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APRESENTAÇÃO
Vivências pós-modernas 1 é fruto das pesquisas do Gr upo
Vivênci as pós-m odernas, l igado ao tem a Estudos
Transdisciplinares em Línguas e Literaturas, na Linha de Pesquisa
Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas sob o influxo
de outras disciplinas, artes e mídias, da Faculdade CCAA.
Por ser um projeto contínuo, e, também, transdisciplinar,
participam pesquisadores, professores e alunos, ligados aos temas
Docência na Contemporaneidade, Estudos Contemporâneos em
Comunicação e Estudos de Gestão e Finanças, da Faculdade
CCAA. Docentes e discentes de outras instituições também são
benvindos em nossas pesqui sas, e tomaram parte nesta
publicação.
Vários artigos e livros, oriundos das pesquisas do grupo, já
foram editados.
Luis Carlos de Morais Junior e Rafael Ottati são os fundadores,
que iniciaram a pesquisa, em 2008, quando Rafael era aluno de
graduação de Português-Inglês da Faculdade CCAA. Atualmente,
ele é mestrando do programa de pós-graduação em Ciência da
Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, o mesmo pelo qual Luis Carlos é doutor. No seu
mestrado, Rafael dá continui dade às investigações sobre
PanAmérica, que se iniciaram em nosso grupo de pesquisa, e das
quais nos dá o ensaio que inclui neste livro.
Renato Nunes Bittencourt e Marcos Roberto Freitas se
juntaram ao projeto em 2010, e os quatro pretendem dar
continuidade a um vasto painel sobre a vivência atual.
Vivências pós-modernas 1 abre-se com o texto de Luis Carlos de
Morais Junior, “Desafios para uma gestão ética no Terceiro
Milênio”, no qual se analisam as mutações do conceito de ética
naquilo que se costuma chamar de pós-modernidade, bem como
a necessidade da implementação de novas propostas éticas,
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afinadas com a crise globalizada, a comunicação planetária e a
onipresença das empresas na sociedade atual.
No ensaio “Contribuições a um pensamento pós-moderno”,
Eliane Colchete estuda a internacionalização da economia
(“globali zação”) dentro da sua concepção original de
“geoegologia”, uma proposta de leitura do Saber da modernidade
como autoposição geopolí ti ca do Ocidente a parti r da
constituição no Saber, das teorias sucessivas em grandes relatos
psico-socio-evolucionistas definidores do não ocidental como
anterioridade a Si enquanto Ego da história (teleologia) do
progresso e racionalidade. Nele, o pós-moderno é pensado em
termos de deslegitimação desses paradigmas universais assim
conceituados, com desfazimento da associação a priori de ciência
e progresso pela problemática ecológica que do mesmo modo
inviabiliza a importação dos paradigmas (alter-egologia) na
margem (terceiro mundo), que funcionavam como mitos do
“desenvolvimentismo”, na verdade apenas meios do nosso
“dependentismo”. A deslegitimação está expressa na cartografia
da geopolíti ca atual, o conflito Norte/Sul – dominação
imperialista que já não tem apoio em qualquer ideal do Saber,
fazendo-se somente pela força e por expediente de distorção
midiática. É também o pós-moderno, agora de um modo a ser
valorizado, em estética e no Saber, o desfazimento das bases da
“teleologia”, com recuperação dos processos sociais e culturais
não ocidentais e antigos, que estão sendo demonstrados não
antitéticos à democracia, produção cultural, visibilidade empírica
e pensamento conceitual.
Renato Nunes Bittencourt em seu artigo “O sacerdócio
jornalístico e suas metas transcendentes na formação da agenda
social” propõe uma análise dos dispositivos ideológicos
representados usualmente na Comunicação Social, utilizados em
especial pelo sistema jornalístico em sua expressão corporativa;
para o autor, tal circunstância prej udi ca uma autênti ca
compreensão dos mecanismos técnicos que fomentam as práticas
comunicativas em sua expressão concreta.
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Lincoln Pontual, em “Ética contemporânea nas organizações
e consciência sustentável”, foca no aspecto da ética das empresas,
no que tange à responsabilidade social e ambiental.
No estudo “Memória e simbolismo no espaço urbano: o
exemplo da Lapa”, Ivo Venerotti dá continuidade ao seu trabalho
de estudar em agenciamento o espaço urbano e a literatura, numa
visão espacial dos fenômenos culturais.
Maria do Socorro Moreira Loureiro nos brinda com seu artigo
“Planejamento Estratégico – função social e sustentabilidade:
prerrogativas constitucionais”.
Mariana Ayres Tavares em “O Hipermoderno Nostálgico e
sua influência na publicidade” estuda de que forma, na dita
hipermodernidade, o valor simbólico agregado a uma marca se
sobrepõe aos atributos físicos, de forma que o processo de
construção de um objeto só se concretize de fato através da
publicidade e do consumo.
Thiago Oliveira Carvalho, crítico acurado e brilhante, estuda
a semiótica da fotografia em “O manifesto hesitante de Sally
Mann: reflexões fotográficas sobre What Remains”.
Fáustica é a preocupação de Flavio Pereira Senra, quando
ensaia sobre a teratológica relação “Homem, Deus e Máquina
na linguagem Heavy Metal”.
Marcos Roberto Freitas estuda algumas das mais pertinentes
problemáticas literárias contemporâneas em “A Literatura Inglesa
Pós-Modernista como sobrelevação do jogo autoral”.
Rafael Del gado G om es Ottati aborda outro aspecto
inquietante da sociedade pós-moderna, no tocante à Literatura
praticada no Brasil na segunda metade do século XX, quando
José Agrippino de Paula publica o seu emblemático romance
PanAmérica. Seu artigo “PanAmérica x Leaves of Grass: PósModernidade e Entropia(s)” trabalha o que chama de Poética da
Entropia praticada pelo autor brasileiro, isto é, uma série de
transgressões e recusas dentro da tessitura ficcional, em contraste
com o clássico livro de poemas de Walt Whitman.
Last but not least, lemos o poema escrito pela aluna de
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Comunicação da Faculdade CCAA Gabrielly Vasconcellos, “Vivo
em um mundo feliz”, o qual reflete aspectos das suas vivências
pós-modernas.
Duas características fundamentais da sociedade atual são a
sua ambiência polifônica (com mídia interativa que a tudo
reformata, e que tudo cerca e engloba), onde todas as vozes se
fazem ouvir, e a consequente desierarquização da sociedade. Por
isso, nosso estudo se pretende assim: plural, e, até, às vezes,
dissonante, buscando dar conta dessa milionária pluralidade
social e existencial, da atualidade.
Este é um trabalho divertido, contraditório e plural. Assim
como os tempos em que vivemos. Por tudo isso, merece, com
todo o carinho e ironia, nesta apresentação, mais um lugar
comum: esperamos que os leitores se divirtam tanto quanto...
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DESAFIOS PARA UMA GESTÃO ÉTICA
NO TERCEIRO MILÊNIO
LUIS CARLOS DE MORAIS JUNIOR
Este artigo foi realizado dentro da linha de pesquisa
Estudos Transdisciplinares em Línguas e Literatura, e
publicado originalmente pela Pragmática; revista acadêmica
dos cursos de Administração e Marketing da Faculdade
CCAA, volume 1, Rio de Janeiro, 2010, p. 31-40.
Quais são os maiores desafios para a ética empresarial no
terceiro milênio?
Hoje em dia o capitalismo, se se globalizou e atingiu o seu
auge, “capitalismo tardio”, segundo Frederic Jameson, também
se colocou como um emaranhado de crises, cuja resolução é
muito difícil de antever.
Uma delas diz respeito à própria dinâmica do capitalismo,
que precisa sempre da expansão e da criação de novos mercados
para a manutenção do seu status quo. Isto quer dizer que, se uma
empresa obtém num ano o mesmo nível de lucro do ano anterior,
ela está no vermelho; o seu lucro só se garante quando em
expansão.
A situação globalizada do mercado, que se apresenta como o
máximo da capitalização das relações, também aponta para uma
crise permanente: a limitação futura (na verdade, presente) da
expansão desse mesmo mercado.
E quais as respostas das empresas a esse problema? A criação
artifici al de demanda, a busca por criar mais consumo,
ultrapassando todas as barreiras normalizadoras que o próprio
capitalismo industrial do século XIX ajudara a consolidar, dentro
do paradigma de uma moral burguesa e de uma visão de mundo
humanista.
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Outra crise premente relacionada ao estágio do capitalismo
globalizado é a contingência ecológica, a relação dos sistemas
vivos, geográficos e econômicos entre si, num desequilíbrio
constante, num efeito em cascata de inadequações ambientais,
sociais e culturais, que levam a graves riscos para várias espécies,
inclusive a humana.
Claro que esses três efeitos/crise se integram e interligam, e,
mais, se retroalimentam. O que aparece visivelmente com maior
gravidade é o problema social, as disfunções entre produção,
mercado e consumo, gerando desde a miserabilização artificial
de vastas camadas da população até aquilo que Thorstein Veblen
chamou de o “consumo conspícuo”.
O homem vebleriano tem um grau de
complexidade bem maior que o seu correspondente
neoclássico. Ao invés de uma escala de preferências,
ele possui, ou melhor, é possuído por propensões
instintivas contraditórias; os objetivos sugeridos pelo
instinto predatório e de trabalho eficaz estão em
patente conflito. Esta incompatibilidade dos desejos
aponta para a existência de uma irracionalidade
estrutural dos indivíduos, segundo Schneider (1948,
p 112). Para Veblen, tal como na visão de Freud,
estes conflitos internos não se mostram para a
consciência dos indivíduos, e as ações seriam um
fenômeno superficial influenciado por esses
processos ocultos. Tais atos têm de ser mediados
por algum esquema teórico para que adquiram
significado; por si só, eles pouco informam acerca
dos objetivos últimos dos agentes. 1
Note-se bem, os três problemas estão totalmente integrados;
não é só a questão de como continuar gerando lucros, e sim,
como continuar expandindo o mercado, movimentando o capital,
lidar com a velocidade das mudanças das normas e ainda assim
preservar uma convivência qualitativa, levando ainda em conta
as questões social e ambiental.
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Os três vórtices não só se integram, como são, os três,
eminentemente problemas éticos. Quer dizer, são questões que
di zem respeito à feli ci dade humana, aos valores e aos
comportamentos dos seres humanos. Não devemos mais nos
pensar como indivíduos ou espécies isoladas: o que ocorre no
social e no ambiental está o tempo todo presente no dia a dia de
cada um de nós. Como já dizia Félix Guattari, o que há o tempo
todo são as três ecologias: a mental, a ambiental e a social.
Somente considerar uma é errado: o equilíbrio mental depende
do ecológico e do social, e todas as outras relações, também.
Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser
em escala planetária e com a condição de que se opere uma
autêntica revolução política, social e cultural reorientando os
objetivos da produção de bens materiais e imateriais.2
Por isso são tão necessários uma reflexão e um pensamento
criativo a respeito das relações entre a empresa e a Ética.
A Ética é uma reflexão filosófica a respeito do comportamento
humano, dos valores que o norteiam e das relações entre os
homens, em nível pessoal e social, tendo em conta esses mesmos
valores e as ações que eles determinam.
A Ética investiga as respostas comportamentais e normativas
que o ser humano desenvolve como consequência necessária da
sua propensão a ser um animal que distingue opções, leva em
conta valores simbólicos e faz escolhas.
E ainda, a Ética é o estudo da felicidade humana, quais valores
a promovem, e como o indivíduo pode se encaminhar na sua
direção, através de seus valores e atos.
No século XX, a sociedade ocidental se deparou com um
poder das empresas e das mídias (meios de comunicação de massa)
nunca antes encontrado na sociedade humana.
A propaganda de uma empresa, por exemplo, pode ter um
im pacto soci al trem endo; os seus produtos podem ter
repercussão e efeitos gigantescos; a sua produção e consumo
podem ser ambientalmente devastadores.
Empresa e mídia se acoplam, dentro das estratégias de
marketing, para usufr uir desse poder, no sentido de tirar as
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melhores consequências mercadológicas dele.
Esta situação social, onde a equação, que tem como termo
comum o l ucro e a única constante o capital, abandona
rapidamente todos os valores instaurados por um modo de vida
burguês e liberal, a partir da Revolução Francesa e da Revolução
Industrial. Vivemos estressados, numa sociedade pró-maquínica,
mas, anti-humanista.
No dizer de Olgária Matos:
Sociedade pós-ética é a sociedade “póshumanista”, uma vez q ue nela os laços
telecomunicativos entre os habitantes de uma
sociedade de massa não se fazem pela leitura, como
vimos, geradora na tradição greco-latina, de
amizade, sociabilidade e afabilidade. Criticar a
cultura contemporânea requer incluir a crítica à
mídia em nome do modelo amigável da sociedade
literária. Assim como na antiguidade romana o livro
perdia sua luta contra os anfiteatros de gladiadores
e todos os teatros de crueldade, hoje a educação
formadora do espírito livre, de tolerância e
compreensão do outro, está sendo vencida pelas
forças indiretas das mídias padronizadoras da
sensibilidade e do pensamento.3
Assim, em face ao poder incomensurável que a tríade
profissão-empresa-mídia passa a desempenhar no século XX, a
par da cada vez m aior conscienti zação dos elei tores da
responsabilidade e da força da prática política convencional, surge
a demanda por uma ética política e uma ética profissional, que
vai se desdobrar ainda em ética da empresa e ética da propaganda
e da mídia.4
Há também a questão do gigantesco poder criador e destruidor
das novas tecnologias biológicas, com assustadoras pesquisas
sobre transgênicos, clonagem e engenharia genética, técnicas que
prometem gerar novos produtos e maiores possibilidades de
lucros; isto é, a própria vida é manipulada por uma nova
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engenharia, e é vista como produto mercadológico. Assim, temos
mais esta denominação, a bioética.
A força que a sociedade tem para exigir transparência das
políticas, empresas e profissões é enorme, em potencial. Na
verdade, esse poder depende totalm ente do grau de
conscientização da população abrangida, da sua qualidade
educacional, da sua consciência política e do seu acesso aos
meios de informação.
No Brasil, temos a tradição secular de o povo ser alijado das
questões polí ticas, e i sso se rebate em um desi nteresse
general izado pela política i nstituci onal, pelo papel e o
desempenho da mídia e das atuações das empresas.
A questão política de nosso país passa necessariamente por
uma profunda reforma educacional, não só no sentido específico
da empresa escola, seja privada ou estatal, mas da própria visão
de acesso do cidadão comum à formação, à informação e às
demandas sobre políticas, serviços e produtos.
O cidadão precisa se integrar ao seu poder de cobrar qualidade
de vida, antes de tudo, qualidade essa que se manifesta em setores
essenciais como política de administração civil, construção,
trânsito, saúde, transporte, segurança, previdência e educação.
Mas que também transparece em setores secundários, como
outros tipos de serviço, e da linha de extração/produção/
distribuição/propaganda/consumo.
O cidadão deve se conscientizar que tanto o governo quanto
as empresas trabalham para ele, que ele é quem lhes paga por
seus serviços e produtos, e que ele tem o direito de acessar todas
as informações sobre esses serviços e produtos, tais como: modo
de produção, origem do capi tal, percentual de taxas,
consequências ambientais e sociais, fórmulas, efeitos sobre a
saúde, o ambiente, a sociedade, etc.
Educar então começa por dar recursos de pesquisa e análise
sobre todos esses elementos da empresa (considerando inclusive
o próprio Estado como tal), para facultar a todos os cidadãos o
status de consumidor em uma democracia, isto é, o elemento
que paga e recebe os produtos e serviços (inclusive os políticos
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e gerenciais governamentais, vale repetir) com plena consciência
dos fatores envolvidos e das suas consequências.
Vemos bem que educar então é uma fase do mesmo processo
político, que podemos chamar alternativamente de gerenciar: cada
vez mais as várias faces da questão ecológica se integram, os
meios de produção e consumo se integram, mas, também, cada
vez mais, os aspectos da cultura e da vivência humana também
se integram, quer dizer, só se pode pensar numa qualidade de
Administração pensando numa melhoria da Educação e da
Política.
Vários estudiosos colocam o problema de estarmos vivendo
uma época pós-Moderna ou pós-Contemporânea, caracterizada
pelo capitalismo pós-industrial e pelo neoliberalismo. Tantos prós
e contras, pós e neos, tanta retomada reestruturada, tanta revisão
e reengenharia acabam confundindo as pessoas e as empresas.
Quais os valores que ainda se sustêm hoje? Como pensar na
manutenção de valores numa época de cada vez maior velocidade
de convívio e de transformação? Que valores transmitir para as
novas gerações? Que valores podem a política, a escola e a
empresa defender e praticar?
Primeira questão para deslindar a caminhada nessa selva: a
globalização é uma rua de mão dupla. Se, por um lado, o mesmo
refrigerante e o mesmíssimo filme são igualmente “amados” por
consumidores de virtualmente qualquer latitude e longitude, por
outro lado esse refrigerante e esse filme perdem o “sabor”, quer
dizer, o seu tom cultural, o que significa dizer que eles perdem
os seus valores, já que a valoração simbólica humana é cultural,
ela depende do contexto de uma civilização à qual se integra.
Podemos ver aí a origem da crise moral da qual o capitalismo
tardio usufrui. Vejam bem, não só a crise moral pela qual passa
a nossa sociedade, mas, também, aquela que permite a equação:
quando tudo é igual a mercadoria, acaba-se por gaseificar todos
os valores morais criados e sustidos por nossa própria sociedade
capitalista algumas décadas antes.
Como discernir valores globalizados5? Sem poder se apegar a
valores transtemporais (como se supunham antes, e não eram)
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nem setorizados por classes, faixas e regiões, tendo que se
comunicar e atuar globalmente, os homens ainda procuram por
valores. Uma ética é uma busca pela eficácia de valores. Uma
moral é a certeza do comportamento orientado por certos valores.
De novo a pergunta: que valores buscar, os quais possam ser
globais e ao mesmo tempo transitórios, planetários e ao mesmo
tempo topológicos (isto é, atendente a regiões, culturas ou até
mesmo grupos específicos)?
A própria ideia e a prática da democracia, como espaço que
permite a instauração da empresa e a livre iniciativa, e ainda
faculta o exercício de quaisquer atividades e serviços e o
desenvolvimento individual, e a sua atuação podem servir de
parâmetro ético transversal, que possa ser usado globalmente,
sem entrar em choque com as diferenças culturais, tanto quanto
o mercado internacional o permita.
É na democracia que podemos encontrar um modelo, um
parâmetro, para a ética das empresas, da política, das profissões
e da biotecnologia.
Qual o interesse da maioria, em tal caso? Qual o consenso
obtido após a divulgação ampla da questão, do apoderamento
de seus dados totalmente transparentes por todos os interessados
e da deliberação de uma maioria expressa como consumidores,
mercado, elei tores ou audiênci a? Quando todos sabem
amplamente os aspectos de um problema, ou conhecem bem
um produto que lhes é oferecido, e manifestam a sua decisão
sobre isso, cabe ao governo, à empresa e à mídia corresponder a
esse desejo coletivo.
Isso seria um avanço m aravil hoso no processo de
democratização, totalmente coerente com as propostas de
globalização do mercado; e ainda apresentaria novas e potentes
soluções para as crises econômicas, financeiras e políticas.
Por exemplo: uma certa empresa produz tais artigos. Quais as
condições da produção? Como trabalham os operários? Qual o
percentual de impostos implicado no preço final? Qual a taxa de
poluição de seus produtos? Como eles reagem no organismo das
pessoas?
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O interesse de divulgar tais dados é o maior possível para a
própria empresa. Quando todos os envolvidos (prestadores de
serviços e consumidores) conhecerem-nos, podem manifestar a
sua posição diante deles. Tipo: me interessa que para produzir
tal rádio mulheres de várias faixas etárias, inclusive férteis,
grávidas e lactantes, lidem diretamente com produtos de alto
poder patológico, sem as devidas proteções? O público dirá que
não, prefere não consumir tal produto, a ter que saber que o
preço que paga vai além daquele da etiqueta, é um custo social
intolerável.
Lembremos que cada criança sem lar e/ou sem escola tem
um custo insuportável para todos os cidadãos e para o Estado.
Da mesma forma, com todos os estágios da produção, da
distribuição e do consumo.
Quando o público tiver plena certeza de estar de acordo com
as condições e as qualidades dos produtos e serviços que
consome, ele usufruirá destes com muito mais vontade, muito
mais interesse e até engajamento.
Ao invés de ter medo ou vergonha de usá-los, ele se sentirá
bem, como alguém que compra uma obra de arte e a usufrui se
sente bem, mesmo que tenha pago um dado valor por ela. Vale a
pena pagar para obter algo que nos faz bem física e/ou
espiritualmente.
Conhecer todos os aspectos do produto, saber que sua
produção não implica desrespeito aos direitos humanos, não faz
mal à saúde ou não produz danos ambientais (ou, se os produz,
os recupera, como no caso da política de empresas adeptas do
“carbon free”, que replantam árvores suficientes para retirar da
atmosfera o carbono a mais que a sua linha de produção liberara),
ter essa consciência, afirmam o consumidor e o consumo, pode
tornar o consumo integralmente feliz.
Diferentemente do “consumo conspícuo”, ele não comprará
algo por razões que ele mesmo não conhece ou entende, mas se
sentirá sujeito ativo e atuante, parti ci pante de um
empreendimento valoroso, o qual lhe dá algo digno em troca de
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seu poder de compra, obtido por trabalho, dignos estes dois
também.
Lembremos ainda: isso vale para a obra de arte, para o
alimento, para qualquer produto ou serviço, para a educação e a
política. Pensem e façam as adaptações.
É um caminho simples, verdadeiro e, prestemos bem atenção,
muito mais lucrativo. Na verdade, esse é o único caminho
empresarial totalmente lucrativo.
Nós somos um, “we are the world”, como afirmou Michel
Jackson. Estamos todos integrados, e a natureza das coisas é de
tal modo, que todas as nossas práticas e obras também se integram.
O homem não só faz parte da natureza, ele e sua sociedade
são a natureza em ação, uma parte da natureza capaz de
autorreflexão e criação, e, por isso mesmo, ética. Nós humanos
somos a natureza ética.
E é por isso que esse caminho filosófico da felicidade, essa
busca de acordo para a melhor convivência, é hoje tão cobrado
das empresas e dos governos por parte do público, que sente que
essa é a melhor solução, a mais democrática, a mais lucrativa a
longo prazo, e a mais bonita: a que produz os mais belos modos
de existência.
NOTAS
MONASTERIO, Leonardo Monteiro. Veblen e o Comportamento Humano:
uma avaliação após um século de A Teoria da Classe Ociosa. Cadernos UIU
Ideias, ano 3, nº 42, 2005, in http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/
edicoes/1158330209.73pdf.pdf
2
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1990, p. 9.
3
MATOS, Olgária. “Modernidade e mídia: o crepúsculo da ética”, in SANTOS,
Danilo (org.). Ética e cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004, pp. 117-8.
4
V. SOUR, Robert Henry. Poder, Cultura e Ética nas Organizações o Desafio
das Formas de Gestão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, passim.
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A Globalização é uma realidade do modo de produção atual, inevitável e
altamente instigante, que não precisa ser olhada como um mal em si. O que
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importa e faz a diferença é o modo pelo qual se faz essa globalização, que é o
caminho mais viável para a superação de crises e para o redimensionamento das
empresas e até dos países. V. URBASCH, Gerhard. A Globalização Brasileira:
a conquista dos mercados mundiais por empresas nacionais. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
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CONTRIBUIÇÕES A UM
PENSAMENTO PÓS-MODERNO
ELIANE COLCHETE
Escrito em 2012, texto de introdução a Escritos do Tao
O ceticismo helenista é uma filosofia aparentada aos princípios
taoístas de ausência de unidade elementar e outros aspectos que
estudei no livro que estou publicando a propósito (Filosofia,
Ceticismo e Religião: com um estudo sobre Diógenes Laercio, pela Quártica
Editora, 2013). Não haveria muito absurdo em pensar que a
iniciação hindu de Pirro de Elis entre os gimnosofistas, durante
sua viagem na comitiva de Alexandre Magno, poderia ser ligada
a vertentes do budismo politicamente descomprometidas com o
Poder, aquelas que enfatizam a igualdade perante o incognoscível,
em vez das que idealizam hierarquias celestiais. Esse budismo
que podemos designar crítico do idealismo subjacente aos arranjos
de Saber-Poder, como se sabe convergiu na China com o taoísmo,
originando o Chan e séculos mais tarde o Zen japonês.
A hipótese não depende da identificação de elos históricos
efetivos. A fusão Chan é habitualmente interpretada como um
resultado natural devido à afinidade entre o pensamento original
e independente, de Buda e Lao-Tsé. Assim também se poderia
antepor os gimnosofistas em convergência de princípios com o
budismo, sem precisar definir o nexo histórico na imanência
hindu. Plutarco, em sua biografia de Alexandre, referencia a
entrevista deste rei com um grupo de gimnosofistas capturados,
aos quais contudo não conseguiu sacrificar conforme pretendia,
pois o intento havia sido articulado na fantasia do monarca como
coroação de um discurso aporético que os sábios lograram refutar.
Nessa decorrência, os gimnosofistas hindus comportam-se de
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fato como sofistas gregos, não só exibindo grande habilidade
verbal mas propriamente a arte do paradoxo. Abbagnano os define
“faquires”. Quanto ao ceticismo em termos de uma escola
filosófica iniciada por Pirro, vindo de sua instrução entre estes
sábios hindus, coloca a questão de que doutrina foi de fato
iniciada – em continuidade com a dos orientais, ou original. Essa
não é a questão habitualmente ventilada, porém. E sim sobre se
os adeptos da escola iniciada por Pirro devem ou não se
designarem pirronianos, já que ela ensina que não temos um
conceito válido do pensamento alheio em geral e o de Pirro em
particular – posto que “pensamento”, se não dogmaticamente
conceituado, pode ser apenas um termo significando o ato
subjetivo. Entre Diógenes Laercio e Sexto Empírico a questão é
tratada com variantes, mas ambos afirmam que os adeptos se
autodesignam pirronianos – por sua afinidade pessoal ao iniciador
da escola. Sexto permite a meu ver relacionar as duas questões
porque, conforme a tradução de que disponho, ele na verdade
denega que Pirro seja o iniciador original do ceticismo, e o coloca
numa posição de transmissor de uma doutrina tal que essa
transmissão equivale à existência atual da escola cética. A curiosa
inserção não impede que se interprete a transmissão como a
aculturação grega da doutrina em que Pirro se iniciou alhures,
mas Sexto não define realmente o que quis nesse trecho expressar.
A princípio nessa minha proposta de estudos, tratar-se-ia de
pensar o inconsciente-linguagem em horizontes desvinculados
do Poder como sociedades igualitárias ou extratos de resistência
em sociedades cuja heterogeneidade deriva de um processo
histórico de dominação.
Isso conduziu à impossibilidade de manter as premissas
freudianas por um lado, mas por outro as premissas da linguagem
saussuriana – como eu já havia suposto ultrapassadas mesmo
por Derrida. A origem do Estado, não mais aceitamos o impulso
belicista ou o despotismo, tampouco o axioma de que o
desenvolvimento psicossocial depende de toda a variedade
antropológica reduzida a uma história universal por sua vez assim
narrativizada porque reduzida a um conflito de indivíduo e
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sociedade até a nossa era. Mas atualmente nós não precisamos
nos limitar ao determinismo significante a partir de uma definição
científica da linguagem, pois a textolinguística não lida com ele,
e sim com a complementaridade de macro e micro estrutura.
Evitamos assim os inconvenientes das premissas deterministas
que no pensamento derridiano em parti cular e no pósestruturalismo em geral, podem ser facilmente detectados –
quanto a essa crítica, estou desenvolvo paralelamente em meu
escrito na Internet sobre Rousseau (“Releituras do contrato
social”).
Enquanto a organi zação da coerência textual com o
consistência textual em nível concreto das sequências emitidas,
a microestrutura não necessita ser conceituada a partir de um
elemento unitário determinante da operação psicolinguística. Isso
está coerente com a neurobiologia atual, que lida com populações
de neurônios não redutíveis à unidade, que colocam apenas
problemas de distribuição. Quanto à macroestrutura, tratandose do conteúdo endereçado ou interlocutivo, não pode ser
reduzido a parâmetros pragmáticos universais, uma vez que sua
estruturação está pluralizada pelos gêneros de linguagem
historicamente situados do ponto de vista do falante. A
pragmática pode ser incisiva quanto aos tipos de linguagem
formalizáveis – como descrição, narrativa, injunção, informação,
argumentação – mas sendo bases formativas em nível da
composição das frases, os gêneros habitualmente misturam tipos
como também eventualmente se misturam entre si.
A textolinguística não foi ainda aplicada ao inconsciente
enquanto região de problematização do desejo, e creio que
podemos assim demarcar o pós-moderno epistemológico – além
do fato da irredutibilidade dos gêneros que, a princípio, nessa
intenção demarcadora foram designados jogos, ainda utilizando
Wittgenstein, fora da linguística propriamente dita. Ou seja, não
há mais aplicabilidade do inconsciente do significante, o que
implica o abandono dos paradigmas até então disponíveis. Mas
não parece que a pesquisa do inconsciente-linguagem possa ser
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abandonada, senão cai-se na aporia da analogia informática, da
redução cognitivista-ideativa do homem, com as piores
consequências para todo entendimento das produções políticas
que atendem como áreas de interesse das humanities, inclusive a
literatura – para não falar ainda sobre a dominação mundial que
está acontecendo devido ao neofascismo da “globalização”.
A débil argum entação da fenom enol ogia contra o
reducionismo informático do cérebro a nada chegou, como
sabemos até a entrevista de Simon a Pessis-Pasternak, assim como
artigos na Intenet sobre “filosofia da mente” também registraram.
Somente com a premissa da formação humana da linguagem,
implicando a alteridade entre enunciado e enunciação como
veículo da formação completa, não redutível portanto à forma
gramati cal, podem os col ocar as questões pol íticas da
subjetividade para as quais a analogia é convenientemente cega,
pois serve à dominação neofascista que consiste na premissa do
pl anej amento extrí nseco das subjetividades reduzidas a
identidades manipuláveis pelo sistema social cujo controle deriva
às multinacionais, ora partilhando geopoliticamente o planeta, e
que sediam também toda pesquisa limitada assim ao interesse
tecnológico.
Escusado lembrar que assim colocadas as coisas, é a pesquisa
em humanities que recobra, após o deplorável equívoco da aposta
neoliberal dos pós-estruturalistas, a posição válida do front
crítico-político. Na verdade as controvérsias sobre o estilo da
“theory” pós-estrutural podem hoje serem repostas nessa
perspectiva, ainda que contrária ao que se dizia aos altos brados
contra as humanities, de terem sido premidas por sua rejeição ao
paradigma determinista freudo-lacaniano tanto quanto à
di cotomi a husserl- hei deg geri ana entre ci ência/filosofia
(metafísica) e pensamento “autêntico”. Assim o estilo revela a
convergência desses dois focos como tentativa de depurar o que
havia levado cada um deles ao beco sem saída em que se
encontravam então. Não poderia desenvolver-se de modo algum
sem de fato estar circulando junto com a revisão da criticada
metafísica, os resultados das pesquisas em humanities, as quais
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por seu caráter empírico rompiam com as suposições daqueles
paradigmas calcados em construtos anteriores dos quais
generalizavam demasiado, sem lembrar que dependiam das fontes
as quais não obtinham seus resultados da forma dogmática como
estavam eles sendo administrados por tais quadros cuja ambição
era serem totalizantes.
A junção de ciência (humana) e filosofia voltou a ser uma
realidade, ainda que pelo viés inverso da dogmática antemoderna. Assim podemos também por isso falar de pós-moderno,
assi nal ando- se que com o Romanti sm o, que assinala a
“modernidade” num sentido habitual periodológico estrito, houve
pela primeira vez a separação histórico-epistemológica de ciência
(qualquer) e filosofia. Essa situação é curiosa se notarmos que a
narrativização da história de que falamos acim a, axial a
totali zações com o a psicanal ítica, é na verdade um a
descientifização da história que surgiu como ciência rompendo
com a narrativa moralizante da sua concreção ante-moderna, ao
longo do Romantismo.
É desde o positivismo que a narrativização foi feita em prol
de sistemas deterministas como a luta de classes, o ethos do
progresso comteano ou o Édipo (família nuclear). Todas essas
narrativas são teleologias ocidentalizantes, que narram uma
história humana reduzida ao fazer do Sujeito ocidental, assim
generalizado como possível unidade do Saber objetivo na sua
escalada desde os primeiros balbucios da filosofia na Grécia.
Assim não haveria “pensamento” senão no Ocidente, e de um
modo ou de outro, para o bem ou para o mal, todo o futuro
humano estaria comprometido com a ocidentalização.
