Revista da ESPM MAI_JUN 2012

Transcrição

Revista da ESPM MAI_JUN 2012
Os pilares da democracia
José Gregori
A solução é educar, não proibir
Luiz Lara
Verdades inconvenientes
Renato Janine Ribeiro
revista da espm • volume 19 • ano 18 • edição nº3 • maio/junho 2012 • R$ 28,00
nem babá, nem big brother
A eterna luta do indivíduo contra o Estado
Regulamentação
e responsabilidade
A propaganda comercial
é vítima de bullying
Em defesa do Estado
Não cabe ao Estado dizer
como cada um deve ser
Interferência do Estado
na sociedade: uma visão
de marketing social
“Não é pelo temor do abuso
que se vai proibir o uso!”
Quem é o dono do Estado?
O jornalismo também
tem de prestar contas
à sociedade
Sociedade digital:
o individual versus
o coletivo
O direito de intervir na
sociedade é inerente ao
estado de direito?
O paradoxo
da democracia
O espelho da sociedade
contemporânea
A era da cooperação
instituição mantenedora
conselho deliberativo
associados
• Armando Ferrentini – Presidente
• Alex Periscinoto
• Armando Strozenberg
• Dalton Pastore
• Décio Clemente
• João Vinicius Prianti
• José Carlos De Salles Gomes Neto
• Luiz Marcelo Dias Sales
• Luiz Lara
• Roberto Duailibi
• Sérgio Reis
• Adriana Cury
• Alex Periscinoto
• Altino João de Barros
• Antonio Fadiga
• Antonio Jacinto Matias
• Armando Ferrentini
• Armando Strozenberg
• Dalton Pastore
• Décio Clemente
• Francisco Gracioso
• Jayme Sirotsky
• João Carlos Saad
• João De Simoni Soderini Ferracciù
• João Roberto Marinho
• João Vinicius Prianti
• José Bonifácio de Oliveira Sobrinho
• José Carlos De Salles Gomes Neto
conselho fiscal
Titulares
• Antonio Jacinto Matias
• Luiz Carlos Brandão Cavalcanti Jr.
• Percival Caropreso
4
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
• José Heitor A­ttilio Gracioso
• Luiz Carlos Brandão Cavalcanti Jr.
• Luiz Carlos Dutra
• Luiz Lara
• Luiz Marcelo Dias Sales
• Marcello Serpa
• Octávio Florisbal
• Orlando Marques
• Percival Caropreso
• Petrônio Corrêa
• Ricardo Fischer
• Roberto Civita
• Roberto Duailibi
• Roberto Martensen
• Saïd Farhat
• Sérgio Reis
• Waltely Longo
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para o aperfeiçoamento da teoria e da
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e condições, favor entrar em contato
com a coordenadora editorial.
editorial
Estado versus sociedade
A
té que ponto o Estado deve interferir ou mesmo coibir a liberdade de
expressão e o comportamento social do indivíduo? Ao levantarmos
essa questão como tema da presente edição da Revista da ESPM, não
imaginávamos que provocaríamos tanta controvérsia nas opiniões entre nossos
entrevistados e colaboradores. Estamos diante de um amplo espectro que vai desde a posição dos regimes totalitários, sempre propensos a controlar a sociedade
e a situação idílica do homem em seu estado natural que regride à miséria moral
e material, como bem lembra Roberto Civita (ver artigo na página 10) citando o
filósofo inglês Thomas Hobbes.
De modo geral, quanto mais absolutista for o regime, maior será a tendência a proibir,
coibir ou condicionar a liberdade de expressão e de comportamento dos indivíduos.
Mas não se pode negar que todos os regimes políticos, totalitários ou democráticos,
interferem e limitam a liberdade do indivíduo na sociedade, sob os mais diversos
pretextos, muitos deles perfeitamente legítimos. Adolf Hitler, por exemplo, dizia
que as multidões podem gerar forças incontroláveis, mas tornam-se dóceis quando
sabemos conduzi-las. No outro extremo, Winston Churchill, adversário de Hitler
e defensor da democracia, dizia que não existe opinião pública, mas, sim, opinião
publicada, e que é lícito aos governantes fazê-la pender a seu favor.
Esse é um dilema que possivelmente acompanhará a humanidade até o fim de
sua saga neste mundo. Enquanto isso, queiramos ou não, teremos de conviver
com limitações e proibições que nos parecem excessivas, mesmo nos regimes
democráticos. Por exemplo, em nome da segurança e do bem-estar públicos,
continuaremos a conviver com a proibição do fumo, a obrigatoriedade do uso do
cinto de segurança, a proibição da propaganda de medicamentos, as barreiras
à propaganda de produtos infantis e muitas outras. Mas há uma delas que não
consigo aceitar: o famigerado plugue de três pinos nos novos aparelhos elétricos
e eletrônicos. Talvez nunca faça a substituição das tomadas lá em casa, deixando
o assunto para ser resolvido pelos meus herdeiros.
No entanto, lembremos sempre que a democracia, que nos é tão cara, depende de
três coisas sobre as quais não podemos transigir: liberdade de expressão, organização e propriedade. Haverá sempre momentos em que teremos de dar um “basta!”, e
nesses momentos será imprescindível termos ao nosso lado uma imprensa livre e
vigilante, cujo rabo está preso apenas com o leitor. Afinal, como já dizia Maquiavel,
o poder sustenta apenas o poder.
Francisco Gracioso
Presidente do Conselho Editorial
PARA ASSINAR, LIGUE: (11) 5085-4508 OU MANDE UM FAX PARA: (11) 5085-4646 - www.espm.br/revistadaespm
índice
Artigos
Regulamentação
e responsabilidade
Roberto Civita
O equilíbrio entre interesses comerciais
e bem-estar da sociedade é essencial
para o exercício da democracia. Ao
Estado cabe fazer valer as regras
do jogo. Esta equação tem sua base
fincada na liberdade de imprensa e na
livre iniciativa
Página 10
A propaganda comercial
é vítima de bullying
Gilberto Leifert
No Brasil, a liberdade de expressão
continua ameaçada por inúmeros
projetos de lei que visam coibir a
publicidade em diversos setores da
economia. Na tentativa de reverter este
quadro, a indústria da comunicação
investe na autorregulamentação
Página 22
Não cabe ao Estado dizer
como cada um deve ser
Ives Gandra da Silva Martins
Na verdadeira democracia, Estado,
sociedade e indivíduo convivem, em
liberdade, respeitando as leis. Os dois
primeiros não podem interferir no jeito
de ser e de pensar do indivíduo
Página 32
Página 28
Quem é o Estado? A redação
das regras que dão poder e
limitam a sua ação foram escritas
de forma consensual, democrática
e popular? A história do Brasil diz
que não. Aqui, as elites redigiram
esse contrato de acordo com sua
visão de mundo
“Não é pelo temor do abuso
que se vai proibir o uso!”
Anna Gabriela Araujo
Como a indústria da comunicação
tem reagido contra as tentativas do
poder público em proibir, restringir e
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censurar a liberdade de expressão
comercial, principalmente nas áreas
de alimentos, bebidas alcoólicas,
medicamentos, produtos agrícolas e
proteção de dados pessoais
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Quem é o dono do Estado?
Heródoto Barbeiro
Página 40
O jornalismo também
tem de prestar contas
à sociedade
Marina Dias
O papel da imprensa, do Judiciário
e dos operadores do direito na
espetacularização do crime
Página 52
Sociedade digital: o indivíduo
versus o coletivo
Patricia Peck
No Brasil, há um paradoxo natural entre
o livre arbítrio e a proteção do Estado.
As próximas gerações terão de fazer a
difícil escolha entre ter mais privacidade
ou mais segurança coletiva
Página 58
Em defesa do Estado
Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos
A evolução da relação entre Estado e
economia, com base no conceito de
que o homem não é um animal social.
Ao longo dos anos, estas conexões
e atividades têm leis próprias, que
possuem uma função específica no
sentido da vida social
Página 66
Interferência do Estado na
sociedade: uma visão de
marketing social
Daniel Kamlot
Os fundamentos do marketing social
para o bem-estar da sociedade. Agindo
de forma responsável e seguindo esses
conceitos, o governo contribui para o
desenvolvimento de uma comunidade
saudável, correta e que age de acordo
com princípios éticos
O paradoxo
da democracia
Entrevistas
Eduardo Oyakawa
A liberdade moderna baseia-se
numa busca exaustiva por novas
experiências sensoriais. Como
entender a função do Estado diante
desse cenário comportamental?
Página 92
14
O espelho da sociedade
contemporânea
Verdades
inconvenientes
Paulo Roberto Ferreira da Cunha
Diante das incessantes
transformações que vive o
ambiente da comunicação, é
oportuno compreender a sociedade
e o sujeito contemporâneo pela
ótica dos pensadores sociais
contemporâneos e da psicanálise
Renato Janine Ribeiro
Página 96
44
Página 78
O direito de intervir na
sociedade é inerente ao
estado de direito?
A era da cooperação
Jonas Cardona Venturini e
Marcello Noetzold Mafaldo
As relações jurídicas entre Estado e
sociedade a partir da interferência do
poder público nas atividades privadas
com o objetivo de determinar a real
extensão do termo interesse público
A contribuição das redes de
cooperação para o desenvolvimento
de negócios entre micro, pequenas
e médias empresas, que estão
compondo uma nova economia
institucional, com base em uma
estrutura híbrida
Página 84
Página 102
Denise Fabretti
A solução é educar,
não proibir
Luiz Lara
72
Seções
Leitura recomendada
Sumário
English abstracts
Ponto de Vista
106
110
112
114
Os pilares
da democracia
José Gregori
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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liberdade de imprensa
Regulamentação e
responsabilidade
A democracia se alimenta da livre circulação de ideias, que, por sua vez, não existe
sem a presença da livre iniciativa. Esse é o tripé que sustenta uma sociedade aberta,
na qual responsabilidade caminha junto com liberdade de expressão
Por Roberto Civita
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
unicamente às forças de mercado todas as
complexidades da produção e distribuição,
como forma de garantir a perfeita alocação
de recursos. Não é preciso muita reflexão
para concluir que nada de muito útil para a
compreensão da realidade sairá desse cabo
de guerra artificial entre a mão de ferro do
Estado e a mão invisível do mercado.
Portanto, o que realmente interessa para
entender mos e escapa r mos da a ng úst ia
provocada pelo dilema entre os limites e os
papéis do Estado e dos indivíduos inseridos
em uma economia de mercado, não se passa
nas extremidades habitadas por mentes radicais e, felizmente, minoritárias.
zirconicusso
A
nda fora de esquadro a fundamental questão sobre os limites e os
papéis do Estado e dos mercados
nas sociedades atuais. A polarização excessiva das posições é tão potente
que parecem predominar apenas os extremos. De um lado estão os defensores do Estado centralizador, onipotente, onipresente e
capaz de garantir a perfeita harmonia social
descrita no famoso aforismo igualitário “de
cada um de acordo com sua habilidade, para
cada um de acordo com sua necessidade”. De
outro ficam os proponentes de uma sociedade
em que deveriam vigorar o individualismo
integral e a liberdade irrestrita, deixando-se
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O que interessa se passa no
cotidiano da vida das pessoas
de carne e osso que vivem em
países reais e não nas pólis utópicas dos totalitários do Estado
opressor, mas provedor, nem
nos campos de liberalismo total
dos individualistas devotos dos
mercados sem regras. Como
costumam dizer os economistas da escola de Chicago, para
desespero dos totalitários, o
experimento definitivo sobre
a viabilidade do Estado centralizador foi levado a cabo na
extinta União Soviética durante
75 anos no século passado, e
o resu ltado foi um desastre
de proporções astronômicas.
Para desânimo dos libertários
radicais basta a leitura do inglês
Thomas Hobbes (1588-1679),
para quem o homem em estado
natural – ou seja, não submetido
a leis, refratário aos contratos
sociais, impermeável aos constrangimentos morais e éticos
– está condenado a uma vida
Com a autorregulamentação, a iniciativa privada se
“solitária, miserável, sórdida,
adianta à fúria regulatória, muitas vezes inepta e crivada
brutal e curta”.
de ideologias do Estado, e consegue atender muito
Longe dos extremos, no mundo real, a vida é pactuada. A melhor às exigências dos consumidores
liberdade de ação de um é limitada pela liberdade de ação do
outro; as ambições de um são
limitadas pelas ambições do outro. As disputas indivi- a livre iniciativa. Portanto, o Estado que se pretende
duais são arbitradas pelo Estado que, idealmente, cui- moderno não deve mexer com essa simbiose perfeita,
da de fazer valer as regras do jogo sem favorecimentos. essa indissolúvel interdependência entre democracia,
No mundo real não existem garantias permanentes de liberdade de imprensa e livre iniciativa. Sem livre
que as regras serão aplicadas equanimemente pelos iniciativa não há concorrência, sem concorrência
agentes do Estado. Isso se define na política, campo não há publicidade e sem publicidade não sobrevive
em que o sistema democrático ainda não encontrou a imprensa livre. Esse ciclo virtuoso vem provando
rival. A democracia se alimenta da livre circulação de há mais de um século seu imenso valor como a viga
ideias, cuja manifestação mais conspícua é a liberdade mestra de sustentação das sociedades abertas – um
de imprensa que, por sua vez, tem como base material valor fundamental do homem que, infelizmente,
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
zirconicusso
liberdade de imprensa
O governo pode proibir as pessoas de
fumar? Não. Mas pode exigir delas que,
para manter seu direito de fumar, elas
se rendam aos direitos dos demais
que não querem respirar fumaça
involuntariamente
muitas vezes só é inteiramente reconhecido quando
as sociedades se veem privadas dele.
Não por outra razão a Constituição brasileira assegura em suas cláusulas pétreas a liberdade de expressão
como direito inalienável do povo. Aos poderes constituídos cabe assegurar que os direitos constitucionais
possam ser exercidos sem a interferência arbitrária dos
agentes do Estado ou de regulamentos e leis infraconstitucionais. Cabe reparar que os cidadãos e os órgãos
de imprensa e de publicidade, que, à primeira vista,
apenas desfrutam do direito constitucional à liberdade
de pensamento e expressão, têm também sua parcela
de responsabilidade. Desfrutar plenamente de direitos
constitucionais não significa regredir ao estado natural
– que para Hobbes equivalia à escravidão. O indivíduo
se liberta justamente por aceitar se submeter às regras
da convivência civilizada. A essa imposição eu chamo
“responsabilidade compartilhada” – o Estado zela pela
liberdade de expressão, as empresas de comunicação
valem-se dela dentro dos mais rigorosos critérios
de qualidade e transparência, enquanto os cidadãos
premiam os veículos tornando-se leitores, telespectadores e ouvintes ou os punem ignorando-os. Qualquer
tentativa de inverter a ordem desses papéis constitui
um risco para a democracia e tudo que ela representa.
O mesmo raciocínio vale para o que, acredito, seja o
papel ideal do Estado nas sociedades abertas. O governo
pode proibir as pessoas de fumar? Não. Mas pode exigir
delas que, para manter seu direito de fumar, se rendam
aos direitos dos demais que não querem respirar fumaça involuntariamente. O governo poderia até exigir
dos fumantes que arquem com os custos derivados de
seu hábito pagando um plano médico particular, de
modo a não sobrecarregar com sua escolha mórbida
o sistema de saúde público. O governo pode proibir
as empresas de venderem ou fazerem propaganda de
produtos alimentícios que contenham substâncias
comprovadamente nocivas nas quantidades contidas
nos pacotes? Não. Mas, na minha maneira de ver as
coisas, pode exigir que fabricantes e suas agências de
publicidade alertem os cidadãos a respeito dos riscos
que eles correm ao consumir tais produtos. Melhor
ainda é que os próprios produtores, espontaneamente,
alterem seus produtos e serviços para torná-los mais
saudáveis ou menos nocivos para o meio ambiente.
O que o Estado não deve fazer é chamar a si toda a
responsabilidade pelo que o indivíduo tem permissão
para fazer. Isso é arbítrio. Não é arbítrio exigir transparência e informação verdadeira sobre os produtos.
Ao aplicarmos sobre esses dilemas o princípio da
responsabilidade compartilhada, abrem-se novos e
promissores horizontes. O mais frutífero deles, a meu
ver, é a autorregulamentação. Com ela, a iniciativa
privada se adianta à fúria regulatória, muitas vezes
inepta e crivada de ideologias do Estado e consegue
atender muito melhor às exigências dos consumidores.
Os exemplos dessa atitude proativa se multiplicam aos
nossos olhos sem que os governos tenham tido que movimentar um único fiscal ou baixar qualquer portaria.
Para citar apenas alguns casos, fiquemos com a ação
da rede McDonald’s, que alterou seu cardápio para servir alimentos com menor teor de gordura e açúcares – e
mais ricos em fibras. A embalagem plástica do papel
higiênico Neve, da Kimberley-Clark, passou a ser feita
com plástico verde da Braskem, um produto com menor
impacto ambiental feito com 56% de matérias-primas
vindas de fontes renováveis. A Coca-Cola lançou a água
Cristal ECO, envasada em garrafas totalmente recicláveis, que podem ser amassadas, ocupando 37% menos
espaço no transporte depois do consumo.
Autorregulamentação exige bom-senso e responsabilidade por parte da iniciativa privada. A contrapartida
exigida dos órgãos do governo é lucidez e cautela, virtudes que permitam afastar os riscos das proibições e
regulamentações discricionárias. Com mais responsabilidade, todos saímos ganhando.
Roberto Civita
Presidente do conselho de administração
e diretor editorial da Editora Abril S.A.
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entrevista
Verdades
inconvenientes
“O
Brasil sempre lidou mal com sua
história. Nossas rupturas não são
para valer, mesmo quando deveriam ser. Mudamos tudo para manter tudo como estava, na célebre frase do romance de Lampedusa”, desabafa Renato Janine Ribeiro.
Professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo (USP), esse conhecido filósofo brasileiro é
especialista em apontar os erros e acertos da vida pública e
privada, principalmente sob o ponto de vista da ética. A base
de sua teoria está fincada no trabalho de outro filósofo, o inglês Thomas Hobbes, a quem Janine dedicou seu mestrado,
feito na década de 1970, na Sorbonne, e também sua tese de
doutorado na USP, em 1984.
Ex-professor visitante na Columbia University (Nova York),
escreveu diversos livros, como o premiado A sociedade contra
o social: o alto custo da vida pública no Brasil. Publicado pela
Companhia das Letras e Fundação Biblioteca Nacional, o título
– que discute a cultura e a sociedade brasileiras – ganhou o Prêmio Jabuti 2001, na área de ensaios e ciências humanas.
Entre as reflexões propostas por Janine, no decorrer desta
entrevista, estão o papel da propaganda na vida do cidadão e a
real eficácia da autorregulamentação no universo da comunicação. Confira.
Entrevistado por Francisco Gracioso e Anna Gabriela Araujo
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Renato Janine Ribeiro
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entrevista
Gracioso – Nossa pauta, basicamente, é: até que ponto é lícito admitir a
interferência do Estado na liberdade
de pensamento, expressão e comportamento do indivíduo? Como conheço
seu interesse por Thomas Hobbes,
gostaria de começar a entrevista fazendo uma comparação entre dois
extremos. Um deles, sugerido pelo
próprio Hobbes, quando diz que “o
homem em seu estado natural regride
à última condição de indignidade,
de miséria moral”. No outro extremo,
gostaria de citar uma frase do presidente da Rússia, Vladimir Putin,
que foi um defensor da antiga União
Soviética, como homem da KGB: “Ter
saudades da União Soviética é natural, prova que a pessoa tem coração.
Agora, querer que ela volte é prova de
que falta juízo”. Qual sua avaliação
sobre estes dois extremos?
Renato – Sou favorável à mais ampla liberdade de expressão. Mas ela
traz sérios problemas quando se
trata de liberdade de propaganda
ou publicidade de produtos que
podem ter algum efeito maléfico.
Por exemplo, pregar que uma raça é
inferior a outra é proibido em quase
todos os países e ninguém acha que,
com isso, a liberdade de expressão
é atingida. Como é um discurso
que geralmente apela para o crime,
ele acaba sendo proibido, assim
como a apologia do assassinato e do
tráfico. Alguns países têm uma to-
lerância maior com isso por razões
históricas. É difícil fechar o Partido
Fascista na Itália. Em compensação,
outros países que passaram por dramas, como a Alemanha, proíbem
terminantemente a propaganda
nazista. Recentemente, os alemães
cortaram um conjunto de árvores
antigas, bonitas, de alta qualidade,
porque, vistas do céu, elas formavam o desenho de uma suástica.
Sou favorável à fronteira mais ampla de liberdade, mas a apologia
do crime não deveria ser tolerada.
Esta é minha posição no caso da
política. Com relação à publicidade
econômica, a questão é bem mais
delicada, porque a apologia a um
regime privador de direitos pode ser
considerada um crime. Isso já foi
muito discutido no Brasil. É difícil,
por exemplo, pensar na proibição da
propaganda de cigarros de maneira
abstrata, já que existe o direito de
expressão e a pessoa é livre para
escolher se quer ou não consumir
o produto. O argumento que tenho
ouvido de pessoas ilustres e que
admiro é o de que o Estado não
pode proibir uma pessoa de fazer
mal a si própria. Não concordo com
esta tese, porque os procedimentos
utilizados na comunicação, às vezes, são muito sofisticados e, com
frequência, levam os consumidores
a pensar que estão sendo livres para
escolher, quando, na verdade foram,
de alguma forma, condicionados.
Gracioso – Os publicitários dizem
que a publicidade não é tão importante como os críticos sugerem, nem
o único meio de estimular alguém a
fumar. Há vários exemplos de países
que proibiram a propaganda de cigarros, mas não conseguiram acabar
com o vício.
Renato – Esse argumento é o mesmo que dizer: “Estamos fazendo
propaganda de algo que sabemos
ser eticamente ruim, só que não assumimos a responsabilidade de estarmos causando esta conduta ética
ruim”. É como afirmar: “Eu dei o tiro,
mas não foi meu tiro que matou”.
Gabriela – Não seria melhor evitar o
tiro ou, no caso, a produção?
Renato – Não quero discutir a questão jurídica, e sim a ética. Do ponto
de vista jurídico, você proibir é
complicado. Do ponto de vista ético, tolerar a apologia daquilo que
sabidamente é mal é algo duvidoso.
Não chego ao ponto de dizer que
deva ser proibida a propaganda de
uma série de coisas, mas gostaria
de salientar que não dá para defender em termos éticos a propaganda.
O problema é que o conjunto de
coisas que estão fazendo mal é cada
vez maior: cigarro, fast-food e até o
carro. O país está praticamente paralisado porque nós, classe média
alta, só nos locomovemos de carro.
“Algo que está ficando claro é que o planeta não aguenta um mundo
em que o consumo tenha toda essa relevância”
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Renato Janine Ribeiro
“Se estamos num mundo em que o consumismo se constitui
numa ameaça para a espécie, isso pode ser resolvido pela
autorregulação da sociedade e pelo comedimento dos profissionais
da área. A intervenção do Estado é a última solução”
Gracioso – Você fala da falta de
bom-senso do governo, que estimula
a produção de automóveis sabendo de
todos os problemas gerados por eles.
O que dizer então de um governo que
estimula a produção de motocicletas
que estão se transformando numa
verdadeira carnificina urbana, com
centenas de mortes todos os meses?
Renato – Tudo isso está errado.
Gabriela – Como resolver esta questão?
Renato – O ponto de partida deve
ser o investimento em transporte
coletivo, junto com medidas de dissuasão do uso individual do carro.
Por exemplo: se o veículo estiver
cheio de passageiros, vai pela pista
expressa e não paga pedágio. Temos de tirar do nosso imaginário a
utopia do carro, que é um elemento
de desejo fortíssimo para a classe
média brasileira. Aí entra a responsabilidade publicitária, que estimula esse “casamento” entre a minha
psique e o carro. É preciso pensar
em uma economia que seja menos
adicta ao carro. Este é um ponto que
acaba batendo muito na questão da
própria escola, porque algo que está
ficando claro é que o planeta não
aguenta um mundo em que o consumo tenha toda essa relevância.
Como vamos pensar a publicidade,
que é uma atividade importante,
num mundo em que o mais sensato
é reduzir o consumo?
Gabriela – O caminho passa pela
educação.
Gracioso – Isso significa que você
defende a intervenção e o poder disciplinador do Estado até determinado
ponto, o que é natural. Lembro-me de
uma frase famosa dita por Winston
Churchill, durante um debate no Parlamento inglês: “Não existe opinião
pública. O que existe é opinião publicada, e esta o governo tem o direito
de usar a seu favor”. Em outras palavras, mesmo sendo um defensor da
democracia, Churchill admitia que a
intervenção do Estado era necessária
em alguns momentos. Até que ponto,
e quem determina essa medida?
Renato – Não concordo com a sua
descrição da minha posição, porque
não estou chegando ao ponto de
defender a intervenção do Estado. O
que estou querendo expor é que um
problema sério pode ser resolvido
de muitas maneiras. Se estamos
num mundo em que o consumismo
se constitui numa ameaça para a
espécie, isso pode ser resolvido pela
autorregulação da sociedade e pelo
comedimento dos profissionais da
área. A intervenção do Estado é a
última solução. Minha preocupação
é sobretudo ética. Pense, por exemplo, no trabalho que as ONGs estão
fazendo. Muitas delas estão envolvidas com a ideia do consumo sustentável e consciente, mas é difícil
convencer uma empresa a fazer isso,
porque vai contra o negócio dela. Até
quando? A economia verde já está
movimentando trilhões de dólares.
Então, existe espaço para um mercado diferente. Agora, temos também
que nos acostumar a pensar numa
vida distinta da que vivemos hoje.
Por exemplo: até 30 anos atrás se
falava em redução de horas de trabalho devido aos ganhos de produtividade. Talvez não tenha havido na
história um salto de produtividade
tão grande como nas últimas três décadas e as pessoas continuam trabalhando o mesmo ou até mais do que
antes. Não seria possível começar a
pensar numa vida com lazer criativo, seguindo a tese do ócio criativo,
que Domenico De Masi levantou?
Com a ampliação dessa fatia de
ócio, as pessoas teriam mais tempo
para ter acesso à arte, à natureza e
ao esporte, atividades que também
gerariam uma riqueza econômica
fantástica. Nossa sociedade precisa
pensar em opções diferentes. Quando ouço as pessoas discutindo sobre
a questão das horas de trabalho, que
está ligada à previdência social, vejo
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
17
entrevista
“Quando a previdência social surgiu, antes da primeira metade
do século 20, ela foi ancorada pela ideia de que a pessoa
idosa seria recompensada pela sociedade”
que elas só analisam como a conta
vai fechar. Agora, é preciso lembrar
que quando a previdência social
surgiu, antes da primeira metade
do século 20, foi ancorada pela ideia
de que a pessoa idosa seria recompensada pela sociedade, com um
final de vida adequado, sem precisar
trabalhar até o fim. O projeto estava
associado à construção de toda uma
rede de lazer, no caso do Brasil as
colônias de férias dos sindicatos. É
um projeto de vida, não um ajuste
contábil. Ocorre que, apesar de se
ter tanta chance no mundo de hoje,
a imaginação das pessoas é usada
para pouca coisa. Quem aparece nos
jornais dizendo que podemos ter por
meta as férias das crianças ou um lazer melhor? Mal se ouve falar disso.
Temos poucos projetos de vida.
Gracioso – Democracia e República
são temas caros para você.
Renato – São. Vejo que o senhor
conhece bem o que escrevi.
Gracioso – Fale um pouco sobre
a nossa democracia e a nossa República.
Renato – Entendo República como
a defesa do bem comum, da “res
publica”, acima dos interesses privados ou de grupos específicos.
A rigor, há monarquias que são
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
republicanas, como as escandinavas, preocupadas com o bem
comum. E há repúblicas que são
autocráticas, como todas as ditaduras pelas quais passamos. No
caso da educação, por exemplo, a
postura republicana é defender a
melhor educação possível e não os
interesses desse ou daquele grupo
que são legítimos, mas são interesses locais. Por mais que esteja
convencido de que não há educação
sem professor, o objetivo da educação é o aluno. Desde o começo da
democracia na Grécia, a palavra é
associada ao povão, ao pobre. É um
regime no qual a grande maioria
com menos posses manifesta a sua
voz, que nem sempre é agradável,
com reivindicações até ásperas e
duras. A questão importante para
o estadista seria como pegar esse
cerne democrático da reivindicação
da igualdade e fazer com que isso
se manifeste em algo que não seja
destrutivo para a sociedade. Para
ser mais específico, o Brasil viveu
nas últimas décadas um processo
de inclusão social fabuloso, que
causou uma mudança na pirâmide
social. Agora, temos um losango,
no qual a classe C sozinha tem
mais pessoas que a D e a E juntas.
Isso é fabuloso e foi uma conquista
do governo Lula. O que falta para
o governo Dilma é dar uma ênfase
maior à educação e cultura, porque
o critério desse desenho é do acesso
ao consumo e o consumo, como
o próprio nome diz, é destrutivo.
Já educação é aquilo que constrói,
que ensina a pessoa a sair dos seus
preconceitos e de sua ignorância e
passar a viajar pela vida.
Gracioso – Os valores típicos da
classe média também levarão algum
tempo para cristalizar.
Renato – São valores complicados
por incluir honestidade, aversão
à corrupção, egoísmo e desprezo
pelos pobres. São valores que têm
elementos positivos e negativos.
Numa sociedade desigual como a
brasileira, o desprezo pelo pobre é
uma chaga.
Gabriela – Para Maquiavel, o medo
é uma forma de conquistar e manter
esse poder. A educação brasileira é
muito alicerçada nesse ponto, ou seja,
não estimula o aluno a pensar. Utiliza
o medo para obrigá-lo a aprender.
Como esse ponto pode influenciar
de maneira negativa a evolução da
sociedade?
Renato – É algo muito contraditório. Por um lado, há uma grande
convicção de que você precisa centrar o foco em duas ou três coisas
essenciais: ler, escrever e matemática – pontos essenciais dos quais
Renato Janine Ribeiro
todo o resto pode derivar. Para
isso, você precisa ter uma pessoa
que domine sua língua e não use
esse vocabulário extremamente
restrito que está surgindo. Mas
até os jornais estão usando menos
palavras. Ao reduzir o vocabulário
das pessoas, você torna ridículo
aquele que usa um termo ma is
rico. Quando a Folha de S.Paulo
adotou uma linha mais “didática”,
ela passou a explicar palavras difíceis. Isso dispensa a pessoa de ir
consultar no dicionário. Aprendi
no ginásio que para lembrar uma
palavra não podia perguntar para
a professora, tinha que olhar no dicionário, como forma de registrar
o aprendizado. Depois, ao assistir
aos programas de TV, noto um descaso muito grande pela cultura de
maneira geral e pela cultura erudita em particular. O mundo que
as novelas oferecem é o do gozo
imediato e do hedonismo. Tudo
precisa ser rápido e sem esforço.
Algo que também me choca é o fato
de que, nos últimos cinco anos, é
praticamente impossível entrar
no plantel de atores da Rede Globo
um rapaz ou uma moça que não
sejam muito bonitos. Não tem mais
artista como o Tony Ramos, por
exemplo. Isso tudo está criando na
sociedade brasileira uma grande
adesão ao fácil. É fácil ser bonito
para ganhar coisas. Tudo isso foi se
fortalecendo no nosso país.
Gabriela – E incentivado pela internet.
Renato – Também pela internet.
Em face disso, a educação está na
defesa. Não existe uma pregação
pró-educação. Aparentemente, o
básico na educação seria aprender
português e matemática para saber
ler, escrever e raciocinar. Quando
você inclui, por exemplo, filosofia
no ensi no méd io, tem pessoas
que perguntam como fazer isso se
os alunos não sabem português.
Como tornar obrigatório o ensino
de história da África se a pessoa
nem sabe a própria língua? Por outro lado, não sinto a sociedade e a
família empenhadas em melhorar
ou mesmo estimular a educação.
Tenho uma certa reticência quanto
a culpar o governo, que é um esporte do brasileiro.
Gracioso – Muitos sociólogos dizem
que os valores perante a vida – como
dedicação e respeito ao trabalho
árduo, confiabilidade e senso de responsabilidade – são tão importantes
quanto a educação propriamente
dita para estimular o progresso social e o bem-estar coletivo. Você concorda com isso?
Renato – Concordo até certo ponto.
Todos esses valores são importantes, mas ao mesmo tempo só temos
ética quando a pessoa é interpelada
para ela própria tomar suas deci-
sões. Quando se ensina o que é certo ou errado sem abrir para a pessoa
o espaço para ela escolher em quais
valores acreditar, não estamos formando um ser ético. Uma pessoa
ética é aquela que vai se perguntar
o que é certo durante um conflito
entre dois valores, como a liberdade
de expressão e o respeito às crianças que podem estar engordando
desmedidamente por causa do fastfood. Nosso sistema desfavorece
esse tipo de formação, como chegar
para uma discussão sem estar já
com os dados marcados. O primeiro
ponto é dizer o que é ou não ético. É
o que procuro na aula que ministro
na pós-graduação de jornalismo
com ênfase em direção editorial
da ESPM. Os jornalistas têm muita
vontade de discutir tudo, mas também
possuem uma facilidade extraordinária de esquecer onde está a questão
ética precisamente. Houve uma
aula em que começamos a discutir
o Facebook e de repente estávamos
comentando sobre como a rede
social está mudando as relações.
Eu disse: “Pessoal, não é um papo
sobre o Facebook, nem um curso de
sociologia ou teoria da comunicação. Estamos discutindo questões
éticas”. Esse é um ponto crucial:
as pessoas perceberem onde está
a questão ética. A propaganda do
fast-food, por exemplo, tem a questão política, a jurídica e a ética. Se
conseguirmos fazer com que as
“Até os jornais estão usando menos palavras. Ao reduzir o vocabulário das
pessoas, você torna ridículo aquele que usa um termo mais rico”
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
19
entrevista
pessoas percebam que esta é uma
questão ética, teremos um grande
ganho. É um lado da educação que
vai além dos conteúdos fundamentais, como português e matemática.
Pelas pesquisas que tenho lido,
quando você educa por meio dos
valores, esse conteúdo vem junto. Mas, se eu tentar formar um
a lu no somente pa ra por t ug uês
e matemática, sem incutir nele
hábitos de trabalho, respeito ao
colega, dúvidas quanto aos caminhos da vida, o aprendizado não
será tão bom.
Gracioso – Entre os publicitários,
fala-se com certo orgulho do Código
de Autorregulamentação do Conar
(Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Para eles,
essa seria uma forma mais eficiente
de controlar a propaganda do que a
intervenção ou proibição direta por
leis, por pressão estatal. É possível
confiar a determinados segmentos da
sociedade a sua própria autorregulamentação?
Renato – É duvidoso que a sociedade possa confiar nisso, porque todo
o grupo é corporativista. Então,
por natureza, quando dou a um
grupo a autorregulação, ele vai tentar defender os seus interesses. Em
certos casos, pode até ter efeito positivo. Acredito que os médicos autorregulem a profissão no sentido
de excluir aquele profissional que
cometa um crime ou assassinato.
Isso também acontece no caso da
engenharia. Mas a autorregulação
da medicina e da engenharia está
relacionada à capacitação técnica.
Na publicidade, a autorregulação
tem quase tudo a ver com a ética.
