RELAÇÕES DE GÊNERO
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RELAÇÕES DE GÊNERO
RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE: considerações históricas e sociais Maria de Fátima de Andrade Ferreira Resumo O presente artigo discute relações de gênero e sexualidade, problematizando as condições sociais das mulheres, enquanto sexo feminino e de homossexuais na sociedade patriarcal, racista, classista, centrando no processo de construção de valores sociais e morais, desconstruindo a intersecção com feminismos e masculinos. Logo, examina-se a construção histórica e social de gênero e concepções de feminino e masculino, à luz de abordagens teóricas e o modo como as relações de gênero e sexualidade se constroem através dos tempos históricos, visando contribuir no enfrentamento/combate aos preconceitos e discriminação na escola por meio da formação em valores e conceitos como desafio para o século XXI. Palavras-chave: Gênero e sexualidade. Discriminação. Formação em valores Preconceitos. Profª. Doutora Adjunta do Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais - UESB Colegiado do Curso de graduação, licenciatura, em Pedagogia. Coordenação do Núcleo de Pesquisa e Extensão Gestão em Educação e Estudos Transdisciplinares - NUGEET, UESB/CNPq Lider do Grupo de Pesquisa Resiliênica e Educação, UESB/CNPq [email protected] Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 1 INTRODUÇÃO As relações de gênero historicamente construídas com base nas diferenças de sexo (femininos e masculinos) atingem a pessoas e grupos que freqüentam os mesmos espaços sociais como a igreja, a escola, a rua, sem precedentes. Pois, nota-se que esses fenômenos se relacionam de maneira complexa desde a Antiguidade Clássica aos dias atuais e contribuem com as diferenças de gênero na (des) organização social da vida pública e privada, na maioria das vezes, relacionadas a outros indicadores de diferenças como, raça, sexo, etnia, dentre outros, gerando preconceitos e discriminação social de gênero e sexual. Desse modo, a sistematização e legitimação de preconceitos e discriminação social nas relações de gênero e sobre sexualidade se arrastam através dos tempos históricos. Sabe-se que não é tarefa fácil, mudar opinião, atitudes, comportamentos. E na sociedade brasileira são diversas as formas de manifestação contra feminilidades e masculinidades, mulheres e homens. Diante do exposto, observa-se que a escola, apesar de constituir-se como espaço sociocultural e de convivência de respeito e valorização da diversidade, destinado a ensinar e aprender a condição humana, os preconceitos de gênero, sexo, raça, etnia, religião, estão presentes no convívio da sala de aula e noutros ambientes de aprendizagem do aluno. Contudo, há que se pensar em percursos pedagógicos que permitam a superação, enfrentamento/combate aos preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminação contra a mulher, o homossexual, entre outros e promover a equidade de gênero e comportamentos e identidades sexuais, criando cultura de direitos humanos e respeito à diferença, identidades e diversidade na escola e na sociedade. 2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DE GÊNERO E CONCEPÇÕES DE FEMININO E MASCULINO A construção de gênero é histórica, não é fato novo e, ao atravessar os séculos, preconiza diferenças na política, religião, relações de trabalho, casamentos, e na escola, desconsiderando os direitos humanos, valores morais e sociais, o respeito à diferença e à diversidade cultural. Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 Assim, a discriminação de gênero marca a distinção entre o que é feminino e masculino, separando mulher e homem no contexto social. Desse modo, produzem estereótipos, estigmas e relações complicadas por preconceitos e discriminação social, resultando em desigualdades, subordinação de gênero e, por conseguinte, modos de exclusão escolar e social. Desde a Idade Média e início da Idade Moderna, na Europa, segundo Burke (2002, p. 78), os casos relacionados a gênero são notórios nos julgamentos de feiticeiros e bruxas e, na maioria dos países europeus, a maior parte dos acusados era do sexo feminino. De acordo com o autor (op.cit., 78), a história das instituições, como mosteiros, regimentos, guildas, confrarias, cafés e faculdades, pode ser elucidativa às relações de gênero/sexualidade, considerando-se exemplos de ‘vínculos masculinos’. Sendo que a política se destaca nesse conjunto, pois, as mulheres eram excluídas da ‘esfera pública’ (ibid., p.78). Apesar disso, a Igreja foi uma das que mais colaborou com atitudes e comportamentos discriminatórios, visto que, se colocava sempre numa posição junto ao poder, a política, a instituições de ensino, entre outras. Para Cashmore (2000, p. 410-411), a religião foi uma das forças que sustentou o patriarcado e, junto à cultura religiosa sustenta sua existência até os tempos modernos. O judaísmo, cristianismo, hinduísmo e islamismo, por exemplo, criaram e produziram doutrinas e práticas que fortaleceram ideologias patriarcais presentes nas sociedades contemporâneas, pois a concepção com base em ideologias religiosas produz preconceitos e intolerância não apenas religiosa, mas racial, étnica, sexo, gênero, classe social, geração. De modo algum, a relação entre religião e sexualidade é fato recente, basta recorrer aos princípios bíblicos sobre a vida de Eva e Adão ou fundamentos religiosos sobre procriação e constituição familiar, sexo, namoro, casamento. Sobre isso, Itani (1998, p. 120) diz que algumas questões presentes na diferenciação entre pessoas de origem étnica, região de nascimento, sexo e algumas expressões, atitudes e comportamentos surgem em todos os lugares, enquanto outras são próprias de algumas regiões e tem a ver com a maneira como os grupos sociais vêm se construindo. As ideologias patriarcais e religiosas Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 legitimaram, por explicação metafísica, a superioridade e masculinidade do homem, colocando “as mulheres em posições inferiores e mesmo precárias na sociedade”. Em Cashmore (2000, p. 410), a tradição judaico-cristã é um exemplo, pois construiu uma hierarquia dominada pelos homens voltada para Deus. Uma idéia importante dessa tradição era a de que a criação do homem havia sido um ato principal, enquanto a da mulher fora secundário: a mulher havia sido criada para servir ao homem e gerar filhos. De acordo com os rituais do judaísmo e do