A revisão da teoria da origem do Estado está coerente com a
desconstrução da narratividade histórica, e isso afeta a Grécia
na medi da em que não se pode manter a versão de sua
ocidentalidade jazendo na origem antes do Ocidente vir a existir
por fatores tão extrínsecos à filosofia que chegaram a ser os
mesmos que impediram sua existência perpetuar-se pelos séculos
seguintes da dominação católica cristã. O pensamento grego
revela-se em seu ambiente originário, um mundo euro-egípcio23
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asiático não ainda bipartido entre oriente e ocidente. A bipartição
quando aconteceu, como se sabe sobej amente, não foi
m eram ente estratégi co-m il itar ou geográfi ca, mas
com partim entou o dogm a cristão católi co que fechou
politicamente aos continentes exteriores à Europa toda pretensão
de manter-se a continuidade ideal. A releitura da filosofia grega,
respeitando-se a sua geopolítica, conduz à tematização dos
intercâmbios e influências do pensamento oriundo de culturas
que hoje são chamadas orientais – inclusive o Egito africano.
Meus escritos nessa perspectiva tem se aprofundado desde a
intuição original da crítica ao inconsciente freudiano. O percurso
tem algo de interesse ser reportado , pois a crítica começou por
estar em continuidade ao pós-estruturalismo, cujas premissas –
a de a priori histórico foucaultiano, e a de um inconsciente político
guattari-deleuziano – eu esperava ver demonstradas ao longo de
um estudo especialmente voltado à história das ciências humanas.
Mas o que ocorreu foi o inverso, pois o exame efetivo mostrou
que muitas das prem issas desses autores chocavam- se
irreversivelmente com os fatos históricos. Essa pesquisa resultou
em algo extremamente positivo quando, após concluída, pensei
retomar o período contemporâneo para em maior detalhe
conectar os ambientes epistemológicos sucessivos à efervescência
típica da história das artes. Assim constatei – descobri – a
impossibil idade de tratar li nearmente o período, poi s o
modernismo implica a ruptura da cultura ocidental.
Ela não se perpetua, como antes parecia, na margem (pós)colonial. Os processos culturais desde o modernismo se
autoposicionam “para si” , quando desde as colônias vinham
suas traj etórias “em si ”, para usar uma ter mi nologi a
extremamente cômoda a esse propósito expressivo e que a meu
ver foi produzido exatamente por causa do que o motiva. O
para si se construiu paralelamente à apropriação do em si como
trajetória autônoma, processo intrínseco aos modernismos
americano-latinos, enquanto paralelamente transcorria o
traumático processo neocolonialista afro-asiático.
Excetuando-se o medievo católico-europeu, portanto, o
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Ocidente geopoliticamente fechado não subsiste desde as
“grandes navegações”. O decorrer do período colonial foi
concomitante à emergência de um Saber ocidental pioneiro –
“experimental” e em ruptura com o dogma religioso cristão. O
Renascimento tem um papel de sutura nessa circunstância
histórica, pois permite tecer uma versão do acontecimento dessa
emergência como retomada do Saber em sua origem, a Grécia
Antiga, com o cultivo da especulação sendo reativado pela
reintrodução dos textos greco-helenísticos que se haviam perdido
no interregno medieval. Na verdade o período moderno – que
não é sinônimo de modernidade, pois assinala o período histórico
entre os séculos XVII e XVIII – não mantém com o Renascimento
a comunidade de Saber, mentalidade e ambiente político. O
próprio Galileu já não comparte o mesmo situamento epistêmico
de Da Vinci.
Meu primeiro entusiasmo pelo Foucault de As palavras e as
coisas veio do que mantenho ainda hoje como exata oposição
traçada entre esses dois ambientes históricos do ponto de vista
do Saber. Mas podemos falar de um Saber do Renascimento –
em vez de um período em que o Saber no sentido dessa palavra
que é equivalente à ciência da natureza como a física e a química,
ainda não existia? Só podemos falar assim se mantivermos a
acepção de Saber como a priori histórico, em vez da equivalência
a um a priori histórico determinado, o da ciência no sentido em
que usamos hodiernamente o termo. Mas aqui o referencial
bifurca. Pois, não há um único Saber científico pós-medieval.
Para manter a utilidade do segundo corte foucaultiano de As
palavras e as coisas, que como tenho registrado recorrentemente,
não é por sua vez original e sim muito comum em história das
ciências, há em geral dois recortes amplos e a terminologia da
história geral mostra-se válida para a das ciências.
Entre o período moderno e o contemporâneo, portanto, há
dois a prioris bem distintos, pois somente nessa segunda referência
é que emerge a biologia e as ciências humanas. Aqui, portanto, o
viés foucaultiano já não se mostra útil, pois não trata as ciências
humanas senão como epifenômenos da biologia, linguística e
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economia política – mas por que fator senão uma petição de
princípio, devemos colocar a linguística saussuriana, a psicanálise
e o marxismo como ciências da natureza essencialmente diversas
assim, da psicologia, sociologia e antropologia arroladas como
ciências humanas?
Por ciência real contemporânea Foucault designou ciências
estruturais, sem que houvesse mais sentido algum na noção de
“natureza”, mas a biologia não é assim designável como a
psicanálise, a linguística e o marxismo althusseriano. Foucault
utilizava-se da análise do discurso, mas de fato o que procurava
era uma fórmula, uma definição exaustiva, de cada a priori
histórico - fosse epistemológico ou político, jurídico ou éticosexual. A exaustão do significado totalizante da natureza pela
especialização e ruptura do visível de cada ciência contemporânea
seria a fórmula procurada para esse paradigma em se tratando
de epistemologia, mas na verdade há aí um círculo evidente,
posto que essa ruptura do visível só podemos predicar para a
biologia, pois quanto à linguística e economia política onde
inexiste o laboratório e o microscópio, não seria mais do que
uma analogia grosseira dizer que não mais se trata do visível
porque não se busca mais explicações da origem – das línguas
ou das riquezas – e em vez di sso se faz a ciênci a dos
acontecimentos próprios a cada um desses macro-fenômenos
reconceituados em funcionamentos como linguagem e produção.
Em todo caso, a natureza era inversamente a definição buscada
para o período anterior, moderno, que Foucault designava
clássico. Mas ele não coloca a questão histórica que aqui visamos
como algo ao mesmo tempo muito claro e sempre obscurecido –
não de fato oculto, posto que não menos enfatizado. O paradoxo
histórico seria a meu ver algo tão importante de se reconstituir
do que o a priori assim como ingenuamente se enuncia na variação
de seus enunciados “possíveis”.
O enfatizado é que essa época do “antigo regime” – o
absolutista – é ao mesmo tempo a época da extrema novidade
das nações ocidentais; que esse período escravista da acumulação
primitiva é do mesmo modo o que constrói o alicerce liberal da
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sociedade ocidental; em termos de econom ia políti ca, a
acumulação primitiva não é, além disso, um período nem uma
transição, mas a antecedência do capitalismo que com ela não
terá qualquer relação essencial, isto é, para efeitos de definição;
como tal a do antigo regime é a pioneira sociedade burguesa,
mas não ainda, pois a nobreza continua a ser a classe dominante
tal qual na Idade Média; e como pioneira era da ciência
experimental, é apenas a consequência do Renascimento da
cultura da Antiguidade grega; essa ciência como da bela
representação, deve ser superada pela ciência contemporânea,
mas esta não existe sem a pseudociência da representação
(humanities); como era da técnica, a contemporaneidade não tem
comensurabilidade com nada de anterior, e no entanto, a técnica
não existe sem esse período anterior em que emergiu a
subjetividade (metafísica); sobretudo, nada do que se diz de
definitivo sobre o momento, pode ter qualquer coisa a ver com o
fato de que esse período é o colonial na margem, o da descoberta
do novo mundo e da humanidade sem parâmetro com qualquer
registro na tradição conhecida na Europa até então.
Ao posicionar na escala da devida importância a esse último
fator destacado, o de que se trata de um período portando uma
revolução do porte da descoberta do hemisfério sul pelos
europeus, vemos que implica a constatação da surgência do
Ocidente geopolítico cuja significação é relacional – portando a
al teri dade na sua essência, posto que defi ne-se
contrapositivamente à margem. A primeira surgência geopolítica
do Ocidente não portava essa contraposição ideal, posto que
sendo sua contraparte o Oriente, não era imediatamente dado
mas foi gradualmente e por vicissitudes seguidas, segregado como
uma unidade territorial de contornos culturais homogeneizados
pelo cristianismo e por um mesmo processo de aculturação de
povos.
A partir da segregação secundada pelo catolicismo e pelas
invasões, em relação ao oriente, este jamais foi algo que o
Ocidente devia engendrar. Não era algo a pensar, existia desde
sempre. Mas desde a consolidação do antigo regime, o Ocidente
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não era uma realidade senão como a metrópole de homogênea
cultura civilizada por contraposição a uma realidade nãocivilizada e por pensar, sem definição ulterior à que devesse ser
engendrada pela própria tessitura das relações com esse Ocidente
somente pensante. Esse status prevaleceu sobre tudo o mais –
inclusive o Oriente. Rousseau o demonstra, tratando a civilização
ocidental como um referencial de cultura classificável em sua
diferença de estágio, portanto de natureza, em relação a quaisquer
outros referenciais humanos, ao Sul ou a Leste, se bem que entre
esses dois como entre selvageria e barbárie, houvesse problemas
antropológicos irredutíveis a serem colocados.
Em simetria a essa realidade temos o fato óbvio de que o
Ocidente não pensa, a partir de que emerge nesse estatuto
opositivo-mundializado, senão o objeto de sua alterização tal
que para ele se trata de si como Sujeito. De fato o conteúdo do
Ocidente pensante é a cultura e a antropologia da margem nãoocidental, historicizando-se por ele e a História sendo pensada
como a dele. O pós-estruturalismo não posicionou esse fator de
modo algum – Deleuze-Guattari não pensaram a interseção
cultural, mas somente repetiram a lenda do Ulisses viajor, agente
da livre iniciativa desterritorializante. Não podem pensar
interseções e historicidade, somente modelos únicos de um
discurso totalizante como do selvagem, por um lado, irredutível
ao do civilizado por outro lado, e ambos opostos ao do bárbaro
– que no entanto é a origem da civilização ou Estado, ainda
suposto vir do despotismo, mais um discurso paradigmático sem
história que “nasce toda armada como Atená da cabeça de Zeus”.
A clarificação dessa inserção do Ocidente num mundo
planetarizado como fator genético da problemática sócio-política
e cultural pós-feudal intercepta o inconsciente freudo-lacaniano
a partir da sua conexão que nele se tematizou expressamente
com a centralidade da família nuclear à sua trajetória. Aí temos
uma inevitável tangência ao fator em tela, a partir dessa
centralidade ser conversível a uma interpretação lacaniana de
toda a antropologia em termos de história universal teleológica.
Ora, generali zou-se a partir dos seventies a i nfluênci a da
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interpretação guattari-deleuziana dessa teleologia como não
necessária mas factual e assim em todo caso efetiva. Enquanto
Lacan pensava uma evolução psicossocial protagonizada pelo
Ocidente como uma continuidade do saber objetivo desde a
filosofia grega à ciência contemporânea, acarretando assim o
repúdio de qualquer pensamento modernista da originalidade dos
processos culturais da margem, Guattari-Deleuze colocavam o
Édipo como sistema exclusivamente ocidental e não destino
natural de todo inconsciente. Mas assim, o Édipo seria a essência
do Estado capitalista contemporâneo. Como desenvolvi alhures,
de fato essa não é, não obstante o alí vio que deve ter
representado na época, uma solução plausível, pois ou o Édipo
é histórico sociológico, ou é inconsciente psíquico. Se o que se
quer fazer ver é que ele é uma neurose e uma distorção da
natureza do desejo, como uma dominação funcionando na
sociedade, não podemos ao mesmo tempo dizer que ele é uma
planificação inconsciente do mesmo modo que outras possíveis
e ainda com isso estar sustentando que não há nenhuma
planificação originária, que o inconsciente é a possibilidade de
quaisquer planificações que se apresentem efetivamente.
Colocando essa crítica em conjunção ao que vimos, podemos
estabelecer segundo creio que aquilo que o Ocidente pensa em
termos de sua resolução cultural imanente a partir de sua
emergência como diferença a uma margem que ele dispõe
historicamente como outro de si, é a centralidade de si como
história dessa disposição ao mesmo tempo do outro e de si. Mas
ele de fato não se colocou nessa estruturação discursiva de si
senão a partir do momento em que a margem se emancipa
factualmente e não se reduz mais a um “estado de natureza”,
não oposicionalmente uma realidade geopolítica, somente uma
realidade material – com a consequência apenas que não mais se
pode abstrai r a “extensão”. Desde então temos a
contemporaneidade, enquanto que por período moderno nós
temos apenas a extensão pensável.
A contemporaneidade é a emergência do Sujeito pensável,
mas assim o Édipo não é necessariamente a realidade psíquica
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formativa da mente humana, e sim a realidade da família nuclear
ao passo que enquanto burguesa – e não a família grande da
aristocracia europeia ante-contemporânea - ela tem uma história.
Esta corresponde à sucessão de imagos de si conforme
solicitada pelo capitalismo, o qual transige por sua vez em uma
trajetória que define seu devir imperialista. Esse é outro aspecto
da mistificação histórica narrativa ocidental, pois de fato vários
dos paradoxos que constatamos expressa uma outra sutura, desta
vez a do capitalismo a ser definido como um processo intrínseco
europeu sem relação essencial com o que efetivamente o constitui
em termos de uma assimetria internacional – como se pode ver
desde a Inglaterra que se trata como paradigma da Revolução
Industrial por um lado, e como um processo desencadeado por
enclosures setescentistas por outro lado, deixando carente de
conceito o fator decisivo da indústria inglesa do século XIX, o
fato de ser a de um império neoloconial desde o princípio como
testemunha a subvenção da dinastia luso-brasileira imperial e a
guerra do Paraguai. E é por isso mesmo que se diz como Weber
que seu capital nada tem a ver com as antigas companhias de
comércio escravistas da época das colônias. Mas Weber só vê
nesse capital a racionalização como seu ajuste a um mundo
organizado de contratos regulados por leis que facultam as
fortunas particulares.
Ora, o devi r do im perial-capitali smo não confir ma a
circunscrição puritana em que Weber a tinha confinado, pelo
contrário, como se sabe na época hedonista do capitalismo-tardio
cultural-sexualizado. Mas esse devir solicita a família de modos
irredutíveis conforme o capital-imperialismo situa a agência da
centralidade do Centro ou egoidade do Ocidente na História. A
família que fez a Revolução Francesa como oralidade romântica
de uma emancipação universal, não é a do realismo agressivo
sádico-anal racista-coisista, e esse é um tópico bem ventilado
por exemplo, na história da literatura carpeauxiana. A burguesia
aristocratizou-se como alta elite dos impérios neocoloniais, mas
a meu ver, devemos notar a grande irredutibilidade do
progressismo tecno dos positivistas e a dúvida fálica do círculo
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hermenêutico onde a tradição soldou a manipulação identitária
dos totalitarismos xenófobos e a família tornou-se a perpetuação
de um mito ariano fabricado para recondicionar o expansionismo
europeu na fase da concorrência mais acirrada entre as potências
neocolonialistas, isto é, mito primitivista a alinhar-se entre
aqueles que a nova antropologia de campo estava escavando, a
fim de conservar a primazia da religião antiga, mesmo tendo se
dispersado a linearidade das técnicas à Morgan e Engels.
O que temos assim não são fases de uma afetividade natural
à psique humana, mas objetos alterizantes dispostos de formas
i rredutívei s – a margem era o pal co da ação cul tural
emancipatória, depois era ela a coisa disposta à conquista da
raça superior, e chegou a ser a boa vontade do mito da sociedade
simples a permitir circular o do pensamento autêntico em grego
e/ou al em ão. Romantismo pós-kanti ano, Positivismo,
Funcionalismo, articulam sucessivamente esses objetos para si
como enunci ados teleológicos possívei s em ter mos de
autoposição do Sujeito da História.
O estruturalismo do pós-guerras tornou-se uma tendência
forte como se sabe, num ambiente em que a margem protagonizou
a ruptura dessa trajetória nas guerras pela descolonização afroasiática, em que o caráter do primitivo ficou para trás e a
alteridade se colocou “genitalmente” ou em equivalência à
posição de interlocução na hiância. Mas hoje podemos notar que
algo mais estava ocorrendo nessa época - a americanização da
cultura, como logo a seguir o Pop vai demonstrar. Mas antes, e
desde a independência à época do Romantismo em se tratando
de América Latina, a modernidade como sucessão de grandes
relatos foi também, na margem, a absorção desses relatos como
receitas teleológicas, isto é, desenvolvimentistas.
O Pop demarca a exaustão dessa trajetória, uma vez que o
imperialismo norte-americano não repete o europeu, não exporta
modelos repetíveis de desenvolvimento a partir da geração de
um al ter- ego da cul tura l ocal que assim ali enava
alucinatoriamente sua condição de outro. Como agente do
desenvolvimentismo, o mercado americanizado é apenas o agente
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do imperialismo e sua penetração imperialista está sendo hoje
resgatada como um dos capítulos mais lancinantes da trajetória
da ocidentalização. Pois, coincidindo com o ápice da nossa
própria trajetória modernizadora, nosso projeto de autonomia
cultural e independência econômica, o que ocorreu foi a
intervenção do serviço secreto americano nos países de margem,
eliminando brutalmente os protagonistas desse status da cultura
autonomizada e os governos representativos então amadurecidos
para a evi dência da incompatibil idade da promessa
desenvolvimentista e independência local. Desde então está claro
que o imperialismo é uma operação de força sobre a margem, e o
americanizado, desdobrado na globalização das multinacionais,
estabelece apenas a reificação do alinhamento parcial como
geração da desigualdade de Status pelo açambarcamento da
economia.
É típico o argumento de Aljaz Ahmad contra a evidenciação
por Jameson de que, conforme minha terminologia, essa alteregoidade não é uma egoidade efetiva. Na terminologia de
Jameson, que também Deleuze utilizou, não há split públicoprivado na margem, correspondendo a uma revolução burguesa
real como diria Fannon, ainda que não com a intenção de creditar
tal fato a um andamento próprio independente da intervenção
do “centro” do imperial-capitalismo. Ahmad limitou-se a mostrar
todos os fatores de incorporação do Ocidente pela cultura urdu
desde a contemporaneidade – como se alguém replicasse a quem
lhe acusasse de não ter personalidade própria, que ele não tinha
razão pois já havia copiado fielmente a do acusador.
Vários aspectos da indústria contemporânea são contralegitimação em âmbito internacional, pois está brutalmente óbvio
que não mais se quer sequer disfarçar a intervenção local como
uma receita de modernização política importada, e implicam o
Império de um capitalismo central – inclusive o desfazimento
da mola do Saber que se tornou reservado em vez de universal,
assim as empresas vitais ao capitalismo tecnológico, com sede
no centro, como a Microsoft, não partilham suas operações ou
saber com as filias ou mesmo com qualquer controle social. Todas
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as operações da informática obrigam a pessoa privada em todos
os aspectos de sua vida pública, mas nenhuma delas é controlável
pela pessoa, pelo contrário, é administrada unicamente pela
eminência parda da empresa e dos serviços, sem falar na
proliferação de hackers e redes de espionagem da cidadania por
grupos com quaisquer intenções inidentificáveis.
Essa pós-modernidade colocou, como fator de resistência,
num novo patamar na crítica do Sujeito centrado cuja ilusão
teria sido agir fora da história, como uma substância eterna de
iniciativa própria que não era mais do que seguir os ditames do
capitalismo. Agora não mais feita a fim de incorporar uma
fórmula da subjetividade teleologicamente integrada como o
marxismo, mas situando o Sujeito na construção alterizante em
que ele se produz na historicidade, ou ex-centricidade, em que
devém sua enunciação real.
Aqui o real voltou a se tornar independente do possível e a
história tornou a se desvincular da narrativa. Mas em vez do
idealismo de um Saber absoluto, vem agora a irredutibilidade de
sua construção enunciativa ou grafia. A objetividade desreificouse. Não mais abstraímos o fato de que as datas em história são
muitas para um mesmo acontecimento – quase tantas quantas
são os historiadores. Que o Saber é uma interlocução que expressa
um problemática além de todos os seus enunciados, o de sua
enunciação em que o segredo do objeto emergente reside. Nesse
ponto, vemos que o ceticismo e o taoísmo se tornaram de nós
muito próximos. Mas isso não é um acaso ou uma antecipação –
pois, se a reconstituição histórica da cultura ocidental for a grafia
de seus enunciados, vemos que o pensamento oriental em
particular e a antropologia do terceiro mundo em geral não são
apenas o signo formalizante de um Sujeito suposto saber e mais
que suposto, referencial de todo saber possível. Mas sim o que
está sendo sempre pensado, como desde Locke e Rousseau, em
termos do seu conteúdo.
A hiância ou linguagem é o parâmetro que conservamos em
termos de uma realidade histórica – não “simbólica” – e portanto
heterogênea, em interlocução de suas diferenças, não a ser
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depurada como o formalismo puro de um mundo só possível em
total indiferença aos outros mundos só possíveis. A questão
cultural da margem pós-colonial, cuja historicidade imanente é
a interlocução de proveniências a princípio sem conexão factual
como aborígenes, afri canos e europeus, e em contínuo
intercâmbio desde aí, não se beneficia com modelos discursivos
classificatórios puristas e estanques como os do Anti-Édipo.
Como tal, se o inconsciente-linguagem é uma outra-realidade
que ainda está por se conceituar à luz tanto da neurobiologia
como da textolinguística, em todo caso o que essa outridade
coloca à duplicidade da enunciação é a historicidade do enunciado
que não é por ser o possível que elide a desjuntura ex-cêntrica
do Real.
Seja como for que se estejam propondo novos horizontes a
propósito, a pós-modernidade não é um novo paradigma, mas
como em Jane Flex, Thomas Messer (“The emergent decade”) e
Henry Louis Gates, a recusa de qualquer paradigma unificante
acima da consciência da pluralidade das tematizações possíveis
referentes a uma problemática sócio-política e cultural que não
mais se pensa senão situada - respectivamente nestes exemplos,
o feminismo, a arte americano-latina recente e a negritude pós”identitária”.
Assim, como não temos dogmas nem prescrição sobre o que
é “mulher” ou “negro” ou concepção de “americo-latinidade”,
mas sempre respeitando a subjetividade em seu caráter singular
em vez de buscar antes uma fórmula identitária universal, os
questionamentos da situação histórico-existencial se fazem
voltando-se a esclarecer para si o modo mesmo pelo qual eles
estão sendo encaminhados, psicológico ou histórico, geográfico
ou sociológico, etc.
Os estudos visando os fenômenos de subalternidade, os
estudos culturais, étnicos, fem inistas, “queer”, em suas
especializações temáticas têm recusado especialmente o viés da
obtenção de fórmulas para falar pelos outros, e tem sido formas
de pesquisa inovadoras na acepção de fornecerem meios para
que estes “outros” se expressem em suas linguagens efetivas cuja
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tessi tura revel a na singulari dade da enunci ação, o seu
questionamento do “cânon”, como dos textos e referenciais
nocionais que realmente constituem a historicidade de sua cultura,
ou situação social, ou efetividade política.
O “cânon” não significa aqui uma tradição ou normatividade
discursiva seja no sentido de Kermode, Foucault ou no de
Benjamin. Ao contrário de estar sempre selecionando de um
repertório aberto referenciais assim estabelecidos para evidenciar
temáticas próprias, ou de estar refletindo uma mentalidade
absolutamente comum na dada situação histórica ou ainda
deformando textos sacralizantes do passado de uma comunidade
identitária por meio do comentário atual, trata-se de apreender
as formas de expressão em que a subjetividade se situa como
heterogênea ou ex-cêntrica em relação ao padrão estabelecido
até mesmo de sua marginalização na cultura, ou mais geralmente,
de sua sol icitação de integrar-se nela, al ienando- se as
singularidades de sua autodescoberta.
Nós brasileiros custamos muito para, com o Romantismo e o
Modernismo, consolidar a concepção de que a organização do
nosso cânon nessa acepção não só de textos referenciais
“antológicos”, mas de linhas de pesquisa dos textos registrados
e/ou conservados dos autores nacionais, é o basilar para qualquer
desenvolvimento da nossa produção cultural efetiva, em vez da
mera importação de fórmulas teóricas europeias que apenas são
utilizadas por eli tes que as simpl ificam para recalcar a
heterogeneidade local. Mas o que tem ocorrido ao longo da nossa
história é o contrário, como efetivação de meios cada vez mais
disseminados desse recalcamento, o que configura “dominação
cultural”.
Em meus blogs na internet tenho desenvolvido estudos
m inuciosos sobre esse processo característi co do
subdesenvolvimento, que deveríamos lograr reverter. Os meios
de comunicação de massa e a própria internet tem sido utilizados
como novos e mais poderosos veículos desse recalcamento da
expressão cultural local, e seria importante desenvolver estratégias
de resistência e transformação das políticas de expressão cultural.
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As universidades na área de humanities não poderiam continuar
apenas refletindo inutilmente as pesquisas empíricas, como em
sociologia e antropologia, que se faz na Europa e EUA, mas sim
tornarem-se fontes úteis do conhecimento da realidade efetiva
dos fenômenos e processos sociais brasileiros – como do megafavelamento do estrato urbano recente, por exemplo, de que só
temos imagens distorcidas pelo interesse midiático de separar as
noções de favelado e cidadão brasileiro, mostrando as favelas
apenas como focos do narcotráfico, quando na verdade são
conglomerados de milhares e milhares de pessoas, carentes,
famílias e trabalhadores. As favelas não têm saneamento básico
e constituem a realidade desses milhares de pessoas que estão
fora do mapeamento geográfico urbano assim como sem direitos
políticos.
A denúncia e estudo dos dispositivos do neofascismo ou
apartheid sociais brasileiro que se implementou de modo
específico e radical desde a “globalização” ou neoliberalismo
econômico (governo FHC em diante), dado o sucateamento das
estatais e desaparelhamento da cidadania, está sendo urgente,
não só em defesa da população, como elemento constitutivo da
conceituação do conflito Norte-Sul.
Essa transformação curricular viria até, paradoxalmente,
contemplar o que mesmo na Europa e nos EUA, como vimos
acima, o pós-modernismo vem redefinindo em termos de
fenômenos sociais, abandonando os grandes paradigmas para
entender a heterogeneidade efetiva dos processos situados,
conforme ainda o critério do desenvolvimento que atualmente
está sendo o “idh”, que mede os níveis da qualidade de vida em
função da homogeneidade do acesso aos bens, cultura, saúde e
educação, da população do país (não de grupos de elite pseudorepresentativos).
Na deslegitimação do “império” do capitalismo central em
que se consubstanciou finalmente o “imperialismo” em seu devir,
o enunciado de um novo planisfério – o do conflito Norte/Sul –
marca o ambiente histórico pós-moderno. Aqui a teleologia
tornou-se assim como o objeto mesmo, paradoxal, em vez do paradoxo
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estar envolto na discursividade da razão objetiva ou subjetiva pois ao mesmo tempo que não mais como uma repetição suposta
desenvolvimentista, a margem não mais pode grafar a sua
autonomia ainda que fictícia e conquistada em razão de sua
trajetória pós-colonial, ocidentalizante. Ela está inscrita num dos
hemisférios da definição adjetiva. A teleologia não lhe é mais
interna, como “sua” política desenvolvimentista, é intrínseca
como o que lhe é brutalmente imposto e assinala sua inferioridade
constitutiva.
Paralelamente aos cruéis dispositivos que tem assinalado a
dominação do capitalismo central “neoliberal”, há a exaustão da
racionalidade a partir da evidenciação do caráter não progressista
da ciência “ocidental” - a que é definida como parâmetro da
reserva do Saber e produção tecnológica – em termos de vida
humana – pois de fato, a racionalidade da ciência só conduzirá à
inviabil idade planetária pela hecatombe ecológica ou à
transformação do homem em autômato da produção: como na
ficção de Huxley, em que criaturas humanas com cérebro inferior
fabricadas geneticamente apenas para trabalhos subalternos são
projetadas tanto quanto cri aturas com cérebro capaz de
compreender matemáticas, mas como se poderia objetar, qual a
diferença entre ambos se além das matemáticas, nenhuma
mudança política como liberação de escolhas de vida pode ser
pensada, e qualquer um dos dois tipos, tanto um como outro, só
reproduzem o planejamento que lhe é imposto invariavelmente
pelo grande Outro?
Não temos a amplitude necessária ao equacionamento nãoteleológico de todos os elementos que nos facultariam interceptar
decisivamente a trajetória da dominação tecnológica tal como
vem se mostrando na sua face ameaçadora ao ponto do surgência
um novo pessimismo que eu designaria neoschopenhaueriano,
como o de John Gray.
A ampliação da interlocução multicultural parece a muitos
de nós hoje uma das vias da crítica antidominação, mas cuja
palavra de reorganização do campo das humanities, a meu ver,
sendo a ecologia, deveria também ser a recontextualização desse
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estatuto, o do homem, do humano, que a irresponsabilidade de
uma crítica mal amparada conceitualmente, mas deslumbrada
por um aparato de instrumentação falsamente suposto definitivo,
vem recalcando. Não é por uma exigência ontológica a repor as
aporias que não vão de encontro a qualquer dos enunciados da
dominação, que novamente a questão da nossa humanidade é
evocada. Mas por uma política. Pois não é consistente sustentar
que o homem é o responsável pelo descalabro ecológico a que
todas as espécies vivas estão hoje expostas, e por outro lado
dizer que todo o seu pecado tem sido supor para si uma diferença
e uma autonomia de ser no seio do indeterminado.
A independência em relação aos aparatos da já sabida narcose
tecnol ógica, cuja interface entre nós tem sido de brutal
indiferença a toda e qualquer autonomia do cidadão particular,
com ônus de qualquer credibilidade de governos que permitem
os descalabros a que a sociedade está exposta por grupos de
delinquentes ou simplesmente incógnitas, nas comunicações, nas
ruas, redes, e suspeita-se, dentro das casas como espias digitais,
não me parece possível dentro do arcabouço da cultura que assim
se autodesigna ocidental centrada nos desígnios desse domínio
que como assinalei, não temos hoje como contrapor pela sua
abrangência bio-tecnológica-midiática.
Mas uma situação de total alienação dos direitos humanos foi
enfrentada pelos taoístas e pelo budismo chan, ou por escolas
helenísticas da filosofia grega, assim como podemos notar não
corresponder à realidade dos estudos atuais a concepção de que
antes da democracia moderna-ocidental – que não se demarca
habitualmente o fato de ter nascido da descentralização do
pensamento oriundo da descoberta do novo mundo e da
reordenação econômica que isso implicava – não havia na
humanidade a concepção da cidade democrática. Como tenho
citado frequentemente, o livro de Leick sobre as mais remotas
civilizações urbanizadas na Mesopotâmia, contesta eficazmente
essa perspectiva tradicional. Com efeito, tanto ocorre dos
sumeriólogos de hoje compreenderem a Cidade-Estado sem
vinculação despóti ca no início das organizações soci ais
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conhecidas, quanto devemos lembrar que a partir dos anos
cinquenta do século XX já estava em bom andamento o acúmulo
de evidências sobre Mohenjo Daro e Harappa, sítios onde na
década de vinte havia sido descoberto o referencial da civilização
pré-ariana local.
Concepções da vida social primitiva como apenas ante-cristã
no sentido de ariana ou indo-europeia – como de Fustel de
Coulanges – deixaram de obter sustentação. Antes dessa
transformação patriarcal das relações humanas, não estava nem
algo mais rudimentar mas que se lhe assemelhava em grandes
linhas como ainda supunha este autor, nem a promiscuidade
primitiva como consciência de carneiro tribal das concepções
de A ideologia alemã (Marx e Engels). E sim uma cultura em que
foram registrados participação feminina, pacifismo, integração à
natureza, democracia informal, ou seja, funcionando na prática,
liberdade da sexualidade, igualitarismo de status, grande
estetização da vida e acúmulo de conhecimentos práticos,
aspectos que se aproximam, guardadas as proporções, do
urbanismo mesopotâmio primitivo onde, contudo, é de se
destacar a ênfase em sistemas elaborados de administração de
recursos e cultura letrada.