Há uns dez anos, acompanhei o
trabalho do Conar e até dediquei
um artigo a isso, que está no meu
livro O afeto autoritário (Ateliê
Editoria l, 2005). Estudei vários
julgamentos que estavam no site
da instituição naquela época e deu
para notar que as decisões não
eram totalmente coerentes. Um
exemplo é a campanha “Faça bem
feito, faça FEI”, do Centro Universitário FEI, que zombava das mulheres ao dizer: “Quer ver muitas
meninas bonitas? Vá fazer letras.
Quer ter uma formação boa? Vá fazer engenharia na FEI”. Isso gerou
um protesto no Conar, que julgou
ser somente uma brincadeira. Em
outro caso, a brincadeira era com
as enfermeiras e o Conar tirou a
propaganda do ar. Não havia uma
diferença grande entre as duas
campanhas. Então, a sensação é
de que depende muito da grita do
setor. Há certo receio em atender
a todas as reclamações, principalmente aquelas que estão na fronteira da ética. Lembro de ter assistido a uma propaganda em que a
atriz Deborah Secco batia com a
sandália num menino. Era uma gozação, não um ato de violência na
TV. Quando se tem uma regulação,
o desejável é a presença de gente
externa julgando. Não acredito na
autorregu lação. Também ten ho
muita desconfiança da regulação
pelo Estado.
Gabriela – Há alguns anos, o governo tenta implantar o documento
unificado no Brasil. A ideia de reunir
documentos como CPF, carteira de
motorista, passaporte e RG em um só
cartão é facilitar a vida das pessoas.
Mas até que ponto essa padronização
de dados não irá aumentar o controle
do Estado na vida do cidadão?
Renato – Não vejo assim, até porque, se o Estado quiser fazer isso,
é só ele cruzar os documentos das
pessoas. Hoje, a informática nos
permite ter o documento único na
prática, nos arquivos do governo,
cruzando CPF, RG e passaporte.
Pode dar um pouco mais de trabalho, mas você tem aplicativos que
permitem este cruzamento, que é
inevitável.
Gracioso – E já existe, de certa forma.
Renato – Já existe. O Facebook
é isso nas mãos de uma empresa
privada. Tem gente que defende a
adoção do Linux e de outras plataformas que não a do Bill Gates,
“A autorregulação da medicina e da engenharia está relacionada à capacitação
técnica. Na publicidade, a autorregulação tem quase tudo a ver com a ética”
20
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Renato Janine Ribeiro
“O grande problema é que as pessoas escrevem, postam coisas
e mandam e-mail sem ter tempo de refletir. A única forma de
vencermos isso é aumentar a dúvida e melhorar a escuta”
porque dizem que a Microsoft passa
os dados para o governo americano. Quem disse que não passa? O
simples Facebook oferece vários
anúncios dirigidos para você. Ele
relaciona as pessoas que foram seus
amigos de colégio e que de repente
se desencontraram. Tudo que faz
além disso é só para vender mercadoria para o usuário. O documento
único é a menor das ameaças, porque sabemos quem vai manejar
esses dados. No caso do Facebook,
não. Meu medo maior é de organizações criminosas que podem
ser muito fortes e até tomar conta
de governos. Por ouro lado, como
isso me parece irreversível, seria
preciso ter uma capacitação técnica
fantástica para enfrentar isso tudo.
Gabriela – Nesse contexto, podemos
dizer que a população é cada vez mais
objeto e não sujeito de sua história?
Renato – Nesse sentido, sim. Quando todos os seus dados são tomados
por outros, a única vantagem é você
não ter nada a ocultar. Talvez uma
forma de lutar contra isso fosse, em
vez de preservar os sigilos que não
serão preservados, o melhor é dizer:
“Não tenho nada a esconder”.
Gracioso – Qual é a posição que
deveríamos procurar dentro de um
estado democrático, que respeita os
direitos humanos e básicos de uma
democracia, como liberdade de expressão, iniciativa, organização e
propriedade?
Renato – Tenho dúvidas, porque as
pessoas que compõem a sociedade
brasileira estão com crenças demais. Elas assumem uma posição
e se aferram a ela. E a internet está
favorecendo isso com a possibilidade de todos serem autores. O grande
problema é que as pessoas escrevem, postam coisas e mandam
e-mail sem ter tempo de refletir, às
vezes, sem ao menos ter lido direito
aquilo pelo qual estão se manifestando. Em vez de ser um ambiente
democrático, a internet se transformou num ambiente de falas surdas,
com uma grande quantidade de
gente falando e totalmente surdas ao argumento contrário. Essas
pessoas têm muita dificuldade de
diálogo. Temos hoje uma democracia no Brasil apesar dos cidadãos,
não por causa dos cidadãos. Não
é porque todos prezamos esse valor democrático fundamental da
divergência que eu o colocaria à
frente de todos os outros valores.
Uma boa parte da sociedade brasileira gostaria que outra boa parte
se calasse, mesmo na marra, e isso
é assustador. Quando se tem uma
campanha eleitoral e dois lados se
opõem, dá a impressão de que estão
fazendo isso porque a Justiça Eleitoral impõe e não porque o outro lado
esteja querendo debater também.
As pessoas têm uma dificuldade
extraordinária de escutar aquilo de que discordam, porque elas
logo traduzem. Hoje, por exemplo,
qua ndo se lê nos jorna is o que
precisa ser feito na educação ou
na economia, todos dizem quase
a mesma coisa. A única forma de
vencermos isso é aumentar a dúvida e melhorar a escuta.
Gabriela – A sociedade ideal existe?
Renato – Se é ideal, não existe.
Mas, sem você ter um ideal, tudo
fica muito mais difícil. Um dos
problemas do nosso tempo é que
de certa forma as coisas que eram
boas, que foram almejadas acabaram se realizando. O sonho da diferença sumiu. Temos prosperidade,
conforto, prazeres. O sexo deixou
de ser algo assustador. Tanta coisa
foi conseguida que a tendência das
pessoas é achar que isso é bom.
No caso dos jovens, é bom viver na
casa dos pais para sempre. É tudo
tão confortável. A diferença é que o
ideal antigo às vezes era o ideal do
desejo. Já o ideal de hoje talvez seja
o do dever e da dificuldade.
Gracioso – Obrigado. A entrevista
foi excelente!
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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Opinião
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
A propaganda
comercial é
vítima de bullying
Por Gilberto Leifert
fotomontagem com imagens de levente gyori e ostill
p
retendo abordar neste discurso o tema “Liberdade de expressão
e democracia”, a partir de um viés preocupante: “a liberdade de
expressão está sofrendo bullying”. Antes, porém, vou contextualizar nossa atividade em face desse fenômeno atual e perturbador.
Num plenário exatamente como este, em abril de 1978, foi aprovado por
aclamação o Código de Autorregulamentação Publicitária, documento cuja
execução foi confiada ao Conar. Estavam, então, suspensas as liberdades
públicas e em vigor o AI 5. A opinião, a produção cultural, a notícia e o anúncio
estavam submetidos à censura.
Uma década mais tarde, a Constituição de 1988 aboliu a censura e restabeleceu as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação. E, ainda,
consagrou a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.
É nesse ambiente que opera hoje a indústria da comunicação brasileira,
reconhecida internacionalmente pela qualidade do conteúdo editorial e da
publicidade que produz.
Tanto a informação editorial (notícia) quanto a informação comercial
(anúncio) são transmitidas pelos veículos de comunicação, propiciando ao
leitor, ouvinte, telespectador ou internauta situar-se no tempo e no espaço,
obter dados para identificar opções, estabelecer comparações e, principalmente, fazer escolhas.
Queria, agora, citar a advertência do filósofo John Stuart Mill, sobre a autonomia dos indivíduos e o emprego de suas faculdades para fazer escolhas:
“As faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo, atividade mental e até mesmo a preferência moral só são exercitadas quando
se faz uma escolha. Aquele que só faz alguma coisa porque é o costume não faz
escolha alguma. Ele não é capaz de discernir nem de desejar o que é melhor.
Após 32 anos e 7.500
casos analisados, o
Conselho Nacional de
Autorregulamentação
Publicitária (Conar) é talvez
o melhor exemplo de que
a autorregulamentação é
melhor do que a proibição
pura e simples do que aquilo
que parece ser inconveniente
ao Estado. Neste artigo,
transcrevemos o discurso
proferido, recentemente,
no V Congresso Brasileiro
de Comunicação, por
Gilberto Leifert, presidente
do Conar desde 1998.
Nota da redação
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
23
Opinião
As capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas [...] Quem
abdica de tomar as próprias decisões não necessita de
outra faculdade. Apenas da capacidade de imitar, como os
macacos. Aquele que decide por si emprega todas as suas
faculdades”.
Pois bem: empregando tais faculdades, os cidadãos
elegem representantes políticos, professam religião, constituem família e decidem o que fazer com seu precioso tempo
e rico dinheirinho.
Os consumidores são os senhores do mercado. Eles podem gostar do produto, mas não gostar do anúncio; podem
não gostar nem do anúncio nem do produto e desprezá-lo na
gôndola do supermercado; podem, ainda, gostar de ambos
e livremente decidir consumir ou não. Tais escolhas são
livres e devem ser respeitadas.
Para que um produto possa ser anunciado, ele precisa
ser lícito e seguro para o consumo, ou seja, os poderes
públicos terão autorizado sua fabricação, comercialização
e consumo.
A propósito, a Constituição de 1988 admite que cinco
categorias de produtos (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias) estarão sujeitas a restrições,
desde que estabelecidas por lei. Decretos, resoluções da Anvisa e portarias não podem impor restrições à publicidade.
O Código de Defesa do Consumidor já pune com detenção
e multa os anunciantes que cometem propaganda enganosa
ou abusiva, e a autorregulamentação tira de circulação os
anúncios julgados antiéticos.
Vigora no Brasil o chamado “sistema misto de controle
da publicidade”, pelo qual se combinam lei e autorregulamentação, conferindo aos cidadãos ampla proteção e
parâmetros éticos à nossa atividade.
A publicidade interage com toda a sociedade, assim como
as artes e a política. As críticas, os festivais e as campanhas
de propaganda comparativa compõem o contraditório típico
da nossa atividade. Tanto os produtos quanto os anúncios
são submetidos a permanente escrutínio. Consumidores,
imprensa, Procon, redes sociais e anunciantes concorrentes são livres para reconhecer virtudes e vantagens e para
apontar defeitos e inconveniências. E o Conar, a qualquer
momento, pode solicitar ao anunciante que comprove as
alegações feitas no anúncio, corrija omissão ou excesso,
garantindo amplo direito de defesa e de recurso. Em 32 anos,
24
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
“A publicidade interage
com toda a sociedade, assim
como as artes e a política.
As críticas, os festivais e as
campanhas de propaganda
comparativa compõem o
contraditório típico da nossa
atividade. Tanto os produtos
quanto os anúncios são submetidos
a permanente escrutínio”
iodrakon
o Conselho de Ética do Conar julgou mais de 7.500 casos. Em
2011, foram 366 processos éticos e 215 anúncios sustados.
Volto, agora, ao bullying.
É fato que o Brasil vive plenamente a democracia. Existe
liberdade de imprensa. Os cidadãos são livres para fazer
escolhas e as empresas para empreender, competir e se
comunicar com os consumidores.
No entanto, a liberdade de expressão está sofrendo
bullying. Entendo por bullying os abusos por ilegalidade e
anonimato e as hostilidades de cunho ideológico e inspiração totalitária. Como exemplo de ilegalidade, aponto
as iniciativas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária) ao tentar impor seriíssimas restrições à veiculação de propaganda comercial de medicamentos, bebidas
alcoólicas, alimentos e refrigerantes.
A própria Advocacia Geral da União emitiu parecer
contestando a competência da Anvisa para legislar sobre
publicidade por meio de resoluções de diretoria. A agência
persistiu na ilegalidade e enfrenta por isso várias ações
no Judiciário, cujas decisões têm garantido a liberdade de
expressão comercial.
Bullying também é cometido na internet por quem,
contrariando a Constituição, se escuda no anonimato. São
grupos informais de pressão, ONGs sem existência legal e
endereços eletrônicos fajutos homiziados nas redes sociais.
Não são, portanto, pessoas de carne e osso nem instituições
dotadas de personalidade jurídica e legitimadas a exercer a
liberdade de expressão.
Todavia, suas copiosas manifestações, frequentemente
contra a publicidade, chegam a ser levadas em consideração
até por autoridades. A quantidade dessas manifestações
pode até impressionar, mas não é real.
Nesse “octógono” em que se converteu a ágora, os adversários da liberdade de expressão clamam por mais e mais
regulação, impelindo o Estado a invadir a esfera privada
da cidadania.
Outro exemplo: o bullying à publicidade de bebidas
alcoólicas não poupou nem a Presidência da República.
Em exposição de motivos, decreto presidencial atribuiu a
uma entidade de renome dados sobre acidentes de trânsito
associados ao álcool que ela jamais pesquisara.
Mais um exemplo: a existência dos medicamentos de
venda livre pressupõe o direito à automedicação, meio
de aliviar sintomas e curar pequenos males. O bullying à
publicidade manipula as estatísticas sobre intoxicação,
debitando à conta da automedicação até suicídios consumados mediante a ingestão de barbitúricos de tarja preta
e de pesticidas como o “chumbinho”, produtos controlados
que, por lei, não podem ser anunciados.
Comete-se bullying em nome da proteção à saúde, família
e infância.
Que o diga a publicidade de alimentos e refrigerantes,
brinquedos e outros produtos destinados à criança – um
certo movimento espevitado e bem fornido de recursos
pretende que as crianças sejam banidas de todos os anúncios e exerce pressão incisiva sobre o Congresso Nacional,
ignorando os avanços da autorregulamentação no tocante
ao público infantil.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
25
Opinião
iodrakon
“Devemos combater o bullying
em todas as suas abomináveis
formas, como a intolerância, o
mau humor e o politicamente
correto, que obscurecem a
criação publicitária e podem
aniquilar a liberdade de
expressão comercial que
honramos”
26
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
De vocação fundamentalista, um desses movimentos se
atribuiu a tarefa de dirigir a educação de nossas crianças, em
substituição dos pais e educadores, como se seus adeptos
fossem mais sabidos que os pais dos filhos dos outros. Como
se a escolha do “sim” ou do “não” da família devesse ficar ao
arbítrio de uma ONG.
Recentemente, uma dessas organizações cometeu
bullying ao divulgar aos quatro ventos que a Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas) havia aprovado novas
diretrizes para a publicidade e o marketing de alimentos e
refrigerantes.
A notícia era falsa.
No documento original, a Opas advertia que se tratava
da opinião de pessoas físicas, que não refletia a posição
daquele organismo.
É bullying! Para forçar o Estado a impor mais regulação à
publicidade, na contramão do que preconizam atualmente
a Organização Mundial da Saúde, o Parlamento Europeu e o
FDA norte-americano, que estão encorajando as iniciativas
de autorregulamentação para alimentos e refrigerantes.
Concluindo, vou alinhar alguns pontos para reflexão do
plenário, como contribuição à tese da Comissão de Liberdade de Expressão e Democracia:
1º. Produtos lícitos e seguros para o consumo podem,
sim, ser anunciados, admitindo-se que restrições sejam estabelecidas por meio de leis e de autorregulamentação, que
elas sejam necessárias, justas, razoáveis e proporcionais.
Afinal, o Brasil já tem leis demais e os ímpetos de ampliar
a regulação revelam a crença equivocada de que restringir
a liberdade de expressão fará bem aos brasileiros.
2º. O anunciante não deverá ser obrigado à “autodetração”,
ou seja, falar mal de si ou de seus produtos, defeito reincidente em vários projetos de lei e nas resoluções da Anvisa.
3º. Devemos combater com igual vigor a censura à informação e a censura ao direito de escolher, de dissentir
e de ser diferente. Nesse sentido, devemos estimular o
consumidor a empregar todas as suas faculdades, como
dizia Stuart Mill.
4º. Nenhum cidadão deverá sofrer bullying em razão de
suas escolhas. Gostar de batatas fritas e refrigerantes, apreciar manteiga, ovo, carne vermelha e cerveja, ou preferir a
bicicleta ao automóvel... Todas estas são escolhas baseadas
principalmente nas informações tão abundantes quanto
controversas veiculadas na imprensa.
5º. Nenhum consumidor deverá sofrer bullying por fazer
parte da minoria. A democracia não deve prescindir dos
contrários e das minorias. O mercado também não.
6º. Devemos combater o bullying em todas as suas abomináveis formas, como a intolerância, o mau humor e o
politicamente correto, que obscurecem a criação publicitária
e podem aniquilar a liberdade de expressão comercial que
honramos.
A propaganda comercial é a principal fonte dos recursos
que viabilizam o direito à informação, respeitando a independência dos veículos e a liberdade de imprensa.
Esse nobre papel institucional e político da propaganda
comercial nos impõe o dever de lutar pelas prerrogativas
constitucionais da atividade com o mesmo destemor com
que o fazem os jornalistas.
Esse nobre papel nos impõe o dever de repelir as tentativas
maliciosas de banir categorias anunciantes ou de afastá-las
da mídia para, desse modo, colocar em risco a saúde financeira das empresas de comunicação.
Encerrando, cito trecho do poema que foi adotado como
legenda pelo Centro de Referência sobre Liberdade de Expressão, instituído pelo Conar e pela ESPM-SP. De autoria
do poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, chama-se No
caminho, com Maikóvski:
Tu sabes,
Conheces melhor do que eu
A velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
E roubam uma flor
Do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
Pisam as flores,
Matam nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia,
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a luz e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Gilberto Leifert
Presidente do Conar
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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latinstock
sociedade
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Não cabe ao Estado dizer
como cada um deve ser
Em uma verdadeira democracia, o Estado representa o direito da sociedade e do cidadão, permitindo
que a liberdade de ser, pensar e agir do indivíduo não seja sufocada pela imposição
de um pensamento coletivo do povo ou do governo
Por Ives Gandra da Silva Martins
E
m meus livros Uma breve introdução ao direito e
Uma breve teoria do poder (Editora Revista dos
Tribunais), procurei focar o direito nos Estados
democráticos, como uma forma de o povo dizer
o que gostaria que o Estado fizesse a favor da sociedade,
tanto em relação às liberdades individuais quanto ao
equilíbrio social, propiciando, também, o desenvolvimento
econômico à luz da iniciativa privada. Quanto aos direitos
individuais, o ordenamento estabelece as regras destinadas
a controlar o exercício do poder por aqueles que o detêm
– que, mais do que representar a sociedade, tendem sempre a considerar que possuem um direito superior ao dos
comuns mortais e, por serem “autoridades”, são cidadãos
de primeira categoria.
Já no livro O estado de direito e o direito do Estado (Editora
Lex/Magister), procurei mostrar a absoluta inconfiabilidade do homem no poder e a fragilidade das sociedades
em enfrentar aqueles que as governam, pois estamos
ainda nos primeiros passos da verdadeira democracia,
no Brasil e no mundo.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma
conquista decorrente, de um lado, dos crimes da Segunda
Guerra Mundial e, de outro, da percepção jurídica além do
direito escrito, que permitiu a condenação de criminosos
nazistas, sem que houvesse norma internacional sancionatória, visto que a declaração da Organização da Nações
Unidas (ONU) só surgiu em 10 de dezembro de 1948,
enquanto o primeiro e mais importante dos julgamentos
daquela Corte especial é de 1º de outubro de 1946.
O grande dilema da atualidade reside em saber quais os
limites que balizam o poder da sociedade de intervir na
formulação de políticas do Estado, do Estado em relação à
sociedade, assim como os limites do coletivo em relação
ao individual, cujos direitos devem ser respeitados numa
democracia, no legítimo exercício da liberdade de ser, de
expressão e de convivência.
John Rawls, no seu famoso Uma teoria da justiça (Martins Editora), declara que o equilíbrio para que sociedade
e Estado convivam, em uma democracia respeitadora de
direitos individuais e da liberdade de ser, pensar e agir,
decorre das denominadas teorias “não abrangentes”,
isto é, daquelas teorias que terminam por coexistir com
outras, sem a busca de imposição.
Considera nada mais prejudicial a uma teoria da Justiça
e a um Estado democrático do que as teorias abrangentes,
aquelas absolutistas que impõem ao cidadão uma determinada maneira de pensar e que terminam por gerar ditaduras, como se viu com os comunistas de Stalin, os nazistas
de Hitler, os fascistas de Mussolini ou os socialistas de
Fidel Castro. Estas quatro ditaduras do século 20 mataram
a individualidade e impuseram uma maneira equivocada
e coletiva de agir.
Na célebre série Star Trek, o gênio cinematográfico
Gene Roddenberry criou os Borgs, um povo que pretendia
impor a sua maneira coletiva de agir aos outros. Eram
os Borgs controlados por uma rainha que centralizava
o domínio completo de um povo meio máquina, meio
ser humano e que só raciocinava a partir do coletivo.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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sociedade
Não tinham nomes, mas números. E todos pensavam da
mesma forma. E os povos que conquistavam tinham de
ser “assimilados”, isto é, passavam por um processo de
reeducação e robotização, senão seriam “eliminados”.
Roddenberry pretendeu, na sua série, criticar as ditaduras ideológicas, que excluem a liberdade de pensar,
condenando aqueles que ousam discordar.
À evidência, a evolução política do ser humano leva-nos
a outra dimensão: a da busca dos ideais democráticos, em
que as liberdades individuais, o direito de representação
e de eleger seus representantes terminam por gerar a
possibilidade do povo de interferir no comando que deseja
para suas aspirações.
Neste particular, o ceticismo de Thomas Hobbes (Leviatã, Ícone Editora), não compartilhado por John Locke
(Dois tratados sobre o governo, Martins Editora), que via
a possibilidade de uma participação real do povo na condução dos governantes, desemboca em Charles Louis de
Montesquieu, que, conhecendo a natureza humana no
poder, termina por sistematizar a divisão dos poderes
(Do espírito das leis, Editora Edipro). Na época, criticado,
porque diziam que o poder dividido não é poder, contrabalançou com a assertiva de que o homem, no poder, jamais
é confiável, razão pela qual havia necessidade de o poder
controlar o poder. O direito de legislar, dado a totalidade da
nação, seria exercido pelo Parlamento (onde se encontram
representadas tanto a situação quanto a oposição); o de
governar, executando as leis, seria exercitado pelo Poder
Executivo, constituído pela maioria da nação (a oposição
30
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
divulgação
Com a série Star Trek,
Gene Roddenberry
pretendeu criticar as
ditaduras ideológicas, que
excluem a liberdade de
pensar, condenando aqueles
que ousam discordar
não participa do Executivo); e o poder de julgar, outorgado
a um poder técnico, que não é político.
Em outras palavras, Montesquieu percebe, com particular acuidade, que a identificação do homem com o poder
torna-o um representante inconfiável. E que deve mais ser
controlado por outros poderes do que pelo próprio povo
que, mesmo nas democracias, tem instrumental de controle reduzido, sobre o poder ser manipulado facilmente,
por aquilo que Rawls denominou de o “véu de ignorância”,
pertinente à grande maioria da sociedade, que não tem
uma visão de conjunto do Estado.
Neste quadro, é de compreender, como procurei mostrar no livro Uma breve teoria do poder, que são as oposições
fortes que garantem a democracia. Oposições fracas levam
os detentores do poder a enfraquecer as instituições para
seu domínio, como ocorreu na Venezuela, na Bolívia e no
Equador, em que os maiores instrumentos de controle e
repressão são dados aos presidentes da República, como
o de derrubar o Congresso, convocar plebiscitos etc.
O amadurecimento social, todavia, com uma presença
cada vez maior da imprensa como fiscalizadora dos atos
de governo, facilita a tomada de consciência pelo povo de
suas responsabilidades e direitos perante os governantes,
com o que seus integrantes podem exercer melhor a cidadania, sempre com o risco de serem facilmente manipulados pela própria imprensa, que, como ironizava Mark
Twain (pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, que
é autor de As aventuras de Tom Sawyer), tem a tendência
de separar o joio do trigo e publicar o joio.
Com todas as deficiências, preconceitos e equívocos,
a imprensa exerce, contudo, um papel profilático no desventrar a podridão dos porões governamentais, em todo o
mundo, o que é bom para fortalecimento da democracia.
Não haverá, todavia, jamais uma democracia forte
se, paralelamente aos direitos da coletividade como um
todo, não houver respeito aos direitos individuais, que
não devem “ser superados pelos direitos coletivos”, como
apregoam diversas correntes socialistas ou comunistas,
mas devem “conviver em condições de igualdade com
aquele complexo de direitos que cabe à pessoa exercer
independentemente da autorização do Estado ou da sociedade”. Não sem razão, o constituinte ressalva os direitos
individuais como cláusulas pétreas, imodificáveis, mas
não os coletivos ou sociais, estando assim redigido o § 4º
do artigo 60 da Constituição:
“A rt. 60. [.....]
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir :
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais”.
É que há direitos naturais que o Estado não deve criar,
como procurei esclarecer no livro Uma breve introdução
ao direito, mas apenas reconhecer como é, por exemplo,
o direito à vida. O Estado não o cria. Pode criar a melhor
forma de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), mas não pode criar o direito à vida de quem quer
que seja, pois este direito lhe é inato.
René Cassin, relator principal da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948,
declarou que os direitos, nela contemplados, não foram
ali incluídos por terem sido considerados bons, no correr
do tempo, “mas porque eram inerentes e próprios do ser
humano, que com eles nasciam”.
O grande desafio, portanto, do século 21 em que vivemos, como diz Norberto Bobbio em A era dos direitos
(Editora Campus), não é declarar quais são os direitos,
o que já fizemos no século 20, mas “assegurá-los”.
Ora, nessa busca de um equilíbrio entre o direito do
Estado, o direito da sociedade e o direito do indivíduo –
todos os três devendo ser respeitados, numa autêntica
democracia – reside o grande desafio do século 21, para
“A imprensa tem a tendência
de separar o joio do trigo e
publicar o joio”
Mark Twain
todas as nações e todos os sistemas jurídicos dominantes.
Não deve um Estado, nem a sociedade, dizer o que é
bom para o exercício da individualidade de cada um (ser),
da sua maneira de expressar (pensar) e de como deve agir
(família, trabalho e relações sociais).
Deve o Estado, enquanto seus governos são representantes do povo, dizer quais as obrigações do cidadão para
com a pátria e de que forma exercer os direitos próprios
de uma democracia (vida, segurança, propriedade e
liberdade, art. 5º da Constituição federal), na busca de
uma igualdade assimétrica. Não deve, todavia, dizer
como educar os filhos – a não ser na grade curricular
das escolas –, ou seja, não deve interferir nos valores que
os pais pretendem que seus filhos tenham, inclusive de
natureza religiosa.
É que o Estado laico não é o Estado ateu, mas o Estado
em que o governo não é dirigido pela religião. De resto, é
de lembrar que a religião católica não é religião oficial de
nenhum Estado, embora o anglicanismo seja a religião
oficial da Inglaterra, o judaísmo de Israel, o islamismo
dos Estados do Oriente Próximo e o protestantismo
dos Estados nórdicos. O Estado laico não deve, todavia,
desconhecer a opinião de seu povo e da maioria que o
constitui, pois, caso contrário, terminaria por excluir
todos os que acreditam em Deus, como ocorreu com
os países comunistas, em suas constituições, antes da
queda do muro de Berlim.
Enfim, para concluir, o correto equilíbrio entre o direito
do Estado, da sociedade e dos indivíduos é que constitui
a verdadeira democracia, em que a política do Estado
deve respeitar o pensamento da sociedade, o direito do
indivíduo de ser, pensar e agir, desde que não ponha em
risco as instituições, nem agrida direitos de terceiros.
Ives Gandra da Silva Martins
Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola
de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.
É presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio
de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio)
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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mercado
“Não é pelo temor do abuso
que se vai proibir o uso!”
Indústria da comunicação levanta a voz e sai em defesa da liberdade de expressão
comercial, um direito que desde 1988 é garantido pela Constituição
Por Anna Gabriela Araujo
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
“O
preço da liberdade é a vigilância
constante”, assegurou o Prêmio
Nobel da Paz Desmond Tutu, durante visita ao Brasil, no último
mês de maio. “É por isso que a indústria da comunicação, em especial a imprensa, deve ter liberdade para
cobrir o mercado de forma responsável.”
De acordo com o líder sul-africano que ousou
erguer a voz contra o regime segregacionista
da África do Sul, a liberdade de expressão dos
veículos de comunicação é um dos principais
indicadores para determinar se um país é democrático. “Toda produção intelectual e artística
deve ser livre de censura. A propaganda faz
parte desse contexto e precisa ter o seu direito
garantido”, ressaltou Tutu, durante a cerimônia de abertura do V Congresso Brasileiro da
Indústria da Comunicação, realizada no dia 28
de maio, em São Paulo.
Ele, que passou a vida lutando por direitos civis
iguais na terra do apartheid, veio ao Brasil lembrar
a todos que “liberdade de expressão e democracia” caminham juntas. “A primeira vez que estive
aqui foi no início da década de 1970, quando toda
a América Latina estava sendo devastada pelas
ditaduras de golpes militares. O contraste entre
aquela época e agora é de tirar o fôlego. Não poderia
ser mais espetacular.”
Este foi o tom do discurso feito pelo arcebispo
sul-africano, que deu voz e forma ao V Congresso.
O evento entrou para a história como o grande ma-
nifesto de agências, anunciantes e veículos na defesa da liberdade de expressão comercial, que está
garantida pela Constituição brasileira. “Liberdade
de expressão e democracia são irmãs siamesas.
Uma não é forte quando a outra for fraca”, informa
a carta de conclusão do encontro, promovido pela
Associação Brasileira das Agências de Publicidade
(Abap). Com o apoio e coordenação do Fórum Permanente da Indústria da Comunicação (ForCom),
a Abap reuniu, de 28 a 30 de maio, cerca de 1,3 mil
profissionais, que participaram de 13 comissões
temáticas. Durante três dias, eles debateram
desde a privacidade que deve ser assegurada pela
comunicação one to one até propriedade intelectual,
legislação e ética na publicidade. “Em comum,
todas as comissões apresentaram como pano de
fundo a democracia e a liberdade de expressão,
que foram o mote principal do evento”, avalia o
presidente do ForCom, Dalton Pastore.
“Toda produção
intelectual e artística deve
ser livre de censura.
A propaganda faz parte
desse contexto e precisa ter
o seu direito garantido”
Desmond Tutu, arcebispo sul-africano
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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mercado
Entre os temas discutidos pelas 13 comissões estão: o
direito do cidadão receber informações livres, independentemente de censura; a formação de consumidores
conscientes, capazes de fazer suas escolhas, depende de
informação e educação; a defesa da liberdade de imprensa
e da economia de mercado para garantir a pluralidade e
diversidade dos meios de comunicação; a autorregulamentação do setor; e o direito de o consumidor ser informado a
respeito de produtos licitamente produzidos e divulgados
no país. “Somos a indústria da liberdade e acreditamos que
todo produto legalmente produzido e distribuído pode ser
comunicado para alimentar o empreendedorismo e a livre
competição em benefício dos consumidores”, detalha o
presidente da Abap, Luiz Lara. “Nosso mercado é baseado
na liberdade e na meritocracia. Não acreditamos na tutela
autoritária e arbitrária daqueles que, com o pretexto de
salvar o mundo, acabam coibindo a livre iniciativa.”
A preocupação com a liberdade de expressão tem fundamento, uma vez que hoje tramitam no Congresso Nacional
cerca de 200 projetos de lei que visam proibir, restringir ou
censurar a indústria da comunicação, em especial a publicidade. “Muitas dessas iniciativas são descabidas e exageradas”, garante o deputado federal Milton Monti, presidente
da Frente Parlamentar da Comunicação Social (Frecom).
A Frecom foi criada há quatro anos, durante o IV Congresso, com o objetivo de estimular a discussão e trazer à
luz todas as questões que envolvem as inúmeras restrições
propostas pelos parlamentares brasileiros ao mundo do
marketing. “O subproduto do enfraquecimento da publicidade brasileira é o fortalecimento da publicidade estatal e
o consequente aumento da dependência dos veículos em
relação ao Estado”, avalia o deputado, citando alguns dos
projetos de lei que ultrapassam, e muito, a fronteira não só
da liberdade de expressão, como também da razão. “Proibir
a propaganda de brinquedos e produtos infantis das 6 horas às 21 horas, como prevê o Projeto de lei 5.921/2001, do
deputado Luiz Carlos Hauly, é um excesso. Tanto faz para
a criança ver ou não essa propaganda. Até porque não dá
para colocá-la em uma redoma de vidro e impedir que ela
seja impactada pelas ações de marketing”, explica Monti.
Proibições indigestas
Além da restrição de horário, a propaganda brasileira pode
sofrer um novo golpe caso o projeto de lei (nº 25/03) proposto
pelo ex-senador Tião Viana seja aprovado. A medida visa
proibir a propaganda de alimentos e a utilização de persona-
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Luiz Lara, presidente da Abap, ao lado do
arcebispo Desmond Tutu, que esteve no Brasil
em maio para participar do V Congresso
“Nosso mercado é baseado na
liberdade e na meritocracia.
Não acreditamos na tutela
autoritária e arbitrária
daqueles que, com o pretexto
de salvar o mundo, acabam
coibindo a livre iniciativa”
Luiz Lara, presidente da Abap
gens em campanhas direcionadas ao público infantil. Outra
iniciativa ainda mais restritiva está tramitando na Câmara
dos Deputados, desde março de 2009. Apresentada inicialmente pelo médico Sergio Antonio Nechar, o projeto começa
proibindo a comercialização de lanches acompanhados por
brinquedos nas redes de fast-food. “O artifício de induzir a
criança a adquirir alimentos acompanhados de batata frita
e refrigerante, comprovadamente nocivos à saúde, para
ter direito ao brinquedo de brinde, explora a fraqueza ou a
ignorância do consumidor infantil, como proíbe a lei”, argumentou Nechar. Na época, o então deputado fez o projeto
inspirado em uma ação do Instituto Alana, que incentivou o
Ministério Público Federal a entrar na Justiça pedindo a proi-
A arte de ouvir
o consumidor
A autorregulamentação do setor de marketing one to one
visa estabelecer regras claras para a atividade. Efraim
Kapulski, presidente da Associação Brasileira de Marketing
Direto (Abemd), explica que o uso da tecnologia possibilita a
personalização de ofertas e mensagens publicitárias. Isso
traz inúmeras vantagens, como o aumento da satisfação dos
consumidores e a customização, que propiciam um melhor
direcionamento da publicidade e maximizam o investimento
do anunciante. ”Esse mesmo cenário gera uma preocupação
da sociedade, que enxerga nas práticas de marketing direto
um modelo de comunicação capaz de oferecer restrições
aos direitos básicos dos consumidores, como a privacidade
e a segurança de seus dados.” Assim, o Projeto de lei
4.060/2012 foi estruturado com base na transparência
e nas boas práticas do segmento. ”Hoje, no nosso setor,
todas as regras valem apenas para a iniciativa privada.
Seja qual for a regulamentação aprovada, as empresas
estatais devem passar a ser regidas pelas mesmas leis do
mercado”, assegura Kapulski. ”A ideia é promover a evolução
do segmento por meio de mecanismos que possibilitem uma
gestão inteligente do negócio.”
bição da venda casada de brinquedos e alimentos nas
três maiores redes de fast-food do Brasil – McDonald’s,
Bobs e Burger King.
No mês seguinte à apresentação do projeto, em
abril de 2009, o deputado Jorge Tadeu Mudalen tratou de ampliar as restrições propostas por Nechar
ao sugerir a “proibição de venda casada de produtos
alimentícios destinados ao público infanto-juvenil,
de 0 a 16 anos de idade, não só em redes de fast-food,
mas em toda a cadeia de venda – supermercados,
mercados e lojas de todo o país”. E assim o projeto de
lei foi sendo ampliado com novas restrições. Hoje,
ele pretende proibir até a realização de qualquer tipo
de promoção no formato “compre e ganhe” para a
venda de alimentos e bebidas.