cristianismo, as mulheres não podiam ser ordenadas, nem celebrar sacramentos e eram forçadas a cobrir a cabeça, especialmente em reuniões religiosas, num símbolo de submissão à autoridade masculina (idem, p. 410). O processo da construção sociocultural do gênero está sob o olhar atento da história das sociedades e no uso da linguagem. As evidências sobre essa questão são muitas e atingem setores sociais; e, agindo de forma semelhante à tradição religiosa, vem à tradição, ideologias, preconceitos, intolerâncias e discriminação de gênero e sexo das instituições de ensino. Burke (1997, p.30-37), por exemplo, denota nos relatos sobre alfabetização e Estado, os “usos óbvios da alfabetização para ‘controle social’, quando classes subordinadas pela classe dominante são notadas, não apenas pela Igreja sobre seus rebanhos, mas pelo Estado sobre “seus súditos”. Nas descrições do século sobre alfabetizados durante o Estado Moderno, na Itália européia, o autor afirma que “a maioria dos italianos, ao longo de todo o período, deve ter sido analfabeta: alguns profissionais, a maioria dos camponeses e quase todas as mulheres. Mas, o analfabetismo não foi suficiente para impedir que mulheres namorassem, enviassem e recebessem cartas de amor com ajuda de intermediários. Um caso desses, citado por Burke (op. cit, p. 35-36) surgiu diante do tribunal do governador, em Roma (1602), quando a filha de um notário, de apenas dezesseis anos de idade, chamada Margherita, não sabia ler nem escrever, mas “correspondia-se com um garoto vizinho por meio de um amigo, atirando pela janela da cozinha bilhetes no pátio”. Quando seus pais descobriram a correspondência, não era mais virgem. As cartas em nome de mulheres não provam se foram escritas por elas ou não, se sabiam escrever ou não. Segundo Burke (1997, p.20-22) é bastante fácil encontrar exceções à regra do analfabetismo feminino, como o da “esposa de Francesco Datini, o mercador de Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 Prato com os dedos totalmente manchados de tinta, que só aprendeu a ler depois dos trinta anos”, porém, “sua filha aprendeu ainda criança. Ou o caso de Milão, século XVI, também citado pelo autor (op. cit., p. 35) do sistema de escola dominical, a Compagnia delli Servi, com a finalidade de educar meninas e meninos, mas não há registros da proporção de alunos de cada sexo. Os prédios escolares também apresentavam estrutura distinta, separando espaço de meninas e meninos. Burke (ibid., p. 33-35) ainda afirma que os registros de Veneza (1587), por exemplo, pela vistoria de um bispo, “resultou em 4.481 escolares, dos quais apenas 28 eram do sexo feminino e 258 professores, dos quais apenas um era mulher, ‘uma certa Marieta’”(idem, p.36). Ou semelhantes, como lar para filhas de prostitutas, professoras ensinando leitura e costura, como denunciam os escritos: “o que está sendo ensinado é leitura” e as “referências a escrita são muito mais raras”. Burke explica que o “conhecimento de evidências como essas, e do punhado de mulheres que estudam os clássicos ou publicaram livros, ainda parece razoável sugerir que elas tinham pouco mais do que uma ligação precária com a cultura letrada”. As evidências são de cultura essencialmente oral. O autor (op. cit., p.37) afirma que a “escrita foi mais importante na vida cotidiana da Itália, do que na maior parte da Europa no início do período moderno”. Sobre essa questão, Giddens (2002, p.29) lembra que a oralidade e a tradição estão intimamente relacionadas e, lendo Walter Ong, denota que “as culturas orais ‘investem pesadamente no passado e registram em suas instituições altamente conservadoras performances e processos poéticos orais”, os quais seguem fórmulas para conservar o pensamento, experiências e registros escritos. No século XIV e XV, como assinalou Giddens (op. cit., 30), “alguns homens argumentavam que meninas não deveriam se importar com leitura e escrita e sugeriram que elas deveriam ficar em casa e esperar por um marido”. Sendo que a mulher ficava enclausurada, sob a guarda da família, aguardando um marido “arranjado” para se casar, após o casamento passava a ficar submissa a ele. Mas, nem todas seguiram esses preceitos, muitas se integraram a movimentos feministas ou outras formas de lutas por direitos, desejos, sonhos, princípios. Nesse sentido, observa-se que a casa é lugar de relações de poder. Bourdieu (1999, p. 138) define-a como unidade doméstica “onde a dominação Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 masculina se manifesta de modo mais indiscutível e não apenas dos recursos à violência física”. Portanto, lugar onde o princípio de perpetuação das relações de força materiais e simbólicas, presentes, e que aí se exerce, se coloca essencialmente fora do seu espaço, entranhado na igreja, escola estado. Bourdieu (op. cit., p. 138-139) explica que, em suas ações “propriamente políticas, declaradas ou escondidas, oficiais ou oficiosas (basta, para nos convencermos disto, observar, na realidade imediata, as reações e as resistências ao projeto de contrato de união social)”. Por outro, Elias (1994, p. 16-50) desenvolve o conceito de civilité – o “comportamento civilizado”, informando que esse conceito não possui o mesmo sentido e significado para diferentes nações ocidentais. Sendo que o conceito de civilização e o de cultura influencia no comportamento do quarto e adquire significados para o mundo de acordo com os períodos em que a sociedade se esboroa e constitui símbolos, expressão de formação social e variadas nacionalidades, cultura, linguagem, convívios sociais e época. Desse modo, a situação, a auto-imagem e características da sociedade encontram expressão no conceito de civilité e influencia na educação, mudanças de comportamento no tocante a escarrar, deitar, andar e outros hábitos e costumes; nos sentimentos de vergonha e sem dúvida no modo de ver, sorri, falar e até mesmo de usar o quarto. O quarto se refere, por exemplo, a representações de sexo/sexualidade em épocas analisadas por Elias (1994, p.162-164) e coletadas de Colóquios, como os abaixo por ele citados caracterizam, a saber: Quando se despir, levantar, não se esqueça do decoro e cuidado para não se expor aos olhos de outras pessoas qualquer coisa que a moralidade e a natureza exige que seja ocultada (DESIDÉRIO ERASMO 1530, apud ELIAS, 1994, p. 162). Se divide a cama com outro homem, fique imóvel. Tome cuidado para não aborrecê-lo nem se descobrir com movimentos bruscos. E se ele estiver dormindo, cuidado para não acordá-lo (PIERRE BROË,1555, apud ELIAS, 1994, p. 163). Você não deve nem se despir nem ir para a cama na presença de qualquer outra pessoa. ...a menos que seja casado, não deve ir para cama na presença de qualquer pessoa do outro sexo. É ainda menos permissível que pessoas de sexos diferentes durmam na mesma cama, a menos que sejam crianças muito pequenas (ROUEN, 1729, apud ELIAS, p. 164). Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 Em parte, nota-se que nos colóquios acima citados por Elias (ibid., p.162164), os tabus, os hábitos, a pressão social, a formação de sentimentos de vergonha, as contradições, o comedimento, as conotações moralistas e expressões revelam preocupação em mostrar o corpo nu e restrições de vários tipos acompanham os sexos nas civilizações. Observa-se também em DaMatta (1997, p. 45- 46) que os espaços brasileiros “nem sempre são marcados pela eternidade”, pois, há “também espaços transitórios e problemáticos que recebem um tratamento muito diferente”, mas fazem parte de uma estrutura social que “inclui espaços e temporalidades permanentes que operam em todos os níveis da sociedade”, nos quais, mudanças de comportamento e atitudes são diversas e contraditórias. Nesse contexto, há barreiras que delimitam o que pode (ou não) ser pronunciado pelo homem diante da mulher. Como exemplo, fala-se de moral sexual no espaço da rua, mas não se pode falar em casa, para a mulher e filha - o conservadorismo masculino. Ou simbolicamente, como afirma DaMatta (2001 p.52): “a mulher é comparada com a comida e o doce com o feminino”. Logo, fica claro que “as comidas se associam à sexualidade, de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como ato de ‘comer’, abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido”. Segundo o autor (op.cit., p.53), essa relação entre comida e sexo/ doce e feminino é vista como “um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos), mas como modo de resolver essa desigualdade pela absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro”. A cozinha e quarto se configuram como códigos e símbolos que definem relação sexual: a casa é ato/arte de comer e o quarto é lugar privado/intimidade. Segundo Elias (1994, p. 64-66), o quarto na sociedade medieval ainda não era um ambiente/espaço privatizado da casa, era normal receber visitantes, dividir camas, mesmo homem e mulheres podiam ocupar o mesmo espaço do quarto ou da cama, os que não dormiam vestidos, despiam-se completamente. As roupas especiais nunca foram mencionadas em escritos, ilustrações, poemas épicos, documentos da época, isto se aplicava também às mulheres. Pelo contrário, era incomum ir para a cama com roupa de uso diário, se isto ocorresse, levantaria logo Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 suspeita de que a pessoa tivesse algum defeito corporal, alguma marca, então, “por que o corpo devia ser ocultado?”. Os banhos eram provas da despreocupação com o corpo nu. Elias (ibid., p. 66-67) esclarece que na sociedade medieval há exemplos de cavalheiros sendo atendidos no banho por mulheres ou despir-se em casa antes de ir para a casa de banhos; como também crianças, mocinhas, rapazes corriam nus pelas ruas. Não resta dúvida de que as atitudes prevalecem como “sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva é denunciada, olhada. E, junto a tudo isso, há existência social, conflitos e ameaças da ordem social. Assim, segundo o autor (1994, p. 164-173), o olhar sobre o corpo nu desaparece, no séc. XV, e, mais rápido, nos séc. XVII à XIX e surge a inibição, severidade, costumes ligados ao ato de deitar-se ou a roupas especiais como camisola própria para dormir começou a ser adotada, espalhando-se lentamente como símbolos que mudam costumes de uma época e trazem junto, outros sentimentos de sensibilidade com o corpo. Desse modo, pode-se compreender que as proibições, tabus, vergonha passam a acompanhar formas de comportamentos, atitudes, exigências morais, conflitos entre pais e filhos, marido e mulher. Comportamentos e atitudes decorrentes da vergonha e a crescente distância entre gerações e do próprio fundamento de parte da “sociedade civilizada”, afloram e demarcam espaços simbólicos. Outros símbolos produzidos marcam uma época, tradição, costumes, modos de dizer, fazer, sentir, ver de um povo. Ao estudar a sociedade brasileira, Holanda (1995, p. 146) diz que a contribuição brasileira à civilização será de cordialidade; o homem cordial, no trato com a hospitalidade, generosidade, virtudes reconhecidas até por estrangeiros e que define o caráter brasileiro, os padrões de convívio e marcam o espaço da rua e o da casa. Mas qual é a concepção de “mulher” na sociedade brasileira? Vale ressaltar o exemplo por DaMatta (1997a, p.129) de um relato de uma aluna americana quando diz que: para se falar do Brasil, de modo global fala-se melhor utilizando-se da imagem de uma mulher (Dona Flor, Gabriela, Iracema, Capitu... e eu quero falar das Marinas, das Doras, das Dolores e das Marias que sempre estiveram nos nossos lábios nas músicas, nos versos e nas orações), ao Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 passo que os Estados Unidos são mais bem definidos por meio de uma súcia de jovens: Tom Sawyer, Huck Finn e seus amigos. Com esse exemplo, DaMatta (op. cit., p. 129) lembra que no caso do Brasil, “o paradigma brasileiro é mais do que uma mulher. Ou melhor, é mais precisamente uma mulher porque o feminino assume um aspecto relacional básico na estrutura ideológica brasileira, como ente mediador por excelência”. Desse modo, a mulher, assim como o feminino, é situada como representação de ventre, natureza, quarto, comidas. O fato é que para o autor as mulheres são mediatrizes (e meretrizes = mediadoras) no Brasil. Ligam o interno (o ventre, a natureza, o quarto, as matérias-primas da vida que sustentam a vida: alimentos em estado bruto) com o externo; são a razão do desejo que movimenta tudo contra a lei e a ordem, pois é no pecado e na transgressão que concebemos a mudança e a transformação radical e aqui está uma imagem de mulher (DAMATTA, 1997, p. 129). Em decorrência dessa percepção, o autor afirma que em conseqüência disso, no pecado e na transgressão, a mulher indica assentimento, de fonte de elos entre homens - “todos os homens: jovens e velhos, inocentes e devassos, ricos e pobres” (idem, p. 129-130). Do mesmo modo, a mulher indica fonte de elo entre o sagrado e o profano ou