Tenho procurado di scerni r um a di ferenciação entre
organizações sociais em que, por um lado há uma mentalidade
em que existe um nível público cuja atribuição é plural posto ser
relativa apenas às questões da coexistência dos elementos
heterogêneos da sociedade, de modo que este nível não implica
a manipulação identitária do privado, como grandemente variada
conforme as várias sociedades pacíficas e igualitaristas, inclusive
a democracia organizada da Grécia e da nossa militância
contem porânea; assim o i nconsciente não im pl ica a
impossibilidade de pensar o outro. E por outro lado, organizações
sociais em que não pode haver independência entre nível público
e manipulação identitária porquanto sendo oligarquias ou aparatos
despóticos, de signo patriarcal, implicam a limitação do privado
ao papel social ditado pelo interesse suposto público – porque
nesse caso em vez de um nível de questões da convivência
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heterogênea, na verdade só há um grupo, casta ou déspota que
sim boli za ou representa a popul ação que dom ina
identitariamente.
Se todas as formas sociais constantes do nosso conhecimento
antropológico fossem como esta, patriarcal, o inconsciente freudolacaniano não seria deslocável como universal, mas como
podemos notar, é após a formulação de Freud que Lacan incide
na tentativa de preservar o que foi ficando cada vez mais claro
estar obsoleto em termos de informação antropológica pelas
descobertas recentes. O campo ainda está semeado dessa
polêmica, especialmente na Europa, porque a ruptura para com
tal paradigma por tanto tempo aceito, ainda que implicada pelas
descobertas já bastante sedimentadas, implica uma revisão muito
grande na cômoda imagem estabelecida por muitos autores, de
uma Grécia que inicia a racionalidade jurídica e que é apenas o
elemento formativo da cultura europeia que na modernidade a
restitui devido ao seu passado esclarecido, agora em bases
científicas. Essa imagem é a que lastreia a elite capital-imperialista
na sua formulação da ocidentalização e domínio da margem em
termos de amplitude da modernização social local possível –
dado que em vez disso só haveria a barbárie despótica ou a
selvageria fantasista-narcisista – isto é, como agência do Sujeito
da História da objetividade psicossocial.
Mas não sendo mais aceitável supor que uma história das
civilizações existe como Freud havia suposto ou talvez, mais
ainda, querido, por outro lado o limite ecológico que impede o
desenvolvimentismo continuar sendo pensável mundializável –
e mais do que isso, a verdadeira problemática da sobrevivência
das espécies ameaçadas pelo descalabro tecnológico e dominação
imperialista - impulsiona com maior vigor a tarefa de atualizar a
pesquisa do inconsciente de modo a, ao menos, liberá-la do
prejuízo imperialista de que tem sido veículo. Não há meios de
realizar esse novo meio de investimento teórico sem romper com
a unidade dos referenciais da história ocidental, por um lado, e
sem com isso justamente desfazer os pressupostos falsos que
permitiam a impressão de que tal história era una, intrínseca de
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seus pressupostos internos, sem si tuam ento espacial
(geopolítico), apenas diacronicamente orientado.
Minha concepção é portanto que não há uma reação contra
sociedades tradicionais hierarquizadas, suscitada pela evolução
dialética delas mesmas, explicando o surgimento do pensamento
especulativo, técnicas especializadas como ciências, crítica da
cultura e questionamento ético, junto com o estabelecimento de
novos meios de organização social legitimados ou não; mas sim
que a heterogeneidade social sempre se manteve ainda que, como
na Grécia, quadros de invasões e migrações intensas podem ter
levado a fórmulas hierarquizadas que depois são confrontadas
pelo pensamento popular remanescente, e assim também na
China e na Índia.
Sendo a heterogeneidade do social uma realidade tão patente
ao nosso próprio meio histórico, parece bem oportuna a condução
da problemática como aqui demonstrada.
No pós-estruturalismo a problematização do desejo se havia
convertido numa pesquisa dos mecanismos do Poder e liberação
políticas por um lado, e repressão subjetiva ou temáticas da
sexualidade expressa em textos como obras analisáveis, por outro
lado – uma vez que ninguém a não ser Guattari, era ou havia
sido de fato psicanalista clínico. O material era assim reduzido a
um ponto de vista único em termos de discurso ou desejo, que
tem sido impossível manter como pertinente a questões mais
atuais.
Em todo caso, deve ser sempre lembrado que manter o
i nconsciente hoje i mpli ca revisar toda a teoria pel a
impossibilitação da antiga linguística do significante que havia
sido até aí fundamental a ela, a partir de Freud e especialmente
Lacan. Isto é mais do que necessário atualmente, devido ao nexo
da linguagem informática com a manutenção de esquemas
ocidentalizantes de pensamento, os quais estão de fato obsoletos,
mas são mantidos com grande pompa porque convém com a
imagem determinista da tecnologia atual.
Ao lado deles, só figura com tanto destaque os obscurantismos
religiosos que, ao contrário do que se pensava no cenário
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nietzschiano pós-estrutural, são hoje grandes movimentos de
sustentação do regim e im peri al ista, o que demonstra
suficientemente a deslegitimação desse regime em termos de sua
pretensão primordial, de ser a caução única dos direitos civis e
da liberdade democrática. É manifesto que na deslegitimação
do “império”, a dominação em países desculturados pela
criminosa repressão ditatorial, cujos métodos foram de tortura
hedionda, subsequente penetração de seitas protestantes em
massa e em linguagem de marketing, além de vários dispositivos
de dominação cultural midiático e institucional muito patentes
desde a globalização propriamente dita, dos anos oitenta até
agora, implicou que essa pretensão nem precise ser ventilada já
que não encontra a ressonância de ouvidos civilizados. Tudo se
resume ao falacíssimo argumento de que não há monetarização
possível do país sem o capital estrangeiro, uma vez que como
bem se sabe em história, todos os países penetrados por esse
capital neoliberal como primeiro foi o Chile, tornam-se nada mais
que grandes favelas com ilhas onde o pico de consumação de
ínfimas minorias iguala os países mais ricos do Centro - mas sem
a concomitante inserção cultural dessa consumação assim
meramente conspícua, predatória de todo desenvolvimento
político ou legitimação já conquistada local.
Ora, são os materiais que não se limitam a expressão do
pensamento dos representantes conspícuos de sociedades
hierarquizadas de tipo patriarcal e/ou despótico, ou seja, em se
tratando do presente estudo, o pensamento taoísta, cético e a
filosofia do Buda, que se tornam as mais importantes e preciosas
fontes do nosso interesse nesse sentido dos estudos do
inconsciente, da linguagem e da cultura, como produções não
originariamente do uno ou centradas. Eu gostaria que a tudo
isso se acrescentasse o que no Ocidente não é moda, a saber, o
aspecto espiritualmente libertário e renovador do pensamento sócioigualitarista cujo referencial é a crítica – desde antes de Cristo e
não somente na Grécia cética – do consumismo, idealismo e
dependência a estereótipos quando se trata da subjetividade, mais
sua ética ecológica de não-agressão à Natureza, conceito que
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hoje não mais podemos consentir abstraído, devido à questão da
conservação planetária.
Contudo, esse escrito não se tornaria efetivamente coerente
com o que deseja referenciar como minha trajetória de estudos e
elaboração conceitual, sem salientar o que pode já estar nas
entrelinhas afirmado. A crítica dos grandes relatos que do
Positivismo em diante, a partir da problematização da alteridade
cultural e do Sujeito transcendental pensável desde o
Romantismo, como geoegologia ocidental – não a representação
do universal, mas o discurso do primitivo como teleologia da
razão psicossocial - não implica reduzir as ciências humanas
empíricas a eles. Se o Ocidente não se confina no seu próprio
discurso segregacionista, é pela pesquisa da alteridade que as
constitui, anima e renova constantemente. Elas não são, portanto,
produções de uma “tradição” cultural, mas a interlocução da
alteridade que se instaura como linguagem multicultural.
Anexo: Como espero ter ficado claro neste escrito, em teoria
e história da cultura os pós-estruturalistas não inovaram, mas
radicalizaram as interpretações estruturais de que se segue a
obliteração, em cada um dos itens habituais de estudo, do já
evidenciado pelas vertentes de pesquisa conscientes da
necessidade de se reconstituir a heterogeneidade, em vez de tecer
alguma ficção da unidade da Razão que seria ao mesmo tempo a
unidade Ocidental desde a Grécia Antiga. O pós-modernismo
investe essas vertentes.
A lista que organizei a propósito esquematiza o que é
preponderante quanto a cada tópico do estudos em humanities.
É interessante observar que cada um dos itens listados como
premissa estrutural, pode ser dado como integrante da visão
lacaniana de uma história unificada do Saber, cujas interpretações
idealistas em si mesmas não foram negadas pel os pósestruturalistas. Essas interpretações são habitualmente correntes
nos tratamentos mais conservadores da história, em vez de
trazerem algum grande estranhamento nesse setor como se
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poderia supor pelo estardalhaço de reacionários notórios, no
entanto pior informados.
Por outro lado, os conteúdos da “História efetiva” como
interpretação pós-moderna oposta à visão unificada qualquer,
são sempre componentes de uma crítica imanente da idealização.
História do Saber (“a”) e História efetiva (“b”)
1) a) Platão/Aristóteles: pioneira postulação do objeto em
geral do saber (=x); fundamento do pensamento ocidental
(universalismo jurídico); síntese ou ideal-típico do pensamento
grego, determinando racionalidade objetiva em ruptura com o
mito.
b) a posição acima impossibilita estudar a heterogeneidade
grega Platão e Aristóteles são apenas integrantes tardios da
história da filosofia grega, demarcando a entrada nesta do
pensamento aristocrático contra o que até aí a história da filosofia
existira ligada à emergência do jurídico no século VII a.C. devido
à queda do regime aristocrático; inflexão da filosofia como
“metafísica”, isto é, religião de interpretação aristocrática e
instrumento da legitimação idealista do Poder hierárquico;
inauguram na filosofia a expressão da posição reacionária/
oligárquica tipificada na época pelo regime espartano; implicação
da linguagem na totalidade mítica, opondo-se às posições
filosóficas já hauridas do pensamento democrático em função
da relatividade e heterogeneidade já tematizadas da experiência
em devir e exemplares do regime ateniense/jônico (jurídico); não
supõe objetividade, mas identidade mítica do subjectum;
referenciais da crítica ao idealismo consubstancial à continuação
da pluralidade de tendências de pensamento nas escolas
filosóficas posteriores;
crítica imanente: o jurídico não emerge do idealismo universal,
mas pelo contrário, emerge do equacionamento político da
heterogeneidade humana situada, como leis de observância em
comum que resultam do acordo humano situado e por meio da
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linguagem em exercício nas instituições públicas de validez
jurídico-estatais; a Grécia pode não ser o pioneiro referencial do
jurídico ou do igualitarismo quanto a status (conforme estudos
da mesopotâmia pré-babilônica), mas sim a sua recuperação após
a transformação oligárquica motivada pelas invasões de outros
povos (belicistas imperialistas = iletrados/carentes); o estudo
antropológico-social e arqueológico dos referenciais culturais
não- ocidentais e da anti guidade remota não deve ser
dicotomizado formalmente entre discurso de mito ou de
racionalidade, mas deve ser analisado quanto ao conteúdo das
relações políticas que expressa;
2. a) Descartes : pioneira elevação do objeto do saber ao
campo do Intelecto humano (Cogito)
b) reinstaura o vínculo da filosofia com o pensamento religioso
(catól ico), a partir da transfor mação da fil osofia em
“racionalismo” ou tese do idealismo inatista. A reinstauração
expressa-se como reação ao naturalismo renascentista enquanto
retomada da independência da filosofia em relação ao idealismo
religioso, perseverando ainda como reação contra o empirismo
enquanto novo cenário do naturalismo; abstrai o equacionamento
da alteridade da margem colonial (Américas) como problemática
humanística e de sua visibilidade como questão epistemológica;
desloca a real originalidade epocal da problematização do
intelecto que é a desenvolvi da no empirism o enquanto
impulsionada por esse equacionamento;
crítica imanente: a ruptura moderna do conceito, a partir de
sua humanização pré-psíquica (pré-subjetiva) ou intelectiva, não
se deve à restauração da metafísica, mas ao equacionamento da
alteridade: irredutibilidade do selvagem em conexão com as
transformações ocasionadas pelo retorno do comércio que
implicam a heterogeneidade do social;
: o Ocidente (moderno/”modernidade”) não emerge pela
restauração da antiguidade clássica, mas sim autodefinindo-se
referencial do desenvolvimento humano que não mais se reduz
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à antítese de civilizado e bárbaro, mas deve ser explicado
cientificamente como estágio humano cuja anterioridade é a
natureza do selvagem americano a definir pela observação.
3) a) Iluminismo : pioneiro estatuto da forma pura da lei (Kant;
Sade) a qual é fundamento do estágio psicossocial da sociedade
liberal (Estado de direitos civis), como transformação progressiva
do Cogito
b) projetos de reforma social limitados pelo modelo da
monarquia parlamentar inglesa; reinterpretações “voltairiana” ,
sensualista (ideólogos) e físico-maquínica (La metrie e outros)
respectivamente da visão de mundo, da formação de ideias e do
paralelismo psicofísico empiristas; preservação do antihistoricismo cartesiano; fundam entos da legitimação do
economicismo (víci os pri vados a serem atendi dos pelo
comércio/indústria, com os lucros convertendo-se em benefícios
públicos); teoria dos sentimentos humanos redutíveis a paixões
utilitárias; cenário confrontado pelo pré-romantismo rousseauísta
cuja impulsão são os problemas relativos ao equacionamento da
alteridade da margem colonial (Américas; Oriente);
crítica imanente: o Aufklaerung não estrutura a sociedade
contemporânea que emerge somente desde o século XIX
enquanto nacional/democrática, nem estrutura a episteme
contemporânea cujo a priori é a historicidade e a existência das
ciências humanas;
4 ) a) Hegel : sujeito pensável como fundamento do jurídico
burguês (consolidação do Estado civil), refletindo o a priori
material da hegemonia da burguesia como classe econômica;
b) Romanticismo: Real em devir (biologia evolucionista;
história como ciência social); sujeito pensável na interligação do
problema do conhecimento com a questão histórico-cultural em
função da intersubjetividade (alteridade/desejo); autonomia do
signo (ciências e artes como operantes em códigos independentes,
esvaziamento da totalidade metafísica); postulação pioneira do
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inconsci ente (dupl icidade da subjeti vação) com o
problematização da pluralidade das culturas relacionada à
singularidade da formação subjetiva desde a infância (como agente
na cultura); metodologias relacionais (“polaridades de opostos”;
“di al ética”); emergênci as das ciências humanas
(geistwissenchaft);
crítica imanente: o Sujeito pensável que emerge com o
Romanticismo não emerge do idealismo anti-empirista, mas da
psicologia como ciência do inconsciente (“duplo” orgânico/
psicológico, não reduplicação “empírico-transcendental”); O
inconsciente não foi pioneiramente conceituado por Freud; O
inconsciente rom anti cista não se reduz a um ideali smo
culturalista, mas se enuncia como a problemática do investimento
afetivo dos valores na história, com a afetividade humana já
i nterpondo o equaci onam ento orgânico; O Estado
contemporâneo (constitucional) não pode ser reduzido à teoria
do contrato social do período monárquico.
5) positivismo/marxismo = a) pioneiro materialismo; pioneiro
equacionamento do “sintoma” (mais valia/desejo)
b) transformação darwinista do evolucionismo e apropriação
do darwi nismo para definição imperialista do Ocidente
(desenvolvimento tecno-racial = presentness universal); Sujeito
como agente da nacionalidade (cidadania constitucional)
romanticista se torna Sujeito Ocidental como agente do Progresso
(desenvolvimento) universal (indústria/ciência natural-objetiva);
primitivo como inferioridade racial (“analidade” do positivismo
= conceito de universalidade teleológica da família nuclear);
crítica imanente = a anulação do tema do socio-darwinismo
implica a anulação da evidência do positivismo como veículo de
expressão do Imperi alismo e anulação da evi dência do
capitalismo como intrinsecamente imperialismo (“potências”
neocoloniais);
6) pós-positivismo “funcionalista” = a) pioneiro conceito do
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sujeito situado na cultura (Dasein); pioneiro conceito de
inconsciente (psicanálise); pioneira estética de massas; pioneira
crítica da comunicação de massas;
b) transformação idealista das humanities; transformação
ideali sta/cultural ista do problema do inconsci ente; o
inconsciente como referencial de estágios psicossociaiscognitivos; “formação fálica” do pós-positivismo enquanto
dilema de originalidade/anterioridade (primitivismo-natureza) e
burocracia/evolução da linguisti c turn (sistema soci al racionalidade); modificação idealista dos grandes relatos socioevolutivos positivistas (Durkheim); redução idealista da crítica
da comunicação de massas em função de ideias reducionistas
em estética (Adorno = recalque do Jazz); sistematização do
capitalismo como processo ocidental intrínseco (Weber)
: prosseguimento da linha de descoberta da margem pelas
humanities empíricas (trabalho de campo) e emergência da
psicologia laboratorial;
crítica i manente: o pós-positi vism o aprofunda como
autoposição do Ocidente, as linhas de orientação do preconceito
tecno-desenvolvimentista ao produzir estereótipos identitários
do pri mi ti vo a ser paternali zado; o pós- posi ti vi sm o é
erroneamente considerado m omento pioneiro; produz a
reconversão idealista-totalizante das descobertas empíricas em
humanities e da mecânica quântica;
7) estruturalismo e pós-estruturalismo: a) atingimento do telos
da racionalidade pela ciência dos sistemas e inconsciente
semiótico;
b) radicalização do socio-evolucionismo pela distribuição
ideal-diferencial do universal inconsciente-semiótico; releitura
idealista da história pela redução da história aos sistemas ou
“discursos”;
crítica imanente: os parâmetros sistêmicos causam oclusão
radical da heterogeneidade pensável dos referenciais sociohistóricos; redução da Grécia à aristocracia homérica e da
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antiguidade ao despotismo imperial; redução da Grécia a origem
do Ocidente unificado como racionalidade em progresso;
impedimento das problemáticas da intersubjetividade; o campo
estrutural seria a independência “genital” da consciência
ocidental, mas como esta não é o sujeito de um processo
autêntico, e sim apenas o discurso da marginalização do nãoocidental, sedimentou o socio-evolucionismo tanto mais
perseverou em fornecer um paradigma sistêmico da singularidade
das culturas.
8) Pós-modernidade : a) generalização das comunicações,
utilitarismo; fase de transição a um novo paradigma por vir;
neurociências, mídia-informática e expansão da genética como
novos definidores da centralidade evolutiva do Ocidente mesmo
estando superado o parâmetro tecno-desenvolvimentista pela
problematização ecológica;
b) multiculturalismo como superação do idealismo de
paradigmas; afirmação da autonomia cultural dos povos e
superação da história unificada do Ocidente; afirmação da
subjetividade na heterogeneidade situada-historicizada; história
como historiografia (intertextualidade das fontes documentais);
textolinguística e sociolinguística; redefinição do capitalismo
como I mperiali sm o; superação do ci enti fi ci sm o pelas
problemáticas ecológicas; reconceituação das ciências como
linguagens autônomas; crítica à “dominação” pelos dispositivos
de poder (mídia informática/neoliberalismo econômico);
expansão da contestação política situada (gêneros sexuais, etnias;
condições de status);
crí ti ca i manente: os parâmetros do Recentramento
neoimperialista são instrumentações diretas da dominação; as
conquistas científicas não são intrínsecas ao Ocidente, mas
resultados da intercomunicação de culturas; a tecnologia não é
apolítica; O Excentramento dos parâmetros de estudo assim
designados pós-modernistas implicam o equacionamento da
heterogeneidade e sua expressão em todos os níveis de
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problematização; o pós-modernismo não é assim uma expressão
ambígua, mas a crítica da “modernidade” como dos grandes
relatos ocidentalistas.
: O Ex-cêntrico interpõe a problemática de um
sujeito não-freudiano e não-universal, que estudamos em função
de suas expressões textualizadas enquanto suportes de sua
autoenunciação (singular e situada). Não pensamos mais,
portanto, que a subjetividade só se torna autoconsciente de um
único modo, ou somente no registro socio-evolutivo racionalocidental. A crítica à dominação cultural, etnocentrismo e
imperialismo, contudo, forma as tessituras do heterogêneo e do
ex-cêntrico na imanência do próprio Ocidente como novo
horizonte epistemológico dos “estudos”.
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O SACERDÓCIO JORNALÍSTICO E SUAS
METAS TRANSCENDENTES NA
FORMAÇÃO DA AGENDA SOCIAL
RENATO NUNES BITTENCOURT
INTRODUÇÃO
Neste texto propomos uma análise crítica dos dispositivos
ideológicos representados usualmente na Comunicação Social,
utilizados em especial pelo sistema jornalístico em sua expressão
corporati va; tal ci rcunstânci a prej udica um a autêntica
compreensão dos mecanismos técnicos que fomentam as práticas
comunicativas em sua expressão concreta e suas influências na
construção do imaginário social. Por conseguinte, o ofício do
crítico da teoria da comunicação consiste em desmistificar os
conceitos e procedimentos que regem as práticas jornalísticas
do mundo corporativo.
Existe uma relação indissociável entre os paradigmas
axiológicos das práticas comunicativas profissionais e o projeto
moralista cristão em sua defesa incondicional da verdade.
Partindo desse pressuposto, a proposta deste artigo consiste em
analisarmos criticamente alguns dos pressupostos básicos das
práticas comunicativas estabelecidas pelo sistema midiático
hegemônico, realizando uma desmistificação conceitual e uma
desconstrução semiológica da própria estrutura ideológica da
Comunicação Social da era moderna; visamos assim favorecer
uma compreensão profunda da dimensão valorativa que perpassa
as atividades comunicativas tradicionais.
Cada vez mais constatamos a formação deficitária dos
profissionais dos setores da comunicação, pois se visa acima de
tudo uma inserção imediatista no mercado de trabalho para o
desempenho de funções alienantes nas corporações midiáticas,
e não o desenvolvimento acadêmico através da reflexão crítica,
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concretizado em especial pelo apreço pela leitura de textos ou
estudos de casos técnicos relevantes para a ampliação dos
horizontes intelectuais do profissional de comunicador social.
A análise crítica do ofício midiático é uma tarefa fundamental
na constitui ção democrática da moderna soci edade de
informação, pois assim a esfera pública pode compreender de
maneira justa e conveniente os dispositivos técnicos utilizados
pelos comunicadores profissionais em suas atividades cotidianas.
Para tanto, se torna imprescindível que coloquemos em questão
a pertinência axiológica de conceitos de suma importância na
configuração dos processos comunicativos tradicionais, tais como
“verdade”, “objetividade”, “neutralidade”; tais conceitos,
curiosamente, são abordados com o autênti cos axiom as,
circunstância que prejudica o estabelecimento de uma genuína
análise sobre a influência, a interferência e a importância dos
aparatos comunicativos na constituição da subjetividade humana.
A própria estrutura m idiáti ca em seus m ecanismos
monopolistas do poder de distribuição pública de informações
de uma forma geral propaga discursos ideológicos falseadores
das relações sociais e não saberes consistentes que promovam a
supressão da alienação coletiva. Althusser, em seu texto
Aparelhos Ideológicos do Estado, defende a tese de que a Escola, a
Igreja e a Família seriam mecanismos pelos quais o Estado
inocularia na estrutura social a sua própria ideologia: “Toda
formação social, para existir, ao mesmo tempo que produz, e
para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua
produção” (ALTHUSSER, 1985, p. 54). Mesmo que algumas
corporações midiáticas se encontrem em divergência com a
estrutura do poder estabelecido, seja por questões de cunho
polí tico, econômi co ou deontol ógi co, tais empresas da
comunicação também são difusoras de ideologia, de modo que
se justifica a inserção da mega-mídia na categoria de “aparelhos
ideológicos”. A argumentação de Niceto Blazquéz corrobora a
exposição precedente: “Os meios de comunicação social são um
instrumento de enorme eficácia para impor ideologias e interesses
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de todo tipo, criando uma opinião pública na medida dos grupos
que controlam as informações” (BLAZQUÉZ, 1999, p, 51).
Portanto, um estudo rigoroso dos mecanismos ideológicos
subjacentes nos meios de comunicação e em seus processos
discursivos requer que estes sejam abordados nesta categoria
valorativa como maneira de se proporcionar ao estudioso do
assunto uma genuína reflexão intelectual, destituída de entraves
preconceituosos que limitam a amplitude das capacidades
analíticas do investigador.
A
CONST RUÇ ÃO ID EOLÓGICA D O D IS CUR SO MI DIÁ TI CO
CORPORATIVO E SUA INSERÇÃO SOCIAL
Certamente um dos quesitos mais importantes para a
elaboração da deontologia profissional do comunicador social
reside no seu compromisso em transmitir incondicionalmente a
“verdade” acerca dos acontecimentos e buscar acima de tudo
obter essa dita “verdade” e assim transmiti-la em toda a sua
“pureza” para a coletividade social. Nessas condições, Daniel
Cornu apresenta os parâmetros abstratos das disposições
deontológicas das atividades jornalísticas:
A exigência da verdade se impõe não somente
ao jornalista como observador, que relaciona os
fatos propriamente ditos, mas também ao jornalista
como intérprete e ao jornalista como narrador. A
esses três níveis correspondem as exigências
metodológicas respectivas de objetividade,
imparcialidade e autenticidade, que são constitutivas
de uma informação verídica (CORNU, 1998, p.
64, nota 2).
Se analisarmos criticamente essa perspectiva, constataremos
que el a é repl eta de conotações ideológi cas que não
correspondem exatamente àquilo que é realizado na experiência
concreta da prática jornalística, especialmente quando esta é
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submetida a critérios comerciais alheios aos concernentes ao
“nobre” ofício de promover o esclarecimento público. Afinal, a
comunicação social é um poder empresarial, ideológico,
econômico e político de primeiro nível na sociedade capitalista,
e todas as organizações corporativas necessariamente se utilizam
dos seus mecanismos em prol da participação hegemônica na
formação da opinião pública. Bourdieu considera que o poder
simbólico é um poder de construção da realidade que tende a
estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do
mundo e, em particular, do mundo social (BOURDIEU, 2002,
p. 9). As estruturas corporativas não podem, portanto, se alhear
dessa segmentação construtora do imaginário social, sob risco
de perderem visibilidade social.
Heródoto Barbeiro, por sua vez, salienta pertinentemente que
“a comunicação assume um lugar importante na estratégia das
empresas porque um índice muito alto dos valores de mercado
de uma empresa é constituído de fatores intangíveis. Ela tem
um papel decisivo na percepção que a empresa quer ter por parte
da sociedade” (BARBEIRO, 2010, p. 43). No entanto, a
construção da imagem pública da empresa como um organismo
ético é um método persuasivo para a manipulação da opinião
pública, pois os interesses corporativos, essencialmente
econômicos, são intrinsecamente alheios aos âmbitos dos valores
morais. Al ai n Woodrow apresenta um questionamento
extremamente perspicaz acerca desse problema que aflige a
atividade social do comunicador: “A deontologia continua a fazer
sentido quando a lógica da indústria da comunicação é puramente
econômica?” (WOODROW, 1996, p. 229).
É impossível, epistemológica e ontologicamente, para os
meios de comunicação, independentemente de seu grau de
sofisticação, apresentar um quadro completo do mundo. Todavia,
os aparatos midiáticos mistificam esse processo de transmissão
de informações, impondo ao público receptor uma determinada
maneira de compreensão da realidade. Nesse sentido, Maxwell
McCombs pontua: “Os veículos de comunicação são mais do
que simples canal de transmissão dos principais eventos do dia.
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A mídia constrói e apresenta ao público um pseudoambiente
que significativamente condiciona como o público vê o mundo”
(MCCOMBS, 2009, p. 47). Dessa maneira, a estrutura midiática
hegemônica escamoteia o fato de que toda tentativa de se
reproduzir e descrever a realidade circundante sempre será um
processo epistemologicamente redutor e até mesmo falho do
ponto de vista técnico. Segundo Nelson Traquina,
Com a profissionalização dos jornalistas ao
longo dos séculos XIX e XX, foram estabelecidos
valores como a objetividade, a independência, a
verdade, bem como a elaboração de normas que
constroem os contornos de representações
profissionais bem definidos do ‘bom’ ou ‘mau’
jornalista. A ideologia jornalística e a sociedade
fornecem igualmente um ethos que define para os
membros da comunidade jornalística que o seu
papel social é de informar os cidadãos e proteger
a sociedade de eventuais abusos do poder, ou seja,
toda a concepção do jornalismo enqu anto
contrapoder. O ethos jornalístico tem sido
determinante na elaboração de toda uma mitologia
que encobre a atividade jornalística e que não só
marca os próprios profissionais do campo
jornalístico como também tem sido projetado no
imaginário coletivo da própria sociedade
(TRAQUINA, 2003, p.123).
Quando usamos a linguagem ou qualquer sistema simbólico
para representar ou manipular a realidade, podemos fazer grandes
ações, mas nunca representar o mundo percebido de maneira
efetivamente clara. O poder representativo da linguagem nunca
é capaz de expressar adequadamente aquilo que se pretende
pronunciar social mente, de m anei ra que toda interação
comunicativa é naturalmente falha, imprecisa semanticamente.
Cabe nesse momento aproveitarmos a reflexão nietzschiana:
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A essência plena das coisas nunca é apreendida.
As nossas expressões verbais nunca esperam que a
nossa percepção e nossa experiência nos tenham
fornecido sobre a coisa um conhecimento
exaustivo e, de algu m modo, respeitável
(NIETZSCHE, 1999, p.45).
A notícia midiática nada mais é que uma construção
“intelectual” como qualquer outra, de uma sucessão de escolhas
ideológicas, arbitrárias e afetivas, de um conteúdo de editoriais
mascarados muitas vezes pela postulada objetividade jornalística.
Heródoto Barbeiro considera que
Com as ferramentas de comunicação acessíveis
a todos, o receptor de mensagem de ontem é um
formador de opinião hoje; é capaz de transportar
notícias para todo lado, e não tem necessariamente
nenhum compromisso com as regras jornalísticas.
Escreve e pronto. Uma multidão está atrás de
novidades e pouco preocupada com a veracidade
do que está sendo informado (BARBEIRO, 2010,
p. 17).
As convergências tecnológicas informacionais apenas
ampliaram as facilidades de trocas comunicacionais entre os
indivíduos, quebrando razoavelmente as relações hegemônicas
estabelecidas pela mídia corporativa, que edita a imagem de
mundo conforme as suas próprias conveniências ideológicas.
Nesse contexto, Luiz Costa Pereira Júnior destaca: “Expor o
acontecimento significa, antes de mais nada, escolher episódios,
aproximar eventos dispersos, privilegiar um incidente em lugar
do outro” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p. 19). Por conseguinte,
dentre uma série de acontecimentos diários, ocorre uma seleção
operada pelos comunicadores, obedecendo a critérios de
aceitabilidade coletiva, em especial temas que atrairão a atenção
dos receptores, tais como as notícias acerca de crimes hediondos,
escândalos políticos, falcatruas econômicas, banalidades da vida
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de uma celebridade, dentre possibilidades afins. Caio Túlio Costa
diz: “Como os fatos são infinitos, cabe estabelecer uma seleção
a fim de se dar preferência àqueles que merecem ser recordados
ou conhecidos. Seleção pressupõe hierarquização” (COSTA,
2009, p. 44). Nessas condições, como é possível haver uma
verdade plena no processo discursivo operado pelo discurso
jornalístico? Antes há apenas um recorte técnico da realidade
conforme as conveniências dos detentores dos meios de produção
do sistema informativo. José Arbex Jr. afirma que
A mídia cria diariamente a sua própria narrativa
e a apresenta aos telespectadores – ou aos leitores
– como se essa narrativa fosse a própria história
do mundo. Os fatos, transformados em notícia,
são descritos como eventos autônomos, completos
em si mesmos. Os telespectadores, embora
embalados pelo “estado hipnótico” diante da tela
de televisão, acreditam que aquilo que veem é o
mundo em estado natural, é o próprio mundo
(ARBEX JÚNIOR, 2001, p.103).
Sem o estabelecimento de uma relação de credibilidade do
público receptor em relação ao seleto grupo de emissores,
sofreríamos o risco de sequer estabelecermos as mais elementares
relações comunicativas na experiência cotidiana. Tal como
apontado por Daniel Cornu,
Observador do notável, o jornalista assume-se
como intérprete da atualidade, entendida como o
momento presente da realidade. Não tem um
acesso direto ao cerne dessa realidade presente. Não
pode apreendê-la na sua verdade profunda, que
lhe escapa. Deve tentar decifrá-la através dos
fragmentos de que não pode ter conhecimento:
acontecimentos vividos ou relatados, atas,
discursos. A complexidade, as contradições, as
incoerências, as lacunas da atualidade – esta
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apresenta-se como um tecido esburacado – são
evidentes. Decifrar a atualidade é enfrentar um
texto vag o, opaco, plural, que se furta a toda
expressão unívoca (CORNU, 1999, p. 332-333).