Para Gilberto Leifert, presidente do Conselho
Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar), neste caso, admitir a ação do Estado é
Para o apresentador Marcelo Tas, que participou ao lado
de Kapulski da comissão ”Comunicação one to one” do V
Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, antes
de proibir, é necessário entender o papel da internet e
das redes sociais, que trouxeram mais transparência
à sociedade. ”Essa transparência tem suas virtudes
e também seus efeitos colaterais, pois acaba com a
privacidade das pessoas. A comunicação está sendo
alterada de maneira significativa. Em função disso, o
marketing direto precisa ser repensado.”
Foi acompanhando as histórias e comentários postados
por seu público no Twitter e no Facebook que Tas
descobriu o real posicionamento do CQC no Brasil. ”Aqui
ele é considerado o programa da família brasileira,
enquanto nos outros países é visto mais pelo público
jovem.” Navegando pelas redes sociais, ele também
reuniu uma quantidade enorme de material sobre os
telespectadores que acaba até servindo de pauta para
o programa. ”Comunicação não é o que a gente fala,
mas o que os outros escutam. E as redes sociais são
verdadeiros orelhões, que nos permitem ouvir o mercado
e aferir diariamente o resultado do nosso trabalho.”
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
35
mercado
colocar em xeque a democracia e a própria atuação dos
representantes políticos. “Afinal, quem não tem capacidade de comprar um pacote de biscoito também não é
capaz de escolher seus governantes.”
E as medidas contra a propaganda de alimentos e bebidas
representam apenas a ponta desse iceberg de restrições,
que atinge também os setores farmacêutico, agrícola e
até de marketing direto. Entre as de maior impacto está o
anteprojeto de lei sobre privacidade e proteção de dados
pessoais no Brasil. Elaborado pela Secretaria de Assuntos
Legislativos (SAL) e pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça, o texto
visa assegurar aos cidadãos o controle sobre suas infor-
mações na web. De acordo com o presidente da Associação
Brasileira de Marketing Direto (Abemd), a iniciativa poderá
engessar o setor do marketing direto ao criar mecanismos
para fiscalizar e regulamentar as atividades relacionadas
à coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais.
“O avanço da internet e o surgimento das redes sociais
tornam a regulamentação necessária, mas o projeto do
governo é detalhista ao extremo e apresenta uma série
de excessos.” Na tentativa de reverter esse panorama,
Kapulski abordou o assunto na comissão “Comunicação
one to one”, realizada durante o V Congresso Brasileiro da
Indústria da Comunicação (ver boxe na página 35).
Desta discussão saiu um projeto de lei para regula-
Abaixo a propaganda
Em 2005, o Ibope apresentou
o seguinte dado: ”Crianças
brasileiras de 4 a 11 anos, que
em 2004 assistiram a 4 horas, 48
minutos e 54 segundos de tevê
por dia, passaram a ver 4 horas, 51
minutos e 19 segundos em 2005”.
Na época, o índice colocou o Brasil
em primeiro lugar em um ranking
mundial que aponta a quantidade
de tempo que as crianças ficam
diante do televisor. No mesmo
ano, outro levantamento chamou
a atenção do Instituto Alana: o
índice de obesidade infantil subiu
de 5% em 1964 para 20% em 2005
e continuou crescendo. De acordo
com a Escola Paulista de Medicina
(Unifesp), 14% das crianças são
obesas e 25% estão acima do
peso, curvas que acompanham o
crescimento do volume investido
no marketing infanto-juvenil. Após
cruzar esses dados, o Instituto
Alana decidiu criar o projeto Criança
e Consumo para tratar do assunto.
Resultado: a entidade passou a
ser fonte de diversos veículos de
comunicação e acabou conhecida
36
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
no meio como ”aquela ONG que fala
mal da publicidade”. A seguir, você
confere qual é o posicionamento
do Instituto Alana com base nesta
entrevista concedida por Isabella
Henriques, diretora de defesa e
futuro dessa organização sem fins
lucrativos criada em 1994.
Revista da ESPM – Por que proibir a
propaganda de produtos infantis?
Isabella – Não somos contrários
à propaganda. Somos favoráveis
à restrição do direcionamento da
comunicação mercadológica às
crianças. Esse tipo de mensagem
comercial deveria ser voltada a
pais, mães e responsáveis, para que
possa haver uma mediação entre a
mensagem publicitária e o público
infantil. Dirigir conteúdo comercial
diretamente às crianças – de até 12
anos – é inadequado, porque elas não
têm condições de fazer uma análise
mais crítica.
Revista da ESPM – Muitos estudiosos
alegam que melhor do que proibir
seria debater o problema com o
setor, para juntos chegarem a uma
solução e, quem sabe, até uma
autorregulamentação. Você acredita
que isso seja viável?
Isabella – Sim. Mas ainda encontramos
muita resistência em relação à
possibilidade de haver uma mudança
de postura nessas relações de
consumo. Ainda que, de fato, existam
passos importantes dados em direção
à proteção da infância, como, por
exemplo, os pledges assumidos pelas
empresas do setor alimentício – os
quais demonstram que o setor está
atento às discussões e concorda ser
a publicidade um fator importante no
agravamento do quadro de obesidade
infantil no país. A autorregulamentação
não depende da sociedade civil
organizada, nem dos governos. Ela
pode acontecer independentemente
desses atores. A que já existe mostrouse insuficiente, até por isso a demanda
da sociedade como um todo é cada dia
maior. Se ela melhorar e for, de fato,
eficaz, teremos um novo cenário – que
não conflitaria com a existência de uma
mentar o uso responsável dos dados pessoais. Criada
pelo setor, a iniciativa foi encaminhada ao Congresso
Nacional no último dia 13 de junho, pelo deputado Milton
Monti. “O Estado deve se preocupar em dar educação de
qualidade e cultura aos brasileiros e deixar que as pessoas
façam suas escolhas. Elas têm o direito de receber ou não
mensagens comerciais por meios físicos ou digitais”,
explica o presidente da Frecom.
Assim, em 25 artigos embasados na Constituição brasileira, ele propõe a autorregulamentação do setor, por
meio da criação de um órgão regulador, formado pelas
entidades do mundo do marketing, que pretende atuar nos
mesmos moldes do Conar. “Estamos prevendo mais rigor
no tratamento aos dados sensíveis, que são as informações
relativas à origem social e étnica, à informação genética,
à orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e
filosóficas do titular.” A consulta a estes dados ocorrerá somente mediante autorização deste órgão ou por imposição
legal. O texto também garante ao consumidor o direito de
pedir a exclusão de seu cadastro do banco de dados. “Com
esse documento estamos combatendo a ideia do governo,
que pretende criar uma autarquia, mais um organismo
estatal para policiar a coleta de dados no Brasil”, observa
o criador do Projeto de lei 4.060/2012. “Ele agora passa por
análise das comissões temáticas para depois ser votado
em plenário, fato que deverá acontecer ainda neste ano.”
regulamentação mais específica sobre
o tema.
como a erotização precoce, o estresse
familiar e a violência.
Revista da ESPM – Que estudos o
instituto utiliza para comprovar o mal
que a propaganda infantil pode fazer às
crianças?
Revista da ESPM – Em uma sociedade
cada vez mais voltada ao consumo, com
pessoas recebendo estímulos o tempo
todo, é possível evitar que a criança seja
impactada com ações de marketing?
Isabella – Fazemos revisões de
pesquisas feitas no mundo sobre
o assunto. Elas são praticamente
unânimes em demonstrar que as
crianças até 12 anos de idade não têm
condições de analisar criticamente as
mensagens publicitárias e, por conta
disso, acabam sendo envolvidas pela
propaganda, que convida os pequenos a
consumir habitualmente e em excesso
produtos infantis e alimentícios. As
pesquisas mostram, por exemplo, que
a obesidade infantil seria diminuída se
não houvesse incentivos ao consumo
de alimentos com altos teores de sódio,
gorduras e açúcar e de bebidas não
alcoólicas de baixo teor nutricional. O
bombardeio publicitário aos pequenos
contribui para a formação de valores
materialistas e consumistas, bem como
para o agravamento de problemas
Isabella – A ideia não é evitar que a
criança seja impactada ou que ela
viva em uma ”bolha”, mas que ela não
esteja sozinha quando isso acontecer
para que tenha a mediação de um
adulto. Em um shopping ou num
supermercado, a criança está sempre
acompanhada de um adulto, que, nesse
momento, tem condições de mediar
as ações de marketing realizadas
nesses ambientes. O ideal é que toda
publicidade direcionada à criança
se reinvente e passe a falar com os
adultos responsáveis por ela.
Revista da ESPM – Nesse contexto,
qual seria o cenário ideal para a prática
do marketing?
Isabella – Aquele que não enxergasse a
criança exclusivamente como
um nicho de mercado, mas como o
futuro da humanidade. E que, por
isso, estivesse prioritariamente
preocupado em resguardar todos
os direitos da infância, inclusive
quanto à sua integridade física,
psíquica e moral. Um mundo que não
direcionasse mensagens comerciais
ao público infantil.
Revista da ESPM – Qual o ganho
da sociedade com a restrição à
propaganda infantil?
Isabella – É um ganho de futuro,
a construção de uma infância
preservada, que terá a possibilidade
de se desenvolver livre do assédio
consumista. Esse público poderá se
transformar numa sociedade adulta
com valores mais humanísticos e
menos materialistas. Em um mundo
que precisa urgentemente discutir a
forma como se produz e se consome
para que o planeta Terra não acabe em
termos de recursos naturais, a restrição
ao incentivo de consumo junto às
crianças é urgente.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
37
mercado
Liberdade de expressão
Como disse Leifert no V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, a indústria está sofrendo bullying,
já que esse tipo de regulação defende uma falsa ideia de
restrição à liberdade de informação. “Se o produto é lícito
e seguro para o consumo, as escolhas dos consumidores
devem ser respeitadas.”
O executivo também atacou as inúmeras normas impostas
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), principalmente à publicidade de medicamentos, bebidas alcoólicas, refrigerantes e alimentos. “Tentar resolver problemas
graves, como obesidade, tabagismo e alcoolismo, por meio
de decretos e leis é uma ideia muito simplista e demagógica.”
Segundo Leifert, este é um movimento que vai contra
uma tendência mundial de flexibilização das leis. “Neste momento, no Parlamento Europeu, na Organização
Mundial da Saúde e no FDA americano ganha força a ideia
da mobilização de todos os interessados – fabricantes de
produtos, órgãos de defesa do consumidor, mídia, agências
de publicidade e Estado –, unidos no esforço de encontrar
a melhor resposta para as aspirações da sociedade em
termos de saúde e bem-estar.” Com base nesse conceito,
se o Estado reconhecer que existe excesso de sódio em
alimentos, vai discutir com os fabricantes o nível tolerável
da substância nessas fórmulas e não restringir a publicidade. “Propaganda não tem excesso de sal, sódio ou gordura
trans. Os produtos é que podem conter excessos”, afirmou
o presidente do Conar, durante a comissão Liberdade de
Expressão e Democracia do V Congresso, que reuniu no
mesmo palco o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do
Supremo Tribunal Federal, e Roberto Civita, presidente do
grupo Abril, além de Leifert e Dalton Pastore, para debater a
questão. “Existe uma confusão entre produto, propaganda e
consumo no Brasil. Se o Estado tiver de orientar a população,
deve fazer por meio de campanhas regulares. Afinal, ele é
um grande anunciante e tem meios de promover a chicória,
o chuchu e a abobrinha em lugar de proibir a propaganda de
alimentos industrializados. Outro exemplo é o banimento
de crianças nos comerciais, que fará com que o Brasil se
apresente como uma sociedade doente.”
Em uma aula de democracia, o ministro Ayres Britto
explicou por que este tipo de projeto é ilegal: “A Constitui-
“Imprensa e democracia são irmãs siamesas. Se cortar o cordão
umbilical, o resultado é a morte das duas. Daí a importância de a
lei conciliar liberdade com responsabilidade”
Carlos Ayres Britto, ministro do STF
38
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Quem cala, consente!
”Vivemos em um país
democrático, onde a lei de
mercado vale para todas as
áreas. Então, por que a cultura
não pode se autorregulamentar?”
Com esta pergunta, o ator Odilon
Wagner abriu sua apresentação
no V Congresso. ”Sofremos um
processo de patrulhamento
grande pelo Estado.” Inserida
na chamada indústria criativa, a
cultura representa hoje 5% do PIB
brasileiro e, segundo o ator, recebe
apenas 1,5% de todo o incentivo
fiscal concedido aos diversos
setores da economia. ”O governo
investe cerca de R$ 2 bilhões por
ano na cultura. Somos o penúltimo
orçamento da União, só perdemos
para a pesca, embora a arte faça
parte da chamada economia
criativa, que no ano passado
movimentou R$ 40 bilhões em
negócios apenas na cidade
de São Paulo. Esse problema
estrutural ocorre devido à falta de
mobilização dos artistas. Se nos
portássemos como indústria, a
situação seria bem diferente.”
o Estado trata o universo das
artes no Brasil. ”Este é um país
esquizofrênico. O governo vive
liberando pacotes de incentivo
para elevar a produção da
indústria nacional e na área
cultural acontece o inverso: quem
produz é punido.”
Como exemplo, Wagner cita a
questão da meia-entrada. ”Na
década de 1950, o cinema não
estava indo bem e resolveu
dar desconto para os jovens
como forma de atrair mais
público. A iniciativa virou direito
adquirido. Hoje, o governo exige
a meia-entrada, mas não dá
uma contrapartida, um subsídio
para a categoria.” Para ele, o
problema está na forma como
Com o objetivo de mudar este
cenário, Wagner vem trabalhando
na conscientização da sociedade,
por meio da divulgação de
estudos que demonstram a
importância da atividade. ”Um
estudo aponta que, para cada
real investido na cultura, a cidade
tem um retorno de R$ 5 a R$ 6”,
comenta o ator, na expectativa de
que esse espetáculo termine com
um final feliz.
ção nacional diz que não é pelo temor do abuso que se vai
proibir o uso”. Ele acrescenta ainda que a informação deve
ser vista como meio, e não como fim, por isso é um direito
fundamental do cidadão. “De origem grega, demo significa
povo e cracia, governo. Esta combinação é o visual do poder político, que se estrutura observando um movimento
ascendente de prestígio das bases e limitação e controle
das cúpulas.” Isto é o mesmo que tirar o povo da plateia e
colocá-lo no palco das decisões coletivas. “É por isso que os
dois primeiros fundamentos da Constituição são: artigo 1º,
incisos I e II: soberania e cidadania. A Constituição também
garante que nenhuma lei poderá conter dispositivo que
apresente embaraço à liberdade jornalística. “Imune à censura prévia, a imprensa livre vitaliza, tonifica e robustece os
conteúdos da democracia”, assegura Ayres Britto. “Imprensa
e democracia são irmãs siamesas. Se cortar o cordão umbilical, o resultado é a morte das duas. Daí a importância de a
lei conciliar liberdade com responsabilidade.”
Já Civita aproveitou sua participação no V Congresso
para apresentar o modelo de Estado moderno, que só se desenvolve quando estruturado sobre três pilares: democracia, liberdade de imprensa e livre iniciativa. “Esta é uma das
mais extraordinárias
simbioses do mundo
moderno, que forma um tripé indissolúvel, um não
sobrevive sem
o outro. Sem democracia, não
há livre iniciativa,
que para existir precisa da concorrência. Esta, por sua vez, mantém
viva a publicidade, que alimenta
a imprensa livre, o alicerce da
democracia.”
E o caminho para a preservação deste tripé passa necessariamente pela responsabilidade
compartilhada entre sociedade,
iniciativa privada e Estado. “A linguagem é poderosa. Ela não apenas descreve a realidade. Ela cria a realidade
que descreve”, conclui Desmond Tutu.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
39
“Pela lei, um homem é culpado quando viola os direitos dos
outros. Pela ética, ele é culpado se apenas pensa em fazê-lo”
file404
Emmanuel Kant
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
dono
do Estado?
Quem é o
Por Heródoto Barbeiro
A
s pessoas, consciente ou inconscientemente, se
relacionam com o Estado para exercer o direito de
participar da escolha do governante ou de obedecer
à sinalização de trânsito para chegar em casa. O
Estado atravessa nosso cotidiano com leis, governos, burocracia,
forças armadas e policiais. Não é possível viver sem se relacionar com ele. A questão é quanto ele pode intervir na intimidade
das pessoas a pretexto de organizar a sociedade em busca da
felicidade, como disse Thomas Jefferson. As ideologias políticas
do século 19 defenderam sociedades com Estados fortes, que
teriam a missão de criar uma nova ordem social. Para isso,
tinham poderes discricionários, outorgados, supostamente,
pela sociedade, para fazer o que aqueles que se apropriaram do
poder do Estado julgassem o que deveria ser feito. O resultado
dessa ação todos conhecemos.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
41
história
file404
Desde o século 16, com Nicolau
Maquiavel, se discute a organicidade do Estado e suas limitações.
Esse debate foi condicionado
historicamente e, no final do
século 18, a burguesia liderou o
processo de arruinar com o Estado
absolutista e advogar uma nova
concepção que tem como base
o contrato social. Essa vertente,
base da concepção liberal, se
materializa com as revoluções
inglesa, americana, francesa e o
processo das independências das
colônias ibéricas, onde se insere
o Brasil. O principal contrato é
a Constituição, escrita ou não. O
Brasil surgiu libertado no início
do século 19, sob a égide de um
conflito que culminou com o fechamento da primeira Assembleia
Constituinte. Portanto, o primeiro
“contrato” foi imposto pelo soberano, que era o próprio Estado,
e se preservou até o advento da
República. Portanto, era uma carta
outorgada e não uma Constituição.
As constituições brasileiras, outorgadas ou não, foram redigidas e
promulgadas pelas oligarquias dominantes, com mínima
participação popular. Ela sabe que a única coisa que o poder
respeita é o poder, como disse o filósofo de Florença. Poder
é a capacidade de mudar as coisas e dar forma ao Estado,
como fizeram as oligarquias ao longo de nossa história,
sejam elas oriundas do latifúndio, das indústrias, dos
bancos ou dos demais setores poderosos do mercado. Na
sociedade aberta, geralmente não se herda o poder, já na
oligárquica ele é hereditário. Elas aprenderam que a melhor
forma de consolidar o seu poder é reconhecer os sinais de
ameaça e agir. Até mesmo propondo a redação de um novo
pacto social para não perder poder. Cabe aqui também
outra reflexão de Maquiavel, que disse: “Os fracos não
vão herdar a Terra, mas os aliados terão mais chances de
ajudar a herdar por eles”. Pode parecer cínico, mas está em
O Príncipe (traduzido por Mauricio Santana Dias, Editora
42
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
O comportamento da
sociedade sugere que
eu considere que o
Estado invade a minha
privacidade quando
atropela minhas
convicções pessoais.
Mas é justo quando
invade a privacidade
dos outros para impor
as minhas convicções
Penguin). A liderança da elite na organização do Estado
brasileiro sempre foi a de projetar uma imagem de força
para obter o aval da população.
Somos ou não programados para obedecer às autoridades? O “contrato” diz que sim. Fomos educados para
obedecer a ordens dadas pelas autoridades; como simples agentes, deixamos de assumir responsabilidades e
obedecemos pacificamente. Não somos preparados para
desenvolver uma reação cidadã, democrática e popular.
É bom lembrar que o “contrato” deixa claro que a autoridade vem com o cargo, e isso é inegociável. Outra lição
de Maquiavel que se aplica ao longo do tempo na nossa
história é a de que o medo é uma forma de conquistar
e manter o poder. A educação escolar replicou durante
muito tempo o dever de obedecer, e não de reagir, ao que
nossa consciência não aceita. É assim, porque sempre
foi assim e vai ser assim. Afinal, estar coletivamente
errado é mais seguro do que estar individualmente
errado. As elites aprenderam com Adam Smith que a
primeira superioridade para se introduzir a submissão
é a qualificação de força. E a praticaram. Já Karl Marx
identificou a formação dessa elite: “A compra da força de
trabalho por um período fixo é o preâmbulo do processo
de produção, e esse preâmbulo é constantemente repetido quando o prazo estipulado chega ao fim, quando
um período definido de produção, como uma semana
ou um mês, tenha decorrido”. Ou seja, o que chamou de
enriquecimento através da acumulação de mais-valia ou
excedente de capital.
Até mesmo a Constituição de 1988 foi fruto das
vontades das elites organizadas, e o partido popular,
representado pelo PT, se recusou a assiná-la, ainda que
posteriormente tenha aderido e se aliado às elites a que
tanto se opunha. A ausência de participação popular, da
organização das forças populares de pressão, facilitou o
advento de um Estado tutelar, capaz de impor, de cima
para baixo, as regras do contrato social. Esse elitismo se
manifestou desde a primeira Constituição republicana,
e as elites se sucedem com o passar dos anos. Um grupo
eleito, representante das elites, obteve a procuração para
assinar o contrato em nome de todos. Um processo democrático apenas no formalismo. A última Constituição
deixou uma brecha considerável às PECs (Projetos de
Emendas Constitucionais), uma saída para “aprimorar”
o texto constitucional.
“Os fracos não vão herdar a Terra,
mas os aliados terão mais chances
de ajudar a herdar por eles”
Nicolau Maquiavel
A tradição mostra que nem mesmo o Estado cumpre com
o contrato, uma vez que os governos têm mecanismos de
desobediência. O Estado republicano nasceu laico e, no
entanto, a moeda nacional diz que nós acreditamos em
Deus, os símbolos religiosos cristãos estão espalhados
pelos prédios públicos até hoje. No Congresso, bancadas
religiosas querem impor a todos as suas convicções, como
no caso do debate sobre o aborto, o casamento homossexual
e tantas outras questões. O Estado aprimora suas defesas
que, no fundo, é a manutenção da vontade e das concepções
de vida da elite. Elas julgam ser o farol que vai nos conduzir
a uma sociedade mais aberta, justa e solidária. Ainda não há
organização comunitária, local e popular. Por isso, não há
cidadania. A maior parte da população brasileira continua
sendo objeto, e não sujeito, de sua história. A identidade de
um homem não pode mais ser avaliada socialmente apenas pelo que ele possui, mas pelo que faz. Parafraseando
Edmund Burke, a única coisa necessária para o triunfo da
elite é que os demais nada façam.
O comportamento da sociedade sugere que eu considere
que o Estado invade a minha privacidade quando atropela
minhas convicções pessoais. Mas é justo quando invade a
privacidade dos outros para impor as minhas convicções.
Isso demonstra que há uma disputa do seu controle não
para reorganizá-lo de uma forma democrática, mas de
manipulá-lo de acordo com os interesses de quem tem
o poder. As mudanças ocorridas na sociedade brasileira
na última década, os confrontos políticos e ideológicos,
a ascensão econômica de novas classes sociais, a nova
comunicação através das redes sociais, a globalização da
economia e a impossibilidade de segurar notícia são os
motores que movem essas mudanças. Afinal, como diz
Rosa Luxemburgo, quem não se movimenta não percebe
as correntes que o prendem. Heródoto Barbeiro
Escritor e jornalista da Record News TV
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
43
entrevista
44
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Luiz Lara
A solução
é educar,
não proibir
F
ormado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), Luiz Lara
é conhecido no meio publicitário como um dos maiores defensores
da liberdade de expressão e da livre iniciativa do Brasil. Presidente
da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), ele
advoga a favor da propaganda ao estimular a discussão do papel
da comunicação na sociedade. “Defendo que todo produto legalmente produzido,
distribuído e comercializado possa ser propagado, respeitando as leis do país”, comenta Lara, que em 1992, junto com Jaques Lewkowicz, fundou a Lew’Lara, atual
Lew’Lara/TBWA.
Desde então, esse profissional, especializado em planejamento estratégico,
coleciona inúmeros cases em seu currículo. O Banco Real foi cliente da agência,
que criou o slogan “O banco da sua vida” e todo o conceito de sustentabilidade da
marca. Natura, Pedigree, Adidas, TIM e Nissan também contaram com a ajuda da
equipe de Lara para construir seus posicionamentos de marca. Em maio, ele liderou o V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, que teve como tema a
democracia e a liberdade de expressão.
Nesta entrevista, Lara mostra como a educação – no lugar da proibição – pode
contribuir para a evolução da ética e da responsabilidade do conteúdo das mensagens publicitárias.
Entrevistado por Francisco Gracioso e Anna Gabriela Araujo
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
45
entrevista
Gracioso – Lara, como presidente
da Abap, você pode comentar um
dos grandes temas abordados no V
Congresso Brasileiro da Indústria
da Comunicação: a democracia e a
liberdade de expressão?
Lara – Liberdade de expressão
e democ rac i a são v a lores q ue
posso fa la r como cidadão porque acredito neles. Na década de
1980, participei de movimentos
est uda nt is, lutei pela redemo cratização do Brasil, e acredito
que a liberdade de expressão é o
a licerce f undamenta l da democracia. Como publicitário, prefiro
fa lar mais sobre a liberdade de
expressão comercial. A publicidade é um instrumento legítimo
da l iv re i n ici at iva , que e x i ste
para alimentar o empreendedor ismo e o processo de cr iação,
construção e posicionamento de
marcas, gerando uma percepção
de valor maior que o da etiqueta
de preço. Nesse processo, temos
a capacidade de desenvolver mercados , c r i a r nov a s cat egor i a s
de produtos e ser a indústria de
ponta da economia criativa, que
regula e gera riquezas, empregos
e i mpostos. Pa ra ter mos l iberdade de ex pressão no Brasi l, é
fundamental que os veículos de
comunicação – entre emissoras
de televisão e de rádio, jornais,
revistas e portais de internet –
tenham os recursos trazidos pela
publicidade. A liberdade comercial é irmã siamesa da liberdade
de expressão, porque são os re-
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
“A liberdade comercial é
irmã siamesa
da liberdade de
expressão, porque são
os recursos trazidos
pela publicidade
criativa e ética que
constroem marcas”
cursos trazidos pela publicidade
cr iat iva e ét ica que const roem
ma rcas em di ferentes segmentos da econom ia . É a verba de
grandes anunciantes – das áreas
de v a r ej o, t e le c om u n ic aç õ e s ,
automotiva, cosméticos, higiene
e beleza, a limentos e bebidas –
que permite aos veículos investir
numa programação de qualidade
com um conteúdo isento e independente. Graças a isso, temos
no Brasi l uma comun icação de
primeiro mundo numa economia
ainda em desenvolv imento. No
momento em que o país se torna
a sexta economia mundial, temos
mais de 100 milhões de pessoas
na c lasse méd ia , das qua is 4 0
milhões acabam de ingressar na
c ha mada “nova c lasse méd ia”,
com aspirações e desejos legítimos de consumo. E a publicidade
cumprirá um papel fundamental
de t razer i n for mação, ent reter
e até educa r esses m i l hões de
consumidores. A propaganda não
obriga n ing uém a compra r, ela
respeita a liberdade de escolha
dos consumidores. O que ela faz
é utilizar uma linguagem criativa
para posicionar marcas, acirrar
a compet it iv idade e fa zer com
que o consumidor seja um cidadão mais crítico, exigente e com
ma is opções de escol ha . Hoje,
na era da i nternet, o consu m idor pode estabelecer um diálogo
com a marca, receber e produzir
conteúdo em uma comunicação
posit iva mente i nterat iva . Com
isso, a reputação das empresas
está permanentemente em risco,
porque o consumidor fala mesmo
sem ser cha mado a fa la r. E é a
liberdade de expressão comercial
que permite a ele exercer a sua
liberdade de escolha.
Gracioso – Neste contexto, a propaganda deve contentar-se em agir
como espelho da sociedade refletindo cada momento ou deve intervir,
procurando introduzir valores e
novas formas de comportamento?
Lara – A propaganda sempre é
ref le xo do compor t a ment o de
uma sociedade. Defendo que todo
produto lega lmente produzido,
distribuído e comercializado possa ser propagado, respeitando as
leis do país. Ao longo da sua história, a publicidade demonstrou
que ela pode ser um instrumento
legít imo pa ra dissem ina r bons
hábitos. Não hesito em dizer que
a propaganda brasileira ensinou e
contribuiu muito para a educação
de muitas crianças que aprenderam a escovar seus dentes, numa
linguagem infantil.
Luiz Lara
Gracioso – Trabalhei em campanhas desse tipo.
Lara – Também ensinou, numa
l i ng uagem sut i l e del icada , as
mu lheres a usar absor vente feminino, as donas de casa a lavar
melhor a roupa, a operar a máquina de lavar e muitos out ros
equ ipa mentos domést icos. Então, a propaganda também pode
ser utilizada, como instrumento
legítimo, para dissem ina r bom
compor ta mento em relação ao
consumo responsável de bebidas.
Ela pode ser utilizada de forma
soci a l mente respon sáve l pa ra
dissem inar esse novo conceito
de sustentabilidade que estamos
construindo. Ainda estamos vivendo um período de gerúndio na
questão da sustentabilidade, mas
a propaganda pode, sim, de forma
verdadeira e transparente, disseminar as boas práticas na gestão
de marcas que estão em busca da
equação de seus recursos sociais,
ambientais e econômicos. A propaganda cumpre o papel de estar
à frente do seu tempo, dissemin a ndo b on s h á bit os de for m a
“Defendo que
todo produto
legalmente produzido,
distribuído e
comercializado
possa ser propagado,
respeitando as leis
do país”
proativa. É papel da comunicação educar, informar, entreter.
Uma recente pesquisa do Ibope
r e a l i z a d a p e l a A ba p m o s t r o u
que 87% dos brasileiros gostam,
con hecem e confiam na propaganda brasileira. Diante disso, a
propaganda não pode deixar de
cumprir esse papel relevante. E
se ligarmos a TV aberta ou a cabo,
as rádios, jornais e revistas, veremos vários exemplos de veículos
e agências empenhados em realizar esse tipo de campanha.
Gabriela – Com base na sua experiência no atendimento de contas
como Banco Real e Natura, você
acredita que uma posição humanista favorável à sustentabilidade,
ao respeito à natureza e ao ser humano torna mais remota a possibilidade de intervenção do Estado na
comunicação e no próprio negócio
da empresa?
Lara – Banco Real e Natura não
fizeram publicidade da sustentabilidade. Elas adotaram práticas
sustentáveis na gestão de suas
marcas e buscaram a equação dos
recursos sociais, econômicos e
ambientais no seu dia-a-dia. E expressaram isso na sua comunicação mostrando a missão, os valores e o jeito de fazer de forma responsável, ética e transparente.
Sou contrário a tentar maquiar
prát ica s de empresa s e usa r a
sustentabilidade como modismo.
A propaganda constrói posicionamento e procura integrar diver-
“A propaganda é
um espelho da
sociedade, mas
também cumpre o
papel de estar à frente,
disseminando bons
hábitos de forma
proativa”
sas disciplinas de comunicação
sobre o mesmo diapasão conceitual alicerçado na verdade e na
transparência. O objetivo é criar
uma cultura de marca para transmitir verdade, missão, valores e o
jeito de ser de uma empresa. Esse
posicionamento é construído de
dentro para fora. Então, ela precisa se relacionar com todos os
públicos: funcionários, colaboradores, parceiros, distribuidores,
consumidores, acionistas, órgãos
r e g u l ador e s , a u t or id ade s no s
âmbitos municipal, federal e estadual, ONGs, imprensa e a sociedade como um todo. Não acredito
que a sustentabilidade deva ser
usada para dar um tom mais humanista à marca, ela só deve ser
comunicada se for verdadeira. E
as relações com o Estado entram
no dia-a-dia das organizações e
das empresas, assim como a relação com os demais stakeholders.
Adotar boas práticas é essencial.
O modelo de governança exigido
pelas orga n izações precisa ser
cada vez mais transparente, porque a reputação de uma empresa
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
47
entrevista
está permanentemente em risco
nas redes sociais. Hoje, o melhor
serviço de atendimento ao consumidor são o Twitter e o Facebook.
No si s t e m a de mo c r á t ic o p e lo
qual optamos, a comunicação entra como um valor fundamental e
estratégico da empresa. Por mais
que ten ha boas prát icas industriais e produtos de qua lidade,
essa empresa não vai prosperar
caso não estabeleça uma gestão
de marca na relação com todos os
seus stakeholders.
Gracioso – Para alguns filósofos,
o livre-arbítrio pode fazer o homem
regredir à selvageria na sua expressão maior. E há os que defendem o
Estado como regulador, chegando
aos países totalitários. São os extremos. Qual sua opinião sobre isso?
Lara – Acredito na tese de Hobbes: “Por trás de nós, homens,
sempre há um lobo”. Um país é
tanto melhor quanto mais sólidas
forem suas instituições. Defendo
o liv re-a rbít rio, mas ta mbém a
regulação no sentido de que devemos respeitar as leis. No que concerne à comunicação, acredito no
arcabouço jurídico formado pelo
sistema híbrido, no qua l temos
a Constituição Federal – que no
artigo 820, inciso IV, defende que
“é livre a publicidade comercial,
respeitadas algumas restrições a
medicamento, tabaco e bebidas” –, o
Código de Defesa do Consumidor
e o Código de Autorregulamentação P ublicitá ria . Ju ntos, eles
formam um sistema híbrido, pro-
48
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
“O modelo de
governança exigido
pelas organizações
precisa ser cada vez
mais transparente,
porque a reputação
de uma empresa está
permanentemente em
risco nas redes sociais”
tege o livre-arbítrio, os direitos do
cidadão e a liberdade de escolha
do consumidor em qualquer segmento da economia. O modelo do
Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária)
– criado em 1980, após a realização do III Congresso da Indústria
da P ubl icidade – vem ju lga ndo
campan has que eventua lmente
tenham abusado da ética, mentido, desrespeitado o consumidor
ou a liv re concorrência . Em 32
anos, mais de 7,5 mil campanhas
foram julgadas pelo Conar, que
é permanentemente atualizado,
visando atender às demandas da
sociedade. Esse sistema deu credibilidade à comunicação brasileira
e a tornou uma indústria pujante,
que representa 2% do PIB e contribui para o desenvolvimento da
livre iniciativa e a formação de
um mercado de consumo interno
for te no Bra si l . A propaga nda
desenvolve hábitos, antevê comportamentos e contribui para a
cultura nacional. Cumprimos bem
nossa missão. Sobre a sua pergunta, Max Weber dizia: “Todos nós,
individualmente, temos a nossa
ética de convicção pessoal ”. Fortalecer as instituições significa
conciliar essa ética de convicção
pessoal com uma ética de responsabilidade coletiva. O arcabouço
jurídico formado pelo conselho de
autorregulamentação do Conar, o
Código de Defesa do Consumidor
e a Constituição Federal representa uma boa ética coletiva.
Gabriela – Em julho de 2011, sua
agência criou a campanha Pôneis
Malditos para anunciar a picape
Frontier, da Nissan. O comercial
fez muito sucesso. Mas também foi
alvo de críticas, com a campanha
sendo julgada pelo Conar, por fazer
a associação de figuras infantis – os
pôneis em desenho animado – com
a palavra “malditos”. Qual sua avaliação sobre o ocorrido?
Lara – Ninguém imagina a repercussão de uma campanha antes que
ela aconteça no âmbito da criação.