representada por metáforas onde se usa as palavras quarto e comida e o doce com o feminino. Enquanto que se deixa, como afirma DaMatta (2001, p. 52) o salgado e o indigesto para estarem associados a tudo o que nos “cheira” a coisas duras e cruéis. Ao mundo difícil da “vida”, da “rua” e do trabalho em geral, esses universos que são profundamente masculinos e, por conseguinte, estão longe das cozinhas, dos temperos e das boas mesas e camas, onde se pode exercer uma comensalidade enriquecedora (...). Essa realidade produz outras, construídas com base na virilidade, masculinidade, força física, que se encarregam pela submissão da mulher e conflitos sobre a sua honra, discrimina sua participação na política, a sua posição no trabalho e na vida pública de modo geral. A política sempre foi “coisa para homem”, não favorece a participação das mulheres e são muitas as justificativas sem embasamento teórico. Desse modo, como no trabalho, rua, escola, na igreja também, a mulher vive problemas semelhantes com a participação na política. Como por exemplo, encontra-se nos registros de participação política, em Burke (1997, p.144-145), sobre “Le langage mâle de la vertu: as mulheres e o discurso da Revolução Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 Francesa”, escritos de François Furet (1978, apud BURKE, 1997, p. 141-157), em Penser la Révolution Française, que se denota: o problema que afetou a participação das mulheres foi o uso de discursos revolucionários ineficientes e perigosos, buscando interesses setoriais por meio de retórica universalista e o uso que fizeram deles e a resposta delas a eles. Nesse período revolucionário, de acordo com Burke (1997, p.145), as reações masculinas à tentativa feminina de apropriação foi uma amostra do quanto é essencial estudar a natureza e usos da linguagem política. Segundo o autor (op.cit., p.146), registra-se que na “condição de grupo setorial excluído par excellence, as mulheres tinham de lutar por seus próprios interesses, valendo-se do veículo de um discurso político inadequado a suas necessidades e para as de todos os grupos setoriais excluídos”. Do ponto de vista de Burke (op.cit., p. 77-78), os movimentos feministas deram suas contribuições na legitimação dessas questões, pois, no seu início, utilizavam-se das generalizações das situações e história das mulheres, recorrendo a indagações sobre esquemas aceitos de periodização. No entanto, as ações feministas foram criadas sem pensar nas mulheres que ficaram virtualmente invisíveis aos historiadores. As suas reivindicações foram subestimadas e nas mobilizações sociais discutiam suas idéias por linguagem dos homens dominantes. Mas, vê-se que, na sociedade contemporânea, mudanças estão a caminho, em todos os setores sociais e por toda a parte do Mundo e concentradas nas “relações entre homens e mulheres, nas fronteiras dos gêneros e concepções do que é propriamente masculino e feminino” (BURKE, 1997, p.78). Partindo dessa constatação, o autor (1997, p.78-79) diz que: “se as diferenças entre homens e mulheres forem culturais, e não naturais, se ‘homem’ e ‘mulher’ forem papéis sociais, definidos e organizados de forma diversa em diferentes períodos, então os historiadores tem muito trabalho pela frente”. Nesse caso terão principalmente o trabalho de citar “regras e convenções para ser mulher ou homem de uma faixa etária ou grupo social específicos em uma determinada região e período específico”. Por outro lado, nos alerta Bourdieu (1999, p.9): Se é verdade que o princípio de perpetuação dessa relação de dominação não reside verdadeiramente, ou pelo menos principalmente, em um dos Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 lugares mais visíveis de seu e exercício, isto é, dentro da unidade doméstica, sobre a qual, um certo discurso feminista concentrou todos os olhares, mas em instâncias como a Escola ou o Estado, lugares de elaboração e de imposição de princípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universo privado, é um campo de ação imensa que se encontra aberto às lutas feministas, chamadas então a assumir um papel original, e bem-definido, no seio mesmo das lutas políticas contra as formas de dominação. Assim, nota-se que a dominação se constrói por representações e constituições da sexualidade que se manifestam pela imaginação e realização no erotismo e, nos faz perder, segundo Bourdieu (1999, p.16), o senso da cosmologia sexualizada, debruçando-se sobre uma topologia sexual e construção social do corpo, logo, um corpo socializado de seus movimentos e deslocamentos revestidos de significação social. Portanto, atribuem-se concepções estereotipadas e estigmas, do que é “próprio para homens” e para mulheres, realiza associações para o masculino e feminino, separa sempre coisas, ações, colocando-os em oposição. De acordo com Bourdieu, a idéia de contrários, “esquemas de pensamentos” entre masculino e feminino “recebe a necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás, direita/esquerda, reto/curvo, (e falso), duro/mole (...)”. As oposições são colocadas de forma que apesar de confluírem divergências entre si, também denotam correspondências a atitudes, movimentos, comportamentos que se atribui a masculino e feminino. Contudo, percebe-se que para DaMatta (1997b, p. 315), o modo de representar o meio social brasileiro é achar que “os homens são todos aqueles que ficam no alto das hierarquias, abrangem tudo e somam em suas pessoas todo o sistema social”, denunciados por seu cargo e posição social e “todos os outros são, pela lógica da categoria, fêmeas ou meninos, na dupla oposição dos sexos e idades, pois diante do líder e patrão tudo deve ser a um só tempo inferior e complementar”. Por isso, o movimento das mulheres é visto como lugar de destaque no desempenho e promoção de mudanças culturais no mundo e são seus efeitos que devem conduzir a nova análise da condição e comportamentos masculinos, a reflexão sobre as relações homens e mulheres e família. O (re)conhecimento entre os sexos leva a recomposição do mundo onde mulher e homem podem se distinguir e superar a oposição entre público e privado; autoridade e afeição. Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 Sobre isso, Bourdieu (1999, p.9) diz que as aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada (os ‘gêneros’ como habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade como também da representação da realidade e que se impõe por vezes à própria pesquisa. Contudo, nota-se que em movimentos contínuos as mudanças a favor da mulher estão acontecendo, mesmo que lentamente. Para Burke (1997, p. 144-157), por exemplo, a concepção das mulheres sobre os movimentos e seus enunciados políticos, baseados em ‘discurso revolucionário’, recebeu atenção apenas das historiadoras feministas e as contribuições são concentradas na mensagem e conteúdo explícito dos enunciados, excluem problemas representados às mulheres pela natureza do próprio discurso. A troca de concessões políticas por favores sexuais são vistas como causas da fraqueza do Antigo Regime e justificativas da Revolução. O autor (op. cit., 147) cita como exemplo o julgamento de Maria Antonieta, rainha deposta da França (1793), como exemplo: As acusações ‘políticas’ contra ela – de auxiliar a fuga do rei para Varennes, de tramar a invasão da França – eram inseparáveis das acusações de perversão sexual e incesto que as acompanhavam e sustentavam. Ao ‘corromper’ o delfim, herdeiro da França, com sexualidade, seus acusadores davam a entender que ela havia corrompido o corpo físico de seu filho. Nessa visão de Burke (ibid., p. 147-148), discursos sobre corrupção sexual pautam-se na variação de significados entre “duas definições de virtude” e justificam fraquezas femininas. A “virtude pessoal das mulheres (virtude = castidade) é equacionada com a virtude política (virtude = colocar o Estado acima dos interesses pessoais ou setoriais), como Brutus, que executou os filhos ao tentar trair a República romana”. Suas atitudes e comportamento masculino austero, antipático e inflexível são vistos nos discursos e reconhecidos como de figura política favorita entre os homens. Para Bourdieu (1999, p. 49-51), os efeitos de dominação simbólica são uso da pressão pela força, consentimento pela razão, “coerção mecânica e submissão voluntária, livre, deliberada, ou até mesmo calculada”; manifesta-se pela etnia, gênero, cultura, língua, imagens e, se exerce pela percepção e a avaliação e ação são constitutivos do habitus e fundamental nas decisões de consciência, controles Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 da vontade e tomam forma de poder por magia, sem coação física, impõe, determina, separa, discrimina, desencadeia, pode agir como um “macaco mecânico”. Por isso, leva os dominados a contribuir, aceitar, incorporar; pois, os atos de (re)conhecimento prático da fronteira entre dominantes e dominados assumem, muitas vezes, a forma de emoções corporais (vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa) ou de paixões e sentimentos (amor, admiração, respeito). Ou emoções que se manifestam pelo enrubescimento, gagueira, desajeitamento, tremor, raiva, cólera, representações de submissão, má vontade, contra a vontade, censuras, conflitos. Diante disso, Bourdieu (1998, p. 7-15; 1999, p. 49-54) afirma que “a magia que o poder simbólico desencadeia”, muitas vezes, são frutos das contribuições dos dominados ou agem até contra a vontade, para a sua própria dominação, aceitando limites impostos e provocam reações negativas e/ou positivas. Percebe-se, portanto, que Burke (1997; 2003), DaMatta (1992; 1997a; 1997b; 2001) e Bourdieu (1998; 1999) denunciam o discurso a favor do sexo masculino e comprometido com a retórica antifeminina. Segundo Bourdieu (1999, p. 110-121), desde os tempos remotos, atribui-se fracassos e desmantelamentos do poder político às mulheres; enquanto que, para os homens, a ordem social e seus sucessos e, nos fazem entender que talvez ainda se dê pouca importância, a participação da mulher na esfera pública, as suas ações e pensamentos políticos, discursos públicos, reações femininas e a busca pela igualdade política. A preocupação a favor das mulheres ainda se concentra na sua vida pessoal, estética, autobiografias, vida amorosa, como os estudos sobre cartas de amor, diários particulares, relações sexuais, maternagem, domesticidade, cuidados com o corpo e beleza. Há ausência de sensibilidade com a mulher, com homossexuais e lésbicos e seus direitos sociais. À vista disso, os registros ainda são muito tímidos. Mas muitas barreiras foram ultrapassadas nas construções histórico-sociais de gênero e sexualidade, embora sejam evidentes estigmas, estereótipos e preconceitos contra o feminino, como conjunto de jogo simbólico bastante perigoso, apoiando-se em discursos com emprego de símbolos lingüísticos, morais, psicológicos, com variação de significado, envolvendo, muitas vezes, a virtude pessoal das mulheres. Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 3 CORPO, IMAGEM E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E SEXOS NA SOCIEDADE PATRIARCAL As emoções corporais como vergonha, humilhação, timidez, culpa, ansiedade resultantes das marcas corporais construídas nas relações históricosociais assumem sentidos e significados diversos nas sociedades humanas. Por outro, amor, admiração, respeito, paixão são emoções favoráveis às relações entre mulher e homem, feminino e masculino. Dessas emoções, a vergonha cerca as relações sexuais humanas e tem aumentado e mudado muito no processo civilizatório e, “se manifesta com especial clareza na dificuldade experimentada por adultos, nos estágios mais recentes de civilização, em falar com crianças sobre essas relações” (ELIAS, 1994, p.169-170). Hoje, como afirma o autor (ibid., p.170), “esta dificuldade parece quase natural”. Mas ainda explica atitudes e o “comportamento de pessoas em estágio diferente de desenvolvimento” e, sem dúvida, “por razões quase biológicas”. Como conseqüência disso, a criança nada sabe sobre relações entre os sexos e, apesar dos avanços tecnológicos, piadas, telenovelas, propagandas divulgarem imagens e símbolos sexuais, se pensa que é tarefa delicada e difícil para esclarecer a meninas e meninos o que está acontecendo com eles e ao seu redor. Giddens (2002, p. 39-69) define vergonha, em seu texto “Eu: segurança ontológica e ansiedade existencial”, explicando que a “consciência dos contornos e propriedades do corpo está na própria origem das explorações originais do mundo pelas quais a criança aprende as características dos objetos e dos outros”, como aprende desde cedo os regimes padronizados e regulados, social e culturalmente organizados. A roupa, por exemplo, é um tipo de regime e em todas as culturas representa muito mais que simples proteção do corpo. Mas também, é “um meio de exibição simbólica, modo de dar forma exterior às narrativas da auto-identidade”. Os regimes são