O jornalista, proclamado na estrutura social moderna como
o grande intérprete dos acontecimentos do mundo, amplifica assim
o seu prestígio profissional junto ao público, adquirindo influência
carismática na moldagem subjetiva dos receptores-consumidores
de informações. Pedro Gilberto Gomes postula que
O profissional da comunicação é, de certa
maneira, o hermeneuta da realidade. Portanto, o
sucesso
de seu
trabalho depende,
fundamentalmente, da capacidade que ele tiver para
situar-se no horizonte do outro, tanto para
compreendê-lo como para transmitir-lhe a sua
mensagem (GOMES, 2006, p. 72).
Nessas condições, o jornalista atua publicamente como uma
espécie de sacerdote secularizado em uma sociedade que, apesar
de seu desenfreado materialismo e de subsequente degradação
da experi ênci a reli giosa, continua sectária de discursos
universalizantes da tradição moral cristã. O jornalista apresenta
publicamente o carisma de santidade que pretensamente o imiscui
de qualquer traço de mentira nos seus processos discursivos.
Conforme enfatiza Juremir Machado da Silva,
Mergulhado numa carreira, o jornalista vive
para o mercado coberto com o manto cósmico
de missionário da informação e da Verdade.
Objetivo é o jornalista que reconhece e explicita as
suas escolhas. Jornalismo ideal (MACHADO DA
SILVA, 2000, p. 37).
A atividade jornalistica, na sociedade secularizada do
capitalismo tardio, se converte em uma nova vivência religiosa.
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Paul Virilio, por sua vez, apresenta um comentário contundente
acerca da construção imaginária da imagem de “santidade moral”
do jornalista:
Depois de alguns milênios, nos damos conta
de que a nossa época, apesar de alheia à religião,
não deixou de dotar seus meios de comunicação
com os atributos ameaçadores da teocracia e que
a milagrosa credibilidade da mídia – hoje
questionada – não era talvez mais do que um dos
últimos avatares de uma infalibilidade outrora
sobre-humana; no início do século XX, os grandes
jornais americanos se apresentavam menos como
fontes de informação do que como “palavras do
Evangelho” e censores dos domínios social,
econômico ou político (VIRILIO, 1996, p. 31).
O acentuado grau de confiabilidade projetado pela esfera
pública na atividade jornalística concede aos profissionais do
ramo a “aura” de precisão, i nfal ibidade e honesti dade
inquestionável em seus procedimentos; mais ainda, acredita-se
que o jornalista detém o conhecimento autêntico de diversos
ramos do saber, talvez em nível mais elevado do que os
pesquisadores acadêmicos, circunstância que revela a mistificação
social em torno da profissão do comunicador. Florence Aubenas
e Miguel Benasayag criticam esse dispositivo ideológico ao
afirmarem que
Entre os tabus da profissão, há u m
particularmente resistente. Ninguém jamais ouvirá
um jornalista dizer: “não sei”. Ou : “não
compreendo”. A imprensa em parte construiu sua
legitimidade com base nessa promessa de um
mundo enfim explicável, que possa ser apreendido
de uma só vez, linear (AU BENAS &
BENASAYAG, 2003, p. 51).
Percebemos então nessa perspectiva “soteriológica” a
presença de elementos cristãos na configuração do ofício
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jornalístico de expressão da verdade do discurso, pois assim o
indivíduo pode conduzir a sua vida no reto caminho da justiça,
da ordem e da moral estabelecida, mesmo que a revelação da
verdade nos seja existencialmente dolorosa, talvez mesmo
insuportável; a verdade se torna muito mais um requisito de ordem
moral do que propriamente uma necessidade gnosiológica que
nos forneça meios para agirmos com precisão no cotidiano. Walter
Lippmann afirma que
Esta insistente e antiga crença de que a verdade
não é obtida, mas inspirada, revelada, fornecida
gratuitamente, aparece plenamente em nossos
preconceitos econômicos como leitores de jornais.
Esperamos que os jornais nos forneçam a verdade,
mesmo q ue ela nos seja desvantajosa
(LIPPMANN, 2008, p. 276).
A busca pela verdade discursiva é originada por uma
necessidade humana de obtenção de conforto moral diante da
instabilidade de uma realidade em processo intrínseco de devir.
Conforme enunciado por Nietzsche,
Num sentido semelhantemente limitado, o
homem também quer apenas a verdade. Ele quer
as consequências agradáveis da verdade, que
conservam a vida; frente ao puro conhecimento
sem consequências ele é indiferente, frente às
verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras
ele se indispõe com hostilidade, inclusive. E mais
até: como ficam aquelas convenções da linguagem?
São talvez produtos do conhecimento, do sentido
da verdade: as designações e as coisas se recobrem?
Então a linguagem é a expressão adequada a todas
as realidades? Apenas por esquecimento pode o
homem alguma vez chegar a imaginar que detém
uma verdade no grau ora mencionado
(NIETZSCHE, 2007, p. 30).
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Uma vez que a noção de verdade, probl em atizada
rigorosamente, apresenta-se axiologicamente fluida, como
podemos então sustentar tecnicamente uma atividade profissional
que advoga com o precei to deontol ógico a transmi ssão
comunicativa da verdade através de informações, notícias e
discursos afins? Podemos ainda afirmar que somente a contínua
investigação intelectual acerca da realidade permite ao indivíduo
ampliar as suas perspectivas gnosiológicas em relação ao seu
mundo circundante. Segundo Juremir Machado da Silva,
O sábio, de vocação socrática, sabe que não sabe.
O jornalista continua a apostar na verdade definitiva.
O cientista busca a verdade como ideal-norteador.
O jornalista, como um missionário. Adversário do
intelectualismo que complica, o jornalismo convertese em aliado da falsa verdade que simplifica
(MACHADO DA SILVA, 2000, p. 39).
Nessas condições, como um discurso especificamente
dogmático e chancelado pelo status social de charme e sucesso
permite uma contribuição autêntica para o estabelecimento do
bem público? Muitos estudantes de Comunicação Social, ao invés
de se dedicarem com afinco ao estudo rigoroso dos diversos
discursos teóricos acerca das práticas comunicativas, ofício que
lhes permitiria compreender adequadamente os menandros do
ofício jornalístico, preferem se alhear desta atividade, ansiando
a entrada no mercado de trabalho de maneira muitas vezes crua,
para que possam assim se tornar seguidores dos seus “ídolos
criadores de notícias”. Costuma-se criticar o excesso de teoria
na formação do estudante de Comunicação Social, mas os
discursos teóricos sobre a atividade comunicacional nascem da
universalização sistemática das práticas profissionais e
observações rigorosas das mesmas.
A organização da vida civilizada associou historicamente o
poder político ao discurso detentor da verdade, impondo de forma
moralista o seu pronunciamento social. A mídia corporativa,
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quando comprometida com os poderes hegemônicos do capital
integrado dos especuladores financeiros e na defesa desses
interesses, fabrica os acontecimentos em prol da configuração
da construção imaginária da realidade que visa divulgar para a
m assa consumi dora de inform ações, i mpedindo-a de
compreender com precisão as circunstâncias efetivas da vida
cotidiana. Para Umberto Eco,
A comunicação transformou-se em indústria
pesada. Quando o poder econômico passa de
quem tem em mãos os meios de produção para
quem detém os meios de informação que podem
determinar o controle dos meios de produção,
também o problema da alienação muda de
significação (ECO, 1984, p. 166).
No mundo tecnocrático das práticas comunicativas, o
compromisso moral com a transmissão da “verdade” é algo
lucrativo para as corporações, pois assim se cria uma publicidade
positiva acerca do papel de efetiva dedicação social do veículo
comunicacional para com a esfera pública. Para Caio Túlio Costa,
não há jornalismo, desde seu nascimento enquanto indústria, que
não seja simultaneamente prestação de serviço público e negócio
(COSTA, 2009, p. 44). A desonestidade jornalística surge quando
o veículo de comunicação transmite publicamente a noção de
que as suas atividades nascem de uma disposição de neutralidade
polí tica e i deol ógi ca di ante das forças sociai s, quando
efetivamente a partir dessa falácia mascaram os seus próprios
interesses políticos e ideológicos, gerando submissão pública aos
seus processos discursivos. Luiz Costa Pereira Júnior é enfático
nessa questão ao afirmar que
O pecado ético do jornalista não é trazer
consigo convicção e talvez até preconceitos. Isso
todos temos. O pecado é não esclarecer para si e
para os outros essas suas determinações íntimas, é
escondê-las posando de “neutro”. O pecado ético
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do jornalista, em suma, é falsear a sua relação com
os fatos, tomando parte na impostu ra da
neutralidade (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p. 38).
Nesses termos, a defesa do ideário objetivista do discurso
jornalístico promove a mistificação das técnicas da comunicação
social, fazendo do profissional da notícia uma espécie de canal
puro, pelo qual a verdade se manifesta sem qualquer interferência
externa. Desse modo, o papel de discrição pessoal apresentado
publicamente pelo comunicador social revela-se uma atitude
embusteira, pois nasce de uma necessidade de se transmitir para
os receptores uma imagem falseadora de imparcialidade,
tecnicamente inexistente, pois todo discurso necessariamente é
processado pelo canal difusor conforme sua própria experiência
de mundo. Ignacio Ramonet afirma que
Enquanto se entrechocam gigantes que pesam
vários bilhões de dólares, como poderia sobreviver
uma informação independente? Num mundo cada
vez mais pilotado por empresas colossais que
obedecem à lei do business e exclusivamente à
lógica comercial, e onde tantos governos parecem
escapar sofrivelmente às mutações em curso, como
ter certeza de que não somos manipulados pela
mídia? (RAMONET, 2010, p. 131).
Podemos afirmar categoricamente que a Comunicação Social
em suas instâncias corporativas exerce um efeito deletério sobre
a esfera pública quando o jornalista se torna instrumento de um
sistema de poder que se aproveita da confiabilidade depositada
pela popul ação em seu di scurso para lhe mani pular
ideologicamente e politicamente em nome da pretensa
objetividade jornalística. Para Perseu Abramo,
Recriando a realidade à sua maneira e de acordo
com os seus interesses político-partidários, os
órgãos de comunicação aprisionam os seus leitores
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nesse círculo de ferro da irrealidade real, e sobre
ele exercem todo o seu poder (ABRAMO, 2003,
p. 47).
Cabe então a pergunta: de que forma então a estrutura
midiática constrói a experiência de mundo da forma tal como é
apresentada pelos veículos informativos de massa? Philippe
Breton diz que
A manipulação apoia-se numa estratégia central,
talvez única: a redução mais completa possível da
liberdade de o público discutir ou de resistir ao
que lhe é postulado. Essa estratégia deve ser
invisível, já que seu desvelamento indicaria a
existência de uma tentativa de manipulação
(BRETON, 1999, p. 20).
Uma vez que é impossível haver decodificação de
informações sem a interferência da visão de mundo e do jogo
de linguagem próprio do jornalista, como tal embuste
ideológico se perpetua na sociedade de informação? Talvez a
própria massa consumidora de informações prefira se manter
docilmente no véu de ignorância e, por conseguinte, no estado
de menoridade intelectual tal como definida por Kant em seu
postulado sobre a ideia de Esclarecimento:
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do
homem de sua menoridade, da qual ele próprio é
culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer
uso de seu entendimento sem a direção de outro
indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dele não se encontra na falta
de entendimento, mas na falta de decisão e
coragem de servir-se de si mesmo sem a direção
de outrem. Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso
de teu próprio entendimento, tal é o lema do
esclarecimento [Aufklärung]. A preguiça e a covardia
são as causas pelas quais tão grande parte dos
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homens, depois que a natureza de há muito os
libertou de uma direção estranha, continuem no
entanto de bom grado menores durante toda a
vida (KANT, 2005, p. 63-64).
Comparando o ideário de nossa sociedade existencialmente e
intelectualmente vazia com o projeto iluminista tal como
postulado por Kant, podemos afirmar que vivemos na era da
preguiça mental. Enrique Rojas destaca que “o leitor procura a
coisa leve, suave, porque não tem tempo e muito menos
inquietudes. Faltam também o hábito de leitura, a concentração
necessária, coisas que não são adquiridas espontaneamente”
(ROJAS, 1996, p. 77). No contexto da sociedade tecnocrática
do qual fazemos parte, podemos afirmar que a atividade
jornalística, caso não seja regulada rigorosamente por um aparato
crítico, motiva também a manutenção individual ao “estado de
menoridade”, pois a esfera pública perde qualquer referencial
preciso em relação ao real, tornando-se facilmente manipulável
pelos detentores do poder de construção e elaboração de
informações. Para Juremir Machado da Silva
A estratégia cínica de “dar ao público o que ele
quer” esconde, como se sabe, a impossibilidade
desse público de escolher outra coisa. Em síntese,
ele é formado para escolher o que escolhe. Nesse
sentido, é responsável por esse sistema que impede
a formação de cidadãos. A estética da aberração e
a hegemonia do vulgar implicam justamente a
desconstru ção do cidadão em favor do
consumidor (MACHADO DA SILVA, 2000, p.
58).
Pelo fato de vivermos em uma estrutura social cada vez mais
dependente da maximização do tempo disponível dos indivíduos,
o ato de se pensar por conta própria se torna, de acordo com a
ideologia pragmática vigente, uma grande perda de tempo. Por
conseguinte, é preferível que alguém, mais precisamente o
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jornalista, pense por cada um de nós, mantendo-nos assim em
nossa confortável heteronomia. Perseu Abramo argumenta que
Depois de distorcida, retorcida e recriada
ficcionalmente, a realidade é ainda assim dividida
pela imprensa em realidade do campo do bem e
realidade do campo do mal, e o leitor/espectador
é induzido a acreditar não só que seja assim, mas
que assim será eternamente, sem possibilidade de
mudança (ABRAMO, 2003, p. 35).
A dita objeti vi dade discursiva, portanto, revel a- se,
primeiramente, ilusória e, caso ela seja escamoteada e aproveitada
como mecanismo de persuasão pública, torna-se instrumento
de dominação sobre a coletividade receptora de informações,
que passa a confundir os simulacros jornalísticos, ou seja, os
recortes arbitrários da “realidade”, com esta. Conforme aponta
Luiz Costa Pereira Júnior,
Essa objetividade aparente será ritualizada,
tornada simulacro, um pacto de leitura que produz
um efeito de real, porque esconde o arbitrário das
escolhas que lhe dão origem, tenta dar conta de
uma expectativa de objetividade construída pela
relação entre veículo e público (PEREI RA
JÚNIOR, 2006, p. 56).
Uma vez que todo discurso é enunciado por um sujeito dotado
de valorações próprias e interesses, torna-se impossível que ele
não sofra algum tipo de manipulação, que por si só não pode ser
avaliada como boa ou má, do ponto de vista da conscientização
pública. Para Hans Magnus Enzensberger,
Assim, pois, toda u tilização dos meios
pressupõe uma manipulação, os mais elementares
processos de produção, desde a escolha do próprio
meio, passando pela gravação, pelo corte, a
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sincronização e a mixagem, até chegar à
distribuição, constituem intervenções do material
existente. Portanto, escrever, filmar ou emitir sem
manipulação não existe. Por conseguinte, a questão
não é se os meios são manipulados ou não, mas
quem manipula os meios (ENZENSBERGER,
1979, p. 67).
Por conseguinte, qualquer uso dos dispositivos midiáticos
pressupõe, portanto, a existência da manipulação humana, pois
os procedimentos mais elementares da produção comunicativa,
desde a escolha do suporte midiático, passando pela gravação,
pelo processo de corte, de mixagem e mesmo os pontos
estratégicos de distribuição pública, se caracterizam como
intervenções particulares nos materiais disponíveis que serão
difundidos socialmente.
A configuração ideol ógica da presença dos meios de
com unicação na ci vi li zação industri al se caracteriza
principalmente pelo esforço em domesticar o potencial criativo
de cada pessoa, confundindo sua percepção precisa da realidade
circundante através de hierarquização arbitrária da agenda pública
cotidiana, onde o social efetivo de interesse coletivo e o
espetacular alienante se fundem em um amálgama que embota o
discernimento do receptor de informações. Na própria dinâmica
corporativa se manifesta também essa relação comunicacional
ideologicamente distorcida, ao impor para o empregado o
cumprimento de metas que exaurem a sua saúde, de maneira
que o ritmo estressante do trabalho se infiltra na sua própria
vida particular; através da virtualização comunicacional, todo
indivíduo não pode mais se imiscuir de sua submissão aos
imperativos invasivos dos seus superiores. Lícia EggerMoellwald comenta que
O aprendizado a respeito da importância de
manter meios de comunicação eficientes, somados
às novas tecnologias de informação, dá a
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possibilidade de as empresas ampliarem seu ramo
de interferência e influência na vida de seus
empregados. Isso é feito de tal forma que muitos
destes não conseguem estabelecer a diferença entre
a vida pessoal e a vida profissional (EGGERMOELLWALD, 2011, p. 4).
D e um m odo geral, a ampli ação das possi bi li dades
comunicacionais no advento dos aparatos eletrônicos não
significou o estabelecimento de maior horizontalidade nos
processos de sociabilização, mas acima de tudo a oportunidade
de indivíduos narcísicos se pavonearem publicamente em
performances editadas espetacularmente tendo-se em vista a
conquista de seguidores e, por conseguinte, criando-se um
consenso unilateral, circunstância que nada mais significa do que
a transposição das técnicas hegemônicas de supressão do debate
público para o nível das relações microssociais. Habermas afirma
que “A despoli ti zação da m assa da população e o
desmoronamento de uma opi ni ão públi ca pol ítica são
componentes de um sistema de dominação que tende a eliminar
da discussão pública as questões práticas” (HABERMAS, 1994,
p. 122).
Por conseguinte, apesar de postular uma razão social de auxiliar
da esfera pública no processo de difusão de informações, a
estrutura midiática, quando utilizada para fins alheios ao
progresso do bem comum na sociedade, gera apenas a perda de
qualquer referencial concreto do receptor em relação ao seu
pequeno mundo, cada vez mais reduzido ao formato padronizado
e distribuído pelo sistema midiático. Conforme a indagação de
John B. Thompson, como é viver num mundo cada vez mais
mediado de formas mediadas de informe e comunicação? Que
acontece com o self num mundo onde a experiência mediada
desempenha um papel crescente e substancial nas vidas diárias
dos indivíduos? (THOMPSON, 2005, p. 201).
Cabe a cada indivíduo elaborar, mediante o conjunto de
informações recebidas pela estrutura midiática, a sua própria
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compreensão acerca dos acontecimentos sociais, sem qualquer
dependência da autoridade legitimadora outorgada pelo discurso
midiático que, em sua configuração corporativa, se sustenta pela
axiologia da oficialidade e da univocidade. Nesse quesito, a
colocação de Juremir Machado da Silva é perscrutadora das
falácias da mídia hegemônica no processo de difusão de noticias:
O jornalismo continua a apoiar-se na mitologia
do serviço público, do interesse social, da verdade
e mesmo da objetividade, da neutralidade e da
imparcialidade. Nada mais do que mercadorias
reembaladas pelos departamentos de marketing
(MACHADO DA SILVA, 2006, p. 94).
O funcionalismo midiático revela-se, assim, um mecanismo
falseador das relações de poder entre os detentores da informação
e a esfera pública consumidora de notícias. Essa situação,
entretanto, poderia ser atenuada, bastando-se que houvesse nos
quadros jornalísticos indivíduos comprometidos com o progresso
cultural da sociedade e com o exercício do debate público de
ideias, em vista do estímulo ao ato de autonomia de pensamento
e percepção da realidade em cada receptor a partir do
estabelecimento de uma relação horizontal que suprima o
autori tari sm o di scursi vo. Com o julga Hans Magnus
Enzensberger,
A diferenciação técnica entre emissor e receptor
reflete a divisão social do trabalho entre produtores
e consumidores, divisão esta que adquire uma
significação política especial no campo da indústria
da consciência (ENZENSBERGER, 1979, p. 45).
Dessa maneira, a atividade jornalística, considerada sob uma
perspectiva “ideal”, seria capaz de exercer um grande estímulo
para a capacidade reflexiva do ser humano; este, ao se deparar
com as informações transmitidas pelos profissionais da notícia,
não transferiria para outrem a sua capacidade pessoal de pensar,
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vivendo sob um regime heterônomo de tomadas de decisão, mas
pensaria por si mesmo, mediante os seus próprios procedimentos
cognitivos e suas valorações pessoais singulares.
Uma vez que na organização social do capitalismo tardio a
experiência de mundo foi paulatinamente substituída pelo
processo de decodificação de informações operado pelos meios
de comunicação de massa, é de suma importância que reflitamos
sobre os diversos usos possíveis dos dispositivos jornalísticos,
principal fonte de divulgação de informações em nossa atual
conjuntura ideológica. Para Altamiro Borges,
Na fase do tsunami neoliberal, a defesa do
‘deus-mercado’ ficou mais depravada e a mídia
foi fundamental para legitimar os dogmas do
desmonte do Estado, da nação e do trabalho,
transformando–os no discurso hegemônico. Não
há qualquer preocupação com o conteúdo da
mensagem, com sua qualidade. A única obsessão
é com a lucratividade. (BORGES, 2009, p. 21).
Muitos indivíduos acreditam piamente que o discurso
jornalístico cotidiano apresenta “a verdade tal como ela é” e
sequer duvidam que essa dita “verdade” é proveniente de um
processo de edição técnica realizada pelo “arúspice dos fatos”,
isto é, o jornalista. Assim, urge que a esfera pública conheça de
maneira precisa como funciona o mecanismo de produção da
verdade na comunicação e o efetivo papel social da atividade de
difusão de informações e notícias, de modo a se estabelecer uma
genuína relação de horizontalidade com os grandes veículos
comunicativos. Muniz Sodré salienta que
Se aceitarmos como vital a experiência da
realidade criada pelos dispositivos técnicos e
mercadológicos da comunicação, segue-se que os
seus efeitos de convencimento têm uma
especificidade não necessariamente afinada com a
razoabilidade tradicional (SODRÉ, 2006, p. 43).
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Quem detém os aparatos comunicativos detém também o
poder ideológico sobre a esfera social. Cabe então aos intérpretes
críticos da teoria da comuni cação que se apresentem
publicamente como indivíduos cônscios de seu compromisso
intelectual com a sociedade e demonstrem a série de lugares
comuns que constituem o universo normativo das práticas
jornalísticas, como forma de estimularem o desenvolvimento de
uma consciência seletiva e crítica acerca daquilo que é assimilado
diari am ente na dedi cação passiva do cul to aos “fatos
jornalísticos”. Destrói-se assim a relação religiosa estabelecida
pelos receptores-consumidores para com os “sacerdotesjornalistas”. Tal como destacado por Deleuze e Guattari,
Os jornais, as notícias, procedem por
redundância, pelo fato de nos dizerem o que é
“necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem
não é informativa nem comunicativa, não é
comunicação de informação, mas – o que é
bastante diferente – transmissão de palavras de
ordem, seja de um enunciado a outro, seja no
interior de cada enunciado – uma vez que um
enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no
enunciado (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.
16-17).
O discurso jornalístico não substitui a capacidade singular de
cada indivíduo interpretar e decodificar os acontecimentos
cotidianos conforme os seus próprios critérios axiológicos;
todavia, as corporações midiáticas não estão interessadas em
desmistificar publicamente os seus dispositivos jornalísticos, uma
vez que o controle da produção de informações representa a
conversação do poder de formação de opinião e consenso acerca
dos acontecimentos sociais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste texto analisamos alguns aspectos da fabricação
de consenso social operada cotidianamente pelos meios de
comunicação de massa e seus efeitos sobre a consciência de uma
esfera pública cada vez mais despol itizada e submetida
ingenuamente aos ditames comerciais dos grupos midiáticos
corporativos hegemônicos na ordem capitalista vigente. Uma vez
que a base produtora de informação se encontra atualmente
presente nesses aparatos tecnocráticos da mídia corporativa, é
tarefa fundamental a desmistificação dos dispositivos ideológicos
subjacentes nos mesmos, gerando-se assim uma paulatina
transformação das bases sociais da produção dos discursos e a
consequente ampliação da frequência cognitiva dos receptores
sociais.
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ÉTICA CONTEMPORÂNEA NAS
ORGANIZAÇÕES E CONSCIÊNCIA
SUSTENTÁVEL
LINCOLN PONTUAL
INTRODUÇÃO
“Os problemas da humani dade devem ser
resolvidos não por um gigante ou por um grupo social,
mas por uma mudança de mente, uma geração de seres
humanos sem fronteiras que pensem como família
humana”. (Augusto Cury)
A sustentabilidade do sucesso impõe riscos altíssimos – não
é um exagero nos preocuparmos com o futuro, nosso sucesso
tornou-se uma grande armadilha, estamos esgotando nossos
recursos naturais rapidamente. A agricultura tem limites para
aumentar sua produtividade. Já pensamos o que aconteceria se
tivermos um ano de seca mundial, como já ocorreu em alguns
períodos da historia? Seria um desastre inimaginável! A falta de
alimento em um dia provocaria conflito nas ruas no outro. Sempre
foi assim na história. (CURY, 2010).
Universidades, templos religiosos, supermercados torna-se
iam praças de guerra. Já pensaram se as estações falharem? E se
o aquecimento global aumentar em níveis previstos pelos
cientistas e dirigentes das nações? (CURY, 2010).
Os dinossauros dominaram este belo planeta azul por mais
de cem milhões de anos e esse domínio não casou dano à
natureza, enquanto o ser humano está dominando a terra há
apenas alguns milhares de anos e já a está destruindo. Os
dinossauros eram grandes no tamanho, mas pequenos em
ambição; nós, humanos, somos pequenos em tamanho, mas
grande em ambição. O sucesso incontestável do Homo sapiens , a
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única espécie pensante em meio a milhões de outras, tornou-se
nossa maior emboscada, tanto para nossa própria sobrevivência
quanto para a da natureza. O intelecto que nos libertou para
produzirmos a arte de pensar foi o que também nos aprisionou.
O pensamento foi uma arma poderosíssima que usamos contra
nós mesmos. É a primeira vez que uma espécie domina o planeta
tão rápido e destrói mais rápido ainda. (CURY, 2010)
A prática da ética encontra muitos obstáculos e armadilhas.
Práticas financeiras, processos de negócio, comportamentos
gerenciais, políticas de relacionamento com clientes, busca
incessante de resultados, comportamentos sociais mais flexíveis,
tudo parece tornar sua prática objetiva algo nebuloso e complexo.
A sensação que nos dá, olhando a nossa volta, é de que é
praticamente impossível vencer nos negócios sem “fechar os
olhos”, se abster de envolver ou praticar algum delito menor, de
caráter ético. Somos uma nação com uma postura muito flexível
em rel ação aos pri ncípios éticos, passiva, que apenas
ocasionalmente, em “sístoles e diástoles” consecutivas,
provocamos “processos de conscientização e limpeza”. Mas
infelizmente tudo acaba no capo das ideias sem objetivos
concretos. (BENIANINO, 2003).
ÉTICA CONTEMPORÂNEA NAS ORGANIZAÇÕES
A valorização da autonomia do sujeito moral leva à busca de
valores subjetivos e ao reconhecimento do valor das paixões, o
que acarreta o individualismo exacerbado e a anarquia dos
valores. Resul ta ainda na descoberta de várias situações
particulares com suas respectivas morais: de jovens, de grupos
religiosos, de movimentos ecológicos, de homossexuais, de
feministas, e assim por diante.
Essa divisão leva ao relativismo moral, que, sem fundamentos
mais profundos e universais, baseia a ação sobre o interesse
imediato. É dentro dessa perspectiva que o filósofo inglês
Bertrand Russell (1872-1970) afirma que a ética é subjetiva, não
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contendo afirmações verdadeiras ou falsas. Defende, porém, que
o ser humano deve reprimir certos desejos e reforçar outros se
pretende atingir a felicidade ou o equilíbrio. Como reação a essas
posições, o novo iluminismo, representado por Jurgen Habermas
(1929-), desenvolve a Teoria da Ação Comunicativa, dentro da
qual fundamenta a ética discursiva, baseada em diálogo, por
sujeitos capazes de se posicionar criticamente diante de normas.
É pelo uso de argumentos racionais que um grupo pode chegar
ao consenso, à solidariedade e à cooperação.
Nestes tempos de globalização e reestruturação competitiva,
as empresas que se preocupam com a ética e conseguem
converter suas preocupações em práticas efetivas, mostram-se
mais capazes de competir com sucesso e conseguem obter não
apenas a satisfação e a motivação dos seus profissionais, mas
também resultados compensadores em seus negócios.
Ética, enquanto filosofia e consciência moral, é essencial à
vida em todos os seus aspectos, seja pessoal, familiar, social ou
profissi onal . Assi m, enquanto profissi onai s e pessoas,
dependendo de como nos comportamos, por exemplo, em nossas
relações de trabalho, podemos estar colocando seriamente em
risco nossa reputação, nossa empresa e o sucesso em nossos
negócios.
A sobrevivência e evolução das empresas e de seus negócios,
portanto, estão associadas cada vez mais a sua capacidade de
adotar e aperfeiçoar condutas arcadas pela seriedade, humildade,
justiça e pela preservação da integridade e dos direitos das
pessoas (FILHO, 2001).
Segundo Pedro de Souza Filho na ética das organizações
moderna, construiriam Ganhos e Benefícios:
· Possibilidades de construir uma cultura ética
profissional e empresarial verdadei ra e
apropriada aos novos tempos;
· Harm oni a e equil íbri o dos i nteresses
individuais e institucionais;
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· Satisfação e motivação dos colaboradores e
melhoria da sua qualidade de vida integral;
· Fortalecimento das relações da empresa com
todos os agentes envol vi dos di reta ou
indiretamente com as suas atividades;
· Melhoria da imagem e da credibilidade da
empresa e de seus negócios;
· Melhoria da qual idade, resul tados e
realizações empresariais.
A RELEVÂBCIA DOS ATIVOS INTANGÍVEIS
Desponta para olhares prevenidos a importância estratégica
que os ativos imateriais adquiriram na sociedade da informação
e na economia do conhecimento, de fato, não se define o valor
das empresas apenas e tão-somente pelo peso de seus ativos
materiais – os recursos financeiros, instalações físicas e os
equipamentos. Avaliam-se também os ativos intangíveis: as
competências desenvolvidas – o patrimônio intelectual, as
habilidades do pessoal, os segredos do negócio, as informações
confidenciais, bem como as marcas, as patentes, a reputação e a
imagem da empresa (SROUR, 2005).
Numa economia capitalista, qual é o objetivo dos negócios?
Gerar valor econômico e agregá-los aos ativos. Para tanto, os
empreendedores devem desenvolver produtos ou serviços que
atendem a necessidades de mercado e sejam solvíveis. Somente
assim haverá realização de lucros. Caso os artigos ou serviços
sejam excelentes, porém caros demais, os clientes potenciais
tenderão a se afastar; ao revés, caso os artigos ou serviços sejam
inadequados, ainda que tenham preços acessíveis, os clientes
também tenderam a não adquiri-los. Nessas circunstâncias, o
capital investido – capital de risco – será perdido. De outra parte
não basta que o empreendedor desenvolva valores de troca
atraentes e economicamente viáveis. Precisam tentar por outro
lado crucial: os clientes não compram bens e serviços pelos
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mesmos atributos, qualidades ou preços; compram ao mesmo
tempo as promessas de benefícios que eles embutam ou as
expectativas que os acompanham. Dito de outra forma, eles
com pram os produtos ou serviços pelos seus atributos,
qualidades ou materiais que preenchem, mas também pelas
associações imaginárias que satisfazem – emoções despertadas,
estilos de vida propalados, sonhos provocados, valores culturais
expressos, prestígios almejados. Não são comprados em estado
bruto, senão conjugados com elaboração mentais, fabulações que
seus consumidores se aprazem em distinguir e reconhecer. Os
clientes compram e pagam mais pelas reputações, imagens e
marcas (SROUR, 2005).
Sergio Leme Benianino questiona que a ética pode ser
dramaticamente influenciada, em sua análise, por inúmeros
fatores. Esses fatores terminam por afetar a racionalidade de
nossas análises. Dentre esses, ele cita alguns mais frequentes:
• Natureza do Negócio (No mercado atual, a empresa
apresenta práticas não recomendáveis): cartéis, orquestração de
preços, métodos flexíveis e criativos de transferência de lucros,
nível de corrupção da atividade, etc.;
• Ambiente Sociocultural (Determinadas práticas e valores
culturais, de regiões: geográficas, por exemplo, afetam o nível de
rigor quanto a práticas “imorais”);
• Sistema de Remuneração (Os sistemas em prática estimulam
altos níveis de ambição, que podem se tornar perigosos sem o
equilíbrio emocional necessário);
• Valores da Liderança (Quão preocupada está de fato a alta
liderança e os grupos de poder na empresa com a questão?);
• Dilemas Aparentes (Subornar um fiscal corrupto e liberar a
peça na alfândega para). Acelerar a produção ou perder
faturamento e prejudicar os acionistas e colaboradores?
