco séculos de interação. Um pouco
esquecida entre as tão comentadas relações brasileiras com outros
países europeus, como a Itália, Alemanha e Portugal, o relacionamento Brasil-Bélgica é importante de ser aprofundado, exposto e
disseminado. Tornar esse livro acessível a todos aqueles que desejam ter mais conhecimento sobre o estreitamento entre esses dois
países é o nosso maior objetivo. Como intuito principal, nosso
desejo é que existam cada vez mais intercâmbios socioculturais
entre as duas nações e, acreditamos, sem sombra de dúvidas, que
este livro propiciará isso.
Sabedores de que esta obra tem na sua tônica o resgate, a
preservação e a promoção da presença do Brasil na Bélgica e da
Bélgica no Brasil, temos a certeza de que os dois países se complementam e se ajudam mutuamente a evoluir e a crescer, trazendo
intrínsecos benefícios um ao outro.
A partir do convite do professor Eddy Stols, precursor do projeto, pode-se entender que este foi delineado para apresentar as
relações que se formaram entre essas duas importantes nações no
decorrer dos últimos séculos, que vão desde a gastronomia até o
esporte. Passou-se pelas influências ideológicas e religiosas que
cada país revelou um ao outro. Vislumbrou-se a arte como verdadeira ferramenta de diplomacia e assim descobrimos dois países
repletos de trocas entre as áreas de cinema, teatro, dança, música
popular e clássica, artes plásticas, arquitetura e literatura.
Com este desafio proposto, acreditamos que podíamos alcançar os objetivos desenhados para este estudo e, certamente, nossa
alegria é imensa por desempenharmos e mediarmos as relações
entre os profissionais, que para nós, mostraram-se verdadeiros investigadores da história brasileira e belga. Poder proporcionar uma
fonte de conhecimento sobre essa relação tão importante nos enche de entusiasmo. Ficamos motivados, cada vez mais, por sabermos que estamos no caminho certo: levar ao outro a possibilidade
de descobertas e de crescimento através do aprendizado.
Enxergamos neste livro, também, uma forma não só de resgatar o passado das duas nações e suas relações, mas também de
desenhar novos cenários para o futuro: promovendo conhecimento sobre a atual realidade entre os dois países e assim oportunizar
novas formas de negociações. Assim, esperamos que este livro seja
apenas o primeiro entre muitos outros que contarão mais sobre a
trajetória do Brasil e Bélgica unidos em torno da valorizarão da
cultura destes dois países.
Agradecemos imensamente a todos os profissionais envolvidos
neste trabalho, entre eles, especialmente aos pesquisadores Eddy
Stols, Luciana Mascaro e Clodoaldo Bueno; Roney Cytrynowicz
e Monica Musatti Cytrynowicz, diretores da editora Narrativa Um;
a Embaixada da Bélgica no Brasil, na pessoa do Sr. Jozef Smet;
ao Consulado Geral da Bélgica, representado pelo Cônsul Didier
Vanderhasselt; ao Consulado Honorário da Bélgica em Santa Catarina, Sr. Manoel Arlindo Zaroni Torres. Sem o envolvimento
destes profissionais não seria possível que tal estudo acontecesse.
Somos gratos pelo profissionalismo, comprometimento e esmero
que todos dedicaram a este projeto cultural.
Nosso agradecimento especial também ao Ministério da
­Cultura, por ter proporcionado a execução deste projeto, e a empresa Patrocinadora Tractebel Energia, representada pelo Sr. Jan
Flachet, Sr. Luciano Andriani e Sra. Luciane Pinheiro Pedro, que
cumpriram papel essencial para a realização desta obra.
O livro Brasil e Bélgica: Cinco Séculos de Conexões e Interações está pronto para ser apreciado pelos seus leitores. A Incentive
Projetos e Eventos espera que a obra literária aqui presente seja
de grande contribuição para a valorização das heranças culturais
geradas pela relação entre os dois países e que traga incontáveis
ganhos para aqueles que tiverem acesso a ela. Convidamos a todos, portanto, a entrarem neste mundo ainda pouco conhecido da
relação belgo-brasileira e a se deliciarem com o incrível conteúdo
que está agora disponível.
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
Eddy Stols nasceu em 1938 em Roeselare, Bélgica. Concluiu seu Doutorado em História pela Universidade Católica de Lovaina em
1965. Foi professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (atual Unesp) de 1963 a 1968; professor na Universidade
Católica de Lovaina de 1971 até se tornar Professor Emérito em 2004; professor extraordinário na Universidade de Leiden, Holanda
(1987-1991); professor visitante em várias universidades brasileiras (USP, UFMG, UFSC e UNESP - Campus Assis) e na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Entre suas publicações: Brazilië, Een geschiedenis in dribbelpas (Brasil, uma história em
passo drible), 1996, 2002 e terceira edição ampliada em 2011; coeditor de La Belgique et l’étranger aux XIXe et XXe siècles (1987); de
Flandres e Portugal, Na confluência de duas culturas (1991); Flandre et Amérique latine, Cinq siècles de confrontations et de métissages
(1993); Brasil, Cultures et économies de quatre continents (2001); O diplomata e desenhista Benjamin Mary e as relações da Bélgica com
o Império do Brasil (2006); Un mundo sobre papel (2009); Terra Brasilis (2011), com curadoria da exposição na Europalia.Brasil. Publicou mais de cem artigos em revistas ou capítulos de livros, dos quais uma dezena sobre alimentação, açúcar e chocolate.
Luciana Pelaes Mascaro nasceu em 1970 em Dourado, São Paulo. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP) São Carlos em 1997 e Doutora pela mesma escola na área de Teoria e História da Arquitetura e
do Urbanismo em 2008. Realizou estágio de doutorado na Universidade do Minho, Portugal, e atuou como pesquisador estrangeiro
na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Trabalhou como Diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de Jaú
(SP) em 2003. Participou da organização de workshops e seminários sobre Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico e colaborou com o
CIVA (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage), em Bruxelles, Bélgica, durante o ano de 2010. É professora do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso – campus de Cuiabá, e atua como pesquisadora
em temas como arquitetura do final do século XIX e início do XX, patrimônio arquitetônico e industrial.
Clodoaldo Bueno nasceu em 1943 em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. É Mestre e Doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo (USP), Livre-Docente e Professor Titular da Unesp, aposentado. Docente permanente do curso do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” da Unesp/Unicamp/PUC-SP, sediado em São Paulo. Foi professor visitante na Universidade de Brasília (1994-95) e no Instituto de Estudos Avançados da USP (1197-99). Com auxílio da Fapesp,
desenvolveu em 1997 programa de aperfeiçoamento científico na Universidade de Lovaina, Bélgica. Membro do Grupo de Análise de
Conjuntura Internacional da USP; membro da CHIR (Comission of History of International Relations), sediada em Paris-Milão e vicecoordenador acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp/SP. Entre suas publicações, destacam-se os livros
A República e sua política exterior (1889 a 1902) (Editora da Unesp / Funag, 1995); Política externa da Primeira República – Os anos
de apogeu – de 1902-1918) (Paz e Terra, 2003); História da política exterior do Brasil (Ed.UnB, 4ª ed. 2011), este em co-autoria com
Amado Luiz Cervo. Publicou textos em revistas e livros editados em Londres, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Milão, Quito e Assunção.
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Introdução
Eddy Stols • Luciana Pelaes Mascaro • Clodoaldo Bueno
Organizadores
E
ntre o Brasil e a Bélgica (a Flandres do século XVI) o primeiro
atrativo foi a procura de açúcar de cana em quantidade suficiente para sustentar uma requintada produção doceira e confeiteira, bem como para adocicar, com o mascavado mais barato, a
dieta popular. Para produzi-lo, um grande mercador de Antuérpia,
Erasmo Schetz, lançou já na década de 1540 um dos primeiros
investimentos capitalistas no Brasil com o Engenho dos Erasmos
em São Vicente, no litoral do atual Estado de São Paulo.
Pouco depois, em Antuérpia, um primeiro papagaio verde
brasileiro apareceu à venda em uma feira, segundo um quadro
de Joachim Beuckelaer de 1566. Importaram-se logo em seguida
mais papagaios, além de araras, tucanos, saguis e tatus brasileiros,
que serviam para dar prestígio à corte de Bruxelas e enriquecer as
coleções dos primeiros naturalistas. Tais animais exóticos, vendidos no mercado, eram destinados também à intimidade dos lares
burgueses e chegaram a merecer um lugarzinho nos quadros de
Jan Breughel o Velho, no início do século XVII.
Mas foi somente a partir do início do século XIX que se intensificaram e se diversificaram as conexões entre os dois países.
A partir de 1807, o porto de Antuérpia abriu-se à importação de
produtos brasileiros, como café, couros e madeira. O Brasil reconheceu a independência da Bélgica e com ela firmou, já em 1834,
um tratado de comércio.
Doravante, ambos os países manteriam relações diplomáticas
exemplares, reforçadas pela arbitragem do Rei Leopoldo I em favor do Brasil na questão Christie com a Inglaterra em 1863, quando, por seu lado, o Brasil contribuiu para resgatar os direitos de peagem, cobrados pela Holanda sobre a navegação do Rio Escalda.
Nesses anos ainda, o príncipe herdeiro Leopoldo II estimulou, sem
êxito, o irmão Felipe a pedir no Rio de Janeiro a mão de uma das
princesas imperiais. Logo depois, o Imperador Pedro II visitou a
Bélgica por quatro vezes em 1871-1872, 1876 e 1888. Com a queda do Império, Leopoldo II, exitoso na sua conquista do Congo,
cobiçou uma parte do território da recém implantada república
brasileira: em 1891 fez a proposta ao Brasil e à França de cessão
do território contestado do Oiapoque; por volta de 1900 estava
de olho no Acre e tinha em mira grandes concessões de terras no
Mato Grosso e no Araguaia.
Entrementes embarcaram entre 1840 e 1914 quase seis mil
emigrantes belgas para o Brasil, principalmente agricultores candidatos a um pedaço de terra numa das colônias privadas, como
nos anos de 1850 a de Nicolau Vergueiro em Limeira, ou oficiais,
como por volta de 1890 a de Porto Feliz, dirigida pelo padre Vanesse. Havia também trabalhadores à procura de salário melhor.
Em menor número, partiram comerciantes para vender armas,
vidraria, casimiras, espelhos, lampadários, estruturas metálicas, como fizeram no Rio de Janeiro a Casa Laporte e os irmãos Pecher.
O cônsul Edouard Pecher fundou no Rio de Janeiro em 1852
a Société Belge de Bienfaisance – ainda existente –, que organizava banquetes anuais para angariar fundos para dar assistência aos
compatriotas necessitados ou doentes, embora não possuísse hospital próprio. Vieram, ainda, artesões como o litográfo Jean-Baptiste Lombaerts que montou em 1848 na Rua do Ouvidor uma
conceituada livraria, continuada pelo seu filho Henri e frequentada por Machado de Assis. Os tecelões d’Olne de Verviers criaram no final do século XIX em Niterói a fábrica Tecidos Aurora.
Nessa corrente imigratória nem mesmo faltou um ou outro
nobre ou gente abastada: Léon Mosselman du Chenoy, longíquo
parente da Rainha Paola da Bélgica, que se distinguiu na Bahia
por volta de 1900 pelas suas empresas de mineração e, até, de
piscicultura, embora nunca bem sucedidas; a família de Vicq de
Cumpich no Rio de Janeiro; Henri Oedenkoven, filho de um rico
industrial de Antuérpia, que, desiludido da famosa colônia de naturismo Monte Veritá em Ascano na Suiça, tentou em 1925 organizar uma similar em escala menor em Catalão, Estado de Goiás.
Vale assinalar a presença de mulheres atuantes como Marie
van Langendonck, que publicou em 1862 o relato de sua vida
numa colônia do Rio Grande do Sul ou Georgina Mongruel,
musa dos simbolistas e poetisa em Curitiba por volta de 1900. O
talento artístico motivou frequentes travessias e migrações como
a de Maurice Nadeau, que desde os anos de 1950 encenou peças
no Teatro Brasileiro de Comédia e dirigiu inclusive novelas. Nos
anos de 1950 e 1960 o violonista Jan Douliez fundou em Goiânia
o Conservatório de Música, mas, incomodado pelo regime militar,
voltou em 1965 para a Bélgica.
O Brasil recebeu também fugitivos belgas. O primeiro foi Pierre Mabilde, que, revoltado contra o novo Rei Leopoldo I, chegou
em 1832 ao Rio Grande do Sul, onde, dirigindo a abertura de estradas, ficou cativo dos índios Coroados, que lhe inspiraram seu
livro Apontamentos. Nos anos de 1840, um conspirador contra o
mesmo rei, o Conde Auguste van der Meeren, teve sua pena de
morte comutada em banimento e se estabeleceu na Bahia. Com
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
os distúrbios sociais do final de século, socialistas como Augusto
Lootens e Alphonse Solheid e anarquistas como Jules Moineau
se asilaram no Brasil.
Fugindo dos horrores da Primeira Guerra Mundial, um grupo
de 30 belgas fundou sua comunidade libertária na fazenda Tabantinguera perto de Cananéia; mesmo malograda, esta aventura
brasileira inspirou um dos participantes, Géo Libbrecht, em sua
futura obra poética. No início da Segunda Guerra Mundial, cerca
de trinta judeus, com passaportes belgas, obtiveram do embaixador
brasileiro na França, Souza Dantas, visto para refugiarem-se no
Brasil. Uma vez terminado o conflito, para lá escaparam, por sua
vez, vários colaboracionistas belgas da ocupação nazista.
Outros ainda chegaram ao Brasil para prestar serviço a companhias belgas, como fez o engenheiro Gustave Vauthier, no final
do século XIX, nas ferrovias do Paraná e Rio Grande do Sul. Em
1886 a compra da companhia inglesa Gaz do Rio por capitalistas
belgas inaugurou um período de investimentos em ferrovias, mineração, indústria têxtil, agropecuária e exploração da borracha,
totalizando por volta de 1910 mais de 100 milhões de francos em
quase quarenta empresas. Algumas destas tiveram vida curta, como a Companhia Força e Luz, no Rio de Janeiro, que em 1887,
embora por pouco tempo, teve parte do centro iluminado com baterias do belga Edmond Julien. Esta prefigurou de certa maneira
o empenho belga no fornecimento de energia elétrica no Brasil.
Outras empresas foram compradas pelo americano Farquhar como as ferrovias do sul brasileiro pouco antes da Primeira Guerra
Mundial; outras ainda mantiveram-se por quase um século, como
o Banco Ítalo-Belga, fundado em 1911 em São Paulo.
Uma incipiente segunda onda de investimentos belgas no Brasil ocorreu no final dos anos de 1930, mas interrompida pela guerra. A nova dinâmia de investimentos que se verifica atualmente
somente se intensificou a partir do final do século XX, mas supera agora as fases anteriores. Desta vez veio acompanhada de movimento de capitais em sentido inverso, pois várias companhias
brasileiras instalaram-se na Bélgica.
Se as empresas belgas levaram seu pessoal para o Brasil, numerosa colônia brasileira surgiu espontaneamente na Bélgica, com
presença mais visível em Bruxelas, dos anos 1990 até hoje, constituída de emigrantes à procura de trabalho. Desde a década anterior, futebolistas brasileiros profissionais foram contratados por
equipes belgas, a exemplo do maranhense Luís Oliveira, que se
tornou entre 1988-1992 estrela do F.C. Anderlecht e da equipe
nacional dos Rode duivels.
Bem antes disso, isto é, desde meados do século XIX, foi expressivo o número de estudantes brasileiros nas universidades
belgas. Merecem ainda destaque os cerca de quarenta exilados
brasileiros no Chile que, depois do golpe contra o presidente
Allende, encontraram no final de 1973 refúgio na Bélgica. Dois
de seus líderes, Vladimir Palmeira e José Ibrahim, participaram
de maneira ativa da redemocratização do País. Cabe mencionar,
também, o programa de intercâmbio American Field Service, que
desde 1985 facilita para algumas centenas de jovens brasileiros
e belgas passar um ano escolar na Bélgica ou no Brasil, hospe-
dados em casas de família. Paralelamente, cresceu o número de
expats belgas no Brasil, sendo cada vez maior o número dos que
se registram em seus consulados no país.
Assim não é de se estranhar o fato de a Bélgica ter se tornado
referência frequente no vocabulário e ideário brasileiros. Em razão
das dimensões do seu território e padrão de vida de sua população passou a fazer parte da métrica brasileira e adquiriu status de
modelo de bem-estar social refletido no termo ‘Belíndia’, forjado
em 1974 por Edmar Bacha para definir a sociedade brasileira,
que justapõe o bem-estar desfrutado por 10% de seus nacionais
nas condições da Bélgica aos 90% daqueles que vivem problemas
similares aos da Índia.
Esta primeira exploração poderia prolongar-se, enveredando-a
na vida científica, educacional e religiosa, mas esta pequena miscelânea de dados é suficiente para evidenciar um surpreendente
fluxo quase contínuo e muito diversificado de conexões entre ambos os países, o que justifica um estudo mais aprofundado destas
relações multifacetadas e sobretudo recíprocas, relações que nunca suscitaram uma obra de síntese como as que existem para as
relações do Brasil com outros países europeus. Diferenciando-se
destas obras, preferiu-se aqui uma abordagem bifocal, explorando estas conexões dos dois lados e dando ênfase tanto à presença
brasileira na Bélgica quanto à belga no Brasil.
Em nosso projeto editorial, ambicionamos, inicialmente, apresentar um repertório sucinto, mas tão completo quanto possível,
destas conexões em todos os setores, tanto no passado quanto no
presente, alternando verbetes de estudiosos com depoimentos pessoais. Entretanto, logo vimo-nos subjugados e algo desnorteados
pela abundância de temas, não suspeitada inicialmente.
Além disso, tivemos a grata surpresa de constatar que muitos
assuntos já foram investigados recentemente por acadêmicos belgas e, sobretudo, por brasileiros. O crescente interesse existente
no Brasil pelos recantos de sua história reflete-se na excelente
qualidade da pesquisa nas suas universidades e na conservação
do patrimônio material.
Em vista do limite de páginas, do tempo e do orçamento
disponíveis impôs-se a necessidade de selecionar temas. Assim,
deixamos de lado as figuras e os episódios mencionados acima.
Procuramos equilibrar os mais conhecidos e proeminentes com
outros desconhecidos e quase marginais. Mesmo assim, conexões
importantes como na psicologia e psicanálise ou na literatura ficaram de fora. Pedimos desculpas às pessoas para as quais não pudemos dar a devida atenção, mas esperamos que futuramente em
outro livro consigamos nos redimir desta falha. Para adequarmos
a obra ao espaço disponível reduzimos as referências bibliográficas ao mínimo indispensável. Ressaltamos ainda que cada autor
é pessoalmente responsável pelas opiniões emitidas.
***
Este projeto foi viabilizado graças ao patrocínio da Tractebel
Energia dentro das normas da Lei Rouanet. A boa acolhida dada pelo seu diretor Jan Flachet e seus colaboradores foi determi-
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introdução
nante, como também em Bruxelas o apoio de Dirk Beeuwsaert,
diretor da Electrabel e administrador da GDF-Suez. Grande é
nossa dívida para com a Incentive Cultural de Raphael Ribeiro,
que conseguiu a aplicação da referida lei a este livro. Entre os
diplomatas belgas, Peter Claes, cônsul-geral da Bélgica em São
Paulo, foi, em 2011, o primeiro a apoiar o projeto, além de fornecer valiosas informações juntamente com seus colaboradores
Dulce Vivas e Bart Struyf. Em seguida, também o embaixador
belga em Brasília, Claude Misson, ofereceu sua colaboração. Os
atuais embaixador Jozef Smets e cônsul-geral Didier Vanderhasselt apoiaram a conclusão do projeto. O embaixador brasileiro
na Bélgica, André Mattoso Maia Amado, manifestou, também,
especial interesse. Somos particularmente gratos à embaixadora
Katia Godinho Gilaberte, no consulado-geral do Brasil em Bruxelas, pelo seu apoio, e ao seu assistente Brunno Hoffmann Velloso
da Silva, pelas valiosas informações prestadas.
Agradecemos de modo especial a todos os autores por terem
aceitado colaborar, sem receber honorários, e particularmente a
Els Lagrou, Susana Rossberg, Cristina Dias, Roland Renson por
terem coordenado capítulos. Boa parte das ilustrações foi proporcionada pelos próprios autores. Várias fotografias são de autoria de
Luciana Mascaro. Outras recebemos de Ivana Vervloet, Regina
Lootens Machado, do Museu Histórico de Belo Horizonte, de
Silvio Cordeiro, Luc Van Coolput, Bruno De Corte, do Arquivo
Municipal de Antuérpia, de Bruno Gosse, do Fonds Léopold III
pour l’exploration et la conservation de la nature, de Luc Vints do
KADOC (Centro de documentação católica da Universidade de
Lovaina), do Institut Royal du Patrimoine Artistique (KIK-IRPA)
em Bruxelas, de Monica Muggler, Patrick Segers, do Serviço de
Turismo do município de Dendermonde, do Museu Real de Arte
e História (KMKG-MRAH), em Bruxelas, do Ecomusée du Boisdu-Luc, em La Louvière, Bélgica, de Verônica Tamaoki do Centro de Memória do Circo em São Paulo, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, do Acervo do Museu
Mineiro-Superintendência de Museus e Artes Visuais, do Museu
Paulista da Universidade de São Paulo, da Pinacoteca do Estado
de São Paulo, do Museu da Cidade de São Paulo-Casa da Imagem
da Prefeitura de São Paulo, do Museu do Trem do Rio de Janeiro,
do Arquivo Público do Distrito Federal, da Christie’s Images, do
Irmão João Baptista do Mosteiro de São Bento de São Paulo, do
Núcleo de Documentação do Instituto Butantan, da Biblioteca
da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”-Esalq, da
Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade-FEA-USP, da Europalia em Bruxelas, do arquivo pessoal de
Allen Morrison, do conde Frédéric de Limburg Stirum, de Paul
Wittamer, do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich, e das fotógrafas Vivian Oswald e Sofie Deblieck, que cederam suas obras
sem ônus. Devemos, finalmente, registrar que recebemos informações preciosas de Regina Barbosa, Daniela Rocha, Dominique Van
Pée, dos padres Johan Konings e Thierry Linard de Guertechin.
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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
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Sumário
Parte 1 – Travessias e Migrações
A inserção dos trabalhadores brasileiros migrantes no
mercado de trabalho belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
P res en ças B elg as n o B ra sil
Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo
Os ‘flamengos’ do Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história.... . . . . 51
Eddy Stols
Isabel de Lannoy
Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina. . . 22
Parte 2 – Relações Oficiais e Diplomáticas
Eddy Stols
Jules Luis Parigot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões
belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols
Paulo Roberto de Almeida
Jeanne Louise Milde, escultora e educadora. . . . . . . . . . . . . . . 28
Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de
Jaegher (1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten
Ponthoz (1845-1849) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
René Lommez Gomes e Verona Campos Segantini
Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Chris Delarivière
Milton Carlos Costa
A colônia belga de Botucatu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo. . . . . . . . . . . . 63
Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols
Clodoaldo Bueno
Uma italo-belga no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil
(1895-1912). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Florence Carboni
A casa é sua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Domingos Savio da Cunha Garcia
Annelies Beck
O Rei Alberto I e a música brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
Daniel Achedjian
Pr e s en ças B ras i lei ras na B é lgica
De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil. . . . . 69
Os primeiros brasileiros em Flandres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Peter Daerden
Eddy Stols
Brasil-Europa, via Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos
XIX e XX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Antônio Carlos Lessa
Eddy Stols
Parte 3 – Relações Econômicas: Comércio e Empresas
Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas em Onze-LieveVrouw-Waver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
O C o mé r cio
Mario Baeck
O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente . . . 75
Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège
(1870-1914). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
Eddy Stols e Silvio Cordeiro
A companhia de Ostende e os portos brasileiros. . . . . . . . . . . . 77
Christine Fellin
Eddy Stols
Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta. . . . . . . . . . . . 46
Antuérpia e os diamantes do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Susana Rossberg
Tijl Vanneste
Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70 . . . 47
Paul Dulieu
13
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo
oitocentista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira . . . . . 114
Regis De Bel
Jan Possemiers
Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil . . . . . . . . . 116
Um traficante de escravos na Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Regis De Bel
Chris Delarivière
Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes . . . . . . . 118
Chris Delariviere
E m presas belg as n o B ras il
Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação. . . . . 118
A Urucum dos belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Dulce Eleonora de Oliveira
Fabio Guimarães Rolim
A Cooperação ente a KULeuven e as universidades
brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e suas
conexões belgas (1904-1918) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão
Paulo Roberto Cimó Queiroz
Me d icina
Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da
Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.. . . . . . . . . . . . . . . . 93
Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher . . . . . . 123
Jean Suettinni
Eddy Stols
A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América
do Sul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Tractebel Energia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Luciana Pelaes Mascaro
O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de
pesquisa em diabetes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Deme: uma empresa de engenharia marinha com 150
anos de experiência mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Decio L. Eizirik
Grupo Jan de Nul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Katoen Natie: mais de 15 anos de prestação de serviços
logísticos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
Antr o po lo gia
A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil. . . . . . 126
Els Lagrou
E m presas bras i lei ras na B élgica
Quando a selva chama. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
A Compagnie Brésilienne des Tramways. . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Daniel De Vos
Eddy Stols
As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano. . . . . . . . 140
O Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro. . . . . . . . . . . 104
Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot
Eddy Stols
Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980. . . . . . . . . . . . . . . 106
Ensino e Pe sq u isa
Parte 4 – Colaboração Científica
Os belgas nas origens da Escola Superior de Agricultura
“Luiz de Queiroz” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Luciana Pelaes Mascaro
A s tron om i a e Geo lo g i a
A cooperação entre o Institut International de Bibliographie
e a Biblioteca Nacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Louis Cruls e o Observatório Astronômico do Rio
de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Jacques Gillen
Christina Helena Barboza
O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas e o
Barroco Mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
Um belga à procura do petróleo no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . 111
Patrick Collon
Erika Benati Rabelo e Myriam Serck-Delwaide
B o tân i ca e Z o o lo g i a
A cooperação acadêmica, científica e técnica entre
Bélgica e Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
O botânico Céléstin Alfred Cogniaux e sua relação com
o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Claude Misson
Magali Romero Sá e Alda Heizer
14
sumário
Parte 5 – Influências Religiosas e Ideológicas
Parte 6 – O Brasil Entra em Cena
Jesuítas belgas no Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
O Br a sil e ntr a e m cena
Eddy Stols
O Brasil entra em cena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
Eddy Stols
As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira. . . 155
Jeroen Dewulf
Brasileiros barrocos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Johan Verberckmoes
Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil
beneditino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Te atr o, Da nça , C ir c o
Eddy Stols
A dança na Bélgica a partir do Século XX. . . . . . . . . . . . . . . . 199
Os cônegos brancos e outras ordens belgas. . . . . . . . . . . . . . . 164
Textos organizados por Cristina Dias
Eddy Stols
Depoimento de Rachel da Costa Cunha. . . . . . . . . . . . . . . 199
O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde. . . . . . . . . . . . 168
Eddy Stols
A Escola Mudra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
Cristina Dias
O sonho monástico de José Moreau em Tabatinguera
(Cananéia) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Depoimento de Claudio Bernardo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
Eddy Stols
A evolução da dança contemporânea na Bélgica. . . . . . . . . . 201
A Trapa Maristela (1904-1931). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
Textos organizados por Cristina Dias
José Eduardo M. Manfredini Júnior
Depoimento de Milton Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro . . . 171
PARTS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Peter Heyrman
Cristian Duarte
Os colégios das freiras belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Depoimento de Maria Clara Villa Lobos. . . . . . . . . . . . . . 203
Eddy Stols
O papel dos produtores, os intercâmbios de companhias
de dança e os festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco. . . . . . . . . . . . 174
Marcelo Lins
Textos organizados por Cristina Dias
Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo
(1945-2010). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
Espetáculos brasileiros na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Rodrigo Albea
Eddy Stols
Danças populares brasileiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Joseph Comblin (1923-2011). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
Cristina Dias
Carl Laga
Grupos e companhias de espetáculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
A contribuição dos jocistas belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
Arlene Rocha
Myriam Vanden Nest
Depoimento de Mano Amaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
A Uniapac e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
Peter Heyrman
O homem do carnaval do Rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
Régis Lemaire
Os vínculos entre os mundos maçônicos e laicos da Bélgica
e do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
Depoimento de Cristina Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Nicoletta Casano
A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo . . . . . . . . . . . . . 210
As igrejas brasileiras de Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
Verônica Tamaoki
Anne Morelli
Circo social belgo-brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
Grupos espíritas criados por brasileiros na Bélgica e o
movimento espírita belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
Anne Loeckx
Parte 7 – Música
Fabio Mendes Furtado
Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Mú sica C lá ssica
Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica . . . . . . . . . . 217
Arnaud Halloy
Anna Maria Kieffer
15
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
Álvaro Guimarães (1956-2009). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222
Baiano, Brasileiro e Bruxellois. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Katrijn Friant
Diego Santana Claudino
Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
Documentário e mal-entendido: Retorno sobre uma
primeira filmagem no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
Eliane Rodrigues
Jeremy Hammers
M ú s i ca Popu lar B ras i lei r a
“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete, ah
foi bom, meu coração ficou feliz...”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
MPB . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Daniel Achedjian
Reynald Halloy
A descoberta da Bossa Nova na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
O Brasil, terra de energia e de cinema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
Bart P. Vanspauwen
Thierry Michel
A descoberta do Mangue Beat na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . 229
Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista. . . . . . . . . . . 257
Bart P. Vanspauwen
Heron Ferreira
A música brasileira nos festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
Filmando nas aldeias Kayapó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Bart P. Vanspauwen
Gustaaf Verswijver
Os músicos brasileiros residentes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . 232
O fascínio pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260
Bart P. Vanspauwen
Nicolas Hallet
Parte 8 – Cinema e Televisão
Te le v isão
C i n em a Atual
A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para
os belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
Daniela Rocha
Parte 9 – Artes Plásticas
Susana Rossberg
Capoeira, Bel Horizon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
Pintu r a e Escu ltu ra
Basile Salustio
Rastros flamengos no Barroco mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
O meu Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Alex Fernandes Bohrer
Roger Beeckmans
Pedro Américo de Figueiredo e Mello: Conexão Ciência &
Brasil & Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
As questões indígena e ambiental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
Babi Avelino
Madalena Zaccara
A mensagem poética de Oscar Niemeyer . . . . . . . . . . . . . . . . 240
Benjamin Mary (1792-1846) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
Marc-Henri Wajnberg
Valéria Piccoli
Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Henri Langerock (1830-1915) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Lazhari Abdeddaïm
Valéria Piccoli
Paixão pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242
Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943). . . . . . . . . . . . . 276
John Erbuer
Valéria Piccoli
Em busca de uma arte global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Georges Wambach e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
Icaro Alba
Aldrin Moura de Figueiredo
Sem-Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
Um olhar para o meu passado brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . 280
Jean Timmerman
Jef Van Grieken
Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia . . . . . . . . 247
Inscrever os direitos do homem entre o Brasil e a Bélgica. . . . 281
Nicodème de Renesse
Françoise Schein
Lampião, sonhos de bandido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
A visibilidade da arte contemporânea brasileira na
Bélgica: uma história recente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
Damien Chemin
Olívia Ardui
16
sumário
Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo. . . . . . . . . . . 291
Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais
da Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Frederik De Preester e Piet Slijkerman
Luciana Pelaes Mascaro
A trajetória da Galeria Cravo e Canela . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na Exposição
Mundial de 1958 em Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
Jacques Ardies
Arte Popular Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296
Emiel De Kooning
Daniel Achedjian
Frédéric de Limburg Stirum e Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de
visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira. . . . 298
Dominique Vanpée
Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
Kristine De Mulder
Cassio Ramiro Mohallem Cotrim
Hi s tóri as em Quad ri n h o s
Paraty e o plano de Limburg-Stirum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
O cartunista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
Fabio Guimarães Rolim
Ronaldo Cunha Dias
B-architecten. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Caatinga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
Dirk Engelen
Hermann Huppen
O Projeto Bamboostic. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Sven Mouton
Foto g rafi a
Parte 11 – Esportes
A oficina litográfica de Leon De Rennes. . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Jamil Abib
Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida Internacional
de São Silvestre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil: a coleção
de fotografias dos Premonstratenses da Abadia do Parque
(Parkabdij) de Lovaina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
Roland Renson
A primeira competição de atletas brasileiros nos Jogos
Olímpicos de 1920 em Antuérpia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356
Luc Vints
Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart
e a “Mission Biologique Belge Au Brésil (1922-23)”. . . . . . . . . 314
Roland Renson
A capoeira na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Alda Heizer
Jan Tolleneer
O Rei Leopoldo III e a floresta amazônica brasileira. . . . . . . . 317
Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira dedicada
ao hipismo mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
Gustaaf Verswijver
Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil. . . . . . . . . . . . 319
Katia Rubio
Christine Leidgens
A obra de Ricardo de Vicq Cumpitch. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
Parte 12 – Gastronomia
Parte 10 – Arquitetura
Produtos brasileiros na gastronomia belga. . . . . . . . . . . . . . . . 365
Eddy Stols
Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
Interlocuções etílicas entre o Brasil e a Bélgica. . . . . . . . . . . . 368
Daisy De Camargo
Maria Angela P. C. S. Bortolucci
Como um chef mergulhou nos sabores dos ingredientes
nacionais valorizando os produtos e a gastronomia brasileira . . 371
Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX. . . . . . . . 327
Bernard Pirson
Quentin Geenen de Saint Maur
Os empreendimentos belgas e a moradia operária . . . . . . . . . 333
Mille merci monsieur Quentin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Telma de Barros Correia
Alex Atala
A vila belga de Santa Maria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
Ensaio do fotógrafo Ricardo de Vicq Cumptich sobre
gastronomia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Anna Eliza Finger
Nota sobre Arsène Puttemans. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Créditos de Imagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374
Luciana Pelaes Mascaro
17
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
18
presenças belgas no brasil
parte 1
Travessias e Migrações
19
parte 1 – travessias e migrações
20
presenças belgas no brasil
Os ‘flamengos’ do Brasil colonial
Eddy Stols
N
ão falta no Brasil quem se orgulhe de sua origem flamenga, seja pelo nome, seja pela aparência, de cabelos loiros e
olhos azuis. Quem eram estes pretensos antepassados flamengos?
Tratava-se mesmo de flamengos de Flandres ou de holandeses?
A confusão entre os dois é frequente e banal no Brasil, mas não
agrada aos atuais belgas e holandeses. Merece ser esclarecida por
um curto histórico das presenças flamengas no Brasil colonial e
das linhas de ascendência.
Flamengo tinha, no Brasil colonial como em Portugal, um significado de nacionalidade diferente e bem mais amplo do que aquele
vigente para os nativos da região de Flandres, no atual Estado federal
da Bélgica. Como flamengos designavam-se não somente os súditos
do condado de Flandres como também todas as pessoas vindas dos
diferentes condados e ducados dos Países Baixos, reunidos pelos
duques de Borgonha e herdados por seus sucessores habsburgos.
Em Lisboa, a privilegiada e prestigiosa nação flamenga tinha
sua capela – Santo André dos Flamengos – fundada em 1414 por
mercadores de Bruges, naquela época a maior praça comercial
do Norte da Europa. Mais tarde, no século XVI, a nação veio a
admitir também holandeses e outros mercadores ou artesãos das
regiões setentrionais.
Esta ‘Flandres’ lato sensu dos portugueses coincidia com a ‘Bélgica’ constituída por 17 províncias e representada pelos cartógrafos
como um poderoso ‘Leo Belgicus’. Seus habitantes ‘belgas’, um
termo apenas corrente entre os letrados latinistas, falavam idiomas
diferentes: o flamengo, o holandês, uma variante do baixo-alemão
e o francês. Flamengos podiam ser francófonos, já que este idioma
predominava em boa parte do condado de Flandres, em cidades
como Lille e Douai, e circulava também na metrópole poliglota
de Antuérpia.
A união das 17 províncias desintegrou-se a partir de 1566 com
a rebeldia contra seu soberano Felipe II e a reconquista contrarreformadora, que acabaram criando dois Estados separados: no
Norte, as Províncias Unidas, com principalmente a Holanda e a
Zelândia, protestantes e em guerras quase contínuas, e, no Sul,
os Países Baixos meridionais, incluindo o condado de Flandres,
católicos e leais dentro da órbita espanhola. Aliás, estes últimos
compartilharam com Portugal e o Brasil, de 1580 a 1640, os mesmos soberanos Felipe II, Felipe III e Felipe IV.
Entretanto, no Brasil esta distinção entre obedientes e rebeldes custou a validar-se. Os holandeses, que começaram nos anos
de 1590 a piratear os navios de açúcar brasileiro, conquistaram
brevemente a Bahia em 1624 e dominaram Pernambuco de 1630
a 1654, ainda eram chamados de flamengos. Na boca do poeta
Gregório de Matos foram até vituperados como ‘o belga ... ímpio
tirano’. Ainda hoje a ocupação holandesa de Pernambuco é comemorada, numa veneração bastante ambígua, como o ‘Tempo dos
flamengos’ no famoso livro de José Antônio Gonçalves de Mello.
Na realidade, a maioria dos invasores era mesmo de holandeses,
se bem que ao seu lado lutaram alguns flamengos emigrados ou
trânsfugas das províncias meridionais e muitos mercenários alemães. Uns e outros tiveram filhos nos poucos casamentos com
portuguesas e sobretudo nas furtivas relações com índias e negras,
podendo, assim, figurar como antepassados flamengos de muitos
nordestinos.
Oposta a esta amálgama com os belicosos holandeses existe,
entretanto, uma outra linha de ascendência flamenga que remonta
ao próprio condado de Flandres, através de seus mercadores estabelecidos em Lisboa. Estes conseguiram, desde meados do século
XV e no contexto dos laços dinásticos entre os duques de Borgonha e a Casa de Aviz, uma participação generosa nas empresas
portuguesas no ultramar, primeiro no povoamento da Madeira e
dos Açores com gente vinda de Bruges e vizinhança. Destas ilhas
seus descendentes seguiram mais tarde para o Brasil, já no século
XVI, ou com os colonos açorianos do século XVIII. Naquela época
os Açores figuravam ainda em alguns mapas como ‘Ilhas flamengas’. Estes flamengos de segunda ou terceira gerações integraram-se
sem maiores problemas na boa sociedade colonial como os Leme
(Lam), Taques (Tacx), Dutra (de Hurtere), da Silveira (van der Haeghen), Bulcão (Bulskamp)..., nomes hoje presentes no País inteiro.
Uma via flamenga mais direta para o Brasil preexistia desde os
anos de 1540, quando os mercadores de Antuérpia, interessados
no comércio do açúcar brasileiro e na exploração de engenhos,
aproveitaram esta primeira mundialização portuguesa e enviaram
21
parte 1 – travessias e migrações
agentes ou filhos para São Vicente, Bahia e Pernambuco. Assim,
constituiu-se lá até o final do século XVI um pequeno núcleo
de flamengos de primeira geração, que tiveram também alguma
descendência brasileira, como os Campos. Entretanto, sua tranquilidade foi logo afetada pelos ataques ingleses e holandeses e
ficaram suspeitos de agir como uma quinta coluna. Alguns, acusados de heresias protestantes, foram deportados pelo visitador da
Inquisição em 1594.
Além disso, em represália às novas investidas holandesas, decretou-se em 1608 a expulsão desses flamengos do Brasil, mas vários puderam voltar durante a trégua de 1609-1621. Confrontados
outra vez em 1624 e 1630 com as invasões holandesas, tiveram
que escolher um ou outro partido. Quem, como Gaspar de Mere,
ficou com os portugueses, teve seu engenho confiscado. Depois
da vitória portuguesa sobre os holandeses em 1654, manteve-se
em Lisboa e no Porto uma pequena comunidade flamenga, que
intermediava o comércio com o Brasil e que enviava, ocasionalmente, um ou outro agente ao Brasil, sem, entretanto, reconstituir
um novo núcleo flamengo.
Desde a abertura dos portos em 1808, os registros brasileiros de
estrangeiros mencionaram esporadicamente a entrada de belgas
como ‘franceses’ ou ‘holandeses’, em função do passaporte que
traziam. É que os Países Baixos meridionais foram anexados pela República francesa em 1795 e passaram, depois da derrota de
Napoleão, em 1814, a fazer parte, junto com a Holanda, de um
Reino Unido dos Países Baixos, que teve pouca duração. Somente depois da Revolução de 1830 e da Independência da Bélgica
é que a nacionalidade belga definiu-se como tal nos documentos
de identidade.
Porém, o equívoco subsistia no Brasil e belgas passavam frequentemente por franceses, porque falavam francês ou porque tinham residido por um tempo na França. Quanto aos flamengos,
estes, já ausentes dos registros oficiais, incorporavam-se doravante
no imaginário histórico dos brasileiros.
Referências
STOLS, Eddy. “Convivências e conivências luso-flamengas na rota do açúcar brasileiro”.
In Ler História, Lisboa, 1997, 32, p. 119-147.
Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina
Eddy Stols
A
Bélgica viu-se durante o segundo decênio de sua independência confrontada com uma dramática crise econômica. A
tecelagem e os outros artesanatos domésticos da zona rural foram
substituídos pela produção fabril nas cidades, ao passo que estas
novas indústrias perderam seu acesso aos mercados nas colônias
holandesas. O êxodo rural e o desemprego urbano provocaram
um pauperismo, mais marcado nas duas províncias de Flandres
oriental e ocidental, que, a partir de 1844, tornou-se catastrófico
com a fome e a alta mortalidade subsequentes aos malogros das
safras de batata e às epidemias de tifo e cólera.
Para evitar uma explosão social, os dirigentes políticos, e particularmente o Rei Leopoldo I, buscaram o remédio na emigração
para colônias de povoamento belga no ultramar, que deveriam criar
novos mercados para produtos belgas. A primeira colônia foi lançada em 1841 em Santo Tomás, na Guatemala, onde seu governo
aceitou ceder um território a uma companhia de colonização belga. Esta focalizou durante um decênio as melhores atenções das
autoridades belgas ao mesmo tempo em que suas atribulações comprometiam as outras tentativas coloniais nos quatro continentes.
Neste contexto, não podia faltar um projeto colonizador no
Brasil, país que se firmava naqueles anos no horizonte dos belgas.
No porto de Antuérpia cresceu o número de partidas de navios
para o Brasil. Comerciantes belgas, como os Laporte, Saportas e
Hanquet, investiram na praça do Rio de Janeiro para a venda de
armas e tecidos. A compra de café brasileiro começou a substituir
o café holandês de Java. A riqueza botânica do Brasil fascinava as
elites belgas e vários naturalistas, como Louis van Houtte, Auguste
Ghiesbrecht e Jean Linden, que partiram à busca de novas plantas.
Além disso, os diplomatas brasileiros na Bélgica mostravam-se
atentos à questão da emigração. Se o governo do Brasil incentivava a implantação de colonos europeus, procurava diversificá-los
além dos suíços e alemães. Dos belgas, reputados por seus tecidos
de linho, esperavam a introdução da cultura e de fábricas que utilizassem essa planta.
Com este propósito, o presidente da província do Rio de Janeiro, Honório Hermeto Carneiro Leão, assinou, em 20 de outubro
de 1842, um contrato com Ludgero Joseph Nélis, empresário do
linho de Zele em Flandres oriental, para trazer 20 agricultores
e implantar esta cultura numa concessão na Pedra Lisa, perto
de Campos.
Pouco depois, em 10 de maio de 1843, o contrato foi ampliado para 125 colonos com meia légua de terra e um empréstimo
para suas passagens e primeiras despesas, a serem reembolsadas
em dois anos. O cônsul-geral brasileiro na Bélgica, José Augusto
Rademaker, vistoriou pessoalmente em Zele os candidatos: eram
bons agricultores e suas mulheres, especialistas no trabalho com
linho e manteiga.
Dos 106 colonos embarcados no porto francês vizinho de Dunquerque, no navio francês Curieux, chegaram ao Rio em 28 de
dezembro de 1843 somente 99, sendo que seis e um recém-nascido morreram durante a travessia de 56 dias. Entre eles estavam
56 solteiros, 9 casais, 6 moças e 16 crianças. Transportados para
22
presenças belgas no brasil
Campos por uma escuna de guerra, seguiram em barcas até Pedra Lisa em 14 de fevereiro de 1844, onde deviam receber casas
provisórias e alimentos até as primeiras colheitas.
Desenganados e descontentes com o despreparo, em abril quase todos tinham desaparecido. Novas providências para comprar
gado a fim de reter os poucos restantes não adiantaram. O único
a ficar, Nélis tirou todo o proveito possível das matas, para escândalo dos vizinhos, que queriam repartir as terras entre os pobres.
Alguns fugitivos se colocaram em outras colônias, mas boa parte
voltou à Bélgica e relatou na imprensa seus dissabores.
O governo nada recuperou de seus gastos e o próprio Nélis voltou para Zele onde, em 1847, figurou como morador e fabricante
de velas. Neste contexto de Pedra Lisa situou-se a vinda a Campos
do casal Charles Muylaert, originário de Aalst, cidade próxima a
Zele, que deixou numerosa descendência no Brasil, ativa na música e nas artes. Perto de São Fidelis (RJ), a colônia de Valão dos
Veados, montada pelo proprietário Eugênio Aprígio da Veiga em
1847, contou com 13 belgas.
Outra atividade econômica belga que suscitava particular interesse brasileiro era sua já bem avançada exploração das minas de
carvão. Para examinar o potencial carbonífero brasileiro e transferir a tecnologia belga, o governo imperial contratou, em 1839,
o cientista Jules Parigot. Mal sucedido, este acabaria, mais tarde,
nos anos de 1860, como diretor de colônias no Paraná. Um outro
belga, Charles Van Lede, travou um nexo mais direto entre exploração geológica e colonização.
Charles Van Lede (1801-1875), nascido em Bruges de uma
família de comerciantes e proprietários de terras, conhecia a América Latina por seu trabalho como engenheiro militar no México
e no Uruguai nos anos de 1826 a 1828. No Chile teria sido diretor das obras hidráulicas. Seu irmão, Louis Auguste Van Lede,
vice-cônsul do Brasil em Bruges e sócio da Société de Commerce
de Bruges, fazia comércio com o Brasil. Em abril de 1837 tinha
despachado um navio para o Rio de Janeiro com farinhas, tecidos
e armas. Em dezembro de 1841, Charles partiu para prospectar
no Brasil, com um capital de 50.000 francos e recomendado pelo encarregado de negócios brasileiro em Bruxelas, Visconde de
Santo Amaro. Este apreciava os belgas como “bons trabalhadores
e católicos”, mas pretendia eliminar “a escória da sociedade”.
Charles Van Lede levou consigo Joseph Philippe Fontaine,
como delegado da Société de Commerce de Bruges e seu futuro
substituto, e mais um sobrinho, Jules de Laveleye, mais tarde vice-cônsul do Brasil em Gand. Percorreu boa parte de Santa Catarina, de São José a Lages, remontou o Rio Itajaí, examinou o potencial de mineração de carvão como em Tubarão, levantou um
mapa e redigiu a nota Geologia de Santa Catarina. Esta foi traduzida na Revista do Instituto Histórico, 1845, t. 7, do qual se tornou
correspondente estrangeiro. Seu trabalho alimentou boatos de que
queria explorar carvão e minérios com mão de obra flamenga.
No Rio de Janeiro conseguiu do Império, em 10 de agosto de
1842, uma concessão de terras devolutas de 20 léguas quadradas
que sua nova Companhia belgo-brasileira de colonização devia valorizar com capital suficiente para obras e construções e promover
a vinda de no mínimo cem colonos por ano. O governo imperial
pagaria trinta mil réis por colono maior de 14 anos e dez mil por
aqueles com idade entre três e 14 anos. Daria isenções de taxas
sobre a importação de móveis, víveres, sementes, equipamentos
agrícolas, material de construção, livros e armas. Permitiria a exploração de minérios, salvo diamantes e carvão, que exigiriam um
contrato particular. Os colonos seriam submissos às leis do Império, mas gozariam de liberdade religiosa e seus filhos nasceriam
brasileiros. Não poderiam empregar escravos.
De regresso à Bélgica, Van Lede sintetizou suas informações
gerais sobre o Brasil e Santa Catarina num livro substancial de 435
páginas, De la colonisation au Brésil, Bruxelas, 1843. Mandatado
pela Société de Commerce de Bruges, organizou uma sociedade
anônima de 6 milhões de francos em 6.000 ações. Esperava atrair
capital e colonos com a distribuição de seu livro e de folhetos não
somente na Bélgica como também na vizinha Renânia alemã.
Rivalizando com a colonização já mais adiantada em Santo
Tomás de Guatemala, seu projeto ambicioso pretendia envolver as
mais altas instâncias do país. Entretanto, o principal banco belga,
o Société Générale, recusou-se a promover a subscrição de ações,
alegando que não podia depender de um governo estrangeiro.
O próprio governo belga, alertado por seu encarregado de negócios no Rio de Janeiro, Edouard De Jaegher, sobre a instabilidade política no Brasil, os riscos financeiros e os problemas em
casos de heranças, negou a proteção oficial e concedeu somente
o patrocínio do rei e passaportes gratuitos aos colonos. Não consta que a hierarquia católica deu seu apoio como o fazia para a
colônia na Guatemala. Mesmo assim, negociantes de Antuérpia,
como Théodore de Cock e Melchior Kramp, participaram e facilitaram a ratificação da nova Companhia em 19 de janeiro de
1844. A imprensa advertiu os eventuais acionistas que ainda faltava a aprovação da Câmara brasileira e que as terras eram mais
baratas nos Estados Unidos. Também na Renânia publicou-se um
exame crítico do projeto: Die Belgischen Colonien in Guatemala
und Brasilien, Colônia, 1844.
De seu lado, o cônsul-geral brasileiro, José Augusto Rademaker, que no início era favorável ao projeto, se distanciou. A
ausência de brasileiros no conselho de administração, as críticas
ventiladas por De Jaegher, as passagens sobre as dívidas do Brasil
no livro de Van Lede e a pouca consideração deste último chocaram sua autoestima de brasileiro, ainda mais quando os jornais
escreveram que Van Lede tinha conquistado para a Bélgica ‘un
petit royaume de 400 lieues carrées’ – um pequeno reino de 400
léguas quadradas. Rademaker ressentia a resistência dos belgas em
ceder ao Império a soberania sobre seus súbditos e sua preferência
pela colônia mais dependente de Santo Tomás de Guatemala, para onde embarcavam nesta época mais de 500 belgas.
Algo recalcitrante, Van Lede não desistiu e partiu novamente
em junho de 1844 para efetuar a demarcação de sua concessão.
No Brasil lhe esperava a decepção da nova lei, que interditou a
doação de terras públicas. Como os primeiros colonos já estavam
embarcando, Van Lede comprou por conta própria, de Henrique
Flores, uma légua quadrada de terras na margem do Rio Itajaí, a
23
parte 1 – travessias e migrações
futura Ilhota. No final de agosto, saiu de Ostende o barco Jan Van
Eyck, do capitão Minne, com a primeira leva de 114 emigrantes,
principalmente da região de Wingene, na província de Flandres
ocidental, em maioria agricultores, jovens de 20 a 30 anos, alguns
casados e com filhos. Mas vinha também gente de classe média
urbana, como o já citado Joseph Philippe Fontaine, Gustave Lebon, o agrimensor Henri Devreker, Hypolite Vanderheyden de
Ostende e Pieter-Jan Plettinck. Este último, que foi médico e farmacêutico em Bruges antes de dedicar-se à agricultura e à destilaria em Jabbeke, escrevia suas cartas num bom francês (Boutens).
A viagem levou 12 semanas, com paradas de oito dias em Santa Cruz de Tenerife e no Rio. Nem todos os imigrantes seguiram
diretamente para a colônia no Itajaí. Plettinck, diante de notícias
confusas sobre as terras, ficou no Desterro, pensando em exercer
a medicina por lá. Outros 22 imigrantes se retiraram logo no primeiro ano e um deles, De Gand, ganhou até o processo movido
por Van Lede. O grupo de Vanderheyden, com cerca de 14 pessoas, julgou as terras de Van Lede de má qualidade e alugou outras.
Na própria Ilhota, cada colono recebeu um lote individual de 50
braças (110 metros) de largura, no qual devia uma renda em natura e mais um dia por semana de trabalho gratuito para o diretor
da colônia. Pagaria a compra em quatro ou oito anos.
Surpreendentemente, em fevereiro de 1845 Van Lede já havia
deixado a direção da colônia a Fontaine, seu homem de confiança. Era uma fuga de suas responsabilidades ou um sinal de que
julgava sua tarefa terminada? Pelo menos Fontaine informou, em
carta de 07 de abril de 1845, publicada no diário oficial belga Le
Moniteur, que os colonos estavam com boa saúde, já livres dos
borrachudos e da sarna, contentes e trabalhando duro. Já havia
16 casas com um caminho traçado ao longo do rio e até uma área
para um jogo de bochas e 25 hectares desmatados, que renderam
a primeira safra. Plantaram feijão preto, batatas e, nas linhas divisórias, cafeeiros e laranjeiras, e tinham planos para cana, tabaco,
linho, índigo, nopal para a cochinilha e até alpiste, e mais estradas para novos colonos. Também o cônsul belga em Desterro,
Charles Sheridan, nomeado em maio de 1844 por causa de sua
longa experiência marítima, confirmou que a colonização estava
bem encaminhada e oferecia perspectivas para mais emigrantes.
O próprio Sheridan, associado com o armador Telghuys, de
Antuérpia, desviou emigrantes para suas próprias terras compradas
em Tijucas Grandes. Foi provavelmente ele quem incitou Pierre
Van Loo, filho de um respeitado negociante de Gandt, a investir
sua herança de 10.000 francos num projeto com 16 colonos. Contratados em cartório, eram em maioria agricultores da região de
Wingene, mas também alguns valões, dois operários, um ferreiro
e um aluno de farmácia.
O médico Plettinck, em carta de março de 1845, também propôs a seus conhecidos de Jabbeke a formação de uma companhia
de 20.000 francos e a compra de terras para 12 colonos. Cada um
entraria com pelo menos mil francos e deveria trazer utensílios
agrícolas, tecidos baratos de algodão, sementes de centeio, armas
e pólvora para caçar porcos e animais selvagens. Como Plettinck
não deu mais sinal de vida, seu projeto provavelmente não vingou.
Paralelamente, esta colonização belga em Santa Catarina se
conectou com o desenvolvimento da horticultura tropical na Bélgica e particularmente na cidade de Gand. Um de seus principais
horticultores, Verschaffelt, enviou um empregado, François De
Vos, para coletar orquídeas em Santa Catarina e recebeu deste a
Cattleya Leopoldi e a Cattleya elegans, cuja comercialização exitosa rendeu bons lucros.
Rijcke foi outro colono belga que também se dedicou à caça
de plantas, talvez a serviço de outro horticultor gandense, Louis
van Houtte. Graças às suas cartas, conservadas pela família, conhece-se um pouco melhor a trajetória catarinense do naturalista
Lambert Picard (1827-1891). Jovem, órfão de um metalurgista
luxemburguês, partiu em 1846, depois de um curto estágio com
um horticultor em Bruxelas, para fazer dinheiro como ‘caçador
de plantas’ no Brasil.
Antes de coletar pelo interior, Picard passou várias semanas
nas terras de Telghuys e Vanderheyden e conheceu depois outras
colônias. Logo na sua primeira volta à Bélgica, em 1850, publicou, no Boletim da Academia belga, uma memória crítica sobre
colônias. Entusiasmado pelas riquezas da província e bom observador, analisava as falhas de Van Lede e insistia que futuros colonos deveriam receber lotes já demarcados e casas preparadas para
não perder tempo nem ânimo diante da selva impenetrável. Aconselhava a adoção das tradicionais culturas locais, como de cana,
mandioca, feijão e milho. A exemplo dos agricultores brasileiros
já experimentados, não devia proceder-se a um desmatamento
tão minucioso e custoso como na Europa. Na mesma linha, Picard julgava indispensável empregar, como os brasileiros, mão de
obra escrava, até que uma lei geral abolisse o tráfico. Regressando
a Santa Catarina em 1855, voltou a expedir plantas tropicais e
peles de jaguatiricas à Bélgica mas, em 1862, passou a exercer a
medicina natural em Alegrete, no Rio Grande do Sul. Após juntar
dinheiro suficiente, foi estudar medicina em Heidelberg, onde se
formou em 1872. Homologou seu diploma na Bahia, mas preferiu praticar no Uruguai, primeiro em Montevideu e, finalmente,
em Nueva Palmira.
Referente à Ilhota, a colônia já estava desde o final de 1845
vivendo seus primeiros dramas com inundações, safras destruídas
e mortes. Fontaine pagava caboclos para o trabalho mais duro e
provocava a ira dos belgas, que se recusavam a prestar doravante
seu dia obrigatório de trabalho gratuito. As brigas levaram Fontaine a fazer queixa às autoridades brasileiras, que condenaram
três belgas, Krabeels e os dois irmãos Maes, a dois anos de prisão.
Em Desterro, suas mulheres com dez crianças vagavam pelas ruas, pés descalços e pedindo esmolas. O consulado ajudou no seu
sustento e colocou as crianças na escola pública. Os presos protestavam e teimavam em ser julgados pelas leis belgas. A reputação
briguenta dos belgas piorou com um incidente em maio de 1846,
quando Jan Van Eyck trouxe ao porto de Desterro mais colonos
e mercadorias.
Por andar tarde da noite pelas ruas, o capitão Minne e seus
marinheiros foram interpelados por guardas da polícia e chegaram às vias de fato. No dia seguinte o subdelegado de polícia e o
24
presenças belgas no brasil
juiz de direito foram a bordo intimar os belgas a explicar-se e toda
a tripulação acabou presa. O cônsul Sheridan não ousou intervir
no meio de um populacho que gritava “matão já esta cambada
d’estrangeiros, enforcão já todos elles, arrancão a bandeira”. Identificado como belga, Jean Eilgner foi insultado na rua e a esposa
teve a roupa rasgada. Outro belga foi expulso.
O clima xenófobo piorou com a chegada, em agosto de 1846,
do Adèle com Pierre Van Loo e seus colonos. Estes sofreram maus
tratos já na alfândega, que exigiu direitos excessivos sobre objetos
de uso pessoal, como instrumentos agrícolas, quadros de família
ou uma caixa para preservar plantas do agente do horticultor Van
Houtte, de Gand. Até a casa do cônsul Sheridan foi vasculhada à
procura de contrabando. Para maior confusão, Fontaine abandonou a colônia, vendendo o sino da igreja e a casa como material
de construção, e deixou Lebon como substituto. Ao menos registrou, em 17 de julho de 1847, numa planta conservada no Museu
de Tervuren, os nomes dos cinco colonos ainda presentes com 19
dependentes, mulheres e filhos, de outros três ausentes e ainda de
mais três moradores sem lote. Os outros se dispersaram por outras
colônias ou voltaram para a Bélgica
Sheridan informou o novo encarregado belga, Auguste van
der Straten Ponthoz, e atribuiu estas hostilidades a um partido
liderado pelo presidente da província e juiz de direito. Segundo
ele, estas elites nacionais estavam acostumadas a obter concessões
de terras, que rentabilizavam pelo trabalho de colonos alemães
ou que, eventualmente, lhes vendiam. Achavam-se agora prejudicadas pelas empresas belgas de colonização, que não permitiam
semelhante exploração de seus imigrantes. Alguns, contrários ao
desmatamento por mão de obra livre, preferiam a escravidão. Numa interpretação similar, Van Loo considerou os incidentes com
Jan van Eyck como vingança, mas não deixou intimidar-se, ainda
mais porque a revolução no Rio Grande do Sul dava sinais de “desintegração deste imenso Império”. Em sua opinião – significativa
do incipiente estado de espírito colonialista entre alguns colonos
–, os belgas, orientados por “chefes inteligentes” e “tão numerosos
e com um núcleo de gente capaz, poderiam adquirir influência política e dirigir o movimento para o proveito da Bélgica”. Se não,
Santa Catarina cairia nas mãos dos ingleses, como também temia
o cônsul francês.
O cônsul Sheridan, consciente de sua pouca influência e ainda sem exaquatur (permissão para exercer seu cargo no País), esperava que van der Straten fosse intervir junto ao governo central.
Este diplomata profissional adotou uma atitude ambígua, mas de
acordo com a reserva do governo belga diante da experiência em
Santa Catarina. Criticou Sheridan por não ter intermediado entre Fontaine e os colonos e o demitiu por sua condenação por
contrabando. Ao mesmo tempo, deixou claro que não interviria
para proteger os belgas, afirmando que estes deveriam aprender a
conformar-se com as leis de seu novo país e que seus problemas
eram decorrentes dos contratos. Tendo em vista a suscetibilidade
da opinião pública, o melhor era esquecer o episódio com Jan Van
Eyck. Assim, o encarregado achou pouco oportuno que o navio
de guerra da marinha belga Duc de Brabant, que devia, em 1847,
ostentar e prestigiar a bandeira belga na costa da América do Sul,
fosse fazer escala em Desterro.
Sheridan liquidou seus negócios, abandonou sua pequena colônia e voltou a Gand. Em 08 de julho de 1846, seu cunhado,
Paul Dierxsens, secretário da Câmara de Comércio de Antuérpia,
interveio em sua defesa, acusando van der Straten e seu cônsul
Saportas de ineptos. Suas queixas fizeram o ministro belga das
Relações Exteriores lembrar, em 29 de janeiro de 1847, ao encarregado no Rio seu dever de proteger os nacionais, sem que desse
por isso qualquer apoio oficial a esta colonização.
Essas desavenças naturalmente repercutiram na imprensa e no
parlamento belgas em discussões sobre os rumos da emigração depois dos malogros em Santa Catarina e na Guatemala. O próprio
Van Lede, eleito conselheiro provincial de Flandres ocidental,
polemizou no final de julho de 1850 em Le Moniteur com o seu
antagonista no Rio, De Jaegher, nomeado governador de Flandres oriental. Boatos de que venderia sua concessão deixaram os
diplomatas brasileiros em Bruxelas de sobreaviso, ainda mais porque, por várias vezes, foi solicitada sua benevolência para deixar
deportar ao Brasil presos dos asilos de mendicidade e que novos
candidatos à emigração pediam subsídios brasileiros.
Em Ilhota, porém, onde por meados de 1847 restavam somente 63 pessoas, a colônia se estabilizou e voltou a crescer.
O novo cônsul belga, o suíço Schuttel, nomeado em 1850,
autor dos Relatórios do Império de 1854 e 1859, o viajante alemão
Avé-Lallemant em 1858 e o capitão Petit e seu adjunto Émile
Sinkel, do Duc de Brabant, que em meados de 1855 acabou entrando em Desterro, citaram números variando de 89 a 200 indivíduos e atestaram seu bem-estar e boa natalidade. Na margem
alta do rio, em pequenas casas cinzentas, mas limpas, viviam bem
nutridos e contentes e casavam-se entre si. Tinham muitos filhos,
que Avé-Lallemant viu “chafurdando alegres na lama entre bananeiras e canas de açúcar”. Locatários ou proprietários, plantavam
milho, feijão, batatas, algodão e café, tinham gado, engenhos de
cana e mandioca ou trabalhavam como profissionais. Econômicos,
alguns já dispunham de dinheiro para emprestar a outros ou para
voltar à Bélgica. Na falta de estradas até a costa, faziam comércio
com uma escuna de Lebon pelo Rio Itajaí até a foz.
Ao contrário, bem mais crítico se mostrou o diplomata belga
Charles d’Ursel durante sua visita em dezembro de 1873. Chegando pelo rio, se deparou com a pobre venda de J. Maes e convocou
todos. Das 22 famílias reunidas, a maior parte encontrava-se em
situação de quase miséria. Continuavam casando em endogamia
e falando ainda o flamengo, mesmo na segunda geração. Sem
contratos ou papéis, viviam inseguros e incomodados pelo cônsul
Schuttel, que pretendia cobrar dívidas de Van Lede. Quando este
faleceu em 1889, seu legatário, o Sint-Jans Hospitaal de Bruges,
procurou recuperar as terras e enviou um agrimensor, mas os colonos belgas resistiram e conservaram as terras.
Nas gerações seguintes quase todos abandonaram a agricultura para profissões nas cidades. Hoje encontram-se os numerosos descendentes, Castellain, Coninck, Gevaerd, Hostin, Maes...
espalhados por toda Santa Catarina e até nos Estados vizinhos.
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parte 1 – travessias e migrações
Ilhota tornou-se município em 1958 e, confrontado com a forte
afirmação cultural e folclórica das outras comunidades étnicas na
região, seguiu esta onda e começou ultimamente a comemorar
suas raízes belgas. Organizou-se em 2010 uma festa Belga-Expo e
formou-se uma rede da família Brocveld.
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du Ministère des Affaires Étrangères, Bruxelas (Amaeb), 2028, I e II e 2030, Pers. 508
e 515, I; Archives du Royaume, Bruxelas, Société Génerale, 1877, correspondência
com a Cie. belge-brésilienne de colonisation; Recueil Consulaire, Bruxelas, 18561874; Le Moniteur, 31.08.1845, 23 e 30.07.1850.
AVÉ-LALLEMANT, Robert. ReisedurchSüd-Brasilien. Leipzig, 1859.
BOUTENS, Stefaan. ‘Eenmisluktekolonisatiepogingvanuit Jabbeke in de eerstehelft van
de XIXe eeuw’. Het Brugs ommeland, 1968, 8, 148-156.
FICKER, Carlos. Charles van Lede e a colonização belga em Santa Catarina. Blumenau, 1972.
Journal de Bruges, 1842-1844.
MAES, Paulo Rogério. Colonização flamenga em Santa Catarina: Ilhota. Itajaí, 2005.
Jules Louis Parigot
Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols
A
surpreendente trajetória do belga Jules Louis Parigot, diretor
de colônias no Brasil imperial, redundando entre dois continentes e três ciências, tão característica do século XIX, merece
mais que este esboço biográfico ainda fragmentário. De origem
francesa, nascido em Paris em 1806, formou-se em medicina e
foi nomeado em novembro de 1835 professor de mineralogia e
geologia na Université libre de Bruxelles, recém-fundada em 1834
dentro do espírito do livre pensamento.
No ano seguinte participou da comissão que devia redigir um
projeto para organizar a nova Académie Royale de Médecine. Fez-se
também membro da Société de Médecine de Gand e da Société des
Sciences Naturelles et Médicales de Bruxelles. Ao mesmo tempo,
redigiu uma Carte du bassin houiller de la Belgique et du nord de
la France (Mapa da Jazida Carbonífera da Bélgica e do Norte da
França), Bruxelas, 1838. Seu livro Histoire des tribus indiennes de
l’Amérique septentrionale, Bruxelas, 1837, demonstrou seu interesse pelo novo mundo, que se concretizou na ideia de fazer uma
viagem ao Brasil, como fizeram outros belgas na época.
Apresentando-se como naturalista em carta de 28 de março de
1839 ao Ministro de Relações Exteriores belga, pediu subvenção
de um ano de salário para uma viagem científica ao Brasil e países vizinhos, onde coletaria dados estatísticos, estudaria a economia rural e doméstica, examinaria o mercado para as exportações
belgas e ofereceria seus serviços para fazer o mapa geológico do
Império (Amaeb, 2015). Recebeu apenas uma carta de recomendação e a promessa de indenização no regresso. Mais receptividade encontrou no ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros,
Caetano Maria Lopes Gama, que informou o Ministro dos Negócios do Império, Manuel Antônio Galvão, sobre a possibilidade
de contratar Parigot para pesquisas mineralógicas e a exploração
do carvão de pedra no Brasil (AHI). O interesse do governo brasileiro pelo carvão de pedra se devia naquele momento menos aos
primeiros projetos ferroviários, mas antes à navegação a vapor,
que tinha boas perspectivas na costa marítima e nos rios do País.
Parigot recebeu este encargo e com instruções do Ministro
do Império de 21 de novembro de 1839 foi primeiro a Alagoas
e logo à Bahia. Lá, desde janeiro de 1840, fez sondagens na Ilha
de Itaparica, mas em Ilhéus foi perturbado pelas chuvas. Pelo registro de estrangeiros, em 5 de julho de 1840 embarcou do Rio
de Janeiro para o Sul. Publicou seus primeiros resultados no Rio
de Janeiro em Memória sobre o carvão de pedra no Brasil (1841),
Minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1841) e Memória
terceira sobre as minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1842)
(Anderson Heleodoro).
No final destas viagens Parigot pode ter cruzado com o compatriota Charles Van Lede. Este liderou sua própria exploração
em Santa Catarina no início de 1842, com atenção particular para o carvão, e obteve, em 10 de agosto de 1842, uma concessão
imperial para trazer imigrantes belgas através de sua companhia
belgo-brasileira de colonização.
Ao mesmo tempo, o governo imperial encarregou Parigot de
iniciar a exploração do carvão e de buscar capitais, mineiros belgas
e instrumentos de mineração na Inglaterra e na França. Segundo
o Jornal do Comércio de 10 de setembro de 1842, ele estava de
partida no Rio de Janeiro. Poucos dias depois, o encarregado de
negócios belga, De Jaegher, em aviso ao seu ministro sobre esta
missão, exprimiu sua pouca confiança em Parigot e o aconselhou
lhe conceder somente ajuda, depois de ter ouvido Van Lede.
26
presenças belgas no brasil
Em janeiro de 1843, na Bélgica, Parigot tentou convencer a
Société Belge de Colonisation a associar-se, com o devido respeito aos interesses brasileiros, à Compagnie Impériale des Mines de
Sainte Catherine (Companhia Imperial de Minas de Santa Catarina) e a todas as indústrias conexas, um projeto em discussão
no Parlamento brasileiro. Se o diretor da sociedade belga manifestou um interesse polido, deu prioridade ao projeto de colonização na Guatemala.
Ao mesmo tempo, Van Lede estava buscando acionistas para sua companhia e gozava então da maior simpatia do cônsul-geral, José Rademaker, da legação do Brasil na Bélgica. Rademaker tinha recebido ordens para auxiliar Parigot e pagar-lhe a
pensão. Como Parigot preferiu comprar na Bélgica – em vez de
na França ou na Inglaterra – máquinas de mineração do duque
d’Arenberg pelo preço de 3.500 francos, Rademaker ficou desconfiado e levou o engenheiro Tarte para examiná-las. Este as julgou
ultrapassadas, mas Parigot acusou Rademaker de cumplicidade
com Van Lede. No Rio de Janeiro também circulavam críticas
e boatos contrários. Assim, no final de 1843, Parigot foi exonerado e os pagamentos, suspensos. Pelo menos algum material foi
enviado, já que em carta ao Presidente da Província da Bahia
Parigot solicitou a liberação de materiais destinados à mineração
de Santa Catarina, procedentes da Europa, porém levados à alfândega da Bahia em 1844.
De volta à Bélgica, Parigot dedicou-se mais à medicina e particularmente ao tratamento dos doentes mentais no Hospice de
Bruxelas. Em 1849 foi nomeado inspetor-médico da colônia de
alienados de Geel, uma pequena cidade na província de Antuérpia, onde desde a Idade Média se acolhia loucos nas casas de
família com bons resultados. Entretanto, esta tradição salutar se
deteriorou sob o mando tirânico de diretores eclesiásticos. Assim,
o governo belga resolveu intervir e reorganizar a colônia com um
serviço de quatro médicos e um inspetor.
Neste cargo, Parigot restabeleceu e reformou os métodos tradicionais. Os alienados tinham seu próprio quarto, bem melhor
que a cela dos asilos, não eram acorrentados, mas saiam quando queriam e até trabalhavam no campo. Faziam música, com
direito a uma “cervejinha”. Recebiam-se mesmo estrangeiros e
muitos se curavam ou, pelo menos, não pioravam.
Desta experiência resultaram várias publicações como Thérapeutique naturelle de la folie: l’air libre et la vie de famille dans la
commune de Gheel (Terapêutica natural da loucura: o ar livre e a
vida em família na cidade de Geel), Bruxelas, 1852, De l’hygiène
des sentiments (Da higiene dos sentimentos), 1856, e De la réforme des asiles d’aliénés (Da reforma dos asilos de alienados), 1860.
A visita do jornalista francês Jules Duval em 1856, um entusiasta e praticante das ideias fourieristas num tipo de falanstério
na Algéria, resultou num livro badalado, Gheel ou une colonie
d’aliénés vivant en famille et en liberté (Geel ou uma colônia de
alienados vivendo em família e em liberdade), Paris, 1860. Já
em 1856 Parigot se deixou voluntariamente substituir em Geel,
talvez porque a boa repercussão internacional de seus métodos
lhe abriu novos horizontes. Por volta de 1861-1864 parece ter
ido a Nova York para dirigir um asilo. Entrementes, nos anos de
1850 a 1880, seu pensamento e suas propostas apareciam com
destaque na corte imperial brasileira nos debates e discursos médicos sobre neuroses e loucura (Gonçalves).
Não se sabe se Parigot voltou ao Brasil por algum convite,
por iniciativa própria ou por um casamento. No final da década
de 1860 já estava neste país e publicou O futuro dos hospícios de
alienados do Brasil: memória offerecida a imperial Academia de
Medecina do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 1870, 12 p.). Para
este espírito polivalente e algo volátil a problemática das colônias
de alienados se aproximava daquela das colônias de imigrantes no
Brasil. Estas se encontravam, na época, em plena efervescência e
as desavenças dos colonos encontravam acirrada repercussão na
Europa. Entrando nas discussões sobre as alternativas, Parigot pronunciou um discurso, lançado em folheto, Convirá ao Brasil a importação de colonos chins?, em 16 de agosto de 1870, na Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se tornou membro.
Figurava pelo menos desde 15 de fevereiro de 1868 como diretor na colônia do Assunguy, composta por brasileiros, alemães,
ingleses, franceses, suíços e outras nacionalidades, servindo também como médico e ocasionalmente como intérprete em quatro
línguas. Teria aceito a função, segundo seu próprio comentário
ouvido por um colono, principalmente para poder escrever sossegadamente uma obra sobre loucos (Lamb e Garcia). Se queixas
dos imigrantes, inclusive contra os diretores, eram frequentes, nada consta nas fontes disponíveis contra Parigot.
Segundo o diplomata belga Edouard Anspach, era bem considerado (Recueil consulaire, 16, 1870, p. 24-28). Mostrava-se muito
comprometido a atender às necessidades dos colonos e ver cumpridas as promessas feitas pelo governo. Reclamava da falta de
verbas para receber os colonos em casas prontas na sua chegada e
prover-lhes ferramentas, panelas e alimentos, para preparar o caminho que conduzia às melhores terras, para contratar trabalhadores. Defendia a ideia de que, com as famílias pobres dez dias de
sustento – conforme ditava o regulamento – não eram suficientes e
que o provimento deveria estender-se por seis meses. Desaprovava
a remessa de imigrantes solteiros por observar que estes não conseguiam viver sozinhos no mato. Além disso, denunciava as mazelas
de diretorias anteriores e o não cumprimento das obrigações por
outros elementos que faziam parte do pessoal da colônia. Assim,
mandou demitir o engenheiro da colônia, Chalreo Jr, o que provocou longas discussões e argumentações entre ele, o engenheiro
e as autoridades provinciais.
Tantas críticas e sugestões podem ter causado sua transferência
para a colônia de Cananeia, por portaria de 6 de abril de 1869.
Sobre sua atuação em Cananeia há poucos dados. O relatório da
Agricultura de 1870 citou um plano seu para abrir um tram-road do
porto até Castro, atravessando a Serra Negra e a colônia de Assunguy. Pouco depois, em 31 de março de 1871, suplicou ao Imperador para ajuizar sua proposta de ‘ir à Europa despertar a emigração
espontânea de pequenos proprietários’ (AN, M160D7403). Faria
conferências em vários países, mediante pagamento da passagem
de ida e volta e de adiantamento de seis meses de seu ordenado.
27
parte 1 – travessias e migrações
Bibliografia sobre Parigot
Na mesma carta pediu sua exoneração do cargo de diretor. Não
se sabe se foi realmente à Europa, mas pelo menos retornou à Colônia de Assunguy, onde, em 1875, segundo o relatório sanitário,
atuava como médico da colônia. Pouco depois pediu ao presidente
da província licença de 2 meses, com vencimentos, para tratar da
saúde em Curitiba. Lá estava sua família, que ele só havia visto
uma vez desde que assumira o posto na colônia. Além disso, ele
referiu-se a conflitos com o então diretor da colônia, Pedro de Alcântara Buarque, em assuntos de natureza médica.
Faleceu em 1877 ou 1878 na colônia Brusque ou Itajaí (Oswaldo Cabral, História de Santa Catarina, Rio de Janeiro, 1970, p.
243). Vários de seus descendentes desempenharam importantes
funções no Estado do Paraná. A partir deles se poderia talvez preencher as lacunas de sua biografia.
Arquivo Ministério das Relações Exteriores (Amaeb), Bruxelas, 2015 e 2028, I; Cor. Pol.
Brésil, II, De Jaegher, 16.09; 1842.
AHI 300 04 01 – Parte I – Avisos (minutas) expedidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Ministério dos Negócios do Império – S. Seç. Engenharia e Mineralogia.
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (AN), Documentação Histórica, Cod. 807, livro 5, p.
155-159, e livro 6, p. 57-61; M160 D 7403.
GILLIES, Ana Maria Rufino. ‘Os ingleses do Assunguy (1859-1882) sob a perspectiva do
processo civilizador: um estudo comparativo com outra comunidade britânica do século XIX’. X Simpósio Internacional Processo Civilizador. Campinas, SP, 1-4 abr. 2007.
GARCIA, Edrielton dos Santos. Colonização em Assunguy: A experiência do colono nacional entre 1860 e 1870. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado
em Pesquisa Histórica. Curitiba: UFPR, 2010.
GONÇALVES, Monique de Siqueira. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos
médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na corte imperial (1850-1880).
Tese de Doutorado. Curso de História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa
de Oswaldo Cruz-Fiocruz, 2011.
HEIDEMANN, Eugenia Exterkoetter. O Carvão em Santa Catarina, 1918-1954. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em História (Econômica) do Brasil.
Curitiba: UFPR, 1981.
LAMB, Roberto Edgar. Imigrantes britânicos em terras do império brasileiro: mobilidade,
vivência e identidades em colônias agrícolas (1860-1890). Tese de Doutorado. São
Paulo: PUC, 2003.
MASOIN, E. ‘Julien Parigot’. Biographie nationale, 16, col. 635-637.
Ana Maria Rufino Gillies é doutora em História pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do Departamento de
História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati.
Alguns socialistas e anarquistas belgas
buscaram refúgio no Brasil, entre eles
Augusto Lootens, que partiu para a
Argentina em 1889 e se estabeleceu
pouco depois no Rio de Janeiro com
uma lavanderia.
Casa que pertenceu a JeanJoseph Vervloet, que imigrou em
1858 para a colônia de Santa
Leopoldina, no Espírito Santo, em
um projeto oficial de colonização.
Jeanne Louise Milde, escultora e educadora
R e n é L o m m e z G o m e s e Ve r o n a C a m p o s S e g a n t i n i
Uma modernidade claudicante
25 de abril de 1930. No Brasil, o jornal Estado de Minas noticiou a participação da artista na VII Exposição-Geral de Belas
Artes de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais: “Em
sua escultura há serenidade e arrojo, [...] dando à sua obra essa alta
expressão emotiva que não está disciplinada ao canon clássico e que
não tomba na vertigem do modernismo chocante”.
17 de abril de 1960. Entrevistada por Lúcia Veado, do mesmo
jornal, Milde diria: “Fui da escola impressionista e conservo até hoje alguns exemplares. Considero-a ainda a escola básica dos meus
conhecimentos de arte, porém, apreciando muito a arte moderna na
sua concepção sólida, sem fantasia e sem exageros”.
“E
sculturas, retratos, composições, estudos diversos, Mlle. Milde não cai nos erros de certas esculturas, ditas modernistas,
que não oferecem mais que desbastes, rascunhos, [...] e acreditam
descobrir a arte na expressão informe.”
27 de novembro de 1928. Com essas palavras, um crítico de
arte do jornal Les Nouvelles, de La Louvière, saudava a produção de um promissor talento da nova geração de artistas belgas:
Jeanne Louise Milde, que apresentava algumas de suas obras em
uma exposição.
28
presenças belgas no brasil
Reflexo de suas escolhas, as palavras e a obra de Milde a situam em um “entrelugar”. Havendo abandonado uma carreira
promissora na Bélgica, em 1929, a artista mudou-se para Belo
Horizonte, como professora contratada para atuar na reforma do
ensino público. Fixando-se na cidade, desenvolveu importante
carreira de educadora e artista, que lhe rendeu a fama de pioneira
do modernismo. Sua obra, contudo, oscilou sempre em torno de
um ponto médio entre a renovação radical e o cultivo da tradição,
fazendo de sua trajetória um eloquente símbolo do tardio e claudicante processo de modernização da cidade em que escolheu viver.
Fundada em 1897, Belo Horizonte foi criada para ser a capital
republicana de Minas Gerais, em substituição a Ouro Preto, que
representava o passado colonial da região. Concebida sob a égide
do progresso e da racionalização, a nova capital nasceu de um
profundo desejo de modernidade, ali expresso na efemeridade de
suas criações e rápida obsolescência do novo.
Tão cedo quanto na década de 1930, a cidade já pensava os
caminhos de sua renovação. Na arquitetura local conviviam diferentes atitudes frente ao cânone clássico, indo da opção pela manutenção do estilo eclético ao surgimento de duas alternativas de
renovação – uma radical, a outra não. Eram o decorativismo moderno dos edifícios déco e os primeiros exemplares do modernismo
de vanguarda, que negava a linguagem clássica e a ornamentação.
Tratava-se da emergência de uma modernidade em duplo signo:
um processo ambíguo, de alternativas múltiplas e interpenetrantes, que contrariava a perspectiva de que o moderno só se constrói
no embate radical e excludente entre o novo e o antigo.
Simbolizando o modelo de modernização assumido por Belo Horizonte, a vida da artista construiu-se em uma série de atos
marcados simultaneamente pelo cultivo da tradição – pilar de
sua formação – e a negação dessa mesma tradição, como fonte
de normatividade.
Jeanne Louise Milde em seu ateliê em Belo Horizonte, cidade para a qual
a artista plástica se transferiu em 1929.
de cabeça e torso antigos”, “Modelagem de figura antiga” e “Composição em art déco”. Era uma formação artística tradicional que
se iniciava com o desenho, passava pelo estudo de modelos antigos
e finalizava com o exercício da composição. Quanto à estética, no
século XIX, a Academia de Bruxelas preconizou o neoclassicismo.
Com o tempo, adotou várias linguagens, indo do romantismo ao
naturalismo e ao impressionismo. Quando Milde a frequentou,
a escola assumia ares modernos, incorporando o estilo art déco.
A renovação da escola incluiu a abertura de um curso de Artes
Decorativas. O intuito era incentivar a indústria, permitindo que
artesãos e operários desenvolvessem habilidades e conhecimentos
artísticos. Milde não frequentou esse curso. Mas, o reconhecimento de novas perspectivas para a arte produziu impactos no trabalho
que viria a desenvolver no Brasil.
Enquanto estudante, Milde respondia com a qualidade dos
trabalhos a quem questionava sua vocação. No boletim das disciplinas cursadas, ficaram registrados seus êxitos. Durante sua formação, Milde recebeu 15 prêmios, seis deles com distinção. Em
seu último ano de estudos, 1925, foi agraciada com o 1º lugar no
Grande Concurso de Escultura.
A artista começava a despontar. Em 1923, foi reconhecida
pelas obras que apresentou numa mostra coletiva na importante
Galeria Giroux, de Bruxelas. Em 1927, figurou nos jornais por
criar uma placa de bronze com a estampa de Charles Lindbergh,
primeiro aviador a voar de Nova York a Paris sem escalas. Entre
1926 e 1929, Milde integrou as mostras da seção belga da Société
Française des Beaux-Arts, sendo destacada pela crítica.
Os críticos não escondiam o assombro ao verem esculturas feitas por uma mulher. Por vezes, buscavam nelas ternura, delicadeza e outros traços de feminilidade. Por outras, se espantavam com
o domínio da artista, supostamente frágil, sobre a matéria. Em
1928, o jornal Vooruit avaliou as obras expostas na Galeria Phenix, em Ghent: “Sra. Milde tem uma inclinação para agradáveis
realizações, cujo personagem principal denuncia a feminilidade da
escultora”. Já o Les Nouvelles afirmou sobre o VIII Salão L’Essaim:
Uma mulher na Academia Real de Belas Artes
15 de julho de 1900. Jeanne Louise Milde nasceu em Bruxelas, filha do professor Josse Milde e de Mathilde Cammaerts
Milde. Aos dezoito anos, foi aceita como estudante na Academia
Real de Belas Artes. Esse teria sido seu primeiro ato de ruptura.
Para frequentar o curso, a jovem enfrentou a oposição dos pais e
as críticas de professores e colegas, que acreditavam ser o exercício da arte, em especial da escultura, inadequado para mulheres.
Inicialmente, ainda que várias tivessem se destacado como artista, às mulheres era vedado o acesso à Academia belga. Só lhes
era permitido seguir os cursos complementares, oferecidos nos
ateliês dos professores da instituição. Controversa, a abertura do
curso a mulheres, em 1892, comportou restrições. Para alguns, a
presença feminina era admissível apenas na formação em Artes
Industriais, e não em Artes Maiores, estudando desenho aplicado,
bordado e tapeçaria. Quando muito, era considerada uma vocação
especial para o colorismo.
Dedicando-se à escultura, uma Arte Maior, Milde cursou disciplinas que revelavam a verve do ensino na Academia: “Desenho
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parte 1 – travessias e migrações
“Apesar da insuficiência de sua altura, se revela dotada de uma
grandeza de expressão e força artística pouco comuns”.
A consagração de Milde chegou em 1928, quando ganhou o
Grande Prêmio de Roma. O prêmio objetivava o aprimoramento dos artistas, concedendo uma viagem à Itália para o estudo da
tradição clássica. Mas os impasses políticos surgidos ao fim da
Primeira Guerra Mundial impediram a ida de Milde para Roma.
Sua opção foi por uma estadia na França.
A escultora já hesitava entre a tradição e a modernidade. No
mesmo ano de 1928, participou do II Salão da Federação Nacional
de Pintores e Escultores da Bélgica, à qual se associara. A imprensa
atacou a Federação, por ser contra a pintura moderna e o Estado
belga, que favorecia a avant-garde. Em meio ao que caracterizaram
como a medíocre e conservadora produção da mostra, os jornais
destacaram Milde como uma exceção digna de nota.
Naquele tempo, além de participar de exposições e concursos, Milde desenhava joias e modelava manequins para uma fábrica. No atelier que mantinha na Academia, recebia a visita
constante de admiradores e compradores, que se avolumaram
após a aquisição da peça ‘Danse Folle’ pelo Museu Real de Belas
Artes, em Bruxelas. Foi ali que recebeu a visita do Dr. Alberto
Álvares, enviado do governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. A missão de Álvares era localizar profissionais belgas aptos a auxiliar na reforma do ensino em Minas.
Milde foi-lhe indicada pelo secretário-diretor da Academia, que
elogiara a ousadia e a qualidade da artista, fazendo-o crer que o
convite não seria recusado.
Fevereiro de 1929. A bordo do vapor Alcântara, Jeanne Milde
partiu para o Brasil.
com a observação e o desenho, para só depois introduzir a escrita.
Os trabalhos manuais assumiam, assim, grande protagonismo na
Escola Ativa, associando-se à expressão e tornando frequente o uso
de técnicas como a modelagem. Em Minas Gerais, o método foi
instituído em alguns grupos escolares, sendo criadas duas ‘classes
Decroly’, em Belo Horizonte.
Com a reforma do ensino, em 1929, foi instalada a Escola de
Aperfeiçoamento em Belo Horizonte. A instituição, que oferecia
um curso de especialização para professores primários, destinava-se a preparar, do ponto de vista técnico e científico, os candidatos
ao Magistério Normal, à assistência técnica do ensino e às diretorias dos grupos escolares do Estado. O curso tinha duração de dois
anos, divididos em dois períodos, que incluíam disciplinas como
Pedagogia, Metodologia, Desenho e Modelagem, Educação Física e Psicologia Experimental.
O corpo docente da Escola de Aperfeiçoamento foi composto
por professoras que haviam sido enviadas, pelo governo, para o
Teacher’s College, da Universidade de Colúmbia (EUA). Além delas, atuaram estrangeiros que compuseram a chamada “Comissão
Pedagógica Europeia”. Da Universidade de Paris veio Theodore
Simon. Do Instituto Jean Jacques Rousseau (Suíça) vieram Leon
Walter, Helena Antipoff, Edouard Claparède e Louise Artus-Perrelet. Na Bélgica foram contratados Jeanne Milde e o engenheiro
Omer Buyse.
Diretor do Ensino Técnico da Bélgica, Buyse foi criador e
reitor da Universidade do Trabalho de Charleroi. À convite de
Washington Pires, Ministro da Educação e Saúde Pública do Brasil, veio para o País com a missão de criar três Universidades do
Trabalho, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. O projeto
logo encontrou a oposição de Gustavo Capanema, sucessor de
Washington Pires no Ministério. Capanema considerava prioritária a fundação de escolas profissionalizantes especializadas para
atender às necessidades da industrialização nas diversas regiões do
País. Quando muito, cogitaria ter uma Universidade do Trabalho
no Rio de Janeiro, onde as indústrias já exigiam um operariado
numeroso, variado e competente.
Jeanne Milde, por sua vez, assumiu as disciplinas de Desenho
e Modelagem na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da capital mineira. Relatos de suas ex-alunas revelam como ela conjugava
a formação estética com a pedagógica. Suas disciplinas incluíam
desenho, modelagem e aquarela, além de marcenaria, tecelagem,
cartonagem e a fabricação de objetos utilitários e mobiliário. O
processo de ensino elaborado pela artista guardava semelhanças
com a formação que recebeu em Bruxelas. Segundo a ex-aluna
Maris’Stella Tristão, nas aulas, o mais importante eram os desenhos, que obrigatoriamente precediam os trabalhos artesanais.
Anualmente, Milde organizava exposições com o material produzido por suas alunas. Nelas, eram apresentadas modelagens em
gesso, cimento, terracota, bronze e matérias-primas regionais que
poderiam ser encontradas em qualquer escola primária do Estado.
Com o fim da Escola de Aperfeiçoamento, na década de 1940,
Milde passou a lecionar no curso de Administração Escolar do Instituto de Educação, instituição em que se aposentaria em 1955.
Os belgas e a reforma do ensino em Minas Gerais
Quando Milde chegou ao Brasil, vários Estados implantavam
políticas de reforma do ensino, investindo na formação de professores primários, na criação de escolas e no combate ao analfabetismo. Em Minas Gerais, a reforma foi coordenada por Francisco
Campos, Secretário dos Negócios do Interior no governo de Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Sua Reforma do Ensino Primário e Normal inspirou-se na reestruturação da instrução pública
ocorrida em países estrangeiros, como a Bélgica, e incorporava
preceitos do movimento ‘Escola Nova’ ou ‘Escola Ativa’.
À época, uma das principais correntes pedagógicas em voga
no Brasil era o método desenvolvido pelo médico belga Ovide
Decroly. Baseado em estudos sobre o desenvolvimento biológico
e psicológico das crianças, o método enfatizava suas aptidões para
a observação, a associação de ideias e a expressão. Para o ensino
primário, propunha o emprego dos ‘centros de interesse’, que associavam os conhecimentos ministrados a uma ideia central, tornando o ensino “ordenado e lógico”.
Em Bruxelas, Decroly atuava na École de l’Ermitage, que fundara em 1907. A escola foi um fértil laboratório de experimentação, tornando-se centro de referência para o ensino. Praticado em
outras escolas da cidade, o ensino no método Decroly se iniciava
30
presenças belgas no brasil
Nos anos de 1940, a artista também ministrou aulas de desenho e
modelagem na Escola da Polícia Rafael Magalhães e integrou um
projeto de Helena Antipoff para a formação e o aperfeiçoamento
de professores primários rurais. Em Belo Horizonte, dizia-se que a arte era desamparada pelo
Estado. Por isso, o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade, entre outros, reconhecia o empenho heroico de Matos para
desenvolver o meio artístico local. Ainda assim, a cada edição das
Exposições-Gerais, acumulavam-se as críticas ao evento e a seu
organizador. Alguns recriminavam o amadorismo e mau gosto
das obras apresentadas. Outros apontavam o convencionalismo da
produção local, relacionando a estagnação da arte à hegemonia
dos valores acadêmicos.
A posição de Matos, no entanto, era ambígua. Ele defendia o
academismo e rejeitava com veemência as vanguardas, os “futurismos” e “cubismos”, como se dizia à época. Mas, acolhia artistas
que optavam por um modernismo moderado. Para a VIII Exposição-Geral de Belas Artes (1931), convidou vários acadêmicos de
verve neoclássica ou impressionista. E chamou ainda Milde, o
desenhista Monsã e o arquiteto Luiz Signorelli que, clássicos de
formação, apostavam na estética art déco.
Signorelli, por exemplo, iniciou-se na arquitetura projetando
edifícios ecléticos e art nouveau. Na década de 1930, adotou o estilo déco e criou o segundo arranha-céu de Belo Horizonte: a Feira Permanente de Amostra, edifício símbolo da modernização da
cidade. No mesmo ano, 1935, ganhou o concurso de projetos para
a construção de uma nova sede para a Prefeitura da capital. Esse
projeto expressou a atitude preponderante no período, fundindo
elementos e preocupações modernos com uma lógica compositiva
tradicional. Junto com Matos e outros professores, em 1930 Signorelli fundou a Escola de Arquitetura de Minas Gerais. Ali, por um
bom tempo, o arquiteto sustentou um sintomático conflito com
os estudantes de arquitetura que se inclinavam para a vanguarda.
Em entrevista concedida ao Projeto Memória da Arquitetura e da
Um ambiente propício à expansão da arte
Quando Milde chegou a Belo Horizonte, a capital não passava de uma jovem cidade. Aos olhos da escultora, tudo estava por
fazer: não havia escolas de arte, as exposições eram escassas e os
artistas locais não formavam uma comunidade unida e ativa.
Ao invés de desanimá-la, esse cenário mostrou-se fértil para
sua produção. Em 1929, a crise econômica desencadeada pelo
fim da Primeira Guerra Mundial chegava ao ápice. Na Bélgica,
apesar do sucesso de suas exposições, a falta de oportunidades levou a artista a pensar em se mudar para Antuérpia, onde atuaria
como professora de arte da Academia local. Talvez o tivesse feito,
não fosse a proposta de trabalhar no Brasil.
Recém-chegada a Minas Gerais, a escultora não dispunha de
um local de produção. Percebendo a situação, Arcângelo Maletta, proprietário do Grande Hotel, onde Milde vivia, ofereceu-lhe
uma sala nos fundos do estabelecimento. Ali foi instalada a oficina
em que a escultora recebia quem vinha ver a “loirinha belga” trabalhando. Como não dominava o idioma, pedia aos amigos para
falarem sobre as obras. “No decorrer do parecer de cada um, surgia
uma ou outra palavra que tinha uma sonoridade que me agradava,
aí então o nome da peça estava escolhido”, lembrou a artista em
entrevista a Iolanda Pignataro, em 1980.
Nessa sala, Milde concebeu suas primeiras obras brasileiras.
Em 1929, moldou o busto do Embaixador da Bélgica em Washing­
ton e a efígie de várias personalidades de Belo Horizonte. Sob encomenda do Estado de Minas Gerais, criou dois baixos-relevos em
cobre para decorar o saguão da Escola Normal Modelo da Capital,
inaugurada em 1930. As peças art déco simbolizavam os valores
da Escola, intitulando-se Alegoria às Ciências e Alegoria às Artes.
Em 1930, Milde enviou várias peças para o Salão de Belas
Artes do Rio de Janeiro, obtendo a medalha de ouro. Em Belo Horizonte, participou da VII Exposição-Geral de Belas Artes.
Organizadas por Aníbal Matos, eminente artista que fundara a
Sociedade Mineira de Belas Artes (1918), as Exposições-Gerais
constituíam o único evento do gênero a ocorrer com regularidade
na capital. Reunindo artistas de inclinações semelhantes à de seu
promotor, as exposições viraram o reduto da tradição acadêmica.
Naquela edição, a mostra reuniu 192 trabalhos de 26 artistas. Milde se destacou por trazer algo novo: uma obra que não se atinha
à tradição clássica, mas nem por isso se rendia aos extremos da
vanguarda modernista.
Aníbal Matos foi um dos responsáveis pela inserção de Milde
no ambiente artístico de Belo Horizonte. Os dois eram colegas
de docência no Instituto de Educação, atuando na formação de
professores. Com frequência, Matos convidava a colega para participar dos eventos e das exposições que organizava. Convidava-a,
inclusive, para integrar o júri do carnaval.
“As Adolescentes”,
moldagem em gesso de
Jeanne Louise Milde, Belo
Horizonte, 1937.
31
parte 1 – travessias e migrações
Construção Civil em Belo Horizonte (1980), recordou: “Confesso
com sinceridade a reserva com que a princípio recebi os primeiros
rebates da nova arquitetura, para com um tempo relativamente curto aceitá-la sem restrições. Diante de tão palpitante assunto devo
dizer que manterei sempre como ponto de vista aplicar no moderno
a proporção clássica [...]”.
As mudanças na estética de Milde parecem responder a preocupações semelhantes às de Signorelli. “Moderna, mas com uma
base clássica” é como ela se classificaria ao fim da vida. Em alguma extensão, a adoção desse modelo de modernização, ambíguo
e relutante, elucida o livre trânsito entre acadêmicos e modernos
que a escultora sempre manteve.
Em 1936, Belo Horizonte presenciaria seu maior embate entre modernos e acadêmicos. Sob a organização do artista Delpino
Júnior, caricaturistas, pintores, escultores e arquitetos, modernos
em sua maioria, se reuniram numa exposição organizada no bar
do Cine Brasil. Tornando-se conhecido como Salão Bar Brasil, o
evento expressava o descontentamento do grupo com a ambiência
artística e social da capital, que então celebrava a realização do 2º
Congresso Eucarístico Nacional e a inauguração da nova edição
da Exposição-Geral de Belas Artes, montada por Matos no foyer
do Teatro Municipal.
Acompanhada pela imprensa, a polêmica criada no Salão Bar
Brasil tinha dois alvos: contestar a hegemonia de Matos e reivindicar o apoio do Município, com a criação de uma Escola de Belas
Artes, a organização de exposições periódicas e a instituição de prêmios de incentivo. Por sua ascendência sobre o meio artístico local,
Delpino convidou Milde a integrar a mostra. Aceitando, a artista
apresentou 22 obras e compôs o júri, ao lado de Luiz Signorelli.
Ao visitar o Salão Bar Brasil, o prefeito Otacílio Negrão de
Lima sancionou uma resolução determinando que o Município
realizasse exposições de arte anuais. Assim, em 1937, Matos foi
convidado para coordenar o 1º Salão de Belas Artes da Prefeitura
de Belo Horizonte. Ele, por sua vez, convidou Milde para a comissão encarregada de assessorá-lo. A escultora serviu, então, como
um elo entre acadêmicos e modernos, apaziguando os confrontos
entre os grupos.
O 1º Salão de Belas Artes, por fim, reuniu tanto artistas ligados a Matos quanto ao grupo de Delpino. Refletindo a diversidade
do panorama artístico da capital, os Salões de Arte da Prefeitura
consolidaram-se, nos anos 1930, como um espaço de tendências
contraditórias, que reunia modernos, acadêmicos, autodidatas e
artistas de formação.
No 2º Salão de Belas Artes (1938), Milde participou como
jurada. Nesse momento, fez valer seu papel aglutinador, reunindo 14 artistas de uma e outra vertente em um encontro na Fazenda Petrópolis, propriedade que mantinha próximo à capital.
Embora o acontecimento não tenha produzido desdobramentos,
o sentimento era que nascia um “movimento que congraçará os
artistas de Belo Horizonte”, como testemunhou um cronista da
Folha de Minas.
Os anos de 1930 e 40 foram férteis para Milde. Muitas de suas
obras mais relevantes foram criadas nesses tempos, como a más-
cara mortuária do governador Olegário Maciel (1932); a Alegoria
à Indústria, alto-relevo criado para a Siderúrgica Belgo-Mineira
(1933); e a escultura As Adolescentes (1937). Em 1940, o Museu
Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, adquiriu sua obra
Água, sua alegria e sua embriaguez.
Em 1945, Milde realizou uma exposição individual no Salão
de Festas do Grande Hotel. Entre os trabalhos expostos, estavam
bustos e cabeças das personalidades com quem convivia na cidade,
como o maestro belga Arthur Bosmans. Essa teria sido a primeira exposição individual da artista, que até então só participara de
mostras coletivas. A arte tumulária surgiria como uma vertente de
sua produção, nascida do hábito de representar seus convivas. Importante exemplo é o relevo criado para o túmulo do desenhista
Monsã, falecido em 1940.
Apesar de não ceder às vanguardas, Milde assumiu temáticas
caras ao modernismo brasileiro, criando figuras populares, trabalhadores, indígenas, negros e mulatos. Uma série de esculturas
com motivos brasileiros fizeram sucesso na última exposição da
artista em sua terra – uma mostra coletiva na galeria Toison d’Or,
em Bruxelas (1948). O evento foi divulgado pelos jornais, que
brindaram a qualidade das obras, embora frisassem seu exotismo.
Na ocasião, o Ministério da Instrução Pública da Bélgica adquiriu
a escultura Ma maman.
Milde obteve grande reconhecimento por sua atuação como
artista e educadora. Em várias ocasiões foi homenageada por suas
alunas e pelos governos belga e brasileiro. Em 1930, o Rei Alberto da Bélgica nomeou a “artista estatuária” Jeanne Milde como
cavaleira da Ordem de Leopoldo II, uma distinção de alto grau,
conferida aos civis que prestaram serviços inestimáveis à Bélgica.
Já em 1950, um ano antes de se naturalizar brasileira, ela recebeu
do Príncipe-Regente Baudouin a comenda de Cavaleiro da Ordem da Coroa por seu trabalho como “professora de desenho e artes
aplicadas no Instituto de Educação de Belo Horizonte”.
No ano de 1955, Milde se aposentou do magistério no Instituto de Educação. Afastada do ensino, ela foi gradualmente se
ausentando do cenário artístico mineiro, que desenvolveu uma
preferência pelas vanguardas. A importância de Milde foi resgatada 30 anos depois, quando ela recebeu uma série de homenagens. Em 1982, recebeu a Comenda da Ordem dos Pioneiros de
Belo Horizonte, em reconhecimento a seu pioneirismo na arte e
na educação. Também foi lembrada no XIV Salão Nacional de
Arte (Museu da Pampulha) e em uma exposição no Palácio das
Artes. Em 1984, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves,
condecorou-a com a mais alta comenda do Estado: a Medalha
da Inconfidência. No mesmo ano, o sucessor de Tancredo, Hélio
Garcia, agraciou-a com a Medalha de Mérito Educacional. Celebrada por seu impacto na formação cultural da cidade, Milde
faleceu em 1997.
Outubro de 1988. Em Belo Horizonte, a exposição “Escultura Contemporânea em Minas”, organizada no Palácio das Artes,
consagrou Jeanne Milde como propulsora da renovação das artes
plásticas em Minas, identificando-a como uma pioneira do modernismo na cidade.
32
presenças belgas no brasil
René Lommez Gomes é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou em diversas instituições nacionais e estrangeiras, entre as quais a Unesco e o Museum Plantin-Moretus (BE).
Trabalha com temas como Arte Colonial; História da Arte Flamenga
e Holandesa (séc. XVII); História da Arte Brasileira (sécs. XIX-XX);
Mestiçagens e Trânsito de Culturas entre Europa, África e América
no período moderno.
(UFMG). Coordena o núcleo de expografia do Espaço TIM UFMG
do Conhecimento.
Bibliografia sobre Jeanne Milde
Grande parte das matérias jornalísticas utilizadas neste verbete foi localizada na coleção
documentos de Jeanne Louise Milde, doada pela escultora para o Museu Mineiro, Belo
Horizonte.
L. B. Castriota (org.). Arquitetura da Modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
Rita Lages Rodrigues. Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultura. Belo
Horizonte: C/Arte, 2003.
S. Schwartzman, H. B. Bomeny e V. R. Costa. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
Rodrigo Vivas. Por uma história da arte em Belo Horizonte. Artistas, exposições e salões
de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.
Verona Campos Segantini é doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora assistente
da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e
subcoordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura
Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta
Chris Delarivière
H
et Geheim van Mato Grosso (O segredo do Mato Grosso),
Bloedige Diamanten (Diamantes sangrentos), De Sluipende
Dood (A morte furtiva) são alguns dos títulos imaginativos dos livros de viagens e documentários cinematográficos com os quais o
viajante, cineasta e escritor belga Marcel Roos (1919-1996) fazia
furor nos anos de 1950 e 1960. Seus contagiantes relatos cheios de
aventuras e juvenil entusiasmo caíram depois no esquecimento,
mas não deixam de ser uma ilustração marcante do poder atrativo
que o Brasil exercia sobre os europeus aventureiros.
A história de Marcel Roos começa em Gand, pouco depois
da Segunda Guerra Mundial. A Europa ocidental estava ainda se
recuperando desta calamidade e já se anunciava a Guerra Fria. O
futuro parecia pouco promissor e, antes de chegar novos tempos
penosos, Roos decidiu procurar outros horizontes. Vendeu seu
negócio de atacado em perfumes e de cabelereiros, comprou um
montão de material cinematográfico e fotográfico e embarcou
num vapor com destino à América do Sul. Ele pensava explorar
terras na Argentina e procurar uma moradia adequada para em
seguida trazer sua mulher e filhos. Ao menos essa era sua intenção.
Os caprichos do destino intervieram e fizeram finalmente Marcel
Roos parar no Brasil.
A bordo do vapor Roos encontra-se com outro passageiro, Pierre Doriaan, que lhe conta histórias alvissareiras sobre o Brasil. Doriaan é de Antuérpia e fez seu nome como cantor no circuito dos
cafés chantants de Paris. Durante a guerra se comprometeu pelo
seu bom relacionamento com os ocupantes alemães. Uma razão
suficiente para abandonar a Europa por algum tempo. Assim, parte para o Brasil, acompanhado pela mulher e seu amigo mais fiel:
um automóvel ano de 1930. Chegados ao Rio de Janeiro, Doriaan
leva Marcel Roos a passear neste carro antigo, um Minerva, pelo
centro da cidade até as praias de Copacabana e Ipanema. “A vida
pode ser boa”, deve ter pensado Marcel.
Roos deixa-se fascinar pelo Brasil e parte para São Paulo. Lá,
através do cônsul belga entra em contato com Alphonse Hoge,
um herpetólogo belgo-brasileiro ligado ao Instituto Butantã. Hoge
é originário de Gand, onde concluiu sua formação universitária
e recebe seu concidadão de braços abertos. Mais ainda, convida
Marcel a participar como fotógrafo-cineasta de uma expedição.
Para Roos é uma oportunidade única. O destino da expedição é o
Mato Grosso, mais precisamente a Serra do Roncador. Numa área,
ainda em sua maior parte desconhecida, entre o Rio das Mortes e
o Rio Kuluene, o doutor Hoge pretende descobrir répteis vivendo
nessa região transitória entre a floresta tropical e o cerrado do Brasil central. As serpentes, os escorpiões e as aranhas colhidos pela
expedição serão estudados no Instituto Butantã e utilizados para
preparar o soro antivenenoso.
Tudo isso parece muito aventureiro para Marcel e seu coração bate ainda mais forte quando fica sabendo que a jornada passará por terras de índios. Expedições anteriores malograram pela
atitude hostil dos índios xavantes, que não gostavam de intrusos.
Circulavam os boatos mais diversos sobre a região para onde se
dirige essa ‘expedição suicida’. Fundados, entre outros, sobre o
desaparecimento do viajante britânico coronel P. H. Fawcett, que
em sua busca do mítico El Dorado em 1925, junto com seu filho
e o amigo deste, não deixaram rastro algum. O coronel Fawcett
foi um dos últimos lendários exploradores da época vitoriana e seu
sumiço misterioso durante a procura de uma civilização misteriosa
continua a desafiar a imaginação. O mistério Fawcett não deixa de
comover também Marcel Roos.
Finalmente, a primeira expedição de Roos na região amazônica revela-se um acerto em cheio. Não somente encontra uma
oportunidade para conhecer como testemunha privilegiada o faroeste brasileiro com sua mentalidade de fronteira nos confins
da civilização, mas encontra também os xavantes, que, atraídos
pelos presentes, procuram contato com a expedição. De toda
evidência, Roos agrada aos índios e sobretudo sua cabeleira loira
33
parte 1 – travessias e migrações
suscita muita admiração. Marcel Roos filma e fotografa à vontade
e fará êxito com suas imagens nas salas paroquiais de Flandres.
Uma vez de volta ao mundo habitado, Marcel Roos se põe a
escrever, mas desiste de seu sonho de iniciar uma vida nova na
América do Sul. Demasiados problemas práticos na sua opinião.
Volta à Bélgica, onde publica em 1953 O segredo do Mato Grosso. O mistério Fawcett desvendado é o subtítulo e, se não coincide
completamente com o conteúdo, o livro encontra muitos leitores.
Em 1965 segue ainda um Avonturen Omnibus, uma coletânea de relatos de viagens sobre o Brasil, Paraguai e Bolívia, escritos em colaboração com sua mulher Jeannine Roos. Nesse meio
tempo, Roos vai morar em Hasselt, onde trabalha no serviço de
publicidade da empresa química Bayer. Com intervalos, Roos
continua viajando. Financia suas ‘expedições’ pela América do
Sul com os rendimentos de suas conferências, sessões cinematográficas e reportagens escritas para os jornais e revistas flamengos.
Volta várias vezes ao Brasil, onde roda diversos documentários, como O parque nacional do Iguaçu (1953) e A morte insidiosa (1957), sobre uma ilha das serpentes ou Ilha da Queimada
Grande, na costa de São Paulo (Cinematek, Arquivo Real do Filme, Bruxelas). Nos anos de 1970 organiza viagens e expedições
para jovens cientistas. Seu amor pelo Brasil é uma constante.
Numa entrevista ao jornal Het Belang van Limburg, em 27 de
julho de 1991, ele declarou ter passado no total 12 anos no Brasil. Marcel Roos faleceu em 1996 em Hasselt, mas foi sepultado
em Gand, sua cidade natal, no cemitério do Campo Santo em
Sint-Amandsberg.
Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre cultura e música popular brasileira; traduziu para o
flamengo História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães
Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
A colônia belga de Botucatu
Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols
Q
uando em 30 de junho de 1960 o Congo Belga se tornou
independente com o nome de República Democrática do
Congo, surgiram graves desordens, que precipitaram o êxodo da
maior parte dos belgas. Diante do afluxo dos retornados, o governo
belga acreditou poder prevenir tensões sociais com alternativas de
colonização no ultramar. Como a Austrália foi logo descartada por
suas rígidas normas para imigração, o governo belga optou pelo
Brasil, aureolado pela recente inauguração de Brasília e mais acolhedor à colonização do seu interior.
A princípio, as autoridades belgas apoiaram-se na experiência
da Holanda, que já mantinha uma colônia agrícola em Jaguaríuna
(SP) – Holambra I. Seu presidente, Charles Hoogenboom, ficou
encarregado de ajudar na localização de uma área agrícola para
a instalação de uma cooperativa para os belgas que vinham do
Congo. As terras escolhidas foram as da Fazenda Monte Alegre,
antiga produtora de café localizada no município de Botucatu
(SP). Seus 4.010 alqueires custaram, na época, o equivalente a
650 mil dólares.
Em 22 de setembro de 1961 foi oficialmente fundada a Sociedade Cooperativa Agropecuária Belgo-Brasileira – SCABB. Entre
1963 e 64 aí se estabeleceram 102 belgas cooperados e seus familiares. No seu auge, em 1971, ascenderam pelos casamentos – dos
quais, dez com brasileiros – e nascimentos a umas quatrocentas
pessoas. A cada cooperado coube no início 50 hectares de terra
e, após a redistribuição ocorrida em 1963 com o retorno de parte dos pioneiros à Europa, uma gleba maior, até o limite de 150
hectares. Além dos belgas, trabalhavam para a SCABB e para os
próprios cooperados vários antigos colonos brasileiros da Fazenda
e, na hora das safras, contratavam-se ainda boias-frias em Pratânia.
Quando os belgas chegaram em 1961, a cidade de Botucatu
se engalanou para recebê-los com festa popular, mas rapidamente
surgiram problemas. Muitos belgas, ainda imbuídos de sua mentalidade colonialista, não se davam conta de que a economia, a sociedade e a população de Botucatu eram diferentes do Congo belga.
Criaram conflitos, sobretudo no trato com os empregados. Se entre
os cooperados haviam agricultores, grande parte não era ligada à
agricultura e não sabia trabalhar a terra. Além disso, descobriram
que as safras não correspondiam às expectativas e circularam boatos que foram logrados pelos holandeses no preço e na qualidade
das terras. Os novos colonos já tinham gastado boa parte de seu
dinheiro com a construção de 45 casas confortáveis, mas deviam
também arcar com os custosos estudos de seus filhos em escolas
particulares. Prevaleceu entre eles um forte individualismo, em
contraste com a exemplar disciplina entre os colonos de Holambra.
Com o crescente descontentamento e sua repercussão na
Bélgica, seu governo, na tentativa de salvar a experiência, providenciou ajuda dentro de seu programa de cooperação ao desenvolvimento. Enviou supervisores e assistentes técnicos e colocou
4 milhões de dólares à disposição da SCABB e dos cooperados,
respectivamente 44.652.456 e 111.938.985 francos belgas. Assim,
equipou-se a colônia com um poço artesiano, uma caixa d´água,
transformadores de eletricidade, silos e uma beneficiadora de arroz. Para promover um melhor espírito comunitário, construíram
uma escola, uma creche e uma igreja, para a qual chegou um padre belga para oferecer assistência espiritual.
Após a redistribuição das glebas e diante dos poucos resultados
com a agricultura, a SCABB optou finalmente pela pecuária e pela produção de derivados de leite. Com novas instalações e uma
34
presenças belgas no brasil
máquina importada da França o Laticínio Belco foi o primeiro no
Brasil a vender leite embalado em saco plástico. Também o queijo e a manteiga da mesma marca alcançaram renome no Estado.
O laticínio acabou absorvido pelo Leite Paulista. No início dos
anos de 1980, foi ainda criada na colônia a Cervejaria Belco. Sua
marca desfrutou de prestígio na região por sua qualidade, mas foi
adquirida mais tarde pela Destilaria Schincariol e sua fábrica deslocada para São Manoel.
Como estas atividades não conseguiram consolidar a colônia, a
antiga SCABB foi desfeita em 1987, quando quase todos os belgas
e seus descendentes já tinham abandonado a colônia. Voltaram
para a Bélgica ou se integraram de outra maneira ao Brasil.
Referências
Delmanto, Armando Moraes. Memórias de Botucatu, Botucatu: Ed. Vanguarda, 1990;
­Peabiru Revista Botucatuense de Cultura, nº 02, Ano I, março-abril, 1997.
Uma ítalo-belga no Brasil
Florence Carboni
D
esde a primeira série, eu era uma das poucas alunas a frequentar a aula de Religião. Por um lado, isso me fazia me
sentir privilegiada. Quem nos ensinava essa matéria, duas vezes
por semana, não era a nossa professora: ela se ocupava das minhas
colegas que assistiam a disciplina de Moral. Era uma jovem senhora, muito simpática, irmã (assim diziam) do nosso pároco, que
dava a máxima atenção às suas três ou quatro alunas. Por outro
lado, incomodava-me um pouco o fato de não fazer parte do grupo majoritário, formado sobretudo por meninas belgas, enquanto
minhas duas ou três colegas na Religião eram italianas, como eu.
Aquela aula de Moral, eu a engrandecia. Parecia-me mais séria. Eu ficava sentida por deixar às minhas colegas, que considerava menos capazes do que eu, o privilégio de ter a nossa professora
apenas para elas. Tentava imaginar as coisas interessantes que elas
estariam aprendendo enquanto eu desenhava cestas atravessando
o Nilo, com bebês chamados Moisés dentro, ou o menino Jesus
carregado por uma mula, guiada por um cara que era marido de
sua mãe sem ser seu pai. Isso me fazia sentir inferior aos meus
próprios olhos. Mas assim tinha que ser porque minha mãe assim
queria. E, deduzia eu, ela assim queria porque era italiana. Dois
anos mais tarde, na terceira série, a primeira aula de História foi
dedicada aos “nossos” antepassados, os Gauleses, que tinham tão
bravamente combatido os invasores romanos... Romanos? Como
assim? Então os malvados eram italianos? Como eu!
Esses dois fatos, a aula de Religião e os romanos invasores
da Bélgica, me fizeram tomar consciência de que não era totalmente igual às minhas colegas. Depois disso, tudo passou a ter
um sentido particular: o nosso modo de viver, alguns gostos dos
meus pais, nossa casa, o modo como minha mãe se vestia e me
vestia, a ópera – italiana, é claro! – que escutávamos todos os domingos de manhã quando meu pai estava em casa. A nossa comida também, tão diferente da que faziam as mães das minhas
amigas, que eu invejava porque comiam linguiça com batata
fervida. Tinha também as cartas da Itália, dos avós, dos tios, das
tias, e de amigos italianos como nós, que haviam voltado para a
Itália depois da terrível catástrofe ocorrida numa mina de carvão
da região, onde muitos dos nossos compatriotas tinham morrido.
Essas cartas, que terminavam sempre com as mesmas fórmulas,
como ladainhas, minha mãe as lia em voz alta. E ela as respondia
com uma religiosa seriedade.
Havia também as orações da noite, que eu e meus irmãos recitávamos em francês e minha mãe em italiano, à exceção de uma
prece, toda em italiano, uma espécie de conversa com Deus na
qual se faziam vários pedidos: proteção para os diferentes parentes
e ajuda para que, também naquele verão, se pudesse ir à Itália e
rever a todos. Na época, nunca mencionava estas coisas com minhas colegas de aula ou com as outras crianças do bairro – já eram
tantas as coisas que diferenciavam minha família das delas! Tornaram-me consciente da dualidade de minha existência também
as constantes lamentações de meu pai porque seus filhos se recusavam a falar com ele na língua dele. E havia ainda o fato de que,
no bairro, minha mãe fosse conhecida como Maria l’Italienne. Vivíamos numa fração de um pequeno município, na província de Hainaut, no Pays Noir, a região escurecida pelo carvão das
minas e pela fumaça dos hauts fourneaux (altos-fornos) da metalurgia. Meu pai trabalhava numa fábrica, onde era considerado um
bom operário. No nosso bairro, ele também tinha certo prestígio:
entendido de mecânica, era muito procurado para consertar carros. E, de vez em quando, tocava violino nas festas da paróquia,
apesar de seu anticlericalismo declarado.
No nosso bairro, no qual viviam quase exclusivamente operários e mineiros belgas e onde, por muito tempo, fomos uma das
poucas famílias italianas, minha mãe também se destacava. Era
uma das poucas mulheres a não trabalhar na grande fábrica de
confecção masculina situada em uma cidade vizinha. Ela costurava em casa. Tinha aprendido com dez anos, quando fora enviada
como aprendiz à loja de um alfaiate em La Spezia, na Itália. Ela
vestia todos nós, inclusive meu pai. Mas costurava sobretudo para
fora. Não havia noiva dos arredores que não entrasse na igreja com
um vestido feito por ela. Ocupava-se também de uma horta, que
nos alimentava boa parte do ano, assim como de um lindo jardim
na frente da casa, o mais lindo da rua. Eu tinha muito orgulho
dele, apesar da vergonha que me causava o estado de decadência
de nossa velha casa.
35
parte 1 – travessias e migrações
A única coisa que minha mãe não amava eram os trabalhos
domésticos. Nossa casa era uma das menos bem cuidadas do bairro, onde a arrumação parecia ser uma verdadeira fixação. Seguidamente, eu, minha irmã e meu irmão tínhamos que arrumá-la
e limpá-la porque minha mãe estava terminando um vestido ou
trabalhando na horta.
Naquela pequena casa, que meu pai em seguida aumentou,
com a ajuda de todos nós – como era comum fazer na época,
naquela classe social e em bairros como o nosso, semiurbano e
semirrural –, vivíamos em cinco pessoas: eu, meus pais, minha
irmã e meu irmão, nascidos na Itália. No ano em que completei
oito anos de idade e estava entrando na terceira série, minha irmã
iniciava o primeiro ano de faculdade e meu irmão começava a
trabalhar na fábrica com meu pai. Contradições de uma sociedade em transformação! Dez anos mais tarde, eu também entrei na
universidade, sem muita convicção e sem muito rumo. Formeime mais seriamente muitos anos mais tarde, já casada e mãe, em
outra universidade e em outro curso, também na Bélgica, onde
também me doutorei.
Enquanto isso eu havia me apaixonado por um brasileiro, refugiado político em Bruxelas, onde conheci também chilenos e
chilenas, exilados após o golpe de Pinochet. Logo, com ele e nosso
bebê, tomei o caminho da emigração, um pouco como meus pais
fizeram logo após a Segunda Guerra Mundial. Não pelas mesmas
razões, nem com os mesmos objetivos. Muito provavelmente, não
com as mesmas dificuldades.
Tratou-se, no entanto, de emigração, com seu séquito de descobertas, enriquecimentos, encantos, mas também de empobrecimentos, rupturas, afastamentos e perdas irremediáveis – perda
de referências culturais, de cheiros, de gostos, de afetos. Tudo isso deu-se talvez de maneira menos nítida em relação àquilo que
meus pais viveram do final dos anos 40 aos anos 80 na Bélgica. Isso
porque, para mim, não estava muito claro a qual cultura pertencia.
Sentia falta da Bélgica, é claro, que considerava o meu país, apesar de nunca ter tido a nacionalidade belga: lá onde eu nascera e
vivera os primeiros 23 anos de minha vida.
Meu conhecimento racional do mundo se dera sobretudo
através da língua francesa, que, mesmo não sendo a língua de
minha mãe nem, talvez, a primeira que falara, passou a ser a
dominante no meu repertório linguístico. Da Bélgica, conhecia
quase tudo: interpretava perfeitamente os códigos sociais e sabia
como me comportar conforme quisesse passar por estrangeira ou
por autóctone; conseguia comunicar-me com os velhos operários
e camponeses até mesmo quando me falavam em puro wallon;
amava a comida; conhecia e apreciava enormemente a cerveja,
com destaque para a trappiste etc. Gostava até mesmo do cli-
ma cinzento, chuvoso e frio, assim como da paisagem plana e
monótona tão bem cantada por Jacques Brel. Mesmo assim, na
convivência familiar, havia assimilado outras práticas, outros valores e traços culturais.
Por isso, uma vez, no Brasil, senti também falta da Itália e mais
especificamente da Ligúria, onde passara cada verão de minha infância e juventude. Era ali que se encontravam todas as minhas referências familiares – naquela altura até meus pais haviam voltado
para a Itália, após 34 anos na Bélgica. Tinha saudade das paisagens
do interior daquela região da Itália, mas também do seu litoral rochoso, das tortas de verdura, do cheiro de manjericão e alecrim,
dos vilarejos medievais agarrados ao topo dos morros suaves.
Ao chegar ao Brasil, em finais de 1977, senti falta da segurança que me dava a possibilidade de participar de um movimento
social, político e cultural em efervescência, naqueles anos 70, na
Itália sobretudo. Ainda mais porque o Brasil daquela época ainda
era governado pelos militares. Uma vez no Brasil, o conhecimento, puramente teórico e potencial, que eu tinha de um Estado ditatorial e da difícil situação política na América Latina daqueles
anos converteu-se em experiência concreta, imediata, cotidiana:
pelos inúmeros obstáculos encontrados por meu companheiro em
sua penosa busca por inserção profissional e por uma reinserção
social, com todas as dificuldades econômicas que isto nos causou
e ao nosso filho. Também pelos repetidos indeferimentos, por sete anos, aos meus pedidos de visto de permanência, ao qual tinha
direito por ser mãe de uma criança constitucionalmente considerada brasileira por ter chegado ao País antes dos três meses de vida.
Esta recusa que, como ficou demonstrado mais tarde, devia-se
ao fato de ser companheira de um opositor do regime ditatorial,
prejudicou irremediavelmente minha vida profissional, já que,
além de não me permitir trabalhar de outro modo que informalmente, me impediu até mesmo de inscrever-me numa universidade para terminar os estudos de psicologia iniciados em Bruxelas.
Os longos sete anos sob a ditadura militar – durante três, ia de
Porto Alegre e vinha de Montevidéu em ônibus precários, com
meu filho pequeno no colo, para manter o visto de turista; durante
quatro, vivi como semiclandestina, após receber ordem de expulsão – tornaram também mais difícil uma inserção social serena.
Sobretudo, eles prejudicaram a possibilidade de que eu amasse o
Brasil incondicionalmente e o considerasse o meu país, o mesmo
título que atribuo à Bélgica e à Itália, onde me sentia e sinto cidadã, apesar de minha condição de filha de trabalhadores, imigrados
em um e emigrados do outro.
Florence Carboni, italiana, é professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
36
presenças belgas no brasil
A casa é sua
Annelies Beck
É
uma turma alegre que posa caótica para a foto da classe de
segundo grau de 1991-1992. Cinquenta rapazes e moças num
emaranhado de braços e pernas, todos com um largo sorriso, salvo o beicinho de uma que se imagina uma modelo. Uma moça
tem o cabelo curto. Outra, chama a atenção no meio de todas as
outras com seu cabelo até a cintura. Esta de cabelo curto, sou
eu, a gringa, a belga – na época sou ainda uma novata estudante
de intercâmbio, mas na minha opinião já totalmente integrada.
O carnaval, o futebol e as novelas Sinha Moça e Escrava Isaura, que a televisão pública passava então no fim da tarde, eram
as primeiras coisas que as pessoas evocavam quando lhes contava
que passaria um ano no Brasil como estudante de intercâmbio.
Em segundo lugar também: muita pobreza, a selva amazônica e
os teólogos da libertação. E mais nada.
O e-mail e a internet ainda não eram muito divulgados. De Facebook ou Twitter não se falava ainda. Tinha eu 18 anos, não falava
português e iria morar um ano num país onde nunca tinha estado.
Devia ser o Brasil por causa do idioma bonito, de situar-se bem longe e de ser uma terra totalmente desconhecida para mim: outra cultura e outra sociedade, com uma extensa gama de cores e de gente
do mundo inteiro que, aparentemente, conviviam sem problemas.
1991. Fui parar numa família de classe média em Juiz de Fora, Minas Gerais. No ônibus do Rio de Janeiro para Juiz de Fora
arregalei os olhos. Balbuciava as palavras estranhas dos painéis
publicitários, ensaiando os sons certos. Pneu parecia pronunciar-se como pieneeuw. Tudo era diferente. Ia-se à escola de seis e
meia da manhã até o meio dia e não das nove às cinco. Havia, no
centro urbano efervescente, mais prédios altos do que estávamos
acostumados nas cidades europeias. Por toda parte sempre me
deparava com mendigos ou camelôs. Fernando Collor de Mello
era presidente e Lula da Silva ainda líder sindical em São Paulo.
A palavra presidente pronuncia-se em português como fosse ‘presidentje’ (um diminutivo em flamengo), o que então, em plena
aprendizagem do idioma, me soava engraçado. Este tipo de coisa
me impressionava no começo.
O afamado choque cultural não está no multicolorido, nem
mesmo na pobreza, tão visível. O choque está nas pequenas coisas. A cena de rua, que fica incompleta, até quando se realiza que,
durante meses, não se via nem um carrinho de bebê ou buggy.
Bebês sempre se carregam. Assim um vazio pega mais cor. A pergunta, sempre repetida, aberta e direta, na presença de qualquer
um: “Você tem um namorado?” A reação incompreensiva quando
eu não queria responder fazia mistério, ao passo que eu me assustava como quanto as pessoas faziam pouco caso, como achavam
natural, penetrar desse jeito na privacidade de alguém. Como fixavam meus cabelos curtos – Sinéad O’Connor, Jeanne Moreau,
Annie Lennox!, por quem mais me tomavam? Quem sabe se eu
era talvez doente?