instrumentos de autodisciplina, prática aprendida, envolve formas de controle, hábitos pessoais e grupais, segundo convenções sociais e cotidianas, de inclinações e disposições sociais. Considera-se, portanto, que a vergonha “afeta a auto-identidade porque é essencialmente a ansiedade sobre a adequação da narrativa por meio da qual o indivíduo sustenta uma biografia” e, no entendimento de Giddens (op. cit., p. 69) esse sentimento “tem origem tão cedo quanto à culpa”. Por Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 isso, provoca insegurança, humilhação ou timidez, acanhamento diante de outrem. Porém, é uma atitude “estimulada por experiências, nas quais, os sentimentos de inadequação e humilhação são provocados”, em relação à “integridade do eu” e “lado negativo do sistema motivacional do agente”. O seu oposto é o orgulho ou auto-estima e tem origem no ambiente arcaico. Nessa hipótese, a vergonha se manifesta pelos gestos, modos de agir/reagir e tem suas representações nos espaços sociais, seja no casamento, religião, política. Não se pode negar a tendência do processo civilizador em tornar a vergonha mais diversa em processos de desenvolvimento e limitações sociais, como da sexualidade, por exemplo. A sexualidade é a peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os aspectos da vida humana e podem ser exibidos na vida social e separados dos que não podem e devem permanecer ‘privados’ ou ‘secretos’ (ELIAS, 1994, p. 188-189). E, de acordo com o autor (op. cit., 189-190), como todas as demais funções humanas naturais, a sexualidade é fenômeno de todos conhecido e parte de toda vida humana. Contudo, não pode ser negada, proibida. É natural que, como o hábito de assoar-se, escarrar, o costume de comer carne por grupos sociais/religiosos, aos poucos, é carregada com vergonha e embaraço sociogenéticos, de modo que a simples menção dela em sociedade passa cada vez mais a estar sujeita a controles e proibições que, junto a regimes de controle produz representações e discursos de intolerâncias, preconceitos, discriminação e exclusão social. Nesse mesmo sentido, Cashmore (2000, p. 410-411) toma como exemplo, a sexualidade na religião hebraica, o “deus masculino dominante que surgiu no monoteísmo hebreu e, em alguns casos, destruiu ou diminuiu a presença de influentes e poderosas deusas nas sociedades antigas. No hinduísmo, tradição judaico-cristã e monoteísmo hebraico, as mulheres sofriam estereótipos e a diferença estava apenas na forma de ação e explicação metafísica e consideradas mais erotizadas do que os homens”. Acreditava-se que se o erotismo não sofresse restrições poderia atingir a busca masculina pela espiritualidade, então, por alto grau de ascetismo seria impedida. Por essa razão, mulheres hindus enclausuradas “cobriam suas vestes com um véu” para não serem vistas por homens que não fossem membros de sua família e “todas as propriedades adquiridas pela esposa Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 eram transferidas para o seu marido quando do casamento” (ibid., p. 411-412). Na sociedade grega, romana, israelita, chinesa e japonesa antiga recebiam tratamento semelhante e, na inglesa e nas americanas, não existia o direito de adquirir propriedades até o período moderno. Desse modo, os direitos à propriedade ainda hoje são negados no Irã Islâmico e Arábia Saudita. Outros fatos denunciam preconceitos e discriminação contra a mulher ao longo dos séculos, na sua maioria, originados de ideologias patriarcais. Em “Teorias de Patriarcado”, Cashmore (2000, p. 411) relata que as feministas socialistas-marxistas consideram que a organização capitalista-materialista da sociedade evoca o patriarcado, provoca arranjo funcional da força de trabalho com base nas divisões sexuais, que não é igualitário no que se refere a admissões em empregos e salários e nem valoriza as mulheres (op. cit., p. 411). Na sociedade patriarcal brasileira, a roupagem é diferente, mas persiste nos sentidos e significados originais. Em “Casa grande e senzala”, por exemplo, Freire (1966, p. 23-58) fala das relações e desigualdades raciais, rompe com análises de princípios darwinistas, spenciarianos de diferenciação intelectual entre negros e brancos. Assim, a descrição da vida de brancos, negros e a mestiçagem “deixa de ser vista unicamente como fenômeno biológico ou processo físico-psicológico gerador de mentalidades e aptidões em que se formaria a cultura. Diante disso, as atitudes, comportamentos coloniais e esquemas raciais marcam espaços cotidianos e poder, passando o lugar do mestiço e “democracia patriarcal” a uma ilusão de que haveria tratamento igualitário para brancos e negros. Recordando-se que, na interpretação de Freire (1966, p.58), sob sistematização e legitimação do mito da democracia cordial ou ‘cadinho de raças’, os preconceitos contra grupos e classes étnicas promoveram racismo e discriminação social. Nesse caso, busca esconder preconceitos e favorece a sua multiplicação. A prova dessa constatação é a trama entre senhores e escravos, os relatos de relacionamentos sexuais com escravas e intimidades pessoais estabelecidas entre eles são importantes para entender as relações subordinação e exploração entre os sexos e domínios nas relações de gênero na sociedade colonial e patriarcal brasileira. Para Cashmore (2000, p. 218), o contato sexual, entre os senhores brancos e escravos negros, foi o ponto de partida para criação de conceitos de Freire a Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 respeito da informalidade e flexibilidade racial e o “nascimento do ‘mulato’ foi o símbolo da democracia racial e transcendência das barreiras de classe, expressa por meio do mesticismo”. Mesmo com boa intenção, Freire (1966, p. 58-60) deixa escapar a concepção do negro como ainda sendo objeto do branco, mas suas contribuições foram inegáveis para estudar relações raciais no Brasil. De outro modo, Cashmore (op. cit., 218-219) nessa mesma obra lembra que no século XX, a migração e proletarização do Brasil “agravou o conflito entre classes e o fim da tradicional intimidade sexual, legado das opressivas ações de patriarcado das economias coloniais. Observa-se também que DaMatta (1992, p. 32) no seu texto “Você sabe com quem está falando?”, registra domínios e recursos de poder nas relações raciais para revelar a desvalorização das mulheres no sistema patriarcal. Desse modo dar conhecimento sob o modo como essas relações se constituíam e afirma que a divisão da