• Falta de Conhecimento do Assunto (“Argumentos do tipo:
(...) mas a lei permite.”, quanto a dimensão moral e a um reflexo
legal). (BENIANINO, 2003)
Diante desses dilemas atuais na ética contemporânea das
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organizações precisamos abordar reflexões sobre um dos maiores
desafios de nossa época.
CONSCIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
NAS ORGANIZAÇÕES
O consumismo insustentável tem de ser abolido para que a
terra sobreviva. Segundo o Worldwatch Institute, um exame nas
rotinas dos membros da “classe consumidora Global” mostra
cada situação nas quais é possível consumir de forma mais sensata
e sustentável. (Revista Planeta/edição – agosto 2010).
Algumas perguntas que estão mais do que nunca, na ordem
do dia: você precisa mesmo levar todas as suas compras de
supermercados em sacolas plásticas? É indispensável ter na
garagem aquele utilitário esportivo tão importante quanto
gastador? E o banho de quinze minutos, que tal encurtá-lo?
(Revista Planeta/edição – agosto 2010).
A revisão dos atuais (e inviáveis) modelos de consumo já
havia sido objeto de um contundente alerta em novembro de
2009, dado pela Organização internacional Global Footprint
Network (2009), no qual a terra precisa atualmente de quase 18
meses para produzir os serviços ecológicos que os sete bilhões
de humanos utilizam em um ano. Invertendo a equação, estamos
consumindo praticamente quase um planeta e meio em 12 meses.
No atual ritmo, dizem os autores de estudo, no inicio da década
de 2030, precisaremos de duas terras para atender a demanda
anual um nível tão alto de gasto ecológico que poderá causar um
colapso de ecossistema de grandes proporções. (Revista Planeta/
edição – agosto 2010).
O ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO (IDH)
O Índice de Desenvolvimento Humano tem três dimensões:
longevidade, educação (ou conhecimento) e renda. O objetivo
do indicador é confrontar as três dimensões e verificar como
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elas estão sendo conjugadas em benefício dos seres humanos
ambientais, pois, onde há saúde preventiva, boas condições de
higiene nas residências, água potável e coleta regular de lixo,
espera-se que, ao nascer, o indivíduo tenha mais chances de
chegar à vida adulta do que outros em condições inferiores. É
certo que tais condições de saúde não garantem vida longa, mas
a tornam possível, já que as condições exógenas seriam favoráveis.
Com a verificação de melhoria do indicador que estabelece a
expectativa de vida ao nascer de um determinado grupo, podese inferir que houve maior atenção ao atendimento das condições
de saúde (principalmente pública) e de questões ambientais,
mesmo que avaliadas indiretamente.
Outra dimensão do IDH, a educação, é medida através da
combinação entre a taxa de alfabetização de adultos (15 anos ou
mais) e a taxa combinada de matrículas nos três níveis de ensino
(fundamental, médio e superior) em relação à população de 7 a
22 anos de idade. A taxa de alfabetização reflete o percentual de
pessoas capazes de ler e de escrever um bilhete simples no idioma
que conhecem. Para a dimensão educação, a taxa de alfabetização
é medida somente na população adulta, considerando, portanto,
indivíduos de 15 anos ou mais de idade. Essa medida é essencial
para diagnosticar o potencial de uma determinada população.
Apesar de não ser o único caminho, a educação permite o
exercício da cidadania e, com isso, o conhecimento de direitos e
deveres da relação entre o Estado e o cidadão. O conhecimento
e o aprendizado são instrumentos que formam o indivíduo e
que possibilitam em última instância a mudança de condições
socioeconômicas.
Por outro lado, é preciso considerar que, sendo uma medida
quantitativa, não é permitido verificar como o ensino está sendo
absorvido pelo aluno, mas, ao menos, é possível inferir que o
indivíduo torna-se capaz de exercer seus direitos como cidadão.
Um paralelo pode ser traçado em relação às duas dimensões
até agora medidas. O aumento da expectativa de vida ao nascer
está relacionado ao acesso à escola. O indivíduo que tem contato
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com a escola adquire conhecimentos básicos de higiene que mais
tarde podem refletir em uma condição de vida mais saudável.
A última dimensão considerada para efeito do IDH é a renda
medida através do Produto Interno Bruto (PIB) real per capita. O
PIB é a medida que representa a produção de todas as unidades
produtoras da economia (empresas públicas e privadas produtoras
de bens e prestadoras de serviços, trabalhadores autônomos,
governo etc.) de um país ou região num dado período [Feijó et al.
(2003)]. Na chamada fronteira de produção estão incluídas a
produção de bens e serviços, a produção por conta própria e a
dimensão da longevidade é representada pela expectativa de vida
ao nascer, que está relacionada de maneira estreita às condições
de saúde e sanitárias de um país, cidade ou região. Dessa forma,
a expectativa de vida ao nascer apresenta indiretamente as
influências econômicas, sociais e produção de serviços pessoais
e domésticos quando estes são objeto de remuneração. O valor
da produção é contabilizado através das transações econômicas
com valor de mercado. Dessa forma, é possível agregar em um
mesmo número quantidades heterogêneas de produtos e/ou
serviços. Diante das três dimensões apresentadas e calculadas
sob a forma de índices, faz-se a média aritmética e encontra-se o
IDH. (MARTINS et al, 2006).
No Brasil, onde existe uma das maiores concentrações de
diversidades biogenéticas do planeta, a discussão sobre a
sustentabilidade tem levado a uma consequente preocupação
com o impacto ambiental gerado pelas atividades das empresas.
Até há algum tempo, a capacidade de gerenciar e minimizar
impacto era um diferencial, agora, com a globalização, tornouse pré-requisito para que uma empresa seja reconhecida como
uma empresa que fabrica produtos com qualidade comprovada
(ALMEIDA, 2009).
A China e a Índia serão duas grandes potências no futuro.
Ambas têm 40% da população mundial. Em duas décadas,
colocarão mais de um bilhão de pessoas na classe média. Esse
contingente de pessoas consumirá produtos básicos trinta vezes
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mais do que toda a população mundial consumiu no auge do
império romano. E, quando a humanidade tiver todos os seus
habitantes no mínimo pertencentes à classe média, poderá haver
um colapso. O que fazer? Impedir que China, Índia, Brasil, Rússia,
Indonésia, Malásia, Vietnã, bem como tantos outros países
principalmente os da África, tenham um padrão de consumo
europeu ou norte-americano? Não seria injusto? Mas a bomba
vai ser detonada. Faltará alimento, água, energia, matérias primas;
sobrará lixo na terra, no mar e no ar. É necessário desarmar essa
bomba pouco a pouco, ano após ano, para que se possa produzir
um padrão de consumo que preserve as próximas gerações.
Pitágoras cinco séculos antes desta era,
ensinava aos seus alunos a ter uma inteligência
humanista. Seus discípulos eram educados e
treinados a perguntar em todas as casas e
espaços sociais que adentravam: “Que fiz?
Que erro cometi? Que deveres não cumprir?”.
Como artesão da educação, Pitágoras sonhava
que seus di scípul os aprendessem três
excelentes funções intelectuais: capacidade de
reconhecer erros, de se colocar no lugar dos
outros e de pensar nas consequências de seus
comportamentos. (CURY, 2010).
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MEMÓRIA E SIMBOLISMO NO ESPAÇO
URBANO: O EXEMPLO DA LAPA
IVO VENEROTTI
O presente texto pretende, de forma breve, demonstrar como
as modificações pelas quais passam a Lapa estão ligadas a uma
nova forma de pensar a memória urbana e o patrimônio,
revelando, neste caso, uma dimensão simbólica. Neste ensejo,
buscaremos interpretar o conjunto de ações das iniciativas pública
e privada sobre a Área Central do Rio de Janeiro, percorrendo
alguns momentos significativos do século XX. Finalizamos, sem
concluir, com uma agenda de pesquisa com o objetivo de se
alcançar o processo que de fato pode ser observado na área
enfocada. Dito isto, não é possível compreender, em nosso
entendimento, as modificações pelas quais passa a Lapa sem
perpassarmos processos responsáveis por manter as formas
pretéritas da chamada periferia da Área Central do Rio de Janeiro.
A zona periférica do centro caracteriza-se, segundo Corrêa
(2004), como um domínio de funções menos nobres do que as
do núcleo central. Este, verticalizado porquanto valorizado, “é
o ponto focal da gestão do território” (CORRÊA, 2004, p. 42) e,
como lugar das decisões, concentra a gestão de grandes empresas,
diversas instituições públicas, bem como estabelecimentos
bancários, diversos escritórios, consultórios, além de comércio
mais refinando de modo a atender a demanda de executivos. Em
contraponto, na periferia da Área Central as formas espaciais
são, marcadamente, assobradadas, acumulando funções de
suporte ao núcleo central, como depósitos, almoxarifados,
gráficas e estacionamentos, apresentando, igualmente, residências
de pessoas de baixa renda, brechós, comércio popular, sebos,
hotéis de alta rotatividade, oficinas, estacionamentos, terminais
rodoviários intra-urbanos e inter-regionais, e, “associado a essas
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atividades, mas não exclusivamente, (...) um subsetor mal
afamado de diversões” (CORRÊA, 2004, p. 43). Em ampla escala
horizontal e limitado crescimento vertical, devido ao baixo valor
do solo, essa área poderia ser interpretada como zona de transição,
o que não mais confere devido ao processo de descentralização
ocorrido no século XX.
A zona de transição assim era denominada por constituir um
domínio à espera da expansão do núcleo central. Os imóveis
localizados nesse recorte, portanto, significavam reserva de
terreno, à espera de valorização, não interessando aos seus
proprietários a conservação das construções, deixadas ao
abandono ou, ainda, alugadas para as classes menos favorecidas
economicamente, mas rapidamente deteriorando-se. Com o
crescimento do sítio urbano e na busca por terras menos
dispendiosas, entre outros motivos, sucede-se o processo de
descentralização. Isso significa a alocação aos saltos das
atividades caras a uma área central, não mais demandando espaço
nessa zona em transição, convertida em um entorno, em geral
deg radado, dedi cado a funções m enos nobres, com o
anteriormente citado, servindo de moradia a uma população de
baixo status social, com muitos de seus casarios convertidos em
cortiços. Vale ressaltar, contudo, que tais firmas só sairiam do
centro, ou criariam suas filiais fora dele, caso o novo sítio
representasse menos custos e apresentasse infraestrutura
adequada e fosse servido por um sistema de transportes
(CORRÊA, 2004). Nesse contexto, podemos citar (em meados
do século XX): o sub-centro Madureira, cujo desenvolvimento
foi proporcionado pela distância entre o Centro e as zonas
residências suburbanas, com sua área de abrangência alcançando,
inclusive, a Baixada Fluminense; o sub-centro Copacabana,
repleto de amenidades, com terrenos não muito distantes que
possibilitavam expressivo retorno financeiro do investimento
advindo dos lucros da indústria, do comércio e das atividades
agrícolas, em época de alta de inflação. O advento do concreto
armado permitiu a rápida verticalização do bairro litorâneo,
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acompanhada de vigoroso crescimento populacional, realizando
o sonho da classe média de viver à beira-mar e atraindo comércio
e serviços antes localizados exclusivamente na zona central. No
que diz respeito à Área Central, esta permaneceu relativamente
estagnada, pois, embora não se efetivasse o crescimento
horizontal de seu núcleo da maneira como se esperava, expandiase verticalmente, sobre os destroços dos prédios outrora
existentes no core – Avenida Rio Branco e adjacências – ,
derramando sua dinâmica, inclusive, para a Avenida Presidente
Vargas, no trecho junto àquela avenida (ABREU, 2006). Quanto
às imediações do Central Business Disctrict, com sua forma mantida,
podemos notar o desenrolar de diversas reformas urbanas sobre
os seus domínios, pouco importando as menções da cidade ao
passado.
A iniciativa de preservação da memória é recente no Brasil,
datando dos últimos quarenta anos, aproximadamente. Antes
desse período, a relação com o passado era de desprezo, pois
nossos olhos deveriam se voltar para as maravilhas que estavam
por vir (ABREU, 1998). Dito isso, o advento da República anseia
por imprimir suas marcas, dar fim às velhas usanças, sanear a
cidade, impor a ordem nas formas espaciais. Sendo assim, são
alargadas ruas, derrubados cortiços, abertas novas vias de
circulação. Essas, com seu traçado reto riscado sobre o mapa,
“botavam abaixo” o que se encontrasse pela frente. Eis que nos
é entregue a Avenida Central, hoje Rio Branco, símbolo da Belle
Époque, com seus 1.800 metros de comprimento, 33 metros de
largura e 590 prédios derrubados. Define-se, portanto, o que mais
tarde seria denominado por núcleo central. Ao longo do tempo,
com o solo cada vez mais valorizado e a difusão do uso do
concreto armado nas edificações, a avenida verticaliza-se, a partir
da década de 1940, pondo a baixo as construções ecléticas que
lá se encontravam (ABREU, 2006; MELLO, 1993; ROCHAPEIXOTO, 2002). Temos, então, um domínio horizontal, ainda
não verticalizado, compondo sua zona periférica. Justamente
sobre esse recorte que algumas das grandes intervenções
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urbanísticas ocorrem a partir de meados do século XX.
O pensamento à época era desprovido do interesse em manter
o patrimônio urbano, no que diz respeito aos bens de estilo
arquitetônico eclético e à ambiência do passado. Entre as
modificações vivenciadas pelo entorno imediato do núcleo
central, podemos citar a abertura de grandes artérias, como a
Avenida Presidente Vargas, exibindo seus 52 metros de largura e
os monumentais Palácio Duque de Caxias e a Estação Ferroviária
Central do Brasil, deixando as marcas concretas do poder do
Estado, personalizando um regime. Esperava-se que a avenida
fosse o prolongamento, perpendicular, da Avenida Rio Branco,
o que de fato não ocorreu, dentre outros motivos, por conta do
sub-centro Copacabana, sendo os seus vazios ocupados de forma
muito lenta nos últimos anos. Vale frisar que tal reforma urbana
estava mais interessada em glorificar Getúlio Vargas e forçar a
migração da população residente para áreas ainda não densamente
ocupadas, como a Zona Oeste e a Baixada Fluminense (LIMA,
1990). Em seguida, a febre viária dos anos 1950/60 cortaria (ou
planejava fazê-lo), com vias expressas, viadutos e túneis, os
“bairros que estão no meio do caminho” - Lapa, Catumbi e
Mangue -, com os seus serviços de apoio às atividades comerciais
e industriais e residências de pessoas menos favorecidas
economicamente (ABREU, 2006). Especificamente no caso da
Lapa, relembra-se o alargamento da Avenida Mem de Sá, a
derrubada das construções junto ao Aqueduto da Carioca,
deixando-o em evidência, e a construção de um anfiteatro,
dividindo a Rua Evaristo da Veiga em duas partes distantes uma
da outra. Outro aspecto a ser mencionado é o recuo excessivo
de algumas edificações na Rua da Lapa, como o da Associação
Cristã de Moços, em contraste com os sobrados contíguos
localizados bem mais a frente. Tal fato se deve ao plano de
construção da Avenida Norte-Sul, a qual facilitaria a ligação da
Avenida Francisco Bicalho com a Zona Sul, cujo percurso
atravessaria a Lapa. O projeto foi abortado no início da década
de 1970, em meio a protestos contra a realocação dos moradores
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e das atividades da área (ARAÚJO, 2009), em um momento
marcado pela guinada no modo de pensar a memória urbana. No
restante da periferia da Área Central, como, por exemplo, nos
domínios da SAARA (Sociedade dos Amigos das Adjacências
da Rua da Alfândega, estabelecimentos compreendidos entre a
Avenida Presidente Vargas, Praça da República e a Rua dos
Andradas e Buenos Aires), torna-se interessante observar o recuo
de algumas construções estranhas ao conjunto, mais modernas,
revelando quais eram os planos pretéritos para o domínio em
tela, que incluíam os destroços do seu casario eclético.
As demolições ocorreram em nome do ordenamento e
saneamento do espaço urbano ou em defesa da circulação de
automóveis, mas ancoradas na mesma matriz do pensamento
modernista, cujas concepções influenciaram sobremaneira a
morfologia da zona central, não só na zona periférica, mas
também em seu núcleo. Na busca do que era verdadeiramente
brasileiro, preocupados com a construção de uma identidade
nacional, os modernistas passam a combater ferozmente o estilo
eclético na arquitetura, tida como academicista e desconectada
da realidade. Mais do que isso, o ecletismo era considerado antihistórico, por repetir estilos de tempos pretéritos ao invés de
produzir uma arquitetura própria de seu tempo, “ao contrário, os
modernos desejavam que a arquitetura fosse a expressão do
tempo presente” (ROCHA-PEIXOTO, 2000, p. 22). Dito isto,
esse grupo não impedia e incentivava, muitas das vezes, a
destruição das construções nesse estilo, sem se preocupar com a
conservação dos que permanecessem de pé. Aliados a lógica do
capital, foram abaixo alguns dos símbolos da “Paris dos trópicos”,
de Pereira Passos, e outros da “Broadway brasileira”, projeto de
Francisco Serrador, responsável por entregar a Praça Floriano
dos anos 1920 ladeada por cinemas, convertendo-a em nossa
eterna Cinelândia (mesmo restando apenas uma sala de exibição
no logradouro). Cabe, neste ponto, uma explicação.
A criação do órgão nacional do patrimônio histórico e artístico
(SPHAN, no início) liderado pelo grupo moderno, notadamente
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Lúcio Costa, e, por conseguinte, o tombamento de diversas
construções a partir da década de 1930, transmite a sensação de
estarmos em contraponto com aquilo dito até o momento. Os
tombamentos ocorridos no período anterior à década de 1970
estão muito mais ligados à concepção de arquitetura histórica e
construção de identidade nacional por parte do grupo em questão
do que com uma ideia de preservação do passado, na expressão
de uma historicidade, de memória urbana. Nesse sentido,
podemos esclarecer, igualmente, tratava-se do tombamento de
edificações de grande porte de um determinado período ou
emblemáticas de outra época, não se revelando um interesse, de
modo geral, em manter uma ambiência ou mesmo um conjunto,
contemplado, por vezes, de maneira a permitir o destaque do
bem salvaguardado pelo governo. Com os modernistas à frente,
primeiro reconhece-se a beleza da arquitetura colonial, em
contraponto à neocolonial, considerado um simulacro, conferindo
àquela o caráter de insubstituível. Incluem-se, nesse caso, boa
parte das igrejas do centro da cidade, tombadas, em sua maioria,
no ano de 1938. A austeridade do neoclássico está afinada com
os princípios do moderni smo, motivo sufi ciente para o
tombamento de construções como a então Casa da Moeda, hoje
Arquivo Nacional. Em consonância com a vontade em produzir
uma arquitetura eterna, os modernos tombam os edifícios de
seu próprio período. Algumas construções com menos de vinte
anos são protegidas e o Palácio Gustavo Capanema, inaugurado
em 1945, é tombado em 1947, enquanto o Theatro Municipal,
mais expressivo exemplar eclético do Rio de Janeiro, só é
oficialmente protegido em 1973 (LILIAN et al, 2009). Tratavase de uma abordagem hegeliana da história, de acordo com a
qual, grosso modo, se concebe uma história em etapas, cada uma
superando o que a antecedeu. Sendo assim, o ecletismo é
considerado um hiato na evolução da arquitetura, não cabendo
a um instituto do patrimônio histórico preservar o anti-histórico
(ROCHA-P EI XO TO, 2000). N a verdade, por trás das
intervenções urbanas retratadas neste trabalho e, mais ainda, no
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modo de pensar do modernismo, estavam o ideário iluminista
do progresso, de otimismo e fé no futuro. Voltar-se para o passado
seria entendido como uma atitude saudosista, e, até mesmo,
reacionária. Essa forma de pensar e agir modifica-se a partir do
período pós-guerra (ABREU, 1998).
Como consta no trabalho de Le Goff (1990), referenciado
por Abreu (1998), o enfraquecimento da crença no porvir estaria
ligado a acontecimentos do século XX, quando se imaginava
que os avanços tecnológicos e científicos fossem nos conduzir a
uma sociedade mais justa e igualitária. De forma contrária, vimos
algumas inovações capacitar a autodestruição da espécie
humana, evidenci ado pel as duas Grandes Guerras, pelo
Holocausto, bem como pela degradação ambiental. O “futuro”
nos trouxe, da mesma forma, uma sociedade ainda mais desigual,
embora se destaquem os avanços da medicina, das formas de se
comunicar e de se locomover, e a relativa democratização da
informação. Ao fim do otimismo desmedido no tempo que havia
de vir, juntou-se a globalização.
O intercâmbio cultural e econômico entre os diversos países
do mundo deixa-os cada vez mais à mercê das influências
internacionais, por conta das injunções político-econômicas,
acabando por homogeneizar, em alguns aspectos, diferentes
pontos do globo. Dito isto, torna-se necessário voltar ao passado,
pois preservá-lo “é parte do impulso de preservar o eu. Sem
saber onde estivemos, é difícil saber para onde estamos indo. O
passado é o fundamento da identidade individual e coletiva”
(HEWINSON, 1987 citado por Harvey, 2007). A construção
de uma identidade orienta a diferenciação do outro, conferindo
à proteção dos períodos predecessores papel primordial na
sobrevivência dos lugares, culminando no resguardo da memória
urbana. Especificamente no caso do Rio de Janeiro, checamos
ações nessa direção com início há quarenta anos.
A partir do início da década de 1970, notamos o tombamento,
por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN – das construções ecléticas, até então não
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contempladas, e, ao invés de somente edificações emblemáticas
de uma época, são tombados conjuntos urbanos, paisagísticos e
arquitetônicos, acervos de instituições de memória (museus,
bibliotecas e arquivos), além de morros e penhascos (LILIAN et
al, 2009). Observamos a preocupação em manter uma ambiência
do passado, posto que o “urbanismo contemporâneo incorporou
a cultura e a tradição cumulativa como um dos valores da cidade”
(ROCHA-PEIXOTO, 2000, p. 23). Particularmente em relação
à Lapa, esta é incluída quando da criação do Corredor Cultural
em 1979, iniciativa pioneira no Brasil, dedicada à preservação
urbanística e arquitetônica da área central da cidade. Tal programa
foi responsável por manter a matriz viária e demais construções
não monumentais do Rio eclético e, com sua concepção
expandida, deu origem a outras iniciativas semelhantes por toda
a cidade, desembocando na criação das Áreas de Proteção do
Ambiente Cultural – APACS, em 1984, pela Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro. Somam-se a esse conjunto de medidas, a
isenção de IPTU, desde 1987, para aqueles que conservem a
fachada dos imóveis de interesse histórico e/ou cultural, e, mais
recentemente, a liberação do pagamento de Imposto Sobre
Serviço – ISS sobre os serviços de reforma, restauração ou
conservação desses imóveis. Ao lado disso, um pacote de ações,
da parte do governo e da iniciativa privada, foi desenvolvido ao
longo do tempo, a fim de incentivar a sua ocupação cultural, as
atividades comerciais voltadas ao turismo e ao entretenimento,
além de atrair investimentos residenciais. Em um rápido olhar,
notamos uma diferenciação maior do conteúdo que das formas.
Os sobrados foram refuncionalizados e alguns usos afastados,
como a prostituição, entre outros. (ARAÚJO, 2009; ROCHAPEIXOTO, 2000; PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO, S/D). Cabe dizer, contudo, a história boêmia da Lapa
contribui sobremaneira para sua pujança atual.
A nova forma de se conceber a memória promove a
modificação do outrora trecho da zona periférica do centro –
bairro oficial desde 2012 – sem depender de seu núcleo,
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preservando, ademais, a sua forma. Mais do que a busca pelo
entretenimento, a procura é, sobretudo, impalpável, na medida
em que se consome o espaço e a sua aura simbólica de um
passado boêmio. Quem vende a/na Lapa, se utiliza disso, e quem
para lá se movimenta quer vivenciar esse clima hedonista, alegre
e livre, embora o malandro, os cabarés, e Madame Satã não
estejam mais presentes, e os intelectuais e políticos prefiram,
atualmente, o Jobi e o Bracarense (bares do Leblon, bairro de
alto padrão da Zona Sul carioca) àqueles do bairro em tela. A
Lapa do passado concede legitimidade aos seus usos hodiernos,
conferindo algum sentido a seus frequentadores, distanciandoos simbolicamente de um simulacro. Não estamos tratando, neste
caso, do retorno dos investimentos residenciais de classe média
ao local, embora esse clima boêm io confira um tom de
agradabilidade ao local, revertendo-se em uma espécie de
amenidade imaterial, sem ser contemplada pela conceituação,
por exemplo, de Corrêa (2004): verde, mar, montanha. Nossa
impressão é que o sucesso dos empreendimentos imobiliários
tem muito mais correspondência com a proximidade do núcleo
central e com uma demanda reprimida. Eis uma temática a ser
estudada. Por qual(is) processo(s), afinal, atravessa a Lapa?
Comumente se fala do processo de gentrificação quando
abordamos o momento vivenciado pela Lapa. O termo foi
originalmente utilizado por Ruth Glass para identificar as
modificações vividas por Londres na década de 1960, cujos
bairros operários eram ocupados pela classe média, expulsando
os moradores e usos habituais. O conceito encontra sua origem
na palavra gentry, correspondente ao estamento que lucrou com
os cercamentos rurais na Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Tais
terras dedi cavam- se à cri ação de gado ovi no para a
comercialização de lã, sucedendo as atividades da população
campesina, arrendatária, relegando-a à falta de atividade e ao
seu empobrecimento. E justamente por sua etimologia, o uso do
termo por si só parece implicar em um anacronismo. A
importação de um conceito pode envolver ajustes exagerados,
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distanciando-o tanto de seu sentido original quanto da própria
realidade sob análise. Deixemos esse ponto de lado, o qual exigiria
largas discussões, e consideremos a metodologia proposta por
Martines i Rigol (2003). O processo de gentrificação abarca, para
o pesquisador, tanto a dimensão econômica como a cultural,
uma vez que os novos usos e adaptação das velhas formas
urbanas convertem-se em um segmento destacado do mercado
imobiliário. O geógrafo continua, ao expor que o processo em
foco abrange dois ciclos. No primeiro, um grupo composto por
profissionai s do mundo cultural e os consi derados préprofissionais, como os estudantes, prepararam o local para os
verdadeiros gentrificadores, afastando os velhos usos e os
moradores que se encontravam no local. Trata-se dos pioneiros,
atraídos pela diversidade social e cultural do centro e pelos
reduzidos custos de moradia. Com as transformações na aparência
e nas atividades do bairro, a imagem do local também é
transformada, atraindo não só a atenção dos agentes imobiliários,
mas também dos setores mais altos da classe média. Na medida
em que os membros desta classe passam a se interessar pelo
bairro, o custo das moradias eleva-se consideravelmente,
expulsando os pioneiros e ajustando o ambiente aos seus novos
moradores. Cabe, neste ponto, uma indagação: estaríamos em
algum desses estágios da gentrificação, de acordo com a
metodologia proposta por Martinez i Rigol (2003)? Não estamos
aptos a responder tal pergunta. Torna-se, pois, imperativo um
estudo mais aprofundado sobre esse assunto. Deixamos, portanto,
uma agenda de pesquisa futura, para qual sugerimos alguns
questionamentos:
Quais modificações, efetivamente, a Lapa descerra em sua forma e
conteúdo?
Quais são os atores sociais presentes na Lapa?
O que os motivaram a viver no bairro?
Quais são os estabelecimentos comerciais e quem os frequenta?
Que serviços a Lapa apresenta e quem os utiliza?
Que tipo de relações são estabelecidas entre o núcleo central e o seu
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entorno?
Sanadas essas dúvidas, seremos conduzidos a outro tópico: quais são
os limites da periferia da Área Central do Rio de Janeiro?
Estamos em um momento particular da geografia da cidade
do Rio de Janeiro. Diante dessa preciosa realidade, os estudos
urbanos sobre a Sebastianópolis são convidados a formular novos
conceitos, metodologias e categorias de análise.
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PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO –
FUNÇÃO SOCIAL E SUSTENTABILIDADE:
PRERROGATIVAS CONSTITUCIONAIS
MARIA DO SOCORRO MOREIRA LOUREIRO
INTRODUÇÃO
O presente Artigo destina-se aos operadores da Ciência da
Administração, bem como aos de áreas afins, e tem por escopo
apresentar o tema Planejamento Estratégico à luz da função
social e da sustentabilidade, fato que encontra parâmetro nas
diretrizes da atual Constituição Federal, promulgada em 05 de
Outubro de 1988.
Em vista da temática, a mesma finca-se no desenvolvimento
das Organizações empresariais com responsabilidade de cunho
social, de maneira que o planejamento estratégico não perca os
seus objetivos propriamente técnicos, mas, que tenha, no rol de
aplicação, a preocupação com o social em sentido teórico-prático,
uma vez que o mundo globalizado e o planeta necessitam de
Organizações que se sustentem de forma “sustentável”.
A importância da temática apresentada encontra parâmetro
na visão global de sustentabilidade a nível mundial e no Brasil,
uma vez que as empresas devem ter o referido foco, para que o
desenvolvimento não se perca no “econômico pelo econômico” de
forma a perecer, em razão das consequências negativas que
compreendem o “lucro pelo lucro”, quando não há compromisso
social e sustentável. Ademais, a própria Constituição Federal
versa sobre o comprometimento de todos com a vida, com o
meio, com a sustentabilidade.
A descrição acadêmica do assunto se fundamenta nas bases
teóricas e práticas, ou seja, na doutrina da Administração
propriamente dita, de estudos afins, como da Filosofia, e das
práticas adotadas pelas Organizações.
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Quando as Organizações observam as consequências sociais
quando do “lucro pelo lucro”, são vislumbrados de maneira
substancial, os pontos negativos, razão pela qual, diante dos fatos
sociais existentes, as práticas adotadas pelas Organizações devem
proceder aos paradi gm as do desenvol vi mento com
sustentabilidade, nos moldes das Organizações Internacionais e
dos Órgãos de Proteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento
social.
Não há, no estudo Contemporâneo ou Pós Moderno, como
conceber uma Organização empresari al sem o devido
comprometimento sócio-sustentável, não apenas por supostas
razões políticas e mesmo ideológicas, mas porque o mundo
necessita desses moldes, pelos próprios fundamentos naturais.
As empresas que desenvolvem planejamento estratégico voltado
ao âmbito sócio-sustentável, garantem desenvolvimento com
qualidade referencial, sem que o ambiente pereça, via projetos
de desenvolvimento social com a preocupação pelo sóciosustentável.
A responsabilidade das Organizações tem sido absorvida pela
atividade empresarial como um todo, e não poderia ser diferente,
inclusive acerca da valorização do comprometimento das
Organizações com o sócio-sustentável no que se refere à
hierarquia, com a fixação de critérios práticos que devem ser
adotados em prol do Planejamento Estratégico voltado ao
desenvolvimento sócio-sustentável.
As Empresas/ Organizações que desempenham planejamento
estratégico, com a abordagem sócio-sustentável, no mundo pósmoderno, tendem a ter um crescimento favorável e destacado
no próprio mercado econômico-consumerista, uma vez que a
qualidade se sustenta positivamente, com a preservação
ambiental, e o reconhecimento pelo social torna-se vislumbrado,
o que faz com que sejam reconhecidos os atributos transparência,
respeitabilidade e desempenho.
Falar de sustentabilidade dentro do contexto sociopolítico
desde a promulgação da atual Constituição não é tarefa fácil,
uma vez que, embora a mesma seja a lei soberana do País,
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inclusive, em matéria de Meio Ambiente, infelizmente, a realidade
vivida, presenciada, não corresponde, por muito, aos objetivos
ou ao escopo do legislador constitucional pátrio.
O texto constitucional é eivado de princípios ideológicos, em
vista da instituição de um Estado Democrático (de Direito), o
que está previsto já no preâmbulo, todavia, a aplicação desses
princípios, considerando-se que não existirá um ordenamento
perfeito, mesmo assim, encontra-se, por muito, afastada do
contexto nos âmbitos, local estadual, regional e nacional, em
particular, na seara do meio ambiente.
É comum nos depararmos com cidadãos versando que “faltam
leis nesse País”, entretanto, fundamental é a interpretação crítica
das leis vigentes e existentes, de todo o repertório legislativo,
pois que o diagnóstico já nos é apresentado objetivamente, ou
seja, pela análise crítica do repertório legislativo brasileiro em se
tratando de, no caso, Meio ambiente e Sustentabilidade, é
possível concluir que, ao contrário, não faltam leis, e sim, a real,
efetiva aplicação das mesmas.