Minha família hospedeira me recebeu de braços abertos. Minha mãe é psicóloga. Ela combinava seu consultório pessoal com
aulas. Meu pai trabalhava num restaurante de empresa. Meu irmão estudava arquitetura e aprendia alemão num curso noturno.
Minha irmã era bastante esportiva e estava na escola secundária.
A família com quem estava tinha raízes no Líbano, na Itália e, de
algum antepassado, sangue africano. Cada membro da família tinha uma coloração diferente. Todos os dias chegava a empregada,
que arrumava o apartamento e cozinhava o almoço, mas não havia
luxo. Trabalhavam duro para poder ter o possível.
Como estudante de intercâmbio, no começo anda-se às cegas.
Compromissos fixos tornam-se amparos. No café da manhã havia
variedade de frios e queijos, com uma faca em cada qual, e não,
como de praxe na Bélgica, uma faca ao lado do prato de cada comensal. O mesmo se repetia no almoço, com toda a família. Eu
estranhava os combinados pouco comuns para mim: carne, legumes e arroz com feijão sempre estavam na mesa; além disso, ainda um prato com mandioca, batata doce ou massa. Muitas vezes
me felicitavam por eu não ser “doceira” e recusava facilmente o
brigadeiro e outras bombas calóricas. Por outro lado, infelizmente, eu resistia bem menos aos salgadinhos vendidos em bares por
toda a cidade e até na escola.
Se eu tinha Durex comigo? A pergunta veio na segunda ou
terceira semana desde que frequentava a escola. Fiquei um momento sem fala. A menina que parecia a mais inocente da classe
me perguntou se eu tinha camisinha. Meu português estava ainda
em desenvolvimento, mas eu estava certa de que a tinha compreendido bem, ainda mais quando repetiu a pergunta. Na escola,
gravidez na adolescência não era incomum e muitas meninas da
minha classe – tinham geralmente quinze ou dezesseis anos, um
a dois anos mais novas do que eu – falavam o tempo todo de paquerar e namorar, sobre qual rapaz era atraente e de quem estava
com quem. Mas quase nunca se falava diretamente de sexo. Eu
balbuciava qualquer coisa. Minha colega de série me fitou com
olhos interrogativos e apontou para o rolinho de fita adesiva no
meu estojo. “Durex?” Este era o momento em que a classe e a
gringa se abraçavam. A confusão prolongou-se por meses e provocava cada vez mais risadas.
Fora a comida, também a novela das nove era ponto fixo do
meu dia. A pretexto de que me ensinavam português, gostava de
ver Vamp e Perigosas Peruas. Narrativas fantasiosas e relações amorosas, atuadas em diálogos singelos. O perfeito trampolim para a
conquista do português em todas suas nuances. Mas, e as novelas
como espelho da evolução da sociedade, como os sociólogos às
vezes as apresentam? Dois verões antes especulava-se nos jornais
durante semanas se duas personagens homossexuais se beijariam
ou não. Com ou sem beijo, a franqueza com que se escrevia sobre
o amor ainda não era, infelizmente, corrente na vida cotidiana.
37
parte 1 – travessias e migrações
“Não é sempre tão simples. Às vezes fico apreensiva” me confiava
minha mãe. Ainda em 2012 não é simples ser GLS no Brasil, apesar da garantia legal, do alegre travesti durante o carnaval, das flamejantes subculturas e da ocasional Gay Pride Parade nas cidades.
Assim, há outras coisas que pedem uma segunda, terceira e
quarta leituras. O que à primeira vista é reconhecível, ou compreensível, parece, numa inspeção aproximada, se situar um grau
fora do fio de prumo, pelo menos em comparação com o quadro
de referências que se traz de fora. A procura de pontos comuns,
em algum lugar nas dobras entre familiaridade e alienação, é o
que torna a conexão com o Brasil tão fascinante.
Em 2013, de volta a Juiz de Fora, fiquei impressionada: foram
construídos um hospital e um shopping ainda maior; por toda parte erguem-se altos prédios de apartamentos e na colina mais longe
vêem-se alinhadas as casas sociais da “Minha casa, minha vida”.
O Brasil vai de vento em popa. Não se deve mais passar horas na
fila para trocar dinheiro: pode-se em qualquer parte sacar dinheiro
do caixa eletrônico.
Vinte anos atrás, no Jornal Nacional, a cada dia William Bonner dava o câmbio oficial do dólar e, em seguida, o paralelo no
câmbio negro. Naquela época, minha família hospedeira comprava os dólares que eu, cuidadosamente, economizava e guardava num nicho secreto perto da cama. Não era recomendável ter
dólares em casa, mas deixar o dinheiro no banco tampouco era a
solução por causa da inflação galopante. Ainda guardo um arco-íris de passagens de ônibus: a cada mês subia o preço e, portanto,
mudava também a cor do bilhete.
Anos mais tarde, a economia melhorou bastante pela gestão
liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas naquela
altura meus pais brasileiros já tinham visto boa parte de suas economias virar fumaça. Mais tarde o horroroso cenário para os brasileiros ricaços tornou-se realidade: o torneiro mecânico de outrora,
o barulhento sindicalista Lula da Silva tornou-se presidente. Mas,
ao contrário do que alguns temiam (caos! revolução!), ele fez um
governo moderado. Continuou o que seus predecessores tinham
começado a construir e o Brasil se deu bem com isso. Hoje, Dilma
Rousseff é a primeira mulher presidente do Brasil, uma ex-guerilheira – quem teria imaginado isso?
O Brasil é um caso interessante não só economicamente. Políticamente, 20 anos depois da renúncia do presidente Fernando
Collor, sob a pressão dos “caras pintadas”, desenrola-se um novo
processo, que pode seguir-se nos mínimos pormenores na mídia:
corrupção no coração do PT, o caso do mensalão. O Brasil reinventa continuamente o seu porvir.
2013. Minha família hospedeira vai bem – ainda mantemos
contato. Meus pais construíram sua própria casa. Minha mãe ainda trabalha. Meu pai está agora aposentado. Meu irmão e minha
irmã puderam estudar e ambos trabalham. Minha irmã é fisioterapeuta em Juiz de Fora e decidiu fazer Direito, “para poder fazer
alguma coisa pela gente”. Meu irmão projeta cenários para novelas e vê de seu apartamento como o Rio se embeleza para os Jogos
Olímpicos. A dinâmica dentro da cidade se transforma: as favelas
empetecadas entraram na mira dos promotores da construção e
das imobiliárias. Cá e lá oferece-se um bom dinheiro aos moradores de áreas que eram taxadas de favelas. Mas como a empregada
do meu irmão me contou: “Para onde temos que ir, então? Para
mais longe, onde é mais barato? Como então podemos chegar em
tempo razoável no serviço?”
Quando agora olho a foto da minha turma daquela época, vejo
que sempre fui a gringa, mesmo que minhas colegas me dessem
o sentimento de ser uma delas e mesmo que eu passasse frequentemente por uma catarinense ou uma gaúcha, por causa de meu
cabelo loiro e meus olhos azuis. Como estudante de intercâmbio,
desligada de quem eu era, salvo por uma frágil linha de envelopes
do correio aéreo, eu fui muito longe para conquistar, no estrangeiro, aquele sentimento seguro e familiar de casa.
Como jornalista, 20 anos mais tarde, levo vantagem com este olhar duplo: a familiaridade transparece nos gostos, cheiros e
olhares, numa maneira de falar, em sensibilidades para tabus versus franqueza e, também, nas minhas mãos que se metem a dançar quando falo português. Ao mesmo tempo, este país poderoso
apresenta-se cada vez numa outra faceta, tanta coisa muda, tão
rapidamente, cada vez surgem novas questões e percepções. É
como em toda boa relação: nunca se acaba.
Annelies Beck é jornalista na VRT, a televisão pública flamenga.
Há 20 anos se dedica ao Brasil, onde fez numerosas reportagens.
Residiu neste país entre 1991 e 1992 como estudante de intercâmbio e obteve, mais tarde, um MA em Brazilian Studies na University of London.
38
presenças brasileiras na bélgica
Os primeiros brasileiros em Flandres
Eddy Stols
P
or algum ufanismo a historiografia brasileira relutou muito
tempo a pensar o Brasil como um país de emigração. Os únicos casos conhecidos eram os deportados da Inconfidência mineira, a família imperial e os monarquistas em 1889, os baderneiros
anarquistas principalmente italianos expulsos por volta de 1900, os
exilados da Revolução de 1930 e do Estado Novo e os refugiados
e deportados da ditadura militar de 1964 a 1978.
Como um fato novo e quantitativamente inédito surgiu a partir
da crise econômica dos anos de 1980 a saída do País de milhares
de brasileiros modestos por necessidade econômica. A formação
de uma grande diáspora brasileira nos Estados Unidos, no Japão
e na Europa abriu os olhos dos historiadores para os precedentes,
como os ‘brasileiros de torna-viagem’ no Norte de Portugal ou no
Sul da Itália, ou os escravos alforriados que voltaram para a costa ocidental da África. Dentro deste variegado Brasil extramuros,
cabe situar a presença brasileira na Bélgica.
Logo depois da chegada dos portugueses e franceses ao Brasil,
alguns índios fizeram a viagem em sentido inverso para Lisboa ou
para a Normandia. A sua vinda para Flandres pode ter demorado
até que em 1584 uma primeira notícia assinalou a prisão em Antuérpia de quatro Brasiliaenen, ou brasileiros, Melchior Albares,
Anthonio Ghercy, Pedro Borges e Juan Aldres (Bulletin des Archives d’Anvers, 5, 264).
Chegando à cidade tarde da noite, encontraram as portas já
fechadas pelo horário de recolher, mas entraram pulando pelos
muros. Foram liberados mediante o pagamento de multa de 100
florins pelos cônsules da nação portuguesa. Estes os desculparam
como gente simples e ignorante, que nunca estiveram em outro
lugar senão no Brasil e no mar. Tudo indica que eram mestiços,
mamelucos ou mesmo índios, marinheiros de um navio português
procedente do Brasil. Uma tripulação semelhante talvez já tivesse sido encontrada em viagens anteriores de navios portugueses
a Flandres.
Um pouco brasileiros podiam ser neste final do século XVI os
cristãos-novos portugueses, que, após longa estada em Pernambuco ou na Bahia ou já nascidos por lá, vieram residir em Antuérpia
para tratar de seus negócios de açúcar e pau-brasil e eventualmente à procura de maior liberdade religiosa.
Algumas famílias desta rede comercial transatlântica se fizeram católicas como os Ximenes ou os Rodrigues d’Evora. Outras
seguiram mais tarde, nos anos de 1640, para Amsterdam, onde
podiam professar abertamente seu judaismo, se bem que como
cidadãos de segunda categoria e com censuras internas na sua
comunidade. Um ou outro cristão-novo voltou inclusive para os
Países Baixos meridionais, que adotaram progressivamente maior
tolerância com os judeus.
Em Zandvliet, um povoado perto de Antuérpia, uma Brazilianenstraat se refere à gente de pele escura que vivia lá em choças
como meio selvagens ao deus-dará. Na voz popular atribuía-se
sua origem a soldados vindos com o exército espanhol no século
XVI. Como mais plausível, tratar-se-ia de emigrantes belgas, que
retornaram miseráveis do Brasil no século XIX e se reinstalaram
em terras abandonadas (com meus agradecimentos a M. Bollen
e J. Possemiers).
Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos XIX e XX
Eddy Stols
U
ma vez independente, a Bélgica atraiu um número considerável de passantes e residentes brasileiros, sem que se constitu-
ísse uma colônia bem visível como a de Paris. Tratava-se de diplomatas, comerciantes, artistas e principalmente de estudantes. Em
39
parte 1 – travessias e migrações
Ilustração de
Henrique Alvim
Corrêa para o livro La
guerre des mondes,
de H. G. Wells.
Uma vez reconhecido seu talento, seguiu primeiro para a Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro e depois, em 1903,
com bolsa do governo paranaense, foi aperfeiçoar-se na Académie
Royale des Beaux-Arts de Bruxelas. Gheur e outro belga interessado, Alphonse Solheid ou talvez o próprio Itiberê podem ter facilitado o contato. Em Bruxelas, Zaco trabalhou com o escultor
expoente do art nouveau, Charles Van der Stappen. Recebeu em
1905 em sua casa o conterrâneo João Turin (1878-1949), filho de
imigrante italiano, aprendiz de ferreiro, escultor e também auxiliado com bolsa de governo. Turin exprimiu o seu sofrimento pelo
clima belga na escultura Exílio.
Com certeza, conheceram Constantin Meunier, cujo Semeador (1896) inspirou semelhante estátua de Zaco Paraná. Ambos foram diplomados e premiados em 1909, recebendo um ateliê para
trabalhar, carvão para aquecimento e direito a modelo vivo. Com
a morte de Van der Stappen, voltaram ao Brasil em 1910, mas logo
regressaram à Europa e viveram um longo período em Paris em
contato com os artistas modernos. Após seu regresso definitivo em
1922 ao Brasil, encontraram mais reconhecimento e encomendas.
Ainda em Bruxelas, seus caminhos se cruzaram com um outro artista brasileiro. Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) foi levado com 16 anos pelo padrasto a Paris, onde aprendeu a gravura e se especializou em pintura militar com Edouard Detaille.
Contrariado pela família em seu romance com Blanche Barbant,
fugiu em 1898 para Bruxelas, onde montou um ateliê no subúrbio de Watermael-Boisfort. Mas o pintor não conseguia vender
seus quadros de temas militares e se sustentou com decoração
mural e ilustrações eróticas no estilo de Félicien Rops. Somente em 1905 conseguiu realizar na galeria Boute de Bruxelas sua
primeira exposição individual. Numa abundância de pinturas,
desenhos e esboços, um crítico (La Chronique, 12 e 15.03.1905)
descobriu um artista solitário e original, sem filiação com alguma escola e desenraizado.
Suas obras revelavam ‘uma mistura singular de fantasia e seriedade, de sonhos bizarros, caprichosos e de impressionismo natural,
de simbolismo e realidade’. Tudo lhe inspirava, desde figuras do
cotidiano, recantos e paisagens de Boisfort até cenas da atualidade internacional, como a guerra russo-japonesa de 1904, que ele
dramatizava ou parodiava. Sua imaginação fantástica excedeu em
cerca de 50 desenhos de monstruosos e terríveis extraterrestres
para ilustrar a obra de grande êxito The War of the Worlds (1898)
de H. G. Wells. O próprio autor, solicitado por Alvim Corrêa em
viagens a Londres, os aprovou para uma edição belga, La guerre
des mondes, Bruxelas, L. Vandamme, 1906, com 500 exemplares
(reeditado no Rio de Janeiro, 1981).
Doente dos pulmões, Alvim Corrêa foi tratar-se num sanatório suíço, mas acabou morrendo de tuberculose em Bruxelas em
1910. Seu necrológio (La Chronique, 15.06.1910) o reconheceu
como um modernizador de Breughel e Bosch. Também devia-se relacioná-lo com o contemporâneo belga James Ensor. Seu
ateliê foi destruido na invasão alemã em 1914 e as matrizes de
suas gravuras desapareceram no torpedeamento de um navio em
1942, mas seus dois filhos, Eduardo e Roberto, salvaram o que
Bruxelas, o Brasil mantinha desde 1834, e quase continuamente,
um encarregado de negócios, um ou mais adidos e um cônsul-geral, alguns com extensas famílias, como testemunham no cemitério de Laken os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Barros e Moreira Barros. Possivelmente recebiam viajantes brasileiros
como o pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre e o poeta Domingos
Gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta
de 1837. Este último concluiu lá seu drama Antonio José ou o Poeta
e a Inquisição e uma belga lhe inspirou talvez um suspiro poético.
A belga era Céline, amante do outro grande poeta romântico, Antônio Gonçalves Dias, que passou por cirurgia na Bélgica em 1863,
pouco antes de seu naufrágio na costa do Maranhão.
Um salão literário concorrido manteve em Bruxelas no final
do Império o plenipotenciário conde de Villeneuve e sua esposa,
assistido por Brasílio Itiberê da Cunha, o compositor da Sertaneja.
Este trouxe em 1880 para estudar no colégio jesuíta Saint-Michel
um jovem irmão, João, que se formou depois em Ciências Políticas
na Universidade de Bruxelas e se relacionou com figuras de La Jeune Belgique, como Iwan Gilkin (Andrade Muricy). Nesta linha publicou em 1890 sob o nome de Jean Itiberê e com o mesmo editor
de Maurice Maeterlinck, Lacomblez, um volume de poemas em
francês, Préludes. Voltando em 1892 para a terra natal paranaense
com postura de dândi no estilo fin-de-siècle, continuou a publicar
poemas em francês nas revistas Cenáculo e Almanaque Paranaense
e divulgou nos meios literários de Curitiba o simbolismo belga.
O prestígio deste pode ter influenciado na ida a Bruxelas, pouco depois, de dois jovens escultores paranaenses, filhos de imigrantes. Na oficina do polonês Miguel Zak, os trabalhos de madeira do
filho João Zaco Paraná (1884-1961) despertaram o interesse de um
freguês, o técnico ferroviário belga François Gheur. Este levou o
menino para sua casa em Curitiba para lhe proporcionar ensino
com auxílio do governo e de protetores no seminário menor e na
Escola de Belas Artes e Indústria.
40
presenças brasileiras na bélgica
puderam. Sua obra foi finalmente redescoberta por José Roberto
Teixeira Leite, que lhe consagrou a primeira exposição em 1973,
parcialmente reapresentada por Pietro Maria Bardi em Bruxelas
na galeria Studio 44 no mesmo ano da Brasil-Export.
Nestes anos de 1910 a presença brasileira atingiu maior visibilidade pelas iniciativas do embaixador Oliveira Lima. Junto
com a participação do Brasil na Exposição de Bruxelas, organizou
um concerto de música brasileira no Théâtre de la Monnaie. Os
comissários do Estado de São Paulo editaram em Bruxelas várias
publicações de propaganda como um álbum de 102 fotografias
de Guilherme Gaensly, Vues de São Paulo. Um exemplar – hoje conservado na Biblioteca Municipal da cidade – foi oferecido
ao poeta Vicente de Carvalho, residente em Bruxelas em 1912.
Vários jovens talentos literários brasileiros, adeptos do simbolismo, vieram peregrinar na terra de Émile Verhaeren, Georges
Rodenbach e Maurice Maeterlinck, ainda mais que lá havia editores bons e baratos e onde Victor Orban compôs uma das primeiras
antologias de literatura brasileira em francês (Quataert). A visita
aos canais de Bruges em 1913 de Rodrigo Otávio Filho, junto com
Ronald de Carvalho, Filipe d’Oliveira e Álvaro Moreyra, rendeu
seu Alma de Rodenbach, 1921.
Foi nesta época que Manuel Bandeira veio da Suíça conhecer
‘a Bélgica perseverante dos velhos paços municipais e beguines’,
evocados mais tarde em O Ritmo Dissoluto (1924). Ao contrário,
lá também, na casa de um patrício, o poeta mineiro Belmiro Braga
saboreou sua comida da terra. Um editor de Bruxelas lançou os
primeiros estudos de Alberto Lamego, historiador da Terra Goytacá. Brasileiros vinham até veranear, como os Almeida Prado
em La Panne. Num restaurante de Ostende, Gilberto Amado se
surpreendeu em 1912 com uma dezena de seringueiros da Amazônia, vestidos de branco, festejando com bonitas mulheres nos
joelhos (Amado). No mesmo balneário o casal Asseloos anunciava o ensino da ‘maxixe brésilienne’ (Le Carillon, 28.02.1914). A
festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914,
quando os diplomatas redigiram listas com os nomes de uns 400
brasileiros que deviam deixar a Bélgica.
Boa parte destes eram estudantes e seus familiares. Já por meados do século XIX se encontravam em Bruxelas em instituições
de educação como do Senhor Lavallée jovens brasileiros, ao lado
de russos ou de uma Charlotte Brontë (Stols, 1974). Mais tarde,
secundaristas frequentaram colégios como o Saint-Michel dos jesuítas em Bruxelas ou pensionatos, como das Ursulinas em Onze-Lieve-Vrouw-Waver.
Bem mais numerosos foram os universitários. Vários motivos
levaram os pais brasileiros a preferir a Bélgica: um país monárquico, mas constitucionalista e liberal, de idioma francês, mais
seguro e também mais barato do que a França. Desde Bruxelas,
em carta de 7 de julho de 1863, Antônio Prado recomendou ao
irmão Caio estudos na Bélgica por não ter costumes tão diversos
como a Alemanha nem tão perigos como Paris (Darrell, p. 147).
Entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros,
dos quais 237 na Universidade Livre de Bruxelas, 217 na Universidade de Gand, 100 na Universidade de Liège, 68 na Universidade
de Lovaina, 37 na Faculdade de Agronomia de Gembloux, 5 na
Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da
Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio
de Antuérpia.
Se os primeiros apareceram em 1835, somente a partir de 1857
contava-se mais de dez, alcançando 41 em 1871 com um pico
de 72 em 1882, baixando depois para 12 em 1912 e subindo novamente até 48 em 1913. O mais surpreendente – e contrário à
reputação de bacharelismo dos brasileiros –, é o alto número de
inscritos e diplomados em engenharia (318), medicina (236) e
agronomia (45).
Notável também é a diversidade de origem dos estudantes brasileiros, a maior parte vinda das províncias do Rio de Janeiro (231)
e de São Paulo (149), seguidas por Minas Gerais (41), Pará (31),
Rio Grande do Sul (29), Maranhão (28), Bahia (27) e Pernambuco (24). Em algumas famílias brasileiras, como os Ottoni, Teixeira
Leite, Roque de Pinho, Toledo Piza, Villares, Viana e Chermont,
os estudos na Bélgica se tornaram quase uma tradição.
No início viviam bastante isolados. A. S. de Abreu se queixou
num folheto, Souvenir de la province de Minas Gerais au Brésil,
Bruxelas, 1845, como em três anos fez poucos amigos. Defendia
frente aos abolicionistas a reputação de sua pátria, argumentando
que o escravo trabalhava somente oito horas e não se despedia na
rua, faminto, como se fazia com o operário belga.
Nos anos de 1860 e 1870 alguns frequentavam salões e aderiam ao positivismo como Luiz Pereira Barreto ou Joaquim Alberto
Ribeiro de Mendonça. Um deles, Francisco Antônio Brandão Júnior, publicou em Bruxelas um dos primeiros livros abolicionistas,
A Escravatura no Brasil, 1865. Participavam das associações estudantis, envolvendo-se às vezes nas disputas entre liberais e católicos. Em Gand houve até um clube brasileiro entre 1875 e 1880.
Alguns se radicaram na Bélgica como Ladislau Furquim de
Almeida, que publicou sobre o café e a borracha e deixou descen-
Ilustração de
Henrique Alvim
Corrêa para o
livro La guerre
des mondes, de H.
G. Wells.
41
parte 1 – travessias e migrações
No pós-guerra a presença brasileira se reativou primeiro na
área cultural, promovida por uma Union Brasilo-Belge, fundada
em 1950. Nesse ano estreou o maestro Eleazar de Carvalho no
Palais des Beaux-Arts de Bruxelas. Magda Tagliaferro fez em 1952
uma turnê belga e participou do júri do Concours Reine Elisabeth.
A construção da nova capital em Brasília colocava o País no diapasão da modernidade, que precisamente a Exposição Mundial de
Bruxelas em 1958 pretendia celebrar. Esta coincidência suscitou
mais intercâmbios.
Assim Heitor Villa-Lobos dirigiu em 1958 a orquestra belga
na inauguração do Pavilhão do Brasil. Se a Expo 58 fez descobrir
Cândido Portinari e Cícero Dias, o Palais des Beaux-Arts mostrou
em 1957 Burle Marx e em 1960 Lasar Segall, em parte como respostas às participações belgas na Bienal de São Paulo. Este maior
apreço cultural mútuo levou em 1960 à assinatura de um acordo
cultural. Ao mesmo tempo os belgas descobriram o futebol brasileiro nos encontros do Botafogo e do Santos com o Anderlecht
e o Beerschot.
A partir dos anos 1960 o número de estudantes cresceu bastante à procura de formações inexistentes ou pouco desenvolvidas
no Brasil, como engenheiro de cervejaria, psicólogo, psicanalista,
demógrafo, ou de especializações e de doutorados. Vários tipos
de bolsas, do supracitado acordo cultural, do Ministério Belga da
Cooperação, ou das próprias universidades facilitaram sua vinda.
Paralelamente, escolas de artes plásticas, cinema ou dança e
conservatórios de música atraíram mais jovens de vocação artística. Clubes de futebol belgas começaram a contratar jogadores
brasileiros, ao passo que mestres capoeiristas faziam facilmente
adeptos na juventude belga. Esta apreciou cada vez mais as bandas de música brasileira ativas no país.
Empresas brasileiras se instalaram na Bélgica ou enviaram estagiários, enquanto a representação diplomática se expandiu na
União Europeia e na Otan. Os casamentos mistos trouxeram mais
brasileiras à Bélgica, inclusive princesas da família imperial. Com
a crise econômica milhares de brasileiros buscaram trabalho na
Bélgica. Muitos não conseguiram carteira de trabalho, arriscando-se como clandestinos à deportação. Para assisti-los, surgiu em
2006 a associação Abraço.
Assim, formou-se uma verdadeira colônia brasileira com pontos de encontro, bares e restaurantes, associações culturais, galerias de arte, exposições, publicações, igrejas, carnaval e festas juninas, mais concentrada em Bruxelas, mas também presente em
Antuérpia, Liège, Gand e Lovaina. Estimativas calcularam o total
de brasileiros na Bélgica em torno de 40.000 por volta de 2010,
um número bastante alto em comparação com a emigração brasileira nos outros países europeus. O tema merece certamente uma
pesquisa mais ampla e sistemática. Em 2011 surgiu o projeto Me
Brasil dentro da Oca, sob o impulso de Regina Barbosa, para registrar esta presença brasileira em interação com belgas ou outros
lusófonos. Não falta matéria interessante como Pixote em Bruges, a
revista Para ti Para todos em Antuérpia desde 1995, a galeria Zacco
Canchi em Aalst, La Maison du Brésil em Bruxelas, Alegria em Lovaina ou os numerosos grupos de capoeira, como o Porto de Minas.
João Turin esculpindo “Exílio”.
dência. Outros levaram na volta ao Brasil uma esposa belga. Uma
destas relatou, em carta aos parentes belgas, a vida na fazenda em
Minas Gerais com os escravos reunidos à noite para a reza e benção.
Depois da Primeira Guerra Mundial estudantes brasileiros inscreveram-se de novo nas universidades belgas, se bem que o Brasil
criava entrementes suas próprias instituições. A Bélgica voltou a
fazer parte da rota de literatos, artistas, diplomatas e empresários
brasileiros no seu périplo europeu. Em viagem de 1922 junto com
Vicente do Rêgo Monteiro, Gilberto Freyre conheceu uma belga
‘a mais lírica das namoradas... demônio de morena de olhos verdes
tão criança e ao mesmo tempo já tão mulher’, que lhe escrevia cartas com um pouco de seu cabelo (Tempo morto e outros tempos).
Outros vieram para visitar as exposições de Antuérpia em 1930
e de Bruxelas em 1935, como o pintor Décio Villares, do qual o
Museu de Belas Artes de Antuérpia conserva uma tela. Foi no
ateliê do escultor Oscar Jespers que Maria Martins aprendeu, por
volta de 1938, a trabalhar em bronze. A segunda invasão alemã em
maio de 1940 provocou um novo êxodo dos brasileiros.
42
presenças brasileiras na bélgica
Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas
em Onze-Lieve-Vrouw-Waver
Mario Baeck
F
undado em 1841, o Instituto das Ursulinas em Onze-Lieve-Vrouw-Waver se impôs em poucos decênios como uma instituição de fama internacional (Baeck, 2011). No final do século
XIX oferecia fácil acesso pelo porto de Antuérpia e pela estrada de
ferro até a cidade vizinha de Malines.
Suas belas construções em diversos estilos históricos formavam um amálgama esplêndido bem ao gosto da alta burguesia.
Prestavam muita importância à higiene e às técnicas modernas
como calefação central, água corrente e iluminação elétrica. A
propriedade rural de dez hectares dispunha de um parque de
passeio de estilo inglês, de um bosque com vistosas estruturas de
cimento rústico, entre as quais uma sala de piquenique e uma
gruta de Lourdes, e vastos campos lavrados a partir de sua própria granja modelo.
A sua maior atração consistia na sua oferta de um ensino de
qualidade e progressista, não somente nas matérias de humanidades e nas formações de professoras, como também de economia
doméstica e de ensino agrícola e hortícola. Graças às suas múltiplas inovações pedagógicas, inspiradas num feminismo moderado,
tinha o instituto excelente reputação junto à burguesia afortunada e de cunho cosmopolita, bem além das fronteiras da Bélgica.
Por volta de 1900 quase uma quarta parte das alunas vinha do
exterior. As irmãs recrutavam não somente nos países vizinhos,
como também na Rússia, Áustria-Hungria, Itália, Espanha e até
na África, Austrália, nos Estados Unidos e na América Latina, com
numerosas moças do Panamá e da Colômbia e ainda da Nicarágua, Argentina e do Brasil.
Por causa de diversas circunstâncias, como as destruições durante a Primeira Guerra Mundial, as listas das matrículas conservadas são fragmentárias. Nos palmarés (listas) dos anos de 1920-1930
figuram como alunas brasileiras Flora e Gina d’Oliveira Castro,
Juliette e Lucy Braz Pereira Gomes e Jandyra Gomes de Mendonça, todas de Brazópolis, cidade do Estado de Minas Gerais.
Foi provavelmente este o pensionato belga onde o jornalista José
Eduardo de Macedo Soares, exilado na França por volta de 1923,
colocou suas duas filhas. Uma delas, Maria Carlota [ou Lota] de
Macedo Soares parece ter inventado uma marchinha de samba
quando, numa festa, todas as moças deviam cantar o hino nacional (Oliveira). Ela se tornou mais tarde, no começo dos anos de
1960, a paisagista executiva do parque no Aterro do Flamengo.
Sua sensibilidade particular aos encantos da natureza talvez tenha
se despertado e crescido no ambiente floral do pensionato.
Para oferecer às centenas de internas estrangeiras e a seus parentes de visita uma condigna sala de recepção e de encontro, as
Ursulinas enriqueceram o pensionato em 1900 com um magnífico jardim de inverno de estilo art nouveau, com vitrais numa
construção metálica. É uma realização artística única de prestígio
mundial, ainda mais como uma rara e grandiosa construção art
nouveau em zona rural e num contexto católico (Baeck, 1993).
Pela cúpula de vidro entram raios dourados que criam uma atmosfera primaveril mesmo em dias escuros. O vitral multicolorido da
cúpula desenha a Manhã, o Dia e a Noite. A flora se faz também
proeminente na decoração. Além disso, a natureza ao vivo também está presente no jardim de inverno com palmeiras exóticas,
samambaias, plantas e flores. Nisto as irmãs aderiram a um tipo de
natureza civilizada e estilizada, cultivada pelo homem, inerente
aos seus conceitos pedagógicos.
O caráter único do complexo se encontra ainda nos interiores
primorosamente ecléticos e bem conservados. A sua decoração
carrega um significado fortemente simbólico como também serve
às finalidades estéticas e sempre didáticas. Assim, o conjunto dos
Vista do interior da estufa art nouveau do Instituto das Ursulinas.
43
parte 1 – travessias e migrações
Instituto das Religiosas Ursulinas em Wavre Notre-Dame, fundado em 1841.
edifícios vale sem dúvida como um dos exemplos mais marcantes
do pensionato belga do período 1840-1960 e pode ter inspirado
nesta procura de classe os seus congêneres estabelecidos por congregações belgas no Brasil, como o Des Oiseaux em São Paulo ou
as Damas em Recife.
Mario Baeck é licenciado em Filologia Germânica pela Universidade
de Gand, prepara um doutorado em História da Arte, publicou sobre
literatura flamenga e neerlandesa, história da arte, conservação do
patrimônio e particularmente sobre o Jardim de Inverno do Instituto
das Ursulinas, do qual é secretário.
Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège (1870-1914)
C h r i s t i n e Fe l l i n
A
chegada de estudantes brasileiros na Universidade de Liège
ocorreu mais tarde do que nas outras universidades belgas
com os primeiros quatro inscritos em 1863-1864 (Fellin; Stols,
1875). Esse número estagnou neste patamar por muito tempo.
Aliás, ao passo que os estudantes dos outros países da América
Latina se tornaram cada vez mais numerosos, se produziu desde 1887 em todas as universidades belgas uma diminuição nítida das inscrições brasileiras. Em comparação com os 15 anos
anteriores, esta forte queda se relacionava não somente com as
dificuldades políticas do fim do Império e dos primeiros passos
da República, mas também com a crise do café e a situação financeira instável do País.
Quando a situação interna do Brasil melhorou e a industrialização do País deslanchou de verdade nos anos de 1900, o número
de estudantes brasileiros aumentou novamente. Neste momento
a tendência se inverteu: não eram mais a Universidade Livre de
Bruxelas e a Universidade de Gand as mais procuradas, mas a
Universidade de Liège, e principalmente seu Instituto Montefiore.
44
presenças brasileiras na bélgica
Alunos trabalhando no Instituto Montefiore.
O Instituto Montefiore da Universidade de Liège.
Este predomínio de Liège durou até a Primeira Guerra Mundial e pelo menos 132 brasileiros frequentaram os bancos da Universidade de Liège, ou seja três vezes mais do que o segundo país
latino-americano, a Argentina, com 39 inscritos entre 1870 e 1914.
Entre estes 132 estudantes brasileiros, originários essencialmente das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, 109 optaram
por estudos técnicos, 66 pelas Escolas especiais ou, em seguida,
a Faculdade Técnica em 1893, e 43 para o Instituto Montefiore,
sete pelos estudos de Medicina, quatro pelas Ciências Políticas
e Administrativas, dois pela Licenciatura Comercial, dois pelas
­Ciências Notariais, um por Química e um por Direito. Somente
24 obtiveram diploma.
Como explicar o interesse marcante dos brasileiros para os estudos universitários em Liège? Já antes a cidade gozava no Brasil
de boa reputação por causa de sua metalurgia e particularmente
de suas armas. Comissões militares brasileiras vinham visitar os
ateliês e faziam boas encomendas. Em agosto de 1871 o próprio
Imperador Pedro II visitou Seraing com o industrial Georges Montefiore-Levi, almoçou na casa do sucessor de Cockerill, Sadoine,
e recebeu revólveres de presente (Condessa do Barral, 736-379).
Mais interessado nos métodos de ensino, se informou sobre a Universidade de Liège e entrou em contato com os professores Eugène Catalan e Edouard Van Beneden, respectivamente titulares
de Matemáticas e de Biologia e Zoologia.
No ano seguinte Van Beneden liderou uma expedição científica ao Rio de Janeiro, onde descobriu um tipo de boto, e visitou
Pedro II. Numa outra passagem por Liège, em 1876 ou 1877, o Imperador se reencontrou com o zoólogo. Foi por sua apresentação
que o Imperador se tornou em 22 de dezembro de 1885 membro
correspondente da Société des Sciences de Liège.
O que entretanto diferenciou a Universidade de Liège das
outras instituições do país foi seu ‘Institut Montefiore’ (Legros e
Pirotte; Tomsin). Fundado em outubro de 1883 por Montefiore-Levi, senador de Liège, foi a primeira escola eletrotécnica de
nível universitário no mundo a coordenar todas as aplicações da
eletricidade num único programa e a formar engenheiros eletricistas numa sequência de estudos teóricos e práticos. Por situar-se na
ponta do desenvolvimento da eletrotécnica, o Instituto Montefiore
ganhou rapidamente reputação nos quatro cantos do mundo e os
estudantes estrangeiros se apresentaram cada ano mais numerosos.
Assim, apenas dois anos depois de sua abertura, um estudante brasileiro, Colin Freitas Broad, se inscreveu e mais 42 outros
brasileiros o seguiram até a Primeira Guerra Mundial. Entre estes
alunos brasileiros da Universidade de Liège, e particularmente
do Instituto Montefiore, alguns fizeram uma bela carreira. Foi o
caso de Edgard de Souza (nascido em 12.3.1876, Campinas), enviado com 16 anos à Bélgica para seguir uma formação técnica,
diplomado como engenheiro de Minas com distinção em 1898
e como engenheiro Eletricista com satisfação no ano seguinte.
De volta ao Brasil, tornou-se engenheiro Eletricista-chefe e depois, a partir de 1914, vice-presidente da The São Paulo Tramway,
Light and Power, e ainda diretor da Companhia Telefônica do
Estado de São Paulo. Mas, Edgard de Souza é sobretudo conhecido como o fundador e primeiro professor da seção de Eletrotécnica na Escola Politécnica de São Paulo. Seu irmão, Durval
de Souza, também estudou Engenharia em Liège, mas levou
quase dez anos para obter, em 1902, seu diploma de engenheiro
Eletricista pelo Instituto Montefiore e exerceu sua profissão na
cidade de São Paulo.
Vale seguir outras carreiras: Herculano de Almeida Correa,
45
parte 1 – travessias e migrações
formado engenheiro de Artes e Manufaturas em 1897 e engenheiro Eletricista em 1899, diretor da Companhia Melhoramentos de
São Paulo; Colin Freitas Broad, engenheiro Eletricista em 1890,
atuou na Compagnie Internationale d’Electricité em Liège (1891),
em Santos (1892-1893), na Companhia Mogyana de Estradas de
Ferro (1894-1895), na Comissão de Estudos da Estrada de Ferro
Catalão-Cuiabá (1896-1900), em São Paulo (1901-1902) e, por
fim, no London and Brazilian Bank no Rio de Janeiro (19051908); Carlos de Figueiredo, engenheiro Eletricista em 1900, foi
professor no Rio de Janeiro; J. N. de Lemos Basto, engenheiro
Eletricista em 1890, atuou como diretor dos Correios e Telégrafos
do Brasil no Rio de Janeiro; Edouardo de Aguiar d’Andrade, engenheiro Eletricista em 1894, serviu, depois de três anos na General
Electric Company em Nova York (1895-1898), como engenheiro
na São Paulo Railway Company e diretor da Companhia Telefônica, da Companhia Melhoramentos e da Empresa Luz e Força
de Jundiahy. Alguns estudantes do Instituto Montefiore receberam
bolsas da Marinha brasileira, sem dúvida com relação à sua compra de navios de guerra mais modernos.
Foi portanto nas companhias de estradas de ferro e de eletricidade, no serviço público e no ensino superior que quase todos se
beneficiaram com a formação recebida no Instituto Montefiore.
Este contribuiu de maneira modesta, mas evidente, ao desenvolvimento e à modernização do Brasil.
Christine Fellin obteve a licenciatura em História na Universidade
de Liège com uma monografia sobre “Os estudantes latinoamericanos na Universidade de Liège antes da Primeira Guerra Mundial”.
Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta
Susana Rossberg
E
m 1964, quando ocorreu no Brasil um golpe de Estado e o
estabelecimento da ditadura militar que duraria 21 anos, eu
estava nos Estados Unidos, pois tinha me tornado órfã aos 15 anos
e fora enviada para viver com minha tia americana. Mas não gostava dos Estados Unidos e, em 1965, antes de completar 20 anos,
voltei para o Brasil. Comecei a cursar Psicologia na Universidade
de São Paulo (USP) e iniciei estudos de Crítica Teatral na Escola
de Arte Dramática (EAD), precursora da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Passei a viver com um colega da Escola de
Arte Dramática. Um dia, em 1967, participamos de uma passeata
contra a ditadura, e a nossa foto, na primeira fila da passeata, foi
publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
Sabíamos que as fotos feitas durante passeatas eram utilizadas
pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para identificar as pessoas que se opunham à ditadura. Compreendemos,
assim, que deveríamos sair do País.
Meu companheiro, Luis Otavio Barata, então cenógrafo de
teatro, havia encontrado, na Bienal de São Paulo, um cenógrafo
tcheco famoso, Josef Svoboda, e lhe propusera aperfeiçoar seus
estudos com ele. Svoboda respondeu: ‘Venha’, de maneira que
o lugar lógico para irmos, quando saíssemos do Brasil, era a então Tchecoslováquia. Esperávamos sermos acolhidos de braços
abertos. No entanto, quando chegamos, nos sinalizaram que deveríamos aprender o tcheco durante dois anos e que as escolas de
tcheco estavam lotadas, devido ao esforço de guerra, para ajudar
o Vietnã do Norte. As escolas estavam cheias de vietnamitas e nos
aconselharam a fazer o pedido de admissão em março do ano seguinte, isto é, 1968.
Nos lembramos, então, de uma conferência que Heleny Guariba tinha dado na EAD. Ela tinha falado de seu estágio com o
diretor francês de teatro Roger Planchon e de um outro estagiá-
rio, belga, diplomado em uma boa escola de teatro em Bruxelas,
o Insas (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle). Foi
assim que resolvemos ir para Bruxelas. Chegamos na véspera do
vestibular e, não sei por que milagre, fomos ambos aceitos. O nosso
francês, sobretudo o meu, não era extraordinário.
Após um ano no Insas, Luis Otavio, hoje falecido, voltou
para Belém do Pará, de onde era oriundo, e onde se tornou um
profissional de teatro conhecido. Eu, tendo descoberto a edição de
cinema, pedi transferência para a seção de continuidade e edição
de filmes do Insas.
Naquela época, o Consulado do Brasil ficava em Antuérpia. Eu
viajava para lá unicamente para renovar o passaporte e não colocava jamais os pés na embaixada. Os dois funcionários na Antuérpia,
um deles Silvio Moreira, que continua na embaixada, eram simpáticos, mas, como todos os brasileiros na Bélgica, eu morria de
medo de aparecer por lá. Aliás, conhecia pouquíssimos brasileiros
aqui. Era muito paranoica, morria de medo dos delatores da ditadura. Por isso, não voltei ao Brasil até o fim da ditadura e a Anistia.
Bruxelas mudou muito desde 1967. Na época, parecia um vilarejo de província. A mentalidade era bastante racista. Até eu aprender o francês corretamente, era um pouco maltratada ou ignorada
nas lojas. Tínhamos problemas para alugar um apartamento – em
todo lugar estava anotado ‘étrangers s’abstenir’, isto é, ‘estrangeiros,
abstenham-se’. O fato de Bruxelas tornar-se a capital da Europa,
assim como a chegada de milhares de estrangeiros, modificou a
mentalidade e aumentou a diversidade cultural da cidade.
Tive muita sorte na vida profissional. Minha mãe me falava
sempre da importância de um trabalho bem feito. Dediquei-me
ao trabalho o quanto pude, chegando a negligenciar um pouco
a minha vida privada. Graças ao conhecimento da língua alemã
(meus pais tinham emigrado da Alemanha para o Brasil), aprendi
46
presenças brasileiras na bélgica
o flamengo com certa facilidade. Atuei, em francês e flamengo,
como continuista, editora, assistente de direção e diretora de filmes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como
Benoit Lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco
Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu ofício também em
outros países europeus e fui responsável pela continuidade de
dois filmes nos Estados Unidos.
Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro
(não Dama) da Ordem de Leopoldo II, por minha contribuição
ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais
realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documentário Brasileiros como eu.
Susana Rossberg foi, igualmente, professora em duas escolas de cinema belgas, tendo, assim, a oportunidade e o prazer de contribuir ao
desenvolvimento de novas gerações de cineastas.
Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70
Pa u l D u l i e u
Os jovens que haviam deixado o Brasil dos generais temiam
ser perseguidos. Eram muito desconfiados, a tal ponto que alguns
os julgavam paranoicos. Um tipo bigodudo poderia ser um espião,
e postiço seu bigode! Às vezes o rumor se espalhava. Pois não se
falava em sequestrar Fleury, um policial torturador, que diziam
ir à França para colher informações? Mas esses receios e projetos
fantasiosos logo se dissipavam ao ritmo do carnaval no Stuc, Van
Evenstraat; os passos endiabrados do samba espalhavam no inverno flamengo o calor vibrante dos Trópicos. Mas, deve-se confessar,
experimentava-se às vezes um fundo de amargura, uma espécie
de alegria melancólica. Seria o que nossos amigos do Brasil chamam de saudade?
Os estudantes que não seguiam o rastro de Marx deixavam-se
apanhar por Freud, ou por Marcuse ou Lacan. Os brasileiros degustavam as teorias psicanalíticas. Walter Evangelista, estudante
de Filosofia, alardeava o evangelho segundo Sigmund; o tipo que
não se deitava no divã era lastimável; recusava a aventura interior;
tinha medo de embarcar no conhecimento do seu Eu profundo.
Antonio Marques (chamavam-no Antonio das Mortes por causa do filme de Glauber Rocha sobre os cangaceiros) ficou dez anos
na Bélgica; durante essa longa permanência – e era preciso driblar
incríveis dificuldades – apaixonou-se por antiguidades e obras de
arte. Depois de escrever uma tese sobre a literatura de cordel, tornou-se no Brasil especialista reconhecido em cultura popular e
hoje possui em seu Solar das Artes, em Natal, vasta coleção de telas, esculturas, marionetes, comprovando a brilhante imaginação
dos artistas brasileiros.
Alto, magro, óculos de intelectual, sorriso irônico no canto da
boca. Osmar Ramos Filho era inigualável na interpretação dos
sonhos da noite. Parecia ter a chave de todos os enigmas. Atraído
pelo esoterismo, tornou-se, por paixão, um conhecedor único da
obra de Balzac. No Brasil, pretendeu ter descoberto um romance
psicografado: Waldo Vieira, escritor brasileiro, teria sido tomado
pelo espírito do grande romancista francês para escrever sob seu
ditado Cristo espera por ti. A fim de provar esse fenômeno espírita,
Osmar conduziu com persistência infatigável pesquisas de estilística e de lexicografia comparando o romance de Waldo Vieira com
“Il belge”, dizia Miranda quando o céu se mostrava chuvoso
N
os anos 70, na Universidade de Lovaina, aconteceu-me encontrar inúmeros brasileiros. Era o tempo da ditadura militar, dissidentes de várias correntes chegavam à Bélgica. Em
Bruxelas, Yolanda Bettencourt, que trabalhava na Entraide et
Fraternité, era a mãe universal dos exilados. O brasileiro que
desembarcava, se nada conhecia do país, tinha pelo menos no
fundo do bolso uma papeleta com o endereço de Yolanda, e
procurava, no emaranhado urbano de Anderlecht, a Rua Docteur Huet. Bate à porta. Longas explicações são desnecessárias.
Providencia-se um pouso e alguns expedientes para sobreviver.
Dom Hélder Câmara que declarava: ‘Quando dou pão a um pobre, dizem que sou um santo. Quando pergunto por que ele é
pobre, dizem que sou comunista’, hospedou-se mais de uma vez
em sua casa. O marido de Yolanda, Luc Thomé, pito no canto
da boca à moda de Jacques Prévert, mostrava boa acolhida – às
vezes resmungando um pouco – a todos os que, como se diz no
Brasil, ‘não tinham onde cair morto’.
Em Lovaina, havia um cabaret de estudantes com a placa
l’Œil Nu (Olho nu). À noite, ouvia-se música brasileira. O guitarrista Marcelo de Mello, que fundou o Quinteto Violado, tocava
ali música erudita e popular. Revejo Geraldo Vandré arranhando
sua guitarra. Cantava “somos todos iguais braços dados ou não”,
uma canção que não havia tido a sorte de agradar aos generais,
e o pobre trovador, devido a certas estrofes impertinentes, vira-se
forçado a exilar-se num país chuvoso.
A época era efervescente. O grande caldeirão da universidade
fumegava ainda do fogo de 68. Contra o ministro Vrancks, que
queria, por meio de medidas julgadas iníquas, limitar o acesso de
estrangeiros à universidade, os estudantes fizeram greve de fome
em dezembro de 1971. No Œil Nu, um ateliê de serigrafia imprimia cartazes onde se lia: Non au décret; Les frontières on s’en
fout; Nous sommes tous des étrangers. Tais cartazes eram um apelo à manifestação. Havia uma fraternidade na recusa à injustiça
internacional, e era preciso lutar contra a palmatória dos regimes
militares em que se apoiava o capitalismo.
47
parte 1 – travessias e migrações
Ilustração de Géraldine Servais denominada “Aparecida Ventre Livre”.
Mas esse velho enclave português acabava de ser recuperado pela Índia. Aceitar um passaporte que Portugal lhe propunha? Seria
correr o risco de se ver envolvido na guerra colonial de Moçambique. Apegado à sua língua, José Miranda escolheu partir para
ensinar no Brasil. Foi, pois, passando pela universidade de Lovaina que um goense encontrou brasileiros que o determinaram a
atravessar o Atlântico.
Esses exemplos que pinço na paisagem movimentada dos anos
70 falam do papel prioritário que a Bélgica desempenhou no destino de certos jovens em relação ao Brasil. A partir de 1984 os
intelectuais e os artistas exilados retornaram ao seu país e hoje
são substituídos por emigrados sem formação particular, vindos
principalmente de Goiás, e que esperam melhorar sua situação
econômica instalando-se em Bruxelas.
Cartaz de 1971 conclamando a uma manifestação em Lovaina com os dizeres
“Nós somos todos estrangeiros”.
os escritos de Balzac. Consequentemente a esse trabalho minucioso, Osmar redigiu uma obra notável que tem por título O avesso
de um Balzac contemporâneo.
Vindo de Ferreiras, uma cidadezinha que por gracejo ele chama de centro do mundo, José Maria Tavares de Andrade reunia
uma quantidade de dados sobre a religiosidade popular do Nordeste e sobre a farmacopeia tradicional. Após completar sua formação de sociólogo junto com Bastide e Edgar Morin em Paris,
tornou-se um brilhante especialista do fenômeno religioso e do
que chama de ‘etnomedicina’.
Rachel da Costa Cunha permaneceu na Bélgica após ter recebido sua licenciatura em Filosofia. Participara, antes de seus
estudos, do Rio Ballet Guanabara e apresentou-se no Tea­tro Municipal do Rio. Após seus estudos fundou, em Wavre, o Centro
de Balé Mimésis, que acolheu por mais de 30 anos centenas de
alunos.
José Miranda falava português, mas não vinha nem do Brasil
nem de Portugal. Era originário de Goa. Em Lovaina, estudava
Sociologia. Que faria no final de seus estudos? Retornar a Goa?
Segurando a mão de Aparecida
Depois de ter-me casado com uma carioca, mergulhei na
história desse país gigantesco, tão diferente da pequena Bélgica pelo tamanho e pelo céu. Devo minha primeira leitura em
língua portuguesa à minha sogra, que ofereceu-me o livro fundador da identidade brasileira, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre.
Em 1999, a Comunidade francesa da Bélgica propunha para
seu concurso anual de novelas o tema do nascimento. Voltou-me
à memória que o Brasil procedeu por etapas para chegar à abolição total da escravidão em 1888. Uma dessas etapas foi a Lei
do Ventre Livre. Lembrei-me da imagem de uma jovem mulher
48
presenças brasileiras na bélgica
negra. Chama-se Aparecida. Fiz dela a heroína de uma história
que se passa em um engenho. Aparecida é uma escrava, mas pela
Lei de 1871 o filho que espera já é livre. Jamais conhecerá, como
seus pais, o trabalho servil. No tenso contexto social e político da
época, Aparecida Ventre Livre ilustra o nascimento em um plano
duplo: nascimento de um filho chamado Solto, mas esse Solto representa, sobretudo, um nascimento para a liberdade. Aparecida
Ventre Livre recebeu o primeiro prêmio da novela e foi publicado
em La Libre Belgique antes de ser traduzido para o português em
um jornal de Curitiba.
Para um belga que atravessa seu país de ponta a ponta em algumas horas, é presunçoso falar do imenso Brasil. Colocando-me
a pergunta: ‘Como se pode ser brasileiro?’, tentei respondê-la por
meio de um subterfúgio narrativo. Fico em Copacabana e faço
uma espécie de caderno de rascunhos. Em meu carnê de notas,
anoto as coisas vistas, evocações históricas, faço comparações entre essa terra nova e o que Jean de Léry chamava les pays d’en
deçà. Resulta um livro que tem por título Carta de Copacabana
a Christophe que ficou em Courtelande; Courtelande sendo, na
ocorrência, meu país de origem, a Bélgica. Essa carta sublinha
muitas vezes de modo um tanto irônico o que nos une e nos separa, em toda fraternidade.
Quando o céu se mostra baixo e qu’il belge, como dizia Miranda, lembro-me de Aparecida, pego a mão dessa mãe-coragem
que soube, em meio ao pior dos abandonos, dar vida à Liberdade.
(Tradução Virginia Gomes Ribeiro)
Paul G. Dulieu é diplomado em Sociologia e Linguística, trabalhou
para a Universidade Católica de Lovaina, para o Instituto de Artes
de Difusão e para o Fundo das Nações Unidas para a População antes de exercer atividade de jornalista. Tem sólidos laços com o Brasil
e escreveu canções, peças de teatro e novelas, estas últimas editadas
por revistas belgas e brasileiras. Sua novela Aparecida Ventre Livre
recebeu o Grand Prix de la Libre Belgique em 1999.
A inserção dos trabalhadores brasileiros
migrantes no mercado de trabalho belga
Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo
O
Brasil, tradicionalmente um país de emigração, combina
atualmente essa tendência migratória com uma imigração
significativa, formando fluxos migratórios complexos (Padilla &
Póvoa Neto, 2012). Este artigo descreve e discute as características
do último momento migratório brasileiro. Está organizado para
enfocar as migrações brasileiras e as oportunidades no mercado
de trabalho na Bélgica.
De fato, o Brasil foi uma terra de destino para os europeus até
o início da ditadura civil-militar, nos anos 1960. Todavia, a partir
de 1964, intelectuais e sindicalistas expulsos pelo regime ditatorial foram em grande parte à Europa. Eram, em geral, pessoas
altamente qualificadas, que se inseriram facilmente no mercado
de trabalho europeu (Padilla et Peixoto, 2007). Uma parte dessa
leva migrante retornou ao Brasil com a Lei de Anistia em 1979,
trazendo consigo uma imagem positiva dos países de acolhimento,
inclusive da Bélgica, como nações receptivas e com um mercado
de trabalho atrativo.
No final dos anos 1970, teve início uma imigração econômica de profissionais altamente qualificados. Esse movimento
cresceu no início dos anos 1980 com a crise brasileira motivada,
principalmente, pela dívida externa e a estagnação do projeto de
desenvolvimento industrial, que havia sido, desde os anos 1930,
a base do crescimento econômico brasileiro (Pochmann, 2009).
A balança migratória se invertia, progressivamente, e o Brasil se
tornava, nessa segunda vaga migratória, um país de imigração
(Assis, 1999).
Padilla (2007) aponta que a chegada do século XXI trouxe uma
massificação e uma ‘proletarização’ das migrações brasileiras rumo à Europa. Isto é, essa terceira vaga migratória é caracterizada
por pessoas pertencentes à classe média baixa, cuja inserção no
mercado de trabalho se dá principalmente em setores menos qualificados e, consequentemente, menos valorizados. Os principais
países receptores dessa migração são Estados Unidos e Inglaterra.
Os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos e ao metrô de
Londres, e a consequente restrição do controle migratório, como
revelam Padilla e Peixoto (2007), contribuíram para o desvio dessas
migrações principalmente para países como a Bélgica.
Migrações brasileiras e oportunidades de trabalho
O fluxo expressivo de migrantes de classe média baixa é favorecido na Europa por uma estrutura de oportunidade específica:
a possibilidade de entrar no espaço Schengen como turista, sem
necessidade de pedido de visto de entrada no país. O Acordo de
Schengen é uma convenção entre países europeus (União Europeia exceto Irlanda e Reino Unido, mais Islândia, Noruega e
Suíça) sobre a circulação de pessoas entre os países signatários e
uma fronteira comum. Brasileiros entram sem visto, mas devem
responder a uma série de condições, como provar a estadia e recursos suficientes para o período da viagem.
A autorização funciona como porta de entrada, mas não dá
acesso ao mercado de trabalho. Há, no entanto, uma relevante
49
parte 1 – travessias e migrações
demanda por mão de obra de baixo custo para os chamados 3-D
jobs (Dirty, Demanding and Dangerous) (Castles, 2002). Assim,
as oportunidades de trabalho no mercado informal, ou ‘negro’,
são muitas, sobretudo em setores pouco regulados pelo controle
governamental: agricultura, restauração, construção e limpeza.
Nessa direção, Rosenfeld et al. (2009) salientam que a migração brasileira tem uma dimensão transnacional por sua mobilidade entre países europeus e, muitas vezes, também entre Brasil
e Europa. Para esses pesquisadores, essa mobilidade geográfica
está a serviço de um projeto migratório que, na maioria dos casos,
é de uma curta estadia na Europa, o suficiente para economizar
dinheiro e retornar ao Brasil. O percurso migratório na Europa
se revela, assim, um jogo estratégico entre oportunidades econômicas e migratórias.
Num continuum migratório, de um lado extremo está o Reino
Unido, cuja diferença salarial com o Brasil é das mais relevantes,
mas cujas leis migratórias são extremamente severas. No outro
extremo desse continuum está Portugal, que oferece uma série de
vantagens em termos migratórios, principalmente a facilidade da
língua e da organização de frequentes campanhas de regularização, mas com um mercado de trabalho em crise. Entre os extremos, a Bélgica parece ocupar uma posição intermediária, por sua
proximidade de Paris – porta de entrada privilegiada dos turistas
brasileiros – e a relativa facilidade de integração no mercado de
trabalho informal local.
ou legal. Esse setor pouco regulado da economia nacional atrai,
assim, principalmente trabalhadores migrantes, como brasileiros
que entraram como turistas e se encontram em situação irregular
de estadia, sem acesso legal ao mercado de trabalho. Eles entram
no setor da construção – com ou sem experiência – e principalmente no subsetor das finalizações: pintura, forro e, sobretudo,
como colocadores de placas de gesso (gyproc) para o forro. A especialização no subsetor de forro com placas de gyproc apresenta
duas vantagens. Em primeiro lugar, é uma tarefa bem definida,
que pode facilmente ser terceirizada pela empresa responsável
pela obra. Em segundo lugar, é uma atividade indoor, isto é, realizada no interior da obra e por isso menos visível – mais segura
–, ideal para um trabalhador em situação irregular.
No setor de construção, há uma complexa rede de relações
que se estabelece entre grandes empresas e pequenas ou micro
empresas terceirizadas. Com frequência, há um mestre de obras
português, um ‘patrão’ brasileiro, que não é senão o encarregado
pela obtenção e controle da mão de obra e, enfim, o trabalhador brasileiro. Nessas articulações, não é raro que o intermediário
guarde a metade do salário, e o trabalhador que o realizou recebe,
apenas, entre dez a cinco euros a hora trabalhada, dependendo se
o trabalho é especializado ou não.
O setor do care : limpeza e cuidado
O chamado global care chain, ou redes globais de cuidado
(Hochschild, 2000), contribuem para o aumento da demanda por
serviços no setor do care (cuidado). Na Bélgica, a demanda se
traduz em oportunidades de trabalho na limpeza e no cuidado
de crianças e de pessoas idosas em domicílio. É comum que as
trabalhadoras brasileiras se insiram nesse setor, começando por
um trabalho de serviço doméstico que exige que a trabalhadora
durma no emprego, o que lhes permite economizar uma parte do
salário, acelerar o aprendizado da língua e minimizar os riscos de
fiscalização nas idas e vindas de/para o trabalho. No entanto, a situação exige forte implicação emocional, pela proximidade com
o empregador, o isolamento e a falta de controle sobre o tempo
trabalhado, uma vez que a linha entre o trabalho e o repouso é
por vezes mal definida.
Embora essa modalidade de trabalho seja preferida por algumas brasileiras recém-chegadas, a maioria procura uma posição
como trabalhadora doméstica em uma família sem exigência de
dormir no emprego, ou como faxineira, em que trabalham por
hora. Essa modalidade de trabalhar por hora oferece mais maleabilidade na gestão dos horários, necessária quando crianças
acompanham o projeto migratório, mas implica, também, uma
constante busca de um número suficiente de empregadores para
completar a grade horária semanal, o que pode ser um motivo
de estresse.
Além da limpeza em domicílio, outras oportunidades de trabalho para os brasileiros com ou sem estadia regular são oferecidas por empresas de limpeza profissional. O setor é, todavia, bem
distinto do mencionado acima, sendo fisicamente mais pesado e
Nichos étnicos e mercado de trabalho belga
A repartição de trabalhadores brasileiros entre setores pouco
regulados da economia belga é marcada: 72% dos homens estão
empregados no setor da construção, enquanto 68% das mulheres
trabalham no setor da limpeza (OIM, 2009). A grande concentração de brasileiros nesses dois setores revela a existência de nichos étnicos (Waldinger, 1994) que estruturam esses empregos.
Embora somente 15% dos brasileiros trabalhassem nesses setores
antes de sair do Brasil, a diferença salarial é um importante ponto
de decisão. Isto é, apesar do desnível entre a profissão exercida no
Brasil e a atividade profissional na Europa, metade dos brasileiros
empregados nesses setores na Bélgica ganhavam menos de 300
euros por mês no Brasil (OIM, 2009).
A Bélgica oferece, assim, numa lógica de divisão de gênero
do mercado de trabalho, um nicho de emprego para as mulheres
brasileiras, no setor da limpeza, e, para os homens brasileiros, na
construção. É importante ressaltar que, antes de sua integração na
União Europeia, trabalhadores portugueses, e em seguida poloneses, ocuparam, por sua vez, esses mesmos setores, movimentando
o que Waldinger (1994) denomina ‘o jogo étnico da dança das cadeiras’ entre as nacionalidades (game of the ethnic musical chairs).
Os homens brasileiros na construção
O mercado belga da construção depende, de maneira estrutural, de uma mão de obra barata, flexível e sem proteção social
50
presenças brasileiras na bélgica
mais sujeito à fiscalização do trabalho. Essas características, somadas a horários de trabalho nem sempre fáceis (jornadas noturnas
e frequentemente irregulares), fazem com que ele seja ocupado,
em sua maioria, por homens. Em 2010, dois terços das infrações
constatadas pela fiscalização do trabalho na Bélgica nesse setor
envolviam brasileiros, com 575 casos (SIRS, 2011).
lhadores e trabalhadoras sejam semelhantes. Consequentemente,
o projeto migratório inicial, de poupar dinheiro a curto prazo, é
raramente concretizado no tempo previsto.
À medida que o retorno ao Brasil é adiado, a integração à
Bélgica se acentua. As vantagens sociais, em termos de acesso à
educação e à saúde, mesmo para migrantes em situação irregular
de estadia, contribuem para a evolução do projeto migratório no
sentido da perenização, sobretudo se há crianças. As possibilidades de regularização da estadia e de inserção legal no mercado
de trabalho, todavia, continuam raras, e a situação de irregularidade pode gerar relevantes tensões no seio da comunidade brasileira na Bélgica.
Conclusão
O século XXI trouxe ao Brasil um desenvolvimento econômico significativo que, como aponta Pochmann (2009), favoreceu
simultaneamente as classes socioeconômicas mais pobres e mais
ricas da sociedade, e na qual a classe média foi a menos beneficiada com a mobilidade social. O foco deste texto foi, especialmente,
a classe média inferior, que representa a maior parte do fluxo de
trabalhadores brasileiros vivendo hoje na Bélgica. Para essa população, a migração para o exterior é uma forma de desbloquear a
mobilidade social que eles não conseguem no Brasil, principalmente por falta de especialização profissional.
Na Bélgica, a migração é, com frequência, familiar e parece
se organizar de maneira complementar em cada casal, em nichos
étnicos específicos e marcados pelo gênero. Assim, as mulheres encontram principalmente trabalhos regulares e seguros, que permitem uma renda estável. Os homens, por sua vez, costumam trabalhar em setores mais expostos, mas cuja remuneração é mais alta.
A falta de regulação do mercado de trabalho, que atinge os dois
setores, entretanto, faz com que as dificuldades vividas pelos traba-
Beatriz Camargo é doutoranda em Sociologia na Universidade
Livre de Bruxelas (ULB) e pesquisadora no GERME (Group of Research on Ethnical Relations, Migration and Equality). Faz parte
da Associação de Migrantes Brasileiros Abraço (www.abraco-asbl.
be) e trabalha com temas de pesquisa sobre migração, trabalho e
gênero; sua tese de doutorado investiga a formalização do trabalho
doméstico em Bruxelas.
Martin Rosenfeld é doutor em Antropologia pela Universidade Livre
de Bruxelas (ULB) e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS (França). Atualmente é pesquisador no GERME. Seus
trabalhos estão apoiados na antropologia econômica e na sociologia
urbana e se concentram, principalmente, no fenômeno dos movimentos migratórios transnacionais.
A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história...
Isabel De Lannoy
P
odemos dizer que a Associação Arte N’Ativa, bastante dinâmica
atualmente na promoção da arte e da cultura popular brasileiras em Bruxelas, “brotou” das sementes nativas da flora brasileira
trazidas para a Bélgica por meio das bio-bijoux produzidas pelas
artesãs Flávia e Patrícia Duarte, ambas irmãs de Isabel Duarte De
Lannoy, coordenadora e presidente da Associação.
Com um histórico de militância e envolvimento com temas
sociais, ambientais e migratórios, Isabel criou em 2007 o Atelier
Arte Nativa Brasil com o objetivo de difundir na Europa o uso das
bio-bijoux fabricadas com materiais naturais, como sementes, madeira, coco, conchas etc., muito populares no Brasil.
A iniciativa foi, em princípio, uma tímida ação de fomento à
prática de consumo sustentável e promoção da economia popular
praticada majoritariamente por mulheres à margem do mercado
formal de trabalho: esta era a realidade das irmãs Duarte (Flávia
e Patrícia) entre outras artesãs do Estado da Paraíba, que foram
as primeiras protagonistas envolvidas no projeto que se pretendia
solidário e transformador.
Evento promovido pela associação Art N’Ativa.
51
parte 1 – travessias e migrações
Curso promovido pela associação Arte N’Ativa.
Com o passar do tempo, outras pessoas, sonhos e ideias se
juntaram à iniciativa. Nesse período, Isabel encontra Alessandra,
jovem empreendedora e com aguerrida motivação artística, ingredientes fundamentais para o avanço das ações. As duas buscaram
conhecer melhor o mundo associativo belga e se lançaram no desafio de criar algo mais amplo e mobilizador. Com a oficialização
da associação em 2011, juntaram-se a elas outros membros que
trouxeram boa dose de dinamismo à equipe, como Myriam Marques, animadora cultural, e Cleverson de Oliveira, artista plástico.
Nesse mesmo ano a associação foi selecionada para participar
do festival Europalia – tradicional bienal de artes, que acontece
há 30 anos em Bruxelas e outros países da Europa, cuja edição
2011-12 teve o Brasil como tema. Coube à Associação a responsabilidade de propor, organizar e gerir os eventos culturais do
Club Brasil, café musical e ponto de encontro do evento.
A realização de cerca de 50 manifestações artísticas com artistas brasileiros residentes na Europa (música, dança, artesana-
to, festa popular), no Club Brasil, trouxe à equipe Arte N’Ativa a
maturidade para se estabelecer como uma importante associação
sem fins lucrativos (asbl) de promoção cultural na comunidade.
A partir disso...
Após o sucesso da Europalia, conquistamos outro espaço localizado no coração de Bruxelas, o Micro Marché, onde foi possível manter o projeto de difusão da arte e da cultura brasileiras,
com a realização de concertos, mostras, saraus poéticos, vernissages, exposições, workshops, ateliers de reciclagem etc.
Além dos eventos, a equipe investiu ainda no capital social,
realizando o primeiro encontro informativo com ênfase na adesão de novos membros a fim de fortalecer o trabalho associativo
e a inclusão de novas ideias e projetos. A iniciativa foi de grande
sucesso e resultou na adesão de vários atores sociais munidos de
bons projetos e interesse na participação ativa, como, por exemplo,
52
presenças brasileiras na bélgica
Camélia Prado, educadora da área de Saúde Pública, Thierry Van
Schuylenbergh, terapeuta bioenergético, Philippe Quevauviller,
professor/músico, Grazielle Furtado e Ricardo Ambrósio, bailarinos contemporâneos, Paola Depienne, educadora/coaching, José
Álvaro e Matheus Groove, músicos, Dudu e Christiane, voluntários, entre vários outros.
Atualmente, a organização conta com mais de 20 associados
e continua na promoção da arte e da cultura popular brasileiras,
realizando projetos como “Samba dos Amigos”, Via MPB, I Roda
de Choro de Bruxelas, Forrobodó, além da promoção de artistas
brasileiros que estão ou que estiveram apenas de passagem pela
Europa, como a cantora/compositora Déa Trancoso, o maestro
percussionista Caíto Marcondes e o músico pesquisador Alfredo
Belo DJ Tudo.
Assim, há mais de três anos atuando de forma ativa e gregária,
a Associação Arte N’Ativa – cuja “semente nativa” traz em seu
cerne os ideais de inclusão e participação – vem crescendo e se
desenvolvendo a cada dia, e funcionando como uma incubadora
de sonhos, que identifica e valoriza o potencial criativo da comunidade através de seus membros, que são profissionais de diversas
áreas e cujos sonhos, ideias e projetos são acolhidos, compartilhados e realizados.
A Associação aglutina experiências possibilitando aos artistas,
trabalhadores sociais e profissionais liberais novas oportunidades
de ações inter e multiculturais. A título de ilustração temos alguns
projetos concretos como a Ciranda de Palavras, Rede Eco-Mix e
“Pérolas do Mundo”, que têm como objetivo comum fortalecer o
senso de solidariedade e cooperação da comunidade, que expressa
seus valores e saberes, mantendo viva a identidade e diversidade
cultural brasileiras.
Concluindo, a Associação Arte N’Ativa está envolvida na luta
pela construção de uma cidadania criativa e planetária, tendo a
arte como instrumento de integração e transformação social.
Construção de redes e parcerias
É importante dizer que a Fundação Roi Baudouin (FRB) foi
uma parceira fundamental em nossa trajetória associativa, pois tivemos dois projetos aprovados pelo Edital da fundação “Migrantes: atores da solidariedade”. Outros parceiros são o IC Brussel
(Comitê Internacional de Bruxelas); Wervel (Grupo de Trabalho
por uma agricultura justa e sustentável); o Citizens Vorming Plus
(ONG que trabalha com fomação para uma cidadania intercultural em Bruxelas); o centro cultural Piano Fabriek; a associação
Terra Brasil, e a Associação Abraço.
Isabel Duarte De Lannoy é formada em Comunicação Social pela
Universidade Federal da Paraíba – UFPB e possui pós-graduação em
Cooperação ao Desenvolvimento pela Universidade Livre de Bruxelas – ULB; é fundadora e atual presidente da ASBL Arte N’Ativa.
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53
parte 1 – travessias e migrações
54
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
parte 2
Relações Oficiais
e Diplomáticas
55
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
56
A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas
Pa u l o R o b e r t o d e A l m e i d a
Preliminares
de Antuérpia (Onody, 1973, p. 281). Os contatos devem ter continuado, e se ampliado, durante a ocupação holandesa do Nordeste
brasileiro, com as interrupções e rupturas que se seguiram às guerras prolongadas e à reconquista final do território pelas forças da
metrópole portuguesa e dos residentes locais. A presença, nos dois
lados, de famílias judias e cristãs-novas dedicadas ao comércio e
às finanças deve ter assegurado a manutenção de vários tipos de
vínculos entre a economia exportadora do Brasil e os grandes núcleos de comércio controlados pelas companhias dos Países Baixos
na Europa setentrional: os portos sob sua “jurisdição” comercial
sempre foram grandes distribuidores do açúcar brasileiro e de outros produtos exportados pela colônia. A ascensão subsequente dos
interesses comerciais ingleses, no seguimento da derrota e da associação dos grandes comerciantes holandeses àqueles depois das
guerras mercantilistas travadas entre as duas maiores potências comerciais da Europa do norte, podem ter consolidado alguns desses
laços, a despeito da política exclusivista da metrópole portuguesa,
mesmo a partir dos crescentes vínculos de dependência lusitana
em relação à Inglaterra depois da Restauração (1640).
O
Reino da Bélgica ocupa, na história econômica do Brasil,
uma importância especial, provavelmente similar àquela
ocupada por Portugal na história mundial das navegações e dos
descobrimentos: dois pequenos países, de dimensões geograficamente reduzidas e dispondo de recursos econômicos e humanos
bastante limitados, mas que, no entanto, desempenharam, em
suas esferas respectivas, papéis significativos na abertura de novos horizontes econômicos e na exploração de novas atividades
humanas.
Portugal, um reino periférico, com uma sociedade ainda bastante atrasada, mas dotado de um Estado relativamente “moderno” para os padrões da baixa Idade Média, avançou decisivamente,
desde o início do século 15, na conquista de novos territórios, a
partir de seu posicionamento geográfico ímpar e apoiado numa
aliança entre seus mercadores e líderes políticos dotados de grande
élan empreendedor, embora também animados pela fé missionária típica do espírito das cruzadas.
A Bélgica, constituída como Estado independente vários séculos depois de Portugal, e oito anos depois do Império do Brasil,
desempenhou, no entanto, mesmo antes de sua autonomia política, mas sobretudo depois, um papel de destaque na primeira revolução industrial (a do carvão e do aço) e avançou, já no contexto
da segunda revolução industrial (a da química e da eletricidade),
para posições relevantes na industrialização e modernização da
infraestrutura do Brasil. De forma não surpreendente, portanto,
os vínculos diplomáticos entre os dois países se contam entre os
mais duradouros, estáveis e promissores nas suas histórias diplomáticas respectivas e nas suas relações bilaterais, de todos os tipos.
As relações Brasil-Bélgica no século 19
As relações oficiais, de governo a governo, começam logo
após o rápido reconhecimento pelo Brasil do novo Estado europeu, o que se deve tanto ao alinhamento do primeiro reinado à
política inglesa para o continente europeu quanto o desejo de
ampliar o reconhecimento diplomático do novo Império sul-americano no contexto europeu (Stols, 1999, p. 210). O Brasil manteve, quase sempre, diplomatas profissionais à frente da legação
em Bruxelas, sendo que já mantinha um cônsul de carreira desde
antes da independência belga. O reino também despachou representante ao Brasil assim que foi possível fazê-lo (1834), logrando-se, logo em seguida, a assinatura de um tratado de comércio
(Stols, 1999, p. 209-210).
Comércio à parte, muitos jovens brasileiros fizeram estudos
universitários em diversas instituições belgas, geralmente em medicina ou nas escolas politécnicas das universidades de Bruxelas e
O quadro histórico
São antigas as relações, geralmente comerciais, entre o território da Flândria e a maior colônia do Império português. Um
historiador informa que, já no século 16, o engenho de açúcar de
Erasmo, em Santos, tinha relações financeiras com a casa Schetz,
57
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
a ­Grã-Bretanha, no seguimento da chamada Questão Christie
(Stols, 1973, p. 259), o que certamente agregou ao capital de simpatia de que dispunha o pequeno reino entre os brasileiros em
geral, e entre os diplomatas em particular. Pedro II visitou várias
vezes a Bélgica, no curso de suas diversas viagens internacionais.
A partir de então, iniciativas belgas para efetuar negócios e empreender investimentos diretos no Brasil sempre foram acolhidas
com boa vontade, a exemplo de projetos em estradas de ferro, da
navegação do Paraguai e da exploração e transformação de recursos naturais no Mato Grosso (Garcia, 2009; Stols, 1987).
Menor sucesso, porém, tiveram as investidas e os projetos
colonialistas de Leopoldo II em direção do Brasil (Stols, 1987;
1999, p. 231), inclusive porque o Brasil não podia ser equiparado às terras incógnitas da Ásia ou da África, como os diplomatas
brasileiros não deixavam de recordar. Os empreendimentos claramente capitalistas crescem então em importância: um primeiro
investimento direto, na Société Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, é feito desde 1886 (Onody, 1973, p. 300), seguido de diversos
outros, sobretudo no setor ferroviário. Ocorre então uma vaga
de investimentos belgas no Brasil no final do século 19 e início
do 20, paralelamente a outros investimentos belgas efetuados na
Rússia, no Congo, no Egito, entre outros países: Stols identifica
pelo menos 57 companhias belgas autorizadas a operar no Brasil
entre 1876 e 1920, disseminadas por quase todo o território brasileiro (1973, p. 262-265).
Carro Imperial construído em 1886 na Bélgica para servir ao Imperador Pedro II.
Gand (Stols, 1999, p. 211). O Brasil, obviamente, vendia sobretudo café – não apenas para a Bélgica, mas a partir da Bélgica para
diversos outros clientes na Europa do norte – e adquiria do país
materiais diversos, entre eles equipamentos militares, como armas
de guerra, especialidade das fábricas de Liège.
O primeiro estudo sério das contas públicas brasileiras foi efetuado no início do segundo império pelo ministro belga no Rio
de Janeiro, o Conde Auguste Van der Straten Ponthoz, em três
grossos volumes: Le Budget du Brésil (1847). Pelo exame da distribuição de recursos entre as legações e os consulados do Brasil no
exterior se podia constatar a hierarquia diplomática estabelecida
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros: as despesas alocadas,
conjuntamente com as representações na Bélgica e na Holanda
ascendiam a 5,3 contos de réis, em paridade com os recursos atribuídos à representação em Montevidéu e pouco abaixo de Assunção, mas bem abaixo (num distante 15º lugar) dos montantes
alocados à primeira legação em importância, Londres, que recebia 16,4 contos no orçamento de 1846-47 (Ponthoz, 1847: 169).
À margem das observações críticas que o ministro belga fazia
sobre o orçamento brasileiro, o interesse maior – dos dois países,
aliás – estava concentrado no comércio e, do lado brasileiro, na
imigração belga para o Brasil, embora a permanência do tráfico,
primeiro, e da escravidão, durante quase todo o século 19, tenha
limitado bastante as possibilidades de cooperação nesse particular.
Mas a Bélgica podia servir de centro de recrutamento para agricultores da Alemanha e de outras regiões da Europa, da mesma
forma como os portos da Bélgica e da Holanda eram receptores
e distribuidores dos principais produtos brasileiros de exportação
nas mesmas regiões (Almeida, 2005).
Há também o registro positivo da arbitragem efetuada em 1863
pelo rei da Bélgica, Leopoldo I, em favor do Brasil, no caso do
conflito político e do rompimento de relações diplomáticas com
Os investimentos belgas no Brasil no início do
século 20
Os investimentos se diversificam no início do século 20, mas
o destaque cabe, sem qualquer hesitação, ao setor mineral e metalúrgico, ramo no qual a companhia Belgo-Mineira pode ser
considerada como a pioneira efetiva do início dessa indústria no
Brasil (Stols, 2013). A indústria leve de transformação – têxtil,
vidro, confecções, marcenaria, papelaria e impressão – e os serviços comerciais e financeiros também concentram a atenção dos
investidores belgas, que chegam a representar parte substancial
dos investimentos diretos estrangeiros no Brasil nesse período
(embora com presença mais modesta na vertente dos empréstimos puramente financeiros, a despeito mesmo da participação
de bancos belgas em algumas operações de valorização do café,
conduzidas nessa época).
Deve-se considerar, também, que muitos interesses belgas estavam representados por, ou associados a, capitais e companhias
inglesas, francesas ou holandesas, e que boa parte dos aportes diretos foram feitos em capital humano, embutido nos trabalhadores
e técnicos especializados que emigraram ao Brasil, cuja dimensão
econômica é de difícil avaliação (Stols, 1973, 1999).
Essa presença dispunha da simpatia manifesta da diplomacia
brasileira, que sempre manteve em Bruxelas diplomatas experientes. A reciprocidade nessa área se deu sobretudo pela participação
brasileira em exposições universais e outras mostras internacionais
que eram realizadas na Bélgica, na época áurea do exibicionismo
58
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Carro utilizado pelo Rei Alberto I, da Bélgica, em sua visita ao Brasil em 1920. Construído nas oficinas do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. O autor do projeto art
nouveau do carro não foi identificado.
O desenvolvimento das relações nos últimos
cem anos
burguês (Pesavento, 1997). O engajamento do Brasil nesse tipo
de empreendimento se deveu em grande medida a diplomatas
brasileiros, a exemplo de Brazílio Itiberê da Cunha, ministro em
Bruxelas e grande entusiasta dos congressos de “expansão econômica”, tal como ele havia visto e participado em Gand, no início
do século (Cunha, 1907).
O auge do bom relacionamento diplomático ficou claramente evidenciado pela visita de alto nível, inédita, de um soberano
europeu, feita ao Brasil em 1920 pelo Rei Alberto I, cuja comitiva
deslocou-se inclusive ao Estado do Presidente Artur Bernardes,
Minas Gerais, visita da qual resultou justamente a criação da
Companhia Belgo-Mineira (aliás, belgo-luxemburguesa) no ano
seguinte (Stols, 2013). O convite formal para a visita de Estado
tinha sido formulado pelo delegado do Brasil na conferência de
Versalhes, Epitácio Pessoa, no contexto da enorme popularidade do “rei-soldado” que tinha despertado a admiração de todos
os brasileiros por sua corajosa participação na resistência militar
do exército belga contra a ofensiva alemã na Primeira Guerra
Mundial (Baptista, 2008).
No curso do século 20, o Brasil continuou a marcar sua presença político-diplomática na Bélgica, pela participação, por exemplo, em feiras e exposições universais organizadas no reino, bem
como no terreno econômico, pela organização de mostras especiais de seu esforço de expansão comercial – como a “Brasil Export”, de 1973, perturbada pelas manifestações contra a ditadura
militar – e pela instalação de companhias brasileiras em sua capital, entre elas a grande exportadora de minério de ferro, Vale
do Rio Doce. A Companhia Belgo-Mineira, por sua vez, sempre
representou bem mais do que uma simples siderúrgica – setor no
qual, aliás, ela colocou o Brasil à frente de todos os outros países
latino-americanos – e soube se integrar perfeitamente à paisagem
mineira e à economia brasileira em seu esforço de industrialização, sem descuidar das atividades culturais e esportivas.
Trata-se de uma das mais longas relações diplomáticas mantidas bilateralmente pelo Brasil de forma ininterrupta desde a cria-
59
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
ção do reino – à exceção de pequeno período de ausência física
durante a Segunda Guerra Mundial, sem que isso, porém, significasse rompimento diplomático –, numa interação que alimentou,
igualmente, um dos mais profícuos exemplos de cooperação cultural e educacional em benefício do Brasil: milhares de estudantes
brasileiros, em todas as épocas, formaram-se no terceiro ciclo e/ou
aperfeiçoaram-se cientificamente nas mais diversas instituições superiores da Bélgica, o que também confirma o argumento que iniciou este pequeno ensaio: a despeito de ser um país relativamente
pequeno, a Bélgica ocupa um peso e uma importância desproporcionais no processo de modernização econômica brasileira e na
sua presença político-diplomática, educacional e cultural mundial.
BAPTISTA, Paulo Francisco Donadio. “Tem Rei no Mar”, Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 34, julho 2008. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.
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digital disponível na Bayerische StaatsBibliothek. Disponível em: <http://reader.digitale-sammlungen.de/resolve/display/bsb10310302.html>. STOLS, Eddy, “Présence et activités diplomatiques de l’Empire du Brésil dans le Royaume de Belgique
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p. 121-164.
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Livre de Bruxelas (1984); Mestre em Planejamento Econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade
do Estado de Antuérpia (1977); Bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Livre de Bruxelas (1975); diplomata de carreira desde
1977; professor nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito
do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); autor de diversas obras
de Relações Internacionais, especialmente na vertente econômica, sobre a integração regional e de história diplomática brasileira; página
pessoal: www.pralmeida.org.
Referências
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações
econômicas internacionais no Império. 2. ed.; São Paulo/Brasília: Senac-SP/Funag,
2005.
60
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de Jaegher
(1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (1845-1849)
M i lt o n C a r l o s C o s ta
Introdução
Jaegher deteve-se na análise das relações entre o Brasil e a Inglaterra. “Há uma potência da qual o dedo está gravado sobre os
principais acontecimentos do Brasil: a Inglaterra”, afirmou Jaegher
em 1º de agosto de 1840. Na mesma carta, o diplomata afirma que
a Inglaterra impediu a recolonização do Brasil e conseguiu uma
sólida posição no país com os tratados de 1810 e 1826, que lhe
deram favores excepcionais, garantindo seus interesses de potência
comercial, industrial e colonial.
Para Jaegher, a posição privilegiada da Inglaterra sofreu uma
degradação com o tempo: de um lado, devido ao desenvolvimento
do país (produção agrícola etc.), de outro, com a concorrência, a
partir de 1836, de países como Portugal, França, Estados Unidos.
Ademais, o Brasil deixara claro seu desejo de não renovar os tratados existentes.
Jaegher tratou em sua correspondência, largamente, dos conflitos platinos, detendo-se muitas vezes na análise de Rosas e de sua
política. O diplomata faz dele uma caracterização completa, um
retrato brilhante, não isento de fascínio pelo retratado, em cartas
de 16 e 24 de setembro de 1840:
“Rosas, de seu lado, escuta o ministro da Inglaterra, mas só
segue suas opiniões na medida em que elas correspondem a suas
ideias pessoais. Impassível no meio dos perigos que o ameaçam,
ele parece não preocupar-se com sua grandeza; indiferente a tudo o que atrás dele cairia com ela, ele retomaria, meio selvagem
ainda como ele as deixou, suas emboscadas, suas armas de caça;
intrépido cavaleiro, combatente astuto, ele não teme seu homem
quem quer que ele seja; ele sempre será o chefe dos caçadores do
touro selvagem, se ele não é mais o chefe de sua República. Com
homens como esses, que não recuam diante de nada, que sabem
espalhar, sucessivamente e segundo as fraquezas, o ouro e o terror,
não há nunca nada de positivo antes de ocorrer. Dez dias de demora, num golpe repentino como o de Lavalle, diante de um homem
oportunista como Rosas, é excessivo.”
Quanto ao Império brasileiro, Jaegher insistiu muito na necessidade de reformas institucionais, o que parecia estar ligado à sua
concepção de um equilíbrio constitucional necessário ao funcionamento harmônico das instituições brasileiras.
O diplomata parecia inclinar-se por uma monarquia forte, ativa, ilustrada e popular. Era obcecado pela manutenção da monarquia brasileira e pelo fantasma do republicanismo. A análise que
fez da guerra em geral e das rebeliões brasileiras – e também dos
conflitos platinos – mostra como ele esteve atento à sua consideração como fenômeno global, tratando tanto da crônica militar
quanto da influência dos fatores políticos, das finanças, do contrabando e do comércio.
A
reconstituição e análise da visão do Império brasileiro pelos
diplomatas belgas acreditados no País permite apreciar a história brasileira e platina da época – um período particularmente
complexo e desafiante – a partir de um ângulo diferente: de uma
perspectiva europeia.
Neste artigo apresentamos uma síntese interpretativa da correspondência política enviada para o governo belga sobre o Brasil
imperial por dois diplomatas dos mais interessantes que estiveram
no Brasil: Edouard de Jaegher e Van der Straten Ponthoz.
Edouard de Jaegher (27/07/1806 – 06/03/1883)
Edouard de Jaegher substituiu Benjamin Mary como encarregado de negócios da Bélgica no Brasil. Nasceu em Bruges. Entrou
muito cedo na administração do Brabante Meridional. Por Arrêté
Royal do Rei Guilherme I, de 20 de agosto de 1825, juntou-se à
missão do Visconde L. P. J. Dubus de Ghisignies, governador do
Brabante Meridional, o qual acabava de ser nomeado ComissárioGeral para as Índias Orientais Holandesas.
Jaegher fazia parte do grupo de cinco funcionários que assessoravam aquela autoridade colonial. Permaneceu no posto do
começo de 1826, quando chegou às Índias Orientais, a junho de
1830, data de seu retorno à Bélgica.
Após a Revolução da Independência belga, Jaegher entrou na
administração do país tornando-se comissário distrital em Oudenarde, função na qual permaneceu até 1839. Em 9 de junho de
1835 foi eleito deputado por sua comuna e esteve na Câmara de
Deputados até 11 de junho de 1839.
O novo diplomata chegou ao Rio de Janeiro em 2 de outubro
de 1839, permanecendo no Brasil até novembro de 1843.
Nomeado encarregado de negócios junto às cortes da Suécia
e da Noruega, estabeleceu-se em Estocolmo e aí ficou até o fim
de 1847. Sua nomeação como ministro residente junto à corte de
Madri foi feita em 12 de novembro de 1847. Permaneceu pouco
tempo na Espanha sendo chamado à Bélgica para ocupar um alto
posto administrativo.
Nomeado governador da Flandres Oriental em 1º de setembro de 1848, passou a exercer a função no dia 6 do mesmo mês
e permaneceu no cargo por 23 anos, até agosto de 1831, quando
sua demissão honrosa por motivo de idade foi aceita.
Uma nota de 1878 mostrava-o vivendo em Bruxelas como aposentado do Estado belga. Sua morte ocorreu em Uccle, a 6 de
março de 1883, segundo informação de seu irmão.
61
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz
(14/09/1812 – 23/02/1900)
Ele via com muita clareza o fenômeno do expansionismo
americano e foi crítico em relação a certos aspectos da realidade
norte-americana. Tais posições são devidas, provavelmente, à sua
permanência durante certo tempo nos Estados Unidos. Foi o único dos representantes belgas no Brasil que atribuiu a uma causa
econômica as rebeliões que sacudiram o País entre 1831 e 1849.
Afirma ele em carta de 26/2/1849 que “[...] a população das
províncias não cessa de girar num círculo de desordens que são produzidas pela falta de atividades econômicas das quais essas desordens impedem todo impulso”. Ponthoz esteve longe da obsessão de
Jaegher em relação à permanência e consolidação da monarquia
brasileira. Assim, ele viu de maneira realista um possível desmembramento do Sudoeste brasileiro do resto do País, contando com
a emigração europeia para apoiar os interesses da Europa no caso
da concretização da hipótese.
Interessante é sua ideia de que os fatores pessoais dominavam
no Brasil os negócios do Estado, chamando a atenção para um
fenômeno realmente importante da história brasileira.
O diplomata deixou uma análise bastante clara dos partidos
políticos do Império. Em carta de 7/10/1848, ele traçou a origem
dos dois partidos do Brasil monárquico:
“A influência que trouxe a independência do Império em 1822
e a abdicação de D. Pedro I em 1831 exagerando suas doutrinas,
deveria chegar por novas agitações a uma organização republicana.
Então se organiza um partido conservador que empreendeu salvar a
ordem e as instituições, enquanto que um outro partido saía da revolução e da democracia para se reunir à monarquia ao mesmo tempo em que prosseguia o desenvolvimento das instituições liberais.”
Ponthoz mostrou em 27/9/1847 quais eram esses partidos e
suas características:
“[...] dois partidos principais dividem o Brasil. Eles se chamam
Saquarema e Santa Luzia nomes de localidades assinaladas por
perturbações políticas do Império; nós os conservaremos para prevenir assimilações inexatas. Os Saquarema invocam o princípio monárquico como base de toda organização política. Os Santa Luzia
invocam o princípio das instituições liberais regularizadas e desenvolvidas sob os auspícios da monarquia. Esses dois partidos se acusam mutuamente de tendências despóticas pelo exagero das medidas de ordem e anárquicas pelo exagero das medidas de progresso.”
O conde Ponthoz foi o sucessor de Jaegher como representante diplomático belga no Brasil. Entrou na diplomacia em 1838,
inicialmente junto à legação belga em Estocolmo, da qual se tornou Segundo Secretário em 1839. Em 1840 foi transferido para
Washington, sendo promovido a Primeiro Secretário.
Representou a Bélgica no Brasil entre outubro de 1845 – sua
primeira carta do Rio é de 22/10/1845 – e 1849 – sua última carta
foi escrita em 14/04/1849.
Ponthoz esperou a chegada de seu substituto, J. Lannoy, antes
de regressar a seu país, apresentando-o ao corpo diplomático e às
mais influentes personalidades do País. Lannoy afirmou que seu
antecessor havia estabelecido excelentes relações, sendo tido em
alta consideração no Rio de Janeiro.
Ponthoz foi nomeado em seguida para Lisboa (1848), como
encarregado de negócios. Em 1853 foi designado para ocupar
as mesmas funções em Madri, sendo elevado em 1850 à categoria de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. Nessa
última qualidade esteve sucessivamente em Munique (1867) e
Haia (1881).
Durante sua permanência em Haia, participou como plenipotenciário belga da Conferência Africana (15/11/1884 a
26/02/1885).
Teve participação ativa: “Oficialmente ou nos bastidores, nossos
delegados desenvolveram neste momento uma incessante atividade
para obter o reconhecimento por todos do novo Estado Independente do Congo. Eles foram vitoriosos”. É o que afirma a Biographie
Coloniale Belge, t. V, col. 779.
Ponthoz foi colocado em disponibilidade a seu pedido e aposentado em 1888, retirando-se ao castelo de Ponthoz onde dedicou
seu tempo livre à redação de suas memórias. Anteriormente, em
plena atividade profissional, escrevera dois livros: Pesquisas sobre
a situação dos emigrantes nos Estados Unidos (Bruxelas, 1846)
e O orçamento do Brasil (3 vols., Bruxelas, 1845). O título completo da obra é: Le budget du Brésil, ou recherches sur les ressources de cetempire dans leurs rapports avec les intérêts du européens
du commerce et de l’émigration. Como é demonstrado pelo título
mesmo de suas obras, Ponthoz dedicou atenção especial ao tema da emigração, esboçando, numa de suas cartas ao ministro
de Relações Exteriores da Bélgica (2/12/1845), uma “teoria” da
emigração europeia para a América do Sul. Ele atribui a ela uma
função estratégica na defesa dos interesses econômicos e políticos
da Europa industrializada.
Ponthoz combinava seu realismo com um certo visionarismo,
presente nas perspectivas otimistas que visualizava para a emigração europeia em direção aos países sul-americanos e em seu
plano de libertação do Brasil de sua dependência financeira em
relação à Inglaterra.
Mílton Carlos Costa é graduado em História pela Universidade
Católica de Lovaina, Doutor em História Social pela Universidade
de São Paulo, Livre-Docente em Introdução aos Estudos Históricos
pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp)- campus de Assis, professor e pesquisador de História do Brasil e Historiografia na
Unesp-Assis.
Referência
COSTA, Milton Carlos. Visões políticas do Império. Diplomatas belgas no Brasil (18341864). São Paulo: Annablume, 2011.
62
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo
Clodoaldo Bueno
M
anoel de Oliveira Lima nasceu na cidade de Recife no Natal
de 1867. Seu pai, comerciante português lá estabelecido,
retornou velho para sua terra natal após formar bom patrimônio.
Manoel foi praticamente criado em Lisboa, aonde chegou com
seis anos de idade. Teve vida confortável e pôde desfrutar de bom
ambiente cultural. Cursou a Faculdade de Letras, e teve oportunidade de conhecer Teófilo Braga, de quem foi discípulo.
Durante seus estudos em Lisboa dedicou-se às então chamadas “ciências auxiliares” da história, o que lhe desenvolveu o gosto pelo trato das fontes documentais. Em julho de 1883 escreveu
uma série de artigos para o Comércio de Lisboa e em agosto de
1885 iniciou sua colaboração para o Jornal do Recife. Crítico ferino, escreveu sobre história, literatura, artes plásticas, arquitetura e
teatro. Apesar de prevenções antibritânicas, admirava a Inglaterra
(Gouvêa, 1976, p. 86-87, 94-5, 97-8).
Após a conclusão de seus estudos (1888), buscou um cargo
na carreira diplomática, o que conseguiu logo depois (1890), ainda jovem, sendo nomeado 2º Secretário da legação do Brasil em
Lisboa por Quintino Bocaiúva, primeiro Ministro das Relações
Exteriores da recém-implantada República no Brasil. Em maio
de 1892 foi removido para Berlim, e lá permaneceu por três anos.
Em maio de 1896 assumiu o cargo de 1º Secretário da legação
brasileira em Washington, onde foi subordinado e admirador de
Salvador de Mendonça. Em razão de desavenças pessoais com J.
F. de Assis Brasil, sucessor daquele na chefia da legação, Oliveira
Lima pediu e obteve remoção para Londres, para aonde partiu de
Nova York em janeiro de 1900. Pouco ficou nesse cargo, pois foi
nomeado Encarregado de Negócios no Japão, cuja legação assumiu em junho do ano seguinte (Gouvêa, p. 359-394, 285, 319).
Em novembro de 1902 foi promovido a Enviado Extraordinário e
Ministro Plenipotenciário no Peru, mas permaneceu no Japão até 7
de março do ano seguinte, quando embarcou em direção ao Brasil.
O novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, confirmou sua nomeação para o Peru, mas pediu-lhe a presença imediata no Rio a fim de passar-lhe instruções antes de seguir
para Lima, pois contava com seus conhecimentos para acompanhar os problemas de fronteira entre Peru e Bolívia que interessavam ao Brasil, então às voltas com a questão do Acre (Gouvêa, p.
443-5; Almeida, p. 252).
Lima, todavia, em correspondência oficial e particular nada
mencionou a esse respeito, além de ter significado seu desagrado
com a nomeação para o Peru e reiterado suas solicitações referentes a vencimentos e licença. Afora isso, Lima retardou sua chegada
ao Rio de Janeiro, o que Rio Branco interpretou como recusa ou
desinteresse em participar das negociações para as quais estava
preparado. Mesmo nomeado, Lima não chegou a ir para a capital do Peru, pois o Chanceler reteve-o no Rio de Janeiro, a título
de aguardo de instruções, mas deixando-o alheio às conversações
que culminariam no Tratado de Petrópolis (1903), que pôs fim à
difícil questão do Acre.
Removido para Caracas, assumiu a legação em 12 de março
de 1905 após resistências afinal vencidas por Rio Branco que lhe
concedeu vantagens funcionais e prometeu-lhe um posto na Europa. Pouco tempo ficou na Venezuela; só o suficiente para assinar o protocolo do tratado de delimitação de fronteiras entre os
dois países, em 9 de dezembro de 1905. Governava a Venezuela
o caudilho Cipriano Castro, a quem chegou a admirar, conforme
exprimiu-se em carta a Nabuco, “pela sua energia e desassombro”, qualificando-o como “um lutador nato”. Caracas foi para o
diplomata pernambucano um ponto de observação privilegiado
para conhecer a prática do monroísmo de Theodore Roosevelt,
consubstanciado no big stick, levando-o a formular reservas ao
pan-americanismo dos Estados Unidos tal como concebido pelo
seu presidente em 1906.
Depois de recusar a legação brasileira na Cidade do México,
Lima foi nomeado para chefiar a de Bruxelas, alcançando, finalmente, o ambicionado posto na Europa. A cidade casava bem com
seu perfil de historiador e homem de letras (em 1897, com apenas
29 anos de idade, Oliveira Lima tornou-se membro da Academia
Brasileira de Letras), pois, além de culta e agradável, permitia-lhe
visitar outros grandes centros europeus para coletar material para
suas pesquisas históricas. A função na Bélgica foi exercida cumulativamente com a legação do Brasil em Estocolmo.
Lima assumiu a legação em Bruxelas em 2 de março de 1908
e em 7 de abril entregou sua credencial ao Rei Leopoldo II (18351909). Apenas decorridos 15 dias de sua chegada, Lima enviou a
Rio Branco relatório sobre questões políticas e perspectivas econômicas da Bélgica e da colônia do Congo. Referiu-se ainda a uma
possível imigração belga para o Brasil.
O rei dos belgas estava atento às possibilidades de investimentos e incremento do intercâmbio comercial com o Brasil, coincidindo com as concepções do diplomata. Causa surpresa ao observador de hoje o fato de Lima, crítico da política imperialista
norte-americana, ter formado opinião positiva sobre Leopoldo II,
bem como de sua política imperialista no Congo. Para Gouvêa, a
identificação de Oliveira Lima com o imperialismo belga foi um
erro de previsão histórica.
Além dos assuntos próprios da política externa, Lima enviava
relatórios, ofícios e publicações de interesse prático para o Brasil,
como o artigo sobre o aproveitamento do solo em face do industrialismo exagerado em voga na Europa. Prefaciou o livro (1910)
sobre o ensino profissional e agrícola do engenheiro belga Armand
Ledent, ligado, inclusive, ao projeto da Escola Agrícola de Piracicaba (SP) e ao ensino agrícola profissional em Araras. Da mesma
forma levava ao conhecimento da chancelaria tudo o que interessava à indústria açucareira do Brasil. Na mesma linha, inspirou
63
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
a publicação de artigos sobre o Brasil na imprensa belga, como o
do Etoile Belge (25/1/1909) sobre o Estado de Pernambuco e sua
indústria açucareira (cf. Gouvêa, 1976, pp. 669-814).
Lima foi adepto da diplomacia econômica, à época também
designada por diplomacia moderna, no entendimento de que o
alargamento das relações mercantis solucionaria os problemas
econômicos nacionais. A diplomacia do século XX, dizia, seria
“muito mais comercial do que política”. Ao pedir a “republicanização” da diplomacia do Brasil, opinou que sua “tarefa capital,
além da promoção da inteligência política” seria promover a expansão econômica. Lima reiteraria, em 1927, que “os interesses do
Brasil, uma vez descrito e fechado o círculo das nossas fronteiras,
são sobretudo econômicos” (Apud Gouvêa, p. 569, 797, 806, 1635;
Almeida, p. 258-60).
A concepção de diplomacia econômica completava-se em Oliveira Lima com o exercício de bem sucedida diplomacia cultural
na Bélgica, país que ocupava posição privilegiada na Europa como centro econômico e intelectual, o que lhe permitia divulgar os
valores culturais e as possibilidades do Brasil por meio de artigos
em jornais, revistas e conferências. Começou pela Universidade
de Lovaina, onde pronunciou palestras sobre La langue portugaise e La littérature brésilienne em 15 e 18 de janeiro de 1909.
Teve êxito, também, ao criar, às suas expensas, um curso gratuito
de português. Embora não tenha resultado de ação direta da legação, Lima inaugurou a Câmara de Comércio Belgo-Brasileira,
a primeira desta natureza criada pelo Brasil na Europa, associando-se ao empreendimento de Afonso Toledo Bandeira de Melo e
do Comissariado de São Paulo na Exposição Universal (Gouvêa,
p. 814-5, 906-7, 951-3).
Bruxelas facilitava-lhe estabelecer contatos com universidades e participar de reuniões científicas realizadas na Europa na
qualidade de representante do Brasil. Assim, compareceu ao 16º
Congresso Internacional de Americanistas em Viena (9 a 14 set.
1908), ao 9º Congresso Geográfico em Genebra (27 jul. a 6 ago.
1908), para o qual preparou a tese Le Brésil, sés limites, sés voies de
pénétration. As sessões de geografia econômica foram presididas
pelo grande Vidal de La Blache. No congresso de americanistas,
Lima apresentou moção, aprovada por unanimidade, propondo
que nos futuros congressos o português fosse incluído entre as
línguas admitidas, como já o eram o francês, o inglês, o alemão,
o espanhol e o italiano.
Em março de 1909 Rio Branco consultou Lima, estimando
uma resposta positiva, sobre o interesse em representar o Brasil no
Congresso Internacional de História Musical a reunir-se em Viena
nas festas do centenário de Haydn, e redigir “breve mas substancial notícia histórica [da] música no Brasil”. Rio Branco sugeriu o
material a ser usado, remetendo-o juntamente com outros textos
pedidos por Lima, com os quais preparou sua participação e fez
executar trechos de compositores brasileiros, como o clássico José
Maurício. Fez, também, alusão às modinhas e lundus. Antes de ir
para Viena, Lima foi a Paris para a festa franco-brasileira, promovida pela União Latina na Sorbonne, onde fez conferência, em
francês impecável, sobre Machado de Assis et son oeuvre. Ainda
na Sorbonne, Lima deu início, em 15 de março de 1911, a um
curso sobre Formation historique de la nacionalité brésilienne no
anfiteatro Turgot da Faculdade de Letras.
De outubro a dezembro de 1909 Lima esteve em Estocolmo,
na qualidade de ministro, para restabelecer a representação diplomática brasileira junto ao governo da Suécia, com o qual negociou
um convênio de arbitramento. De volta a Bruxelas, em março de
1910, tomou parte na inauguração do Pavilhão Brasileiro na exposição mundial. Na oportunidade, Lima promoveu concerto de
gala, com execução de trechos de composições de maestros brasileiros, como Carlos Gomes, Manoel Joaquim de Macedo, Alberto
Nepomuceno e o violinista Francisco Chiaffitelli.
O momento mais destacado da diplomacia cultural de Oliveira Lima foi a soirée de 4 de abril de 1910, promovida pela Societé Royale Belge de Geographie, no Théâtre de la Monnaie, em
Bruxelas, quando palestrou, na presença do novo rei, Alberto I
(1875-1934), sobre La conquête du Brésil. No decorrer da exposição foram insertos trechos musicais de autores brasileiros e, ao
final, executaram-se uma suíte de Alberto Nepomuceno, a composição do Padre José Maurício (Est incarnatus est), e Tiradentes,
de Manoel Joaquim de Macedo. A festa foi encerrada com a execução dos hinos nacionais brasileiro e belga (La Brabançonne).
O Etoile Belge noticiou o evento (Fleiuss: 1937, p. 276; Gouvêa,
pp. 815-941).
Lima, aborrecido com o rumo que tomava sua carreira, pediu
aposentadoria. O sucessor imediato de Rio Branco no Ministério
das Relações Exteriores, Lauro Müller, para mantê-lo no quadro,
não deu andamento a seu pedido e para que refletisse antes de
consumar uma decisão definitiva sugeriu-lhe uma licença, por ele
aproveitada para ministrar conferências a partir de 1o de outubro
de 1912 na Califórnia (EUA).
Rio Branco, provavelmente por respeitar os talentosos, foi paciente e tolerante com as insolências de Oliveira Lima, cujas posições chegaram a repercutir no legislativo federal, o que levou
o deputado Dunshee de Abranches a fazer a defesa do ministro
das Relações Exteriores na Câmara (Abranches, v. 2, p. 137-202).
Falecido Rio Branco (fevereiro de 1912), a situação funcional de
seu crítico só piorou. Müller não teve autonomia e força suficientes para barrar injunções políticas sobre o Ministério e, assim, o
jornalista-diplomata, em razão de seu destempero verbal e de sua
pena afiada, não teve a nomeação para a legação de Londres, sua
antiga aspiração, referendada pelo Senado (Gouvêa, p. 949-50).
Aborrecido, reiterou seu pedido de aposentadoria, ocorrida em
27 de agosto de 1913. Em 8 de março de 1914 embarcou em Recife com direção a Londres, cidade em que iria estabelecer nova
residência. Passou antes por Bruxelas, onde foi homenageado, de
surpresa, pelos amigos belgas e brasileiros com uma soirée em 22
de abril (Gouvêa, p. 1.181). Em Londres, durante a guerra foi
acusado de ter simpatias pela Alemanha.
Apesar dos riscos de uma travessia marítima no Atlântico norte em razão do conflito mundial, viajou para os Estados Unidos
em outubro de 1915 a fim de proferir uma série de palestras sobre história e economia da América Latina na Universidade de
64
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Harvard, a convite intermediado pelo Embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Edwin Morgan. Depois de um semestre
naquela universidade, tentou voltar à Inglaterra, mas sem sucesso
por ter sido incluído na black list das personalidades impedidas
de entrar no país.
Em julho de 1918 Lima chegou a Buenos Aires a convite do
Instituto Popular de Conferências, presidido por Estanisláo Zeballos (Gouvêa, p. 1.311, 1.459). Permaneceu sete meses na Argentina, conhecendo o país e proferindo conferências em várias
instituições. Em agosto de 1920 embarcou no Avaré, em Recife, em
direção aos Estados Unidos, onde fixaria sua derradeira residência.
Ainda viajaria em 1923 para a Alemanha, para tratamento de saúde,
e Portugal, onde proferiu conferências, uma delas na Faculdade de
Letras por ocasião da inauguração da Cadeira de Estudos Brasileiros. De volta a Washington, em 10 de janeiro de 1924 começou a
reger a cadeira de Direito Internacional na Universidade Católica.
Oliveira Lima foi adequadamente caracterizado por seu conterrâneo Gilberto Freire como nosso Dom Quixote Gordo (Veja-se Almeida, 2002, p. 234). Homem de pensamento original que
não tinha receio de expor e defender suas ideias, mesmo quando
contrariavam, o que normalmente ocorria, correntes de pensamento em voga. Destemido e sem fazer concessões, sobretudo
em questões de princípio, não raro surpreendia a quem acompanhasse os caminhos do seu pensamento, como, por exemplo,
quando divergiu das posições de Rui Barbosa, a quem admirava,
expostas no discurso, de ampla repercussão, inclusive no exterior,
que fez em Buenos Aires (14 jul. 1916) favoráveis aos Aliados na
Grande Guerra (1914-18). Fiel ao seu pacifismo, Lima defendeu
a neutralidade brasileira.
Outra polêmica, que acabou lhe custando o posto na diplomacia por conta de seu brio e amor próprio feridos, foi sua manifesta simpatia pela monarquia. Apesar de republicano desde moço,
interpreta-se que Lima, após sua estada em Caracas à época da
presidência de Cipriano Castro, viu de perto os males que o caudilhismo fazia à América Latina, constatação que, somada ao que
observava no seu próprio país, onde políticos da jovem república
lambuzavam-se no poder, provocou-lhe o desencanto com o novo
regime, a partir do que passou a vislumbrar aspectos positivos nos
regimes monárquicos, destacando que não eram antinômicos à
democracia e se ajustavam bem às correntes socialistas então em
ascensão na Europa (Malatian, p. 199-202).
Nadou contra a corrente, também, ao posicionar-se contrariamente ao alinhamento diplomático do Brasil aos Estados Unidos,
inaugurado pela República. Neste ponto divergiu de seu ex-amigo
Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil em Washington,
um sonhador como outros norte-americanistas brasileiros, iludidos
com eventual apoio norte-americano contra “imaginadas absorções europeias” ou “aventuras belicosas dentro do continente” (Cf. e
apud Gouvêa, p. 738). Apesar de crítico, neste aspecto concordou
com Rio Branco, pois este cultivou a amizade norte-americana,
mas com ressalvas e nuances. Lima, coerentemente, aplaudiu o
discurso do Chanceler na abertura da 3ª Conferência Internacional Americana (Rio de Janeiro, 1906), na presença do Secretário
de Estado norte-americano Elihu Root, sobretudo pela ênfase na
relevância da Europa para o Brasil, que recebia seus capitais e
braços para a lavoura.
Oliveira Lima faleceu em Washington em março de 1928,
sentindo-se, segundo suas próprias palavras, escorraçado de seu
próprio país, que não soubera lhe aproveitar o talento. Doou sua
extensa biblioteca (que leva seu nome) à Universidade Católica
das Américas, em Washington, inaugurada em 1924 e organizada,
conforme sonhara, como centro de estudos brasileiros, portugueses e hispano-americanos. Atendendo ao que dispôs em seu testamento, seus restos repousam na capital norte-americana.
Referências
ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a política exterior do Brasil (1902-1912). Rio de
Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1945, 2 v.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima – vidas paralelas,
itinerários divergentes”. In: CARDIM, Carlos Henrique & ALMINO, João (orgs.).
Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Pref. de Fernando Henrique
Cardoso. Rio de Janeiro: EMC, 2002, p. 233-278.
CORRÊA, Luiz Felipe de. “Semblanza biografica del autor”. In: LIMA, Manuel de Oliveira. En la Argentina. Buenos Aires: Editorial Centro de Estudios Unión para la
Nueva Mayoría, 1998.
FLEIUSS, Max, Conferência no Instituto Histórico e Geográfico a 23 de maio de 1928.
In: LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1937, p. 263-283.
GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Pref. de Barbosa Lima Sobrinho. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1976.
3 vol.
LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
MALATIAN, Tereza. Oliveira Lima e a construção do nacionalismo. Bauru, SP: Edusc;
São Paulo, SP: Fapesp, 2001.
Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil (1895-1912)
D o m i n g o s Sav i o d a C u n h a G a r c i a
P
ara entender a presença belga na fronteira Oeste do Brasil,
na virada do século XIX para o século XX, é preciso entender
o que se passava no mundo naquele momento. Essa perspectiva
é necessária para termos a dimensão daquela ação e as possibi-
lidades que ela poderia abrir para os belgas, principalmente se
considerarmos a exitosa operação na África do Rei Leopoldo II,
que resultou na formação do Estado Independente do Congo,
um Estado privado de grandes dimensões, encravado entre colô-
65
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
A empresa agroindustrial de Descalvados foi adquirida em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia.
nias e protetorados das principais potências europeias da época.
Concluído o domínio sobre sua colônia africana, Leopoldo
II e sua entourage passaram a procurar outra região do mundo
onde pudessem repetir esse feito e alcançar os lucros advindos do
comércio com produtos de origem extrativa ou produzidos com
matérias-primas não encontradas na Europa. Para isso procuravam uma região com características políticas semelhantes àquelas encontradas na África quando iniciou sua operação naquele
continente: territórios ricos em produtos extrativos com grande
procura nos mercados centrais; populações nativas fragilmente
organizadas, tendo como decorrência a inexistência de fronteiras
entre Estados demarcadas e reconhecidas internacionalmente; territórios disputados por potências europeias, a partir dos interesses
da geopolítica europeia.
Naquele momento, a região Central da América do Sul se
abria para a exploração mercantil, notadamente com o crescente
processo de extração de borracha da seringueira, cujo consumo
aumentava no mercado internacional. O aumento do consumo estimulava a abertura de novas frentes extrativas, que avançavam para
regiões até então pouco atraentes para aquela atividade econômica.
A América do Sul, ao longo do século XIX, era reconhecidamente uma área de influência da Inglaterra. No entanto, na medida em que se aproximava o fim desse século, vimos desenvolver
a força econômica, política e militar dos Estados Unidos, que
assumiram a condição de potência global com a vitoriosa guerra
contra a Espanha em 1898.
Portanto, quando os belgas decidiram iniciar a sua nova frente de atividades no coração da América do Sul, com métodos e
objetivos semelhantes àqueles desenvolvidos na África, o fizeram
no momento em que a geopolítica internacional passava por mudanças importantes.
Mas nada estava decidido e a região central da América do
Sul, rica em borracha e em campos de criação de gado vacum, de
difícil acesso e longe dos centros de decisão, localizados no litoral no caso do Brasil, e próximo à Cordilheira dos Andes, no caso
da Bolívia, era controlada por estados fracos ou fragilizados, cuja
presença nessa região era praticamente inexistente. Dessa forma,
poderiam reaparecer ali as condições para que os belgas, liderados
por Leopoldo II, pudessem repetir o seu feito africano, se as condições da geopolítica internacional o permitissem. E os belgas não
esperaram surgir essas condições; trabalharam para isso.
A compra da empresa agroindustrial de Descalvados, efetuada
em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia com o fim último de comprar aquele empreendimento,
não foi, portanto, uma ação isolada. A fábrica foi comprada da família de Jaime Cibils Buxaréo, um industrial uruguaio de origem
catalã, que já operava no ramo de produção de derivados de carne
e havia construído a fábrica no início da década de 1880.
Descalvados era uma fábrica de extrato de carne estrategicamente localizada na fronteira do Brasil com a Bolívia, em pleno
Pantanal, a maior planície alagada do mundo, possuindo uma área
de um milhão de hectares. A Cibils ainda comprou, em 1899, a
fazenda São José, com área de 500 mil hectares, também localizada no Pantanal e contígua a Descalvados em sua parte sul, perfazendo uma área total de mais de um milhão e quinhentos mil
hectares ou 15 mil quilômetros quadrados.
Nos campos de Descalvados e da São José havia um rebanho
com cerca de 340 mil cabeças de gado bovino, a matéria-prima
para a fábrica, que produzia principalmente extrato de carne, derivados de carne em conserva e couros tratados, produtos que eram
remetidos para o mercado europeu, onde eram bastante apreciados. Possuía máquinas a vapor (produzidas na Bélgica), que acionavam uma usina de eletricidade, a serraria, bombas de água e
permitia à fábrica ter a sua própria produção de embalagens de folhas de flandres, para acondicionar seus produtos para exportação.
Os produtos da fábrica de Descalvados, principalmente o extrato de carne, eram famosos na Europa, onde ganharam prêmios
de qualidade e onde eram oferecidos através de propagandas feitas por postais com imagens do empreendimento localizado na
fronteira Oeste do Brasil.
66
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Vista da empresa agroindustrial em Descalvados, a Cibils, em fotografia dos anos 1980.
Durante o período em que pertenceu a empresas belgas, o empreendimento era dirigido por gerentes belgas (o primeiro foi François Joseph Van Dionant, que chegou a Descalvados em abril de
1895) e mantido por mão de obra braçal formada por brasileiros,
argentinos, paraguaios e bolivianos, além de um expressivo número de indígenas dos grupos guató e bororo, que habitavam antigas
aldeias existentes na área do empreendimento e que usualmente
eram utilizados no difícil trabalho de manejo do gado bovino.
Entre 1895 e 1897 a empresa rendeu dividendos aos seus sócios e se mostrou um investimento lucrativo. No entanto, em 1897
um fato chama a atenção para os objetivos dos belgas na fronteira
Oeste do Brasil: a legação da Bélgica no Rio de Janeiro solicitou
do governo brasileiro a instalação de um consulado daquele país
em Descalvados. Tal solicitação não foi atendida; o consulado foi
instalado em Corumbá e em Descalvados foi instalado um vice-consulado. O administrador do empreendimento, François Van
Dionant, se tornou também o vice-cônsul da Bélgica e uma bandeira belga passou a tremular em pleno Pantanal, na fronteira do
Brasil com a Bolívia.
Em 1898, procurando defender o rebanho bovino do roubo
provocado por constantes investidas de ladrões provenientes da Bolívia, Van Dionant solicitou do governo do Estado de Mato Grosso
providências para coibir tais ações. Sem ter meios para atender à
solicitação, o governo estadual autorizou os belgas a constituírem
uma força policial própria para conter esses ladrões, forças que
foram organizadas por antigos integrantes da Force Publique, que
Leopoldo II mantinha no seu Estado Independente do Congo, na
África. Daí em diante, os belgas passaram a ter em Descalvados
uma representação diplomática e uma força armada, dominando
um território de mais de 15 mil quilômetros quadrados.
A partir de 1898 outras empresas organizadas por belgas na
Europa vieram se juntar à Compagnie des Produitis Cibils em su-
as operações na fronteira Oeste do Brasil: Compagnie des Caoutchoucs du Matto Grosso, Syndicate de La Banque Africaine, Mercado, Ballivian & Companhia, La Brésilienne, Société Anonyme
l’Abunã e a Comptoir Colonial Française Société Anonime. Eram
empresas dedicadas principalmente à extração de borracha em
afluentes da margem direita do Rio Amazonas, próximo à fronteira com a Bolívia.
A partir de 1901, a própria Compagnie des Produits Cibils também passou a atuar na extração de borracha no Vale do Guaporé,
onde adquiriu três concessões do lado brasileiro desse rio que divide a fronteira do Brasil com a Bolívia. A partir dessas concessões,
a borracha extraída pela Cibils era enviada a Descalvados e, de
lá, para o exterior.
Chama atenção a formação dessas empresas belgas que passaram a atuar na extração de borracha na fronteira Oeste, se juntando à Cibils, pois seus principais acionistas eram praticamente os
mesmos, se entrelaçando em diferentes composições acionárias.
Para ajudá-las em suas operações, as empresas belgas deslocaram para a fronteira Oeste do Brasil um conjunto de funcionários
capacitados e experientes, alguns já treinados em operações colonialistas, como Alexandre Delcomune, experiente auxiliar de
Leopoldo II no Estado Independente do Congo, e José Cousin,
um geógrafo também experiente. Esses funcionários mapearam os
recursos naturais, fizeram trabalhos de reconhecimento dos rios e
das características físicas da região, sempre procurando atuar de
maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades locais.
O fato que estimulou o ânimo dos belgas na fronteira Oeste do
Brasil foi a disputa pelo território do Acre entre a Bolívia e seringueiros brasileiros que se instalaram na região, atraídos pela grande
demanda por borracha no mercado internacional e pela grande
produção que essa região proporcionava, disputa na qual se entrelaçaram os interesses de empresários norte-americanos influentes
67
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
e ingleses organizados no Bolivian Syndicate, cujo objetivo era o
arrendamento do território em disputa.
O eventual desenlace positivo para aquele sindicato poderia
reabrir no coração da América do Sul uma corrida colonialista semelhante àquela ocorrida na África. Nesse caso, os belgas estariam
muito bem posicionados para ficarem novamente com a sua parte
na disputa, sempre explorando as debilidades dos Estados locais
e as disputas entre as grandes potências. Foi com essa perspectiva
que Leopoldo II também tentou controlar o Bolivian Syindicate.
Não foi coincidência que justamente no período em que a
disputa pelo território do Acre alcançou o seu ápice, entre 1898
e 1903, os belgas tenham se lançado na corrida por concessões
de terras para extração de borracha na fronteira Oeste do Brasil.
O círculo próximo de Leopoldo II operava combinando a ação
efetiva no território desejado com as articulações políticas que se
desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos. Essa tática havia
dado certo no caso africano e poderia dar certo novamente no caso da América do Sul.
No entanto, uma combinação de fatores bloqueou essa perspectiva. A ação do governo brasileiro, principalmente após a ascensão do Barão do Rio Branco ao cargo de Ministro das Relações
Exteriores em fins de 1902, combinada com a ação militar dos
próprios seringueiros no Acre e, ainda, a decisiva mudança na política externa dos Estados Unidos para a América Latina naquele
período, mudaram o cenário da disputa. O seu resultado foi o fim
do Bolivian Syndicate, a compra do território do Acre pelo Brasil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, e a transformação
de fato da América Latina em área de influência exclusiva dos
Estados Unidos.
Esse novo cenário se combinou ainda com as primeiras notícias sobre as atrocidades cometidas pelos funcionários das empresas ligadas a Leopoldo II no seu Estado privado na África. O
resultado desse cenário desanimou rapidamente os belgas em suas operações na fronteira Oeste do Brasil e sua retirada da região
foi tão rápida como a sua entrada. Em 1906, no setor agrícola e
de extração vegetal praticamente só havia o empreendimento de
Descalvados. Em 1911, o empreendimento que havia sido a porta
de entrada para os belgas na fronteira Oeste do Brasil também foi
a sua porta de saída, sendo vendido ao investidor norte-americano
Percival Farquhar.
Domingos Sávio da Cunha Garcia possui Mestrado em História
Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorado
em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
É professor do Departamento de História da Universidade do Estado
de Mato Grosso desde 1995.
Referências
GARCIA, Domingos Savio da Cunha. Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Brasília:
Funag, 2009.
KURGAN-VAN HENTENRYK, Ginette. Leopoldo II e a questão do Acre. In: Cadernos
do Centro de Documentação em História e Documentação Diplomática. Brasília: ano
8, tomo II, vol. 14, p. 477-499, primeiro semestre, 2009.
STOLS, Eddy. O Brasil se defende da Europa: suas relações com a Bélgica (1830-1914). In:
Boletin de Estúdios Latinoamericanos e del Caribe. Amsterdam: Centro de Estudios y
Documentación Latinoamericanos (CEDCA), n. 18, junio de 1975.
O Rei Alberto I e a música brasileira
Daniel Achedjian
E
vocar as inúmeras interações entre os belgas e a música brasileira, erudita ou popular, representa uma matéria apaixonante para músicos, pesquisadores, jornalistas ou, simplesmente,
amantes fervorosos. Porém, que um cidadão do Reino da Bélgica
– e não se trata de um qualquer – tenha sido o tema de algumas
composições é algo que seria imperdoável se negligenciado.
A famosa vinda do Rei Alberto I e de sua esposa Elisabeth da
Bélgica ao Brasil, em 1920, seduziu alguns letristas famosos. Estes viram no soberano, de temperamento excepcional e às vezes
insólito, e que ignorava o protocolo, um personagem dotado de
um jeitinho belga bem apreciado pelos cariocas.
Encontramos a menção de uma primeira peça musical sobre este assunto no DVD “Ensaio, TV Cultura, 1990”, dedicado
a Herivelto Martins (1912-1992), o muito célebre e importante
compositor carioca de sambas e de marchinhas do século XX. Em
um trecho do programa, ele evoca o samba “A Lapa”, que havia
composto nos anos 30 com Benedito Lacerda. Herivelto Martins
fala desse bairro do Rio que, nos anos 20, era o centro da vida
boê­mia, onde se atravessava a noite, se bebia, se caia na sarjeta e,
claro, se tocava e se escutava música.
O compositor relata que em 1920, para ser bem preciso, um
certo “Rei Alberto” veio visitar o Brasil e o Rio de Janeiro – na
época, capital do País – e pediu insistentemente que lhe fosse mostrado esse bairro de folia. Este famoso rei “Alberto”, claro, não era
ninguém mais ninguém menos do que o Rei Alberto I da Bélgica
(1875-1965), vindo em visita oficial em companhia de sua esposa,
a muitíssimo amada e célebre Rainha Elisabeth (1876-1965). Eles
visitaram, no final das contas, Rio e Minas Gerais.
Assim, neste samba, “A Lapa”, Herivelto Martins canta os seguintes versos:
“O bairro de quatro letras
Até um rei conheceu
Onde tanto malandro viveu
Onde tanto valente morreu.”
68
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
A atitude do soberano, no momento daquela visita, impressiona a todos. Sua vontade de quebrar certos protocolos durante
as cerimônias oficiais perturbava um pouco as altas autoridades
brasileiras. O rei decidiu até se engajar em atividades não previstas, como a visita à Lapa, como já mencionado, ou se fazendo
presente em certas manifestações desportivas. Assim, ele se lança
em um longo e difícil percurso de natação, que saía da praia de
Copacabana em direção à praia do Diabo, situada ao lado das
pedras do Arpoador de Ipanema. Uma proeza que deixou os cariocas admirados.
Aficionado por escaladas, o Rei também decidiu subir parte
da colina do Corcovado (sem o Cristo na época). Esta expedição
tinha sido planejada, mas quase virou um incidente diplomático.
Com a preocupação em tornar a expedição mais confortável, os
cariocas já haviam demarcado o percurso e arrumado, em alguns
lugares na rocha, degraus para facilitar a subida. O Rei Alberto
se sentiu ofendido, se zangou e decidiu passar por um caminho
selvagem que não havia sido preparado.
Nos arquivos musicais da música popular brasileira também
encontramos vestígios da atitude do soberano belga na canção
“Alberto I Rei dos belgas”, de José Napolitanos, “Pro Rei Alberto
ver”, de Lourival de Carvalho, e “O Protocolo”, de B. Silvestre e
Miguel de Azevedo, que relata assim:
É um homem de fato
Não tem orgulho
Nem espalhafato
Foi a insulta
Da mais alta
Deixar os repórteres
Espiando na esquina
Comeu feijoada
E bebeu parati
Jogava no bicho
Não saía daqui
E se ele provasse
O angu da baiana
Então ficava
Mais uma semana.”
Mas, além destes textos espirituosos, bem dentro do espírito
dos sambas e marchinhas da época dourada, encontramos também a composição “Saudades e saudades” (aos Reis dos belgas),
composta pelo ilustre Ernesto Nazareth (1863-1934), pianista e
compositor, navegando entre o clássico e o popular, a quem devemos alguns clássicos do Choro como “Odeon”. “Saudades e saudades”, peça instrumental composta em 1921, um ano após a visita
do casal soberano, toma ares de uma marchinha com cara de valsa.
Enfim, se tratando da visita real, um outro eminente músico
ligado à grande história do Choro, Pixinguinha (1897-1973), se
apresentava com Os Oito Batutas num almoço ao Rei e à Rainha
dos belgas. Aí estava presente também o maior compositor clássico
brasileiro (de inspiração popular), Heitor Villa-Lobos (1887-1959),
que apresentou, por sua vez, várias de suas obras. Nessa ocasião, o
soberano concedeu a este último a cruz honorária de Santo Leo­
poldo, que o brasileiro recusou sob o pretexto de que ela havia
também sido dada ao cozinheiro e ao chefe da guarda do palácio. Pois é, até mesmo os grandes homens conhecem momentos
de fraqueza e de vaidade, que sejam perdoados de bom grado...!
“O Rei Alberto
Ao pisar este solo
Mandou às favas
O protocolo
Conquistou logo
Com feliz maestria
Dos brasileiros
A simpatia
Assim, Alberto Primeiro
Ao mundo inteiro
Deu uma lição
Mandou a etiqueta
Com pirueta
Lamber sabão
Daniel Achedjian, Doutor em História da Arte, se apaixonou pela
música e arte popular brasileira; constituiu uma grande coleção em
Bruxelas, onde, como radialista, mantém também o programa “Tropicalia” na Rádio Judaica.