Buscamos realçar a vantagem comparativa da marca, que foi percebida pelo consumidor. Hoje, a comunicação não é mais unidirecional,
o consumidor recebe o conteúdo e
estabelece uma conversa, um diálogo com as marcas. A comunicação
é positivamente interativa. Então,
aquilo que é visto na TV aberta é
alimentado nas redes sociais, como
Facebook, Twitter e YouTube. Os Pôneis Malditos foi uma grande brincadeira. Mas o fato de os consumidores poderem acessar o Conar, e
haver esse debate, é uma conquista
da nossa sociedade, da democracia.
Luiz Lara
e promover uma discussão aberta com a sociedade brasileira. E
foi isso que propusemos com a
cr iação do por t a l w w w.somostodosresponsaveis.com.br, que
apresenta o depoimento de várias
personalidades e também de pessoas comu ns pa ra most ra r que
somos todos responsáveis. O objetivo é fazer a sociedade evoluir
na ética e na responsabilidade do
conteúdo das mensagens para as
crianças.
Gracioso – E, ao mesmo tempo, educar o público. A educação torna a pessoa capaz de discernir e julgar melhor.
“Pôneis Malditos foi uma grande brincadeira...
A campanha foi julgada e o Conar entendeu
que não seria preciso tirar o comercial do ar, até
porque as crianças crescem ouvindo histórias
como a da Branca de Neve e os Sete Anões”
A campanha foi julgada e o Conar
entendeu que não seria preciso tirar
o comercial do ar, até porque as
crianças crescem ouvindo histórias
como a da Branca de Neve, os Sete
Anões e a da Bruxa Malvada. Este
debate é fantástico.
Gabriela – Baseado nesta experiência, qual deve ser o limite da
publicidade voltada para o público
infantil?
L a r a – S ou pu bl ic it á r io, m a s
também sou pai e educo os meus
filhos. Proibir a propaganda para
cr ia nça s é i mpossível , porque
hoje vivemos na era do conhecimento e da informação. Se você
proíbe a propaganda na T V, ela
continuará acontecendo em revistas e jornais infantis, tablets,
games, internet, shoppings, super mercados, e levadores . . . A s
crianças crescem cercadas pela
m íd i a , porque v ivemos n a so ciedade da livre iniciativa e da
propaganda do consumo. Neste
cenário, o melhor caminho não é
tutelar e proibir, mas sim educar
Lara – Exatamente. Não acreditamos na punição pura e simples,
nem que o Estado deva tutela r
a educação, que começa dentro
de casa, na família. Somos todos
responsáveis pelo conteúdo que é
transmitido para essas crianças.
Gra c i o s o – Como a Abap e os
publicitários mais conscientes encaram o fato de termos hoje no
Congresso Nacional mais de 200
projetos de lei que de alguma forma
cerceiam, limitam ou até proíbem a
propaganda?
Lara – É normal que em um sistema democrático o Congresso
Nacional discuta projetos de lei.
O que nos cabe, enquanto entidade, é oferecer a nossa visão ou até
estabelecer um contraponto em
relação a cada projeto de lei que
ali é levado. Após o IV Congresso
Brasileiro da Publicidade, reali-
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
49
entrevista
zado em 2008, criamos a Frente
Pa rla ment a r de Comu n icação,
que é presid ida pelo deput ado
Milton Monti. Desde então, vários
pa rla menta res acompa n ha m a
apresentação de projetos de lei que
estabelecem novas regras, restrições e até proibições para vários
segmentos da publicidade e oferecem a nossa visão, num debate
legítimo e democrático. A Frente
Parlamentar tem funcionado muito bem, porque estamos sempre
atentos e propensos ao diálogo.
Gabr ie la – E que balanço você
faz dos quatro anos de trabalho da
Frente Parlamentar?
Lara – Um balanço extremamente posit ivo, porque até então a
Abap não se pronunciava durante
a aprovação dos projetos de lei.
Não adianta nada ficar achando
que somos vítimas. Somos agentes da sociedade e temos que cumprir com o nosso papel cidadão
de defender e valorizar a nossa
atividade. Este é um canal aberto
ao debate para que possamos aprimorar ainda mais as práticas e o
conteúdo de nossas mensagens. O
objetivo das agências de publici-
“Somos agentes da
sociedade e temos de
cumprir com o nosso
papel de cidadão, de
defender e valorizar a
nossa atividade”
50
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
dade e dos anunciantes é conectar
as marcas e respeitar o público
com o qual elas se relacionam.
Gracioso – O que ocorre nos países mais representativos – Estados
Unidos, Japão, Alemanha, França,
Inglaterra e Itália – a este respeito?
Como as leis e os congressos desses
países tratam a nossa profissão?
Lara – Há diferenças que reflet e m e x a t a me n t e o e s t ág io do
comportamento e o jeito de ser
e de fa ze r de cad a u m desses
países. Nos Estados Unidos, por
exemplo, a livre iniciativa é mais
rad ica l i zada . Já a lg u n s pa íses
e u r op e u s e s t a b e le c e m r e g r a s
m a i s r igorosa s . Temos de nos
inspirar nas boas práticas desses
pa íses, mas nossa propaga nda
conquistou esse patamar porque
temos um modelo brasileiro de
agências de publicidade alicerçado no Cenp (Conselho Executivo
das Normas-Padrão), que reúne
prof ission a is de atend i mento,
pla neja mento, m íd ia , cr iação,
produção e f i na nças dent ro da
mesm a agência . Isso per m it iu
que a propaganda brasileira capacitasse melhor os seus recursos
humanos e ganhasse asas. Hoje,
a criatividade brasileira é respeitada no mundo inteiro. Criamos
modelos de autorregulamentação
inspiradores para outros países e
respeitamos o Código de Defesa
do Consumidor e a Constituição
federal. O Brasil tem peculiaridades e nua nces em re lação à
“O valor futuro da
marca será formado
pela soma de contatos e
interações dela com os
seus diversos públicos”
cu ltu ra, à diversidade e à m isc ige n ação do nos so p ovo q ue
fizera m com que a propaga nda
florescesse, criando uma indústria de comunicação de primeiro
mundo. Então, vamos sim acompanhar, nos inspirar e monitorar
permanentemente as práticas de
out ros pa íses. O Brasi l precisa
respeitar, preservar e perenizar
todas as boas práticas, a governança e as entidades do setor que
garantem o respeito à criatividade, ao talento, à livre iniciativa
e à liberdade de escolha dos consumidores. O que nos trouxe até
aqui são valores importantes que
nos permitirão seguir em frente,
e isso foi corroborado no V Congresso. Temos de lutar por uma
c om u n ic aç ão m a i s i nc l u s i v a ,
criativa, integrada e propensa ao
diálogo.
Gabriela – A Lew’Lara atende a
contas de bebida alcoólica, como a
vodca Absolut, que enfrentam uma
série de restrições na propaganda.
Nesse setor, a regra da educação no
lugar da proibição também poderia
ser válida?
Lara – O Conselho de Autorregulamentação Publicitária evoluiu
Luiz Lara
muito no conteúdo do seu código,
criando uma série de restrições à
propaganda de bebidas alcoólicas,
como a cerveja, que não pode ser
a nu nciada em comercia is com
pessoas menores de 25 anos ou
mostrar o ato de pedir a bebida.
São restrições que atendem às demandas cidadãs da sociedade. Nós,
publicitários, temos de estar cada
vez mais conscientes do nosso papel de fazer campanhas criativas,
respeitar a liberdade de escolha do
consumidor, construir preferências para as marcas, sempre respeitando o Código de Autorregulamentação do Conar. Ao mesmo
tempo, a propaganda deve investir
em campanhas de consumo responsável de bebidas. É importante
que consigamos sempre mostrar
que a propaganda pode ser disseminada para utilizar as práticas de
um consumo responsável.
Gabriela – Para finalizar, como
você vê o futuro da sua profissão?
Lara – O futuro é fascinante, porque estamos na era do conhecimento e da informação. Hoje, com
tantos pontos de contato e interação entre as marcas e seus diversos públicos, aumentou muito a
quantidade de plataformas de mídia e interação. O grande desafio
que se coloca para todos os profissionais de comunicação é como,
a partir de uma ideia memorável,
con st r u i r u m posicion a mento
forte que ponha todas as disciplinas de comunicação sob o mesmo
diapasão conceitual. Isso porque
o valor futuro da marca será formado pela soma de contatos e
interações dela com os seus diversos públicos. A gestão da marca
f icou ma is complexa e o papel
das agências, mais relevante. Os
profissionais de comunicação precisam gerir todos esses pontos de
contato e fazer uma comunicação
mais integrada, eficaz, criativa e
positivamente interativa, porque
“O grande desafio que
se coloca para todos
os profissionais de
comunicação é como,
a partir de uma ideia
memorável, construir
um posicionamento
forte que ponha
todas as disciplinas
de comunicação sob
o mesmo diapasão
conceitual”
hoje o consumidor fala, mesmo
sem ser chamado a falar. Então, a
comunicação não é mais unidirecional e o diálogo é permanente.
O consumidor recebe aquilo que
você d iv u lga no a r, produz u m
novo conteúdo e estabelece uma
conversa com as marcas. Estamos
na era virtual do conhecimento e
da convergência das plataformas
de mídia. A mídia retroalimenta
a mídia, a TV aberta alimenta o
Twitter, que alimenta o Facebook,
que é a l i ment ado por jor n a is,
revistas, TV a cabo, portais de internet, mídia out of home. Estamos
criando mais experiências com os
públicos. Uma empresa não consegue mais viver sem comunicação.
Gracioso – O consumidor está ganhando cada vez mais voz.
Lara – E isso é muito positivo.
A reputação das empresas está
em risco a todo instante, somos
atores em cena aber ta . Acredito que a comu n icação vá v iver
o seu apogeu neste sécu lo e os
profissionais do futuro saberão
percorrer essa grande avenida da
convergência e da integração.
Gracioso – Há vários anos, começamos a falar na ESPM das novas
arenas da comunicação, que representam exatamente o que você acaba de descrever, a multiplicidade
de canais, que são utilizados com o
mesmo objetivo estratégico interagindo entre si, sobre a égide de um
grande guarda-chuva. Estamos vivendo na sociedade do espetáculo.
A própria propaganda tem de ser
um espetáculo para atrair e reter
a atenção do espectador. Enfim, o
futuro nos dirá para onde vamos.
Lara, foi ótimo. Parabéns, porque
você falou com muita clareza e não
deixou nada de fora.
La ra – Foi u m priv i légio esta r
aqui. Muito obrigado.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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realinemedia
mídia responsável
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
O jornalismo
também tem de prestar
contas à sociedade
Sem imprensa livre não existe democracia e vice-versa. A imprensa deve
se pautar no respeito aos princípios que sustentam o estado democrático.
É crucial responsabilizá-la pelos abusos cometidos contra pessoas
acusadas de crimes, sem com isso ferir a liberdade de imprensa
Por Marina Dias
A
Constituição federal estabelece
princípios que devem nortear a
cobertura jornalística de casos
criminais: a liberdade de expressão
e de imprensa; o direito e o dever de informar;
a presunção da inocência; o direito de defesa;
o direito à intimidade; o princípio da dignidade
humana; e o direito de resposta proporcional ao
agravo. Tais garantias são os pilares do estado
democrático de direito.
A Lei de Imprensa foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal,
que proclamou a importância da liberdade
de imprensa, apontando que os parâmetros
para a atuação jornalística já estão previstos
constitucionalmente. O Código Penal estabelece os crimes contra a honra e o Código Civil
regulamenta a indenização por danos morais
e materiais causados pelos abusos cometidos
pela imprensa. Não cabe, em uma democracia,
a interferência do Estado na atuação livre da
imprensa. No entanto, a sociedade deve exigir
mais transparência e responsabilidade dos
órgãos de comunicação.
Nesse sentido, diz Eugênio Bucci [diretor
do curso de pós-graduação em jornalismo com
ênfase em direção editorial da ESPM]: “Quando
as autoridades estatais querem ‘melhorar’ o
jornalismo por decreto, temos o ‘liberticídio’.
Daqui por diante, se jornalistas continuarem
a se recusar a avaliar em público o seu próprio
ofício, teremos o suicídio”.
A imprensa exerce o papel fundamental de
informar e de trazer à tona fatos de inegável
interesse público, que, não fosse a permissão
constitucional, ficariam desconhecidos da sociedade. É atribuição da imprensa jogar luz em
esquemas perversos do crime organizado, que
alimentam um sistema imoral de corrupção e
de tráfico de influência exercido por aqueles que
ocupam o poder estatal. Assim como é inegável
o dever de denunciar a lentidão da Justiça, de
cobrar políticas públicas do Executivo no que
concerne ao sistema de Justiça criminal e segurança pública, de revelar o descaso para com
o sistema prisional e o de fiscalizar projetos de
lei que firam as garantias constitucionais individuais. Da mesma forma cumpre desconfiar de
investigações conduzidas de forma açodada pela
polícia e também duvidar de suas fontes, sejam
promotores, delegados, juízes ou advogados,
quando buscam atrair os holofotes da mídia.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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mídia responsável
Sem imprensa livre e independente não existe democracia e vice-versa. E, justamente por essa ligação
visceral, a imprensa deve pautar seu trabalho na observância intransigente dos preceitos fundamentais que
sustentam o estado democrático, principalmente no
que concerne às garantias constitucionais individuais
que existem para proteger o cidadão do poder estatal
opressivo e que estabelecem as regras do jogo. Não é à
toa que a imprensa sempre teve papel decisivo no restabelecimento das liberdades nos países em que vigorava
a escuridão dos governos totalitários. Da mesma forma,
cumpria aos advogados exercerem função estratégica
de serem porta-vozes dos direitos individuais durante
os regimes ditatoriais.
Afora os momentos em que advogados eram valorizados por lutarem pelo restabelecimento da ordem democrática, sempre existiu um clima de incompreensão com
a função desempenhada pelo defensor. É cada vez mais
frequente ouvir da opinião pública que os advogados
são aliados da impunidade. No entanto, a justiça só se
realiza quando se observa o devido processo legal, o que
só é possível com o amplo exercício do direito de defesa.
Com muita frequência confunde-se a pessoa que está
sendo investigada com o advogado que atua em sua defesa. No entanto, na lição do jurista, escritor e político Rui
Barbosa: “Quando quer e como quer que se cometa um
atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente
por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a
segunda, por mais execrado que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a
primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa ou do
culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado,
inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais”.
Hoje, contudo, observa-se que em muitos casos a
imprensa dissemina esse clima de incompreensão e
intolerância. Nesse espírito, a fala da defesa tem muito
pouca relevância durante a apuração jornalística. Não
são poucos os casos de jornalistas que preferem ouvir a
versão da defesa já perto do fechamento da reportagem
para não correrem o risco de perder a “história” e o suposto “furo”. É uma pena, pois sem dúvida, assim como
a justiça se faz de um equilíbrio entre acusação e defesa,
a boa reportagem é fruto de uma apuração rigorosa de
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
todos os lados envolvidos na história. Os novatos na
profissão, que vivem a pressão surreal do jornalismo instantâneo, deveriam ficar mais atentos à lição dada pelo
jornalista Sidnei Basile [ex vice-presidente de Relações
Institucionais da Abril, que faleceu em março de 2011]:
“Corra o risco de perder o furo; não corra o risco de dar
uma notícia errada”.
É notório e histórico o interesse da sociedade nas
reportagens policiais. O que sempre garantiu às coberturas de crimes, envolvendo ou não pessoas públicas, um
grande espaço na mídia. Não são poucos os exemplos em
ioannis ioannou
A censura prévia é incompatível com a
democracia, mas a imprensa precisa ser
devidamente responsabilizada pelos
abusos que vier a cometer
que a imprensa acabou por propiciar massacres públicos
de pessoas às voltas com a Justiça criminal, violando
frontalmente a presunção da inocência. São também
diversos os textos que discutem a influência da imprensa
nos julgamentos dos casos criminais, sejam eles proferidos por juízes ou pelo júri popular, esses últimos com
muito mais intensidade.
Em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais, intitulado “A mídia e o direito
penal”, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Sergio Salomão Shecaira faz
considerações importantes acerca do papel desempenhado pela mídia no sentido de criar clima de intolerância,
de preconceito e punitivo na sociedade. Com frequência
assistimos a veículos de comunicação realizando verdadeiras “campanhas” de recrudescimento penal, em absoluto desacordo com os valores de respeito ao direito da
dignidade humana. Nesse sentido, Shecaira alerta: “Por
derradeiro, bem é de observar-se que qualquer discussão
acerca do que faz ou deixa de fazer a imprensa, no plano
político ou policial (são realidades nada distantes, até no
plano semântico), só se justifica dentro do contexto da
democracia garantidora da liberdade de pensar e agir. Se
a própria mídia não cria mecanismos asseguradores da
mantença dos valores democráticos, corre o risco, em
face dos resultados decorrentes de sua ação, de sofrer
as eventuais consequências da falta de democracia, que
tanto apregoa defender, mas que não defende”.
É fato que invariavelmente os princípios constitucionais que sustentam a liberdade de imprensa entram em
choque com as garantias constitucionais individuais. Já
que as fronteiras são tão nebulosas, que é muito difícil
traçar uma linha objetivamente sem o risco de ferir alguma das liberdades em jogo. É preciso criar mecanismos
que permitam fomentar discussão permanente sobre os
conflitos em evidência, mobilizando diversos atores da
sociedade: profissionais da imprensa, juízes, advogados,
membros do Ministério Público, agentes da segurança
pública, políticos, sociólogos e, finalmente, o cidadão.
Dessa forma, o grande desafio posto para os veículos
de comunicação está em promover um debate sério,
amplo e comprometido com o intuito de se criarem paradigmas para a realização de um jornalismo responsável,
atento ao direito e ao dever de informar, assim como
as garantias constitucionais individuais. Tal processo
deve ser feito paulatinamente, por meio de um diálogo
constante com a sociedade civil, visando estabelecer um
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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bloomimage/corbis
mídia responsável
marco importante em que a autorregulação realizada nas
respectivas redações surge quase como uma consequência natural e necessária para trazer mais credibilidade,
responsabilidade e transparência à cobertura jornalística. De modo que o cidadão possa entender os mecanismos de apuração do veículo que pretende questionar.
Nesse sentido, a figura do “ombudsman” é exemplar.
Seguindo essa linha de pensamento, vale novamente
citar o jornalista Sidnei Basile, que deixou algumas reflexões interessantes sobre o papel a ser desempenhado
pelas grandes organizações jornalísticas em um mundo
permeado pelo acesso fácil e rápido à informação: “A
maneira como você resgata a relevância para a grande
imprensa é conferir às grandes organizações jornalísticas, ao DNA delas, a certeza de que nelas se apuram
os fatos segundo os rituais da imprensa liberal clássica.
Assegurar o direito de defesa, ouvir todas as partes,
assegurar que não se ‘abrigue’ em informações ‘em off’”.
Em outro texto, Basile afirma que a imprensa tem
“um encontro marcado com a autorregulação”: “Como
satisfazer esse direito (o direito à informação, de que
todo cidadão é titular) sem códigos de autorregulação
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Não são poucos os exemplos em que
a imprensa acabou por propiciar
massacres públicos de pessoas às
voltas com a Justiça criminal, violando
frontalmente a presunção da inocência
que assegurem o direito de defesa de quem esteja sendo
acusado? De que se ouçam as partes? De que se evitem
ao máximo as acusações off the records? De que não se
confunda o leitor misturando, em um mesmo texto,
opinião com notícia? De que não se obtenham notícias
com o jornalista se fazendo passar por outra pessoa? De
que não se vaze o conteúdo de fitas de áudio e vídeo sem
antes explicar ao público os muitos cuidados que foram
tomados para tentar obter as informações de muitas
outras maneiras? Em um regime decente de autorregulação o jornalista finalmente publica o conteúdo da fita
gravada somente depois de convicto da veracidade de sua
apuração profissional, e com seu recurso constitucional
para satisfazer a esse direito de saber o que se passa, que
todo cidadão tem e o jornalista é fiel depositário”.
Além dos jornalistas, há outros protagonistas envolvidos nessa teia tão complexa que é a cobertura pela
imprensa de casos criminais, daí por que tema tão
espinhoso não deve ser adstrito ao ambiente do jornalismo. É preciso avançar e suscitá-lo no universo dos
profissionais do direito.
Afinal essa lógica da devassa realizada pela imprensa
só é possível graças a uma relação simbiótica da imprensa
com muitos operadores do direito. É óbvio e ululante que a
imprensa, por exemplo, não deixará de publicar informações de processo que corre em segredo de Justiça. O que a
imprensa precisa obrigatoriamente fazer é avaliar a relevância, o interesse público da informação a ser revelada.
Bucci analisa tal questão do ponto de vista do jornalismo: “A sociedade não pode ficar refém daquilo que os
poderes do Estado consideram ou não consideram sigilosos. Bem ao contrário, a democracia precisa da imprensa
justamente porque ela é a única capaz de tornar públicas as
decisões que o poder gostaria de tomar às escondidas. Para
que uma sociedade precisa de jornais livres senão para
revelar segredos? O que é uma notícia senão um segredo
revelado? Eis o núcleo da missão da imprensa: investigar
e fiscalizar o poder, informando o cidadão. Sem isso não
há segurança democrática. Guardar o sigilo de Justiça é
função dos juízes. A função da imprensa é descobri-lo e,
a partir daí, considerar a necessidade de publicá-lo. Em
liberdade. A posteriori, e apenas a posteriori, ela poderá
ser responsabilizada, aí sim, na Justiça, pelos excessos
que vier a incorrer”.
Com diferente enfoque, a professora e conselheira do
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Flávia
Rahal, traz considerações relevantes sobre as consequências nefastas da publicidade no processo penal e
dos atores envolvidos na espetacularização do crime:
“O processo penal por si só tem o peso da infâmia para
aquele que sofre e, ainda, para a própria vítima. Por outro
lado, o Estado, na persecução dos fins punitivos, exerce
a atividade investigatória que leva quase que automaticamente a uma violação da vida privada do indivíduo.
A superexposição do processo pela mídia é fermento
para essas duas circunstâncias: acrescenta ainda mais
infâmia ao fato e torna a invasão da vida privada ainda
mais profunda”. Nessa linha de raciocínio, Flávia Rahal
vai adiante e questiona o papel exercido pelos operadores
do direito nessa relação simbiótica com a mídia.
São inegáveis os abusos cometidos pela mídia, porém a
informação que nutre a imprensa é fruto da conduta ainda
mais reprovável de delegados, promotores e juízes que,
em vez de zelar pela observância dos direitos e garantias
individuais penais, alimentam de maneira sórdida esse
espetáculo do crime. É o delegado que disponibiliza para a
imprensa filmar e entrevistar aquele que está sob a custódia do Estado; que permite à imprensa acompanhar a realização de prisões nas madrugadas, flagrando o investigado
ainda de pijamas; o juiz que libera decisão para jornalistas
e não para defesa; o promotor que se presta ao papel de
levar câmera escondida para filmar audiência de processo
que corre sob segredo de Justiça, entre tantos exemplos.
Assim sendo, deve haver um olhar mais holístico
para a questão. Não dá mais para ignorar o fato de que
as outras instituições envolvidas também precisam tomar medidas para prevenir a ocorrência desses abusos
cometidos pelos operadores do direito. É preciso dar um
basta em comportamentos corporativistas para o bem da
democracia e da distribuição da justiça.
Por tudo isso, é crucial dedicar especial atenção à formação dos profissionais de jornalismo e direito.
No mais, cabe ao Judiciário exercer a difícil tarefa de
equilibrar os mandamentos constitucionais que norteiam a cobertura jornalística de casos criminais. Por
um lado, é extremamente importante que a instituição
esteja atenta à propositura de ações indenizatórias como
instrumento de intimidação para cercear a liberdade de
imprensa e de expressão. Por outro, o Judiciário também desempenha papel decisivo no sentido de difundir
uma cultura de maior responsabilidade dos meios de
comunicação. A censura prévia é incompatível com a
democracia, mas a imprensa precisa ser devidamente
responsabilizada pelos abusos que vier a cometer.
Da mesma forma que os desvios do poder estatal, a má
atuação policial e o mau julgamento têm de estar sob o
escrutínio da sociedade, a imprensa não deve se eximir
da sua responsabilidade. Afinal, o mau jornalismo também tem de prestar contas à sociedade.
Marina Dias
Advogada criminal e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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direito penal
Sociedade
digital:
o individual
versus o
coletivo
Por Patricia Peck Pinheiro
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
vladgrin
A
sociedade digital é uma aldeia global conectada. O
indivíduo de hoje, por certo, tem mais voz e opinião do
que uma pessoa de dois mil anos atrás. Vivenciamos
um momento de maior transparência e mais informação, no qual o acesso democrático ao conhecimento proporcionado
pela internet permite que façamos melhores escolhas. A obra
Sociedade da informação no Brasil – Livro Verde (organizada por
Tadao Takahashi, Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação,
2000) assegura que “o conhecimento tornou-se hoje, mais do que
no passado, um dos principais fatores de superação de desigualdades, de agregação de valor, de criação de emprego qualificado e de
propagação do bem-estar. A nova situação tem reflexos no sistema
econômico e político. A soberania e a autonomia dos países passam
mundialmente por uma nova leitura, e sua manutenção – que é
essencial – depende nitidamente do conhecimento, da educação
e do desenvolvimento científico e tecnológico.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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No entanto, estamos em um planeta de recursos escassos, onde há necessidade de não apenas decidir sobre o
momento presente, dentro de uma ótica individual. É
essencial, por uma questão de sobrevivência, desde sempre, planejar o futuro, investir em questões que possam
garantir melhores condições de existência humana na
Terra, de convivência social, tais como segurança, saúde,
habitação, alimentação, trabalho e educação. Nesse sentido, podemos dizer que a realização individual depende
diretamente das escolhas coletivas. O que é feito visando
o todo permite que uma pessoa possa ter mais chances
de garantir sua própria felicidade.
A necessidade de um Estado que possa proteger o indivíduo e permitir seu crescimento e desenvolvimento pessoal
é antiga. De certo modo, a noção de Estado nasceu dentro
do próprio conceito de família, quando ainda éramos
nômades, muito antes da própria Revolução Agrícola. A
escolha de um líder, e a obediência a ele, ocorre também
com os outros animais, que criam modelos sociais para
enfrentar a lei da selva, que é a lei do mais forte. Por
isso, a humanidade optou há muito tempo por construir
um estado de direito, sustentado em regras de conduta,
substituindo o estado de natureza. Como José Afonso da
Silva define em seu livro Curso de direito constitucional
positivo (Editora Malheiros, 1994, p.100), “Estado é uma
60
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Ramin Talaie/Corbis
Meridith Kohut/The New York Times
direito penal
O Estado opressor ainda marca presença
em diversos países, como a Venezuela
de Hugo Chávez, o Oriente Médio com o presidente iraniano Mahmoud
Ahmadinejad, a República Popular
da China comandada por Hu Jintao
e a ditadura no Egito, que ocasionou
uma revolta popular na região
ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros
de uma dada população sobre um dado território, na qual
a palavra ordenação expressa a ideia de poder soberano
institucionalizado. O Estado, como se nota, constitui-se
de quatro elementos essenciais: um poder soberano de
um povo situado num território com certas finalidades.
[...] Uma coletividade territorial, pois só adquire a qualificação de Estado quando conquista sua capacidade de
autodeterminação, com a independência em relação a
outros Estados”.
Xinhua/Nasser Nouri/eyevine
Chen Xiaowei/Xinhua Press/Corbis
Apesar da aparência de modelo ideal, o Estado pode
tornar-se ilegítimo, quando não representa mais a vontade da maioria de um povo. Quando o poder, que deveria
proteger, passa a ser utilizado para oprimir. O Estado
opressor já se apresentou diversas vezes na história,
mais recentemente nas ditaduras que ainda persistem
em países da América Latina, no Oriente Médio, na
China e na África.
O Estado é apenas um meio, um mecanismo para
criação e distribuição de riqueza, e não deve nunca ser
um fim em si mesmo. Quando isso ocorre, há uma ruptura. Por certo, é mais fácil dominar quando há menos
informação. Por isso, há uma tendência de cada vez mais
ser questionado o papel do Estado. Principalmente com
o crescimento do terceiro setor e da mobilização social
que foi potencializada pelo poder da internet, da manifestação e do protesto público digital.
Na busca de um equilíbrio para evitar que a distorção
do modelo criasse um Estado tirano e arbitrário, muitos
países implementaram o princípio tripartite de poderes –
Executivo, Legislativo e Judiciário –, cuja independência
e autonomia são condição sine qua non para garantir a
própria liberdade. O autor de Curso de direito constitucional positivo explica ainda que “o Estado, como estrutura
social, carece de vontade real e própria. [...] Os órgãos do
Estado são supremos (constitucionais) ou dependentes
(administrativos). Aqueles são os a quem incumbe o
exercício do poder político, cujo conjunto se denomina
governo ou órgãos governamentais. Outros estão em
plano hierárquico inferior, cujo conjunto forma a administração pública, considerados de natureza administrativa. [...] Vale dizer que o poder político, uno, indivisível,
indelegável, se desdobra e se compõe de várias funções,
fato que permite falar em distinção das funções, que
fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a
jurisdicional”, afirma José Afonso Silva, na página 109 da
obra citada. Neste sentido a própria imprensa se tornou
essencial para coibir abusos de autoridades.
Por outro lado, diversos estudos mostram que o excesso da liberdade também gera consequências danosas ao
indivíduo. Segundo Eduardo Benzati, “pela psicologia,
quando há escolhas demais, as pessoas ficam infelizes.
Em que medida liberdade em excesso não faz com que
o indivíduo perca o chão?”
Quais são as principais questões que demandam grande reflexão para evolução do formato atual da relação
indivíduo-Estado, até então mais protecionista e paternalista, para outro que seja de maior liberdade individual?
A primeira questão envolve educação. Há necessidade de
que uma pessoa tenha uma formação básica rica em valores
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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anson 0618
direito penal
“Pela psicologia, quando há escolhas demais, as pessoas
ficam infelizes. Em que medida liberdade em excesso
não faz com que o indivíduo perca o chão?” Eduardo Benzati
éticos, para que possa ter maior discernimento na tomada
de decisões. Ou seja, o direito de escolha depende diretamente da capacidade de desenvolver visão crítica, análise,
diagnóstico, estudo de cenários, gestão de risco e opinião.
Deixar alguém decidir, sozinho, com informações erradas
ou incompletas, e tendo ainda dificuldade de raciocinar em
cima de fatores complexos e ecléticos, em um cenário de
mudanças constantes, é extremamente prejudicial.
Dessa forma, o direito ao voto é o exercício máximo da liberdade e deveria ser levado muito mais
a sério. Até porque, em um Estado democrático, o
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
sufrágio é a forma de representação popular que vai
determinar a condução de um povo, seja pelas leis,
seja pelo governo.
Logo, sem uma boa educação, não somos capazes de
fazer boas escolhas, e o voto se transforma em uma ferramenta de manobra e manipulação. Esse é o primeiro
grande problema na relação Estado-cidadão, especialmente no Brasil.
Em seguida, considerando que há necessidade de
estabelecer regras de convivência social, há temas que
precisam ser profundamente estudados. São eles:
proteção de dados pessoais - LATAM
país
status lei ou pl
Argentina
Sim. 25.326 – 2000
Barbados
Lei de Prot. de Dados – 2005
Belize
Nem em discussão
Brasil
Em discussão, mas não como projeto de lei
Chile
19.628 – 1999
Colômbia
Projeto de Lei do Senado nº 184 – 2000
Costa Rica
Lei nº 8.968 – 2011
República Dominicana
Nem em discussão
El Salvador
Nem em discussão
Guiana Francesa
Sim. A que vigora na França. Lei de
Processamento de Dados desde 1978
Guatemala
Em discussão, nº 4.090 – 2009
Guiana
Nem em discussão
Honduras
Nem em discussão
Jamaica
Nem em discussão
México
Sim. Desde 2010
Nicarágua
Em discussão, nº 5.378 – 2008
Panamá
Nem em discussão
Paraguai
1.682 – 2001
Peru
Em discussão, nº 4.079 – 2009
Suriname
Nem em discussão
Trinidad e Tobago
Em discussão desde 2011/Jan
Uruguai
Lei nº 18.331 – 2008
Venezuela
Nem em discussão.
Fonte: Patricia Peck Pinheiro Advogados, 2012
» P rivacidade do indivíduo versus
segurança pública coletiva
» L iberdade de expressão versus responsabilidade
» I dentidade obrigatória versus anonimato
» P roteção de dados versus acesso à informação
» Crimes digitais (novos tipos penais)
Esses são os grandes temas do direito digital, ou seja, do
direito aplicado a um modelo socioeconômico-políticojurídico de sociedade que se manifesta de forma não
presencial, por meio de testemunhas-máquinas, provas
eletrônicas, e na qual o modelo de riqueza é a informação, sem fronteiras físicas ou temporais, em tempo real.
No tocante à privacidade, a Constituição federal de
Toda informação nasce pública e só
terá seu acesso protegido se estiver
enquadrada nas hipóteses legais que
justifiquem essa medida de segurança
1988, em seu art. 5º, inciso X, garantiu a proteção do indivíduo, em especial de sua vida privada, honra, imagem e
reputação. Interessante que, em uma primeira análise, já
se verifica o desafio dessa garantia quando confrontada
com o direito à liberdade de expressão. Isso ficou resolvido
na mesma norma, em seu art. 5º, inciso IV, que determina
a livre manifestação de pensamento e proíbe o anonimato,
assumindo a presunção de que todos podem falar o que
pensam, mas devem responder pelo que dizem.
Portanto, em apenas dois artigos da Lei Magna de nosso
ordenamento jurídico, há uma tentativa de harmonizar a
vontade do indivíduo (privacidade, liberdade, anonimato)
com a necessidade de proteção dos demais, do coletivo
(segurança, responsabilidade, identidade obrigatória).
Recentemente, foi aprovada a Lei de Acesso à Informação (LAI), de nº 12.527/11. Então, agora o princípio vigente
no Brasil no tocante aos dados que estão na administração pública e nas empresas de economia mista é o da
publicidade e transparência (art. 3º, inciso I, da Lei), ou
seja, toda informação nasce pública e só terá seu acesso
protegido se estiver enquadrada nas hipóteses legais que
justifiquem essa medida de segurança (previstas nos arts.
23 e 24 do mesmo diploma legal).
Isso demonstra a cobrança do próprio povo brasileiro
de que o poder público cumpra com o dever de assegurar
a gestão transparente da informação, propiciando amplo
acesso a ela e sua divulgação. Apenas, excepcionalmente,
as informações serão protegidas, em princípio, só nos
casos em que elas estiverem arroladas como sigilosas,
se representarem um risco à segurança ou à soberania
nacional, ou se já estiverem protegidas por outra lei,
como ocorre com o segredo de Justiça e com o segredo
industrial, este último previsto na Lei nº 9.279/96.
Por outro lado, cresceu a discussão de projetos de lei de
proteção de dados sensíveis, de forma a complementar o
próprio Código de Defesa do Consumidor, no que tange
ao uso dos dados dos indivíduos por empresas privadas
ou públicas. A tabela ao lado demonstra o crescimento
de importância dessa temática na América Latina.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
63
lee avison photography
direito penal
Patrulha virtual
O Projeto de Lei 2.793/2011,
de autoria do deputado
Paulo Teixeira, propõe alterar
o Código Penal brasileiro
para tratar de crimes como:
A invasão de dispositivo
informático. Art. 154-A:
devassar dispositivo
informático alheio,
conectado ou não à rede de
computadores, mediante
violação indevida de
mecanismo de segurança
e com o fim de obter,
adulterar ou destruir
dados ou informações
sem autorização expressa
ou tácita do titular do
dispositivo, instalar
vulnerabilidades ou obter
vantagem ilícita.