mão-de-obra de acordo com o sexo sustentam-se mutuamente no capitalismo. O patriarcado, sob essa perspectiva, é um sistema universal que não vai se alterar a menos que ocorra uma reestruturação radical da sociedade (ibid., p.32). Por outra perspectiva, Burke (1997, p. 155) relata que na Revolução Francesa, as ferramentas usadas para a guerra não foram apenas de classe, mas também de gênero. As razões para as diferenças de classe estavam de maneira mais ou menos conscientes, mas trata-se de linguagem moldada para a “guerra entre os sexos”, apropria-se da palavra virtude que se revela como “ponto de tensão máxima no interior do discurso” e afetado pelas representações e reverberações do período. Essas atitudes deixavam as mulheres em condição complicada entre a realidade da política e o discurso da política, revelados em expressões ativistas feministas, como: “As mulheres fizeram mais mal do que bem”. Burke (op. cit., p. 155) diz que, de fato, poder-se-ia argumentar que o todo do discurso, em sua escolha de adjetivos, na importância que dá ao conceito, carregado de marcas de gênero, de virtude, em toda sua glorificação implícita ou explícita da repressão sexual da mulher, em sua identificação do feminino como algo todo-poderoso e depravador, capaz de mudar toda a natureza do corpo, é até mais orientado para a mistificação das mulheres do que o era em relação a mistificação de grupos sociais excluídos (ibid., p.155). Outras versões sobre discursos e teorias patriarcais sem fundamento teórico utilizam o poder machista patriarcal como de feministas que devido às suas Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 ideologias fundavam-se de estigmas, estereótipos, estimulam preconceitos de gênero e sexo. Sobre esse assunto, Cashmore (2000, p. 411- 412) em “Teorias de Patriarcado” explica que as feministas capitalistas-materialistas da sociedade evoca o patriarcado, provocando o surgimento de um arranjo funcional da força de trabalho baseado nas divisões sexuais, que não é igualitário no que se refere a admissões em empregos e salários e nem valoriza as mulheres. Nessa articulação capital-trabalho instalam-se diversas políticas de discriminação contra a mulher, desvalorizando-a e resulta na divisão entre homens e mulher como, por exemplo, entre posição e papéis sociais. Cashmore (op.cit., p. 412) cita o exemplo de grupos feministas que recorrem à psicanálise para explicar o surgimento do patriarcado e a partir da “criação das classificações de gênero, masculino e feminino, desenvolveu-se um padrão duplo, concedendo às mulheres posição inferior na sociedade”. Em vez disso, a posição de “autoridade do homem como pai foi a principal ferramenta estrutural empregada para a inclusão do gênero na ordem social”. O autor explica ainda que outro grupo de teóricos sociais se manifesta, posicionando de forma menos radical, desenvolvem “um conceito de que o patriarcado foi, e continua sendo, apenas um dos vários sistemas de sexo-gênero e pode funcionar independente dos sistemas políticos, pois são autônomos. Nessa versão, portanto, o patriarcado sustenta argumentos diversos e nem toda sociedade do passado seguia o modelo de submissão da mulher, pois muitas delas, como ressalta Cashmore (op. cit., p. 412), “eram culturalmente mais igualitárias do que outras e o papel mulheres ia além de procriar e cuidar de crianças”. Apesar de indicar menos desigualdade de direitos sociais, de ocuparem posições sociais importantes, “não conquistaram nem utilizaram dominância em termos de poder e autoridade, como nenhuma “delas era um verdadeiro matriarcado”. Certamente não desafiavam as relações desiguais. Porém, como alerta Burke (2002, p.75): “Se a idéia de que a masculinidade e a feminilidade são ‘construídas’ socialmente está passando a ser considerada óbvia, a mudança é, em grande parte, conseqüência do movimento feminista”. Burke (1997, 167-168) diz que os movimentos tanto beneficiaram como, em muitos casos, prejudicaram as conquistas das mulheres, em especial, quando relacionados à política e religião. Há registros de rompimento entre ideologias Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 políticas de homens e mulheres envolvidos em movimento durante a Revolução na França que permite aos homens rejeição de programas e linguagem da Igreja e, admite às mulheres a rejeição de programas e linguagem republicana secular. O limite de posições entre feminino e masculino excluem as mulheres da política, deixando a elas o “recurso da linguagem universalista sobrevivente da Igreja” e o fracasso dos movimentos: que usasse um discurso político de orientação masculina não foi apenas completamente previsível, ele teve conseqüências inversas: aquelas mulheres que fizeram campanha contra a Revolução, usando outro discurso universalista, muito mais adaptado às necessidades das mulheres como pessoas públicas, ou seja, o da Igreja, foram aquelas que iriam estabelecer a tendência do papel político na França (BURKE, 1997, p.168). Cashmore (2000, p. 86) afirma que registros sobre os movimentos feministas aparecem em documentários e literatura com base em gênero, como o caso da queda do movimento “Aztlán”, reconhecido como “forte símbolo dos movimentos nacionalistas méxico-americanos” e se refere a “uma pátria ancestral, utópica terra prometida, e emblema político”. De acordo com o autor (op. cit., p. 86-87), o Aztlán foi reconhecido como um movimento que “acentua o poder exercido pelas terras prometidas para os povos na diáspora” devido às suas origens, características e capacidade de mobilização (idem., p. 169). Sendo diáspora um vocábulo extraído dos antigos termos gregos que significa: dia, através, por meio de; e, speirõ, dispersão, disseminar ou dispersar. Desse modo, o Aztlán “conquista corações e mentes dos méxico-americanos ao uni-los numa causa comum”. Mas segundo os registros históricos, essa unificação provocou sua queda, quando “grupos de minorias se organizaram com base em gênero, classe e orientação sexual”, considerando-o “artificial em sua ética homogênea, o conceito de um só povo perdeu a credibilidade” (idem, p. 87). Assim como o Aztlán outros movimentos envolvendo a questão de gênero são registrados ao longo da história da humanidade. Como por exemplo, Burke (2002, p.78), quando examina o conceito de sexo e gênero, ilustra que “o processo de construção social ou cultural de gênero está sob escrutínio histórico”. Para melhor compreensão desse conceito, o autor (ibid., p. 78-79) cita