O Rei Alberto
De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil
Peter Daerden
E
m 31 de julho de 1962 chegou ao Rio de Janeiro, a bordo do
navio francês Charles Tellier, um jovem belga, algo tímido.
Filho de uma família de açougueiros modestos da região de Liè-
ge, Conrad Detrez tinha 25 anos e acabava de interromper uma
formação de seminarista em Lovaina. Passou primeiro seis meses
na sinistra cidade industrial de Volta Redonda e mudou, depois,
69
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou como auxiliar leigo nas favelas,
como na paupérrima Bráz de Pina, mas ao mesmo tempo dava
aulas na Universidade Santa Úrsula.
Detrez ocupava assim uma posição interessante: entrava em
contato tanto com a cultura popular como com os meios intelectuais. Esta combinação determinou fortemente sua visão do Brasil,
que era contraditória. Sua atitude era em primeiro lugar de índole
muito trabalhista. Não gostava nem um pouco da mundana Copacabana, mesmo esta se passando para a maioria dos estrangeiros
como o cartão de visita do Brasil. Não, ele se encantava com a
proletária Zona Norte do Rio. Este bairro era talvez feio, mas tinha
caráter. Porém, neste olhar romântico sobre as favelas se escondia
uma grande contradição, já que Detrez criticaria precisamente, de
um ponto de vista cada vez mais à esquerda, a pobreza reinante
por lá. Por outro lado, o fascínio de Detrez pela cultura negra e pela religião afro-brasileira – que o fez iniciar no candomblé – tinha
uma forte conotação erótica. No Rio, o ex-seminarista descobriu sua
homossexualidade, que projetava quase exclusivamente em negros.
Nada indicava então que Detrez se tornaria mais tarde um
escritor laureado. Sem dúvida tinha esta ambição, mas esta se
desvaneceu depois do golpe militar de 1964. A partir desse momento, o compromisso com o engajamento político determinava sua conduta. Como muitos católicos radicalizados, se tornou
membro da Ação Popular. Já pela sua formação católica, Detrez
nunca sentiu muita estima pelo comunismo, e certamente não por
seus militantes brasileiros. Mesmo assim, se deixou levar de maneira bastante ingênua para a esquerda radical. Isto foi mais uma
questão de temperamento do que de compreensão. Nos anos de
1960, nutria uma grande admiração por Fidel Castro e Che Guevara, que pensava, ou pelo menos esperava, serem os promotores
de um marxismo liberal. Também no Brasil tinha que aparecer o
‘Novo Homem’ de Cuba.
Em 1967 Detrez foi preso por curto tempo por pretensa subversão política. Sua detenção não passou desapercebida na imprensa
brasileira. Em manchete, O Globo anunciava: ‘Belga Preso Como Líder Comunista’. Já o Jornal do Brasil tomou sua defesa: “Os
vizinhos do jovem súdito belga – com trinta anos de idade – têmno como pessoa de hábitos perfeitamente normais e destacam sua
cordialidade, seu desejo de servir ao próximo, inclusive pondo-se à
disposição dos que lhe pedem pequenos favores, como a redação de
cartas pessoais”.
Com a intervenção da diplomacia belga, Detrez pôde, quase
sorrateiramente, deixar o país. Foi morar em Paris, onde participou ativamente da revolução de maio. Mais tarde, em 1968, conseguiu fixar-se em São Paulo, onde se tornou jornalista da Folha
da Tarde, mas em menos de um ano teve que deixar essa cidade.
Chegou num ponto em que a repressão ameaçava sua vida. Da
França, Detrez queria prestar ainda uma vez uma curta, mas muito arriscada, contribuição. No maior segredo atravessou o oceano,
encontrou e entrevistou Carlos Marighella para voltar às pressas.
Marighella, chefe da guerrilha brasileira, foi pouco depois executado. Detrez resumiu suas ideias num manifesto revolucionário,
Pour la libération du Brésil.
Inspirada pelos Tupamaros do Uruguai, a guerrilha urbana aterrorizava, no final dos anos de 1960, as grandes cidades brasileiras.
Poderia considerar-se Detrez – que provavelmente nunca soltou
um tiro – como apenas uma nota de rodapé nesta história. Mas,
encarado de maneira mais positiva, ele passa pelo menos por uma
testemunha privilegiada dessa época perturbada. Assim manteve
uma amizade calorosa com Frei Betto, ainda antes de sua entrada
no convento e de tornar-se um influente teólogo da libertação.
Quando Detrez estava, no início dos anos de 1970, na Algéria, conheceu pessoalmente o exilado Miguel Arraes, um dos próceres da
resistência brasileira. No tribunal Russell em 1974 – uma conferência em Roma contra as violações dos direitos humanos no Brasil –,
se encontrou com o excêntrico guerrilheiro Fernando Gabeira. Em
seguida, ambos mantiveram correspondência por pouco tempo.
Nos anos de 1970 Detrez continuou seu percurso sinuoso, que
o levou à Algéria e a Lisboa, onde fazia a reportagem das peripécias da Revolução dos Cravos para a rádio belga. Em matéria política, se tornou mais reservado e também sua escolha pela literatura
era em grande parte ditada pela introspecção. Antes de escrever
seus romances, Detrez tinha traduzido alguns autores brasileiros
para o francês: Quarup, de Antônio Callado, e Os pastores da noite, de Jorge Amado. Este último manifestou seu agrado em carta.
Já com Callado, que conhecia pessoalmente, a colaboração ficou
mais difícil. Literariamente, o Brasil não lhe era tão importante.
Se relacionava antes com os autores ‘caribenhos’, como o colombiano García Márquez e o cubano Reinaldo Arenas – ou também,
perto de casa, com o picaresco Charles de Coster.
Estava escrito nas estrelas que o Brasil ocuparia um lugar importante na sua obra. Depois de dois romances promissores Detrez
surpreendeu, em 1978, com L’herbe à brûler, um livro que contava em boa parte suas aventuras brasileiras numa prosa sensual e
excitante, sem por isso reincidir nos estereótipos exóticos. Na sua
narração fortemente autobiográfica, Detrez se revelou um hedonista puro-sangue, que rejeitava todas as formas de dogmatismo
revolucionário. Com isso se aparentava algo com os nouveaux
philosophes franceses – se bem que ele mesmo não gostava nem
um pouco desta comparação.
L’herbe à brûler foi unanimamente aclamado como uma pequena obra-prima. Com a obtenção do prestigioso prêmio Renaudot, o nome de Detrez parecia definitivamente consagrado. A Bélgica tinha, depois de Simenon, novamente um autor de impacto
internacional. Seguiram-se várias traduções como em neer­landês,
português e inglês. A edição inglesa recebeu resenhas relativamente boas no Time e no The Village Voice. No Brasil, revistas influentes como Veja e IstoÉ foram francamente elogiosas. Nelson Pereira
dos Santos, o padrinho do cinema novo brasileiro, se prontificou
a filmar o livro. Infelizmente, este projeto falhou.
O próprio Detrez regredia. Nunca mais igualou o nível do
L’herbe à brûler. No seu romance seguinte, La lutte finale, as favelas do Rio voltaram a formar o cenário. Mas a inspiração anterior de Detrez, que era fortemente autobiográfica, minguava de
ano para ano. Interessante foi o ensaio publicado em 1981, Les
noms de la tribu, no qual relatava uma viagem recente ao Brasil.
70
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Em 1979 Detrez se beneficiou da anistia política oferecida
pelos governantes de Brasília. Voltou por alguns meses e viu um
país que se tornou, sob certos aspectos, irreconhecível. Les noms
de la tribu, mais do que um simples diário de viagem, contém
fascinantes considerações sobre o Brasil, a guerrilha dos anos de
1960 e seu próprio percurso de vida. Esta terminou rápido demais.
Detrez serviu desde 1982 como diplomata francês na Nicarágua,
mas ficou pouco a pouco muito doente. Em 1985 morreu de Aids.
Peter Daerden, mestre em História, com passagem pela Universidade
de São Paulo (USP), juntou em frequentes viagens ao Brasil o material de arquivo e de literatura para uma biografia extensa de Detrez.
Brasil-Europa, via Bruxelas
Antônio Carlos Lessa
D
epois de seu retorno ao poder na França, em 1958, o General de Gaulle por diversas ocasiões imprecou contra o forte
componente supranacional que era característico dos Tratados
de Roma, fundadores do processo europeu de integração, que
entraram em vigor justamente naquele ano. Para o líder francês,
a Europa das Comunidades e os seus arranjos supranacionais diminuíam as competências e prerrogativas dos governos dos Estados-membros e exageravam no limite do absurdo as competências
e a autoridade das burocracias europeias. Desde o início de seu
funcionamento, sediada em Bruxelas, a Comissão Europeia era,
na lógica do presidente da França, a tradução perfeita de uma
tecnocracia apátrida e irresponsável.
A evolução da política europeia nos anos seguintes mostrou
que o líder francês efetivamente perdeu essa arenga. Ao cabo de
mais uns poucos anos encontrou-se uma solução de equilíbrio para o desenvolvimento contínuo da integração da Europa, e a sua
conversão, em pouco mais de 50 anos, em uma grande potência
econômica e com vocações políticas universais que, de certo modo, ultrapassam as ambições dos Estados nacionais que tomam
parte, hoje, da União Europeia. Mas o que efetivamente não mudou foi a permanência de Bruxelas como sede das competências
crescentes das Comunidades, ao ponto em que a capital dos belgas se transformou em metonímia das burocracias que animam e
governam a Europa Comunitária.
O Brasil foi o primeiro país latino-americano a estabelecer
relações diplomáticas com a Comunidade Econômica Europeia,
ainda em 1960. Esse gesto se sobrepunha então à reação enérgica
que a diplomacia do governo do Presidente Juscelino Kubitschek
esboçou quando do anúncio da assinatura do Tratado de Roma,
ainda em 1957. Desde então, e praticamente até 1964, o Brasil liderou a reação dos governos de países latino-americanos, grandes
exportadores de produtos tropicais, temerosos da perda de espaço
nos mercados europeus diante da associação das colônias e ex-colônias europeias à então Europa dos Seis por meio de acordos de
comércio preferencial.
No entender do Itamaraty, a formação do Mercado Comum
Europeu ensejaria uma diminuição expressiva das exportações de
café brasileiro, que se daria mediante a criação de desvios de comércio que beneficiariam a produção concorrente, especialmente
africana. Com efeito, as produções das colônias e ex-colônias europeias, não apenas de café, mas também de cacau, seriam dramaticamente favorecidas pelas medidas de associação comercial que
garantiam o acesso em condições privilegiadas, não mais apenas
para a França ou a Bélgica, mas para todos os seis países que então
fundavam a Europa Comunitária (França, Bélgica, Países Baixos,
Luxemburgo, Itália e República Federal da Alemanha). Entre os
Seis estavam justamente dois dos maiores compradores de café
brasileiro, em termos globais, a Alemanha e a Itália.
Em outra linha de argumentação esboçada pelo governo brasileiro em sua reação ao Tratado de Roma, se arguia que a integração econômica provocaria uma desvinculação progressiva dos
capitais europeus, atraídos para investimentos na África e em outras paragens, enquanto o Brasil, em pleno desenvolvimento industrial, tinha mais do que nunca necessidade da ajuda financeira
dos países europeus.
Portanto, os primeiros contatos entre o Brasil e a Europa Comunitária foram caracterizados por desconfiança e tensão. De
pouco, ou quase nada, adiantou o grande esforço diplomático de
arregimentação levado a cabo pelo governo brasileiro que, trazendo consigo vários outros países latino-americanos, tradicionais
exportadores de produtos tropicais, pressionaram contra o Tratado
de Roma e, mais especialmente, contra as disposições dos artigos
131 a 136. Para azar do Brasil e dos seus parceiros latino-americanos, os dispositivos do Tratado de Roma seriam considerados
legais sob a luz do Acordo-Geral de Tarifas e Comércio-GATT, e
não haveria, portanto, via jurídica de recurso acerca da legalidade
do ato fundacional da Comunidade Europeia.
Esse início pouco auspicioso deu, então, o tom da história
das relações do Brasil com o processo europeu de integração. De
certo modo, a designação do poeta Augusto Frederico Schmidt
como primeiro embaixador brasileiro junto à Comunidade pode
ser entendido como um gesto de conciliação com a Europa Comunitária nascente ou, no mínimo, como o reconhecimento de
que em Bruxelas surgia um respeitável oponente. Schmidt era um
intelectual e empresário respeitado, do entourage do Presidente
Kubitschek. Atribui-se a ele a paternidade intelectual da Operação
Pan-Americana, e também influência certa sobre vários outros temas da política externa brasileira daquele momento. Apresentou
71
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
as suas credenciais de Embaixador ao belga Jean Rey, membro da
Comissão da Comunidade Econômica Europeia.
Bruxelas entrava, então, de um outro modo e pela segunda
vez, no rol das praças diplomáticas que apresentavam importância central para os interesses internacionais do Brasil, ao lado de
Washington, Londres, Paris e Buenos Aires. Funcionando inicialmente em Paris, a representação do Brasil junto à Comissão foi
transladada definitivamente para Bruxelas em janeiro de 1961.
A missão de Augusto Frederico Schmidt foi breve. Pode-se
afirmar que a sua nomeação atendia à necessidade de distender
as relações com a Bruxelas comunitária, e de encetar os difíceis
processos de negociação que se seguiram ao estabelecimento da
Tarifa Externa Comum, envolvendo tanto o Brasil quanto outros
países latino-americanos. O Brasil manteve, a partir do estabelecimento inicial das suas relações com a Europa Comunitária, a
prática de enviar para a sua representação diplomatas de carreira
experimentados, somente quebrada com a nomeação de outro
grande intelectual brasileiro, Celso Furtado, que exerceu a chefia
da Missão entre 1985 e 1986.
As relações do Brasil com a Bruxelas comunitária foram, ao
longo de quase cinco décadas, muito tensas. A criação do processo
europeu de integração teve esse condão: descarregou a pesadíssima agenda contenciosa envolvendo questões comerciais que existiam com alguns dos seis membros originais (especialmente com
a França), mas produziu um grande polo contencioso, justamente
a Europa Comunitária. As demandas recorrentes do Brasil, que se
juntava aos demais países latino-americanos, estiveram ao longo
desse período principalmente circunscritas ao acesso aos mercados, ao tratamento tarifário conferido aos produtos tropicais e às
tentativas de circundar os graves desvios de comércio que se produziram pela associação das antigas colônias europeias.
A Bruxelas comunitária se convertia, desse modo, em um importante centro nevrálgico e essencialmente conflituoso das relações internacionais do Brasil. Esse relacionamento assim permaneceu praticamente até o início da década de 1990. Nesse longo
momento, não há que se falar em cooperação política, uma vez
que a América Latina em geral constituía um ângulo cego das prioridades internacionais da Europa comunitária e pode-se afirmar
que assim seguiu até o estabelecimento do Mercosul, em 1991.
O surgimento de um novo processo de integração, em região
que foi a periferia das prioridades internacionais da Europa, não
deixou de ser um motivo de alento para a organização de uma
nova agenda de cooperação. Com efeito, o bloco sul-americano
surgia como o maior parceiro comercial e principal destino dos
investimentos europeus na região. Em 1992 firmou-se um Acordo
de Cooperação Interinstitucional, seguido em dezembro de 1995
pelo Acordo Marco Inter-regional de Cooperação. A articulação
de interesses teve prosseguimento em junho de 1999, com a rea­
lização da primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo
da União Europeia e América Latina/Caribe, quando se decidiu
pela formação de um Comitê Birregional de Negociações União
Europeia-Mercosul.
O início da crise do Mercosul e os alargamentos da União
Europeia, dois processos coincidentes, desfocaram a agenda de
cooperação inter-regional, enquanto outros temas na dimensão
política e econômica surgiam como prioritários. A partir da década
de 2000, o crescimento do perfil internacional do Brasil, com crescente protagonismo em diferentes tabuleiros (negociações comerciais, temas ambientais etc.) e com maior visibilidade econômica,
e o crescimento do seu ativismo internacional, levaram a União
Europeia a reavaliar o conjunto das suas relações com a América
Latina. Assim, ao final de 2005, a União Europeia decidiu passar
a privilegiar o Brasil como país-chave da região.
O modelo adotado para essa nova estratégia de Bruxelas seguiu
o que já estava sendo implementado no manejo das relações da
União Europeia com os seus principais interlocutores – Estados
Unidos, Canadá, Japão, Rússia, China e Índia –, ou seja, o de
relações de “parceria estratégica”. Ainda que não exista uma definição clara desde a diplomacia comunitária do que sejam esses
vínculos, eles têm muito em comum: densas e dinâmicas correntes
de comércio, amplos contatos bilaterais, intensidade de vínculos
políticos e agendas compartilhadas.
O Brasil foi ungido como parceiro estratégico da União Europeia em 4 de julho de 2007, por ocasião da primeira Conferência
de Cúpula Brasil-União Europeia, reunindo a Tróica do Conselho Europeu e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se
do reconhecimento da singularidade assumida pelo Brasil nas relações internacionais contemporâneas, de certo modo, tradução
do peso específico que o País tem assumido para a economia e a
política global.
Trata-se de uma transformação de vulto no desenvolvimento
das relações do Brasil com a Europa Comunitária e oferece uma
moldura institucional para a organização do diálogo de alto nível
e com pleno potencial para o desenvolvimento de uma agenda
de cooperação bilateral que envolve os desafios da liberalização
comercial, o acesso aos mercados agrícolas, meio ambiente e aquecimento global, a reforma das organizações internacionais (e o
papel que o Brasil pode nelas desempenhar) e o reforço da ordem
internacional multipolar. Mais do que nunca, o futuro da projeção
internacional do Brasil passa por Bruxelas.
Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq.
72
o comércio
parte 3
Relações Econômicas:
Comércio e Empresas
73
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
74
o comércio
O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente
Eddy Stols e Silvio Cordeiro
U
m dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho
do Governador em São Vicente, é também o mais antigo
investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo (Stols e
Cordeiro). Construído nos anos de 1530 pelo donatário da capitania, Martim Afonso de Sousa, contava entre seus sócios Johan
Van Hilst, aliás João Veniste, nativo de Hasselt, que representava em Lisboa os interesses de seu tio, Erasmo Schetz. Este, de
origem alemã, mas nativo de Maastricht e casado com uma rica
herdeira de Antuérpia, Ida van Rechtergem, controlava na região de ­Aachen a exploração de calamina e cobre e a produção
de bacias e manilhas de latão, em parte destinadas ao comércio
português na África ocidental.
Assim, granjeava longa experiência comercial em Portugal, onde tratava também especiarias, açúcar, trigo, tapeçarias ou mesmo
cerveja. Gozava da confiança de Dom Manuel e de Dom João III,
provavelmente para empréstimos de dinheiro. Regressando a Flandres, desenvolveu, sem abandonar o comércio, sua atividade bancária na praça de Antuérpia, prestando serviços financeiros tanto
ao humanista Erasmo de Roterdã como ao imperador Carlos V.
Bem relacionado no meio mercantil e intelectual desta metrópole cosmopolita, transformou a casa de seu sogro, Huis van Aken,
numa das melhores residências de Antuérpia, onde recebeu, em
1549, Carlos V e seu filho, Felipe II. Para assegurar o enobrecimento de sua estirpe, Erasmo adquiriu em 1545 a senhoria e o
castelo de Grobbendonk. Seus filhos continuaram nesta senda
senhorial, se bem que os descendentes de Gaspar, casado com
Catarina van Ursel, adotaram este nome e conhecem-se ainda
hoje como duque e condes d’Ursel.
A compra por Erasmo, nestes anos de 1540, das outras partes
do engenho em São Vicente podia corresponder ao anseio de inserir-se socialmente entre os outros grandes banqueiros, Fugger e
Welser, que também lançaram empresas coloniais na América.
Tinha sobretudo a ver com a fulgurante expansão do negócio
açucareiro, do qual Antuérpia, com grandes refinarias e numerosos confeiteiros, projetava-se como o maior centro da Europa
setentrional. Se na entrada do Rio Escalda a tabela do pedágio de
Iersekeroord mencionou o açúcar ‘Bresilli’ já em 1519, três anos
depois da introdução de seu plantio no Brasil por Dom Manuel,
sua produção provinha, na época, principalmente da Madeira e
das Canárias, onde outros mercadores flamengos tinham instalado engenhos.
No intuito de ampliar o abastecimento com a produção brasileira e preocupado em rentabilizar sua nova propriedade, Erasmo
enviou um servidor flamengo de sua filial de Lisboa a São Vicente
para fiscalizar a gestão do feitor Pedro Rouzée. Pode ter sido um
outro sobrinho seu, Sydrach Schetz, filho bastardo do irmão cônego em Maastricht, Willem Schetz, que no seu testamento de
1527 lhe confiou sua tutoria e uma pensão. O mesmo Sydrach
Esquete apareceu, em 1557, na Inquisição de Lisboa como capitão do navio São Jorge, vindo do Brasil e acusado de luteranismo.
O relatório deste agente, escrito em flamengo e enviado de
São Vicente em 13 de maio de 1548 – um dos mais antigos deste
tipo no novo mundo –, prefigura um raro exemplo de auditoria
moderna e surpreende por sua fria capacidade de análise capitalista. Encontra o engenho como uma pequena fortaleza, elevada
e munida com baluartes para sua defesa contra os índios ou outros invasores. Consta de uma casa grande, bem construída, espaçosa, com senzala e ferraria e mais duas casas cobertas de telhas.
Apenas a roda d’água do engenho precisa de consertos e deveria
ser remontada para cima, a fim de evitar as inundações da maré. Produz 900 arrobas de açúcar, mas apenas 400 exportam-se
a Portugal, porque, por falta de moeda circulante, os serviços e
as mercadorias pagam-se com açúcar. O próprio agente deve no
pagamento de suas mercadorias contentar-se com uma letra de
câmbio sobre Antonio Becudo em Lisboa. Outro problema sério
numa terra de muitos degredados e malandros é a ausência de um
aparato judiciário eficiente.
Para aumentar a produção, julga indispensável recuperar as
terras cedidas ou ocupadas pelos moradores e comprar novas roças. Rouzée já conseguiu incorporar 32 tarefas a mais. Com mais
cana própria, dispensar-se-ia de moer aquela dos moradores a custo
maior. Para alcançar esta autarquia e ao mesmo tempo suprimir
os salários da mão de obra livre, dispõe-se de uma numerosa escravaria, se bem que destes 130 escravos da terra, somente a metade
75
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Um dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, de 1530, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos
no Novo Mundo.
trabalha, o resto sendo velhos ou crianças. O relator aprecia muito
mais os oficiais africanos, sete ou oito escravos negros da Guiné: o
mestre de açúcar, que fornece um produto de excelente qualidade
e vale bem o salário de trinta mil réis, que na Madeira pagaria-se
para um semelhante; e mais um purgador e dois caldeireiros, que
também dispensam as quatro arrobas de açúcar, pagas normalmente por mês a cada oficial livre. A compra de mais escravos
para fazer carvão e cinzas e plantar mantimentos economizaria
o dinheiro gasto nas compras aos moradores. Aconselha por fim
de reforçar sua dieta de produtos da terra, como a ‘panqueca de
mandioca’, que vale cem réis e alimenta uma pessoa por três ou
quatro dias, com carne, bacalhau ou outros peixes salgados e queijos flamengos e holandeses.
Desconhece-se a sequência dada às suas propostas, mas quando Erasmo faleceu pouco depois, em 1550, seus filhos e herdeiros
– Gaspar, Baltasar, Melchior e Conrart – formaram uma companhia, que devia também gerenciar o engenho. Este, no período
conturbado das investidas francesas nas costas brasileiras, tornouse um ponto de encontro e refúgio, conhecido como Engenho de
São Jorge dos Erasmos ou dos Esquetes. Por lá deviam ecoar as
controvérsias religiosas entre protestantes e católicos como também a curiosidade humanística pela natureza e pela cultura dos
índios. Dois soldados alemães, que passaram pelo engenho, vieram na sua volta por Antuérpia contar aos Schetz suas aventuras,
Ulrich Schmidl em 1554 e Hans Staden em 1555.
O livro deste último sobre sua catividade entre os canibais
foi traduzido para o flamengo e publicado, em 1558, em Antuérpia por Christophe Plantin, que lançou simultâneamente uma
edição barata do livro de André Thevet sobre as singularidades
brasileiras. Este interesse podia relacionar-se com a propriedade
brasileira dos irmãos Schetz. Estes, muito envolvidos na vida financeira, política e cultural de sua cidade e dos Países Baixos,
sofreram pouco depois dramáticas perdas de vida, de fortuna e
de prestígio durante a tormentosa guerra civil subsequente à revolta contra Felipe II. Nem por isso deixaram seu engenho num
abandono completo e enviaram para lá, por várias vezes, navios
com abastecimentos e novos empregados, como Jean-Baptiste
Maglio, Paulo Wernaerts, um jovem cunhado de Van Hilst, e
Geronimo Maya.
Em 1565, Conrart Schetz e seu parente Jehan Vlemincx investiram pouco mais de 1.300 libras em mercadorias, equipamentos, ferros e até canhões, despachados num navio português. Em
1579, o navio Licorno levou seis fardos pelo valor de mais de mil
florins (Laga). Seu conteúdo reflete o cotidiano no engenho, que
misturava uma vida senhorial escravocrata com requinte burguês
flamengo. Trazia, ao lado de quatro dúzias de camisas e outras tantas de pratos de madeira destinados aos escravos, também tecidos
mais finos, lençóis de cama, guardanapos, utensílios de cozinha,
panelas para peixe, pratos de estanho, canecas para vinho e até
uma batedeira de manteiga. Se vinham caldeirões, tachos de ferro
e de cobre e material de ferraria, não faltavam uma escrivaninha,
papel e pena, e para o auxiliar Paulo Wernaerts um clavicórdio.
Tocava-se música renascentista no engenho dos Erasmos! Seguia
também uma quantidade surpreendente de pinturas e imagens,
uma parte talvez para ornar a capela do engenho, mas sobretudo destinadas à catequese dos índios pelos jesuítas. Estes padres,
inclusive o famoso Anchieta, mantinham contatos com Gaspar
Schetz, que em Antuérpia lhes tinha vendido a Huis van Aken.
Vigiavam particularmente o comportamento moral do feitor e de
seus auxiliares em São Vicente.
Estes subalternos apropriaram-se provavelmente de uma boa
parte dos bens e o rendimento do engenho entrou em crise, ainda mais durante as incursões em Santos de piratas ingleses e holandeses no final do século. Mesmo assim, os netos de Erasmo,
76
o comércio
já completamente integrados na vida nobiliária e militar, não esqueceram seus direitos sobre suas posses brasileiras. Desde 1603
tentaram enviar, sempre por intermédio dos jesuítas, um procurador para investigar estas malversações. Finalmente, em 1612, o
mercador flamengo Manuel van Dale conseguiu chegar até lá e
lavrou em Santos, junto com os jesuítas, um protesto para obstruir
a venda, pelo provedor de ausentes, dos bens dos Schetz, dos escravos e equipamentos de cobre. De pouco adiantou porque, em
1615, na sua volta ao mundo, o pirata Joris Van Spilbergen – por
sinal um antuerpiense passado para o lado dos rebeldes holandeses
– passou por São Vicente e, não obtendo ajuda nem abastecimento entre os habitantes, mandou por vingança incendiar o engenho dos seus conterrâneos. Se este desapareceu do horizonte dos
Schetz, continuou a produzir açúcar, beneficiado em marmeladas
e outras conservas apreciadas na economia regional.
Finalmente, o terreno com as ruínas do engenho, localizado
no atual município de Santos e tombado pelo patrimônio histórico, foi doado em 1958 à Universidade de São Paulo (USP). Esta
o valorizou desde 2005 com pesquisas arqueólogicas e projetos
educacionais e construiu ao lado um centro de estudos com biblioteca e auditório. Do lado belga ou flamengo não percebeuse ainda o significado e o potencial comemorativo deste monumento como elo tanto econômico como cultural entre Flandres,
Portugal e o Brasil.
Se os investimentos brasileiros dos Schetz resultaram onerosos
pela distância e pelo controle difícil e lhes renderam finalmente
poucos lucros, foram ao mesmo tempo estimulantes e corretivos
para o desenvolvimento da produção açucareira no Brasil e para
a sua concentração nas capitanias do Nordeste, mais próximas da
Europa. Lá, em Pernambuco ou na Bahia, outros mercadores seguiram o exemplo dos Schetz e construíram engenhos, como os
Lins e os Hoelscher, alemães conectados com Antuérpia. Mais
jovens flamengos ousaram aventurar-se na compra de açúcares
nas costas brasileiras e um deles, Gaspar de Mere, ergueu até seu
próprio engenho no Cabo de Santo Agostinho, perto de Recife.
Sobretudo os cristãos novos portugueses, católicos ou judaizantes,
souberam aproveitar a dinâmica e ganhar um notável predomínio
desta rota açucareira. No mercado de Antuérpia o produto brasileiro aumentou sua cota de aproximadamente 15% por volta de 1570
para mais de 85% no último decênio do século XVI. Sua nova
abundância abriu o consumo do açúcar, antes reservado à medicina e à aristocracia, a uma clientela mais larga, mesmo popular
e infantil. Nas pinturas dos Breughel até o camponês rendeiro é
presenteado por seu patrão com um pão de açúcar.
Com a reconquista católica de Antuérpia, em 1585, e o subsequente bloqueio do Rio Escalda pelos holandeses, Antuérpia viu
partir muitos refinadores para Amsterdã e teve que lhe ceder sua
supremacia. Mesmo assim, recebia através de Lisboa suficientes
caixas de açúcar brasileiro – em média duas mil no período de
1609-1621 – para manter uma requintada cultura da doçaria. O
que Antuérpia perdia em quantidade compensou em boa parte
pela qualidade de seu açúcar mais fino e pela diversidade de seus
confeitos, um luxo representado e celebrado nas naturezas mortas
de Osias Beert, Clara Peeters e outros pintores deste estilo antuerpiense, como o alemão Georg Flegel.
Silvo Luiz Cordeiro, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Doutor em
Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE
-USP) e documentarista, desenvolve projetos relacionados ao patrimônio histórico e arqueológico, como um filme sobre o Engenho dos
Erasmos; em 2011 criou a Mostra Audiovisual Internacional em
Arqueologia (MAIA).
Referências
Carl Laga. ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisas em arquivos
belgas’. Estudos Históricos, Marília, n. 1, 1963, p. 13-43. Eddy Stols. ‘Um dos primeiros documentos sobre o Engenho dos Schetz em São Vicente’. Revista de História,
São Paulo, n. 76, 1968, p. 407-419. Eddy Stols. ‘The Expansion of the Sugar Market
in Western Europe’. Ed. Stuart B. Schwartz, Tropical Babylons, Sugar and the Making
of the Atlantic World, 1450-1680, University of North Carolina Press, 2004, p. 237288. Daniel Strum. O Comércio do Açúcar. Brasil, Portugal e Países Baixos (15951630). Rio de Janeiro, 2012.
A Companhia de Ostende e os portos brasileiros
Eddy Stols
N
ovas perspectivas de contatos marítimos com o Brasil apareceram quando os Países Baixos meridionais passaram, em
1713, do domínio espanhol para o austríaco sob o Imperador
Carlos VI, um soberano benevolente. Já que o Rio Escalda e o
porto de Antuérpia continuaram bloqueados pelos holandeses,
os negociantes flamengos lançaram-se logo no comércio asiático
a partir do porto de Ostende e armaram seus primeiros navios
para Mocha, na Arábia, Surate, Malabar e Bengala, na Índia, e
Cantão, na China.
Seus bons lucros com produtos em voga, como o chá, levaram, no final de 1722, à fundação, com patente do imperador, da
Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como Companhia de Ostende. Sua concorrência ameaçou o
quase monopólio das poderosas Companhias das Índias orientais
existentes, principalmente a holandesa e a inglesa. Estas hostilizaram os navios de Ostende, que na rota do regresso fizeram escala na colônia do Cabo ou na ilha de Santa Helena à procura de
assistência e refrescos.
77
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Esboço de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck realizado para
a Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como
Companhia de Ostende, 1728.
Dois navios, o Marquis de Prié e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728,
o arquipélago de Fernando de Noronha e examinaram seu potencial como escala
para a Companhia.
Em situação de desespero, um primeiro navio de Ostende, o
Sint-Mathieu, entrou em 1716 no Recife e obteve limões e água
para salvar os tripulantes doentes. Em dezembro de 1720, o Concordia conseguiu no Rio de Janeiro pagar os alimentos frescos com
a venda de seis escravos. Entretanto, quatro oficiais foram presos
nas ruas da cidade sob suspeita de comércio ilícito e somente soltos por intermédio do bispo. O navio seguiu para o Recife, onde
vendeu tecidos indianos. Um outro navio de Ostende ancorou na
Bahia em 1721.
Com estes precedentes, os diretores da Companhia imaginaram uma nova rota e logística marítima para recorrer sistematicamente aos portos brasileiros. Os capitães deviam valer-se de
um passaporte do imperador e do parentesco deste com o rei de
Portugal. Poderiam vender uma parte de suas mercadorias para
pagar o abastecimento e oferecer presentes de seda, porcelanas
ou tecidos de até o valor de 800 a 1.000 pistolas. Provavelmente
especulavam com mais negócios por lá, pelo menos com a paco-
tilha dos marinheiros, ou até com contrabando de ouro nas costas
brasileiras. Além disso, a Companhia enviaria navios menores de
aviso rumo a Ostende, Recife e Bahia, levando material náutico
de substituição, como âncoras, e notícias sobre a situação militar
na Europa e a melhor rota para escapar dos inimigos. Pelo menos
uma dezena de navios de Ostende entraram assim nos portos do
Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife.
No entanto, apesar das negociações entabuladas com a Corte
de Lisboa, não foram recebidos pelas autoridades portuguesas como esperavam. Particularmente o vice-rei na Bahia mostrava-se
muito rigoroso. Em maio de 1727, com a chegada de quatro navios, limitou sua permanência, colocou soldados a bordo e confinou os quatro capitães e seus sobrecargos numa casa com guardas.
Interditou sob pena de morte qualquer comércio e encarregou
seus fiscais da Fazenda do abastecimento. O preço muito alto deste
podia encobrir alguma corrupção. Um quinto navio chegou em
julho no Recife, onde os alimentos frescos eram mais baratos e um
78
o comércio
Aquarela de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck, 1728.
agente pretendia, mediante uma gratificação, garantir no futuro
uma recepção mais benevolente.
Procurando uma alternativa, a Companhia cogitou criar um
posto em Fernando de Noronha. Dois navios, o Marquis de Prié
e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728, o arquipélago e examinaram seu potencial como escala estratégica para a
Companhia. Num levantamento geográfico, Cortmemoriael van
‘t Eylant Fernando de Noronha, com esboços e uma aquarela por
Henri Carlos Gheyselinck, constataram que, apesar dos abrolhos
e corais, era possível ancorar sem danos. Encontraram boa água,
beldroegas, cabritos, pombas, vacas selvagens e muito bom peixe.
Em três noites capturaram 14 tartarugas de 500 a 600 libras. Em
terra, seus doentes de escorbuto sararam em dois dias. Sabiam do
malogro holandês em estabelecer-se por lá por causa dos ratos,
mas achavam possível tentar de novo. Bastava introduzir gatos
para comer os ratos e plantar.
Não consta que os navios de Ostende voltaram, uma vez que,
por pressão dos holandeses e ingleses, a Companhia foi interditada
em 1731 e finalmente liquidada em 1734.
Referências
Arquivo Municipal de Antuérpia, Fundo GIC, #5.704, 5.929 e 5.931; Biblioteca Real, Bruxelas, Manuscritos, II-161, Jornal do Concordia; Biblioteca Universidade de Gand,
Fundo Hye-Hoys, Manuscrito 1837. Eddy Stols. ‘A Companhia de Ostende e os Portos
Brasileiros’. Estudos Históricos, Marília, n. 5, 1966, p. 83-95.
79
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Antuérpia e os diamantes do Brasil
T i j l Va n n e s t e
Q
uando nos anos de 1723 e 1724 foram extraídos os primeiros diamantes no Rio Jequitinhonha, na região do Serro em
Minas Gerais, Antuérpia já tinha uma longa tradição de comércio
e lapidação de diamantes. As pedras brutas eram importadas principalmente da Índia pela Carreira portuguesa e por intermédio de
mercadores flamengos ativos em Lisboa nos séculos XVI e XVII.
Desde 1582 uma guilda reunia e regulamentava os mestres lapidários e polidores, que cravejavam as pedras em alfaias litúrgicas
para o culto católico e em joias para a nobreza e a rica burguesia.
Boa parte destinava-se à venda em Paris e na corte francesa, mas
também em Viena, Milão, Constantinopla e Moscou, ou até nas
cortes da própria Índia.
Rapidamente, a abundância dos diamantes brasileiros provocou uma queda de preços e o pânico entre os negociantes em
Londres, Amsterdam e Antuérpia. Para melhor controlar o mercado, a Coroa portuguesa decidiu, em 1753, aplicar ao comércio
diamantário na Europa um sistema semelhante ao monopólio já
operativo na mineração desde 1739. Entre os interessados nesta
exclusividade se apresentou um rico mercador de Antuérpia, James Dormer, de origem inglesa, mas casado na burguesia local.
Ele tinha boas conexões com uma firma anglo-judaica de Londres, Francis e Joseph Salvador, muito importante no mundo dos
diamantes e em contato com os governantes portugueses. Juntos
fizeram uma proposta para comprar a cada ano 25.000 a 30.000
quilates de diamantes brasileiros, por um período de três anos.
Não se concretizou. Ao passo que os Salvador sofreram grandes
perdas no terremoto de Lisboa em 1755, o Marquês de Pombal
deu preferência aos mercadores holandeses, que fortaleceram o
predomínio de Amsterdã no comércio diamantário.
Não obstante, Antuérpia continuou a receber indiretamente
muitas pedras brasileiras e sua guilda viu subir o número de aprendizes em até quase 80 por ano por volta de 1765. Como Amsterdã se reservava as pedras melhores e enviava as pequenas ou de
baixa qualidade para Antuérpia, seus lapidários se especializavam
particularmente na talha de roosjes ou diamante-rosa para joias
mais baratas. Entre as mais correntes figuravam os ‘hertekens’ ou
corações, que os filhos ofereciam à sua mãe no dia da Assunção
da Virgem, em 15 de agosto, costume consagrado posteriormente e comemorado até hoje como o dia das mães em Antuérpia.
Durante o século XIX, Antuérpia conseguiu revigorar seu setor
diamantário. Dependia agora menos de Amsterdã e, uma vez que
no Brasil a lavra de pedras se liberou do monopólio, importava diretamente ou por intermédio de comerciantes franceses. Se a partir de 1867 começaram a predominar as pedras da África do Sul,
os diamantes brasileiros continuaram chegando, principalmente
dos novos centros de extração, como Lençóis, na Chapada Diamantina. Capital belga foi investido na formação de companhias
francesas, como a Boa Vista. Ainda em 1923 uma parada festiva
da Antuérpia diamantária celebrava com um carro alegórico sua
gratidão a essa riqueza brasileira.
A dianteira de Antuérpia se devia sobretudo ao desenvolvimento industrial da lapidação. Já em 1842 Jean-Jacques Bovie instalou no seu ateliê uma primeira máquina a vapor, que funcionaria
quase exclusivamente com pedras brasileiras. Com o tempo essa
indústria diamantária exportava também instrumentos e know-how
para o Brasil. Discos utilizados para lapidar pedras preciosas no
final do século XIX vieram da companhia G. J. de Winter & Filho, de Antuérpia. Numa visita a Lençóis, em 1920, o jornalista
belga S. Hartveld notou que as máquinas de lapidação eram de
origem antuerpiana.
Entrementes, desde o final do século XIX o potencial industrial e comercial de Antuérpia se beneficiou bastante com a chegada de judeus fugitivos dos pogroms na Europa oriental e melhor
conectados internacionalmente, particularmente com Amsterdã
e Paris. Empresários judeus deste circuito fugiram no contexto
da Segunda Guerra Mundial para o Brasil, alguns com vistos do
embaixador brasileiro em Vichy, Souza Dantas, e operaram uma
nova transferência tecnológica. Significativa desta interação e da
modernização da joalharia no Brasil foi a atribuição, em 2003, de
um Antwerp Diamond Award a um bracelete da designer brasileira
Gláucia Silveira.
Tijl Vanneste, historiador especializado em história global e em história da América do Sul nos séculos XVII-XIX, trabalha atualmente
na Universidade de Exeter e tem afiliações com a Universidade ParisVII e a Universidade Nova de Lisboa.
Bibliografia sobre os diamantes
S. Hartveld. Schetsen uit Brazilië, Antuérpia, 1921; Iris Kockelbergh, Eddy Vleeschdrager
e Jan Walgrave (eds). The Brilliant Story of Antwerp Diamonds, Antuérpia, 1992; Tijl
Vanneste. Global Trade and Commercial Networks: Eighteenth-Century Diamond
Merchants, Londres, 2011; Nicolaas Verschuur. Brieven uit Brazilië, 1897-1902. Amsterdam, 1989.
80
o comércio
A barca de três mastros ‘Dyle’ da Société Maritime Belge, que no 14 de julho de 1846 deixou Antuérpia para o Rio de Janeiro com 162 emigrantes a bordo.
A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo oitocentista
J a n Po s s e m i e r s
‘A
A revolução de 1830
ntuérpia deve o Escalda a Deus e todo o resto ao Escalda’
é voz corrente nesta cidade à margem do Rio Escalda. Este ficou durante mais de dois séculos fechado à navegação, mas
depois de sua reabertura em 1795 o porto recuperou seu caráter
internacional. Uma vez que o Brasil, por decreto de 28 de janeiro de 1808, admitiu navios estrangeiros, não demorou muito o
interesse de Antuérpia por este país. No final dos anos de 1820,
quando a Bélgica constituía ainda junto com a Holanda o Reino
Unido dos Países Baixos, Antuérpia já recebia uns 15 navios do
Brasil. O armador-negociante Adriaan Saportas era, ao lado de
outros, um ativo importador de produtos brasileiros, como café,
açúcar e couros. Figurava também como diretor da Société d’Armement d’Anvers pour le Brésil, que procurou organizar um serviço regular entre Antuérpia e o Rio de Janeiro.
Depois da revolução belga de 1830, dezenas de mercadores-armadores migraram para Roterdã ou Amsterdã, já que a
bandeira belga não era bem-vinda nas colônias holandesas. Entretanto, Antuérpia conseguiu restabelecer rapidamente os contatos com a América Latina. Melhor ainda: os portos latino-americanos tornaram-se o principal destino dos veleiros belgas
de longo curso.
O primeiro navio de bandeira belga a chegar ao porto do Rio
de Janeiro em 2 de janeiro de 1832 foi o brigue antuerpiense La
Paix do armador Joseph Muskeyn. Parece que custou ao capitão J.
Roose sete dias de negociações antes que as autoridades – por intervenção do cônsul da França – reconhecessem o tricolor belga e
81
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
lhe dessem as boas-vindas com sete tiros de canhão. O Paix entrou
no Rio num momento pouco propício porque uma revolta contra
Pedro I perturbava o comércio. Em 12 de agosto o brigue estava
de volta a Antuérpia, carregado com, entre outros, 340 sacos de
café para a firma J. L. Lemmé. Em 1836 chegaram 22 navios do
Brasil ao porto do Escalda, em 1845, 59, e em 1848 já eram 70.
Os navios estrangeiros procedentes do Brasil em Antuérpia ultrapassavam quase sempre em número os belgas, ainda mais porque
a marinha mercante belga continuou de tamanho muito modesto.
A viagem de Antuérpia ao Rio levava em média 50 dias. A volta
à Europa durava pouco mais, cerca de 60 dias, já que os veleiros
precisavam procurar no Oceano Atlântico setentrional os ventos
do ocidente. As tempestades e as bravuras do capitão e de seus
marinheiros fizeram entrar a viagem ao Rio no imaginário popular no romance In ‘t schipperskwartier: tafereelen uit het Vlaamsche volksleven, de Domien Sleeckx (1861). Existia aliás no bairro
portuário um café Rio.
por iniciativa dos próprios negociantes-armadores antuerpienses.
Alguns eram muito interessados e ativos na rota do Brasil, outros,
apenas esporadicamente. A barca Marie Key, de propriedade do
armador antuerpiense Jean Key, fez entre 1839 e 1862 um total
de 35 viagens, das quais nada menos que 21 para o Rio de Janeiro
(12 vezes em direitura desde Antuérpia e nove vezes de um outro
porto: Cardiff, Cádiz, Lisboa ou Setúbal).
Outros navios de Key frequentavam menos o Brasil: a barca
Jean Key fez entre 1829 e 1855 um total de 39 viagens, das quais
somente três para o Rio de Janeiro. Muito ativo na rota do Brasil
foi também Egide Van Regemortel, proprietário entre 1830 e 1866
de uma dezena de veleiros. Sua escuna Octavie partiu, entre 1847
e 1867, 11 vezes para o Rio, uma vez para a Bahia e 17 vezes para o Maranhão e o Pará. Ladislas Paridant, casado com uma filha
do importante armador Cateaux-Wattel e que negociava no Rio
de Janeiro, expôs suas ideias a este respeito no livro Des lignes de
navigation entre l’Europe et le Brésil (Liège, 1855).
Na ida para o Brasil os veleiros antuerpienses carregavam geralmente sal, carvão ou mercadorias isoladas. Na falta de uma carga
lucrativa navegavam com lastro. Na volta traziam café, açúcar e
couros, que tinham mercado garantido na Europa. Também era
o caso para navios dos quais o primeiro destino era a costa Leste
dos Estados Unidos, mas que, na volta à Europa, procuravam boas
cargas em portos latino-americanos: café brasileiro, açúcar cubano
ou produtos do Rio de la Plata. Egide Van Regemortel trazia do
Maranhão e do Pará para Antuérpia couros, algodão e borracha,
sob o nome de ‘Gom-Elastic’, além de arroz, cacau, café, bálsamo
de copaíba, tabaco e salsaparrilha.
Armadores, navios e cargas
Nos anos de 1840 e 1850 a Société Maritime Belge de Bruxelas
era a principal companhia marítima belga na rota do Brasil. A empresa possuía entre 1837 e 1856 um total de 13 veleiros. Em 1841
ela fechou com o governo belga, que queria apoiar a marinha mercante e incentivar a exportação de produtos belgas, um contrato
de exploração de uma linha direta e regular para o Rio de Janeiro,
inicialmente continuada até Valparaiso. Em 1842 já se organizaram cinco partidas. Seguiram outros destinos ultramarinos, entre
os quais Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Nestas linhas
publicava-se para cada saída uma adjudicação. A Comissão para a
navegação a vela avaliava os candidatos e designava, depois de um
exame técnico dos navios, o preferido. Por princípio somente aceitavam-se veleiros de primeira classe, ataviados de cobre e sob bandeira belga. Cada travessia era subsidiada pelo governo da Bélgica.
Por mais importantes que fossem as linhas de veleiros previstas pelo governo, a maior parte das partidas para o Brasil fazia-se
Emigrantes
Um tráfico bem particular envolvia os emigrantes. Muitos milhares de europeus se dirigiram por meados do século XIX a partir
de Antuérpia para a América do Sul. Assim, o Phénomène, uma
galera de Egide Van Regemortel, partiu em agosto de 1846 com
253 emigrantes para o Rio de Janeiro. Na sua esteira seguiu em
Alexandre Baguet e Urbain Flebus
O antuerpiense Alexandre Baguet (1817-1897) viajou em 1842 para o Rio de Janeiro onde ficaria uns dez anos. Em 1845 começou uma jornada
audaciosa pelo Rio Grande do Sul e Paraguai. De regresso a Antuérpia, Baguet fez fortuna como negociante. Em abril de 1874 foi nomeado vice-cônsul do Brasil. No mesmo ano publicou seu relato da viagem, Rio-Grande-do-Sul et le Paraguay. Souvenirs de voyage. Baguet escreveu mais
dezenas de artigos sobre o Brasil na revista da Société Royale de Géographie d’Anvers. Milton Costa traduziu e editou sua Viagem ao Rio Grande
do Sul, Santa Cruz do Sul, 1997. • Urbain Flebus (1839-1853) era um sobrinho de Alexandre Baguet e pertencia a uma família antuerpiense de boas posses. Mesmo assim, com apenas 12 anos de idade, Flebus fez em 1851 sua primeira viagem marítima à América do Norte e à Ásia. Em 8 de
setembro de 1852 partiu de novo, esta vez como novice na barca Indépendance, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegou em 6 de novembro.
Carregado com 3.200 sacos de café a Indépendance iniciou em 29 de novembro a viagem de volta, mas deixando Urbain Flebus muito doente no
Rio. Faleceu lá, talvez de febre amarela, em 9 de janeiro de 1853, com seus 14 anos ainda não cumpridos. • A Indépendance era propriedade da
Société Maritime Belge. Entre 1839 e 1856 a barca fez 19 viagens para o Brasil. Em julho de 1856 o navio sofreu avarias entre a Bahia e o Rio de la
Plata. Regressada à Bahia a Indépendance foi declarada imprópria em 16 de agosto de 1856 e vendida.
82
o comércio
A marinha belga
Já que os armadores antuerpienses lidavam com uma contínua falta de tripulantes, nos anos de 1830 e 1840 colocavam-se oficiais e marujos da
marinha nacional à disposição da marinha mercante. O governo pagava o ordenado e fornecia os víveres. Assim, partiu o brigue Caroline (capitão Petit) em 24 de junho de 1835 com uma tripulação militar para o Rio. Voltou em janeiro de 1836 a Antuérpia carregado de café para os importadores Lemmé e Nottebohm. Parece que trazia também uma rica coleção de plantas brasileiras e um casal de pássaros exóticos para o Rei
Leopoldo I. • A própria marinha belga chegou a frequentar os portos brasileiros. O brigue de guerra Duc de Brabant passou em 1847 pelas costas
latino-americanas e visitou Santa Catarina e o Rio. No dia 6 de abril de 1855, o brigue ancorou de novo na baía de Santa Catarina, onde os belgas
quiseram visitar seus compatriotas que residiam por lá. No Rio, o Estado Maior do Duc foi recebido pelo hospitaleiro cônsul-geral belga, Edouard
Pecher, e sua esposa, outra filha do armador Cateaux-Wattel. Tenente-do-mar, Émile Sinkel (1823-1876), descreveu em sua Vie de marin, 1872-74,
como o grupo passou um domingo paradisíaco na Ilha de Paquetá, na baía de Guanabara, junto com as famílias dos negociantes alemães, italianos e belgas. O comandante do Duc de Brabant, o primeiro oficial e o próprio Sinkel foram também recebidos pelo casal imperial. Em 1º de maio
continuaram a viagem à Bahia. • Quem de nós não ouviu falar do Rio? Desde que estou no mar, este nome martelava constantemente minhas orelhas,
acompanhado de exclamações da maior admiração. É o mais belo porto do mundo, dizem os marinheiros; é a baía mais magnífica, é o nec plus ultra da
natureza, dizem os viajantes. Portanto eu estava prevenido e minha curiosidade em alerta. Num semelhante estado de espírito, geralmente ressente-se
decepções. Aqui nada disso. (Émile Sinkel)
novembro a Marie Key com 118 emigrantes. No mesmo ano, sete
navios belgas levaram 768 emigrantes para o Rio. Um navio saiu
para Santa Catarina, onde uma empresa belga procurava realizar
um projeto de colonização. Ainda em 1846 partiram oito navios
estrangeiros com 878 emigrantes de Antuérpia para o Rio e mais
um, com 95 para o Rio Grande.
numa viagem, passando por Le Havre, para Bahia, Santos, Rio de
Janeiro e o Rio de la Plata. Em 25 de abril de 1872 o steamer voltou no seu porto de registro, carregado em Santos com 265 sacas
de algodão para a firma Bunge. Também os vapores da companhia
antuerpiana John P. Best & Co. destinavam-se excepcionalmente à
América do Sul. Foi o caso do SS Ferdinand Van der Taelen em janeiro de 1875 saindo de Antuérpia para o Brasil e o Rio de la Plata.
Os meios comerciais de Antuérpia pouco se importavam com
o declínio da marinha mercante belga. Acreditavam tranquilamente que o princípio ‘Trade Follows the Flag’ não se aplicava ao
seu porto tão bem situado e de fácil acesso. Algumas tentativas
para estabelecer linhas belgas de vapores para a América do Sul
fracassaram. Assim foi fundada, em 1855, por iniciativa da companhia de veleiros Spilliaerdt-Caymax, uma Société Belge de Bateaux
à Vapeur entre la Belgique et l’Amérique du Sud. A Société Générale
de Belgique e o Banque de Rothschild de Paris interessaram-se pelo
negócio e o governo belga prometeu um subsídio. Encomendaram
quatro vapores metálicos na Holanda. Um destes, o Rio de Janeiro (1857), tinha capacidade de carga de quase 600 toneladas para
carvão e de quase 500 toneladas para mercadorias. Além disso,
tinha espaço para 220 passageiros, dos quais 40 em primeira classe, com cabines com água corrente e banheiros, e uma magnífica
cabine para senhoras com piano e canapés. No entanto, por causa
de vários problemas financeiros e de organização, a companhia foi
dissolvida no final de 1858. O Rio de Janeiro nunca navegou sob
bandeira belga e foi vendido no exterior.
Por falta de iniciativas belgas o governo decidiu conceder subsídios para atrair companhias estrangeiras a Antuérpia. Assim, o
Ministro de Obras Públicas, Auguste Beernaert, concluiu em 1876
um contrato com a companhia britânica Lamport & Holt sobre
uma linha subsidiada para o Brasil e o Rio de la Plata. Como a
companhia tinha que incorporar navios sob bandeira belga, organizou-se uma Société Anonyme de Navigation Royale Belge-Sud-
Da vela ao vapor
A partir dos anos de 1860 diminuiu muito rapidamente o número de veleiros belgas. O governo aboliu os subsídios e os armadores familiarizados com os veleiros sofriam a concorrência brutal
dos vapores bem maiores e mais rápidos. A exportação de produtos
agrícolas sul-americanos para Antuérpia fazia-se, cada vez mais,
com linhas de vapores do exterior, que empalmavam as melhores
cargas. O capitão Charles Boone, da companhia antuérpiense de
veleiros De Decker – Cassiers, informou mais de uma vez ao seu
armador que nos grandes portos sul-americanos estavam ancorados dezenas de veleiros à espera, sem resultado, de uma carga
lucrativa. Em 1874 De Decker – Cassiers o considerou o assunto
resolvido. O armador Claeys escutou a mesma história de seu capitão Thomas Zellien. Este relatou, numa carta do Rio Grande
do Sul em 31 de março de 1870, que havia 195 veleiros à espera.
Somente alguns poucos negociantes-armadores antuerpienses
conseguiram adquirir seus próprios vapores. Daniel Steinmann figurou primeiro como carregador e agente marítimo, mas dispunha
desde os anos de 1860 de seus próprios veleiros e vapores. Sob a
bandeira da White Cross Line navegavam sobretudo para a América
do Norte, mas esporadicamente destinavam-se também ao Brasil e
ao Rio de la Plata. A companhia T. C. Engels & Co., fundada em
1859, comprou tanto veleiros, entre os quais alguns navios de ferro
para o transporte dos nitratos chilenos, como também vapores. O
SS de Ruyter (2.500 toneladas) partiu em 23 de dezembro de 1871
83
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
-Américaine. A linha começou em 1878, com oito vapores sob bandeira belga e introduziu depois ainda outras unidades, porém sob
bandeira britânica. Os subsídios para a Lamport & Holt revelaramse uma sangria para o tesouro. Provocaram a resistência do partido
liberal e foram também bastante criticados nos círculos mercantis
de Antuérpia. O contrato terminou em 1908. Na medida em que
o número de linhas de vapores em Antuérpia aumentou, os subsídios tornaram-se desnecessários.
Sem exagero deve-se constatar que Antuérpia tornou-se nos
últimos decênios do século XIX um porto mundial sem frota própria. Nos portos brasileiros quase não se viu mais o tricolor belga.
Mesmo assim, Antuérpia e Brasil ficavam conectados mais que
nunca graças à rede mundial de linhas de vapores britânicas e
alemãs. Estes embarcavam produtos industriais belgas e sobretudo
os emigrantes da Europa central e oriental, mas interessavam-se
também aos candidatos belgas. Estes eram recrutados com uma
propaganda pouco escrupulosa, denunciada pelo escritor Georges
Eekhoud em seu romance La Nouvelle Carthage, 1893, que trazia
uma descrição naturalista do mundo de negócios antuerpiense.
Neste fervor náutico pelo Brasil, o governo municipal de Antuérpia decidiu, em 1874, dar o nome de Braziliëstraat – Rua
do Brasil – a uma nova artéria aberta no velho bairro portuário,
conhecido como Het Eilandje. Este nome de rua ainda existe e
forma um conjunto latino-americano com a Limastraat, a Montevideostraat e a mais afastada Mexicostraat. Novas iniciativas belgas
exitosas na navegação a vapor avançaram até o século XX, mas isto
já é uma outra história.
Com meus agradecimentos particulares ao senhor Luc Van Coolput,
membro da Real Academia Belga da Marinha e autor de diversas publicações sobre a marinha mercante, que gentilmente colocou muitos
dados à minha disposição.
Jan Possemiers, historiador, com tese de licenciatura sobre o bairro
ecléctico de Zurenborg em Antuérpia, premiada e publicada pela Real
Academia Flamenga da Bélgica, publicou também vários trabalhos
sobre a atividade marítima de Antuérpia.
Referências
A. De Burbure de Wesembeek. Une anthologie de la marine belge. Antwerpen,1963; Gustaaf Asaert e. a. Antwerp: a port for all easons. Antwerpen, 1986; J. Vrelust (edit.) Antwerpen Wereldhaven. Over handel en scheepvaart. Antwerpen, 2012.
Um traficante de escravos na Bahia
Chris Delarivière
D
As cartas
ezembro de 1851. O Rei Kosoko, soberano de Lagos, já era
há tempo uma espinha no olho dos britânicos que controlovam a baía do Benin. Lagos virou o principal pivô do trato dos escravos na África e o rei recusou teimosamente em ceder às exigências dos britânicos de terminar com o tráfico de escravos. Quando,
além do mais, o Rei Kosoko rejeitou a amizade da rainha da Inglaterra, os britânicos decidiram parar as negociações diplomáticas e
passar para o método duro.
Um dia depois do Natal a Royal Navy começou o ataque a Lagos. Os navios do West Africa Squadron entraram na desembocadura
do rio e dirigiram-se para o centro da cidade. Ao fogo cerrado dos
sitiados, responderam com salvas dos canhões Howitzer. Rapidamente uma parte da cidade pegou fogo. Desembarcando com suas
tropas auxiliares africanas, os soldados britânicos encontraram forte
resistência. Mesmo assim, os guerreiros do Rei Kosoko não rechaçaram as tropas da Royal Navy. O rei fugiu e dos três mil defensores da
cidade algumas centenas perderam a vida. Os britânicos contaram
somente uma dezena de vítimas. A queda de Lagos acabou assim
com o último grande empório de escravos da África ocidental. Nos
dias seguintes os conquistadores acharam no palácio do rei um maço de cartas. Tratava-se da correspondência entre o Rei Kosoko e
seus parceiros de negócios no Brasil. Várias cartas eram provenientes
de Gantois & Marback, uma firma comercial com sede em Salvador, Bahia, e fundada por Edouard Gantois, originário de Gand.
As cartas de Edouard Gantois ao Rei Kosoko constituem documentação singular sobre o estilo mercantil do tráfico de escravos. Em termos práticos e frios descrevem a mercadoria fornecida. Em nenhuma parte aparece a palavra ‘escravo’ e se fala
antes de ‘sacas’ ou ‘pacotes’. Oferecem um balanço detalhado da
‘mercadoria’, levando em conta os preços de compra e venda, os
gastos médicos e os alimentos, os prêmios de seguro, as comissões
e a ‘mercadoria’ avariada. A correspondência prova também que
Edouard Gantois tinha relações comerciais seguidas com o Rei
Kosoko. Assim informou o monarca sobre os avanços na construção de um veleiro de dois mastros destinado ao transporte dos
escravos do rei africano.
A última carta de Edouard Gantois data de 1850, em pleno
declínio do tráfico de escravos. Sob o impulso da Grã-Bretanha,
combatia-se com mais rigor os traficantes e também no Brasil
cessou a tolerância de longa data. Em suas cartas ao Rei Kosoko
transpareciam as crescentes dificuldades e as queixas sobre a defeituosa qualidade da mercadoria. Muitos escravos eram velhos ou
doentes demais e alcançavam preços baixos. Além disso, o risco
do embargo dos navios aumentava. Numa carta de outubro de
1849, Gantois alertou o Rei Kosoko a respeito dessas dificuldades
e insistiu para pressionar alguns de seus devedores. Um tal de Pe-
84
o comércio
dro Marques devia ainda fornecer cinco ‘sacas’. Ajau d’Acambi e
Agenia estavam ainda em falta na sua conta de três e dez ‘sacas’.
Pelo visto Edouard Gantois não era homem de sentimentos, mas
de trato frio e funcional.
para comprar e armar navios negreiros. Sobre os transportes por
conta de Gantois encontram-se ainda alguns dados nos arquivos.
Em 1836, o negreiro Atalaya realizou o Middle Passage em
128 dias. No golfo de Benin carregou 284 escravos, dos quais 270
desembarcaram em La Havana. Uma segunda viagem no mesmo
ano teve menos êxito, e uma carga de 121 escravos foi interceptada pela marinha britânica na baía de Biafra. O ano de 1836 foi
turbulento para a firma Gantois, pois tinha também o Esperança
na rota. Uma primeira viagem começou na Nigéria com 352 “peças” e terminou na Bahia com 325 sobreviventes. Um segundo
transporte com 477 “peças” foi confiscado. Oito anos mais tarde
Edouard Gantois continuava ativo no tráfico. Em abril de 1844
partiu a escuna A Felicidade, sob o comando do capitão J. J. da
Silva. Dos 589 escravos embarcados na África, depois de 73 dias
de viagem para chegar à Bahia, apenas 530 resistiram. No mesmo ano a guarda costeira brasileira interceptou outro navio de
Gantois. O bergantim A Fortuna tinha carregado em Lagos 630
escravos, dos quais 610 continuavam vivos. Em 1846 o iate Maria
partiu de Lagos com 178 africanos para a Bahia e chegou com 160
sobreviventes, que foram vendidos.
Por volta de 1850 os negócios começaram a declinar. As autoridades brasileiras agiam com mais severidade e a West-Africa Squadron da marinha britânica patrulhava mais intensivamente a costa
da África ocidental para interceptar os navios negreiros. A queda
de Lagos foi um golpe definitivo para o tráfico. Em seu relatório
de 24 de março de 1851, G. Jackson, Her Majesty’s Commissioner,
em Luanda, informou a apreensão, pelo West-Africa Squadron, de
54 navios, de março de 1850 a 1851, o que levou à libertação de
um total de 4.841 escravos. Em decorrência, constatou-se a venda
mais difícil de escravos e a falência dos traficantes.
Traficante de escravos e homem de negócios
Subsistem poucos dados biográficos sobre o traficante belga.
Apesar de sua posição proeminente no meio dos negociantes de
Salvador, Edouard Gantois continua uma figura algo obscura.
Nascido no final do século XVIII, emigrou para o Brasil onde estabeleceu uma firma comercial em Salvador. Lá ficou ativo entre
1830 e 1850 principalmente no tráfico de escravos, comércio ilegal mas lucrativo com agência na Rua d’Alfandega, na parte baixa
da cidade. Gantois era visivelmente um peixe graúdo no tráfico.
Junto com seus parceiros, como o francês Guilhaume Pailhet e
o britânico Henry Marbach, dirigia uma empresa próspera, com
vários navios. Nesse período de 20 anos fizeram pelo menos 36
transportes clandestinos, dos quais somente quatro foram interceptados. Os barcos partiam de Salvador com tabaco, têxteis, açúcar,
cachaça, armas e pólvora, que trocavam na África ocidental por
escravos. Sua firma era lucrativa.
Entretanto, o Brasil, seguindo a Grã-Bretanha e outros países,
proclamou em 1831 a ilegalidade do tráfico escravista. Se a escravidão continuou existindo, o comércio transatlântico de escravos
ficou proibido, mas a lei continuou letra morta. As fazendas e as
minas estavam tão dependentes da mão de obra escrava que as autoridades fechavam os olhos, ainda mais mediante propinas. Até
1850 a introdução de escravos continuou sem maiores problemas
e oferecia excelentes lucros a Gantois e seus colegas.
Em 1845 o cônsul francês, Mauboussin, considerou a chegada
de 5.542 escravos como a principal atividade comercial em Salvador. Dava bons lucros, já que, segundo o britânico Lord John Hay,
comprava-se um escravo por 10 dólares e vendia-se por 500 dólares
no Brasil. Em seu informe consular, Mauboussin relacionava a
companhia belgo-francesa Gantois & Pailhet entre os traficantes
estrangeiros, que, aliás, desprezava como contrabandistas de humanos. Seus principais portos eram Lagos, na Nigéria, e Ouidah,
no Benin, onde tinham seus agentes e depósitos.
O Terreiro do Gantois
Edouard Gantois deve ter ficado muito preocupado com a
notícia sobre a queda de Lagos. Pouco antes havia construído um
navio para o Rei Kosoko e agora não podia mais recuperar seu
dinheiro gasto. Sem futuro para o tráfico, Gantois procurou outras atividades comerciais. Isto transparece no relatório de viagem
do Imperador Pedro II pelo Norte do Brasil em 1859. Aí Gantois
figurou como proprietário de uma fábrica de tabaco. Nove anos
depois da abolição do tráfico reconverteu-se em industrial. Além
disso, investiu seus lucros do tráfico na compra de terras, que o
transformaram em latifundiário. Num destes terrenos formou-se
por meados do século XIX uma sociedade de candomblé, fundada
por mulheres Yoruba, que tinham chegado como escravas.
Foi o começo do Terreiro do Gantois, um dos templos mais
antigos do culto sincretista afro-brasileiro, situado no atual distrito
Federação, onde se localiza o campus da Universidade Federal de
Salvador. Entre os frequentadores do terreiro encontra-se gente de
todas as classes sociais, das favelas aos condomínios ou aos meios
artísticos. A cantora Maria Bethania celebrou numa de suas canções ‘minha mãe Menininha...’, a famosa mãe-de-santo Menininha
do Gantois, que ganhou prestígio nacional. Parece um destino irô-
Os navios de Gantois
Uma ida e volta no trato dos viventes entre o Brasil e a África
ocidental tomava de três a quatro meses, dependendo das escalas
escolhidas e das eventuais paradas. Estima-se que, de 1800 até
1860, foram traficados de 2 a 2,5 milhões de escravos africanos
para o Brasil. A mortalidade nos tumbeiros era alta e em média
de 10% a 20% não chegava ao fim da travessia. Mesmo assim era
um negócio lucrativo que atraía muitos comerciantes estrangeiros.
Alguns combinavam com a venda de ferramentas e armas, ainda
mais que lá serviam para a caça e a prisão dos escravos. O gandense
Edouard Gantois era um deles e associou-se com outros traficantes,
como o francês Guilhaume Pailhet e o britânico Henry Marbach,
85
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
nico que precisamente nas terras de um traficante floresceu uma
das mais respeitadas comunidades do candomblé afro-brasileiro.
Em Salvador não se encontram mais rastros de Edouard Gantois. Mas, sim de seus parceiros, o comerciante britânico Henry
Marback (Marbach), originário de Liverpool, que se tornou, na
segunda metade do século XIX, um dos homens mais ricos da
Bahia. Com sua fortuna, ganha parcialmente no tráfico, comprou
no bairro do Bonfim uma casa grande com vista para a Bahia de
Todos os Santos. O Solar Marback ainda encontra-se lá, perto da
igreja do Senhor do Bonfim, que protagoniza a maior festa religiosa de Salvador, a Lavagem do Bonfim, na qual atuam tanto padres
católicos como mães-de-santo do candomblé.
Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para
o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
Bibliografia sobre Gantois
Pierre Victor Mauboussin. Rapport sur la traite de noirs à Bahia en 1846, Ministére des
Affaires Etrangères, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia
Vol. 5;Transatlantic Slave Trade Database, <http://www.slavevoyages.org> ; Accounts
& Papers: 48 volumes (47 – Part I); Consuls; Slave Trade (Session 1852-1853), Vol.
CIII-Part I; Pierre Verger.Flux et reflux de la traite des négres. Paris, 1968; Pedro Vasconcelos. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus, 2002.
Esse fuzil de caça de 2 tiros corresponde ao modelo conhecido como “brasileiro”, que era especialmente fabricado em Liège, na segunda metade do século XIX, para
exportação. Tais armas se caracterizavam por seu modo de carragamento pela boca, pelo seu mecanismo de disparo à percussão e pela escultura da coronha. Se trata de
um modelo de luxo, ricamente esculpido, gravado e incrustrado de ouro. A tampa da caixa de munição, situada na coronha, leva o brasão do antigo império do Brasil.
Um agradecimento a Claude Gaier, especialista do comércio de armas e ex-diretor do antigo Museu de Armas de Liège, pelas fotografias.
Os belgas se situaram no século XIX entre os maiores consumidores de café, com até 7
quilos por pessoa. Se o primeiro café brasileiro teria chegado ao porto de Antuérpia via
Lisboa já por volta de 1807, somente a partir de meados do século importaram-se grandes
quantidades. Entretanto, se vendia no varejo como café de Java, de maior reputação. A
origem brasileira começou a valorizar-se depois que, nas Exposições de Antuérpia, em
1885, e de Bruxelas, em 1910, milhares de visitantes puderam prová-lo gratuitamente nos
pavilhões do Brasil. Ganhou fama com a qualidade “Santos”, nome que um negociante
belga incorporou em 1910 na sua “compagnie brésilienne” de torrefação. Esta fornecia os
“Santos Palace”, salões de café, criados em Bruxelas e em cidades praieiras como La Panne.
86
o comércio
A Bélgica se envolveu muito cedo na construção da infraestrutura ferroviária do Brasil com a vinda do capitão Henri Vlemincx, que recebeu licença do exército belga
para dirigir de 1859 a 1865 o Serviço de Tráfego da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Esta permissão deveria contribuir para levar encomendas de material ferroviário
para as metalúrgicas belgas. Estas, como as fábricas de Thy-le-Château, Cockerill, Ougrée, Marcinelle e Couillet, forneceram algumas locomotivas, mas principalmente
vagões de carga e trilhos para diversas estradas brasileiras como a Leopoldina, a Sorocabana, a Central da Bahia e a Central de Pernambuco. O equipamento mais
vultoso veio dos Ateliers franco-belges de la Dyle et Bacalan em Lovaina, que construiu o vagão do Imperador, conservado no Museu do Trem do Rio de Janeiro. Esta
empresa franco-belga participou no capital da Compagnie Générale des Chemins de fer brésiliens, que começou a partir de 1879 a realizar a concessão da linha
Curitiba-Paranaguá e abriu uma filial em Curitiba. Em 1888 se mostrou em Lovaina uma exposição de fotografias dos viadutos instalados no Brasil, mas o Álbum feito
para esta ocasião ainda não foi encontrado ou se perdeu. Nesta onda, financistas belgas, principalmente Franz Philippson, cujo nome se deu a uma colônia judaica da
Jewish Relief Association no Rio Grande do Sul, mobilizaram capitais belgas para a construção e exploração de concessões de ferrovias entre São Paulo e o Rio Grande
do Sul e organizaram em 1891 a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésiliens e em 1898 a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. Seu capital
atingiu perto de 75 milhões de francos belgas para construir e gestionar uma rede de quase 2.500 km. O material foi fornecido pelas fábricas de Braine-le-Comte. Seu
diretor, o engenheiro Gustave Vauthier, que teve sua primeira experiência na construção da estrada de ferro Matadi-Léopoldville, no Congo, construiu a Estação e a Vila
Belga de Santa Maria. Os belgas se interessaram desde 1904 pela organização da estrada de ferro Noroeste e forneceram material ferroviário ainda na década de 1920.
87
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
(Acima, à esquerda) – Inauguração do São Carlos Electric Tramway,
em frente à estação ferroviária da cidade em 27 de
dezembro de 1914.
(Acima, à direita) Projeto dos bondes encomendados pela South
Brazilian Railways a Les Ateliers Metallurgiques de Nivelles,
Bélgica, e que começaram a funcionar em Curitiba, Paraná, em
janeiro de 1913.
(À esquerda) – Bondes comprados em 1925 pela CFLPA dos Ateliers
de Construction Energie Marcinelle, Bélgica, e instalados em Porto
Alegre; notar a circulação à esquerda, no estilo inglês.
Pavilhão Belga na Exposição do Rio de Janeiro em 1922-23. O governo belga, diante da
custosa reconstrução do país devastado pela Primeira Guerra Mundial, hesitou em participar
da Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro em 1922.
Entretanto, foi pressionado pelo Rei Alberto, que, depois de sua visita ao Brasil, queria
restabelecer e desenvolver as relações econômicas entre os países. Assim confiou a organização
da participação belga ao conde Adrien van der Burch, especialista em matéria de exposições
internacionais. Na Avenida das Nações, o arquiteto Arthur Verhelle construiu um pavilhão em
estilo neorrenacentista, o Resurgam, prevalecente em muitas reconstruções nas cidades belgas.
Foi um dos poucos a ficar prontos na inauguração de 7 de setembro. Seu interior mostrava uma
exposição de arte belga. Na Praça Mauá havia mais: uma construção metálica, instalada pelo
arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, muito ligado aos interesses belgas. Numa
superfície de 7.000 m2 nada menos que 417 expositores belgas apresentavam seus produtos para o
mercado brasileiro. O número de visitantes e as vendas, no entanto, ficaram abaixo do esperado.
88
o comércio
O Copacabana (um cargueiro mixto com BRT – toneladas brutas registradas –
de 7.334 e uma Loa – longitude – de 140,15 m) foi lançado festivamente em 19
de outubro de 1937 nos estaleiros Cockerill, de Antuérpia (Hoboken), e entrou em
serviço em 1938. O navio, bastante luxuoso e mobiliado em art déco, dispunha
de amplas e modernas instalações para transporte de carnes e frutas (nas
imagens, rótulos de laranjas brasileiras). Havia também acomodação para cerca
de 140 passageiros, dos quais 20 em primeira classe. Naquele mesmo ano a CMB
(Compagnie Maritime Belge) armou ainda dois navios idênticos: o Piriapolis
e o Mar del Plata. Os três navios frequentaram os portos de Pernambuco, Rio
de Janeiro, Santos, Montevideu e Buenos Aires. O Copacabana serviu sob a
bandeira da CMB até 1958 e foi também utilizado na rota do Congo. Suas
câmaras frigoríficas permitiam o transporte de frutas, principalmente de laranjas
brasileiras que a empresa Louis Van Parijs de Antuérpia distribuía no mercado
belga. Substituíam a importação das laranjas espanholas, afetada pela guerra
civil na Espanha. Louis Van Parijs foi um dos primeiros a adquirir terras em São
Paulo para desenvolver suas próprias plantações de laranja. No pós-guerra suas
laranjas, com a marca LVP, dominaram durante muitos anos o consumo belga.
O sistema de estacas de concreto armado moldadas e cravadas no solo para sustentar grandes construções foi aperfeiçoado por um engenheiro de Liège, Edgard
Frankignoul e patenteado como ‘estaca Franki’. Para operar na construção pesada pelo mundo inteiro, fundou em 1911 sua Compagnie Internationale des Pieux
Armés Frankignoul. Em 1935 abriu uma filial brasileira no Rio de Janeiro, que interveio na construção de grandes prédios, como a Estação Dom Pedro II e Ministério
da Educação e Saúde, e de obras como o túnel 9 de Julho, em São Paulo. A seguir operou no Brasil inteiro e teve participação importante em obras em Brasília. Desde
1938 contou com a colaboração de engenheiros brasileiros e em janeiro de 1940 se transformou em empresa brasileira, Estacas Franki, com capital de um milhão de
cruzeiros. Criou em 1942 seu próprio Laboratório de Mecânica dos Solos. Dessa forma, constituiu um caso exemplar de empresa estrangeira rapidamente integrada na
tecnologia e na economia nacional.
89
empresas belgas no brasil
A Urucum dos belgas
Fa b i o G u i m a r ã e s R o l i m
D
etentora de uma das maiores reservas de manganês e minério
de ferro do mundo e de um Produto Interno Bruto em que
a indústria, liderada pela mineração, até mesmo supera o tradicionalíssimo setor pecuário, a cidade sul-matogrossense Corumbá
viu a primeira exploração sistemática de seus recursos minerais
nascer entre 1907 e 1918 pela atividade da belga Compagnie de
l’Urucum, nas montanhas de mesmo nome.
Foram décadas de profundas transformações para Corumbá.
Privilegiada por sua condição geográfica de articulação entre o
interior do continente e as capitais platinas e da zona franca para
o comércio internacional, a cidade viu explodir o número de habitantes e a atividade de casas comerciais, bancos e consulados, manifestos na arquitetura de seu porto e numa diversidade linguística
que, segundo os relatos, fazia com que o português fosse apenas
uma de suas línguas e a libra a moeda corrente.
Paralelamente, no restante da fronteira matogrossense com a
Bolívia desenvolvia-se uma intensa atuação de empresas belgas
proprietárias de imensas áreas nos dois países, sob retaguarda diplomática do governo belga na busca por administração territorial
autônoma e nos moldes de sua experiência colonialista no Congo
africano. Foi nesse cenário que operou a Compagnie de l’Urucum.
Entretanto, sua história é hoje pouco conhecida, assim como a
existência de alguma relação com as demais empresas belgas do
período. Sabe-se que a Compagnie contou com mão de obra vinda
do Uruguai e da Bolívia para a abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum e, com o fim da I Guerra Mundial,
o minério produzido não foi exportado, a despeito da conclusão
de uma via férrea entre as lavras e o Rio Paraguai e de alguma
relação firmada com os proprietários da antiga Fazenda Urucum
(em cuja área localizavam-se as lavras), que atuava simultaneamente como entreposto fornecedor de gêneros alimentícios, hospital militar e hospedagem.
É possível, contudo, estabelecer algumas inferências, resultantes do cruzamento entre as informações já conhecidas. Por exem-
A primeira exploração sistemática de recursos minerais em Corumba se deu entre
1907 e 1918 pela atividade da Compagnie de l’Urucum.
A Compagnie contou com mão de obra vinda do Uruguai e da Bolívia para a
abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum.
90
empresas belgas no brasil
plo, o geólogo Miguel Arrojado Lisboa, que passou pela região no
final de 1907 com a Comissão Schnoor, para o estabelecimento
do traçado da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil-EFNOB, faz
referência a um certo engenheiro “residente”, Delhaye, o qual informou ter trabalhado na medição da altitude máxima do maciço
(1.077 metros) “a partir da fazenda Urucum”. Seria este Delhaye
o geólogo belga Fernard Delhaye (1880-1946), que mais tarde
viria a ser o descobridor da delhayelita na região de Kivu, Zaire
(ex-Congo Belga)? Permite essa suposição a reunião de elementos
comuns como o sobrenome, o período cronológico, a profissão e
a localização da descoberta que lhe eternizou o nome – o Congo
–, remetendo ao contexto colonialista belga na África e ao que se
intentava nas fronteiras do Mato Grosso.
Casos mais concretos são representados por seções de trilhos
encontrados na área da antiga Fazenda Urucum, reforçando as
informações sobre a conexão portuária; por edificações ainda existentes na fazenda, entre as quais ao menos duas são identificadas
por antigas fotos e cartões postais como sendo da Compagnie – estaria aqui a razão de ser do termo “residente” adotado por Arrojado
Lisboa ao se referir ao engenheiro Delhaye? E, por último, mas
não menos importante, a popular “mina dos belgas”, em área atualmente sob concessão da Urucum Mineração-Vale do Rio Doce.
As atividades da Compagnie findaram-se em 1918 e a Fazenda
Urucum entrou em abandono após 1960, até ser desapropriada
em 1984. Seus remanescentes localizam-se em área adquirida
pela Vale do Rio Doce em 2007 com o intuito de ampliar sua
estocagem. A ação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan, no entanto, possibilitou a preservação da
área e a condução de um projeto para um parque histórico-arqueológico no local. A “mina dos belgas”, por sua vez, é um dos
Chalet construído na Fazenda Urucum.
geossítios de interesse histórico e mineralógico componentes do
Geopark Estadual Bodoquena-Pantanal, candidato ao reconhecimento mundial pelo Global Geoparks Network/GGN, sob os
auspícios da Unesco. Felizmente, um cenário propício para o
maior conhecimento deste passado, nem tão remoto, e que permanece vivo na economia e na paisagem corumbaenses, apto a
emergir novamente à superfície da memória.
Fabio Guimarães Rolim é arquiteto e urbanista, coordenador-geral
de Patrimônio Natural do Iphan.
A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do
Brasil e suas conexões belgas (1904-1918)
Pa u l o R o b e r t o C i m ó Q u e i r o z
A
ferrovia historicamente conhecida como Noroeste do Brasil
(NOB), existente ainda hoje, liga Bauru (SP) a Corumbá
(MS, fronteira com a Bolívia), com um ramal de Campo Grande
(MS) a Ponta-Porã (MS, fronteira com o Paraguai) – traçado que
indica seu sentido essencialmente político-estratégico.
A história da construção da NOB é extremamente movimentada. Suas origens remontam à traumática experiência da Guerra
com o Paraguai (1864-1870), quando o Sul do então Estado de
Mato Grosso (que constitui o atual Mato Grosso do Sul) foi ocupado pelas forças paraguaias.
O início de sua construção, em 1905, deu-se pelo “aproveitamento” de uma antiga concessão, efetuada pelo governo federal
em 1890, referente a uma ferrovia que deveria ligar Uberaba (MG)
a Coxim (MT) – traçado que foi alterado para Bauru-Cuiabá (capital do então MT) e concedido à Companhia de Estradas de Ferro
Noroeste do Brasil (Cia. EFNOB), fundada em 1904.
Em 1908, com a construção em andamento, novas mudanças:
o ponto final foi alterado de Cuiabá para Corumbá e a ferrovia foi
dividida em dois segmentos: a E. F. Bauru-Itapura e a E. F. Itapura-Corumbá (sendo Itapura uma localidade no extremo Oeste do
Estado de São Paulo, às margens do Rio Tietê). A concessão da
Cia. EFNOB foi mantida apenas para a Bauru-Itapura, enquanto
a Itapura-Corumbá foi declarada propriedade da União.
Em 1914 foi dado por concluído o trecho entre Bauru e as
margens do Rio Paraguai, em Porto Esperança. Pouco depois, a
União encampou a Bauru-Itapura, e de sua fusão com a Itapura-
91
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
des Travaux Dyle et Bacalan. Nos anos seguintes, Teixeira Soares
havia prosseguido em suas estreitas relações com empresas belgas, como a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésilien
e a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, ambas
integrantes de um grupo pertencente à Compagnie Générale des
Chemins de Fer Secondaires, sediado em Bruxelas.
2) O fato de a construção ter sido empreitada à empresa Compagnie Générale de Chemins de Fer et de Travaux Publics, fundada
em Bruxelas, em 1902, inicialmente com vistas a assumir a “empreitada da construção e superestrutura da linha” da estrada de ferro
de Vitória (es) a Diamantina (mg). Vale notar que o vice-presidente da NOB, João T. Soares, era também diretor da Cia. Vitória-Minas; Louis Malchain, que foi diretor da NOB, era um dos principais acionistas da Compagnie Générale, enquanto Ernest Poizat
(membro do Conselho Fiscal da NOB) aparece como pequeno
acionista e membro do Conselho Fiscal da mesma Compagnie.
3) O fato de muitos cidadãos belgas terem certamente se tornado obrigacionistas (debenturistas) da Cia. EFNOB, pois a maior
parte do capital empregado na construção foi levantado na Europa, e Bruxelas (ao lado de Paris, Amsterdã e, possivelmente, Antuérpia) esteve sempre entre os locais onde foram negociadas as
debêntures emitidas pela companhia.
4) O fato de grande parte do material rodante da ferrovia ser
de origem belga. Em 1907, as seis locomotivas de que dispunha
a empresa eram belgas, provenientes dos Ateliers de la Meuse;
dentre os 15 veículos, 12 provinham igualmente da Bélgica (nove vagões para mercadorias e três vagões de lastro). Nos anos
seguintes, a procedência belga se mantém muito forte no concernente aos veículos, embora ceda terreno no que se refere a
locomotivas. Assim, em 1911, todos os 178 veículos da ferrovia
(carros de passageiros, mistos, vagões para bagagens, animais,
mercadorias etc.) têm como procedência a Bélgica; já, contudo, no que concerne às 14 locomotivas, apenas quatro (do tipo
Mogul) eram belgas, sendo as demais importadas dos EUA. Esse
quadro parece, enfim, claramente consolidado em 1916, último
ano para o qual disponho de dados (referentes, no caso, apenas
à Bauru-Itapura). De um total de 127 veículos, nada menos que
81 eram belgas; dentre os demais, havia cinco dos Estados Unidos (carros para passageiros), e os restantes 41 eram brasileiros.
Já com relação às locomotivas, de um total de 20, apenas cinco
eram belgas: das demais, 12 eram Baldwin e três inglesas (Sharp
Stewart). Tal tendência confirma, portanto, para a NOB, a observação de Stols, que, referindo-se às ferrovias belgas no Rio
Grande do Sul, entre fins do século XIX e início do XX, assinala
que “le matériel roulant provient de plus en plus des États-Unis
ou d’ateliers brésiliens” (Stols, 2001, p. 132).
Mais difícil é a identificação de possíveis personagens belgas
na Cia. EFNOB. É certo que na primeira diretoria, eleita em
1904, aparecem vários nomes estrangeiros: Henri Lartigue, “administrador da Sociedade de Estradas de Ferro Argelianas”, como
presidente; Victor Folletête, como “administrador delegado”, e,
como diretores, Gusty Joris, Louis Malchain (“administrador da
Ouro Preto Gold Mine”) e George Moreau, “engenheiro de mi-
Vagão e interior do carro de 1ª classe da Nord Ouest Brazilian Railway, a ferrovia
conhecida como Noroeste do Brasil (NOB), que liga Bauru (SP) a Corumbá (MS).
-Corumbá resultou, em 1918, a NOB, agora inteiramente estatal.
A extensão até Corumbá e o ramal de Ponta-Porã foram construí­
dos entre 1938 e 1953.
No Oeste do Estado de São Paulo, a construção enfrentou
forte resistência dos antigos habitantes desse território, isto é, os
indígenas kaingang, o que gerou sangrentos confrontos. Além disso, muitas vidas de operários e engenheiros foram ceifadas pela
malária que grassava no vale do Rio Tietê.
A Cia. EFNOB foi constituída no Rio de Janeiro, em junho de
1904, como uma empresa brasileira, com capital de 10 mil contos de réis, e, dentre seus nove acionistas, apenas um trazia um
nome estrangeiro: Victor Folletête, citado como “incorporador”.
Mas a presença de capitais e interesses belgas fica especialmente
evidenciada por quatro circunstâncias:
1) As conexões belgas do fundador e principal dirigente da
Cia., engenheiro João Teixeira Soares, cujo elevado prestígio profissional derivava, em grande parte, de sua atuação como chefe da
construção da célebre ferrovia de Curitiba a Paranaguá, no início
da década de 1880, a serviço da empreiteira belga Société Anonyme
92
empresas belgas no brasil
corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos [s.d.]. 222 p.; CASTRO, Maria Inês Malta. O
preço do progresso: a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1905-1914).
Campinas, 1993. 293 f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH/Unicamp; DIAS,
José Roberto de Souza. Caminhos de ferro do Rio Grande do Sul: uma contribuição ao
estudo da formação histórica do sistema de transportes ferroviários no Brasil meridional. São Paulo: Ed. Rios, 1986; ENG. João Teixeira Soares. Engenharia, São Paulo:
Instituto de Engenharia, v. 7, n. 74, p. 53-54, out. 1948; Legislação federal brasileira (leis e decretos), disponível em: <www.camara.gov.br> e <www.senado.gov.br>;
QUEIROZ, Paulo R. Cimó. As curvas do trem e os meandros do poder: o nascimento
da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1904-1908). Campo Grande: Ed. UFMS,
1997. 163 p.; QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F.
Noroeste do Brasil na primeira metade do século 20. Bauru: Edusc; Campo Grande:
Ed. UFMS, 2004; RELATÓRIO da diretoria da Companhia E. F. Noroeste do Brazil
apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 11 de junho de 1906. Rio de
Janeiro: Typ. de Heitor Ribeiro & C., 1906; RELATÓRIO da diretoria da Companhia
E. F. Noroeste do Brasil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 14 de
agosto de 1907. Rio de Janeiro: Typ. do “Jornal do Commercio”, de Rodrigues & C.,
1907; RELATÓRIO da diretoria da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do
Brazil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 16 de outubro de 1911.
Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1911; RELATÓRIO da diretoria [da Companhia de
Estradas de Ferro Noroeste do Brasil referente ao ano de 1916]. São Paulo: Estab.
Graphico “Universal”, 1917, 119 p.; STOLS, Eddy. Présences belges et luxembourgeoises dans la modernisation et l’industrialisation du Brésil (1830-1940). In: DE
PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan (ed.). Brasil: cultures and
economies of four continents – cultures et economies de quatre continents. Leuven:
Uitjeverij Acco, 2001, p. 121-164; TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia ferroviária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Notícia & Cia., 2011.
nas”. Não me foi possível, até o momento, identificar claramente
a nacionalidade de nenhum desses personagens, nem de outros
que, ao longo dos anos seguintes, aparecem como dirigentes ou
acionistas da Cia., como Gaston Hamelin, Jean Jourdan, Parmentier, J. Bartholomé, George Prévault, Charles Rau, Léon Maître e
Hubert Laroze. Contudo, levando em conta os resultados que obtive em buscas pela internet, inclino-me a dizer que se tratava, na
maioria, de cidadãos franceses – o que contribuiria para confirmar
a observação de Fernando de Azevedo, segundo a qual a Cia. EFNOB foi formada por “capitais mistos, brasileiro e franco-belga”.
Paulo Roberto Cimó Queiroz, Doutor em História pela Universidade de São Paulo, com estágio de pós-doutoramento na Universidade
Federal Fluminense. É Professor Associado da Universidade Federal
da Grande Dourados (Mato Grosso do Sul) como docente e orientador nos cursos de graduação e pós-graduação em História (Mestrado
e Doutorado).
Referências
Atas de assembleias e relatórios da diretoria da empresa, publicados no Diário Oficial da
União, disponíveis em: <www.jusbrasil.com.br>; AZEVEDO, Fernando de. Um trem
Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da
Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.
Jean Suettinni
A
sociedade anônima Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.
(SCBB) foi fundada na cidade de Anvers (Antuérpia), no norte da Bélgica, em 23 de fevereiro de 1907, pelo Groupe LADM em
acordo firmado com as empresas Fry Miers & Co., Nathan & Co.
e com o consorciado delas no Brasil, o industrial pernambucano
João de Hollanda Vasconcellos.
O Groupe LADM era composto por industriais e financistas
das cidades de Liège, Anvers, Deurne e Malines (Mechelen), que
eram proprietários de fábricas do setor têxtil na Bélgica, além de
serem acionistas de indústrias localizadas em outros países do Noroeste europeu e na Rússia (Société Cotonnière Belge-Brésilienne,
1907, p. 3-11).
A sociedade anônima SCBB foi criada para estabelecer uma
cidade industrial com fábrica especializada em tecidos de algodão localizada no Estado de Pernambuco, no Nordeste do Brasil,
especificamente na área circunvizinha da metrópole de Recife
que, em função do porto, constituía a quinta localidade mais
industrializada do país, possuindo atrativos ambientais, infraestruturais e econômicos para o investimento do capital industrial
europeu. Esse empreendimento desenvolveu-se durante o processo de urbanização industrial europeia que ocorreu em outros
continentes.
A sociedade anônima SCBB instituiu o Conselho de Anvers como responsável para gerir a construção da cidade industrial belga
em Pernambuco e a administração efetiva do empreendimento,
representando todos os acionistas na estrutura jurídico-societária
estabelecida. O Conselho de Anvers nomeou o brasileiro João de
Hollanda Vasconcellos como procurador da sociedade anônima
SCBB no Brasil para implantar jurídico-administrativamente a
fábrica têxtil belga, atendendo as exigências dos ministérios no
Rio de Janeiro (capital da República na época) e agilizando a implantação da cidade industrial em Pernambuco.
Em 29 de novembro de 1907, a sociedade anônima SCBB
comprou o engenho de açúcar São Sebastião localizado no vale
do Rio Jaboatão, na região fisiográfica de mata atlântica, a 28 km
da cidade do Recife, e, assim, foi iniciada a construção da cidade
industrial belga. A propriedade adquirida, originada do sistema
de plantation da cana-de-açúcar, era servida por eficiente sistema
viário com a intersecção da rodovia Estrada Real com a estrada de
ferro da Great Western of Brazil Railway Company Limited (que
possuía uma estação ferroviária). Essas vias ligavam o porto do
Recife até o extremo oeste de Pernambuco, atravessando extensa
zona rural (Suettinni, 2011, p. 59-64).
Os engenheiros-arquitetos belgas Fernand Selvais e Pieter
93
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
94
empresas belgas no brasil
Gruschke foram os responsáveis pelo projeto urbanístico da cidade industrial da SCBB, com a colaboração administrativa do
superintendente da sociedade anônima no Brasil, o industrial Wilhelm Bauer, natural da cidade de Malines, que foi nomeado pelo
Conselho de Anvers. A edificação da cidade belga em um antigo
engenho de açúcar norteou uma nova lógica socioespacial para a
localidade, instituindo assim o efetivo aproveitamento da mão de
obra campesina, ora ociosa (por conta da falência da agroindústria
do açúcar), que foi especializada para ocupar as funções de oleiro,
pedreiro e posteriormente de operário (Bauer, 1915, p. 5, 18-32).
A implantação da cidade industrial da SCBB foi delineada
aproveitando-se a espacialidade do engenho São Sebastião quanto
à infraestrutura de vias (a Estrada Real e a Ferrovia Recife-Vitória
de Santo Antão), os recursos naturais (o Rio Jaboatão, as matas
nativas e o solo) e a situação locacional caracterizada por uma
topografia de colinas. Na estrutura espacial do engenho evidenciou-se um processo de desmanche com o plantio de 2 milhões de
mudas de eucalipto (nas áreas de cana-de-açúcar), a reutilização
dos edifícios singulares (casa-grande, capela, senzala, conjunto do
cemitério e outros prédios rurais) e o aproveitamento do traçado
viário com as novas edificações localizadas às margens da Estrada
Real formando alamedas (apresentando paisagismo arbóreo de
flamboyants e castanholas). Assim, o traçado ortogonal do lugar
belga, com tendência à espontaneidade da topografia íngreme,
foi delineado por um cinturão verde circundante, com a primeira secção de floresta de eucaliptos e a segunda de mata atlântica,
demarcando o fim do perímetro urbano em meio a um território
entremeado de engenhos de açúcar, canaviais e extensas áreas de
vegetação nativa (Suettinni, op. cit., p. 66-72, 74-77).
O projeto urbanístico foi efetivado no platô a partir da centralidade do edifício da fábrica têxtil e localizado estrategicamente
próximo à estação ferroviária. Nessa área central foram dispostos
os prédios de apoio técnico, a termoelétrica, as lojas de comércio e
serviços, a praça da feira, as 12 vilas operárias, o conjunto de chalés
de diretores e técnicos, uma Villa Belge como casa da superintendência, as duas escolas, o posto de saúde, o campo de futebol, a
pista de patinação e outros edifícios e logradouros públicos (compondo as alamedas ou formando arruamentos paralelos). A fábrica
têxtil era circundada por um anel de trilhos que, através de um
ramal, estava ligado à estação ferroviária para facilitar a logística
da cadeia produtiva (Selvais, 1921, p. 19-78).
A primeira fase do projeto da Cidade Industrial da SCBB deu-se entre 1910 e 1915, com a inauguração e o funcionamento efetivo da fábrica têxtil, que abrigou mais de 3.000 operários, oriundos
da área de entorno de Recife, e de várias localidades do Nordeste
do Brasil, como também 123 executivos e técnicos belgas imigraram com suas famílias para residir no “Lugar Belga” em Pernambuco. Nessa fase, o advento da I Guerra Mundial na Europa impediu que o projeto urbanístico final fosse concluído em prol do
efetivo funcionamento da fábrica têxtil da SCBB no Brasil (Jean,
op. cit., p. 35-40).
Entre 1920 e 1933 deu-se a expansão do projeto da cidade
industrial da SCBB, pois, devido à crescente demanda de operários, uma quantidade significativa de intervenções urbanísticas foi
acrescida à tessitura urbana em benefício da funcionalidade da fábrica têxtil e da reprodução socioespacial. Para isso, uma missão de
engenheiros e arquitetos belgas, sob a direção de Pieter Gruschke,
planejou o crescimento urbano da localidade. Foram construídas
36 vilas residenciais que triplicaram a oferta de moradia na cidade
industrial, com destaque para a Villa Saint-Nicolas-Waes, com 17
casas em estilo “La Maison Flamande”, em bloco de fileira e com
fachadas em tijolos aparentes. Assim foi expandida a composição
das alamedas e dos arruamentos paralelos a partir da linearidade
da rodovia (Gruschke, 1948, p. 29, 55-73).
Outros edifícios singulares e equipamentos coletivos foram
construídos, sendo as principais obras o Mercado Central (1922),
a Praça das Bandeiras (1923) com morfologia em uma cruz celta, apresentando projeto paisagístico arbóreo de fícus e pinheiros,
e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição (1930) com a
fachada inspirada na L’église Notre-Dame-de-l’Immaculée-Conception de Liège. Quanto à infraestrutura, as principais obras foram a
ampliação do anel ferroviário interno da fábrica têxtil, o calçamento em paralelepípedo de alamedas e ruas e a implantação da rede
elétrica e do sistema de esgoto que beneficiou todos os operários
do lugar belga (Suettinni, op. cit., p. 85, 88-94).
Desse modo, com a finalização do projeto urbanístico, a cidade industrial da SCBB aumentou a autossuficiência econômico-espacial e, paralelamente, passou a ser denominada e reconhecida
por belgas e brasileiros como Nouvelle-Anvers.
Com o passar dos anos, foi acrescida à tessitura da cidade industrial belga a construção de outras vilas operárias, equipamentos
coletivos e edifícios singulares, com a manutenção efetiva que a
sociedade anônima realizava no ambiente construído, como no
serviço de recolhimento de lixo realizado pela intendência da cidade industrial.
Com a II Guerra Mundial (1939-1945), a sociedade anônima
SCBB perdeu os seus contatos com Anvers, mas manteve-se como
empresa estrangeira no Brasil com os produtos da fábrica têxtil sendo exportados para os Estados Unidos e o Canadá, como também
atendendo ao mercado interno. E em 1950 a sociedade anônima
conseguiu concluir a edificação e instalação da indústria subsidiária da fábrica têxtil, a Tissage Wallonie-Flandre Et Cie. (Société
Cotonnière Belge-Brésilienne, 1966, p. 18, 43-67).
Por conseguinte, a situação do pós-guerra na Europa, mesmo
com a salvaguarda do Plano Marshall, e a crise da safra de algodão no Nordeste brasileiro, que afetou o setor da indústria têxtil,
afora o incentivo para que a industrialização local fosse centralizada no Sudeste do país, fez com que a sociedade anônima SCBB
encerrasse as atividades no Brasil em 1966 e, assim, repassasse as
ações dela para um grupo local, com participação acionária de
dois executivos da SCBB apenas, denominado Brasil-Belgo Union.
Jean Suettinni é Mestre em Projeto da Cidade e da Arquitetura pelo
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU)
Implantação da cidade industrial da SCBB.
95
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Urbanista e historiador (B.Sc.)
pela UFPE; presidente-fundador do Instituto de Estudos Históricos
Belgo-Brasileiros; organizador/pesquisador e detentor dos Direitos Documentais do Acervo da SCBB/Groupe LADM no Brasil e na América Latina.
BAUER, Wilhelm. Rapport au Conseil d’Anvers (1907-1917). S.C.B.B.: Pernambouc
(Brésil), 1917.
SELVAIS, Fernand. Rapport au Conseil Général du S. C. B. B. (1907-1920). LADM /
S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1921.
Gruschke, Peter. Rapport au Conseil d’Anvers (1920-1948) ). LADM / S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1949.
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Rapport de Monsieur Charles De
Vocht au conseil général du S. C. B. B. LADM / S.C.B.B.: Anvers, 1966.
Suettinni, Jean. Um Lugar Belga em Pernambuco: o Núcleo Fabril da Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A. (1907 – 1966). Tese de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
sob a orientação da PhD. Dra. Lúcia Leitão. Recife: MDU/DEAU/UFPE, 2011.
Referências
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Statut Général. LADM / S.C.B.B.:
Anvers, 1907.
A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América do Sul
2
013, ano em que comemora seu 150º aniversário de fundação e a apenas três para celebrar os 75 anos de chegada ao
Brasil, o grupo químico internacional belga, denominado Solvay
S.A., reitera sua estratégia de crescimento fortemente baseada
nos pilares da sustentabilidade. A empresa encontra-se engajada para enfrentar de forma inovadora, e baseada na excelência
operacional, os desafios do presente e aqueles que terão de ser
superados no futuro.
Essa linha-mestra de atuação tem origem nos ideais que nortearam a vida pessoal e profissional de Ernest Solvay, que, em
conjunto com seu irmão Alfred, fundou a Solvay & Cie em 1863.
Ernest sempre pautou suas atividades em conformidade com a
filosofia social progressista. Exemplos desta forma de pensar e
agir permearam seus passos, inclusive como empregador. Antes
mesmo de ser obrigado por lei, estabeleceu para seus funcionários um sistema de seguro social, implementou plano de aposentadoria em 1878, jornada de 8 horas em 1897 e férias pagas
em 1913. Tudo isso no auge do segundo período da Revolução
Industrial, quando as condições de trabalho eram insalubres e
submetiam os empregados às piores situações já experimentadas
desde a escravidão.
Ernest não se restringiu aos muros de seus empreendimentos.
Dedicou olhar especial à sociedade, e fundou várias bases científicas, filantrópicas e de caridade, incluindo o Instituto de Fisiologia
(1895) e de Sociologia (1901), bem como a prestigiada Escola de
Comércio Solvay (1903). A Biblioteca Solvay e o edifício que a
abriga também foram obras financiadas por Ernest Solvay e doada
à comunidade. O prédio foi originalmente construído para o Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas.
A paixão primordial pela ciência impulsionou Ernest a expressá-la de forma ampla em 1911, ao agregar em Bruxelas a maioria
dos mundialmente famosos físicos e químicos da época. Entre os
participantes, Marie Curie, Albert Einstein, Max Planck, Ernest
Rutherford, Henri Poincaré e Maurice de Broglie.
Foi a partir desse encontro que nasceu o Conselho Internacional de Física e Química da Solvay, que ainda se mantém atuante.
Também conhecido por Instituto de Física e Química Solvay, esta
entidade possui como atividade central a organização das reuniões
do Conselho e a concessão de apoio às pesquisas realizadas pelos
cientistas filiados.
Em 1940, a ocupação da Bélgica pelas tropas alemãs durante a
Segunda Guerra Mundial foi definitiva para que a Solvay decidisse estabelecer no Brasil os mesmos ideais que já a conduziam em
solos da Europa, no Leste Europeu. Além de um complexo industrial, a Solvay contribuiu também para criar no país uma comunidade de trabalho, prosperidade, solidariedade e respeito mútuos.
E foi por intermédio desta linha de atuação cidadã que no
século passado, entre as décadas de 1930 e 1940, a empreendedora família contrapôs-se aos contextos de depressão financeira e
bélica, que dominavam inúmeros países e dizimavam incontáveis
empresas e seres humanos, e seguiu em frente com os ideais de seu
patriarca Ernest Solvay. Sem render-se aos obstáculos históricos,
optou por utilizar as temáticas de expansão e hegemonia geográfica de forma positiva e com vistas ao progresso da humanidade.
A primeira empresa do Grupo Solvay em solo brasileiro foi a
Indústrias Químicas Eletro Cloro, que, apesar de legalmente constituída em 1941, viu-se obrigada a protelar a construção da fábrica,
e da vila para seus operários, devido às dificuldades causadas pela
guerra para o envio de recursos.
O local escolhido para a instalação do complexo industrial
foi o quilômetro 38 da Ferrovia Santos-Jundiaí, no município de
Santo André, região metropolitana de São Paulo. Ali, a Solvay semeou tecnologia, aprendeu a ser brasileira e abriu as portas para
sua atuação na América do Sul.
Cercada pela Mata Atlântica em terreno de 7 milhões de metros quadrados, cortada pelo Rio Grande, pela estrada de ferro e
estrategicamente próxima ao Porto de Santos, da Estrada Caminho do Mar e da Via Anchieta – que à época se encontrava em
construção –, a Solvay ergueu a Indústrias Químicas Eletro Cloro
S.A. e a Vila Elclor.
Pelo litoral paulista a empresa recebia as matérias-primas sal
e energia elétrica para o processo de eletrólise. A eletricidade era
96
empresas belgas no brasil
Vista parcial da Solvay Indupa em Santo André. Ao fundo, instalações fabris, 1947.
fornecida pela Light & Power através da usina de Cubatão. E assim garantia-se a produção de cloro e soda cáustica.
Em 1945, a Solvay lançou a pedra fundamental da fábrica e
na sequência iniciou a terraplenagem. O período coincidiu com
a desativação de vários canteiros de obras de outro grande empreendimento na mesma região, a construção da Rodovia Anchieta,
que liga a capital paulista a Santos.
Os trabalhadores aos poucos foram migrando para a construção da Indústrias Químicas Eletro Cloro. E os bons ventos sopraram a favor da Solvay, pois essa mão de obra estava habituada ao
clima úmido e a então hostil região da Mata Atlântica.
A inauguração foi em 16 de julho de 1946, um dia com clima bastante comum ao local: nublado. A produção inicial era de
cerca de 1 tonelada de cloro por dia. E, não demorou muito para
que a empresa belga começasse a confiar a brasileiros natos postos
de comando dentro da organização. O primeiro a assumir como
chefe de produção foi o engenheiro Leonel Luciano, formado
pelo Instituto Mackenzie de São Paulo. Ingressou na Eletro Cloro em 1956 e lá permaneceu até 1991. Durante esse período, fez
especialização no exterior e se destacou em sua área de atuação.
A partir do start-up da Eletro Cloro, gradativamente a Solvay
passou a desbravar outras fronteiras territoriais e de atuação industrial dentro do Brasil. Adquiriu o controle acionário da Enisa
(Empresa Salineira e de Navegação Igoronhon S.A.), localizada
em um complexo de ilhas (Caieira, Garça, Beirada Funda, Enforcado, Igoronhon e Carrapato) no Estado do Maranhão. Em Minas
Gerais, comprou a CBCC (Companhia Brasileira de Carbureto
de Cálcio), situada no município de Santos Dumont.
Outra empresa agregada foi a Malharia Industrial do Nordeste, no Distrito Industrial de Paulista, cidade a 20 km de Recife, Pernambuco. Também fez parte das aquisições a Plavinil,
no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, capital. A Peróxidos
do Brasil integrou-se ao rol de negócios no qual a Solvay passou
a atuar; e neste caso com o caráter de joint venture, com a brasileira Produtos Químicos Makay. Já o início das atividades no
setor veterinário se deu com a aquisição da Salsbury Laboratórios
Ltda., em Campinas, no Estado de São Paulo, cidade dotada de
Cerimônia na Solvay Indupa em 1948 com a presença do prefeito de Santo
André, Antonio Flaquer, e comitiva.
renomadas universidades e importante polo de pesquisa e inovação no Brasil.
Esta preocupação de se estabelecer próxima ao setor acadêmico para a promoção da cultura do saber sempre permeou as relações da Solvay com a comunidade. No Brasil não foi diferente.
E a Educação merece um capítulo à parte dentro da história do
Grupo no País.
Desde sua fundação, a Solvay aporta capital expressivo para
o desenvolvimento de seus empregados e da comunidade em geral. Faz parte da política de Relações Humanas (RH) do Grupo
o financiamento parcial de estudos que visem o aprimoramento
profissional dos empregados.
Localmente, o primeiro grande projeto educacional nasceu
junto com a Vila Elclor, por intermédio do estabelecimento legal
de uma escola de ensino fundamental para os filhos dos funcionários, cujas vagas remanescentes eram disputadas pela comunidade,
devido ao reconhecimento da qualidade do ensino.
Ano após ano, a disputa por uma das bolsas de estudo destinada
a estagiários de diferentes campos de atuação científica é acirrada.
Por meio dos estágios, a empresa permite que jovens testem na
prática supervisionada os ensinamentos teóricos de cursos técnicos e superiores, oferecendo-lhes o primeiro contato real com o
mundo industrial e corporativo. Em 2013, as bolsas de estágio,
formalmente estabelecidas com instituições de ensinos superior
e técnico, atenderam a 250 jovens estudantes brasileiros.
Mundialmente, todas as empresas Solvay também são orientadas a analisar as solicitações de apoios ou patrocínios primeiramente pelo ângulo educacional do projeto, de acordo com o
tripé social do Desenvolvimento Sustentável. Esta regra é válida
inclusive para os programas sociais próprios, desenvolvidos com as
comunidades vizinhas às fábricas. Esta determinação segue em linha com uma das paixões expressas por Ernest Solvay, que ansiava
pela disseminação do conhecimento e de sua disponibilidade no
apoio às pesquisas em todos os campos da ciência.
97
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Vista aérea da planta industrial da Solvay Indupa de Santo André.
Justamente essa ampla visão voltada à aquisição de conhecimento e de constante aprimoramento de suas competências sociais e fabris levou a Solvay a ousar na diversificação de portfólio
e de atuação industrial na década de 1980. Já no limiar de 1990,
resolveu rebatizar a Eletro Cloro como parte de sua estratégia de
reconhecimento à boa acolhida em solo brasileiro. A empresa
passou a denominar-se Solvay do Brasil S.A.
A Solvay S.A., na Bélgica, realizou vários ajustes e reorientação
de atuação nos anos 1990. Essas alterações atingiram os negócios
locais. Foi a partir do know-how adquirido na fábrica de Santo
André que o Grupo resolveu explorar os mercados da América do
Sul por intermédio da aquisição, em 1996, de 51% das ações da
Indupa S.A.I.C., na Argentina, pioneira no setor petroquímico daquele país. No mesmo ano, ainda em terras argentinas, foi criada
a Solvay Automotive Argentina.
Os anos 2000 também foram bastante férteis para a Solvay.
Marca sua entrada local no segmento de saúde humana com a
compra dos Laboratórios Sintofarma, em Taboão da Serra, São
Paulo, que passou a se chamar Solvay Farma. Nessa mesma década, o Grupo Solvay forma, no município de Osasco, região metropolitana de São Paulo, a Dacarto Benvic, no sistema de joint
venture (50%-50%) com a Dacarto S.A. Indústrias de Plásticos, para
atuar no segmento de compostos de PVC.
Desde o início de operação da antiga Eletro Cloro, em 1946, o
Brasil sempre esteve no foco das estratégias de crescimento da Solvay. Esse ponto de vista se fortaleceu em 2011, quando adquiriu
100% da francesa Rhodia. Localmente, foram agregados ao Grupo
cinco unidades industriais e um centro de Pesquisa e Desenvolvimento, situados no Estado de São Paulo. Também se integraram
à carteira da Solvay no País os negócios de aroma performance,
fibras industriais e têxteis, energia renovável, plásticos de engenharia, poliamida e intermediários, sílica, solventes e a área que atua
nos mercados de produtos de alto desempenho para uma ampla
variedade de indústrias, incluindo as de cosméticos, produtos de
limpeza, agroquímicos e óleo, assim como para aplicações industriais. O Grupo Solvay emprega hoje cerca de 3.000 funcionários.
98
empresas belgas no brasil
Junto com o legado da francesa Rhodia no Brasil, a Solvay
recebeu ainda o Instituto de mesmo nome, entidade sem fins lucrativos que atua em projetos sociais ligados à educação complementar, atendendo adolescentes e jovens de baixa renda, de 12 a
24 anos, nas comunidades onde a empresa tem atuação industrial
e ou comercial. Em reconhecimento à força da marca localmente,
o Brasil foi o único país que manteve o nome Rhodia após recente
alinhamento mundial de branding, que incluiu a reestruturação
da logomarca do Grupo.
As sinergias entre os dois legados são maiores do que as diferenças, o que facilita a condução dos negócios em nível mundial.
O futuro do Grupo Solvay no Brasil também já está traçado e ali-
nhado à estratégia global, dentro do programa denominado Solvay
Way, fortemente ancorado no incentivo à inovação para o fornecimento de produtos que atendam aos desafios do desenvolvimento
sustentável. Esse programa começou a ser implantado em 2013
em todas as empresas do grupo, e esta abordagem já integra os
planos estratégicos de cada um dos negócios.
Dessa forma, a Solvay segue rumo aos próximos 150 anos ciente de seu papel como empregador responsável e uma empresa com
atuação cidadã, que enxerga em cada um de seus stakeholders a
possibilidade de juntos continuarem a construção de um mundo
mais igualitário e melhor para todos. Assim como em 1863 já pensava e agia Ernest Solvay.
Tractebel Energia
O
compromisso com a busca do desenvolvimento sustentável
acompanha a Tractebel Energia desde sua criação, em 1998,
data do início de suas atividades no Brasil sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica. Acreditando no potencial de crescimento do Brasil, o grupo GDF SUEZ, atual controlador da empresa,
trouxe sua experiência adquirida em mais de um século de atuação
no desenvolvimento de soluções sustentáveis e inovadoras para os
setores de água, energia e gestão de resíduos.
Com sede em Florianópolis, Santa Catarina, a Tractebel Energia é a maior geradora privada de energia do Brasil. Empregando diretamente pouco mais de mil pessoas, está presente em 12
Estados, nas cinco regiões do País, onde opera 22 usinas, entre
hidrelétricas, termelétricas e complementares (eólicas, a biomassa e pequenas centrais hidrelétricas). Juntos, em 2012 esses empreendimentos somavam 8.630 MW de capacidade instalada, o
equivalente a cerca de 7% do total de energia consumida no Brasil.
Desta capacidade instalada, aproximadamente 80% é proveniente de fontes renováveis: água, vento e biomassa. E praticamente todo o seu parque gerador tem sua gestão certificada segundo
as normas NBR ISO 9001 (Qualidade), NBR ISO 14001 (Meio
Ambiente) e OHSAS 18001 (Saúde e Segurança do Trabalho).
Isso confirma o compromisso da Tractebel Energia de atuar
de forma sustentável, equilibrando crescimento econômico com
conservação ambiental e avanços sociais. Essa premissa reflete os
valores que a empresa compartilha com o seu controlador, o grupo
GDF SUEZ, com sede na França, e maior produtor independente
de energia do mundo, presente em 100 países.
Alinhada às políticas do grupo GDF SUEZ, a Tractebel Energia faz do respeito ao meio ambiente um valor fundamental à
conduta dos negócios. Assim, a gestão ambiental realizada pela
Companhia, tanto nos empreendimentos em operação quanto naqueles em fase de implantação, tem como base a identificação, a
Geração de energia de biomassa; a Tractebel Energia é a maior geradora privada
de energia do Brasil, está presente em 12 Estados e opera 22 usinas, entre
hidrelétricas, termelétricas e complementares.
Geração de energia eólica; em 2012 as usinas da Tractebel somavam 8.630
MW de capacidade instalada, o equivalente a cerca de 7% do total de energia
consumida no Brasil.
99
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Geração de energia por hidrelétricas; a Tractebel Energia foi criada em 1998 sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica.
prevenção e a mitigação de possíveis impactos causados ao meio
ambiente em função de suas atividades. Para isso, a Tractebel desenvolve uma série de programas e projetos focados na melhoria
ambiental das regiões onde está inserida, o que inclui a proteção de nascentes, a conservação da flora e da fauna, a educação
ambiental, o investimento em fontes renováveis e o combate ao
aquecimento global, entre outras ações.
nas. A infraestrutura oferecida à comunidade conta com anfiteatro
para 150 pessoas, salas para oficinas de inclusão digital, cursos de
capacitação, biblioteca, museu e espaço para exposições. Assim,
propicia o intercâmbio de companhias de dança, teatro, música e
outras manifestações artístico-culturais de diversas regiões do Brasil.
Também participa do desenvolvimento cultural das comunidades com o apoio a projetos de inciativas locais, contemplando
manifestações tais como cinema, música, teatro, dança e literatura. Além disso, apoia ações voltadas à inclusão social, geração
de emprego e renda, educação, promoção da saúde e erradicação da miséria.
Parceria com a comunidade
Por meio de parcerias com agentes locais, a Companhia busca colaborar de forma decisiva com o desenvolvimento humano
das comunidades situadas no entorno de seus empreendimentos,
engajando-se em ações voltadas à qualidade de vida, à valorização
cultural e à conquista da cidadania.
Exemplo disso são os centros de cultura, uma das ações sociais
patrocinadas pela Companhia nos últimos anos. Implantados em
cidades de pequeno porte, esses centros têm como objetivo criar
um importante vínculo entre as memórias étnicas e culturais da
comunidade local e a construção de um futuro no qual as pessoas tenham mais oportunidades de preservar suas tradições e de
conquistar cidadania por meio do acesso à cultura e à educação.
O primeiro projeto nesse sentido foi inaugurado em 2011, no
município de Entre Rios do Sul, no Rio Grande do Sul, com pouco mais de 3 mil habitantes e localizado na área de influência da
Usina Hidrelétrica Passo Fundo. Desde que começou a funcionar,
este Centro já recebeu cerca de 20 mil visitantes, tanto para assistir
a espetáculos e exposições quanto para participar de cursos e ofici-
Criação de valor
A postura empresarial diferenciada em relação à sustentabilidade, somada a boas práticas de governança corporativa, conferem credibilidade e solidez à Tractebel Energia no mercado.
A Companhia faz parte do Novo Mercado e integra o Índice de
Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F Bovespa desde
2005 – ano de criação do ISE. Na última década, a Tractebel
Energia vem alcançando ótimos resultados, e suas ações registraram valorização ascendente. Uma prova de que a opção pela
sustentabilidade garante o bom desempenho econômico-financeiro de uma organização.
E assim, aliando os valores trazidos da França e da Bélgica
por seus controladores ao potencial local e à cultura brasileira, a
Tractebel Energia mantém seu compromisso com a construção
de um Brasil cada vez melhor.
100
empresas belgas no brasil
DEME: uma empresa de engenharia marinha
com 150 anos de experiência mundial
A
DEME (Dredging, Environmental & Marine Engineering)
foi estabelecida como uma sociedade de participação em
abril de 1991, mas suas raízes remontam ao século 19. As origens
da DEME estão embutidas na Flandres, que tem uma longa competência de engenharia hidráulica na construção de diques, na luta contra as inundações, no aprofundamento do acesso marítimo
e na construção de portos.
A DEME foi criada como sociedade de participação de duas
empreiteiras de dragagem belgas: Dredging International e Baggerwerken Decloedt. Dois grupos industriais e financeiros atual­
mente controlam o capital de participação: Ackermans & van
Haaren, um grupo de investimento industrial baseado em Antuérpia e cotado na bolsa; e a CFE, uma empreiteira civil cotada na bolsa, controlada pelo grupo francês Vinci. A experiência
da DEME no Brasil remonta ao início do século 20, quando a
Ackermans estava envolvida nos trabalhos de extensão no porto
do Rio Grande do Sul, em 1908. Mais recentemente, o grupo
está ativamente presente no mercado brasileiro desde 2006, momento em que o mercado de dragagem foi aberto novamente
para empresas estrangeiras. O Grupo DEME criou uma companhia brasileira local em 2006, a Dragabras Serviços de Dragagem
­Ltda., para todas as suas atividades no Brasil.
A DEME esteve envolvida em diferentes projetos de grande
escala de dragagem no Brasil, tanto para clientes públicos como
para privados: realizou trabalhos de dragagem e de aterro hidráulico para a construção da Usina Siderúrgica da Thyssen Krupp
CSA, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2006-2008); a dragagem de aprofundamento do canal de acesso ao porto de Itaguaí,
Drenagem de aprofundamento da seção 5 do canal de acesso ao porto de Itaguaí,
Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro.
localizado na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2008-2009); a
dragagem para o aprofundamento da seção 5 do canal de acesso
do porto de Itaguaí, incluindo o aprofundamento do acesso ao
porto da ThyssenKrupp CSA (2010-2011); a dragagem de manutenção no terminal de Ponta da Madeira para a Vale, em São Luiz
(MA) (2010), e os trabalhos de dragagem de capital no porto de
Tubarão para a Vale (2011). Pequenos trabalhos de dragagem
de manutenção foram executados nos últimos anos nos portos
do Rio de Janeiro, de Imbituba, Santos e São Francisco do Sul.
Como resultado da descoberta de grandes campos de petróleo,
o governo brasileiro e o setor privado estão investindo enormes
quantias em infraestrutura e nos portos. Isto leva a muitos projetos
e diversas oportunidades para os próximos anos.
Grupo Jan De Nul
P
essoas e embarcações, essa é a força motriz do grupo belga Jan
De Nul. Graças à dedicação de nossos funcionários e de nossa
frota ultramoderna, o Grupo Jan De Nul se mantém no topo da
indústria de dragagem mundial.
Além da dragagem de manutenção e de aprofundamento, o
grupo possui um departamento de construção civil e uma divisão
de meio ambiente que dão suporte e possibilitam a ampla gama
de serviços do grupo. Esses são os três pilares que nos permitem
realizar projetos em ampla escala, atendendo as expectativas de
nossos clientes. Sejam esses projetos a Palm Island, em Dubai, o
novo conjunto de eclusas no Panamá, a manutenção de rios na
Argentina, novos complexos portuários na Austrália, a maior fábri-
ca de tratamento de esgoto da Europa ou a instalação de pedras a
2.000 metros de profundidade.
Desde a abertura do mercado de dragagem no Brasil, em 2007,
a Jan De Nul do Brasil Dragagem Ltda. – empresa 100% controlada pelo Grupo Jan De Nul – tomou a frente do mercado. Planos
de investimento sem precedentes vêm sendo elaborados, tanto no
setor público quanto no setor privado.
Obras de Aprofundamento: Barra do Riacho (Portocel/Petrobras – 2007), Rio Grande (SEP/SUPRG – 2009/2012), Salvador/Aratu (SEP/Dias Branco – 2010), Itaguaí (LLX/Odebrecht –
2011/2012), Itajaí (SEP – 2011), Vitória (Vale – 2012) e Paraguaçu
(EEP – 2012/2013);
101
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Draga de sucção autotransportadora Cristobal Colon, que, com seus 46.000m³, é a maior draga do mundo, adentrando o porto do Rio de Janeiro, 2011.
Obras de Aterro: Açu (LLX – 2011) e Itaguaí (Odebrecht –
2011/2012);
Dragagem de Manutenção: Rio Grande (SUPRG – 2012), São
Luís (Vale – 2012/2015);
Aprofundamento e Serviços Ambientais: Santos (Embraport
– 2012/2013).
O Grupo Jan De Nul continua fortalecendo sua atuação no
Brasil, trazendo equipamentos de última geração e treinando funcionários brasileiros para que atinjam alto nível de qualificação.
Assim sendo, o Grupo Jan De Nul continua evoluindo com o Brasil, criando o mundo do amanhã.
Katoen Natie: Mais de 15 anos de prestação
de serviços logísticos no Brasil
K
atoen Natie foi fundada em 1854 em Antuérpia por quatro
companheiros de trabalho. Sua primeira atividade consistia
no recebimento do algodão. Cada navio descarregado no porto
por seu capitão e tripulação era assistido por estivadores recrutados localmente. Quando o guindaste colocava as mercadorias
no cais, estas eram recebidas pelos associados. Estes trabalhavam
por comissão para os compradores de mercadorias. A Katoen Natie (Associação Algodoeira), em seus primórdios, trabalhava para
o setor de processamento de algodão e recebia os fardos, além de
manejar a armazenagem, pesagem, amostragem e distribuição.
Ela rapidamente diversificou seu produto e começou a receber
outras mercadorias: juta, café, ferro, aço, frutas, tomates etc.
102
empresas belgas no brasil
Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a organização deu início a novas atividades: armazenagem em seus próprios depósitos, transporte, expedição, declaração aduaneira. Nos
anos 90, os serviços especializados para o setor automobilístico,
químico e petroquímico e de grande distribuição foram agregados.
Em 1995, a Katoen Natie investiu pela primeira vez no exterior, abrindo uma filial em Sarralbe (França). Depois disso, as atividades se expandiram para todas as partes do mundo. Atualmente,
a Katoen Natie é uma empresa de porto mundial com operações
em 27 países distribuídos por Europa, Oriente Médio, América do
Norte, América do Sul, Ásia e África. Consiste de 400 unidades
operacionais, com 150 terminais e plataformas de logística, com
mais de 10.000 pessoas.
A Katoen Natie atua no mundo inteiro. É uma empresa privada e não está listada no mercado de ações, de forma que as decisões são tomadas como parte de uma visão de longo prazo. Opera
terminais portuários, centros de distribuição e operações on-site
(in house). O grupo também fornece todos os tipos de serviços
semi-industriais, projeta, desenvolve e administra plataformas de
logística e cadeias de fornecimento completas.
Em 1997 a Katoen Natie começou operações no Brasil a convite de um de seus clientes mundiais da indústria petroquímica.
Um primeiro projeto de engenharia, inclusive de silos, linha de
embalagem e armazém, foi realizado em Santo André, ao lado de
São Paulo. Em seguida, outros projetos de engenharia e operações
in house foram executados para clientes petroquímicos brasileiros.
O grande crescimento no Brasil foi alcançado com a compra
de um prestador de serviços logísticos brasileiro, JOB, com sede
em Camaçari, Salvador (BA). A primeira sede da Katoen Natie
estava por consequência na Bahia. Katoen Natie cresceu para ser
o líder do mercado de serviços logísticos para a indústria petroquímica no Brasil com atividades desde o Rio Grande do Sul até
Alagoas, passando por Paraná, São Paulo, Rio do Janeiro e Bahia.
A Katoen Natie já desenvolveu dois centros próprios de distribuição multimodais no Brasil: um em Paulínia, região de Campinas (SP) e um em Araucária, região de Curitiba (PR). O primeiro
foi construído em 2001 e Paulínia foi escolhida como localização
por ser o ponto de interconexão das maiores empresas concessionárias ferroviárias, oferecendo as duas bitolas aplicadas no Brasil.
Esta plataforma logística de mais de 50.000 m² de armazéns e
mais de 70 ha de terrenos funciona como Centro de Distribuição
por clientes brasileiros e internacionais do ramo automotivo, industrial, de bens de consumo e petroquímico.
Finalmente, a sede da Katoen Natie do Brasil foi transferida
para Paulínia,de onde controla mais de 20 operações empregando mais de 850 pessoas. Com essa estrutura a Katoen Natie está
preparada para oferecer uma solução logística para a economia
brasileira numa fase de forte crescimento.
103
empresas brasileiras na bélgica
A Compagnie Brésilienne des Tramways
Eddy Stols
C
andidata à primeira empresa brasileira atuando na Europa
ocidental pode ser a Compagnie Brésilienne des Tramways,
fundada no Rio de Janeiro com um capital de 1.200 contos de réis,
ou seja, algo mais que três milhões de francos belgas, quantia de
dinheiro mais do que respeitável (Cosaert e Delmelle). Representada em Bruxelas por dois homens de negócios belgas ativos no
Rio de Janeiro, Ladislas Paridant e Louis Laureys, ela comprou em
1874 dos irmãos Becquet duas linhas de bondes existentes com
tração hipomóvel e em dificuldades por causa do alto custo dos
cavalos. Uma servia a Rue de la Loi, uma nova artéria ao lado do
Parlamento belga, e a outra, a Tour du Boulevard, e ligava as duas
estações do Norte e do Midi correndo parcialmente pela avenida
circular. Na parte inclinada deste trajeto precisava-se de quatro
cavalos, o que encarecia muito o preço da passagem.
Sua frota consistia em 30 carros fechados, pintados de vermelho. A Brésilienne foi a primeira a introduzir, nos dias de bom
tempo, carros abertos com bancos transversais, e chegou a ter dez
desse tipo. Os cinco últimos a entrar em serviço levavam uma cor
marrom, que lhes mereceu na boca do povo, o apelido de tram
chocolat. Este conservou-se por muito tempo, mesmo depois que
a Brésilienne, em dificuldades financeiras, foi absorvida em 1879
pelos Tramways Bruxellois.