Pena – detenção, de 3 (três)
meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Na mesma pena
incorre quem produz,
oferece, distribui, vende
ou difunde programa de
64
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
computador com o intuito
de permitir a prática da
conduta definida no caput.
§ 2º Aumenta-se a pena
de um sexto a um terço se
da invasão resulta prejuízo
econômico.
§ 3º Se da invasão resultar
a obtenção de conteúdo de
comunicações eletrônicas
privadas, segredos
comerciais e industriais,
informações sigilosas
assim definidas em lei,
ou o controle remoto não
autorizado do dispositivo
invadido: Pena – reclusão,
de 6 (seis) meses a 2 (dois)
anos, e multa.
§ 4º Na hipótese do § 3º,
aumenta-se a pena de um
a dois terços se houver
divulgação, comercialização
ou transmissão a terceiro,
a qualquer título, dos dados
ou informações obtidos, se
o fato não constitui crime
mais grave.
§ 5º Aumenta-se a pena
de um terço à metade
se o crime for praticado
contra: I – Presidente da
República, governadores e
prefeitos; II – Presidente do
Supremo Tribunal Federal;
III – Presidente da Câmara
dos Deputados, do Senado
Federal, de Assembleia
Legislativa de Estado,
da Câmara Legislativa
do Distrito Federal ou
de Câmara Municipal; ou
IV – dirigente máximo da
administração direta e
indireta federal, estadual,
municipal ou do Distrito
Federal.
A interrupção ou
perturbação de serviço
telegráfico, telefônico,
informático, telemático ou
de informação de utilidade
pública. Art. 266
§ 1º Incorre na mesma pena
quem interrompe serviço
telemático ou de informação
de utilidade pública, ou
impede ou dificulta-lhe
o restabelecimento. § 2º
Aplicam-se as penas em
dobro se o crime é cometido
por ocasião de calamidade
pública.
A falsificação de
documento particular –
falsificação de cartão.
Art. 298
Parágrafo único. Para
fins do disposto no caput,
equipara-se a documento
particular o cartão de crédito
ou débito.
Outro projeto de lei, o
PL 84/1999, de autoria do
deputado Eduardo Azeredo,
propõe, por exemplo, alterar
o Art. 298 para “falsificação
ou alteração de dado
informático ou documento
particular – falsificar ou
alterar, no todo ou em
parte, dado informático
ou documento particular
verdadeiro”.
Considerando a LAI, recentemente aprovada, isso
poderia parecer até contraditório, mas não é. Uma coisa
é a transparência da informação nos órgãos públicos,
outra é a necessidade de proteger o cidadão de abusos
no uso de seus dados. Isso porque há hoje uma grande
oferta de serviços gratuitos, que na verdade são pagos
com informações que depois são utilizadas muitas vezes
para propósitos que o usuário nem imagina.
Como viabilizar o direito ao protesto pacífico na internet e ao mesmo tempo garantir a segurança dos internautas, coibindo ações que tiram do ar websites de serviços
de utilidade pública prejudicando milhares de pessoas?
Como exposto, há um limite bem sutil entre liberdade e
abuso. Isso só consegue ficar mais bem definido com investimento em educação, primeiro ponto que apontamos
como essencial para garantir a própria liberdade.
Pegando esse gancho, entramos na discussão da necessidade de novas leis que tipifiquem os crimes digitais.
Em muitos casos, eles são apenas um novo modus operandi de um crime antigo, já previsto no Código Penal,
mas, em algumas situações, trazem uma nova conduta,
não tratada ainda como ilícita pelo ordenamento jurídico. Como exemplo, temos o crime de fazer um vírus
ou o de disseminar um arquivo malicioso, ou ainda o
crime de invadir uma rede, um computador, ou mesmo
o celular de uma pessoa, para obter dados.
Desde 1999, o Brasil discute o projeto de lei de crimes
eletrônicos, por meio do Projeto de Lei 2.793/2011, de
autoria do deputado Paulo Teixeira, que propõe alterar
o Código Penal brasileiro para tratar de crimes como a
invasão de dispositivo informático (Art. 154-A); a interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico,
informático, telemático ou de informação de utilidade
pública (Art. 266); e a falsificação de documento particular e de cartão (Art. 298). (Ver boxe na página ao lado.)
Nem o ataque das quadrilhas fez o projeto andar,
como o efeito “Carolina Dieckmann”. O vazamento
Uma coisa é a transparência da
informação nos órgãos públicos, outra
é a necessidade de proteger o cidadão
de abusos no uso de seus dados
O vazamento de fotos íntimas de uma
celebridade trouxe à tona novamente a
importância de se aprovar uma lei como
essa. Isso porque a liberdade de um vai
até onde não fira o direito de outro
de fotos íntimas de uma celebridade trouxe à tona
novamente a importância de se aprovar uma lei como
essa. Isso porque a liberdade de um vai até onde não
fira o direito de outro. Mas é bem difícil legislar sobre
a matéria, pois exige conhecimento técnico. Além
disso, o computador não consegue, como testemunha
que é, diferenciar uma conduta dolosa (com intenção)
de uma culposa (sem intenção), o que faz com que
haja possibilidade de criminalizar condutas que, em
tese, seriam inocentes, como mandar um vírus de
computador para outra pessoa sem querer.
Precisamos, sim, aprender a usar a tecnologia de
forma ética, segura e legal. A liberdade não pode se
tornar uma bandeira para proteção de criminosos. O
anonimato, por si só, estimula prática de ilícitos. Há
necessidade de o Estado ter uma atuação social forte,
mas que garanta a livre iniciativa com o mínimo de
intervenção possível.
Concluindo, independentemente do modelo que se
adote no futuro para regular melhor a relação entre o
Estado e o indivíduo, sabemos que a perda da crença
na própria Justiça pode criar uma próxima geração,
herdeira da geração Y, que faz justiça com o próprio
mouse. E aí teremos voltado para o estado de natureza,
o que representará um grande retrocesso. A informação
tem de construir e não banalizar, além de estimular
a evolução da humanidade cada vez mais solidária e
comprometida. O excesso de individualismo nos torna
mais animais. Como dizia Thomas Hobbes, “o homem
é o lobo do homem”.
Patricia Peck Pinheiro
Especialista em direito digital, formada pela Universidade de São
Paulo, fundadora da Patricia Peck Pinheiro Advogados, autora do livro
Direito digital e do eBook iMarketing – direito digital
na publicidade (twitter: @patriciapeckadv)
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
65
ordem e progresso
Stefano Bianchetti/Corbis
A questão territorial e a
proteção das divisas sempre
estiveram associadas ao
papel assumido pelo Estado
Moderno, desde o seu
nascimento, com Maquiavel
66
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Em defesa
do Estado
Por Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos
“E
ra uma vez um gigante egoísta que não
deixava as crianças comerem frutas de
seu quintal. Um dia ele foi castigado. As
árvores do jardim secaram e as crianças
nunca mais voltaram a brincar em seu jardim” (Oscar Wilde:
El gigante egoísta). Assim os “gigantes” dos bancos quebraram
a economia do mundo, em 2008. Milhares de famílias, sem
emprego e sem casa, foram obrigadas a morar dentro de seus
carros, em estacionamentos de supermercados, onde viveram
infelizes para sempre. Um caso mais atual é o do avô grego que,
depois do anúncio de redução da sua aposentadoria, suicidou-se
em frente ao parlamento.
Aristóteles, em sua Política, iniciou a doutrina do “fim”
do Estado como problema fundamental a todas as teorias
políticas, que começou nos anos 1980 com a “jibarização do
estado” (tribo que reduz as cabeças de seus inimigos). Foi
com Margareth Thatcher e Ronald Reagan, o Consenso de
Washington, tudo isso liderado pelos professores Friedrich
Hayek e David Friedman, em conjunto com seus discípulos
da Escola de Economia de Chicago (Chicago’s Boys).
Segundo eles, o “fim” da intervenção do Estado na economia passava por uma reforma profunda e estrutural do
Estado e da sociedade. Essa transformação estava destinada
a afastar o Estado de suas funções históricas, originárias
de gestão em economia e assuntos sociais, como educação,
saúde e emprego, argumentando que o “mercado” e sua “mão
invisível” resolveriam as reivindicações da sociedade (laisser
faire, laisser passer).
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
67
ordem e progresso
Segundo Aristóteles, o Estado, “como as plantas e
os animais”, é um fim em si. Naquela época, a questão
do Estado e seu fim apareciam como problema central
através da história, sua transformação na visão socialista
ou, simplesmente, sua eliminação segundo os anarquistas. Foram as décadas anteriores à crise de 2008,
particularmente a década de 1980, que fizeram surgir
o discurso da redução ou afastamento do Estado nos
assuntos econômicos.
Voltando às origens do Estado, sua missão política
é difícil de ser determinada, por sua grande complexidade, sobretudo no que diz respeito à administração
das instituições. Desde o nascimento do Estado Moderno, com Maquiavel, sua importância concentrase na coesão territorial. A importância situa-se em
sua geopolítica, concretamente em sua população e
coerência jurídica, onde problemas sociológicos e
ideológicos se misturam. Por último, temos de considerar a relação divina (Os 10 Mandamentos), como
o destino do gênero humano.
O homem não é um animal social. Polemizando com
a tradicional tese aristotélica, Thomas Hobbes, autor de
Leviatã (Ícone Editora), afirma que os homens não são
abelhas ou formigas e que via na sociedade o resultado
de um instinto primordial. Hobbes sustenta que, no
gênero humano, diferentemente do animal, não existe
sociabilidade instintiva, como mostra Norberto Bobbio
no livro Thomas Hobbes (Editora Campus).
No começo do capítulo XIII do livro Leviatã, Hobbes diz
que os homens são iguais em força física e, no segundo
parágrafo, que também o são no espírito. Note-se que não
se trata de identidade, de igualdade exata. É claro que
uns são mais fortes que outros, fisicamente. Mas isso não
impede que o mais fraco mate o mais forte. A diferença
de força é menor ou menos relevante por seus efeitos do
que a razoável igualdade que há entre as pessoas nesse
tocante. Igualdade e diferença assim se medem por seus
efeitos, ou melhor, por seu efeito no tocante a matar
ou ser morto, como explica Renato Janine Ribeiro, no
capítulo “Medo e esperança em Hobbes”, do livro A crise
do Estado-nação, organizado por Adauto Novaes (Editora
Civilização Brasileira).
Entre os indivíduos não existe um amor natural,
mas somente uma explosiva mistura de temor e necessidade recíprocos que, se não fosse disciplinada
68
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Entre os indivíduos não existe um amor
natural, mas somente uma explosiva
mistura de temor e necessidade
recíprocos que, se não fosse disciplinada
pelo Estado, originaria uma incontrolável
sucessão de violência e excessos
pelo Estado, originaria uma incontrolável sucessão
de violência e excessos. Além do medo mais visível,
que é o de um a outro no estado de natureza, também
é preciso tratar do medo que se tem do soberano e
que se expressa como awe, não como fear. Awe é corretamente traduzido como “reverente temor”, e keep
in awe significa “manter em respeito” (da palavra awe,
praticamente todas se referem ao temor em face de um
poder superior e comum a todos, que seria o Estado –
como é citado por Ribeiro, em “Medo e esperança em
Hobbes”). Não é, portanto, o mesmo medo recíproco
e ilimitado que temos, todos de todos, no estado e
natureza, mas um medo respeitoso – mais respeito
talvez que medo –, que se sente em relação ao superior
que tenha título a mandar em nós.
Precisamente porque o contrato de fundação de toda
sociedade humana tem caráter artificial, faz-se necessário que o Estado seja absoluto (como lei fundamental),
soberano e poderoso, capaz de suprimir qualquer tentativa de fazer prevalecer o interesse pessoal. Somente
reconhecendo todos como súditos de uma autoridade
externa (o Estado), os homens podem suprimir qualquer
forma de antagonismo recíproco que, segundo Hobbes,
predominaria se os súditos se transformassem em cidadãos, adquirindo o direito de julgar a coisa pública.
O próprio Hobbes percebeu uma das grandes razões
para notar que uma parte significativa da opinião
cultivada de seu tempo, aquela que ele acusou de se
embeber nos clássicos, reconhecia a uma assembleia
soberana poderes que jamais atribuiria, de bom grado,
a um príncipe, embora igualmente soberano. E teve
ele toda a razão ao lembrar que, se a palavra-chave é
soberania, os poderes de uma assembleia democrática,
de um senado aristocrático ou de um rei devem ser os
mesmos (Ribeiro, Op. cit. p.151-152).
Andrey Pavlov
Segundo Thomas Hobbes, o homem não
é um animal social. No Leviatã, ele diz que
os homens não são abelhas ou formigas
e que via na sociedade o resultado de um
instinto primordial
Guerra de todos contra todos. Para Hobbes, essa
expressão refere-se à inevitável condição do homem
no estado de natureza, em que cada indivíduo, não
submetido à lei e a um poder supremo, torna-se lobo
dos outros homens. Conforme os princípios do absolutismo, pode-se sair de tal situação, em que a segurança
pessoal está eternamente em perigo, somente por meio
de um contrato social entre os súditos, que delegue, para
sempre e irrevogavelmente, todo o poder a um soberano.
Estado de natureza indica, nas teorias políticas
dos séculos 17 e 18, a condição dos homens antes
de estipular um tipo qualquer de contrato social, na
qual os indivíduos viviam isolados uns dos outros,
sem qualquer organização estatal. Trata-se de uma
condição hipotética, e não de uma específica fase
histórica, posto que a própria continuidade da espécie
entraria em crise com tal isolamento dos indivíduos.
Segundo Hobbes, um eventual estado de natureza
seria dominado pela guerra de todos contra todos.
O Estado surge e se consolida contendo o medo da
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
69
Anthony Correia
ordem e progresso
morte violenta, substituindo o fear, que há um tempo
resulta da guerra de todos contra todos e a retroalimenta (usamos a imagem da inflação), pelo awe, que é sua
versão regulada, civilizada, sua passagem de sentimento antissocial para social e socializador. Mas, assim
procedendo, o Estado ainda não pode nada quanto ao
medo da morte. É contido o homicídio e inaugurado o
prazer nas relações sociais, mas um espectro continua
a rondar a condição humana: a inevitabilidade da morte
e o medo daquilo que virá depois dela. Ora, aqui não
apenas nasce a religião, como todo discurso está ligado
a um poder, que o profere e eventualmente manipula
também o clero. Este, assim, é um espinho cravado na
garganta do Estado (Ribeiro. Op. cit. p.156).
Durante muito tempo, o Estado foi causa e efeito no todo
social, determinando sua objetividade como as funções
que possuem certos organismos, animais ou vegetais, em
relação à nutrição, reprodução ou defesa. Essa concepção
do Estado foi muito bem-vinda pelos regimes fascistas ou
autoritários, e concretamente com a instauração da Doutrina
70
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
A esquizofrenia do Estado depois da
queda das torres gêmeas fez surgir, de
um lado, um poder hegemônico absoluto
e, de outro, uma presença cada vez mais
marcante nas decisões econômicas,
sobretudo a partir da crise de 2008
de Segurança Nacional (DNS), do general Golbery do Couto e
Silva, espalhada pelo conjunto dos países da América do Sul.
Os territórios geográficos limitados pela presença de
diferentes povos fiéis do Estado, um elemento central na
limitação territorial, desenvolve a necessidade de uma
ação de proteção, no sentido de diminuir a ampliação
de outras populações. Surge a necessidade de uma solidariedade e identidade, nos planos culturais, políticos e
sociais, frente a seus limites externos. Dessa forma, tem
início o contrato social, teoria segundo a qual a reunião
dos homens em sociedade não é um evento natural ou
instintivo, mas resultado de um pacto, um contrato original que põe fim ao estado de natureza. No século 17, a
teoria contratualista foi sustentada tanto pelas filosofias
políticas favoráveis ao absolutismo (Hobbes), quanto por
aqueles que defendiam o liberalismo (John Locke).
A teoria política defendida por Locke, em oposição ao
absolutismo de Hobbes, se tornou o fundamento teórico
da democracia moderna:
1) O contrato social é estipulado não somente entre
os cidadãos, como afirmava Hobbes, mas também
entre estes e o Estado.
2) O escopo do Estado é a salvaguarda dos direitos
fundamentais do indivíduo (liberdade e propriedade privada).
3) O Estado não está acima da lei, sendo obrigado
a observá-la.
4) O cidadão reserva-se o direito de rebelião, quando
um aparato do Estado tenta lesar os direitos inalienáveis do indivíduo.
A necessidade de uma organização territorial, permanente e unitária, com referência a uma demarcação especial e à organização de sua comunidade, desde Maquiavel
conhece-se com o nome de Estado. Sua função consiste
na organização e ação autônoma da cooperação social
dentro de um território, fundada na necessidade histórica
de um status vivendi comum, que harmonize todas as
oposições e interesses dentro de uma zona geográfica.
A relação existente entre a função estatal e a economia é uma das questões mais discutidas na atualidade,
mesmo que hoje seja um exagero, se pensarmos que o
elemento comum de crítica ao liberalismo se bifurcava
em diferentes formas de resgate da democracia. Isso a
desvinculava de suas conotações liberais, impregnadas
pela economia de mercado e responsabilizada pela anarquia que teria gerado a crise de 1929 e suas dramáticas
consequências sociais. No livro A refundação do Estado
e da política (Editora Civilização Brasileira), Emir Sader
mostra que o nazismo resgatava a soberania como elemento da identidade nacional, atacando os mecanismos
da democracia partidária como forma de corrosão dos
interesses nacionais, contrapondo-lhe propostas de
democracia corporativa.
A relação entre Estado e economia, mesmo nos
tratados científicos da Teoria do Estado, supõe-se que
se trata de conexões e atividades com leis próprias, as
Se a palavra-chave é soberania,
os poderes de uma assembleia
democrática, de um senado aristocrático
ou de um rei devem ser os mesmos
quais praticamente possuem uma função específica no
sentido da vida social.
Mesmo o marxismo atual mostra-se incapaz de propor uma solução ao problema da relação entre Estado e
economia, por conta do dogma de que o Estado é só um
meio para uma função econômica. As diferentes pesquisas entre essa relação têm formalizado uma identidade
própria, relacionada com a força militar, para resolver a
falta de ordenamento jurídico existente atualmente no
mundo, onde o poder cada vez é mais e mais associado
aos vetores econômicos das corporações. Nos últimos
anos, o lucro dos bancos tem estado em torno de 50%.
A esquizofrenia do Estado depois da queda das
torres gêmeas fez surgir, de um lado, um poder hegemônico absoluto e, de outro, uma presença cada vez
mais marcante nas decisões econômicas, sobretudo a
partir da crise de 2008: violação sistemática do direito
internacional, fim da soberania dos Estados-nações,
imposições de primeiros-ministros nos casos da Grécia
e da Itália, sem falar da Espanha, Irlanda, Portugal e
mesmo da França.
Se o Chile foi o laboratório para uma nova ordem
econômica internacional (crise do petróleo de 1973), o
perigo crescente é a militarização das decisões políticoeconômicas. Nessa ótica, o Estado é hoje o princípio e o
fim na atual crise econômica e no ordenamento mundial,
onde devemos voltar ao Estado social e gestionário, que
leve em conta o direito internacional, o respeito ao homem
e ao seu meio ambiente.
A meus alunos, hoje avós, que, nos anos 1970,
acreditaram em sonhos, e que hoje, no Chile,
se revoltam na Ilha de Puerto Aguirre (caleta Andrade),
província de Aysén, pelo alto custo e insustentável
preço a pagar pela “modernidade e progresso”
Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos
Professor da ESPM-SP, doutor pela Universidade de Paris
em História Social, pós-doutor pela USP em Política Internacional e
Comparada e especialista em Ética pela PUC-Seminário Campinas-SP
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
71
entrevista
Os pilares da
democracia
E
le já foi ministro da Justiça no governo
Fernando Henrique Cardoso, embaixador do Brasil em Portugal, secretário nacional dos Direitos Humanos,
ouvidor da República, deputado estadual e coordenador-geral do Programa de Segurança
Pública e do Programa Nacional de Direitos Humanos lançado pelo governo federal em 1996. Hoje, aos
81 anos, José Gregori é um dos maiores representantes do Brasil no exterior na área de direitos humanos.
Formado em direito pela Universidade de São Paulo
(USP), ele aprendeu cedo a lição de que um dos pilares para a manutenção do estado democrático de
direito é a educação. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), entre os anos de
1977 e 1993, ele luta por um Brasil melhor por meio
da melhoria do ensino e da manutenção da liberdade
de expressão. Confira, nas páginas a seguir, qual a
fórmula de Gregori para estimular o desenvolvimento da nação, a partir do exercício da democracia.
Entrevistado por Francisco Gracioso e J. Roberto Whitaker Penteado
72
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
José Gregori
Gracioso – Na propaganda, a liberdade de expressão está cronicamente
ameaçada – há sempre projetos de lei no
Congresso cerceando 90% das formas
de anunciar. Não há grandes discussões
quanto à presença do Estado e à necessidade de ele guiar o comportamento do
indivíduo, impondo limites nem sempre
agradáveis. Partindo deste ponto, que
tipo de presença deveria ser essa?
José Gregori – Este é um processo
que abrange várias etapas. O Estado
foi criado como o único instrumento
para garantir certos direitos básicos que todos têm pelo fato de serem
criaturas humanas. A Declaração de
Independência dos Estados Unidos,
redigida por Thomas Jefferson, é, digamos, a peça de maior clareza a respeito
disso. Precisamos partir do conceito
de que viemos ao mundo portadores
de uma dignidade intrínseca que nos
distingue de uma árvore, de um pássaro ou de uma lagoa. Para não ser algo
abstrato, que só existe em poesia, essa
dignidade fundamental se materializa
em certos direitos. E o que expressa
objetivamente essa dignidade são os
direitos básicos, fundamentais. A criação do Estado é algo que vem depois...
criatura humana, que na sua evolução
procura por melhores instrumentos
para assegurar a dignidade fundamental expressa em certos direitos.
JR – Quando estudei na faculdade, havia duas vertentes contraditórias em relação ao papel do Estado: uma representada pela obra de Jean-Jacques Rousseau
e, outra, por Thomas Hobbes. O primeiro
dizia que os homens nascem bons e, se
não forem corrompidos pela sociedade,
todos se entendem muito bem. Já Hobbes, com a história do Leviatã, afirmava
que o homem é o lobo do homem e o Estado precisa existir para evitar que os seres
humanos se matem. Será que o homem é
intrinsecamente mau e o Estado precisa
controlá-lo ou o homem é bom e o Estado
só serve para atrapalhar?
“Não somos produto
do Estado. O Estado é
que deve ser produto
da nossa contribuição,
da nossa maneira
de ser e dos direitos
fundamentais
que temos”
JR – Depois da criatura humana.
José Gregori – Depois da conscientização de que essa criatura humana
é portadora de uma dignidade fundamental, aí surge a questão do Estado
como um instrumento que historicamente foi o mais adequado para
garantir a cada um esses direitos. Não
podemos perder isso de vista porque
admitir que somos “criaturas do Estado” é dar o primeiro passo para o totalitarismo. Nós invertemos a equação:
o Estado foi criado pela história da
José Gregori – Para responder a essa
pergunta é preciso ter a perspectiva
evolutiva. Até hoje, um mistério não
decifrado pela filosofia e mesmo pelas
religiões é saber por que não viemos
perfeitos e acabados. Por que somos
produtos de uma longa, penosa, sofrida e às vezes até cruel evolução?
Os fatos apontam mais no sentido de
que vivemos sempre respeitando o
pai e o avô, mas querendo fazer mais
e melhor do que eles fizeram. Se não
fosse assim, estaríamos ainda nas
cavernas. As dualidades por esses mistérios sempre existiram, nunca houve
apenas a perfeição, a bondade ou a
injustiça. Isso pode ferir a lógica, mas
é possível que tenha tornado a vida
mais fascinante. À medida que vamos
tomando pé dessa realidade, nos convencemos de que temos de lutar. Não
somos seres passivos, que aceitamos
as coisas mecanicamente. Temos de
imprimir nossa marca em qualquer
setor. Nesse sentido creio que Rousseau está mais próximo das coisas
como elas se passaram. Mas Hobbes
também tem razão quando diz que o
homem é um ser capaz de maldades.
Da mesma maneira como aceitamos
essa dualidade, o homem criou o sentido de justiça, de superar o império da
maldade sobre a bondade. Não somos
produto do Estado. O Estado é que deve
ser produto da nossa contribuição, da
nossa maneira de ser e dos direitos
fundamentais que temos. Esse é o
pano de fundo da discussão.
Gracioso – Com este pano de fundo, é
evidente que não podemos nos limitar à
dicotomia bondade e maldade, porque,
para lidar com isso, o Estado não usa
meias-palavras, usa a força. O Estado
obriga o indivíduo a comportar-se conforme as leis. Há uma infinidade de leis – no
trânsito, por exemplo, temos a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de falar ao celular enquanto se dirige.
Tudo isto é plenamente explicado. Há,
entretanto, os que dizem que, ao tomar
estas medidas, o Estado procura plasmar
o indivíduo de acordo com o seu ideal, o
indivíduo perfeito, que estaria contra este
princípio básico do qual estamos falando.
José Gregori – Exatamente. Por causa da recordação histórica, somos
obrigados a saber que existem vários
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
73
entrevista
modelos de Estado. No Brasil, não
optamos pelo Estado totalitário, pelo
Estado autoritário, sequer pelo estadismo. Depois da Constituição de 1988,
adotamos o estado de direito democrático, em que a força, o poder do Estado
tem de se exercer, rigorosamente, os
limites estritos da lei. Todas as regras
emanam de uma prévia combinação,
digamos rousseauniana, que fizemos,
delegando poderes aos nossos representantes para que eles defendam os
nossos direitos básicos. Toda vez que
uma lei não respeitar esta combinação, ela será inconstitucional. Esta
discussão será sempre oportuna, porque há uma tendência de hipertrofiar o
Estado e hiperalargar o Estado. Temos
de fazer como se estivéssemos cuidando da saúde: não é por não termos
febre ou hemorragia, que não temos de
controlar a pressão ou o colesterol. O
Estado é igual. De tempos em tempos,
devemos fazer uma reflexão se esse
modelo pelo qual optamos está sendo
respeitado nos limites ou está havendo
algumas tentações do Estado absoluto
ou totalitário.
Gracioso – E até que ponto isso deveria
ser tolerado ou não?
José Gregori – A intolerância será apenas quando a pessoa não tiver a Constituição do seu lado. A Constituição foi
suficientemente benfeita para deixar
claro que o nosso modelo é o do estado
democrático de direito, que representa
o exercício do equilíbrio. O que ferir
isso, ainda que em nome do coletivo e
da segurança geral, deve ser muito refletido. No Estado totalitário, o ditador,
o partido único, a seita, os monges ou
os generais não têm o menor interesse
74
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
em fazer esse equilíbrio, basta a vontade deles. Já o estado democrático de
direito cria uma série de mecanismos
para nos manter sempre fiéis ao modelo pelo qual optamos.
“A Constituição
foi suficientemente
benfeita para deixar
claro que o nosso
modelo é o do estado
democrático de direito,
que representa o
exercício do equilíbrio”
JR – Há alguns anos, a ESPM participou de um grupo de trabalho para a
elaboração de um código de ética para
o profissional de marketing. Tivemos
uma experiência muito interessante com
o jurista Gabriel Lacerda, que também
fez parte desse grupo. Um dos nossos
companheiros queria que constasse no
código de ética o respeito às leis do país.
O doutor Gabriel não permitiu, alegando
que a quantidade de leis, considerando
todas as instâncias legislativas, é de tal
ordem que há leis contraditórias e injustas. Portanto, um verdadeiro código de
ética não pode aceitar todas as leis como
boas. Considerando que a Constituição é
uma lei maior e “boa”, um número razoável de leis ruins não deveria existir. Como
o cidadão deve se comportar em relação
a essa contradição?
José Gregori – A receita no Brasil foi
dada pelo jurista Rui Barbosa: “Lei é lei
e deve ser respeitada”. Se ferir a Constituição, a ética coletiva ou o sentimento
cultural, ela deve ser corrigida, não
desrespeitada. Democraticamente,
temos mecanismos para anular a lei
que não obedece aos princípios do estado democrático de direito. A posição
do doutor Gabriel Lacerda é legítima,
porque se trata de um código de ética,
e ética é algo que vem antes da lei, é
uma questão interna do indivíduo,
que pode não aceitar um determinado
comportamento admitido pela lei.
JR – Pode ser o contrário, a lei pode impor alguma coisa que fira os princípios.
José Gregori – Sim, mas esse tipo de
contradição entre a ética ou o querer
coletivo com o que está na lei não
pode ser um ato voluntarista. O estado
democrático de direito oferece hoje
ações e meios legais para você anular
essa lei. Os tribunais estão anulando e
declarando inconstitucionais muitas
leis.
JR – Outra questão é de onde emanam
as leis. Por exemplo, nós que atuamos na
área de comunicação e marketing muitas
vezes nos deparamos com entidades que
não são legisladoras. São organismos do
Estado que têm uma determinada função e que emanam normas ou circulares,
não são leis. Um exemplo clássico é a
Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária), que nos últimos anos tem produzido uma série de normas restritivas
em relação à saúde, à alimentação – até
sobre a publicidade –, que são muitas
vezes questionadas. Afinal, esse organismo do Estado tem o poder de determinar
como os cidadãos devem comportar-se
em certas circunstâncias?
Gracioso – É a velha e eterna questão:
a liberdade de expressão individual e a
José Gregori
liberdade que tem o indivíduo de decidir
o que é melhor para si. Até que ponto isto
permanece nesta análise?
pela Anvisa, que realmente esteja a benefício da minha saúde e não da saúde
de seus dirigentes.
José Gregori – Vivemos em sociedade.
Só na ficção existe a possibilidade de
alguém construir o projeto da sua vida
apartado do seu semelhante. Para esta
vida em sociedade não virar um caos,
certas restrições são impostas à decisão de cada um em benefício do funcionamento geral. O individualismo tem
de ser respeitado, mas também não
podemos negar a necessidade que se
tem na vida em sociedade de colocar
limites cooperativos. Praticando o
estado democrático de direito, temos
uma enorme necessidade de cuidar
da educação com qualidade, porque
é ela que vai dar a todos esse sentido
de equilíbrio. A noção de que o individualismo tem de ser temperado com
o coletivismo. Mesmo que estejam
na Constituição, essas leis não têm
eficácia comparável à que recebemos
nos bancos escolares ou na família.
É difícil imaginar a sobrevivência de
um estado democrático de direito que
seja inculto e avesso à boa educação,
porque o bom funcionamento dele
vai temperar boas leis e também boas
morais – aquilo que o indivíduo recebe
antes de ingressar na vida em sociedade. Nesse sentido, o Brasil está no bom
caminho, o que não significa que as
pessoas cruzem os braços porque os
dirigentes estão velando por elas. Esse
modelo impõe um aumento gradativo
da vida participativa. É preciso que
haja participação, entidades e questionamentos. A Anvisa, para alguém que
queira zelar pela saúde, é um avanço.
Mas é preciso saber se esse zelo tem
fundamentação em cada passo dado
JR – O livro Estado Babá (“The Nanny
State”), do americano David Harsanyi,
mostra que não é um problema exclusivamente nosso. Com exemplos tirados da
vida nos Estados Unidos, o autor mostra
que o Estado está ultrapassando limites,
definindo questões em relação a como as
comunidades devem se organizar ou se
as pessoas devem ou não ter cachorros.
Por que isso acontece em sociedades até
mais evoluídas do que a nossa?
“Praticando o estado
democrático de direito,
temos uma enorme
necessidade de cuidar
da educação com
qualidade, porque é ela
que vai dar a todos esse
sentido de equilíbrio”
José Gregori – Tenho um pouco de cerimônia em aceitar que existam sociedades mais evoluídas do que a nossa.
JR – Mais organizadas.
Gracioso – Diferentes da nossa.
José Gregori – Talvez isso. Eu usava
a Noruega como um exemplo de lugar
onde os direitos humanos estavam
aculturados e sendo vividos concretamente até aquela tragédia do fim
do ano passado, quando um homem
pegou um fuzil e matou mais de 100
pessoas em nome de ideias próprias.
Gracioso – Aconteceu coisa muito pior
na Alemanha nazista, com os grupos paramilitares nazistas. Muito mais eficiente
que criar regras é trabalhar os valores
em que as pessoas acreditam para que o
comportamento seja ditado pelo interior
do próprio indivíduo. Isso explica, por
exemplo, a diferença entre o Japão e o
Brasil em termos de disciplina coletiva.
O Estado de Israel compreendeu a necessidade de influir nos valores e, também,
que não podia deixar isto a cargo exclusivamente da família. Dessa forma, o sistema escolar israelense tem como função
criar e modificar valores, mais condizentes com os objetivos do Estado. Não é à
toa que os melhores soldados deles são os
que vêm dos kibbutzim, onde a família é
proibida de educar a criança. Isso é uma
coisa antiga do tempo do Burrhus Frederic Skinner, que escreveu o livro Beyond
freedom and digntity (“Para além da
liberdade e da dignidade”, Editora Edições 70 – Brasil). Ele dizia que algo além
da liberdade e da dignidade deveria ser
considerado para obter uma sociedade
mais civilizada. Enfim, onde ficamos?
José Gregori – Creio que a equação
está formada nesta nossa conversa,
porque falamos dos direitos básicos,
do Estado e também da escola e da
família – que são os polos geradores
de formação, consciência, critérios.
O Estado intervém demais quando a
escola falha ou a família derrapa. O
ideal é que essas questões fundamentais de atitude e reconhecimento de
valores sejam, em grande parte, uma
conquista de família e da escola, desde
o ensino fundamental. Esta profusão
de leis no Brasil é uma das manifestações da insuficiência da nossa escola,
principalmente da escola pública, que
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
75
entrevista
no meu tempo tinha mais qualidade.
As pessoas precisam ter um apreço
pela educação, não apenas para formar conhecimentos, mas também a
personalidade de pessoas que saibam
avaliar, mensurar e equilibrar. Uma
das funções da educação é tornar a
vida social com menores taxas de conflito. Hoje é citada uma palavra que se
falou muito no tempo do Jefferson, que
é a felicidade. Quando Jefferson fez a
Declaração da Independência dos Estados Unidos há cem anos, ele colocou
como um dos direitos fundamentais a
busca da felicidade.
Gracioso – O tal índice de qualidade de
vida.
José Gregori – E agora estamos vendo que sociólogos, economistas e
politólogos estão novamente falando
em felicidade e acham que as taxas
medidoras de progresso, como o PIB
(Produto Interno Bruto), são uma forma muito materialista e insuficiente
para julgar, já que a vida é prioritária
em todos os sentidos. O fato de o
Brasil hoje estar numa democracia
é algo auspicioso. Em alguns aspectos, como na representatividade do
poder, essa democracia apresenta
índices que são quase incomparáveis
em termos de mundo, porque não
há nos últimos 50 anos nenhum
país onde um príncipe acadêmico,
que fez bonito na Universidade de
Sourbonne, tenha sido presidente da
República. Depois dele, assume um
príncipe sindicalista de fazer inveja
a todo o sindicalismo inglês e, na sequência, a primeira mulher chega à
Presidência da República. Isso comprova o quanto está aberta a nossa
76
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
democracia. Mas ainda temos muito
a caminhar em diversos aspectos,
porque as tendências que levam o estado democrático de direito para um
modelo mais autoritário desapareceram, mas ressurgem o tempo todo.