A Constituição direciona a forma de proteção do meio
ecologicamente equilibrado e da função social no nível territorial
(nacional), respeitando as diversidades existentes, porém, além
dela, merece destaque, salutarmente, a Lei nº. 7.735/1989
(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis), que possui caráter infraconstitucional.
Além dessas, outras leis infraconstitucionais direcionam a
questão, como a Lei nº. 7.797/1989 (Fundo Nacional do Meio
Ambiente) e Decreto Lei nº. 3524/2000, bem como outros
dispositivos legislativos.
Outrossim, se todo esse repertório legislativo e as demais leis
passíveis e compatíveis fossem, de fato e de direito aplicados,
os problemas intrínsecos à questão sócio-ambiental não seriam
de grande vulto e não teriam consequências desastrosas.
Ocorre que, as Organizações empresariais constituem parte
de um Sistema complexo e atualmente globalizado, portanto, o
momento político e as circunstâncias, até mesmo puramente
sociais, não permitem que o âmago da questão floresça, de
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maneira que, quando o assunto é sócio-sustentabilidade como
responsabilidade de todos e das Organizações, a consciência
política deve ditar as atitudes práticas do cidadão, que não pode
se contentar com dados estatísticos, sem questionar o contexto
e o condicionamento político do Estado, na pessoa de seus
governantes.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de
todos os brasileiros (natos e naturalizados) e estrangeiros
residentes no Brasil, na forma do Artigo 5º, da Constituição
Federal de 1988, devendo ser reprimido qualquer tipo violação
ao meio sócio-sustentável, como bem comum do povo.
O cidadão consciente do “ser político” não entende princípios
como meras ideologias ou mesmo uma utopia, mas, como o elo
entre o desafio e a realidade a ser construída, o “fazer acontecer”, o
“fazer um meio ambiente sócio-sustentável”.
O pulsar em prol do amor ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado deve transparecer às presentes e futuras gerações,
portanto, fechar os olhos e se limitar aos textos legislativos não
resolve a questão.
Amor Real
Viver é fácil com os olhos fechados
E eu proponho uma dificuldade extra
Abra os olhos olhe por dois
Pra todos os lados pra cima
Pra baixo
Pra frente e pra trás
Você verá que existe a guerra e a paz
E que o amor faz e desfaz
Você fera é capaz mas erra
E que isso é certo
Quando há amor
(MORAIS JR., 2012, p. 120)
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DESENVOLVIMENTO
Impossível falar sobre meio ambiente sócio-sustentável sem
a devida abordagem das prerrogativas constitucionais inerentes,
pelo Constitucionalismo.
A Constituição Federal vigente, que foi promulgada no dia
05 de Outubro de 1988, expressa a instituição de um Estado
Democrático, através de diretrizes ideológicas, como a segurança
dos direitos sociais e individuais, destacando-se, liberdade,
segurança, igualdade, justiça, educação e dignidade da pessoa
humana e, a garantia do meio ecologicamente equilibrado a todos, na
forma prescrita no Artigo 225.
A Constituição Federal de um País consiste na sua Lei Maior,
insta enfatizar, portanto, nenhuma outra lei pode contrariar
di spositivo consti tuci onal , sob pena de ser julgada
inconstitucional, portanto, não aplicável, o que faz jubilar o
constitucionalismo, a elaboração de um Diploma Legal que
norteia o Estado e a vida em sociedade.
O constitucionalismo, ou seja, o poder constitucional, teve
origem nas Constituições dos Estados Unidos, em 1787, na
Constituição Francesa, em 1791 (com a Revolução Francesa),
além de alguns de seus princípios terem sido ditados por
Declarações, como a da Virgínia.
O Brasil teve muitas Constituições, umas promulgadas,
também denominadas democráticas, populares, oriundas de
Assembleia Nacional Constituinte, com a participação popular
via representação de parlamentares eleitos, outras, outorgadas,
sem a participação direta do povo, pela imposição do poder da
época e do momento histórico-social.
No Brasil, as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988, a
vigente, foram promulgadas, já as de 1824, 1937, 1967 e a
Emenda Constitucional nº 01/1969 (dotada de atribuição
Constitucional), foram outorgadas.
A questão que envolve a promulgação e a outorga é justamente
o interesse político da época e, com cada interesse, um tipo de
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Constituição é formado, portanto, se há um pensamento e
interesses abertos ao povo, a Lei Maior assim os refletirá, caso
contrário, também será reflexo, daí exsurge a problemática em
estudo.
Árdua luta de ideologias, muitas transformações sociais foram
acontecendo, com isso, o Direito precisou mudar, uma vez que
Direito e sociedade caminham juntos, o Direito muda e/ou se
transforma com a sociedade e esta com o Direito, ratificando-se
que, se um novo momento da história está sendo vivido, o Direito,
enquanto ciência, deve acompanhar, e este é transformado pela
necessidade que lhe é apresentada.
A gama de abrangência da Constituição é muito bem definida
pela doutrina do Direito ao aduzir:
que melhor se definirá a Constituição como o
estatuto jurídico fundamental da comunidade. Com este
sentido também poderemos, então, definir a
Constituição como a lei fundamental da sociedade.
(CARVALHO, 1982, p. 13).
No seio da Constituição vigente, visando à instituição de um
Estado Democrático, sem preconceitos de qualquer natureza,
obj etivos outros são traçados desde a fase preambul ar,
observando-se que, na Constituição pátria temos como um dos
seus ditames, a igualdade entre as pessoas, sem distinção de
qual quer natureza, no qual se insere, o direito ao m eio
ecologicamente equilibrado como bem do povo.
Princípios que são almejados pela ONU (Organização das
Nações Unidas), por Organizações Governamentais e NãoGovernamentais estão inseridos na Constituição Federal, assim,
o princípio dos princípios, dignidade da pessoa humana celebra o
compromisso globalizado, e não poderia ser de outra forma, visto
que a dignidade da pessoa humana deve ser garantida a todos,
sem exceção, e, através da educação, o exercício pleno da
cidadania se faz presente, educação em vista da preservação do
meio sustentável.
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A sustentabi li dade abarcada no rol dos pri ncípios
constitucionais é um direito garantido a todos, dentro de uma
gama ampla de direitos fundamentais sociais e coletivos, como
supracitado, a se iniciar pelo preâmbulo, ao versar objetivamente
a Carta Política, a instituição de um Estado Democrático de
Direito, o regime democrático numa sociedade pluralista, como
salutarmente expresso:
Nós representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembleia Nacional Constituinte para instituir
um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segu rança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de
Deus, a seguinte Constituição da República
Federativa do Brasil.
Princípios que ganham vulto objetivo, dignificam o texto
constitucional de acordo com o Artigo 225, verbis:
Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações.
Sem meio ecologicamente equilibrado, não há como ter
garantido o pleno direito à cidadania, ao desenvolvimento sócioeconômico, não se forma o cidadão político, razão pela qual entra
em foco a responsabilidade do Estado, dos indivíduos, da
sociedade e das Organizações empresariais.
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A definição de Estado denota-se fundamental de maneira que
Estado é a Sociedade politicamente organizada. Conjunto de instituições
que compõem a administração pública de um país; Governo - Dicionário
– Academia Brasileira de Letras.
Além da definição de Estado, a definição de Direito torna-se
intrínseca ao desenvolvimento, desta forma, direito é o conjunto de
normas legais que visa regular, organizar a vida em sociedade, de fato
que esse conjunto de normas legais abrange todo o repertório
legislativo, o constitucional, o infraconstitucional e as diretrizes
do Direito Internacional, como Acordos, Tratados e Convenções
em prol do m ei o ecol ogicam ente equil ibrado e do
desenvolvimento sócio-sustentável.
O Estado se utiliza do Direito, enquanto ciência social, para
organizar a vida em sociedade, de forma que esta vi va
harmonicamente, constituída de padrão qualitativo eficiente em
vista das necessidades inerentes à pessoa humana e à vida social,
como saúde, educação, segurança, lazer... e ao meio ecologicamente
equilibrado para as presentes e futuras gerações.
O repertório da legislação (infraconstitucional) correlata à
Constituição Federal de 1988 em vista da temática, assim está
distribuído substancialmente:
LEGISLAÇÃO
Lei nº. 7735 /1989
CONTEÚDO
Instituto Brasileiro do Meio Am biente e dos
Rec urso s Naturais Renováveis
Fundo Nacional do Meio Ambiente
Administração do Fund o Nacional do Meio
Am biente
Instituiu o Sistema Nacio nal de Unidades de
Conservação da Natureza
Normas para o uso das técnicas de engen haria
g enética e liberação do meio ambiente de
organismos geneticamente modificativos –
autoriza a criação da Comissão Técnica
Nac ional de Biosseguran ça
Instituiu o Sistema Nacio nal de Unidades de
Conservação da Natureza
Agrotóxicos
Edu cação Amb iental
Medidas d e proteção às florestas existentes nas
nascentes dos rios
Regulam ento – Lei nº. 4771/ 1965
Sançõ es ap licáveis às condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente
Lei nº. 7797 /1989
De creto nº. 3524/2 000
Lei nº. 9985 /2000
Lei nº. 8974 /1995
Lei nº. 9985 /2000
Lei nº. 7802 /1989
Lei nº. 9795 /1999
Lei nº. 7754 /1989
De creto nº. 1282/1 994
De creto nº. 3179/1 999
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A Administração no século XXI no mundo globalizado é uma
ciência complexa, portanto, na lição de Chiavenato (2010: p.5;
p.6):
Administração é o processo de planejar,
organizar, dirigir e controlar a aplicação dos
recursos organizacionais para alcançar
determinados objetivos de maneira eficiente e
eficaz. A administração sempre leva em
consideração os objetivos organizacionais a serem
alcançados. No fundo, a administração é um
complexo processo de tomar decisões a respeito
de recursos e de objetivos a serem com eles
alcançados. A finalidade desse processo é buscar o
alcance de objetivos por meio da utilização de
recursos. Assim, a administração é necessária
quando há uma situação envolvendo pessoas que
utilizam recursos para atingir algum objetivo. As
organizações constituem o contexto em que ocorre
a administração.
[...]
ADMI NI S TR AR
É
FAZER
ACONT ECER - Administrar não significa
simplesmente executar tarefas ou operações, mas
fazer com que elas sejam executadas por outras
pessoas em conjunto e de maneira satisfatória e
que traga resultados. O administrador não é o que
faz, mas o que faz fazer. A administração faz as
coisas acontecerem através das pessoas em conjunto
para permitir que as organizações alcancem sucesso
em suas estratégias e operações. Na realidade, a
administração não é uma ciência exata, mas uma
ciência social, pois ela lida com negócios e
organizações basicamente através de pessoas e
conceitos.
A Organização tem fundamentos próprios para viver e se
manter viva, deve se organizar ou mesmo, se reorganizar, para
atender às necessidades diversas, inclusive, às ambientais, de
modo que:
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A organização (do grego, organon=ferramenta)
significa o arranjo e disposição dos recursos
organizacionais para alcançar objetivos estratégicos.
Esse arranjo se manifesta na divisão do trabalho
em unidades organizacionais, como divisões ou
departamentos e cargos, a definição de linhas
formais de autoridade e a adoção de mecanismos
para coordenar as diversas tarefas organizacionais.
A reorganização sempre se torna necessária para
ajustar-se a essas mudanças. Reorganização significa
a ação de alterar a estrutura organizacional para
ajustá-la às novas condições ambientais. Muitas
organizações estão se reestruturando continuamente
para se tornarem mais ágeis, simples, eficientes e
mais eficazes e competitivas em um ambiente global
de forte e acirrada concorrência. IBM, General
Motors, Xerox e outras grandes organizações
adotam conceitos inovadores de organização para
se manterem sempre sólidas e firmes.
(CHIAVENATO, 2010, p. 6)
Verdade é que, para que uma Organização funcione e tenha
êxito em seu desempenho, o planejamento tornou-se, muito mais
nos dias atuais, elemento indispensável, não só para as questões
puramente econômicas, mas também para as humanas e sóciosustentáveis. Planejamento pode ser visto como a determinação
da direção a ser seguida para se alcançar um resultado desejado
ou como a determinação consciente de cursos de ação, isto é,
dos rumos. Ele engloba decisões, com base em objetivos, em
fatos e na estimativa do que ocorreria em cada alternativa.
Planejar é, portanto, decidir antecipadamente o que fazer, de
que maneira fazer, quando fazer e quem deve fazer.
Pelas diretrizes de um bom planejamento, focado em objetivos
coerentes para o bem da Organização, maiores vantagens tendem
a aparecer, e, no século XXI, o planejamento não pode excluir o
elemento sócio-sustentável, isso é fato.
Existem vários tipos de planejamento, todavia, o foco do
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estudo é o estratégico voltado ao comprometimento sóciosustentável, enfatiza-se, mas, para que isso seja alcançado, o
papel das organizações é imprescindível, inclusive em nível
hierárquico, pois todos integram a Organização, todos são
colaboradores. Importante colacionar a seguinte definição acerca
do assunto, com propriedade:
O planejamento estratégico refere-se ao
planejamento sistêmico das metas de longo prazo
e dos meios disponíveis para alcançá-las, ou seja,
aos elementos estruturais mais importantes da
empresa e à sua área de atuação, e considera não
só os aspectos internos da empresa, mas também,
e principalmente, o ambiente externo no qual a
empresa está inserida. O planejamento estratégico
deve definir os rumos do negócio e, portanto,
responder à pergunta: qual é o nosso negócio e
como deveria sê-lo ? Seu propósito geral é
influenciar os ambientes interno e externo, a fim
de assegurar o desenvolvimento ótimo de longo
prazo da empresa de acordo com um cenário
aprovado. (LACOMBRE, 2008, p.163)
O planejamento estratégico é feito pelos dirigentes de mais
alto grau, de forma que o mesmo inicia-se no topo da hierarquia.
Oportuno afirmar que as vantagens de um planejamento
estratégico voltado ao sócio-sustentável abrangem uma vasta
seara, de cunho econômico e moral. Organizações com fins
lucrativos e sem fins lucrativos norteiam-se pela responsabilidade
social. A temática da responsabilidade social está em voga e não
poderia ser diferente, portanto, insta justificar que:
Responsabilidade social é o grau de obrigação
de uma organização em assumir ações que
protejam e melhorem o bem-estar da sociedade
na medida em que ela procura atingir seus próprios
interesses. Refere-se ao grau de eficiência e eficácia
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que uma organização apresenta no alcance de suas
responsabilidades sociais. A organização
socialmente responsável é aquela que desempenha
as seguintes obrigações:
1. Incorpora objetivos sociais em
seus processos de planejamento.
2. Aplica normas comparativas de
outras organizações em seu s
programas sociais.
3. Apresenta relatórios aos
membros organizacionais e aos
parceiros sobre os progressos na sua
responsabilidade social.
4. Experimenta diferentes
abordagens para medir o seu
desempenho social.
5. Procura medir os custos dos
programas sociais e o retorno dos
investimentos em programas sociais.
(CHIAVENATO, 2010, p. 112-113)
Algumas Organizações tratam da responsabilidade social de
forma institucionalizada, destinando investimentos específicos
a determinadas áreas, como: 1. Área Funcional Econômica –
Voltada à produção de bens e serviços, criação de empregos e
valorização do trabalho; 2. Área de Qualidade de Vida –
Voltada à melhoria da qualidade de vida das pessoas; 3. Área de
Investimentos Sociais – Voltada aos investimentos em vista de
problemas sociais da comunidade e, 4. Área de Solução de
Problemas – Voltada diretamente à solução dos problemas
sociais. Desta forma:
ÁREA FUNCIONAL ECONÔMICA – Esta
é uma medida de responsabilidade social que dá
uma indicação da contribuição econômica da
organização à sociedade.
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ÁREA DE QUALIDADE DE VIDA – A
produção de bens de alta qualidade, as relações
com os empregados e clientes e o esforço para
preservar o ambiente natural são indicações do que
a organização faz para melhorar a qualidade geral
da vida na sociedade.
ÁREA DE INVESTIMENTOS SOCIAIS –
A organização pode envolver-se em assistir
organizações da comunidade que tratam de
educação, saúde, caridade, artes etc.
ÁREA DE SOLUÇÃO DE PROBLEMAS
– Atividades como participação no planejamento
a longo prazo da comunidade, projetos sociais e
condução de estudos para localizar problemas
sociais podem ser medidas de responsabilidade
social. (CHIAVENATO, 2010, p.113-114)
No que tange ao comprometimento com o sócio-sustentável,
por conseguinte, é comum que as Organizações adotem 04
(quatro) níveis de estratégia (CHIAVENATO, 2010, p.113-114),
senão vejamos:
1º NÍVEL – ESTRATÉGIA OBSTRUTIVA
- FOCO: RESPONSABILIDADES ECONÔMICAS
O que faz?
1. Rejeita as demandas sociais
2. Assume responsabilidades econômicas apenas
2º NÍVEL – ESTRATÉGIA DEFENSIVA
- FOCO: RESPONSABILIDADES LEGAIS
O que faz?
1. Faz o mínimo exigido legalmente
2. Assume responsabilidades econômicas e legais
3º NÍVEL – ESTRATÉGIA ACOMODATIVA
- FOCO: RESPONSABILIDADES ÉTICAS
O que faz?
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1. Faz o mínimo exigido eticamente
2. Assume responsabilidades econômicas, legais e éticas
4º NÍVEL – ESTRATÉGIA PROATIVA
- FOCO: RESPONSABILIDADES ESPONTÂNEAS E
VOLUNTÁRIAS
O que faz ?
1. Toma liderança nas iniciativas sociais.
2. Assume voluntariamente responsabilidades econômicas,
legais, éticas, espontâneas e antecipatórias.
Diante do exposto acima, rati fica- se a necessidade e
fundamental importância do comprometimento das Organizações
com o sócio-sustentável, uma vez que a Constituição Federal
vigente, que é a Lei Máxima do País, elenca a preservação do
meio ambiente em prol das gerações presentes e das futuras no
Artigo 225, como responsabilidade do Poder Público e da
coletividade, destarte:
§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito,
incumbe ao Poder Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies
e ecossistemas;
II – preservar a diversidade e a integridade do
patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material
genético;
III – definir, em todas as unidades da Federação,
espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade
dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV – exigir, na forma da lei, para instalação de
obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, estudo
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prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V – controlar a produção, a comercialização e
o emprego de técnicas, métodos e substâncias que
comportem risco para a vida, a qualidade de vida
e o meio ambiente;
VI – promover a educação ambiental em todos
os níveis de ensino e a conscientização pública para
a preservação do meio ambiente;
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na
forma da lei, as práticas que coloquem em risco
sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade.
Cujo teor sancionatório aduz, com propriedade:
§ 2º. Aquele que explorar recursos minerais fica
obrigado a recuperar o meio ambiente degradado,
de acordo com solução técnica exigida pelo órgão
público competente, na forma da lei.
§ 3º. As condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação
de reparar os danos causados.
E em relação a locais específicos, versa a lei que:
§ 4º. A Floresta Amazônica brasileira, a Mata
Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal MatoGrossense e a Zona Costeira assumem aspecto são
patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na
forma da lei, dentro de condições que assegurem
a preservação do meio ambiente, inclusive quanto
ao uso dos recursos naturais.
§ 5º. São indisponíveis as terras devolutas ou
arrecadadas pelos Estados, por ações
discriminatórias, necessárias à proteção dos
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ecossistemas naturais.
§ 6º. As usinas que operem com reator nuclear
deverão ter sua localização definida em lei federal,
sem o que não poderão ser instaladas.
No contexto globalizado, as Organi zações se tornam
contingenciais, de maneira justificável que:
Toda organização precisa funcionar como um
sistema integrado e coeso, em que todas as suas
partes se inter-relacionam intimamente para atuar
como uma totalidade a fim de alcançar um
determinado objetivo com sucesso. Contudo,
organizar, não é algo que se faça apenas uma só
vez. A estrutura organizacional não é permanente
e nem definitiva, pois deve ser ajustada e reajustada
continuamente sempre que a situação e o contexto
ambiental sofram mudanças. Assim, à medida que
enfrenta novos e diferentes desafios gerados por
mudanças externas, a organização precisa responder
adequadamente para ser bem-su cedida. As
mudanças externas que ocorrem no ambiente
trazem novas oportunidades, impõem novas
ameaças, proporcionam novas tecnologias e novos
recursos, incentivam a concorrência, condicionam
novas regulações legais e governamentais, e todas
essas influ ências passam a afetar direta ou
indiretamente os negócios da organização. E é aí
que reside o segredo: a organização precisa ser
bastante maleável e adaptável para ajustar-se
continuamente às demandas ambientais, não apenas
para sobreviver em um contexto mutável, mas,
principalmente, para acompanhar a realidade
externa e garantir o sucesso do negócio
(CHIAVENATO, 2010, p. 283).
O Planejamento Estratégico das Organizações deve estar
compromissado com o sócio-sustentável, pelos fundamentos
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expostos, visto que, em síntese, o contexto globalizado (século
XXI) exige mudanças, novos comportamentos organizacionais
(principalmente em relação à preservação do meio ambiente e
em vista da preocupação com o desenvolvimento social, ou das
comunidades) se perfazem urgentes, pois que a realidade presente
faz com que a inserção da referida preocupação não seja um
mero fardo ou ato de caridade, e sim, de desenvolvimento
consciente em prol de um futuro próximo.
O parágrafo anterior encontra-se fincado na teoria de
CHIAVENATO (2010), na exposição dos níveis de preocupação
com o sócio-sustentável, pela qual, o nível 1 não assume
responsabilidade alguma, o 2, apenas no aspecto legal, o 3, foca
na ética e, somente o 4 atua de forma voluntária.
Pensar em desenvolvimento organizacional no mundo pósmoderno compreende uma análise também filosófica, para que
o “lucro pelo lucro” não seja o ápice do Sistema, o que se
consubstancia com o entendimento sobre o “Dinheiro” do Filósofo
(BITTENCOUT, 2012, p. 24), que assim preleciona a respeito
no Artigo “Dinheiro: o dublê da virtude”:
A Filosofia é um valioso instrumento na
compreensão dos fenômenos econômicos, em
especial na decifração da essência do dinheiro e
suas influências imediatas no comportamento
humano, e as questões abordadas por pensadores
como Aristóteles, Marx, e mais recentemente,
Michael Sandel comprovam essa tese [...] O
problema do dinheiro e sua importância
fundamental no desenvolvimento das relações
sociais de modo algum é questão exclusiva para a
investigação dos economistas e especuladores
financeiros; aliás, talvez tenha sido justamente o
excessivo poder concedido a essas classes no
avanço do sistema capitalista um dos fatores que
motivaram a erupção das diversas crises financeiras
que assolaram o mundo no decorrer das últimas
décadas. A moderna tecnocracia capitalista
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caracterizou-se por vislumbrar a emancipação das
atividades econômicas de qualquer elemento que
não fosse exclusivamente associado aos parâmetros
pecuniários.
A realidade atual caminha, simultaneamente, com dilemas
antagônicos; assim, temos, por um lado, a visão globalizada do
capitalismo desenfreado, da tecnocracia, do lucro pelo lucro, ao
passo que a necessidade do desenvolvimento sócio-sustentável
se perfaz de form a contundente. Oportunam ente, A
IMPORTÂNCIA DO SETOR NÃO-LUCRATIVO se destaca,
conforme a autora estudada:
O que o Museu de Arte Moderna, a Fundação
Padre Anchieta, a Cruz Vermelha e o Greenpeace
têm em comum? Eles são exemplos de
organizações não-lucrativas, às quais Peter Drucher
deu o nome de ‘terceiro setor’ da economia, aquele
setor não-lucrativo que emprega um de cada dois
americanos. Essa comunidade de organizações
inclui hospitais, escolas, igrejas, museus, orquestras
sinfônicas, corais, centros culturais ou de artes,
entidades filantrópicas e beneficentes e outras
milhares de organizações – locais, regionais,
nacionais e mundiais – que visam objetivos de
ser viços sociais em oposto ao desempenho
lucrativo das empresas. Sem falar nas organizações
não-governamentais (ONGs), q u e estão
proliferando no mundo moderno em atividades
que vão desde preocu pações ecológicas e
ambientais a atividades relacionadas com educação,
pobreza e assistência social. As organizações nãolucrativas envolvem motivação não-financeira de
voluntários que trabalham como dirigentes ou
operacionais e qu e se identificam com a
comunidade e desenvolvem um suporte financeiro
com ajuda própria ou de terceiros para levar adiante
projetos sociais. O voluntariado está em plena
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expansão. Até as organizações lucrativas estão
estimulando e ajudando seus colaboradores a se
empenharem em atividades de apoio e suporte às
comunidades carentes. É comum encontrar
empresas que planejam e organizam jornadas de
voluntariado para dedicar um dia de trabalho
exclusivamente para oferecer serviços essenciais ou
ajuda financeira para comunidades pobres. O
retorno em termos de satisfação moral é muito
grande. (CHIAVENATO, 2010: 112).
As Organizações empresariais devem ser vislumbradas
contextualmente no âmago do século XXI, de maneira que os
fundamentos da Organização e do Planejamento (seus objetivos
e ti pos) devem estar vol tados ao desenvol vi mento das
Organizações com responsabilidade social, porque as vantagens
não devem ser apenas financeiras, mas de qualidade de vida e de
produtos e serviços.
A atividade organizacional encontra-se inserida no processo
de contextualização sócio-sustentável em todos os níveis
hierárquicos, uma vez que todos devem ter a consciência do
sócio-sustentável. As vantagens são vultuosas e necessárias,
quando as Organizações atentam à realização de planejamento
estratégico comprometi do com o sócio-sustentável, em
consonância com as diretrizes constitucionais a respeito da
responsabilidade da preservação do meio ambiente, que não é
exclusiva do Poder Público, mas, de todos, da coletividade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Renato Nunes. “Dinheiro: o Dublê da
Virtude”. Filosofia (São Paulo), n.75, 2012, p. 24-31.
CARVALHO, Virgíli o de Jesus Mi randa. Os valores
constitucio nais fundamenta is: esboço de uma anál ise
axiológico-normativa. Coimbra: Coimbra Editora, 1982.
CHIAVENATO, Idalberto. Administração nos Novos
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Tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988.
DICIONÁRIO ESCOLAR DA LÍNGUA PORTUGUESA –
Academia Brasileira de Letra (Com a nova ortografia da Língua
Portuguesa). 2.ed. São Paulo: Nacional, 2010.
MORAIS JUNIOR. Luís Carlos de. Eu sou o Quinto Beatle.
Rio de Janeiro: Quártica, 2012.
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O HIPERMODERNO NOSTÁLGICO E SUA
INFLUÊNCIA NA PUBLICIDADE
MARIANA AYRES TAVARES
A HIPERMODERNIDADE
A hipermodernidade é definida pelo autor Gilles Lipovetsky,
em seu livro A Felicidade Paradoxal, como a Fase III do que para
ele compõe as três eras do capitalismo de consumo. Antes, se
faz necessária uma rápida passagem pelas Fases I e II para de
fato a definição da Fase III.
A Fase I representa o movimento de transição da compranecessidade para com pra- supérfluo. Essa transi ção é
consequência de alguns fatores, entre os quais a passagem de
pequenos mercados locais para grandes mercados nacionais. Esta
expansão com erci al foi facil itada por um aum ento de
infraestrutura, expresso, por exemplo, na criação de estradas de
ferro e invenções como o telefone.
A melhoria na infraestrutura também trouxe para as fábricas
a automatização da produção, que possibilitou um aumento da
velocidade de produção e redução de custos. Nesse modelo, as
mercadorias seguiam uma padronização, que viabilizou uma
produção em massa. A redução dos preços finais das mercadorias
permitiu que os bens de consumo, até então restritos às classes
mais endinheiradas, chegassem ao resto da população, num
escoamento em massa. Esse movimento, por sua vez, acarretou
um aumento de demanda também impulsionado por um aumento
populacional. Para alguns autores, o aumento do mercado
consumidor justifica o crescimento da indústria e logo da
produção. O nascimento do capitalismo de consumo foi paralelo
às mudanças de hábito do consumi dor, como descreve
Lipovetsky:
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O capitalismo de consumo não nasceu
mecanicamente de técnicas industriais
capazes de produzir em grandes séries
mercadorias padronizadas. Ele é também
uma construção cultural e social que requereu
a “educação” dos consumidores ao mesmo
tempo q u e o espírito visionário de
empreendedores criativos, a “mão invisível
dos gestores”. (LIPOVETSKY, 2010, p. 28)
Durante a Fase I surgem as grandes marcas, sobretudo, em
função de uma necessidade de diferenciação, ou mesmo de
informação sobre um produto ou empresa nova no mercado.
Nesse contexto, a publicidade começa a profissionalizar seu
trabalho e atuar em sua primeira fase, a fase da publicidade
informacional. E, assim como descreve Lipovetsky, esse período
foi responsável pelo aparecimento do consumidor moderno: “Ao
desenvolver a produção de massa, a fase I inventou o marketing
de massa bem como o consumidor moderno.” (LIPOVETSKY,
2010, p. 29).
A Fase II do Capitalismo de Consumo tem inicio por volta de
1950, ao final da segunda guerra mundial, e traz um refinamento
do modelo de consumo de massa, iniciado na fase anterior. Nessa
etapa se apresenta a “Lógica da Quantidade”, para a qual a
extensão do modelo fordista foi fundamental.
Modelo industrial criado por Henry Ford, que desenvolveu a
linha de montagem em série, o Fordismo possibilitou a produção
padronizada em enormes quantidades, diminuindo o custo final
do produto com o objetivo de vender para mais pessoas. Na
América, esse período também foi marcado por um crescimento
econômico resultante da guerra, quando o poder de compra do
consumidor cresceu.
Esses dois fatores impulsionaram o consumo em massa por
mais três décadas e trouxeram o acesso e democratização de
produtos que até então eram acessíveis apenas para as classes
mais altas da sociedade. Essa importante mudança do modo de
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vida de uma parcela da sociedade foi responsável pelos chamados
“anos dourados” da classe média, que passou a comprar bens
duráveis como televisores, geladeiras e carros com maior
facilidade, saciando um desejo de compras crescente.
Esta mudança na forma de consumir dessa classe social está
refletida nas campanhas publicitárias da época. Enquanto na
primeira fase da publicidade a propaganda é informacional, na
segunda fase, com o aumento do mercado competitivo e procura
do consumidor, a propaganda tem seu apelo no desejo de
consumir. Surgem então campanhas que mostram a felicidade
através de um estilo de vida particular, de um período marcado
pelo desejo de ter e consumir mais do que o próprio produto, de
ter e consumir, sim, um estilo de vida. Sobre isso, como resumo
deve-se pontuar: “Poderosa dinâmica de comercialização que
erigiu o consumo mercantil em estilo de vida, em sonho de massa,
em nova razão de viver.” (LIPOVETSKY, 2010, p. 36).
Já a passagem para Fase III, que acontece a partir dos anos 80
até os dias de hoje, é dada nos dois campos estudados, isto é,
tanto na organização econômica quanto no comportamento do
consumidor. Mais uma vez, as passagens nos dois campos
acontecem de forma concomitante e estão centradas nas
mudanças de foco, da produção para o consumidor e do consumo
ostensivo para o consumo individualista.
Ao explicar o que significa a Fase III, o autor aponta como
mudança fundamental sobre o que vem a ser a sociedade do
consumo: “A fase III significa a nova relação emocional dos
indivíduos com as mercadorias, instituindo o primado do que se
sente, a mudança da significação social e individual do universo
consumidor que acompanha o impulso de individualização de
nossas sociedades.” (LIPOVETSKY, 2010, p.46)
Outros autores como Campbell e McCraken já apontavam
seus estudos nesta direção com a ideia de que o individuo se
expressa através do consumo. Apesar de os dois se distanciarem
em muitos pontos, defendem dois traços m arcantes do
consumidor moderno: o individualismo e a busca de experiência/
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felicidade através do ato de consumir. Experiência e emoção
são os aspectos valorizados pelo individuo, as bases do consumo
pelo prazer. E, no embate traçado entre necessidade e desejo, o
indivíduo tende a saciar vontades\desejos mais do que atender
suas necessidades.
Um destaque importante na abordagem do livro Cultura,
consumo e identidade diz sobre o ato de comprar relacionado à
descoberta de si, como uma forma de auto-expressão. Isso, de
certa forma, muda o paradigma anterior no qual o consumo era
para o outro, ostensivo. O que se diz agora é que o consumidor
moderno se expressa para si mesmo em um processo de
descoberta da individualidade, mais uma vez através do prazer e
da emoção. Abaixo, uma explicação da adaptação da frase “Penso,
logo existo” para “compro, logo existo”, que expressa bem este
momento:
Fazer compras (...) é uma das maneiras de
procurar por nós mesmos e por nosso lugar no
mundo. Apesar de acontecer num dos lugares mais
públicos, fazer compras é essencialmente uma
experiência intima e pessoal. Comprar é provar,
tocar, testar, considerar e pôr para fora nossa
personalidade através de diversas possibilidades,
enquanto decidimos o q ue precisamos ou
desejamos. Comprar conscientemente não é
procurar somente externamente, como numa loja,
mas internamente, através da memória e do desejo.