Um carro aberto, com cortinas para proteger da chuva ou do sol, de 16 lugares,
da ‘Compagnie brésilienne des tramways’ ou ‘Brésilienne’, fundada no Rio de
Janeiro e que passou a operar em Bruxelas em 1874.
Referência
É. Cosaert e Joseph Delmelle. Histoire des transports publics à Bruxelles. Bruxelas, 1976,
t. 1, p. 83-140.
O Panorama da Baía e da Cidade do Rio de Janeiro
Eddy Stols
U
ma das primeiras empresas publicitárias foi a sociedade comanditária ‘Meirelles & Langerock’, que os pintores Vítor
Meirelles e Henri Langerock, um paisagista belga ativo no Brasil
desde 1885, registraram no Rio de Janeiro em 25 de junho de 1886
com capital de 150 contos de réis e duração de seis anos (Mello
Junior e Coelho). Devia realizar um Panorama da Baía e Cidade
do Rio de Janeiro para explorá-lo comercialmente em exposições
nas grandes cidades europeias, onde este tipo de espetáculo pago
se popularizou como diversão pública. Enquadrava-se bem dentro
da ofensiva de propaganda que o Brasil deslanchou nesses anos
na Europa com publicações subsidiadas e participações nas grandes exposições. Mais de 30 proeminentes brasileiros subscreveram
cotas tanto para apoiar a promoção de sua pátria quanto na expectativa de bons lucros.
104
empresas brasileiras na bélgica
As dificuldades técnicas para trabalhar com uma tela de várias
dezenas de metros de comprimento obrigaram Meirelles e Langerock a programar a realização do Panorama, a partir de estudos
pintados no Rio de Janeiro, num grande espaço na Europa. Como
Londres não tinha naquele momento uma rotunda disponível,
decidiu-se por um ateliê em Ostende. Na escolha desta cidade
belga influíram, além dos vínculos pessoais de Langerock, vários
motivos. Suas confortáveis instalações balneárias podiam facilitar
uma estada longa dos dois pintores por mais de um ano. Por estrada de ferro, tinha proximidade com Bruxelas, onde existia uma
rotunda num boulevard da cidade. A Bélgica parecia uma boa alternativa para a Inglaterra em vista dos crescentes interesses econômicos brasileiros naquele país. O Brasil tinha participado com
algum êxito da Exposição Universal de Antuérpia em 1885 e era
representado naquela época por um dinâmico e bem relacionado
diplomata, conde de Villeneuve.
Em 4 de abril de 1888 abriu-se sua primeira exibição em Bruxelas na presença da rainha belga Marie-Henriette. Um folheto
de 14 páginas, Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en
Europe et à Bruxelles pour la première fois, impresso em Bruxelas,
identificava o espetáculo em todos seus pormenores. Insistia muito
na modernidade desta grande cidade e ousava comparações com
a Europa, sem dúvida para impressionar e tranquilizar os investidores e acionistas europeus e os eventuais candidatos a emigração
entre os artesãos e operários. Indicava assim a fumaça das quatro
chaminés da fábrica de gás, que acabava de ser adquirida em 1886
por capitais belgas e que assegurava agora a iluminação noturna
de toda a cidade. Esta, com 400.000 almas, ou 800.000 com os
subúrbios incluídos, tinha um intenso tráfico de vapores a cada 15
minutos para Niterói, um serviço abundante de bondes com mais
de 100.000 passageiros por dia, grandes reservatórios de água, ou
seja, setores que podiam suscitar investimentos belgas.
Seu status de capital econômica se evidenciava ainda nos grandes edifícios da Alfândega e dos Correios, na Bolsa em construção e nos bairros de Tijuca, com as residências dos homens de
negócios estrangeiros, e de Santa Teresa, acessível com um trenzinho em plano inclinado. A abertura recente da Rua Senador
Dantas, onde se podia ver a carroça do Imperador e os planos
para arrasar os morros de Santo Antônio, do Castelo e do Senado,
anunciavam um urbanismo ambicioso e as obras de saneamento.
Destacavam-se as diversões públicas e a vida cultural: a praia de
Icaraí, que oferecia banhos de mar tão bons como em Ostende ou
Blankenberghe; os belos jardins com cascadas de São Cristovão;
o Passeio Público, onde se davam concertos nas noites de bom
tempo; a biblioteca do Gabinete Português de Leitura, em estilo
manuelino, e o Teatro São Pedro, onde atuara recentemente Sarah Bernhardt. A subida por trem em 40 minutos ao Corcovado,
muito procurado pelos turistas estrangeiros, já superava a mais
famosa de Righi, na Suíça.
Durante seis meses o Panorama atraiu cerca de 50.000 visitantes, em parte escolares com tarifa reduzida. Pode ter melhorado a
imagem do Brasil e influído em diversas novas iniciativas belgas
neste país nos anos seguintes. Deve também ter rendido um bom
dinheiro, o que provocou uma briga judicial entre os dois artistas.
Langerock queria receber mais do que o estipulado. Já no folheto
assinado por Meirelles, foi inserida, certamente a pedido do belga,
uma nota esclarecendo que era obra de dois artistas e que ele tinha
pintado a parte oriental. Langerock saiu da sociedade, ao passo
que Meirelles levou a obra a Paris para instalá-la numa avenida
perto da Exposição Universal de 1889. Se ganhou lá boas apreciações e uma medalha de ouro, pelo excesso de outros espetáculos
e panoramas, não recebeu visitantes suficientes e os resultados
financeiros não corresponderam às expectativas.
Em falta de outras oportunidades na Europa, Meirelles transferiu a obra para o Rio de Janeiro. Numa rotunda construída no
Largo do Paço Imperial, futura Praça XV, o Panorama foi inaugurado em 3 de janeiro de 1891 e ficou aberto pelo menos por dois
anos, se bem que num período muito conturbado. A tentativa de
Meirelles para incluí-lo na Exposição Colombiana de Chicago
em 1892 malogrou. Como previsto no ato de fundação, a empresa
foi dissolvida em 1893 com pagamento de dividendos aos sócios.
A rotunda parece ter acolhido depois outras telas panorâmicas de
Meirelles até que, em 1898, a prefeitura, que não devia apreciar
muito este pintor do antigo regime imperial, mandou demolí-la.
A tela do Panorama do Rio de Janeiro, de boa qualidade artística
segundo os críticos da época, foi doada por Meirelles ao governo
em 1902, mas, abandonada na Quinta da Boa Vista, desgastouse por completo. Somente os seis estudos preparatórios ficaram
preservados no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro.
Quase um século mais tarde apareceram novas empresas brasileiras na Bélgica. Pouco depois da chamativa Brasil Export em
Bruxelas, em novembro de 1973, a Rio Doce Internacional, subsidiária da Cia. Vale do Rio Doce, abriu em 1974 um escritório
em Bruxelas, dirigido por Eliezer Batista até sua volta, em 1979,
à presidência da sede no Brasil. O Banco do Brasil abriu uma
agência em Bruxelas em 1992. Se ambas empresas já deixaram a
Bélgica, entrementes chegaram novas. Em 1992 a WEG, fabricante de motores e sistemas industriais elétricos, de Jaraguá do
Sul, SC, estabeleceu-se em Nivelles. A Citrovita da Votorantim
abriu, em 1993, em Antuérpia um terminal para a distribuição
de suco de laranja, ampliado em 2008 para armazenar também
outros produtos do grupo, celulose e metais. Sobretudo o porto
de Gand viu crescer a presença brasileira para a distribuição de
minérios e produtos do agronegócio. Depois da Citrosuco da Fischer, a ­Louis Dreyfus abriu seu próprio terminal para o suco de
laranja em 2000. Em 2011 veio a Cia. Brasileira de Logística, de
Curitiba, que armazena biodiesel, e em 2013 a JBS para a distribuição de carne. A Duratex instalou um centro de distribuição
em Mechelen (Malines) em 2005.
Bibliografia sobre o Panorama do Rio de Janeiro
Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en Europe et à Bruxelles pour la première
fois, Bruxelas, 1888; Mário César Coelho, Os panoramas perdidos de Victor Meirelles,
Tese de doutorado em história UFSC, Florianópolis, 2007; Donato Mello Junior. O
Panorama da Baía e Cidade do Rio de Janeiro, de Vítor Meireles de Lima. Mensário
do Arquivo Nacional, XIII, 10, 1982, p. 336-346.
105
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980
A
Citrosuco instalou-se na Bélgica em 1980, no porto de Gand,
quando contratou os serviços da Citrus Coolstore NV para o
serviço de armazenamento e distribuição na Europa do suco concentrado e congelado de laranja.
A escolha recaiu sobre Gand devido à sua localização estratégica em relação aos mercados europeus e também porque, já
em 1980, era considerado o porto “brasileiro” mais importante na
Bélgica. Naquela época, Gand movimentava cerca de 3 milhões
de toneladas de mercadorias originárias do Brasil, principalmente
grãos, soja, minério de ferro, produtos metálicos, celulose e sucos
de fruta. Para grande parte desses produtos, o porto de Gand ainda
funciona como centro de distribuição para toda a Europa e mesmo para o Oriente Médio. Esse é o caso, por exemplo, do suco de
laranja da Citrosuco.
Para atender o contrato firmado com a Citrosuco, a Citrus
Coolstore NV construiu um armazém frigorífico com capacidade
para 21 mil toneladas de suco a granel e 40 mil tambores. O frigorífico ficou pronto em novembro de 1982 e com ele a Citrosuco
assegurou então plena capacidade para garantir o abastecimento
de suco de laranja aos mercados europeus.
Estava pronto, assim, o sistema que permitiu à Citrosuco o
transporte a granel de suco concentrado congelado desde as ­suas
fábricas no Brasil até a Europa. Na viagem inaugural, o navio
“Ouro do Brasil” saiu de Santos no dia 17 de novembro de 1982
com 9 mil toneladas de suco de laranja concentrado congelado.
Por outro lado, a Citrovita – até então uma empresa do Grupo
Votorantim e concorrente da Citrosuco – instalou-se também na
região de Flandres na Bélgica em 1993, mais precisamente na cidade de Antuérpia, considerado o segundo maior porto da Europa.
Na ocasião, a Citrovita operava juntamente com outras empresas do Grupo Votorantim, entre elas a Votorantim Celulose e
Papel (VCP). A escolha por Antuérpia levou em conta o fato de
que a região de Flandres era considerada o coração da Europa,
e oferecia às empresas toda a infraestrutura, seja rodoviária, ferroviária ou marítima, interligando os grandes centros europeus.
O terminal da Citrovita em Antuérpia possui capacidade para
armazenar 33.200 toneladas de suco, em tanques totalmente au-
O navio ‘Sol do Brasil’ da Citrosuco fornece regularmente suco de laranja à
Bélgica, 2012.
tomatizados. O cais possui cerca de 200 metros de comprimento,
oferecendo total estrutura para o carregamento e descarregamento
dos navios dedicados ao transporte de suco de laranja.
Em 2010, a Citrosuco, empresa do Grupo Fischer, e a Citrovita, empresa do Grupo Votorantim, anunciaram sua fusão e a
formação de uma joint venture 50/50 de seus negócios, tanto no
Brasil como no exterior.
Em maio de 2011, a fusão Citrosuco/Citrovita foi aprovada pela Comissão Europeia e, em dezembro de 2011, teve a aprovação
do Cade, órgão brasileiro regulador.
A partir de 2012, as duas empresas passaram a operar conjuntamente, coordenando as atividades de produção, logística terrestre, terminais, logística marítima e comercialização do suco de
laranja no exterior.
Surge, assim, uma nova empresa, que manteve o nome Citrosuco, com uma nova marca e posicionamento. A nova Citrosuco
está presente na Bélgica em seus dois principais portos, Gand e
Antuérpia, com dois terminais e cerca de 60 funcionários.
106
astronomia e geologia
parte 4
Colaboração Científica
107
parte 4 – colaboração científica
108
astronomia e geologia
Louis Cruls e o Observatório Astronômico no Rio de Janeiro
Christina Helena Barboza
O
engenheiro e astrônomo Louis Ferdinand Cruls nasceu no
dia 21 de janeiro de 1848, em Diest, cidade situada no lado flamengo da Bélgica. Filho de Philippe Augustin Guillaume
Cruls e de Anne Elizabeth Jordens, Cruls completou os estudos
superiores na Universidade de Gand, onde travou amizade com
jovens brasileiros, que o incitaram a visitar o Brasil. Foi assim que,
contando com o apoio do pai, Cruls embarcou para o Rio de Janeiro em setembro de 1874, interrompendo a carreira de engenheiro
militar na Bélgica.
Graças à rede de amizades estabelecida ainda na Europa, alargada pelo convívio estabelecido com Joaquim Nabuco durante a
travessia do Atlântico, Cruls foi recebido pelo próprio imperador,
D. Pedro II, e pelo então Diretor-Geral do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo,
que lhe arrumou trabalho na Comissão de Triangulação do Município Neutro, ainda no final de 1874.
Nessa oportunidade ele não apenas desenvolveu um estudo
comparativo sobre os métodos empregados na determinação de
posições geográficas por triangulação, publicado em maio de 1875
por uma tipografia de sua cidade natal (Discussion sur les méthodes de répétition et de réitération employées en géodésie pour
la mesure des angles, 1875), como também ganhou a confiança
de Emmanuel Liais, diretor do Imperial Observatório do Rio de
Janeiro, que logo convidou-o a ingressar nessa instituição, em dezembro de 1877.
Foi também durante essa etapa inicial de sua carreira no Brasil
que Cruls conheceu Maria Margarida de Oliveira, com quem se
casou em 26 de maio de 1877, e teve seis filhos: Edmée, Stella,
Sylvie, Maria Luísa, Gastão e Henri (este último falecido ainda
criança).
Cruls trabalhou no Observatório do Rio de Janeiro durante
cerca de 30 anos, desde 1877 até o ano de sua morte. Mais do
que isso, ele contribuiu decisivamente para a consolidação dessa
instituição no cenário científico brasileiro. De fato, entre o final
da década de 1870 e o final da década de 1880, a despeito do
apelo que possuía o ideário cientificista entre as elites políticas e
intelectuais brasileiras, o Observatório foi alvo de críticas pesadas
Trabalho de campo da Comissão Cruls no alto dos Pirineus, Goiás, em 8 de
agosto de 1892.
quanto à sua competência e mesmo sua utilidade, e não faltou
quem recomendasse o fechamento da instituição.
O principal alvo das críticas, Liais acalmou momentaneamente a situação no início de 1881, ao afastar-se da direção do
Observatório e do país, voltando à França, sua terra natal. Cruls
109
parte 4 – colaboração científica
Integrantes da Comissão Cruls, Goiás, 1892.
era o astrônomo de sua preferência para substituí-lo. Ele assumiu
interinamente o cargo em 24 de março de 1881, não sem antes
naturalizar-se brasileiro, em 12 de fevereiro do mesmo ano, entre
outras razões para evitar o viés nacionalista embutido nas críticas
endereçadas ao Observatório.
Durante o início de sua gestão, ainda no período imperial,
Cruls buscou angariar aliados para o Observatório, como o Imperador D. Pedro II, que não media esforços em demonstrar seu
apreço pelas ciências em geral e pela astronomia em particular;
Rui Barbosa, que chegou a publicar um folheto em defesa da instituição, e Gusmão Lobo, redator do Jornal do Commercio, principal jornal diário da época, e seu amigo pessoal.
Um dos principais fatores que contribuíram para consolidar o
prestígio da instituição entre as elites imperiais brasileiras foi sua
participação em projetos de caráter internacional e grande visibilidade, como a observação do trânsito de Vênus pelo disco do Sol,
em 6 de dezembro de 1882.
Para possibilitar a participação do Observatório nos esforços
internacionais de observação do trânsito de Vênus, Cruls convidou
a Repartição Hidrográfica a colaborar com a instituição, e solicitou
ao governo recursos extraordinários, de modo a tornar possível a
organização de pelo menos três expedições com bandeira brasileira, respectivamente enviadas à ilha de São Tomás, nas Antilhas, a
Olinda e a Punta Arenas, na Patagônia chilena.
Nesta última estação, sob seu comando científico, foi a única
em que predominou o bom tempo, permitindo que todos os contatos entre Vênus e o Sol fossem cronometrados. Os resultados das
observações e cálculos posteriores foram publicados em 1887, nos
Anais do Observatório (Annales de l’Observatoire Impérial de Rio
de Janeiro, t. 3, 1887), em um volume bilíngue organizado por
Cruls e especialmente dedicado aos trabalhos das diversas expedições brasileiras.
Enquanto eram organizadas as expedições visando a observação do trânsito de Vênus, Cruls protagonizou outro momento
importante simultaneamente na sua carreira e na trajetória do Observatório ao comunicar o aparecimento de um novo cometa no
céu austral, visível a partir de 25 de setembro de 1882. A Academia
de Ciências de Paris reconheceu o seu mérito na descoberta e na
110
astronomia e geologia
análise da constituição química desse cometa concedendo-lhe o
Prêmio Valz, em sessão pública realizada em 2 de abril de 1883.
Tendo em vista o prestígio da Academia francesa, o valor simbólico da premiação recebida por Cruls pode ser considerado
maior do que o montante em dinheiro, na medida em que contribuiu para a consagração internacional de seu nome, e para o
fortalecimento, entre os brasileiros, da instituição onde era diretor.
Foi também ao longo dos anos 1880 que Cruls atingiu o auge
de sua produção científica, com a publicação de trabalhos de temáticas bastante distintas, tais como um método gráfico para a previsão de ocultações e eclipses (“Occultações e eclipses; processo
graphico para sua predicção”, Revista do Observatório, 1886-1887),
o projeto de um novo tipo de barômetro destinado à determinação de altitudes (Descripção e Theoria do Barometro Differencial,
1888) e um estudo sobre o clima do Rio de Janeiro (O Clima do
Rio de Janeiro, 1892).
Além disso, sob sua direção – desde 1884 em caráter definitivo
– o Imperial Observatório expandiu-se de maneira significativa, adquirindo instrumentos e contratando pessoal, e começou a divulgar sua produção, seja através dos Anais, dirigidos à comunidade
científica, seja através da Revista do Observatório, um periódico
mensal destinado à “vulgarização científica”.
Em duas viagens aos Estados Unidos e à Europa, em 1887
e 1889, Cruls garantiu o lugar do Observatório e do Brasil, respectivamente, na Conferência Internacional do Meridiano, cujo
objetivo era escolher o meridiano de referência na determinação
das longitudes, e no ambicioso projeto Carta do Céu, iniciativa
francesa cujo objetivo era construir um mapa de toda a abóbada
celeste utilizando a fotografia, através da colaboração entre observatórios do mundo inteiro. Finalmente, a partir de março de 1889
Cruls passou a acumular a direção do Observatório com o cargo
de professor de trigonometria esférica, astronomia e geodesia da
Escola Militar do Rio de Janeiro.
A instauração do regime republicano no Brasil, a partir de 15
de novembro de 1889, deu ensejo a outras oportunidades de projetar Cruls e o Observatório por ele dirigido no cenário científico
nacional. A mais importante delas foi sua nomeação para presidir
a chamada Comissão Exploradora do Planalto Central, que entre junho de 1892 e março de 1893 percorreu essa região com o
objetivo de definir a localização da área de 14.400 km2 que ainda
hoje delimita o Distrito Federal do Brasil, conforme previsto na
primeira Constituição Republicana, de 1891.
Cruls também chefiou a Comissão de Estudos da Nova Capital da União, que voltou à região entre julho de 1894 e dezembro
de 1895, com o duplo objetivo de escolher a melhor localização
para a futura capital dentro da área previamente demarcada, e definir o traçado de uma estrada de ferro interligando duas cidades
próximas, Cuiabá e Catalão.
Logo no início do século XX, em janeiro de 1901, Cruls assumiu a chefia de outra missão de cunho político-científico: a demarcação das nascentes do Rio Javari, início da fronteira do Brasil
com a Bolívia. A realização da nova expedição revelou-se uma
grande e perigosa aventura, com dias a fio de viagem em canoas,
racionamento de comida e a irrupção de diversas doenças entre os
membros da comissão, como o próprio Cruls, que teria contraído
beribéri e malária. Apesar de todas as dificuldades, a expedição foi
bem sucedida, e no dia 22 de agosto de 1901 foi instalado o marco
indicativo da nascente principal do Rio Javari.
Cruls nunca se recuperou completamente dessa última viagem a trabalho. A partir dessa data passou a acumular pedidos de
licença do cargo para tratamento de saúde, a tal ponto que em
1905 o governo nomeou Henrique Morize como seu substituto
no Observatório, por prazo indeterminado. Em janeiro de 1908,
uma nova licença lhe foi concedida pelo período de um ano. Cruls
embarcou então de volta à Europa, junto com a família, em busca
de tratamento. Morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.
Christina Helena da Motta Barboza é pesquisadora no Museu de
Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro. É graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com
Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo.
Um belga à procura de petróleo no Brasil
Pa t r i c k C o l l o n
N
o final do século XIX o Brasil, assim como a Rússia, aparecia
frequentemente no roteiro dos engenheiros belgas, que percorriam o mundo à procura de minérios para sua indústria metalúrgica. Neste sentido foi bem significativo o percurso de Auguste
Collon (Mons, 30.04.1869 – Antuérpia, 07.01.1924). Em 1885
matriculou-se na Universidade de Liège para estudar Ciências
Naturais e obteve, em 1890, com apenas 21 anos, seu doutorado
com a menção de grande distinção. Nomeado assistente em mineralogia, pôde fazer numerosas viagens de estudo, descobrindo
as riquezas mineralógicas do Ural em 1891 e 1892 e a extração do
petróleo em Baku no Cáucaso em 1894.
Entre 1895 e 1897 deixou Liège e foi para o Brasil, na condição de encarregado de missão do governo belga, para montar
um centro de estudos na Fazenda do Brejão, de propriedade de
Eduardo Ferreira de Camargo. Em menos de dois anos, realizou
várias explorações mineralógicas e geológicas no Estado de São
Paulo, em parte junto com o influente geólogo americano Orville
A. Derby. Estudou particularmente os terrenos carboníferos desse
111
parte 4 – colaboração científica
Auguste Collon no laboratório do Brejão,
onde realizou pesquisas mineralógicas e
geológicas entre 1895 e 1897.
Estado, as jazidas de minérios de ferro de São João d’Ypanema e
as rochas betuminosas da região de Botucatu.
Em Porangaba, montou a primeira estrutura de sondagem profunda, tornando-se o pioneiro da prospecção petrolífera no Brasil,
embora sem resultados. Seu profissionalismo foi muito respeitado
e orientou mais tarde novas sondagens. Ele resumiu suas pesquisas numa memória manuscrita de 80 páginas, Le Pétrole dans les
environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’État de São
Paulo; suivi d’une étude chimico-industrielle des grès bitumeux de
cette région, datada do Brejão, 11.02.1897, atualmente conservada no Instituto Geológico de São Paulo (e editada em facsimile,
São Paulo, 1970).
Entrementes, pouco depois de sua chegada ao Brasil, veio lhe
fazer companhia sua noiva, Rachel Goron (Kovno, 28.2.1869 –
Bruxelas, 6.8.1951). Nascida na Rússia, acabava de formar-se em
medicina na Universidade de Liège, onde estudavam na época
muitos russos e brasileiros. Casaram-se em São Paulo em 19 de
dezembro de 1895. A morte neonata de seu primeiro filho no
Brejão em 10 de janeiro de 1897 precipitou sua volta à Europa.
Reinstalado na Bélgica, Auguste Collon efetuou, entre 1897 e
1904, como engenheiro-conselheiro, diversas missões científicas
por conta de empresas como a Société Générale de Belgique e a
Société Métallurgique Russo-Belge, na Rússia, Alemanha, Polônia,
Suécia e Espanha. Em 1905 foi nomeado secretário-geral da So­
ciété Anonyme John Cockerill, em Seraing, chefiando também seus
Serviços de Relações Exteriores. Como tal lidou por volta de 1910
com um projeto para vender modernos navios pesqueiros para o
Brasil. Depois de ter conduzido a Cockerill através dos escolhos da
Grande Guerra, a deixou por motivos pessoais em 1919 e se radicou com sua família em Antuérpia. Lá colaborou com a Casa G.
& C. Kreglinger, muito ativa no comércio com a América Latina,
como conselheiro e em seguida como procurador. Faleceu com
54 anos em Antuérpia.
Patrick Collon, nascido em Bruxelas em 1942, é filho de Alexandre
Collon e de Petronella Fitzwilliams-Hyde e neto de Auguste Collon,
estudou na Inglaterra (Eton College), Áustria (Linz e Sankt-Florian),
Alemanha (Ludwigsburg), é organeiro em Bruxelas desde 1966.
Referências
Collon, A. Sur un Cristal de Zircon. Liège (sic) 1892.
Collon, A. Sur l’Oligiste de Viel-Salm. Liège (sic) 1894.
Collon, A. Manuscrit: Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins
dans l’Etat de Sâo Paulo; suivi d’une Etude Chimico-industrielle des grès bitumineux
de cette région; par Auguste Collon, Docteur en Sciences naturelles, Assistant honoraire de l’Université de Liége. Brejão. 1897. Reproduction facsimile, commentée.
Sao Paulo 1970.
Domingues, J. M. Porangaba sua História, Relatório de Collon. Porangaba 1998.
Domingues, J. M. Porangaba sua História, O Manuscrito de Collon. Porangaba
2012.
112
botânica e zoologia
O botânico Célestin Alfred Cogniaux e sua relação com o Brasil
Magali Romero Sá e Alda Heizer
O
botânico belga Célestin Alfred Cogniaux (1841-1916) foi
um dos maiores colaboradores da Flora Brasiliensis de von
Martius, tendo sido responsável por cinco dos 40 volumes que
compõem a obra elaborada pelo botânico alemão. Cogniaux foi
responsável pelas monografias das famílias Melastomataceae e Orchidaceae tendo colaborado também na elaboração da família
Curcubitaceae em um fascículo do volume VI, part. IV da Flora.
Seus escritos sobre a flora brasileira preencheram cerca de
3.118 páginas, com mais de 600 ilustrações (Hoehne, 1941, p.
50-51). Formado como professor secundário pela École Normale
de Nivelles, Cogniaux trabalhou como professor de matemática
e ciências naturais em diferentes cidades e escolas da Bélgica.
Amante da botânica, adquiriu sua formação na prática e através
do convívio com outros botânicos.
Em 1862 o botânico belga iniciou, em parceria com Barthélémy Dumortier, os estudos sobre briófitas indígenas, tendo participado, nesse mesmo ano, da fundação da Société Royale de Botanique de Belgique. Dez anos depois, em 1872, foi indicado para o
cargo de Conservador do Jardim Botânico do Estado e nomeado
naturalista ajudante. Lá, inicia seus estudos sobre a sistemática das
fanerógamas e, a convite de August W. Eichler, editor da Flora
Brasiliensis, dedica-se à família Curcubitaceae. Vale lembrar que
o Jardim Botânico belga havia acabado de receber, no ano anterior, em 1871, o herbário brasileiro de Carl von Martius adquirido
pelo governo da Bélgica.
Em 1880, por divergências internas, Cogniaux se desliga do
Jardim Botânico e volta a atuar como professor de ciências naturais, não deixando, porém, seus estudos botânicos, em especial
sobre a flora do Brasil (Alfred Cogniaux – National Botanic Garden of Belgium. Disponível em: <http://www.br.fgov.be/PUBLIC/
GENERAL/HISTORY/cogniaux.php>).
Sua ligação com os botânicos brasileiros, fortalecida quando
esteve na direção do Jardim Botânico belga, se manteve viva e colaborativa. Com José de Saldanha da Gama, botânico brasileiro,
professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e cônsul-geral do
Brasil na Bélgica, Cogniaux realizou estudo sobre Melastomata­
ceae brasileiras para a Flora Brasiliensis, cujo extrato foi publicado
separadamente em 1887 (Saldanha da Gama & Cogniaux, 1887).
Foi também através de Saldanha da Gama que Cogniaux foi
indicado ao Imperador do Brasil para atuar como vice-cônsul do
então recém-criado vice-consulado brasileiro em Verviers (Mattoso et al., 1999, p. 237), tendo sido nomeado pelo monarca em
1887 e permanecido no cargo até 1902 (Cogniaux, 2003, p. 5).
Seu trabalho sobre a família Melastomataceae foi publicado
na Flora Brasiliensis em dois volumes, com cinco fascículos, entre
1883 e 1888 (Hoehne, 1941) e, segundo Goldenberg et al. (2012)
esse estudo ainda representa a monografia mais recente sobre a
família no Brasil, constituindo a base para subsequentes estudos
taxonômicos, tanto para tratamentos de revisão quanto trabalhos
de cunho florístico.
Em 1893 Cogniaux iniciou a publicação da primeira parte da
obra sobre Orchidaceae na Flora Brasiliensis após intensa negociação com o botânico brasileiro João Barbosa Rodrigues. Desde
1868 Rodrigues vinha se dedicando à coleta e descrição das orquídeas brasileiras, tendo em 1870 apresentado à comunidade científica brasileira uma obra sobre Orchidaceae em três volumes com
descrições em latim e francês e ricamente ilustrada.
Rodrigues não obteve apoio do governo para a publicação da
sua obra ilustrada. Porém, por iniciativa do Barão de Capanema,
um volume de seu trabalho foi enviado para August Eichler na Alemanha e apresentado a Heinrich Gustav Reichenbach, orquidólogo alemão, responsável inicialmente por escrever a parte dedicada
às orquídeas da Flora. Reichenbach, admirado com o trabalho
do botânico brasileiro, convida-o para levar o seu herbário para
a Europa para que suas novas espécies pudessem ser validadas, e
propõe que sejam publicadas em coautoria. Em carta ao botânico sueco A. Regnell, residente no Brasil, Reichenbach explicou:
“O objetivo de minha carta é falar sobre o sr. Barbosa Rodrigues. Devo admitir que suas pesquisas são muito boas, e que nós
poderíamos ser úteis um ao outro. Se ele publicar suas orquídeas,
acredito que metade já tenha sido descrita, e ele poderia evitar esta
duplicação trazendo para a Europa os tipos de suas novas descobertas, e assim ninguém poderia contestá-lo. É sabido ser impossível
produzir um trabalho perfeito (de taxonomia) fora da Europa... Por
113
parte 4 – colaboração científica
Capa da publicação
Mélastomacées
Brésiliennes, de Alfred
Cogniaux e Saldanha da
Gama, 1887.
Uma nova colaboração com botânicos brasileiros se deu em
1910 quando foi convidado por Frederico Carlos Hoehne para participar da publicação sobre o material botânico coletado durante
a expedição da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de
Mato Grosso ao Amazonas (Comissão Rondon). Cogniaux ficou
encarregado do estudo das melastomáceas, curcubitáceas e orquidáceas, tendo o resultado de seu trabalho publicado no Brasil em
1912 na parte Botânica das publicações da Comissão.
Cogniaux faleceu em 1916, aos 75 anos, quatro anos após a
sua última contribuição à botânica brasileira. Apesar de nunca ter
visitado o Brasil foi um profundo conhecedor de sua flora.
Magali Romero Sá, bióloga e Ph.D, é Pesquisadora Titular e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências
e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz; Bolsista de Produtividade
em Pesquisa 2 do CNPq.
Alda Heizer, Doutora em Ciências, é Professora de História da Botânica no Brasil na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e
Historiadora do Museu do Meio Ambiente e do Instituto de Pesquisas
Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
favor, gostaria de chamar a atenção de seu amigo para esses fatos e
dizer a ele que eu me ofereço a publicar suas novas descobertas em
coautoria... Por favor, informe-me imediatamente de sua decisão e
envie a ele meus respeitos...” (Barbosa Rodrigues, 1877).
Rodrigues não aceitou a oferta e acabou publicando somente
a diagnose de suas espécies em 1877 (Sá, 2001).
Reichenbach acabou desistindo de participar da Flora Brasiliensis e após desencontros vários, até mesmo entre os próprios
botânicos europeus, Cogniaux finalmente aceitou assumir a tarefa. Rodrigues (1882), por seu turno, continuava a receber ofertas
de outros pesquisadores convidados a escrever a parte de orquídea
da Flora, sem contudo aceitar nenhuma das propostas. Cogniaux,
conhecedor do trabalho do botânico brasileiro, igualmente convidou-o a participar da obra de Martius por meio da utilização dos
seus desenhos de orquídeas ainda inéditos e das descrições das espécies novas. Em 1892, Rodrigues finalmente aceitou o convite.
No ano seguinte Cogniaux iniciou a publicação das orquidáceas
em três partes, compostas por 10 fascículos, tendo o último saído
em 1906. Do material cedido por Barbosa Rodrigues ao botânico
belga, foram publicadas 267 cópias das pranchas originais, além de
7 gêneros descritos pelo botânico brasileiro e 538 espécies (Mori
& Ferreira, 78).
Referências
Cogniaux, C. A. Botânica III – Melastomáceas, Curcubitáceas, Orquidáceas, vol. 5,
n. 10, p. 1-15, 1912. In: Hoehne, F. C., Harms, H. A. T.; Cogniaux, Célestin Alfred; Sampaio, Alberto José de; Kuhlmann, João Geraldo. Botânica/ Comissão de
Linhas Telegraphicas Estrategicas de Matto Grosso ao Amazonas, vol. 5, 1910-1923.
Cogniaux, Célestin Alfred (1841-1916). Nowellia Bryologica, n. 24, p. 5, 2003. http://
www.nowellia.be/download/revue%20nowellia/Binder%2024.pdf
Goldenberg, R; Baumgratz, J. F. A.; Souza, M. L. D. R. Taxonomia de Melastomataceae no Brasil: retrospectiva, perspectivas e chave de identificação para os
gêneros. Rodriguésia , vol.63 no.1, p. 145-161, 2012.
Hoehne, F. C. Notas biobiliográficas de naturalistas botânicos que pretendemos homenagear com a denominação de caminhos e picadas no Jardim Botânico e na Estação
Biológica do Alto da Serra. In: O Jardim botânico de São Paulo. São Paulo: Departamento de Botânica do Estado de S. Paulo. 1941.
Mattoso, K. Q., Santos, I. F., Rolland, D. Le Brésil, l’ Europe et les équilibres
internationaux XVI-XX siècles. Université de Paris IV: Paris-Sorbonne. Centre d’Études sur le Brésil. Presses de l’Université de Paris. Sorbonne. 1999.
Mori, S. A., Ferreira, F. C. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues
(1842-1909). Brittonia, vol. 39, n. 1, p. 73-85, 1987.
Sá, M. R. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 8, suppl., p.
899-924, 2001.
Saldanha da Gama, J. de; Cogniaux, A. Bouquet de Mélastomacées brésiliennes
dédiées a Sa Majesté Dom Pedro II empereur du Brésil. A. Remacle, Verviers. 1887.
Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira
Régis De Bel
V
ários belgas tentaram se estabelecer no Brasil para desenvolver a pecuária, tanto para lucrar com a venda de animais
reprodutores como para valorizar o prestígio nacional… nem sempre com sucesso. Porém, podem ser mencionados alguns de seus
legados para o melhoramento do rebanho bovino brasileiro.
Vale mencionar a contribuição do engenheiro agrônomo (Faculdade de Agronomia de Gembloux, 1884) e médico veterinário
(Escola de Veterinária de Alfort, 1888) (Birgel, p. 72, 2011) belga
114
botânica e zoologia
Capa do livro A Fazenda Moderna, de Eduardo Cotrim, publicado em Bruxelas
em 1913.
Foto de Eduardo Cotrim publicada em seu livro A Fazenda Moderna, de 1913.
Hector Raquet, mais tarde catedrático do Instituto Agrícola de
Gembloux. Em 1906, foi contratado como diretor do Posto Zootécnico Central, criado em 1905 no bairro da Mooca, na cidade
de São Paulo, e em 1909 supervisionou os trabalhos de instalação
do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros, na cidade de Pinheiral (RJ) e foi seu primeiro diretor – sendo substituído por Nicolau
Athanassof, ex-professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz
de Queiroz” (Bhering, 2008, p. 76). Esses postos foram criados
segundo o novo conceito da época – zootecnia –, que separou o
estudo sobre a agricultura daquele sobre a arte de criar animais para melhorar as suas potencialidades. “Apoio Genética” ressalta os
trabalhos realizados por Hector Raquet, assim como de um outro
belga, o engenheiro agrônomo Louis Misson, que escolheram os
animais das primeiras importações para o Brasil.
Um documento que deve ser posto em destaque é o livro de
Eduardo Cotrim, figura de destaque na área da pecuária no início
do século XX, A Fazenda Moderna – Guia do Criador de Gado Bovino no Brasil –, que foi publicado em português em Bruxelas em
1913. Tal publicação merece mesmo uma observação sobre sua
qualidade, a despeito de seu conteúdo, que aqui é nosso assunto
principal: trata-se de uma edição de grande qualidade, com capa
dura e decorada em baixo-relevo de acordo com a tendência art
nouveau, em voga na época, espcialmente em países como Bélgica
e França (precursores dessa linha artística).
Sete capítulos compõem este livro e tratam dos seguintes temas:
– Estabelecimento e direção de uma fazenda de criar;
– Práticas de bovinotecnia;
– Alimentação e forragens;
– Raças bovinas e escolha das raças;
– Exploração econômica do gado bovino;
– Higiene do gado bovino, e
– Noções práticas de veterinária.
O autor argumenta que, naquela época, a criação bovina no
Brasil sofria com a falta total de métodos: “A indústria não existe
porque o systema adoptado como mais commodo é o da perfeita selvageria”. Eduardo Cotrim incentiva, porém, o desenvolvimento
de meios de proteção para o gado, o melhoramento dos campos
com a plantação de forragens e a seleção dos reprodutores para
dar princípio à criação extensiva.
No quarto capítulo, além de descrever as raças nacionais, consagra uma parte importante às raças estrangeiras, que poderiam
servir para criação de gado no Brasil ou para o melhoramento das
raças nacionais através do cruzamento. Além disso, o autor avisa
o leitor das especificidades do clima brasileiro, que apresenta vantagens e desvantagens, como, por exemplo, os inúmeros parasitas
que perseguem o gado no campo. Em alguns casos, esse tipo de
115
parte 4 – colaboração científica
Fotografia da novilha Flamenga belga da Estância “La Plomer” publicada no
livro A Fazenda Moderna.
Fotografia de “Trowbridge”, campeão flamengo belga na exposição internacional
de Buenos Aires, em 1910, publicada no livro A Fazenda Moderna.
problema inviabilizava a importação de raças estrangeiras que,
em campos brasileiros, não apresentavam o rendimento esperado.
Entre outras, o autor indica que a raça Flamenga belga se recomenda por sua dupla qualidade leiteira e de açougue: trata-se
de uma raça mista que vinha sendo melhorada consideravelmente por seleção e que era proveniente das proximidades de Bruges
(Flandria ocidental). Essa raça já fazia sucesso na Argentina e no
Uruguai e iria se difundir também no Brasil, principalmente no
Estado do Rio Grande do Sul. Belos exemplares de vacas e touros
dessa raça também foram levados para os Estados de São Paulo
(Fazenda de Santa Gertrudes) e Minas Gerais (Cotrim, 1913).
Outro legado belga mais recente seria a introdução no Brasil
da raça BBB (Blanc-Bleu Belge). A partir dos anos 1960, ela foi
geneticamente melhorada por seleções sucessivas a fim de desenvolver de maneira extraordinária a sua musculatura (hipertrofia
muscular hereditária). O BBB é conhecido como o halterofilista
do mundo animal, o superboi. Esta raça foi introduzida no Brasil
em 1994, principalmente para cruzamento e obtenção de produtos de carne mais macia.
O cruzamento com o zebu de raça Nelore deu resultados interessantes no Estado da Bahia, apresentando melhores rendimentos
em produção de carne, tanto quantitativa como qualitativamente
(Boly et al., 2003, p. 21). Os resultados desses cruzamentos obti-
dos numa pesquisa realizada de 2002 a 2005, juntamente com a
Université de Liège (ULg), as Facultés Agronomiques de Gembloux
(FUSAGx – Faculdades Agronômicas de Gembloux) e a Seagri
(Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária,
Pesca e Aquicultura) do Estado de Bahia, foram apresentados durante o 8º Congresso Mundial de Genética em Belo Horizonte
(Leroy et al., 2006).
Régis De Bel é engenheiro agrônomo, graduado na Universidade
Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica) em 2004. Mora atualmente no
Brasil.
Referências
Bhering, M. J. Positivismo e Modernização: Políticas e Institutos Científicos de Agricultura no Brasil (1909-1935). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2008.
Birgel, E. H. O ensino da Medicina Veterinária no Estado de São Paulo. Revista de
Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP. São Paulo: Conselho Regional de Medicina Veterinária, v. 9, n. 2 (2011), p. 70-79, 2011.
Boly, H., Lebailly, Ph., Leroy, P. L., Leroy, E. Le Blanc-Bleu Belge en croisement
dans les régions tropicales. Wallonie Elevages, n. 6, juin 2003.
Cotrim, E. A Fazenda Moderna, Guia do Criador de Gado Bovino no País. Bruxelas,
Belgique, 1913.
Leroy, P. L., Leroy E., Cassart, R. Growth and carcass performances of Belgian Blue
x Nelore and Bradford Cattel in Bahia State, Belo Horizonte, Brazil, 2006.
“Apoio Genética”. Disponível em: <www.apoiogenetica.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil
Régis De Bel
D
om Amaro Van Emelen, nascido em 1863, foi um padre beneditino belga que se tornou professor no Colégio São Bento,
no Rio de Janeiro, considerado como um dos mais tradicionais do
país, e do qual foi Reitor nos períodos 1905-1906 e 1909-1910. Esteve também ligado à tentativa dos beneditinos belgas de implantar
uma escola agrícola em Pernambuco. Foi, em 19 de abril de 1926,
nomeado diretor-geral da Escola Superior de Medicina Veterinária
São Bento de Olinda (Melo et al., 2010), mais tarde integrada à
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Era irmão do pintor
e escultor Pierre Van Emelen e aparentado a Louis Cruls.
116
botânica e zoologia
Foto de D. Amaro Van Emelen publicada na edição de sua cartilha, impressa
após o seu falecimento.
Capa do livro Cartilha do Apicultor Brasileiro, de Amaro Van Emelen.
Em 1895, Dom Amaro Van Emelen introduziu a abelha italiana (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias
obras sobre apicultura, entre as quais a famosa Cartilha do Apicultor Brasileiro, publicada em 1934.
Segundo os escritos do editor Amadeu Amadei Barbiellini,
Van Emelen redigiu uma “verdadeira enciclopédia sobre as abelhas e as suas indústrias máximas de mel e cera” (5ª edição, 1952).
Certamente, Van Emelen foi uma pessoa-chave na divulgação e
no desenvolvimento das técnicas de apicultura no Brasil no início
do século XX.
Essa Cartilha do Apicultor Brasileiro foi elaborada a partir de
duas edições anteriores. A primeira edição era um simples folheto
com o título de Criação de Abelhas, publicada na revista de Barbiellini, Chacaras e Quintaes, apresentando 70 páginas ilustradas.
A segunda edição, de 1924, já era mais desenvolvida, mas sempre
no tamanho e na aparência de um opúsculo, com título de Abelhas, Mel e Cêra. Ela também apareceu na revista mensal de Chacaras e Quintaes. A terceira edição, de 1934, a famosa Cartilha do
Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra apresenta três grandes
partes – Abelhas, Mel e Cera – com 57 capítulos ilustrados com
254 gravuras e adotou a forma de ‘perguntas e respostas’, muito
didática e agradável para o leitor.
A empresa editora da Chacaras e Quintaes esgotou os 5.000
exemplares em nove anos, o que levou a uma quarta edição em
1945, que Van Emelen retocou e enriqueceu ainda mais, e a uma
quinta edição, em 1952, após o falecimento de seu autor (em 1946).
Referências
Amaro Van Emelen, 1915. A Criação das Abelhas. São Paulo, Conde A. A. Barbiellini, 1915. 70 p. ilus.
Amaro Van Emelen, 1924. Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes.
56 p. ilus.
Amaro Van Emelen. 1934. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
São Paulo, Empreza Editora da Chacaras e Quintaes, 344 p. ilus.
Amaro Van Emelen. 1945. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
Amaro Van Emelen. 1952. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
Melo, Lúcio Esmeraldo Honório de; Magalhães, Francisco de Oliveira; Almeida, Argus
Vasconcelos de; Câmara, Cláudio Augusto Gomes da. De alveitares a veterinários:
notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária
São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926). Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, vol.
17 n.1, Rio de Janeiro Jan./Mar. 2010.
117
parte 4 – colaboração científica
Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes
Chris Delarivière
A
lphonse Richard Hoge foi um herpetólogo belgo-brasileiro
(1912-1982) que, nos anos 50 e 60, era ativo no Instituto Butantã, fundado em 1901 em São Paulo para remediar as frequentes
mordidas por serpentes nas fazendas de café.
Hoge nasceu em Cacequi, no Estado do Rio Grande do Sul,
filho de um engenheiro belga. Mais tarde a família voltou para
Gand, onde o jovem Alphonse Richard foi estudar na universidade
do Estado. Uma vez diplomado, tornou-se assistente do professor
Georges Bobeau e estudou, entre outros, o uso do veneno serpentígeno no combate às células cancerígenas.
Em 1939 decidiu voltar para o Brasil onde encontrou um posto no Instituto Butantã, que tinha, e ainda tem, fama mundial
pelas pesquisas e pela produção de soros antivenenosos. O Instituto interveio ainda no salvamento da fauna reptiliana durante a
construção das grandes barragens e no treinamento do pessoal da
inspeção sanitária.
Em São Paulo, o professor Hoge construiu uma reputação de
cientista respeitado, que não recusava pesquisas de campo. Como tal, apareceu também nos relatos de Marcel Roos como um
professor algo distraído, com senso de aventura.
Alphonse Hoge morreu em 1982, pouco depois de sua aposentadoria. Publicou mais de cem trabalhos e deu seu nome a uma
impressionante coleção herpetológica. Esta, com mais de 70 mil
peças, entre serpentes, aranhas e escorpiões, foi parcialmente destruída por um incêndio em 15 de maio de 2010.
Alphonse
Hoge e
auxiliares
na Ilha da
Queimada,
litoral do
Estado de
São Paulo,
capturando
jararacas
ilhoas
(Bothropóides
insularis).
Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para
o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação
Dulce Eleonora de Oliveira
A
cooperação do Laboratório de Genética da Universidade de
Gand com o Brasil vem de longa data e, de fato, caminha
junto com a história da tecnologia do DNA recombinante.
Desde o início das pesquisas sobre clonagem de genes, no começo dos anos 70, a Bélgica teve um papel relevante. Ainda em
1974, Fiers, Schell e Van Montagu organizaram o primeiro simpósio internacional sobre clonagem de genes. Nele compareceram os grandes nomes em sequenciamento e clonagem de DNA,
tais como os laureados com o Prêmio Nobel: Werner Arber, Rich
Roberts, Fred Sanger e Wally Gilbert. Este simpósio aconteceu
um ano antes da famosa conferência de Assilomar, organizada por
Paul Berg, para discutir os potenciais riscos biológicos da tecno-
logia do DNA recombinante e as recomendações para utilizar a
tecnologia com segurança.
Nessa época, Francisco Lara – então professor titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo – estudava os puffs de DNA de Rhynchosciara. O
professor Lara teve o grande mérito de imediatamente reconhecer
a Biologia Molecular como uma disciplina que revolucionaria as
pesquisas na área de ciências naturais.
Com o objetivo de trazer esta nova disciplina para o Brasil, Lara organizou um simpósio no Instituto Butantã sobre a clonagem
de genes em diversos organismos, com a participação de especialistas de renome internacional. Marc Van Montagu foi convidado
118
botânica e zoologia
O professor Marc Van Montagu e seus ex-colaboradores no IV Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, Bento Gonçalves, abril de 2013.
para falar de sua pesquisa sobre o mecanismo natural de transferência de genes de Agrobacterium tumefaciens.
A partir desse primeiro encontro, Lara iniciou uma série de
cursos internacionais sobre a tecnologia do DNA recombinante
na USP/Butantã nos quais Marc Van Montagu era um convidado
cativo. Foi nesse cenário que Marc Van Montagu encantou-se pelo
Brasil e decidiu vir para cá com frequência.
Entre 1974 e 1983, Van Montagu, Schell e colaboradores fizeram, em Gand, descobertas e inovações que marcaram o início da
era da biologia molecular vegetal. Eles descobriram o plasmídeo
Ti de A. tumefaciens; elucidaram, junto com grupos de pesquisa
liderados por Mary-Dell Chilton, nos Estados Unidos, e Robert
Schilperoort, na Holanda, o mecanismo bacteriano de infecção
e transferência de genes; desenvolveram a primeira tecnologia de
transferência de genes para plantas e, publicaram, em maio de
1983, sobre a primeira planta transgênica.
A descoberta e invenção de Van Montagu, Schell e colaboradores deixou uma pegada indelével na área de ciências da vida.
A tecnologia de engenharia genética permitiu pela primeira vez
uma análise sistemática e refinada do impacto de genes individuais em todos os aspectos da biologia vegetal, do crescimento e desenvolvimento a resistência a patógenos e estresse abiótico, assim
como na forma como as plantas se comunicam com seu ambiente.
Foi nesse período efervescente da genética molecular vegetal
que Marc Van Montagu, em uma de suas muitas visitas ao Brasil,
conheceu Luiz Antonio Barreto de Castro, então professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Luiz Antonio seria logo
contratado pela Embrapa para desenvolver a primeira iniciativa de
engenharia genética vegetal no Brasil, no Cenargen, em Brasília.
Graças à cooperação de Barreto de Castro com Van Montagu,
vários cientistas do Cenargen foram treinados na empresa Plant
Genetic System (PGS), spin-off do Laboratório de Genética da
Universidade de Gand.
Nessa época, tanto Cenargen como PGS estudavam as pro­
teínas de reserva de sementes ricas em metionina para melhorar
o valor nutricional de alimentos básicos. A determinação da se­
quência de aminoácidos das proteínas de reserva ricas em enxofre da castanha do Brasil é um dos resultados dessa cooperação
(Ampe, Van Damme, Castro, L.A.B., Sampaio, Montagu AND
Vanderkerchove, 1986, p. 597-604). Entretanto, estes projetos não
foram continuados porque tais proteínas seriam potencialmente
alergênicas. Desde as primeiras tentativas de aplicações da tecnologia do DNA recombinante em plantas os cientistas tinham
a consciência de que a metodologia de transgenia em si não era
perigosa, mas que os genes a serem introduzidos deveriam ser analisados criteriosamente para evitar algum dano potencial.
Em 1983, Antonio Paes de Carvalho, então diretor do Instituto
de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
deu início com alguns colegas – especialmente Affonso do Prado
Seabra, Maria Apparecida Esquibel e Antonio Rodrigues Cordeiro
– ao Programa de Biotecnologia Vegetal da UFRJ. Nesse mesmo
ano, Paes de Carvalho e Seabra montaram a Biomatrix, primeira
empresa brasileira de biotecnologia vegetal.
Foi como fundador e presidente da Biomatrix que o professor
Paes de Carvalho conheceu o professor Van Montagu, em um
simpósio na França, na vinícola Moet Chandon. Entusiasmado
119
parte 4 – colaboração científica
um projeto de desenvolvimento de batatas transgênicas resistente
a vírus e obteve um importante financiamento do PADCT, que
permitiu equipar o laboratório com o que havia de mais moderno na época para conduzir pesquisa em biologia molecular. Em
1990 assumi, como previsto, a direção do LGMV enquanto Ben
retornou à Europa, enriquecido com a experiência como diretor
de laboratório no Brasil, fazendo pesquisa aplicada em biotecnologia vegetal. Isto o levou a interessar-se por inovações em biotecnologia e a cursar um MBA no INSEAD, França. Atualmente Ben
Timmerman é o fundador e CEO da empresa Enticel, dedicada
a vacinas terapêuticas contra o HPV.
Até a aposentadoria do professor Marc Van Montagu, em novembro de 1999, o LGMV contou com seu apoio incondicional.
Continuamos tendo o suporte da Cooperação ao Desenvolvimento – ABOS. Entre 1990 e 1994, três jovens doutores do Lab de
Genética-Gand fizeram pós-doutorado no LGMV, todos dentro
da política belga de substituir o serviço militar por atividades em
países em desenvolvimento. Sobrevivemos ao duro período de
vacas magras para a pesquisa científica no Brasil nos governos
Collor, Franco e Cardoso graças aos projetos que pudemos desenvolver em cooperação com a Universidade de Gand. Foram
oito projetos em colaboração, sob a minha gestão (1990-1995)
e a gestão da professora Marcia Pinheiro Margis (1996-2000),
financiados por agências internacionais, tais como ABOS, ICGBE, Fundação Rockefeller e diversos programas de cooperação
da União Europeia.
Ao mesmo tempo, graças a estes projetos, a grande maioria
dos pesquisadores e alunos de pós-graduação do LGMV tiveram
a oportunidade de estagiar no Laboratório de Genética da Universidade de Gand. Contamos também com o apoio do consulado belga no Rio de Janeiro, que concordou em enviar pela mala
diplomática materiais de consumo perecíveis, como enzimas de
restrição e kits usados em biologia molecular que dificilmente
resistiriam à temperatura ambiente durante o longo processo de
desembaraço na aduana brasileira.
Os frutos deste esforço são expressivos. Entre 1990 e 2000, o
LGMV formou mais de 50 pesquisadores, entre mestres e doutores. Sob a liderança estimulante de Darcy Ribeiro, então Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, o LGMV participou
da criação da Universidade do Norte Fluminense (Uenf) e do seu
Laboratório de Biotecnologia Vegetal.
Marc Van Montagu tem 54 publicações científicas em coautoria com cientistas brasileiros. Os pesquisadores que o professor
Van Montagu acolheu em seu laboratório, e aqueles formados no
LGMV, estão ativos em diversas instituições de pesquisa no Brasil
e são uma parte expressiva da liderança brasileira em biotecnologia
vegetal, uma área de pesquisa florescente e respeitada tanto nacional como internacionalmente. Muito disto devemos ao professor
Marc Van Montagu.
Marc recebeu, em 1997, o título de Doutor Honoris Causa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro por sua inestimável contribuição para a área de Biotecnologia Vegetal. Seu esforço para
o desenvolvimento das ciências de plantas no Brasil foi reconhe-
Placa comemorativa ofertada ao professor Marc Van Montagu no 4º Simpósio
Brasileiro de Genética Molecular de Plantas em agradecimento ao seu
inestimável apoio à Biologia Molecular Vegetal no Brasil, abril de 2013.
com o potencial da tecnologia do DNA recombinante para o melhoramento de plantas, Paes de Carvalho convidou Van Montagu
para uma visita à UFRJ.
Foi nessa visita, em 1985, que conheci o trabalho de Marc Van
Montagu. A conferência que ele proferiu sobre os primeiros resultados com plantas transgênicas tolerantes a herbicida maravilharam-me e levaram-me a trocar a genética molecular de leveduras
pelas plantas. Imediatamente postulei para pós-doutoramento no
seu laboratório. Ao mesmo tempo o professor Antonio Cordeiro,
que iniciava pesquisa em transformação de plantas em seu Laboratório de Cultura de Tecidos Vegetais no Instituto de Biologia
da UFRJ, articulou com Paes de Carvalho e Van Montagu a criação do Laboratório de Genética Molecular Vegetal (LGMV) no
Instituto de Biologia. Eu era a candidata natural para liderar esse
laboratório, pois já pertencia ao quadro de docentes da UFRJ. Foi
estrategicamente decidido que o professor Marc Van Montagu
me receberia como pós-doutor na Universidade de Gand e, ao
mesmo tempo, enviaria para a UFRJ o jovem doutor Benedikt
Timmerman para iniciar o laboratório e implantar as primeiras
linhas de pesquisa.
Naquela época, a Bélgica permitia e incentivava os jovens belgas que haviam adiado o serviço militar por estar cursando universidade a, quando completassem toda a sua formação acadêmica,
substituíssem o serviço militar tradicional na Bélgica por um trabalho científico/humanitário em um país em desenvolvimento.
A Cooperação ao Desenvolvimento da Flandria – Algemeen
Bestuur van Ontwikkelingssamenwerking (ABOS) – financiava o
projeto de pesquisa do postulante. Assim, em 1986 eu segui para o
pós-doutorado na Universidade de Gand e Benedikt Timmerman
foi para a UFRJ. Paralelamente, entre 1987 e 1996, o professor Van
Montagu acolheu para doutoramento em seu laboratório vários
estudantes brasileiros, a maioria ligada ao LGMV.
Benedikt Timmerman realizou um excelente trabalho no LGMV. Em três anos montou uma equipe dinâmica em torno de
120
botânica e zoologia
cido também no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular
de Plantas, em Bento Gonçalves, RS (2013), como cientista homenageado.
Entre as contribuições do professor Van Montagu para o setor
privado, destaca-se sua participação como membro do Conselho
Científico da empresa Allelix entre 2003 e 2009 e o recente convite para o Conselho Consultor do Instituto Tecnológico Vale.
Atualmente no Institute of Plant Biotechnology Outreach,
VIB/UGent, o professor Van Montagu continua sendo um incansável, articulado e influente advogado da transferência da biotecnologia vegetal para o benefício nutricional, econômico e ambiental
dos países em desenvolvimento. Sua aliança com o Brasil continua
inabalável, contribuindo sempre que solicitado. Recentemente o
professor Van Montagu ajudou a montar a equipe de Ciências de
Plantas no Instituto Tecnológico Vale, em Belém do Pará.
Dulce Eleonora de Oliveira trabalha no Institute of Plant Biotechnology Outreach, VIB – Ghent University.
Referências
Ampe, C., Van Damme, J., Castro, L. A. B., Sampaio, M. J. A., Montagu, M.
V. J. and Vanderkerchove, M. V. J. 1986. The aminoacid sequence of the 2S
sulphur-rich proteins from seeds of Brazil nut (Bertholletiaexcelsa H.B.K.).Eur. J.
Biochem. vol. 159 , p. 597-604.
A cooperação entre a KULeuven e as universidades brasileiras
Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão
N
a Universidade Católica de Lovaina (KUL), um dos laboratórios que tem atraído a atenção de muitos estudantes cientistas
brasileiros é o de biologia celular e molecular no departamento de Biologia da Faculdade de Ciência da KUL, chefiado pelo
professor Johan Thevelein. Este laboratório tem como principal
tema de investigação fundamental o estudo dos mecanismos de
transdução de sinal ativados por nutrientes, mais especificamente
os mecanismos envolvidos no controle de proteína quinase A em
leveduras (Saccharomyces cerevisiae).
Na área da pesquisa aplicada, o laboratório tem conquistado
fama internacional pelo uso de uma eficiente metodologia de modificação genética de leveduras, com a finalidade de desenvolver
estirpes de leveduras industriais superiores para a produção de
bioetanol de primeira e segunda gerações, produção de vinho,
cerveja e fermento.
A cooperação entre os pesquisadores Rogelio Lopes Brandão
e Ieso de Miranda Castro (Laboratório de Biologia Celular e Molecular-LBCM do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas-Nupeb da Universidade Federal de Ouro Preto) e o dr. Johan Thevelein surgiu em 1987 com intensa troca de “cartas” para tratar
da resolução de aspectos do metabolismo de um fungo, Fusarium
oxysporum, na época objeto de estudo do Dr. Rogelio Brandão.
Disto resultou um curto estágio de três meses (dezembro de
1988 a fevereiro de 1989), que possibilitou a elaboração de um
projeto de cinco anos (1991-1995). Este viabilizou com recursos
da ABOS (Agência de Cooperação ao Desenvolvimento do governo flamengo) a estruturação física do LBCM/Nupeb/Ufop com a
construção financiada pela Ufop (Universidade Federal de Ouro
Preto) e a compra de equipamentos e facilidades.
Em contrapartida, o governo brasileiro, através das agências
de fomento Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), financiou a ida de vários
brasileiros a Lovaina para trabalhar ou estagiar no Laboratório
do dr. Thevelein.
Mais recentemente, e no âmbito do Programa Ciência sem
Fronteiras, foi aprovado um projeto de Pesquisador Visitante especial para o dr. Johan Thevelein por um período de três anos, no
qual o Dr. Thevelein visitará algumas vezes o Brasil. Este projeto
tem forte apoio de empresas brasileiras, tais como a Petrobras e a
Fermentec, devido ao interesse bilateral no desenvolvimento da
pesquisa aplicada ao bioetanol.
Essa colaboração com o professor Brandão também deu início à organização de cursos em biologia molecular de micro-organismos, três dos quais em conjunto com a Ufop, em janeiro de
1994, novembro de 1997 e novembro de 1999, e mais uma vez
na Universidade de Viçosa (MG) em fevereiro de 2005. Nessas
ocasiões, alguns participantes foram convidados a estagiar no laboratório em Lovaina; no total, desde 1988, perto de 25 cientistas
vindos da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto,
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e outras.
Da participação de Beatriz Bonini no primeiro curso organizado em Ouro Preto surgiu a oportunidade de vir como estudante bolsista da Capes, do programa PDSE-Programa de
Doutorado Sanduíche no Exterior, para trabalhar em pesquisa
fundamental, desenvolvendo projeto na área de metabolismo de
trealose e controle da glicólise por trealose-6-fosfato. Esta vinda
como estudante de doutorado proporcionou a possibilidade de
voltar como pós-doutoranda e colaborar com o professor Thevelein por mais de dez anos, com várias publicações e um projeto comum na área de metabolismo de trealose, estabelecido
com o grupo do professor Héctor Francisco Terenzi da USP de
Ribeirão Preto.
Outros participantes dos cursos de biologia molecular vieram
121
parte 4 – colaboração científica
Os professores Rogélio Lopes Brandão e Johan Thevelein e demais participantes do curso de Biologia Molecular de Microorganismos, Ouro Preto, Minas Gerais, janeiro
de 1994.
também fazer seu doutorado em Lovaina, como recentemente
Thiago Martins Pais, sobre a modificação genética de leveduras
para a produção de bioetanol, já reincorporado em seu laboratório
de origem no Brasil.
Atualmente três estudantes brasileiros estão trabalhando em
seus projetos de doutorado. Um deles, Thiago Pereira de Souza,
Universidade Federal de Lavras (Ufla), Minas Gerais, bolsista Capes do programa PDSE-Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior, desenvolve projeto relacionado com a genética de leveduras com vistas à produção de biocombustível, sob a orientação
do professor Eustáquio Souza Dias, na Ufla, e Johan Thevelein,
na KULeuven. Seu interesse pela Bélgica teve início a partir de
conversas com seu orientador, que conhecia o professor Patrick
Van Dijck, do VIB (Vlaams Instituut voor Biotechnologie), onde
também se pesquisam genética e fisiologia de leveduras com foco
na indústria, principalmente de bebidas e combustível.
Além de colaborações com universidades, o laboratório do
professor Thevelein também mantém colaboração em projetos
de aplicação industrial com a empresa Fermentec de Piracicaba
(SP), fundada pelo dr. Henrique Vianna de Amorim.
Beatriz Monge Bonini, Doutora em Bioquímica pela USP, trabalhou como pesquisadora no laboratório do professor Thevelein na Universidade Católica de Lovaina (KUL).
Rogelio Lopes Brandão, Doutor em Bioquímica e Imunologia e com
pós-doutoramento na Universidade Católica de Lovaina (KUL), é
professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
122
medicina
Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher
Eddy Stols
M
arie Rennotte (1852-1942) foi recentemente redescoberta
como uma figura relevante na história da emancipação feminina e da medicina no Brasil. Nascida em Wandre, perto de
Liège, ganhou, em 1874-1875, em Paris, um diploma de professora e foi lecionar francês durante três anos na Alemanha, em
Mannheim.
Em 1878 desembarcou no Rio de Janeiro, onde trabalhou
como governanta e deu aulas em colégios particulares, como o
Colégio Werneck. Em 1882 foi convidada para o recém-fundado
Colégio Piracicabano dos metodistas americanos em Piracicaba.
Em suas aulas de Ciências, Rennotte professava ideias avançadas
evolucionistas e positivistas, que destoavam da educação tradicionalista dispensada em escolas como o Patrocínio de Itu, das freiras
francesas. Referindo-se a Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Spencer,
ousava polemizar a esse respeito na imprensa local, a Gazeta de
Piracicaba. Assim seu colégio ganhou mais alunas entre as famílias
influentes da cidade, como os irmãos de Barros Moraes.
Entrementes, propugnava a emancipação feminina em artigos
no jornal A Família. E viajava bastante. Com passaporte belga do
consulado do Rio, viajou em 1885 para Buenos Aires e em 18861887 aos Estados Unidos e à França.
Provavelmente com o auxílio de Prudente de Moraes, decidiu em 1889 estudar Medicina no Women’s Medical College of
Pennsylvania, na Philadelphia, onde formou-se em três anos. Em
seguida, aperfeiçoou-se em ginecologia, obstetrícia e neonatologia
como estagiária em Paris no Hôtel-Dieu e Saint-Louis em 1893-95.
De volta ao Brasil, revalidou seu diploma em 1895 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com a tese Influência da
educação da mulher sobre a medicina social, que insistia muito na
necessidade de uma medicina preventiva. Começou sua primeira
prática na Maternidade São Paulo, que acolhia mulheres pobres
e, em 1906, entrou na Clínica Cirúrgica de Mulheres da Santa
Casa de Misericórdia, onde colaborou com o célebre médico Arnaldo Vieira de Carvalho.
Ao mesmo tempo era bastante ativa na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo com propostas inovadoras. Numa
viagem de estudos pela França e pela Alemanha preparou-se para
Marie Rennotte, nascida em
Wandre e que emigrou ao
Brasil em 1878.
organizar, em São Paulo, a diretoria regional da Cruz Vermelha
e em 1912 tornou-se sua presidente. No mesmo ano propugnou
também a fundação de uma casa do convalescente, que não deu
certo, e de um hospital para crianças, para diminuir a mortalidade
infantil. Este último, construído no bairro de Indianópolis, segundo projeto de Francisco de Paula Ramos de Azevedo, foi inaugurado finalmente em 1919.
Rennotte foi ainda pioneira na formação de enfermeiras com
um curso criado na Santa Casa em 1912, se bem que foi de curta
duração. Pelos seus contatos com as tradicionais famílias da sociedade paulista, foi aceita em 1901 como primeiro membro feminino do Instituto Histórico e Geográfico. Em 1922 participou da
campanha a favor do voto feminino. Marie conheceu uma velhice
difícil e morreu na pobreza.
Referências
Maria Lúcia Mott. ‘De educadora a médica: trajetória de uma pioneira metodista’. Revista
do Cogeime, 1999, n. 15, p. 115-126. Idem, ‘Gênero, medicina e filantropia: Maria
Rennotte e as mulheres da nação’. Cadernos Pagu, n. 24, 2005, p. 41-67; Débora Costa Ramires. A contribuição de Mlle. Maria Rennotte na construção e implantação do
projeto educacional metodista no Colégio Piracicabano, Piracicaba, Doutorado, 2009.
123
parte 4 – colaboração científica
Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto
Luciana Pelaes Mascaro
A
convite do primeiro diretor da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (FFCLRP), Zeferino Vaz (1952-64), Lucien
Alphonse Joseph Lison (1908-1984) veio para o Brasil em 1953
para fazer parte do quadro dos professores e pesquisadores dessa
instituição, movido, talvez, pelas consequências do pós-guerra
na Europa.
Nascido em Trazegnies, Bélgica, graduou-se em Medicina pela Universidade Livre de Bruxelas em 1931. Desde 1936 produziu estudos e artigos de grande relevância para a medicina e, em
1952, publicou um livro sobre histoquímica animal que se tornou
um clássico, o que lhe valeu a reputação de pioneiro no assunto.
Foi o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras de Ribeirão Preto (SP) que, embora tivesse sido criada em
1959, somente foi autorizada a funcionar em março de 1964. Ficou no cargo até 1968. Em 1966 convidou seu conterrâneo, o
psicólogo André Jacquemin (1942, Baranzy, Bélgica) – formado
pela Universidade de Lovaina La-Neuve em 1965 – para compor
o corpo docente do Departamento de Psicologia da FFCLRP,
chegando a ser seu diretor de 1988 a 1992.
Na área de Psicologia, ressalte-se os fortes laços existentes entre
as universidades de Louvain-La-Neuve e de Lovaina com outras do
Brasil, da qual a FFCLRP é um exemplo. Atualmente, Jacquemin
é referência nacional e internacional para a Psicologia, especialmente em técnicas de Avaliação Psicológica.
Referências
Homenageado: André Jacquemin. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 24
n. 1, Brasília, mar. 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S141498932004000100014>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Lison, Lucien. La Faculte de Philosophie, Sciences et Lettres de RibeirãoPreto. Paidéia (Ribeirão Preto) vol. 15 n. 31, Ribeirão Preto, May/Aug. 2005, Seção Especial.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2005000200002>. Acesso em:
30 nov. 2013.
ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli. Carta a um mestre. Paidéia (Ribeirão Preto) vol. 16
n. 33, Ribeirão Preto, Jan./Apr. 2006, Seção Especial. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1590/S0103-863X2006000100002>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Moraes, Maria Augusta de Sant’Ana. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=instituicoes_view&codigo=7>. Acesso em: 30 nov. 2013.
O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios
de pesquisa em diabetes na Bélgica
O
professor doutor Decio L. Eizirik é atualmente diretor do
Laboratório de Medicina Experimental da Faculdade de
Medicina da Université Libre de Bruxelles (ULB). Ele começou
sua carreira estudando medicina na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRS) e fez doutorado na Universidade de São
Paulo (USP).
Depois de trabalhar dez anos na Universidade de Uppsala,
Suécia, primeiro como pesquisador visitante e depois como Professor Associado, foi viver na Bélgica em 1996, inicialmente para
dirigir uma unidade de pesquisa na Vrije Universiteit Brussels,
mas em 2002 foi nomeado diretor do Laboratório de Medicina
Experimental na ULB.
Seu grupo conta no momento com quase 30 pesquisadores de
diferentes países, incluindo cinco brasileiros que trabalham em
Bruxelas devido à intensa colaboração mantida pelo professor Eizirik com as universidades brasileiras Federal do Rio Grande do Sul
(UFRS), Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP).
O grupo do professor Eizirik fez importantes descobertas na
área de pesquisa em diabetes, incluindo a clarificação de mecanismos que levam à morte das células beta no diabetes e o papel
de genes candidatos para a doença nas células beta. Seu trabalho
foi recompensado com vários prêmios belgas e internacionais, incluindo o Prêmio Pharmacia & Upjohn do FWO (Belga), o JDRFI Diabetes Care Research Award e, em outubro de 2012, um dos
três mais importantes prêmios da EASD (European Association for
the Study of Diabetes), o Prêmio Albert Renold. A foto na próxima página mostra os membros do laboratório do professor Eizirik,
incluindo diversos brasileiros.
124
medicina
Integrantes do laboratório do professor Eizirik (3° da esquerda para a direita, na 2a. fila em pé), incluindo diversos pesquisadores brasileiros.
125
antropologia
A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil
Els Lagrou
E
ste artigo é o resultado de uma pequena pesquisa em documentos disponíveis e de uma consulta por e-mail aos colegas,
antropólogos belgas residentes no Brasil ou que tiveram uma relação profissional com o país, que foi decisiva para suas carreiras.
A consulta produziu um material rico e heterogêneo. Optei por
reproduzir suas palavras tal qual, porque cada pequeno relato evocava, melhor do que eu mesma poderia reproduzir, a atmosfera
particular que permeia a relação de cada um com a questão da
migração da Bélgica para o Brasil.
É curioso notar que num primeiro momento obtive mais informações sobre os motivos e os acasos que levaram esses belgas
e ex-belgas a deixar seu pequeno país no coração da Europa, fazendo-os optar pela vida neste país fascinante, do que informações sobre suas carreiras acadêmicas. Esta modéstia mostra que
os migrantes ainda não deixaram totalmente de ser belgas, pois
faz parte do estilo belga não ostentar aquilo que não for explicitamente solicitado.
Não pretendo explicar logo no começo a escolha do título deste artigo. Só queria assinalar que ‘a melancolia dos belgas’ nada
tem que ver com pessoas melancólicas, e muito menos com uma
nostalgia que sentiriam pelo país de origem. O que se quer sugerir
é que pensar sobre a relação desses belgas com os dois países é que
produz um efeito que poderia ser chamado de melancólico. Diferentemente de outros países europeus, como a França e até mesmo a Holanda, a Bélgica não tem uma política cultural agressiva.
Minha leitura aqui é a de um nativo da vida entre dois mundos.
Bélgica é um país pequeno, tem duas comunidades linguísticas
majoritárias, a flamenga e a valona, além de uma pequena minoria de fala alemã. As políticas culturais belgas acabaram sendo
regionalizadas de acordo com a fronteira linguística, tornando o
país ainda menor do que já era.
Outro fator importante do caráter belga, resultado de sua peculiar história e composição, é que cultivar o sentimento nacionalista não é bem visto. Cultivar regionalismos, menos ainda, mas
parece ser mais difícil de conter. Cultiva-se antes certo humor negro perante outros nacionalismos e a própria história complexa de
fronteiras fluidas, a ambivalência de sua identidade, a pequenez
do país, a cor cinza dos longos dias de chuva, os desentendimentos
de seus políticos, que fazem com que os vizinhos se perguntem o
que faz este país perdurar. Não obstante tudo isso, os belgas sabem
que são o coração da Europa, tanto espacial quanto historicamente, mas não o dizem...
Um resultado que aparecerá da comparação das trajetórias dos
diferentes antropólogos belgas que vieram para o Brasil é que (quase) todos parecem ter vindo para cá como lonely riders em busca
de algo, sem saber muito bem o quê. Se várias narrativas apontam
mediadores ou histórias de família, não parece existir nenhuma
política acadêmica sistemática de intercâmbio; as pessoas têm a
sensação de ter vindo por conta própria e de, ao chegarem aqui,
ter descoberto um mundo acadêmico poderosíssimo, insuspeito
pela academia belga. O contraste com a situação na França, especialmente para o campo da antropologia, salta logo aos olhos. Na
França se conhece a antropologia brasileira e vice-versa. Veremos
que alguns dos nossos entrevistados traçaram sua relação com o
Brasil por intermédio de antropólogos franceses.
Grande é, portanto, o contraste da mentalidade belga, ciosa da
solidez de sua formação, mas modesta por natureza, com a mentalidade brasileira, orgulhosa pelas dimensões e potencialidades
do país, crente na sua diversidade e na sua capacidade de absorção
das diferenças; país que se considera um país de migrantes, tendo se tornado um dos maiores blocos monolíngues do planeta. A
hospitalidade para com o estrangeiro que chega ao país continua
fazendo parte da autoimagem dos brasileiros e da experiência do
estrangeiro europeu quando aqui aporta.
Passo agora à apresentação dos relatos dos entrevistados sobre suas próprias trajetórias para depois tirar algumas modestas
conclusões.
Belgas no Brasil: Étienne Samain
Em filme de Clarice Peixoto, Étienne Samain respondeu às
questões sobre sua atividade no Brasil: Formado doutor em Teologia na Université Catholique de Louvain (1965), foi servir por
algum tempo como sacerdote numa paróquia na zona operária,
126
antropologia
Dominique Tilkin Gallois
perto de Charleroi. Ele sentia, no entanto, um desejo grande por
conhecer novos horizontes e foi assim que atendeu ao convite de
amigos brasileiros que conhecera na universidade para um trabalho de cooperação numa diocese brasileira. Em 1971 ele fez sua
primeira viagem, de férias, por Brasil, Argentina e Chile. “Sessenta e oito é a primavera francesa, quer dizer, uma inquietação na
Europa e o desejo de respirar. Eu gostaria de dizer que na época
eu sufocava. Esta viagem para o Brasil efetivamente me deu outros
parâmetros para medir a vida humana, algo tinha acontecido. Eu
descobria uma outra arte de ser gente, uma espontaneidade, um
tipo de beleza, não apenas física, uma beleza moral na época, ou
talvez eu estivesse romantizando até certo ponto, mas foi decisiva
para mim essa primeira viagem.”
Depois, de volta à Bélgica, recebeu o convite de Dom Eugênio de Araújo Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, para lecionar, a
partir de 1973, um curso de exegese na PUC. Pouco tempo depois
de sua chegada, as dúvidas com relação à opção religiosa começaram a se agravar: “Com relação à vocação na minha vida eu sofria
de uma coisa que nunca ia discernir totalmente... questões de fé,
jogava sobre Deus o que era engajamento humano, questões de
sexualidade que desconhecia...”.
Sob a manifesta decepção do seu mentor brasileiro, Dom Eugênio, deixou o sacerdócio e, casando com uma belga em 1975,
começou a estudar antropologia no Museu Nacional do Rio de
Janeiro. Fez pesquisa de campo, primeiramente entre os índios
Kamayurá (Alto Xingu, Mato Grosso), onde estudou principalmente a mitologia e as histórias orais, e depois entre os Urubu
-Kaapor (Maranhão) as músicas xamanísticas e de flauta. Sobre
os Kamayurá publicou em 1991 Moroneta Kamayurá: Mitos e
Aspectos da Realidade Social dos Índios Kamayurá (Alto Xingu),
livro ilustrado com muitas fotos.
Étienne Samain, apaixonado pela fotografia desde a infância,
concentrou-se no aprofundamento das linguagens audiovisuais.
Em 1984 se mudou para a Universidade Estadual de Campinas,
onde foi convidado a ajudar na implementação de um programa
inovador de Pós-Graduação em Multimeios. Desde então seu esforço teórico consiste em “fazer da antropologia visual realmente
um suporte científico da antropologia, sem descartar a dimensão
do verbal, mas trabalhar a relação de ambos”. Trabalhou assim
sobre os usos da fotografia em antropologia visual, pesquisa colaborativa que resultou na coletânea O fotográfico (1998).
Interessado pela teoria de comunicação de Gregory Bateson,
publicou em 2005 Os Argonautas do Mangue, em colaboração
com André Alves, seu orientando, fotógrafo e biólogo de formação.
A primeira parte do livro, escrita por Samain, trata da obra clássica
de antropologia visual, de Gregory Bateson e Margereth Mead,
Coming of age in Bali. A segunda parte apresenta os resultados da
pesquisa de Alves, com sequências de fotos dos caranguejeiros do
mangue de Vitória (Espírito Santo), alternadas com textos, muitas
vezes com interpretações dos próprios caranguejeiros. A intenção
do livro é fazer dialogar estas duas pesquisas, usando a primeira
como fonte de inspiração para a segunda.
Dominique Gallois, etnóloga de referência na USP, se destacou durante toda sua carreira por seu engajamento a longo prazo
na pesquisa e na política indigenistas, assim como pela formação
de jovens etnólogos. Desenvolveu pesquisa pioneira sobre o xamanismo entre os waiãpis e tem coordenado um grupo de pesquisa
sobre as Guianas.
Em suas próprias palavras: “Moro no Brasil desde 1975. É o
país que escolhi para viver, trabalhar, envelhecer. Mas sou belga,
que não nasceu na Bélgica, e lá viveu apenas por 4 anos, no início
da década de 70, quando morei em Bruxelas, para estudar. Antes,
morei na Venezuela – onde passei minha infância –, na Itália – onde vivi na adolescência. De meu nascimento na China, claro!, não
recordo nada, pois de lá saí com 18 meses. Acompanhando minha
família, com pai diplomata, também estive por um curto tempo
em São Paulo, em 1967 e 1968. Já querendo ficar. Mas meus pais
me enviaram para Bruxelas, para que eu me conectasse com meu
país. Estudei Ciências Sociais, Políticas e Econômicas na Universidade Livre de Bruxelas. Tínhamos aula de antropologia física com
um professor que nos mostrava imagens de pessoas negras, asiáticas
ditas ‘primitivas’, em função do tamanho de sua caixa craniana.
“Coisas assim me deixavam muito desanimada, pois já tinha
lido na adolescência – graças ao estímulo de meu pai – Tristes Trópicos e outros livros de antropologia. A partir do 3º ano, finalmente
minha formação se consolidou, com as aulas de Luc de Heush,
que dava aula de Etnologia Africanista, mas também nos introduzia à obra de Lévi-Strauss. Ao lado disso, e de excelentes cursos
de Filosofia, professores interessados nas contradições do desenvolvimento em países ditos ‘não desenvolvidos’, acolheram meu
interesse pelos povos indígenas. Acabei realizando uma pesquisa
sobre a situação dos índios no México no período da revolução
de 1910. Não podia ir a campo, contentei-me com documentos e
com a leitura de romances indianistas. O trabalho defendido em
1974 intitulava-se Les théories indigenistes au Mexique, de 1920
à nos jours.
“Em 1975, casei e vim morar no Brasil. Com uma bolsa de
especialização, válida por um ano, concedida através da ULB no
âmbito de um acordo bilateral entre Bélgica e Brasil, pude me
aproximar dos professores de Antropologia da USP e iniciar algumas disciplinas. Logo, Thekla Hartman e Lux Vidal insistiram
para que me inscrevesse no mestrado. Defendi a dissertação em
1980, conseguindo finalmente realizar pesquisas de campo com
povos indígenas. Inicialmente, desejava continuar na linha de pesquisa iniciada na Bélgica, estudando os efeitos das políticas indigenistas. A intenção era pesquisar em alguma região que permitisse
comparar políticas nacionais, em ambos os lados de uma fronteira.
Queria trabalhar com os Yanomami, mas um encontro com o antropólogo escocês Alan Campbell dirigiu meu destino para junto
dos Wajãpi, no Amapá.
“Contrariamente ao planejado, não iria trabalhar no lado da
Guiana Francesa, diante da acolhida dos Wajãpi no lado brasileiro
e dos desdobramentos que pouco a pouco se impuseram na minha
127
parte 4 – colaboração científica
Jovem kaxinawa.
relação com esse grupo indígena. No entanto, antes de consolidar
meus estudos sobre eles no doutorado, experimentei outras áreas
de pesquisa etnográfica entre os Tiriyó, os Karipuna e Galibi do
Oiapoque. Voltei aos Wajãpi no doutorado, após ter tentado, mas
logo abandonado, uma pesquisa de cunho histórico sobre o trabalho indígena no período colonial, em Marajó. Nesse período,
meu interesse pelas problemáticas do indigenismo consolidou-se
enquanto participava das campanhas e atividades da Comissão
Pró-Índio de São Paulo e também graças à oportunidade de trabalhar durante oito anos na equipe do programa Povos Indígenas
no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(Cedi), depois incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Trabalho Indigenista
(CTI). Anos depois, fundei com colegas da USP outra ONG, o
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé).
“Ingressei na USP em 1985, antes de concluir meu doutorado,
defendido em 1988. Desde então, dedico-me a formar etnólogos
que possam desenvolver alternativas mais éticas de diálogo com
os povos indígenas. Coordenei o Núcleo de História Indígena e
do Indigenismo (NHII/USP), engajando vários alunos em pesquisas na região do Amapá e norte do Pará. Um dos resultados
dessa pesquisa está na coletânea que coordenei Redes de relações
nas Guianas (2005). Na sequência, coordenei um conjunto de
pesquisas voltadas à discussão das formas de criação, circulação e
transformação de conhecimentos, engajando um novo conjunto
de estudantes.
“Os artigos que publiquei nesse período sobre problemáticas
dos saberes ameríndios foram suscitados pelo meu engajamento
na formação de pesquisadores indígenas no Amapá, entre eles
uma turma de 20 pesquisadores Wajãpi, engajados em atividades
do Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Waiãpi, que incluiu, entre 2000 e 2003, o registro das expressões gráficas e orais
deste grupo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela UNESCO.
“Paralelamente, apostando na difusão de uma nova imagem
dos índios, dediquei-me à realização de documentários, especialmente aqueles produzidos com o projeto de vídeo do Centro de
Trabalho Indigenista, durante a década de 90 (A arca dos Zo´é,
Segredos da mata, entre outros). Livros de difusão científica, como
Patrimônio cultural imaterial: exemplos do Amapá e norte do Pará
(2006), também foram realizados com esse objetivo, de contribuir
com a valorização dos conhecimentos indígenas e, sobretudo, com
a difusão das experiências políticas e culturais indígenas em curso
naquela região.
128
antropologia
“Ultimamente, tenho retomado minha pesquisa etnográfica
sobre os índios Zo´e, no norte do Pará. Nessa trajetória, nunca
mais voltei à ULB, nem mantenho contatos com antropólogos
belgas. A não ser com os belgas que, como eu, se dedicaram ao
Brasil. Recentemente, tive a alegria de ser escolhida como orientadora de um jovem belga, com dupla nacionalidade, que também estudou na ULB. Nicodeme Costia de Renesse concluiu
seu mestrado em 2012 na USP e hoje desenvolve uma pesquisa
de doutorado sobre os Surui-Paiter. Trajetórias que se repetem,
sem nunca se repetir”.
estava sendo privada da nacionalidade belga por ter me naturalizado francesa em 2006, quando o meu filho nasceu.
“O que mais posso dizer? Decidi estudar antropologia no último ano de colégio, quando descobri Lévi-Strauss em 1992, durante as aulas de Filosofia de Terminale, no Liceu francês, no
Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, trabalhei como voluntária na
organização da Conferência Mundial dos Povos Indígenas, conferência paralela à reunião das Nações Unidas conhecida como
Rio 92. Essa experiência reforçou minha decisão de virar antropóloga. Estudei Ciências Sociais na Université Libre de Bruxelles, finalizando a graduação em Etnologia já na Universidade de
Paris X-Nanterre em 1996. Na época realizei uma monografia de
conclusão de curso sobre os javaés da Ilha do Bananal, portanto
já havia feito trabalho de campo no Brasil.
“Em 1998, entrei no Mestrado no PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social), Museu Nacional, e continuei minha pesquisa com os javaés e os carajás da Ilha do Bananal,
sob a orientação de Aparecida Vilaça. Defendi minha dissertação
de mestrado em janeiro de 2000. Ainda em 2000, fiz minha primeira viagem aos paumaris, no sudoeste do Estado do Amazonas.
Poucos meses depois, já casada, me mudei para a França onde
acabei me inscrevendo no doutorado após tentativas frustradas de
fazer uma co-tutela entre o Museu e alguma universidade na França (na época, as co-tutelas ainda não estavam bem regulamentadas). Entre 2001 e 2002 realizei meu trabalho de campo com os
Paumari, voltando para a França em outubro de 2002. Entre 2003
e 2005, trabalhei como Leitora de língua portuguesa e civilização brasileira no Departamento de Línguas da Universidade de
Nanterre. Finalmente, defendi minha tese em setembro de 2007,
voltando ao Brasil em 2009, para realizar um pós-doutorado de
cinco anos, financiado pela Faperj, e desenvolvendo um projeto
de pesquisa sobre cosmopolíticas indígenas e políticas públicas.”
Sob orientação de Philippe Descola, Oiara Bonilla defendeu
sua tese sobre os paumaris, grupo de língua aruá, na École des
Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, uma contribuição
original e importante à etnologia ameríndia. Na teoria etnológica
é bem conhecido o fato do discurso guerreiro estar bem presente
nas sociologias ameríndias, assim como tem sido detectado uma
ontologia que prioriza as relações de predação enquanto contexto
no qual se desenvolvem as relações sociais, particularmente com
outros seres humanos e não humanos. Neste contexto, os Paumari
surgem com um discurso sócio e cosmopolítico particular, enfatizando sua posição de vítima e presa numa rede relacional onde
precisam dos outros para serem protegidos, tanto no nível das relações interétnicas quanto na sua concepção de suas relações com
outros seres do cosmos. É neste sentido que surge, no contexto das
relações com os brancos, a figura do ‘bom patrão’.
Oiara Bonilla
“Sou belga, mas não pude nascer belga. Nasci em Paris, em
1975, de um pai uruguaio exilado e de uma mãe belga desenhista. Mas, por lei, não podia ser nem francesa, nem belga. Só pude
me tornar belga bem mais tarde, lá pelos 10-12 anos de idade,
depois de uma modificação de lei que permitiu que os filhos de
mães belgas nascidos no exterior tivessem direito a um passaporte.
Quando nasci, era legalmente apátrida, até meu pai convencer o
cônsul uruguaio a emitir um passaporte para mim. Toda minha família materna é belga e vive em Bruxelas, apesar de ser de origem
húngara e holandesa. Assim, sou mais uma belga por acidente,
uruguaia nascida na França e, portanto, também francesa (nacionalidade também adquirida bem depois). Acho que não preciso
explicar por que quis ser antropóloga.
“Para complicar, vim parar no Brasil (Recife primeiro e Rio
de Janeiro mais tarde) aos seis anos de idade e por aqui fiquei até
a faculdade. Quando terminei o colégio resolvi estudar antropologia e escolhi ir para Bruxelas cursar ciências sociais na ULB. A
adaptação foi difícil, por várias razões, mas principalmente porque
fiquei decepcionada, pois já sabia que queria trabalhar na Amazônia e por lá só se falava em África. Foi assim que, ainda no 2º
ano de faculdade, decidi acompanhar um curso de 4º ano. Era
o único oferecido sobre índios na Amazônia. Ali conheci Anne-Marie Losonczy, que lecionava essa matéria e rapidamente me
encaminhou para Nanterre para terminar minha graduação com
a equipe de americanistas de lá.
“Minha experiência belga durou pouco, fiquei apenas dois
anos por lá, terminando a faculdade em Nanterre e logo voltando
para o Rio para fazer mestrado no Museu Nacional. Não tenho relações nem contato com antropólogos da ULB, nem com universitários de lá, apenas com amigos e família. Aliás, poucas pessoas
de minha turma se tornaram de fato antropólogos, acho que com
exceção de David Berliner, que é africanista e professor na própria ULB. Em 2000, voltei para a França, para fazer o doutorado,
e lá tive filhos e me naturalizei francesa. Tenho um sentimento
um pouco melancólico quando penso nesse não vínculo com a
universidade e tenho uma sensação nítida e um pouco triste de
que a Bélgica não apoia, não reconhece seus conterrâneos, nem
valoriza muito aqueles que moram fora. Essa sensação contrasta
fortemente com a atitude (oposta) dos franceses. Para ilustrar isso,
fui informada na semana passada (logo após o e-mail da Els) que
Natacha Nicaise
O texto de Natacha Nicaise é um resumo, editado por mim,
de um memorial que ela escreveu em 2012 para um concurso
público e que me cedeu gentilmente. Apresenta aqui a própria
129
parte 4 – colaboração científica
trajetória intelectual que levou a jovem estudante para o Brasil e
a reflexão teórica sobre as diferenças entre os mundos acadêmicos
belga e brasileiro, tal como foi experimentado por uma jovem estudante nos anos 1990 e 2000.
Em suas palavras: “Deixei a Bélgica para me instalar no Brasil
em 2002, após ter ganho uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realizar
o doutorado no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. A decisão de
continuar minha formação neste país aparece retrospectivamente como uma boa lente para colocar em relevo vários elementos
de minha trajetória pessoal e profissional. Em minha trajetória,
acumulei diversas experiências de pesquisa em vários contextos
nacionais (Brasil, Peru, Bélgica, União Europeia, Haiti, Estados
Unidos), tratando de questões como tradições intelectuais, economia popular urbana, política e processos de comunicação, história e memória institucional, identidades nacionais, políticas de
desenvolvimento e pós-colonialismo. Na Bélgica, como em vários
outros países nos quais as relações coloniais foram estruturantes,
o passado colonial continua presente na cultura material, na alimentação, na arte, na presença de imigrantes oriundos da África
e também nas próprias tradições intelectuais e acadêmicas. No
mundo acadêmico brasileiro, procurava um distanciamento crítico em relação ao universo cultural que informava minha visão
sobre as relações pós-coloniais.
“No doutorado, queria estudar as representações sociais das relações de cooperação para o desenvolvimento da Europa e na Europa, a partir de um âmbito cultural diferente e de outra tradição
intelectual e, desse modo, tentar me afastar de pressupostos que
percebia como embutidos na minha ‘condição de belga’, notadamente um paternalismo difuso na abordagem das relações Norte-Sul. Foram essas indagações — também carregadas, confesso, de
rebeldia e irreverência juvenis — que motivaram minha decisão de
realizar um doutorado fora da Bélgica e, em particular, no Brasil.
“Foi na ocasião da monografia de final de graduação, em 1997,
que tive o primeiro contato com o país. Graças a um encontro com
uma professora alemã, na época diretora do Laboratório de Antropologia da Comunicação (LAC) da ULG, a Dra. Tomke Lask, que
havia feito seu mestrado no PPGAS e mantinha um estreito contato com a academia brasileira, fui recebida como estagiária naquela
instituição por um período de três meses, visando desenvolver o
projeto de análise comparativa da abordagem do xamanismo em
um grupo de índios guaranis na obra dos antropólogos Eduardo
Viveiros de Castro e Pierre Clastres. Esta primeira passagem pelo
Brasil foi fundamental em minha trajetória; despertou um grande
interesse pelo mundo acadêmico brasileiro e marcou o início de
uma longa e interessantíssima jornada que me levou a me estabelecer no país. Um encontro com a antropologia brasileira era
improvável no contexto acadêmico belga.
“Em 2002, iniciei meus estudos de doutorado no PPGAS. Como orientanda do professor A. C. de Souza Lima, integrei o Laced
(Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento). Estudei a transformação das ‘relações coloniais’ em relações de ‘cooperação para o desenvolvimento’ entre a Comunidade
Econômica (depois União) Europeia e a África. O fio condutor da
minha investigação foi a política de comunicação oficial em dois
momentos: na época da criação da CEE, no final dos anos 1950,
e entre 2000-2005. Em 2007, fui convidada para integrar uma
equipe de pesquisadores brasileiros que participou da criação do
Instituto Interuniversitário de Pesquisas e Desenvolvimento (Inured), no Haiti. A partir de então, comecei a pesquisar um universo
social complexo, marcado pela presença da ONU (e do Brasil, no
exercício do comando militar dos capacetes azuis), de agências internacionais, de ONGs (algumas brasileiras, como o Viva Rio) e
de instituições acadêmicas brasileiras, norte-americanas, francesas,
canadenses, haitianas e de outros países do Caribe.
“O Haiti e a região do Caribe transformaram-se em um dos
meus centros de interesse. Desenvolvi várias atividades ligadas (1)
à construção institucional – fui responsável pelas relações exteriores do Inured entre 2007-2009; (2) à pesquisa – participando do
laboratório State, Justice & Public Policy do Inured e da equipe
coordenada pelo Prof. Federico Neiburg no âmbito do Núcleo de
Pesquisas em Cultura e Economia e, a partir de 2009, desenvolvendo o projeto de pós-doutorado ‘Nações e Cooperação Internacional; a Foreign Assistance norte-americana e o Haiti, 1942-2010’,
no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob a
supervisão do Prof. Omar Ribeiro Thomaz (bolsa Fapesp); e (3) à
docência – ministrando cursos à distância para alunos da Universidade do Estado do Haiti.
A minha participação no Inured e a colaboração com a ONG
brasileira Viva Rio, que atua em Porto Príncipe, tem me permitido
observar de perto as transformações e as tensões que acompanham
a ‘cooperação internacional’ — por exemplo, situando como atores o governo e a “sociedade civil” brasileira e, com isto, abrindo todo um leque de questões a respeito das novas modalidades
da presença do Brasil no cenário internacional. Até o momento,
publiquei dois livros (em formato impresso e digital, em inglês,
francês, português e creole haitiano) que permitem compreender
a relação entre as necessidades e perspectivas da população e as
formas de intervenção da cooperação internacional na área: Lixo,
Estigmatização, Comércio, Política (2010) e A vida social da água
(2009), ambos em colaboração com Federico Neiburg e editados
em parceria entre o NuCEC e o Viva Rio”. Peter Beysen
Peter Beysen foi meu aluno no doutorado e escreveu uma bela
tese sobre a estética corporal ashaninka, grupo arawak que habita
a fronteira entre o Brasil (no Acre) e o Peru. Antes de vir para o
Brasil cursou História da Arte com especialização em Arte Étnica
na Universidade de Gand. O relato de Peter é o de um viajante
à procura de outro mundo: “A ideia era, originalmente, ir para a
Indonésia, o que não aconteceu porque a situação política não
era muito tranquila, especialmente para falantes do holandês...
Dois meses de mochila por Java, Bali, Lombok e Sumbawa me
fizeram escolher pelas ‘artes étnicas’ no curso de História da Arte
na Universidade de Gand.
130
antropologia
Preparação de pigmentos minerais.
“O Brasil nos parecia uma segunda opção promissora: para
minha esposa, especialista em estética médica, o lugar era ideal e
para mim, tinha a floresta amazônica... Fomos parar em Joinville,
por influência da ex-cunhada de um dos clientes de Sonja (esposa
de Peter). Em Joinville, passava meu tempo no ‘museu arqueológico de sambaqui’. O museu possui uma boa biblioteca e num certo
dia peguei da estante, por acaso, o livro A temática indígena na
escola, folheei o livro e parei numa foto dos Kaxinawa. Em cima
da foto estava impresso o nome Elsje Lagrou. Sorri por causa do
nome inconfundivelmente holandês ou flamengo. Alguém na sala
reparou meu sorriso e me perguntou o que tinha me chamado a
atenção. Para minha surpresa conheciam Elsje Lagrou, na época
professora em Florianópolis, e especializada em antropologia da
arte. Els se revelou mais tarde a orientadora ideal para mim... Els
estava naquela época num processo de transferência da UFSC para o IFCS da UFRJ no Rio de Janeiro, sem dúvida a cidade mais
interessante do mundo...”
Peter Beysen terminou seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia com tese intitulada Kitarentse. Pessoa, Arte e Estilo de Vida Ashaninka do Oeste Amazônico (2008). Aborda a estética minimalista dos Ashaninka a partir
dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas
míticos que se organizam ao redor dos dois grandes eixos em torno
dos quais gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor. O autor argumenta que o belo para
os Ashaninka consiste no equilíbrio entre o pensar (seu estilo de
vida é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer, no qual
a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o
modo como se constituiu a pessoa Ashaninka. É a força latente que
se acarinha, constituindo esta o ideal da estética da arte corporal.
Atualmente prepara um catálogo, com fotos de sua esposa fotógrafa, Sonja Ferson, uma exposição e uma coleção etnográfica
sobre os Ashaninka para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, onde
possui bolsa temporária de pesquisa pela Unesco.
131
parte 4 – colaboração científica
Lucia Hussak Van Velthem
popular, na gaita. Também ouvia ópera seguidamente, sobretudo
as preferidas: La Bohême e Lucia di Lammermoor, o que explica
meu prenome. Juntamente com o sobrenome, constituem estes
os frágeis e tênues laços que me ligam à Bélgica.
“Os laços são frágeis porque antes de me fazer conhecer e
amar a Bélgica, meu pai me fez conhecer e amar o Brasil, o lugar que escolheu para viver e morrer. A minha grande ‘escolha’,
por outro lado, foi ir contra todas as expectativas familiares e me
graduar em Museologia em 1972. Estavam esperançosos de que
seria uma engenheira, após ter-me formado no curso técnico de
calculista de concreto armado.
“A formação recebida no curso de Museologia não era em
absoluto teórica, mas essencialmente prática. Aprendia-se a identificar estilos, modismos, fases, técnicas de peças de mobiliário e
muitos outros objetos e artefatos, passíveis de serem encontrados
em museus, não necessariamente brasileiros, pois nos debruçamos
sobre as escritas medievais europeias. Na época, eu não atinava
como me seria útil, no futuro, a intimidade visual e tátil adquiridas, nesse período, com artefatos tão variados na forma e nos materiais. A Museologia levou-me ao Museu Nacional, no Rio de
Janeiro. Desejava tornar-me restauradora de artefatos indígenas
e assim busquei a Seção de Etnografia. Heloisa Fénelon Costa
desencorajou-me desse intento, mas encaminhou-me para a documentação de coleções. Meus colegas, estagiários e bolsistas, vinham das Ciências Sociais e se dedicavam aos estudos dos povos
indígenas altoxinguanos, assim como a própria professora. Como
não havia a menor possibilidade de introduzir-me nesse território,
busquei uma região distanciada, mas representativa no acervo.
Assim cheguei ao Rio Negro e às coleções de artefatos plumários
dos índios Tukano.
“Era um trabalho descritivo e algo enfadonho. O divertido ficava com a prosa do museólogo Geraldo Pitaguary e o extraordinário
com a descoberta de uma peça aqui, outra ali, no meio de dezenas
de outras, nas caixas de metal do antigo ‘Depósito’. Esse período
foi marcado por encontros e orientações que vieram de muitos
lados, mas sempre no cenário do Museu Nacional. Uma forte
lembrança está ligada à figura de Berta Ribeiro, que me cumulou de ensinamentos preciosos, e com a qual mantive duradouro
compartilhamento de livros, cartas e o interesse pelos estudos de
artefatos ameríndios.
“Em meados de 1973 rumei para Belém do Pará, como alternativa à impossibilidade de me exilar na Europa, para onde foram muitos dos companheiros de militância política. Em Belém,
Eduar­do Galvão, Protásio Frikel e Expedito Arnaud receberamme muito calorosamente no Museu Paraense Emílio Goeldi, então pertencente ao CNPq. Os estudos de plumária dos Tukano
prosseguiram nas coleções deste museu, sob a batuta de Galvão,
de quem fui a última orientanda. Paralelamente dedicava-me,
a pedido de Galvão, a trabalhos propriamente museológicos na
conservação da exposição permanente e foi esta especialidade que
favoreceu minha contratação para o Museu Goeldi em 1975. Entrementes, eu havia descoberto a Etnologia e, sobretudo, a perspectiva de realizar trabalho de campo. Assim, rumei com o antro-
Lucia Van Velthem pode ser contada hoje entre os seniores
da disciplina antropológica no Brasil que fizeram a diferença, particularmente no campo da antropologia da arte. A obra O belo é
a fera, a estética da produção e da predação entre os Wayana, de
2003, se tornou um clássico no campo por antecipar, através de
uma etnografia precisa e detalhada das técnicas de produção dos
artefatos e das pessoas wayana, um paradigma que hoje domina
a antropologia: a ideia que pessoas são como artefatos e artefatos
são como pessoas.
A bem dizer, Lucia Van Velthem não é belga, mas descendente de belga, de primeira geração. Entretanto, seu nome e sua
aparência, seu modo de ser, parecem mais belgas do que os de
muitos belgas. Talvez por ser belga de coração! É na atitude aventureira do pai, que veio para o Brasil para nunca mais voltar, que
Van Velthem localiza a origem de sua vocação pela antropologia
e é com ternura que ela se volta inicialmente neste texto para a
memória do pai:
“Meu pai, Pierre François Van Velthem nasceu em novembro
de 1906, filho de Maria Beleyn e de François Van Velthem. Este,
segundo a tradição familiar, era um renomado decorador de vitrines de grandes magazines na Bélgica, França e Alemanha e ela, a
mimada filha de um próspero negociante de Bruxelas. A família
se muda para Antuérpia e as relações familiares o introduzem no
aprendizado do entalhe de diamantes em um dos muitos negócios de joias e pedras preciosas mantidos por judeus nessa cidade.
Em 1925 viaja para o Congo Belga, mas logo decide tomar outros
rumos e não permanece na África, seguindo para o Brasil, mais
precisamente para Salvador.
“Da capital baiana ruma para o Vale do Jequitinhonha, em
Minas Gerais. Na época era um lugar remotíssimo, com lavras de
diamante que remontavam, entretanto, ao século XVIII. Percorre vilas e mais vilas e seus arredores: Datas, Serro, Milho Verde,
São João da Chapada, Barão de Cocais, Guinda, Diamantina e
também lugares mais afastados como ‘Cavalo Morto’ onde, nos
contou, havia inúmeros refúgios de quilombolas. Nessa região
construiu a rede de amigos que o acompanharia para o resto da
vida, mesmo morando no Rio de Janeiro, onde se casou com uma
filha de austríacos, e se estabeleceu.
“Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai levou-me ao sertão de
Minas em uma longa viagem e, enquanto registrava pessoas, paisagens e igrejas em aquarela, ensinou-me a abordar e a conversar
com todas as pessoas: da mendiga da porta da Igreja do Amparo
ao filho do cartorário, fanático por brigas de galo. Tenho certeza
de que foi esse aprendizado, repetido em muitas outras viagens, a
última em 1970, dois anos antes de sua morte, que me conduziram à Antropologia e aos índios.
“Meu pai falava pouco da Bélgica e nunca de forma espontânea. Jamais esboçou qualquer iniciativa para viajarmos até seu
país natal. Não sabemos nada sobre possíveis parentes belgas, os
laços foram completamente rompidos. Recordo que a música era
uma das suas grandes paixões, a clássica interpretava ao violino e a
132
antropologia
Apresentação de dança indígena no evento Europalia.Brasil, 2011.
pólogo alemão Protásio Frikel para o Rio Cururu e para as aldeias
dos índios Munduruku. Nessa viagem, Frikel desejava repassar o
rigor e a dedicação de um trabalho de campo à maneira dos velhos
mestres germânicos. Assim, não parávamos: levantamentos nas roças, escavações arqueológicas, coleta de mitos, inventários da cultura material, dos grafismos e das aldeias que visitávamos e ainda
uma longa viagem – em canoa a remo – até os locais míticos dos
Munduruku, no alto Rio Cururu. Tudo isso provocava sucessivos
choques intelectuais e sensoriais que me exauriam.
“Em 1976 eu já estava na Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas), e tinha como orientadora a professora Lux
B. Vidal, que generosamente me transmitiu seus conhecimentos e
sabedoria, e assim se tornou uma pessoa marcante em minha vida.
A USP era, na época, um importante foco de pesquisas sobre índios
e Lux Vidal reunia um grupo de estudantes interessados nas possíveis correlações existentes entre estética e cosmologia, mas tendo
como ponto de partida os artefatos materiais. Descobri assim a única via propícia para uma museóloga, e por ela sigo até o presente!
“O ingresso na USP abriu-me as portas da reflexão teórica,
da história da antropologia e dos estudos sobre os índios do Brasil
Central, através das aulas de professoras de origem alemã: Lux
Vidal, Tekla Hartmann e Renate Viertler. Os cursos proporcionaram também o encontro de pessoas que me acompanham até
hoje, umas mais próximas, outras mais distanciadas: Dominique
Gallois, Alba Figueiroa, Regina Muller, Els Lagrou, Silvia Caiuby,
Nadia Farage, Marta Amoroso e as saudosas Vera P. Coelho e Aracy L. da Silva.
“As leituras teóricas – sobretudo Lévi-Strauss – requeriam a
abertura para novas experiências acadêmicas. Paralelamente era
necessário ser pragmática, e assim encontrar um povo indígena
que fosse pouco estudado, mas que pudesse ser acessado com facilidade. Cheguei então ao Parque Tumucumaque, frequentado
semanalmente pelos aviões da Força Aérea Brasileira. A primeira
viagem, em 1975, foi precedida da leitura de parte da bibliografia
etnológica existente sobre os Carib norte-amazônicos – sobretudo
Daniel Schoepf que me apresentou aos Wayana – para detectar
onde pousar nesse vasto território indígena, contemporâneo do
Parque do Xingu. A porção leste pareceu-me a mais adequada,
pois não estava marcada, nem por debates teóricos palpitantes,
nem por etnografias exaustivas. Os contatos iniciais com os Wayana e Aparai foram decisivos. Meus olhos os viram e os veem
como pessoas de aguçado senso estético e de grande sabedoria. O
que foi percebido, na ocasião, permitiu-me esboçar o projeto geral
da dissertação de mestrado: o estudo de uma categoria artesanal
proe­minente, a cestaria.
“Outras viagens ocorreram: umas mais demoradas outras mais
curtas, quando a malária se manifestava. Fixei-me em uma aldeia
essencialmente wayana - Xuixuimëne, no médio Rio Paru de Leste – onde encontrei pessoas acolhedoras e especialistas dispostas
a compartilhar seus saberes. Nesse período não tinha meios de
avaliar que os estudos da arte e das categorias materiais dos Waya-
133
parte 4 – colaboração científica
na seriam tão fascinantes, tão absorventes e tão demorados, consumindo assim 20 anos, até 1995, ano em que defendi a tese de
doutorado, ainda na USP e ainda sob a entusiasmada orientação
de Lux Vidal. Os anos foram longos entre os Wayana porque as
pesquisas e as publicações se entremearam com os trabalhos de
delimitação da Terra Indígena Rio Paru d’Este, ao norte do Pará.
“Os estudos posteriores ao mestrado continuaram girando em
torno das técnicas e tecnologias da produção material dos Wayana: cerâmica, entalhe, plumária, arquitetura, culinária, mas não
apenas isso, pois a formação adquirida me permitia enveredar por
outros campos de expressão, essencialmente relacionais, e assim
contemplavam a pessoa humana – os uaianas – e o resto do universo, o que se tornou a pedra fundamental sobre a qual repousa
minha tese de doutorado, intitulada O belo é a fera. A estética da
produção e da predação entre os Wayana.
“Após o doutorado engajei-me na busca de outros horizontes
teóricos, metodológicos e de ação, inclusive entre os Wayana e
os Aparai, entre os quais permaneço em atividade desde 2005,
coordenando projetos de valorização cultural em parceria com
o Iepé e com o Museu do Índio (ProDeCult). Em 1999 tive a
oportunidade de voltar a um antigo cenário: o Rio Negro, mas
agora engajada em uma pesquisa multidisciplinar sobre o sistema agrícola, no contexto de um projeto de cooperação bilateral
(Pacta). Neste projeto busco decifrar o sistema de objetos relacionados com o processamento da mandioca. Regressei também ao
campo museológico. Este retorno à Museologia teve como ponto alto a curadoria do módulo ‘Artes Indígenas’ na monumental
Mostra do Redescobrimento em 2000, mas também se exerceu
em outras exposições no Brasil e no exterior, inclusive ‘Índios no
Brasil’, montada no contexto da Europalia, em Bruxelas, e em
parceria com Gustaaf Verswijver!
“Entretanto, não me ative exclusivamente aos projetos expositivos, pois assumi a gestão curatorial da Coleção Etnográfica do
Museu Goeldi e de um ambicioso projeto de reformulação da
Reserva Técnica, concluído com algum êxito. A Museologia me
possibilitou ainda trabalhar com Lux Vidal no Amapá, em cursos
de capacitação museológica para os técnicos do Museu Kuahi dos
Povos Indígenas do Oiapoque, e de presentemente ser a coordenadora brasileira do projeto ‘Museus da Amazônia em rede’ que
une em parceria o citado museu paraense e museus do Suriname
e Guiana Francesa.
“Atualmente trabalho em Brasília, no Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação. Da Esplanada dos Ministérios, continuo
tecendo uma ampla rede de laços afetivos e profissionais com antropólogos, museólogos, biólogos, ativistas de muitos lugares e países e, sobretudo, com os Wayana e Aparai e também com os Baré,
Tukano e Baniwa, junto aos quais desejo envelhecer”.
na África. Com esta intenção fui duas vezes, entre 1972 e 73, ao
Museu Real da África Central (Koninklijk Museum voor Midden
-Afrika/Musée Royal de l’Afrique Centrale) de Tervuren (Bruxelas)
para apresentar meus planos. Primeiramente queria ir para o Congo, depois para a Etiópia. Em ambos os casos me desaconselharam
a ir adiante por causa de problemas ou instabilidade políticos.
“Durante uma viagem pela Europa encontrei os professores
Simone Dreyfus-Gamelon (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e René Fuerst (Genève), que influenciaram
fortemente a escolha do meu campo, pois foi em parte motivado
por seu entusiasmo que parti em 1974 para os Kayapó do Brasil
Central. Apesar do fato de o grupo escolhido, os Mekrãgnoti, viver naquela época ainda muito afastado, nunca me arrependi de
ter feito esta escolha. Entre 1974 e 1981 fiz pesquisa de campo
entre os Mekrãgnoti de forma intensiva, aprendi sua língua e me
aprofundei nas suas expressões culturais materiais, assim como nas
suas práticas de guerra.
“Me engajei ativamente para que os Mekrãgnoti pudessem
obter uma terra significativamente maior do que o previsto originalmente. Depois da obtenção do doutorado cheguei a pensar
em ficar no Brasil para neste país viver e trabalhar, mas a sorte o
decidiu de outro modo e em 1990 fui parar finalmente no... Museu Real da África Central. Atualmente trabalho nesse museu no
setor de Etnografia, onde me especializei em povos pastores da
África Oriental, mais particularmente na região fronteiriça entre
o Sudão, a Etiópia, o Quênia e Uganda. Os temas principais das
minhas pesquisas são a decoração corporal e os conflitos intergrupais onde o gado ocupa um lugar central”.
No Brasil Gustaaf Verswijver manteve intensas relações de
troca e colaboração acadêmicas com as professoras antropólogas
da USP Thekla Hartman, Renate Viertler e Lux Vidal e conheceu as colegas de geração Dominique Gallois e Lucia Van Velthem. As pesquisas de Verswijver entre os caiapós resultaram em
várias publicações, a tese em 1992, The Club-Fighters of the Amazon: Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil (Universidade de Gand, Bélgica), a mais detalhada análise do sistema
guerreiro caiapó até hoje e ainda o catálogo Kaiapó – The Art of
Body Decoration –, com fotos da coleção etnográfica dos Kayapó
Mekrãgnoti-Mebengokre, montada por Verswijver para o Museu Real da África Central. Em 1996 publicou ainda Mekranoti
– Living Among the Painted People of the Amazon, pela PrestelVerlag (Munique).
Entre 1997 e 2002, Verswijver passou longos tempos no Brasil,
coordenando um projeto com os Kayapó, e organizou dois rituais
de iniciação para seus filhos (ver os filmes descritos neste livro).
Entre 2010 e 2011 Verswijver organizou, em colaboração com
Lucia Van Velthem e com a assessoria acadêmica de Dominique
Gallois, a exposição sobre os Povos Indígenas no Brasil para a Europalia na Bélgica em 2011. Juntos editaram o catálogo Índios no
Brasil, além de novo livro com fotos suas entre os Kayapó. Ainda
em 2010, editou com Maria Isabel B. Ribeiro um album de fotos intitulado Diários de viagem: fotografias de Leopold III: 1962-1967 com fotos das viagens do Rei Leopold III ao Brasil.
Belgas antropólogos que voltaram: Gustaaf
Verswijver
“Originalmente eu queria, evidentemente, como todo belga
com aspirações de se tornar antropólogo, fazer pesquisa de campo
134
antropologia
Paramentos utilizados em dança indígena apresentados no evento Europalia.Brasil, 2011.
Arnaud Halloy
vínculo com a minha família-de-santo em Recife continua forte.
Vou publicar o meu primeiro livro cujo título é Une anthropologie des émotions. L’apprentissage de la possession dans un culte
afro-brésilien.
Arnaud Halloy, atualmente professor na Universidade de Nice,
no sul da França, é um jovem antropólogo belga que fez pesquisa
de campo num terreiro de Xangô no Recife, fazendo doutorado
na ULB. Acompanhou também os últimos anos de vida de um
terreiro de candomblé caboclo na Bélgica, na pequena cidade de
Carnières (ver seu verbete no capítulo religião).
Em 2006 publica um artigo surpreendente, “Un anthropologue en transe. Du corps comme outil d’investigation ethnographique” (in Joël Noret e Pierre Petit, eds.). Halloy empreende uma
descrição detalhada e reflexiva do processo de aprendizado, preparação e vivência do transe, a possessão por um orixá no candomblé. Não se trata de um relato meramente descritivo ou subjetivo,
mas, antes, de mostrar como a etnografia e a vivência produzem
um conhecimento especificamente antropológico.
Em suas palavras: “A respeito da minha relação com o Brasil,
ela continua muito viva. Eu sou casado há quase 20 anos com
uma brasileira. Então o laço amoroso continua forte! Eu cultivo
também uma relação artística com o Brasil. Montei com a minha
esposa – Arlene Rocha, ela é bailarina e coreógrafa de danças populares brasileiras – um maracatu (http://maracatumix.blogspot.
com) no sul da França e outro em Bruxelas. Além disso, participo atualmente da montagem de um projeto de troca artística
entre o Brasil e o Benin. Finalmente, continuo trabalhando sobre
o candomblé, apesar de não conseguir ir ao Brasil todo ano. O
De volta ao Brasil: Els Lagrou
“Guardei minha autoapresentação para o final deste artigo,
misturando a narrativa da minha trajetória pessoal com a profissional. Diferentemente de alguns, que vieram para o Brasil quase
que por acaso, o Brasil estava no horizonte de meus sonhos de
infância desde tenra idade. Conta minha mãe que eu dizia aos
sete anos que me casaria com um índio, e se naquela época ainda
não era claro se este índio moraria nos Estados Unidos ou na floresta amazônica, pouco a pouco fui adquirindo uma predileção
pela América Latina. Para tal ajudou a experiência de morar em
Lovaina, cidade universitária, onde viviam muitos estudantes latino-americanos, especialmente durante o período das ditaduras
no Chile, na Argentina e no Brasil. Minha mãe participava do
comitê de recepção dos estudantes estrangeiros da universidade
e dessa maneira tivemos, eu e meus irmãos, desde cedo contato
com estudantes e suas culinárias de todas as partes do mundo. Meu
pai também contribuía com a internacionalização do clima em
casa, trazendo para o jantar vários dos seus orientandos latinos,
do México, Peru e Brasil. Assim fomos sendo seduzidos por este
jeito caloroso que os latinos têm de se relacionar com os amigos,
135
parte 4 – colaboração científica
em contraste com a clássica, porém não por isso menos afetiva,
reserva flamenga.
“No final do secundário, já sabia que queria estudar antropologia. Na Universidade de Lovaina, no entanto, não existia a
possibilidade de fazer antropologia na graduação. Deste modo,
fui estudar História Contemporânea. Lá tive aula de História do
Brasil com o professor Eddy Stols, que era, já naquela época, um
apaixonado pelo Brasil. Eu namorava então um belga que estava
se preparando para passar um ano como professor visitante no
Brasil. Depois de defendida a dissertação, parti para o Brasil, mais
particularmente para Florianópolis. Depois de curto período de
adaptação e aprendizado da língua, fiz a seleção para o mestrado em Antropologia na UFSC, em 1987. O ambiente acadêmico que lá encontrei me empolgou muito, especialmente por ter
sido esta minha primeira experiência com o modelo de ensino
por seminários.
“Sob orientação de Jean Langdon, queria estudar a arte, a pintura corporal e o xamanismo de algum grupo amazônico. Resolvi
perguntar a opinião de Berta Ribeiro, conhecedora das artes indígenas, que me convidou para um encontro em seu apartamento no Rio de Janeiro. Berta estava acompanhada de Nietta Lindenberg Monte, na época coordenadora da comissão pró-índio do
Acre. Foi assim que elas decidiram que eu estudaria os Kaxinawa.
Saí de lá com uma lista de nomes a procurar até chegar a Rio Branco. Minha chegada em campo, em 1989, se deu em momento
histórico: o Primeiro Encontro dos Povos da Floresta, que visava
formalizar e pensar a aliança entre seringueiros e povos indígenas
da região em defesa da floresta. Este encontro aconteceu um ano
depois da morte de Chico Mendes, o precursor dessa aliança, e
reunia pesquisadores e militantes do país e do exterior. Foi nessa
ocasião que Terri Aquino, histórico aliado dos Kaxinawa, me apresentou a Pancho, chefe da aldeia Recreio e articulador político da
região do Alto Purus. Quando ele e seus familiares regressaram
à aldeia, fui junto. Fomos acompanhados também por Siã Osair
Sales, jovem liderança kaxinawa do Rio Jordão que pretendia viajar até o Peru para encontrar e filmar seus parentes. Essa viagem
daria origem a um dos primeiros filmes de vídeo nas aldeias, que
Siã editaria mais tarde em São Paulo ao lado de Vincent Carelli.
“Minha primeira viagem de campo foi iniciática. Permaneci cinco meses ininterruptos e sem comunicação ou notícias do
mundo de fora nas aldeias Recreio e Nova Aliança no Alto Purus.
Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado Entre o cobra
e o Inka: uma etnografia da cultura kaxinawa (1991), na qual as
questões centrais das minhas futuras pesquisas já estavam prefiguradas: a relação entre percepção e cognição; o modo como
determinadas técnicas perceptivas e expressivas dialogam com
uma ontologia específica onde a transformabilidade dos seres
ocupa lugar central (o que veio a ser batizado mais tarde como
perspectivismo, Viveiros de Castro, 1996). Na dissertação explorei a relação entre a existência de dois conceitos distintos para
imagem (dami [figura] e kene [grafismo]) e suas relações com a
complementaridade de gênero e o xamanismo. Resumidamente, notei através da análise dos rituais femininos de iniciação na
arte do desenho e de toma coletiva da bebida indutora de experiência visionária, a ayahuasca, pelos homens que existe entre os
Kaxinawa uma especialização de gênero que gira em torno da
complementaridade entre imagens, figuras e grafismos. Os mitos
ensinam que o dono do poder transformador de todas as formas
percebidas (ou seja, da fenomenologia kaxinawa) é a anaconda
mítica, Yube. Este ser está na origem tanto da arte do grafismo
aprendido pelas mulheres quanto da experiência visionária com
ayahuasca, também chamada de dami (figuras em transformação,
imagens). Mais tarde adicionaria um terceiro termo ao arcabouço
nativo da percepção: o conceito yuxin, que também significa imagem, mas imagem enquanto fonte agentiva de outras imagens: a
agência que está por trás da transformação de uma imagem em
outra. Os yuxin são seres sem corpo que podem mudar de forma
e os yuxibu, superlativo de yuxin, seres que podem transformar
as formas dos seres ao seu redor.
“Nas pesquisas de campo posteriores, em 1991, e entre 1994 e
1995, aprofundei os insights do mestrado através da análise e exegese do ritual, dos cantos rituais e dos mitos a eles associados do
rito de passagem para meninas e meninos, o nixpupima, ritual de
enegrecer os dentes das crianças. Este ritual condensa o discurso
e práxis kaxinawa em torno da fabricação dos corpos das crianças
e sua preparação para a vida adulta. Foi por intermédio da análise
do ritual que pude pensar a agência das imagens e dos grafismos,
assim como dos artefatos e sua relação com os corpos a partir de
uma perspectiva nativa. Este material resultou na minha tese de
doutorado em 1998.
“Ingressei no doutorado da USP em 1992, sob orientação de
Lux Vidal. Morei em São Paulo durante um ano. Lux já tinha se
aposentado das aulas. Mas tive aula com Joanna Overing, Manuela Carneiro da Cunha e Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1993
fiz um concurso para Professor em Antropologia na UFSC. Passei,
assumi e deste modo interrompi o doutorado por dois anos, porque
estava ministrando aula. Em 1994 fui liberada para fazer pesquisa
de campo até meados de 1995.
“Depois recebi o convite de Joanna Overing para passar um
ano como Research Assistant na London School of Economics,
onde ela lecionava. Quando embarquei para a Inglaterra, no entanto, ela já estava de mudança para St. Andrews, onde acabara
de ganhar um Professorship. Joanna Overing levou toda sua legião
de alunos de Londres consigo para animar a pacata St. Andrews
na Escócia. Fiz parte dessa primeira geração de etnólogos em
torno de Overing e lá fiquei por dois anos. Por causa desta longa
temporada inglesa/escocesa resolvi fazer um duplo doutorado, reconhecido na Inglaterra e em São Paulo. Mas, já que não existia
convênio entre os dois países, tive que defender a tese duas vezes,
traduzindo-a do inglês para o português para defendê-la novamente, na minha volta ao Brasil, na USP. O período inglês foi para
mim o ponto da virada. Se já sabia que uma volta para a Bélgica
seria difícil, ficar por um tempo na Inglaterra me parecia tentador. Mas eu já era funcionária pública no Brasil, portanto nada
disso seria fácil. A questão, no entanto, felizmente nem chegou
a se colocar, pois foi em St. Andrews que conheci meu atual ma-
136
antropologia
rido com quem voltei novamente para o Brasil, desta vez com a
certeza absoluta que era para ficar. O problema a enfrentar agora
era o de obter a permissão de transferência de Florianópolis para
a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os colegas cariocas do
Departamento de Antropologia foram extremamente receptivos.
Foi com o intuito de tornar nossa filha bilíngue, ela tinha dois anos
e começava a falar, que passamos seis meses na Bélgica, entre 2004
e 2005. Nos apresentamos à Universidade de Lovaina para sermos
professores visitantes sem remuneração adicional, pois estávamos
de licença sabática na nossa universidade. Demos algumas palestras para os cursos de pós-graduação. Um ano mais tarde, cheguei
a Paris para uma pesquisa com uma bolsa Leg Lelong de quatro
meses (pelo CNRS).
“Para concluir um resumo sobre minhas atividades acadêmicas mais recentes: Sou professora do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia do IFCS, UFRJ, desde 2000. Sobre
minha pesquisa entre os caxinauás publiquei em 2007 o livro A
fluidez da forma: arte, agência e relação numa sociedade amazônica (kaxinawa) (Topbooks). Este retoma os recentes debates
teóricos no campo da etnologia e da antropologia da arte, os principais resultados da minha pesquisa no campo da antropologia
da percepção. Em 2009 publiquei o livro Arte indígena no Brasil,
editado pela Com/Arte, um ensaio teórico sobre a questão da arte
em contextos onde este conceito não existe, estabelecendo um
diálogo com as discussões no campo da arte conceitual. Acabo de
terminar um livro, em coedição com Carlo Severi (professor da
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris), Quimeras
em diálogo: xamanismo, grafismo e figuração, que reúne artigos
de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre a temática da relação entre mostrar e ocultar nas artes e nos rituais relacionados ao
xamanismo, tanto na Amazônia como na Sibéria e na América do
Norte. O livro é um dos resultados de um convênio de pesquisa
da Capes/Cobecub entre a UFRJ (PPGAS/MN e PPGSA/IFCS),
o Collège de France, EHESS, e o Centro de Pesquisa do Musée
do Quai Branly entre os anos 2006 e 2010. Atualmente continuo
ligado ao Grupo de Pesquisa Internacional do Quai Branly e sou
correspondente de sua revista Gradhiva.
“Tenho formado meus orientandos de pós-graduação nos campos da antropologia da arte e na etnologia e coordeno desde 2008
um projeto de pesquisa em convênio com o Museu do Índio e a
Unesco, “Construindo culturas, documentando tradições” (Prodocult), assim como um projeto de documentação sobre os usos
e significados da miçanga entre as populações indígenas no Brasil,
igualmente em colaboração com o Museu do Índio. Além disso, coordeno o Núcleo de Artes, Imagem e Pesquisa Etnológica
(Naipe) e os Seminários Ameríndios bimensais do PPGSA, IFCS
desde 2002. Minhas áreas de interesse atuais englobam a etnologia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim
como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral.
Neste último campo iniciei há alguns anos uma pesquisa sobre a
figuração de santos e bichos em Juazeiro do Norte (CE), pesquisa
esta em colaboração com Marco Antonio Gonçalves e cujos resultados resultarão em filmes e publicações”.
Conclusão
Não posso deixar de querer encontrar alguns fios na meada
destes relatos de belgas antropólogos tão diferentes entre si. Um
primeiro elemento que ressalta aos olhos é que muitos se tornaram etnólogos, estimulados às vezes pela leitura de Lévi-Strauss,
este gigante das Ciências Humanas do século 20, que fez muito
para colocar os índios brasileiros no mapa do mundo, às vezes pela simples vontade de viajar para longe. A vocação pela etnologia
ameríndia, que implica em viver numa aldeia na floresta amazônica, pode representar este sonho por um mundo diferente, comumente batizado de atração pelo exótico que caracterizaria o olhar
ocidental sobre o mundo. Para se tornar antropologia, no entanto,
esta vivência, que pode iniciar por um desejo pelo distante, por
uma experiência de alteridade, precisa ser traduzida em termos
inteligíveis que eliminam exatamente este aspecto fantasioso do
outro idealizado e de incompreensão. Conhecer o outro é, nas palavras de Michael Taussig, tornar-se parcialmente outro. E é disso
que se trata na antropologia. Esta experiência vale para qualquer
campo, que seja num terreiro de Xangô, numa aldeia indígena
ou no mundo relacional de espelhos invertidos entre agentes de
políticas desenvolvimentistas europeias e representantes de países
em desenvolvimento.