Por exemplo, agora notamos que há
pessoas em conflito com a imprensa.
Não sou contra isso, mas temos de
informar os setores que contestam
essa tendência de querer colocar a
imprensa num nível de maior qualidade e sacrificar a sua liberdade.
“No meu tempo, eu,
como ministro da
Justiça, mandei casos
para o Conar, um
órgão de publicitários
no qual o governo
não tinha a menor
ingerência. Fiquei
bem impressionado
com o trabalho”
JR – Através de um controle social.
José Gregori – Um controle social
que, em última análise, será o controle do poder. Isso é uma discussão
democrática, que precisa ser apresentada como uma questão que não
é unânime. O mesmo acontece com
a Anvisa, em relação a outros óbices
que possam surgir. Nessa discussão
há de estar sempre presente o espírito
de negociação e diálogo. O estado
democrático de direito não convive
bem com aqueles que acham ser
possuidores do sal da verdade. Cristo
conversava com os apóstolos, ele não
impôs as verdades de forma absoluta.
Gracioso – Ele pedia frequentemente a
opinião deles.
José Gregori – Às vezes, ficava impaciente, porque os apóstolos não
pediam a sua opinião, mas ele nunca
cessou o diálogo. Nós, que somos
mortais, com maior razão temos de
discutir. Daí a importância de a imprensa ser livre. Claro, não podemos
permitir que a imprensa se torne
apenas o veículo de uma ideia ou de
uma verdade. Temos de combater
isso não fechando a imprensa, mas
discutindo. Toda atividade é capaz
de não só colocar em linha de vanguarda a atividade em si, mas também criar mecanismos de discussão.
No meu tempo, eu, como ministro da
Justiça, mandei casos para o Conar
(Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), um órgão
de publicitários no qual o governo
não tinha a menor ingerência. Fiquei
bem impressionado com o trabalho.
Também tenho o maior respeito pela
entidade que vocês dirigem, porque
sei o quanto é importante o trabalho
que desenvolvem para aumentar a
qualidade dessa atividade.
JR – Nas avaliações feitas internacionalmente com as universidades, o
Brasil tem um papel ruim. Não temos
nenhuma instituição de nível superior
entre as 100 melhores no mundo.
Quando se amplia isso para 200, a
única instituição que entra no ranking
é a USP (Universidade de São Paulo).
Estou há 30 anos nisso e nesse convívio
com escolas americanas, europeias e
asiáticas, tenho a sensação de que, no
Brasil, a regulamentação do Estado na
educação ultrapassa os limites do que
José Gregori
seria desejado. Parece-me que, na área
do ensino superior, teríamos melhores
resultados se houvesse uma participação maior da iniciativa privada. Como
é que o ministro vê esta questão?
Gracioso – Nos Estados Unidos, por
exemplo, o aluno de um curso superior
pode escolher a profissão que vai seguir
depois de um curso básico de dois anos,
o que dá mais segurança à escolha que
ele fará. No Brasil, estamos engessados
de tal forma que o aluno não pode
sequer mudar de curso. Se ele cursa administração e chega à conclusão de que
o curso dele seria engenharia, tem de
voltar e fazer um novo vestibular.
José Gregor i – Sou produto da
educação pública, fiz grupo escolar,
colégio do estado e faculdade na
USP. A opção brasileira não é pela
exclusividade da escola pública.
Hoje, fico muito entristecido pela
escola pública não ter, ao menos no
grau fundamental, a mesma qualidade que tinha no meu tempo. É um
problema em aberto que precisamos
resolver. Agora, tenho tido nas minhas andanças pelos direitos humanos, contato com universidades
particulares e colho delas uma boa
impressão.
Gracioso – Houve uma melhora muito
grande.
José Gregori – São pessoas interessadas em assegurar uma educação
qualitativamente superior à de alguns anos. A verdade é que, de uns
anos para cá, o Brasil está tendo
uma espécie de explosão e, nessa
época de muita demanda, realmen-
“Hoje, fico muito
entristecido pela
escola pública não
ter, ao menos no grau
fundamental, a mesma
qualidade que tinha
no meu tempo”
te a forma de ser mais criterioso e
exigente aumenta a dificuldade. É
preciso mais atenção e, aí sim, o Estado pode exercer um papel fiscalizatório grande. O governo Fernando
Henrique é titular de três marcas
pioneiras: a saúde financeira do país
com o fim da inflação; os direitos
humanos; e o programa de controle
da qualidade de ensino, algo que
não existia. É possível que o sistema
ainda não funcione a contento, mas
já se criou a consciência de que o
ensino deve ser avaliado. Criar esta
obrigatoriedade de rever, fiscalizar
e avaliar o nível de competitividade
foi um avanço, porque o mundo atual é muito competitivo e temos de
criar uma juventude capaz de competir. Por enquanto, não andamos
bem nisso, porque todo concurso
em que colocam meninos contra
meninos em termos de várias nações, os brasileiros não têm se saído
bem. É um sinal amarelo que acendeu no sentido de comprovar que
precisamos melhorar nosso ensino.
JR – No Brasil, o Estado ultrapassa
em várias áreas as suas funções tradicionais. Ele entra na indústria, nos
serviços. E aí ocorre que o poder de
regular é confiado a um participante,
um concorrente. No caso do ensino
superior, as cartas são marcadas no
sistema de avaliação em favor das universidades públicas.
Gracioso – O sistema deixado pelo
ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza era muito mais perfeito que
o atual citado pelo professor Whitaker.
JR – É possível. Isso pode ser dito
também em relação à proteção do
consumidor. O Procon (Fundação de
Proteção e Defesa do Consumidor), é
uma entidade ligada ao Estado. Da
mesma forma, o Estado presta serviços ao cidadão de várias maneiras,
como os serviços públicos ou concessões, às vezes monopólios concedidos.
E aí ficamos diante do nosso tema:
a intervenção do Estado e direitos
do indivíduo. Como fica o indivíduo
diante de uma entidade – seja ela fiscalizadora da educação, seja ela reguladora das questões do consumo –, se
ele tem queixas ou agravos a resolver
diante do fornecedor desses serviços,
o próprio governo, que fiscaliza a si
mesmo? Há certa contradição nisso.
José Gregori – Não há dúvida. Mas,
de certa maneira, já temos mecanismos que precisam ser aperfeiçoados
para fiscalizar melhor a fiscalização
do Estado. Democracia é isso. O ideal democrático é que todos saibam
– pela educação que receberam na
escola, na família e na vida – o mínimo múltiplo comum que precisa ser
respeitado. Quanto menos o Estado
intervir, melhor, diante das experiências que temos do Estado provendo tudo, sendo babá, mãe e madrasta. O Estado-mãe, mais dia menos
dia, torna-se um Estado-babá.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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responsabilidade social
Quanto mais os princípios básicos do marketing social forem seguidos, maior será o bem-estar
da população. Assim, a atuação governamental deve assumir tais princípios e influenciar
positivamente na atuação de seus membros para agregar valor à sociedade
Por Daniel Kamlot
78
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
cienpies design
Interferência do Estado
na sociedade: uma visão
de marketing social
A
expressão “marketing social” é apropriada
quando uma empresa faz uso de ações sociais aliadas ao marketing, com o objetivo
único de trazer benefícios para a sociedade, como observa Luiz Cláudio Zenone, no
livro Marketing social (Editora Thomson Pioneira, 2006).
A ideia não é criar vínculos com uma marca ou vender
mais, como têm feito atualmente diversas organizações.
Todavia, alguns autores defendem a tese de que o objetivo
das empresas é criar vínculos com a marca.
Já a meta das atividades de marketing social é conquistar a lealdade do consumidor por meio do comprometimento da empresa com uma demanda social, de modo
que os consumidores façam a associação automática
entre a marca, a empresa e o projeto social. Para Philip
Kotler e Nancy Lee – autores de Corporate social responsibility: doing the most good for you company and
your cause (Editora John Wiley Trade, 2005), o conceito
de marketing social pode ser definido como um meio
pelo qual “uma empresa desenvolve ou implementa
uma campanha de mudança de comportamento visando
melhorar a saúde, a segurança, o ambiente e o bem-estar
da sociedade”.
Em Administração de marketing: análise, planejamento,
implementação e controle (Editora Atlas, 1998), Kotler
indica que é um conceito diferente do marketing tradicional – no qual a relação entre empresas e consumidores
se baseava na satisfação de desejos destes e na obtenção
do lucro por aquelas, sem preocupações maiores com o
ambiente que os cercava ou com outros atores envolvidos
nas transações. No marketing social percebe-se uma preocupação também com a sociedade, uma vez que tanto
empresas quanto consumidores fazem parte dela. Logo,
é legítimo supor que devam preservá-la, além de buscar
o bem-estar de todos que a compõem. Isso é observado
no quadro “Atores do marketing societal”. Ele mostra
o conceito de marketing societal (ou societário), no qual
as empresas e os consumidores devem perseguir o bemestar da sociedade no longo prazo, independentemente
de suas respectivas buscas por lucro (no caso das empresas), e por satisfação de desejos e necessidades (no caso
dos clientes e consumidores). É preciso considerar um
ator muitas vezes esquecido, a própria sociedade, que
O marketing tradicional tinha como foco a
satisfação dos desejos dos consumidores
e a obtenção do lucro pelas empresas, sem
preocupações maiores com o ambiente
que os cercava. No marketing social,
percebe-se uma preocupação também com
a sociedade, uma vez que tanto empresas
quanto consumidores fazem parte dela
pode ser prejudicada quando consumidores e empresas
consideram apenas seus respectivos interesses, sem se
incomodar com as consequências de suas atuações para
todos os que estão à sua volta.
Em suma, uma sociedade saudável e pujante favorece a
expansão do negócio na medida em que as necessidades
são satisfeitas e as aspirações crescem. Qualquer empresa que persiga seus fins em detrimento da sociedade
em que atua alcançará no máximo um sucesso ilusório
ou temporário.
Justamente para evitar a proliferação de empresas sem
compromisso com a sociedade, ou mesmo com o país
onde atuam, o governo passa a ter uma grande responsabilidade, tendo em vista que cabe a ele a estruturação
de políticas públicas para garantir o bem-estar de todos.
Um exemplo, no caso brasileiro, pode ser notado quando
se observa o Código de Defesa do Consumidor em seus
artigos 36, 37 e 38, referentes à propaganda enganosa e
abusiva. O artigo 37 deixa claro que “é enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de
caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou,
por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz
de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza,
características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos
e serviços”. Já a propaganda abusiva alude àquele tipo de
peça que incita a violência, a discriminação, o desrespeito ambiental ou que induz o consumidor a se comportar
de forma prejudicial à sua saúde ou segurança, conforme
consta na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, do Código
de Defesa do Consumidor.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
79
responsabilidade social
Atores do
marketing
societal
a indicar como devem proceder os
componentes de uma sociedade?
Uma abordagem para responder
a essa pergunta pode ser percebida
sociedade
ao se analisar um caso real. Em
deseja obter
bem-estar
meados da década de 1990, diversas cidades brasileiras começaram
a instituir normas que obrigavam
os motoristas a utilizar o cinto de
segurança ao dirigir. O Código de
Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de
23 de setembro de 1997) também
passou a indicar a autuação (em seu
artigo 65), daqueles que estivessem
empresas
consumidores
conduzindo automóveis sem fazer
desejam obter
desejam ter seus
lucro
desejos atendidos
uso do cinto. Tal situação, na época,
gerou bastante controvérsia. Alguns
Fonte: Adaptação de Kotler (1998)
motoristas, e mesmo pessoas que
sequer dirigiam, protestaram com
base no argumento de que não
cabe ao governo – por intermédio
Uma sociedade saudável e pujante favorece a expansão do do Ministério dos Transportes ou
negócio na medida em que as necessidades são satisfeitas de qualquer outro órgão – preocuparse com a vida de alguém que não
e as aspirações crescem. Qualquer empresa que persiga
valoriza sua própria segurança.
seus fins em detrimento da sociedade em que atua
Isso seria uma intromissão em um
alcançará no máximo um sucesso ilusório ou temporário
domínio particular, e não público.
Outros simplesmente diziam: se o
motorista não se preocupa em usar
Observa-se, então, que há necessidade de construir o cinto e não dá valor à própria vida, por que o Estado
um ambiente de ordem para que não sejam prejudicados deveria perder tempo e recursos com isso? Entretanto,
aqueles que prezam por uma nação em que haja liberdade um argumento surgiu para justificar tal ação governapara todos. O cumprimento de leis e normas como as mental: um motorista irresponsável sofre um acidente
citadas tem por finalidade evitar que alguns membros e precisa ser levado a um hospital porque seu estado de
da sociedade prejudiquem outros em determinadas cir- saúde é grave, justamente por não ter utilizado o cinto
cunstâncias ou por não existir algum regulamento que de segurança. Ele vai ocupar o leito de uma pessoa (“reslhes dê algum suporte. E quando uma lei é aprovada e ponsável”) que sequer o conhece e pode estar necessipassa a fazer parte do cotidiano dos cidadãos, o governo tando de internação. Se o leito está ocupado por aquele
indica que está participando da vida deles, mesmo que “motorista irresponsável”, quem deixa de ser atendido é
alguns possam considerar tal ato uma intromissão ou o outro paciente, que poderia não sofrer com tal situação,
caso o motorista estivesse usando o cinto, o que evitaingerência em suas vidas.
Assim, será que, do ponto de vista do marketing social ria as graves consequências do acidente. Tal situação
– que tem por objetivo alterar comportamentos nocivos justificaria, do ponto de vista do marketing social, que
e que gerem prejuízos de diferentes naturezas aos cida- o Estado interviesse e exigisse de todos os motoristas –
dãos –, haveria justificativa para que o Estado passasse por uma questão de prevenção de danos aos indivíduos
marketing
societal
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Premiado com Leão de Ouro no Festival de Cannes 2004,
o anúncio “Favela”, faz parte da campanha do Movimento Cuide,
promovido pelo Instituto Akatu de Consumo Consciente
Cena do comercial criado para divulgar a Semana Otimismo que
Transforma, que reverte parte da venda de todos os produtos da
Coca-Cola para um programa de reciclagem da marca
Fabrício Rian, de três anos, é estrela da campanha do McDia Feliz
2012, que acontece no dia 25 de agosto na rede McDonald’s.
No ano passado, o evento vendeu 1,6 milhão de sanduíches Big Mac
Maior fabricante brasileira de cosméticos e líder no setor de
venda direta no país, a Natura tem a sustentabilidade como o
principal pilar de sua marca, que segue a filosofia do “bem estar bem”
O conceito de marketing social pode ser definido como um meio pelo qual
“Uma empresa desenvolve ou implementa uma campanha
de mudança de comportamento visando melhorar a saúde,
a segurança, o ambiente e o bem-estar da sociedade”
Philip Kotler & Nancy Lee
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responsabilidade social
82
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Contudo, deve-se ressaltar
que o Estado também pode
apenas aparentar agir
em nome da sociedade que representa
quando na verdade está buscando
algo em benefício
próprio. Políticos desonestos
constantemente
se utilizam de
discu rsos, nos
quais expõem
suas vontades
como a vontade “do
povo” a fim de justificar ações perniciosas
que ten ham comet ido
justamente em prejuízo daquela sociedade que deveriam
representar. Nesse caso, o Estado, por
meio de seus componentes, parece
agir de forma tendenciosa e oposta ao
que exige o marketing social. Nessa
conjuntura, não se observa bem-estar
social, mas o uso do aparelho estatal
como ferramenta para prejudicar
justamente aquela sociedade que
deveria sentir conforto e um estado
de espírito positivo.
Kotler e Lee (em Corporate social
responsibility), assim como José Antonio Puppim de Oliveira – autor
de Empresas na sociedade (Editora
Campus, 2008) –, explicam as práticas
socialmente responsáveis das empresas. Para eles, o apoio a causas sociais
e ações socioambientais amplificam
a prosperidade da comunidade e
favorecem o meio ambiente, sendo
calcados em comportamentos morais
e éticos, e não apenas naqueles exigidos por leis ou normas estabelecidas
cienpies design
em particular, e à sociedade em
geral – que usassem o cinto
de segurança ao dirigir.
Como a preocupação
do marketing social
se refere a uma mudança de comportamento visando
à geração de bemestar na sociedade, no exemplo
apresentado haveria justificativa
para a intervenção
estatal – ainda que
muitos não concordem com isso. O ato
seria uma forma de evitar prejuízos a diversos
indivíduos ao impedir um
mau procedimento de um deles.
Em suma, com o Estado ditando um
procedimento aos membros da sociedade, esta se beneficiaria, no longo
prazo, das ações adotadas graças à
obrigação de que se aja de maneira
adequada à geração de bem-estar
aos membros daquela comunidade.
O mesmo pode ser dito da conhecida
campanha “Se dirigir, não beba”,
que pode parecer uma intromissão
na atuação individual daqueles que
teriam a suposta liberdade de optar
por beber e conduzir seu próprio
veículo ou mesmo uma manifestação
do Estado como regulador da vida
dos indivíduos. Mas tem foco no
bem-estar da sociedade. Esse seria
proporcionado pelo cumprimento de
normas de boa conduta, respeitando o
direito daqueles que ficariam à mercê
de motoristas bêbados – e, portanto,
com seus reflexos comprometidos – de
terem segurança nas ruas das cidades.
Com o Estado ditando
um procedimento aos
membros da sociedade,
esta se beneficiaria, no
longo prazo, das ações
adotadas graças à
obrigação de que se aja
de maneira adequada à
geração de bem-estar
aos membros daquela
comunidade. Contudo,
deve-se ressaltar que o
Estado também pode
apenas aparentar agir em
nome da sociedade que
representa quando na
verdade está buscando
algo em benefício próprio
É preciso que todos os atores de uma sociedade procedam de forma
a cumprir o que é necessário para que o Estado não atue como o dono da razão.
E também para facilitar que todos tenham uma atuação voltada para a geração
de boa vontade e bem-estar para as empresas, os indivíduos e o próprio governo
por agências reguladoras. Entretanto, uma pesquisa
demonstra que os brasileiros, ao serem perguntados
sobre quem deveria se responsabilizar pelas ações de
natureza social existentes no país, deram as respostas
mostradas na tabela abaixo.
A análise da tabela “Quem deve ser responsável pelas
ações sociais no país?” demonstra que a população ainda
tem a noção de que o governo, ou o poder público, deve
ser o maior responsável individual por ações sociais
desenvolvidas no país. Ainda assim, a maioria afirma
que tal responsabilidade deve ser repartida por todos
os envolvidos, inclusive empresas e pessoas físicas,
estas mais lembradas do que as próprias companhias e
organizações não governamentais (ONGs).
Vale ressaltar ainda que as empresas, ao praticarem
atividades de marketing social e de apoio a causas
Quem deve ser responsável pelas
ações sociais no país?
Opção
Ninguém
Empresas
Percentual de pesquisados
1%
3,5%
ONGs
4,75%
Pessoas
7,25%
Governo
17%
Todos os citados
66,5%
Fonte: Marketing de ação social e percepção de valor: do plano
tático para o estratégico. Tese de doutorado defendida por
Alexandre Luz Inkotte, em 2003, na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
sociais, devem fazê-lo em toda a sua plenitude, e não
em ocasiões ou eventos esporádicos. Dessa forma, a
comunicação da atuação da empresa também deve
seguir o preceito de que é necessário respeitar o consumidor, não fornecendo informações enganosas ou
colocando-o como alvo de alguma atividade condenável
ou inescrupulosa, uma vez que isso poderá gerar atritos
que terão consequências também para a sociedade que
a empresa e o consumidor compartilham. É necessário,
assim, observar se as organizações seguem os preceitos
do marketing social visando a melhorias e ao bem-estar
da sociedade, e também se os consumidores se manifestam a favor desse comportamento, tanto em suas ideias
quanto em suas condutas.
Tendo por base o conceito de marketing social,
percebe-se que podem existir argumentos a favor de
algum controle do Estado na vida dos cidadãos. Entretanto, um exagero de controle acarretaria exatamente
o contrário, o que é apregoado pelos preceitos desse
tipo de marketing, ou seja, restringiria a liberdade
daqueles que compõem a sociedade e, eventualmente,
poria a perder o livre-arbítrio, acarretando mal-estar à
sociedade – exatamente o oposto do que é preconizado
pela teoria por trás do marketing social, o que justificaria um menor controle governamental. É preciso que
todos os atores de uma sociedade procedam de forma
a cumprir o que é necessário para que o Estado não
atue como o dono da razão. E também para facilitar
que todos tenham uma atuação voltada para a geração de boa vontade e bem-estar para as empresas, os
indivíduos e o próprio governo. Com isso, a sociedade
só terá a ganhar.
Daniel Kamlot
Professor da ESPM-RJ, da PUC-RJ e do Ibmec-RJ
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hans slegers
direitos humanos
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
O direito de intervir
na sociedade é inerente
ao estado de direito?
Para avaliar a licitude da interferência dos poderes do Estado nas esferas de direitos dos particulares,
é fundamental determinar o conteúdo, o sentido e o alcance do termo jurídico interesse público, uma
vez que este pauta as relações entre Estado e sociedade
Por Denise Fabretti
C
omo funcionam as relações jurídicas entre Estado
e sociedade, principalmente no que se refere às
situações que envolvem o direito administrativo e,
mais especificamente, o poder de polícia do Estado?
Quais as normas que emanam de entidades representativas do
poder público no sentido de adequar o exercício das atividades
individuais ao interesse coletivo? Estas e outras questões são
apresentadas a seguir, por meio de reflexões sobre relações que
envolvem a interferência do poder público nas esferas de direitos
dos particulares, bem como dos cuidados que as autoridades
administrativas e julgadoras devem ter na aplicação e interpretação dessas normas.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
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direitos humanos
Sistema de direito
e organização do Estado
O direito corresponde ao conjunto de regras impostas
coercitivamente à sociedade no sentido de disciplinar
determinadas situações e regular o comportamento livre
do ser humano. É condição essencial para uma sociedade
que esse conjunto de regras seja organizado como um
sistema a partir de uma concatenação lógica. Uma vez
sistematizado ou ordenado de forma lógica e coerente,
esse conjunto de regras poderá alcançar um determinado grupo de pessoas que convive dentro de um mesmo
território em uma determinada época.
Um grupo social, todavia, necessita de uma direção,
de um corpo político que o governe, estabeleça a forma
e a criação das regras de convivência (Poder Legislativo),
sua aplicação e execução (Poder Executivo), bem como
solucione os conflitos decorrentes de sua interpretação
(Poder Judiciário). Surge, assim, a noção de Estado, ou
seja, uma nação politicamente organizada, como é citado
no livro Instituições de direito público e privado, de Ruy
Rebello Pinho e Amauri Mascaro Nascimento (Editora
Atlas, 24ª edição, p. 90).
“O Estado é a nação governada por uma instituição estruturada e estável”, escreve Gofredo Telles Jr, em Iniciação
na ciência do direito (Editora Saraiva, 2011). Ressalte-se que,
além da função jurídica, o Estado desenvolve, também,
aquilo que Telles denominou de “função não jurídica ou
função social”, no sentido de “garantir ou melhorar as condições de vida dos cidadãos e de possibilitar ou promover
o processo civilizador e o avanço cultural da sociedade”.
A organização do Estado, a sua formação, surge a partir
de uma norma fundamental, que se sobrepõe a todas as
outras com o intuito de conferir uma racionalidade lógica
ao sistema, como mostra Norberto Bobbio, em Teoria
do ordenamento jurídico (Editora UnB Polis). Para Hans
O direito corresponde ao conjunto de
regras impostas coercitivamente à
sociedade no sentido de disciplinar
determinadas situações e regular o
comportamento livre do ser humano
86
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
O Estado também está sujeito às
normas estabelecidas pela Constituição
e não deve ultrapassar os limites dos
poderes que esta lhe atribuiu
Kelsen, autor de Teoria pura do direito (Editora Martins
Fontes), essa supremacia decorre do fato de que compete à
norma criar a estrutura, o funcionamento, as atribuições,
os direitos e deveres do Estado e dos indivíduos que estão
em seu território. Essa norma fundamental corresponde à
Constituição. Ela é o ponto de partida de todo o processo
de criação do direito em um dado sistema.
Uma vez que a Constituição caracteriza-se como fundamento de validade de outras normas dentro de um
sistema de direito, indaga-se qual seria o fundamento
de validade da própria Constituição. Kelsen demonstra
ser este fundamento para a criação da Constituição o que
se denomina de “norma hipotética fundamental”, que,
de forma resumida, corresponderia ao propósito de um
grupo social no sentido de se organizar por meio de uma
ordem de normas coercitivas.
Assim, para a concepção do direito e do Estado, é necessário reconhecer um pacto através do qual o estado de
natureza da humanidade passa ao estado social. Pacto esse
que acaba por estabelecer em quais condições os indivíduos
abrem mão de alguns direitos para se sujeitarem a um poder
com a finalidade de obter vantagens para o grupo. Através
desse tipo de acordo, os indivíduos entregam a si e seus
bens ao poder do coletivo ou à vontade do grupo soberano
que tem competência para estabelecer as diferenças entre
bens coletivos e particulares e determinar a consecução
do interesse comum. Citadas na coletânea Os clássicos da
política (Editora Ática, volume I, 1995), as cláusulas do Contrato social de Jean Jacques Rousseau mostram que “cada um
de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a
suprema direção da vontade geral e recebemos, enquanto
corpo, cada membro como parte indivisível do todo”.
Direito público,
privado e administrativo
A doutrina tradicional divide as relações jurídicas,
que se estabelecem a partir das normas de direito, de
gina rothfels
“Cada um de nós põe em
comum sua pessoa e todo o seu
poder sob a suprema direção
da vontade geral e recebemos,
enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo”
Jean Jacques Rousseau, Contrato social
acordo com a relação entre sujeitos. A Teoria
pura do direito, de Kelsen, também analisa a
repartição dessas relações, estabelecendo
os seguintes fatores de distinção: “o direito
privado representa uma relação de sujeitos
em posição de igualdade – sujeitos que têm
juridicamente o mesmo valor – e o direito público entre sujeito supraordenado e um sujeito
subordinado – entre dois sujeitos, portanto,
dos quais um tem, em face do outro, um valor
jurídico superior”.
Assim, por exemplo, o ato jurídico do casamento decorre de uma relação de direito
privado, enquanto a cobrança de impostos
decorre de uma relação de direito público.
Na seara do direito público é possível destacar as relações jurídicas de direito administrativo que disciplinam as situações que se
desenvolvem a partir do exercício, por parte
do Estado, da administração do interesse
público ou da coletividade.
No livro Elementos de direito administrativo
(Malheiros Editores), Celso Antônio Bandeira
de Mello esclarece que o direito administrativo encontra fundamentos em dois princípios
básicos: supremacia do interesse público
sobre o privado e indisponibilidade, pela
administração, do interesse público.
A administração pública, ou poder público,
encontra-se em situação de autoridade para
garantir os interesses da coletividade. Ao
mesmo tempo, essa autoridade, ou agente
público, está legalmente impedida de dispor
livremente sobre os bens ou interesses de
que cuida, como aponta Ruy Cirne Lima na
obra Princípios de direito administrativo (Malheiros Editores): “A relação de administração
somente se nos depara, no plano das relações
jurídicas, quando a finalidade a que a atividade de administração se propõe, nos aparece
defendida e protegida, pela ordem jurídica,
contra o próprio agente e contra terceiros”.
Ressalte-se que as normas que compõem
o direito administrativo provêm de poderes
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direitos humanos
Poder de polícia e a esfera
de direitos dos particulares
Uma vez que ao Estado foram
atribuídos o poder público e a função
de zelar pelo interesse da coletividade,
como determinar os limites
de atuação desse poder?
Uma vez que a Constituição e o ordenamento jurídico atribuem aos cidadãos e ao Estado uma série de prerrogativas
ou direitos, é necessário que o exercício destes últimos não
afete o bem-estar da sociedade. Assim, o Estado exerce
“uma atividade no sentido de condicionar a liberdade e
a propriedade, ajustando-as aos interesses coletivos”,
segundo afirma o autor Bandeira de Mello.
Essa ação do poder público, todavia, tem sempre, como
pressuposto de validade, a lei no sentido formal: ato emanado do Poder Legislativo, criado pelos representantes
do povo e dentro da esfera de validade da Constituição
federal. Por exemplo: a aplicação de multa, pelo policial,
ao indivíduo que desrespeita as leis de trânsito corresponde a um ato administrativo fundamentado em lei
(Código Nacional de Trânsito) no sentido de adequar a
liberdade e a propriedade ao interesse coletivo.
Porém tem-se observado que essa interferência do
Estado na liberdade e na propriedade dos indivíduos está
cada vez mais constante e presente na vida da coletividade.
Até que ponto é possível afirmar que essa interferência
é legítima e corresponde aos anseios da sociedade?
Tomando-se como exemplos os casos recentes em que
o Ministério da Saúde, no Brasil, proibiu a comercialização de cigarros mentolados e a França, que desde abril de
2011, em nome do Estado laico, aboliu e proibiu o uso do
véu islâmico em locais públicos, será desenvolvido um
raciocínio que procurará avaliar qual a lógica da decisão
adotada pelo intérprete da norma jurídica ao solucionar
conflitos decorrentes de tais imposições.
Ressalte-se que o Estado também está sujeito às normas
estabelecidas pela Constituição e não deve ultrapassar os
limites dos poderes que esta lhe atribuiu. Num sistema de
direito em que o Estado segue essa regra fundamental, é
possível afirmar que se está diante do estado de direito. Todavia, se o Estado, no exercício de suas funções, extrapolar
os limites legais, abusando de seus poderes, desprezando
os preceitos da Carta Magna, será caracterizado como um
Estado arbitrário.
Uma vez que ao Estado foram atribuídos o poder público e a função de zelar pelo interesse da coletividade,
como determinar os limites de atuação desse poder?
Qual a situação que caracteriza uma invasão arbitrária
do Estado na esfera de direitos dos particulares? Qual a
interpretação que deverá nortear a autoridade julgadora
para decidir determinada controvérsia que envolve essa
interferência nos direitos individuais?
Nos exemplos mencionados, é possível afirmar que
o Estado agiu defendendo de forma legítima o interesse
coletivo? Qual é a real dimensão da expressão interesse
público ou coletivo?
A doutrina ligada à área da filosofia do direito que mais
se aproxima das respostas a estas indagações é aquela
que analisa os conceitos vagos e imprecisos. Partindose da premissa de que, em alguns casos, a expressão
interesse público pode caracterizar-se como um conceito
vago, é possível, a partir de seu estudo, tentar chegar a
uma solução para os conflitos que surgem das diversas
interpretações de uma regra fundamentada em um conceito muitas vezes carregado de imprecisão.
No livro Notas sobre derecho y lenguage (Editora
Abeledo Perrot), Genaro R. Carrió ensina que, embora
exista determinada palavra ou expressão apta a definir
certo objeto, essa palavra pode ser vaga e, em algumas
situações, não se tem certeza da sua aplicabilidade. Para
explicar esse raciocínio, Carrió recorre a uma metáfora:
“Há um foco de intensidade luminosa onde se agrupam
os exemplos típicos, aqueles frente aos quais não se duvida que a palavra é aplicável. Há uma mediata zona de
obscuridade circundante (do conceito), onde caem todos
os casos nos quais não há dúvida de que não é. O trânsito
de uma zona a outra é gradual: entre a total luminosidade
e a obscuridade total existe uma zona de penumbra sem
limites precisos. Paradoxalmente, ela não começa nem
termina em nenhuma parte e sem embargo existe. As
palavras que, diariamente, usamos para fazer alusão ao
mundo em que vivemos e a nós mesmos têm consigo essa
aura de imprecisão”.
diferentes: as leis emanadas do Poder Legislativo e os atos
praticados pelo Poder Executivo no exercício da função
administrativa (atos administrativos).
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
paul reid
“Há um foco de intensidade
luminosa onde se agrupam os
exemplos típicos, aqueles frente
aos quais não se duvida que a
palavra é aplicável. Há uma
mediata zona de obscuridade
circundante (do conceito), onde
caem todos os casos nos quais
não há dúvida de que não é”
Genaro R. Carrió
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doki
direitos humanos
Assim, seguindo-se a linha de raciocínio do referido
autor, é possível afirmar que um ato administrativo que
negue a concessão de alvará de licença e funcionamento
para a abertura de um restaurante que não se encontra de
acordo com as normas de vigilância sanitária está na zona
de intensa luminosidade citada, onde é perfeitamente
aplicável o conceito de interesse público ou coletivo. Por
outro lado, a concessão de licença ambiental para que um
indivíduo, parente de autoridade administrativa, venha
a explorar atividade que, comprovadamente, irá causar
destruição e prejuízos irreparáveis para a sociedade, corresponde a um ato administrativo de poder de polícia, que
se encontra naquela zona de obscuridade total citada pelo
filósofo e que, portanto, não caracteriza interesse público.
E as demais circunstâncias? A medida adotada pelo
Ministério da Saúde estaria naquela zona de penumbra
ou de luminosidade total?
A Constituição federal, ao tratar da ordem econômica e
social, estabelece que ela se fundamenta no princípio da
livre iniciativa e liberdade de empreendimento.
Considerando-se que o objetivo maior da autoridade
administrativa seja a saúde pública e da coletividade e
também evitar gastos dos recursos públicos com tratamentos e licenças médicas, seria possível afirmar que esse
ato administrativo está em conformidade com o interesse
público ou da coletividade e não contraria o princípio da
livre iniciativa, uma vez que este deve ser exercido dentro
das normas estabelecidas pelo Estado.
Assim, se ao julgar uma eventual ação proposta pela
indústria de cigarros, o Poder Judiciário entender que a
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Considerando que o uso do véu para
as muçulmanas corresponde a uma
tradição secular que pode impedi-las
até mesmo de saírem de suas casas,
como adequar essa medida à Declaração
Universal dos Direitos Humanos que
assegura a todos os indivíduos o direito à
liberdade de crença?
medida visa ao interesse público, essa decisão estaria norteada pelos critérios acima mencionados, ou até mesmo por
outros que o juiz venha a utilizar para fundamentar a sua
decisão, e a interpretação da expressão interesse público
estaria na zona de luminosidade proposta por Carrió.
E a medida adotada pela França no sentido de preservar o Estado laico? Se for considerada essa finalidade e,
principalmente, a de evitar confrontos motivados por
intolerância religiosa, é possível afirmar o interesse
público e o enquadramento desse ato nessa mesma zona
de luminosidade apregoada por Carrió.
Porém, levando-se em conta que o uso do véu para as
muçulmanas corresponde a uma tradição secular que
pode impedi-las até mesmo de saírem de suas casas, há
que se falar em interesse público? Como adequar essa
medida ao preceito estabelecido na Declaração Universal
dos Direitos Humanos que assegura a todos os indivíduos
o direito à liberdade de crença?
Considerando-se que a citada declaração preceitua que
ninguém poderá ser privado de seus direitos por motivo
de crença religiosa, tal imposição, tecnicamente, estaria
impedindo que as muçulmanas exercessem, por exemplo, o seu direito à educação? Seria legítima essa interferência do Estado na esfera de direitos dos particulares?
O artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos
Humanos afirma: “Toda pessoa tem direito à liberdade
de pensamento, consciência e religião; este direito inclui
a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade
de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela
prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.
Esta é uma situação em que é possível afirmar que o
ato da autoridade pública está na zona de penumbra citada por Carrió e que irá requerer de seu intérprete uma
série de considerações para averiguar a aplicabilidade
do conceito de interesse público.