Fazer compras é um processo interativo no qual
dialogamos não só com pessoas, lugares e coisas,
mas também com partes de nós mesmos. Esse
processo dinâmico, ao mesmo tempo que reflexivo,
revela e dá forma a partes de nós mesmos que de
outra forma poderiam continuar adormecidas...O
ato de comprar é um ato de auto-expressão, que
nos permite descobrir quem somos. (BENSON
apud CAMPBELL; BARBOSA, 2006, p.53).
Hoje, o consumidor hipermoderno está no centro das
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estratégias das grandes empresas, que com a diversificação de
produtos e marcas atuam em um cenário hipercompetitivo. O
indivíduo busca no consumo o prazer e a si mesmo, numa
expressão de sua individualidade.
Entre os aspectos que compões este indivíduo hipermoderno,
para este estudo, é importante ressaltar a nostalgia que assim
como a experiência, traz pela memória, mesmo que cultural, os
sentimentos de prazeres e nesse ponto vale ressaltar que “O que
triunfa não é tanto a regressão psicológica quanto a consagração
social da juventude como ideal de existência para todos.”
(LIPOVETSKY, 2010: 73). O consumo nostálgico traz como
beneficio percebido muito mais a valorização e o prazer da
juventude. O gozo está no sentimento de jovialidade no consumo
dos produtos nos quais o individuo compõe a sua subjetividade
e a forma como quer ser visto pelo grupo social que pertence.
Nesse aspecto a publicidade consegue atuar trazendo um
cenário lúdico nostálgico com o objetivo de despertar esse
sentimento no consumidor, a sedução do discurso (imagético ou
verbal) está muito mais na identificação com a juventude do
que numa retomada de experiência vivida anteriormente, pois o
estimulo pode ter sido compartilhado anteriormente pela
sociedade e ser um elemento nostálgico cultural e não
necessariamente do individuo.
PUBLICIDADE - CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DA MERCADORIA
Com a descrição da Fase III entende-se o momento da
publicidade com o foco nas características emocionais de uma
determinada marca. Atualmente o capital mais valioso de uma
empresa está na sua marca, o brand equity que por definição é:
O valor agregado atribuído a produtos e
serviços. Esse valor pode se refletir no modo como
os consumidores pensam, sentem e agem em
relação à marca, bem como nos preços, na
participação de mercado e na lucratividade que a
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marca proporciona à empresa. O brand equity é
um importante ativo intangível que representa valor
psicológico e financeiro para empresa. (KOTLER,
2006: 270).
Este indicado de valor de marca vem sendo amplamente
utilizado, como exemplo, uma marca como a Coca-Cola possui
seu capital simbólico num valor em torno de 77 bilhões de dólares.
Por sua vez, cabe aqui a definição de marca, abaixo segue o
conceito utilizado pela autora Clotilde Perez:
Uma conexão simbólica e afetiva estabelecida
entre uma organização, su a oferta material,
intangível e aspiracional, e as pessoas para as quais
se destina com o objetivo de estabelecer
distintividade. (...) A publicidade é o meio que nos
permite acesso à mente do consumidor, criar um
estoque perceptu al de imagens, símbolos e
sensações qu e passam a definir a entidade
perceptual que chamamos de marca. (PEREZ,
2007: 320).
O que a autora nos propõe com essa visão é o entendimento
da decisão de compra para além dos atributos físicos de um
determinado produto/serviço, ao comprar um produto carregase todos os valores simbólicos atribuídos a ele através da
publicidade ou pelo próprio contexto cultural.
A relação entre os atributos físicos de um produto e os
emocionais começam na própria existência do serviço/produto,
o objeto só se define socialmente a partir do consumo. De acordo
com os estudos de Everardo Rocha, um objeto só tem o seu
significado completo no consumo, no qual este já apresenta uma
individualidade e um universo simbólico próprio, criado pela
publicidade, que torna-o capaz de produzir um efeito de sentido
no hiperconsumidor. O autor entende o lugar da produção como
a produção industrial/física de um objeto e o consumo como a
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forma como este está disponível para o consumidor.
Ainda sobre essa relação para Marx as mercadorias só atingem
uma existência social com a troca, ou seja, com o consumo, antes
disso, a mercadoria não se distingue e possui apenas a existência
física e material:
Somente pela troca é que os produtos do
trabalho adquirem, como valores, uma existência
social idêntica e uniforme, distinta da sua existência
material e multiforme como objectos úteis. Esta
cisão do produto do trabalho, em objecto útil e
objecto de valor, só teve lugar na prática a partir
do momento em que a troca adquiriu extensão e
importância bastantes para que passassem a ser
produzidos objectos úteis em vista da troca, de
modo que o carácter de valor destes objectos é já
tomado em consideração na sua própria produção.
A partir desse momento, os trabalhos privados dos
produtores adquirem, de facto, um duplo carácter
social. (SITE Arquivo Marxista na Internet, http:/
/www.marxists.org/portugues/).
Nesse sentido, o papel da publicidade aparece como o de
“operador totêm ico”, que classifica e i ndi viduali za um
determinado produto. Para o ele, a publicidade cria “um roteiro
de sentidos que emprestam conteúdos aos gêneros de produtos,
fazendo deles marcas específicas dotadas de nome, lugar e
significado” (ROCHA, 1985: 69).
Em seguida o estudo de caso servirá como exemplo a
utilização da nostalgia como argumento de venda e criação de
significado social do “Novo Fusca.”
ESTUDO DE CASO - NOVO FUSCA
O roteiro utilizado para este comercial retoma a década de
70 e recria o cenário lúdico-nostálgico com elementos culturais
que marcaram a época. É apresentado ao público da década de
70 o novo fusca para o público de 2013 os elos entre a marca e
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o consumidor são estabelecidos conectando os atributos
tecnológicos às lembranças culturais. Como, por exemplo, o
atributo “luz de Led” é apresentado para uma pessoa estereotipada
como “roqueiro” da época e a resposta dele é que ele adora “Led”
referência direta à banda de Rock Led Zeppelin.
(Fonte: ALMAPBBDO)
Além disso, há também a relação com o próprio fusca da época,
que neste modelo possui uma imagem desgastada, por isso até
mesmo a necessidade de ter o “novo fusca” para não carregar os
atributos negativos do carro no seu modelo antigo, que era
popular, o “novo fusca” não se posiciona atualmente como um
carro popular, é um carro que possui alto custo e se posiciona
com estilo como um produto “retrô”. No comercial quando o
Mussum, personalidade da Turma dos Trapalhões que está no
imaginário infantil dos adultos atuais, vê novo fusca utiliza seu
jargão e demonstra incredulidade ao se deparar com o novo
modelo.
Outro ponto forte – como falado anteriormente, a nostalgia
funciona muito para consumidor hipermoderno como um atributo
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de jovialidade – neste comercial é retomado o tema da juventude
que fez história a década de 70, representa-se a juventude do
movimento Flower Power e combinada às vantagens tecnológicas
apresentadas inclui na ilha de sentido do novo fusca a questão
da modernidade e jovialidade.
O exemplo utilizado demostra a forte ligação entre os
elementos utilizados para criação de um roteiro de sentido da
marca que adiciona os valores agregados à construção de marca
e como através da nostalgia a publicidade consegue criar uma
relação com o consumidor hipermoderno e através dela e do
consumo o carro cria uma identidade para além dos atributos
físicos e funcionais de qualquer carro concorrente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PEREZ, Clotilde. Semiótica e gestão de marcas In: PEREZ,
Clotilde; BARBOSA, Ivan Santo (Org.). Hiperpublicidade:
fundamentos e interfaces. São Paulo: Thomson Learning, 2007.
p. 319-339.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. Magia e Capitalismo: um
estudo antropológico da publicidade. 3ª ed. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1985.
KOTLER, Philip; KELLER, Kevin Lane. Administração
de marketing. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006.
LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: Ensaio
sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
CAMPBELL, Colin. Eu compro, logo sei que existo: as bases
metafísicas do consumo moderno In: CAMPBELL, Colin;
BARBOSA, Livia (Org.). Cultura, consumo e identidade. Rio
de janeiro: FGV, 2006.
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S ITE
ALMAPBBD O.
D isponí vel
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SITE PORTADA PROPAGANDA. Disponível em: <http:/
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O MANIFESTO HESITANTE DE SALLY
MANN: REFLEXÕES FOTOGRÁFICAS
SOBRE WHAT REMAINS
THIAGO OLIVEIRA CARVALHO
I pace upon the battlements and stare
On the foundations of a house, or where
Tree, like a sooty finger, starts from the earth;
And send imagination forth
Under the day’s declining beam, and call
Images and memories
From ruin or from ancient trees,
For I would ask a question of them all.
(YEATS, 2010, p. 269)
Partindo de observações específicas do escritor Jack Kerouac
a propósito da coletânea fotográfica The Americans, de Robert
Frank, Susan Sontag esboça um quadro genealógico panorâmico
da experiência visual norte-americana:
Para Kerouac – em nome da principal tradição
da fotografia americana –, a atitude predominante
é a tristeza. Por trás da pretensão ritualizada dos
fotógrafos americanos de olhar à sua volta, ao
acaso, sem preconceitos – iluminando temas,
registrando-os serenamente – repou sa u ma
pesarosa visão de perda. (2004: 82).
Se a tópica da perda6 no âmbito tratado forma, de fato, uma
corrente suficientemente robusta para a consolidação de uma
“tradição”7, torna-se sedutor inserir nesta linhagem uma fotógrafa
cujo títul o de uma de suas princi pai s obras pressupõe,
forçosamente, ao menos um traço da perda – What remains, de
Sally Mann.
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A primeira parte do segmento introdutório da obra, intitulado
“Matter lent” – imagens de restos mortais de um animal – oferece
uma quantificação curiosa da mecânica da perda, patente,
inclusive, na própria disposição das fotos. A fotografia inicial
revela um senso de totalidade – a identificação da figura do
cachorro, em sua relativa integridade, é praticamente imediata –
frontalmente prescindido por aquelas subsequentes, que
priorizam apenas os fragmentos materiais, como unhas, pelos e
ossos. Da imagem global às imagens parciais, Sally Mann executa
um procedimento matemático análogo ao que Eliane Robert
Moraes concebe como base para a “contabilidade” sadiana dos
corpos, que se pautaria em certo “privilégio dado às adições e
multiplicações, mesmo quando se trata de dar conta do que foi
desmembrado ou subtraído” (2013: 76). A foto inaugural,
portanto, multiplica-se na exata medida em que se submete,
dicotomicamente, à divisão, funcionando como uma espécie de
matriz que, uma vez fragmentada, poderia produzir apenas a
pluralidade do fragmento. Mann associa a temática da mutilação
material – perda que implica um todo anterior – à estilística da
reprodução – atentar ao prefixo “-re” – fotográfica, ao ponto de
realizar um “eficaz” projeto estético a partir de outra consideração
de Sontag: “A eficácia do relatório de perdas feito pela fotografia
depende de ela ampliar, de maneira constante, a iconografia
familiar do mistério, da mortalidade, da transitoriedade”8 (2004:
82).
É interessante sublinhar como o título da coletânea – What
remains – comporta a ambiguidade entre tais operações. O termo
“remain”, em sua materialidade substantiva, paira sobre o campo
semântico do “resto” – inclusive, restos mortais, em registro
formal 9 –, enquanto seu correspondente verbal veicula um sentido
de continuidade – retoma-se, aqui, o prefixo “re-”. Uma
multiplicação engendrada por uma divisão equacionaria,
naturalmente, uma continuidade de restos – ou, um “relatório
de perdas”. Ilumina-se, ademais, o título selecionado para esta
seção em parti cul ar – “Matter l ent” – matéria partida,
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compartilhada, dividida, mas precisamente no interstício do
empréstimo, que encerra, em suas conotações fragmentárias, o
fundamento da multiplicação e continuidade.
Coerentemente, a dinâmica linguístico-visual pontuada acima
se insinua no trecho de um sermão de Bousset estrategicamente
embutido após a fotografia introdutória:
All things summon us to death;
Nature, almost envious of the good she has
given us,
Tells us often and gives us notice that she cannot
For long allow us that scrap of matter she has
lent…
She has need of it for other forms,
She claims it back for other works. (BOUSSET
apud MANN, 2009: 11).
A subtração da matéria, nesses termos, exige sua pluralização,
de maneira que a constituinte “scrap of matter”, cuja amplitude
temática abarca a imagética do “resto” discutida, retomada num
“it” singularizado e totalizante – porquanto susceptível à
fragmentação – pluraliza-se em “other forms” e “other works”.
Fundamental perceber o arranjo que se sintetiza formalmente
em imagem-texto-imagens. Há um comportamento equacional
que equipara e media a dinâmica entre a imagem global e as
imagens parciais – o próprio texto. A primeira fotografia se
constituiria a partir da aglutinação das fotografias subsequentes
do mesmo modo que “scrap of matter” \ “it” se constituiriam a
partir de “other forms” \ “other works”. O texto, desse modo,
regula a própria linha temporal existente entre tais esferas – se
aquela aponta a experiência passada – anterior ao texto –
totalizante e singular, esta indica a lógica futura – pluralizada e
fragmentária. O processo de decomposição tematizado fixa-se
estilisticamente.
Naturalmente, o caráter cíclico – espiralado – impede a
estagnação do mecanismo. Semanticamente, “scrap of matter”
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já incide sobre o próprio reverso da unidade, na medida em que
compõe, em última instância, mais um todo-fragmento, posto
que fragmento de outro todo, este também oriundo de outro todo.
Sucessivos empréstimos, portanto.
Ora, que toda foto é, irreversivelmente, um fragmento, parece
uma obviedade primordialmente técnica. Segundo Dubois –
baseado numa tese elementar de Pierce –,
Em termos tipológicos, (...) a fotografia
aparenta-se com a categoria de “signos”, em que
encontramos igualmente a fumaça (indício de
fogo), a sombra (indício de uma presença), a cicatriz
(marca de um ferimento), a ruína (traço do que
havia ali), o sintoma (de uma doença), a marca dos
passos etc. (1993, p. 50)
A problematização desta estética do vestígio – resto –
marcada, como demonstrado, pelo título da obra, se impõe
metalinguisticamente em Mann num processo contíguo – porém
não idêntico – àquele do fotógrafo francês Guy Bourdin10 em
seu ciclo de imagens em mise en abyme (BURE [Int.]; BOURDIN,
2008: não numerado), que deflagram, em sua estrutura de foto
dentro da foto, uma espécie de contexto invisível – porque
exterior, inatingível, além de empiricamente, num paradoxo
insolúvel, situado no interior do fragmento fotográfico – da
própria imagem. Tentativa de contextualizar o descontextualizado
– ou o pós-contextualizado –, e totalizar o fragmento – ou o
pós-totalizado, apenas para maximizar a lucidez fragmentária da
fotografia – ou sua espiral de empréstimos.
Da (de)composição estético-temática à (de)composição
sintática do álbum fotográfico – a própria consciência da
composição fotográfica implica a decomposição – isolamento –
de suas partes, como argumenta – numa demonstração escritural
– Helmut Gernsheim em diferentes pontos de seu estudo sobre
a formalização visual em Lewis Carroll:
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With him, the whole arrangement of the picture
is expressive: the position of the picture, the placing
of accessories, the disposition of the empty space
arou nd them, the trimming of the print –
everything plays a part, everything is arranged in a
decorative manner. He w as a master of
composition (…) [T]he wire netting, the weeds
growing between the steps, the rough stone walls,
are quite daring elements of picture-making for
the period – daring, not for their accidental inclusion
but for their intentional non-avoidance. (…) Always
manifesting economy of means the few accessories
Lewis Carroll occasionally chooses – a folding
ladder, a flower pot, a dove, a croquet mallet, even
a toy gun – reveal a very personal taste, which is
expressed with lightness of touch and never fails
to add a decorative note. (Gernsheim, 1969: 2933).
Assim, infere-se que a si ntaxe das imagens em Mann
corresponde particularmente a certa sintaxe do olhar fotográfico.
Observar uma sequência de fotos de fragmentos mortais
precedida por um único referencial totalizante – o animal
reconhecível, identificável, portanto pronto para ser decomposto
e mapeado – propõe, metonimicamente, uma reflexão sobre o
desmantelamento do todo, na linha teórica apresentada, paralela
à própria tendência à sistematização do todo – composição –
fotográfico. O olhar analítico – pode-se afirmar, fotográfico –
de Gernsheim materializa-se numa escrita teórica que privilegia
tal procedimento – o arranjo linear de termos isolados e
enumerados graficamente por travessões ou dois pontos, de certo
modo, já declara a necessidade de se decompor uma foto para
assegurar a compreensão de sua composição.
Não coincidentemente a capa do livro – e, essencial atentar,
também a última fotografia de todo conjunto – traz um
desconcertante close-up – também dentro da proposta da
fragmentação – que revela apenas os olhos do objeto fotográfico.
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Mais do que o sentido primordial da imagem, denota-se, neste
contexto, uma espécie de convite à análise metafotográfica –
metonímica e circularmente fotográfica – espelhada, em certa
medida, no título da obra.
É, de fato, este mesmo olhar analítico que se manifesta no
interior das próprias fotografias da coletânea de Mann. A
estilística quase laboratorial, em sua proposta naturalista de
precisão, em determinadas imagens – cuja construção a própria
fotógrafa concebe, na introdução do livro, como “arqueológica”
(2009:.6) – poderia, numa leitura imediata, contrastar com os
efeitos ruidosos e dissonantes provocados pela escolha de um
procedimento técnico oitocentista – o colódio úmido. Mas é o
mesmo caráter empiricamente experimental – no sentido da
manipulação da experiência fotográfica – diretamente ligado à
dinâmica arqueológica – que possibilita uma extensão técnicoestética entre objeto fotografado e fotografia do objeto. Quanto
à preparação de fotos pelo uso do colódio, Pierre-Jean Amar
fornece um guia quase ritualístico: “Limpeza da placa”, “Modo
de espalhar o colódio”, “Imersão no banho sensibilizador”,
“Revelação da fotografia”, além de assinalar os chamados
“inconvenientes do processo” – a volatilidade do “éter”,
necessidade de “destreza na preparação das placas”, “material
pesado e i ncóm odo para execução”, desl ocam ento de
“equipamentos em carrinhos construídos no laboratório” (2010:
28-29). Ora, não seria propriamente analítico, científico um
ensaio fotográfico pautado numa autoconsciência pragmáticotécnica tão aguda? E não seria propriamente “arqueológico” a
tentativa científica associada à (de)composição plena de uma
dada experiência – experimentação –, em todos os seus traços
labirínticos? E não haveria uma influência espacial – estetizada
e prática – entre a real situação laboratorial, citada por Amar,
em sua alta complexidade e rigor, e um projeto estético de
temática laboratorial, também complexo e rigoroso? Como em
Gernsheim, é preciso aplicar um olhar inerente às próprias
imagens – e à sua concepção.
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A partir de tal ponto, pode-se pensar uma transição entre a
problemática da (de)composição ao topos da recomposição –
“reassemble” (2009: 6) –, termo lançado pela artista, em sua
introdução ao volume, ainda sobre o trabalho “arqueológico” de
manipulação de restos mortais, para, também arqueologicamente
– pode-se concluir –, fotografá-los. Se, como anali sado
anteriormente, Sally Mann compõe na medida em que decompõe,
a implicação final, fotograficamente, deve se situar no campo da
recomposição, um rearranjo exigido pela próprio projeto
essencialmente – fundamental ressaltar – estético da fotógrafa,
exatamente no contorno semântico conferido à “representação”,
por José Paulo Paes:
Representar é re-apresentar, tornar novamente
presentes – presentificar – vivências que, por sua
importância, mereçam ser permanentemente
lembradas: na mitologia grega, Mnemosina, a
memória, era mãe das nove Musas ou artes.
(2006:15).
Mann recompõe na medida em que reapresenta, manipulando
os restos mortai s para, então, transmutá- los em restos
fotográficos e, em última instância, presentificá-los. Do tempo
emblemático da morte – o passado – ao tempo emblemático da
fotografia – o presente –, o que ecoa uma interessante
consideração de Barthes sobre uma foto de Daniel Boudinet,
potencialmente aplicável à proposta manniana: “Costuma-se
achar que a fotografia capta o atual; aqui, mais filosoficamente,
ela diz esse tempo difícil: o presente” (2005: 204). Logicamente,
o presente fotográfico é, no limite, uma presentificação – nos
mesmos termos em que a composição se dá como recomposição
–, implicando, assim, uma lacuna temporal, tema delicadamente
explorado no ciclo de imagens em mise en abyme (BURE [Int.];
BOURDIN, 2008, não numerado), de Bourdin – já mencionado
–, relativo ao próprio ato de captura da imagem. Percebe-se que
a diferença entre o tempo da fotografia e o tempo “real” se
manifesta, entre outros aspectos, na configuração corporal do
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objeto fotografado – o primeiro, em processo, contínuo, como se
em suspensão; o segundo, congelado, sobrepujado pelo anterior,
como se já suspenso, morto. A presentificação como o próprio
processo, o parâmetro da continuidade.
Presentificação – não o presente em si – que se oferece como
um a problemati zação do tem po em What r emai ns. S e
primeiramente a fotografia presentifica o passado, seria cabível
pensar – embora não exclusiva, mas inclusivamente – a potencial
reversibilidade temporal da situação fotográfica em Mann. A
consolidação do projeto da perda se firma, em larga medida,
devido à qualidade anacrônica de imagens – definida, em termos
técnicos, pelo uso do colódio úmido – que, no entanto, em
diversos pontos, não aderem explicitamente, seja em termos
temáticos ou estilísticos, à condição nefelibata diagnosticada por
Michel Poivert quando, citando Jacques Rancière, numa referência
à escola pictorialista francesa11, indica, como base estética desta
última, certa “não-presença no presente” (2008: 13). Despida
de sua patente aproximação aos ideais pictóricos, além de um
impulso classicizante e mítico, a aplicabilidade da expressão de
Poivert deve ser regulada, no conjunto de Mann, sobretudo, por
uma espécie de insolubilidade permeável entre um modelo
tecnicamente arcaico e um argumento estilisticamente moderno
– já esboçado, inclusive, na autoconsciência crítica, no paradigma
inter-semiótico, e na própria apropriação lúcida – quase
antropofágica – de tal modelo tecnicamente arcaico numa
disposição artística moderna. Pode-se extrair uma possível diretriz
para tal discussão nos seguintes comentários de Poivert:
O que a fotografia moderna propõe (...) é o
modelo técnico de u ma ótica corrigida.
Pacientemente, os óticos tiveram sucesso em
eliminar as deformações que possuíam as óticas
primitivas a fim de obter resultados de grande
nitidez. A autoridade envolvida nesse
aperfeiçoamento ótico é criticada pelos amadoresartistas, q ue em nome de uma estética da
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interpretação, e sob outra autoridade (da psicologia
da percepção) reconhecem o olho como uma ótica
imperfeita. Daí viria a legitimidade do recurso às
óticas rudimentares, produtoras de efeitos de flou
(fora de foco), depois – segundo um processo de
racionalização de sua prática –, a definição e a
produção ótica de deformações calculadas para
obter o efeito de flou. Atitu de arcaizante,
deslocamento do problema técnico obre o lugar
da arte, a estética das deformações óticas formam
um (...) elemento de uma estratégia do anacronismo
(2008:14)
Sally Mann parece, neste aspecto, transitar entre duas esferas
técnico-formais. Se na primeira metade de What remains – as
seções “Matter lent” e “December 8, 2000” – o objeto da
fotografia se instala oticamente no âmbito da correção, num
trabalho de corrosão – imperfeição – restrito apenas à superfície
fotográfica; na subsequente – as seções “Antietam” e “What
remains”, o próprio objeto figura, a priori, como deformação.
Aquilo que se poderia denominar deformação pós-fotográfica
se exprime de modo particularmente emblemático nos dois
primeiros segmentos da obra – a tonalidade sépia e o efeito
danificado conferido às imagens não interferem – ou interferem
apenas epidermicamente – na percepção do objeto captado,
simulando, assim, um suposto sintoma natural de um desgaste
ou embotamento devido a algum componente externo, como
tempo ou manuseio. Contrariamente, no que tange à deformação
pré-fotográfica, em especial pelo advento do flou identificado
nos segm entos fi nais, pretende-se justam ente afetar a
representação intrínseca do objeto fotografado, como se no cerne
da (pré-)produção de tais imagens se localizasse a causa de suas
distorções.
Vale ressaltar como tais polos esquematizam-se por um
princípio de complementariedade temático-estilística. Topoi
recorrentes ao longo de todo repertório de Mann – não apenas
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em What remains, ainda que este possa ser tomado como seu
ápice teórico-crítico e metalinguístico – o intimismo da figura
humana – ou do humanizável – e a externalidade da imagem
paisagística – ou do naturalizável –, sob suas respectivas
funcionalidades subjetiva e objetiva, emparelham-se e aglutinamse, de maneira que, em “Matter lent”, orquestra-se uma
arqueologia humana de tendência científica, esvaziada, contudo,
no final do volume, a fim de compor o quadro fantasmático do
próprio sujeito em “What remains”; e alternadamente, em
“December 8, 2000” – aliás, o grupo mais referencial do livro –
, as acessíveis e delineadas imagens campestres proporcionam a
matéria-prima para as paisagens noturnas e difusas de “Antietam”.
Daí os padrões de objetivação – “ótica corrigida” – e subjetivação
– “estética da interpretação” –, do próprio fazer fotográfico,
alinhados, a um só tempo, direta e diagonalmente às categorias
objeti vas – espaço\externali dade – e subjeti vas –
eu\interioridade.
Há, portanto, no cerne dessa intrincada estruturação um senso
de realidade evanescente – sensibilidade que, contemporânea
aos embriões fotográficos resgatados tecnicamente por Mann,
evocaria, em certa medida, alguns elementos da corrente
simbolista de “approach coloquial” (LEITE, [s. d.]: 101) de um
Laforgue, ou do (pré)impressionismo de um Degas, cuja pintura
“procurava realçar a impressão de espaço e de formas sólidas”
(GOMBRICH, 1999: 526). Concebida teoricamente em termos
literários ou pictóricos oriundos da segunda metade do século
XIX, a coletânea não traduz uma proclividade autenticamente
anacrônica, mas, antes, uma proporcionalmente entrelaçada a
juízos já modernos dentro das respectivas manifestações
artísticas. Mann tangencia a concretude do real em suas
im inênci as vol átei s 1 2 , convocando – i nevi tável e
apropriadamente, embora, aqui, em sua coloração estética – o
aforismo de Marx retomado por Marshall Berman – “Tudo que é
sólido desmancha no ar” (2007).
Transpõe-se, neste m om ento, a tese basil ar para o
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desenvolvimento deste estudo – a “visão de perda” relativa à
“pretensão ritualizada dos fotógrafos americanos de olhar à sua
volta, ao acaso” (2004: 82) – a seu exame conclusivo de corte
efetivamente contemporâneo, ou seja, é justamente a concretude
do mundo obj etivo – a “realidade” – que, não apenas
subjetificada, mas instituída signo – ou índice fotográfico – de
sua própria ausência. Como Boris Kossoy assinala:
A realidade está nas imagens, não no mundo
concreto, pois este é efêmero e aquela, perpétua.
A realidade das imagens é a realidade da sombra,
sem carne, sem sangue... A realidade das imagens
é a da aparência do duplo, dos corpos possuídos
ou tomados do real, tridimensional; simulacros que,
no espaço e no tempo, passam a ocupar o seu
papel de vida eterna, posto que infinitos na duração.
Representações vazias, plenas de aparências e de
significados perdidos. (2007: 142).
É, dialogicamente, a própria “visão de perda” que se forja
desdobramento de uma presença, como se nota na imagem mais
significativa da obra – abertura e conclusão –, com sua turbidez
quase total, exceto nos olhos, após uma série de fotos que, de
alguma forma, obscurecem ou desfocam os mesmos. Trata-se de
uma materialização do contexto esvaziado que o olhar apreende
e no qual o olhar se insere. Da “visão de perda” à visão da perda.
Instigante – e hesitante – a sistemática de um álbum
fotográfico intitulado What remains. Tão instigante – e hesitante
– quanto a escritura teórico-ensaística demandada por um álbum
fotográfico intitulado What remains . Daquilo que François
Soulages, à guisa de conclusão – atenta-se ao conclusivo “pois”
– coroa como “pois, a articulação entre o que se perde e o que
permanece”, isto é, “a fotografia” (2010: 132), o título da obra
de Sally Mann eclode em sua força teórica, ensaística e, logo,
escritural, catalisada ainda, pelas diversas citações literárias, além
de textos pontuais escritos pela própria fotógrafa, objetivando
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iluminar o background criativo do conjunto. Explora-se a latência
de um manifesto fotográfico – escrito ou fotografado? – ao gosto
barthesiano:
O texto não “comenta” as imagens. As imagens
não “ilustram” o texto: cada uma foi, para mim,
somente a origem de uma espécie de vacilação
visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o
Zen chama de satori; texto e imagem, em seus
entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a
troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita,
e neles ler o recuo dos signos (BARTHES, 2007:
5).
Não seria esta a “origem” de uma escrita que “vacila” – hesita
– entre multiplicação e divisão, entre composição e decomposição
– além da recomposição –, entre totalidade e fragmento, entre
passado e presente, entre distorção e clareza, entre sujeito e
objeto, entre presença e ausência, ou seja, a própria fotografia
hesitante, inscrita no olhar – “o corpo, o rosto, a escrita” –
ambivalente – perdido – de um “o que permanece(?)”?
NOTAS
6
Sobrepujando, aqui, o campo fotográfico, o filme Alice nas cidades, de Wim
Wenders, parece ecoar com agudeza tal elucubração, como se tal experiência
visual americana pudesse constituir apenas uma lacuna; evidencia-se, no contexto
fílmico, que a própria atividade fotográfica faz-se sintoma de uma perda: da
aparente impossibilidade de se escrever um artigo sobre os Estados Unidos
resulta a ideia – e sua consecutiva concretização – de fotografá-lo.
7
Entre possíveis precursores e herdeiros – além de contemporâneos imediatos
– é possível vislumbrar alguns nomes que, em maior ou menor medida, sob
diversas roupagens, compartilham um denominador comum à chamada
“tradição” da perda na fotografia americana, tomando como referência,
naturalmente, o repertório estético-temático de Robert Frank: Alfred Stieglitz,
Dorothea Lange, Joel-Peter Witkin, Diane Arbus, William Eggleston, Nan
Goldin, entre outros.
8
No filme Cría Cuervos, de Carlos Saura, é a partir de uma ampla “constelação”
fotográfica – acompanhada por uma melancólica composição musical de Federico
Mompou – que se introduz o fragmentado núcleo familiar, como se apenas a
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imagem, em sua capacidade de constatar perdas, pudesse, antes de qualquer
apresentação física, validar, por meios multiplicativos, tal fragmentação.
9
De acordo com o Oxford advances learner’s dictionary, na sua forma substantiva,
“remains” pode ser definido, formalmente, como “the body of a dead person
or animal” (2000, p. 1120).
10
A relação estabelecida, neste aspecto, entre Sally Mann e Guy Bourdin é
meramente conceitual, até didática, sendo o último inquestionavelmente mais
explícito e robusto quanto à questão tratada.
11
Segundo Pierre-Jean Amar, o pictorialismo genericamente, não apenas sua
vertente francesa, “insurge-se (...) contra a grande aridez da precisão fotográfica”
(2010: 88), ponto fulcral da produção dita “vanguardista”, que Poivert rastreia
na “straight photography de Stieglitz” (2008: 10). Esboça-se, então, uma dicotomia
sistematizada que, embora relativamente variegada, propicia um direcionamento
para a polarização entre o “clássico” – fotografia idealizada pictoricamente ou
“artisticamente” – e o “moderno” – fotografia concretizada fotograficamente
ou “documentalmente” – no campo fotográfico, cujo iminente deslocamento e
diluição Sally Mann realiza.
12
Recomenda-se o filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni, que tematiza a
fotografia exatamente nestes termos.
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Wenders, Peter Genée, Veith V. Fürstenberg. Bar ueri: Vinny
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städten.
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70, 2010.
BARTHES, Roland. Inéditos, vol. 3: imagem e moda. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
__________. O império dos signos. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2007
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BLOW up: depois daquele beijo. Direção: Michelangelo
Antonioni. Produção: Carlo Ponti. Manaus: Warner Home Video,
2009. 1 DVD (111 min).