Um elemento que me parece transpassar todos os textos aqui
reunidos é a dificuldade do movimento de ida e volta. Para todos, o
Brasil significou a descoberta de mundos de experiência e de pensamento antes insuspeitados. A melancolia deriva do movimento
de retorno: quando se percebe o quão difícil é invocar o mundo
de pensamento, reflexão e criação que se conheceu lá fora, mas
que os que ficaram em casa desconhecem. É desta maneira que
surge uma diferença crucial entre os mundos imaginários belga e
francês: o Brasil existe no mapa do imaginário francês, mas existe
muito pouco no dos belgas. Mas talvez seja muita presunção querer comparar a Bélgica, país tão pequeno e temeroso de ser uma
periferia de vários centros, com o gigante intelectual que continua
sendo a França no mundo.
137
parte 4 – colaboração científica
Quando a selva chama
D a n i e l D e Vo s
D
esde minha infância meu irmão mais velho me contava sobre os exploradores da África: Livingstone, Stanley, Burton…
Ele também queria ser explorador. Um dia – eu tinha na época
14 anos – descobri a existência da floresta amazônica, a maior do
mundo. Já que meu irmão iria à África, minha escolha estava feita. A África seria dele, a floresta amazônica seria minha! Informei
meus pais, mas estes riram muito de meus planos.
Comprei um livrinho O Português sem custo e em janeiro de
1981, com 21 anos, parti por alguns meses ao Brasil. Eu sabia
pouca coisa sobre a Amazônia. Tinha lido alguns livros do autor
holandês Anthony Van Kampen. Seu trabalho com os leprosos na
floresta amazônica brasileira me emocionou bastante. Seus livros
me fizeram, a caminho do interior da Amazônia, passar por Manaus. Lá encontrei um padre da Congregação holandesa do Espírito Santo que me propôs acompanhá-lo até Carauari, no Rio Juruá,
para conhecer a população e a selva. Assim dito, assim feito. Lá,
entrei em contato através de outro padre e de uma enfermeira com
os leprosos. Cada dia participava da ronda da enfermeira pelos
bairros de leprosos para tratar suas feridas. Após algum tempo eu
os visitava sozinho. Sua condição dolorosa me deixou comovido
por muito tempo. Em Carauari toquei um dia no assunto índios,
mas veio pouca ou nenhuma resposta. Dizia-se mesmo: ‘Dentro
de dez anos não haverá mais índios no Brasil!’
No final desta primeira viagem topei em Manaus com o finado Simon le Fevere de ten Hove. Ele voltava de uma aldeia Yanomami e queria ir de novo na direção do Rio Araçá, um afluente
do Rio Negro. Decidimos nos preparar para uma nova viagem
às terras dos Yanomamis, com o propósito de realizar um documentário em 16 mm sobre a vida na Amazônia. Passamos algumas semanas numa aldeia Yanomami, seguimos a extração da
borracha pelos seringueiros e visitamos duas minas de ouro na
região de Itaituba (Rio Tapajós), onde se coletava o pó de ouro
na floresta e no rio.
Depois de seis meses, em maio de 1982, nosso filme estava
pronto. Recebeu o título de Grito Amazônico. Entretanto, voltei
a Carauari e fiz um filme e uma reportagem de diapositivos. Na
Bélgica, consegui recolher algum dinheiro para a construção de
um lar para os leprosos que viviam às margens do Rio Juruá e
que poderiam residir lá, quando precisavam de longos cuidados
médicos.
Em 1983 Simon e eu partimos de novo por um ano para o
Brasil. Mas nossos caminhos se separaram logo. Eu fui a Carauari
para o lar, cuja administração passou inteiramente para as mãos
do município. Simon queria fixar-se definitivamente no Brasil e
ocupava-se com infinita paciência da maçada administrativa, enquanto trabalhava para uma ONG com meninos de rua em Manaus. Somente dois anos mais tarde eu voltaria por um tempo
mais longo à aldeia dos Yanomami para estudar seu idioma e cul-
tura. No entanto, em setembro de 1995 a fatalidade bateu à porta
e Simon foi assassinado perto de sua casa em Manaus por dois
meninos de rua. Quinze minutos antes da rixa à facada, Simon e
eu tinhamos nos despedido depois de uma comidinha. Meu melhor amigo, o animado e sempre alegre Simon, não estava mais
presente. Seu passamento significou uma perda pessoal extremamente penosa. Com ele vivi muitas aventuras e minha primeira
vivência com os índios amazônicos. A partir daí, algo mudou na
minha relação com o Brasil. Nunca mais seria a mesma. Simon
nos deixou vários diários de seu trabalho de campo, assim como
um dicionário Yanomami.
Depois de Carauari, ainda no ano de 1983, eu queria decididamente subir o Rio Japurá. Tinha a impressão que era um dos
tantos rios desconhecidos do Estado do Amazonas. Pude acompanhar um regatão no Rio Japurá e fiz uma reportagem sobre os
ribeirinhos e sua relação com o regatão. Terminei minha jornada
numa aldeia dos índios Maku-Guariba. Mais tarde visitei, numa
segunda viagem de barco pelo Rio Japurá, uma aldeia Kanamari.
No início dos anos 80, percorri principalmente o Estado do
Amazonas, às vezes o do Pará. Tinha visto tantos recantos da selva
e observado diversas populações, mas em nenhuma parte podia
montar minha tenda.
Isto mudou quando encontrei Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü. Em janeiro de 1984 fui para o Alto Solimões. Fiquei sabendo
que na cidadezinha de Benjamin Constant existia um pequeno
centro de encontro, onde os índios do Alto Solimões (principalmente os ticuna) se reuniam regularmente. Lá topei com Pedro
Inácio Pinheiro, na época presidente do CGTT (Conselho-Geral
da Tribo Ticuna), ou seja, capitão-geral do povo Ticuna. Contei-lhe minhas andanças pela Amazônia. Ele me convidou para sua
aldeia Vendaval a fim de conhecer o povo Ticuna e enteirar-me
de sua problemática.
No momento de minha chegada à região Ticuna, a luta para a
demarcação oficial das terras estava em pleno andamento. Patrões
brancos foram expulsos e os índios acabavam de ganhar alguma
liberdade, uma recuperação de suas raízes despontava, como também a conscientização de seus direitos à terra previstos pela constituição. Os Ticuna empenhavam-se para fazer valer estes direitos.
Junto com Pedro e mais alguns da aldeia de Vendaval partimos de
canoa às numerosas aldeias Ticuna para convidar os capitães Ticuna (como se chamavam os chefes de aldeia) para uma reunião
geral para discutir a estratégia a seguir. Vários chefes e membros
do Conselho Ticuna me pediram para divulgar fora do Brasil sua
problemática, sobretudo dos direitos à terra. Desde o começo era
evidente que não queriam ser objetos, mas sujeitos.
Com estas lutas subiram as tensões entre os diversos grupos de
população e interesses na região do Alto Solimões. Atingiram um
ponto dramático com o massacre de Capacete, em 28 de março de
138
antropologia
A festa da moça nova entre os Ticuna
Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü, presidente do Conselho Geral da Tribo Ticuna.
1988, quando, num conflito com um madeireiro, 14 índios Ticuna
desarmados morreram e 23 outros ficaram feridos.
Para levar seus problemas a público fora do Brasil não consegui
muito mais que algumas entrevistas na imprensa e na rádio. Após
o massacre aderi ao recém-fundado grupo flamengo de apoio aos
povos indígenas, o KWIA. Escrevi alguns artigos para sua revista
e, em parte porque houve pouco avanço no processo e julgamento
dos culpados e na demarcação oficial de sua área, decidi, em colaboração com o KWIA, convidar Pedro para ir à Bélgica. Assim,
ele poderia contar pessoalmente sua história à imprensa e buscar
apoio nas diversas organizações internacionais. Foi a primeira vez
que Pedro veio à Europa. Nessa ocasião escrevi o livrinho Calha
Norte e os índios do Norte do Brasil – A problemática dos índios
Yanomami, Tikuna e waimiri-atroari. (Série Inheemse Volkeren
Vandaag t. 1, 1990, edição KWIA).
Em 1991 demarcaram-se oficialmente as duas principais áreas
dos Ticuna. Em 1993 fui convidado pelo Tropenmuseum (Museu
dos Trópicos) de Amsterdã para prepararmos juntos a exposição
Amazônia, que abriria em 1996. Esse projeto sobre a cultura Ticuna focalizaria a festa da fertilidade. O Conselho Ticuna concordou e apreciou a colaboração com o Tropenmuseum. Procurou-se,
então, uma coleção representativa da cultura material, junto com
a necessária documentação. Para os Ticuna, a mostra de objetos
seria uma excelente oportunidade para contar sua vida e luta. No
final de 1996 chega uma delegação Ticuna a Amsterdã e Pedro
abre oficialmente a exposição.
De repente, feita a demarcação, não havia mais interesses comuns ou ameaças. A união, antes tão importante na luta pela terra,
parece perdida. Surgem sérios conflitos e divisões na comunidade Ticuna. Até os próprios pesquisadores se separaram contra sua
vontade em dois campos. Reinava a suspeita e tornou-se difícil
trabalhar nas comunidades Ticuna.
Porém, não desisti de minha pesquisa de campo. Continuei
seguindo os desenvolvimentos e as mudanças políticas dentro da
comunidade Ticuna e escrevendo artigos para a revista Inheemse
Volkeren do KWIA. Voltei a estudar e obtive, em 2002, bacharela-
do em Ciências da Família. Meu trabalho final tratou da Educação entre os povos índigenas Ticuna, Yanomami e Sioux.
Em 2007-2008 colaborei em duas exposições no Etnografisch
Museum de Antuérpia exclusivamente sobre o ritual da “moça nova” entre o povo Ticuna e no Musée International du Carnaval et du
Masque (Binche) com uma parte sobre a festa da fertilidade entre
os Ticuna. O catálogo da exposição de Binche, Basiques Instincts,
leva um artigo meu, Worecü et la démarcation du territoire – La fête
de la Nouvelle Fille ou la fête de la fertilité chez les Indiens Ticuna,
que trata da festa e também do papel da festa na luta pela terra.
No quadro da Europalia.Brasil e da exposição Índios do Brasil
(2011) fiz, no Musée Royal d’Art et d’Histoire, duas conferências
sobre os Ticuna: desde os primeiros contatos com o colonizador,
os barões da borracha, a luta, a festa… até os acontecimentos e
desafios atuais para o povo Ticuna. O fio da meada nesta história
continua sendo o papel-chave de Pedro na luta pela terra e no que
lhe aconteceu depois da demarcação.
Ao longo dos 29 anos que trabalho com Pedro, tive desde o
início até hoje um vínculo muito íntimo e uma profunda amizade. Ele foi quem me iniciou e introduziu à vida, ao espírito e à
problemática dos Ticuna. Na medida do possível partilhei com
ele todas as minhas iniciativas ou lhe comuniquei estas posteriormente. Atualmente preparamos juntos um projeto sobre esculturas
de madeira e frutas.
Seja como for, minha estada no Brasil foi determinante para
o resto da minha vida. Levanto-me e deito literalmente no Brasil!
Houve momentos em que duvidava, sentia um amor infinito ou
uma dor profunda… “o que pelo amor de Deus venho eu ainda
fazer aqui?” Mas recebia então um novo encargo ou o chamado
da selva, que se apoderava tanto de mim que simplesmente ia
comprar uma passagem na direção da Amazônia. Não há como
escapar à selva! É muito mais do que uma coleção de árvores, um
potencial econômico, turístico ou ecológico. Sobre esta vivência
pode-se comunicar com grande facilidade com os índios.
O meu encontro com Pedro não foi uma surpresa para ele,
na sua juventude já sonhava que iria à Europa. Na minha última
139
parte 4 – colaboração científica
viagem (março de 2013), dizia no primeiro contato: já estou esperando um ano por você… Sobretudo é uma honra enorme poder
colaborar durante tantos anos e até agora em absoluta confiança
com um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros.
As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano
Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot
O
forte impacto cultural do escravismo transatlântico se faz
sentir em grande parte do continente americano e, particularmente, na América Latina, no patrimônio linguístico. O Brasil
é de longe a região que oferece o maior número de testemunhos
através de numerosos africanismos que participam na sua variedade da língua portuguesa.
A Bélgica é implicada em primeiro plano, através de dois linguistas, nas pesquisas sobre estes africanismos e, principalmente,
nos bantuísmos (palavras de origem bantu, um conjunto agrupando mais de 500 idiomas falados na África Central, Oriental e
Austral): Jacky Maniacky, franco-congolês, responsável pelo serviço de linguística do Museu Real da África Central (Musée Royal
de l’Afrique Centrale) em Tervuren, e Jean-Pierre Angenot, belga
naturalizado brasileiro, professor emérito de linguística na Universidade Federal de Rondônia.
Jacky Maniacky tem, além de suas raízes e infância no Congo-Brazzaville, desenvolvido, desde 1997, em suas pesquisas de DEA
e de doutoramento, uma expertise das línguas faladas nas regiões
de Angola e do Congo, situadas em face do Brasil e fortemente
implicadas no tráfico transatlântico. Aprofundando seus conhecimentos da região nas pesquisas pós-doutorais, surgiu o desejo de
investigar o patrimônio legado do lado brasileiro.
Decênios antes (1974), Jean-Pierre Angenot, na época pesquisador no Congo (antigo Zaire), levantou já um primeiro repertório
dos bantuísmos no Brasil. Sua chegada neste país, há mais de 30
anos, permitiu a criação de um curso de linguística na Universidade Federal da Bahia. Depois de passar por Florianópolis, abriu
uma fileira de estudos africanos no campus de Guajará-Mirim,
Universidade Federal de Rondônia, na fronteira com a Bolívia.
Seu programa de mestrado é até hoje o único na América Latina
dedicado à linguística africana.
Em 2008, uma visita do professor Angenot a Tervuren ofereceu a oportunidade aos dois pesquisadores de se encontrarem e de
unir seus recursos para aprofundar, por um lado, a pesquisa sobre
o patrimônio linguístico bantu no Brasil e, por outro, de iniciar
pesquisas sobre os numerosos idiomas bantu ainda não documentados, notadamente de Angola.
Assim existe, desde 2009, através destes dois pesquisadores,
uma colaboração intensiva entre a Universidade Federal de Ron-
dônia e do Museu Real da África Central, que conseguiu em referência aos bantuísmos estabelecer um banco de dados com hoje
quase 5.000 entradas! Uma das próximas etapas desta colaboração
será de afinar as etimologias propostas até agora para o vocábulo
brasileiro de origem africana.
Paralelamente a estas pesquisas, Jacky Maniacky dá cursos de
linguística africana no programa de mestrado do campus de Guajará-Mirim como professor visitante. Além destes pesquisadores
mencionados e ligados à Bélgica, outros linguistas, brasileiros desta vez, se reuniram a este projeto de estudos africanos, tanto doutores como doutorandos, que lhes oferece pesquisas de terreno em
Angola e na Namíbia e visitas de estudos regulares no serviço de
linguística de Tervuren. O objetivo a médio prazo é dispor, graças à esta colaboração belgo-brasileira, de vários especialistas nos
idiomas africanos baseados na Universidade Federal de Rondônia
e beneficiados da expertise reconhecida de Tervuren em matéria
de linguística histórico-comparativa africana.
Quando se fala de patrimônio linguístico africano no Brasil,
trata-se principalmente de palavras de origem africana que se encontram na variedade do português falado no Brasil, seja na língua corrente, na gíria ou ainda em contextos particulares como
quilombos e cerimônias religiosas. Por exemplo, caçula, bunda,
moleque, fubá... Trata-se igualmente de influências gramaticais,
ainda que essas sejam mais difíceis de estudar.
Saber mais sobre os idiomas africanos permite aperfeiçoar os
conhecimentos etimológicos do português do Brasil. Várias entradas dos dicionários de referência como o Aurélio ou o Houaiss
ainda estão erradas. Mas estas pesquisas linguísticas contribuem
também para melhorar o conhecimento da história do Brasil, notadamente em matéria cultural.
Referências
Jean-Pierre Angenot, Jean-Pierre Jacquemin e Jacques L. Vincke. Répertoire de vocables
brésiliens d’origine africaine. Lubumbashi, Collection Travaux et Documents du
CELTA, 1974.
Jean-Pierre Angenot e Geralda de Lima V. Angenot. Dicionário de bantuísmos brasileiros.
Manuscrito. Porto Velho, Universidade de Rondônia.
Jacky Maniacky. Thèmes régionaux Bantu et africanismes brésiliens. Margarida Petter e
Ronald Beline Mendes (eds.), Proceedings of the Special World Congress of African
Linguistics: Exploring the African Language Connection in the Americas, São Paulo,
Humanitas, 2009, p. 153-165.
140
ensino e pesquisa
Os belgas nas origens da Escola Superior
de Agricultura “Luiz de Queiroz”
Luciana Pelaes Mascaro
E
m 1889 Luiz Vicente de Souza Queiroz arrematou a Fazenda
São João da Montanha, com 319 hectares e distante três quilômetros da cidade de Piracicaba (SP). Alguns anos depois doou
a fazenda ao governo do Estado de São Paulo, como estratégia
para alcançar seu sonho de ali instalar uma escola agrícola, o que
começou a ser realizado a partir de 1893.
A futura escola seria formada com a participação maciça de
profissionais estrangeiros e vale ressaltar as relações estabelecidas
com o Institut Agricole de Gembloux, na Bélgica. Escola superior
de nível universitário, lá estudaram, entre 1863 e 1914, pelo menos 38 brasileiros, dos quais sete se formaram engenheiros agrônomos. Um deles, José Fortunato de Camargo – formado em agronomia em Gembloux – e proprietário da Fazenda Aterradinho,
município de Angatuba (SP), “contratou em 1899 os agrônomos Léon Renaud e Hernan Vande Venne para instalar uma leiteria industrial e uma fábrica de margarina [manteiga]” (Stols, 1987, p. 373).
Ainda em 1893, chegava ao Brasil o engenheiro agrônomo
belga Leon Alphonse Morimont, formado pelo conhecido Ins-
Fachada da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, de Mario de Sampaio Ferraz, publicado em Bruxelas, 1911.
141
parte 4 – colaboração científica
Grupo de professores e assistentes da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” em
fotografia no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.
Imagem do salão da Congregação da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, com o
diretor Dr. Clinton Smith e os professores Vincent, Puttemans, Charropin, Arié,
Mendes, Gagezou, Dias, Sanders e Ribeiro, que se encontra no livro Piracicaba e
sua Escola Agrícola, 1911.
titut Agricole de Gembloux. Figura de renome na sua profissão,
tinha larga experiência profissional obtida em várias estadias pela
França, Espanha, Itália, por Portugal e África. Foi encarregado de
elaborar o projeto para a escola idealizada por Luiz de Queiroz.
Em dezembro desse mesmo ano, Morimont foi nomeado diretor
da nascente escola por Jorge Tibiriçá Piratininga, então Secretário
da Agricultura, Negócios, Comércio e Obras Públicas do Estado
de São Paulo. Permaneceu em seu cargo na Fazenda São João da
Montanha por pouco tempo, apenas até 1896 (Perecin, 2004, p.
135), devido a divergências políticas com o presidente recém-eleito Campos Sales. Consta que havia se dedicado profundamente ao
projeto da escola de Piracicaba e deixou o Brasil muito ressentido
e doente, tendo morrido no mar, durante seu retorno à Bélgica
(Perecin, entrevista, 2004).
Morimont desempenhou papel especialmente importante na
elaboração dos moldes da escola que ali surgia. Implantou um modelo prático-teórico equilibrado, baseado no sistema do Instituto
de Gembloux, mas que, afinal, “não deixou de ser um produto do
academicismo europeu, para atender às necessidades de modernização do setor primário da economia, a ser testado no Estado de São
Paulo” (Perecin, 2004, p. 155-157).
Quando Carlos Botelho assumiu a Secretaria da Agricultura,
no início do século XX, continuou a contratação de profissionais
estrangeiros – não sem algumas reações xenófobas (Perecin, 2004,
p. 301) – para a escola agrícola de Piracicaba, dentre os quais vários de nacionalidade belga ou formados na Bélgica, como o conhecido Arsène Puttemans, arquiteto paisagista, que foi professor
de paisagismo e horticultura (ver nota em ‘Arquitetura’), e outros
abaixo relacionados.
Louis Misson, engenheiro agrônomo formado em Gembloux,
assumiu a 4ª Cadeira, mas foi logo requisitado pela Secretaria da
Agricultura por seu prestígio como cientista (Perecin, 2004, p.
293) e publicou, em Bruxelas, em 1907 e outras edições, o livro
Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil) (A indústria pastoril no Estado de São Paulo).
Jean Baptiste Michel, engenheiro agrícola igualmente vindo
de Gembloux, foi professor de Agricultura (antiga 4ª Cadeira) e
sucedido por Hubert Puttemans, engenheiro agrônomo belga, que
tinha sido um dos primeiros professores da Escola Politécnica de
São Paulo (Perecin, 2004, p. 301 e 349). Publicou em 1915, na
cidade de Nivelles (Bélgica), o livro Agricultura Geral Especialmente Apropriada ao Brasil.
Além desses, também foi contratado Nicolau Athanassof,
agrônomo búlgaro que havia estudado no Instituto de Gembloux,
e que assumiu a 5ª Cadeira, mais tarde dividida em zootecnia –
a cargo de Athanassof – e zoologia e higiene. Publicou diversos
livros sobre criação de gado e suínos, dentre os quais se destaca
o manual do criador Os Bovinos, publicado em São Paulo, em
1922, que traz figuras de exemplares Flamengos Vermelhos premiados em 1911 e 1912 nas exposições de gado em Ipre (Bélgica). Depois de sua passagem por Piracicaba, foi contratado como
diretor do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros (RJ), substituindo outro belga, Hector Raquet, na função de diretor. (Ver texto
“bovinotecnia”)
Em 1911, Mario de Sampaio Ferraz editou em Bruxelas um
livro muito bem cuidado e intitulado Piracicaba e sua Escola Agrícola. Nele consta a relação de professores e de seus assistentes, o
período de matrícula, o conteúdo do curso, além de fotos de interesse: dos professores, assistentes e alunos – em seus laboratórios
e em trabalho de campo – e do famoso prédio central, projeto de
José Van Humbeeck, situado em frente ao jardim projetado por
Arsène Puttemans.
A presença desses técnicos e profissionais demonstram, por
um lado, que o período era de renovação para a produção rural
142
ensino e pesquisa
Trabalho de mensuração de um cavalo pela lente do dr. Vincent na Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, fotografia publicada em Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.
brasileira, especialmente na região paulista que começava a vislumbrar o possível declínio da produção cafeeira (confirmado a
partir de 1929). Por outro, se evidencia o apelo dos governantes ao
conhecimento estrangeiro do setor, no quadro do qual a Bélgica
tinha excelente reputação. Assim, esse país viria a contribuir de
forma relevante, ao lado da França e dos Estados Unidos, para a
formação e o desenvolvimento da Escola Superior de Agricultura
“Luiz de Queiroz”.
Em tempo, para complementar a atuação de profissionais belgas no quadro do ensino relativo à agropecuária, é preciso citar
René Straunard, formado pela Escola de Medicina Veterinária
de Cureghem, Bruxelas, que chegou ao Brasil pela primeira vez
em 1913, tendo ido para Catalão, em Goiás. Voltou ao Brasil em
1920, quando foi contratado como Inspetor Veterinário da Diretoria de Indústria Animal e trabalhou no Jóquei Clube de São
Paulo. A partir de 1931 começou a atuar como professor no Instituto de Veterinária (criado em 1919 e atual Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo),
quando assumiu interinamente o cargo de professor catedrático
da Cadeira de Clínica e Obstetrícia do Instituto (D.O. do Estado
de São Paulo, p. 3.368, 1931). Ocupou as cátedras de Patologia e
Clínicas Cirúrgica e Obstetrícia, de Patologia e Clínica Médicas,
Indústria e Inspeção de Produtos de Origem Animal. Consta que
produziu importante trabalho sobre patologia do aparelho locomotor em equinos e foi um dos maiores cirurgiões veterinários do
Brasil (Matera, 1963-64).
Referências
D.O. do Estado de São Paulo, Imprensa Official, n. 99, p. 3.368, sexta-feira, 1 de maio
de 1931.
Matera, Ernesto Antônio. Professor René Straunard. Revista da Faculdade de Medicina
Veterinária de São Paulo, Vol. 7, fasc. 1, 1963-64.
Misson, Louis. Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil). Bruxelles: Société anonyme, M. Weissenbruch, 1912.
Perecin, Marly Therezinha Germano. Entrevista à Rádio Educadora de Piracicaba AM
1060 Khertz em 20/11/2004. Disponível em: <http://www.teleresponde.com/PERECIN.HTM>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Perecin, Marly Therezinha Germano. Os Passos do Saber: a Escola Agrícola Prática
“Luiz de Queiroz”. São Paulo: Edusp, 2004.
Stols, Eddy. Penetração econômica, assistência técnica e “brain drain”: aspectos da emigração belga para a América Latina por volta de 1900. Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas = Anuario de História de América Latina (JbLA), n. 13, 1976 (Ejemplar dedicado a: Emigración europea a América Latina durante los siglos XIX y XX), p. 361-385.
143
parte 4 – colaboração científica
A cooperação entre o Institut International
de Bibliographie e a Biblioteca Nacional
Jacques Gillen
P
ara Paul Otlet (1868-1944) e Henri La Fontaine (1854-1943,
Prêmio Nobel da Paz em 1913), os dois fundadores do Office
International de Bibliographie (OIB) e do Institut International de
Bibliographie (IIB), a cooperação internacional é primordial. Consideram-na como uma dimensão essencial da missão que assumiram
de providenciar ao mundo os instrumentos de acesso ao conhecimento. Além de oferecer possibilidades para estender seu campo de
trabalho, ela permite, no seu espírito, favorecer a compreensão internacional. A paz aparece em filigrana do conjunto de seus projetos
e as instituições criadas na sequência do OIB – tais como a Union
des Associations Internationales (UAI) e o Musée International em
1910 –, acentuarão a dimensão internacionalista do conjunto que
formarão a partir de 1920 o Palácio Mundial ou Mundaneum.
A primeira missão do OIB consiste em levantar o Répertoire
Bibliographique Universel (RBU, destinado a reunir as referências
de todas as obras publicadas no mundo e baseado no sistema da
Classification Décimale Universelle (CDU). Desde sua criação em
Bruxelas, em 1895, uma cooperação internacional se instala, notadamente, sob a forma de intercâmbio de publicações e de fichas
bibliográficas, em torno das associações científicas, oficinas bibliográficas e bibliotecas que participam no desenvolvimento do RBU
e da CDU. Na América Latina, o OIB dispõe de um embaixador
na pessoa de Federico Birabén (1866-1929), promotor da CDU
e dos métodos recomendados pela OIB em seu país, a Argentina.
Ele atuou igualmente no Brasil, no Peru e no Chile, onde contribuiu com a criação de escritórios bibliográficos.
A sala-oficina do catálogo do Mundaneum.
144
ensino e pesquisa
Os primeiros contatos entre o OIB e a Biblioteca Nacional do
Rio parecem iniciar-se por volta de 1902. A partir dessa época, a
Biblioteca Nacional do Rio envia publicações brasileiras ao OIB.
Por volta de 1910-1911, seu diretor, Manuel Cícero Peregrino
da Silva (1866-1956), aproveita sua estada em Bruxelas para visitar o OIB e decide aplicar o sistema da CDU na Biblioteca do
Rio e de introduzir o RBU, do qual ele encomenda uma cópia
completa. Trata-se da primeira encomenda tão extensa ao OIB.
O primeiro volume de 23 mil fichas é despachado em dezembro
de 1911 pelo intermediário de Manuel de Oliveira Lima (18671928), embaixador do Brasil na Bélgica. A colaboração se prolonga até 1914 e leva à criação de uma seção bibliográfica dentro
da Biblioteca Nacional do Rio. Ela comporta várias remessas de
fichas e a visita, em 1913, de Britto Galvão, funcionário dessa
mesma biblioteca, que vem a Bruxelas estudar a organização e o
funcionamento do RBU.
Esta cooperação internacional foi decisiva para que primeiro o
OIB e em seguida o Mundaneum pudessem desenvolver o RBU e
a CDU de maneira tão considerável: o RBU atingirá um número
aproximado de 16 milhões de fichas e a CDU se tornará o padrão
em inúmeras bibliotecas do mundo inteiro.
Atualmente, o Mundaneum, instalado em Mons (Bélgica)
desde 1993, é um centro de arquivos e um espaço de exposições
temporárias. Conserva as coleções reunidas por seus fundadores
e sucessores (publicações, jornais, periódicos, cartazes, fichas, fotografias, cartões postais…), como também os papeis pessoais de
Paul Otlet e de Henri La Fontaine e os fundos de arquivos tratando de três temáticas principais: o pacifismo, o anarquismo e o
feminismo.
Jacques Gillen, historiador do pacifismo e do movimento anarquista
na Bélgica, é diretor do Mundaneum em Mons.
Referências
Le Mundaneum. Les archives de la connaissance. Mons, Impressions Nouvelles, 2008; Paul
Otlet, fondateur du Mundaneum (1868-1944). Architecte du savoir, artisan de paix.
Bruxelas, Impressions Nouvelles, 2010; Henri La Fontaine, Prix Nobel de la paix en
1913. Un Belge épris de justice, Bruxelas, Mundaneum-Racine, 2012. Mundaneum,
Papéis pessoais de Paul Otlet, dossier numéroté 504 (PP PO 942).
O Instituto Real do Patrimônio Artístico
de Bruxelas e Barroco Mineiro
E r i k a B e n a t i R a b e l o e M y r i a m S e r c k - D e l wa i d e
O
Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas (IRPA),
antigo ACL (Archives Centrales Iconographiques d’Art et le
Laboratoire Central), surgiu oficialmente em 1948, ano em que
tornou-se independente em nível administrativo do Museu Real
de Arte e História de Bruxelas. Entretanto, remontando no tempo,
as atividades do IRPA se iniciaram em 1934, com a chegada de
Paul Coremans (1908-1965) para os departamentos de documentação e do laboratório de pesquisas físico-químicas do Museu Real.
Doutor em química, Paul Coremans implementou projetos de
restauração envolvendo os principais museus belgas. Desejando
que seus departamentos crescessem cientificamente, direcionou
a conservação de obras de arte segundo uma metodologia científica, baseada no estudo exaustivo de seus materiais constitutivos.
Preocupado com a comunicação, criou uma rede de relações com
universidades da Europa, dos Estados Unidos e demais centros de
conservação. O surgimento do IRPA é contemporâneo de instituições internacionais pioneiras, tais como o Courtauld Institute,
em Londres (1932), e o Istituto Centrale per il Restauro (ICR),
de Roma, criado por Cesare Brandi em 1939.
Como diretor do IRPA, Coremans conciliou duas áreas distintas, mas complementares: a documentação e a análise científica.
Deu início a uma vasta campanha de inventário fotográfico do
patrimônio da Bélgica, que, apesar de ser um país pequeno, concentra uma riqueza excepcional. Essas campanhas de inventário
aceleraram-se durante o período da Segunda Guerra Mundial.
Estima-se que entre 1941 e 1945 mais de 160 mil fotografias foram
realizadas, e isto levando em conta o racionamento de gasolina,
do material fotográfico em geral e dos constantes bombardeios.
Esse acervo fotográfico foi de grande utilidade uma vez terminada a guerra, pois serviu para uma avaliação precisa do estado
de conservação do patrimônio móvel e imóvel e para o desenvolvimento de uma estratégia de recuperação. Algumas dessas fotografias são, em casos extremos, o único testemunho de objetos
completamente destruídos pela guerra (Masschelein-Kleiner, p.
18). Todo esse material fotográfico é, ainda hoje, uma excelente
base de informação para restauradores e pesquisadores em geral.
Se por um lado a guerra engendrou a deterioração do patrimônio, por outro, e paradoxalmente, ela promulgou, nos anos seguintes, o desenvolvimento de teorias relativas à sua recuperação.
Os anos do pós-guerra foram vividos, em nível mundial, como um
período de reflexão, de avaliação e de procura de critérios na área
do patrimônio. Sem dúvida, a experiência desse inventário, realizado em tempos difíceis, com uma equipe composta de artistas, de
historiadores de arte e fotógrafos, influenciou o desenvolvimento
de uma prática baseada na interdisciplinaridade, pedra angular
do trabalho do IRPA.
No nível nacional, o IRPA apoiou a criação do Centro Nacional de Pesquisas ‘Primitifs flamands’ (1949), cujos objetivos
145
parte 4 – colaboração científica
eram constituir um inventário, um arquivo fotográfico e o estudo
da produção de pintura do século XV nos antigos países baixos
meridionais (atual território belga). No cenário internacional, o
IRPA participou de momentos históricos, como da criação do
International Council of Museums (ICOM) em 1946, do International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works
(IIC) em 1950, do International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property (ICCROM) em
1959 e ainda e do International Council on Monuments and
Sites (ICOMOS) em 1964.
Em 1957, o projeto de interdisciplinaridade idealizado por Coremans é oficializado e surge a atual denominação: Institut Royal
du Patrimoine Artistique/Koninklijk Instituut voor het Kunst­
patrimonium. Historiadores de arte, restauradores, químicos, físicos trabalham juntos para o estudo, o inventário e a conservação
do patrimônio artístico. O projeto do edifício independente com
8.700 m2, separando fisicamente cada área de trabalho, foi lançado e a pedra fundamental foi posta em 9 de maio de 1959 (Masschelein-Kleiner, p. 25). Em 1963, a química Liliane Masschelein
-Kleiner integra a equipe do laboratório, dedicando-se às análises
dos materiais orgânicos, até então difíceis de serem identificados
pela microscopia e pela microquímica. Os laboratórios adquiriram, a partir da década de 60, um equipamento extremamente
moderno para a realização de exames científicos.
Formação e estágio no IRPA
Paul Coremans, Jair Afonso Inácio e Fernando Barreto em Ouro Preto em 1964.
A partir de 1949, o IRPA começou seu programa de estágio em
seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário,
via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. Enquanto conselheiro da United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou
que havia urgência em capacitar os recentes centros de conservação surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados
segundo uma metodologia científica adequada.
Quando o IRPA mudou-se para o novo prédio em outubro de
1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria
com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que durou somente três anos, mas que ganhou reputação internacional.
Entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, passaram pelo IRPA. Após o falecimento de Paul Coremans (1965) a
pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais
modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo
científico das obras de arte.
Antônio Cruz Souza (MG), Marcos Cézar de Sena Hill (RJ), Kathia Berbert Sant’Ana (BA), Beatriz Gonçalves Gaede (MG), Erika Benatti Rabelo (MG), Erika Santos (RJ), Karen Barbosa (SP).
O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época
importante da história do IRPA, que culminou com a transferência dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo prédio, inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a
trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses
antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem
formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que teve variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan,
IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na
cidade de Ouro Preto (MG) e graças ao mecenato da Fundação
Rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na Europa. Nos arquivos do IRPA encontram-se cartas de recomendação elogiosas a
Jair da parte de Rodrigo Mello Franco Andrade, primeiro diretor
do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial
no Brasil, e de Edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan
e professor universitário no Rio de Janeiro.
Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, trabalhavam objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da
‘Descida da Cruz’, pintura de Rubens conservada na Catedral de
Antuérpia, sob a direção de Georges Messens. Foi contemporâneo de Agnes Grafin Ballestrem, formada no Landesmuseum, de
Bonn, Alemanha. Agnes tornaria-se responsável pelo atelier de
restauração de escultura do IRPA, em seguida responsável pelo
Estagiários brasileiros
Em 64 anos de existência, o IRPA recebeu 14 estagiários do
Brasil, procedentes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio
de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair Afonso Inácio (MG), Fernando Barreto (PE), Regina Costa Pinto Dias Moreira (BA), Francesca Karolyi (SP), Liana Gomes Silveira (BA), Claudina Maria Dutra Moresi (MG), Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (MG), Luiz
146
ensino e pesquisa
Estagiários do Institut Royal du Patrimoine Artistique, 1961-1962.
Landesmuseum e diretora do Centraal Laboratorium voor Onderzoek van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em Amsterdã.
Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais
a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua experiência europeia. Entre os meses de abril e maio de 1962, o estagiário visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do
Musée du Louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto
para o Exame e Restauro das Obras de Arte de Lisboa. Antes de
retornar ao Brasil visitou a Rockefeller Foundation em Nova York.
Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da
Unesco. Visitou o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas
Gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto,
professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura
do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IRPA em
1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga.
Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários brasileiros que chegam ao IRPA vêm com uma formação universitária
em Belas Artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há
uma especialização entre as diferentes áreas. Regina Costa Pinto
Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha
formação de três anos no Instituto de Conservación y Restauración
de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da
Unesco e particularmente de Paul Coremans. Regina tornar-se-ia
referência na França onde durante mais de duas décadas esteve
a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu
do Louvre. Recentemente colaborou com restaurações no Masp,
de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura
policromada em 1971/1973. Em seguida, trabalhou no IRPA e
na Alemanha (Munique). Liana Gomes Silveira era restauradora
do Museu de Arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no IRPA em 1976/1977. Em seu currículo constava um curso na Real
Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri. Durante
seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de
Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da
147
parte 4 – colaboração científica
reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testadas em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção
mecânica de repinturas.
No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en conservação e restauração de bens móveis. Em 1980, o Centro de
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro
curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. A estagiária Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMG
frequentou o IRPA em 1986/1987, juntamente com seu marido,
Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudina desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMG baseado em sua
experiência na Bélgica. Voltou ao IRPA em 1991 para uma pesquisa específica. Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira foi professor
da Fundação de Arte de Ouro Preto. Luiz Antônio Cruz Souza,
químico do Cecor-UFMG, esteve no IRPA em 1987/1988 e em
seguida estagiou no Getty Conservation Institute, em Los Angeles, EUA. Luiz Antônio é atualmente professor do Cecor-UFMG
e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar
de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMG, estagiou no atelier de
escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam
Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de Louvain-La
-Neuve e é professor de História da Arte na Escola de Belas Artes
(EBA-UFMG). Kathia Berbert Sant’Ana foi estagiária do atelier de
pintura do IRPA em 1988/1989, sob direção de Nicole Goetghebeur. Trabalhou no Museu de Arte Sacra de Salvador, na Bahia,
e no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Beatriz
Gonçalves Gaede estagiou no atelier de escultura policromada em
1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Erika Benati
Rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de escultura policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e
colabora com o IRPA desde 1997, onde foi responsável por vários
projetos de restauração. Realizou pesquisas e publicações sobre a
escultura barroca na Bélgica. Erika Santos estagiou no atelier de
escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica
e estudou na Artesis Hogeschool de Antuérpia. E Karen Barbosa,
diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de pintura em
2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conservação e restauração do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
tação dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural
no Brasil e na América Latina.
Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra forma. Ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a
participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMG
e no Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado
pelas professoras Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, fundadora do Cecor-UFMG, e Myriam Ribeiro de Oliveira, doutorada pela Universidade de Louvain-La-Neuve, professora da UFRJ
e pesquisadora do Iphan. Em 1985, acontece o seminário sobre
adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restauração, ministrado por Liliane Masschelein-Kleiner, do IRPA, e
coordenado por Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, no Cecor-UFMG. Em 1989, realiza-se o seminário Taller de actualización para América Latina: escultura policromada, organizado
pelo Getty, Programme des nations unies pour le développement
(PNUD), Unesco e UFMG, também no Cecor. Participaram deste seminário o belga Jean-Albert Glatgny, restaurador autônomo
formado no IRPA, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot
e Agnes Grafin Ballestrem.
O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998),
contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938-2004) da Universidade de Louvain-La-Neuve e diretor do Museu
de Louvain-La-Neuve.
O III congresso do Ceib em São João Del Rei (2003) teve a
participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier
de escultura policromada e em seguida diretora do IRPA. Ela também publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos
tratamentos das esculturas.
O IV congresso do Ceib em São João Del Rei (2005) contou
com a participação de Michel Lefftz, atual professor da Fundep
(Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua
conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira,
com o título “Análises morfológicas dos drapeados na escultura
portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”.
Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas policromadas do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de
Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011);
co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des
XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans
Policromia. A esculptura policromada religiosa dos séculos XVII e
XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées
dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal
en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura policromada
religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional
Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história
da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo
Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.
Considerações finais
O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à
América Latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um documento interessante. Além de descrever o que viu no Brasil e
sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele
analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Havia, nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e
financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estrutura patrimonial estava mais organizada. A relação belgo-brasileira
desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência
internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IRPA e a
Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capaci-
Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I-Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas; autora de ‘Les imita-
148
ensino e pesquisa
Referências
tions de marbre dans le baroque en Belgique’, Policromia. A Escultura
Policromada Religiosa dos Séculos xvii e xviii. Actas do Congresso
Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 95-102,
e ‘L’Ange Gardien et la Sainte Hélène de Cornelis Vander Veken
(1666-1740). Analyses stylistique, technique et matérielle, traitement
de conservation’, Bulletin de l’IRPA, 31, 2004/05 (2006).
Ceulemans, C. Historiek van de stage, Bulletin de l’Institut royal du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 208.
Masschelein-Kleiner, L. Les cinquante ans de l’IRPA, Bulletin de l’Institut royal
du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 18 e 25.
Archives KIK/IRPA – Bruxelas.
A cooperação acadêmica, científica e técnica entre Bélgica e Brasil
Claude Misson
A
s relações entre o Reino da Bélgica e a República Federativa
do Brasil sempre foram marcadas pelo respeito, pela amizade
e pela cooperação.
Após a Grande Guerra, em que o Brasil, neutro, defendeu a
nossa integridade territorial, e a visita de Estado dos nossos Soberanos em 1920, sendo a primeira de um Rei e uma Rainha ao
Brasil republicano, deu-se um impulso que se traduziu por um
crescimento considerável dos nossos investimentos e das nossas
trocas comerciais. Se, hoje, estas trocas não correspondem ainda
inteiramente ao potencial dos nossos dois países, convém observar
que, de acordo com o Banco Central, a Bélgica situa-se entre os
mais importantes investidores no Brasil.
encontros. Esse acordo prevê, além disso, o desenvolvimento da
colaboração nos domínios das biociências, da agroindústria, da
engenharia mecânica, do transporte e da logística e, por último,
da aeronáutica e da espacial.
Ainda em 2009, as visitas à Bélgica de representantes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-Embrapa e de uma
importante delegação do Foro das Assessorias das Universidades
Brasileiras para Assuntos Internacionais-Faubai ampliaram o conhecimento mútuo e aceleraram a aproximação entre instituições
dos nossos países.
O interesse manifestado pelas duas partes para uma colaboração mais intensa induziu as principais universidades belgas a
participar – fato inédito – de uma missão econômica presidida por
S. A. R., o Príncipe Philippe (2010). Essa “estreia” foi valorizada
pelos encontros e seminários organizados em São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e Brasília; além disso, demonstrou a vontade das nossas universidades de reforçar as relações transatlânticas. Sobretudo, sublinhou a relação necessária que deveria existir
entre a atividade acadêmica, a pesquisa e a economia.
Procedendo de uma mesma lógica, esforços foram envidados
para estimular cooperações em setores de alta tecnologia. As primeiras visitas à Bélgica do presidente da Agência Espacial Brasileira-AEB e em seguida do presidente da Comissão Nacional de
Energia Nuclear-CNEN permitiram constatar o interesse para
colaborações entre cientistas belgas e brasileiros nos domínios da
pesquisa espacial e da pesquisa nuclear.
Negociações entre a AEB e o Centre Spatial de Liège e, posteriormente, entre a CNEN e o Centre d’Etudes Nucléaires (SCK-CEN) conduziram, primeiro, a um acordo sobre um programa
de cooperação no domínio espacial (2009). Este cobre áreas como
educação e formação nas ciências e técnicas espaciais, técnicas de
observação da Terra, concepção de instrumentos espaciais, testes
de instrumentos, cargas úteis e satélites, “nanossatélites estudantes”, técnicas ópticas (metrologia, revestimentos ópticos, estruturação de superfícies, concentração solar…) e tecnologias específicas
ligadas ao espacial.
Em matéria de pesquisa nuclear, os esforços foram coroados
pela assinatura de um Memorando de Entendimento na presença de S. A. R., o Príncipe Philippe, quando de sua passagem por
A cooperação acadêmica e científica
Nestes últimos anos, foram nos domínios acadêmico e científico que progressos essenciais foram registrados. A Bélgica atribui,
com efeito, uma grande importância à cooperação com o Brasil
nestes domínios e diferentes iniciativas foram tomadas para intensificar e reforçar as nossas relações.
Nesse contexto, foram organizadas as primeiras visitas de trabalho dos presidentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico-CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Capes. Os encontros com
as autoridades belgas permitiram aos parceiros brasileiros desenvolver as principais linhas de ação para o futuro e conduziram à
assinatura, em 2009, dos acordos de cooperação entre o CNPq,
por um lado, e os seus homólogos belgas (FWO e FNRS-FRS), por
outro lado. Estes acordos preveem, entre outras formas de colaboração, a implementação de projetos comuns de I+D, o intercâmbio de pesquisadores e de cientistas, a organização de seminários
e outros encontros, assim como publicações científicas conjuntas.
Foram seguidos, no mesmo ano, da assinatura de um acordo entre a Capes e a Wallonie-Bruxelles International, que visa
igualmente o financiamento e a implementação de um programa conjunto de intercâmbio de professores, de pesquisadores e
de estudantes entre as instituições de ensino superior e de pesquisa. Para efetivar a cooperação, estão previstos instrumentos
como bolsas, projetos conjuntos de pesquisa e organização de
149
parte 4 – colaboração científica
Brasília (maio de 2010). O texto aprovado estabelece as condições
para um programa de colaboração, a longo prazo, em domínios de
pesquisa, como armazenamento de resíduos radiativos, dosimetria,
corrosão, qualificação dos combustíveis, educação e formação e irradiações. Uma missão anterior dos altos dirigentes do SCK-CEN
ao Brasil (2011) detalhava as formas de colaboração nessas áreas.
A ação da Bélgica insere-se num quadro europeu mais amplo:
é neste contexto que deve ser colocada a nossa presença nas feiras Euro-Pós (2011) e Estude no Exterior (2012), que tinham por
objetivo apresentar aos estudantes universitários brasileiros uma
larga gama de possibilidades de formação na Europa.
Diante destes sucessivos desenvolvimentos, não é, por conseguinte, surpreendente constatar que a Bélgica figure na primeira
fila dos países parceiros quando do lançamento do ambicioso programa brasileiro Ciência sem Fronteiras, que deve oferecer mais
de 100 mil bolsas em quatro anos a estudantes brasileiros que desejem completar sua formação em Ciências Exatas no estrangeiro.
Este assunto foi abordado com detalhe, por ocasião da visita oficial
que a Presidente Dilma Rousseff realizou à Bélgica na inauguração do festival Europalia Brasil (outubro de 2011).
O simpósio Belgium-Brasil Networking in Science, Technology and Innovation for a Better Future, seguido de encontros entre
os presidentes do FWO e do FNRS com o presidente do CNPq,
entre o presidente da Capes e o representante do CNPq com representantes de todas as universidades belgas e, por último, um
encontro entre as universidades e centros de investigação belgas
com delegações das associações Andifes e Abruem permitiram às
duas partes discutir sobre as condições de futuros intercâmbios.
As negociações foram rapidamente iniciadas para tornar possível, no princípio de 2012, a assinatura de acordos para o acolhimento desses bolsistas na Bélgica. A sua progressiva implementação terá sido facilitada pelas conversações entre os Reitores de
universidades brasileiras membros da Associação Brasileira dos
Reitores das Universidades Estaduais e Municipais-Abruem e todos os homólogos belgas quando da missão dos primeiros na Bélgica (em julho de 2012).
Center-APEC, merecia ser melhor estruturada. A fim de dar-lhe
um quadro formal e um caráter privilegiado, a Secretaria de Portos assinava com o APEC – mais uma vez na presença de S. A.
R., o Príncipe Philippe – um acordo de cooperação técnica para
a formação de pessoal e a troca de informações (maio de 2010).
Esse acordo, renovado para um período de dois anos em julho de
2011, permite a dezenas de especialistas familiarizarem-se com as
técnicas modernas de gestão das operações portuárias mais diversas. Deveria, além disso, favorecer o desenvolvimento de investimentos belgas no Brasil nesse setor.
À margem da visita oficial do Presidente Luis Inácio Lula
da Silva a Bruxelas (2009), os altos dirigentes do Ministério dos
Transportes do Brasil efetuaram uma visita que lhes permitia
estudar as técnicas e obras desenvolvidas na Bélgica para assegurar eficazmente o transporte de mercadorias por vias navegáveis.
Começaram, então, negociações que levaram à conclusão de um
Protocolo de Intenções com os Governos regionais flamengo e valão (2011). Contemplava uma interação sobre, designadamente,
o Plano Diretor brasileiro de vias navegáveis, o projeto de canal
navegável, as construções, operação e manutenção das vias navegáveis, os projetos de vias navegáveis ecologicamente corretas,
o transporte multimodal. Foram igualmente previstos estágios de
formação e aperfeiçoamento de conhecimentos no domínio dos
transportes por vias navegáveis.
Para consolidar essas novas relações, o segundo Seminário Belgo-Brasileiro de Vias Navegáveis foi organizado em Brasília, em
abril de 2012.
Conclusão
Esperamos que estas diferentes iniciativas deem frutos e que
o movimento não somente seja mantido, mas também ampliado.
Essas trocas têm um efeito muito importante para o futuro das nossas relações com este grande parceiro que é o Brasil. A esse respeito, é muito agradável sublinhar que, primeiro, o Presidente Luís
Inácio Lula da Silva, quando de sua visita oficial em 2009, e, em
seguida, a Presidente Dilma Rousseff, quando de sua visita oficial
em 2011, manifestaram, pessoalmente, o interesse e prometeram
apoio a esta cooperação bilateral acadêmica, científica e técnica.
Não há nenhuma dúvida de que esta colaboração deva desenvolver-se sempre mais, para maior benefício dos nossos dois países.
A cooperação técnica
Note-se que a cooperação bilateral igualmente desenvolveu-se
no domínio técnico. Tendo em conta a importância que representam as infraestruturas de transporte nos nossos dois países, e tendo
em conta a experiência adquirida pela Bélgica durante séculos,
pareceu útil organizar visitas de responsáveis brasileiros aos nossos
portos e infraestruturas fluviais.
A formação de especialistas brasileiros em gestão portuária,
oferecida há mais de 20 anos por Antwerp/Flanders Port Training
Claude Misson é embaixador honorário da Bélgica. Jovem diplomata sucessivamente em Jeddah e Brasilia, foi nomeado embaixador em
Abu Dhabi, Lisboa e Madrid; foi diretor geral do Institut Egmont
em Bruxelas antes de encerrar a carreira em Brasília. Vive atualmente em Madri.
150
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
parte 5
Influências Religiosas
e Ideológicas
151
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
152
Jesuítas belgas no Brasil colonial
Eddy Stols
‘S
e existir um purgatório, deveria ser neste engenho entre tanta
gente ruim’, lançou Antonio Billiet aos companheiros em
Pernambuco por volta de 1590. Com este e outros ditos descrentes
sobre padres, missa, confissão ou imagens de santos, vários jovens
flamengos, marcados pelos questionamentos do humanismo e da
Reforma, desafiavam o catolicismo conformista dos portugueses
(Stols, 1988). Presos nas visitações da Inquisição em Pernambuco e na Bahia em 1592 e 1618 e remetidos ao tribunal de Lisboa,
foram lá assistidos por jesuítas conterrâneos seus. Foi apenas um
dos episódios em que se cruzaram os percursos religiosos do Brasil
e dos Países Baixos meridionais ou da atual Bélgica. Estes foram,
depois da tomada de Antuérpia em 1585 pelas tropas espanholas
de Alexandre Farnese, privados da liberdade de culto e reduzidos à ortodoxia católica da Contra-Reforma. Na mesma época, as
vitórias portuguesas sobre os franceses e holandeses procuraram
purgar o Brasil do pluralismo religioso, ensaiado no seu primeiro
século de convivência entre gentios, cristãos, judeus e africanos.
Em ambas as partes, a nova ordem jesuíta tomou as rédeas
desta reconversão. Particularmente, as duas províncias jesuíticas
flandro-belga e galo-belga incentivaram, com novas igrejas barrocas e devoções, o fervor e a ação missionários, que tomariam o
lugar do sonho medieval de cruzada e reconquista, frustrado pelo
avanço otomano com a tomada de Constantinopla.
A evangelização dos índios brasileiros apareceu no seu horizonte, pelo menos desde a publicação em Lovaina em 1566 das
Cartas do jesuíta Manoel da Nóbrega (Cartas). Em Flandres, este
pedia livros que vinham de Lisboa para os estudos em seus colégios.
Sua igreja em Salvador (BA) estava, em 1567, ricamente decorada com ‘guademecis e mapas de Flandres’, ao passo que Nóbrega
comparou a paisagem brasileira a um tapiz de verdura flamenga.
O padre Anchieta vigiava a conduta dos feitores dos Schetz no
engenho deles em São Vicente, que, em contrapartida, enviaram
caixas com pinturas, estampas e imagens religiosas (Cartas; Laga).
Já em 1544, Inácio de Loyola enviou nove jesuítas belgas para estudar em Coimbra. O primeiro a partir como missionário na
Bahia foi, em 1559, Joannes Dicius, que voltou logo em 1562 para
Coimbra (Leite, I, passim). Em 1577 partiram mais dois, Gedeão
Ilustração colorida do jesuíta Francisco Pinto entre os índios publicada no livro
de Cornelius Hazart.
153
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
de Cristo e outras obras na sacristia da igreja de São Francisco
Xavier em Belém, Pará. Gastavam geralmente bastante tempo
aguardando a licença real, indispensável para padres estrangeiros, um barco e também na preparação de mantimentos para a
tripulação. Às vezes decidia-se lá mesmo a partida para a Índia
ou para o Brasil. Assim, Ferdinand Verbiest, o futuro astrônomo
da corte celestial em Pequim, destinou-se primeiro ao Brasil para
finalmente embarcar para a China. Para o Brasil, o rei deu licença a uma dezena de padres flamengos.
O mais influente deles foi João Felipe Bettendorff, luxemburguês e ingressado como noviço na província galo-belga dos jesuítas (Arenz). Permaneceu quase todo o ano de 1658 em Lisboa, no
Colégio de Santo Antão, antes de partir para o Maranhão junto
com outro luxemburguês, Gaspar Misch. Subiu várias vezes pelo Amazonas e passou por ser o fundador de Santarém na foz do
Tapajós. Com um bom olho para o potencial econômico, descobriu o uso do guaraná pelos índios, plantou o cacau silvestre e a
laranjeira da China e explorou as salinas.
Como seu confrade Antônio Vieira, Bettendorff disputava com
os moradores portugueses o monopólio da mão de obra indígena,
que os jesuítas pretendiam agrupar em aldeias e preservá-las das
influências maléficas. Bettendorff registrou as desavenças com os
colonos, como também com seus superiores e confrades e com o
próprio bispo do Maranhão, na Crônica da missão dos padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, inédita até 1910.
Expulso em 1684 do Maranhão pelos colonos levantados por Bequimão, passou nova temporada em Lisboa, onde publicou em
1687 um Compendio da Doutrina Christam na lingua Portugueza
& Brasilica. Pelo beija-mão e pela oferta de um mapa do Amazonas em repetidas visitas a D. Pedro II e à rainha Sofia Maria de
Neubourg, conseguiu ganhar sua confiança e negociar um novo
Regimento das Missões, que lhe permitiu finalmente voltar para o
Maranhão em 1688. Mais pragmático e disposto a compromissos
que Vieira, mostrou-se também mais cético a respeito do interesse
religioso dos índios.
Uma tese sobre a ação missionária, contrária à Vieira, foi defendida por outro padre nórdico, Jacobo Rolandus, que, fugido de
sua família protestante na Holanda e ingressado na ordem jesuíta
em Antuérpia, julgou a escravidão dos índios como mais segura
para sua evangelização. Seu panfleto Apologia pro Paulistis, que
lhe valeu como punição o exílio para a Ilha de São Tomé, o colocou em franca oposição a outro jesuíta flamengo e filho de um
mercador de Antuérpia, Josse Van Suerck, aliás Mansilla. Este
foi em 1629 denunciar em São Paulo e até em Salvador ao governador ‘las crueldades y tiranias de los Portugueses’ dos bandeirantes paulistas liderados por Amador Bueno e Raposo Tavares,
que invadiram as reduções jesuíticas na região do Guaíra (Anais
do Museu Paulista; Furlong). Não somente roubaram camisa, almofada, guardanapo e garfo do missionário, mataram em plena
quaresma porcos e galinhas, fazendo festa noturna com tambor e
cornos e zombando dos padres como ‘pobretones’, além de levarem também seus índios evangelizados. Os conflitos dos jesuítas
com os paulistas não cessaram e foram divulgados na Europa pelas
Estampa colorida do jesuíta José de Anchieta publicada no livro de Cornelius
Hazart.
Lobo e João Baptista. Este último serviu primeiro no colégio de
Olinda e posteriormente como superior em Ilhéus até 1599. Jacome do Vale, depois de sua entrada em 1594, estudou no Rio de
Janeiro, mas deixou a Ordem em 1599. O protestante converso,
João Baptista, ingressado na Ordem em 1606 em Olinda, foi ativo
como pintor, falecendo em 1609.
Até meados do século XVIII mais algumas dezenas de belgas
rumaram para o Brasil ou para as reduções fronteiriças do Paraguai através de Lisboa, onde a residência dos confrades portugueses era uma espécie de filial da Ordem. Lá mesmo, dois belgas
entraram na Ordem: em 1619 Remacle Le Gott, aliás Inácio Lagott, nativo de Marche-en-Famenne, que partiu para o Brasil em
1628, produziu pinturas na Bahia e voltou expulso de Pernambuco pelos holandeses, e em 1639 o irmão Baltasar de Campos,
nativo de ‘s-Hertogenbosch, a quem é atribuído o quadro Vida
154
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Litterae Annuae, as cartas ânuas destes padres. Na mesma época,
fundaram-se novas missões, como Santo Ângelo pelo flamengo
Diogo de Haze em 1706.
Nem todos os jesuítas belgas destinados às missões do Paraguai
falaram mal dos portugueses. Um deles, o músico e pintor Louis
Berger, se gabou em janeiro de 1617 da boa recepção em Lisboa,
onde ‘querem bem à Nação flamenga’ e, na escala da Bahia, onde
‘os padres ao par de nossa chegada foram ao nosso encontro com um
barco’ (Histoire du massacre). Antes tiveram a agradável surpresa
que ‘à quase uma légua de distância do porto nosso navio foi cercado por uma armada de jangadas, feitas cada uma de três peças de
madeira, e algumas de uma peça só escavada como uma selha onde
comem os cavalos. Em cada barquinho tinha um brasileiro e um
negrinho que pescavam e era coisa admirável como ficavam em pé
sobre estes paus. Fizemos entrar alguns no nosso navio, que saíram
muito contentes com os presentes que lhes fizemos’. No porto, descarregou-se muita artilharia e Berger foi honrar a sepultura de José
de Anchieta: ‘Tinha ouvido falar de sua vida e miráculos, quando
eu estava em Tournai. É nada em comparação com as maravilhas
que contam aqui deste santo padre. Tenho uma carta escrita de sua
própria mão junto com um pedaço de osso, de roupa e camisa que
me deu o padre reitor daqui’. Ouviu lá mais notícias sobre o padre
Francisco Pinto, ‘martirizado pelos Bárbaros, e beijei o bastão com
o qual lhe romperam a cabeça... os Bárbaros não querem devolver
o corpo, que veneram muito. Quando falta chuva nas suas lavras,
rezam para este padre’. Falou ainda ‘com um bom padre, que já foi
três vezes amarrado para ser morto pelos Bárbaros’. A última vez,
já amarrado nu num tronco de árvore, foi salvo pelos neófitos. Estes ameaçaram os bárbaros com o relâmpago, que os mataria se
não desamarrassem o padre. Acreditaram, e vários se converteram.
Este imaginário de índios selvagens e de milagres jesuíticos
foi manipulado pelos confrades belgas para suscitar um culto a
Anchieta com livros como a tradução francesa de sua biografia,
La vie miraculeuse du P. Joseph de la compagnie de Jésus, do padre Pedro Rodrigues, aumentada pelo padre Sébastien Beretaire
(Douai, 1619), e com as relíquias de seus escritos, conservados
em Antuérpia ainda no final do século XIX (Kieckens). Inspirou
estampas como as de Abraham a Diepenbeke na Kerckelycke Historiae van de gheheele wereldt, de Cornelius Hazaert (Antuérpia,
1652-1671). A visão de um Brasil perigoso e propício ao enaltecido
martírio se fortaleceu ainda mais com a passagem por Antuérpia
dos jesuítas portugueses, presos pelos piratas ingleses ou holandeses na Bahia, em 1624, e em Pernambuco, em 1630, e resgatados
pelos confrades flamengos.
O prestígio dos jesuítas deve ter incitado a nova ordem dos
capuchinhos a lançar-se na evangelização do Brasil com uma primeira participação na expedição colonial dos franceses no Maranhão. A província belga dos capuchinhos se deixou seduzir pelas
perspectivas na África, mas recorreu para chegar lá às conexões
entre Lisboa, Recife e Angola, uma ligação triangular recorrente
nas relações entre a Bélgica e o Brasil. O continente africano continuaria presente em filigrana na evangelização belga do Brasil.
As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira
Jeroen Dewulf
A
ligação mais conhecida entre a Bélgica e o Brasil no que diz
respeito à cultura negra é, sem dúvida, o Terreiro do Gantois.
Este famoso terreiro do candomblé Gêge-Nagô em Salvador, na
Bahia, deve seu nome ao proprietário belga – oriundo da cidade
de Gand – do terreno onde o templo religioso foi construído em
1849 sob direção da ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré.
A ligação belgo-brasileira no contexto da cultura negra vai,
porém, muito além deste detalhe curioso. Também as atividades
missionárias flamengas na África Central no século XVII influenciaram de forma indireta a cultura negra no Brasil. Missionários
flamengos contribuíram não só para o desenvolvimento de uma
variante africana do catolicismo mas até causaram o envio da
população inteira de uma aldeia africana como escravos para
o Brasil. Hoje, muitos milhares de brasileiros são descendentes
de um grupo de africanos levados para o outro lado do Oceano
Atlântico devido a uma tragédia que tinha como figura central
um missionário flamengo.
A chegada de missionários flamengos ao Reino do Congo –
que correspondia a um território que hoje se situa junto à frontei-
Retrato de
missionário
flamengo no
Congo.
155
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
sua chegada, em 1651, adoeceu e morreu de febre. Van Geel se
manteve com boa saúde, mas rumores sobre o envolvimento de
capuchinhos numa conspiração impediu o início de sua missão.
Van Geel aproveitou o tempo para levar a cabo uma obra que acabou por ter uma importância histórica: a transcrição do primeiro
dicionário da língua bantu, elaborado pelo mulato congolês Manuel Roboredo, o Vocabularium kongoense, hispanicum et latinum
(1648). Quando sua missão foi finalmente liberada, van Geel foi
mandado para a área de Matari.
A chegada a Matari foi uma desilusão. O capuchinho flamengo não podia aceitar que o catolicismo que se tinha desenvolvido
no Congo representasse uma variante africana dessa religião. Para
os congoleses, o catolicismo não funcionava como substituto da(s)
velha(s) crença(s), mas, antes, como um complemento. O tipo
de religião que van Geel encontrara era, de fato, uma espécie de
catolicismo creolizado. Enquanto a presença de elementos africanos no catolicismo congolês pouco preocupara aos missionários
portugueses, para van Geel tal mistura era inaceitável.
Profundamente influenciado pelo espírito intransigente da
Contra-Reforma na sua nativa Flandres, van Geel iniciou uma
campanha feroz de purificação do catolicismo congolês, decisão
esta que selaria sua sorte. Indignado pelo fato de van Geel ter incendiado um local de culto tradicional, a população da aldeia de Ulolo espancou o missionário até levá-lo à morte, alguns dias depois.
A tentativa por parte dos ololenses de evitar um castigo levando o corpo para fora da área foi em vão. O Rei Garcia II, que não
queria ver a missão capuchinha comprometida, decidiu impor a
punição máxima e condenou a população inteira da aldeia, umas
200 pessoas, à morte. Após a insistência dos capuchinhos, que
alegavam que van Geel, antes da sua morte, tinha perdoado a população, o rei congolês revisou sua sentença e decidiu vender os
habitantes como escravos. Todos eles foram então transportados
para o Brasil (Hildebrand).
Não foram estes os únicos missionários flamengos que che­
garam ao Congo no século XVII. Outra missão, desta vez composta por três franciscanos, foi à África Central a pedido do príncipe de Soyo. Os príncipes de Soyo, antigos vassalos do Rei do
Congo, utilizaram sua posição estratégica na costa africana para seguir uma política autônoma no comércio transatlântico. A
venda de escravos para europeus não católicos punha, porém,
um problema ético e político (Thornton, 1998). Daí as tentativas por parte da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais
de construir uma base de confiança em Soyo por intermédio
de missionários católicos flamengos. A ideia parecia trazer vantagens para todos: os flamengos poderiam converter africanos
ao catolicismo e, ao mesmo tempo, o príncipe de Soyo poderia
fazer negócios com uma companhia holandesa protestante sem
ter escrúpulos religiosos.
Porém, o que parecia bom no papel tornou-se um fracasso
pois nem os capuchinhos italianos nem os jesuítas portugueses
viam com bons olhos a chegada de uma terceira força católica
à África Central, e impediram, com sucesso, que os flamengos
iniciassem sua missão. Após chegar em Soyo em 1673, Cornelius
O missionário incendeia a cabana de um feiticeiro em um manuscrito anônimo
do início do século XVIII.
ra de Angola com a República Democrática do Congo – foi uma
consequência direta da política colonial portuguesa que combinava a expansão militar com a expansão religiosa. A procura de
aliados na África subsaariana por parte dos portugueses levara a
um pacto com o rei do Congo, ou Manikongo, Nzinga a Nkuwu
em 1485 (Vansina). Seu filho Mvemba a Nzinga (c.1456-c.1542)
foi responsável pela espetacular expansão do catolicismo no Congo. Adotando o nome lusitano de Afonso I, o jovem rei mandou
construir igrejas e capelas, fabricar crucifixos, rosários e estátuas
de santos, observar festas religiosas e fundar irmandades (Newitt,
2010). Encorajada por este sucesso surpreendente, a ambição portuguesa de espalhar o cristianismo nos quatro cantos do mundo,
no contexto de sua política colonizadora, recebeu grande suporte por parte do Vaticano. Isto explica a atribuição ao Reinado de
Portugal do padroado na África Central por parte do Papa Leão
X, em 1514, dando-lhes o direito exclusivo de representar a Igreja
Católica nessa parte do mundo (Thornton, 1992).
Os reis do Congo rapidamente perceberam que o padroado
lhes impunha uma situação de dependência total de Portugal em
assuntos religiosos e que os portugueses se aproveitavam dessa
situação para, gradualmente, aumentar sua influência na região,
em atrito com a ambição congolesa de criar uma diocese própria
e de negociar assuntos religiosos diretamente com o Vaticano.
Embora o Papa Urbano VIII simpatizasse com a ideia de aumentar a influência do Vaticano na África, também percebia o
perigo de apoiar publicamente uma proposta que violava o padroa­
do português. A luta entre Portugal, o Vaticano e a monarquia
congolesa pelo domínio religioso levaria a um compromisso em
1640: daí por diante, Roma enviaria missionários da Ordem dos
Frades Menores Capuchinhos diretamente ao Congo, sem intervenção portuguesa. Estes capuchinhos representariam, portanto,
uma força neutra no conflito entre Portugal e Congo e a garantia
da manutenção do catolicismo na região (Jadin, 1975).
Apesar dos capuchinhos eleitos para a missão no Congo serem
predominantemente italianos, dois flamengos também participaram da missão: Erasmus [Weyns] van Veurne e Joris [Willems]
van Geel. Para van Veurne, a missão acabaria cedo pois, logo após
156
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Wouters, Gerardus Corluy e Willem Lambrechts não puderam
fazer nada senão esperar pelo primeiro navio que os levasse de
volta à Europa. Assim terminava a ambiciosa missão flamenga na
África Central (Jadin, 1966).
Dois séculos depois, porém, estes planos foram retomados em
condições bem diferentes. Após a criação do Congo Belga em
1908, as autoridades coloniais deram prioridade à missão católica. Centenas de jovens belgas, quase todos flamengos, partiram
para o Congo numa missão evangelizadora gigantesca. Pouco tinha ficado do antigo fervor católico, mas o encontro de crucifixos
e estátuas de Santo Antônio levou vários missionários belgas a se
aprofundarem no estudo do antigo Reinado do Congo e das raízes
católicas na África Central.
Nos últimos anos, historiadores brasileiros têm mostrado cada vez mais interesse nos trabalhos de pesquisa de Jean Cuvelier
(1941), Joseph de Munck (1956), François Bontinck (1972), Louis
Jadin (1965, 1975) e outros padres belgas. Este interesse corresponde a uma virada na historiografia brasileira no que diz respeito à
população negra. Enquanto outrora acreditava-se que os escravos
africanos só se familiarizavam com o catolicismo após a chegada
ao Brasil, historiadores hoje reconhecem que muitos deles trouxeram consigo elementos afro-católicos para o continente americano
(Souza; Kiddy; Heywood e Thornton, 2007).
Assim, a mistura de elementos africanos e europeus – que
desde Gilberto Freyre (1933) era considerada um fenômeno cultural tipicamente brasileiro – é hoje reconhecida como característica da zona transatlântica inteira, no contexto do tráfico
de escravos entre os séculos XVI e XIX. Essa nova perspectiva
sobre a África deu origem a um interesse crescente no impacto
da obra missionária católica dos séculos XVI e XVII nos povos
Um padre capuchinho reza missa no Reinado do Congo, aquarela pintada pelo
padre Bernardino Ignazio, 1740.
bantu. Daí o reconhecimento da importância do trabalho dos
padres belgas que hoje se encontra nos acervos do Museu Real
da África Central, em Tervuren, e nos arquivos da Universidade
Católica de Lovaina.
Se, à primeira vista, as relações entre a população negra do
Brasil e a Bélgica não parecem ir para além de um detalhe curioso no nome de um terreiro baiano, hoje se sabe que historiadores
brasileiros poderão vir a encontrar nos arquivos belgas pistas importantíssimas para melhor compreensão da identidade histórica
de grande parte de sua população.
Jeroen Dewulf é professor da University of California, Berkeley.
Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil beneditino
Eddy Stols
N
os três últimos decênios do século XIX a Igreja Católica lançou uma forte contraofensiva ultramontana para recuperar
o terreno perdido para o liberalismo e o livre-pensamento dali em
diante ainda mais ameaçado pelo avanço do socialismo entre as
classes populares. Orquestrada pelo Vaticano, desde 1870 sob Pio
IX e com novo ímpeto sob Leão XIII, uma ‘internacional negra’
(cf. Lamberts) mobilizou todas as forças religiosas para impor a
participação ou influência católica na educação e vida cultural,
nas organizações profissionais e sociais, na imprensa e nos partidos políticos, na expansão econômica e colonial. Um novo vento missionário soprava particularmente sobre a América Latina
para restaurar o predomínio católico sobre os liberais, maçons e
positivistas, e preservar os emigrantes católicos destas influências
perniciosas e do protestantismo em alta. A hierarquia católica reabriu tradicionais conventos, fechados ou despovoados desde o
século das Luzes, e fundou seminários e escolas, principalmente
internatos com uma disciplina rigorosa e uma pedagogia bastante tradicional.
O Brasil entrou na mira dessa ação restauradora e regeneradora tanto por seu crescimento econômico como pelos avanços do
positivismo entre suas elites, sobretudo quando se livrou da tutela
imperial após a proclamação da República e a separação entre o
Estado e a Igreja. A partir dos anos de 1890 seguiu uma verdadeira investida de congregações, como os lazaristas, salesianos, redentoristas, às vezes solicitadas por bispos e sacerdotes brasileiros,
que, depois da questão religiosa com Dom Vital, em 1870, postularam maior disciplinamento da religiosidade brasileira. Por sua
vez, a Bélgica, país de tradição católica com um clero abundante,
devia, nos olhos do Vaticano, desempenhar papel de liderança,
tanto mais quando passou em 1884 de um governo liberal para o
157
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
predomínio de 30 anos do partido conservador católico e quando
suas elites se enriqueciam com os primeiros dividendos de sua industrialização exitosa.
Proeminente pioneiro nesta romanização belga do catolicismo brasileiro foi o beneditino belga Gerardo van Caloen (1853-1932), hoje mais conhecido por dar nome a uma rua no Rio
de Janeiro do que por suas façanhas no Brasil durante quase 25
anos. Sua figura, mais do que o mais citado beneditino alemão
Miguel Kruse, tem o perfil dos empire builders coloniais, como
Cecil Rhodes, econômicos, como Edouard Empain ou Percival
Farquhar, ou religiosos, como Mgr Lavigerie. Van Caloen deixou
uma pletórica correspondência e um diário bastante minucioso,
conservado nos arquivos da Abadia de Zevenkerken. Inspiraram ao
beneditino Christian Papeians de Morchoven uma valiosa biografia crítica, que aqui se resume, completa e contextualizada com
outras fontes, algumas brasileiras.
Joseph van Caloen (1853-1932) foi o primogênito de pai belga e mãe francesa, numa família de pequena nobreza e de ricos
proprietários de terras, ativos na política na região de Bruges.
Cresceu no novo castelo em estilo neogótico que seus pais mandaram construir em Loppem, onde se levantaria mais tarde a
abadia ‘brasileira’ de Saint-André de Zevenkerken. Neste meio
cultivado e multilingue, de saúde frágil mas curioso de tudo, com
até seu ‘Petit Musée’ no parque, entusiasmou-se pela história, particularmente dos monges medievais, exaltados por Montalembert
como os verdadeiros fundadores do Ocidente europeu. Bastante
viajado, ainda jovem, andou pela Palestina, depois pela Espanha,
Inglaterra e Alemanha, empolgou-se pela reforma beneditina iniciada em 1870 em Beuron, no sul da Alemanha. Em 1872 se fez,
sob o nome de Dom Gerardo, o primeiro monge da suntuosa
filial belga dessa congregação em Maredsous, custeada pela nobreza e burguesia católica belga. Diferentemente dos confrades,
sonhava combinar a vida monástica com a ação missionária e
fundar um mosteiro entre os ‘bárbaros’. Para isso propôs, já em
1886, ao colaborador de Leopoldo II, o Barão Lambermont, a
fundação de uma escola apostólica para preparar a implantação
dos beneditinos no Congo. Ao mesmo tempo entusiasmou-se pela
reconciliação das igrejas ortodoxas orientais com Roma, para a
qual pensava construir uma nova abadia.
Sua guinada de rumo para o Brasil seguiu um pedido de ajuda
feito a Roma por Frei Domingos da Transfiguração, abade da Bahia
e abade-geral da congregação beneditina brasileira. Esta dispunha
de apenas dez monges de idade avançada em cinco abadias e sete
priorados, parcialmente ocupados por seus familiares ou descendentes. Temia-se pelo seu descalabro total com a provável expropriação pelo novo poder republicano. Roma se sensibilizou e delegou em 1893 ao impetuoso van Caloen a tarefa de examinar uma
restauração beneditina no Brasil. Dom Gerardo aceitou, familiarizando-se antes, durante quatro meses, com a língua portuguesa em
Lisboa. No Brasil constatou que os confrades brasileiros queriam
apenas uma assistência temporária de Beuron para dirigir um noviciado-geral. Finalmente aceitaram ceder a abadia de Olinda para
reformá-la com uma dúzia de europeus que seriam naturalizados.
No final de agosto de 1895, Dom Gerardo desembarcou em
Recife liderando uma caravana de 17 monges, conversos e postulantes, além de dois padres seculares, Moreau e Van Emelen,
e o agrônomo franco-polonês Schönowsky. Essa viagem custou
cerca de 16.500 francos belgas, pagos por Frei Domingos. Restauraram logo a clausura e o culto, despediram os empregados e
Dom Gerardo sucedeu ao abade Botelho. Os três primeiros anos
foram desanimadores pelas dívidas encontradas e pelos conflitos
com as autoridades sobre os regulamentos higiênicos e sobre uma
escola técnica, aberta e logo fechada em 1897. Nas suas igrejas
dependentes de Prazeres e de Nossa Senhora do Monte tornou-se
penoso disciplinar as devoções populares arraigadas. Desgostavam
da liturgia dirigida por um seminarista, da música mundana, das
festas de São João e do barulho na igreja, como num ‘mercado
de peixes’. Estranhavam a superstição dos fiéis contra padres que,
montando a cavalo, faziam este animal ‘ressecar-se’. Em suas terras de Prazeres o administrador Schönowsky foi suspeito de roubo.
Aí a preguiça dos trabalhadores deixava na saudade ‘humanidade
à parte, o tempo dos escravos’. ‘Não trabalhavam antes das 7 nem
depois das 5, descansavam quanto mais podiam e pela mínima repreensão iam-se embora’. Eram desonestos e todas as padarias do
Recife se serviam do carvão roubado dos seus bosques. Religiosos
belgas e alemães se desentendiam e alguns abandonaram. Vários
adoeceram e dois morreram de febre amarela.
O clima mortífero motivou ainda mais Dom Gerardo a considerar, em 1899, a fundação, no interior mais sadio do Ceará, de
uma nova abadia, Santa Cruz do Quixadá. Esta, mais adequada
para acolher o noviciado na tradição espiritualista, começaria tudo de novo e formaria um contrapeso às abadias urbanas. O que o
visionário Van Caloen entreviu nesta primeira visita como a futura
Maredsous do Brasil, começou num casario de taipa, mas deveria
estender-se sobre dois morros. Um seria destinado a um colégio,
que se tornaria a grande instituição do Norte do Brasil. Contava
no início com a doação do terreno e o apoio da elite da província,
do bispo, do chefe local, Coronel Cravo, e com dinheiro emprestado pelo Barão de Studart.
Este êxito parece ter dado vento em popa às ambições de
Van Caloen, que se fez designar adjutor e sucessor de Dom Domingos como abade-geral da Congregação Beneditina brasileira.
Apenas chegavam mais alguns monges e ele os destinava à abadia
da Bahia e sua dependência de Brotas, que deveriam sediar respectivamente uma ‘Faculdade Metropolitana’ e um orfanato ou
escola agrícola. A abadia abriu suas portas aos feridos da Guerra
de Canudos. Em 1900 foi lançado um jornal, O Estandarte Católico, com duas edições, na Bahia e em São Paulo, destinado a
ser um equivalente do La Croix francês, com mais um periódico
para crianças, O Anjo da Guarda. Van Caloen aconselhou em
Pernambuco o prócer do paternalismo católico, Carlos Alberto
de Menezes, que, em sua fábrica de Camaragibe, queria aplicar
a encíclica Rerum Novarum e contratou freiras e padres franceses.
Recuperou também a abadia da Paraíba, cobiçada pelo bispo local, Dom Adauto. A morte em 1900 do ‘escandaloso’ abade Moreira de São Bento em São Paulo abriu o caminho do sul e dos
158
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
A abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Zevenkerken, 2011.
priorados de Santos, Sorocaba, Jundiaí, Parnaíba e Campos. Este
era seu maior opositor dentro da Congregação brasileira junto
com o frei secularizado Joaquim do Monte Carmelo, autor de O
Brazil mystificado. Acusavam os monges estrangeiros de rapacidade e de tratar os brasileiros ‘como selvagens, ignorando sua longa
história sob a cruz’. Van Caloen, entretanto, combateu sua influência e conseguiu participar do capítulo geral ao mesmo tempo
em que obteve o fim da autonomia das abadias. Na São Bento de
São Paulo, que a prefeitura queria tomar, expulsou o liquidante,
improvisou uma pequena comunidade e instalou Miguel Kruse
como prior. Este revidaria os ataques do positivista Luiz Pereira
Barreto, ex-estudante da Universidade de Bruxelas.
Faltava apenas a bela e bem localizada abadia do Rio. Quando seu ex-abade João Ramos teve seu protesto contra a invasão
estrangeira rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, Dom Gerardo entrou, junto com o abade-geral Dom Domingos, em 12 de
maio de 1903, para tomar posse. Circulavam rumores que preparavam uma futura invasão alemã e que fechariam a escola gratuita.
Aos gritos de ‘Morram os frades estrangeiros’, foram assaltados por
uma malta enfurecida de partidários do ex-abade excomungado.
O belga conseguiu escapar dos ‘200 assassinos’ por uma portinha
traseira e refugiou-se na casa do arcebispo Arcoverde. Alertado, o
presidente Rodrigues Alves enviou uma força armada sob o comando do Marechal Hermes da Fonseca para escoltar e instalar
Van Caloen como novo abade. O próprio Barão do Rio Branco
veio à rua para aplaudir sua posse. Enquanto se manteve a proteção
militar, ainda durante a Revolta da Vacina, reorganizou o culto e
a vida monástica. Construiu um novo colégio, equiparando seu
programa ao ginásio nacional e aberto ‘gratuitamente’ a mais de
500 alunos. Para fugir do grande calor comprou na Tijuca várias
casas e as transformou em um pequeno convento de vilegiatura
com escola noturna de catecismo. Assim acalmou um pouco a
hostilidade geral. Numa visita de cortesia a Rodrigues Alves, este
se declarou ‘católico de coração’, ao passo que o jornalista Carlos
de Laet defendia os beneditinos belgas.
Com a morte de Frei Domingos em 1908, Dom Gerardo tornou-se o abade-geral vitalício e nomeou outro belga, Chrysostome
de Saegher, como seu adjutor no Rio. As quatro principais abadias
estavam agora nas mãos de monges belgas ou alemães. Fez consertos em Santos e em Sorocaba, que oferecia mais tranquilidade
aos noviços de São Paulo. Em Campos reanimou a presença beneditina na Fazenda de São Bento e no santuário de Santo Amaro
com o monge Mauro Desrumaux, que abriu centros de catecismo, batizou e celebrou casamentos (Lamego, 238). Na Bahia, em
159
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
1905, arrancou Brotas das mãos dos posseiros com a promessa ao
governo de criar um orfanato ou escola agrícola.
Como se esta reconquista fosse pouca, Van Caloen pretendia
ainda missionar entre os índios. Entre outubro de 1900 e final de
1901 interessou-se pelo supracitado projeto de Leopoldo II para
uma concessão no Araguaia-Tocantins e se encontrou a este respeito com o coronel Thys e com o próprio rei. Ao mesmo tempo,
em agosto de 1901, Dom Gerardo defendeu em Roma seu plano de missões entre os índios. Desarmaria as campanhas contra
os frades pela utilização patriótica de suas rendas. Em audiência
com o Papa Leão XIII junto com o embaixador brasileiro Augusto
Ferreira da Costa, este último manifestou seu apoio, mas o projeto não vingou. Van Caloen descartou uma oferta do bispo do
Espírito Santo para uma missão entre os botocudos e preferiu,
depois de um encontro em 1904 com o bispo de Manaus, novas
perspectivas no território de Rio Branco. No início de 1906 obteve de Roma sua nomeação de bispo coadjutor de Manaus, sendo
consagrado em 18 de abril daquele ano em Maredsous pelo bispo de Belém. Entretanto, as resistências do episcopado brasileiro
levaram a transferir este estrangeiro, bispo de Phocéa, à Prelazia
do Rio Branco, criada em 1907 como dependência direta da abadia nullius do Rio de Janeiro. Com o status de bispo, Van Caloen
foi em 1908 a Manaus conhecer a Amazônia, mas não seguiu até
Boa Vista. Os primeiros três monges chegaram lá em 1909, Dom
Acário, Dom Adalberto e Dom Boaventura, seguidos em 1911
por outros, acompanhados de um pedreiro flamengo, contratado
por três meses. Entrementes, Van Caloen não apreciou que o abade de Salvador, Dom Mayeul de Caigny, imitasse na Bahia seu
exemplo com a fundação, em 1909, de um posto entre os índios
em Angelim, no Rio Pardo.
Para dar fundamento e credibilidade a seu império beneditino brasileiro, precisava recrutar mais pessoas e assegurar-lhes um
mínimo de conforto em construções reformadas ou novas. Como
os poucos postulantes brasileiros não pareciam idôneos ou não
aguentavam a disciplina, procurou monges e noviços sobretudo
nas próprias abadias de Beuron e Maredsous. Solicitou também
as abadias francesas ameaçadas de expulsão e cogitou incorporar a
portuguesa de Cucujães. Sem êxito, apostou na criação de ‘procuras’ próprias para iniciar jovens à vida monástica no Brasil. Criou
uma em Siena e outra em Wessobrunn, na Baviera, mas a maior
e mais querida seria Saint-André, ressuscitando uma abadia medieval extinta perto de Bruges. Publicou no ‘Courrier de Bruxelles’
um apelo às vocações para o Brasil e começou, em 1899, primeiro
numa casa de sua família. Um senador aparentado, Van Ocker­
hout, doou um grande terreno em Loppem para a nova construção. Em menos de dez anos, entre 1902 e 1910, surgiu, com um
orçamento de 250.000 francos, a monumental Zevenkerken (Sete
Igrejas), com um claustro, ladeado por alas térreas de celas, uma
igreja, com torre e sinos e sete igrejas-capelas simbolizando as
basílicas romanas, das quais três realizadas. Contra a vontade de
Beuron e Maredsous, mas aprovada pelo papa para ‘servir ao bem
do Brasil’, Saint-André foi promovida como ‘o Brasil na Bélgica’.
Enquanto em 28 de abril de 1901 o jornal La Patrie jubilava-se
que ‘O Brasil fará renascer a velha abadia extinta’, o seu abade Van
Caloen dizia na sua homilia da ceremônia da pedra fundamental
‘ouvir o gemido de dor dos índios’.
A nova abadia nasceu dependente juridicamente da congregação brasileira, inclusive com um subsídio pecuniário, e adotou
mesmo o idioma português para a comunicação entre postulantes
e noviços de diversas nacionalidades. Estes eram, no início, sobretudo calabreses, já que os filhos dos camponeses da região de Bruges ‘resistiam aos apelos dos sinos’ (d’Ydewalle). Mesmo assim, desde setembro de 1899 rumaram as primeiras caravanas de monges
para o Brasil. Dos 280 beneditinos europeus, enviados entre 1895
e 1914 ao Brasil, 118 passaram por Saint-André ou foram formados
lá, na sua maioria belgas e alemães, mas também suíços, italianos
e franceses. Tem-se notícia de apenas dois brasileiros, um noviço
e um converso, Baltasar de Araújo, que faleceu em Rio Branco.
Entretanto, Van Caloen, construtor obsessivo tal qual um empresário imobiliário, deixou suas marcas no Brasil, de obras de saneamento até pinturas murais. Na abadia do Rio, joia do barroco,
este ‘vendaval’ (cf. Ramalho Rocha) reformou o telhado, instalou
iluminação a gás e água encanada, desmanchou os alpendres da
portaria, revestiu as escadas e os pavimentos com mármores – alguns falsos –, restaurou o dourado das imagens, instalou estalas
no coro, mas suprimiu nas celas dos monges os aprazíveis bancos
de cantaria junto às janelas, mandou talhar na rocha uma nova
ladeira de acesso e construiu o novo Colégio São Bento. Mais tarde, a pedido do Sphan, foram parcialmente eliminadas estas intervenções no estilo barroco, que o belga abominava. Ao contrário,
deu livre curso à sua preferência pelo neorromânico à la Beuron
no claustro de Tijuca, conservado como Cela São Gerardo ou
Capela da casa de São Bento no Alto da Boa Vista. Pode também
ter influído o estilo neorromânico dos três prédios, os números
1-17, 29-33 e 51-55 da Avenida Central, construídos pelo arquiteto
Gastão Bahiana numa sobriedade eclesiástica contrastante com o
pomposo ecletismo dos outros edifícios. No entanto, Van Caloen
não recusava o modernismo e para Rio Branco encomendou, em
Hamburgo, à casa Backhome, uma igreja e duas casas em ferro
sobre planos do arquiteto Moers, que tinha desenhado o palácio
episcopal de Manaus. Foi especialmente a Hamburgo, mas os
planos não tinham chegado lá. Em sua viagem a Georgetown,
encantou-se pelas construções de madeira e planejou comprar
algo semelhante para Rio Branco.
Todas essas viagens e obras custavam evidentemente somas
colossais. Van Caloen aplicou com certeza seu próprio patrimônio e repetidas doações de sua mãe, como as destinadas ao altar
de S
­ aint-André. Para custeá-la lançou uma subscrição nos jornais e passou a coleta entre parentes, conhecidos e os brasileiros
de Paris, como os Nioaques. Uma nobre de Bruges, Peñaranda,
emprestou a juro muito baixo. Se Leopoldo II e o coronel Thys
prometeram doar cada um 100.000 francos sob a condição de
Saint-André preparar também padres para a China e o Oriente
Médio, finalmente o rei limitou-se a 5.000 francos, sem outro
compromisso. Além do subsídio anual, a congregação beneditina
brasileira foi solicitada para pagar os juros de um empréstimo e
160
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
garantir hipotecas. É bem provável que Van Caloen tenha transferido, na sua contabilidade nada transparente, recursos brasileiros, ainda mais quando em 1910 o subsídio terminou em consequência da autonomia alcançada por Saint-André em relação
à congregação brasileira. Acusações e insinuações neste sentido
circularam continuamente entre seus inimigos anticlericais como
também entre os próprios monges, que o responsabilizavam de
dilapidar as riquezas das abadias brasileiras.
Estas tinham efetivamente a reputação de serem muito ricas,
alimentando cobiças por toda parte. Somente a abadia do Rio
era proprietária de 164 casas, se bem que pequenas, antigas e em
descalabro, mais a metade da Ilha do Governador, uma imensa
propriedade em Iguaçu, terras em Maricá, Quissamã, Cabo Frio,
Campos e São João da Barra e ainda uma zona urbana em Niterói
e em Campos. Contavam com uma renda de 200 contos, que
seu predecessor Ramos dissipava com uma mesa diária aberta a
50 pessoas, banquetes e gastos de seus familiares. Bahia teria uma
renda de 60 contos, Olinda, de 40, e Paraíba, de 80 contos. Um
conto seria equivalente a 1.500 euros atuais, mas o câmbio oscilava
muito. Encontravam-se, frequentemente, aluguéis a preço muito
baixo ou pré-pagos por vários anos e dívidas sobre impostos do governo, como em Pernambuco ou na Bahia. Além disso, os belgas
subestimavam a carestia de vida no Brasil.
No Rio, Van Caloen não encontrou dinheiro em caixa e não
podia vender para prevenirem-se suspeitas. Em bom entendimento com o ministro de Obras Públicas, Lauro Müller, procurou valorizar o patrimônio graças às generosas indenizações pelas expropriações para as obras de modernização do prefeito Pereira Passos,
alguns 1.000 contos, além de terrenos na nova Avenida Central.
Investiu o dinheiro nos supracitados prédios. Infelizmente, os locatários Lloyd Brasileiro e Jornal do Brasil ficaram devendo aluguéis
na faixa de 200 contos. Outras casas continuavam vazias, ao passo
que indenizações insuficientes ou aluguéis atrasados sobre a Ilha
do Governador levaram a processos contra o governo. Na contestação sobre um terreno do Arsenal da Marinha, o novo presidente
Afonso Penna se irritou, colérico com este abade estrangeiro, que
interpretava dentro do viés belga qualquer oposição como obra da
maçonaria. As campanhas na imprensa contra os frades redobraram-se com o segundo Congresso Católico, em julho de 1908, no
qual participou um professor de Lovaina, Emiel Vliebergh, aconselhando a formação de organizações agrícolas e partidos católicos
no modelo belga. Van Caloen incitou Lauro Müller a formar uma
bancada católica na Câmara, mas este preferiu tornar-se sucessor
do Barão de Rio Branco.
Enquanto circulavam rumores de falência, propagados inclusive pelo abade Kruse de São Paulo, Van Caloen resolveu o aperto com pequenos empréstimos locais conseguidos com o Banco
do Brasil, mas a juros altos de 8%. Como o Núncio se opôs a um
grande empréstimo, foi negociar na Bélgica com a casa von Bary
de Antuérpia. Constatando que as financeiras belgas desconfiavam
de operações com ordens religiosas e hipotecas no exterior, procurou a City de Londres. Com cartas de apresentação do ministro
Müller a outro político influente, Joaquim Murtinho, e com um
Um monge brasileiro falecido na Bélgica, fotografia de 2011.
intermédiário brasileiro, G. Reidy, de Paris, e seu advogado, Leitão da Cunha, levantou do Lloyd’s Bank em novembro de 1909
nada menos que 300.000 libras esterlinas a 5% sobre hipotecas de
propriedades estimadas em 600.000 libras e a reembolsar a partir
do quinto ano em meio século.
Isto permitiu saldar os empréstimos no Brasil, mas logo surgiram novas necessidades para melhorar o ginásio e readaptar um
edifício da Avenida Central e reparar os grandes danos sofridos
entre 23 de novembro e 10 de dezembro de 1910 pela ocupação
militar da abadia e pelo bombardeio dos marinheiros revoltados na
Ilha das Cobras, além de gastos urgentes em Rio Branco. O presidente Nilo Peçanha, interessado nas terras de Iguaçu para um projeto de melhoramentos, mostrou-se mais benevolente e facilitou
novos avanços do Banco do Brasil. Indenizou a expropriação da
Ilha do Governador por 1.000 contos, mas saiu do poder sem pagar.
Assim, Van Caloen quis repetir em 1911, em Londres, um
grande empréstimo de 150.000 libras, alegando que hipotecas
contratadas no exterior dificultariam o confisco dos bens das
ordens religiosas como estava ocorrendo em Portugal. De fato,
muitos advogavam no Brasil a expulsão dos monges, ainda mais
com os conflitos em Rio Branco e no próprio Rio de Janeiro sobre a ponte para a Ilha das Cobras. Sobre esta o ministro Barão
161
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
do Rio Branco reclamou em Roma, ao passo que Van Caloen
solicitou a proteção e intervenção dos ministros belga e prussiano de Relações Exteriores. Desta vez, se Van Caloen encontrou
disponibilidade financeira do lado inglês, tardou meses a autorização do Vaticano, alertado pelas denúncias do Núncio no Rio
e de seu próprio abade adjutor, Chrysostome de Saegher. Este
cria ter descoberto o desaparecimento de 400 contos das receitas extraordinárias. Além do mais, queria restringir as atividades
do mosteiro e suprimir Tijuca, onde Van Caloen preferia residir
para escapar da hostilidade dos monges no mosteiro. Junto com
outros monges pediu a demissão de Van Caloen. Este resistiu
primeiro e defendeu, num relatório de 3 de junho de 1912, sua
gestão, salientando que deixava um patrimônio de 99 casas em
bom estado. Quis até afastar De Saegher como vigário-geral em
Rio Branco, mas o fim de seu reino onipotente estava chegando.
Se o novo Papa Pio X ainda abençoou Van Caloen, este perdeu
seus apoios tanto na Cúria vaticana como do Cardeal-Arcebispo
Arcoverde. O abade de Seckau, Dom Zeller, foi encarregado de
fazer uma visita apostólica. Enquanto o segundo grande empréstimo de Londres não se efetivava, surgiu, em 1914, com a baixa
do câmbio e a diminuição das rendas, novamente o espectro da
falência. Em desespero, Van Caloen vendeu as valiosas terras de
Maricá por apenas sete contos (Ramalho Rocha).
A animosidade por parte de De Saegher e de outros monges
devia-se não somente às suas opacas transações financeiras como
também às suas frequentes viagens e longas ausências. Van Caloen
atravessou 23 vezes o Atlântico, de preferência nos mais modernos
steamers ingleses ou franceses, em primeira classe, onde celebrava
no salão missas para a alta sociedade a bordo, enriquecendo seu
caderno de endereços. Suas repetidas viagens de trem pela Itália
e Alemanha se justificavam no seu espírito para ganhar a benevolência dos poderosos e ricos. Teve audiências com os papas e
os cardeais da Cúria, duas vezes com o Rei Leopoldo II, com os
presidentes brasileiros, de Campos Salles a Hermes da Fonseca.
Peçanha o recebeu quatro vezes em seis semanas. Aonde passava,
visitava abades, bispos, governadores e até o Lord Mayor em Londres. Frequentava o rico barão bávaro von Cramer Klett e homens
de negócios. Em almoços com diplomatas belgas tratava dos interesses econômicos da Bélgica no Brasil e lhes pedia consulados
para seus amigos. Fazia sua mãe convidar no castelo de Loppem
o embaixador Oliveira Lima ou o ex-governador de Pernambuco.
Nas longas viagens marítimas podia descansar e recuperar-se de
suas crises cardíacas. Para a cura destas foi tomar cinco vezes um
mês de banhos em Bad Neuheim na Alemanha. Gostava também
de banhos de mar, até nadar em pleno inverno na praia de Dieppe.
Em toda parte fazia compras de objetos litúrgicos e livros. Esta
intensa vida social, mundana demais e incompatível com o ideal
monástico, o afastava de seus monges, ainda mais que, no Rio, dispunha de um apartamento abacial, além de seu retiro na Tijuca.
Se nos primeiros contatos encantava seus noviços e monges,
estes, pouco depois, descobriam um abade altivo e severo, que lhes
recriminava continuamente falhas, neuroses ou outras indisposições para a vida monástica. Tratava seus secretários com aspereza.
Autocrático e algo maquiavélico, deslocava numa valsa contínua
abades e priores como peões num tabuleiro de xadrez para afastar
os críticos. Paralelamente se deterioravam suas relações com os
bispos brasileiros. Estes vieram a preferir os franciscanos a estes
potentados mitrados belgas e alemães. Van Caloen ressentia particularmente a hostilidade de Arcoverde, para quem tinha pleiteado
junto ao Papa Leão XIII o chapéu cardinalício. Acusava de chantagem o bispo da Paraíba, quando este ameaçava com o confisco
da abadia pelo governo.
Oficialmente, o capítulo geral e a visita apostólica o descriminalizaram e foi seu opositor De Saegher quem voltou à Bélgica. Mesmo assim, van Caloen sentia-se cada vez mais isolado
pelo prior e pelos outros monges e apresentou finalmente sua
demissão. Foi aceita pelo Vaticano no início de 1915, sendo que
van Caloen se ocuparia doravante somente de Rio Branco. Na
sua costumeira tática de escapatória, o bispo van Caloen já tinha
ido antes, no meio da crise em maio de 1914, tomar posse de sua
prelazia em Rio Branco.
Esta precisava mesmo de sua presença. Logo no início, em
1909, os primeiros monges se desentenderam em Boa Vista com
o chefe político Bento Brasil, que administrava para a diocese de
Manaus a grande fazenda de gado Calungá e se negou a entregá-la
junto com a contabilidade aos novos donos beneditinos (Vieira).
Sua recusa em aceitar um maçom como padrinho de batismo
envenenou ainda mais a relação com o Brasil. Sua casa foi metralhada em 10 de dezembro e os monges tiveram que fugir para
a fazenda nacional de Capela. Foram viver um tempo entre os
índios na Missão de Surumu, cuidando de ‘4.000 a 5.000 almas’,
enquanto Van Caloen obteve proteção militar através do ministro
belga de Relações Exteriores. A morte de dois monges por febre
amarela em Belém em fevereiro de 1911 prolongou a inatividade
da missão tão distante. Van Caloen foi, aliás, estudar em Georgetown, uma ligação através da Guiana inglesa, mas preferiu ainda
desta vez a rota do Amazonas. Nesta segunda viagem, em plena
crise da borracha, ficou bem impressionado como, perto de Itacoatiara, esta se superava pela valorização da agricultura. Esta redimiria, no seu entender, Manaus do seu paganismo e favoreceria
a evangelização. Assim seus monges deveriam transformar tanto
os seringueiros como os índios em meeiros, um pouco como os
agricultores nas terras de sua família perto de Bruges. Em Manaus,
visitou as autoridades e se aproximou do doutor Amoura, um dos
chefes do Serviço de Proteção aos Índios. Se opinava que Rondon
o tinha criado para contrariar a influência dos padres, preferia, no
Brasil, flexibilizar sua aversão à maçonaria e manter relações, pelo menos, desde que recebesse acesso às colônias para ensinar a
religião. Fez também as pazes com Bento Brasil e seus agregados
e cortejou outros poderosos de Rio Branco, como o comerciante
J. G. Araujo, que lhe facilitaram alojamento e transporte até Boa
Vista. Para um sexagenário doente a longa viagem em barcos sofridos, até num batelão sobre 200 bois, e o contorno a pé das cataratas se revelaram uma penosa aventura. Aguentou firme, dormindo
na rede, no barco, anotando no diário os batismos e casamentos a
realizar e os lugares para a construção de capelas.
162
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Interior da Basílica Abacial de Nossa Senhora da Assunção do Mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo.
Na sede de sua prelazia fez em julho sua entrada solene de bispo, preocupou-se com a igreja a reconstruir e consagrou o primeiro sacerdote. Ainda fez expedições pelo rio e a cavalo com ­peões
nas redondezas para sopesar o melhor lugar para a construção do
mosteiro São Bonifácio no morro São Bento e para os pastos do
gado. Nas fazendas Calungá e Capela teve enfim contato com os
índios, que pareciam ter medo do homem branco. Pretendia evangelizá-los e discipliná-los. Assim, proporcionaria uma mão de obra
abundante e regular aos agricultores das terras demarcadas. Seu
convívio pessoal se limitou a uma dúzia de curumins.
Numa noite de agosto, armando sua rede, lhe alcançou a notícia da deflagração da guerra e da Bélgica incendiada. Logo resolveu voltar ao Rio. Passando por Manaus procurou obter uma
estrada e um caminhão para contornar as cataratas do Rio Branco.
No Rio de Janeiro, se implicou numa ‘Sociedade de Melhoramentos do Rio Branco’, mas que nunca funcionou. Ainda, em 3 de dezembro de 1918, numa conferência na Sociedade de Agricultura,
publicada no Boletim da Câmara de Comércio belga no Rio de
Janeiro, advogava a valorização de Rio Branco. Além do saneamento com uma missão médica, propunha demarcar as terras, dar
títulos e repartir as grandes propriedades nacionais, dar trabalho
aos índios e mais recursos aos monges para sua catequese, e ainda
melhorar a navegação e construir uma estrada de ferro de Manaus
a Rio Branco e de Rio Branco a Georgetown. Esta era apenas
uma quimera, mais de concessionários fantasiosos que chegaram
a interessar até o grupo belga da Banque de l’Outremer. Em Boa
Vista, seu vigário-geral Bonaventure Barbier e, a seguir, o prelado
Pedro Eggerath conseguiram realizar algumas obras, uma escola,
um hospital, um jornal e uma fábrica de charque, mas um projeto em 1925 de uma Companhia agroindustrial mais ambiciosa
malogrou logo. Em 1948, os beneditinos entregaram o Rio Branco
nas mãos de uma ordem italiana.
Van Caloen regressou definitivamente à Europa em 1919 e
terminou seus últimos anos na Côte d’Azur, em Antibes, onde
construiu uma capela bizantina para os emigrados russos. Lá faleceu em 1932, não muito longe das faustuosas Villa Léopold e
Villa des Cèdres de Leopoldo II. À primeira vista, Monsenhor Van
Caloen se parece algo com um clone clerical do rei dos belgas
e famigerado fundador do Estado Livre do Congo. Nutria uma
ambição expansionista quase tão megalomaníaca e um gosto similar de construções, de viagens marítimas e balneários. Exibia,
inclusive, a mesma barba comprida do missionário, se bem que
163
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
era de estatura baixa e bem mais novo. Se Leopoldo era um convicto ensimesmado e autoritário por herança dinástica, o presunçoso Van Caloen se sentia investido pela providência divina. Esta
o acordava de noite para comunicar um encargo novo. Apenas
chegou num Ceará castigado pela seca que choveu de imediato
e tudo verdejou. Escapava de navios que naufragariam, como o
Sirio. Interpretava mortes imprevistas de adversários seus, como o
presidente Pena ou o Núncio Bavano, como sinais providenciais.
Entretanto, o diário do impávido ativista atrai alguma curiosidade, sensibilidade e simplicidade mais humana, sobretudo na
Amazônia. Em 1914, no Tocantins, o prelado vai morar dois dias
em Pinheiro numa casinha muito simples e pôs até um curativo
no pé ferido de um menino, se bem que logo pensou em levá-lo
como doméstico. Na serra de Araraquara, em Rio Branco, voltou
a ser umas horas o monge sonhador, imaginando construir seu
mosteiro num promontório em meio à natureza selvagem. Quando os confrades belgas e alemães lhe resistiam, era às vezes capaz
de humildade e obediência. Com o tempo os primeiros monges
brasileiros amansaram sua voluntariosa restauração beneditina numa espiritualidade tradicionalista.
Van Caloen tinha confiado o mosteiro de São Paulo a Dom
Miguel Kruse em 1907, um alemão de forte personalidade e empreendedor, que durante mais de 20 anos firmou-se na paisagem
religiosa e intelectual desta futura metrópole. Além de um colégio, bem frequentado e reputado, abriu em 1908 uma faculdade
com o primeiro curso de Filosofia, para o qual contratou com um
bom salário o padre belga secular Charles Sentroul, discípulo do
Cardeal Mercier, capaz de malabarismos entre o neotomismo, o
kantismo e a ciência, mas também brincalhão, apreciado até pelo jovem Oswald de Andrade, e briguento durante a guerra com
o abade alemão. Quando voltou à Bélgica em 1919, somente em
1922 reabriu o curso com outro belga, Léonard van Acker, e com
o português Alexandre Correa, dois leigos formados em Lovaina.
Em 1910, Kruse começou a construção de uma nova igreja com
o projeto do arquiteto Richard Berndl em estilo neorromânico e
decorada pelo monge de Maredsous, Adalbert Gressnigt, e por um
leigo, Adrien van Emelen, irmão do monge Amaro van Emelen.
O mosteiro do Rio de Janeiro se estabilizou sob o abade Eggerath e manteve um colégio bem cotado; ao mesmo tempo, seria o
melhor sucedido em suscitar vocações entre os próprios brasileiros
e nacionalizar seu recrutamento de monges. A abadia da Bahia
sofreu no conflito entre o arcebispo com seu abade, Dom Mayeul
de Caigny, que acabou partindo em 1912 para fundar uma nova
abadia em Barbados, Mount Saint Benedict. A de Olinda contou
mais três mortes numa epidemia de febre amarela em meados de
1904. Sob seu severo abade Peter Roeser, criou uma escola superior de agricultura e medicina veterinária, dirigida em 1927 por
Amaro van Emelen, conhecido por seus trabalhos sobre a apicultura, e mais tarde incorporada pela Universidade Federal Rural
de Pernambuco. Malogros seriam as abadias da Paraíba e, sobretudo, a de Santa Cruz de Quixadá. Esta acabou fechando devido
às secas repetidas, ao isolamento e aos altos e baixos de seu colégio em consequência de campanhas hostis em Fortaleza com sua
suspensão final em 1909. Faltou-lhe um abade de pulso, segundo
Van Caloen, uma vez que não conseguiu levar para lá o empreendedor Dom Jean de Hemptinne. O abade Lucas Heuzer não
soube aproveitar a visita do padre Cícero, e sua difamação junto
ao bispo de Crato fizeram o profeta do Cariri legar parte de sua
fortuna para os salesianos.
Quanto à abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Van Caloen a conectou em 1910 com uma nova missão beneditina em Katanga,
no Congo, que cresceu em importância uma vez que em 1912 se
deixou substituir como abade por Dom Théodore de Neve. Este
ainda solicitou ajuda pecuniária do Brasil, mas o destino brasileiro dos monges minguou pouco a pouco no horizonte em favor de
missões em outros continentes. Os poucos retornados do Brasil
cultivaram algum tempo as memórias do país, hoje quase completamente apagadas.
Os cônegos brancos e outras ordens belgas
Eddy Stols
O
s premonstratenses ou norbertinos, mais conhecidos como
cônegos ou padres brancos, prosperavam na Bélgica em meia
dúzia de abadias. Tradicionalistas tranquilos e menos intelectualizados que os beneditinos, figuravam um pouco como manda-chuvas no meio rural, mais ainda entre seus próprios arrendatários.
Em 1896 Van Caloen recomendou aos premonstratenses da abadia de Averbode o pedido do bispo de São Paulo, Joaquim Arcoverde, para que tomassem a direção de seu seminário.
Os dois primeiros, Vincent Van Tongel e Rafael Goris, chegaram em dezembro de 1896 e o bispo lhes confiou o santuário
Bom Jesus de Pirapora, interior de São Paulo, que, elevado a
paróquia, poderia em parte financiar a construção de um colégio. Este veio a ser monumental, com uma capela e a mobília
em estilo neogótico, algo destoante com o barroco tradicional
da igreja abaixo. Logo serviu também de seminário menor, que
deveria levar centenas de jovens ao sacerdócio, até 1948 quando este preparo lhes foi retirado. Paralelamente os cônegos procuravam recrutar para sua própria ordem e enviavam noviços à
abadia mãe em Averbode, até que, em 1930, criaram seu próprio
noviciado em Pirapora.
Entrementes, vieram mais religiosos de Averbode, o suficiente
para encarregarem-se em 1901 do Colégio do Espírito Santo em
164
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Vista de Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo.
Jaguarão, no Rio Grande do Sul, bem perto do Uruguai. Este teve
algum êxito e, depois da compra de um edifício maior, em 1903,
teve mais de cem alunos, mas, por falta de equiparação com o ensino estadual, fechou em 1912. Foram então abrir outro colégio
em Jaú, Estado de São Paulo, mas por falta de êxito fechou em
1968. Antes, em 1909, assumiram a pedido do Núncio a direção
de um colégio em Petrópolis, para o qual alugaram o Palácio Imperial, vazio na época.
Quando, em 1939, o edifício foi requisitado pelo governo para
instalar o museu imperial, construíram, em 1941, um novo prédio
na estrada para o Rio. Este colégio fechou em 1992. Como na Bélgica, alguns cônegos prestavam também serviço paroquial, como
na igreja de São José, na cidade de São Paulo. De 1898 a 1905
partiram de Averbode 35 religiosos, quase a metade de irmãos, que
assistiam os cônegos como marceneiros, cozinheiros, alfaiates e
domésticos. Os últimos reforços chegaram nos anos de 1950. De
um total de quase cem religiosos, a grande maioria voltou à Bélgica. As repetidas tentativas de montar uma abadia de vida regular no modelo belga se frustraram, mas resultaram finalmente na
fundação de um priorado em Jaú, elevado a abadia em 2000. Em
Pirapora já não exploram o santuário, mas mantêm sua casa para
retiros e museu de arte sacra com obras do irmão José Withofs.
Outra abadia premonstratense, ‘t Park ou Abadia do Parque,
na periferia de Lovaina, seguiu a senda brasileira a convite do bispo de Mariana, Silvério Gomes Pimenta, e, em 1898, o próprio
abade, Quirinus Nols, acompanhou os três primeiros cônegos.
Primeiro assumiram o serviço pastoral em Congonhas do Campo
(MG), que, em conflito com a mentalidade local, abandonaram
em pouco tempo. Tampouco persistiram no colégio aberto em
1900 em Sete Lagoas (também no Estado de Minas), logo fechado por falta de alunos. Finalmente, seduzidos pelo bispo de Diamantina, Joaquim Silveira de Souza, assentaram-se, em 1903, no
norte de Minas, em Montes Claros. Desta base prestavam serviços
pastorais em Bocaiuva, Morrinhos, Salinas, Januária, Tremedal,
Jequitaí e outras missões pelo Alto São Francisco. Batizaram e casaram, restauraram ou melhoraram diversas igrejas e organizaram
novas confrarias. Em Montes Claros mesmo fundaram o Colégio
São Norberto, com um observatório meteorológico, compraram
165
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Ao fundo, Santuário do Senhor Bom Jesus e Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo, 2013.
uma tipografia e lançaram o semanário A Verdade (1907-1917).
Pretendiam concentrar-se na fundação de um convento, mas não
resistiram a novos convites em 1919 para cuidar de paróquias na
periferia do Rio de Janeiro, que trocaram, em 1921, por Teresópolis. Por falta de mais padres belgas, priorizaram novamente Montes
Claros, que, com uma escola apostólica, facilitou o recrutamento
de brasileiros, a sobrevivência da ordem no Brasil e a criação recente de um priorado.
Se os premonstratenses enviaram mais religiosos que os beneditinos, seus resultados foram modestos, devidos em primeiro lugar à instabilidade de suas fundações e às contínuas viagens pelo
Brasil ou de volta à Europa. Poucos ficaram para temporadas mais
longas. Em Minas, quase como padres ambulantes, andavam por
muitos dias a cavalo e vários sofreram problemas de saúde, inclusive paludismo, com algumas mortes prematuras. Misturavam o serviço paroquial com o ensino, sem ter formação ou experiência pedagógica. Seus colégios se destacavam antes em bandas musicais
ou em teatro, como o grupo São Genesco, em Montes Claros. Em
suas cartas para a revista de propaganda ‘t Park’s Maandschrift, no
seu uso da fotografia e nos livros dos padres Thomas Schoenaers,
Drie jaar in Brazilië (Averbode, 1904), e Maurice Gaspar, Dans
le sertão de Minas (Lovaina, 1910), transparecem maior convivência e curiosidade com a cultura popular que entre os beneditinos.
Schoenaers se deixou fascinar pela cultura negra em terras gaúchas. Gaspar, um Guimarães Rosa avant la lettre, se encantou pelas andanças por serras e chapadões mineiros em caravanas com os
camaradas e pela hospitalidade generosa nas fazendas. Gostavam
dos encontros e das entradas com fogos de artifício, das congadas
de negros e de procissões, desde que as dirigissem.
Mesmo assim, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, nativo
de Montes Claros, ‘o movimento da ortodoxia romana comandado pelos padres de batinas brancas que nem se casavam, falavam
mal português e só sabiam perseguir as formas tradicionais de religiosidade popular quase matou o catolicismo em Montes Claros.
Nos espaços abertos por eles se multiplicaram o espiritismo, o candomblé e ultimamente o protestantismo, cada vez mais vigorosos’
(Confissões, Rio de Janeiro, 1997, p. 58-63). Efetivamente, algo
prepotentes, como suas aldeias flamengas, enfrentavam tradições
e líderes locais e reagiam com uma virulência, pouco brasileira,
contra protestantes e maçons. Em Jaguarão e Salinas, sustentaram
polêmicas imprudentes sobre pretensas bíblias falsas. Em Congonhas do Campo, mandaram desenterrar um maçom sepultado na
166
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Vista da fachada posterior do Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, São Paulo, 2013.
igreja. Paralelamente, seus projetos de vincularem-se à imigração
e aos investimentos belgas, como no apelo do cônego Peffer aos
industriais belgas da metalurgia, não vingaram (Peffer).
Falta examinar se a crítica de Darcy Ribeiro atinge também
as outras congregações, que enviaram padres belgas para o Brasil.
Os Missionários do Sagrado Coração de Jesus, de origem francesa, mas com um convento em Borgerhout, chegaram em 1911
como professores do seminário em Pouso Alegre (MG). Logo se
encarregaram de paróquias como a de Bauru, a partir de 1913, as
de Campinas e de São Paulo e abriram, em Pirassununga, uma
escola apostólica. Nos anos de 1950 se disseminaram no Paraná.
Já depois da Primeira Guerra Mundial, os Josefitas, uma congregação belga reputada por seus prósperos colégios, empreenderam em 1924, no sul da Bahia, em Una, uma fundação ligada
à presença de uma companhia agrícola belga. Se retiraram em
1936. Outras ordens francesas ou italianas levaram membros belgas para o Brasil como os lazaristas, dos quais alguns belgas se encontram sepultados na cripta do Colégio do Caraça, em Minas
Gerais; os salesianos no Mato Grosso, ou os barnabitas no Pará.
Estes últimos, expulsos da França para Mouscron, embarcaram
para Belém em 1903. Lá alçaram sua igreja de Nossa Senhora
de Nazaré, a basílica, e relançaram o Círio. Entre os irmãos das
escolas cristãs ou lasallistas, que saíram da França em 1907 para
organizar escolas em Porto Alegre, havia belgas, como o irmão
Justino, que partiu depois para o Congo. Ainda foi o caso entre os
maristas, que em sua escola em São Luís do Maranhão tinham,
em 1914, como diretor um irmão, Paul Berckmans, e um ‘time
belga’ de futebol entre os alunos.
167
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde
Eddy Stols
T
al qual um solitário cavaleiro andante da devoção cordimariana, abriu seu caminho o padre Julio Maria de Lombaerde
(1878-1944). Filho de pequenos camponeses de Beveren, perto
de Waregem, começou com apenas 17 anos um noviciado como
irmão dos Pères blancs na Algéria. Doente, acreditou-se curado
pela Virgem Maria e decidiu dedicar-lhe doravante sua vida. Se
fez padre na congregação francesa de vocações tardias, a Sagrada Família, que o destinou ao Brasil. Em 1912 chegou a Recife,
aprendeu o português em Natal, conheceu em São Gonçalo a
religiosidade sertaneja e seguiu, em 1913, para Macapá.
Percorreu essa região amazônica de pouca presença eclesiástica a cavalo ou de bote, relatando em crônicas Vers les Amazones
suas visitas à colônia indígena dos capuchinhos e suas observações
de cerimônias afro-brasileiras. Na cidade inventou seu método
missionário de catecismo e escola, batismos e casamentos, assistência higiênica e diversões com banda, grupo teatral e até cinema. Para atrair os negros, lançou uma confraria de São Benedito.
Às mulheres, marginalizadas numa religião popular, a seu ver,
dominada por homens, oferecia seu culto da Virgem Maria. Não
encontrando freiras para auxiliá-lo na fundação de um colégio,
organizou sua própria congregação em 1916, as Filhas do Coração Imaculado de Maria.
Já nessa época acostumou a confrontar-se com inimigos, no
caso, um farmacêutico espírita. Com a morte de uma freira e de
alunas, surgiram mais críticos, até que ele transferiu sua escola em
1923 para Pinheiro ou Icoaraci, bairro de Belém. Nesse colégio, o
Nossa Senhora de Lourdes, ainda existente, não faltou nem a réplica da gruta, construída com suas próprias mãos. Novos problemas,
talvez financeiros, e outras desconfianças, ainda não elucidadas,
levaram-no primeiro a um posto de pároco em Alecrim (RN), em
O padre Júlio Maria de Lombaerde a cavalo na região amazônica.
1926, e, depois, em 1928, a convite do bispo de Caratinga, para
Manhumirim, em Minas Gerais.
Nessa região de imigração recente, em parte alemã, entrou logo em choque com o prefeito, os protestantes, maçons e espíritas
e lançou suas diatribes num novo jornal, O Lutador, e em vários
panfletos, como O diabo, Lutero e os protestantes, distribuídos pelo Brasil inteiro. Alto, esbelto, com pequenos óculos, longa barba e crucifixo no peito – versão nórdica do padre Cícero –, este
Terror dos herejes fulminava temores escatológicos em O fim do
mundo está próximo? Em Anjo das trevas desmascara as seis pragas
finais da maçonaria, do protestantismo, espiritismo, divorcismo,
sen­sualismo e comunismo. Proteção e salvação oferecia o Coração de Maria, que acreditava estar presente junto com o filho no
tabernáculo do sacramento.
Essa devoção, algo heterodoxa, lhe inspirou a fundação de
mais duas ordens, os missionários sacramentinos e as irmãs sacramentinas. Entrementes, se revelou também um construtor incansável. Além de concluir, em 1930, a primeira igreja em concreto
armado – mas em estilo neogótico –, levantou um seminário apostólico, um hospital e o Colégio Santa Terezinha. No início teve
um sobrinho como auxiliar por três anos, o padre Hyppolite Depoorter, e em 1931 recebeu a visita do irmão Achille, missionário
na Mongólia, o outro sobrevivente de nove irmãos.
Em 1941 celebrou sua naturalização brasileira. Sua morte na
véspera de Natal, em 1944, em acidente na direção de seu automóvel, alentou seus fiéis a cultuá-lo em relíquias, livros e até numa opereta. Nos murais de seu museu aparece exaltado como um
profeta-protetor no meio de um grupo de padres, freiras e curumins. O movimento dos ‘juliomarianos’ procura sua beatificação,
desculpando seu fanatismo antiprotestante como comum a tantos
outros líderes católicos da época.
O padre Júlio Maria de
Lombaerde.
168
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
O sonho monástico de José Moreau
em Tabatinguera (Cananeia)
Eddy Stols
O
congestionamento de vocações no final do século XIX empurrou alguns sacerdotes diocesanos a procurar cargo e sustento no Brasil, como Eugène Tyck, vindo da África e ativo no Rio
Grande do Sul em 1907-1908, ou Jean-Baptiste Van Esse. Este
parece ter inspirado um colega seu de seminário, José Moreau, a
seguir seus passos. Seu atribulado percurso brasileiro – fragmentário pelas poucas cartas disponíveis – destoa da história convencional da romanização (Arquivo Saint-André; Amaeb, 2.806, IV).
Como Moreau não encontrou na Bélgica uma paróquia de
renda suficiente para sustentar sua mãe e falhou na tentativa de
fundar um convento no Congo, juntou-se, em 1895, ao abade
Van Caloen com a intenção de se fazer beneditino no Brasil. Mais
preocupado em resolver suas dívidas, deixou o noviciado e foi ganhar a vida como vigário de Iguape, no litoral paulista, um posto
já ocupado pelo compatriota Van Esse. Brigas com outros padres
a respeito de emolumentos sobre batizados e casamentos e do roubo de uma imagem de São Miguel fizeram-no mudar para Porto
Alegre em 1897, onde serviu por vários anos na paróquia de Nossa
Senhora dos Navegantes e reanimou sua famosa procissão fluvial.
Lá vieram também residir sua mãe e o irmão Adolphe, farmacêutico. Van Caloen, que se reencontrou com Moreau no Rio em 1903,
sabia que seu bispo estava contente com este padre inteligente,
mas demasiado preso às ‘affaires temporelles’. Segundo o cônsul
belga em São Paulo, era interditado de missa e teria explorado vários compatriotas ‘chamados em 1898 para uma fazenda’.
Mais do que provável, tal fazenda era a de Tabatinguará, em
Cananeia, uma área de 709 alqueires ou 2.420 hectares, que Moreau comprou, ‘com um fim humanitário’, de Maria Isabel Camargo em 3 de julho de 1897, sendo vigário em Iguape. Pelas suas
notas seria ‘vasta como metade da Bélgica, muito pitoresca, de clima
temperado e salubre, sem epidemias, outrora visitada por Martim
Afonso, rica em restos do ouro, mármore branco, sambaquis para
servir de cal de construção, madeiras preciosas, pastos para gado,
muito pescado, inclusive lagostas e ostras, muita caça como a anta,
de carne e pele parecidas com o boi, as pacas, de carne mais fina
que o porco, e até pássaros de plumagem valiosa’.
Dizia ainda que até a abolição suas terras férteis produziam
arroz, açúcar, mandioca, feijão, algodão, tabaco e até trigo, mas
com a falta de braços estavam abandonadas. Os proprietários teriam migrado para a cidade e seus moradores viviam da pesca à
espera de um novo empresário. Assim a fazenda tinha comunicação fácil e podia sustentar uma comunidade numerosa. Cananeia
não seria tão isolada: havia quatro vezes por mês um vapor de
passagem e correio terrestre três vezes por semana. Tabatinguará
se encontraria a quatro horas de canoa, que um pequeno vapor
reduziria a uma hora.
Depois do malogro com os belgas, e queixando-se de ‘inimigos
maçons e protestantes’, Moreau esperava vender a uma congregação religiosa a metade dessa propriedade e utilizar o dinheiro na
exploração do resto pelo irmão. Sua oferta ao abade Van Caloen,
em 1899, para estabelecer uma comunidade ‘num lugar mais
sadio que o Ceará’ foi descartada, mas logo pensou nos monges
olivetanos ou trapistas. Talvez tivesse conhecimento de um projeto anterior quando, em 1858-1859, o governo do Império aceitou
uma proposta do superior trapista belga Van State para abrir um
ou dois estabelecimentos coloniais no Brasil, que, a exemplo da
Bélgica, exerceriam uma boa influência sobre seus vizinhos lavradores (Relatório do Império). Além das passagens, receberiam
terras perto da colônia militar de Pimenteiras, em Pernambuco,
mas sua vinda não se concretizou. Em maio de 1903 Moreau
se encontrou, na França, com Dom Chautard, que estava procurando para onde transferir seus monges da Abadia trapista de
Sept-Fons, ameaçados de expulsão pela Loi Combes. Conseguiu
seduzí-los a vir para Cananeia, mas, uma vez lá, os monges julgaram o lugar isolado demais.
Nova ideia sua, exposta numa ‘Notice sur le domaine de Tabatinguará’, de 14 de julho de 1905, era doar a propriedade ao rei
belga Leopoldo II como uma ‘colonie congolaise’, onde religiosos
belgas educariam umas 20 crianças para tornarem-se colonos no
Congo. Leopoldo II tampouco aceitou. Em 1909, Moreau voltou
a procurar imigrantes belgas, mas sem a confiança do cônsul de
São Paulo, Robyns de Schneidauer, que o conheceu nesse mesmo
ano em Porto Alegre, ‘possuído pelo espírito mercantil’. Pouco
depois, foi à Bélgica buscar a filha do irmão, que agora atuava como médico e farmacêutico em Garibaldi (RS). Numa inesperada
peripécia, em agosto de 1911 estava em Recife (PE) de partida
para ocupar no Congo o posto de pároco em Elisabethville. De
lá, publicou efetivamente cartas no Bulletin des Oeuvres et Missions Bénédictines au Brésil de 1911-1912. No início da Primeira
Guerra Mundial, reapareceu como vigário em Bananal (SP), procurando dinheiro e subsídios para buscar órfãos e agricultores na
Bélgica, França e Inglaterra. Neste sentido pressionou, em carta
de 27 de outubro de 1914, o ministro belga das colônias, que conhecia de Elisabethville, com uma proposta sobre Tabatinguera,
mas este a julgou pouco séria.
Em mais um episódio misterioso, Moreau subscreveu em setembro de 1917 uma carta, enviada de ‘Nova Lerina’ – sem dúvida sua fazenda de Tabatinguera –, como ‘père Marie Honorat
Moreau, o. cist.’ Pelo visto, convenceu finalmente um outro abade trapista, Patrice Léron, de Saint-Honorat na Ilha de Lérins,
na Costa Azul, a instalar uma filial em Cananeia. Dom Patrice
morreu pouco depois, mas, em 1918, Moreau dizia continuar
169
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
sua obra como ‘superior’. Após ter recebido um padre de coro
e dois conversos, planejou ir a Lérins para fazer sua profissão
eterna, mas a saída de ‘dois falsos irmãos’, a falta de noviços e a
‘caixa vazia por causa de um traidor’ fizeram periclitar seu mosteiro. Pensava sacar novos fundos de uma ‘Piedosa Liga para o
Livramento das Almas do Purgatório’, que se estabeleceria no Brasil inteiro, em Campinas (SP), em Minas e no Piauí, talvez até
em Rio Branco. Para construir uma igreja dedicada às Almas do
Purgatório, servida pelos cistercienses, pediu o apoio a seu velho
conhecido Van Caloen, que o convidou a vir descansar com ele.
Em janeiro de 1919 estava em Dakar a caminho de Lourdes. Desta vez conseguiu atrair jovens belgas escapados da guerra, como
o futuro poeta Géo Libbrecht, mas estes logo se desencantaram
e abandonaram Tabatinguera.
Pouco depois, em 29 de abril de 1921, o novo abade de Lérins
se queixou a Van Caloen que Moreau conseguira captar a confiança de seu predecessor abade Patrice por pelo menos 60.000 francos
em numerário e mais um material considerável. Destinou o dinheiro para melhorar sua propriedade e estava vendendo o material.
Mesmo assim, em 18 de maio de 1921, Moreau seguiu usando o
hábito branco cisterciense e recolhendo inscrições para sua piedosa
liga. Desvanecido o sonho monástico, teve que assumir novos cargos paroquiais em Porto Ferreira e Rio das Pedras, cidades de São
Paulo, onde teria terminado a vida e provavelmente está sepultado.
A Trapa Maristela (1904-1931)
J o s é E d ua r d o M . M a n f r e d i n i Jú n i o r
A
Trapa Maristela foi um mosteiro da ordem cisterciense da
Estrita Observância, mais conhecida como ordem trapista,
fundado em 19 de agosto de 1904 na cidade de Tremembé, Estado de São Paulo. Seu fundador foi o abade Dom Jean-Baptiste
Chautard, responsável pelos mosteiros franceses de Sept-Fons e
Chambarand.