Há uma diferença básica entre o Estado e seus representantes utilizarem símbolos religiosos e os indivíduos,
enquanto integrantes de um grupo social, utilizarem esses
mesmos símbolos.
O poder público, no exercício de suas funções, ao
utilizar símbolos religiosos, colocaria em dúvida a neutralidade do Estado em relação à sua tutela a todos os
indivíduos que integram a sociedade. Dessa forma, qualquer manifestação de crença religiosa seria nitidamente
contrária ao interesse público.
Porém os indivíduos, ao utilizarem esses mesmos símbolos, socialmente, estão exercendo sua liberdade de crença. Devido a ela, dispõem da prerrogativa de frequentar
espaços ou templos onde são ministradas tais doutrinas.
O entendimento, por parte da autoridade julgadora,
do interesse público na proibição do uso desses símbolos
para pessoas pertencentes ao grupo social, não poderia
levar, como via de consequência, a uma intolerância
religiosa por parte de outros indivíduos? Neste caso, em
vez de atender ao interesse coletivo de evitar confrontos
sociais por motivos religiosos, a interpretação equivocada poderia contrariar este interesse maior.
Quais os efeitos de uma medida deste porte em um Estado que não tem, em sua tradição histórica, os mesmos ideais
da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade?
No caso específico da França, somente o passar do
tempo, aliado às reações da sociedade, poderá confirmar
se a regra atendeu ao interesse público ou causou mais
distúrbios na coletividade e, dependendo das consequências daí advindas, obviamente que as regras serão
alteradas novamente, pois o direito é dinâmico e não
estático, adaptando-se às necessidades dos indivíduos
e da coletividade.
Todavia, em outros países, como o Brasil, por exemplo, tais medidas configurariam sinais de intolerância.
A Constituição brasileira estabelece em seu artigo 5º,
inciso VII, que ninguém será privado de seus direitos por
motivo de crença religiosa. Sendo assim, ninguém poderá
ser privado de seu direito à educação estando impedido
de adentrar uma instituição de ensino em virtude do uso
de um símbolo religioso.
Por um mundo melhor
A interferência do Estado na sociedade muitas vezes se
faz necessária para assegurar toda a estrutura do sistema
de direito, bem como a continuidade do pacto social, que
é o pressuposto de validade de toda nação politicamente
organizada. Porém nem sempre essa interferência pode
ser considerada totalmente benigna, como é o caso de
adentrar pela seara da liberdade de crença religiosa.
Em alguns casos, dependendo da história daquele
grupo social, dos valores por ele prestigiados, da época e
da conjuntura política, entre outros fatores, é necessário
que o Estado avalie cuidadosamente a eficácia e legitimidade de suas ações, a fim de evitar que, indiretamente,
venha a propiciar o surgimento de situações que distorçam totalmente a sua finalidade, que é a de preservar o
interesse da coletividade.
Sob tais circunstâncias, não estaria o Estado exercendo
a sua “função social”, no sentido de “garantir ou melhorar
as condições de vida dos cidadãos e de possibilitar ou
promover o processo civilizador e o avanço cultural da
sociedade”, como descreve Telles Jr, em seu livro Iniciação na ciência do direito. Mas, ao contrário, estaria, sim,
interferindo de modo autoritário não condizente com
as premissas básicas de um estado de direito. Com essas
medidas tomadas arriscar-se-ia a propagar efeitos diversos
e contrários à real intenção da tutela constitucional dos
interesses da coletividade. Denise Fabretti
Doutora em direito pela PUC-SP, professora da ESPM,
da PUC-SP e da Escola Superior de Advocacia da Ordem
dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo (ESA-OABSP)
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comportamento
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
O paradoxo
da democracia
Cabe ao Estado legal garantir sempre a ordem
e os limites de nossas liberdades individuais?
Por Eduardo Oyakawa
A
2 jenn
rigor, podemos falar de duas visões antagônicas sobre a liberdade
dos cidadãos nas modernas democracias ocidentais. De matriz
anglo-saxã, a primeira pontifica a liberdade humana como
intrinsecamente associada ao direito à propriedade privada,
às concessões políticas plenas no que tange a ordem cível e constitucional
e uma superestrutura moral na qual o indivíduo é artífice de sua própria
Moira (entendida aqui em seu sentido grego).
Uma segunda corrente de pensamento de viés francês, que tem em Rousseau seu ideólogo-mor, identifica justamente nesse Estado democrático e
garantidor dos direitos à vida constitucional e à propriedade privada o algoz
seviciador no qual se aninham todas as mazelas da vida em sociedade.
Não cabe aqui traçar os embaraços e confrontos dessas duas linhas de
retórica e reflexão que permeiam a filosofia política desde o iluminismo até
nossos dias. Entretanto, tudo que dissermos sobre o atual estado democrático
de direito e, no caso particular, o brasileiro, devemos, sob o perigo imenso
da douta ignorância, valermo-nos dessas matrizes conceituais como paradigmas para uma compreensão clara da liberdade moderna.
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comportamento
Imaginemos uma cena comezinha de nosso cotidiano
urbano. Estamos parados com nosso automóvel num
desses congestionamentos gigantescos na cidade de São
Paulo. À nossa frente, uma fila de carros que nos permite
andar poucos quilômetros a cada dez ou quinze minutos... De repente um cidadão ao nosso lado pega a faixa
exclusiva de ônibus e, em toda a velocidade, transgride
a lei, a mesma que nos cinge ao marasmo da espera. O
que se passa em nosso íntimo? Em primeiro lugar, uma
vontade inequívoca de que um agente do Estado multe
o transgressor, severamente. E, em segundo lugar, que a
ordem seja novamente restabelecida. Afinal de contas, se
todos se dispusessem a desobedecer às regras de convivência básica no trânsito, por que cargas d’água seríamos
nós os defensores de uma lei emasculada e inimputável?
Neste caso específico, clamamos por um Estado legítimo que garanta a todos a mesma punição, caso aconteça
que sobrevenha aos mais pressurosos a sede por uma
liberdade plena e incoercível.
Mas poderíamos aplicar esta mesma lógica às várias instâncias da vida social? Cabe ao Estado legal garantir sempre
a ordem e os limites de nossas liberdades individuais?
Se seguirmos a escola anglo-saxã, deveríamos dizer,
peremptoriamente, depende... Há um espaço de nossas
vidas privadas, inviolável, no qual as escolhas devem
prescindir ao máximo do arbítrio da normatividade
constitucional. Esse seria o âmbito de nossas opções
religiosas e sexuais, por exemplo. Há outros nos quais
é absolutamente imprescindível a presença do Leviatã,
como no caso da garantia pétrea à propriedade privada.
Se nossa opção analítica fosse a escola rousseauniana,
o Estado, baseado numa burocracia formal e legal (no
sentido de Max Weber), ocupar-se-ia sempre em aliciar e
locupletar-se dos cidadãos, retirando-lhes a criatividade e
forças produtivas, ingerindo-se no que concerne apenas
ao livre-arbítrio dos homens. Enfim, domesticando ao
Se todos se dispusessem a
desobedecer às regras de convivência
básica no trânsito, por que, cargas
d’água, seríamos nós os defensores
de uma lei emasculada e inimputável?
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
seu jaez a liberdade espoliada aos seus atores políticos.
Curiosamente, no caso brasileiro, o pensamento liberal
encontra-se mais à vontade com o filósofo Jean-Jacques
Rousseau do que com os ingleses... E o pensamento de esquerda prefere um Estado mais presente na vida do cidadão,
Tópos, que os herdeiros de Rousseau jamais admitiriam,
incluindo os arautos de Marx que, aliás, glorificavam o
pensador suíço como um marxista avant la lettre...
Mas, sob uma ótica um pouco menos formalista do
que aquela que a filosofia política costuma nos ensinar,
devemos buscar na sociologia recursos teóricos mais
ricos para responder de maneira mais complexa a nossa
indagação inicial.
O ethos moderno caracteriza-se por uma busca desenfreada do prazer sensorial e tudo o quanto a cultura
tecnológica do entretenimento pode oferecer de diversão
ao ser humano. Os sociólogos costumam chamar a essa
cultura pragmática e individualista de narcisismo.
Trata-se do final da metafísica entendida aqui não
no sentido Heideggeriano [do filósofo alemão Martin
Heidegger], mas na certeza do homem científico de que
os deuses estão definitivamente mortos e que nossas
existências terrestres devem enfrentar com coragem e
altivez o silêncio e o desamparo cósmicos.
Dirá Jean-Paul Sartre para não agirmos de má-fé,
desobrigando-nos de nossas imensas vicissitudes morais.
Pois bem, como recusar ao homem moderno seu quinhão
de liberdade absoluta, uma vez que ele só tem essa vida
para realizar plenamente sua existência? Caberia ao
estado democrático de direito esse papel?
Como convencer as pessoas que querem fazer a diferença (nossa indústria cultural idolatra as corruptelas
mal compreendidas do american way of life) de que elas
devem sofrear seus desejos sejam eles quais forem... as
melhores roupas e viagens e automóveis... o prazer da
carne, do sexo e das drogas?
Por que a marcha da maconha mobiliza mais a juventude brasileira do que a tragédia da educação ou o
desatino agrário?
A resposta parece ser porque a individuação moderna
baseia-se no desaparecimento por completo do outro,
portanto, na vida que um dia a sabedoria grega chamou de
esfera pública do agir político, a Pólis. Interessa ao sujeito
moderno apenas ele mesmo, já que o mundo dos outros
significa apenas um empecilho intratável à felicidade
menna
Interessa ao sujeito moderno apenas ele mesmo, já que o mundo dos outros
significa apenas um empecilho intratável à felicidade pessoal. Sob o manto
desse ethos individualista, o que devemos esperar do Estado brasileiro?
pessoal. Sob o manto desse ethos individualista, o que
devemos esperar do Estado brasileiro?
Parece-me indiscutível que o espaço privado de
nossa existência deve ser preservado de qualquer
maneira. Faz parte das grandes conquistas morais da
modernidade iluminista o direito ao voto e à escolha
religiosa, por exemplo. Entretanto, a racionalidade
intrínseca à ordem democrática garantidora da liberdade possível ergue-se soberana no que concerne à
regulação de nossos comportamentos públicos. Se a
ordem legalmente constituída deliberar que crianças
não devem mais aparecer em novelas televisivas ou
em peças publicitárias, devemos reconhecer que essa
é uma demanda legítima do poder estatal. Em nome de
consensos éticos (a heterogeneidade da sociedade civil),
o Estado deve e tem por obrigação sobrepor-se à iracunda e desenfreada vontade do mercado de locupletar-se
sempre que possível...
Por fim, em nossa modernidade tecnológica, a humanidade, em sua sede insofreável por liberdade pessoal,
tem no controle democrático da sociedade civil sobre o
poder constituído a legitimidade das leis.
O nosso motorista parado no trânsito de São Paulo
deve, para que haja vida civilizacional possível, respeitar a fila que o faz perder a vida no congestionamento.
Paradoxo? Sim! Afinal de contas, nosso motorista quer
liberdade, mas ele é livre apenas para cumprir as normas
e as leis. Ou, se não, para consumir segundo os padrões
mercadológicos da ordem capitalista de produção. Fora
das normas, das leis e do consumo não há vida possível.
Ou deveríamos afirmar, junto a Rousseau, não há vida
autêntica possível, pois as sociedades baseiam-se na
coerção externa e na disciplinirização interna dessa
criatura intratável que é o ser humano para forjar o
convívio civilizacional – ad baculum...
Entretanto, como bem nos ensinou o filósofo marxista
Walter Benjamin, para compreendermos o ser humano,
não basta possuirmos uma razão analítica e crítica disposta a verificar seu modus vivendi. Para compreendermos
em verdade essa criatura perdida na solidão cósmica,
devemos amá-la sem qualquer tipo de esperança...
Eduardo Oyakawa
Escritor, publicou Lâminas do cotidiano, O azul dos dias,
e A espiritualidade da palavra, pela Stilgraf editora.
Professor de filosofia e lógica da argumentação na ESPM
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consumo
O espelho
da sociedade
contemporânea
Narcisismo, consumo,
relações de pertencimento e de
referencialização e a psicanálise
são caminhos para compreender
o sujeito contemporâneo
inserido em uma sociedade
multifacetada, seletiva,
consumista, fragmentada,
grandiloquente e antagônica
em seus grupos
Sandra Cunningham
Por Paulo Roberto Ferreira da Cunha
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
A
nte as incessantes transformações que vive o
ambiente da comunicação, é oportuno construir relações entre pensamentos sociais,
olhar psicanalítico e questões que cercam
o sujeito contemporâneo. É possível, por exemplo, encontrar afinidades entre a constituição do sujeito em
sua cepa narcísica e as caracterizações de forças que ora
regem a sociedade ocidental, em especial o consumo e
as relações de pertencimento e referencialização que
emergem na contemporaneidade, o que pode sinalizar
estratégias a serem consideradas pela comunicação
A premissa do espelho
O psicanalista francês Jacques Lacan, em seu estudo denominado Estádio do espelho, explica que as bases do que
se constituiria em relações de referencialização, ainda
na mais tenra idade do sujeito, nada mais é do que o reflexo de um amor incontinente. Isso ocorre quando uma
mulher se debruça sobre o berço e fala coisas doces para
seu bebê. Ela lembra de recomendações ancestrais sobre
a importância, para a criança, de ouvir a suave voz de
sua mãe a acalmar e a demonstrar seu amor. Afinal, por
quanto tempo mais ela poderia cuidar integralmente de
sua vida, protegê-lo, afastá-lo dos riscos do mundo? Ali,
deitado no berço, ele pode ser cuidado, amado e sentir o
que ela deseja de melhor para ele. Que seja sempre tão
amoroso, lindo e fofo como agora o é. Que saiba pedir o
que lhe é devido, como quando chora pelo leite ou pela
nova fralda. Que seja feliz. Que seja forte para segurar as
barras do mundo tão cruel que um dia há de enfrentar.
Neste gesto habitual, que compõe o dia a dia de tantas
mães, pais e filhos, o retrato lindo de uma família amorosa, transpira, entretanto, a relação que acompanhará
essa criança por toda a sua vida. Na incapacidade de
se perceber ainda como sujeito, sentindo um mundo
como se ele fosse o mundo também, passa a ver esse
mundo – e, portanto, a si mesmo – a partir do olhar e da
voz dessa mãe. A projeção feita sobre ele, no melhor e
mais nobre dos sentidos, se tornará constituinte de sua
psiquê. Primeiro, com a visão de si pela descrição feita
por sua mãe – ou por quem desempenhar a função da
maternidade –, como um corpo que é visto por alguém
e, a partir da imagem sobre ele, constituindo-se por essa
premissa e lembrando que essa reação já lhe garantiu
bons ganhos afetivos em retorno. Mais à frente, alguém
“Somente pelo fato de viver
com outros homens, os seres
humanos ficam presos,
irreversivelmente, em um jogo
de identificações que os impelem
a repetir aquela relação com
a imago antecipatória”
Norberto & Célia Bleichmar
nomeará o bebê para o bebê – tal como em um espelho
“aquele é o bebê!” –, que causará estranheza a princípio,
pois a sua relação com seus pares gerou a percepção de
que os outros não são eles, mas sim parte dele, ou melhor,
ele, o bebê. Este registro se consolidará em percepção
um pouco mais tarde, entre os seis e os dezoito meses
de idade, quando o bebê perceber que não é outra pessoa
no espelho ou na fala das pessoas que o cercam, mas
que é ele separado.
Um dos aspectos que tornam esta dialética impressionantemente forte e atual é a questão da identificação,
que se torna elemento constitutivo desse sujeito. Há
uma ilusão e uma imagem à qual ele ficará vinculado e
da qual tentará se aproximar. E, como Norberto e Célia
Bleichmar detalham no livro A psicanálise depois de Freud
(Editora Artmed, 1992), “somente pelo fato de viver com
outros homens, os seres humanos ficam presos, irreversivelmente, em um jogo de identificações que os impelem
a repetir aquela relação com a imago antecipatória”. O
mesmo que um dia, quando bebê, participou da constituição do mesmo sujeito, naquele momento fragmentado
e narcisicamente voltado apenas para si, mesmo ainda
sem a percepção de si. O espelho torna-se, pois, uma boa
metáfora para o reflexo do outro em mim e o reflexo de
mim mesmo – que é um reflexo, e não o eu de verdade.
O sujeito e a sua identidade
A inspiração no pensamento de Jacques Lacan permite
trazer à discussão visões sobre a constituição do sujeito na denominada contemporaneidade. Tomando-se o
ponto de partida proposto por Stuart Hall, em seu livro
A identidade cultural na pós-modernidade (DP&A Editora,
2006), ocorre o surgimento de novas identidades e da
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
97
consumo
fragmentação contemporânea do homem tendo base
no contexto histórico e econômico, oriunda de mudanças sociais ocorridas no século 20. Pouco a pouco, elas
“fragmentaram paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado,
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais”, afirma o autor. Com isso, a ideia de mudança
nas identidades pessoais vai de encontro à ideia de
sujeito integrado, gerando a perda de um “sentido de
si” e, consequentemente, a sensação de deslocamento
ou de descentramento.
Publicada em 2006, a obra de Hall detalha três concepções de identidade. A primeira é a do sujeito do iluminismo, baseada “numa concepção da pessoa humana
como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado
das capacidades de razão, de consciência e de ação [...],
cujo centro essencial do eu era a identidade de uma
pessoa”, apontando assim para uma concepção mais
individualista. A segunda é a do sujeito sociológico,
expressão da complexidade do mundo moderno trazido
pela pós-Segunda Revolução Industrial, compreendida
como concepção “interativa”, amparada pela identidade
como fruto da interação entre o eu e a sociedade, preenchendo o espaço entre o mundo pessoal e o mundo
público. E a terceira é a do sujeito pós-moderno, que
aponta para uma “celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos apresentados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam”.
Dessa forma, a constituição desse sujeito, também
denominado como contemporâneo, expõe, por sua vez,
uma série de conflitos. A enganosa percepção de que
existe uma identidade unificada desde o nascimento até
a morte é nada mais nada menos do que uma reconfortante história sobre si mesmo, diante da “multiplicidade
O sentimento de viver algo exclusivo e de
estar entre – não necessariamente ser um
dos – os escolhidos agrega valores que
explicam a vida e suas escolhas para
o próprio sujeito
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Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Vladimir Wrangel
Quanto maiores são as cidades, os países, os grupos sociais,
maiores são também os esforços para fazer parte e não ficar
à margem da sociedade. Pertencer significa ter uma identidade
comum, avalizada, menos vulnerável a críticas e ao abandono –
algo como não se perder na multidão ou tornar-se alguém
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente”, como Hall descreve
em seu livro, aqui anteriormente citado.
Assim, pode ser observado que a teoria
social traz à discussão a importância
dos valores culturais que, por sua vez,
representam a sociedade e os grupos
que a constituem. A cultura, que é ferramenta para a perpetuação dos valores
sociais transmitidos desde tenra idade
pela mãe ao bebê, também é a base para
a identificação de integrantes de um
mesmo grupo social. A situação contemporânea amplificou essa relação através
dos códigos que regem o pertencimento
aos grupos, cada vez mais midiatizados
e vendidos abertamente pela comunicação de massa e pelos valores inclusos no
consumo. Quanto maiores são as cidades,
os países, os grupos sociais, maiores são
também os esforços para fazer parte e não
ficar à margem da sociedade. Pertencer
significa ter uma identidade comum,
avalizada, menos vulnerável a críticas e
ao abandono – algo como não se perder
na multidão ou tornar-se alguém. Pode-se
dizer que o sentido é de “seduzir e abusar
por meio do jogo da aparência” – como
cita Gilles Lipovetsky em A era do vazio
(Editora Manole, 2005) –, de certa forma
envolto na nuvem da particularização, da
interação e da espontaneidade. Verbalizase que o “afetado e o padronizado” não
têm mais espaço, mas para fazer parte
de uma tribo há de seguir seus códigos.
Parte desses códigos é representada por
posse e bens de consumo.
No livro A arte da vida (Editora Zahar,
2009), Zygmunt Bauman afirma que
“além de uma fragrância incomum, eles
oferecem um emblema olfativo de magnificência e pertencimento ao grupo dos
magnificentes”. Isso gera um “certo tipo
de êxtase e outros semelhantes [que]
combinam o sentimento de pertencimento a uma categoria exclusiva – um grupo
vetado a quase todos os outros, como um
distintivo do supremo bom gosto, discernimento e savoir-faire (demonstrados pela
exibição de objetos ou pela visita a lugares
que são fechados para os outros)”. Em
suma, o sentimento de viver algo exclusivo e de estar entre – não necessariamente
ser um dos – os escolhidos, agrega valores
que explicam a vida e suas escolhas para
o próprio sujeito, em um moto-contínuo
incessante, capaz de sugerir até a tão
discutida sensação de aceleração da vida.
Por sua vez, Michel Maffesolli, em
O mistério da conjunção – ensaios sobre
comunicação, corpo e socialidade (Editora
Sulina, 2005), aponta para outro traço
relevante da contemporaneidade, acerca dos elementos que pontuam a vida
cotidiana e dos jogos que a compõem,
visto que sua manutenção e sua força se
preservam na pouca importância deles
mesmos, possuindo a “permanência do
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
99
A ideia de mudança nas
identidades pessoais vai
de encontro à ideia de
sujeito integrado, gerando
a perda de um ”sentido de
si” e, consequentemente, a
sensação de deslocamento
ou de descentramento
100
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Pukhov Konstantin
consumo
insignificante”. Essa matriz revela que o poder para o
sujeito – envolto pela efemeridade e fragmentado pelas
relações sociais – é o “centro de diversos interesses e a
posse de bens ou a glória e as honras são desesperadamente procuradas, o que [pode ser chamado] de potência
social”, deixando de lado, com isso, o que realmente pode
ser considerado a trama da vida desse sujeito.
Pode-se afirmar que o poder do consumo e da referencialização possibilita, por sua vez, a compreensão
de um combustível narcísico, onde há quem quer ser
visto e quem quer ser a referência para o outro, sem que
necessariamente assumam apenas um desses papéis.
O que por si só já é material importante para estudo.
O espelho contemporâneo
Para relacionar as premissas do Estádio do espelho – e
o narcisismo inerente dessa construção – com características discutidas no momento social contemporâneo,
cabe resgatar um dos pontos levantados por Lacan. O
psicanalista francês refere-se à busca pela aprovação
externa, que será uma constante, graduada de formas
diferentes, a partir de cada história particular, mas presente e fortemente estimulada pelas relações grupais. É
cultural, social e constituinte.
Portanto, conclui-se que há relevância no estudo dos
papéis sociais a partir da necessidade de inserção e de
pertencimento dos integrantes de grupos e de tribos. Entre os pontos relevantes também estão os elementos que
colaboram para concretizar essa experiência – e que nem
sempre conseguem sustentá-la –, tais como o consumo,
a referência, o modelo idealizado de modus vivendi, e a
posição do sujeito ante essas escolhas. A relevância, no
caso, é a confluência dessas características com a visão
da vida contemporânea imersa no narcisismo. Este, por
sua vez, pode aparecer como indulgência voltada ao
consumo, necessidade excessiva de exposição em seu
meio e um clamor discriminatório de sua pessoa – que
está inserida em um grupo.
Logo, vale observar que o consumo desmensurado tanto pode servir como um alento a frustrações de batalhas
não vencidas quanto de suporte a recalques que teimam
em retornar. Também pode ser prova de uma aproximação do homem ao imaginário que o persegue – como
ser um herói ou um vencedor. O segundo ponto a ser
destacado é a personalização que, por sua vez, estimula
O consumo desmensurado tanto
pode servir como um alento a frustrações
de batalhas não vencidas quanto de
suporte a recalques que teimam em
retornar. Também pode ser prova de
uma aproximação do homem ao
imaginário que o persegue – como
ser um herói ou um vencedor
as raízes narcísicas desse sujeito, fazendo “da sedução
uma representação ilusória do não vivido” – como afirma
Gilles Lipovetsky –, isso que prolonga a oposição entre
o real e a aparência. Esse fato torna o indivíduo mais
solitário e com mais necessidade de se sentir incluído.
Seu refúgio pode estar exatamente numa capa narcísica,
onde se bastar justifica sua incapacidade de ser-se pleno
em um cenário tão abstrato e desprovido dos valores um
dia sussurrados em seu ouvido, ainda no berço.
Por fim, resgatando o processo do espelho defendido
por Lacan, a fragmentação não é apenas fruto da contemporaneidade, mas, sim, elemento constitutivo do
psiquismo humano. Ao que os autores Hall, Bauman,
Lipovetsky e Maffesoli apresentam como sinalizadores, pode-se compreender como uma percepção de seu
tempo, exterior e não interna. Portanto, sem se ater a
tempos precisos e definidos, a fragmentação percebida
na maturação dos bebês, que permanece por toda a
vida, encontra os braços abertos de uma sociedade
multifacetada, seletiva, consumista, grandiloquente
e antagônica em seus grupos. E essa sociedade cobra
um pedágio para o sujeito se constituir como parte
dela. Valores que assumem o papel da mãe sussurrante,
para sujeitos que se tornam bebês no seu dia a dia,
na eterna busca por aprovação, por referências e por
sua inclusão. Matéria-prima para o marketing e para
a comunicação.
Paulo Roberto Ferreira da Cunha
Professor de planejamento estratégico e de comunicação
integrada da ESPM-SP, psicanalista, coach, publicitário e autor do livro
O cinema musical norte-americano – gênero, história e
estratégias da indústria do entretenimento
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
101
economia
A era da
cooperação
Os interesses empresariais e coletivos analisados
sob o ponto de vista da nova economia
institucional e dos custos de transação
Por Jonas Cardona Venturini
e Marcello Noetzold Mafaldo
A
o se analisar a economia institucional, destaca-se seu caráter enfático como um estudo
abrangente das instituições, na qual considera
o mercado um resultado da interação complexa
dessas várias instituições (por exemplo, indivíduos, firmas,
Estados, normas sociais). Não obstante, essa corrente do
pensamento econômico incitou novas possibilidades de
análises dos fenômenos econômicos, sem perder o eixo
estrutural que a pautou, a exemplo da nova economia
institucional.
102
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
cienpies design
Nessa linha de raciocínio, a corrente de pensamento da
nova economia institucional delimita o seu escopo de análise teórica a partir das contribuições da Teoria dos Custos
de Transação (TCT). Também chamada de economia dos
custos de transação, a TCT tem uma trajetória de desenvolvimento teórica marcada por duas obras principais. A
primeira delas, reconhecida como a obra originária, é o
artigo “The nature of the firm”, de Ronald Coase, publicado
na revista Econômica, em 1937. A segunda é Markets and
hierarchies: analysis and antitrust implications, livro de Oliver Williamson, publicado em 1975, pela editora The Free
Press. Com essas obras, ambos os autores foram laureados
com o prêmio Nobel de Economia. Coase recebeu o título
em 1991 e Williamson, em 2008.
Corroborando a discussão que vem sendo estabelecida,
Coase (1937) argumenta que sua teoria encaixa-se na abordagem tradicional de análise da firma e pode ser operacionalizada pelo instrumental marginalista, na qual defende
que os desenvolvimentos da microeconomia neoclássica
nesse longo intervalo de tempo não levaram em conta suas
ideias. Seu trabalho, como ele próprio diz, é muitas vezes
lembrado, mas não lido com a devida atenção.
Assim sendo, na década de 1970, Williamson retoma a
ideia de Coase, sobre a qual vai trabalhar com o objetivo de
construir uma teoria da evolução das firmas. Com Markets
and hierarchies, Williamson (1975) apresenta a ideia básica
do modelo econômico que estava a desenvolver: mercados
e hierarquias são formas alternativas de organizar a produção capitalista, estando o tamanho da firma limitado à
sua capacidade não só de produzir um bem com menores
custos que aqueles incorridos na produção automatizada
do mercado, mas também em ter menores custos, somados,
de produção e de transação que correspondem aos demais
custos incorridos na passagem do bem entre interfaces
tecnologicamente distintas.
Seus trabalhos afluem para The economic institutions of
capitalism, publicados em 1985, muito embora já tenham
influenciado outros autores a buscar tanto os desenvolvimentos teóricos incrementais como meios de operacionalização e estudos de caso para a sua teoria, como os
estudos de Granovetter, Barney e Hesterly, Sandler, entre
outros. Nela, o enfoque da TCT é utilizado para explicar
o desempenho de diversas instituições capitalistas e, em
particular, o movimento dos limites da firma. Reunindo
trabalhos publicados na década passada, Williamson lança
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
103
economia
rarquia, deve-se a Thorelli, no seu artigo publicado em
1986, a aproximação do conceito da forma híbrida de
Williamson com os estudos de relacionamentos interorganizacionais. É bem verdade que no estudo original de
Thorelli (1986), o autor ainda enquadrava os diferentes
relacionamentos interorganizacionais como redes de
empresas. Somente nos dias atuais é que a classificação
está mais clara para os acadêmicos e pesquisadores.
Para Thorelli, a forma híbrida passava por um processo
cooperativo entre empresas.
Nessa altura da discussão e dado um esclarecimento
sobre qual lente de análise será pautado esse artigo,
retoma-se o argumento inicial: “A nova economia institucional e o papel das instituições – os interesses das
empresas não devem conflitar com os interesses coletivos”. Diante do explicitado e ancorado no arcabouço
teórico da Teoria dos Custos de Transação, defende-se
o papel de uma estrutura híbrida para o entendimento
e para a convergência dos propósitos organizacionais/
empresariais e coletivos.
Incutido no argumento de Thorelli, uma das formas de
estruturas de governança que emerge na estrutura híbrida é
a governança de rede. Segundo Candace, Hesterly e Borgatti
(1997, p. 914), governança de rede “implica a existência de
um grupo específico, persistente e estruturado de empresas autônomas (bem como agências sem fins lucrativos)
envolvidas na criação de produtos ou
serviços baseados em contratos implícitos e abertos, em condições de se adaptar
às contingências ambientais e coordenar
Mercado
e salvaguardar as trocas. Tais contratos
Híbrida
são elos sociais e não legais”.
Para Fombrun (1982), redes são como
Hierárquica
um conjunto de nós interconectados,
possibilitando que esse conceito amplo
seja utilizado em diversas áreas do conhecimento. Nitin Nohria (1992) afirma
que, embora não constitua uma ideia
recente, visto que o conceito de rede
é empregado na teoria organizacional
desde o começo do século 20, a união de
empresas com o objetivo de obter soluções coletivas, que individualmente seriam impossíveis, vem recebendo uma
maior atenção dos estudos e práticas
organizacionais nas últimas décadas.
o que considera a última peça de sua trilogia, The mechanisms of governance (Williamson, 1996).
O estudioso baseia as suas contribuições da TCT
acerca de premissas centrais, tais como a racionalidade
limitada, a assimetria de informação e o oportunismo.
Ele resume o oportunismo a um comportamento como
mentir, roubar, lograr, formas sutis de enganar, revelar
informação de forma distorcida ou incompleta, ofuscar
e confundir. É conveniente lembrar que não são todas
as pessoas que se comportam de maneira oportunista
o tempo todo, mas sim algumas e algumas vezes, o que,
mesmo dessa forma, pode ser um grande problema para
o desenvolvimento das redes.
Os custos de transação também são influenciados pela
especificidade dos ativos, frequência das transações,
incerteza e complexidade do ambiente e quantidade de
agentes envolvidos na transação. Os atores econômicos
irão escolher a estrutura de governança (mercado, híbrida ou hierarquia) capaz de reduzir possíveis problemas
transacionais, criados pela racionalidade limitada, de
um lado, e pela ameaça do oportunismo, de outro, a um
menor custo. A figura abaixo apresenta com propriedade
as diferentes estruturas de governança mencionadas.
Ainda no que se refere à estrutura de governança, por
mais que se deem créditos acadêmicos a Williamson
no que se refere à forma híbrida entre mercado e hie-
Estrutura de coordenação
Custos da estrutura
de governança e
especificidade de ativos
Especificidade de ativos
Fonte: Williamson (1991), adaptada pelos autores
104
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Ao final de 2007, mais de 130 redes haviam
sido lançadas contendo um número de
aproximadamente três mil empresas
trabalhando sob a égide da cooperação
Nesse contexto, as empresas possuem um sentido de
pertencer a um grupo, com a existência de processos de
seleção e as relações de cooperação duradouras e, em
grande parte, mantidas por vínculos sociais e não contratuais, o que não significa que esses dois aspectos sejam
excludentes. Para entender o processo de governança,
é necessário considerar a dimensão da estrutura desse
novo tipo de configuração organizacional e a dimensão
da ação coletiva. No caso das redes de empresas, a governança e os seus mecanismos são condições sine qua non
para sua existência, especialmente porque a existência
de uma rede acena com relações de cooperação de longo
prazo. Uma afirmação básica da teoria do custo de transação é que mercados e hierarquias são instrumentos
alternativos para completar um conjunto de transações
e, como tais, são frequentemente chamados “mecanismos
de governança”.
A globalização dos mercados tem trazido oportunidades
e ameaças para as empresas, independentemente de seus
portes. Assim sendo, a competição empresarial no âmbito
global ampliou-se de maneira expressiva nos últimos anos.
Por muito tempo, a competição dominou o comportamento das firmas e não só representou o combustível para a
prática da gestão estratégica, como também estimulou a
maioria dos ensaios acadêmicos no campo da estratégia.
Competir significava lutar contra adversários que deveriam
ser derrotados ou eliminados.
Nohria apontou três razões para o aumento do interesse
no tema “redes de empresas”: a) a emergência da “nova
competição”, como está ocorrendo nos distritos industriais italianos e no Vale do Silício. Se o “velho” modelo de
organização era a grande firma hierárquica, o modelo da
organização considerada característica da “nova competição é a rede de inter-relações laterais intra e interfirmas; b)
o surgimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) tem tornado possível uma maior capacidade de
inter-relações entre firmas dispersas; e c) a consolidação
da análise de redes como uma disciplina acadêmica, não
somente restrita a alguns grupos de sociólogos, mas expan-
dindo para uma ampla interdisciplinaridade dos estudos
organizacionais.
Sob a égide do olhar empírico, destaca-se a constituição
do Programa Redes de Cooperação da antiga Secretaria do
Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais (Sedai),
hoje abrigado na Secretaria da Economia Solidária e Apoio
à Micro e Pequena Empresa (Sesampe). O programa vem
implementando com certo grau de sucesso a cultura das
redes de micro, pequenas e médias empresas. No final do
primeiro ano do programa, sete redes foram formadas.
Passados cinco anos, esse número subiu para 120 redes
de cooperação em todo o Estado do Rio Grande do Sul. Ao
final de 2007, mais de 130 redes haviam sido lançadas contendo um número de aproximadamente três mil empresas
trabalhando sob a égide da cooperação.
Ainda, o Programa do Estado do Rio Grande do Sul
Redes de Cooperação, através da Sedai (2010), aponta que
no somatório de atividades, desde seu início no ano 2000,
o programa constituiu e apoiou mais de 220 redes de cooperação, com um total de 4,7 mil empresas integradas,
gerando e/ou mantendo mais de 61,1 mil postos de trabalho
diretos e alcançando em conjunto um faturamento anual
superior a R$ 5 bilhões.
À luz da teoria dos custos de transação, preconizada
pela visão de Thorelli, permite considerar que as relações
empresariais, principalmente os movimentos de integração
vertical, não são os únicos modelos capazes de gerar resultados expressivos. Mas também a forma híbrida se apresenta
como um mecanismo capaz de congregar os interesses
coletivos, pelas relações cooperativas, aqui comprovadas
com os resultados do programa Redes de Cooperação.