como o exemplo o caso de 119 holandesas que viveram como homens (principalmente no exército e na marinha) no início da Idade Moderna, na Europa que por motivos pessoais ou Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 familiares, decidiram buscar alternativas para continuar a viver. Assim, a mudança de vida e tradição cultural alternativa favoreceu a decisão dessas mulheres holandesas, como o caso revelado pelo autor (ibid., p.78) de Maria van Antwerpen, por exemplo, que de fato nascida em Breda, em 1719, era órfã e foi acolhida, põe maltratada, por sua tia. Começou a trabalhar como empregada doméstica, mas foi despedida, e decidiu alistar-se como soldado. Conforme autobiografia, tomou essa atitude porque ouvira falar sobre outras mulheres que haviam feito o mesmo e por temer ser obrigada a prostituir-se (DEKKER&POL, apud Burke, 2002, p.78). Contudo, o que perdura ao longo dos processos históricos, de acordo com Bourdieu (1999, p. 100) “não pode ser senão produto de um trabalho histórico de eternização.” Para o autor, não basta apenas negar as constantes e as invariáveis do processo histórico, mas é “preciso reconstruir a história do trabalho histórico de des-historicização; ou seja, “a história da (re)criação continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação masculina (...)”. Para melhor compreensão desse fenômeno, Bourdieu (op. cit., p. 100-101) recorre a Georges Duby (1991, p. 100-110) e Michele Perrot (1992, p. 100-105) e explica que para escapar totalmente do essencialismo é importante não negar as constantes e invariáveis que fazem parte da realidade histórica, mas é preciso reconstruir a história do trabalho histórico de des-historização, ou, se assim preferirem, a história da (re)criação continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação masculina, que se realiza permanentemente, desde que existem homens e mulheres, e através da qual a ordem masculina se vê continuamente reproduzida através dos tempos (op. cit., p.101). É preciso, portanto, começar desligando-se da concepção coercitiva e buscar novas formas de conhecimento e mudanças para o processo histórico e social do conceito de gênero e sexos. Nesse sentido, Burke (2003, p. 188) mostra que “as linhas de continuidade entre a sociologia do conhecimento do século XX e as primeiras atitudes modernas merecem ser lembradas”. Nesse entendimento, o autor (ibid., p. 186-188) falando de “credulidade, incredulidade e a sociologia do conhecimento” cita que num texto do século XVIII, Karl Mannheim (1936, p. 35-36, apud, BURKE, op. cit., p.188) “não discute, nos leva das guerras civis à guerra dos sexos”. E, na obra “Mulher não inferior ao homem (1739), publicado por Sofia, ‘uma pessoa de qualidade’, torna compreensível que esse texto “argumentava que a Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 doutrina da inferioridade feminina como erro a ser dito em termos do ‘interesse’ ou ‘parcialidade’ masculina”. Burke (ibid., p. 189) lembra que: “De modo semelhante, François Poulain de La Barre (1673), em “Igualdade dos dois sexos” atacara os ‘preconceitos’ masculinos que deviam ser explicados por ‘interesses’”. Por outro lado, Bourdieu (1999, p.134) conclui que a divulgação da dominação tem “efeitos sociais, mas podem ser de sentidos opostos. Pois, ela pode reforçar simbolicamente a dominação, quando suas constatações parecerem retomar ou recortar o discurso dominante (cujos veredictos negativos assumem muitas vezes os contornos de um puro registro comprovante), ou contribuir para neutralizá-la, à maneira da divulgação de um segredo de Estado, favorecendo a mobilização das vítimas. Ela está, portanto, exposta a toda sorte de mal-entendidos, mais fáceis de serem revistos que de serem de antemão dissipados (ibid., p.134). Nesse caso, existe uma divisão entre homens e mulheres que divide também papéis sociais, posição nos espaços da rua, da casa, dentre outros. Por isso, é importante buscar mudanças significativas das relações entre homens e mulheres, femininos e masculinos, baseando-se na construção de conceitos que considere a diversidade e por meio de relações que respeitem as diferenças do corpo, gênero, sexos. Esse é um desafio para o qual, até agora se tem encontrado poucas respostas. 4 CONCLUSÃO As formas de conceber gênero e sexualidade embora ao longo da história social indiquem elementos esclarecedores do seu significado e da dinâmica nos espaços socioculturais, ainda presenciam-se preconceitos em casa, escola, rua. E essa constatação parece denunciar desconhecimento dos sujeitos sobre conceitos e concepções de gênero e sexualidade. Por isso, as relações sociais estão marcadas por estereótipos, estigmas, preconceitos e discriminação social e denunciam os conceitos e concepções ainda impregnados por práticas colonizadoras e patriarcais. Mas alguma coisa a escola precisa fazer e favorecer o enfrentamento/combate a preconceitos e discriminação social nas relações de gênero, sexos, raciais, étnicos, dentre outras, observando, entre outras coisas, as formas de discursos sobre as relações entre pessoas e Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 grupos sociais. Além disso, a escola deverá valorizar a importância das emoções (amor, admiração, respeito, paixão) para a manutenção de relações saudáveis entre mulher e homem, femininos e masculinos. Isso é possível quando as atitudes, comportamentos e processos de construção de valores sociais e morais, permitem desconstruir a intersecção com femininos e masculinos em um espaço de ação dialógico-comunicativo. Sendo a escola, espaço próprio ao enfrentamento/combate aos preconceitos e discriminação, quando trabalha com formação em valores e conceitos autônomos de gênero, sexo, dentre outros. Entretanto, é necessário conhecer as condições sociais e históricas de gênero e sexualidade para enfrentá-las, permitindo a conscientização e reajuste constante de comportamento e atitudes por meio de práticas sócio-educativas e dialógico-comunicativas. Estudos IAT, Salvador, v.1, n.1, p. 122-145, abr. 2010 REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BURKE, Peter. Uma História Social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. ______; PORTER, Roy (Org.). História social da linguagem. Tradução Alvaro Hattnher. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Tradução Dinah Kleve. São Paulo: Summus, 2000. DAMATTA, Roberto. Prefácio. In: BARBOSA, Lívia. 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