Em 1903, as ações da Terceira República francesa contra a
Igreja e as ordens religiosas se acentuaram, fazendo com que Dom
Chautard passasse a procurar um refúgio para os monges em caso
de expulsão. Concentrando suas buscas na Europa, não obteve
sucesso. Incentivado pelo abade Moreau, de origem belga, dono
de uma propriedade em Cananeia, litoral sul de São Paulo, Dom
Chautard veio para o Brasil, mas descartou essa propriedade (Audrá, 1951, p. 35-36).
No início de 1904, foi escolhida em Tremembé a antiga e falida fazenda de café ‘das Palmeiras’, cuja extensão ia das margens
do Rio Paraíba até a encosta da Serra da Mantiqueira. Em maio
daquele ano, a propriedade foi comprada pelo conde francês Henry de Legge, com quem os monges fizeram uma sociedade que
contava com a participação de alguns brasileiros. Em 1906, foi
fundada em Londres, pelo Conde de Legge, a ‘Companhia Palmeiras Limitada’, que passaria a contar com acionistas ingleses.
Entretanto, coube aos trapistas administrar e explorar a fazenda
de pouco mais de 2.500 hectares.
Em 1905, a Trapa Maristela passou a produzir arroz na várzea – numa área chamada de Berisal –, pelo sistema irrigado por
inundação. A partir da Trapa, a rizicultura se expandiu por toda
a extensão da parte paulista do Vale do Rio Paraíba, fazendo com
que a região se tornasse uma grande produtora desse cereal. Na
fazenda, a rizicultura era acompanhada da criação e seleção de
diversos tipos de animais, da produção de café e de vários tipos de
frutas, além de mel, vinho e cerveja. Com isso, a Maristela passou
a ser considerada um polo agrícola de referência para o governo
brasileiro, uma vez que ele vinha incentivando a policultura como meio de diminuir a produção de café. Para Tremembé, por
exemplo, a produção de arroz traria, pela influência dos monges,
a construção do desvio da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Contrariando as orientações do governo de importar mão de
obra europeia, para branquear a população brasileira, optou-se por
empregar o trabalhador nacional. Mão de obra barata e de fácil
exploração, contudo marginalizada pela elite. No início, foram
empregados cerca de 500 trabalhadores, entre homens, mulheres
e crianças. Muitos destes já se encontravam na fazenda quando
os monges chegaram e, na sua maioria, eram ex-escravos (Gaffre,
1912, p. 293). Posteriormente, o número de trabalhadores diminuiu para cerca de 300, variando de acordo com a necessidade
das atividades desenvolvidas.
Seguindo as orientações da encíclica Rerum Novarum, do Papa
Leão XIII, a comunidade religiosa e a Companhia proporcionaram aos trabalhadores uma série de ‘benefícios’, como meio de
aumentar a produtividade e o lucro, além de colocar em prática
o que a Igreja pregava. Na década de 1910, a Trapa Maristela se
tornou também uma referência na utilização da mão de obra nacional (Limongi, 1916, p. 367), aumentando, ainda mais, o fluxo
de visitas oficiais dos governos estadual e federal.
Em 1925, com o alto custo da produção de arroz e sob a pressão da Ordem, que havia decidido fechar os mosteiros que não
tivessem conseguido vocações locais, decidiu-se vender o Berisal.
No ano seguinte, os monges começaram a retornar à Europa em
pequenos grupos. A princípio, o destino era Portugal. Mas, devido
à reconstrução da abadia de Orval, parte dos monges foi enviada
para a Bélgica, onde, certamente, foi empregado o dinheiro da
venda do Berisal. A outra parte voltou para Sept-Fons. No fim de
1928, a comunidade de Orval já contava com 28 religiosos.
Em 1931, a parte alta da fazenda, onde se localizava o mosteiro, foi vendida pela Companhia a um grande industrial de
170
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Taubaté, Mario Boeris Audrá, por 150 contos de réis. Já os animais, os maquinários, as ferramentas, os móveis, dentre outras
benfeitorias, foram vendidos pelos monges a Audrá por 160
contos de réis.
Destarte, o último grupo de monges retornou à França, ficando apenas um monge em terras brasileiras, o holandês irmão
­Leonard Van Lier, que se transferiu para o mosteiro de São Bento,
na cidade de São Paulo, onde faleceu em janeiro de 1948. Em
suma, a Trapa Maristela foi uma referência durante os 27 anos de
sua existência, proporcionando a Tremembé e à região grandes
avanços econômicos e sociais.
Atualmente, a parte alta da antiga Trapa Maristela, particularmente o local onde era o mosteiro, é a sede de um hotel fazenda.
Já no Berisal, conserva-se a capela construída pelos monges em
1917, e ainda pode-se ver, em estado de grande deterioração, o solar construído em 1908 para abrigar os monges que gerenciavam a
produção de arroz, que ainda continua vigorosa em toda a região.
José Eduardo Manfredini Júnior, graduado em História pela Universidade de Taubaté (Unitau), é professor de História na rede municipal de ensino de Taubaté-SP e na rede pública de ensino do Estado
de São Paulo.
Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro
Peter Heyrman
A
abadia trapista de Orval (Vale de Ouro) se situa efetivamente
num vale pitoresco e fértil no sudeste da Bélgica, a pouca
distância da fronteira com a França, na região da Gaume, que
goza de um microclima de temperaturas em média mais altas
que nas Ardenas. Nos últimos anos sua fama cresceu bastante
graças à cerveja que produz desde 1931, em quantidade limitada.
Entre as seis cervejas trapistas belgas reconhecidas, é apreciada
pela sua qualidade artesanal, pelo menor teor de álcool e por seu
gosto mais seco.
A abadia de Orval tem um longo e perturbado passado. Sua
fundação dataria de 1070, em plena guerra de investidura. Os primeiros monges, beneditinos italianos, preferiram logo voltar para
o sul mais quente. Em 1132 chegaram os primeiros sete monges
cistercienses, enviados e talvez acompanhados por seu fundador,
Bernardo de Clairvaux. Orval foi a primeira fundação desta ordem
nos Países Baixos. Nos séculos seguintes a abadia aumentou progressivamente suas terras de exploração agrícola e suas fundições
de ferro se destacaram entre a metalurgia europeia. A abadia participou ativamente dos movimentos de reforma da ordem depois
do Concílio de Trento e adotou desde 1593 as regras severas da
‘estrita observância’. Bastante exitosa, Orval contava 130 monges
em 1723. As rendas crescentes da comunidade foram investidas
desde 1760 em um imponente conjunto abacial, projetado pelo arquiteto ‘ilustrado’, Laurent-Benoît Dewez. Entretanto, este
nunca se concluiu, porque foi pilhado e destruído em 1793 pelas
tropas revolucionárias francesas. A comunidade fugiu e as terras e
as ruínas foram vendidas pelas autoridades francesas.
Durante o século XIX, período do revival religioso, numerosas
comunidades religiosas conseguiram reocupar suas antigas fundações, mas não foi o caso de Orval. A abadia trocou várias vezes de
proprietários, que exploraram sem vergonha as ruínas como pedreiras. Estas, no meio da floresta, atraíam cada vez mais turistas,
ainda mais depois das visitas de Victor Hugo em 1862-1864. Foi
publicado em 1913-1914 um decreto de proteção, dando início
A abadia de Orval, no sudeste da Bélgica, vista do cláustro e da torre da igreja.
às primeiras obras de restauração. Este interesse público se devia
em boa parte ao pároco da aldeia vizinha de Villers-devant-Orval,
171
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
trução e um dos líderes do movimento católico das classes médias na Bélgica antes da Primeira Guerra Mundial. Em agosto de
1914, este celibatário de 40 anos se apresentou como voluntário e
fez uma carreira militar notável na frente de batalha do Yser. Em
novembro de 1918 voltou a Gand como tenente e famoso herói
de guerra e retomou seu compromisso social e político. Dispunha de diversas e largas redes de amigos e de bons contatos na
ala direita do partido católico. Como ex-combatente desfrutava
efetivamente de boa reputação na corte. Podia ambicionar um
mandato no parlamento. Mas em 30 de outubro de 1919, Van
der Cruyssen surpreendeu amigos e inimigos por sua repentina
partida de Gand. Umas semanas mais tarde soube-se que entrou
na La Grande Trappe em Solignies (Normândia). O noviço de
45 anos recebeu o nome de Marie-Albert e foi ordenado padre
em dezembro de 1925. Em razão de sua experiência profissional, o novo monge foi encarregado pelo abade Jean-Marie Clerc
(1882-1971) dos problemas materiais (cellarius).
Os dois visitaram em 8 de maio de 1926 as ruínas da abadia
de Orval. Se entenderam também com os proprietários do antigo
complexo abacial, a família de Harenne. Esta tinha pouco antes
contatado a abadia de Solignies. Seu desejo de devolver a controvertida propriedade à ordem se relacionou logo com os planos
de reconstrução da abadia e, levando em conta o passado de Van
der Cruyssen, lhe foi confiado o dossiê. Ele formou, em 8 de julho de 1926, com alguns bons amigos de Gand, uma sociedade
sem fins lucativos. Onze dias depois a família de Harenne doou
sua propriedade a essa entidade jurídica. A iniciativa já correspondia à necessidade de um lugar para os monges de Sept-Fons,
que regressavam do Brasil. Em 6 de novembro foi acertado definitivamente que os monges de Maristela alojar-se-iam em Orval
e que Sept-Fons forneceria também o indispensável para formar
a nova comunidade.
A reconstrução de Orval foi uma empreitada impressionante,
dirigida por Marie-Albert Van der Cruyssen de maneira enérgica, mas nem sempre correta. Van der Cruyssen mobilizou para
o projeto todos os seus contatos de negócios e de amizade. Sabia
recolher dinheiro em todas as partes. Começou uma exitosa cervejaria (1931) e uma queijaria (1932). Mobilizou a nobreza e a
casa real e sabia, com pregações, festivais de todo tipo, venda de
selos e uma equipe de ajudantes voluntários muito ativos, envolver quase toda a comunidade católica belga nessa iniciativa. Orval
foi, ao lado da basílica de Koekelberg, em Bruxelas, sem dúvida o
projeto católico mais presente na mídia no período entre as guerras. Realizou um conjunto monumental numa estética moderna.
Renomados artistas belgas, como Albert Servaes (1883-1966) ou
Oscar Jespers (1887-1970), foram convidados. A colaboração entre
Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes (1876-1944) foi decisiva em todo o projeto.
Van der Cruyssen, bastante ocupado com o projeto de construção e seu financiamento, se encontrava frequentemente em
Bruxelas e seu nome aparecia também, nos anos de 1930, em
muitos dossiês políticos. O bem-estar de sua jovem comunidade
religiosa o preocupava bem menos. Esta nunca contaria mais de
Marie-Albert Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes na Abadia de Orval.
Nicolas Tillière (1845-1916), que organizava peregrinações e comemorações para o culto de Nossa Senhora de Orval e escrevia
poesias românticas sobre o lugar, seu profundo significado religioso e seu trágico passado. O tema da abadia, mártir da violência
revolucionária, cultivado nos meios católicos conservadores.
Tillière esperava o regresso dos cistercienses e uma primeira
ocasião se apresentou quando, em 1901, o abade Jean-Baptiste
Chautard (1858-1935), da trapa de Sept-Fons, se informou sobre
o estado das ruínas. Ele procurava um bom lugar para fundar um
priorado. O ambiente na França de crescente anticlericalismo – o
Combismo – incitava a comunidade de Sept-Fons a emigrar para
o exterior. Seus correspondentes belgas divergiam a respeito da
excelente localização, da habitabilidade das ruínas e do potencial
econômico e religioso da região. Assim, Chautard começou a prospectar outras localizações na Escócia e na Polônia, mas decidiu-se finalmente pela fundação de um priorado no Brasil. Em 19 de
agosto de 1904 a abadia de Sept-Fons enviou um pequeno grupo
de monges para Tremembé, perto de Taubaté, no Estado de São
Paulo. Lá fundaram o mosteiro de Nossa Senhora de Maristela,
que não se revelaria um êxito vocacional.
Na mesma época em que Chautard decidiu chamar a comunidade de Maristela de volta, o dossiê do destino das ruínas de
Orval avançou de novo. E, desta vez, a ‘ressurreição de Orval’
prosseguiu. A figura central nesta história foi o gandense Karel
Van der Cruyssen (1874-1955), empresário de decoração e cons-
172
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
58 membros, em desproporção com o monumental conjunto
levantado. Os primeiros monges chegaram em 11 de março de
1927. De Sept-Fons partiram finalmente 14 religiosos para Orval, de Maristela vieram 20 padres de coro e irmãos. Em 28 de
setembro lhes foi instalada uma capela de São Bernardo e, em
dezembro de 1927, um noviciado. No início, os monges moravam em condições precárias no prédio da portaria. Somente em
1928 pôde a comunidade ocupar um edifício próprio, onde se
situaria mais tarde o noviciado.
Na comunidade surgiram tensões tanto entre os padres de coro
e os irmãos como entre os grupos de diferentes origens, os franceses, os ‘brasileiros’ e as vocações belgas. Muitos monges criticavam
o prior sobre como sua vida dedicada a Deus podia conciliar-se
com o barulho do gigantesco canteiro e as frequentes visitas de
turistas e personalidades. Por isso o prior Van der Cruyssen e o
abade Chautard entravam frequentemente em conflito. Depois do
falecimento deste último, em dezembro de 1935, a comunidade
foi desligada da matriz de Sept-Fons, o que abriu caminho para a
consagração, em maio de 1936, de Van der Cruyssen como abade da ‘ressurrecta’ abadia de Orval. Se a maior parte dos monges
vindos de Sept-Fons voltou para a matriz, aqueles regressados de
Maristela parecem ter ficado todos em Orval.
Peter Heyrman é doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
do Kadoc – Centro de Documentação Católica da Universidade de
Lovaina.
Os colégios das freiras belgas
Eddy Stols
T
anto Van Caloen como os premonstratenses do Park empenharam-se bastante para trazer congregações femininas ao
Brasil. As primeiras, solicitadas pelo bispo de Gand, Stillemans,
foram as Irmãs de São Vicente de Paulo, de Gijzegem, perto de
Aalst, ou vicentinas. Doze freiras, recebidas em Recife por Van
Caloen, em maio de 1896, instalaram-se no convento da Conceição, salvo a madre superiora, que caiu no desembarque e teve que
voltar. Abriram uma escola primária e profissional, um orfanato
e intervieram numa epidemia de varíola. Já em 1897, a convite
do Bispo Arcoverde, de São Paulo, as primeiras se deslocaram
para lá. Patrocinadas por Monsenhor Passalacqua e sua família,
instalaram uma Casa Pia no bairro de Santa Cecília, cuidaram
do instituto oftalmológico do doutor Pignatari para imigrantes
na Vila Mariana, abriram escolas paroquiais e externatos, um
dispensário e um asilo. Uma irmã contagiada pela lepra teve que
voltar à Bélgica.
Como conseguiram rapidamente recrutar jovens brasileiras,
começaram, em 1911, um noviciado na Penha que se tornaria sua
sede principal e até monumental no Brasil. Enquanto em 1915
deixaram Olinda, expandiram a partir de 1914 suas atividades para
outras cidades paulistas, Mogi das Cruzes, Jundiaí, Pindamonhangaba, Santos e São Roque.
Em 1927 entraram em Mato Grosso, nas cidades de Bela Vista, Aquidauana e Miranda, onde trabalharam em escolas e em
catequização nos aldeamentos. Para tudo isso receberam reforço
da Bélgica, com mais de 50 irmãs até 1956, das quais restavam
sete em 1975. Naquele ano, contavam com 266 freiras brasileiras,
depois de ter recrutado desde 1910 mais de 550 moças, um êxito
notável, ainda mais que durante muito tempo não aceitavam negras, mulatas, filhas naturais ou de pais desquitados. Às noviças
brasileiras custava aceitar a língua francesa, receber pouca água
para a higiene, ter a cabeça raspada careca e vestir muitos metros
de saias, além das longas rezas para santos belgas e de não falar
com protestantes.
Quase simultaneamente chegaram em Olinda outras freiras
belgas, as Damas da Instrução Cristã, que se notabilizaram por
escolas mais elitistas. Foi o caso da terceira congregação a desembarcar no Brasil, em dezembro de 1906, as cônegas de Santo Agostinho ou Damas de Jupille – nome de sua matriz belga.
Forçadas pela concorrência dos pensionatos abertos por freiras
francesas exiladas, cogitaram a expansão no Brasil, sempre com
a mediação de Van Caloen. Este julgou as cinco primeiras como
muito ativas e de boa instrução. Elas receberam logo reforço e,
em 1907, compraram em São Paulo, da família Uchoa, sua Vila
para abrir um internato.
Este colégio Des Oiseaux ganhou rapidamente boa reputação
entre as elites paulistas tanto pelo requinte das regras numa casa
art-nouveau do arquiteto Victor Dubugras como pelo bom nível
da educação intelectual. Também Santos ganhou, em 1924, um
colégio desse tipo, o Stella Maris, e em 1933 as cônegas lançaram até mesmo a Faculdade Sedes Sapientiae, com prédio próprio
projetado por Rino Levi em 1941, incorporada à Pontifícia Universidade Católica em 1971. Fomentavam entre suas alunas mais
ambição intelectual do que costumeira e algumas, como Ruth
Cardoso e Marta Suplicy, se destacaram na vida pública. Conseguiram também recrutar moças brasileiras de boa família como
religiosas, algumas famosas como Madre Cristina, pioneira da psicanálise, e Ivone Gebara, teóloga feminista, capaz de enfrentar o
conformismo da hierarquia brasileira.
Dentro desta ordem serviam abaixo das cônegas também diaconisas, encarregadas dos serviços materiais. Uma delas, Irma
Jehaes, uma limburguesa, chegada ao Brasil em 1934, ficou famosa como a Madre Aline dos pobres. Fundou uma creche no bairro
afastado de Itaquera para os filhos de mães trabalhadoras, susten-
173
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
tada com donativos. Com o prêmio ganho por volta de 1960, no
programa O céu é o limite, de João Silvestre na TV Tupi, Madre
Aline decorou a vida do Papa Pio XII.
Monitoradas por premonstratenses do Park, chegaram em
Montes Claros em 1907 as quatro primeiras irmãs do Sagrado
Coração de Maria de Berlaar, que já tinham experiência de ensino e uma primeira missão no Congo. Sua nova escola pretendia,
segundo advertia o jornal A Verdade dos premonstratenses, ensinar
as moças ‘alguma coisa mais do que biscoito de goma, bôlo sovado,
bolo de arroz e outras saborosas mas antiquissimas guloseimas: português, francês, aritmética, geografia, desenho, bordados, flores de
pano e pintura aquarela’. O preço, de 5.000 réis para as externas,
de 35.000 para as internas e de 3.000 para o curso Froebel, era alto
demais e a escola acabou sendo fechada pouco depois.
Chegando mais irmãs, tentaram uma escola em Januária
(MG) em 1914, mas também abandonada em 1918. O bom fôlego veio somente em 1919 com o convite para abrir um colégio
em Araguari, Minas Gerais, com internato para a boa sociedade
do Triângulo Mineiro e mais uma escolinha modesta para crianças
pobres, um patronato e um asilo. Sob a enérgica superiora Blandina seu êxito estimulou a criação de mais colégios em Montes
Claros (1927), Patrocínio (1928), Belo Horizonte (1941) e Pará
de Minas (1942), enquanto sua escola normal preparava moças
para o trabalho profissional.
A congregação Dames de Saint-André, de Ramegnies-Chin,
perto de Tournai, se engajou no Brasil através dos contatos do jesuíta português Antonio de Menezes com o bispo de São Carlos.
Este enviou um cheque e assim as cinco primeiras damas chegaram em fevereiro de 1914. Uma síntese de seu diário, hoje per-
dido, oferece uma crônica saborosa da intrusão de freiras belgas,
algo altivas, na simplicidade material e na complexidade política
do interior de São Paulo (Quelques notes ...).
Bem recebidas, mas com alguma curiosidade sobre suas vestimentas diferentes, estranharam a improvisação, as mulheres sem
chapéu na igreja, a simplicidade do palácio episcopal e da catedral
e as promessas financeiras incorretas. Com quase nada preparado,
abriram o colégio em três casas pequenas sem conforto algum, mas
felizmente apareceram somente 16 internas, em vez das 50 previstas. Com alguma valentia as freiras se emanciparam dos olhares
dos inspetores locais, ao mesmo tempo em que pressionavam as
alunas e seus parentes para uma prática religiosa regular.
Erguendo a partir de 1922 um prédio próprio, suficiente para acolher mais internas, ficou difícil entrar na posse real da boa
área doada e fazer chegar da Bélgica os materiais de construção.
Problemático foi também o reconhecimento legal de sua escola
normal em 1928. Para a solução ajudaram um padre português
expulso de sua terra e o chefe político local. Apesar dessas dificuldades dos primeiros anos, logo vieram convites para abrir filiais em
Araraquara (1916), em São José do Rio Preto (1920) e em Barretos
(1936), no Estado de São Paulo.
Finalmente, no Rio de Janeiro havia algumas belgas, como
madre de Potter, da congregação francesa Soeurs du Sacré Coeur
de Jésus. Esta se recolheu por causa da Loi Combes na sua filial
de Bruxelas (Jette) e lá encontrou reforços para abrir um colégio
no Rio de Janeiro em 1904.
No conjunto a presença das freiras belgas na eduação feminina não ficou muito atrás da francesa ou italiana. Outra questão a
pesquisar é sua relação com a emancipação feminina.
As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco
Marcelo Lins
J
ornal do Recife de 16 de outubro de 1896: Fundeou no Lamarão... [o] vapor inglês “Nile” de 3.425 toneladas, comandante J.
Spooner, equipagem 163. O Diário de Pernambuco da mesma data
trás a lista dos passageiros chegados de Southampton: Maria Loyola Steyaet [sic], Marie Alphose Cloes, Marie Elisabeth Dobbelaere,
Maria Barbe Duchaine, Gabrielle de Vreese, Roaslie Buyens, Livine Dirckx, Hubertine Schrooten, Silvie Goethals. Quando o Nile
lançou âncoras diante do porto de Recife naquela quinta-feira, 15
de outubro de 1896, chegava ao fim a primeira etapa da aventura
das nove religiosas belgas através do Atlântico e iniciava-se a história das Damas da Instrução Cristã no Brasil.
No entanto, o preâmbulo desta história nos remete a 19 de
novembro de 1894, quando a Madre Ignace Pollenus, superiora-geral da ordem, atende ao convite do Monsenhor Antoine Stillemans, bispo de Gand, que leu uma carta do Papa Leão XIII, na
qual convocava as congregações religiosas dedicadas à educação
para que participassem da reforma da América do Sul, abalada pela
ignorância e imoralidade, asseverando que o melhor meio de conseguir esse fim é o de sacrificar-se pela educação e instrução cristã da
juventude (Mesquita, 1996, p. 87).
A convocação feita pelo bispo pôs nas mãos das freiras a obrigação de fundar um novo colégio, só que desta vez nas terras longínquas da América.
Mas onde na América? A resposta veio em 14 de junho de
1895, quando em visita ao convento de Dooresele, o monge beneditino de Maredsous, Dom Gerard Van Caloen, recém-nomeado
prior do convento dos beneditinos belgas de Olinda, em Pernambuco, convidou as irmãs da congregação para fundar sua escola
em Olinda, com a ajuda e proteção dos beneditinos. Convite
prontamente aceito. A convocação papal vinha ao encontro dos
apelos dos bispos brasileiros para que as ordens europeias enviassem religiosas e religiosos para ocupar os conventos e mosteiros
174
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
abandonados e ajudassem na reestruturação e romanização da
Igreja no Brasil (Lira, 2009).
No final do século, o papel tradicional da Igreja na educação,
principalmente na educação da elite, encontrava-se ameaçado pelos avanços da educação laica. Foi dentro deste contexto que as
novas congregações chegaram ao Brasil, voltando suas atividades
para o trabalho educacional e para a manutenção de escolas católicas, internatos e externatos, masculinos e femininos.
No contexto cultural lusitano, o papel da mulher estava restrito
a cuidar da casa, dos maridos e dos filhos. Voltadas exclusivamente
para os afazeres domésticos, isoladas do convívio social e submetidas à autoridade do marido, a mulher no mundo português colonial estava condenada à ignorância. No início do século XIX, a
transferência da família real portuguesa para o Brasil e o Decreto
de Abertura dos Portos às Nações Amigas trouxeram novos hábitos
para a sociedade brasileira.
Em Recife, em fins de 1811, o inglês Henry Koster nota como
as damas de algumas famílias portuguesas e inglesas recém-chegadas da Europa “davam o exemplo”, as primeiras indo a pé para
a igreja, enquanto as inglesas tinham o hábito de passear todas as
tardes. Ainda assim a educação feminina continuava direcionada
para a formação de donas de casa. A Lei Imperial, de 15 de outubro de 1827, limitava o currículo das meninas à leitura, escrita,
quatro operações, moral cristã, doutrina católica e prendas domésticas (Lira, 2009).
Só em 1875 as mulheres foram admitidas na Escola Normal,
até então restrita ao sexo masculino. Para a oligarquia brasileira os
colégios religiosos supriam seu desejo de “educar suas filhas para
a modernidade sem permitir que elas se envolvessem com as tendências negativas trazidas pela mesma modernidade” (Lira, 2009,
p. 36). Entre os anos de 1872 e 1920, 58 congregações religiosas
femininas europeias se estabeleceram no Brasil, entre elas, as Damas da Instrução Cristã, vindas da Bélgica.
Voltemos às nove religiosas belgas que sob a liderança de Madre Loyola Steyaert (1860-1943), ex-superiora de sua comunidade de Antuérpia, eram aguardadas no cais por Dom Gerard Van
Caloen. A Recife do final do século XIX tinha uma população de
mais de 110 mil habitantes. Apesar dos esforços modernizadores
das várias administrações, como a iluminação a gás carbônico,
água encanada, telégrafo e o serviço telefônico, inaugurado em
1883, para as recém-chegadas à cidade, a estação e os vagões do
trem pareciam-lhes sujos: é como se tivéssemos recuado ao menos
meio século da nossa querida Bélgica, nas palavras da madre Loyola
em seu diário (Mesquita, 1996, p. 71).
Inicialmente elas instalaram-se no convento franciscano de
Nossa Senhora das Neves de Olinda, fundado no ano 1585 e que
se encontrava desocupado. Nesse edifício funcionou o Colégio
da Sagrada Família de Olinda, primeira escola fundada pela congregação das Damas da Instrução Cristã no Brasil. As primeiras
semanas foram dedicadas a pôr o velho edifício em condições habitáveis e aos preparativos para a abertura do internato. As freiras
enfrentaram, também, os problemas de adaptação ao clima e, é
claro, a barreira da língua e dos costumes. Madre Loyola fala da
feliz decepção que tiveram, pois “na Bélgica alertaram-nos sobre
os mosquitos, mas até agora... não nos incomodam absolutamente” e o clima, apesar do calor forte, era amenizado “por uma brisa
deliciosa” (Mesquita, 1996, p. 77).
Já o português, era outro obstáculo a ser superado. Apesar dos
esforços para aprender a língua, vez por outra as irmãs viam-se
envolvidas em situações descritas com bom humor por madre
Loyola como Cenas dramáticas! Durante uma entrevista com
pais que vieram matricular suas filhas ela diz: “Eram quatro a
explicar e três a responder. Não conseguimos entender-nos! A
entrevista terminou sem ter começado”. Noutra ocasião, num
café oferecido ao vigário-geral da diocese, monsenhor Marcolino,
a irmã notou que faltava manteiga, enviou o funcionário à venda
mais próxima com uma nota escrita. Pouco depois ele voltou, e
prontamente colocou sobre a mesa um pedaço de madeira com
exatamente 300 gramas. Diante da surpresa geral, a irmã compreendeu que havia copiado a palavra errada do dicionário, provocando o riso de todos.
O Colégio da Sagrada Família de Olinda iniciou oficialmente suas atividades em 15 de fevereiro de 1897 com o ingresso de
sua primeira aluna, Filadélfia de Paula Lopes. Ao longo do ano
o número de internas foi acrescido de mais nove alunas com idades que variavam entre nove e 16 anos. O currículo pedagógico
daquela primeira turma incluía: História Sagrada, Instrução Religiosa, Francês, Aritmética, Inglês, Geometria e Português (Silva,
2012). Ao fim daquele primeiro ano letivo, o reduzido número de
internas dificultava o sustento do colégio. E esta não era a única
preocupação. Logo no início de 1898, recebem a notícia de que
o Papa havia autorizado a abertura do seminário da diocese no
Convento Franciscano de Olinda, o que significava que as irmãs
teriam que encontrar outro prédio para seu colégio. A solução, no
entanto, foi a mudança para o antigo Palácio Episcopal de Olinda,
cedido às Damas pela diocese.
Mas nem tudo eram aperreios; com o início do novo ano letivo novas alunas ingressaram no colégio. Em fins de março já
eram 19 e no segundo semestre, 34. A questão da residência não
estava de todo solucionada, o projeto era comprar o edifício de
forma definitiva e assim evitar novas mudanças inesperadas. No
entanto, a legislação não permitia que imóveis do patrimônio da
diocese fossem vendidos a congregações religiosas. Fazia-se, portanto, necessária a busca de outro imóvel para o abrigo definitivo
da residência e do colégio. Em meados de 1901, foi comprado o
sobrado da Ponte d’Uchoa, nos arredores de Recife, local aprazível, que contava com estação e linha de trem. A casa pertencera
ao comerciante Luiz Morais Gomes Ferreira, um dos fundadores
da Associação Comercial de Pernambuco e falecido em 11 de
dezembro de 1899. A nova casa tinha vários cômodos: salas de
visita, de jantar, de bilhar, copa e sete quartos e, o mais importante, um vasto terreno que permitiria os acréscimos necessários
ao crescimento do colégio.
Em 31 de julho daquele ano foi assentada a pedra fundamental do novo pensionato a ser construído no vasto terreno. Em 23
de dezembro, com o prédio já pronto, as irmãs instalaram-se de
175
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
forma definitiva na nova residência. No dia 24 foi celebrada a
primeira missa na capela do novo internato, agora denominado
simplesmente Colégio Damas. Em 1921, foi comprada a casa
vizinha que pertencia ao Barão de Casa Forte, praticamente dobrando a área de terreno.
Sob a direção de madre Loyola, as Damas expandiram-se com
a fundação de novas escolas. Em Pernambuco foram fundados
os colégios Santa Sofia, em Garanhuns (1912); Colégio Santa
Cristina, em Nazaré da Mata (1922); Colégio Santa Maria, em
Timbaúba (1922), e Colégio Nossa Senhora da Graça, em Vitória de Santo Antão (1928). Em 1931, o Colégio de Timbaúba foi
transferido para Campina Grande, Paraíba, com o nome de Ima-
culada Conceição. Em 21 de janeiro de 1967, foi oficialmente
inaugurado o Ginásio Regina Mundi, em Maringá, no Paraná.
Durante as primeiras oito décadas de Brasil, as Damas dedicaram-se exclusivamente à educação feminina, aspecto que viria
a modificar-se com a adoção do ensino para ambos os sexos em
1970. Passados 116 anos daquela pequena aventura das nove freiras
belgas que cruzaram o Atlântico a bordo do Nile, o projeto Damas
da Instrução Cristã está mais do que solidificado no Brasil. Mantendo a tradição de suas fundadoras, as irmãs Damas fundaram no
final dos anos 90, em Recife, a Universidade Damas.
Marcelo Lins é jornalista em Recife e escreve sobre a história da cidade.
Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo (1945-2010)
Eddy Stols
A
pesar dos contatos interrompidos pela Segunda Guerra Mundial e da urgente reconstrução da Bélgica, o interesse missionário pelo Brasil não tardou muito a reativar-se. Desta vez, numa
conjuntura de Guerra Fria, se articulou uma investida bem mais
ampla, implicando as dioceses e seus padres seculares, os movimentos de ação católica, como a JOC, o sindicalismo cristão, as
organizações caritativas, a cooperação institucionalizada, as organizações patronais e os líderes políticos.
O refundado partido democrata-cristão formou com seus congêneres na Holanda, França, Alemanha e Itália uma nova internacional democrata-cristã, que esperava implantar-se na América
Latina, inclusive com subsídios a partidos similares presentes na
Venezuela e no Chile. Juntos, e ainda incentivados pelos norte-americanos, como o cardeal Spellman ou a própria CIA, ergueriam uma frente católica contra o bloco comunista, que parecia
penetrar na América Latina depois da vitória de Jacobo Arbenz na
Guatemala em 1951. Um dos primeiros a alertar sobre o perigo
comunista na periferia de Buenos Aires foi um sociólogo de Lovaina, cônego François Houtart, que se faria conhecer mais tarde
por posições esquerdistas. A respeito do Brasil, foi significativo o
contato do democrata-cristão belga Auguste De Schrijver com
Alceu Amoroso Lima.
Nesse contexto, em 1953 fundou-se em Lovaina o Colégio
para a América Latina (Copal), retomando um projeto de 1895
de abrir lá, junto à abadia beneditina do Keizersberg, um seminário orientado sobre este continente. Instalou-se o novo colégio
em 1955 num antigo convento neogótico na Tervuurse Straat,
em Lovaina. Devia acolher seminaristas belgas, como também
de países vizinhos ou mesmo latino-americanos, enviados por
bispos, como Eugênio Salles e José Távora, bem relacionados
com a JOC belga. Num país predominantemente católico, certamente durante a guerra e, salvo o curto intervalo eufórico da
libertação em 1944-1947, novamente durante a Guerra Fria, a
Igreja Católica manteve seu predomínio sobre o ensino e até o
reforçou durante a ‘guerra escolar’ deflagrada pelo governo liberal-socialista em favor das escolas estatais em 1954-1958. Assim,
os colégios diocesanos e as escolas apostólicas forcejavam, matraqueando os cérebros e reprimindo a sexualidade, abundantes
vocações entre seus alunos.
Paralelamente, os conventos femininos não se esvaziavam. O
recrutamento somente diminuiu pouco a pouco a partir dos anos
de 1960 com o mercado de trabalho em expansão, a sociedade de
consumo e a liberalização de ideias e costumes. Já na Bélgica do
início do século XXI, a prática católica caiu abaixo de 10% e as
vocações desapareceram, ainda mais com o impacto dos escândalos de pedofilia.
Mesmo nos anos faustos, o Copal nunca teve muita procura
como seminário, porque as dioceses e as ordens preferiam os seus
próprios. Assim prevaleceu, sobretudo, um curso de formação de
vários meses para padres já formados, freiras e voluntários da cooperação, belgas, mas também franceses, holandeses e poloneses. A
pedido do Papa Pio XII, as dioceses belgas colocaram como Fidei
Donum padres belgas à disposição dos bispos latino-americanos.
Entre 1955 e 1983, partiram para o Brasil 115 padres, dos quais 67
belgas. Mais alguns seguiram até meados dos anos de 1990. Em
2002 o colégio foi fechado e vendido.
Em pouco tempo, a primeira motivação anticomunista se
transformou, através da descolonização traumática do Congo,
paulatinamente em terceiro-mundismo, até mesmo à esquerda
do Partido Comunista. Na Universidade de Lovaina os cursos de
sociologia, demografia e economia do desenvolvimento, em alta,
descobriam temas como a reforma agrária e as favelas. Nessa matéria, alguns professores aconselharam bispos latino-americanos e
montaram centros de pesquisa sociológica em Bogotá e no Chile.
No que diz respeito ao Brasil, as traduções de Geografia da fome, de Josué de Castro, de Barracão, de Carolina de Jesus, e dos
176
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
romances de Jorge Amado sensibilizaram jovens leitores belgas.
No Copal residiram por algum tempo Camilo Torres, futuro guerilheiro na Colômbia, e Gustavo Guttierez, pioneiro da Teologia
da Libertação. Esta fez prevalecer doravante a ‘opção preferencial
pelos pobres’.
Em 1970, Hélder Câmara, bem relacionado com o cardeal
belga Suenens, recebeu em Lovaina um doutorado honoris causa,
pregando um outro ‘socialismo humano’. Seguiram mais doutorados para Paulo Freire em 1975, Oscar Romero em 1980, Aloíso
Lorscheider em 1982 e Jon Sobrino em 1985.
Jovens idealizaram a revolução cubana de Castro, a morte de
Guevara, mais tarde as de belgas na guerilha em El Salvador e na
Guatemala. Na análise desta radicalização poderiam entrar tantos
acontecimentos e fatores, desde uma pitada de nacionalismo flamengo – que reconvertia sua aversão à cultura latina em rejeição
ao imperialismo ianque – à chegada de refugiados latino-americanos ou, até, conflitos íntimos como aqueles descritos pelo ex-seminarista Conrad Detrez no romance L’herbe à brûler. Tanto
a secularização como o consumismo da sociedade belga empurraram jovens inconformados numa fuga escapatória, com a ilusão
de que o Brasil estivesse ainda a salvo desses males.
No Brasil os padres belgas se dispersaram pelo país inteiro, do
Maranhão até o Paraná, mas se concentraram mais no Nordeste, particularmente na Bahia. Alguns eram recém-formados, outros tinham mais idade e experiência ou mesmo uma formação
profissional como agrônomo. Como vigários, tomaram conta de
paróquias e engajaram-se nas comunidades eclesiais de base, na
pastoral da criança, da juventude, das equipes de casais, da terra
e das prisões. Construíram casas e centros comunitários, creches,
jardins de infância e escolas profissionalizantes ou agrícolas, às
vezes com o apoio de uma retaguarda de simpatizantes na Bélgica. Alguns ensinaram em seminários e em universidades católicas. Vale registrar que um número significativo deixou a batina e
constituiu família no Brasil ou de volta, na Bélgica.
Quatro belgas assumiram a direção de uma diocese brasileira: o beneditino José Cornelis – ex-arcebispo de Lubumbashi, no
Congo – em Alagoinhas (BA), de 1974 a 1986; Eugène Rixen,
primeiro como auxiliar em Assis (SP) em 1995 e, depois, como
bispo de Goiás Velho (GO) a partir de 1998; André De Witte, como bispo de Ruy Barbosa (BA) desde 1998, e Philip Dickmans em
Miracema do Tocantins (TO), desde 2008. No âmbito da CNBB,
Johan Konings, que ensinou exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre (RS) e passou no Brasil para
a ordem jesuítica, responsabilizou-se pelas traduções da Bíblia, ao
passo que outro jesuíta, Thierry Linard de Guertechin, demógrafo
de formação, com longa vivência na favela da Rocinha, no Rio
de Janeiro, e diretor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, é
consultor em matéria do descenso do catolicismo no Brasil.
Vários padres belgas participaram intensamente da vida intelectual. Carl Laga, doutor em bizantinismo, em 1959 foi convidado para uma instituição estadual de São Paulo, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Marília, e contribuiu como titular
de História Antiga e Medieval durante um decênio para a valori-
zação desta disciplina no Brasil e a projeção de seu Departamento de História com uma revista e a primeira reunião da Anpuh
(Associação Nacional dos Professores Universitários de História).
Michel Schooyans, professor de Filosofia na PUC de São Paulo,
curioso das coisas brasileiras, colecionador de livros e de obras de
arte e ainda bem introduzido nos meios da burguesia industrial
nacionalista de São Paulo, analisou, em Le destin du Brésil, La
technocratie militaire et son idéologie (Gembloux, 1973) e Demain le Brésil? Militarisme et technocratie (Paris, 1977), crítico e
premonitório, os problemas do Brasil como potência emergente.
Entusiasta do potencial demográfico brasileiro, defendeu, de volta
à Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, posições controvertidas em matéria de ética e política populacional.
Larga repercussão teve o ensaio Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800 (Petrópolis, 1974), de Eduardo Hoornaert, que
se enquadrou a seguir, junto com José Oscar Beozzo – que aliás
estudou em Lovaina – e outros, na nova História da igreja no Brasil
(Petrópolis, 1977). Esta pretendia romper com o tradicional institucionalismo e construir uma história a partir do povo. Na prática,
Hoornaert investiu menos em novas pesquisas do que recuperou
e selecionou, num viés catequético e ainda clerical, uma religiosidade, desde sempre bastante autônoma e diversa e já valorizada
por historiadores leigos em edições de crônicas coloniais e de visitações inquisitoriais.
Em pesquisa patrocinada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Frans Gistelinck
estabeleceu em Carajás, usinas e favelas (São Luís, 1988) um
primeiro balanço crítico do Programa de Desenvolvimento do
Maranhão. A obra de Etienne Samain, que passou no Brasil da
teologia à antropologia, se apresentou no capítulo anterior. Paralelamente aos padres seculares, as congregações regulares
se empolgaram de novo pelas perspectivas brasileiras. Nos anos de
1950 os supracitados missionários do Sagrado Coração se concentraram no Paraná, formando uma quase província belga. Em 1966,
em Francisco Beltrão (PR), Jef Caekelbergh criou a Associação de
Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assesoar), particularmente ativa entre os pequenos agricultores junto com cooperantes belgas. Os Aumôniers du travail (Capelões do trabalho), que, surgidos
no final do século XIX na parte industrial da Bélgica, ofereciam
aos filhos dos operários escolas técnicas e albergues, abriram em
1963, com semelhante preocupação, uma escola com o nome de
Universidade do Trabalho em Coronel Fabriciano (MG). Quando esta foi incorporada pela diocese de Belo Horizonte, em 1976,
estabeleceram outra em Conselheiro Lafaiete, além de um seminário em Contagem, com três a quatro padres belgas.
Os missionários da ordem do Imaculado Coração de Maria
(ICM), conhecida como Scheut, do nome do bairro de sua sede
em Bruxelas, dirigiram-se sobretudo à China, às Filipinas e ao
Congo. Expulsos da China por Mao e com dificuldades no Congo independente, aumentaram sua presença na América Latina,
onde já tinham missões no Haiti (1944), na Guatemala (1955) e
na República Dominicana (1958). Em 1963, tomaram conta de
paróquias em Nova Iguaçu e, logo depois, em Volta Redonda e
177
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Itabira. Receberam assistência de freiras também da Scheut e de
algumas Grauwzusters de Roeselare. Estas, com muito pouco preparo social, ficaram desnorteadas com os contrastes brasileiros,
mas pouco a pouco se engajaram em projetos sociais, inclusive
em Marabá (PA), em 1979. Com a queda das vocações belgas,
Scheut trouxe para o Brasil filipinos e outras nacionalidades. Um
dos belgas, com 32 anos de experiência no Brasil, Gaby Gheyssens
foi escolhido em 2013 como vigário-geral para a reestruturação
mundial de sua ordem.
Outras freiras integraram a ofensiva evangelizadora a partir de
1952-1953, como as Filles de la Croix de Liège em São Paulo e as
Filles de Notre-Dame du Sacré-Coeur de Bruxelas ou mesmo as
contemplativas, beneditinas de Schoten em Ribeirão Preto (SP)
e clarissas de Flandres oriental em Porto Alegre. As Zwartzusters
ou irmãs negras agostinianas de Bruges escolheram a Bahia em
contatos com seu arcebispo, Eugênio Salles. Depois de um estágio no Copal, as duas primeiras tomaram conta da paróquia São
Gonçalo do Retiro, em Salvador, em 1966. A partir de casinhas,
como a Casa da Paz, trabalharam com clubes de mães e centros
comunitários, com ensino e enfermaria, e souberam, assim, ainda
mais pelo seu nome de Irmãs negras, atrair moças negras ou mulatas como noviças. Logo pensaram em expansão, primeiro para
Maragojipe (BA) e depois para Ruy Barbosa (BA) e Oiticicas, no
Ceará. As freiras brasileiras começaram a participar dos capítulos
da congregação em Bruges, prontas a repovoar e rejuvenescer os
conventos belgas.
Este abrasileiramento ocorreu também com ordens já presentes no Brasil desde o começo do século XX e em franca expansão. As Dames de Saint-André, ou irmãs de Santo André, se
disseminaram por São Paulo e até em Recife. Um terço de sua
congregação no mundo é brasileira. As irmãs do Sagrado Coração de Maria de Berlaar recrutaram uma centena de brasileiras,
das quais somente as primeiras fizeram seu noviciado na Bélgica.
Agruparam seus colégios como Rede Berlaar de Educação, com
sede em Belo Horizonte, e formaram em 1969 uma província
brasileira, com um representante no capítulo geral na Bélgica.
Também as cônegas de Santo Agostinho continuaram a recrutar brasileiras.
Outro fato novo foi a presença de leigos ao lado dos religiosos.
Logo depois da segunda guerra, jocistas belgas vieram propagar
no Brasil os métodos da JOC belga. A partir dos anos de 1960, a
cooperação com o desenvolvimento foi institucionalizada com um
novo Ministério do Estado belga. Dezenas de jovens cooperantes
vieram trabalhar como auxiliares dos padres e lhes davam maior
sustentação na Bélgica.
A principal organização, Samenwerking Latijns-Amerika ou
Coopération Amérique Latine (SLA e CAL), reconhecida e subsidiada pelo governo belga como ONG em 1964, mantinha, por volta de 1980-1990, de 20 a 30 voluntários em serviços variados. Foi
absorvida por outra organização, Volens, que continua ativa e que
leva também jovens por períodos mais curtos. Mais organismos,
como Copibo, com ajudantes na construção, ou Vredeseilanden
ou Îles de Paix, atentos às experiências rurais, se interessaram pelo Brasil, enquanto as campanhas de fraternidade de Broederlijk
delen, um organismo caritativo das dioceses belgas, recolhiam sustento financeiro. Este se beneficiava também dos contatos entre
patrões católicos belgas e brasileiros.
Avaliar aqui o impacto destes aportes belgas ao catolicismo
brasileiro seria prematuro e presunçoso, ainda mais na atual crise
da Igreja Católica, do seu descalabro na Bélgica e do avanço das
igrejas evangélicas no Brasil. Faltam mais transparência e pesquisas. Pelo menos já se pode constatar que, em comparação com a
primeira romanização, por volta de 1900, a presença belga durante este último meio século foi mais ampla, diversa, persistente e
sobretudo se dedicou cada vez mais aos brasileiros desfavorecidos.
Neste engajamento social, frequentemente em parceria com
leigos belgas, surgiram conflitos, mas com o tempo também uma
convivência mais compreensiva e serena com a cultura e religiosidade brasileiras. A trajetória mais significativa desta aculturação
aos pobres brasileiros parece ter sido a do ‘teólogo da enxada’, Joseph Comblin. Pediu para ser sepultado no Santuário do padre
mestre Ibiapina, na Paraíba.
Joseph Comblin (1923-2011)
Carl Laga
‘J
colega – recentemente e, por ter sido companheiro – durante
poucos anos – e amigo – pelo resto da vida – de Comblin, me pus
a lê-lo, venerabundo. Não cabe aqui avaliar o conteudo teológico da conferência, mas me sinto interpelado pelo grito: ‘Nunca
mais, nunca mais!’
Vejamos, pois, se, porventura, da parte de um sacerdote bem
qualificado, essa aversão ao ensino teológico, praticado sempre nos
estudos de preparação ao sacerdócio, tenha se manifestado antes.
Não é o contrário que deveria verificar-se? Antes de se apresentar
’ai décidé, il y a 30 ans, sous le regard de Dieu, de ne plus jamais travailler dans des séminaires. Plus jamais’ (Decidi, trinta
anos atrás, sob o olhar de Deus, nunca mais trabalhar em seminários. Nunca mais.). Foi o que disse Joseph Comblin aos congregados para lembrar os 30 anos passados desde o assassinato de
Dom Oscar Romero em El Salvador. Ressoa a frase como tirada
de um testamento e, na realidade, vem do texto que se verificará
provavelmente ser o último de Comblin, falecido em 2011 com
88 anos e poucos dias. Recebi o texto – gentileza de um jovem
178
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
para servir na América Latina, Joseph Comblin, recém-doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, ensinou a
Sagrada Escritura no Instituto Teológico dos Seminaristas belgas
aos recrutas no exército. Meus amigos que atenderam às suas aulas
falam em uníssono: um grande Professor!
Chegado a Campinas, acho que no mês de junho de 1958,
ou seja, no meio do ano acadêmico, estreou Comblin no ensino em língua portuguesa. Descobriram que ele possuía um grau
‘em ciências’ e encarregaram-no das aulinhas dessa matéria, no
seminário menor. Da exegese do Livro do Apocalipse à elite do
clero belga, à explicação da bomba para levar água aos meninos
do interior paulista... não é grande elevação de posto. Mas já que
tomou essa forma seu primeiro confronto com o ensino no Brasil, Padre José – assim foi conhecido por mais de meio século – se
conformou, com uma dose de humor discretamente velado que
lhe era tão típico.
A Teologia mesma ele ensinou parte dela na casa de formação dos dominicanos de São Paulo, na Faculdade de Teologia da
Universidad Católica de Chile – 1962 a 1965 ou 1966 –, e depois
de sua volta para o Brasil, bem mais tarde, no Instituto de Teologia, fundado em Recife por Dom Hélder Câmara, mas que ia
ser suspenso por Roma. Por fim, não esqueçamos que foi professor em tempo parcial, até chegar a aposentadoria, da Université
Catholique de Louvain. Pois bem, nenhum desses institutos era
um Seminário Maior no sentido clássico. Não é impossível que
José Comblin tenha ajudado num Seminário desta forma durante uma de suas múltiplas e breves estadas no Brasil ou num outro
país latino-americano, mas conhecimento disso não temos. Não
é fácil ver, então, a que experiência infeliz se referia, revelando
em 2010 que tinha feito, ‘30 anos já’, a tal promessa de nunca
mais trabalhar num instituto desse tipo. Seja como for, temos a
impressão de que ensinar não lhe foi atividade intelectual preferida. Escrever, sim, foi.
A nós não cabe fazer a bibliografia completa de Joseph/José
Comblin. Não temos capacidade para opinar sobre as obras mais
extensas e bem planejadas. Entendidos na matéria me disseram
que sua Théologie de la Ville, publicada em 1968, nas Éditions
universitaires, em Paris, depois dos dois volumes de sua Théologie
de la Paix, é inovadora no campo; além disso, não recusou contribuir com coleções de mais fácil acesso, visando o maior número
possível de cristãos. Aí pensamos na coleção Comentário Bíblico,
que, na mente dele, teve também a vantagem de ser lançada por
um grupo ecumênico. Nem sei quantos são seus Opera Minora
separados. Do estilo do autor saudoso, livre a cada um de se fazer uma ideia pessoal. No que me diz respeito, tendo vivido com
ele na intimidade da mesma casa e tido o privilégio de ouvir em
conversações sua opinião sobre mil coisas, não posso omitir de repetir aqui minha admiração – às vezes misturada, confesso, com
um pouquinho de inveja – em sua agilidade com a pena. Tinha
o dom de se concentrar num assunto e de confiá-lo ao papel com
a mesma facilidade que temos, nós, de respirar. Nem lhe eram
indispensáveis boas condições físicas. Até agora eu o vejo escrevendo numa parte qualquer da mesa comum de nossa casa em
José Comblin na Escola Missionária de Mogeiro, 2007.
Campinas, indiferente ao zumbido dos insetos e à temperatura
que fazia. Uma visita inesperada? Uma vassoura intrépida? – alugamos a casa de uma proprietária que não permitia que padres
inquilinos fizessem a limpeza – José interrompia, bem civilizado
como era, seu labor, o tempo necessário para logo depois voltar,
sereno, a seu mundo das ideias.
Releio agora sua primeira produção impressa em português e
que ali elaborou. Um ano e poucos meses depois de nossa chegada a Campinas, propôs-nos um texto, prudentemente impresso pro manuscripto, isto é, para não ser divulgado, com o título
A Vocação Cristã do Brasil. Ter guardado essa brochura redime
um pouco minha negligência para com suas obras posteriores,
bem maiores e bem melhor publicadas. Que mensagem trouxe a
plaqueta? Suficiência de europeu recém-chegado ao Brasil? Pois,
vejamos as teses nela desenvolvidas. A primeira: a Igreja católica
brasileira terá necessariamente que desempenhar o papel de líder
do catolicismo mundial (p. 1). Nada menos... Lemos logo depois
que realizar essa vocação mundial é um desafio atualíssimo, urgentíssimo, pelo qual o País tem de se preparar desde já. O autor
estima que o prazo outorgado para essa preparação é o espaço, no
tempo, de uma geração! O catolicismo europeu, continua, não
tem nenhuma possibilidade de tomar essa liderança, pois sofre
de uma doença incurável: [na Europa] há dois sistemas... de instituições, umas cristãs, outras anticlericais e antirreligiosas (p. 10);
mas, aí – nos países da Europa – fracassou miseravelmente o esforço da inteligência cristã de denunciar e de refutar o pensamento
alheio ao cristianismo, em marcha já há três séculos. Porém, Deus
reservou-a [a Igreja brasileira] para – essas – tarefas futuras (p. 17),
enunciadas na primeira página. Longe, então, de constituir uma
expressão de ufania, o que se escutava aqui era a voz do profeta
proclamando: ‘Quando soar sua hora, brasileiros, não façam como
nós fizemos!’ Mais uma vez, era profeta ‘clamando no deserto’, pois
conhecemos a história da Igreja brasileira, durante as duas gera-
179
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
ções passadas. Quem nunca se conformou com essa ‘desistência’
brasileira foi o profeta Comblin.
Mas um profeta não transmite sua mensagem sem andar ao
encontro de gente. Andar... como Comblin o fazia! Permaneceu
– não seria mais exato falar em passagens? – em Campinas, em
São Paulo, em Santiago do Chile – bis, com cerca de dez anos de
intervalo –, em Recife – ou será que foi também Olinda? –, antes
de encontrar seus horizontes de preferência, o Nordeste profundo,
a Paraíba. E mesmo aí parecia que se tratava mais de paragens: a
Capital, Serra Redonda, Santa Rita e Bayeux, para terminar sua
odisseia na humilde diocese baiana de Barra. A postura dele, parecendo frágil, era de uma resistência extraordinária para viajar:
memorizava alegremente os horários de avião, e as longas horas
de ônibus e de carro empoeirado não lhe provocavam mal estar.
Será que era andejo mesmo?
Mais ainda que andar, o profeta deve falar, e, de preferência,
falar alto. A condição e a figura de Comblin, de acesso não realmente fáceis, frequentemente dando mostras de timidez defensiva,
se transformavam desde o momento que dirigia a palavra a um
público. Não se esperava uma voz tão forte e consonante saindo
desta figura, físicamente não muito imponente. Porém, captavam
a assistência – ou a irritavam... – aquele seu discurso cáustico, suas afirmações lapidárias e frequentemente incomodantes. E não
raramente a repercussão ia além da simples assistência física, para
irritar certas autoridades políticas. Pena que, por descuido nosso,
perdemos o texto dos ataques no poderoso jornal O Estado de S.
Paulo, que entrou numa verdadeira polêmica, citando nome e funções de Comblin. Soubemos que, infelizmente, era um sacerdote
húngaro, fugido de sua pátria depois da revolta de 1956, que os
inspirava. Nos anos nos quais vigorava a Doutrina da Segurança
Nacional com toda sua força, os sucessivos Atos Institucionais impediam o ressurgimento da vida democrática, sempre prometida
e sempre adiada. Naquela fase de suspeição generalizada, quando
a polícia militar descobria ‘subversivos’ em todo campo, em 1972
José Comblin foi proibido de entrar no País ao chegar da Europa,
em Recife. A proibição nunca foi suspensa – li em algum lugar
que ela foi, sim, em... 2010 –, apesar de seu trabalho durante 38
anos no Nordeste não ter sido clandestino. Então, vemos um José Comblin, suspeito, perigoso para a nação, um Comblin que
amava cada vez mais, que adorava um país que continuava oficialmente considerando-o durante 40 anos como perigoso – só
que não fazia nada para eliminar esse perigo. Sutileza brasileira.
Mas, entrementes, em 1968, havia se realizado a Conferência Episcopal da América Latina de Medelin e os horizontes não
eram mais os mesmos. Aquilo que ia chamar-se Teologia da Libertação tem aí uma das suas origens. José Comblin, não há dúvida,
participou ativamente dela, tinha contatos frequentes com Gustavo Gutiérrez e outros protagonistas, lutou por ela, escrevendo,
discursando, explicando. Tudo isso foi importante pelo resto de
sua vida. Mas do ponto de vista do autor destas linhas, que pretendem ser uma homenagem de amigo, assim como um olhar
interrogativo sobre toda a vida de José Comblin, não se pode parar
aí, como o fizeram a maioria dos comentadores na oportunidade
de sua morte. A fase da Teologia da Libertação foi exaltante para
Comblin, mas relativamente breve. Já a Conferência de Puebla,
que seguia aquela de Medelin, dez anos depois, o decepcionou
– e não só a ele ...
Como já dissemos, o golpe militar em 1964 e os temidos Atos
Institucionais que se sucediam afogavam em boa parte a vida política normal. Não é de se estranhar, nesse silêncio político, que
umas vozes de representantes da Igreja – evitemos sugerir que a
Igreja falava alto e de uma voz! –, que ousavam ocupar um lugar
no palco recebiam maior atenção e encontravam bom ouvido em
parte da população, que ficava quieta por medo, mas injuriada
por aquela prosa continuamente repetida a respeito de um ‘Brasil
que, agora sim, anda direito e progride no desenvolvimento’. Em
São Paulo e no Recife, percebia-se este som de independência.
Teve a coragem o Arcebispo da maior cidade do País, Dom Evaristo Arns, de dizer non licet quando a polícia militar prendia gente
indiscriminadamente e torturava sem dar contas a ninguém. E no
Nordeste, a eloquência de um bispo baixinho muito irritou os militares, repetindo que na sua região a massa empobrecida, apesar
de todas as proclamações grandíloquas de Progresso e de Patriotismo, só ficava um pouco mais pobre ainda. Dom Helder Câmara,
homem santo – porém, ‘não rebelde’, precisava José Comblin –,
era intelectual de grande curiosidade, de modo que sem dúvida
já conhecia a obra de Comblin, e foi naquela época que a colaboração do teólogo belga, oficialmente expulso do País, com um
arcebispo, em vias de tornar-se o símbolo da coragem resistente,
tornou-se mais intensa. Mas conosco, Comblin não pormenorizava o assunto e nós não temos revelação a fazer nesse ponto.
Tenho motivo para supôr, em compensação, que naqueles
anos começou a surgir no peito de Comblin uma nova inclinação, versão que virou conversão e que pode bem ter sido a maior
na sua vida brasileira, e, quem sabe, a maior da sua vida tout court.
O brilhante intelectual, o autor com estupenda facilidade de conceber e de realizar livros, não se dava mais por satisfeito com sua
produção livresca. Deve ter sido o que vamos chamar sua vocação
de nordestino, vontade de deixar aí mesmo uma marca dele, de
pôr ponto às grandes teologias – ‘Teologia da Revolução’, ‘Teologia
da Cidade’ – para pegar na humilde ‘teologia da enxada’ – instrumento que, naquela terra, evoca nada de grandioso mas, isto sim,
o penoso, tedioso curvar-se para a terra –, vontade de construir algo
com as próprias mãos, curvando-se, até pedindo ajuda financeira
de outros – o que na vida anterior nunca teve de fazer, tirando do
ordenado e da aposentadoria de professor de tempo parcial o suficiente para um sóbrio solteiro como ele. Saíram aos poucos os
Centros de Formação Missionária para leigos masculinos e femininos. Fato é que com esta nova atividade surpreendeu um pouco
os velhos amigos europeus que o visitavam. Conseguia também
– não sei como – a admirável ajuda de dona M. M. e de outras.
Graças a elas não passava fome, acho, mas me lembro bem de uma
passagem minha de um dia e meio com aquele regime: já sonhava
– parecia fartura! – com a comida que tinhamos em nossos anos
de Campinas e São Paulo. Somente agora, lembrando as outras
fases de sua vida, é que começo a ver que esta foi a fase mais de-
180
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
cisiva e mais durável do seu curriculum. E bem poderia ter sido
a fase mais feliz, apesar das limitações materiais evidentes. Não
é repentinamente, num dia de calendário, que geralmente uma
pessoa se acostuma a um novo estilo de vida. Mas proponhamos
prudentemente que essa ideia bem pode ter começado a infiltrar-se em sua cabeça a partir do momento em que, na sua intuição,
a Teologia da Libertação, como ele a concebia, não tinha mais
futuro. Não foi muito tempo depois de ‘Puebla’ que já teve essa
intuição. ‘A Teologia da Libertação? Ela já morreu!’, repetia. A
partir do momento em que se convencera disso, até o fim da vida,
contamos uns 25 anos. Significa que, durante a quarta parte de
século, dedicou-se à sua obra, dando-lhe a melhor parte do seu
tempo e de seus talentos. Os centros missionários do Nordeste – a
sua pátria, agora – multiplicavam-se, partindo de ‘sua’ Serra Redonda. Na minha mesa tenho o relatório pormenorizado de um
mês de Formação Pastoral intensiva em duas dioceses, Juazeiro
e Guarabira, respectivamente na Bahia e na Paraíba. Aí, não se
tratava de só passar o tempo. Essas escolas de formação organizavam-se em qualquer lugar, onde se ofereciam boas oportunidades,
conformando-se às circunstâncias diocesanas, criadas, na prática,
pelas preferências pastorais do bispo local. Precisei de um bom
mapa para localizar as dioceses de Juazeiro na Bahia – não aquele
Juazeiro do Padre Cícero! –, de Bonfim – o Brasil está cheio de
‘Bonfins’! –, de Guarabira, ‘perto da capital’, cujo título de glória
é o santuário do Padre Ibiapina, um santo – proclamado pelo povo – paraibano, sobre o qual ler-se-á no fim deste depoimento. A
fase mais penosa da vida? Bem pelo contrário, pode ter sido a fase
mais feliz: nas fotografias que guardei desse período, aparece um
Comblin com largo sorriso, feliz daquela vida.
Trabalhando dentro deste novo horizonte, identificando-se
com a gente humilde, não por isso se tornou eremita. O Nordeste, em nossos dias de comunicações sociais, está longe de ser um
deserto egipcíaco. Reuniões, assembleias, celebrações não faltavam. A celebração dos 80 anos de sua vida, nos dias 20-22 de março de 2003, ficarão para sempre na minha memória. No campus
da Universidade Paraibana Estadual – acho que o ‘Padre’ nunca foi
professor aí, mas sabia-se que escreveu livros e livros e ‘é dos nossos’ –, que punha à disposição seus salões, se entregou o Festschrift
com inúmeras contribuições, nacionais e internacionais. Mas é a
concelebração de Ação de Graças que me deixou a impressão mais
profunda. A missa em si mesma nada tinha de cerimônia revolucionária – Comblin nunca achou que fazer pulos acrobáticos na
liturgia fosse idêntico à evolução necessária e frutífera. Mas foi a
dignidade, misturada com uma alegria de poder realmente participar do ato litúrgico – como a da moça, cujo pai não a tinha
deixado frequentar a escola até uns três anos antes –, pronunciando a maioria das leituras, e, mais ainda, a do movimento lento de
dança sacramental da velha pretinha, que vinha apresentar pão
e vinho litúrgico da parte traseira da tenda para o altar, que me
comoveu. Não me acho ser do tipo sentimental, mas, no fim da
ceremônia, tinha lágrimas nos olhos. Liturgia digna e comovente
ao mesmo tempo, parece impraticável em nossa Europa cética
e autossuficiente de hoje. E um celebrante, assistido por um par
de bispos do Nordeste e por dezenas de sacerdotes, se mostrando
feliz com toda a naturalidade; difícil reconhecer nele o professor
europeu, ponderando tudo, hesitando em muito. A conversão ao
Nordeste funcionava.
‘Preciso me converter’, se defendia, quando seus amigos prudentemente opinavam contra mais uma mudança de casa, desta
vez num esconderijo baiano, fora do qual – excluindo sua viagem
costumeira para ver sua família e uns amigos na Bélgica – uma
vez só se deixou tirar. Jon Sobrino, companheirão de luta nos
dias de Medelin, foi quem o convenceu, na ocasião do trigésimo
aniversário – já! o prazo de uma geração inteira – do assassinato
de Dom Oscar Romero, em El Salvador. A alocução de Comblin
já mereceu um breve comentário acima, mas dará mais trabalho
aos teólogos que a lerão.
‘Preciso me converter’ – não houve tempo para isso nas vidas
anteriores? Comblin queria não ficar abandonado, mesmo quando morto. Queria juntar-se – assim falou –, fecundando a terra,
ao humilde padre – sem maiúscula – Ibiapina, declarado santo
pela gente nordestina, onde ‘sempre tem gente visitando o padre...
aproveitarei do movimento’ (comunicação eletrônica de Mônica
Maria Muggler, 05.04.2011).
Ouso concluir com uma lembrança pessoal. Sempre vinha
visitar-nos e passar um meio dia em Lovaina, na ocasião da sua
viagem estival – no mês de junho ou julho na Bélgica: ‘Nordestino
tem medo do frio, sabe!’. Nisso, como em muitas coisas da vida,
era de uma regularidade exemplar. Lembro-me bem da última
vez. Quando a Mônica me comunicava um novo endereço, mais
uma vez, e por causa de mais uma mudança, agora porém para
um lugar no interior baiano, que eu nunca ouvira mencionar e
no qual, para mim, Judas podia ter lá perdido as botas, perguntei
com toda inocência: ‘Não foi difícil, então, o transporte da biblioteca tua para tal buraco?’. ‘Oh, essa!’, respondeu, ‘eu a deixei,
ficou em Bayeux’. Que susto que me deu tal declaração! Fiquei
sem entender. Para mim, ver Comblin abrir mão da biblioteca –
ampla, variada, atualizada, mesmo em Serra Redonda, onde eu
o vi lutar, enfurecido, contra o cupim que a invadira... –, com a
qual ele parecia ter-se identificado, era ver um artista de renome,
repentino desprezador do seu instrumento preferido, jogando-o
fora. Com o tempo, pouco a pouco – com José, as manifestações
sobre si mesmo ficavam sempre a meio caminho entre brincadeira
e afirmativa... – permeou-me o suspeito de que, nesta fase da vida,
que sabia ser a última, recluir-se num buraco baiano, juntar-se a
um bispo conhecido por ter tido o jejum como única arma contra o poder e a pobreza como único cartaz, era, para o andante,
seu caminho de despojo, prova de que seu compromisso com os
pobres era conclusivo.
Carl Laga, bizantinista, é Professor Emérito da KULeuven; entre
1959 e 1968 foi professor de História Antiga e Medieval na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, atualmente campus
da Unesp.
181
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
A contribuição dos jocistas belgas
M y r i a m Va n d e n N e s t
C
om seu método de ‘ver-julgar-agir’, a JOC (Juventude Operária Católica) deixou, nos anos de 1960, inegavelmente sua
marca na pastoral do povo. Graças à participação de tantos jovens
operários se produziu uma radical inversão dentro da Igreja Católica brasileira, que resultou na elaboração e no impacto da teologia
da libertação até na Bélgica (Bidegain de Uran).
Para compreender sua origem é preciso remontar aos primeiros anos da JOC e seguir a evolução deste movimento, a partir da
Bélgica, berço do jocismo e de seu mentor espiritual, Cardijn. Para realizar seu sonho de ser um sacerdote para os operários, Jozef
Cardijn (1882-1967) começou, em 1919, como vigário em Laken,
um movimento precursor, os Jovens Sindicalistas (1925). Sua atuação entusiasta repercutiu rapidamente no exterior e vários países
contataram o secretariado belga. Vários padres e outros visitantes
na Bélgica observaram seus métodos.
Assim, duas moças de São Paulo, Albertina Ramos e Maria
Kiel, que estudavam em Bruxelas na Escola Social Superior (1932-1935), ficaram conhecendo a JOC. De volta ao Brasil, organizaram grupos de jovens operárias católicas, que foram as primeiras
tentativas do jocismo em terras brasileiras. Não empregavam ainda um método definitivo, mas contribuíram na sensibilização a
respeito da situação social dos desfavorecidos (carta de José Gomes – aliás, Zezé – Morais, 25.04.1986). Publicaram um boletim
mensal, Jocismo, a partir de maio de 1934. O padre Carlos Ortiz,
que organizou a primeira JOC em Taubaté e publicou Acção Ca-
tholica e Jocismo, esteve em Lovaina e manteve correspondência
com os capelães belgas da JOC. Estes enviavam suas publicações,
lidas com fervor, se bem que Ortiz achava que ‘a JOC/F brasileira
não podia ser uma caricatura do modelo belga’ (Ortiz).
O Estado Novo (1937-1944) e a Segunda Guerra Mundial
perturbaram os contatos entre o Brasil e a Bélgica. Mesmo assim
os esforços dos pioneiros brasileiros não foram infrutíferos: em
1942 fundou-se no Rio de Janeiro a JOC/F com Odette Azevedo
Soares, Yolande Bettencourt e Francisco Mangabeira, que conheceu a JOC durante seus estudos em Paris. Bettencourt dirigiu, por
volta de 1944, a JOC/F no Rio, tendo entre seus membros principalmente domésticas.
O fim da Segunda Guerra Mundial abriu para Cardijn e a JOC
um período de maior internacionalização: de 1946 até sua morte
em 1967 Cardijn viajou pelo mundo inteiro apesar de sua idade
avançada (Kadoc, Cardijn). Quando visitou pela primeira vez as
três Américas, de julho a setembro de 1946, ficou muito comovido pela pobreza, pelos contrastes chocantes e pelas condições de
vida desfavoráveis dos operários na América do Sul. Sua visão da
problemática operária se ampliou para uma dimensão terceiro-mundista. Realçava a necessidade de uma solidariedade universal.
Em outubro de 1948 pisou pela primeira vez em solo brasileiro, por ocasião da I Semana de Estudos Nacional da JOC brasileira, em São Paulo. Das diversas dioceses afluíram cerca de 600
delegados para analisar juntos a situação da JOC. Se elegeu uma
Conselho Nacional da Juventude
Operária Católica (JOC) no Brasil
reunido em novembro de 1961; ao
centro o sacerdote Jozef Cardijn.
182
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
direção nacional: José Gomes de Morais Neto como presidente
da JOC, Odette Azevedo Soares como presidente da JOC/F e
José Távora como capelão nacional. A aprovação dos estatutos,
votada na presença de Cardijn, marcou o reconhecimento oficial
da JOC/F brasileira. Cardijn aproveitou sua estada para estreitar
suas relações com a Igreja, num dia de estudos com 400 padres
e seminaristas, no Ipiranga, e numa alocução para 75 bispos e 3
cardeais, em Porto Alegre. Dizia que a JOC devia poder contar
com o apoio de um grande grupo de padres e aproveitar todos os
meios para lutar contra ‘esta igreja a-histórica que fugia na caridade’. Recebeu o título de doctor honoris causa das universidades
católicas do Rio e de São Paulo.
Desde 1948, Cardijn se esforçou para que padres e militantes
leigos viessem da Europa para implantar a JOC em países como
o Brasil, mas numa colaboração que não fosse colonial: ‘A JOC
no Brasil deve ser brasileira’. A este apelo responderam membros
da JOC, como Jacques Jerome, originário de Visé, que, com 20
anos em 1948, na difícil conjuntura do pós-guerra, planejava ir
trabalhar como eletricista na Argentina. Tinha sido ativo na préJOC de Seraing. Como o consulado do Brasil em Antuérpia despachou mais rapidamente seu visto, acabou chegando ao Rio de
Janeiro, onde foi considerado uma dádiva do céu pelo capelão da
JOC brasileira, Távora. Alguém com tão rica experiência jocista
preferiam guardar por lá! Com a equipe da JOC/F participou
da supracitada semana de estudos e Cardijn conseguiu convencê-lo a ficar dois anos mais e instalar a JOC na região de Belo
Horizonte. No ano seguinte foi liberado como propagandista da
equipe de São Paulo, junto com o padre Mélanson, Zezé Morais,
Bartolo Perez e Tibor Sulik. Fundou várias seções no interior e
serviu de intérprete na preparação da Conferência Internacional
em Braine-l’Alleud. Desde fevereiro de 1952 era ativo no Rio de
Janeiro como responsável pelas manifestações externas, na preparação da conferência da JOC/F sul-americana em Petrópolis e
da peregrinação a Aparecida. Depois, em 1955, dedicou-se ao Estado de Minas Gerais. Jacques impressionava-se frequentemente
‘com a generosidade, religiosidade e disposição ao sacrifício dos
militantes brasileiros’ (JOCI).
Voltando ao Brasil em 1951, Cardijn falou na semana de estudos da Ação Social Arquidiocesana. Se os problemas da juventude
operária eram do mundo inteiro, tratou de casos especificamente brasileiros percebidos em suas visitas às fábricas e às seções da
JOC. Fez suas palestras em francês, mas, mesmo assim, sua mensagem era compreendida pelos jocistas brasileiros por sua fala cativante e entusiasta e por seu carisma. Bartolo Perez, presidente
nacional da JOC em 1952, constatou que ‘muitos jovens se comprometeram depois do discurso de Cardijn: suas visitas tinham
grande significado para a direção da JOC/F e os capelões, foi um
enorme estímulo para nós encontrá-lo e nos sentimos fortalecidos
na nossa obra pioneira’. Segundo Angelina de Oliveira, Cardijn fez
os bispos brasileiros compreenderem a dimensão da problemática
operária, como também a necessidade de se organizar em nível
nacional. Tudo isto colocou a hierarquia a refletir sob a direção
de Hélder Câmara e José Távora. Quando a Conferência Nacio-
A Juventude Operária Católica (JOC) no Brasil com o sacerdote Jozef Cardijn.
nal dos Bispos do Brasil adotou, em 1955, o ‘ver-julgar-agir’ como
método, iniciou-se um processo que transformou radicalmente a
atitude da igreja brasileira.
Em 1953, o Secretariado Internacional concordou em enviar
a primeira jocista belga para a América Latina a pedido da secção
JOC/F do Rio de Janeiro. Denise Verschueren foi recebida por
uma equipe bem organizada. Sua tarefa consistia em assistir o
movimento na formação de militantes e sobretudo de dirigentes.
Depois de alguns meses de adaptação, padre Távora lhe encarregou a responsabilidade dos grupos paroquiais de operárias da Zona Norte. Precisamente como Cardijn, consagrava muito tempo
às visitas a padres e bispos para convencê-los que jovens operárias
eram capazes de se organizar. Desde novembro de 1955 explicava
em todas as seções da Zona Sul em que deviam consistir as reu­
niões de núcleos e direção.
Como membro da equipe nacional, Denise era também responsável pelo trabalho com as domésticas. A situação das domésticas a tinha comovido logo no início: os baixos salários, um quarto pequeno, a falta de liberdade, seu analfabetismo… Na Zona
Norte e na Zona Sul havia centenas de milhares destas domésticas
e existiam seções da JOC específicas para elas. A maior parte vinha do interior, sem família, para trabalhar nas casas das classes
média e alta. Desde março de 1956 organizavam-se dias de estudo com o tema ‘Também eu sou filho de Deus’ ou ‘Tenho uma
resposta a oferecer’; desde abril se publicava a revista Para você,
jovem doméstica. Foi neste zelo pela melhora de suas condições
de vida que Denise mostrou suas grandes qualidades pedagógicas. Conseguia que moças analfabetas executassem, a partir de
sua própria experiência de vida, tarefas importantes na JOC/F.
A partir de 1959 organizaram-se no Brasil inteiro pesquisas sobre
as experiências destas domésticas e seguiram campanhas como
183
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
para ‘obter uma cadeira na cozinha’. Estas ações resultaram no
primeiro congresso para domésticas no Alto de Boa Vista (1961),
que formulou o Manifesto das domésticas e deu origem ao seguro
social para este grupo.
Denise se dava conta de que não veio para transplantar ao
Brasil um modelo belga. Ela procurou viver como uma brasileira
no espírito de pobreza e evitava fazer muitas comparações com
a JOC/F belga. Era consciente de que a JOC brasileira já havia
realizado muito durante sua curta existência e observava que os
jovens brasileiros apenas tinham tido o tempo para ser crianças
despreocupadas. Em 1961, depois de uma estada de oito anos,
voltou à Bélgica e recebeu um mandato no Secretariado Internacional em Bruxelas.
Na sua etapa inicial a JOC/F brasileira ficou grata pela ajuda
de fora e precisava de publicações jocistas belgas. Entretanto, não
se tratou de uma transplantação, que seria contrária aos princípios
de Cardijn e da JOC/I. Sua estratégia era seguir em cada país seu
próprio desenvolvimento. Nos anos de 1960, a JOC existia em
mais de 90 países!
A situação brasileira era totalmente diferente da belga e a JOC
tinha que se adaptar. O fato de a JOC/F ter sobrevivido a tantos
problemas e à repressão militar prova que o movimento se adaptou
realmente a esta sociedade. Na medida em que a JOC/F brasileira
crescia no nível da direção e em influência, alcançou sua autonomia, também graças ao apoio dos comitês regionais e do Centro
de Informação América Latina (1955). O fato de Bartolo Perez ter
sido eleito em 1961 presidente internacional no Segundo Conselho Mundial da JOC/I, com participantes vindos de 85 países,
mostra como se tinha fortalecido a JOC/F brasileira.
Myriam Vanden Nest obteve licenciatura em História na KULeuven
com um trabalho de conclusão sobre “Os belgas na JOC brasileira”, é
formada também em Ciências Religiosas, professora do ensino médio
e ativa na pastoral da igreja católica.
A Uniapac e o Brasil
Peter Heyrman
A
s primeiras organizações de empresários católicos surgiram
no anos de 1880-1890 na França e na Bélgica. Na senda de
Léon Harmel (1829-1915) e frequentemente assistidos por jesuítas, examinavam como podiam adaptar sua prática empresarial à
doutrina social da Igreja. Na Bélgica, data de 1894 a Association
des Patrons et Industriels Catholiques. A similar flamenga surgiu
em 1925, o Vlaamse Algemeen Christelijk Verbond van Werkgevers.
Em 12 de junho de 1931, 40 anos depois da Rerum Novarum,
foi fundada a primeira internacional de patrões católicos, as Conférences Internationales des Associations des Patrons Catholiques.
Depois da guerra, em maio de 1949, esta organização foi reforçada por holandeses, belgas, franceses, alemães e italianos na Union
Internationale des Associations Patronales Catholiques, a Uniapac,
com uma cúpula ainda exclusivamente europeia, mas que já nutria ambições mundiais. Em 1962 a organização se rebatizou como
International Christian Union of Business Executives.
Sem esquecer a África, a Uniapac procurava nesses anos de
1950-1960 sobretudo expansão na América Latina. Através dos
bons contatos com os jesuítas, os patrões católicos europeus esperavam encontrar lá correligionários para suas aspirações de uma
ordem mundial cristã, na linha das encíclicas Mater et Magistra
(1961) e Gaudium et Spes (1965). Essa aproximação ocorria paralelamente com o movimento operário cristão e as Nouvelles
Equipes Internationales democrata-cristãs. Naturalmente, inspiravam-se nos interesses de negócios.
Criaram-se então associações de patrões católicos no Chile
(1948), no Uruguai (1952), na Argentina (1953), no Peru (1956) e
no México (1957). O congresso mundial da Uniapac em Montre-
al, no Canadá, em setembro de 1957, decidiu formar uma cúpula
regional (CCDAL) em Buenos Aires (Argentina). A reunião mundial seguinte da organização em Santiago (Chile), em setembro de
1961, deu novo impulso. Nesse ano fundou-se também no Brasil
a Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), tendo entre seus administradores Ernesto Diederichsen (presidente),
Elias Corrêa de Camargo e Haroldo Falcão. Depois de São Paulo
e do Rio de Janeiro, seguiram seções na Bahia, em Recife (PE), na
Paraíba, em Natal (RN), Fortaleza (CE) e Belo Horizonte (MG).
A ADCE organizou a partir de setembro de 1962 seminários para
empresários e pleiteou, entre outros, um sistema de salário família.
Alguns belgas desempenharam papel de primeira importância na expansão deste movimento empresarial cristão na América
Latina. Em 1955, o jesuíta e assistente espiritual da Uniapac, Jean-Marie Laureys (1897-1956), percorreu o continente e manteve
conversações com várias associações de patrões católicos, como
no Brasil. No seu rastro seguiram entre outros o fabricante de fios
de aço Léon Bekaert (1891-1961) e Jacques De Staercke (nascido em 1927). O professor de Gand, André Vlerick (1919-1990),
cooperou desde 1959 em iniciativas para formação de empresários junto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o
Centro Nacional de Produtividade na Indústria (Cenpi). Entre
os assistentes espirituais da ADCE encontrava-se o belga Michel
Schooyans (1930-), que lecionou de 1959 a 1969 na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
O mediador mais importante foi, sem dúvida, Rik Vermeire
(1920). Graças a Bekaert e ao industrial alemão Peter H. Werhalm
(1913-1996), foi nomeado em 1958 secretário-geral da Uniapac.
184
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Esta função o levou várias vezes à América do Sul. Mesmo depois de sua passagem para a empresa Bekaert, em 1965, Vermeire
continuou a intermediar os contatos através da Fundação Léon
Bekaert (1962) e da Maison de l’Amérique Latine. A Uniapac procurou o fortalecimento da organização patronal latino-americana
e maior colaboração com o patronato europeu e com a Comunidade Econômica Europeia. Em novembro de 1962 ocorreu em
Bruxelas o Fórum Europeu para a América Latina, que resultou
na fundação do Comité Européen pour la Coopération avec l’Amérique Latine (CECAL, maio de 1963). Meio ano depois se reuniram 400 empresários latino-americanos em São Paulo e formaram
o Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo
(CLAD). A ‘Declaração de São Paulo’, de novembro de 1963, defendeu uma integração econômica latino-americana mais forte,
algo no modelo europeu e correspondente às ideias do economista
argentino Raul Prebisch (1901-1986). O avanço da Uniapac na
América Latina se consagrou no congresso mundial no México,
em outubro de 1964.
Peter Heyrman é Doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
do Kadoc – Centro de documentação Católica da Universidade de
Lovaina.
Os vínculos entre os mundos maçônicos
e laicos da Bélgica e do Brasil
N i c o l e t ta C a s a n o
C
omo ‘produto’ europeu, a Maçonaria foi introduzida no Brasil no final do século XVIII (Oliveira Marques; José Catellani e William Carvalho). Figuras decisivas ou muito influentes
na história do país, desde a Independência até a Proclamação da
República, eram maçons, desde o próprio Imperador Pedro I e o
‘patriarca’ José Bonifácio de Andrada e Silva até o Marechal Deodoro da Fonseca, os presidentes Prudente de Moraes, Campos
Sales, Hermes da Fonseca, passando por tantos outros, como o
Duque de Caxias, o Visconde do Rio Branco e seu filho, o Barão
do Rio Branco.
Entretanto, os historiadores brasileiros discordam sobre a concertada direção maçônica desses eventos, ainda mais que as lojas
brasileiras passaram por contínuas rivalidades e dissidências, fusões e novas cisões. Numa dessas, um maçom exilado na França,
Francisco Gomes Brandão (1794-1870), aliás, pelo seu nome indigenizado, Gê Acayaba de Montezuma, conseguiu, do Conselho Supremo do Rito Escocês Antigo e Aceito nos Países Baixos,
uma carta de legitimação em 12 de março de 1829 para instalar
um Conselho Supremo semelhante no Brasil. No seu regresso foi
reconhecido por outra carta vinda da Bélgica em 12 de novembro de 1832 como 1º Soberano Grande Comendador brasileiro.
Ainda em 1858, o Conselho Supremo belga confirmou o reconhecimento do congênere brasileiro, mas naquela altura este
se tinha afastado, há muito tempo, de Montezuma, e voltara à
política como deputado, ministro da Justiça e dos Estrangeiros e
diplomata na Inglaterra. Sobre as relações deste com os maçons
belgas, valeria a pena investigar, tanto mais que foi enobrecido
como Visconde de Jequitinhonha, sendo o único mulato, filho
de um português e uma negra, a alcançar um título e que introduziu no Senado as primeiras propostas para abolir a escravatura.
No final do século XIX, tanto na Europa como nas Américas,
algumas associações maçônicas e laicas nacionais começaram a
federar-se, criando entidades internacionais. Nestas, a Bélgica desempenhou um papel importante. Na mesma época, a entrada
do Brasil nesses contextos internacionais devia facilitar a ligação
entre os mundos maçônicos e laicos dos dois países. No Bulletin
du Grand Orient de Belgique desse período pode-se ler como a
maçonaria belga seguia com interesse a evolução do movimento
maçônico no Brasil, constantemente contestado pela propaganda
clerical ultramontana. Por falta de documentos resulta difícil, por
enquanto, traçar mais a fundo os vínculos anteriores a 1930. Nessa
data, o Grande Oriente do Brasil entrou na Associação Maçônica
Internacional, fundada em Genebra, onde a maçonaria belga sempre foi muito ativa (Bulletin de l’Association Maçonnique Internationale, nº 32, 1930, p. 31; nº 34, 1930, p. 4). Outra pista seriam
os papéis pessoais de influentes maçons belgas e brasileiros, como
o pioneiro do ensino leigo e primeiro ministro da educação Pierre
Van Humbeek (1829-1890), que tinha parentes brasileiros, ou o
arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, que estudou em
Gand e manteve boas relações com empresários belgas.
Mais aparentes são os vínculos nas associações do livre-pensamento, acercadas à maçonaria. Grande parte destas, espalhadas pelo mundo, se federaram em 1880, criando em Bruxelas a
Fédération Internationale de la Libre Pensée. O Brasil integrou
esta Federação no início do século XX, uma vez que se constituíam as ligas anticlericais em oposição à ingerência clerical
na vida social e política do país. Nas cidades onde se instalaram
se aproximavam muito dos meios maçônicos. Em particular, a
Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, fundada em 1911, se filiou
à Federação Internacional do Livre-Pensamento em 1912 (La
Pensée, 17.11.1912, nº 407). Pode-se seguir a evolução e as atividades destas ligas brasileiras por meio de seu semanário La Pensée, dirigido por seu secretário, o livre-pensador e maçom belga
Eugène Hins (1839-1923).
185
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Hins conhecia relativamente bem o Brasil por ter nele residido
em 1863, quando, com 24 anos, teve que interromper seus estudos por problemas de vista. Tirou de sua estada como preceptor
num engenho da província de Pernambuco material para as cartas
publicadas na Revue de Belgique e, mais tarde, em 1884, reunidas
num livro com o título Un an au Brésil.
Este tratava da natureza e da sociedade escravocrata pernambucana e não tinha ainda nada a ver com o Livre-Pensamento. A
seguir, Hins partiu em 1872 para a Rússia, onde lecionou numa
escola militar. Em 1880 participou em Bruxelas do congresso da
primeira internacional.
Em La Pensée, Hins assinalava regularmente as atividades dos
livres-pensadores brasileiros, observando o modo como as ligas
festejavam todos os aniversários do mundo laico europeu, como,
por exemplo, as comemorações de Francisco Ferrer, em 13 de outubro, e de Giordano Bruno, em 14 de fevereiro, mas também o
20 de setembro, data da queda da Porta Pio em Roma, em 1870,
e do fim do Estado pontifical. Vale notar que esta última data é
lembrada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro por significar
‘a queda do poder temporal dos papas, […] um dos feitos mais importantes da história da Humanidade’. Além disso, Hins publicava
a correspondência de seus correligionários brasileiros a respeito
da ingerência dos jesuítas na vida social do Brasil e preocupavase com as alternativas à ofensiva ultramontana na educação da
América Latina.
Aliás, na própria Bélgica, depois da vitória do partido católico
em 1884, os maçons e livre-pensadores se encontravam na defen-
siva em matéria escolar, mas seus educadores já elaboravam, nas
escolas municipais e na Universidade de Bruxelas, novas ideias e
métodos pedagógicos laicos. Advogavam a coeducação e a ginástica. Para quebrar o monopólio católico, pensavam na organização
de orfanatos ‘racionalistas’. Muita atenção recebia o modelo das
‘Escolas Modernas’ formulado pelo mártir do Livre-Pensamento
espanhol, Francisco Ferrer.
Estas novas propostas podiam experimentar-se na América
Latina e uma missão laica nesse sentido foi dirigida por Georges
Rouma, a partir de 1909, na Bolívia e em seguida em Cuba. Na
pauta deveriam surgir iniciativas no Brasil, onde os métodos inovadores de Ovide Decroly e, sobretudo, o livro Méthodes américaines d’éducation (1908), de Omer Buyse, tiveram forte impacto na
nova pedagogia propugnada por Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
Este último evoluiu assim do tradicionalismo religioso para a defesa da escola nova pública nos seus cargos de inspetor e diretor
de ensino, o que lhe valeu acusações de comunista por parte dos
católicos da revista A Ordem e que, bem mais tarde, levou à sua
morte misteriosa no regime militar em 1971.
O Estado de Minas Gerais contratou ainda nos anos de 1930
uma missão pedagógica belga, liderada por Buyse, mas logo o Estado Novo de Getúlio Vargas e sua política mais favorável à Igreja
Católica e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial interromperam este diálogo entre belgas e brasileiros adeptos da laicização.
Nicoletta Casano é Doutora em História pela Universidade Livre
de Bruxelas.
As igrejas brasileiras de Bruxelas
Anne Morelli
N
os últimos dois decênios muitos brasileiros vieram viver na
Bélgica e particularmente em sua capital. Pertencentes em
sua maioria às classes populares e frequentemente relegados a uma
situação administrativa de ilegalidade, se ocupam nos nichos profissionais normalmente reservados, no século XXI, aos imigrantes
recém-chegados aos países menos afetados pela crise: trabalho na
construção, na jardinagem, na limpeza, nos restaurantes, na assistência às crianças, às pessoas de idade e aos doentes, no serviço
doméstico interno e na prostituição.
Como emigrantes, evidentemente, levaram consigo suas crenças. Se no século XX o Brasil era ainda considerado como país católico – com somente traços de sincretismo com os cultos africanos
e locais –, hoje não é mais o caso. Os católicos somam 64,6% (123
milhões de brasileiros), os protestantes, 22,2% (42 milhões de pessoas), enquanto 8% da população se define sem filiação religiosa
(La Raison, nº 577, 2013, 6).
O pluralismo religioso avança. Se a Constituição brasileira de
1988 foi mesmo promulgada ‘sob a proteção de Deus’, a menção
nas cédulas brasileiras de reais da fórmula ‘Deus seja louvado’,
inserida em 1986, por iniciativa do então presidente José Sarney,
suscita hoje debates. O ministério público de São Paulo, pela voz
do procurador Jefferson Aparecido Dias, pediu que esta menção
não figurasse mais a partir de março de 2013 nas cédulas, a fim
de proteger a liberdade religiosa de todos os cidadãos brasileiros.
Neste clima de questionamento do monopólio católico, as diferentes igrejas ligadas ao protestantismo se desenvolveram rapidamente. Trata-se essencialmente de evangélicos, de pentecostalistas
ou testemunhas de Jeová que acumulam progressos sobretudo nos
meios populares. A divisão religiosa dos imigrantes brasileiros na
Bélgica reflete esta evolução recente. Em Bruxelas, ao lado da
comunidade católica brasileira reunida em torno da paróquia de
Jesus Trabalhador, encontram-se os presbiterianos renovados, os
testemunhas de Jeová, as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor,
Deus é Fiel) e diversas igrejas evangélicas (Semade, O Brasil para Cristo, Comunidade Cristã, Renascer em Cristo, Assembleia de
Deus Missionário...).
186
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Presença em certos bairros
trística, a exegese, a homilética ou a heurística antes de tornar-se
pastor. Os carismas da comunicação são geralmente suficientes
para o êxito do fundador. Sua esposa e seus filhos são quase sempre associados à sua predicação e à gestão do grupo. Deste modo David Miranda fundou a igreja pentecostalista Deus é Amor,
sua mulher é ‘conselheira’, seu filho é pastor e sua filha, Debora
Miranda, canta para a igreja. Quando o fundador da Semade
na Bélgica morreu prematuramente, o magazine ilustrado AB
destinado aos brasileiros da Bélgica – o mensal gratuito declara
imprimir 11.000 exemplares; vive de abundantes publicidades
para as diversas igrejas – anunciou muito espontaneamente que
os três filhos do pastor Edvaldo Tavares Gomes – que apoiou o
projeto da revista desde o início – vão continuar seu trabalho e
já são legitimados (AB, janeiro de 2013, 54).
Geograficamente estas igrejas se concentram, logicamente,
nos bairros de Bruxelas que têm longa tradição de acolher imigrantes recém-chegados. De fato, as comunas de Saint-Gilles e
Anderlecht (Cureghem), depois de terem sido a moradia de numerosos judeus, italianos e espanhóis, acolheram muitos poloneses,
marroquinos, portugueses e brasileiros. Assim, a paróquia católica
de Jesus Trabalhador é uma das paróquias de Saint-Gilles, situada
na Chaussée de Forest, ao passo que a igreja pentecostalista Deus é
Amor se encontra na mesma rua (rue Gheude) em que a Semade,
em Anderlecht, comuna onde se situam também a grande Comunidade Cristã (rue des Deux Gares), os presbiterianos renovados
e Deus é Fiel (rue Van Lint para estas duas últimas). Deus é Amor
tem também uma sala de culto em Ixelles (rue de La Cuve) e a
Semade uma segunda sala em Anderlecht (chaussée d’Alsemberg).
Estas igrejas procuram naturalmente os endereços de moradia ou, pelo menos, de encontros de seus potenciais fiéis. Elas
oferecem serviços sociais e os serviços religiosos são fervorosos e
frequentes. Assim, a paróquia católica brasileira de Saint-Gilles,
que todas as noites oferece sessões abertas depois das jornadas de
trabalho, se sobressai sobre suas homólogas belgas, em vias de quase extinção da prática religiosa. Às 19h30 durante a semana, às 18
horas nos fins de semana, pode-se rezar, cantar, estudar ‘a palavra
de Deus’, fazer música, se confessar ou participar da missa. Tratase de um grupo da renovação carismática, que, confrontado com
a situação de muitos de seus paroquianos, se implica ativamente
nas lutas pela regularização dos “sem-papéis” e na sua ajuda social.
Uma mídia eficaz
As igrejas brasileiras de Bruxelas se dirigem a um público de
trabalhadores modestos, mas que dominam a internet e geralmente possuem celulares, smartphones e laptops. Utilizam estes instrumentos para divulgar as diversas igrejas. Assim existe um site
para a paróquia católica da Comunidade Jesus Trabalhador (www.
ccbbruxelas.be) como também para a Comunidade Cristã (www.
ccbnet.eu) ou as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor...). Lá se
podem encontrar as homilias, informação sobre a agenda das atividades do grupo ou dos horários do culto. A Comunidade Cristã
se comunica com seus fiéis através de uma rádio que transmite 24
horas diárias (www.radioccbnet.com). Durante as sessões é possível
comprar os DVDs de cantos ou de predicações para ouvir em casa.
A revista dos brasileiros na Bélgica (AB Magazine) serve também de transmissora das atividades religiosas, anunciadas em plena página de publicidade ou até na capa. Assim, a vinda a Bruxelas
do cantor Lázaro foi manchete da revista para anunciar seu concerto no dia 23 de fevereiro de 2013 no Tour e Taxis, numa sala
para 5.000 pessoas. Sua vinda à Bélgica foi organizada pela igreja
Comunidade Cristã. Ele é um embaixador cantante da igreja,
como Debora Miranda o é para Deus é Amor. A morte súbita do
pastor Edvaldo durante sua volta momentânea a Goiânia teve seu
culto fúnebre filmado. Alguns fragmentos do filme foram postados no Youtube para permitir aos fiéis residentes em Bruxelas associar-se ao culto. A cada instante é possível consultar os sites e as
eventuais novidades enviadas pelo correio eletrônico. O uso desses
instrumentos modernos estreita evidentemente os laços entre os
membros, muitas vezes isolados durante a semana.
Pentecostalistas evangélicos
A igreja pentecostalista Deus é Amor foi fundada em 1962 por
David Miranda. Ela tem sua sede mundial em São Paulo e pretende ter construído lá o maior templo do mundo, previsto para
140.000 pessoas e inaugurado em 2004. Se as duas salas de Bruxelas são modestas, elas oferecem o culto no sábado à noite e no domingo à noite e mantém laços de auxílio mútuo entre os membros
(ofertas de trabalho, alojamento, babás para as crianças, roupas...),
aos quais propõem também atividades religiosas excepcionais, vigílias de rezas, visitas às outras comunidades fora da Bélgica... A
Semade é um ramo da missão da Assembleia de Deus na Europa,
sob invocação do Espírito Santo, criada em 2000 na Bélgica por
Edvaldo Tavares Gomes, originário da cidade de Goiânia, e falecido prematuramente no final de 2012. A Comunidade Cristã se
apresenta como jovem e moderna e, além de sua sede em Bruxelas, que oferece quatro sessões por semana, tem também filiais
em Antuérpia, Liège e Turnhout.
Os serviços sociais
Para encontrar um trabalho, um alojamento, uma solução para seus filhos, uma ajuda administrativa ou mesmo roupa quente
de inverno, os brasileiros de Bruxelas podem contar com suas
igrejas. Muitos fiéis vivem na precariedade e precisam de apoio.
As igrejas transmitem também a seus fiéis as informações mais
interessantes: Quais são os requisitos para sair da clandestinidade
Empresas familiares
Os fundadores das igrejas mencionadas geralmente gostam
de empregar os membros de sua família na sua empresa religiosa. Para tanto não é preciso debruçar-se longos anos sobre a pa-
187
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
e obter papéis; Onde fazer um curso de francês; Por qual fronteira fazer chegar sua família; Qual é o meio mais barato para
enviar dinheiro; Como alugar um apartamento em Bruxelas e
conseguir relógios de eletricidade e de água para quem não tem
os documentos em ordem.
Para todas estas questões vitais para o recém-chegado é possível
encontrar respostas nas igrejas, através de outros brasileiros que já
tiveram esses problemas e podem comunicar suas experiências e
seus “jeitinhos”. As mensagens fornecidas não têm nada de abertamente político ou, ainda menos, revolucionário. Mas não dizia
alguém há 175 anos (antes de acrescentar seu celebre: a religião é
o ópio do povo): A miséria religiosa é, por uma parte, a expressão da
miséria real e, por outra, o protesto contra a miséria real. A religião
é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração,
como é o espírito de condições sociais, dos quais o espírito é excluído.
Que ligação têm os brasileiros com suas igrejas? Que papel
têm estas em suas inserções? Pode surpreender que na realidade
muitos brasileiros não tenham um apego exclusivo a uma única
igreja, mas podem circular entre várias delas. A proximidade geo­
gráfica facilita esta mobilidade. Se hoje não tem um culto na minha igreja ‘habitual’ posso atravessar a rua e assistir numa outra
igreja, onde vou encontrar algumas de minhas referências e... conhecidos brasileiros. As diferenças dogmáticas desaparecem diante
das semelhanças comunitárias e sociais. O grupo religioso age aqui
como um substituto do grupo familiar. Como todos os seus membros se encontram numa situação parecida de desarraigamento,
pode-se encontrar nesse “ambiente familiar” interlocutores para
exprimir, em seu idioma, suas alegrias, suas dores e suas saudades.
Uma questão se coloca, da mesma forma que, como para todas as situações religiosas em migração: essas igrejas específicas
favorecem a integração ou isolam seus membros da realidade belga? Além do papel que elas se atribuem, de que ajudam muitos
brasileiros a ultrapassar situações difíceis ou mesmo a sobreviver,
algumas dessas igrejas são etapas progressivas para a mistura. Assim a grande comunidade Cristã Brasileira de Anderlecht (Rue
des Deux Gares) reúne um público internacional. Várias outras
igrejas são igualmente ‘mistas’. Lá se encontram, ao lado dos brasileiros, cidadãos portugueses ou originários das antigas colônias
portuguesas na África negra ou ainda de outros países. O idioma
português não é utilizado exclusivamente e dá lugar ao francês ou
ao inglês. O francês pavoneia-se no letreiro em algumas fachadas.
Para a incipiente segunda geração, o português muitas vezes não
é o idioma de melhor compreensão. Assim o ‘recuo’ sobre essas
igrejas comunitárias pode também abrir portas sobre o ‘diferente’,
ser ponte entre o ‘por lá’ e o ‘por aqui’.
Anne Morelli é historiadora, professora na ULB-Universidade Livre
de Bruxelas, onde dirige o Centro Interdisciplinar dos Estudos das Religiões e da Laicidade – CIERL. Um de seus cursos trata da História
das igrejas cristãs contemporâneas. Entre suas obras sobre as minorias
religiosas se destaca o livro Lettre ouverte à la secte des adversaires
des sectes (Carta aberta à seita dos adversários das seitas).
Grupos espíritas criados por brasileiros na
Bélgica e o movimento espírita belga
Fa b i o M e n d e s F u r t a d o
O
movimento espírita é composto por membros que se unem
em grupos para o estudo e a reflexão sobre as obras do francês Allan Kardec. Esses grupos espíritas não contam com nenhum
tipo de apoio financeiro de outros órgãos.
Em 1995 o brasileiro Franciso Bosco e sua esposa, Carolina
Bosco, chegaram a Bruxelas por questões profissionais. Espíritas
desde criança, procuraram logo um grupo para continuar seus
estudos espíritas. Encontraram, assim, um grupo de amigos que
se reuniam semanalmente na casa de um de seus participantes.
Com o passar do tempo o grupo cresceu, os estudos e a prática da
Filosofia Espírita exigiram uma organização mais estruturada. Foi
nesse momento que nasceu a ideia da criação de um centro de
trabalho e estudos aberto ao público em Bruxelas. A ideia desse
centro de estudos começou a se concretizar em fevereiro de 1996
quando alugou-se uma pequena sala. Assim, o CESAK-Centre
d’Études Spirites Allan Kardec, o primeiro grupo espírita criado
na Bélgica por brasileiros, se tornou oficialmente uma ASBL (as-
sociação sem fins lucrativos) em dezembro de 2000. Atualmente
encontra-se na Rue Louis Hap 134, em Etterbeek, e conta com
várias atividades semanais em francês.
Em 2001 chegou à Bélgica Marcia Alves, casada com o belga Luc Mary, nativo das Ardenas. Desde a sua chegada sentia a
necessidade de encontrar outros companheiros de ideal espírita,
visto já ser espírita e membro do Grupo Caminho da Esperança no Rio de Janeiro. Por estar em Auby-sur-Semois, longe dos
grandes centros urbanos, levou vários anos para que isto acontecesse. Em 2008 com a participação de uma amiga médica e
outra enfermeira no Congresso de Medicina Espiritualista em
Liège, o Espiritismo veio à sua porta. Suas amigas solicitaram
uma reunião de esclarecimentos que foi realizada em sua casa, com a presença de 21 pessoas, para ouvir Jean-Paul Evrard,
presidente da União Espírita Belga. Assim, naquele dia nascia
o Groupe Philosophique Spirite ‘Nosso Lar’, atuante na região
de Auby-sur-Semois.
188
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Em 2005 um terceiro grupo espírita começa a se criar em torno de um grupo de amigos brasileiros que também se reuniam
semanalmente em Saint Gilles, Bruxelas. Liderados pela brasileira Flavia Veríssimo, um local foi alugado para acomodar o grupo
nascente que crescia. Por volta de 2006 é criado o NEECAFLA –
Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion. Com o crescer
do grupo e de suas atividades, o NEECAFLA se torna uma ASBL
em 2010, época em que o grupo contava com aproximadamente 10 membros ativos. Atualmente encontra-se na Rue d’Albanie
103, em Saint-Gilles, e promove diversas atividades semanais em
português e em francês voltadas para o público.
Esses grupos se integram e trabalham em conjunto com o movimento espírita belga com a adesão à União Espírita Belga, que
se encontra na cidade de Liège. A União Espírita Belga realiza
reuniões trimestrais para a reflexão e troca de experiências entre os
diversos grupos espíritas existentes no país. A União Espírita Belga
foi criada em 1882 e mantém vivo o movimento espírita na Bél-
gica desde então. Os grupos CESAK, NEECAFLA e Nosso Lar,
que foram criados por brasileiros, se únem ao movimento para o
avanço das ideias espíritas neste país.
Por seu caráter livre e desprovido de hierarquias, o movimento
espírita cresce pelo esforço e pela união de seus próprios membros.
As atividades caritativas deste movimento se baseiam principalmente no apoio moral e espiritual ao público participante. Eventualmente são realizadas atividades de caridade para dar apoio financeiro a movimentos de auxílio ao próximo, como, por exemplo,
o programa STOP Famine Corne de l’Afrique e o grupo Coeurs
SDF ASBL de Liège.
Fabio Furtado é Engenheiro de Computação pela Universidade Federal de São Carlos, atuando há vinte anos na área de desenvolvimento de sistemas no Brasil, França e Bélgica. Participa ativamente no
Movimento Espírita Belga e é atualmente presidente do NEECAFLA
– Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion em Bruxelas.
Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé na Bélgica
Arnaud Halloy
A
princípio, nada predestinava Alain, professor de Moral na
cidade operária de La Louvière, a tornar-se pai de santo e,
ainda menos, a abrir um terreiro de candomblé de caboclo em
Carnières, pequena cidade valona situada próximo à cidade de
Binche (conhecida por seu carnaval...). Mas os orixás lhe fixaram
um outro rumo. É este percurso religioso fora do comum que
pretendo relatar aqui. Todo texto biográfico, descrito em poucas
linhas, encontra o desafio da escolha dos fatos a relatar, pois é
nos detalhes de cada evento que se traça a trama de uma vida.
Me contentarei, então, à imagem de um ‘story-bord’, em orientar
a descrição naquilo que me parece terem sido os momentos determinantes do encontro entre Alain e o mundo do candomblé.
Alain é um ativo participante do carnaval de La Louvière onde desenvolveu muito cedo uma paixão pelo folclore. E foi esta
paixão que o levou a viajar pela África e também pelo Brasil, onde, em 1974, visitou pela primeira vez um terreiro de candomblé:
‘Achei engraçado... Para não dizer interessante... Sem mais’. Após
quatro anos, ele retornou ao Brasil, desta vez para visitar sua irmã,
que havia se instalado na pequena cidade de Alagoinhas, interior
da Bahia. E foi durante esta segunda estadia que os eventos tomaram um rumo inesperado. Desta vez, o encontro com o candomblé ocasionou-lhe uma verdadeira revelação espiritual: por
várias vezes, Alain apresentou sinais de uma ‘aproximação’– os
signos precursores de uma possessão religiosa. Esta situação era
surpreendente pois, na época, era bastante difícil para um branco – salvo talvez alguns etnólogos! – ter acesso a estes cultos, e
ainda mais raro que um estrangeiro fosse ‘tomado’ por uma divindade africana, no caso o orixá Oxóssi, a divindade da caça. Esta
segunda viagem marcou o início de uma série de acontecimentos
que impuseram a Alain, na época ateu convicto, a integrar esta
dimensão espiritual à sua própria existência.
Entre os eventos importantes, podemos citar o episódio acontecido no dia 23 de abril de 1979, dia de São Jorge, no qual Oxóssi ‘se
manifestou’ através de uma incorporação no meio da cozinha da
casa dos pais de Alain, que ficaram bastante impressionados com
a cena. Em decorrência deste evento, seus pais convenceram-no
a consultar um psiquiatra. Para tranquilizá-los, Alain foi consultar
o doutor Jean Dierkens, professor emérito em psicologia médica
na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), bastante conhecido
na época por suas apresentações na televisão. O resultado dessa
entrevista foi positivo, pois o eminente psicólogo encorajou Alain
a ‘insistir no erro’, ou seja, continuar a experiência, como conta
Alain com bastante humor.
Nos anos seguintes, Alain realizou diversas viagens a Alagoinhas e, a cada uma de suas visitas, ele ia gradativamente mergulhando no mundo do candomblé, desenvolvendo assim suas
capacidades mediúnicas. Depois de uma década de frequência
assídua, Alain adquiriu o direito de abrir seu próprio terreiro e de
iniciar seus próprios adeptos. Foi assim que pouco a pouco, e não
sem dificuldades, ele edificou o que viria a ser o candomblé de
caboclo de Carnières.
Em consequência de uma série de decepções e dificuldades
relacionais entre os membros da comunidade religiosa formada
ao longo dos anos, Alain decidiu fechar o terreiro de Carnières
em 2000 e vender a casa familiar que abrigava o culto e também
um museu dedicado à escravidão transatlântica e às religiões afro-
189
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
-americanas. Após vários anos de reflexão e hesitação, pontuadas
por uma longa estada em Salvador e a abertura de um restaurante brasileiro em Carnières, Alain fundou uma nova casa de culto,
desta vez em La Louvière.
Como testemunham a breve história do terreiro de Carnières
e também, numa escala mais ampla, a escravidão transatlântica,
as crenças e práticas religiosas não têm nem fronteiras nem nacionalidades: elas parecem, tanto quanto o ser humano desde há
dezenas de milhares de anos, destinadas a migrar e a se transformar ao longo dos encontros e das circunstâncias sócio-históricas.
Escolher a Bélgica como domicílio não é um negócio fácil para as
entidades afro-brasileiras, mas este desafio foi vencido há mais de
30 anos por Alain. E hoje ele pode contar também com o apoio
de seu companheiro brasileiro, ele próprio iniciado no candomblé.
A eles eu exprimo aqui toda a minha admiração.
As informações mencionadas acima fazem parte de uma pesquisa etnográfica realizada no candomblé de Alain entre 1998 e 2000.
Esta pesquisa resultou na redação de uma dissertação de Mestrado
na Universidade Livre de Bruxelas (“Dieux en Exil. Adaptations et
apprentissage rituel dans un candomblé de caboclo en Belgique”)
e na publicação de um artigo (“Um candomblé na Bélgica. Traços
etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades”,
na Revista de Antropologia – USP, 2004, 47(2): 453-493).
Arnaud Halloy é antropólogo na Universidade de Nice Sophia-Antipolis.
Bibliografia Geral da Parte 5
Sobre os jesuítas
Sobre os beneditinos
Juarez Donizete Ambires. ‘Jacob Roland: um jesuíta flamengo na América Portuguesa’.
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Item Diverses extraicts des Lettres escrites par aucuns de ladicte Compagnie, qui du
Païs-bas ont esté envoyez aus Indes Occidentales en l’an 1615. Valenciennes, Ian Vervliet, 1620, p. 76-80; F. Kieckens. «Une sucrerie anversoise au Brésil à la fin du XVIe
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190
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Sobre José Moreau
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Ana Maria de Bidegain. La organización de movimientos de juventud de acción católica en
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M. P. Carvalheira. ‘Momentos históricos e desdobramentos da ação católica brasileira’. Ed. Leonardo Boff, Os 50 anos da JOC, Revista Eclesiástica Brasileira, 1983, 43,
fasc. 169, p. 10-28; JOCI, dossiê relações internacionais, cartas de Jacques Jerome,
09.05.1955 e 16.07.1956; Denise Verschueren. ‘Je les appelle’. Perspectives de catholicité, 22-23, 1963-1964, p.11-14.
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Sobre Orval
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Louis Brouwers. Vijftig jaar christelijke werkgeversbeweging in België / Responsables chrétiens d’entreprises: cinquante ans d’histoire. Bruxelas, 1974, 2 t.; Declaração de Princípios da Associação de Dirigentes Cristãos De Empresa (A.D.C.E.), São Paulo 17 ago.
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Sobre as freiras belgas
Informações fornecidas pelas irmãs vicentinas Thereza Confortin e Suzanne Smedts em
1975; Lira, Maria Helena Câmara. Academia das santas virtudes: a educação do corpo
feminino pelas Beneditinas missionárias nas primeiras décadas do século XX. Recife:
Maria Helena Câmara Lira, 2009; Mesquita, Madre Tarcísia P. As Damas Cristãs no
Brasil: 1896-1996. Recife: Damas Cristãs, 1996. O livro da madre Tarcísia de Masquita
foi elaborado a partir de documentos originais manuscritos existentes no colégio do
Recife: Itinerário da Viagem, Diário da Casa da Sagrada Família de Olinda e diversas
cartas enviadas para a Bélgica pelas fundadoras do colégio de Olinda; Nunes e Silva,
Ramsés. ‘As Damas da Instrução Cristã no Brasil da Transição Secular: 1897-1912’.
IX Seminário ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’. Universidade Federal da
Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012; Santos, Carla Adriane Arrieira dos. Colégio Regina Mundi: A Construção de uma identidade (1967-1970). Maringá, 2012;
Yves Segers e. a. 150 jaar Zusters van het Heilig Hart van Maria van Berlaar, 18451995. Lovaina, Kadoc, 1995; F. Van den Berghe, J. Van den Heuvel e G. Verhelst.
De Zwartzusters van Brugge. Bruges, Ed. Marc Can de Wiele, 1986. Quelques notes
sur les débuts de la province brésilienne de la Congrégation de Saint-André, cópia recebida da sua sede em Ramegnies-Chin.
Bibliografia sobre a maçonaria e o livre-pensamento
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José Castellani e William Carvalho. História do Grande Oriente do Brasil. A Maçonaria na História do Brasil. São Paulo,Madras Editora, 2009; Eugène Hins. Un an au
Brésil. Mons, Bibliothèque de la jeunesse belge, 1884 ; Antonio Henrique de Oliveira
Marques. La Franc-maçonnerie portugaise 1727-1820. París, Editions maçonniques
de France, 2001 ; Marc Mayné. Eugène Hins. Une grande figure de la Première Internationale en Belgique. Bruxelas, 1994; La Pensée, 25.12.1910, nº 309; 14.01.1912,
nº 364; 17.11.1912, nº 407; 30.11.1913, nº 460 ; 30.03.1913, nº 426; 09.11.1913, nº
457; 04.08.1912, nº 393.
Sobre os espíritas
Websites: União Espírita Belga: http://www.spirite.be; NEECAFLA ASBL: http://www.
neecafla.be; CESAK ASBL: http://bruxelles.cesak.org
Sobre o candomblé
Arnaud Halloy. ‘Um candomblé na Bélgica. Traços etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades’. Revista de Antropologia-USP, 2004, 47(2): 453-493.
191
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
192
o brasil entra em cena
parte 6
O Brasil Entra em Cena
193
parte 6 – o brasil entra em cena
194
o brasil entra em cena
O Brasil entra em cena
Eddy Stols
M
arcus van Vaernewyck, cronista de Gand, comparava as lutas entre Tupin Imbas oft Tupin Ikins com a briga violenta
e o maltrato dos presos entre católicos e protestantes nas ruas daquela cidade, em 22 de dezembro de 1566, no primeiro ano dos
distúrbios religiosos em Flandres. Esta conexão, à primeira vista
insólita, se devia, sem dúvida, à leitura de um dos dois livros seminais da primeira brasiliana, André Thevet, Les Singularitez de
la France Antarctique, e Hans Staden, Warachtige Historie ende
beschrijvinge eens lants in America ghelegen, wiens inwoonders wilt,
naeckt, seer godloos, ende wreede menschen eters zijn...
Tinham saído do prelo em Antuérpia, em 1558, ainda no apogeu desta florescente metrópole do comércio internacional. Em
edições baratas, língua vernácula, capítulos bem articulados e dezenas de gravuras, descreviam os modos de viver e o meio ambiente natural dos índios brasileiros e obtiveram maior êxito que
as obras mais doutas em latim. Sobretudo o livro de leitura fácil
do artilheiro alemão Staden, que, na volta de sua catividade entre
os canibais, passou por Antuérpia e lá contou suas aventuras na
casa dos Esquetes. Ganhou muitas reedições, uma primeira em
Antuérpia em 1563.
Com estes livros o Brasil irrompeu com um perfil mais nítido e
uma temática própria na representação da América. Antes, apenas
descoberto, o Brasil já havia entrado no imaginário de Flandres,
mas de maneira confusa e mesclada com outras terras do ultramar.
Em 1503 um pintor ou comerciante flamengo de Lisboa, João
Draba, ofereceu, segundo Valentim Fernandes, uma imagem de
índio e uma pele de jacaré à Capela do Santo Sangue em Bruges,
mas não se sabe se foram expostas lá como ex-votos.
Uma crônica de Bruxelas registrou, em 1506, a descoberta
de uma grande ilha, onde os homens andavam nus. Anos depois,
nas tabernas de Antuérpia, Thomas Morus ouviu do marinheiro
português Raphael Hythlodaeus histórias do ultramar que lhe inspiraram o cenário de sua De Utopia, 1515. Se índios mexicanos
talvez se apresentaram em espetáculos nos Países Baixos, inspirando as máscaras do palácio do príncipe-bispo de Liège, nada consta
de seus congêneres brasileiros. Nas famosas festas de Binche, em
1549, os nobres dançaram ainda vestidos de peles como os selva-
Gravura de Jacobus Sluperus no Livro dos Costumes, de Abraham de Bruyne,
impresso em Antuérpia por G. van Parijs por volta de 1570.
195
parte 6 – o brasil entra em cena
gens dos balés medievais. Na segunda metade do século XVI, junto com os livros, o mapa do Brasil ganhou presença e volume na
cartografia de Mercator e Ortelius. Ao mesmo tempo, traziam-se
do Brasil, em abundância, saguis, macacos, papagaios e araras como animais de companhia, ao ponto de vendê-los na feira, como
registrou uma pintura de Joachim Beuckelaer em 1566.
Mercadorias brasileiras, do pau-brasil ao açúcar, agora mais
abundante e barato, entraram no consumo corrente, enquanto
se experimentavam em cachimbos as primeiras pitadas do tabaco
brasileiro. Formavam-se gabinetes de curiosidades como o Museo
instructissimo de Jacobo Plateau, em Tournai, com tatus e colibris,
ou a coleção do Duque de Arenberg, especializada em armas e
plumaria dos índios. Artistas como Hans Bol, Philippe Galle e Jan
van der Straeten imaginavam suas pescarias, enquanto o naturalista Carolus Clusius inseriu as novidades brasileiras numa síntese
enciclopédica, Exoticorum libri decem, 1605.
Se um aparente nivelamento entre uma sociedade cristã e
uma selvagem surpreende – como na supracitada referência de
Van Vaernewyck aos flamengos como índios –, este aflorou mais
explicitamente nas comparações feitas por Jean de Léry e Michel Montaigne sobre o canibalismo dos índios brasileiros e as
barbaridades entre cristãos.
Algum relativismo cultural, subjacente e mais pragmático, se
veiculou pela mesma época em Antuérpia na exaltação do comércio internacional pacífico e do intrépido mercador viajante pelo
mundo e em contato com civilizações diferentes. Textos como os
prólogos do Landjuweel, o grande festival de teatro popular em
1561, justificavam, perante as resistências da agricultura e artesa-
nato locais, seu papel indispensável no abastecimento de matérias-primas, ao passo que os artistas plásticos inventavam e desenvolviam a temática dos Quatro Continentes na pintura, gravura
e arte efêmera. No arco do triunfo dos portugueses na entrada de
Antuérpia, do Arquiduque Ernesto, em 1594, Brasília, antes ainda
representada sob o vulto da América, acedeu, num desenho de
Maarten de Vos, ao seu próprio status em pleno, ao lado da Índia,
Etiópia e Mauritânia.
Entretanto, a guerra religiosa e civil em Flandres e o crescente antagonismo entre católicos e protestantes que, além de tudo,
repercutiram no bloqueio ou na pirataria do comércio marítimo
regular com o Brasil, fizeram abortar esta equanimidade humanista, algo respeitosa da alteridade indígena.
Com a Contrarreforma triunfante nos Países Baixos meridionais, seus poderosos, sua nobreza e sua igreja esvaziaram o desafio
cultural do primeiro Brasil e reduziram as interrogações a meros
estereótipos alegóricos. Confinaram os índios numa ciranda de
plumas, ao passo que domesticaram as araras insolentes como
emblema da fidelidade conjugal.
Referências
Vaernewyck, Marcus Van. Van die beroerlicke tijden in de Nederlanden en voornamelijk in Ghendt, 1566-1568. Ed. E. Vanderhaeghen, Gand, 1872.
Stols, Eddy. ‘De triomf van de exotica of de bredere wereld in de Nederlanden’. Eds.
Werner Thomas e Luc Duerloo, Albert &Isabella, 1598-1621, Essays. Turnhout,
1998, p. 291-301.
Stols, Eddy. ‘Alegorias fossilizadas o redivivas? Las cuatro partes del mundo en las artes
visuales de los Países Bajos (siglos XVI-XVIII)’. Eds. Scalett O’Phelan Godoy e Carmen Salazar-Soler, Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globalización en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Lima, 2005, p. 853-885.
Brasileiros barrocos
J o h a n Ve r b e r c k m o e s
E
m 5 de dezembro de 1634, no palácio Nassau, em Bruxelas,
alguns membros da alta nobreza abordaram o palco fantasiados de Topinanbour no Balet des princes indiens, apresentado em
homenagem ao novo governador-geral dos Países Baixos meridionais o cardeal-infante Ferdinando da Áustria. Infelizmente, não
se sabe como, andavam ataviados no meio de um elenco exótico
com escitas e mouros. Como o balé dos príncipes índios foi exibido quando Gastão de Orléans e Marie de Medici se encontravam
ainda em Bruxelas, devia ter um toque francês.
Nos meios da corte francesa e de seu balé, os tupinambás se
tornaram populares desde o final do século XVI, dentro da facção dos povos menos civilizados. Estes Topinanbours enfeitaram-se provavelmente com fantasias de plumas, a exemplo de uma
gravura sem data impressa em Antuérpia no início do século por
Jacob de Gheyn.
Numa mascarada carnavalesca aparece, entre um selvagem
com cabeça de coruja e uma velha mulher luxuosamente vesti-
da, uma índia trajada com uma tanga de plumas, uma couraça
com peitos, um manto de plumas, um chapéu de plumas e uma
ligadura em cada joelho. Além da força selvagem da amazona,
chama a atenção sobretudo seu adorno com plumas, doravante
característico do índio para todo o mundo.
Esse rico vestuário contrasta com as gravuras sobre os tupis
ou tupinambás, que nos supracitados livros populares de Thevet
e Staden eram sempre representados nus, com apenas enfeites
de plumas no corpo como única roupa. Semelhantes imagens de
índios nus e armados de bordunas, flechas e arcos foram reproduzidas também no livro do huguenote Jean de Léry, Histoire d’un
voyage fait en la terre du Brésil, publicado em 1578 e de larga difusão europeia com tradução para o neerlandês em 1597. Mesmo proibido pela censura, o livro entrou também em bibliotecas
privadas dos Países Baixos meridionais e foi até mencionado no
início do século XVII como livro escolar.
Num livro flamengo de trajes, impresso por volta de 1570 em
196
o brasil entra em cena
Dançarinos brasileiros nas ruas de cidades flamengas durante cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores.
Antuérpia, tanto por Guilliam van Parijs como por Joannes Bellerus, o gravador Jacobus Sluperus apresenta o homem e a mulher brasileiros nus e qualificados como monstruosos. Somente o
homem leva um pequeno penacho na cabeça e um enduape ou
coroa de plumas no traseiro.
Num outro livro antuerpiense de trajes de 1581, de Abraham
de Bruyn, se vê um casal parecido de índios brasileiros. As variantes mais horríveis de índios emplumados surgem nas gravuras dos
livros sobre a América, de Théodore de Bry, de Liège. Esta foi a
primeira coleção pan-europeia de livros de viagem sobre outros
continentes e as suas gravuras mostravam com muita minúcia o
canibalismo, a idolatria e a crueldade dos índios. As gravuras de
Bry mostraram ainda por vários séculos os autóctones brasileiros
como canibais desnudos.
Mesmo assim, a outra representação dos índios brasileiros
muito bem vestidos se adequava melhor às festas em terras da
Contrarreforma católica. Em 1613 o senhor de Rasilly levou
alguns índios do Maranhão a Paris, onde foram batizados. Na
ocasião foram convidados a dançar. O desenhista Joachim Duviert (1580-1648) e o gravador Pierre Firens (1580-1638), ambos
antuerpienses trabalhando em Paris, registraram, num retrato ao
natural, os diferentes passos de sua dança. Pela roupa parecem
quase europeus: meias longas, calças curtas bufantes, camisa de
manga longa e gola alta. De índios, têm somente sua coifa curta
em quatro deles, e longa, com plumas cobrindo as costas, nos
outros dois. Primam nesta imagem o prazer de dançar e a humanidade desses índios.
Dançarinos brasileiros eram vistos também nas ruas das cidades flamengas durante os cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores. Na entrada triunfal do Arquiduque Ernesto
da Áustria em Antuérpia, em 14 de junho de 1594, um cortejo
de brasileiros emplumados chamou a atenção com suas danças
exuberantes. O livro de homenagem os menciona como Brazi-
lianen e a gravura mostra uns 14 andando na frente e ao lado de
etíopes, sobre camelos e precedendo seu rei em cadeirinha. Os
brasileiros somente trajam tangas e dançam gesticulando com
seus braços, tocando música ou levantando espelhinhos para o
rei etíope. Estes brasileiros, gingando alegremente, se tornaram,
por volta de 1600, em pleno período barroco, um supletivo constante nas festividades.
Em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, participaram num carro
alegórico do Ommegang – um desfile tradicional nas principais cidades flamengas –, em homenagem à Arquiduquesa Isabela, com
o maior requinte indumentário. A pintura por Denijs van Alsloot
(antes de 1593-1626) mostra quatro índios porta-estandartes ataviados com uma túnica curta de plumas de diferentes cores e de uma
deslumbrante manta de plumas vermelhas, que desce da coifa e
cobre suas costas e pernas por inteiro. Seus estandartes com o monograma IHS, da ordem jesuítica, parecem simbolizar a expansão
da religião cristã entre os índios americanos. Na parte traseira do
carro senta um soberano branco com cetro, que se deixa abanar
por um menino africano com um para-sol de plumas vermelhaças. No meio, uma grande gaiola prende um jovem índio pagão
debaixo de um bando de papagaios e araras. Estes reaparecem em
abundância na decoração do pano, que cobre a carroçaria.
Aos jesuítas dos Países Baixos meridionais, que tinham frequentes relações com o Brasil, visto como terra de missão e de
índios a vestir, convinha uma imagem intermediária, nem escandalosamente nu, nem adornada demais. Ainda mais quando, festejando em 1640 o centenário da ordem, os jovens da retórica
em Bruges representaram, no seu teatro escolar, temas brasileiros
como a figura de José de Anchieta.
Na sua grande igreja de Francisco Xavério, construída em Malines nos anos de 1670, o arquiteto jesuíta integrou, com exuberância, índios no programa iconográfico do interior. O banco de
comunhão é decorado com emblemas de índios com cocares.
197
parte 6 – o brasil entra em cena
O gigante índio no
cortejo Ros Beiaard de
Dendermonde.
Mostra ainda um missionário, que carrega nas costas um menino
índio. Como um dos representantes dos quatro continentes, um
índio, de forte bigode e braços musculosos com pulseiras emplumadas, sustenta o púlpito. Numa série de pinturas sobre a vida
de Francisco Xavério se encontram também índios com cocares
reconhecíveis entre a multidão extasiada pelo santo.
Esta propaganda em Malines para estimular as missões ao Brasil também é tributária do belo livro que o jesuíta antuerpiense
Cornelius Hazart tinha publicado, a Kerckelycke Historie van de
gheheele wereldt (A história eclesiástica do mundo inteiro). No
primeiro dos quatro volumes, publicado em 1668, um capítulo sobre o Brasil trata de José de Anchieta e de três martírios de alguns
jesuítas. Três gravuras ilustram o texto. Em duas se representam
índios perigosos com tangas de plumas, flechas e arco, e na terceira, Anchieta no meio de animais selvagens. Hazart tinha predicado
também sobre estes temas na igreja jesuítica de Antuérpia e não é
excluído que, por essa ocasião, se mostraram imagens desses índios
selvagens, por exemplo, em grandes telas de pano.
Desta maneira o Brasil era visualmente presente, até o final
do século XVII, como uma terra onde as fronteiras da civilização
podiam ainda avançar. Como tal, se confundia frequentemente
com a África. Assim o pintor Jan van Kessel justapõe no seu painel
América, da série Os quatro continentes (1666), índias mais claras
com homens negros de cocares índios. Filhos deste fascínio confuso são os dois gigantes tapuyas com cocares que se carregam ainda
nos cortejos de Dendermonde, os dançarinos índios representando a Ásia na toalha de damasco de Courtrai ou, ainda, o menino
índio com arco e flechas no lustre rococó dos Quatro continentes
de Frans Allaert (1770), do Museu de Arte Decorativa de Gand.
Johan Verberckmoes é professor de História Cultural da Época Moderna na Universidade Católica de Lovaina. Escreveu um doutorado
sobre o Riso, o Humor e os Livros de piadas nos Países Baixos espanhóis nos séculos XVI e XVII. Suas pesquisas tratam do humor e das
emoções na cultura da época moderna, dos intercâmbios culturais dos
Países Baixos meridionais com os impérios português e espanhol, das
correspondências privadas e da vida cotidiana das famílias nobres nos
Países Baixos meridionais.