Por fim, os três preceitos de Nohria se justificam com os
preceitos de Williamson, no estabelecimento dos vínculos
de reciprocidade entre os agentes integrantes, uma vez que
os desafios e adversidades entre essas empresas são os
mesmos, o que favorece a capacidade de inter-relações entre
elas, fortemente dissipado em debates interdisciplinares,
não restritos aos “grupos de sociólogos”. Tal abordagem
evidencia o ganho produtivo e mercadológico dos agentes
de mercado, favorecendo frequentemente as políticas de
incentivos às inovações e de defesa da concorrência.
Jonas Cardona Venturini e
Marcello Noetzold Mafaldo
Professores da ESPM-Sul
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
105
leitura recomendada
História do rádio no Brasil
Magaly Prado
Livros de Safra, São Paulo – 2012
480 p. – R$ 75,00
Esta obra chega às prateleiras em
bom momento, já que em 2012 o rádio
completa 90 anos de história no Brasil.
O livro resgata a importância histórica
do meio, retratando os principais momentos do rádio e dos profissionais
que encantaram plateias e influenciaram diretamente na formação cultural
brasileira. Apresentando imagens
históricas e inéditas de personagens
que marcaram época no país, o livro
conta com uma ”linha do tempo” com
os principais acontecimentos desta
que já foi a maior mídia do Brasil. Por
apresentar um conteúdo diferenciado,
a publicação deve se tornar leitura
de referência para profissionais e estudantes, além de fonte de consulta
permanente para os apaixonados
pelas notícias, músicas e ações de
entretenimento que o rádio oferece.
Magaly Prado é jornalista, radiomaker,
doutora em comunicação e semiótica,
professora das universidades PUC-SP,
ESPM-SP, ECA-USP e da Universidade de
Tuiuti (UTP).
106
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Competência: a chave
do desempenho
Estratégias de marketing
digital e e-commerce
Editora Atlas, São Paulo – 2012
168 p. – R$ 35,00
Editora Atlas, São Paulo – 2012
224 p. – R$ 45,00
Diante do desafio da globalização,
as organizações já não podem mais
contratar e manter no seu quadro de
pessoal aqueles que lhes são simplesmente fiéis. É indispensável contar
com colaboradores que sejam acima
de tudo competentes, isto é, que estejam preparados e dispostos para ir
cada vez mais longe. Como transformar a competência de cada indivíduo
que compõe o seu público interno em
um dos mais importantes diferenciais
competitivos de sua empresa é o que
ensina a autora. Segundo ela, a chave
para explorar o tema é aliar o potencial
interior do ser humano a um certo tipo
de predisposição interior consciente, o
que exige conhecimento ligado a predisposições afetivo-emocionais.
O universo digital tem trazido profundas transformações para o mundo
dos negócios. O impacto direto dessa
verdadeira revolução virtual é sentido
nos relacionamentos, na comunicação
e no entretenimento. O crescimento
da participação das pessoas na mídia,
a agilidade de interação, a ampliação
do poder de barganha dos consumidores e a mudança nas relações com as
organizações estão entre as principais
mudanças. De forma objetiva, o livro
apresenta uma visão sobre as diversas estratégias de marketing digital
e e-commerce, por meio da exposição
de artigos, pesquisas e casos, tanto
de multinacionais, quanto de médias e
pequenas empresas nacionais, somados à experiência da autora junto ao
mundo digital.
Cecilia Whitaker Bergamini
Cecília Whitaker Bergamini é bacharel em
psicologia clínica pela PUC-SP, professora da
FGV e consultora de empresas.
Sandra R. Turchi
Sandra R. Turchi é administradora
de empresas formada pela FEA-USP,
que há mais de 20 anos atua na área
de marketing nos setores de varejo,
financeiro, educacional e serviços.
O fenômeno do
empreendedorismo
Você não pode
demitir todo mundo
Bordões, slogans & conceitos
na publicidade brasileira
Editora Saraiva, São Paulo – 2012
392 p. – R$ 79,00
Editora Saraiva, São Paulo – 2012
240 p. – R$ 34,90
Editora Unisul, Santa Catarina – 2012
289 p. – R$ 30,00
O fenômeno do empreendedorismo vem
se espalhando pelos quatros cantos do
mundo, em ritmo acelerado. O número
de indivíduos que desejam criar o seu
próprio negócio no Brasil cresce dia a dia.
Mas para concretizar esse sonho, o candidato a empreender tem de vencer uma
verdadeira corrida de obstáculos até
conseguir ser dono do próprio negócio.
Pensando nesse público, o autor deste
livro mostra como desenvolver esse
espírito mais empreendedor. Inovação
e incubação de empresas também
estão entre os temas abordados, uma
vez que o empreendedorismo, adotado
como opção de vida, será a alternativa
profissional para muitos indivíduos nos
próximos anos.
Este livro é ótimo para os novos chefes
que precisam de ajuda, pois o autor
compartilha crônicas e estratégias reais e casos interessantes ocorridos durante seus 20 anos de gestão. O autor
lembra que, quando assumiu a função
de editor, passou a ser responsável
por uma equipe de repórteres ”difíceis”
e não tinha a menor noção de como
chefiá-los. A partir daí, ele desenvolveu
uma espécie de manual do chefe, com
dicas para facilitar as tomadas de decisão no dia a dia. Uma delas é descobrir
o que cada um de seus colaboradores
faz melhor. Outro ensinamento aponta
que alguns chefes pensam que a melhor forma de cortar alguém da equipe
é deixá-lo irritado a ponto de ele pedir
as contas. Mas o que é mais humano:
demitir o colaborador ou deixar que ele
se definhe em um cargo em que ele
não tem chance de evoluir?
Este é um livro que reconhece o slogan como uma palavra velha e desgastada, mas que ainda funciona. De
acordo com a obra, o conceito pode
conter uma personalidade marcante
e oferecer algo novo para as marcas,
permitindo aos anunciantes se estabelecerem na cabeça do consumidor.
Para explicar essa estratégia, a obra
apresenta quase cinco mil slogans e
conceitos já experimentados pelo mercado. Essa é uma coletânea que pretende ser uma importante ferramenta
auxiliar para quem cria, analisa e julga
o trabalho do publicitário. O livro pode
ser comprado diretamente na Editora
Unisul (www.editora.unisul.br).
Emanuel Leite
Emanuel Leite é pós-doutor em inovação
e empreendedorismo, doutor em ciências
da engenharia pela Universidade do
Porto, mestre em administração pela
Universidade Federal da Paraíba.
Hank Gilman
Hank Gilman é editor-executivo adjunto da
revista Fortune. Ao longo de sua carreira,
trabalhou no Boston Globe, Wall Street
Journal, Newsweek e Beaufort Gazette.
Elóy Simões
Elóy Simões é publicitário, jornalista
e professor no curso de comunicação
da Universidade do Sul de Santa Catarina
(Unisul). Foi redator, diretor de criação,
diretor de operação e assessor de
imprensa.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
107
leitura recomendada
O código da superação –
uma fascinante jornada
além da conquista
História do jornalismo –
itinerário crítico, mosaico
contextual
Editora Gente, São Paulo – 2012
152 p. – R$ 19,90
Paulus, São Paulo – 2012
448 p. – R$ 41,00
O livro trata dos desafios contemporâneos que qualquer ser humano, líder
de sua própria vida, deve enfrentar com
consciência e preparo. O executivo, o
dirigente, o gestor, o empresário, o educador, cada profissional em si precisa
superar a vontade do contínuo aperfeiçoamento da sua vocação, além de
conquistar competências novas. Para
isso, é necessário superar a si mesmo,
as barreiras da cultura social, as incertezas e as dúvidas do ambiente, aprender
a ter êxito em equipe, em times criativos
e, além de tudo, inovar, saber liderar com
sustentabilidade e construção de valor.
Segundo o autor, isso só é possível se
cada pessoa perseguir seu próprio código, que, ao ser descoberto e acessado,
o permite evoluir de forma acelerada
numa competição em que velocidade e
mudança são as regras do jogo.
A obra trata sobre a disciplina História do Jornalismo e procura situar os
futuros praticantes do ofício diante
dos acontecimentos que marcaram o
desenvolvimento das rotinas de produção, estimulando as novas gerações a
registrar com fidedignidade os fatos de
interesse público, contextualizando-os
no tempo e no espaço. O leitor encontrará profundas reflexões sobre os desafios da prática da profissão nos dias
atuais. Na expectativa de ilustrar os
caminhos percorridos pelo jornalismo
para se adaptar às mudanças, o autor
selecionou e correlacionou, na literatura
de campo, as fontes mais adequadas
para os novos praticantes compreenderem suas alterações, continuidades
e ressurgências no século 21. O título
também explora figuras importantes do setor, como Hipólito da Costa,
considerado o patrono da imprensa
brasileira.
José Luiz Tejon
José Luiz Tejon é publicitário, jornalista,
palestrante, autor e coautor de 28 livros.
É professor do Núcleo de Agronegócio
da ESPM.
108
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
José Marques de Melo
José Marques de Melo é jornalista, escritor,
doutor e professor emérito da USP.
Gestão da comunicação
pelo anunciante
Roberto Corrêa
Global Editora, São Paulo – 2012
189 p. – R$ 32,00
Observando que o relacionamento entre cliente e agência tem se mostrado
bastante difícil, o livro aborda questões
práticas, conceitos e procedimentos que
podem vir a ajudar o trabalho daqueles
que têm a função de solicitar, avaliar,
criar, produzir e veicular campanhas de
comunicação. O texto aborda alguns aspectos da atividade publicitária, explica
o funcionamento da agência, o relacionamento do anunciante com a agência,
além de conceituar a comunicação
integrada de marketing, a comunicação
empresarial e a importância da marca
para o sucesso de produtos e empresas. Com esse trabalho, o autor pretende mostrar como um relacionamento
mais profícuo pode conduzir a melhores
resultados na produção de peças publicitárias, propiciando um ambiente de
colaboração e trabalho conjunto.
Roberto Corrêa é doutor em marketing pela
FGV, economista, publicitário e professor da
ESPM. Autor de vários livros, trabalhou em
agências de propaganda e em indústrias
anunciantes.
COMUNICADO ACADÊMICO
A ESPM e a Berlin School of Creative Leadership tornam público, em especial para conhecimento
dos interessados da comunidade acadêmica brasileira e internacional, um acordo entre as instituições.
Esse acordo tem o objetivo de estabelecer cooperação acadêmica por meio de atividades de interesse mútuo.
Em breve, serão divulgados os novos projetos e programas dessa parceria.
São Paulo, junho de 2012 J. Roberto Whitaker Penteado
Diretor-presidente
ESPM
Michael Conrad
Presidente
Berlin School of Creative Leadership
www.espm.br
Sumário
Regulamentação
e responsabilidade
Roberto Civita
pág.
10
Ives Gandra da Silva Martins
pág.
28
A polarização das posições e o risco dos
extremos, quando se trata de opinar
sobre o papel do Estado como regulador
e disciplinador do comportamento social.
Neste artigo, o presidente do conselho
de administração e diretor editorial do
grupo Abril também mostra os riscos
das posições extremadas, citando como
exemplo a extinta União Soviética e o
homem natural de Hobbes que, por meio
da liberdade total, regride à selvageria.
Felizmente, como prossegue o autor, vivemos em um mundo de pactuações em
que a liberdade de um termina quando
atinge os direitos do outro, agindo o Estado como regulador dessas pendências. Na
base dessa delicada estrutura estão dois
elementos fundamentais que o Estado
deve respeitar: a liberdade de imprensa e
a livre iniciativa.
A evolução do Estado para os regimes democráticos coloca a necessidade de haver
um equilíbrio entre o poder, o povo e o
indivíduo. Como o homem no poder não é
confiável, podendo com ele confundir-se,
e como a sociedade ainda carece de um
conhecimento mais amplo do que seja a
autonomia do poder, tendem os governantes a ser manipuladores nos regimes
em que as oposições se enfraquecem na
opinião pública. Quando isto acontece, os
direitos individuais sempre correm risco,
enquanto os textos constitucionais e a
vivência da democracia são absorvidos
pelos direitos coletivos. Para este renomado jurista brasileiro, a verdadeira
democracia é aquela em que governo e a
sociedade não tiram do indivíduo o direito
de ser, pensar e agir com liberdade, mas
dentro da lei.
A propaganda comercial
é vítima de bullying
Quem é o dono do Estado?
Gilberto Leifert
pág.
22
Na teoria, a Constituição de 1988 acabou
com a censura e restabeleceu as liberdades de pensamento, criação, expressão e
informação, assegurando a livre iniciativa,
a livre concorrência e a defesa do consumidor. Na prática, a liberdade de expressão
continua ameaçada por inúmeros projetos
de lei que visam coibir a publicidade em
determinados setores da economia. É isso
que mostra o presidente do Conar neste
artigo, que traça um panorama da Indústria da Comunicação Brasileira e aponta
como a propaganda comercial está sendo
vítima de bullying. Como exemplo, Leifert
cita os inúmeros decretos, resoluções e
portarias criados pela Anvisa, que impõem
sérias restrições ao meio. Contra essa
espécie de censura prévia, o argumento
é claro: produtos lícitos e seguros para
o consumo podem, sim, ser anunciados,
admitindo-se que restrições sejam estabelecidas por meio de leis e de autorregulamentação, que elas sejam necessárias,
justas, razoáveis e proporcionais. Afinal, o
Brasil já tem leis demais!
110
Não cabe ao Estado dizer
como cada um deve ser
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Heródoto Barbeiro
pág.
O jornalismo também tem de
prestar contas à sociedade
Marina Dias
pág.
52
A Constituição federal traz os princípios
norteadores da cobertura jornalística de
casos criminais: a liberdade de expressão
e de imprensa, além das garantias constitucionais individuais. ”Sem imprensa livre
não existe democracia e vice-versa”, afirma
a advogada, ressaltando que, justamente
por essa ligação visceral, a imprensa deve se
pautar na observância dos preceitos fundamentais que sustentam o estado democrático. Há também uma relação de simbiose
entre a imprensa e os operadores do direito
que alimenta a espetacularização do crime.
Nesse contexto, qual é o papel da imprensa,
do Judiciário e dos operadores do direito?
As fronteiras entre a liberdade de imprensa
e as garantias constitucionais individuais
na cobertura jornalística são nebulosas,
portanto é difícil traçar uma linha clara sem
o risco de ferir alguma das liberdades em
jogo. Assim, uma das formas é criar espaços
para discussão na imprensa envolvendo os
demais atores.
40
As elites brasileiras lideram o processo de
organização do Estado desde a independência. Historiador, jornalista e professor,
o autor ressalta que a população não participou da redação da Constituição do Império, nem do movimento que proclamou
a República e derrubou a Monarquia. Foi
alijada das cartas e constituições que se
sucederam. Nem em 1946 ou em 1988 tiveram voz ativa, ainda que tenham eleito
livremente os seus constituintes. Grupos
da elite tomaram a dianteira e inscreveram a sua visão de mundo para que todos
cumprissem. A ausência da cidadania, a
organização comunitária e a participação
ativa no debate de um projeto nacional
colaboraram para que uns poucos tomassem a dianteira e impusessem suas
concepções. As mudanças democráticas,
duradouras e cidadãs ocorrem de baixo
para cima, e isto ainda não aconteceu
porque, primeiro, falta organização e empenho populares e, depois, porque quem
tem o poder não quer abrir mão dele.
Sociedade digital: o indivíduo
versus o coletivo
Patricia Peck
pág.
58
O avanço tecnológico vivenciado pela humanidade no último século permitiu a construção da atual sociedade digital, baseada na
eletrônica e nos ativos intangíveis, dependente dos insumos de energia, telecomunicações e tecnologia. Mas será que teríamos
chegado até aqui sem um papel forte do
Estado na vida das pessoas? Desde uma
tribo indígena até as próprias redes sociais,
os valores são codificados em regras coletivas impostas a cada participante daquela
determinada comunidade. Advogada especializada em direito digital, a autora assegura
que o direito, em linhas gerais, prioriza a
vontade coletiva sobre a vontade particular,
em especial no que tange à segurança social.
A liberdade de expressão e a livre iniciativa
são princípios fundamentais, mas podem
ser preteridos em favor de um bem maior,
dentro do desafio de criar sustentabilidade e
governança pública, em um cenário cada vez
mais competitivo e de recursos ambientais
escassos. Desta forma, será que vamos
evoluir para um mundo com mais controles
ou mais liberdades?
Em defesa do Estado
Jorge Lorenzo Valenzuela
Montecinos
pág.
66
O papel histórico do Estado na vida dos
seres humanos é abordado pelo professor
da ESPM de São Paulo, que mostra por que
a relação existente entre a função estatal e
a economia é uma das questões mais discutidas na atualidade. Desde o nascimento
do Estado moderno, com Maquiavel, a importância do Estado concentra-se na coesão
territorial e no contrato social, que resulta de
um pacto, de um acordo original que põe fim
ao estado de natureza. Depois da queda das
torres gêmeas, a esquizofrenia do Estado
fez surgir, de um lado, o poder hegemônico
absoluto e, de outro, a presença cada vez
mais marcante nas decisões econômicas,
sobretudo a partir da crise de 2008. O fim
da soberania dos Estados-nações e o perigo
crescente da militarização das decisões
político-econômicas deu origem a uma nova
realidade, que nos remete ao Estado social
e gestionário, o direito internacional e o
respeito ao homem e ao seu meio ambiente.
Interferência do Estado na
sociedade: uma visão de
marketing social
Daniel Kamlot pág.
78
O marketing social tem como fundamento
a atuação de empresas e indivíduos no
sentido de gerar bem-estar à sociedade
compartilhada por ambos. Entretanto, nem
sempre os players de uma sociedade consideram a felicidade desta quando executam
suas ações profissionais. Daí decorre a necessidade de um novo ator para organizar
as normas a serem seguidas visando ao
alcance do que é preconizado pelo marketing social. Tal ator, o governo, pode agir
de forma positiva – ao exigir uma conduta
socialmente responsável dos cidadãos,
punindo aqueles que avariam o ambiente
da sociedade com uma conduta nociva.
Também pode agir de maneira negativa
– quando movido por interesses que não
os da sociedade, buscando benefícios para
apenas um pequeno grupo de indivíduos,
por exemplo. Neste artigo, o professor da
ESPM do Rio de Janeiro apresenta os conceitos básicos do marketing social e sua relação com o bem-estar da sociedade, além
de avaliar como a conduta do governo pode
se mostrar em consonância ou discordância
com as bases desta importante ferramenta
de marketing.
O direito de intervir
na sociedade é inerente
ao estado de direito?
Denise Fabretti
pág.
84
Doutora em direito, a professora da ESPM
procura tecer neste artigo algumas considerações sobre as relações jurídicas entre
Estado e sociedade com base nas normas
que emanam de entidades representativas
do poder público, visando adequar o exercício das atividades individuais ao interesse
coletivo. Detalhando algumas linhas do
pensamento de renomados doutrinadores
do direito, ela elabora algumas reflexões
sobre o tema, que envolve a interferência
do poder público nas esferas de direitos dos
particulares, bem como dos cuidados que
as autoridades administrativas e julgadoras devem ter na aplicação e interpretação
dessas normas. A ideia é apresentar uma
análise da extensão da aplicação do termo
”interesse público” por parte dos poderes
que constituem o Estado, uma vez que este
é um dos conceitos de direito fundamentais
que regem as relações sociais.
O paradoxo da democracia
Eduardo Oyakawa
pág.
92
”O estado democrático de direito é uma
conquista inegável da civilização ocidental”,
garante o professor de filosofia e lógica da
argumentação da ESPM, que neste artigo
mostra como a modernidade tecnológica
trouxe novos desafios comportamentais
e ideológicos para a sociedade. Isso exige
uma pergunta basilar: até onde podemos
admitir as liberdades individuais, sem colocar em xeque as virtudes democráticas
baseadas na isonomia dos cidadãos? Entre
a perspectiva francesa à la Rousseau e a
postura anglo-saxã, o autor mostra qual
seria o melhor método para conjugarmos
democracia e liberdades individuais.
O espelho da sociedade
contemporânea
Paulo Roberto Ferreira da Cunha
pág.
96
Diante das incessantes transformações
que vive o ambiente da comunicação, é
oportuno compreender a sociedade e o
sujeito contemporâneo a partir da ótica
de pensadores sociais da atualidade e
da psicanálise, ressaltando questões
como narcisismo, identidade, consumo,
pertencimento e referencialização. Para
o psicanalista, publicitário e professor de
planejamento estratégico e comunicação
integrada da ESPM, estas questões se
apresentam como sinalizadores e pontes
para uma percepção do nosso tempo.
Neste contexto, as relações percebidas
desde a maturação dos bebês permanecerão por toda a vida, ao encontrar acolhida
nos braços abertos de uma sociedade
multifacetada, seletiva, consumista, fragmentada, grandiloquente e antagônica em
seus grupos. Esta é uma sociedade que
cobra pedágio para o sujeito se constituir
como parte dela, sendo também um material de trabalho relevante para o marketing
e para a comunicação.
A era da cooperação
Jonas Cardona Venturini e
Marcello Noetzold Mafaldo
pág. 102
Neste artigo, os professores da ESPM de
Porto Alegre relatam uma abordagem evolutiva da visão da nova economia institucional, sob o enfoque das empresas na era
da cooperação. São detalhadas algumas
implicações da teoria dos custos de transação, para o desenvolvimento empresarial,
principalmente em relação à defesa da
estrutura híbrida, em especial das ”redes”,
as quais convergem favoravelmente aos
propósitos da cooperação mútua e duradoura. A visão dos autores converge para
uma estrutura dinâmica, autorreguladora
a partir de princípios básicos, como as
inter-relações laterais intra e interfirmas, o
avanço das tecnologias da informação e da
comunicação e a consolidação dos estudos
da interdisciplinaridade no meio acadêmico – fatores que favorecem as políticas de
defesa da concorrência preconizadas por
Oliver Williamson, que em 2008 recebeu o
Prêmio Nobel de Economia.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
111
english abstracts
Regulation and responsibility
Roberto Civita
page 10
This article seeks to expose the effects of
the polarization of opinions as well as the
risk of extremism when it comes to expressing opinions about the role of the state as
a regulator and disciplinary agent of social
behavior. Roberto Civita, president of the
board of directors and chief editor at the
Abril group, analyzes the risks of extremist
positions by relying on examples such as the
former Soviet Union and Thomas Hobbes’s
natural man (who regresses to savagery
for having access to total, unlimited freedom). The author proceeds to explain that
we fortunately live in a world of pacts and
agreements in which one’s freedom ends
where someone else’s freedom begins – and
the state is the regulator of quarrels related
to these issues. At the very basis of this
delicate structure are two fundamental elements that the national state must observe:
freedom of the press and free will.
Commercial advertising
is the victim of bullying
Gilberto Leifert
Ives Gandra da Silva Martins
page
page
22
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
28
The evolution of democratic regimes has
raised the need to establish balanced relationships between the power, the people and
individual citizens. Since human beings who
are given the power are not trustworthy (for
they may end up trying to take the power solely to themselves) and human groups still have
a lot to learn about power autonomy, governing authorities tend to manipulate regimes
so that opposing parties will become weaker
and less relevant to the public opinion. In this
scenario, individual rights are frequently under
attack while collective rights absorb constitutional charters and the democratic experience
itself. Renowned Brazilian jurist Ives Gandra
da Silva Martins believes true democracy is
the one in which government and society
don’t deprive individuals from the freedom of
being, thinking and doing whatever they want
to (within the boundaries of the law).
Who owns the state?
Theoretically, the Constitution of 1988 marked the end of censorship in Brazil and reestablished the freedom of thought, creation
and speech. It also ensured free information,
free will, free competition and consumer
protection. In practice, however, freedom of
speech is still threatened by countless bills
that aim to restrict advertising in certain market segments. That’s what Gilberto Leifert,
president of the Conar (National Agency for
the Self-Regulation of Advertising), shows
in this article by conducting an analysis of
the Brazilian Communications Industry and
exposing how commercial advertising is being
a victim of bullying. As an example, Leifert
mentions the countless decrees, resolutions
and ordinances passed by the Anvisa (National Health Surveillance Agency) to restrict the
operations of advertising agencies. This kind
of behavior can be questioned based on simple reasoning: brands selling legal products
that are safe for consumers must be allowed
to advertise them under the restrictions of
fair, reasonable and proportional laws created
by self-regulatory agencies. After all, Brazil’s
laws are already too numerous.
112
The state can’t tell
people what to be
Heródoto Barbeiro
page
Journalism has to be
accountable to society
Marina Dias
page
52
The Brazilian Constitution includes the guiding principles for press coverage of criminal
cases: freedom of speech and freedom of
the press, in addition to other individual
rights. “There can be no democracy without
freedom of the press, and vice-versa,” says
lawyer Mariana Dias, emphasizing that this
deep connection implies that the press should
focus on the observance of the fundamental
precepts of the democratic state. There’s
also a symbiotic relationship between the
press and law enforcement agents, which
increasingly turns crime into a spectacle. In
this scenario, what is the role of the press, the
judiciary, and the law enforcement agents?
The borders between freedom of the press
and the individual rights in the journalistic
coverage are hazy, which makes it hard to
draw a line between them without actually
harming the freedom of those involved. One
of the ways to promote this debate is to create spaces for discussion, engaging both the
press and all the other stakeholders.
40
Brazilian elites have led the process through
which the state was organized since Brazil
became an independent country. Historian,
journalist and professor Heródoto Barbeiro
highlights that the Brazilian people didn’t take
part in the creation of the Imperial Constitution, nor did it participate in the movement
responsible for taking down monarchy and
establishing the republican government. The
people was sidelined when it came to writing
the Charters of 1946 and 1988 – even though
it had democratically elected those who wrote
them. Elite groups have taken the lead of
these processes and written laws that would
reflect their own points of view, which would
have to be followed by the whole Brazilian
population. The lack of citizenship, communitarian organization and active participation in
the debate of a national project have made it
possible for some people to take the lead and
impose their world conceptions. Long-lasting
democratic and civic change must be grassroots movements – and this has yet to happen
in Brazil, for the country has never seen true
popular engagement and organization (not
to mention the fact that those who have the
power are not willing to share it).
Digital society: the individual
versus collectivity
Patricia Peck
page
58
The technological progress that took place
during the last century has allowed for
the creation of what we currently know as
the digital society. This society is based on
electronic media and intangible assets, and
it depends on energy, telecommunications
and technology. But would we have been
able to build a society like this without a
strong, powerful state? From indigenous
tribes to social networks, values are coded
into collective rules that are imposed to
each participant of a certain community.
Patricia Peck, a lawyer who specializes in
digital rights, asserts that laws generally
prioritize the collective will rather than the
individual will, especially when it comes to
social security. Freedom of speech and free
will are fundamental principles, but they
can be neglected in favor of a greater good,
considering the challenge of generating more
sustainability and public governance in a
scenario of growing competitiveness and
scarce environmental resources. Considering
all this, are we going to evolve to a world
where control is stricter or are we going to
have more freedom in the future?
In defense of the state
Jorge Lorenzo Valenzuela
Montecinos
page
66
Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos, professor at the ESPM, in São Paulo, approaches
the historical role of the state in the lives of
human beings to show why the relationship
between the functions of the state and the
economy is one of the most debated questions of today. Since the birth of the modern
state, with Maquiavel, the importance of the
state resides mainly on territorial cohesion
and in the social contract, the latter being a
result of an original agreement that puts an
end to the state of nature. After the terrorist
events of 9/11, the state has adopted schizophrenic positions that have turned it into
a hegemonic power and increased its role in
the economic decisions (especially after the
2008 crisis). The end of the sovereignty of
the nation state and the ever growing danger
of militarization of political and economic
decisions have created a new reality, one that
is connected with the social and managerial
state, international rights and the respect for
human beings and the environment.
State interference in society
from the point of view
of social marketing
Daniel Kamlot page
In this article, Daniel Kamlot, professor at
the ESPM in Rio de Janeiro, introduces the
basic concepts of social marketing and how
they relate to society’s well being, in addition
to evaluating how the government can be in
consonance or dissonance with the basis of
these important marketing tools.
78
Social marketing is based on the role of companies and individuals who work together to
generate benefit for all stakeholders. However, players don’t always take the common
good into consideration when executing
their professional duties – thus the need
of a new social actor to organize the rules
that everyone must follow in order to fulfill
the role of social marketing. This actor – the
government – can have a positive impact by
demanding socially responsible actions from
citizens and punishing those who harm society as a whole with vicious behavior. It can
also have a negative impact if it is moved by
interests that are not related to the common
good, and if it seeks to generate benefits for
a small number of individuals, for example.
Is the right to intervene
in society inherent to the
rule of law?
Denise Fabretti
page
84
Denise Fabretti, a professor at the ESPM
with a PhD in law, seeks to analyze the
legal relations between the state and society based on standards that come from
entities that represent the public power
and aims to adapt individual activities so
that they will benefit the public interest.
The author takes into consideration some
lines of thought of renowned law scholars
in order to elaborate reflections about the
subject, which involves an interference of
the public power in the area of individual
rights, as well as having the administrative
authorities and judges being careful in the
application and interpretation of these
standards. The idea is to present an analysis
on the extension of the application of the
term “public interest” by the authorities that
constitute the state (since this is one of the
fundamental concepts of law that govern
social relationships).
The paradox of democracy
Eduardo Oyakawa
page
92
According to Eduardo Oyakawa, professor
of philosophy and logical reasoning at the
ESPM, “The state of democratic law is an
undeniable achievement of western civilization”. In this article, the author seeks
to show how technological modern times
have brought about new behavioral and
ideological challenges to society. This poses
a fundamental question: to what extent are
we able to comply with individual freedom
without questioning democratic virtues based on the equality of citizens? Between the
French perspective of the likes of Rousseau
and the Anglo-Saxon approach, the author
shows which would be the best method to
combine democracy and individual freedom.
The mirror of
contemporary society
Paulo Roberto Ferreira da Cunha
page
96
Given the constant transformation to which
the communication environment is subject,
it is advisable to understand society and
the modern subject from the perspective
of social thinkers and psychoanalysis,
highlighting issues such as narcissism,
identity, consumption, possession and
reference. For the psychoanalyst, publicist
and professor of strategic planning and
integrated communications at ESPM, these
issues present themselves as signals and
as a branch for our modern point of view. In
this context, the relations that were noticed
since the formation of babies will remain
for life when it encounters itself safe in
the open arms of a multifaceted, selective,
consummative, fragmented, grandiloquent
and antagonist society. This is a society
that charges tolls in order for the subject to
constitute itself as part of it, and it’s also a
relevant work material for marketing and
communication.
The era of cooperation
Jonas Cardona Venturini e
Marcello Noetzold Mafaldo
page 102
In this article, Jonas Cardona Venturini and
Marcello Noetzold, professors at the ESPM
in Porto Alegre, report an evolutionary approach of a vision on the new institutional
economics, from the standpoint of the
companies in an era of cooperation. The
professors also detail some implications
of the theory of transaction costs for business development, especially concerning
the defense of a hybrid structure (particularly, the “networks”, which converge to the
purpose of mutual, long-lasting cooperation). Their visions converge favorably toward a dynamic, self-regulatory structure
established over basic principles such as
lateral interrelationships (both intra and
intercompany), the advances of information and communication technologies,
and the consolidation of interdisciplinary
studies in the academic environment –
factors that favor the policies of protection
of competitiveness suggested by Oliver
Williamsom, recipient of the 2008 Economic Sciences Nobel Prize.
maio/junho de 2012 | Revista da ESPM
113
Ponto de vista
Ricos, preconceituosos
e controladores
O
Dalton Pastore
Brasil tem, já sabemos disincapazes de nos medicar, mas que
“A tirania
so, uma das cargas tributáentendemos um português bem businceramente
rias mais altas do mundo.
rocrático e elaborado: “a persistirem
Algo como 36% de tudo o que os 200
os sintomas, o médico deverá ser conexercida para o
milhões de brasileiros produzem por
sultado”. Nada de “se não melhorar, vê
bem das vítimas
ano vai para o governo. E os brasise arranja um médico”.
pode ser a mais
leiros produziram R$ 4,143 trilhões
Quando se trata do quesito “honestiopressiva. Aqueles
no ano passado!
dade”, no qual o Estado não é, digamos
que nos atormentam, assim, um exemplo esplendoroso, o
Resultado: dinheiro demais, governo demais.
preconceito que os governantes têm a
para o nosso
O melhor governo é aquele que
nosso respeito não é muito melhor. E
próprio bem, irão
governa menos, porque permite que
tome burocracia em cima do brasileinos
atormentar
seu povo se autodiscipline, já dizia o
ro, o tempo todo, para provar que está
sem fim, porque
terceiro presidente dos Estados Unifazendo a coisa certa; por exemplo, na
eles o fazem com a
dos, Thomas Jefferson, que comandou
hora de vender um carro, ou quando abre
o país entre 1801 e 1809, e previa um
ou fecha uma empresa.
aprovação de suas
grande futuro para os americanos,
E, entre todas as tiranias, como bem
consciências”
“se puderem evitar que o governo
dizia C.S. Lewis, “a tirania sinceramente
C.S. Lewis
desperdice o resultado do trabalho do
exercida para o bem das vítimas pode
povo, sob o pretexto de cuidar dele”.
ser a mais opressiva. Aqueles que nos
O Estado brasileiro parte do princípio de que o povo é atormentam, para o nosso próprio bem, irão nos atorincapaz de se cuidar. Ou pior: que, se tiver uma chance, mentar sem fim, porque eles o fazem com a aprovação
vai fazer a coisa errada. E, acreditando nisso, se sente de suas consciências”. Ou para se sentirem bem com
com o direito ou no dever de se meter em tudo e de suas consciências, eu acrescentaria.
controlar tudo.
Este é o caso daquela elite iluminada, que se apreEntão, aos brasileiros é negado, por exemplo, o direito senta magnânima e se sente com o direito de decidir
de decidir se querem ou não escolher candidatos em uma pelos outros o que eles devem ler, ouvir, assistir e
eleição, e o voto é obrigatório. O brasileiro tem de votar consumir!
sob as penas da lei e tem de guardar aquele papelzinho
Somente a educação pode nos livrar do preconceito e
– uma mancha humilhante em nossa democracia – pro- do castigo de nossos tutores. E educação, infelizmente,
vando estar em dia com sua obrigação eleitoral.
custa caro e leva tempo. Mas já somos hoje mais eduAssim também aos brasileiros é negado o conforto cados do que éramos antes e continuamos avançando.
de comprar um sorvete ou um refrigerante na farmácia,
Em breve, mais bem educados, seremos mais respeitados.
porque o governo acredita que, idiotas como somos,
aproveitaríamos a ida à farmácia para tomar, quem sabe,
Dalton Pastore
um anti-inflamatório.
Presidente
da
DPastore
Comunicação
e
Editorial
e
do
ForCom – Fórum
O Estado acred it a que nos oferece u m bom e
Permanente da Indústria da Comunicação
abundante serviço público de saúde, que nós somos
114
Revista da ESPM | maio/junho de 2012
Ninguém esquece da
primeira impressão digital.
f0031502
INOVAR
É O QUE VAI FAZER
UMA EMPRESA
ESTAR À FRENTE
DAS OUTRAS.
E VOCÊ À FRENTE
DOS OUTROS
PROFISSIONAIS.
Não seja um profissional em extinção.
Faça o curso Gestão da Inovação Voltada
para o Mercado – Intensivo.
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Para quê?
Nosso ramo
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