198
teatro, dança, circo
A da n ça na Bél g i ca a pa r t i r d o s é c u l o X X
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
N
o intuito de traçar os intercâmbios ocorridos no domínio
da arte da dança entre o Brasil e a Bélgica, abordaremos
o assunto a partir deste período, no qual se observa grande fluxo de migração de artistas brasileiros, tanto nas áreas da dança
clássica, moderna e contemporânea como na área das danças
populares brasileiras.
Percorreremos as diferentes etapas da história da dança na Bélgica até os dias de hoje, através dos percursos artísticos individuais
e de alguns depoimentos de profissionais ligados a esta arte, que
participaram ou ainda participam ativamente da cena da dança
nos dois países. Inevitavelmente, evocaremos o papel importante
que teve a Bélgica especialmente na evolução da dança contemporânea a partir dos anos de 1980 e as eventuais repercussões na
dança brasileira.
foi convidado a se instalar em Bruxelas pelo diretor do Théâtre
Royal de la Monnaie, Maurice Huisman, e fundou o então Ballet
du XXe siècle, dando início a um período glorioso para a dança
belga. Logo no começo da formação deste balé já se encontrava
ao lado de Maurice Béjart uma brasileira, a grande bailarina Laura
Proença, que interpretou inúmeros balés ao lado do próprio Béjart e de bailarinos que marcaram a história da dança, como Jorge Don, Suzanne Farrell, Tania Bari, Paolo Bortoluzzi e Rosella
Hightower entre outros.
Outra figura importante da dança mundial que também interpretou as obras de Béjart é a brasileira Márcia Haydée, que foi
uma das grandes bailarinas atrizes de sua geração, aclamada como
a “Maria Callas da dança”.
Cristina Dias é formada em dança no Rio de Janeiro e em Nova York,
vive na Europa desde 1986. Foi assistente coreográfica de Frédéric Flamand durante 20 anos no centro coreográfico da comunidade francesa
Charleroi-Danses e no Ballet National de Marseille. Hoje em dia se
dedica à direção de filmes de dança.
A era Maurice Béjart
O intercâmbio entre os dois países na área da dança foi marcado pelo ano de 1960, quando o coreógrafo francês Maurice Béjart
Depoimento de Rachel da Costa Cunha
A
ssim como os pássaros deixando-se reger pelos ventos que os
conduzem longe das histórias às vezes contraditórias dos homens, os bailarinos se deixam levar pelos voos que determinarão
uma certa evolução que nos escapa; caminhos de sofrimentos, mas
que inspiram energias novas.
Assim vivi no Brasil esse mergulho numa arte extraordinária;
assim configurei quando, chegando à Bélgica, as impressões que
tento exprimir nesta pequena descrição comparativa com um
voo rasante, mergulhando uma segunda vez numa época diluí-
da na inovação perpetuada por Maurice Béjart, revolucionário
da dança moderna. Assim como os pássaros entre céu e terra, os
bailarinos integram esta disciplina, esta humildade, esta busca
final incontrolável num êxtase que ultrapassa o implante em tal
ou tal hemisfério.
Rachel da Costa Cunha é Pedagoga de dança, licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é diretora
do Centre de Ballet Mimésis, em Wavre, Bélgica.
199
parte 6 – o brasil entra em cena
A Escola Mudra
Cristina Dias
B
éjart criou em 1970 a escola internacional Mudra, escola
superior pioneira na Europa, onde foram formados grandes
coreógrafos e bailarinos, tais como Maguy Marin, Ohad Naharin, Anne Teresa De Keersmaeker, Michèle Anne de Mey, Pierre
Droulers, Michèle Noiret e Nicole Mossoux.
Obviamente deveremos citar alguns dos muitos brasileiros que
fizeram parte desta aventura e que voltaram para o Brasil, como a
bailarina e atriz Juliana Carneiro; o primeiro bailarino do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, Francisco Timbó; a coreógrafa Célia
Gouvêa; o bailarino Linhares Junior que, após uma imensa carreira
na Bélgica e Holanda, voltou para o seu Ceará natal e continua a incentivar este intercâmbio artístico, colaborando com seu irmão David Linhares (diretor da Bienal de Dança do Ceará, festival no qual
a participação de companhias belgas é intensa). Outra figura que
se destaca é o coreógrafo e bailarino Claudio Bernardo, diretor da
Cia As Palavras, que completará 20 anos de existência na Bélgica.
Depoimento de Claudio Bernardo
E
m 1981, quando deixei Fortaleza para continuar meus estudos
de dança em São Paulo, já levava na mala o livro Um instante
na vida do outro, do coreógrafo francês radicado na Bélgica Maurice Béjart, e me dizia secretamente que a Bélgica seria meu Ceará
na Europa. Outros fatos e coincidências relevantes esclareceram
mais tarde este destino. Durante os anos vividos entre São Paulo
e Rio de Janeiro, trabalhando com o Ballet Stagium e Victor Navarro, pude encontrar com dois brilhantes intérpretes da dança no
Brasil, Robson Rosa e Francisco Timbó, ambos cearenses, que me
aconselharam a seguir seus passos e ir estudar na escola internacional Mudra, fundada por Béjart em Bruxelas.
Assim, em 1986 cheguei ao coração da Bélgica e, logo no
ano seguinte, minha primeira coreografia feita com os alunos da
escola, com apresentações na África e na Europa, me consagrou
coreógrafo e Béjart me levou para a Suíça, onde recebi o prêmio
“Philipe Maurice” pela minha segunda criação no concurso ali
realizado. Meu retorno a Bruxelas marca uma ruptura de estilo
importante na minha carreira artística, com a visão de trabalhos
dos novos coreógrafos belgas, tais como Anne Teresa De Keersmaeker, Jan Fabre e Nicole Mossoux, como também o trabalho
com Frédéric Flamand. Seu olhar inovador entre dança e novas
tecnologias foi precioso para minha formação.
Desde 1991, dedico-me inteiramente à formação do meu repertório como coreógrafo. Nesse mesmo ano tornei-me artista associado do teatro Atelier Sant’Anne, sob a direção de Serge Rangoni, o qual, além de termos uma sólida cumplicidade profissional,
veio a tornar-se meu companheiro. Em 1994, a adoção de nosso
filho, Benjamin, marcou um passo decisivo para uma construção
familiar neste país.
Fundando minha companhia As Palavras em 1995, meu trabalho se consolidou junto à comunidade francesa da Bélgica e, dois
anos depois, com a residência artística em Mons, veio um número
importante de criações premiadas e de sucesso internacional. As
O bailarino
Claudio
Bernardo,
que fundou a
Companhia
As Palavras em
1995.
colaborações com artistas belgas e de diferentes países alimentaram esse processo. Minha chegada à Bélgica, com 21 anos de
idade, foi decisiva para a minha formação profissional, para minha
família e minhas amizades. Penso que a distância das minhas raí­
zes foi fundamental para a minha formação como coreógrafo e
artista; isso me permitiu analisar minha cultura ao mesmo tempo
em que encontrei outra, buscando novos espaços de descobertas
e reflexões sobre meu enquadramento no mundo.
Os cearenses são considerados despretensiosos, humoristas e
trabalhadores, adoram desbravar fronteiras e estão sempre em êxodo pelo mundo. Na Bélgica, mesmo distante da minha geografia e
do meu clima, encontrei um povo parecido com o meu, generoso,
com grande senso de humor, chegando a desarmar o outro rindo
de si mesmo. Uma gente que concilia diferenças na tolerância e
no respeito, contornando os conflitos com constância dentro da
formação das suas comunidades e do seu acolhedor posicionamento como sede da comissão europeia. O cidadão belga que agora
sou, o cearense que continuo a ser e esse trajeto que continuo a
traçar, constituem uma grande parte do que define a minha obra
e a minha posição em relação ao humano. Estas duas culturas me
formaram e sou-lhes infinitamente grato.
200
teatro, dança, circo
A e vol ução da da n ça c o n t e mp o r â n e a na B élgi ca
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
E
m 1991, a dança contemporânea belga viveu um momento
decisivo. Este grande movimento artístico, que se manifestava
desde os anos 80 com o aparecimento da chamada vague flamande
obteve importante apoio político. Podemos dizer que assistimos a
uma verdadeira explosão de produções coreográficas de qualidade
inovadora e intensa, que sacudiram os códigos preestabelecidos,
com a formação de importantes companhias de dança representadas até hoje no contexto internacional. Esta riqueza de produções,
inevitavelmente, atraiu para este pequeno país um fluxo enorme
de artistas. A circulação de bailarinos e coreógrafos vindos dos
quatro cantos do mundo, inclusive do Brasil, no território era e
continua sendo evidente.
Como exemplo do interesse dos artistas belgas pelos artistas
brasileiros não podemos deixar de mencionar o coreógrafo Frédéric
Flamand que, desde quando dirigia sua Cia. Plan K, fundada em
1973 em Bruxelas, já colaborava com alguns artistas brasileiros, tais
como Elisabete Santos, o maravilhoso bailarino Ricardo de Carvalho (que nos deixou precocemente) e os bailarinos Linhares Junior
e Claudio Bernardo (já citados) que, após terminarem a escola
Mudra, fizeram parte da criação do espetáculo “La Chute d’Icare”.
Estas colaborações continuaram mais tarde, quando Frédéric
Flamand fundou o primeiro centro coreográfico da comunidade
francesa, Charleroi-Danses, com os bailarinos Gustavo Miranda,
Marcelo de Sá Martins, Anderson Santana – que também dançou no Royal Ballet de Flandres e hoje dirige a escola Brussels
International Ballet – e Milton Paulo, que chegou à Bélgica por
intermédio de Claudio Bernardo.
Outros artistas brasileiros, que participaram intensamente da
evolução desta arte no país, voltaram para o Brasil, como o coreógrafo e professor Airton Tenorio; outros continuam atualmente colaborando com o desenvolvimento da dança belga, como Juliana
das Neves, assistente e intérprete de Alain Platel; Ricardo Ambrosio,
que dança com Wim Vandekeybus; Carlos Alberto Paniz Garbin,
que cursou PARTS e é bailarino de Rosas há alguns anos, tendo participado da criação de The Song, En Atenden, Cesena e da remontagem de Drumming; e Flávia Ribeiro Wanderley, que criou várias
coreografias com bailarinos profissionais, mas também com pessoas
que não praticam a dança, incentivando-as a descobrir esta arte.
O espetáculo “La
Chute d’Icare”,
que contou com
os bailarinos
brasileiros
Linhares Junior e
Claudio Bernardo
em sua criação.
Cena do
espetáculo
“Cesena”, que
contou com a
participação de
Carlos Alberto
Paniz Garbin em
sua criação.
Ricardo Ambrosio,
que dança com
Wim Vandekeybus.
201
parte 6 – o brasil entra em cena
Depoimento de Milton Paulo
C
omecei a dançar em 1994 na cidade de Fortaleza, tendo uma
formação eclética. Fazia parte da primeira turma do Colégio
de Dança do Ceará, um projeto piloto para a dança nessa cidade,
quando resolvi participar da audição da companhia As Palavras,
de Claudio Bernardo. Fui aceito e trazido para a Bélgica. Fiz parte dessa companhia de 2000 a 2005 e, neste meio tempo, escolhi
Bruxelas como cidade adotiva. A cena belga se apresentava como
uma grande potência, as propostas estéticas me pareciam bem
interessantes: a proximidade das fronteiras europeias, o fluxo de
informação e o contato com as diferentes abordagens de dança
me pareciam vitais.
O bailarino Milton
Paulo, nomeado
“artista conselheiro”
em 2011 em matéria
de dança no projeto
“Danse à l’école”
para trabalhar
juntamente com o
Centre Dramatique de
Wallonie por l’Enfance
et la Jeunesse.
Milton Paulo é formado no Método das Cadeias Musculares e Articulares G.D.S. Colaborou com Claudio Bernardo (BR/BE), Fréderic
Flamand (BE), Kyung-a Ryu (KOR), Bud Blumenthal (USA), Ari
Numminen (FIN), Kristian Smeds (FIN), Elizabeth Czerczuk (POL)
e Marie Martinez (FR). Como coreógrafo, criou vários espetáculos
com a bailarina Raffaella Pollastrini. Em 2011 foi nomeado “artista
conselheiro” em matéria de dança no projeto “Danse à l’école” para
trabalhar juntamente com o CDWEJ (Centre Dramatique de Wallonie por l’Enfance et la Jeunesse).
Pa rts
Cristian Duarte
“E
m 1995 Anne Theresa de Keesmaeker fundou a escola internacional PARTS (Performing Arts, Research and Training Studios), escola que continua até hoje a contribuir com a
formação de grandes nomes da dança, como Sidi Larbi Sharkaui,
Akram Kram e brasileiros como Cristian Duarte, baseado hoje em
São Paulo, e a coreógrafa Maria Clara Villa Lobos, que continua
em Bruxelas” (Cristina Dias).
Penso que o que aprendi, no período em que estava estudando em PARTS, foi entender que podemos fazer muito com muito
pouco. Pensar nas propostas e rigorosamente elaborar a sua prática no estúdio, com empenho e disciplina. Aprendi também a me
desafiar, tanto como bailarino quanto como coreógrafo, e não
considerar as coisas como garantidas. O ambiente da escola me
incentivou a expandir minhas possibilidades técnicas e conceituais, não só através das informações que eram oferecidas aos alunos
durante o período escolar, mas também através da intensidade das
informações que experimentávamos na cidade de Bruxelas, pela
sua oferta em quantidade e diversidade de produções em dança,
teatro, artes visuais, exposições e música.
O bailarino
Cristian
Duarte, que
integrou
a escola
internacional
PARTS –
Performing
Arts, Research
and Training
Studios.
Cristian Duarte é reconhecido pelos principais prêmios de pesquisa
em dança no Brasil: APCA 1998/2003/2008/2011; Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo 2008/2010/2011/2012;
Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007/2011; Festival Cultura Inglesa
2011; Rumos Itaú Cultural 2012, entre outros. Coordena o projeto de
residência artística LOTE#, subsidiado pelo “Programa de Fomento
à Dança para a cidade de São Paulo”.
202
teatro, dança, circo
Depoimento de Maria Clara Villa Lobos
M
inha conexão com a Bélgica começou antes do meu nascimento, através da minha família. Meu pai, diplomata brasileiro, serviu em Bruxelas nos anos de 1960 e foi assim que meu
irmão, Dado Villa Lobos, músico, nasceu em Bruxelas.
Na época, meus pais haviam conhecido Laura Proença, uma
das solistas do Ballet du XX Siècle. Tornaram-se amigos e assistiram
a vários balés de Béjart, na ópera La Monnaie.
Em 1995, vim estudar em Bruxelas para cursar a escola PARTS.
Um dos motivos desta escolha foi a influência que as companhias
belgas, como Rosas e Última Vez, que viajavam pelo mundo com
suas criações, tiveram na minha formação como artista. Estar em
contato direto com essas companhias e com esses criadores foi
muito intimidante no princípio, pois não era fácil, sendo uma jovem bailarina com aspirações a coreografar, estar rodeada permanentemente por grandes nomes da dança contemporânea. Além
das muitas companhias e artistas de fama internacional na Bélgica,
Bruxelas ocupava um lugar central na Europa, muitas companhias
estrangeiras se apresentavam na cidade.
Isso tudo criou um contexto muito fértil para a descoberta de
novas formas e linguagens cênicas. Acho que todas essas influências se concretizaram na minha peça “XL, because size does matter”, criada em 2000. Nela, tentei falar da abundância de propostas
devido à comercialização da dança como um produto de consumo e também, de forma irônica e crítica, da angústia que essa
hegemonia dos grandes nomes representa para um jovem artista.
Eu tinha a impressão, na época, de que não era mais possível
criar um passo de dança sem que houvesse alguma referência conectada a ele. Foi a partir destas questões, e de outras mais, que
criei o espetáculo que lançou minha carreira como coreógrafa na
Bélgica. Acho bem provável que se não tivesse vivido em Bruxelas, nesse contexto tão específico da dança contemporânea, meu
trabalho não teria tomado esse caminho. Em todo caso fica claro
que o ponto de partida do meu trabalho como coreógrafa esteve
totalmente conectado ao contexto no qual ele foi criado, contexto de extrema liberdade no âmbito da criação, mas também de
grande exigência de nível artístico.
Tive, então, a possibilidade, graças ao apoio do governo belga,
de mostrar meu trabalho em vários festivais no Brasil, tais como o
Panorama de dança no Rio de Janeiro, a Bienal de Dança de Fortaleza, o festival Dança Brasil no Centro Cultural Banco do Brasil e
no Serviço Social do Comércio (Sesc), em São Paulo.
Maria Clara Villa Lobos, que fundou em 2000 a companhia “XL Productions”,
baseada em Bruxelas.
A bailarina Maria Clara Villa Lobos, em “M, Une pièce moyenne”.
Maria Clara Villa Lobos é atualmente artista em residência no teatro “Les Tanneurs”, em Bruxelas. Seu último trabalho, o espetáculo
infantil “Têtes à Têtes”, foi apresentado com êxito em três cidades brasileiras em novembro de 2012. A partir de 2000, ano da criação de sua
companhia “XL Productions”, baseada em Bruxelas, criou uma série
de espetáculos que foram apresentados por quase toda a Europa, além
de Coreia do Sul, Canadá, Estados Unidos e Brasil.
203
teatro, dança, circo
O pa p e l d os p r o du t o r e s , o s i n t e r câ mb io s
d e com pa n h i a s d e dan ça e o s f e s t i vai s
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
Espetáculos brasileiros na Bélgica
Rodrigo Albea
Q
ual o impacto da dança brasileira nas plateias, imprensa e
instituições belgas? Traçar as relações entre os dois países no
campo da coreografia passa necessariamente por este âmbito. Portanto, qualquer abordagem exclusivamente estética seria inválida
sem uma visão econômica. A dança cênica, cujas origens no Ocidente podemos identificar com a criação da técnica clássica e do
ballet na França de Luís XIV, construiu sua identidade ao longo
dos séculos como uma arte sem fronteiras. No entanto, é óbvio que
o processo mundial de globalização das últimas décadas acentuou
a circulação de espetáculos entre continentes.
Na Europa, desde os anos 80 o Festival de Avignon, na França, contribuiu para esta abertura de horizontes e para o interesse
por outras estéticas mundiais, porém raramente brasileiras. A distância e a instabilidade econômica são duas hipóteses críveis para
justificar esse desinteresse, sobretudo quando comparado à música, produto cultural de escala industrial e comercial. A exceção à
regra seriam os trabalhos de cunho mais político e social, durante
o período da ditadura militar, quando, por exemplo, Maria Maria
(1976) do Grupo Corpo foi vista e bem recebida em várias capitais
europeias. Mas em Bruxelas, não... e isto por vários fatores que influenciaram desde então a relação dos teatros belgas com os artistas
estrangeiros: nos anos 70, o federalismo belga transferiu a política
cultural do Estado central para as comunidades linguísticas do
país; a dança na Bélgica foi dominada até o final dos anos 80 por
Maurice Béjart, com pouca abertura a outras escrituras cênicas;
com a verdadeira explosão criativa provocada pelos alunos de Béjart na escola Mudra, a paisagem começou a mudar, e os poucos
festivais estavam mais atentos ao movimento local e europeu.
A Bélgica tornou-se nessa época um dos principais países ex-
portadores de novas audácias coreográficas e Bruxelas, capital europeia da dança. Último elemento contextual, e importante por
vezes até hoje, é o fato de que a confecção das temporadas nos
teatros e festivais europeus exige um planejamento de produção
que vai de oito meses a dois anos em média: um sistema com o
qual podem dialogar somente artistas ou instituições com uma
rea­lidade organizacional e financeira raras no Brasil. Ou seja, salvo exceções é compreensível que tanto o norte flamengo quanto
o sul valão, ou na capital Bruxelas, não convidaram grupos brasileiros aos seus palcos.
O grande marco para a mudança de paradigmas nesse sistema
foi a programação da Bienal de Lyon de 1996, em homenagem ao
Brasil. Dois anos antes, o Grupo Corpo se apresentava em Lyon e
em Bruxelas, com grande êxito. A partir da Bienal, observou-se um
dinamismo até então desconhecido da cena brasileira. Ao mesmo
tempo em que as singularidades coreográficas se multiplicavam,
intercâmbios foram organizados, as trocas de informação tornaram-se menos intermitentes, políticas setoriais e de exportação
começaram a germinar.
É impossível elaborar uma lista de espetáculos brasileiros apresentados na Bélgica. Alguns marcaram o público e os profissionais.
Lia Rodrigues, por exemplo, gravou na memória de Liège sua passagem pelo festival da cidade com “Aquilo do que somos feitos”, em
2003, mais tarde apresentado em Bruxelas, numa capela mítica
para o meio da dança da cidade. A coreógrafa estabeleceu uma
boa relação com o país, voltando várias vezes, sobretudo durante
o Kunsten Festival, verdadeiro termômetro anual das tendências
mundiais. Durante esse festival, vivi um dos momentos mais eletrizantes com a recepção de uma obra. O meio da dança de Bruxelas
204
teatro, dança, circo
é bastante característico e Bruno Beltrão conseguiu surpreender
a todos e criar uma verdadeira explosão na plateia com seu H2
(2005). Havia ali uma síntese dos conceitos mais em voga na dança e, ao mesmo tempo, uma fronteira nova para a qual apontava,
longe de todo e qualquer exotismo dos quadris brasileiros.
O apogeu recente dessa nova relação, mais de igual para igual
– inclusive entre os festivais, com o interesse crescente suscitado
pelo Panorama, no Rio –, foi toda a programação durante a temporada Europalia (outono-inverno 2011-2012). Marcelo Evelin, Lia
Rodrigues, Membros, Quasar, Dani Lima, Marta Soares... apresentaram suas singularidades fortes, sobretudo durante a bienal de
Charleroi-Danses e num programa por mim elaborado no Théâtre
de la Place de Liège.
Nesse teatro, sob a direção de Serge Rangoni e com o apoio
de uma equipe de produção extremamente competente, brasileira e belga, conseguimos a verdadeira proeza de mostrar três
apresentações das “Bacantes”, de José Celso Martinez Corrêa,
e seu Uzina Uzona de mais de 50 pessoas. Um espetáculo teatral, operístico, carnavalesco, coreográfico. Total. As referências
à antropofagia cultural brasileira e à imensa influência de José
Celso no meio artístico brasileiro justificam ele aqui ser citado.
O evento encerrou as festividades do Europalia e marcou esse
novo modo de relação, de interesse e de produção da cultura
brasileira na Bélgica.
Rodrigo Albea é jornalista, produtor e curador de dança.
Danças populares brasileiras
Cristina Dias
A
Bélgica transformou-se ao longo dos anos em um centro incontestável da dança contemporânea na Europa. Como podemos notar, essa dinâmica de migração de bailarinos e coreógrafos brasileiros continua extremamente importante, fato explicado
pelo incentivo existente ao desenvolvimento da dança contemporânea e, como veremos mais adiante, pela receptividade e pelo
interesse pelas danças populares brasileiras.
Nesta área observamos um grande fluxo migratório de artistas
que vieram do Brasil em grupos já formados e que, pouco a pouco,
se dispersaram pelo país formando novos grupos.
O grupo Brasil Tropical, que chegou à Bélgica em 1973, e tinha 40 integrantes.
Brasil Tropical
No ano de 1973, chegou à Europa a companhia Brasil Tropical, formada por Edvaldo Carneiro e Silva, Camisa Roxa, Grão
Mestre da Abada capoeira, na intenção de trazer para o público
europeu a arte da capoeira, como também apresentar a enorme
paleta de danças populares brasileiras com seus diferentes ritmos,
como o samba, o maracatu, as danças dos orixás.
A primeira formação dessa companhia tinha 40 membros, entre músicos, cantores e bailarinos. A base principal da companhia
na Europa ficava na Bélgica, por seu ponto estratégico e também
pela imensa receptividade que teve por parte dos belgas.
A partir de então e até meados dos anos de 1990, essa companhia viajou pelo mundo e se renovou ao longo do tempo com
outros membros, artistas originários principalmente da cidade de
Salvador, Bahia. O próprio Edvaldo Carneiro não tem noção do
número exato de brasileiros que trouxe para a Europa durante esse
período, mas nos confirma que foram muitos.
Inúmeros destes artistas deixaram o Brasil Tropical, se instalando principalmente na Bélgica, como o bailarino e professor Ruy
Basílio – que agora dirige seu próprio grupo de danças brasileiras
Edivaldo Carneiro e Silva e o coreógrafo Domingos Campos.
205
parte 6 – o brasil entra em cena
O bailarino e professor Cleber Santos, que ensina o afrojazz, participou do
espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart (à esq.), de passagem por
Bruxelas, o apresentou no Forest National.
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, foi eleita em 2010 rainha
do CarnaBruxelas.
Oya Brasil –, e o bailarino e professor Cleber Santos – que ensina
o afrojazz –, e teve a grande oportunidade de participar do espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart, de passagem por
Bruxelas, o apresentou no Forest National.
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, também
começou a ensinar dança após ter viajado pelo mundo com o Bra-
sil Tropical; em 2010 foi eleita rainha do CarnaBruxelas e continua seus estudos superiores de Educação, com especialidade no
acompanhamento psicoeducativo, com o objetivo de utilizar a
dança e o esporte como terapia para pessoas com deficiência motora ou cognitiva.
Outras histórias como esta nos descreve Arlene Rocha a seguir.
Grupos e companhias de espetáculos
Arlene Rocha
E
m 1994, a companhia de teatro Marombar desembarcou em
Bruxelas, após ter estado um ano em cartaz em São Paulo,
com o espetáculo “Farsa para Guignol”, de Lorca, para participar
do Festival du Rire em Rochefort. A trupe era composta pelos artistas brasileiros Vanderlan Marques, Emilia Rocha, Simone Lima, Emiliano Benevides, Paulinho da Cuíca, Flavio de Sousa e
pelo belga Reynald Halloy. Era dirigida por Alexandre Amaral e
Arlene Rocha.
Para a maioria dos componentes da trupe Marombar, o ano
de 1994 marcou o início de uma nova fase: entre teatro, música e
dança, os artistas se instalaram em Bruxelas e desenvolveram cada
um o seu projeto artístico, marcando assim um intercâmbio entre
a Bélgica e a cultura popular brasileira.
ana Angélica e diversos outros ex-integrantes do Balé Brasil Tropical de Salvador. Também integraram Matalumbo o professor
de gafieira Anderson Bairros e sua companheira Aocione Ferreira; o bailarino e pesquisador musical gaúcho Mano Amaro e a
jovem dançarina Bruna Fernandes, que desenvolveram sua arte
na própria Bélgica.
A companhia Matalumbo existiu até o ano de 2007, criou vários espetáculos e trabalhou em colaboração com diferentes grupos de percussão, como a Batucada Terra Brasil e o grupo Batuqueria, ambos dirigidos por Paulinho da Cuíca.
O grupo Maracatu Mix!
Após uma viagem de um ano a Recife, Pernambuco, Arlene
Rocha e seu marido, o antropólogo belga Arnaud Halloy, trouxeram na bagagem o gosto e o amor pela cultura de Pernambuco e,
em especial, pelo maracatu de baque virado, seu ritmo, sua dança, sua história...
De volta a Bruxelas, em 2004 nasceu Maracatu Mix! (MMix!),
projeto formado por músicos de diferentes experiências percussi-
Companhia Matalumbo
Em 1995, em Bruxelas, Arlene Rocha criou a companhia
de dança popular brasileira Matalumbo, da qual fizeram parte diversos dançarinos, como Elionara Pessoa e Augusta Braga
(Balé Folclórico da Bahia), Livia Carvalho, Nêga Bombom, Jo-
206
teatro, dança, circo
Maracatu Mix! (MMix!), fundado em 2004 em Bruxelas e formado por músicos de diferentes experiências percussivas e bailarinos com experiência na dança afro-brasileira.
vas e bailarinos com vasta experiência na dança afro-brasileira, em
particular na dança sagrada dos Orixás.
No seu desfile, Maracatu Mix! traz um ambiente musical e
coreográfico particular, marcado pelo som grave das alfaias, pela
potência do ritmo do maracatu e por um visual inspirado na cultura tradicional pernambucana, redesenhado na dança por Arlene
Rocha e na percussão por Arnaud Halloy.
Hoje o projeto Maracatu Mix! se compõe de duas formações:
Maracatu Mix! France e Maracatu Mix! Bruxelas. Ambos apresentam o mesmo repertório musical e coreográfico.
jetos europeus e brasileiros. Atualmente, desenvolve três projetos
culturais: Maracatu Mix!, companhia de dança Alma Brasil (criada em 2009, em Bruxelas, e dirigida por Arlene Rocha e Bruna
Fernandes) e projeto Pedro Moura.
Companhia Alma Brasil
Companhia de dança brasileira criada em 2009, em Bruxelas, é dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes. Guarda o
mesmo objetivo artístico da companhia Matalumbo: valorizar a
diversidade e as raízes da cultura brasileira através da dança e da
música popular.
ASBL Alma Brasil
Maracatu Mix! é um projeto cultural produzido e divulgado
pela associação sem fins lucrativos Alma Brasil, instalada nas Ardenas belgas e criada em 2011. Tem como objetivo valorizar a
cultura brasileira na Europa e promover o intercâmbio entre pro-
Arlene Rocha é Coreógrafa, nascida em Goiânia, formada em Artes
Cênicas pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), residente
na Bélgica.
Depoimento de Mano Amaro
“U
m dos componentes da companhia de dança popular brasileira Matalumbo, Mano Amaro nos conta um pouco da
sua história de migração” (Cristina Dias)
Nasci no Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, a mais importante cidade no período do processo das charqueadas (carne
salgada). Lá os negros escravos trabalharam muito e enriqueceram
a cidade, era muito frio e tinham que trabalhar com o sal, o que
dava-lhes um tempo curto de vida.
Cresci em uma vila chamada Castilhos, filho de zeladora de
Mano Amaro durante evento
de dança em sua juventude
no Rio Grande do Sul.
207
parte 6 – o brasil entra em cena
religião afro-brasileira e de pai funcionário público. Ali aprendi
a ter respeito pelo próximo e conviver com as diferenças, que na
época eram grandes. Desde pequeno frequentava lugares restritos a negros, como clubes e discotecas. Assim foi minha infância,
pois em certos lugares nós, negros, não entrávamos e vice-versa.
Desde cedo convivendo com esta atmosfera, comecei a envolver-me com a dança dos guetos e com o carnaval da cidade. A partir dos seis anos desfilava em blocos infantis, escolas de samba, fui
passista, mestre-sala, ritmista: bons tempos! Na época, encontrei a
dança funk, que era muito forte; desde então não parei.
Tive contato com a dança contemporânea através de Beka Kanaan, pessoa que me ensinou a ver coisas que, no meu dia a dia,
eu não percebia, como o racismo que estava à minha volta, com
aquela carga pesada que subestimava a todos nós.
Passei a ser um cidadão da sociedade e não apenas aquele negrinho que dançava funk!
Daí para frente interessei-me mais pela nossa cultura e pela
dança; fiz parte de movimentos negros e fui o próprio movimento; viajei bastante: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Trabalhei
como professor educador em um projeto em Porto Alegre, com
crianças de rua. Aí conheci Môa do Catendê – baiano, grande
mestre –, encontro que me estimulou a perceber aos poucos as
diferenças da dança afro nas diversas regiões do Brasil.
Em 1996 recebi um convite para ministrar um workshop de
dança afro-brasileira na Bélgica, em Antuérpia, onde estou até
hoje, construí família... Aqui fiz muitos cursos de dança africana
com ótimos professores do Senegal, Benin, Nigéria, Togo, e meu
trabalho como pesquisador em dança afro avançou bastante.
Mantenho contato e troco informações com pessoas no Brasil, pois continuo, mesmo morando aqui, sempre atento à cultura
afro-gaúcha, pesquisando e bebendo desta fonte que é muito rica
e que o Brasil ainda não conhece.
A cultura negra propicia uma relação profunda entre o corpo
e a dança, com sentido de vida baseado na relação entre o ser hu-
Mano Amaro no espetáculo “Ori dança”, em Bruxelas, 2010.
mano e a natureza. Assim, a dança é a representação da existência de cada pessoa, se fazendo presente em todos os momentos
da vida. Em todos esses momentos dançantes se faz presente o
tambor, cujo som é utilizado de diferentes maneiras, em diversas
tonalidades e intensidades.
A dança afro no Brasil adquiriu várias formas, variando segundo as nações africanas que contribuíram para a formação do povo
negro, de acordo com o ritmo e as características dos Orixás (deuses), e segundo as recriações feitas no interior de uma sociedade
pluricultural e pluriétnica como a brasileira.
Por meio do desenvolvimento de um trabalho de conscientização através da dança, venho propondo a dança afro-brasileira a
toda a comunidade europeia.
Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou pelo carnaval do Rio de Janeiro.
O homem do carnaval do Rio
Régis Lemaire
“Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças
populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou
pelo carnaval do Rio de Janeiro”. – Cristina Dias
D
esde sua infância, o belga Alain Taillard se banhou com seus
pais no ambiente carnavalesco de algumas cidades belgas,
como na festa da Cavalgade de Herve, no Lundi des Roses, da cidade de La Calamine. Sua paixão pelo carnaval logo o levou a Nice,
Veneza, Santa Cruz de Tenerife e, sobretudo, ao Rio de Janeiro,
onde desembarcou em 1992, primeiro como simples espectador
no berço das escolas de samba.
Alain Taillard desfila no carnaval no Rio de Janeiro.
208
teatro, dança, circo
Em 2001, teve a sorte de conhecer o destaque Nabil Samir
Habib, personagem principal que desfilava no alto de um carro
alegórico: uma verdadeira estrela para os brasileiros. Este encontro permitiu que, desde o ano de 2004, Alain Taillard desfilasse
como figurante numa grande escola de samba. Em 2008, a grande surpresa! Nabil Samir Habib fez a proposta para que Alain o
substituísse, o que foi o ponto de partida de uma longa aventura,
rica em encontros e em emoções intensas.
Alain é um dos raros europeus a ter o privilégio de fazer parte
do círculo fechado dos destaques das escolas de samba do Rio,
principalmente numa das mais populares, a Mangueira. Atualmente, Alain Taillard trabalha na SNCB (Sociedade Nacional dos
Caminhos de Ferro Belga) e é reconhecido como especialista e
embaixador do carnaval do Rio na Bélgica. (Tradução e adaptação de Cristina Dias.)
Depoimento de Cristina Dias
M
e formei em dança no Rio de Janeiro, cidade onde nasci.
Depois de estudar alguns meses em Nova York, vim para a
Europa em busca de mais informações no aprendizado da dança
contemporânea. Bruxelas, em meados dos anos 1980, se encontrava em ebulição neste campo artístico.
Minha passagem pela Bélgica, prevista para ser de apenas alguns meses, já dura 26 anos. Vários encontros adiaram a minha
volta ao país natal e um dos mais importantes foi o encontro com
o coreógrafo belga Frédéric Flamand, com o qual colaborei artisticamente durante quase 20 anos. Esta aventura, composta de mais
de 15 criações cênicas, apresentadas nos quatro cantos do mundo,
me proporcionou a chance de ter um contato intenso com grandes
artistas belgas e internacionais.
O fato de trabalhar com outros criadores, além de bailarinos,
videastas, arquitetos, músicos, compositores e artistas plásticos,
com o intuito de compor um projeto artístico multidisciplinar,
integrando sistematicamente vídeos e filmes nas obras criadas, fez
aumentar cada vez mais meu interesse pela linguagem cinematográfica e me abriu novos horizontes de reflexão.
Assim, há oito anos me dedico inteiramente à direção de filmes
de dança, filmes experimentais, cenografia e vídeo, por meio dos
quais continuo a investigar o movimento, a composição, o ritmo,
a luz. Meus três últimos curtas-metragens, L’instant suspendu,
L’autre e Le rêve du roi, que penso serem os filmes mais representativos da minha linha de trabalho, abordam o tema do “Duplo”,
e formam assim uma trilogia, inspirada livremente em textos do
escritor argentino Jorge Luis Borges. Cada um deles é construído
Cena de filme de Cristina Dias.
como uma ficção dançada, na qual o personagem principal questiona a sua própria duplicidade, o que é real e o que é sonho, a
inconsistência do tempo.
Acredito que o motivo principal que me levou tão naturalmente ao encontro do suporte cinematográfico foi ter descoberto
que este último me abre novas portas e me ajuda a continuar a
desenvolver temáticas que me atraem e que tenho necessidade
de explorar.
209
teatro, dança, circo
A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo
Ve r ô n i c a Ta m a o k i
O
circo brasileiro foi constituído por famílias tradicionais vindas, em sua maioria, da Europa, e que aqui chegaram, a
partir do início do século XIX, como saltimbancos ou integrando
grandes companhias que percorriam o mundo. Quando essas famílias começaram a viajar, indo a lugares aonde só o circo chegava, foram incorporando artes, expressões e artistas dos lugares por
onde passavam, diluindo o caráter internacional do espetáculo
circense em criações locais.
Assim, o circo de origem europeia, que quando aqui chegou
recebeu o nome de “circo de cavalinhos”, foi se transformando,
abrasileirando-se. E entre as diversas contribuições brasileiras à linguagem internacional do circo, vale destacar o circo-teatro, gênero
de espetáculo que consiste na apresentação de números circenses
na primeira parte e de um ato teatral na segunda.
A partir do decênio de 1950, muitas famílias tradicionais se retiraram do picadeiro, interrompendo uma tradição que perdurava
por várias gerações e privando a população de vários circos itinerantes que percorriam todo o território nacional. As que resistiram
adaptaram-se aos novos tempos e, entre outras mudanças, eliminaram a segunda parte do seu espetáculo, o teatro, e passaram a
apresentar apenas o ato circense.
De lá para cá, o acontecimento mais significativo no que se
refere ao circo é sem dúvida o surgimento das escolas de circo, a
partir de 1978, que apontou novos caminhos para a arte circense
no Brasil.
No fluxo e refluxo do circo entre Brasil e Europa, precisamente entre Brasil e Bélgica, que afinal é o tema deste texto, é preciso
ressaltar que muitos dos nossos talentos têm, nos últimos tempos,
optado pela escola ESAC (Ecole Supérieure des Arts de Cirque,
Bruxelas) para sua formação.
É o caso de Maíra Benozatti Campos, uma das nossas melhores aramistas da atualidade. Por outro lado, começamos a nos
acostumar com as visitas de grupos belgas que têm nos encantado
com sua arte, como o ShakeThat! E Duo POLINDE. Assim como
temos nos acostumado com a parceria de belgas que vivem hoje
no nosso país, como Anne Loeckx que, entre outros trabalhos,
colaborou com a pesquisa e a montagem da exposição “Hoje tem
espetáculo!”, do Centro de Memória do Circo. Mas, sem dúvida,
as estrelas que mais brilharam no firmamento do circo brasileiro-belga foram Lison e Carola.
Madame Lison
Elisabeth Josephine Gallemaert Knockaert nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 20 de setembro de 1921. Filha do chefe de
cozinha do rei, desde pequena demonstrou talento musical, cantando inclusive numa banda de sua cidade. No início da década
de 50, casou-se com Nani Brasso que integrava o trio cômico “Les
Chabris” – considerado na época um dos melhores do mundo
Madame Lison em cena com palhaços.
210
teatro, dança, circo
Carola Boets tocando acordeon.
–, com quem Lison percorreu várias cidades da Europa, Ásia e
África, até chegar ao Brasil, em 1953, para integrar o elenco do
Circo Garcia.
No Brasil, La Lison se destacou como apresentadora, papel em
que foi pioneira e marcou época. Trocava de roupa a cada número,
anunciava o espetáculo em oito idiomas e tinha uma elegância
que até hoje é lembrada pelos colegas. Atuou nas maiores companhias circenses da época, com as quais viajou por todo o País e
parte da América do Sul.
Após quase 50 anos de ausência, Lison retornou à sua terra natal, onde reencontrou Carolus Leon Van Reet, seu namorado de
adolescência. Começaram a manter contato e em 1991 Carolus
fez uma visita surpresa a Lison no Brasil. No ano seguinte, casaram-se em uma cerimônia católica dentro do circo de Federico
Orfei, com quem sua neta Lissete era casada. Seis meses depois,
como num conto de fadas, casaram-se também no cívil, em um
Castelo de Antuérpia.
Daí em diante, Lison passou a viver uma nova rotina, residindo metade do ano no Brasil e a outra metade, na Bélgica. Fale-
ceu em Santo André, no dia 14 de fevereiro de 2008, ao lado de
sua filha Jeanine, suas netas Carmem e Lissete, muitos bisnetos
e tataranetos.
Dona Carola
Andréa Françoise Carola Boets nasceu em 1937, na Bélgica.
Filha de acordeonistas performáticos, Carolus Boets e Ernestine
Maria Ryckaert, que se apresentavam com o nome de Scandallis,
começou ainda menina sua carreira artística, fazendo imitações
de Maurice Chevalier e, seguindo a tradição familiar, tocando
acordeons dos mais variados tamanhos. Carola também tocava
saxofone, dançava, interpretava, adestrava animais (cobras, cabras,
elefantes, chimpanzés).
No Brasil, aonde chegou em 1953, casou-se com Antolin Garcia (1904-1987), proprietário fundador do Circo Garcia (1928-2002), na época considerado um dos maiores circos do mundo.
Indubitavelmente, dona Carola, como era chamada nos
bastidores, foi a primeira dama do circo brasileiro nas últimas
211
parte 6 – o brasil entra em cena
décadas do século XX. Seu amor incondicional pelos animais
rendeu a piada que circulava entre os empregados e artistas do
Garcia de que, na próxima encarnação, queriam nascer macacos da Carola.
Em 2002, com a morte de seu enteado, Rolando Garcia, que
sucedera o pai na direção da companhia, dívidas financeiras, ausência de terrenos adequados para circos nas grandes cidades e
leis proibindo a presença de animais no espetáculo circense fizeram com que Carola tomasse a mais difícil decisão de sua vida:
baixar de vez a lona do Garcia, após quase 75 anos de existência.
Seu desejo era construir um santuário para acolher os animais do
seu e de outros circos. Não teve tempo. Fora do picadeiro, viveu
pouco tempo, vindo a falecer em 2006, na cidade de São Paulo.
Verônica Tamaoki é jornalista, atriz e diretora circense, escreveu o
livro Circo Nerine ao lado de Roger Avanzi. É fundadora e coordenadora do Centro de Memória do Circo da cidade de São Paulo.
Carola Boets com chimpanzé.
Circo social belgo-brasileiro
Anne Loeckx
N
o dia 11 de maio de 2010, o Centro do Circo de Flandres
organizou em Antuérpia um intercâmbio entre organizações
flamengas e brasileiras que se dedicam ao circo social. A reflexão
examinava o êxito do circo como metodologia em muitos projetos
sociais. Zonas de risco, gangues, tolerância zero… Ainda que não
se comparem à “barra pesada” das favelas cariocas, cidades como
Bruxelas e Antuérpia têm bairros com muitos problemas sociais,
culturais e econômicos. Felizmente, tanto a região de Flandres
como o Brasil possuem a arma do Circo!
Alguns ateliês de circo nas cidades flamengas se estabelecem
justamente nesses bairros difíceis para organizar, em colaboração
com outros parceiros, projetos de circo com as crianças e os jovens da vizinhança. A expressão “circo social” surgiu nas comunidades carentes brasileiras, quando alguns entusiastas, poucas
décadas atrás, utilizaram o circo para oferecer mais chances às
crianças e aos jovens. Se bem que atualmente, no Brasil, acha-se
graça do termo, uma vez que, de certo modo, todos os circos são
sociais, já que interligam as pessoas. A pista é redonda, de maneira que todos os espectadores se confrontam olhos nos olhos.
Em seu livro O elogio da bobagem, Alice Viveiros de Castro relaciona o circo com o primeiro encontro entre os portugueses e
os indígenas de Pindorama:
“O Brasil começou – e não podia ser de outro modo – com uma
festa! Índios e portugueses dançando juntos, de mãos dadas, ao som
de uma gaita. E quem armou a grande roda foi um palhaço. Pois
é. Devíamos construir uma estátua, um monumento a Diogo Dias,
o cômico gracioso que viajava com Pedro Álvares Cabral e que, no
Domingo de Páscoa, no início da tarde, resolveu tomar a mão dos
índios e dançar com eles”. Pena não termos conseguido manter tal
convívio lúdico e pacífico...
No que me concerne, já trabalho há quatro anos como pedagoga em vários projetos com crianças e jovens em zonas carentes
brasileiras, tais como o projeto Crescer e Viver, no Rio de Janeiro,
o Movimento Bixigão, em São Paulo, o projeto Circo, Arte e Cidadania, em Ouro Preto. Organizações bem diferentes, mas que
acreditam no circo como meio de desenvolvimento pessoal, embora em geral recebam apoio e meios insuficientes para se manter. Penso que, nas mesmas condições, organizações belgas teriam
provavelmente desistido há muito tempo. Mas que esta luta no
dia a dia vale a pena se comprova pelo entusiasmo dos meninos
participantes desses projetos.
Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil
é a sensação de se ser apreciado, não apesar da diferença, mas
precisamente por se ser diferente. Desde sempre o circo é o lugar para os que são “diferentes”. Mas o circo tem também a ver
com liberdade. Em nenhuma parte se sente maior liberdade do
que quando o artista consegue, depois de muito suar, realizar o
salto almejado. Uma imensa liberdade, acompanhada da sensação de controle. O que falta tanto a crianças e jovens de bairros
desfavorecidos é ter o controle de uma situação em casa ou no
bairro, o que podem experimentar intensamente no circo. Mais
ainda porque, no picadeiro, os sentimentos de orgulho e liberdade são apreciados pela sociedade, que aplaude de pé. Lá onde
a sociedade determina o que pode e não pode, o circo insiste:
“Pode mais, e melhor”. O circo, por si só, não tem utilidade social,
mas oferece a qualquer um o direito ao desenvolvimento pessoal,
212
teatro, dança, circo
Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser valorizado não “apesar da diferença”, mas precisamente por se ser diferente.
o direito de expressão e, sobretudo, o direito ao prazer. Esta é a
magia do circo social.
Anne Loeckx possui formação em Psicologia e em Pedagogia do Circo. Na Bélgica, em Flandres, esteve ativa em diferentes projetos de
circo com grupos sociais em situação delicada. Há quatro anos atravessou o oceano para ganhar experiência de vida no Brasil, onde trabalha como supervisora e coordenadora de projetos de circo social no
Rio de Janeiro, em São Paulo e em Ouro Preto. Links úteis: <www.
circuscentrum.be>; <http://crescereviver.org.br>; <http://circoarteeduca.wordpress.com>
Em nenhuma parte se sente maior liberdade do que quando o artista consegue,
depois de muito suar, realizar o salto almejado; uma imensa liberdade,
acompanhada da sensação de controle.
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parte 6 – o brasil entra em cena
214
música clássica
parte 7
Música
215
parte 7 – música
216
música clássica
Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica
Anna Maria Kieffer
Reichert e Callado: dois flautistas irmãos
cólogo e diretor do Conservatório de Bruxelas quando Reichert
lá fez seus estudos:
“Reichert (Mathieu André), nascido em Maestricht, em 1830,
um dos virtuosos flautistas mais hábeis e extraordinários do século
XIX (...) “Não foi à toa que o jovem Carlos Gomes compôs o Entreato da ópera Joana de Flandres, peça de grande dificuldade técnica, especialmente escrito e dedicado ao insigne flautista Reichert”.
Por outro lado, é possível que sua primeira formação musical,
como filho de um músico ambulante que se apresentava em cafés,
tenha contribuído para que se sentisse à vontade junto de músicos
populares, em formações instrumentais que, em pouco tempo, seriam conhecidas como grupos de choro. O mais importante dentre
esses músicos foi o flautista Joaquim Antonio da Silva Callado.
Carioca, 18 anos mais moço que Reichert, o autor de Flor
amorosa estudou flauta e piano primeiramente com seu pai, mestre da Banda Sociedade União de Artistas, depois, composição e
regência com Henrique Alves de Mesquita. Em 1867, foi publicada sua primeira polca, Querida por todos, dedicada a Chiquinha Gonzaga. Em 1873, Callado compõe o Lundu característico,
primeiro lundu a ser apresentado em sala de concerto. Professor
de flauta no Conservatório, é condecorado pelo imperador com
a Ordem da Rosa.
A amizade fraterna entre Callado e Reichert durou toda a vida
de ambos, uma vez que foram vítimas de uma epidemia de meningoencefalite perniciosa que assolava o Rio de Janeiro e faleceram
com poucos dias de diferença, em 1880. Sua relação se traduziu
numa interinfluência profíqua, uma vez que Reichert passou a
Callado procedimentos técnicos sofisticados, inclusive o uso da
flauta com sistema Boehm, processo praticamente desconhecido
no Brasil até então, e Callado levou-o a absorver a música brasileira de salão, como se pode observar na polca La coquette, composta por Reichert, que durante anos fez parte do repertório dos
grupos de choro.
Reichert viajou pelo Brasil de norte a sul, nunca deixando de
compor, inclusive peças de estudo; seus Estudos e Exercícios Diá­
rios, como suas peças de concerto, ainda hoje são adotados em
conservatórios europeus e brasileiros.
Q
uando o flautista belga Mathieu-André Reichert desembarcou no Rio de Janeiro em 8 de junho de 1859, encontrou
uma cidade em grande ebulição musical. Desde o porto, a cidade
fervilhava de sons, a começar pelos cantos dos carregadores e pelas cantigas dos escravos de ganho que enchiam as ruas com seus
pregões, até a música praticada nas casas, nos teatros e na corte.
O compositor Francisco Manuel da Silva tinha conseguido
reerguer a antiga Capela Imperial, esfacelada depois da abdicação de D. Pedro I, e fundar o Conservatório. As temporadas de
ópera foram retomadas, após quase dez anos de silêncio, e nelas
se apresentavam divas como Augusta Candiani, Rosina Stolz e
Anna de La Grange.
José Amat acabava de criar, com o apoio de Francisco Manuel
da Silva, de professores do Conservatório e de membros da sociedade carioca, a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional,
cujo objetivo era montar óperas em português. Multiplicavam-se
as lojas de instrumentos musicais e as casas editoras de música
que forneciam material para os saraus familiares, em coleções de
nomes sugestivos, como O ramalhete das damas, Prazeres do baile, Abelha musical, Ninfas brasileiras, Ilustração dos pianistas, O
livro de ouro dos flautistas, entre outros.
Contratado pelo Imperador D. Pedro II junto com outros
músicos europeus com o intuito de formar uma orquestra de alta qualidade na Real Quinta da Boa-Vista, o jovem Reichert se
viu, em pouco tempo, também tocando na orquestra do Teatro
Lírico Fluminense (antigo Provisório) e realizando recitais solo
pelo Brasil.
Tendo sido aluno de Jules Demeur, no Conservatório Real de
Bruxelas, e lá obtido o primeiro prêmio, era considerado, à época
de sua contratação, um dos mais importantes flautistas da Europa,
apresentando-se com grande sucesso principalmente na Bélgica,
Holanda, França e Inglaterra.
A flautista Odette Ernest Dias, que mais profundamente estudou a obra e a vida de Reichert, transcreve o verbete do dicionário
de François-Joseph Fétis, importante regente, compositor, musi-
217
parte 7 – música
Cabe à flautista
francesa Odette
Ernest Dias o mérito
de ter redescoberto,
pesquisado e
interpretado Reichert.
Como professora
da Universidade de
Brasília (UnB), em
1985 ela dedicou o
disco “Afinidades
brasileiras” à sua
obra, lançado pela
própria UnB.
dos com perfeita e rigorosíssima afinação, execução firme, excelente
sentimento, o que honrava a escola de seu professor, Charles de Bériot. O público carioca festejou-o com delirantes aplausos. No dia
seguinte, o Imperador D. Pedro honrava-o, presenteando-o com um
anel cravejado de brilhantes e ornado com suas iniciais”.
Outros artistas estrangeiros que aqui se apresentaram, como o
português Eduardo Medina Ribas, o holandês Gustav Van Mark,
a francesa Madame Freery, também foram alunos de Bériot, enquanto Paul Julien, que se tornou amigo de Carlos Gomes, trazia
em seu repertório obras dos representantes da escola franco-belga
de violino, como Bériot e Vieuxtemps. Portanto, nada mais natural para alguns brasileiros que queriam se aperfeiçoar no exterior
do que escolher Bruxelas como seu destino.
Manoel Joaquim de Macedo nasceu em Cantagalo, Rio de
Janeiro, em 1847. Estudou composição no Conservatório Real
de Bruxelas com François-Joseph Fétis (1784-1871) e violino com
Huber Leonard (1819-1890) e Henry Vieuxtemps (1820-1881),
recebendo medalha de ouro. Há notícias de que tenha, ainda, se
aperfeiçoado com Joseph Joaquin (1831-1907) e com o próprio
Auguste Bériot (1802-1870). Vieuxtemps o indica para a função
de violinista spalla da orquestra do Covent Garden, em Londres,
o que estende sua estadia na Europa por um total de nove anos.
Quando volta ao Rio, em 1871, é nomeado por D. Pedro II
mestre da Capela Imperial. Na capital do império compõe a opereta Antonica da Silva com libreto de seu tio, o romancista Joaquim Manuel de Macedo, apresentada no Teatro Fênix Dramática
em 1880. Três anos depois, se estabelece em Minas para dedicar-se, principalmente, à composição. Sua obra inclui sonatas, fantasias, um álbum para piano, canções e, segundo Camila Frésca,
que o estuda, oito concertos para violino, dos quais sete deles estão
desaparecidos até agora. Seu poema sinfônico Floriano Peixoto foi
apresentado com grande sucesso em Minas e no Rio de Janeiro
e foi publicado em versão para dois pianos. Em 1897 termina de
compor sua ópera, Tiradentes, com libreto de Augusto de Lima
(1859-1943) e obtém uma bolsa de trabalho do governo brasileiro
e mineiro para orquestrá-la na Bélgica, onde permanece por longos anos, só voltando ao Brasil pouco antes de sua morte, em 1925.
O prelúdio e alguns trechos dessa ópera foram apresentados por
Alberto Nepomuceno no Festival de Música Brasileira, na Exposição Internacional de Bruxelas, em 1910.
Entre seus alunos destaca-se João Augusto Campos que foi
tio e professor do violinista e compositor mineiro Flausino Vale.
Grande virtuose de violino e compositor injustamente esquecido, deve-se a Villa-Lobos a lembrança de homenageá-lo com a
cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Música, no momento
de sua criação. Macedo foi o primeiro de uma série de violinistas que introduziram e sedimentaram a escola franco-belga no
Brasil. Outros foram:
Francisco Chiaffitelli (1881-1954). Estudou no Conservatório Real de Bruxelas, na classe do renomado violinista Eugène
Isaye, obtendo o primeiro prêmio de violino do Conservatório em
1897. No Brasil, foi professor do Instituto Nacional de Música,
destacando-se entre seus alunos Paulina d’Ambrosio, nascida em
Em 1863, por ocasião do 33º aniversário da Independência
da Bélgica, apresenta-se, com o pianista Carlos Schramm, após
o banquete oferecido pelo Cônsul-Geral da Bélgica no Rio de
Janeiro, Edouard Pecher, aos membros da Sociedade Belga de
Beneficência.
Em São Paulo, onde se apresentou por duas vezes, em 1863
e 1871, teria entrado em contato com os jovens do curso de Direito, pois eram eles que formavam o público mais expressivo dos
concertos e que escreviam críticas e artigos musicais no Correio
Paulistano. Cursavam a Faculdade de Direito, em 1863, o poeta
Fagundes Varela e o compositor Venâncio José Gomes da Costa
Júnior. Em 1871, o compositor Antônio Frederico Cardoso de Menezes pôs em música a célebre Hebréia, de Castro Alves.
Reichert teve vários alunos no Brasil. Entre eles Duque Estrada Meyer, que também foi aluno de Callado e famoso professor
no Conservatório de Música, tendo, por sua vez, entre seus alunos o grande flautista e compositor Patapio Silva. Por essa razão,
Odette Ernst Dias afirma: “Reichert pode ser considerado, junto
com Callado, o fundador da escola de flauta brasileira”.
Um violino que veio do mar
Segundo Vincenzo Cernicchiaro (1855-1928), violinista, musicólogo e compositor italiano radicado no Rio de Janeiro e professor do Instituto Nacional de Música (antigo Conservatório),
foram muitos os violinistas a se apresentar no Rio de Janeiro no
século XIX. Entre eles, estava um “violinista de superior importância, trazendo novidades de escola, elegância de estilo e novas obras
musicais para violino. Era ele Charles Wynem, jovem belga que um
forte temporal – quando viajava para as ilhas orientais – lançou à
praia da Bahia, sem ter podido salvar outra coisa além de seu violino e o repertório musical.
“Na Bahia, onde realizou dois concertos, obteve grande sucesso,
passando depois ao Rio de Janeiro, onde chegou em 19 de março [de
1846]. Seu primeiro concerto teve lugar dias depois de sua chegada.
(...) Em seu último concerto, em 25 de agosto, tocou o Rondó russe
do segundo concerto de Bériot, além do célebre Tremolo, executa-
218
música clássica
1890, em São Paulo, matricula-se aos 15 anos no Conservatório
Real de Bruxelas. Ao voltar, em 1907, dedica-se principalmente ao
ensino, como professora do Instituto Nacional de Música. Como
intérprete, participou da Semana de Arte Moderna, executando,
inclusive, obras de Villa-Lobos. Teve como alunos, entre outros,
Guerra Peixe, Nathan Schwartzman, Henrique Morelenbaum,
Mariuccia Jacovino, Ernani Aguiar e Paulo Bosísio que, por sua
vez, foi professor do violinista mineiro especializado em música
barroca Luís Otávio Santos, atualmente professor no Conservatório Real de Bruxelas.
de Gelisette (sic, 1895), de Aglavaine et Sélizette. Foi seu primeiro
contato com a Bélgica.
Não foi possível saber se Nepomuceno se encontrou pessoalmente com Maeterlinck na França ou na Bélgica, mas tudo leva
a crer que tiveram algum tipo de contato, uma vez que Chanson
de Gelisette foi composta um ano antes da publicação de Aglavaine et Sélizette (1896).
De volta ao Rio, realiza – no Instituto Nacional de Música –
um concerto com obras suas, na qualidade de compositor, pianista
e organista, apresentando, também, um punhado de canções com
texto em português. Inicia, assim, sua campanha pela composição
de canções com texto em vernáculo, sustentando: “Não tem pátria
um povo que não canta em sua língua”.
Alberto Nepomuceno foi um homem de grande cultura e um
compositor incansável. Criou obras para todas as formações vocais-instrumentais, incluindo ópera (Ártemis, Abul), música sinfônica,
vocal e de câmara. É autor da mais importante coleção de canções
da história da música brasileira, pela quantidade, qualidade e pela
associação feita com os mais expressivos poetas seus contemporâneos, desde Machado de Assis a Coelho Neto e Olavo Bilac.
Suas obras estão perfeitamente sintonizadas com a estética internacional do período, permanecendo, no entanto, extremamente
pessoais e utilizando elementos de raiz brasileira.
Atuou ainda como regente, professor e diretor do Instituto
Nacional de Música. Executou estreias brasileiras de obras contemporâneas de autores internacionais, como Debussy, Dukas,
Roussel, Glazunov, Rimsky Korsakov, e primeiras audições de
obras de compositores brasileiros como Araujo Viana, Barrozo Netto, Francisco Braga, Alexandre Levy, Henrique Oswald,
Leo­poldo Miguez, entre outros. Estimulou novos talentos, como
Glauco Velazques, Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez e Heitor
Villa-Lobos.
Em 1910, por ocasião da Exposição Internacional de Bruxelas,
realiza no Teatro La Monnaie o Festival de Música Brasileira, comissionado pelo então embaixador e grande intelectual Oliveira
Lima. Rege obras de sua própria autoria, de Carlos Gomes, Manoel de Macedo, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco
Braga. Também se apresenta diante da corte belga, num concerto
particular, com obras suas e de outros compositores brasileiros.
Durante a guerra de 1914-18, Nepomuceno participou do
grande movimento de simpatia para com a Bélgica, inclusive organizando concertos em favor do país que tão bem o recebeu. Por
ocasião da visita dos reis da Bélgica ao Brasil, em 1920, Nepomuceno recebeu do Rei Alberto a Medalha de Ouro pela “devoção
que fez prova durante a guerra pela causa belga”.
Alguns meses depois, Alberto Nepomuceno escreve sua última canção, A jangada, com versos do poeta cearense Juvenal
Galeno, obra que o coloca definitivamente na história da música
do Brasil como o elemento de ligação entre o Romantismo e o
Modernismo.
Tendo se separado de Walmor Bang e residindo, desde então,
na casa de seu grande amigo, Frederico Nascimento, não resiste a
um agravamento de seu estado de saúde, já precário desde 1916, e,
A ponte para o Modernismo
Difícil tentar colocar em poucos parágrafos a grandeza da vida
e da obra de um compositor como Alberto Nepomuceno. Nascido
em Fortaleza, CE, em 1864, fez seus primeiros estudos de piano
e violino com o pai e, adolescente ainda, frequenta o meio abolicionista do Recife. Tobias Barreto o inicia em Filosofia e Alemão.
A morte do pai faz com que a família retorne ao Ceará onde continua suas atividades políticas. Em função delas, o pedido enviado
pela Assembleia Legislativa cearense ao Governo Imperial para
que Nepomuceno pudesse aperfeiçoar-se na Europa é negado.
Parte, então, para o Rio de Janeiro, onde continua seus estudos
e é nomeado professor de piano do Club Beethoven. Data dessa
época sua amizade com Machado de Assis, então bibliotecário do
clube, com o violoncelista Frederico Nascimento e com os irmãos
Rodolfo e Henrique Bernardelli. Todos exercerão importantes papéis em sua vida.
Em maio de 1888, executa no Club Iracema, em Fortaleza,
a 1ª audição de sua Dança de Negros, para piano, que se tornará,
mais tarde, o Batuque da Série Brasileira para orquestra. Nesse
mesmo ano, parte para a Europa com os Bernardelli em viagem
de estudos. Em Roma, matricula-se no Liceo Musicale Santa Cecilia. No ano seguinte, obtém do Governo Provisório uma pensão
que lhe permitirá inscrever-se na Academia Meister Schule, em
Berlim, e, em seguida, no Conservatório Stern. Nas provas finais
rege obras suas à frente da Filarmônica de Berlim.
Durante sua estada na Alemanha, conhece sua futura esposa,
a pianista norueguesa Walmor Bang, que o aproxima de Brahms
e de Grieg. Este reforça a ideia já demonstrada por Nepomuceno
em seu Batuque: a importância de compor obras a partir de um
patrimônio brasileiro.
Antes de voltar ao Rio de Janeiro, segue para Paris, aperfei­
çoando-se na Schola Cantorum com o célebre organista Alexander Guilmant. Conhece Saint-Saëns, Vincent d’Indy e Debussy,
de quem assiste a estreia mundial de L’après – midi d’un faune,
obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908. Durante
sua estada na França, compõe, a convite de Charles Chabault,
catedrático de grego na Sorbonne, a música incidental para a tragédia de Sófocles, Electra. Também musica, ao mesmo tempo,
uma série de poemas em português e em francês, alguns deles
com texto do poeta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck:
Desirs d’hiver Oraison (1894), de Serres Chaudes, e La chanson
219
parte 7 – música
cercado por amigos e discípulos, falece em 16 de outubro de 1920.
O musicólogo Luiz Heitor relata através da testemunha ocular de
seu passamento, Otávio Bevilacqua, que ele cantava na hora da
morte, tal como fizera José Maurício Nunes Garcia.
Segundo a pianista Berenice Menegale, que estreou sob a regência de Bosmans aos 11 anos, o maestro era um grande improvisador, capaz de criar em tempo real pequenas obras à maneira
de compositores do passado. Oiliam Lanna, compositor que foi
aluno e amigo de Bosmans, relata ter sido ele um homem de
grande cultura não só musical, mas também no campo das artes
em geral, possuindo uma imensa biblioteca. Foi amigo de artistas
plásticos, como Guignard e Chanina – que pintou um retrato seu
– e de compositores seus contemporâneos, como Edino Krieger,
Francisco Mignone e, principalmente, Radamés Gnatali. Sua vida
de marinheiro teria contribuído para seu interesse em outras culturas e influenciado no colorido de suas obras. Embora não fosse
um compositor nacionalista, no sentido estrito da palavra, durante
sua estada em Portugal compôs a Sinfonietta Lusitana, baseada
em cantigas tradicionais portuguesas. Oiliam ressalta o papel de
Bosmans como divulgador da obra de compositores belgas no Brasil (Peter Benoit, Joseph Jongen, Marcel Poot e Gaston Brenta),
assim como o de compositores brasileiros no exterior.
Os títulos de suas obras sugerem um certo humor e mesmo alguma irreverência, como La vie em bleu, O cavaquinho bem temperado, Clavinedoctes, Valsa...da outra esquina – para violão –, segundo o violonista Edelton Gloeden, uma homenagem a Mignone.
Sérgio Freyre, Alice Belém e Rodrigo Miranda, que o estudaram mais profundamente, admitem ter sido Bosmans um grande admirador de Gershwin, Bartok e Ravel, podendo-se notar a
influência desses compositores em sua rica e ao mesmo tempo
clara sonoridade orquestral. A linguagem de sua obra, entretanto,
despreza os experimentos das correntes de vanguarda pós-Schoenberg, valendo-se de combinações politonalistas e timbrísticas
como elementos de construção.
Arthur Bosmans casou-se com uma brasileira, Walkyria – que
mantém o acervo de suas obras – e naturalizou-se brasileiro em
1954. Faleceu em Belo Horizonte em 1995.
Boa parte do registro de suas obras feitas na Bélgica perdeu-se
durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios sobre
Antuérpia e Bruxelas. No entanto, seu filho, Jaak Bosmans, tem
restaurado e digitalizado as gravações ainda existentes, trabalho
complementado pela Escola de Música da UFMG, que tem realizado novas gravações de algumas de suas obras.
Leo Kupper nasceu em Nidrum, Bélgica, em 1935, e fez
seus estudos de Musicologia e História da Arte nas Universidades de Liège e de Bruxelas. A partir de 1962, colaborou com
Henry Pous­seur no Studio Apelac, o primeiro estúdio de música
eletroacústica da Bélgica. Foi diretor de sonorização da Rádio
e Televisão Belga, compondo trilhas sonoras para filmes e programas de televisão. Em 1967, funda o Studio de Recherches et
de Structurations Électroniques Auditives, em Bruxelas, no qual
realiza uma série de experiências relacionadas à música e à criação sonora, como Música Digital Pública: realizações de músicas coordenadas pelo público ou autoestimuladas por máquinas
que engendram um ambiente sonoro complexo, através de um
grande número de fontes sonoras (na Bienal de Veneza, em 1987,
até 350 canais de áudio).
Um compositor marinheiro e um músico-viajante
do século XX
Entre os compositores belgas que estiveram no Brasil no século
XX, destacam-se dois nomes cujo trabalho se encontra mesclado,
de forma particular, às duas culturas. Trata-se do compositor e regente Athur Bosmans e do compositor de música eletroacústica
Leo Kupper.
Arthur Bosmans nasceu em Bruxelas em 1908. O fato de não
ter seguido cursos regulares de música não o impediu de participar,
já aos 12 anos, como violinista, da Orquestra Sinfônica de Mons.
Além do violino, tocava com grande desenvoltura piano, clarinete e trompa. Em 1926, ingressou na Marinha Belga, na qual permaneceu por cinco anos, ao fim dos quais resolveu abandonar a
carreira militar para se dedicar unicamente à música. Estudou por
conta própria composição e regência e, em 1933, recebeu o Prêmio Cesar Frank, em Liège, por sua rapsódia La rue, o que o tornou
conhecido em todo o país e propiciou a edição de várias obras suas.
Durante a Exposição Mundial de Bruxelas, em 1935, foi organizado o Festival Arthur Bosmans, no qual apresentou várias de
suas obras sinfônicas com grande sucesso. Nessa época, tornou-se
regente assistente e depois titular da Orquestra Filarmônica de
Antuérpia, tendo apresentado seu scherzo sinfônico James Ensor,
Cymbalum para piano e orquestra e a suíte orquestral La vie em
bleu. Em 1939, torna-se membro do conselho editorial da Revue
Musicale Belge e diretor do Ballet Bellowa.
Com a eclosão da Segunda Guerra, voltou à Marinha e, após
uma operação no Canal da Mancha, chegou acidentalmente a
Lisboa. Lá encontrou Darius Milhaud, que pretendia ir para os
Estados Unidos. Era o ano de 1940 e, através de Milhaud, conseguiu um visto para o Brasil. Aqui chegando, encontrou-se com
Villa-Lobos que o ajudou a integrar-se no meio musical do Rio de
Janeiro. Nos dois anos seguintes regeu, deu aulas e compôs música para cinema e dança. Enquanto isso, suas obras continuavam
a ser apresentadas na Bélgica ocupada, nos Estados Unidos, no
Canadá e Uruguai.
Em 1944, foi convidado a reorganizar a Orquestra Sinfônica de
Belo Horizonte, como diretor artístico e regente estável. Transfere-se então para Minas Gerais, onde exerceu grande atividade na
vida cultural de Belo Horizonte. Em 1965, começou a lecionar
composição, regência e música de câmara na Escola de Música
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo se aposentado em 1980.
Nos anos 1960, Bosmans realizou várias turnês na América
Latina e Europa e gravou com a Orquestra da Rádio e Televisão
Belga várias de suas obras. Em 1975, conquistou o primeiro prêmio do 7º Concurso Internacional de Composição da Académie
Internationale de Lutèce, em Paris, com sua Toccata para piano.
220
música clássica
A partir de 1977, estuda a divulgação da música no espaço,
através da construção de quatro cúpulas sonoras (Roma, 1977,
Avignon, 1979, Linz, 1984, Veneza, 1987). A maior delas foi a
construída para o festival “Ars-Electronica”, em Linz, Áustria, com
104 canais de áudio.
Cria, ainda, máquinas musicais de fabricação original como
o Game (Gerador Automático de Música Eletrônica) por estimulação vocal (analógica e numérica, depois MIDI), 1970-1980; os
Autômatos sonoros, estimulados pela voz humana, 1970-1976; os
Muvis: instrumento de visualização espectral da música, 1976-78;
o Kinéphone: instrumento musical com teclado para a interpretação da música no espaço através de cúpula sonora, 1983.
Realiza, a partir de 1968, uma longa série de concertos de música eletroacústica na Europa, nas Américas e no Oriente, com
solistas e grupos musicais. Tem sido, durante toda sua vida, um
viajante incansável, se interessando pela música dos lugares que
visitou, principalmente o Irã – cuja cultura influenciou sua espiritualidade e sua arte – e o Brasil.
Em 1978, vem pela primeira vez ao Brasil, convidado pelos
organizadores da 8ª edição dos Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea, realizados cada ano em uma cidade latino-americana, no caso, São João del Rei, em Minas Gerais. Em 1981,
é convidado pelo compositor Gilberto Mendes a participar do
Festival Música Nova com o Grupo de Música Fonêmica e Vocal
do Studio de Recherches, do qual faziam parte o baixo Paul Gérimont e o ator Jean-Claude Frison.
Conheci Leo Kupper durante o festival. Desse encontro nasceu uma colaboração artística que completa 30 anos, em busca
de uma linguagem vocal que pudesse ser, ao mesmo tempo,
abstrata e afetiva e que servisse de matéria-prima para posterior
elaboração eletroacústica. Testemunho desse trabalho são cinco
obras nas quais temas da cultura brasileira são tratados através
dos procedimentos de música fonética, desenvolvidos anteriormente por Kupper.
As duas primeiras, Amkea e Annazone, necessitaram de uma
longa fase de exercícios e procedimentos microtonais oriundos de
novas técnicas vocais e respiratórias a partir dos quais brotaram
grafismos vocais, gestos sonoros, miragens resultantes da livre associação com insetos, pássaros, bichos do mato, árvores e pedras.
Segundo Kupper, “Amkea se exprime em linguagem absolutamente
abstrata, não tendo pois – como resultado – nenhuma significação
nacional, internacional ou figurativa: fonemas, fonátomos, alofones, vocalizes, gritos e chamados constituem a essência da linguagem abstrata mas lembram em suas entoações, seus timbres e seus
ritmos, a origem brasileira da cantora”.
Em Annazone, Leo Kupper mescla materiais sonoros criados
por mim a pios de pássaros e sons eletrônicos. Comecei partindo
da memória de cantos de pássaros, zumbidos de insetos, coaxar
de batráquios, passando a uma linguagem de invenção da sonoridade de flores, plantas e borboletas. A obra é enquadrada por
um acorde sinfônico, no começo e no fim dela, como se “ouvíssemos” um quadro no qual a sonoridade de uma mata imaginária
se desenrola.
Os materiais vocais da terceira obra, Anamak, foram criados a
partir de temas musicais de índios do Brasil, recolhidos por viajantes e antropólogos, desde o século XVI, completados por blocos
vocais estimulados por trechos musicais gravados entre os Kaiapó
por Fuesrt, Love, Rosseels e Verswijwer. No entanto, Kupper explica, “o conjunto das vocalizações, das fonemizações e das articulações musicais é absolutamente abstrato. É uma sequência de
invenções a várias vozes, a polifonização da voz de uma mesma e
única cantora”.
Rezas populares do Brasil teve a colaboração do baixo brasileiro Eduardo Janho-Abumrad. A maior parte delas são rezas de
cura coletadas por Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmildon de Almeida Pereira, em Minas Gerais, nas décadas de 1970 e
1980. Foram ainda utilizados cantos fúnebres recolhidos por Alceu Maynard de Araújo, no Ceará, na década de 1940, e cantos
religiosos populares recolhidos por mim em Cananeia, litoral sul
de São Paulo, em 1982. Segundo Kupper, “uma seleção delas foi
fonemizada e parcialmente cantada. Os sons gerados pelo baixo foram posteriormente, transformados por máquinas eletrônicas, com
o intuito de criar seu próprio acompanhamento. Uma das técnicas
utilizadas foi a da granulação sonora, realizada por um programa
criado pelo compositor belga e professor de arte digital da Universidade de Mons, Todor Todoroff. Este programa permite armazenar
na memória do computador um pequeno fragmento do original e
trabalhá-lo. Todos os sons da obra foram extraídos da declamação
e do canto dos intérpretes”.
Essas quatro primeiras peças foram reunidas no CD Ways of
the voice, e deram origem ao espetáculo do mesmo nome, encenado pelo diretor brasileiro radicado na Bélgica, Caio Gaiarsa,
com imagens digitais em movimento criadas por Alessandra Galasso, Eduardo Campos e Chico Escher. O espetáculo foi apresentado em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, no Centro Cultural
do Museu Reyna Sofia, em Madri, e no Festival Au Carré, em
Mons, Bélgica.
A última das obras realizadas em conjunto com Leo Kupper,
Kamana, parte de um universo afro-brasileiro, através dos vissungos (antigos cantos de trabalho das minas) recolhidos por Ayres
da Matta Machado, em São João da Chapada, Minas Gerais, na
década de 1920. No caso dessa obra, o processo usado para sua
composição não foi o de polifonia, mas o de multifonia, representada por sete diferentes vozes superpostas colocadas num eixo horizontal e integra voz, sons instrumentais de diferentes culturas,
sons eletroacústicos e sons eletroacústicos originários da voz tratada. De acordo com Kupper, “embora vários sons como os de metal,
madeira, e sons eletrônicos sejam oriundos da vida contemporânea,
através dos processos compositivos, se tornam referência a aspectos
inerentes aos reinos animal e vegetal”. A estreia dessa obra se deu
em Bruxelas, no encerramento da Semaine du som, na grande
sala do complexo cultural Flagey no dia 27 de janeiro de 2013.
Leo Kupper veio inúmeras vezes ao Brasil e vários técnicos,
compositores e cantores brasileiros participaram de suas produções
ou estagiaram em seu estúdio, em Bruxelas, ao lado de artistas
belgas. Além dos já citados, não posso deixar de lembrar nomes
221
parte 7 – música
de compositores como Helio Sizkind, Vania Dantes Leite, Rodolfo Caesar, Vanderlei Lucentini e cantoras como Kátia Guedes e
Cláudia Todorovo, o que o torna um verdadeiro promotor de intercâmbio musical entre o Brasil e a Bélgica.
CORREA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte,
1985.
DIAS, Odette Ernst. Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Corte do Rio de Janeiro.
Brasília: Editora UNB, 1990.
FORSTER, Maria Thereza Diniz. Oliveira Lima e as relações exteriores do Brasil: o legado
de um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira. Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2011.
FREIRE, Sérgio / BELÉM, Alice / MIRANDA, Rodrigo. Do conservatório à escola. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
REZENDE, Carlos Penteado de. Tradições musicais da Faculdade de Direito de São Paulo.
São Paulo: Edições Saraiva, 1954.
CDs/CDs-livros
KIEFFER, Anna Maria. In: Encarte do CD A. Nepomuceno-canções. São Paulo, AKRON,
1997.
KUPPER, Leo. In: Encarte do CD-livro Ways of the voice. São Paulo, AKRON, 2004.
KUPPER, Leo. In: Encarte do CD Digital voices. Nova York, POGUS, 2012.
Anna Maria Kieffer é musicóloga, pesquisadora e cantora lírica
brasileira, participou de turnês por Alemanha e França como mezzosoprano. Estudou musicologia na década de 1960 e lançou vários
CDs, entre os quais Ways of the Voice (1999), produzido na Filadélfia, com o compositor belga Leo Kupper, reunindo rezas populares do Brasil carregadas de heranças múltiplas da Ásia, da Europa
e da África. É responsável pela trilha sonora do filme O Retorno,
de Rodolfo Nanni.
Referências Eletrônicas
Referências
DEWILDE, Jan e FCQUAERT, Annelies. Bosmans, Arthur: Biographie. Disponível em:
<http://www.svm.be/content/bosmans-arthur?display=biography&language=en>. Acesso
em: 15 jan. 2013.
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eca.usp.br/sites/default/files/jornada_discente/ppgmus/camila_fresca-mus_etno.pdf>.
Acesso em: 07 fev. 2013.
AZEVEDO, Luiz Heitor Correia de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956.
ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo (1808-1865). Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1967.
CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai
nostri giorni (1547-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926.
Álvaro Guimarães (1956-2009)
K a t r i j n Fr i a n t
N
ascido em Araguari, Minas Gerais, Álvaro Guimarães mudou-se aos 13 anos de idade, depois da morte do pai, com
sua mãe e as irmãs para São Paulo, onde continuou seus estudos
de música no Mozarteum e obteve uma formação universitária de
artista executante. Estudou com Hans-Joachim Koellreutter, Coriun Aharonian e Klaus Huber. Ele foi um dos co-fundadores do
Núcleo Música Nova de São Paulo. Com este grupo introduziu,
nos anos de 1980, entre outros, John Cage e sua obra no Brasil e
colaborou com o próprio Cage.
Em 1990 veio à Bélgica com a intenção de escrever um doutorado sobre o contexto sociocultural da música brasileira na Universidade de Gand sob a orientação do professor Herman Sabbe.
Apesar de ter sempre pesquisado sob este ângulo sociocultural o
fenômeno da música erudita, a redação de um doutorado lhe parecia demasiado teórica.
Muito rápido começou a organizar, na Bélgica, concertos,
workshops e palestras sobre a música brasileira enquanto introduzia a música belga no Brasil. E esta última consistia principalmente em obras compostas na parte flamenga do país e tinha muito a
ver com a política cultural federalizada.
Seu objetivo principal era romper com os estereótipos, nos
quais se pensava a cultura dos outros países. Assim o Brasil parecia sempre carregar a associação com carnaval e não ultrapassava
na música clássica o nome de Heitor Villa-Lobos. Por isso Álvaro
gostava de divulgar a obra de Gilberto Mendez e Willy Corrêa de
Álvaro
Guimarães,
fundador do
KaG e professor
no departamento
de música da
Hogeschool Gent
(Escola Superior
de Gand).
Oliveira. Ousava mesmo tocar compositores mais antigos como
Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno e Luciano Gallet. Assim
organizou em Gand, em janeiro de 1999, um festival de música
222
música clássica
de câmara sul-americana. Nisto colaborava com o conjunto Spectra, do qual foi co-fundador, como também com Katrijn Friant,
Françoise Vanhecke, Pier van Bockstael e muitos outros músicos
de formação clássica.
Alguns auditores por aqui ficaram chocados com os elementos expressamente teatrais das partituras brasileiras. Por exemplo,
a Opera Aberta de Gilberto Mendez é uma obra para soprano e
body-builder, na qual os dois executantes mostram seu lado mais
vaidoso e procuram numa forma fugato tomar o trono. Entretanto, a maior parte dos ouvintes benevolentes se deram conta que
este modo de musicar era original e mais socialmente engajado
do que era usual na Bélgica.
Na introdução da cena musical belga contemporânea no Brasil, Álvaro gostava também de sair das veredas batidas. Assim, conscientemente, preferia trabalhar com músicos jovens dispostos a
interpretar obras novas de seus colegas compositores. Paralelamente lhes pedia também para tocar obra de nomes respeitados
na Europa. Desse modo, os frequentadores do Festival Música
Nova em São Paulo, Santos e outras cidades puderam conhecer extensamente a obra de Maurizio Kagel, György Kurtàg, Karlheinz
Stockhausen e muitos outros. Sempre procurava enquadrar estes
concertos com palestras, workshops e repetições abertas.
Em 2003, fundou em Gand seu próprio grupo KaG (Kunstarbeidersgezelschap ou Companhia de Trabalhadores Artistas).
Este se originou da necessidade de fazer música num coletivo. Por isso a KaG funcionava como uma plataforma de e para
artistas, que eram ativos em diferentes áreas. Seus projetos de
música contemporânea cresciam sempre de uma necessidade
intrínseca de contribuir com a arte para um mundo melhor e
isto com atenção especial para os aspectos multidisciplinares,
sociais e teóricos.
Com este grupo queria, a exemplo de Cornelius Cardew,
trabalhar não somente com artistas das diversas disciplinas, mas
também com profissionais e amadores. Sobretudo, amava abrir
as fronteiras dentro da Europa e seu grupo era tão internacional
quanto possível. O seu projeto mais ambicioso foi a encenação de
Maulwerke de Dieter Schnebel. A obra foi observada pelo próprio
compositor e foi apresentada na Bélgica, na Alemanha, na Suécia
e, naturalmente, também no Brasil. Com esta obra conseguiu finalmente envolver performances da parte francófona do país e de
romper os limites culturais da política federal.
Álvaro Guimarães foi professor no departamento de música da
Hogeschool Gent (Escola Superior de Gand) e faleceu prematuramente em Gand em 2009.
Terminamos citando os títulos do seu quarteto de flauta, que,
depois da primeira execução, foi quase imediatamente impresso
Cartaz do concerto Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes, de 1996.
pela editora Moeck. Em sua totalidade, a obra ilustra como nenhuma outra a mistura de suas raízes brasileiras com sua permanência na Bélgica:
Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes (1996) (As
Índias Galantes ou As Folías Flamengas)
1. La question de la canne à sucre à la mer sous dominó blanc…
(A questão da cana de açúcar no mar sob dominó branco…)
2. La Sonate sous dominó bleu… (A Sonata sob dominó azul…)
3. La Consonanza: sous dominó vert… (A Consonanza sob
dominó verde…)
4. La réponse de la mer à la canne à sucre: sous dominó noir…
(A resposta do mar à cana de açúcar: sob dominó negro…)
Katrijn Friant, viúva de Álvaro Guimarães, é pianista e professora
de música em Gand.
223
parte 7 – música
Biografia: Eliane Rodrigues
E
liane Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro. Seu talento musical foi descoberto muito cedo e dirigido por Arnaldo Estrella
(aluno de Alfred Cortot e amigo de Villa-Lobos). Aos seis anos de
idade estreou na televisão (Mozart KV488 com a Orquestra Sinfônica Nacional). Foi laureada nos EUA com o “prêmio especial”
do júri no concurso Van Cliburn.
Como laureada do Concurso Musical Internacional Rainha
Elisabeth, na Bélgica, em 1983, Eliane não demorou a atuar no
Concertgebouw Amsterdam, no Berliner Schauspielhaus, em Paris,
Hamburgo e no Leipzigs Gewandhaus. Em 1985, já foi caracterizada como “brilhante e tecnicamente perfeita” (Die Welt).
Atuou também nas cidades de Antuérpia, Amsterdã, Berlim,
Bruxelas, Haia, Moscou, Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, Roterdã, São Petersburgo, Volgogrado, Zurique. Compôs um concerto
para piano e orquestra de quase uma hora que estreou mundialmente em 9 de agosto de 2000.
De setembro a abril de 2002, tocou em São Petersburgo os
cinco concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo
sido gravados dois CDs. Repertório: 61 concertos para piano, dos
quais 58 foram executados. Atualmente, Eliane Rodrigues é professora no Conservatório Real, em Antuérpia, Bélgica.
A pianista Eliane Rodrigues, que em 2002 tocou em São Petersburgo os cinco
concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo sido gravados dois CDs.
224
música popular brasileira
MPB
Daniel Achedjian
É
bastante confortável ser belga no Brasil. Um certo conforto
que aumentou com o tempo e que reside no fato de não ser
vítima de nenhum preconceito associado a um país do qual não
se conhece muita coisa.
Em 1989, quando aterrizei pela primeira vez na pista do Galeão do Rio de Janeiro (atual aeroporto Antônio Carlos Jobim),
poucos cariocas podiam situar precisamente a Bélgica em um
mapa, ou mesmo associá-la a algumas personalidades ou produtos
culturais, quaisquer que fossem.
Em seguida, o futebol (na época dourada dos Scifo, Preud­
homme e Gerets, entre 1986 e 1990), o chocolate, a moda dos bares com cervejas belgas e, mais recentemente, a revista em quadrinhos (Tintim, Os Smurfs), trouxeram alguns elementos de ajuste
de identidade condizentes com o reino do surrealismo.
Musicalmente, quando alguém me perguntava, eu tinha certa dificuldade em achar características que pudessem definir um
estilo próprio da Bélgica. Pois não existia realmente um…
Bluesette de Toots Thielemans era regularmente tocada em todas as boates de jazz do Rio e de São Paulo, mas era, com frequên­
cia, atribuída ao bossa-novista Roberto Menescal, cuja maneira de
tocar violão possui semelhanças com o nosso gaitista.
Quanto a Ne me quittes pas, a canção em língua francesa mais
interpretada e gravada pelos artistas brasileiros, era preciso que eu
esclarecesse que pertencia a Jacques Brel e ao patrimônio de seu
país plano (Le Plat Pays, outra obra-prima do cantor belga), e não
a um eventual compositor francês, como ela era frequentemente
apresentada. Maysa (1936-1977) gravara uma versão ao vivo no finado Canecão, sala mítica do Rio de Janeiro, e ela teve inúmeras
versões diferentes, até a da jovem paulista Maria Gadú em 2010,
passando por Jards Macalé, Cauby Peixoto, Bibi Ferreira, Ângela
Rorô e muitos outros, com versões com êxitos diversos...
Quanto a Toots Thielemans e Bluesette, os dois álbuns The
Brazil Project de 1992 e 1993, nos quais ele convidou a nata da
MPB, eles propunham uma versão de mais de nove minutos do
grande clássico, cuja letra em português tinha sido escrita por Ivan
Lins. Tive a oportunidade de assistir aos shows de apresentação dos
álbuns tanto no Rio, no Hotel Nacional de São Conrado, como
em Bruxelas, no Palácio de Belas Artes.
Em 1989, então, eu tinha alguns anos de jornalismo na minha bagagem – principalmente no Télémoustique – dedicados às
músicas pop, rock, new wave e soul, inglesas e americanas, e eu
demonstrava certa falta de interesse em escutar Jorge Ben, Sérgio
Mendes e João Gilberto, que eram ouvidas sem parar por meus
familiares.
Naquele ano, houve essa primeira viagem ao Rio, quase que
por acidente, e uma conexão imediata foi feita em mim, que me
fez procurar no acervo de discos dos meus pais o que se tornaram,
na época, meus dois álbuns de cabeceira: Vinícius, Toquinho e
Maria Creusa/Maria Bethânia, en La fusa, gravados em 1970 em
Buenos Aires, dos quais escutei cada mínimo detalhe, até estragar os vinis.
Minha compulsão doentia fez o resto. Escutar e estudar em
profundidade os mestres da Bossa-Nova, os diferentes tipos de samba, o choro, as músicas do Nordeste, os outros estilos regionais e
Edu Lobo e Daniel Achedjian.
225
parte 7 – música
Oscar Castro-Neves e Toots
Thielemans,
que gravou
três álbuns em
homenagem
à música
brasileira.
os grandes clássicos da MPB, abandonando tudo que era cantado
em inglês.
Entre 1988 e 1994 foi também a época do festival “Viva Brasil” na Bélgica e dos cartazes de sonho que reuniam, entre muitos
outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João
Bosco, João Gilberto, as jovens Marisa Monte e Daniela Mercury,
mas também Toninho Horta, Egberto Gismonti, Hermeto Pas­
coal, Nana Vasconcellos.
Como um digno filho do rock e da soul, eu me abri rapidinho aos outros estilos, de influências mais claramente estrangeiras,
muitas vezes misturados aos ritmos e harmonias do Brasil, para me
dar conta que a riqueza implantada musicalmente naquele país
continente não tinha equivalente no mundo.
Se eu estudava com paixão e compulsão mais de um século de
história da música popular brasileira (me levando a adquirir mais
de dez mil CDs), eu vivia igualmente com intensidade, através
de minhas inúmeras viagens durante os anos 90, uma das décadas
mais ricas e produtivas do século XX no Brasil.
O aparecimento do Mangue Beat de Pernambuco, a afirmação
nacional da música axé de Salvador, Bahia, o cenário rap de São
Paulo e Rio de Janeiro, o amadurecimento da música eletrônica,
a bossa lounge na Europa; o nascimento de uma nova geração de
cantoras compositoras como Adriana Calcanhotto, Marisa Monte,
Zélia Duncan, Fernanda Abreu, Cassia Eller, Ana Carolina; uma
chegada importante de artistas carismáticos vindos do Nordeste
como Lenine, Zeca Baleiro, Chico César; a consolidação do rock
nascido nos anos 80 (Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas
do Sucesso, Titãs) e os primórdios muito importantes do grupo
Los Hermanos no Rio de Janeiro que influencia toda a cena independente e indie carioca até os dias de hoje. Na realidade, tratava-se de uma década que após ter visto o nascimento do rock
influenciado pelo cenário inglês, e a chegada da MTV Brasil, em
1989, mais uma vez conseguiu integrar magnificamente os estilos
estrangeiros às raízes brasileiras.
Após ter feito uma pausa na carreira jornalística, retomei minhas atividades no início dos anos 2000, atuando em diferentes
rádios independentes, ainda hoje na Rádio Judaica Bélgica (90,2
FM), na qual tive a liberdade de produzir programas de duas a
três horas semanais. O que não é muito comum, diria até mesmo
inédito, em francofonia. O programa foi muito tempo ao ar no
domingo à noite, em seguida, na segunda-feira, enquanto, atualmente, ele é gravado no Rio de Janeiro, e colocado no ar, sendo
várias vezes retomado em diferentes horários, em função da atualidade frequentemente perturbada, típica da natureza da estação.
Tendo aperfeiçoado meu português do Brasil, pude retomar o
exercício das entrevistas e, foi com bastante surpresa que vi as portas se abrirem com entusiasmo. Tive a oportunidade de encontrar,
para longas conversas, artistas como Paulinho da Viola, Gilberto
Gil, Gal Costa, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Francis Hime,
Edu Lobo, Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato, Alceu
Valença, Ney Matogrosso, Ed Motta, Frejat, Marina Lima, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, Lenine, Paulinho Moska, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Los Hermanos, Leila Pinheiro, e tam-
bém artistas da novíssima geração, como Rodrigo Campos, Tiê,
Rodrigo Bittencout, Sílvia Machete, Mariana Aydar, Cris Aflalo,
Verônica Ferriani e Chico Saraiva da nova cena independente de
São Paulo. Em suma, por volta de uns 200 nomes, conhecidos e
menos conhecidos. Pode-se dizer que, geralmente, foram encontros bem à vontade, informais (embora todos gravados) e com direito, de vez em quando, a sessões privadas de música.
Tudo isso devido à confiança que me foi dada pelos produtores, presidentes de selos, assessores de imprensa e artistas que haviam tomado conhecimento do site Tropicália MPB – precedido
pelo blog “Art et Musique Populaire Brésilienne” –, redigido em
duas línguas, francês e português, onde também se encontram os
podcasts dos programas transmitidos na Rádio Judaica Bélgica.
Os cadernos culturais de jornais importantes como o finado
Jornal do Brasil (que ainda existe na internet), O Dia e O Globo,
me honraram publicando alguns artigos sobre meu trabalho, e boa
parte das minhas resenhas de discos e de shows encontram-se nos
sites oficiais dos artistas e das gravadoras.
Há dois anos resido, principalmente, no Rio de Janeiro, e é
com um prazer levemente dissimulado que continuo, como Hercule Poirot, a corrigir com malícia aqueles que acham que sou
francês. Pois se a Bélgica é um país tão complexo para ser definido, ela possui ao menos a vantagem, devido a isto, de escapar das
ideias preconcebidas. Verdade seja dita, continuo a pensar que é
particularmente confortável dizer que se é belga no Brasil.
Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela
música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em
Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia”
na Rádio Judaica.
226
música popular brasileira
A descoberta da Bossa-Nova na Bélgica
B a r t P. Va n s p a u w e n
A
Bossa-Nova ganhou fama na Bélgica com Toots Thielemans
e Elis Regina, com a gravação deles de 1969 e com sua atuação em Bruxelas em 1979; com o Festival Viva Brasil em Bruxelas
nos anos 1980; com o guitarrista belga Philippe Catherine; com o
Two Man Sound, o grupo dos músicos belgas Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez; com o compositor, músico e
produtor Henri Greindl, em formações diferentes como Cheiro de
Choro, Parfum Latin e Henri Greindl Quintet; com o saxofonista
John van Rymenant; com o DJ Buscemi (Dirk Swartenbroekx),
e com Vincent Kenis e sua editora discográfica Ziriguiboom, baseada em Bruxelas.
O jazzista Toots Thielemans, conhecido por tocar violão e
harmônica de boca, produziu em 1969, juntamente com a diva
brasileira Elis Regina, o álbum Aquarela do Brasil – Elis Regina
& Toots Thielemans, que foi gravado na capital sueca, Estocolmo, durante a turnê europeia de Elis no mesmo ano. A dupla
foi acompanhada pelo quinteto Conjunto de Roberto Menescal,
que se chamou Elis Cinco para essa ocasião. O álbum foi uma
mistura de jazz belga e Bossa-Nova. Thielemans foi responsável
por três solos de harmônica de boca e violão, incluindo um tributo a Elis Regina.
Thielemans gravou mais dois álbuns em homenagem à música brasileira: Brasil Project 1 (1992) e Brasil Project 2 (1993).
Neles, Thielemans tocou com colegas músicos brasileiros, como
Ivan Lins, Djavan, Oscar Castro-Neves, Dori Caymmi, Ricardo
Silveira, João Bosco, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano
Veloso, Luiz Bonfá, Edu Lobo e Eliane Elias.
O Festival Viva Brasil foi organizado em Bruxelas de 1988 a
1992. A primeira edição teve lugar de 29 de junho a 1º de julho
de 1988 no Palácio de Belas Artes, com Beth Carvalho, Jorge Ben,
Astrud Gilberto e Milton Nascimento no cartaz.
A segunda edição – em 21 e 29 de junho e 3, 5 e 6 de julho de
1989 –, foi aberta por Marcia Maria na Grand Place de Bruxelas.
Escola de samba Galeria, Maracatu Elefante Porto-Rico e Frevo
Abanadores do Arruda também atuaram. O restaurante Do Brasil
organizou uma noite musical quando recebeu no palco Hermeto
Pascoal Grupo, bem como João Bosco & Caetano Veloso, com
Carlinhos Brown na percussão. Astrud Gilberto & João Gilberto
atuaram no prestigioso Palácio de Belas Artes.
A terceira edição, de 21 de junho a 10 de julho de 1990, trouxe Ritmistas Pernambucanos (Escola de Samba do Recife), Tania
Maria e Djavan ao palco na Grand Place; Mexe com Tudo e Joyce
no Clube do Brasil; e Margareth Menezes, Gilberto Gil, Marisa
Monte e Jorge Ben no Cinquentenário.
A quarta edição do Viva Brasil, de 5 a 12 de julho de 1991,
teve no cartaz Flávio Dell’Isola, Cheiro de Choro, Fuzuê, Margareth Menezes, Gilberto Gil e Márcia Maria, além de Milton
Nascimento e Nana Vasconcelos, Osmar, Pau Brasil, Stéphane
Toots Thielemans recebeu uma encomenda na Embaixada do Brasil na Bélgica
em 23 de janeiro de 2006, tocou junto com Gilbero Gil (fotografia de Vivian
Oswald).
Martini & Papagaio & Denise Azul. Houve atuações no Clube do
Brasil, Travers, o Palácio de Belas Artes, e Mirano. E o Viva Brasil
1992, finalmente, realizado de 30 junho a 10 de julho. A noite de
abertura coincidiu nessa ocasião com a noite de encerramento do
festival multicultural Couleur Café. Jorge Ben Jor e a Banda do Zé
Pretinho e Kaoma atuaram na sala Halles de Schaerbeek; Marisa
Monte e Batucada na Praça Muntplein; Cheiro de Choro na sala
Beurscschouwburg; Rita Lee e Ricardo Silveira e The Latin-American All Stars na Ancienne Belgique; Marito Correa no Do Brasil,
Kaoma e Batucada na cidade costeira de Blankenberge; Denise
Blue na Les Tréteaux de Bruxelles; Ana Caram & Zizi Possi na
Ancienne Belgique; Assa Brothers & Uakti no Estúdio 4 da então
chamada emissora de televisão nacional BRT (na Praça Flagey).
Ara Ketu, Nazaré Pereira + Sivuca também atuaram. Por fim, um
lugar especial foi reservado para o Brazilian Project de Toots Thielemans, contando com a participação de Gilberto Gil, Chico Buarque, Eliane Elias, João Bosco, Ivan Lins e Oscar Castro-Neves.
O guitarrista de jazz belga Philippe Catherine substituiu, no
início do ano de 1976, Jan Akkerman na banda de rock holandesa
Focus durante a gravação e a turnê do álbum Focus con Proby em
1977 e 1978. Com Catherine, a banda atuou para mais de 60 mil
pessoas no Palácio das Convenções do Anhembi, durante o International Jazz Festival of São Paulo (também conhecido como São
Paulo-Montreux Jazz Festival), ao lado de músicos como Hermeto
Paschoal, Egberto Gismonti, Stan Getz, Milton Nascimento, Raul
de Souza, Luiz Eça, Helio Delmiro, Márcio Montarroyos, Wagner
Tiso e Victor Assis Brasil.
227
parte 7 – música
Em 1990, Catherine recebeu, junto com Stan Getz, o Bird Prize, durante o Northsea Jazz Festival. Catherine compartilhou seu
amor pela Bossa-Nova repetidamente no palco com Toots Thielemans. Por exemplo, em 1993, durante um concerto na Flanders
Expo, em Gand, com Thielemans e amigos. No seu primeiro álbum solo, Guitars Two (2008), Catherine interpretou igualmente
números do guitarrista brasileiro Guinga, de Stephane Grappelli
e de Fiszman Nicolas, além de composições originais (tal como
a música acústica Lendas Brasileiras). Catherine voltou repetidamente a São Paulo, como em 2010, com interpretações de Guinga e Pixinguinha, juntamente com a orquestra Jazz Sinfônico no
Auditório Ibirapuera.
Two Man Sound foi um grupo belga pop constituído pelos
músicos Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez.
Tanto Deprijck como Vanholmen já tinham ganho alguma fama
como produtor musical: o primeiro com músicos como Liberty
Six, Lou & the Hollywood Banana’s e projetos como Viktor Lazlo, Plastic Bertrand; o segundo com The Wallace Collection,
Octopus, e mais tarde com The Machines, Jo Lemaire & Flouze.
A banda registrou seus maiores sucessos na década de 1970 com
influências de disco, samba e bossa-nova. Mais elogios o trio recebeu com as canções “Copacabana” (1971), “Charlie Brown”
(1976) e “Que Tal América” (1979). O medley “Disco Samba”, do
álbum homônimo (1978), por outro lado, se tornou um grande
sucesso na Europa no início dos anos 1980, com posições altas
nas diferentes euro-charts entre 1983 e 1986, depois do grupo já
ter parado de atuar.
Henri Greindl, além de ser compositor, arranjador, produtor
musical e engenheiro de som também ativo como músico (violão,
baixo, cavaquinho), trabalhou com numerosos músicos de jazz
no Brasil (Marimbanda, Caito Marcondes, Marito Correa, Léa
Freire). Greindl, casado com a curadora de exposições brasileira
Cristina Barros Greindl, foi membro fundador das bandas Cheiro
de Choro, Parfum Latin, e Henri Greindl Quintet, todas influenciadas pelo gosto musical de Greindl por bossa-nova, jazz e rock
progressivo dos anos 1970.
O grupo Cheiro de Choro é composto por Daniel Stokart (flauta, sax), Anne Wolf (piano), Tonio Reina (bateria e percussão) e
Henri Greindl (violão, baixo eletrônico, contrabaixo, cavaquinho).
O flautista brasileiro Beto Cavalcante (Heriberto Cavalcante Porto
Filho) também foi envolvido na fundação do grupo em 1990. Desde então, Cheiro de Choro tocou em vários festivais na Bélgica e
no Norte da França (Viva Brasil, Belga Jazz Festival, Bruxelas Jazz
Rallye, entre outros), com interpretações de Tom Jobim, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, misturando o jazz com diversas
variantes da música brasileira, tais como samba, frevo, marcha
rancho, partido alto, chorinho, maracatu, xote e baião. Depois
do primeiro álbum, Chorinho para Tina (2001), a ênfase passou
do choro ao jazz.
O segundo projeto musical de Greindl, o grupo Parfum Latin,
é composto por Pierre Bernard (flauta), Anne Wolf (piano, tecla-
dos e vocais), Charles Loos (piano e teclados), Jan de Haas (bateria, percussão e marimba) e Henri Greindl (baixo), novamente
com influências musicais brasileiras.
Finalmente, o terceiro projeto de Greindl, Henri Greindl
Quintet, tem como membros Daniel Stokart (sax, flauta), Pierre
Bernard (flauta), Theo de Jong e José Luis Montiel (baixo), Luc
Vanden Bosch (bateria, percussão) e Henri Greindl (violão). Durante suas apresentações no Brasil, Greindl foi acompanhado por
músicos locais: Vitor Alcantara e Josué dos Santos (sax e flauta),
Zeli (contrabaixo) e Alexandre Damasceno (bateria).
Além disso, Greindl fundou em 1997 o selo independente
‘Mogno Music’, que produziu as obras discográficas de seus diferentes grupos. Na compilação Inspiração Brasil (2005), Greindl
tocou ao lado de músicos brasileiros ou outros músicos que se
inspiraram na música brasileira (Tom Jobim, Benoit Mansion,
Ronaldo Boscoli, Weber Iago, Pixinguinha, Baden Powell, Jose
Eduardo Gramani e Charles Loos). Os rendimentos do álbum
foram inteiramente transferidos à comunidade Corumbau, no Estado brasileiro da Bahia.
O saxofonista John van Rymenant gravou o álbum Memory
Stop (1982) durante oito meses de estadia no Brasil, em 1979,
período no qual mergulhou no mundo dos sons brasileiros, criando uma fascinação pelo berimbau, que usou extensivamente nas
gravações e depois tratou eletronicamente no estúdio em Bruxelas. O LP é classificado como de gênero de música eletroacústica,
contendo músicas como “Electro Samba” e “Capoeira”.
Desde 1996, Buscemi (pseudônimo de Dirk Swartenbroekx)
ganhou fama com seus álbuns remix sob influência brasileira,
chamados Late Nite Reworks, incluindo remixes no estilo bossa-nova de canções de músicos brasileiros como Marcos Valle, Rosalia de Souza, e Electro Coco. Juntamente com sua banda Squadra Bossa (trompetista Sam Versweyveld, baixista Hans Mullens e
baterista Luuk Cox), DJ Buscemi atuou repetidamente em muitos
festivais de grande dimensão na Bélgica bem como no exterior.
Finalmente, Ziriguiboom, um sub-rótulo da editora discográfica belga Crammed Discs, foi fundado em 1998 por Vincent Kenis em colaboração com o produtor musical brasileiro Beco Dranoff. A editora foca em sons brasileiros inovadores que mesclam
tradição e pop com elementos eletrônicos, sendo a bossa-nova
uma parte importante dessa mistura. Músicos internacionalmente
conhecidos como Bebel Gilberto (cujo álbum Tanto Tempo, de
2000, criou um avanço nacional), Trio Mocotó, Celso Fonseca,
Bossacucanova, Zuco 103, Cibelle, DJ Dolores, Apollo Nove e
Suba são alguns dos nomes famosos. Ziriguiboom já editou mais
de 30 CDs e compilações, tais como Samba Soul 70, Brasil 2 Mil:
Soul Of Bass-O-Nova) e Ziriguiboom: The New Sound Of Brazil.
Bart Vanspauwen, graduado em Estudos Literários e em Estudos Culturais pela Universidade Católica de Lovaina, é Mestre e Doutorando
em Etnomusicologia pela Universidade Nova de Lisboa, com pesquisa
sobre a integração de músicos migrantes de língua portuguesa.
228
música popular brasileira
A descoberta do Mangue Beat na Bélgica
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M
angue Beat é uma denominação para a cena musical eclética do Recife, capital de Pernambuco. Em 2000, foi apresentada pela primeira vez ao público através da emissora nacional
flamenga Rádio 1 em dois programas semanais sobre músicas do
mundo: “Club Tropical” (desde 1984) e “Cucamonga” (desde
1993), ambos produzidos e compilados por uma equipe liderada por Zjakki Willems, que estudou ciências políticas e relações
internacionais na Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Ele fez
sua primeira série musical sobre Frank Zappa na década de 1970
para a emissora holandesa KRO e a emissora belga (flamenga)
BRT 2. Como jornalista freelancer, ele também publicou nas revistas Knack e Oor.
Entre 1986 e 1997, Willems estava na base da EBU World Music Workshop e participou da World Music Charts Europe. Além
disso, ele produziu as gravações da emissora belga (flamenga) VRT
nos festivais Cactus Festival, Couleur Café, Sfinks Festival, Antilliaanse Feesten, Open Tropen e Belgium Rhythm & Blues Festival.
Entrementes, o programa Cucamonga recebeu os prêmios Zamu
Award e Deutsche Welle Award, entre outros.
Com a alteração do perfil da Rádio 1 em 2007, os programas de
rádio de Willems foram substituídos por ‘Exit’, ‘ExitPlus...’ e ‘Exit­
PlusWorld’, que em 2011 se transformariam em ‘Closing Time
World’. Em 2010 e 2011, Willems foi curador musical do festival
cultural internacional Europalia.Brasil em Bruxelas.
Willems entrevistou Chico Science, um dos fundadores do
Mangue Beat, no Recife, em 1994. Desde então, o radialista fez
cinco séries de rádio sobre a música brasileira: Rádio Brasil (2000),
Rádio Mangue (2002), Sintonize Pernambuco (2003), SamPa Beats (2006), Rádio Mauritsstad (2009, para a emissora holandesa
Rádio 6) e Rádio Mauritsstad (2011, versão francesa).
Nessa série de rádio, a ênfase foi particularmente colocada na
expressão musical no Recife, com a história do Mangue Beat, por
Willems designado como o movimento recente mais importante
na música brasileira desde o Tropicalismo do final da década de
1960. Como referido por Willems e seus colaboradores, tais como
Jeroen Revalk e John Erbuer, Mangue Beat é sinônimo de uma
geração de músicos que, desde a década de 1990, ganharam fama
com uma mistura de música tradicional do Nordeste, pop e rock
e outras influências do mundo inteiro.
Dos programas de Willems surgiram Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, dois dos grupos principais, que
elaboraram um manifesto cultural no qual viram o ecletismo do
Nordeste como um motivo de orgulho, no nível regional, nacional e internacional. Por isso, festivais locais como Abril Pro Rock e Rec Beat, focaram em grupos inovadores de Pernambuco,
Brasil e América Latina, enquanto a conferência Porto Musical
(organizada pela Womex-World Music Expo, sediada em Berlim
desde 2005) juntou anualmente músicos, investigadores e espe-
cialistas de marketing e tecnologia do mundo inteiro no período
de carnaval.
Além disso, Cucamonga e Club Tropical também abordaram fatos socioculturais e históricos sobre Recife que, de 1630 a
1654, foi a capital do Brasil holandês e era conhecida por Mauritsstad. Como referido pelos radialistas, foi nesse período colonial que os maracatus surgiram, cerimônias com influências
europeias, africanas e indígenas em duas variantes: o maracatu
urbano (maracatu nação), em homenagem aos reis africanos e
como se tornaram escravos nas plantações de cana de açúcar; e
maracatu do campo (maracatu rural), com a figura central do
mestiço indígena (caboclo).
Maracatu é tipificado musicalmente pela alfaia, um grande
tambor portátil onipresente nos desfiles de maracatu durante o
carnaval do Recife. Chico Science e seu grupo Nação Zumbi incorporaram essa alfaia no mangue beat, junto com outras percussões indígenas. Segundo Willems, velhas e novas influências culturais foram recicladas musicalmente para reforçar a identidade
local do Recife.
Think of One, um grupo de Antuérpia, foi inspirado pelo
ecletismo popular do mangue beat. Estimulado por John Erbuer,
o cineasta de Cucamonga, o coletivo, que já havia colaborado
com músicos marroquinos sob o nome Marrakech Emballages
Ensemble, decidiu fazer dois álbuns com músicos locais no Recife, seguido de duas turnês pela Bélgica e Europa. A BBC World
Music Award, em 2005, apenas aumentou o reconhecimento
do grupo.
A equipe de Cucamonga também fez um documentário sobre as estadias de Think of One no Recife. Para o primeiro álbum,
Chuva em Pó, a banda passou seis semanas no Recife para ensaiar
com os músicos de lá, gravar um CD e fazer uns shows. Durante
as últimas quatro semanas, o cantor-guitarrista do grupo, David
Bovée, falou semanalmente por telefone sobre o avanço do projeto
e a interação musical durante a emissão de Cucamonga.
John Erbuer registrou essa aventura musical em um documentário que foi exibido no lançamento de Chuva em Pó no dia
25 de maio de 2004, na sala de concertos Ancienne Belgique em
Bruxelas. O álbum trouxe ritmos e instrumentos (como a alfaia e
o agogô) do Recife, e contando igualmente com uma participação de Siba, ex-cantor do mangue beat grupo Mestre Ambrósio.
Durante a turnê belga, Think of One compartilhou o palco com
a Dona Cila do Coco, então com 60 anos, o percussionista Carranca, e as backing vocals Christina Nolasco e Lulu Araújo. Think
of One, por sua vez, tinha como membros David Bovée (voz e
violão), Eric Morel (saxofone), Roel Poriau (bateria, kwita, reco
-reco), Tobe Wouters (trombone, tuba), Tomas De Smet (violão,
baixo). O grupo ainda atuou em Antuérpia (na sala Roma), Lovaina (festa do mundo no parque Bruul), Kortrijk (Sinksen 04), Gand
229
parte 7 – música
John Erber filmando em Pernambuco.
(Vooruit), Mol (Het Getouw), Bruges (De Nacht) e em festivais
de projeção nacional como Afro Latino, Polé Polé, Gentse Feesten,
Dour e Dranouter.
Para o próximo álbum, Tráfego, que foi lançado pela editora
belga Crammed Discs (que também editou discos de outros músicos brasileiros, como Zuco 103, Bebel Gilberto, DJ Dolores e
Suba), Think of One voltou para o Brasil. O programa Cucamonga novamente transmitiu um telefonema semanal com o grupo a
partir de Recife e trechos musicais exclusivos.
Participaram do álbum novamente Dona Cila do Coco (voz),
Alê Oliveira, Lucie e Carolina de Renesse, Fernanda Boechat,
Ganga Barreto, Sheyla Vidal e Cris Nolasco (backing vocals),
Ricardo Lourenço (violão), Sergio Lemos, Dom Carlos e Hugo
Carranca (percussão), David Bovée (violão, teclados, voz), Tomas
De Smet (baixo, teclados), Bart Maris (corneta, trompete), Bruno
Vansina (saxofone barítono), Eric Morel (saxofone), Jon Birdsong
(corneta, trompete), Marc Meeuwissen e Stefaan Blancke (trombone), Tobe Wouters (trombone, tuba), Michael Weilacher (marimba, vibrafone), Peter Vandenberghe (órgão Hammond), Pitcho
Bovée (efeitos de som) e Roel Poriau (bateria, teclados, triângulo).
Think of One atuou como showcase na conferência musical
Porto Musical em março de 2006 no Recife. Na Bélgica, a banda atuou nas principais salas de concertos de Bruxelas (Ancienne
Belgique), Antuérpia (Petrol), Gand (Vooruit), Lovaina (Het Depot), Diksmuide (Ten Vrede), bem como em festivais multiculturais como Mano Mundo (em Boom) e Couleur Café (Bruxelas).
Entretanto, outros músicos do Recife também vieram à Bélgica. DJ Dolores e Orquestra de Santa Massa atuaram, em 2002,
nos clubes Nijdrop em Opwijk e 4AD em Diksmuide, em 2003
no festival multicultural Sfinks (Boechout, perto de Antuérpia) e,
em 2007, no Cactus Festival (Bruges), desta vez sob o nome de
DJ Dolores & Aparelhagem.
Aliás, vários outros artistas e bandas pernambucanas passaram
por Sfinks Festival, como Chico Science e Nação Zumbi (1995),
Mestre Ambrósio (1996), Lenine (2000), Mundo Livre S/A (2000),
Cordel do Fogo Encantado (2001), Silvério Pessoa, ex-cantor do
grupo Cascabulho (2003) e a Banda Eddie (2006).
Diversos grupos de maracatu e outros desfiles tradicionais também chegaram até Sfinks, entre eles: Maracatu Nação Pernambuco (1998, que também tocou no Festival Couleur Café no mesmo
ano), Maracatu Leão Coroado (2002), Maracatu Estrela Brilhante
(2005) e a Afoxé Iyê de Egba de Olinda (2006).
O programa Cucamonga, entretanto, tentou construir uma
ponte musical entre RecBeat e a Bélgica: o grupo belga Madensuyu na edição de 2010 de RecBeat, em Recife e São Paulo, e
havia também grupos do Recife nos palcos do festival Gentse Feesten em Gand.
Finalmente, em 2011, foram programados vários atos musicais
de Recife no Europalia.Brasil em Bruxelas, do qual Zjakki Willems era o curador musical. Ficaram agendadas apresentações da
Banda Eddie, DJ Dolores e Renata Rosa em Gand (na sala Handelsbeurs), Turnhout (Warande) e Amsterdã (Melkweg), que, no
entanto, foram cancelados na última hora pela organização. Para
outras atuações, como a de Siba em Bruxelas (Palácio de Belas
Artes), apareceram poucas pessoas, que também foi o caso de Renato Borghetti, Olivinho e Lulinha Alencar. Willems observou
que, embora houvesse grandes concertos de músicos brasileiros
como CéU, Samba Chula de São Braz e Tom Zé, estilos musicais como maracatu, funk carioca, bossa-nova, DJ sets ou hip hop
foram pouco promovidos.
230
música popular brasileira
A música brasileira nos festivais
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O
s irmãos Stephen e David Dewaele, DJs fundadores dos grupos de eletro-rock Soulwax e 2 Many DJs, são frequentes em
São Paulo (por exemplo, com Soulwax no Ultra Music Festival na
Arena Anhembi, em 2011).
Soulwax conta, além dos irmãos Dewaele (filhos do celebrado
radialista belga Zaki), com Stefaan Van Leuven (baixo) e Steve
Slingeneyer (bateria). Com o 2 Many DJs, têm uma parceria com
o Mixhell, projeto eletrônico paulista de Iggor Cavalera (ex-Sepultura) e sua esposa, Laima Leyton.
As contínuas viagens a São Paulo resultaram em um remix intitulado ‘Batuta Discos’, no qual os irmãos Dewaele fazem mash
ups de discos raros de MPB (Tom Zé, Caetano Veloso e Milton
Nascimento, entre outros) que compraram nas galerias do rock
paulista. O disco vem acompanhado de um documentário que
os Dewaele fizeram andando por São Paulo.
Lieven Verstraete, apresentador do jornal de televisão flamenga, também viajou a São Paulo em 2007 para o programa Cucamonga de Zjakki Willems (Rádio 1). Sua pesquisa na cena musical underground da cidade resultou em uma série de relatórios
apresentados em Cucamonga, e nas compilações Braz-ill (que
redigiu para a revista de música belga Gonzo Circus em 2007) e
Satanic Samba – São Paulo extravaganza (publicado pelo rótulo
Lowlands, de Antuérpia, em 2008) –, com artistas como Tom Zé,
Cidadão Instigado, Bonde do Rolê, Vurla, Krautdemonish, Cansei de Ser Sexy e Instituto vs DJ Dolores. Verstraete, desde então,
não só divulgou seu trabalho como DJ em clubs e festivais belgas
(por exemplo, Jazz Festival Ghent 2009 e Dranouter 2013), como
apresentou o programa ‘ExitPlusWorld’, também sob tutoria de
Zjakki Willems.
A banda Arsenal, projeto dos produtores Hendrik Willemyns
e John Roan, fizeram a ligação com o Brasil através de uma mistura de pop, hip hop e música do mundo nos discos Oyebo Soul
(2003) e Outsides (2005).
Os singles “A volta”, uma colaboração com Mario Vitalino
dos Santos, um cantor e compositor de Salvador, Bahia, e “Mr.
Doorman” se tornaram hits. Com Outsides, acompanhado de um
DVD em que foram apresentados vocalistas convidados – incluindo Vitalino dos Santos, em Salvador –, Arsenal em 2005 ganhou
o prestigioso Zamu Award.
Ao vivo, o grupo fez sucesso com a ajuda da cantora Leonie Gysel, com o público recitando as letras em português. Atuou várias
vezes no maior festival belga, Rock Werchter, bem como em outros
festivais como Pukkelpop, Marktrock, Dranouter e Lokerse feesten.
O Festival Sfinks em Boechout (perto de Antuérpia), dedicado à ‘música do mundo’, divulgou desde os anos 1980 vários grupos e artistas brasileiros, como Banda Eddie, Carlinhos Brown,
Chico Science & Nação Zumbi, DJ Dolores & Orchestra Santa Massa, Fernanda Abreu, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Lenine,
Maracatu Leão Coroado, Maracatu Nação Pernambuco, Mestre
Ambrosio, Mundo Livre s/a, Olodum, Pedro Luis e A Parede,
Samba de Coco Raízes de Arcoverde, Skank, Ylê de Egbá, Zeca
Baleiro e Zuco 103.
Anualmente, o festival dedica uma noite à música brasileira
sob o nome ‘Festa do Brasil’. Outros festivais belgas também receberam músicos brasileiros, como foi o caso de Couleur Café
em Bruxelas, que projetou no palco Daniela Mercury (1998 e
2002), Carlinhos Brown (2001), Zuco 103 (2001 e 2002), Gilberto Gil e Ivete Sangalo (2006). O Festival Braziliaanse Feesten
em Brecht (perto de Antuérpia), também trouxe ao palco música
brasileira desde 2008.
A popularidade dos projetos musicais em torno dos irmãos
Max e Iggor Cavalera (Belo Horizonte/São Paulo), nomeadamente as bandas Sepultura, Soulfly e Cavalera Conspiracy, apesar de
ser considerada música ‘pesada’, ganhou evidência a partir de
1994, com passagens quase anuais nos principais festivais e clubs
da Bélgica até 2012. Especialmente a obra Roots (1996) foi tocada
pelas importantes rádios nacionais, fazendo com que Sepultura
fosse a primeira banda de metal a estar nos festivais mainstream
belgas, com destaque para o festival duplo Rock Torhout/Werchter
em 1994 e 1996.
Muitos jovens conheceram melhor o Brasil pelo grupo, não
só pela bandeira do Brasil no palco e os instrumentos usados, tais
como o berimbau e a alfaia, mas também pelo relato da história
sociocultural e racial do Brasil nas músicas. Para a faixa “Roots
Bloody Roots”, Sepultura tocou junto com Carlinhos Brown (Timbalada), enquanto o primeiro guitarrista da banda Soulfly era Lúcio Maia, da banda recifense Nação Zumbi, ícone do mangue beat. Além disso, os irmãos Cavalera se tornaram fortes amigos dos
irmãos Dewaele (Soulwax, 2 Many DJs).
231
parte 7 – música
Os músicos brasileiros residentes na Bélgica
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S
ão vários os músicos ou grupos brasileiros que residiram, permanentemente ou não, na Bélgica, resultando em diversas
gravações, colaborações e projetos.
Marcelo de Vasconcelos Cavalcanti Melo, violão e voz predominante do grupo de música do Norte do Brasil, Quinteto Violado,
passou uma temporada de estudos na Bélgica e na França antes
de decidir apostar na música. Em Paris, fez contato com a cantora francesa Françoise Hardy, que lhe abriu portas para gravações
de discos e apresentações nas mídias locais. Na Bélgica, conheceu músicos cabo-verdianos engajados na luta de libertação das
colônias portuguesas na África, gravando em conjunto o LP Stora
Stora, em Roterdã, na Holanda.
O grupo Samboa, de Augusto Gonçalves e sua esposa belga Liliane Fontaine, toca vários gêneros musicais do Nordeste brasileiro,
sem esquecer o samba. Samboa também criou uma escola de samba, desfilou muito, se apresentando, por exemplo, no Parc Royal no
dia 21 de julho (feriado nacional da Bélgica). Gravaram três CDs.
O grupo Sergio Lemos e Goiabada, formado por cinco músicos,
toca samba tradicional e popular. Lemos dirigiu, durante muitos
anos, a escola de samba da Vila Isabel, e se casou com uma belga.
Pau Xeroso canta forró tradicional. O grupo foi fundado por
três brasileiros – Augusto Rego (zabumba e canto), Paulinho da
Cuíca (percussão e canto) e Dioni Costa (canto) – que se especializaram no forró tradicional de Pé de Serra, mas também interpretam outras músicas e danças típicas do Norte do Brasil. O grupo
conta ainda com o belga Maurice Blanchy, mais conhecido como
‘Zé Momo’ (acordeão), Marat Araujo (baixo e canto) e Flávio de
Souza (viola e canto). Paulinho da Cuíca também é responsável
pelo grupo ambulante de percussões Batuqueria, com elementos
brasileiros e belgas, tocando um repertório tradicional.
Fora isso, há muitos grupos de forró contemporâneo, assim
como de música sertaneja, que se apresentam nos numerosos cafés e restaurantes populares brasileiros na Bélgica. Em 2012, por
exemplo, o ViaVia Café-Micro-Marché, em Bruxelas, foi o palco
de vários projetos musicais, como a ‘Roda de Choro de Bruxelas’,
projeto animado pelo músico carioca Pedro Moura, e o ‘Via MPB’
com o grupo que conquistou o 1º lugar no Festival de Música
Latina em Bruxelas, o Trio Santa Pua. São vários os cantores de
MPB, como Sergio Bastos, Dioni Costa, Pedro Moura, Solania,
Cintia Rodriguez, o belga Reynald Halloy, Maria Teresa e Grafite.
Outros músicos brasileiros se dedicaram na Bélgica a determinados instrumentos ou repertórios. Osman Martins, especialista do
cavaquinho, já gravou vários CDs, se apresentou no Festival Couleur Café, e está na programação da asbl Muziekpublique, onde
também dá aulas de música. Seu último CD, Motivo de Alegria
(2008), consiste em chorinhos. Martins também é ativo com os
grupos Parceria e Samba de Candei, tendo tocado muito com o
músico belga Max Blesin.
Alexandre Boff, sobrinho de Leonardo Boff, criou o grupo
Alek et les japonaises, juntamente com sua companheira japonesa, cantando em japonês.
No campo do jazz, o compositor e guitarrista Daniel Miranda
gravou vários CDs e toca com músicos brasileiros e belgas. Seu
espetáculo ‘Le Brésil en 17 Cordes’ foi integrado no quadro das
‘Jeunesses Musicales de Belgique’.
Victor da Costa é professor de guitarra nas Academias de Bruxelas e Antuérpia; e também gravou um CD com composições
suas, chamado Caçamba, com uma participação do guitarrista
de jazz belga Boris Gaquere, Cláudio Rocha (saxofone e flauta,
instrumentos de metal) e Osvaldo Hernandez, um mexicano que
se especializou em percussões brasileiras. Em 2011, Boris Gaquere gravou o CD Tempo Feliz com o percussionista brasileiro
Renato Martins.
Sobre os corais, a brasileira Maria Helena Schoeps dirige o
coral Anaconda, com um repertório variado – canções francesas,
música popular e sacra brasileira – enquanto Flávio de Souza, que
canta, toca violão e é compositor, dirige igualmente, com sua esposa, Ylva Berg, um coral onde cantam músicas de vários países,
resultando no CD Ritmus Project.
Por fim, muitos músicos brasileiros estudaram na Bélgica, como, por exemplo, a pianista Elizabeth Fadel e o saxofonista Filipe Nader.
(Agradecimento a Susana Rossberg pelas informações.)
232
cinema atual
parte 8
Cinema e Televisão
233
parte 8 – cinema e televisão
234
cinema atual
Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil na Bélgica
Susana Rossberg
A
Bélgica tem uma tradição pictural importante, e o cinema
belga não escapa a essa tendência. Quando cheguei em Bruxelas, em 1967, eram os documentaristas da televisão belga que
iam filmar no Brasil. Muitos deles, como Roger Beeckmans e André Dartevelle, são conhecidos e respeitados.
Entrei na escola de cinema INSAS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle) ao mesmo tempo que duas cariocas,
Eunice Gutman, documentarista que retornou ao Brasil, e Regina
Veiga Ribeiro. Estudávamos edição de filmes. Penso que fomos
os primeiros brasileiros nessa escola, mas outros passariam por lá
assim como por outras instituições: Gustavo Mesquita de Siqueira, atualmente diplomata; o diretor de fotografia Edgar Moura; o
editor Antonio Carlos Bernardes, que se tornou diretor de teatro
infantil no Rio; dois latino-americanos que se radicaram em São
Paulo: o diretor de fotografia argentino Hugo Kovensky e a editora equatoriana Veronica Saëns. Estudou igualmente no INSAS
Aube Dierckx, belga criada em São Paulo, que se tornou editora,
depois chefe do departamento de edição na televisão RTL, assim
como dois de seus sobrinhos, Veronica e Felipe Dierckx, ambos
brasileiros, que se formaram no INRACI (Institut National de Radioélectricité et Cinématographie).
A Bélgica, um pequeno país, possui muitas escolas de cinema.
O interesse pelo Brasil, na Bélgica, é crescente. Atualmente existe
um programa de intercâmbio, Visões Cruzadas, entre alunos de
cinema da Universidade de São Paulo (USP) e das escolas belgas
INSAS e Sint Lukas.
Poucos dos que aqui estudaram permaneceram, mas nos últimos anos chegou uma nova leva de cineastas, tais como Barbara
Ferreira Avelino, Cristina Dias, Diego Tchole e Heron Ferreira.
Maïa Martins, que estudou no IAD (Institut des Arts de Diffusion), tornou-se diretora na televisão belga RTBF. Além dela e
de mim, que fiz carreira sobretudo como editora, poucos conseguem viver de cinema. Felipe Mafasoli acaba de terminar seus
estudos de diretor na escola flamenga RITCS, e também atua
como ator. Ermeson Vieira, chegado há pouco, após estudos de
direção em Londres, está começando a lançar sua carreira aqui.
Como no Brasil, trabalhar em cinema na Bélgica, em tempos de
crise, não é fácil.
Acima, “Capoeira”, e à direita “Cantores com Fabinho” (fotos de Simone Krunas).
235
parte 8 – cinema e televisão
O Brasil sempre interessou aos belgas, ávidos assistentes de um
projeto cinematográfico chamado Exploração do Mundo, criado
em 1950. No entanto, a maioria dos diretores cujos filmes são ainda hoje apresentados é francesa.
Diversos antropólogos belgas se empolgaram pelo Brasil e fizeram filmes como parte de seu trabalho – por exemplo, Dominique
Tilkin Gallois, professora na USP, e Gustaaf Verswijver, curador
do Museu de Arte Africana de Tervuren, na Bélgica. Ambos trabalham com indígenas brasileiros. Outros cineastas belgas, tais
como Damien Chemin, Nicodème de Renesse e Nicolas Hallet,
se radicaram no Brasil e construíram suas vidas lá.
Seguem depoimentos de algumas dessas pessoas, cineastas
experimentados ou principiantes. Nota-se que os documentaristas belgas que filmaram no Brasil tendem a ser politicamente
engajados e preocupados com os problemas sociais do nosso país.
Uma das grandes lacunas nessa série de depoimentos é Jean­-Pierre Dutilleux, eminente documentarista, particularmente interessado pelas tribos indígenas. Seu documentário Raoni, feito
em 1978, muito premiado, foi candidato a um Academy Award
nos Estados Unidos. Dutilleux fez diversos filmes na Amazônia e
escreveu um livro, Raoni, les Mémoires d’un Chef Indien, infelizmente ainda não traduzido para o português.
Outra lacuna é a falta de um depoimento de André Dartevelle,
infelizmente doente e incapacitado de escrever. Dartevelle realizou dois documentários que nos dizem respeito: um, nos anos de
1980, sobre o retorno do sindicalista José Ibrahim, refugiado na
Bélgica, ao Brasil; o outro, sobre a grande seca de 1984 no Nordeste e as revoltas da fome que dela resultaram.
“Capoeira, Bel Horizon”
Basile Sallustio
F
ui confrontado pela primeira vez com a capoeira em 1994
durante o festival Couleur Café, por intermédio de um amigo
participante dessa arte, e fui conquistado por ela. O que me impressionou, como todo neófito face ao espetáculo desses dançarinos-acrobatas, foi a beleza bruta dos corpos lustrosos viravoltando
ao rés do chão e no espaço. Este encontro teria permanecido como
a lembrança de um bom momento visual artístico no qual se mesclam cantos subjugantes, músicas enérgicas e piruetas estéticas se
os membros do grupo que se apresentava não estivessem movidos
por um projeto social destinado a ajudar crianças de rua em Belo
Horizonte, Minas Gerais.
A ideia do filme nasceu da conjunção desses dois elementos: a
beleza do gesto artístico, baseado numa filosofia de busca de equilíbrio do indivíduo, aliado à generosidade de um projeto social.
Todos os ingredientes necessários e reunidos para que eu iniciasse
um filme, o que me faltava era realizá-lo.
Durante a elaboração do roteiro e, em seguida, do filme, eu
não devia apresentar a capoeira como a panaceia para os problemas que afrontam as megalópoles brasileiras no que se refere
ao destino das crianças abandonadas e tudo o que diz respeito
à sua educação. Precisava apresentá-la como uma ação positiva
e construtiva destinada a recuperar, às vezes até inculcar, nos
adolescentes e nas crianças os fundamentos de uma identidade
pela cultura, sem a qual é bem difícil chegar a se posicionar na
sociedade.
Não se tratava, tampouco, de fazer uma apologia da violência dos bairros vulneráveis de Belo Horizonte, e de se comprazer
numa espécie de voyeurismo doentio, mas de expor um método,
de abordar o problema da educação das crianças e, sobretudo, de
divulgar os resultados e as esperanças encorajadores obtidos pela
utilização da arte e, em particular, da capoeira.
Cartaz do filme “Capoeira, Bel Horizon”, de Basile Salusttio.
236
cinema atual
A associação brasileira “Porto de Minas”, em Belo Horizonte,
propunha não somente um complemento possível ao sistema educativo, que o apresentava desde 1984, de uma maneira original,
como propunha um novo estilo de colaboração dentro da sociedade. O procedimento utilizava todas as características do setor
informal – eficiência, entusiasmo, o método de “dar um jeito” –,
mas cultivava, no entanto, a ambição de consolidar sua estrutura,
a fim de assegurar a perenidade do projeto.
Três eixos principais regeram a fabricação desse filme. Em
primeiro lugar, o aspecto de descobrimento que representa a capoeira. Poucos estrangeiros, hoje em dia, conhecem o fenômeno
brasileiro, a sua origem e a sua evolução durante os séculos. Em
segundo lugar, o aspecto “retorno à nossa sociedade”, ou seja, de
que maneira as sociedades ocidentais eram e ainda são solicitadas
pela capoeira. É por intermédio de seus praticantes brasileiros que
a encontramos, que a descobrimos, e, particularmente através do
percurso de um jovem capoeirista de Belo Horizonte, que a “exporta” para a Europa, que a seguimos em Bruxelas. Em terceiro
lugar, esse filme, que se debruça sobre a problemática das crianças de rua no Brasil, não as mostra sob os tristes chavões, como
frequentemente certos documentários e certas revistas os fazem,
isto é, como delinquentes, ladrões, drogados e assassinos. Essa dura
realidade não é iludida no filme, porém, esse aspecto não podia
ser considerado como a única verdade. Capoeira, Bel Horizon é,
nesse sentido, uma resposta a essa situação, e uma tentativa de
reequilibrar a informação.
Enfim, trata-se principalmente de um filme que nos faz ver
protagonistas generosos e, sobretudo, portadores de uma ideia de
esperança. No mundo (audiovisual) no qual vivemos, feito, mais
do que no passado, de abundância e ebulição de imagens, precisamos e muito de imagens construtivas e positivas.
(Tradução Susana Rossberg)
O meu Brasil
Roger Beeckmans
N
o avião que me leva paro o Brasil, estou sentado entre Pierre
Manuel e um jornalista alemão do qual esqueci, rapidamente, o nome. Partimos para uma reportagem para o programa 9 Milhões, da Westdeutscher Rundfunk – WDR. Não me lembro da data
exata. Só sei que o Brasil está vivendo sob a ditadura de Castelo
Branco, pouco depois do golpe de estado militar, com a bênção
dos Estados Unidos. Estamos em plena Guerra Fria e a ditadura
evoca a luta contra o comunismo em nome da segurança nacional.
O que sei do Brasil, para onde vou pela primeira vez? De Nova York até o Rio, tenho o tempo de me informar e de sonhar.
Conheço o Cinema Novo, Lima Barreto e Glauber Rocha. Vi O
Cangaceiro e Deus e o Diabo na Terra do Sol, li Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, antes, ou depois, dessa viagem. Tive a
sorte, mais tarde, de encontrar Jorge Amado duas vezes. Li os relatos sobre filmagens no Brasil de um dos meus autores favoritos,
Blaise Cendrars. Eu conheceria Brasília, capital criada em pleno
deserto, durante uma segunda viagem.
Descubro primeiro os cartões postais do Rio: o Pão de Açúcar e a praia de Copacabana. Logo em seguida, com o jornalista
alemão, “o exército ao serviço da população” em Minas Gerais
e, com Pierre Manuel, o Sertão, os nordestinos e Dom Helder
Câmara. A Teologia da Libertação fez dele um adversário do
regime. Padres ao seu redor, engajados na luta para devolver
a dignidade aos pobres, foram assassinados. Dom Helder nos
emprestou seu jeep para irmos filmar nos vilarejos nordestinos.
As primeiras imagens do Nordeste me parecem familiares por
tê-las visto no cinema. No primeiro dia, cruzamos com um jeep
militar. Deitado em cima do capô estende-se um homem morto.
Um camponês. Filmamos, e nos inteiramos da violência que reina na região. O que me impressiona nos vilarejos é a pobreza, as
casas de terra pisada e os cemitérios com lápides de mármore. A
explicação nos é dada rapidamente: vive-se na terra, na miséria,
durante 40 ou 50 anos, e no paraíso eternamente. Regressamos
com essa reportagem, dedicada a essa luta.
Voltei várias vezes para o Brasil, com o apoio da Unicef. Filmei
crianças procurando comida no lixo, no meio da indiferença geral. O que revoltava os transeuntes era a presença de uma equipe
de televisão, necessariamente estrangeira. Íamos dar, novamente,
uma imagem negativa do país, enquanto havia tanta coisa bonita
para mostrar. Coisas que também filmei, para o programa Visa
pour le monde.
No Brasil, reencontrei Maurice Vaneau. Maurice tinha partido
com a companhia teatral Rideau de Bruxelles, como ator e diretor. Estabeleceu-se no Brasil, nos teatros do Rio e de São Paulo,
e tornou-se diretor do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Seu
trabalho, durante anos, numa novela, o tornaram célebre. Sua fama nos foi bem útil. Graças a ele, pude filmar jovens prostitutas
nas ruas de Recife.
Com Marc Augé e Jean-Paul Colleyn, filmei o candomblé, as
idas e voltas religiosas entre a África e o Brasil, em Belém, onde
pude contemplar o Amazonas, esse rio lendário, majestoso.
(Tradução Susana Rossberg)
237
parte 8 – cinema e televisão
As questões indígena e ambiental
Te x t o s o b r e B a b i A v e l i n o
N
ascida em 1975, em São Paulo, e graduada em Ciências da
Comunicação, Babi Avelino sempre esteve interessada na
imagem fotográfica e audiovisual. Depois de atuar, em 1996 e
1997, como fotógrafa publicitária, lança-se no fotojornalismo, trabalhando como free-lance para diversos jornais e revistas de São
Paulo e da Europa, na Bélgica, na Holanda e na França.
Em 1999, surge-lhe a ideia de estudar cinema. Babi decide
deixar o Brasil e muda-se para Bruxelas. Como autodidata, começa a realizar vídeos documentários independentes. Seu primeiro
trabalho, São 9.859,47 km, é um documentário filmado no Brasil
e na Bélgica, em 2004-2005, cujo título evoca a distância exata
entre a cidade de Liège e a megalópole de São Paulo, dois lugares, em ambos os lados do Atlântico, onde Babi vive e trabalha.
Em 2002, depois de uma viagem ao coração do país natal,
cresce nela o desejo de mostrar e divulgar o Brasil. Assim, torna-se
“Ikp 2”, de Babi Avelino.
Cartaz do filme “La visite du Roi”, design gráfico de Deborah Avelino e fotos de
Leopoldo III e Babi Avelino.
artista membro da ONG Nhandeva, que incentiva projetos para
o resgate das tradições do povo Guarani M’bia do Rio de Janeiro.
Desde então, seu trabalho é um espelho militante da causa indígena e da questão da diversidade cultural.
Desenvolve a instalação fotográfica Mensagens, apresentada
pela primeira vez na 5ª Bienal Internacional de Fotografia e Artes
Visuais de Liège, que é o resultado do encontro, em 2004, com
diversas nações indígenas do Brasil. Em 2006, Babi torna-se também membro da ONG belga ICRA International, que luta pelos
direitos dos povos indígenas ao redor do mundo.
De 2006 a 2008, Babi Avelino realiza um segundo documentário independente, denominado Elo, em parceria com o
videasta Marica Kuikuro e o músico Douglas Froemming. Este
trabalho foi exibido em diversos centros culturais da Europa e
no programa A’UWE da TV Cultura, destacando-se pelo fato
de traçar, através de múltiplos pontos de vista, um retrato da relação extremamente frágil entre os indígenas e as áreas rurais e
urbanas do Mato Grosso.
Há dez anos, Babi Avelino está plenamente envolvida com a
questão indígena e ambiental no Brasil, enfocando em seu trabalho de artista/documentarista (foto e vídeo), as questões socioambientais. Em Amazonien, exposição individual apresentada na
5ª Bienal Internacional do Design de Liège, em dezembro de
2010, Babi divulga fotos e vídeos questionando nossa relação com
a diversidade cultural dos povos indígenas e com a natureza, tão
degradada pela ação do não indígena. Essa mesma exposição foi
apresentada em dezembro de 2011, no âmbito do festival Europalia.Brasil, no Espace Senghor, em Bruxelas, para a abertura do
concerto de Marlui Miranda.
Em outubro de 2011, Babi finaliza, com o apoio da Fundação
Leopold III para a Conservação da Natureza de Bruxelas, um novo
projeto documentário independente em vídeo, A Visita do Rei.
238
cinema atual
Fotografia “Interior”, de Babi Avelino.
Abaixo, fotografia “Mão”, de Babi Avelino.
O filme relata de maneira singular a história de um rei belga em
visita à região do Xingu em 1964. Quarenta e cinco anos depois,
Babi Avelino, com algumas fotos da época debaixo do braço, parte
em busca destes personagens, testemunhas de uma história desconhecida. Em junho de 2012, o filme é premiado como melhor
direção de média-metragem na 7ª Edição do Festival Cine MuBE
Vitrine Independente de São Paulo.
De modo geral, utilizando a fotografia e o vídeo como ferramentas para transmitir reflexões sobre questões ecológicas e a
diversidade cultural, Babi Avelino documenta, com imagens plásticas, estéticas e com certa fascinação por planos fechados, o universo contemporâneo dos povos indígenas do Brasil, mostrando
assim toda sua sensibilidade de artista/documentarista engajada.
Sua última obra audiovisual, Dimension Nord, é um curta-metragem documentário realizado no âmbito de um seminário
com o documentarista belga Thierry Michel, em 2012, na ULG
Universidade de Liège.
Considerando-se pluridisciplinar, Babi Avelino está em constante busca, criando espaços para expressar, da maneira mais autêntica possível, as experiências vividas em suas imagens. Já não
lhe basta a imagem propriamente dita; por isso Babi Avelino se
aproxima do transdisciplinar, participando de oficinas e de algumas residências na Academia Real de Belas Artes de Liège, onde
o vídeo e a escultura se fundem para proporcionar novas possibilidades criativas em videoarte. Trabalha, assim, a imagem fotográfica e audiovisual de maneira mais plástica e não menos engajada.
Babi é uma artista belgo-brasileira. Após oito anos de casamento com um belga, torna-se mãe. Ela vive e trabalha entre Liège
e São Paulo.
239
parte 8 – cinema e televisão
A mensagem poética de Oscar Niemeyer
M a r c - H e n r i Wa j n b e r g
A
pós ter realizado um filme sobre o fotógrafo judeu soviético
Evguény Khaldéi, que tirou a foto símbolo do fim da Segunda
Guerra Mundial, aquela na qual se vê um soldado soviético segurando uma bandeira no alto do Reichstag, procurei novamente um
assunto sobre um homem para o qual a vida, a obra e a história de
seu país estavam intimamente ligadas.
Foi assim que tive a ideia de fazer um filme sobre Oscar Niemeyer. Me surpreendi, pois não existia um verdadeiro filme sobre ele. Havia numerosas reportagens, mas um filme que falasse
de sua vida, de seu aprendizado em Arquitetura, da arquitetura
moderna, do Rio de Janeiro, do seu amor pelas mulheres, de sua
relação com Juscelino Kubitschek, da ditadura, do Tropicalismo
etc., esse filme ainda não tinha sido feito. O caminho estava livre,
me precipitei nele com muito interesse.
Como não ter prazer fazendo um filme num país cuja simples evocação do nome, Brésil, Brazil, Rio, Pampulha, faz viajar, sonhar, dançar. E, quando o guia se chama Oscar Ribeiro
de Almeida Niemeyer Soares, todos os componentes da mestiçagem, do gênio, da poesia, do humor, do exotismo e da consciência estão presentes para fazer uma viagem, uma bela viagem
inteligente pela história de um país que afrontou a ditadura, que
inventa, que pulsa.
O filme que fizemos juntos, Oscar Niemeyer, un Architecte Engagé dans le Siècle (Oscar Niemeyer, um Arquiteto Engajado no
Século) deu a volta ao mundo, recebeu muitos prêmios internacionais, mas nunca foi mostrado na América Latina ou na América
do Norte. O produtor brasileiro preferiu utilizar o material filmado
para fazer outros filmes sobre Oscar, como, por exemplo, Oscar
Niemeyer, o arquiteto do século, que significa outra coisa que não
um arquiteto “engajado no século”.
Uma relação muito amigável se formou com Oscar. Dez anos
após ter realizado o filme, em 2010, voltei para o Rio, com minha filha Lucie, para cumprimentá-lo. Imediatamente, ele sugeriu
que fizéssemos um novo filme juntos. A ideia me entusiasmou;
enquanto o primeiro falava de Niemeyer, de sua obra e de seu
compromisso político, o novo, independente do primeiro, falaria
da galáxia de engenheiros, técnicos e arquitetos que gravitavam
em torno de Oscar.
Era fascinante ver esse homenzinho, de 103 anos, desenhar
um projeto que, em seguida, era discutido tecnicamente e filosoficamente com seus colegas e amigos arquitetos e poetas: Haron
Cohen, Jair Valera e muitos outros. Porque um gesto arquitetural,
para Oscar, não se limitava a uma obra arquitetural, mas devia,
igualmente, se traduzir numa mensagem poética.
Oscar se empolgou pelo projeto e as pessoas que o cercavam
igualmente: Vera, Jair, Haron. Eles sentiam a excitação de Oscar
por esse novo trabalho. Cada encontro cotidiano trazia consigo novas ideias. Fiquei fascinado em ver que ele não esquecia nada do
que tínhamos dito. Não hesitava em voltar a falar de ideias discutidas na véspera; tinha refletido, e me propunha novas perspectivas
de roteiro. Filmei essas entrevistas com Oscar, provavelmente as
últimas longas entrevistas que ele tenha aceitado fazer. Já estava
doente, um colete cingia-lhe o peito. Não achei financiamento
para esse novo filme. Uma pena, uma grande pena.
Obrigado, amigo Oscar, pela confiança que me deste.
(Tradução Susana Rossberg)
Marc-Henri Wajnberg e Oscar Niemeyer.
Um gesto arquitetural, para Niemeyer, devia se traduzir numa mensagem poética.
240
cinema atual
Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil
Lazhari Abdeddaïm
E
m 1998, a Casa da América Latina de Paris pediu-me para
participar, como fotógrafo, da exposição organizada pelos 500
anos da descoberta do Brasil. Fui enviado ao Brasil para trazer de
volta à Bélgica a minha visão do país: sozinho, passei seis meses
viajando pelo Brasil inteiro. Pensava, na época, que a melhor maneira de representar a essência dessa cultura era mostrando o rosto
dos artistas do país.
Aprendi o português e tive a sorte de encontrar muita gente,
sobretudo artistas, diretores de cinema, escritores e cantores. Todos
tinham uma vida relativamente confortável. Praticavam sua arte
inconscientes, ou pior, não se sentindo concernidos pelo que estava acontecendo fora de seu círculo protegido. Saí desse meio, e
foi então que encontrei a “fauna” perigosa, sobre a qual ninguém
falava, ou somente de leve. Pessoas normais, trabalhadores, crianças, mulheres, gente sem teto...
Fotografei cenas de pobreza, crianças de rua, a brutalidade e
a repressão da polícia, e só o que vi foram pessoas abandonadas
ao seu destino. Ao rever os artistas que tinha conhecido, minha
decepção aumentou, pois percebi que, após ter visto tantos contrastes no país, nenhum deles sentia-se tocado pela miséria à qual
eu tinha assistido. Por que nenhum deles se revoltava contra esse
flagrante racismo e essas injustiças sociais? Na verdade, tinha encontrado uma pessoa consciente e que reagia a tudo isso, o cantor de samba Bezerra da Silva, muito conhecido no Brasil, mas
posto de lado pelas mídias justamente por causa de suas posições
julgadas muito críticas.
Ao regressar à Europa, decidi mostrar minha visão do Brasil,
mas não aquela dos retratos de artistas e sim aquela dos “esquecidos” desse país gigantesco. No contexto brasileiro, me refiro à
maioria da população, principalmente aos afro-brasileiros. Consciente dos chavões habituais de praia, futebol e corpos bronzeados,
abri a janela para o crime e a pobreza que fazem parte integrante
do cotidiano brasileiro. Fotografei todos com o mesmo cuidado
em respeitar cada um, fosse qual fosse sua classe social e o cenário
no qual evoluíam.
Um amigo, que trabalha em favelas no Brasil, me pediu um dia
para fazer o papel de intérprete de um cantor de rap brasileiro que
passava por Paris, para uma conferência. Foi quando encontrei o
Lamartine. Ele me contou o que fazia no Brasil, como estava tentando transformar a sociedade, se servindo da música como meio
de expressão. Fiquei admirado com seu empenho, seu compromisso com a causa. Na sua luta encontrava-se a expressão de toda
Foto “Sombras no Muro”, de Lazhari Abdeddaïm: um cinema sobre juventude e justiça.
241
parte 8 – cinema e televisão
uma geração de pessoas conscientemente excluídas das grandes
decisões políticas de um país.
Examinando mais de perto como Lamartine e o seu movimento, o MHHOB, se serviam da cultura como um “instrumento
de transformação social”, me veio à mente as imagens de outro
movimento nascido nos anos 1970, nos Estados Unidos, o Black
Panther Party. Só que estava acontecendo hoje, como herdeiro
espiritual, com o MHHOB, no Brasil.
Foi na Bélgica que decidi realizar um filme sobre o compromisso dessa juventude sofrendo de dor de justiça. O produtor,
que eu tinha encontrado durante uma formação de escrita de
documentários, me propôs trabalharmos juntos no projeto, que o
interessava. Após meses de escrita, de contatos e de encontros, chegamos a um acordo. Tínhamos a opção de sermos acompanhados
por uma produção local, mas, por motivos de leveza de filmagem
e de discrição, preferi evitar essa possibilidade.
Fiz as primeiras viagens sozinho, acompanhado, quando necessário, por uma técnica de som brasileira. A ideia era ser ultradiscreto, pois a maioria das filmagens ocorria nas favelas. No
entanto, não era por segurança pessoal, pois quando chegávamos
nesses bairros, ditos sensíveis pela imprensa, éramos muito bem
recebidos. Foi quando compreendi que a favela era composta de
uma população de renda baixa, e não de bandidos de todo tipo,
prestes a tirar-nos a vida para obter um par de tênis novos! Muito
ao contrário, os habitantes das favelas são formigas que permitem
ao gigante econômico se desenvolver, e não os marginais que se
vê, todas as noites, nos programas sensacionalistas que seguem as
equipes de polícia. Eu ia de surpresa em surpresa. Evidentemente,
vivemos situações de tensão, mas poucas, afinal, comparadas com
o que tínhamos imaginado.
Eu tinha uma porção de perguntas, e devia achar elementos de
respostas na aventura documentária que iniciei. O hip-hop brasileiro poderia, um dia, fazer parte da máquina política? Caso afirmativo, se tornaria um partido político tradicional? Ou: Lamartine veria
seu sonho se tornar realidade graças ao seu movimento, ou seja,
um fator de melhora das condições de vida de milhões de pessoas?
Confesso que encontrei, diante de muitas perguntas e dúvidas
que eu tinha, respostas bem mais complicadas do que esperava.
Em todo caso, tive a sorte de ser testemunha privilegiada do desenvolvimento do MHHOB, por ter obtido sua confiança. Continuo
esperando, profundamente, que sua experiência tenha um alcance
que vá além das fronteiras brasileiras, e que esse filme possa, modestamente, contribuir para isso. Ele transmite as palavras destas
pessoas “sem voz” e, sobretudo, oferece uma visão de uma parte
do Brasil muito pouco conhecida.
(Tradução Susana Rossberg)
Paixão pelo Nordeste
Jo h n E r bu e r
C
heguei ao Brasil pela primeira vez em 2002. Só tinha cinco dias para filmar o festival RecBeat em Recife. Não falava
nem uma palavra de português e, exceto o fato de conhecer um
pouco sobre a música, não sabia quase nada sobre o país. Não sabia que essa viagem seria o começo de uma paixão cultural que
nunca me deixaria.
A história do Mangue Beat, na Rádio 1 da Bélgica, tinha me
interessado muito e eu esperava descobrir mais na programação
do festival RecBeat. Chico Science, o líder carismático desse movimento do início dos anos 1990 – que foi mais do que música!
– havia morrido em 1997, mas, surpresa, depois de cinco anos
o Mangue Beat ainda estava onipresente na periferia da cidade.
Nunca havia imaginado que as influências tradicionais que tinha
ouvido, nos diferentes estilos do Mangue Beat, se apresentassem
todas nas ruas do carnaval: Maracatu, Frevo, Forró, Ciranda, Pífanos, Bumba Meu Boi, Afoxé ...
Voltando para a Bélgica, com 13 horas de gravações e a cabeça cheia de impressões confusas, não parava de falar do Nordeste
do Brasil com todos os meus amigos. Utilizei meus contatos profissionais para divulgar a cultura nordestina através da história do
Mangue Beat. Junto com os produtores da rádio, Zjakki Willems
e Jeroen Revalk, organizei apresentações nos clubes de música,
um “vídeo jam” com o DJ Dolores (Hélder Aragão) e convenci a
banda belga Think of One a voltar comigo para gravar um CD em
Recife. Desta maneira fiz contatos com muitos músicos de Recife
e Olinda, em Pernambuco, e comecei a aprender o português na
rua. Realizei um documentário, O Som do Maracatu, um curta
para o CD e, nos anos seguintes, mais um clipe em Olinda e gravações no Porto Musical – Womex.
Depois de um encontro em Recife com o belga Bart Vetsuypens, que já tinha trabalhado durante cinco anos em projetos
sociais com jovens, comecei a dar oficinas de vídeo e fotografia, como voluntário, no Centro de Comunicação e Juventude –
CCJ. Em 2008 fiz um documentário sobre o RecBeat, misturado
com a realidade que tinha encontrado durante o meu trabalho
social nas favelas.
Meu interesse pela música continuou, mas meu envolvimento social aumentou a cada viagem. Em Recife há muitas favelas no mangue, perto dos rios, e os problemas aumentam com
o aquecimento global. Quando o mar avança sobre a cidade, a
água entra nas favelas com todo o lixo que a cidade joga nos rios.
Documentei isso, com fotografias, num projeto de arte, Yemanjá,
rainha de todos as águas.
Em 2009 participei da Caravana de Comunicação e Juventu-
242
cinema atual
Filmagem de John Erbuer no Morro da Conceição.
“Rumbanda”, de John Erbuer.
des de Recife, atravessando Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão,
até chegar ao Fórum Social, em Belém, no Pará. No Pará, filmei
um curta sobre a poluição causada pela indústria de alumínio na
área de Barcarena, em terras dos ribeirinhos. Com o jornalista Lieven Verstraete, da televisão belga, fiz um curta sobre as crianças
catadoras de lixo durante o carnaval.
O festival belga Europalia.Brasil me convidou para fazer um
projeto de arte com dez pequenos vídeos, Retratos Brasileiros. Realizei isso através de uma oficina para o CCJ de Recife. Os vídeos foram mostrados durante quatro meses no Club Brasil em Bruxelas.
Na “Zwarte Zaal”, da academia de arte KASK, em Gand, convidei o artista de rua brasileiro José Cleiton Carbonel para criar
comigo uma instalação, Rua na Rua, no final de 2011. Em 2012
continuei esse trabalho na galeria de arte contemporânea Crox­
hapox, enquanto se formava uma turma itinerante, no Brasil, da
exposição Rua na Rua.
Hoje estou iniciando um novo projeto de arte social. Copa
Favela 2014 é um projeto de arte contemporânea, uma intervenção na cidade, que será fabricada sem dinheiro, sem ajuda estrutural – uma pesquisa sobre o poder das ideias na arte popular
das comunidades. Também é uma plataforma para reunir tudo
que tem a ver com a Copa do Mundo no Brasil e o povo da periferia. Enquanto a FIFA está divulgando as boas notícias sobre a
Copa do Mundo 2014, Copa Favela 2014 vai mostrar as realidades das comunidades e os impactos no meio ambiente. A ideia
seria unir essa iniciativa ao projeto Welvaert, ao lado do museu
MAS, em Antuérpia.
O Brasil vive em mim, nunca me largará.
Em busca de uma arte global
Icaro Alba
S
ou da família de Francisco de Almeida Fleming, cineasta
considerado entre os primeiros a realizar filmes mudos, falados, coloridos, fora de estúdios, além de outros pioneirismos no
Brasil. Sou formado pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), que possui, desde sua
fundação, reconhecida vocação multicultural e multimídia. Ao
estudar Rádio e TV, tínhamos cursos paralelos com a turma de
Cinema, Jornalismo, Artes Plásticas e Teatro, além de frequentar
as faculdades de Arquitetura, Teologia e Filosofia. Daí talvez o
amor à criação em equipe, multidisciplinar, à imagem em suas
diversidades, interrogando tabus, contando histórias ou documentando. Sem fronteiras, sem ‘pré’ conceitos.
A decisão de trocar o Brasil pela Bélgica, para continuar a es-
tudar e trabalhar a confluência das artes plásticas, teatro, dança,
literatura e filme, deveu-se a diversas razões essenciais: primeiro
devido aos sacrifícios e desapontamentos políticos crescentes de
nossa geração, filhos que éramos dos restos da ditadura militar,
esperançosos e lutadores pelas “Diretas Já”, logo frustrados com
a morte de Tancredo Neves. Obrigados a engolir na sequência
trágica: José Sarney e Fernando Collor de Mello, presidentes do
Brasil, com seus costumeiros escândalos, corrupções, planos econômicos aberrantes, levando o Brasil ao caos e provocando o impeachment final, oferecendo a posse presidencial ao apocalíptico
vice-presidente, Itamar Franco. Neste ciclo infértil, degenerado,
repetitivo e autodestrutivo, a criatividade ficava comprometida
pelo pessimismo, pelo sectarismo ou ainda pela ironia. Para so-
243
parte 8 – cinema e televisão
Icaro Alba e a capa
baseada na original
de Arthur Bispo
do Rosario em
um filme-teatro-conferência.
Icaro Alba e Coral Pastoreaux, coral infantil belga de música erudita, no Brasil.
Quando aqui cheguei, “eu nada entendia”, deste país dividido,
que parecia condenado eternamente ao surrealismo, sem uma
única coerência nacional interna. Talvez justamente devido a isso,
oferecia uma liberdade de expressão extrema, ideal para a criação,
um “no man’s land”, sem os constrangimentos nacionalistas mofados, exaltados, que viriam com tudo, por todas as partes, anos
mais tarde.
Outra razão de morar na Bélgica foi a possibilidade de realizar o mestrado no Centro de Estudos Teatrais da Universidade de
Louvain La Neuve, sobre a obra dramática de Pina Bausch e seu
companheiro igualmente cenógrafo, Rolf Borzik. A relativa proximidade em trem da Bélgica até Wuppertal facilitaria as idas e
vindas de estudos e trabalhos ao lado da mestra do teatro-dança e
toda sua equipe. Esta tese universitária se tornou, a pedido de Pina
Baush, o primeiro livro publicado pela companhia de Wuppertal
sobre a influência determinante do multidisciplinar artista Rolf
Borzik em sua inovadora linguagem (Rolf Borzik Und Das Tanztheater. Paris: L’Arche, Wuppertal: Tanztheater, 2000).
Assim como nos meus filmes iniciantes para a TV Cultura de
São Paulo, os filmes produzidos na Bélgica foram feitos, quase
sempre, em relação, a propósito, ou no contexto das criações de
teatro, dança, ópera ou artes plásticas. Na busca de uma arte global, total. O conceito é simples: usar a tecnologia atual, temáticas
atuais, universais ou particulares, recaminhando, no entanto, em
rotas bem traçadas e sinalizadas pela tradição teatral, via a tragédia
grega, via Shakespeare, via Wagner ou Nietzsche.
No filme-teatro-dança-concerto Macbeth, com o grupo La Fura Dels Baus, nos Matadouros de Anderlecht e de Bruxelas, realizamos, ou melhor, nos aproximamos deste difícil equilíbrio, onde
imagens ao vivo de três simultâneas apresentações teatrais, em três
cidades, via satélite, relacionavam-se com atores reais e imagens
gravadas. Nesta lógica, também filmamos para instalações de arte
contemporânea, em diversas proporções, como foram os trabalhos
conjuntos com a premiada artista belga Marie Jo Lafontaine.
Fizemos o megafilme I Love The Word para a abertura da copa
de futebol da Alemanha, em Frankfurt, exibido nos arranha-céus
da cidade transformados em telas, num raio de quatro quilôme-
breviver, mudar, necessitávamos fugir para novos sonhos, mais
realizáveis de imediato. Foi assim, ainda de cara pintada após
uma manifestação anti-Collor, que veio a decisão definitiva –
nada fácil – de partir.
Foi o saudoso bailarino baiano Ricardo Carvalho, do Grupo
Plan K, através de sonhados projetos conjuntos, sempre ligados à
pós-modernidade, um dos primeiros, ainda no Brasil, a me apresentar as potencialidades teatrais da vida na Bélgica. A Bélgica
seduzia, despertava os instintos criativos, independentemente da
meteorologia, justamente por sua qualidade de vida – humana e
profissional – acostumada às vanguardas artísticas; talvez devido
à sua posição geográfica estratégica na Europa, próxima e acessível, permitindo o contato saudável, franco e aberto entre culturas
divergentes. A Bélgica, através do Kaaitheater, apresentou-se de
imediato como uma opção muito provável e desafiante ao nos
convidar e acolher, após a apresentação da peça El Señor Presidente, adaptação teatral do livro de Miguel Angel Astúrias, com o
Grupo Boi Voador, em Hamburgo.
Na Bélgica, residências, projetos, estágios, cursos e treinamentos artísticos eram contínuos, o ambiente favorecia o trabalho consistente e era catalisador de intercâmbio europeu e internacional.
Verdade é que aos vinte e poucos anos as oportunidades vinham de
todos os lados, todas interessantes, e não havia porque perdê-las.
Tais como foram as vivências com os grupos: La Fura Dels Baus,
Odin Teatret e com diretores inovadores como Robert Wilson,
Lev Dodin, Peter Brook, Peter Stein, Grotowski, Luca Ranconi,
Giorgio Strehler, Dario Fo, Ingmar Bergman, entre tantos outros
mestres das artes cênicas e visuais.
Foram seguramente os amigos antigos e novos que fizeram
da Bélgica um porto estratégico para aprofundar, iniciar e aprender. Como esquecer o apoio da escritora Martine Renouplez e da
tradutora Angela Munhoz nas intermináveis noites de inverno?
244
cinema atual
tros. Mais intimista, sempre com Marie Jo, fizemos o filme-instalação-artística The Ball, na qual recriamos uma sala de baile,
com telas envolvendo o público, obra exposta em diversos museus
pelo mundo, tendo como sujeito diversas modalidades de danças
confluentes: o flamenco, a dança do ventre, o dervish e o tango.
Ainda no mesmo objetivo, a peça Opera Canibal, que escrevi
e dirigi, foi toda filmada em Bruxelas, editada em Kortrijk em colaboração direta com a empresa Barco, especialista em telas digitais
panorâmicas. Usamos para este trabalho, apresentado durante o
Festival d’Avignon, cinco telas gigantes que dialogavam entre si.
Testando sempre os limites da linguagem cênica, da tradição, do
sentimento e da tecnologia, realizamos também o filme-teatro-conferência abordando a vida e a obra do brasileiro Arthur Bispo
do Rosario, que foi apresentado no Espace Senghor em Bruxelas.
Recentemente, com o grupo Pastoureaux, coral infantil belga
de música erudita, estamos experimentando a utilização de filmes
temáticos, com cores e imagens de natureza, distribuídos pela sala
em telas cinematográficas durante as apresentações de seus concertos. Numa viagem pelo Brasil com o coral, por nós organizada,
filmamos, em colaboração com a TV Cultura e a Rede Globo,
uma participação especial na homenagem aos meninos de rua
O megafilme I Love The Word realizado para a abertura da copa de futebol da
Alemanha, em Frankfurt, por Ícaro Alba e Marie Jo Lafontaine.
assassinados na porta da igreja da Candelária, violência mundialmente conhecida como Chacina da Candelária. Esta homenagem
uniu uma vez mais Bélgica e Brasil, países que historicamente
sempre se encontram.
Sem-Terra
Jean Timmerman
F
ui atraído para o Brasil pela música, mas o músico que me
fascinava na época era norte-americano, estava começando
a tocar saxofone e meu modelo era Stan Getz, isso foi em 1982
e eu tinha 25 anos. Aproveitei uma filmagem no Peru, em 1987,
na qual era técnico de som, para prolongar minha estada sul-americana ao Brasil. Eu tinha um contato no Brasil, a Rosa Brandão, uma carioca que se tornou brasiliense. Seu pai, igualmente
folclorista e poeta, foi um dos construtores da nova capital. Rosa,
cantora lírica, tinha estudado música em Bruxelas, tornou-se minha companheira e, dois anos depois, deu-nos duas filhas maravilhosas, Iara e Cecy.
As meninas tinham apenas três meses quando atravessaram o
Atlântico pela primeira vez. Sempre cuidei para que elas e o irmão
mais velho, Gabriel, de um primeiro casamento da Rosa, pudessem explorar suas duas culturas. Íamos para o Brasil a cada dois
anos. Como as viagens eram caras e eu queria conhecer o país,
sobretudo a Amazônia, resolvi “profissionalizá-las”.
Em 1991, em Brasília, tive a sorte de encontrar dois grandes especialistas em Amazônia, Ezequías Heringer Filho, dito Xará, antropólogo, e Victor Leonardi, historiador da Universidade de Brasília. Graças a eles obtive contatos em todas as regiões da Amazônia
que, em seguida, visitei. Deixamos as meninas com um irmão de
Rosa e partimos para nossa primeira experiência amazônica.
Visitamos outro irmão de Rosa, André, médico que tinha fu-
gido da ditadura, e que trabalhava “lá onde se precisava de médicos”. Se estabeleceu em São Félix do Xingu, no sul do Pará, e
construiu um hospital fora do comum, no meio da Amazônia. Foi
lá que encontrei, pela primeira vez, indígenas, os Kayapós. Anos
depois, levaria minhas filhas.
Dois anos mais tarde, penetrei muito mais profundamente na
floresta. Fomos a Tabatinga, fronteira entre o Brasil, a Colômbia
e o Peru, região onde se explora a madeira preciosa. Foi onde redigi meu primeiro dossiê de produção de filmes, O Preço da Madeira, que tratava do trabalho escravo dos lenhadores. O projeto
interessou a um ateliê de produção belga, mas não se chegou a
um acordo interno para fazê-lo. Foi talvez o que me salvou a vida,
porque o assunto era muito barra pesada.
Nesse meio tempo, recebi uma subvenção europeia para escrever um projeto cinematográfico em Rondônia. O Banco Mundial emprestava, pela segunda vez, dinheiro para a região, para
“reparar” os desgastes causados pelo primeiro empréstimo, para
o asfaltamento da BR-364 entre Cuiabá e Porto Velho. Eu tinha
intitulado o projeto de On the Road again, e imaginava o filme
como um “road-movie” sobre a BR-364.
Estava fazendo prospecção para o filme em 1995 quando ocorreu o massacre de Santa Elina, em Corumbiara (RO). Um Comando de Forças Especiais, com a ajuda de jagunços, tinham expulsado, a mão armada, centenas de famílias de camponeses sem-terra
245
parte 8 – cinema e televisão
“A aula”, cena de filme de Jean Timmerman, “Sem Terra”.
que estavam ocupando as partes improdutivas de uma fazenda. Fui
para Corumbiara com um responsável sindical da CUT.
Em Rondônia, segundo as regras do Instituto para a Colonização e a Reforma Agrária-Incra, não deveriam existir propriedades
de mais de 2.000 ha. A Santa Elina tinha 20.000 ha. Encontrando as famílias sobreviventes alojadas às centenas nos porões da
igreja de Colorado do Oeste, resolvi consagrar o projeto à questão agrária. Um ano depois, em 1996, voltei para filmar. Minha
estada duraria três meses. Foi o ano do massacre de Eldorado de
Carajás, no sul do Pará. Minha equipe, inteiramente brasileira,
estava esperando o meu sinal. Era fim de junho; deveríamos começar a filmar em agosto.
Eu me perguntava se não filmasse no Pará, onde tinha havido
o massacre, mas em Rondônia eu poderia mostrar aspectos mais
variados da reforma agrária. Nem todas as famílias tinham sido
inscritas num plano de reforma agrária. As que estavam inscritas
precisaram ir para o norte do Estado, a mais de 800 km de Corumbiara. Estavam acampadas, isoladas, esperando a divisão dos
lotes. Sem ajuda financeira, teria sido impossível sobreviver até
a primeira colheita. Perto de lá havia um grupo ocupando terras
improdutivas de um latifúndio composto, em parte, de sobreviventes do massacre de 1995. Eu poderia mostrar as dificuldades da
reforma agrária, que não pode limitar-se à distribuição de terras.
Poderia mostrar a luta dos que tentam beneficiar-se dessa reforma
fazendo ocupações, e poderia mostrar também a violência das relações com as vítimas do massacre.
Fui para Theobroma, perto de Jaru, onde se encontravam famílias que tinham recebido terras. Estavam no fim de uma pista
traçada na floresta por exploradores de floresta com uma escavadeira para terraplenagem. Todas as passagens naturais de água
tinham sido aterradas. Esses aterros iam certamente ser levados
no início da estação das chuvas, e a pista tornaria-se impraticável.
As famílias ficariam, então, isoladas até a estação seca. Foi o que
aconteceu, e uma criança faleceu por falta de tratamentos.
Eu sabia que chegaria a filmar ações sociais. Foi o caso, por
um lado, durante a ocupação de uma fazenda, e, por outro, por
“Sem-Terra”, de Jean Timmerman, filmado em 1996, ano do massacre de
Eldorado dos Carajás.
causa da ocupação da sede do Incra em Jaru, com um refém que,
afinal, não estava sendo totalmente forçado.
Filmamos tudo isso. Apesar de muita prudência, fomos pressionados. Uma família citadina de Theobroma foi ameaçada porque
nos ajudava. Atiraram na direção do técnico de som e de mim, para
nos intimidar, em Jaru. No entanto, estávamos alojados na casa de
uma amiga, então candidata nas listas do PT! A maior pressão que
sentimos foi na sede do Incra: sabíamos que, a qualquer momento, uma operação policial podia ocorrer, e que podia ser violenta.
Eu mandava para fora as fitas magnéticas na medida em que as
terminávamos, para colocá-las a salvo. Houve muitas armadilhas,
tanto durante a filmagem quanto durante a pós-produção, mas o
filme existe e se intitula, simplesmente, Sem-Terra.
Agora a Rosa e eu estamos separados, as crianças cresceram e
viajam sozinhas. Tenho menos razões para voltar ao Brasil, mas
uma parte de mim tornou-se brasileira. É indelével – axé Brasil!
Após o massacre de Corumbiara, dois sem-terras foram condenados pela morte de dois policiais durante a ação. Um deles,
Claudemir Ramos, vive, desde então, na clandestinidade, fugindo dos jagunços e da justiça. Em 10 de agosto de 2011, 16 anos
depois do massacre, o Congresso Nacional decretou a anistia para
todos os sem-terras incriminados. O pai de Claudemir foi assassinado, no mesmo ano, após a denúncia de extração de madeira
ilegal em Rondônia.
(Tradução Susana Rossberg)
246
cinema atual
Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia
Nicodème de Renesse
C
resci na Bélgica entre pessoas de teatro, com as quais aprendi
muito e herdei um insaciável desejo de conhecer e compreender aquilo que desconheço e não compreendo por aí, mundo
afora. Adolescente, quando comecei a fazer meus próprios experimentos, que incluem experiências de cinema, descobri que registrar sons era uma maneira de explorar o mundo. O som passou
então a ocupar o centro dos meus interesses, embora nunca por
si só, sem fazer uma ponte com outros domínios.
Não estudei o som, mas Antropologia. Ingressei na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), cursei dois anos e parei para passar um
ano na Rússia, onde trabalhei, entre outros, com Catherine Montondo, uma cineasta belgo-americana que fazia filmes em Moscou.
Finalmente voltei para a Bélgica e prossegui meus estudos. Foi no
final desse período que o Brasil surgiu no meu caminho.
Posso dizer que conheci o Brasil, em grande parte, pelos ouvidos. Em 18 anos, aprendi a encontrar os lugares e as pessoas, e
a conhecê-las, pelos sons. Meu itinerário no Brasil começa em
Recife, Pernambuco. Em 1994, eu e minha mulher, Alessandra,
viemos passar uma temporada junto de sua família com nossa
filha recém-nascida. Eu tinha 22 anos e estava ainda no último
ano de graduação em Antropologia na ULB. Pretendia aproveitar
a viagem para coletar os dados do meu mémoire de licence, uma
monografia obrigatória de conclusão de curso, e tinha levado um
gravador DAT para esse fim. Andava com ele por todo lugar, na
mochila ou a tiracolo.
Dessa época, guardo a gravação de momentos que nunca saí­
ram da minha memória: uma cantiga de sapos numa lagoa noturna do agreste pernambucano, um canavial em fogo e um coco
de roda puxado por Seu Sedo, pescador, poeta e tirador de coco,
numa praia de Olinda (coco é um ritmo e uma dança da região). À
medida que meu português ia melhorando e que eu compreendia
o que tinha gravado, a magia do coco, sua poesia e seu ritmo me seduziram. Decidi que o coco de roda seria o tema do meu mémoire.
Passei a percorrer morros e ladeiras à procura dos puxadores
de coco, gravando fartas histórias e cocos. Olinda era, neste aspecto, na parte popular atrás do farol, um verdadeiro ninho. Voltamos para a Bélgica, concluí a monografia e meu orientador,
Didier Demolin, um etnomusicólogo e eminente linguista que,
bem mais tarde, por coincidência, também veio ao Brasil para
ensinar na Universidade de São Paulo (USP), me propôs gravar
um disco de coco.
Com o material que eu já possuía, produzi dois programas de
rádio para a BRT (Bélgica) e para a VPRO (Holanda) graças aos
quais financiamos a viagem. Em 1996, com equipamento emprestado, voltei para o Brasil para gravar o disco com Dona Selma, num terreiro no alto de Olinda. O disco foi lançado em 1997
pela Fonti Musicali, gravadora belga especializada em músicas
do mundo.
“Lampião, sonhos de bandido”, de Nicodème de Renesse e Damien Chemin, foi
produzido pela produtora Tarantula na Bélgica.
Durante esses anos, do Brasil só conheci o Nordeste. No início de 1998 voltamos ao Brasil com nossas filhas para trabalhar
num filme documentário sobre a cena musical de Recife nos anos
1990, de Helder Aragão (DJ Dolores) e Sérgio Oliveira. Eu devia
fazer o som direto, porém as filmagens pararam logo por falta de
financiamento. Fiquei rapidamente sem dinheiro e decidi descer
para São Paulo, onde fui hospedado por um amigo fotógrafo. Vivi
meu período de migrante nordestino e descobri um outro Brasil.
Comecei a trabalhar como técnico de som direto em filmes comerciais, documentários e de ficção, longas e curtas, com Andrés
Bukowinski, Ugo Giorgetti, Edgar Navarro e outros.
Ao mesmo tempo, passei a captar e fornecer sons para diversas
produções. Com o renascimento do cinema brasileiro, alguns editores, na finalização, careciam de sons específicos que não podiam
produzir facilmente em estúdio e não encontravam em bancos de
sons, pois não existem coletâneas de sons brasileiros, ou mesmo
porque envolvem ambientes muito particulares. Tive a chance de
chegar exatamente nesse período. Míriam Biderman e, mais tarde,
Waldir Xavier me passaram algumas encomendas.
Foi assim que, a partir de 1999, voltei a fazer o que eu mais
gostava, isto é, percorrer becos e estradas em busca de sons: um
Brasil campestre do século XIX para o filme Memórias Póstumas
de Brás Cubas; sons da caatinga para Eu, Tu, Eles; ruas populares no Rio de Janeiro dos anos 1920 para Madame Satã etc.
Para mim, esses trabalhos eram verdadeiras explorações sonoras
do mosaico de camadas históricas e sociológicas que compõem
o Brasil; não apenas porque era preciso uma boa noção acústica
daquilo que se buscava, mas porque, toda vez, era preciso compreender a organização sonora do real para encontrar os lugares
e os horários adequados.
À medida que os anos iam passando, procurei outras abordagens. Em Lampião, um documentário que codirigi com Damien
247
parte 8 – cinema e televisão
Chemin em 2005, produzido por Tarantula, na Bélgica, deixei de
fazer o som para experimentar uma outra maneira de explorar o
mundo, um outro ponto de vista.
Aos poucos, comecei a cultivar o desejo de retomar o caminho
deixado para trás e voltar para a Antropologia. Nas minhas andanças, descobri um Brasil indígena que eu desconhecia e, em 2009,
entrei na USP com um projeto de mestrado em etnologia indíge-
na que evoluiu para um projeto de doutorado em 2012. Por coincidência, minha orientadora, Dominique Tilkin Gallois, seguiu
um percurso parecido: graduou-se em Antropologia na ULB, antes
de migrar para o Brasil nos anos 1970, onde prosseguiu com um
mestrado e um doutorado na USP, até tornar-se professora nessa
universidade. Quanto a mim, a questão de saber de que lado ficar
ainda não recebeu uma solução definitiva.
Lampião, sonhos de bandido
Damien Chemin
F
oi durante minha primeira viagem para Pernambuco que fiquei intrigado pelo personagem. Quis saber mais sobre ele, saber por que fascinava tantos brasileiros, qual era a parte de lenda e
qual a parte de história. Com Nicodème de Renesse, antropólogo,
técnico de som e diretor, que já vivia no Brasil, resolvemos fazer
um documentário para tentar captar o personagem, não do ponto
de vista histórico, mas do ponto de vista sociológico.
Foi a dimensão imaginária do personagem que nos interessou
particularmente. É, pois, através do encontro com diversas personalidades, todas apaixonadas pelo cangaço, que o filme procura fazer
um retrato coletivo e subjetivo de Lampião. No final, é o sonho de
liberdade que ele leva consigo, mais do que a sua história fac­tual,
que nos interessou, porque ela se refere a aspirações universais.
O filme, produzido principalmente por Joseph Rouschop, da
produtora Tarantula, de Liège, é uma coprodução de três sociedades francófonas belgas, de um apoio oficial e de uma coprodução
flamenga. No Brasil, tivemos a colaboração de uma produtora de
São Paulo. O técnico de som foi um belga instalado no Brasil, Nicolas Hallet, e a edição de som foi feita por uma editora brasileira
que vive na Bélgica, Susana Rossberg.
O filme é distribuído no Brasil. Foi mostrado no Museu da
Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, em festivais de Fortaleza
e Salvador e participou de um programa itinerante, sobre o tema
do cangaço, em diversas cidades brasileiras. Foi, igualmente, apresentado em diversas manifestações e festivais europeus.
“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Kika Farias, Mariana Serrão e
Bruno Pêgo, produtora Tarântula, Bélgica.
essa cultura musical e poética forte. Felizmente, uma editora de
discos parisiense, dirigida por um especialista do acordeão, Philip­
pe Krümm, se interessou pelas gravações, e editou em CDs dois
volumes chamados Forró Acústico vol. 1 e vol. 2. Os CDs tiveram
uma grande difusão internacional, sem dúvida por causa da qualidade dos artistas, como também pelo caráter autêntico das gravações, feitas nos lugares onde os artistas viviam, o que causou o
sucesso inesperado dos discos.
Este trabalho apaixonante me convenceu a me instalar em
Aracaju, onde comecei a trabalhar, entre outros, para a televisão
pública local, Aperipê TV, para a qual dirigi diversos programas
documentários.
Também colaborei com diversas produtoras locais, como diretor ou diretor de fotografia, sempre continuando meu trabalho
de diretor de filmes de ficção para a produtora belga Tarantula.
Uma vez instalado, produzi, a pedido de Philippe Krümm, um
novo CD, consagrado inteiramente ao virtuoso sanfoneiro Cobra
Verde, um dos artistas mais marcantes do CD Forró Acústico. Esse
CD, distribuído, como os anteriores, por L’Autre Planète, ocasionou, em maio de 2010, uma turnê do grupo Forró de Cobra Verde
à Bélgica e à França. Foi, para mim, motivo de grande felicidade
o fato de ter criado esse encontro e de ver a excelente recepção
que o grupo recebeu do público belga e francês.
Sergipe
Foram encontros feitos durante a filmagem de Lampião, sonhos de bandido que me deram vontade de voltar para o Brasil,
para conhecer melhor a cultura nordestina. Eu tinha sido marcado, particularmente, pelo forró pé-de-serra, tal qual é praticado nos
povoados do interior de Sergipe. Essa região é pouco conhecida
e pouco valorizada, sem dúvida por causa da proximidade dos gigantes culturais vizinhos, Bahia e Pernambuco.
Colaborei novamente com Nicolas Hallet e Nicodème de Renesse para gravar diversos músicos e aboiadores da região. A maioria deles era pouco conhecida do público; nós queríamos valorizar
248
cinema atual
“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Bruno Pêgo e Tuca Andrada.
A Pelada
é composta principalmente de atores e técnicos de Sergipe, com
a participação de alguns atores mais conhecidos na área nacional,
como Tuca Andrada, Karen Junqueira, Edmilson Barros e Luci
Pereira. Nos papéis principais, temos Bruno Pêgo e Kika Farias.
Foi, mais uma vez, uma ocasião para unir a Bélgica e o Brasil,
pois o diretor de fotografia Marc de Backer e os produtores Joseph
Rouschop e Michel de Backere estiveram presentes durante a filmagem no Brasil. A pós-produção inteira foi feita na Bélgica. Mais
uma vez, o belga Nicolas Hallet, que mora no Brasil, fez o som,
em colaboração com sua esposa, Simone Dourado.
(Tradução Susana Rossberg)
Depois de viver vários anos em Aracaju, escrevi um filme inspirado em histórias e personagens dessa cidade muito pouco conhecida. Trata-se de uma comédia romântica, chamada A Pelada,
que conta os desgostos de um jovem casal, de origem modesta,
tentando dar uma nova vida ao seu casamento, meio encalhado.
Fiz o filme inteiramente em Aracaju no início de 2012.
Essa obra é o fruto de uma coprodução inédita entre a Bélgica
e Sergipe, entre Tarantula e WG Produções, de Sergipe, com a ajuda de órgãos oficiais e estaduais dos dois países. A equipe técnica
Baiano, brasileiro e bruxellois
D i e g o Sa n ta n a C l a u d i n o
A
cho difícil falar sobre a minha relação com a Bélgica sem
perder um pouco a imparcialidade que inibe julgamentos
apressados. O momento em que escrevo não é o mesmo que vivi
quando cheguei, nem é igual ao que está por vir.
Eu e a Bélgica somos um casal que se conhece muito bem e
que teve uma bela jornada com pontos bem altos e mergulhos bem
baixos. O que nos segura juntos é o respeito que temos um pelo
outro. Amor? Não sei, diria que não, ou melhor, que sim. Tenho
um amor sem tesão pela Bélgica. Mas sim, por que não amor? Ela
faz parte de mim e respira comigo. Chego a criticar, mas sempre
a defendo. Somos família. E como toda relação familiar, temos lá
nossos problemas. Mas, sim, nos amamos.
Nos amamos, mas não morreria por ela. Enquanto visse fogo
nos seus olhos, lutaria ao seu lado até o fim. E isso é o que creio
249
parte 8 – cinema e televisão
Cenas de trabalhos realizados por Diego Santana Claudino na Bélgica.
faltar aqui. Fogo, chama, calor, autoconfiança. A Bélgica te incentiva pela dúvida e não pela confiança cega. E acho que isso se
reflete na atitude das pessoas, na integração do país como um todo
e na sua arte em geral. A Bélgica precisa se amar mais.
Cheguei à Bélgica por amor e resolvi ficar por teimosia. Larguei um trabalho em ascensão no Brasil, na prestigiada O2 Filmes, onde era editor e assistente de direção, por amor a uma
jovem belga que conheci no Rio de Janeiro e por amor à aventura. Pelo desejo de enfrentar o desconhecido. Pela curiosidade
infantil que pulsa dentro de mim e faz coro à minha ode ao “por
que não?”. E de “por que não?” em “por que não?”, estou aqui
há seis anos.
Às vezes me pergunto como seria a minha vida se não tivesse
tomado tal decisão. Mas a certeza de que certamente não seria
quem sou acalma essa recorrente dúvida. Na Bélgica aprendi quão
pequeno é o mundo, e como não há limite para o que podemos
fazer; basta querer. Na Bélgica me assumi artista, me comprometi
comigo mesmo e aprendi a apreciar a jornada muito mais que o
seu destino. Tomei gosto pelas curvas da estrada, mesmo como o
impaciente e inconformado que sou. Hoje eu sou “eu”. E parte
desse eu devo à Bélgica. E mais que um diretor de filmes, me considero um artista, e me expresso nos meios que me convêm: foto,
desenho, pintura e filme. No momento, flerto com os pincéis e as
telas enquanto bailo sobre as teclas que coreografam o que pode
algum dia se tornar o roteiro de um longa-metragem. Sou Diego
Santana Claudino. Baiano, brasileiro e bruxellois.
Link: www.selfishbastards.tumblr.com e www.vimeo.com/
dieego
Documentário e mal-entendido: retorno sobre
uma primeira filmagem no Brasil
Jeremy Hamers
E
m 2003, Dorothée Luczak, então diretora artística da Bienal Internacional de Fotografia e de Artes Visuais de Liège,
me propôs coproduzir um projeto de filme documentário que eu
queria dirigir no Brasil. Naquela época, eu já tinha viajado para
a região de Goiás a fim de passar algumas semanas com os trabalhadores rurais sem-terra de lá.
Foi durante esse primeiro périplo brasileiro que tive a oportunidade de descobrir um fenômeno que ocuparia uma parte essencial do meu projeto documentário chamado A Verdade do Gato
(2005): a queima noturna dos campos de cana de açúcar. Cada
ano, durante os seis meses da colheita, se produzia um espetáculo
interessante: quilômetros de campos queimavam durante a noite.
Durante a noite que precede a colheita, coloca-se fogo na cana
que vai ser cortada no dia seguinte, para eliminar as folhas que
quase não produzem suco.
Obcecado por esse espetáculo, que eu tinha visto somente de
longe durante minha primeira viagem, comecei a preparar a rodagem de um filme sobre a produção de biocombustível na região
de Goiás. Naquela época, minha intenção era dupla. Por um lado,
eu me interessava por essa produção que, tal era minha esperança,
nos permitiria, a longo prazo, libertar-nos da hegemonia das grandes sociedades petrolíferas. Por outro lado, e após diversas conversas com Benoît e Inès Rixen, um casal de agrônomos belgas que
tinha trabalhado durante anos na região, queria denunciar a condição dos cortadores de cana de açúcar, essencialmente trabalhadores sazonais, que sofriam, de maneira evidente, em condições
250
cinema atual
Cena de A Verdade do Gato, de 2005, de Jeremy Hamers, sobre a cremação noturna nos campos de cana de açúcar.
de trabalho catastróficas: eram empregados por um recrutador
(chamado “gato”) que tinha um estatuto jurídico totalmente nebuloso, com um salário proporcional ao metro de cana cortado, sem
direitos sociais, com uma deterioração da saúde devido ao trabalho
cotidiano num cinzeiro gigante. Uma condição que lembrava, sem
ambiguidade, o tratamento infligido aos trabalhadores das minas
de carvão imigrados na Bélgica alguns decênios antes.
O projeto estava, pois, marcado por uma contradição que eu
achava interessante, e que deveria me permitir escapar ao registro maniqueísta da reportagem televisual clássica. A produção do
biocombustível oferecia ao Brasil uma independência financeira que achávamos de excelente agouro no cenário do primeiro
mandato presidencial de Lula e, concomitantemente, a exploração da cana de açúcar ocorria em condições sociais e ecológicas
amedrontadoras.
No anteprojeto do filme, que nos proporcionou algum financiamento, as coisas eram apresentadas de maneira muito simples.
O filme seria composto de imagens da colheita manual e da cremação dos campos, ambas espetaculares (penso, hoje, que é o que
causa, em parte, o sucesso do filme nos festivais). Naquela época,
eu recusava toda Voice Over clássica e toda entrevista, que conside-
rava como recursos da reportagem tradicional, infiéis a uma situação complexa. Contava com o que diriam as pessoas que ia filmar.
No entanto, apesar do aprendizado do português ter constituído uma parte importante da preparação para a filmagem pela
equipe inteira, não tínhamos nos preocupado com a relação com
as pessoas que íamos encontrar. Estava unicamente inquieto com
a liberdade que teríamos para filmar os trabalhadores labutando.
Porém, chegando lá, todas as portas foram abertas com uma facilidade desconcertante. Tudo podia ser filmado. Nunca tivemos
que usar estratagemas, ou sermos discretos, para filmar o trabalho.
Passado nosso primeiro entusiasmo, percebemos que parecia
impossível estabelecer qualquer comunicação com os sazonais.
Sempre sorridentes, dispostos a repetir um gesto quando julgávamos necessário para a filmagem, brincalhões apesar do trabalho
extenuante, eles nos davam a impressão de estar interpretando
uma opereta num filme que tinha a pretensão de ser uma ópera.
Uma primeira explicação dessa estranha situação nos veio de
nosso encontro, no terceiro dia de filmagem, com o diretor da
exploração agrícola na qual filmávamos. Alguns minutos de conversa informal foram suficientes para compreender que o homem
nos considerava como poderosos meios de retransmissão publi-
251
parte 8 – cinema e televisão
Jeremy Hamers: “Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado”.
citária vindos de uma Europa (onde tinha feito seus estudos) e
que fantasiávamos, então, a propósito dos biocombustíveis. Antes
da nossa chegada, tinha encarregado os contramestres de anunciar nossa visita aos cortadores. Eu nunca teria imaginado que
o peso das categorizações clichês pesaria tanto na nossa relação
com os sazonais.
A este primeiro mal-entendido, que nunca conseguimos desconstruir totalmente (mesmo em situação de entrevista anônima,
a prudência dos trabalhadores era impressionante), juntou-se um
segundo problema. Frequentemente, diante da câmera, os trabalhadores paravam de trabalhar e assumiam uma pose. Retrospectivamente, essa situação problemática (afinal, estávamos lá para
filmar o movimento do trabalho) me parece totalmente interessante, na medida em que espelhava minha própria ingenuidade.
Evidentemente, eu não podia pedir a esses homens que fossem
naturais, que agissem como se eu não estivesse lá.
A carga aviltante desse tipo de injunção contraditória e grotesca é evidente. Hoje me parece que, adotando um comportamento
que eu achava absurdo e inadequado, esses homens responderam
à minha intrusão ingênua no seu cotidiano de trabalhadores. Até
hoje não tenho a certeza de ter podido estabelecer a origem de
tal comportamento. No entanto, acompanhando um grupo de
cortadores a uma sessão de televisão que encerrava o dia, me pareceu que o imobilismo que eles ofereciam à câmera, em certas
circunstâncias, me lembrava as encenações extremamente petrificadas das telenovelas melodramáticas que consumiam em massa.
Mais tarde, quando o filme foi mostrado no povoado de Carmo do Rio Verde, onde tínhamos filmado, informaram-me que a
maioria dos cortadores tinha ficado desapontada com o documentário, constatando que nele não acontecia nada. Quase no mesmo
momento, Leon Cakoff, que eu tinha tido a sorte de encontrar
durante a Mostra de Cinema de São Paulo, mencionava A Verdade do Gato como um dos filmes imperdíveis da seleção oficial.1
Essas duas recepções brasileiras de meu filme sintetizam bem o
abismo que minha ingenuidade tinha eliminado mesmo antes do
primeiro dia de filmagem.
Atualmente penso que a filmagem de A Verdade do Gato no
Brasil repousou num conjunto de mal entendidos e de elementos
a priori, com os quais um documentarista – certo de suas boas intenções – pode se aproximar de um lugar, de uma situação e de
uma comunidade que lhes são estrangeiros. Sabemos que a história
do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado.
Alguns documentários camuflam esse problema para colocar a
matéria filmada unicamente a serviço de um relato. Outros tentam
implicar o filmado para fazer um filme a duas, ou mais, vozes, na
tradição dos autores que revolucionaram o documentário etnográfico a partir dos anos 1950. Mais raros são os que colocam essa
relação no centro de sua obra, problematizando-a e tornando-a o
assunto do filme, sem jamais perder de vista a causa que defendem.
Me parece que a filmagem de A Verdade do Gato deveria ter chegado a tal problematização. Em vez disso, o filme se refugia numa
encenação que transforma o cortador numa silhueta, num robô,
num escravo sem personalidade, para sublinhar, por falta de coisa
melhor, a exploração humana que está na origem de um sistema.
Nesse sentido, o filme não trai os trabalhadores da cana de açúcar.
Mas ele constitui somente uma primeira etapa no caminho de um
tratamento real do que é o encontro entre dois mundos.
(Tradução Susana Rossberg)
Notas
1. http://media.terra.com.br/imprime/0,,OI1220750-EI7774,00.html
252
cinema atual
“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete,
ah foi bom, meu coração ficou feliz...”*
Reynald Halloy
E
m 1992, o tocador de harmônica belga Toots Thielemans gravou The Brasil Project, álbum que descobri, com alegria, quando voltei para a Bélgica, após um longo périplo pelo Brasil. Este
encontro magnífico entre um artista belga e uma irmandade de
músicos brasileiros se tornaria o símbolo da minha busca artística.
Em 1992 eu acabava de completar 18 anos. O Brasil tinha colocado um violão nas minhas mãos e dito “vai, canarinho belga,
canta!” Eu tinha deixado Rochefort, minha cidadezinha natal belga de cinco mil habitantes, sem olhar para trás, para me encontrar
num palco em São Paulo, no Teatro Bela Vista, onde descobriria
as bases da minha criação artística atual.
Fazia parte de uma companhia de teatro brasileira onde aprendia, de improviso, o violão, o canto, a interpretação do ator e a cenografia. Uma formidável escola! Com essa companhia aprendi a
nadar me jogando na água, encarando a dura realidade da cultura
alternativa no meio de uma megalópole, me virando diariamente,
sem subsídios do governo, com somente fé e coragem.
Eu fazia fotos, e a fotografia me permitiu afrontar cara a cara
“a dura poesia concreta” de São Paulo. Graças à imagem fotográfica, tentava resolver o enigma que essa cidade me colocava:
“Decifra-me, ou devoro-te!” Percorria as ruas do Bexiga, onde fotografava tudo o que não se parecia comigo: tudo me parecia tão
estranho... Felizmente, já havia para mim a canção Sampa, de
Caetano Veloso, a minha mais completa tradução: “Alguma coisa acontece no meu coração que só quando cruza a Ipiranga com
a avenida São João...”
Foi durante essa experiência fundadora na escola da vida que
encontrei meus irmãos e irmãs de coração, minha família brasilei-
ra, que continuam até hoje a alimentar minha inspiração. Flavio
Maciel de Souza, Arlene Rocha, Emilia Rocha, Simone Lima,
Vanderlan Marques e Paulinho da Cuíca, que voltaram comigo
para a Bélgica para apresentar El Retablillo de Don Cristobal, uma
farsa de Garcia Lorca, no Festival do Riso de Rochefort, em 1994.
Após algumas deambulações na Espanha, a companhia se estabeleceu, finalmente, em Bruxelas, onde seus projetos não pararam
de se multiplicar, e de raiar pela Europa inteira.
Por minha parte, comecei a estudar cinema na École de Recherche Graphique (ERG, Bélgica) e no Institut National Supérieur des Arts du Spectacle (INSAS, Bélgica), mas compreendi,
rapidamente, que ia me sentir constrangido entre os muros de
uma escola. Por isso, preferi fundar minha própria produtora de
filmes e música: Grimoire asbl. Em 1996, compus minhas primeiras canções e dirigi meus primeiros curtas-metragens, ainda muito
influenciados pela cultura brasileira. “Os Fogos do Céu”, conto
pastoral, entre ficção e documentário, lançava uma ponte entre
os fogos de São João no Brasil e a queima das corcundas de palha,
durante o carnaval no Borinage, na Bélgica.
Em 1998, voltei ao Brasil com minha esposa, para fazer uma
prospecção fotográfica e sonora dos últimos mamulengueiros do
Estado de Pernambuco. Viajantes sedentários, tomamos o tempo
que nos parecia necessário para encontrar os habitantes e viver
com eles no ritmo da terra e da água estagnada. Não chovia no
Sítio do Açude Grande fazia dois anos. No entanto, torrentes
de ondas surdas tinham-se abatido sobre as terras áridas do Nordeste, trazendo o risco de afogar, pouco a pouco, as palavras de
seus habitantes.
Acima, esquerda: Iniciação de meu irmão Arnaud Halloy, antropólogo, num quarto de santo de um candomblé de Recife, registrado no documentário “Iyawo” (2004),
consumido por um incêncio. Experiência inédita de “antropoesia”. Acima, direita: Reynald Halloy.
253
parte 8 – cinema e televisão
Severino na sua casa de barro: um filme de arquivo sobre os últimos representantes
de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar. “Ondas Surdas”, 2000.
A chegada da eletricidade nesse vilarejo isolado havia, igualmente, permitido a chegada da televisão. Zé Lopes, mamulengueiro em Glória do Goita, nos falava de sua dificuldade para transmitir sua arte à jovem geração, que preferia os jogos televisuais aos
jogos de rua. Estelita, artesã que criava flores cortando garrafas de
Coca-Cola, sonhava também em comprar esse movelzinho luminoso para ocupar suas noites. Severino sonhava em construir, para
sua esposa, uma casa de tijolo com uma cozinha equipada, como
nas telenovelas. Ele morava numa casa de taipa, feita pelas suas
mãos, com terra que tinha achado sob seus pés.
Nossa prospecção fotográfica e sonora se tornou um documentário, “Ondas Surdas”, em torno da influência devastadora das
mídias em meio rural. Depois de ter apresentado o filme no Bilan
du film ethnographique, de Jean Rouch, eu quis voltar ao vilarejo
para mostrá-lo aos habitantes – na sua nova televisão. Talvez tivesse
sido uma maneira de despertar o olhar crítico deles. Infelizmente, a aldeia tinha desaparecido. Os habitantes tinham ido viver na
cidade e suas casas tinham sido engolidas novamente pela terra,
como se nada tivesse, jamais, existido. Sem saber, tínhamos feito
um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos
de tradição oral em terras da cultura do açúcar.
Estelita e foto do Zé Mudo, cena de “Ondas Surdas”, 2000, de Reynald Halloy.
Em seguida filmei um documentário do qual não me restou
nem um rastro. Em 2005 “Iyawo” desapareceu num incêndio,
junto com meu apartamento, em Bruxelas. Era consagrado à iniciação de meu irmão Arnaud, antropólogo, num candomblé de
Recife. Filmado na intimidade do culto dos orixás, esse filme teria
sido pioneiro na história do cinema etnográfico, uma experiência
inédita de “antropoesia”.
O grande roteirista desse filme era Ifá, o oráculo que, através
do jogo de búzios, autorizaria, ou não, a filmagem das sequências
rituais. Meu irmão antropólogo, seu pai de santo e eu ficamos surpresos, pois o oráculo nos abria todas as portas, até a do Quarto do
Santo, onde nenhuma câmera nunca tinha penetrado. O segredo
do culto talvez não devesse ser revelado; o mistério devia, e deve,
provavelmente permanecer inteiro!
O Brasil foi o berço da minha inspiração musical e cinematográfica, a terra onde nasci artista, entre encanto e desencanto.
(Músicas, filmes e fotografias na internet: www.reynaldhalloy.be)
(Tradução Susana Rossberg)
Notas
* Extrato de “Bluesette” de Toots Thielemans, The Brasil Project, Private Music, 1992.
O Brasil, terra de energia e de cinema
Th i e r r y M i c h e l
O
Brasil foi primeiro, nos anos 1970, na Bélgica, uma extraordinária mobilização do que hoje se chama a sociedade civil, para manifestar contra uma grande feira comercial que estava
havendo em Bruxelas, e que se chamava Brazil Export. Fazíamos
questão, nesses tempos longínquos, no qual o fundo do ar era
vermelho, de denunciar a ditadura dos generais no Brasil e as relações estreitas que ela tinha com numerosos poderes ocidentais,
que negavam as aspirações do povo brasileiro à democracia, assim
como os direitos humanos elementares.
Conscientemente, eu participava, no início dos meus vinte
anos, e levado pelos entusiasmos militantes da época, destas manifestações de solidariedade com um povo que pouco conhecia,
exceto pelo cinema e a lembrança de um dos raros filmes que fazem com que um dia alguém decida de tornar-se cineasta: Orfeu
254
cinema atual
Cena do filme “Gosses de Rio”, de Thierry Michel.
negro, visto quando eu era adolescente, e do qual a música continuava a me trotar na cabeça. O filme falava, evidentemente, de
amor, tendo como fundo o Rio, as favelas e o carnaval.
Essa grande manifestação, Brazil Export, me levou, igualmente, à Cinemateca de Bruxelas, onde descobri, com avidez, os filmes de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Ruy Guerra e Nelson
Pereira dos Santos, todos inspirados no cinema social neorrealista
italiano e na liberdade de tom da “nouvelle vague” francesa. Dois
filmes me impressionaram particularmente: Deus e o Diabo na
Terra do Sol e Terra em transe.
Foi também o que me orientou, alguns anos depois, a ler um
escritor belga, além do mais de Liège, coroado com um prestigioso prêmio literário, o Prêmio Renaudot, por seu livro L’herbe à
brûler. O livro falava da Bélgica profunda, aquela que eu conhecia,
aquela que fazia parte da minha identidade, a Bélgica das contestações políticas, aquela do conflito linguístico flamengo e valão,
aquela da divisão da Universidade de Louvain, na época Leuven,
em duas universidades – enfim, o pão de cada dia deste pequeno
país sujeito à guerras étnicas de baixa intensidade. Mas o livro falava, igualmente, de um envolvimento num país dito do terceiro
mundo, do envolvimento, no Brasil, de um jovem belga que partiu
com um ideal religioso, mas sobretudo social, e que, no Brasil, ia
se imergir na luta contra a ditadura, ao ponto de arriscar sua vida,
de ser preso, torturado, expulso. Foi um dos poucos livros que me
abalou e, num dado momento da minha carreira, eu quis fazer
dele uma obra de ficção cinematográfica. Me baseando nesse livro, parti para o Brasil pela primeira vez.
Meu desejo era preparar essa grande ficção, essa adaptação do
romance de Conrad Detrez. Mas, como se tratava de uma obra
ficcional, igualmente muito autobiográfica, me pus, desde que
cheguei no Rio, a buscar as pessoas reais sobre as quais o romance
nos contava a história, a resistência, a oposição política, a coragem,
a abnegação. Foi assim que pude encontrar vários companheiros e
camaradas de Conrad Detrez, que haviam compartilhado sua luta
e os sofrimentos da repressão. Foram eles que me fizeram descobrir o Rio profundo, o das favelas, das prostitutas, das lutas políticas, da emergência do que se tornaria o grande partido político
no poder, o Partido dos Trabalhadores; mas igualmente o Brasil
dos grupos de traficantes de drogas que reinavam sobre os bairros
pobres, das prostitutas organizadas em sindicatos, dos padres bra-
255
parte 8 – cinema e televisão
Cena do filme “A fleur de terre”, de Thierry Michel.
sileiros missionários no seu próprio país, no coração das zonas e
dos bairros mais violentos da cidade, das escolas de samba; e essa
cultura brasileira feita de energia, de criatividade, de solidariedade profunda, sobretudo nas classes populares, do sentido da festa,
e de uma liberdade da qual compreendi melhor como ela pôde
embriagar o jovem Conrad Detrez, que tinha deixado as ordens
religiosas para afirmar sua revolta e sua homossexualidade.
Nunca fiz o filme de ficção para o qual partira ao Brasil, mas
trouxe de volta, nas minhas malas, vários projetos documentários
que me permitiriam imergir no mais profundo da vida brasileira,
e de ser um cronista internacional dela. Fiz dois filmes: A fleur
de terre, focado sobretudo na vida cotidiana da favela Mangueira,
cuja escola de samba venceu diversas vezes o desfile do carnaval.
Trouxe, igualmente, um segundo filme, feito quase sem querer,
Gosses de Rio, que teve uma fabulosa carreira internacional, divulgado por quase 30 televisões no mundo, e que contava a vida
de um grupo de crianças de rua do bairro da Lapa, no âmago
do Rio.
Inicialmente, filmando as crianças de rua, eu somente queria
mostrar, no filme sobre as favelas, que também havia os excluídos
da miséria, os mais miseráveis dentre os pobres, essas crianças rejeitadas dos bairros populares e das favelas para ir sobreviver, por
seus próprios meios, nos centros das cidades. Durante a edição
percebemos que essa parte inteira da filmagem de A fleur de terre
poderia fazer um filme em si, porque as crianças exalavam a verdade, a vida, o entusiasmo, a energia mas, igualmente, carregavam
consigo um destino trágico.
Tive outros projetos no Brasil, seja o retrato de Joãozinho Trinta, um dos mais prestigiosos mestres de carnaval, ou o retrato de
padres missionários brasileiros empenhados, no Pará, pela causa
dos trabalhadores rurais sem-terra, expulsos pelos grandes proprietários latifundiários. Também desenvolvi um retrato do conflito no
Thierry Michel filmando “Gosses de Rio”.
seio da igreja católica, entre os defensores da Teologia da Libertação, na linha de Monsenhor Dom Hélder Câmara, arcebispo
de Recife, engajado ao lado dos mais pobres, e da igreja oficial,
decidida a combater, sob ordens do Papa, esses padres turbulentos, socialmente engajados, que batalhavam sem dó contra a instituição de uma igreja próxima demais do poder e das oligarquias.
Esses projetos, e muitos outros, nunca os realizei – assim é o
destino. Voltando do Rio, de Salvador, de Recife, de Belém, parti
para o Congo/Zaire, onde deviam ocorrer eventos excepcionais
devido ao fim do reinado do Marechal Presidente Fundador Guia
Supremo Mobutu Sese Seko, que ia perder o poder, e do qual eu
queria filmar o tombo. Mas o ditador não caiu e fui embarcado na
história tumultuosa desse país, do qual sou hoje, e há mais de vinte
anos, uma testemunha e um cronista cinematográfico privilegiado.
No entanto, o Brasil permanece ancorado profundamente no
meu coração, meu espírito, minha cultura, minha maneira de ser,
de ver a vida. Revejo regularmente Israel Tavares, um dos diretores
da Mangueira, emigrado na Suíça há muitos anos. O Brasil continua, continuará sendo um país do qual me sinto próximo, um
país e um povo cúmplice e amigo, onde espero, num dia futuro,
imergir novamente, com a câmera em punho.
(Tradução Susana Rossberg)
256
cinema atual
Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista
H e r o n Fe r r e i r a
F
oram quase cinco anos de universidade e trabalho em empresas de engenharia. Não aguentava mais as integrais e as
derivadas, as máquinas e seus protocolos, as redes e seus processos repetitivos. Queria o humano, o palpável, as histórias, as imagens invisíveis neste mundo em que me havia colocado. Percebia
mais claramente que não seria esta profissão que iria exercer no
futuro e que Porto Alegre, Rio Grande do Sul, estava ficando
pequena demais.
Estamos em 1997, “águas de março fechando o verão é promessa de vida no teu coração”. Embalado por uma carioca que
havia conhecido em um encontro de capoeira em São Paulo, junto com a vontade de retornar à minha cidade natal, decido minha
mudança para o Rio de Janeiro, cidade dos contrastes, minha terra,
Morro do Estácio, Santa Teresa, onde aterriso depois de 18 anos.
Tinha cinco anos quando partimos para Porto Alegre.
Trabalho como técnico em Telecomunicações na empresa
Victory. Considerava este emprego temporário, pois estava à procura do que queria fazer – talvez estudar Cinema. Conversando
com amigos, decido fazer um curso de vídeo no Senac, durante
dois meses, todas as noites. Trabalhamos do VHS ao Betacam, editamos em mesas de edição linear etc. O professor superaplicado
percebe meu interesse e, ao terminar o curso, me indica para fazer
uma formação de assistente de câmera 16 mm e 35 mm, ministrado por Cesar Elias, na Fundição Progresso, no centro do Rio.
Termino dois anos mais tarde, depois de ter assistido ao curso
de Cinema na UFF (Universidade Federal Fluminense) como
aluno ouvinte e ter seguido os cursos de assistente de câmera e de
diretor de fotografia na Fundição Progresso e no Templo Glauber. Continuo trabalhando com alguns fotógrafos que conheci
nos documentários “Além Mar” e “Música do Brasil”, dos quais
participei como assistente de câmera e assistente de produção.
Ingresso num curso de Assistente de Direção I e II, ministrado
pelo mestre Jorge Monclair, no Instituto Templo Glauber, em Botafogo. No final dos estudos, escolhemos a peça de Plínio Marcos,
“O Abajur Lilás”, e a adaptamos para o cinema. Cada aluno dirige
duas sequências do filme de 30 minutos, com atores profissionais
e todo o trabalho de A até Z. Depois disso escrevo, produzo, filmo
e dirijo alguns curtas-metragens e documentários com um grande
amigo e cineasta, Rodrigo Infante.
Minha ida à Bélgica deu-se por causa de uma amiga do Rio
que fazia doutorado em Antropologia na UFF e que estava de
férias em Liège. A ideia era passar três meses visitando amigos
espalhados pelo continente europeu, e Liège fazia parte do roteiro. Depois de ter visitado Marselha, Gênova, Roma, Milão e
Paris, decidi passar o final do meu visto em terras belgas. Bruxelas
me impressionou com suas línguas e suas cores diferentes. Fiquei
curioso e interessado em falar melhor a língua; comecei um curso
de francês na VUB (Universidade Livre de Bruxelas).
Em setembro de 2004, na embaixada do Brasil, descubro que
existe um encontro da comunidade brasileira todas as quintas-feiras. Fico conhecendo pouco a pouco a comunidade e os artistas
residentes, entre eles Sidney Tendler, Susana Rossberg, Inêz Oludê e outros. Através desta nova rede, sou contratado para organizar
o primeiro festival Cine Brasil, em 2005, no Cinema Aventure.
De visita ao Rio de Janeiro, no outono de 2005, juntamente
com um amigo videasta napolitano, Gigi Mette, criamos a Não
Tem Zoom Autoproduções, a NTZ. A ideia motriz deste coletivo
é estar próximo das situações mais interiores e tão perto quanto
Heron Ferreira diante do Museum of Modern Art.
Cartaz de “Esse pequeno vislumbre”, de Heron Ferreira.
257
parte 8 – cinema e televisão
Cartaz de “Le meme chapeau que
toi”, de Heron Ferreira.
possível da realidade, sem a necessidade de lidar com zoom remoto. A realidade é mais “real” quando estamos próximos dela.
Nosso primeiro filme juntos aconteceu em junho de 2006.
Gigi veio me visitar em Francorchamps, no sul da Bélgica, perto de Verviers, onde ocorrem as corridas de automóvel. Era um
dia ensolarado, o segundo dia do verão. Estava levantando uma
graninha extra, trabalhando como garçom. O restaurante tinha
um belo lago redondo no centro. Estava quase na hora de abrir o
serviço do jantar quando um cozinheiro me pede para ajudá-lo.
Era para preparar um esquentador de pratos, no qual um gel-combustível era utilizado para manter a comida quente. Coloquei a
quantidade a olho e tentei acender e nada. O cozinheiro me disse
que era necessário colocar mais gel no copo para que o gel-combustível permanecesse durante todo o jantar. Sinto um frio que
me atravessa, mas sigo suas ordens. Quando viro o galão de três
litros a flama sobe e explode no meu rosto. Só tenho o reflexo de
levantar a cabeça e de me jogar no lago. A partir de lá, muita dor,
o fim do verão, e o nascimento de um filme sobre meu acidente,
Le Même Chapeau Que Toi (2007), Prêmio Especial do Juri no
Festival CinEsquemaNovo 2007.
Anoto no cartaz do filme: “Vítima da explosão de um esquentador de pratos, Heron Ferreira é queimado em segundo e terceiro graus no rosto, pescoço e mãos. Para não cair no desespero e
em depressão, decide filmar o que aconteceu com ele. As trocas
de curativos e os cuidados diários, um encontro nos corredores
do hospital e sua recuperação vão ajudar a recuperar a esperança e a confiança.”
O pequeno Elias e seu pai, o incentivo da doutora Anne Pierlot e de sua equipe, o apoio da família e o trabalho conjunto com
Gigi Mette na câmera e na edição foram fundamentais na realização deste filme.
Em setembro de 2006, ingresso na Académie de Dessin et Arts
Visuels de Molenbeek Saint-Jean, Bruxelas, em Videografia, onde
estudo durante dois anos. O interessante desta escola é que você é
quase forçado a ter o seu próprio projeto, a descobrir o seu olhar
sobre o mundo. O singular dentro do plural. Aprendi muito, tive
cursos com Thierry Zeno sobre crítica, e com Jean Timmerman
sobre a importância do som.
Em junho de 2007 conheço Jean-Pierre e seus companheiros. Eles vivem em autogestão nas bordas do Canal Saint-Martin, na décima circunscrição administrativa de Paris, desde 2006.
Exigem a garantia dos direitos fundamentais, o monitoramento
da saúde em todos os acampamentos de Paris e a existência de
um acampamento permanente, assim como o direito de viver de
uma forma diferente. Após o encontro com Marianne Col nasce
um fragmento do cotidiano deste acampamento no coração de
Paris, Sans Doute Fous (Sem Dúvida Loucos), em 2007. Um mês
após as filmagens eles foram despejados e nunca mais tivemos
notícias de Jean-Pierre.
Em fevereiro de 2008, Este pequeno vislumbre dos Balcãs decorre de um projeto comum, e de um movimento composto por
muitos olhos, mãos e vozes. Tudo começa e termina nas margens
do Danúbio, com o encontro de três estrangeiros durante uma
noite de embriaguez: Gigi Mette, napolitano, Heron Ferreira,
brasileiro, e Nikola Buric, servo-bósnio. Naquela noite nasce um
curta-metragem que conta a história de um menino da Sérvia,
na verdade a história de muitos jovens sérvios. O filme rodou o
mundo e foi premiado em 2010, em Belgrado. Após o festival, foi
guardado na videoteca nacional de Belgrado para lembrar que a
Sérvia esteve um dia fora do espaço Shengen (aderiu em 2009).
Em fevereiro de 2009, fui convidado pela jornalista belga Marie-Martine Buckens para acompanhá-la na pesquisa para seu documentário, Sementes, na Amazônia. Em Manaus, entrevistamos
escritores, responsáveis ambientais, artistas e ribeirinhos. Seu filme questiona a relação do homem com a natureza e as reservas
ambientais, das quais o homem que ali vive deve se retirar para
preservar a natureza.
No mesmo ano, em Paris, entrevistamos Franz Krajberg, que
nos falou da sua fuga do ser humano, da guerra e de seu re-nascimento quando conheceu o Brasil e a floresta. Foi emocionante.
Em meados de março de 2010, fui convidado pela Associação
Vision e por ZinTV para fazer um filme sobre um grupo de jovens
de Bruxelas, de origem marroquina, que partiriam para Quebec
para aprender teatro e improvisação. Através dessa viagem eles
descobrem um país, uma cultura e aprendem a arte do entretenimento. Além da improvisação e, sobretudo, da troca, a comunicação entre os jovens está no centro do projeto. O filme, rodado em
Bruxelas, Montreal e Nova York, se chama Au Coin de Ma Rue
(Na Esquina da Minha Rua).
Nosso coletivo de autoproduções audiovisuais, Não Tem Zoom,
procura contar fragmentos da realidade. O desejo de experimentar, aprender, participar e criar comparações tem muito a ver com
a capacidade de mudar seu ponto de vista: o mesmo objeto, evento, pessoa, pode-se ver de uma maneira diferente, dependendo dos
óculos que usamos e da perspectiva em que estamos. É preciso se
aproximar ou se afastar, se inclinar ou dar alguns passos para ver
o mesmo fenômeno de maneiras diferentes e entender sua complexidade. Afinal, a chave é uma questão de atitude: a gente pode
se mover com a câmera, mas não adiantará nada se não se é capaz
de mudar seu ponto de vista, dentro de si.
258
cinema atual
Filmando nas aldeias Kayapó
G u s t a a f Ve r s w i j v e r
O
filme Nanook of the North, de 1922, descreve a vida quotidiana de Nanook e de sua família Inuit, no Polo Norte canadense. Apesar de algumas sequências terem sido encenadas, foi o
primeiro longa-metragem etnográfico digno desse nome. Durante
os decênios seguintes, muitos documentários magníficos e valiosos
foram feitos sobre povos do mundo. Na maioria eram documentos
isolados, produzidos por cineastas independentes.
O canal britânico Granada Television escolheu outra opção
quando, em 1970, produziu uma verdadeira série de documentários sobre sociedades tribais. Para cada episódio, um cineasta de
Disappearing World (1970-1993) trabalhava em conjunto com um
antropólogo especializado. A série conheceu um sucesso inesperado, de modo que a BBC resolveu lançar, igualmente, sua série, Under the Sun (1989-2002), que se consistiu de mais de 80 episódios.
Graças ao sucesso das duas séries britânicas, nos anos 1980 e
1990 muitos documentários etnográficos foram difundidos, nos
melhores horários, em muitas televisões europeias e americanas.
Nunca antes culturas diferentes haviam obtido tanta atenção nos
países ocidentais. Editoras aproveitaram essa tendência para publicar magníficos livros de fotografias, nos quais um povo era, a
cada vez, posto em evidência.
Mas essa atenção foi passageira e hoje em dia documentários
sobre povos indígenas são mostrados raramente nas televisões europeias e americanas. O papel desses povos parece servir agora
sobretudo como cenário das séries ditas “de realidade”, nas quais
brancos, de preferência totalmente despreparados, são jogados no
meio de uma suposta sociedade “primitiva”, e gradualmente tornam-se membros da tribo.
Isso não exclui, evidentemente, que ainda sejam feitos documentários etnográficos esplêndidos. Muito pelo contrário, como
se vê pelo sucesso dos festivais etnográficos internacionais organizados anualmente. Característico, nas produções recentes, é o fato
de que as populações filmadas participam ativamente da decisão
do conteúdo dos filmes.
Foi na série Disappearing World que, em 1987, o primeiro documentário sobre os índios Kayapó, do Brasil Central, viu a luz.
Eu mesmo tinha feito uma pesquisa antropológica entre os Kayapó
entre 1974 e 1981. Teria gostado de filmar durante essas viagens,
mas era praticamente impossível, porque não dispunha dos meios
financeiros para comprar a custosa aparelhagem e também porque, naquela época, filmar não era tão fácil quanto agora. Ainda
se trabalhava com grandes câmeras, colocadas em pesados tripés,
e o som tinha de ser gravado com outro aparelho. Era a época
das bobinas de filme em 8 mm e 16 mm, grandes e de manejo
complicado. Também era extremamente difícil conservá-las em
circunstâncias tropicais. A época digital ainda era uma ficção, e
de estabilizadores de imagem, DVD ou HD, ainda não se tinha
ouvido falar. Visto que eu sempre viajava sozinho nessas regiões
Durante o ritual kuarup, os Mehinako enfeitam o tronco que representa o Rei
Leopoldo III da Bélgica, Aldeia Utawana, Parque Indígena do Xingu, Gustaaf
Verswijver.
de difícil acesso, percebia que a pesquisa antropológica não combinava bem com filmagens.
Durante o período de 1974 a 1981 permaneci, ao todo, 37 meses com os Kayapó. Trabalhava numa aldeia onde uma só pessoa
falava um pouco de português, de modo que fui, literalmente,
obrigado a aprender a linguagem indígena. Foi um aprendizado
lento, mas a necessidade de comunicar continuamente me aproximou muito das pessoas. Os laços com uma certa família tornaram-se mais fortes do que com as outras; depois de mais de um
ano de pesquisa de campo me deram alguns nomes indígenas e
fui, lentamente, adotado pela família. Os direitos assim adquiridos
eram, evidentemente, ligados a obrigações: esperava-se, sobretudo,
uma contribuição na área econômica e ritual.
Passaram-se muitos anos antes que eu conseguisse atingir minha ambição de filmar os Kayapó. Foi em 1989, quando mais de
600 Kayapó juntaram-se na cidade de Altamira para protestar contra a construção de uma grande barragem na região. Com Lode
Cafmeyer, um cineasta independente belga, produzi então The
Green Puzzle of Altamira, filme que foi indicado ao festival Margaret Mead, em Nova York, em 1993.
Depois ainda contribui com diversos programas de televisão,
tais como o relatório da viagem aos Kayapó de Vera Dua, ministro
flamengo do Meio Ambiente, e cinco documentários de longa-metragem, dos quais o foco central era sempre um ritual Kayapó
diferente. Essa escolha era consciente, porque os rituais Kayapó
são apresentações impressionantes, durante as quais os dançarinos
aparecem com pinturas corporais diferentes e complexas, assim
como uma série de adornos, inclusive imponentes cocares.
259
parte 8 – cinema e televisão
Nosso patrocínio subentendia o estabelecimento de um longo
laço econômico com as comunidades que organizavam as festas,
como também com uma série de pessoas que preenchiam certos
papéis durante os rituais. Atualmente, 15 anos depois, o processo
continua em andamento, e os Kayapó ainda exigem, regularmente, compensações de Martine e de mim.
Honrar crianças brancas, num ritual indígena, ocorre muito
raramente, porque significa que a sociedade indígena investe nas
crianças, dando-lhes, assim, seu próprio lugar, dentro da rede da
sociedade. Trata-se de uma avançada forma de adoção.
Desse ponto de vista, as imagens que filmamos durante as
celebrações de meus filhos são exclusivas. Mesmo assim, foram
pouco difundidas, de maneira que esses fatos passaram praticamente sem serem notados. Talvez isso esteja relacionado com a
falta de ostentação belga; nós, os belgas, somos demasiadamente
modestos, e não ousamos mostrar devidamente as nossas realizações. Vivenciei isso novamente, em agosto de 2012, quando
os índios Mehinako, do Parque Indígena do Xingu, organizaram
uma homenagem muito especial para honrar a memória do Rei
Leopoldo III, da Bélgica, no grande ritual chamado kuarup. O soberano havia visitado o território em 1964 e tinha tido um papel
importante na história daquele Parque Nacional, que mais tarde
se tornou um ícone brasileiro, em termos de respeito às culturas
originais do país.
Somente seis brasileiros tinham sido homenageados da mesma
maneira pelos índios do Parque do Xingu; o Rei Leopoldo III fora
a primeira pessoa não brasileira incluída na seleta lista de brancos
assim honrados. Quando se honra um brasileiro dessa maneira, o
fato é difundido, detalhadamente, na mídia nacional. No entanto,
no caso do Rei Leopoldo III, tudo se desenrolou serenamente, sem
jornalistas ou câmeras de televisão. Assim, o fato não foi destacado
e passou despercebido.
As imagens que filmamos durante as celebrações de meus filhos podem não ser conhecidas nos países ocidentais, mas elas têm
um sucesso enorme entre os Kayapó. São os documentários que
eles mais assistem nas aldeias. Esse sucesso tem a ver com o fato
que ambos foram filmados em um momento no qual, segundo os
Kayapó, as tradições ainda eram seguidas de maneira bastante estrita, justo antes de uma série de profundas mudanças. Aos olhos
dos Kayapó, essas imagens são o último testemunho de “como era
antigamente”, o que provoca certa nostalgia.
(Tradução Susana Rossberg)
Martine sentada ao lado de Kyra ‘Nhàktu’ e Filip ‘Bepgogoti’ durante a festa das
‘mulheres pintadas’, Aldeia Pukanu (Kayapó), 1997, Gustaaf Verswijver.
De todas as filmagens das quais participei, duas merecem
menção especial. Trata-se do longa-metragem The Feathers from
the Sky (2001), que produzi com Lode Cafmeyer e a produtora
ITP, de Bruxelas; e de certas sequências do programa de interesse
humano Napels Zien (2002), da produtora Woestijnvis, no qual
se segue algumas pessoas flamengas que empreendem uma viagem que vai mudar suas vidas. Nesses filmes igualmente destacavam-se os rituais Kayapó, mas o excepcional foi que meus filhos
foram celebrados durante esses rituais. Atendendo a um pedido
dos Kayapó, eu tinha dado aos meus dois filhos nomes Kayapó:
para Kyra ‘Nhàktu’, e para Filip ‘Bepgogoti’. Segundo a tradição
kayapó, minha esposa, Martine, e eu deveríamos organizar uma
cerimônia de nomeação antes das crianças atingirem a idade de,
mais ou menos, 12 anos. A maioria dos grandes rituais kayapó são
cerimônias de nomeação que, de certa maneira, podem ser consideradas festas de batismo. Os Kayapó diferenciam diversas categorias de nomes pessoais que são ligados a cerimônias específicas.
Para Martine e para mim, isto resultou que tivemos de patrocinar duas festas: a “festa das mulheres pintadas” para nossa filha
e a “festa da onça” para nosso filho. Tudo isso era orquestrado e
decidido pela minha família Kayapó adotiva.
Cerimônias de nomeação são grandes eventos, e os diversos
rituais ocorrem durante várias semanas, às vezes meses. Para cada
uma das duas festas me dirigi para uma aldeia Kayapó com minha família, durante algumas semanas, a fim de acompanhar a
celebração das crianças. Aconteceram em junho e julho de 1997
e em julho e agosto de 2002.
O fascínio pelo Nordeste
Nicolas Hallet
Q
uando estudava na Bélgica, eu morava numa república estudantil de um projeto humanitário da ONG OXFAM, organização que trabalha com os países do Sul numa relação de comér-
cio justo (fair trade) com pequenas comunidades, na Universidade
de Louvain-La-Neuve, onde estudei Geografia e Sociologia. Nessa
república estudantil havia gente do mundo inteiro. Um dia convi-
260
cinema atual
Bisavó de Nicolas Hallet, Irene de Nangy (3ª pessoa sentada da esquerda para a direita), na chegada do navio ao Brasil.
dei um amigo brasileiro, Paulinho Lupifieri, para almoçar na casa
de meus pais, uma casa velha e bagunçada no interior da Bélgica.
Ele ficou impressionado com a quantidade de objetos do Brasil
que havia lá: quadro do Pão de Açúcar, Santo Antônio de madeira,
boneca negra da Bahia... Esses objetos não haviam me chamado
a atenção antes. Foi quando minha mãe esclareceu a relação da
família com o Brasil. Minha bisavó, Augusta Leclercq, havia imigrado da América do Sul em 1910. Ela nasceu em 1888 na província do Hainaut. Depois da adolescência mudou-se para Bruxelas,
onde era modiste, fabricava chapéus e participava de um grupo de
teatro, La Compagnie Du Bois Sacré. Frequentava a boemia de
Bruxelas, onde começou a cantar acompanhada de um pianista.
Numa relação com um homem da burguesia teve um filho, meu
avô, Jean Lebrun Leclercq. Como ele não assumiu a relação, ela
deixou a criança sob a guarda da avó materna e pegou um navio
para a América Latina, somente com a roupa do corpo.
No Brasil, começou uma nova vida como cantora fazendo turnês de Belém do Pará a Buenos Aires, na Argentina, sob o nome
artístico de Irene De Nangy. Quando a Primeira Guerra Mundial
começou, ela foi buscar seu filho e se instalaram no Rio de Janeiro.
Lá, ela construiu o Hotel Bélgica na Rua das Laranjeiras, e com
ele a riqueza chegou. Nunca se casou, era uma mulher independente já no início do século XX.
Voltaram para a Bélgica no final dos anos 1920. Ela transformara todos os seus bens em diamante e mandara costurar uma
cinta para sair do país com essa fortuna clandestinamente, pois,
nesse período, o Brasil não permitia a saída de valores. Assim que
chegou à Bélgica, comprou três casarões em Bruxelas.
Morreu em 1942, provavelmente de um câncer, e meu avô
foi morar na mata para se esconder dos alemães, que recrutavam jovens para trabalhar nas usinas de armas durante a Segunda
Guerra Mundial.
Meu avô morreu em 1973 com muitas saudades do Brasil, sem
nunca ter voltado. Cheguei ao Brasil em 1997 com 26 anos, mais
ou menos a idade em que meu avô saíra do Brasil, no final da década de 1920. Eu já tinha viajado bastante pelo Leste Europeu,
Oriente Médio e África, porém nesses países nunca me senti em
casa, a diferença cultural era muito grande.
Cheguei ao Rio de Janeiro e, no dia seguinte ao desembarque,
peguei um ônibus para Salvador, Bahia, a fim de conhecer uma
cidade de tamanho mais humano e talvez de tamanho mais “belga”. O Rio me parecia uma enorme “Paris Tropical”.
261
parte 8 – cinema e televisão
Cartaz de Irene de
Nangy, bisavó de
Nicolas Hallet.
Nicolas Hallet trabalhando no filme “O Som ao Redor”.
Dessa época saíram filmes como As três histórias da Bahia,
de Sergio Machado, José Araripe Júnior e Edyala Iglesias, em 35
mm, ou, na tendência mais experimental, Capitália, de Danillo
Barata, em 16 mm. Fui microfonista no primeiro e diretor de fotografia no segundo.
Hoje a realidade no Nordeste é bem diferente, trabalhamos
muito com a formação dos profissionais de cinema. Fui professor
do Centro Audiovisual Norte e Nordeste – Canne –, durante anos
ministrei cursos de curta duração para quem já tinha “um pé na
área” do audiovisual. Esses cursos e a criação de editais melhoraram muito a qualidade dos filmes do Nordeste.
O que me chamou para ficar no Nordeste foram as pessoas,
essa liberdade de pensamento, apesar de uma realidade “pesada”
em comparação com a Bélgica. O filme de Damien Chemin e
Nicodème de Renesse, Lampião, sonho de bandido, retrata bem
esse universo livre e pouco racional.
Com Simone Dourado, minha esposa, além de dividir a captação de som, como no filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao
redor, melhor som no festival de Gramado, faço filmes documentários do tipo observacional, como o Carro de boi, melhor filme
do festival 5 Minutos de Salvador, ou o Seca Verde, melhor filme
baiano do festival Cachoeiradoc. Nesse filme acompanhamos a
família de um pequeno agricultor, dentro do seu quotidiano, durante um mês.
Hoje estamos morando em Olinda e participando, em Recife
e Salvador, de vários grupos de cineastas. Um belo exemplo desse
cinema coletivo é o filme O menino do 5, de Wallace Nogueira
e Marcelo Matos, melhor curta do festival de Gramado 2012, no
qual fiz o som, a fotografia, junto com o Wallace, e a Simone fez
a direção de arte.
Trocar a Bélgica pelo Brasil, no meu caso pelo Nordeste, me
fez arriscar uma aventura de vida mais livre, menos convencional,
baseada na fascinação que eu tenho pelo Nordeste, que o cinema
me possibilitou conhecer a fundo. Não consigo ficar muito tempo
nas grandes cidades, é o interior que me dá as chaves das grandes
questões da vida.
O primeiro contato com o Nordeste acendeu em mim uma
sensação diferente. Senti-me como um imigrante de última geração e não exatamente como um estrangeiro. Faço muitas fotos e
um dos meus grandes trabalhos de fotografia, que resultou em um
livro, Nordeste feito à mão, foi feito durante a filmagem de uma
série de documentários sobre o artesanato nordestino. Rodamos
mais de 40 mil quilômetros. Nessa viagem descobri a riqueza, a
cultura, a música e as tradições do Nordeste. Cheguei a Salvador
num momento-chave. Era a retomada do cinema baiano, após
dez anos sem que quase nada tivesse sido rodado. A maioria dos
técnicos tinha ido embora para o Sudeste do país ou mudado de
profissão. Nesse contexto, acabei me especializando em captação
de som e direção de fotografia. Tinha feito, em Bruxelas, um curso de cinema na Académie des Beaux Arts de Molenbeek, que me
ajudou muito. Produtores locais tinham interesse em profissionais
locais, sem ter de chamar pessoas do eixo Rio–São Paulo cada vez
que um filme era rodado. Em Salvador, nessa época, havia duas
tendências na produção cinematográfica: a tendência industrial,
criando “set de filmagem com equipe grande e uma certa hierarquia entre as pessoas”, e outra tendência, mais próxima da vídeo-arte ou da turma do super 8 dos anos 1980.
Rodamos muito, operei muitas câmeras 16 mm e gravadores
de som DAT. Foi um processo doloroso; nessa época não havia os
incentivos culturais que existem hoje, os filmes demoravam muito
para ficar prontos. Em todas as áreas do cinema as pessoas estavam
começando ou recomeçando a filmar. Estourava-se os orçamentos.
Às vezes nem havia orçamento. A gente bancava três latas de negativos 16 mm e pronto. E a revelação? E a telecinagem? E a mixagem? Tem filmes, curtas e longas-metragens, que demoraram mais
de três anos entre o momento de serem filmados e a finalização.
262
televisão
A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para os belgas
Daniela Rocha
C
ena 1: “O maior problema da Favela da Rocinha não é o
tráfico de drogas. É a falta de oportunidade”, assim uma das
moradoras da comunidade tentava explicar à equipe de TV belga
os desafios de um país cheio de desigualdade, como é o Brasil.
Cena 2: “Nosso momento é agora. Faremos deste país campeão
na Rio 2016”, explicou à mesma equipe o presidente da Confederação Nacional de Natação, um dos esportes em que o Brasil tem
tradição de medalha olímpica (para além do “futebol-indústria” e
do judô, nos quais o Brasil é celeiro de bons atletas).
Cena 3: “Avisa ele que pupunha crua é veneno”, pediu o feirante do tradicional mercado popular Ver o Peso, em Belém, no
Pará, ao ver o chef de cuisine belga levar à boca essa fruta típica
da região, normalmente consumida após cozida em água e sal e
apreciada sem casca, acompanhada de um cafezinho.
Cena 4: “O que me surpreende é o otimismo do povo mesmo
diante dos problemas”, do presidente da Unizo, organização para
pequenas e médias empresas na Bélgica, ao conhecer algumas experiências brasileiras na área de tecnologia e empreendedorismo.
Cena 5: “Vou comentar sobre o politeísmo no Brasil”, tentativa
belga de compreender o sincretismo religioso no país, felizmente
esclarecido antes da TV filmar o comentário.
Cena 6: “Isto é uma loucura”, comentário de um artista plástico belga ao visitar o Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho,
Minas Gerais, local que reúne em suas instalações e em seu jardim botânico obras dos mais renomados artistas contemporâneos
do mundo.
Cena 7: “Menina, cê tá de parabéns! Nunca ninguém traduziu
tão bem o que eu falo!”, do cantor e compositor brasileiro Tom Zé,
a quem aqui vos escreve, durante entrevista para a equipe de TV
belga que tentava em vão entender suas complexas explicações
sobre a Tropicália, importante movimento artístico brasileiro iniciado em 1967, do qual foi um dos idealizadores.
Cena 8: “Ah, eu adoro ter um marido machão”, frase repetida à
exaustão à equipe de TV belga que buscava entender o fenômeno
(ultrapassado) do latin lover, sem perceber que a mulher brasileira ganha autonomia, e que um homem machão não é o mesmo
que um machista.
Cena 9: “É tanta água que a poluição da cidade se dilui”, bió­
loga tentando dar ideia da imensidão do Rio Amazonas, após,
diante da equipe de TV belga, coletar água do rio em Manaus
para análise.
Cena 10: “Vamos tratar do populismo no Brasil”, proposta
inicial da equipe belga para tentar explicar a política do então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus projetos sociais. Depois de esclarecido, o termo “populismo” foi trocado por “governo popular”.
Todas as cenas acima aconteceram nos bastidores das filmagens da série de documentários Brazilië voor Beginners, levada ao
ar pelos canais belgas flamengos TV Canvas (2010) e Eén (2011).
A ideia de revelar o Brasil para o público belga integrou um
projeto dedicado aos países do Bric. Depois de China voor Beginners e India voor Beginners, foi a vez do Brasil, seguido da Rússia.
O formato consistia em ter uma apresentadora que ajudasse um
especialista belga flamengo a compreender o país. Eu fui a jornalista escolhida para apresentar o Brasil aos “experts” belgas que
viajaram a uma determinada capital para conhecer o tema da sua
especialidade no Brasil e, evidentemente, para travar contato com
uma realidade distinta da belga flamenga.
Foram quatro meses de filmagem que me permitiram ir a recantos onde nunca havia chegado. E, se até para brasileiro é difícil
entender o Brasil com sua diversidade e suas contradições, para
alguns estrangeiros isso se torna, a curto prazo, quase impossível.
Pois até o roteiro da série às vezes metia os pés pelas mãos... Uma
das pérolas estava logo no primeiro script, que explicava que os
militares da ditadura só saíram do poder em troca de latifúndios,
e sugeria que esses coronéis até hoje determinam os rumos políticos do país... Poderia até ser verdade se a ditadura militar não
tivesse acontecido entre 1964 e 1985, e os chamados coronéis de
engenho do Nordeste, vivido no Brasil Colônia, período áureo de
exportação de açúcar, entre os séculos 16 e 17.
Apesar do esforço, nem sempre os episódios da série se revelaram verdadeiramente esclarecedores ao público espectador. País
dos contrastes, o Brasil naturalmente desperta sentimentos múltiplos a seu respeito... Entre reportagens e resenhas publicadas na
263
parte 8 – cinema e televisão
época da série de TV, tomei de forma aleatória dois exemplos.
Enquanto uma revista (Uit Magazine) anunciava na capa Brazilië
is Hot, que remetia a um dossiê de 12 páginas com reportagens
sobre o país, uma das resenhas críticas sobre a série foi publicada pelo site Humo.be com o sugestivo título de Cartões Postais
do Inferno (Ansichtkaarten uit de hel). Compreensível, uma vez
que o primeiro episódio a ser levado ao ar teve como tema a
criminalidade no Rio de Janeiro, com imagens (de arquivo) de
tiroteio nas favelas, e entrevistas com policiais, criminalistas e
educadores que vivem uma realidade de grande violência física
e psicológica...
Chegaram a me explicar que para que o público belga entendesse a situação no Rio de Janeiro eu deveria compará-lo à Faixa
de Gaza... Eu acreditava que essa comparação mais confundia
que esclarecia (porque os conflitos urbanos do Rio de Janeiro não
têm natureza de guerra civil); felizmente essa frase foi descartada.
Depois desse tema, os outros foram bem mais amenos e mostravam um Brasil que, apesar das adversidades, esbanjava criatividade e bom humor, tanto nos negócios e empreendimentos das
mais variadas naturezas, como na liberdade de culto do chamado maior país católico (“não praticante”) do mundo, ou na sua
culinária amazônica de peixes e temperos locais, contrastado ao
universo musical que derruba fronteiras, ou no ajuste da relação
entre homens e mulheres em uma sociedade que já foi patriarcal.
Convidada a escrever um livro com o mesmo título e os mesmos temas da série, vi nele a oportunidade de revelar várias situa­
ções, inclusive cômicas, que vivi nesse rico convívio de diálogo
entre Brasil e Bélgica. Tive como meta dar a minha visão de brasileira sobre o meu país e publicar entrevistas que realizei mesmo
quando as câmeras estavam desligadas e que renderam momentos
emocionantes. Um deles foi a conversa que tive com um biólogo
do Ibama de Manaus sobre a trágica morte de um filhote de peixe
boi que atrapalhava o abate de sua mãe durante a temporada de
pesca desse grande mamífero de água doce, tradição no Amazonas
que colocou a espécie em risco de extinção. Outro, foi a história de
um caçador de macacos que agradeceu por ser preso e confessou
que tinha pesadelos com os gritos das fêmeas e filhotes ao verem
os machos mortos a tiros cairem das árvores e serem recolhidos
das águas do Rio Amazonas. Ou ainda minha conversa com uma
família do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra em
Rezende (RJ), e me surpreender com o nível de participação e de
destemor das crianças, politizadas desde o berço, na busca pela
reforma agrária. Outro ainda foi minha curiosidade para entender a realidade da violência urbana no Rio de Janeiro e de poder
confessar o meu medo em entrar à noite com a equipe de TV em
uma das maiores favelas da cidade para realizar uma entrevista
com um ex-traficante e ex-usuário de crack. Existem territórios
onde a licença para entrar não significa garantia de segurança. Mas
felizmente, no momento em que chegamos, fomos “recepcionados” por uma chuva torrencial e não havia vivalma nas ruelas da
Rocinha, quase às dez horas da noite.
Durante as filmagens, em nenhum momento houve censura
ou restrição imposta à equipe belga. O máximo que ocorreu foi
um pedido do diretor do presídio de Bangu I para que não filmássemos os presos nas celas (para garantir o direito à privacidade
deles). Mesmo assim, eles foram filmados, e seus rostos, exibidos,
sem que isso trouxesse problemas posteriores.
Pensei com meus botões: em que país do mundo uma equipe
de TV estrangeira ousaria pedir à polícia aérea para acompanhar
seus voos em helicóptero por tempo ilimitado, além de realizar em
inglês entrevistas em terra e em ar, respondendo questões que iam
da criminalidade das ruas à corrupção nas corporações da polícia...
Os policiais do GAM (Grupamento Aéro-Marítimo) do Rio de
Janeiro fizeram tudo isso e chegaram a emprestar seus uniformes
oficiais para uso da equipe a ser filmada e do diretor.
Essa abertura, essa sinceridade, esse gosto pela exposição,
típicos do Brasil, foram registrados, mas nem sempre bem aproveitadas na edição final na TV... Porque, para muito além da
criminalidade, que foi o tema mais controverso da série, o meio
ambiente, a religião, a política, o empreendedorismo, a gastronomia, o esporte, a sexualidade, a música e as artes do Brasil se
revelavam um campo imenso a ser explorado e mostrado, com
seus personagens que aos olhos belgas pareciam tão estranhos
que logo se tornavam simpáticos.
No episódio sobre a sexualidade, houve espanto em ver que
homens e mulheres falam sobre sua intimidade com tamanha
desinibição... Ali, perdeu-se a oportunidade de mostrar como a
sociedade brasileira vive um tuning point, com mulheres que conquistaram autonomia financeira e sexual, definindo parceiros, número de filhos e quando tê-los. Em paralelo, o homem, que antes
era o provedor, tenta se reposicionar e aprender um novo papel
que, entretanto, não está claro para ele.
Em empreendedorismo, o espanto ocorre porque, aos olhos
belgas, seria impensável iniciar um negócio com quase nada de
recurso financeiro. E o Brasil mostra que muitas das experiências
que começam precárias conseguem apoio para corrigir seus produtos e ingressam no mercado com excelente retorno a médio
prazo. A cultura de arregaçar as mangas e ir à luta, aceitando os
riscos, surpreendeu os belgas. Por outro lado, o jeitinho brasileiro
de improvisar ou de pensar que no final tudo vai dar certo prova
que o país precisa aprender que planejamento e pesquisa urgem
em fazer parte da rotina de quem quer entrar em um mercado
cada vez mais competitivo.
A percepção da música brasileira na série, tema filmado em
São Paulo, optou por mostrar uma música de raiz, do folclore, um
pouco do samba, do jazz, do hip-hop, do rock e da MPB, que revelou um belo recorte no caldeirão de sons e ritmos paulistas. Na
gastronomia, a opção foi registrar a fantástica culinária amazônica,
conhecida principalmente por quem é da região, já que demanda
ingredientes locais e peixes frescos encontrados apenas ali.
Minha pesquisa sobre a comida amazônica foi intensa, já que
eu mesma, nascida no Estado de São Paulo, pouco conhecia dos
sabores amazônicos. Tive dificuldade em decorar tantos nomes de
origem indígena das frutas, ervas, temperos e pratos típicos, e mais
ainda em descrever o sabor e o preparo deles, já que até o açaí de
polpa congelada servido com guaraná em todo o Brasil não tinha
264
televisão
nada a ver com o creme do açaí fresco consumido na região com
farinha de mandioca.
A série de TV e o livro Brazilië voor Beginners não satisfizeram
por completo a curiosidade dos belgas para entender o país. Ao
longo do ano de 2011, fui chamada a fazer dezenas de palestras,
em português, inglês e francês, para belgas em Antuérpia, Gand,
Bruges, Oostende, Aalst e Bruxelas. Alguns já haviam visitado o
Brasil ou tinham familiares por lá. Outros, pouco sabiam, mas queriam entender que tipo de fenômeno é esse, de um país que, em
algumas décadas, deixa de ser considerado de terceiro mundo e
passa a figurar entre as oito maiores economias do planeta (e ganha
status e poder nas mesas de negociação), um país que inicia um
caminho por maior inclusão social, um país que possui um estratégico mercado consumidor, um país que é percebido como amea­
ça aos outros quando o tema é agrobusiness ou biocombustível.
De repente, notei nos belgas que eles mesmos deixaram os
estereótipos sobre o Brasil de lado (o carnaval, o futebol e a caipirinha eram meras alegorias, e deixaram de ser o main issue que
traduziu durante tantos anos o Brasil). Sem negá-los, busquei contar da minha experiência, assumindo as precariedades, mas sem
ocultar o orgulho que tenho das conquistas do país.
Um dos comentários que mais me chamou atenção foi de um
dos participantes em Bruges. “Pensava que você não tinha muita
coisa a dizer. Mas quando você fala, parece que a gente encontra,
enxerga e sente o Brasil.”
Daniela Rocha é jornalista, autora do livro Brazilië voor Beginners
(Witsand Uitgevers) e apresentadora da série de TV de mesmo título
exibida pela TV Canvas em 2010.
265
parte 8 – cinema e televisão
266
pintura e escultura
parte 9
Artes Plásticas
267
parte 9 – artes plásticas
268
pintura e escultura
Rastros flamengos no Barroco mineiro
A l e x Fe r n a n d e s B o h r e r
A
s gravuras tiveram papel preponderante na arte colonial brasileira. Era comum os artistas locais se apropriarem de ilustrações europeias, usando-as como fonte de inspiração e padronização iconográfica. Já que as tipografias eram proibidas no Brasil
colônia, tratava-se de impressos vindos de outras partes do mundo
(e não somente de Portugal). Nos arquivos paroquiais mineiros
localizei centenas de impressos ilustrados remanescentes, todos
europeus. Tudo leva a crer que, durante o século XVIII e ainda
“Santa Ceia”, de Manoel da Costa Ataíde, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, MG.
269
parte 9 – artes plásticas
no XIX, esse número deva ter ascendido a dezenas de milhares, o
que bem demonstraria a magnitude do comércio livreiro entre o
Velho e o Novo Mundo.
Os livros ilustrados, cujos mais belos exemplares saíam dos
prelos de Antuérpia, especialmente da Tipografia Plantiniana,
popularizaram e intercambiaram, pela primeira vez na história,
imagens feitas em série. Das tipografias, os livros eram enviados
aos quatro continentes. No mundo luso-brasileiro, suas belas ilustrações serviram de modelos iconográficos a artistas locais, ainda
mais por serem cópias de obras de grandes mestres. Dessa maneira, as pinturas de vários artistas de Minas Gerais têm muita semelhança formal com determinadas criações europeias. É possível ver
influências tão diferentes como Rafael (1483-1520) ou Abraham
Bloemaerte (1566-1651). Todavia, aquele que mais influenciou
os pintores mineiros foi Rubens (1577-1640), cuja obra teve muitas versões impressas e inspirou, por sua vez, toda uma geração
de gravadores.
No antigo Colégio do Caraça, localizado no Quadrilátero Ferrífero, zona de intensa exploração aurífera na antiga capitania de
Minas Gerais, encontra-se hoje, nos corredores neogóticos da igreja local, uma interessante ‘Santa Ceia’ do aclamado pintor Manuel
da Costa Ataíde (1762-1830), concebida nos últimos anos de sua
vida. O colorido, a musculatura e o planejamento são típicos de
Ataíde, mas, no cerne desta sua criação, está, sem dúvida, o uso
de uma ou mais gravuras europeias.
Por volta de 1630, Rubens concebeu algumas ‘santas ceias’,
todas formalmente aparentadas entre si, com poucas variações.
O principal exemplar é o que se conserva na Pinacoteca di Brera,
em Milão, que em muito lembra a citada pintura mineira: o conjunto equitativo dos apóstolos em torno da mesa; o Cristo, com
olhar piedoso voltado aos céus; o ato de abençoar os pães; o olhar
indagador de Judas à direita (mesma posição dos outros estudos de
Rubens e da ‘ceia’ de Ataíde). Em suma: mesmo com diferenças
formais e pictóricas (penumbrismo de Rubens X colorido vivaz
de Ataíde), podemos dizer que há um elo entre as concepções do
mestre europeu e o pintor mineiro.
Certamente Ataíde não viu pessoalmente qualquer obra de
Rubens, mas pelas gravuras pôde ter ideia precisa do que havia sido
produzido na Europa, por este e por outros artistas, contemporâneos ou não do próprio Ataíde. Prova disso está em outra ‘santa ceia’
concebida pelo mestre mineiro: na ilharga da capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto o pintor representou
novamente a última refeição de Cristo, esta nitidamente ligada a
uma gravura de missal feita na Tipografia Régia, em Lisboa, e circulante em Minas nos últimos anos do século XVIII e inícios do
XIX, justamente a época em que Ataíde produziu as obras citadas
aqui. É evidente nessa gravura lisboeta a influência do desenho
rubensiano, típico das gravuras de Plantin.
Cabe frisar que, além dos missais dos arquivos paroquiais, Ataíde também dispunha de algumas bibliotecas ricamente ilustradas,
“Santa Ceia”, de Silva F., gravura de Missal lisboeta, inspirada em Missal de
Plantin, na Paróquia Senhora do Pilar.
como a do próprio Colégio do Caraça, tida como das mais importantes do Brasil por conter obras de acentuado valor histórico e artístico, algumas delas, inclusive, incunábulos ainda do século XV.1
Alex Fernandes Bohrer, Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estudo sobre a influência das gravuras europeias na pintura mineira, prepara um doutorado sobre a talha barroca em Minas Gerais. É professor efetivo do
Instituto Federal de Minas Gerais e, como historiador da Prefeitura
Municipal de Ouro Preto, publicou sobre o patrimônio desta cidade.
Notas
1.
270
Para mais informações sobre os aspectos esboçados aqui ver Bohrer, Alex Fernandes.
“Os Missais de Plantin e Outras Reminiscências Flamengas no Barroco Mineiro”. In:
Thomas, Werner e Stols, Eddy (org.). Un Mundo Sobre Papel. Libros y Grabados Flamengos em El Império Hispanoportuguês (siglos XVI-XVIII). Antuérpia: Acco, 2009,
pp. 261 a 279.
pintura e escultura
Pedro Américo de Figueiredo e Mello:
conexão Ciência & Brasil & Bélgica
Madalena Zaccara
onde se inscreveu na Faculdade de Ciências da Universidade de
Bruxelas.
Entretanto, um intervalo de tempo e trabalho se fez necessário antes de prosseguir seus estudos científicos naquele país. Em
1862, ele terminou os três anos de estudos em Paris aos quais tinha
direito enquanto pensionista do imperador. Pedro II, porém, não
prorrogou seu prazo na Europa. Ordenou-lhe o retorno ao Brasil.
Era necessário que ele concorresse ao cargo de professor de Desenho Figurado na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
Janeiro. Ele se submeteu e comunicou a seu protetor que partiria
para o Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1864 obedecendo às
ordens imperiais.
Volta ao país, presta exames, é aprovado e consegue uma nova
licença. Agora sem vencimentos. Por sua conta e risco. Viajou, então, durante algum tempo, por uma grande parte da Europa. Para
sua sobrevivência pesquisava por encomenda, fazia ilustrações para
teses, pequenos retratos, retoques em fotografia. Enfim, qualquer
trabalho que lhe proporcionasse algum rendimento financeiro.
Sempre dividido entre arte e ciência, Américo chegou a Bruxelas com o objetivo de completar seus estudos. Em 1867, ele foi admitido no doutorado da Universidade de Bruxelas para o período
escolar de 1867-1868. Durante seus estudos passou pelas mesmas
dificuldades financeiras sofridas em suas andanças. Finalmente,
em 22 de julho de 1868 recebeu pela Universidade de Bruxelas o
diploma de doutor em Ciências Naturais.
Após este fato ele se dedicou cada vez mais aos estudos. Ansiava obter o grau de professor doutor adjunto da Universidade Livre
de Bruxelas. Para tanto, defendeu em 13 de janeiro de 1869 a tese
intitulada A Ciência e os Sistemas; questões de História e de Filosofia Natural. Obteve um ótimo conceito para o cargo pretendido.
O trabalho em questão foi publicado em 1869 em Bruxelas e foi
dedicado a Pedro II, imperador do Brasil.
Na Bélgica, Américo pretendia o reconhecimento científico
que acreditava não obter de seus compatriotas. Afinal, como afirma
na introdução de sua tese, “a situação moral e intelectual da Europa difere bastante da nossa”.2 Sua necessidade de ampliação do saber e a necessidade de reconhecimento deste o deixava sem diálogo
em seu país natal. A necessidade de expansão de horizontes aliada
ao colonialismo cultural europeu marcante em seu século o fazia
orgulhar-se de ter conseguido obter esse reconhecimento de uma
universidade europeia. Suas conquistas, entretanto, não escaparam
da inveja e da maledicência de seus contemporâneos brasileiros.
Para ilustrar o impacto que suas conquistas científicas na Universidade de Bruxelas geraram – principalmente após suas exposições europeias – no meio intelectual brasileiro dentre as vitórias
atribuídas ao pintor, na polêmica midiática de 1879, que eram con-
“Observar é procurar ver nos fatos tudo o que eles nos podem oferecer
deles mesmos, sob todos os ângulos e em todos os seus detalhes.”1
N
a pequena cidade brasileira chamada Areia, perdida nas serras
do brejo paraibano, nasceu Pedro Américo de Figueiredo e
Mello em 29 de abril de 1843. Filho de Daniel Eduardo de Figueiredo (pequeno comerciante que gostava de tocar violão para
seu lazer) e de Feliciana Cirne de Figueiredo, ele era membro de
uma família com uma inclinação especial para as artes, que, por
sua vez, o gerou: um dos mais conhecidos artistas brasileiros e um
homem que se notabilizou também por sua busca incessante do
conhecimento em todas as suas vertentes. Américo manifestou cedo sua vocação artística. Seus primeiros desenhos, nas paredes da
loja de seu pai, impressionavam seus frequentadores. Uma criança especial nascida no interior profundo do Brasil do século XIX.
Sua curiosidade em relação a outros campos do conhecimento também se manifestou cedo em sua vida. O naturalista francês
Louis Jacques Brunet chegou a Areia em 1852 à frente de uma
expedição científica que fazia pesquisas na região para o Museu
Nacional. A cidade mostrou então ao estrangeiro sua principal
atração: a criança. Tanto o naturalista quanto o desenhista da expedição (o alemão Bindseil) se entusiasmaram com aquele talento
natural e propuseram levá-lo como membro da equipe. Os anos
que passou na companhia daqueles pesquisadores nos sertões do
Nordeste brasileiro marcaram a criança e o futuro cientista. Brunet o recomendou, após a expedição, ao presidente da província
da Paraíba, Sá e Albuquerque, e Américo, ainda criança, partiu
– subvencionado pelo governo brasileiro – para a capital do País,
o Rio de Janeiro, aonde chegou em dezembro de 1854. Ele inscreveu-se na Academia Imperial de Belas Artes em 1855 onde
estudou até seus 15 anos quando se sentiu pronto para ir estudar,
como era de praxe, na Europa.
O Imperador Pedro II lhe concedeu uma bolsa de estudos e
Américo partiu para Paris em 1859. Tinha 16 anos de idade. Na
bagagem ia uma carta de seu antigo professor, Manuel de Araújo
Porto Alegre, para Victor Meirelles de Lima que, na época, era
bolsista da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e
estudava em Paris.
Pedro Américo se inscreveu na Ecole des Beaux Arts em 6
de outubro de 1859. Um ano depois de sua chegada, se inscreveu também no curso noturno da Escola Imperial e Especial de
Desenho e Matemática, Arquitetura e Escultura de Ornamentos
para as Belas Artes na Indústria e, em 1861, se inscreveu no curso
preparatório para o Baccalauréat ès Sciences no Instituto Ganot.
O ecletismo de suas aspirações o acompanhou durante toda sua
vida e foi responsável por sua futura estadia na Bélgica, em 1862,
271
parte 9 – artes plásticas
sideradas duvidosas, uma das mais discutidas foi o diploma obtido
na Universidade de Bruxelas. Américo, orgulhoso de sua qualidade
de doutor (posteriormente ele chegou a assinar alguns quadros como Dr. Pedro Américo), escreveu ao diretor da universidade belga,
G. Tiberghien, relatando as acusações que ele (e o seu diploma)
sofria. O diretor lamenta o fato em carta datada de 30 de setembro
de 1870. O próprio governador da província do Rio de Janeiro, João
Ramos Queirós, resolveu tom

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