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BURE, Gilles de [Int]; BOURDIN, Guy. Guy Bourdin.
Londres: Thames & Hudson, 2008.
CRÍA cuervos. Direção: Carlos Saura: Produção: Elias
Querejeta. [S.l.]: Platina Filmes, 1976 [produção]. 1 DVD (104
min).
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus,
1993.
GERNSHEIM, Helmut. Lewis Carroll photographer.
Londres: Dover, 1969.
GOMBRICH, Ernst. A história da arte. Rio de Janiero: LTC,
1999.
HORNBY, Albert Sidney. Oxford advanced learner’s
dictionary. UK: Oxford University Press, 2000.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o
perpétuo. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
LEITE, Sebastião Uchoa. Crítica clandestina. Rio de
Janeiro: Livraria Taurus Editora, [s.d.].
MANN, Sally. What remains. Nova York: Bulfinch, 2009.
MORAES, Eliane Robert. Perversos, amantes e outros
trágicos. São Paulo: Iluminuras, 2013.
PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
POIVERT, Michel. A fotografia francesa em 1900: o fracasso
do pictorialismo. ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 7-15,
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SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia
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SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e
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YEATS, William Butler. Collected poems. Londres: CRW
Publishing, 2010.
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HOMEM, DEUS E MÁQUINA NA
LINGUAGEM HEAVY METAL
FLAVIO PEREIRA SENRA
O ESPERLHO QUEBRADO DA PÓS-MODERNIDADE
Uma das discussões mais recorrentes no meio acadêmico é a
que se faz a respeito do tempo em que nos inserimos no presente,
cultural e cronologicamente. A despeito de uma série de
terminologias específicas que tentam definir esse momento, uma
ideia surge de forma recorrente: a de uma Pós-Modernidade na
qual estaríamos imersos e que, concomitantemente, regeria nossas
vidas13 .
O prefixo pós denota um elemento ou evento surgido em um
momento posterior. Logo, essa tal Pós-Modernidade seria
meramente um momento posterior à modernidade. Mas a
definição não é tão simplista assim, especialmente levando-se
em consideração a enxurrada de teorias conflitantes sobre o tema.
Stanley J. Grenz afirma que “o pós-modernismo nasceu em
St.Louis, Missouri, no dia de 15 de julho de 1972, às 15 horas e
32 minutos” (PEREIRA, 2007: 01). O autor refere-se ao projeto
de moradia de Pruitt-Igoe, de St.Louis, outrora visto como marco
da arquitetura moderna, representando, dessa forma, um novo
paradigma do que seria a modernidade. Todavia, a construção
fora implodida naquela mesma tarde, o que, de acordo com o
mesmo autor, simbolizaria “a morte da modernidade e o
nascimento da Pós-Modernidade” (Ibidem, ibidem).
A suposta (e irônica) exata determinação cronológica do início
da Pós-Modernidade, sob uma perspectiva simbólica, já extrapola
a carga semântica tradicional do prefixo pós. Se a construção de
Pruitt-Igoe seria a metonímia da modernidade, percebe-se que a
Pós-Modernidade não foi advinda de um prolongamento dessa
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modernidade, mas de uma implosão, um desmoronamento, uma
desconstrução. Ou seja, a Pós-Modernidade seria a negação da
modernidade em si. A definição da Pós-Modernidade não como
um “momento que veio após a modernidade” mas como um
“momento que desconstrói a modernidade” é de grande
importância, especialmente se for lembrado que a modernidade
é tida como uma era de estabelecimento de uma série de
paradigmas culturais, sociais, econômicos, políticos, tecnológicos
e filosóficos que definiram não só o rumo que o Homem deveria
tomar mas, acima de tudo, o próprio Homem em si. Em outras
palavras, a Pós-Modernidade é o espelho velho e quebrado no
qual tentamos ver o nosso reflexo. Tentamos.
Essa singela metáfora do espelho quebrado aponta para o
caráter pluriforme da Pós-Modernidade, especificamente falando
das concepções identitárias. As alterações de ordem estrutural
ocorridas nas sociedades modernas no final do século XX
fragmentaram as outrora sólidas concepções de identidade, tais
como a ideia de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça,
nacionalidade, dentre outras. Esses “cacos do espelho pósmoderno” conduzem a um esvaziamento de uma “noção de si
mesmo” da identidade (ora mencionada como sujeito), processo
comumente referido como descentralização do sujeito, ou crise de
identidade.
Não é muito difícil refletir acerca das razões de tal crise.
Estando inserido em uma condição pós-moderna, o Homem
também seria, por si só, pós. Esse “pós-Homem Moderno”,
contrariando as expectativas do que ele foi um dia, o “Homem
Moderno”, não mais encontra respostas claras a respeito de sua
própria identidade. Grosso modo, o Homem pós-moderno não é
mais capaz de moldar sua própria noção de identidade tendo
como parâmetro a razão, esse (supostamente) sólido pilar da
modernidade.
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RAZÃO, HOMEM E CIÊNCIA
Jean Francois Lyotard trabalha esses conceitos de maneira
bastante pertinente em seu O Pós-Moderno (LYOTARD, 1990).
As transformações de ordem tecnológica atreladas ao processo
de industrialização e mecanização geraram uma nova forma de
saber, uma nova noção de “Verdade”. No decorrer desse
crescimento tecnológico, testemunha-se uma crise de conceitos
cruciais ao pensamento moderno – como a ideia de Razão, de
Sujeito e de Verdade. De acordo com Lyotard (Ibidem, p. vii), as
sociedades pós-industriais sentiram a necessidade de desenvolver
novos conceitos mais condizentes com a lógica da produção
científico-tecnológica. É aqui que entra o conceito da PósModernidade. “O pós-moderno, enquanto condição da cultura
nesta era, caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante
o metadiscurso filosófico-metafísico com suas pretensões
atemporais e universalizantes” (Ibidem, p. viii).
Há uma grande diferença entre a visão que o Homem faz do
pensamento científico na era moderna e na pós-moderna.
Naquela, a ciência, analisada por um viés herdeiro de ideias
iluministas, era vista como uma forma de enobrecimento moral
e espiritual do Homem e da Nação. Já na visão pós-moderna, a
ciência passa a ser vista apenas como “um certo modo de
organizar, estocar e distribuir certas informações” (Ibid., p. 18).
Tal interpretação do saber científico atrelado às tendências
cibernéticas / informáticas / informacionais da era pós-moderna
(uma era essencialmente pós-industrial, frisa bem o autor) afasta
da ciência qualquer estatuto de “elevação moral” ou “evolução
espiritual”, imprimindo-lhe um caráter reificado, medido pela
quantidade de informações (dados) que se pode acumular e,
acima de tudo, utilizar subsequentemente, tal qual mercadoria
de troca, seguindo uma lógica de mercado puramente capitalista.
Por esse motivo as “sagradas” delimitações de diferentes
campos científicos modernos entram em desarmonia – em crise.
A ciência foi um dos pilares do pensamento moderno, trazendo
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ao Homem a possibilidade de desenvolver conceitos através da
“factualidade”, da “lógica”, da “racionalidade”, erguendo uma
imensa pilastra ideológica que se convencionou chamar de razão,
consequentemente vista como verdade. A Pós-Modernidade fez
com que o Homem não mais conseguisse apoiar-se nessa pilastra,
agora rachada, seja pelo desgaste do passar do tempo, seja pelo
próprio Homem tê-la rachado a golpes de suas mãos desiludidas.
DEUS-CUMPUTADOR: UM DELÍRIO14
Tal senso de descrença no outrora “divino” poder do saber
científico imprimiu-se de diferentes formas em inúmeros ramos
culturais da era pós-moderna, em especial na produzida nas três
últimas décadas do século XX. No ramo literário, testemunhase a ascensão do movimento Cyber punk. S uas tramas se
desenrolam em um universo futurista marcado pela dicotomia
“Alta Tecnologia” x “Baixo Nível de Vida” (High Tech X Low
Life). Essa tensão se faz presente pela mescla de elementos de
tecnologia avançada, como a informática e a cibernética, com
um nível crônico de desordem e anarquia social – daí a aglutinação
cyberpunk. Logo, mais do que um mero subgênero da Ficção
Científica, essa tendência moldou-se como uma resposta à
mesma, tendo em vista que caminha na contramão da utopia de
um mundo futurista ordenado conforme apregoado pela Ficção
Científica da primeira metade do século XX, vide séries aclamadas
como Jornada nas Estrelas (Star Trek). Logo, a grande tônica
cyberpunk é o pessimismo sombrio em relação ao progresso
científico, e como este cria uma sociedade marcada por uma
alarmante distopia niilista na qual o Homem, ao invés de Sujeito,
é meramente um Objeto neste mundo regido pelas leis do
maquinário.
O imaginário cyberpunk extrapolou as fronteiras literárias no
decorrer das décadas de 1980, de 1990 e, subsequentemente, de
2000, fazendo-se presente em outras vertentes da cultura de
massas. O cinema foi o primeiro gênero discursivo a abarcar o
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gênero com o clássico Blade Runner, de 1982, que por sua vez
baseou-se no livro Sonham os androides com ovelhas elétricas?, de
Philip Kindred Dick. As trilogias arrasa-quarteirões Robocop, O
Exterminador do Futuro e Matrix também se inserem nesse
contexto. A televisão também seguiu a tendência, com séries
como Max Headroom e desenhos animados, em especial os de
origem japonesa, denominados Anime. Akira, Ghost in the Shell e
Gunn- Battle Angel são alguns de uma enxurrada de produções. O
mercado dos Jogos de videogame e de RPG 15 , igualmente
influenciados, lançaram itens dos mais diversos, como as partes
mais recentes da série Final Fantasy, Metal Gear, GURPS
Cyberpunk, Shadowrun, dentre outros. A música popular, como
seria de se esperar, expressou de diversas formas o “horror ao
futuro” tipicamente cyberpunk. Diferente não seria com o heavy
metal, objeto de estudo deste texto. Reproduz-se um exemplo a
seguir, com uma tradução livre ao lado.
“COMPUTER GOD”
Waiting for the revolution
New clear vision - genocide
Computerize god - it's the new religion
Program the brain - not the heartbeat
Onward all you crystal soldiers
Touch tomorrow - energize
Digital dreams
And you're the next correction
Man's a mistake so we'll fix it
Take a look at your own reflection
Right before your eyes
It turns to steel
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There's another side of heaven
This way - to technical paradise
Find it on the other side
When the walls fall down
Love is automatic pleasure
Virtual reality
Terminal hate - it's a calculation
Send in the child for connection
Take a look at the toys around you
Right before your eyes
The toys are real
There's another side of heaven
This way - to technical paradise
Find it on the other side
When the walls fall down
Midnight confessions
Never heal the soul
What you believe is fantasy
Your past is your future
Left behind
Lost in time
Will you surrender…?
Waiting for the revolution
Program the brain
Not the heartbeat
Deliver us to evil
Deny us of our faith
Robotic hearts bleed poison
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On the world we populate
Virtual existence
With a superhuman mind
The ultimate creation
Destroyer of mankind
Termination of our youth
For we do not compute
No !
DEUS COMPUTADOR (TRADUÇÃO)
Aguardando a revolução
Nova visão clara – genocídio
Compute Deus – é a nova religião
Programe o cérebro –
Não o batimento cardíaco
Avante todos os soldados de cristal
Toque o amanhã – energize
Sonhos digitais
E você é a próxima correção
O homem é um erro
Então vamos consertá-lo
Dê uma olhada em seu próprio reflexo
Ante seus olhos
Ele se transforma em aço
Há um outro lado do paraíso
Por aqui – ao paraíso técnico
Encontre isso no outro lado
Quando as muralhas caírem
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O amor é prazer automático
Realidade virtual
Ódio terminal – é um cálculo
Envie a criança à conexão
Dê uma olhada nos brinquedos
Ao seu redor
Bem diante de seus olhos
Os brinquedos são reais
Há um outro lado do paraíso
Por aqui – ao paraíso técnico
Encontre isso no outro lado
Quando as muralhas caírem
Confissões à meia-noite
Nunca curam a alma
O que você crê é fantasia
Seu passado é seu futuro
Deixado para trás
Perdido no tempo
Você se renderá…?
Aguardando a revolução
Programe o cérebro
Não o batimento cardíaco
Conduza-nos ao mal
Nos renegue nossa fé
Corações robóticos sangram veneno
Sobre o mundo que povoamos
Existência virtual
Com uma mente super-humana
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A última criação
Destruidor da humanidade
Extermínio de nossa juventude
Pois nós não computamos
Não!
(BLACK SABBATH, 1992:01)
O título “Computer God” já evoca dois elementos-chave da
com posi ção identi tári a do Hom em : a tecnol ogia,
metonimicamente representada pela imagem do computador, e
a figura de Deus. Pode-se afirmar que há aqui dois tipos distintos
de fé muito preciosas e determinantes para o ser humano: a fé
no progresso (a ciência, a razão, a tecnologia, ou qualquer outro
termo cabível) e a fé religiosa. A união desses dois elementos
cri a a imagem de um Deus-Computador, metáfora que
inicialmente contempla a idei a de um endeusamento às
“maravilhas tecnológicas”, um culto quase religioso ao processo
de mecanização do mundo que determinou os rumos da era
moderna. Porém, o mesmo título também permite uma análise
inversa: a existência de um “Deus-Computador” pode não indicar
apenas ver a máquina como deus, mas também o Deus como
máquina: “Compute Deus – é a nova religião”. Trata-se uma
representação simbólica de uma aplicação da visão científicoracional sobre o universo religioso, o que aponta para as inúmeras
ocasiões em que a ciência procurou, principalmente na referida
“Era Moderna”, expl icar, categori zar, quantificar ou
simplesmente desconstruir de alguma maneira questões de ordem
metafísica e/ou espiritual que sempre foram um desafio assumido
para cientistas.
Pois, afinal de contas, “existe outro lado do paraíso”, há uma
alternativa à fé religiosa, à crença em um reino aonde todos irão
depois da morte para serem recompensados por seus atos
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moralmente aceitáveis na terra. Trata-se do “Paraíso Técnico”,
uma “salvação” de cunho tecnológico para a alma humana,
renegando, assim, o conceito tradicional cristão do Paraíso. A fé
e a moral religiosa não trarão conforto para a alma. Em verdade,
de acordo com os versos da canção, não trarão absolutamente
nada, pois “confissões à meia-noite” feitas em meio a pais-nossos
e ave-marias não hão de “curar a alma”, e toda a crença é definida
como “fantasia”. Mais do que tentar explicar Deus sob um viés
puramente reificado, tem-se aqui uma negação absoluta de
qualquer tipo de fé, sendo esta perfeitamente substituível pelo
maquinário, pela tecnologia, pela modernidade – novamente, o
“Deus-Computador”.
Entretanto, muito mais do que um tom meramente antideísta
ou ateísta, os versos de “Computer God” refletem perfeitamente o
estado de “falta de rumo” ou “confusão ideológica” do Homem
pós-moderno. Afinal, a mesma modernidade maravilhosa que
outrora era a salvação da alma ferida mostra-se um engodo, uma
desilusão, já que ao invés de “livrar-nos do mal”, como prega a
tradicional oração cristã “Pai-nosso”, o Deus-Computador há
de “conduzir-nos ao mal”, e nos negará qualquer fé, seja a
existente na religião, na tecnologia, no futuro ou no próprio
homem. A desilusão com a máquina se faz evidente nos versos
finais, sendo a “existência virtual”, em oposição à existência
fí si ca, humana, taxada com o el em ento “destruidor da
hum anidade” que há de causar o “extermí nio de nossa
juventude”, justamente o aniquilamento da geração vindoura. É
o futuro que há de destruir o próprio conceito de futuro. O verso
final, em tom de protesto, conclama que “nós não computamos”,
ao que a canção termina com um sonoro e agressivo “não”,
simples advérbio que sintetiza a rejeição a toda e qualquer ideia
de progresso, de avanço, de modernidade.
A FÉ NO MICROCHIP
O título da canção concatena duas forças motrizes do homem
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ocidental contemporâneo, a ciência e a fé, não sob a perspectiva
destes dois emissores, mas pela ótica do receptor, do objeto, no
caso, do Homem – que há de se ajoelhar ante esse “Deus do
maquinário” e fazer todas as suas orações e programações, sempre
“aguardando a revolução” – industrial, possivelmente. A dita
“terceira revolução industrial”, tão aguardada e apregoada pela
era moderna. Entretanto, contrariando todas as expectativas de
seu fiel seguidor, esse Deus não trará forma alguma de salvação,
e sim de danação. A “nova clara visão” trará apenas “genocídio”.
Ainda em diálogo direto com seu interlocutor, esse apocalíptico
eu lírico o instrui a programar o cérebro, e não as batidas do
coração. Assim como deve “Computar Deus” – tratá-lo como
máquina, “coisificá-lo”, usar a fé como se usa um teclado de um
Macintosh –, o interlocutor deve programar seu próprio cérebro,
seu pensar, sua razão, como se cada nervo de sua massa cinzenta
fosse um microchip a ter mais e mais dados a serem salvos. O
coração recebe uma dupla acepção: do ponto de vista biológico,
é a fonte da vida, o músculo que bombeia o sangue para todo o
corpo humano. Já poética e popularmente, o coração é associado
à esfera dos sentimentos humanos, das emoções – daí expressõesclichê como “estar com o coração partido” para designar alguém
emocionalmente desolado, ou “coração gelado” para definir um
indivíduo sem emoções. Independentemente do viés adotado para
analisar a imagem do coração, ambos referem-se intimamente
ao que mais difere o ser humano da máquina: a vida e a
emotividade. E é justamente essa esfera que não deve ser
“computada”, “programada”, de acordo com o último verso da
estrofe em questão. Preserve o coração – preserve o humano.
Ou, pelo menos, tente. Assim avisa brevemente o eu lírico
em seus versos dramáticos antes de descrever a relação
dicotômica do progresso da máquina e a queda do homem:
“Avante todos os soldados de cristal/ Toque o amanhã –
energize/Sonhos digitais/E você é a próxima correção/O homem
é um erro então vamos corrigi-lo”. Os seres que compõem esse
exército são soldados, elementos beligerantes feitos de cristal.
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Essa construção metafórica desempenha um papel importante
na contextualização lírica de “Computer God”, pois o elemento
cristal remete a uma ideia de fragilidade e delicadeza, como se o
combatente feito deste material fosse quebrantável e descartável.
Deve-se também atentar para o fato de que as propriedades
óticas de um cristal não permitem que ele emita luz própria, e
sim que apenas reflita a luz vinda de alguma outra fonte – como
uma tela de computador, por exemplo, elemento presente no
título da canção.
Vê-se, então, que essa imagem construída caracteriza o
elemento humano como um ser passivo, submisso, destituído de
qualquer capacidade de exprimir sua vontade ou suas ideias –
sua “luz própria”16. Ainda seguindo esse viés metafórico, se for
assumido que esses soldados de cristal estão refletindo a luz vinda
da tela do computador, torna-se possível afirmar que se tem aqui
uma representação do homem como alguém impotente perante
o elemento máquina, completamente subjugado pelo corpo
artificial que ele mesmo inventou, seguindo e refletindo sua “luz”.
O elemento soldado também contribui para essa desapropriação
de qualquer caráter ativo/agente do ser humano, pois o
beligerante pode ser definido como aquele que segue ordens,
que luta por alguma causa que, deixando à parte o fato dele amála ou sequer crer nela, não foi definida por ele, e sim por alguma
figura de liderança. É um Chefe de Estado que muito dificilmente
estará ao lado do soldado no front de batalha, imerso no mesmo
coletivo de combatentes destituídos de qualquer individualidade
(de qualquer “luz”), seguindo, de forma cega, as determinações
políticas que deram início ao combate.
Associar a imagem dos soldados de cristal que seguem a luz
da tela do computador com a ideia da supremacia do elemento
artifi cial sobre o orgânico faz sentido se for levado em
consideração que na mesma estrofe é dito que o homem é um
erro a ser corrigido pela retificadora máquina. Percebe-se então
que os versos supracitados de “Computer God” definem a ação
do elemento maquínico sobre o ser humano com o
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desindividualizadora e desumanizadora. Com isso, pode-se ver a
descrição de um ourobórico círculo vicioso: o Homem cria a
máquina e faz com que ela avance, a máquina destrói e reconstrói
o homem, anulando-o e padronizando-o, pondo-o num mesmo nível
que ela – um nível não-humano.
É justamente a partir desse momento que se “dá uma olhada
no próprio reflexo” e ele “se transforma em aço”. Quão
aterrorizante é não reconhecer a imagem do próprio rosto refletida
no espelho – não reconhecer a si mesmo, não reconhecer a própria
identidade! Esta, outrora humana, demasiada humana17, feita de
carne, agora é feita de metal – ferro. Não há nada mais tipicamente
pós-moderno do que a sensação de estranhamento consigo
próprio, a produção de uma espécie de “auto-alteridade”, onde
o homem olha para si mesmo e vê o outro ao invés de si mesmo
– vê a máquina no momento em que esperava ver o homem. Tal
sentimento angustiante é perceptível ao longo de “Computer God”,
explicitado de maneira mais contundente nesses últimos versos
destacados. Desse m odo, sendo a fai xa inicial do di sco
Dehumanizer (“Desumanizador”) nota-se que a canção sintetiza
perfeitamente o título do álbum. A capa do disco, reproduzida a
seguir, também dialoga diretamente com essa composição:
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[Capa do disco Dehumanizer, da banda Black Sabbath, 1992]
Efetuando uma leitura da imagem em questão, vê-se uma
espécie de “templo sagrado cibernético”, com inúmeras grandes
pilastras e um teto ovalado – tal qual uma capela, um ambiente
para o culto religioso. Mas nessa igreja em específico não há
imagens de santos ou crucifixos, e sim uma tela de computador,
em destaque, sobre o altar principal da nave central. O pedestal
que sustenta esse monitor do “Deus-Computador” é uma réplica
de um esqueleto humano de olhos vermelhos sustentando a
máquina com as próprias mãos. Não se pode ignorar o fato de
que esse esqueleto possui feições malignas, ressaltadas pelos seus
olhos avermelhados e suas mãos com garras afiadas.
É sabido que uma representação antropomorfizada da morte
é antiga na história da civilização ocidental. A imagem de um
esqueleto sob tal acepção surge no século XV entre os celtas, e
desde então passou a ser recorrente em diversas culturas para
representar a ideia da morte. Mesmo no presente essa associação
ainda é culturalmente válida, o que nos faz crer que o pedestal
da “caveira malvada” erguendo o computador ao fundo da foto
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seria uma representação para o progresso tecnológico e suas
possíveis consequências: o homem “sustenta” a tecnologia, ao
mesmo tempo em que ela o “mata”.
Ainda em relação à questão da morte como uma entidade,
um “sentinela sinistro”, é na parte frontal da Figura 1 que
encontra-se seu elemento mais impactante. Em destaque, vê-se
uma versão tecnológica da tradicional imagem da morte enquanto
um ameaçador esqueleto em um manto escuro, com uma capa
sobre a cabeça e uma enorme foice em sua mão – um tenebroso
grim reaper18 com ossos de metal. O implacável ciborgue da morte
emite, diretamente da palma de sua mão esquerda, uma descarga
de raios elétricos sobre um ser humano qualquer. A carga em
questão desencadeia nesse desesperado i ndivíduo uma
transformação visivelmente dolorosa, que rasga suas roupas
revelando um corpo de maquinário, bem similar ao do próprio
“ceifador cibernético”. É precisamente essa transformação
representada na capa que possibilita mais de uma leitura, pois o
ser humano pode ter sido transformado em máquina – sendo,
então, desumanizado – ou pode simplesmente ter tido sua
natureza real revelada por seu algoz robótico, como se as “cortinas
feitas de carne” fossem abertas, revelando que, dentro do homem
dito “moderno”, não há mais um coração e uma alma, e sim uma
placa-mãe e um código de programação.
DIALÉTICA HOMEM E MÁQUINA
Basi camente, o hom em pós- moderno percebe que a
esperançosa e idealizada “fábula do progresso”, que tanto lhe
servi u como sustentácul o existencial, pouco a pouco se
transforma em um tenebroso medo do progresso. A tecnologia,
com sua sincopada e incansável marcha sempre seguindo em
frente, passou a assumir o papel de arauto do apocalipse. Tal
medo teve seu recrudescimento atrelado em especial ao
desenvolvimento de armas de destruição em massa - a bomba
atômica, em especial. Conforme exposto algumas páginas atrás,
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o universo da cultura de massas refletiu essas tensões com o
estabelecimento do universo cyberpunk, no qual a tensão homem
versus máquina se faz mais presente do que nunca. É interessante,
contudo, observar que muito dessa dicotomia se manifesta
justamente em contextos onde se unem/ conectam o vivo e o
inanimado, o natural e o artificial, o homem e a máquina. A figura
do “Homem maquinizado”, seja o ciborgue (o homem que possui
partes de seu corpo que são artificiais) ou o androide (o robô
que imita o humano, tanto em aparência quanto em capacidades),
representa um corpo manipulado, marcado pela interferência
artificial – implantes, próteses e outras formas de reconstrução
corpórea.
Essa emulação do homem assume uma conotação negativa
tendo em vista que representa justamente a fragilidade e a finitude
do elemento humano em face do robótico, uma ideia que se faz
presente tanto na capa do disco Dehumanizer quanto na canção
“Computer God”. Nesse contexto, a dialética homem contra
máquina, gerando a síntese homem-máquina, assume um tom
essencialmente pós-moderno, pois se mostra diametralmente
oposta à abordagem moderna do corpo. Este, sendo associado à
singularidade do homem, à sua capacidade de pensar e ao logos
em si, passa por um processo de valoração, que será fragmentado
com a paulatina substituição de sua carne por maquinário, ou
seja, seu total (e talvez inevitável) aniquilamento pelas gélidas
mãos robóticas do progresso.
NOTAS
13
Há teorias conflitantes a respeito do assunto, principalmente no que diz
respeito a nomenclaturas diferentes para a era contemporânea. Deve ser ressaltado
que a proposta deste artigo não é abordar a discussão de qual seria a forma mais
apropriada de se nomear o momento cultural em que nos inserimos atualmente,
nem tampouco comparar e contrastar autores que abordam esse delicado tema.
14
Referência livre ao título da obra de Richard Dawkins, Deus: um delírio. Conforme
sugere o título, o livro procura desconstruir todos os argumentos que atestariam
a existência divina.
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15
Role Playing Game, conforme diz seu nome, é um jogo no qual os participantes
interpretam papéis diversos inseridos em um contexto (cenário) descrito por
um membro do grupo que atua como ¯mestre ou ¯narrador , sendo este
responsável por mediar situações diversas e determinar as regras. Há diversos
sistemas de RPG´s disponíveis no mercado, oferendo possibilidades de aventuras
ambientadas em contextos medievais fantasiosos (como os da aclamada série
Dungeons & Dragons), futuristas (vide alguns suplementos específicos do sistema
GURPS, como o supr acit ado Cy ber pun k) ou até cenários u rbanos
contemporâneos, mas com elementos de horror gótico (como a série Vampiro –
A Máscara e Lobisomem – O Apocalipse, ambos do sistema Storytelling).
16
Não é exagerado relacionar o vocábulo ideia ao conceito de luz. A palavra é
derivada do grego idea (ou eidea), cuja raiz etimológica é eidos – imagem. Seu
significado remete a uma controvérsia entre a teoria da extromissão (de Platão) e
a da intromissão (de Aristóteles), essas referentes a como cada um desses
pensadores compreende a representação do real. Apesar de diametralmente opostas,
em ambas as teorias o elemento luz se faz presente de forma relevante.
Para Platão, a ideia que o homem faz de algo provém do princípio geral, do
mundo inteligível, o que constitui a chamada Ideia Universal. Assim, a ideia da coisa
é uma projeção do saber: ao verem a coisa, os olhos, emitindo raios de luz,
projetam a imagem dessa mesma coisa, que existe em nós como princípio
universal (princípio da extromissão).
Aristóteles, por sua vez, defende que a ideia que o homem faz de algo originase da experiência sensível, do mundo dos fenômenos contingentes : as coisas, através da
luz, emitem cópias de si próprias, cópias estas assimiladas pelos sentidos e
interpretadas pelo saber inato ou adquirido (princípio da intromissão).
17
Livre (e evidente) referência ao título da obra de Friedrich Nietzsche Humano,
demasiado humano – um livro para espíritos livres. Muito grosso modo, pode-se dizer
que neste livro de aforismos o autor afirma que a Filosofia e a Ciência não
cumpriram suas promessas de criarem espíritos verdadeiramente livres, e que o
homem precisa desesperadamente descobrir-se como humano, demasiado
humano.
18
Grim Reaper é nome dado em língua inglesa à imagem da morte como um
assustador esqueleto vestindo um longo manto escuro, trazendo uma foice
consigo. Como mencionado no corpo do texto, a representação da morte
enquanto um esqueleto é bastante antiga na história da civilização ocidental. Os
primeiros registros dessa concepção da morte são associados aos celtas, por
volta do século XV. Em geral, tais representações continham um esqueleto em
um manto negro, ora com uma foice na mão, ora em uma carruagem soturna.
Essa representação recebeu o nome grim reaper (“ceifador sombrio”). A escolha
da foice para ser a “ferramenta da morte” não foi em vão, tendo em vista que nas
sociedades pré-cristãs o ato da colheita era metaforicamente associado à morte,
pois era o marco do fim da época de crescimento da plantação e o subsequente
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início do inverno, estação do ano em que nenhuma planta nascerá – ou seja,
uma espécie de “estação da morte”. E é justamente a foice a ferramenta usada
para ceifar (cortar) as plantações no momento da colheita.
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IMAGENS
Figura 1: Capa do disco Dehumanizer, 1992. Arte de Wil Rees.
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A LITERATURA INGLESA PÓSMODERNISTA COMO SOBRELEVAÇÃO
DO JOGO AUTORAL
MARCOS ROBERTO FREITAS
“S o perhaps I am writing a transposed
autobiography; (…). Perhaps it is only a game.”
John Fowles, The French Lieutenant’s Woman (1969)
Um assunto controverso para a crítica literária, que atravessou
o último terço do século XX, e chegou à segunda década do
século XXI ainda inconcluso, é sobre a existência de um PósModernismo como movimento distinto do Modernismo. Havia,
inclusive, defensores ferrenhos da teoria que propunha o
Modernismo como movimento em voga ao longo de todo o século
passado, o que inviabilizaria obviamente qualquer teorização a
respeito de Pós-Modernismo enquanto movimento estético
posterior ao Modernismo.
Percebe-se, ao comparar a literatura inglesa do Modernismo
com a do Pós-Modernismo, que não há elementos estéticos
antagônicos entre esses movimentos.19 Além disso, não existe
uma rejeição manifesta do segundo em relação ao primeiro que
justificasse uma mudança de estilo de época. Eliminando desta
análise as narrativas literárias com expressivo teor político, como
a literatura feminista e a pós-colonialista – que se imbricam com
o pensamento pós-estruturalista de uma maneira indissociável,
é possível estabelecer um parâmetro de comparação estritamente
artístico entre as duas manifestações. Não quero dizer com isso
que o pensamento dos filósofos pós-estruturalistas excluiria a
noção estética de jogo autoral de suas reflexões. Pelo contrário,
a análise do jogo narrativo em ficção está presente desde o início
desta corrente filosófica, como comprova o seguinte fragmento
de uma obra seminal deste período:
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Pode-se dizer que todos os observadores (...)
estão de acordo quanto a um fato: a preeminência
da forma narrativa na formulação do saber
tradicional. (...) O relato é a forma por excelência
deste saber, e isto em muitos sentidos. (...) A forma
narrativa, diferentemente das formas desenvolvidas
dos discursos de saber, admite nela mesma uma
pluralidade de jogos de linguagem: encontram
facilmente lu gar no relato dos enunciados
denotativos, (...) dos enunciados deônticos (...), dos
enunciados interrogativos (...), dos enunciados
avaliativos, etc. (LYOTARD, 1990:. 37-38 – grifo
meu).
A literatura considerada pós-moderna recebe críticas diversas,
que a desautorizam como novo movimento estético que superaria
a proposta modernista. Um dos argumentos contra o pósmodernismo diz respeito ao uso de estratégias e técnicas de
narrativa que já foram percebidas em tradições literárias
pregressas. De fato, se entendermos que um novo movimento
só surge quando apresenta uma nova proposta estética, então o
Pós-Modernismo falharia nesse aspecto. Mas se analisarmos a
proposta estética em questão como estratégias e técnicas de jogo
do autor com o leitor, a perspectiva muda. A meu ver, a maneira
mais viável, em literatura inglesa, de caracterizar uma separação
entre estética modernista e pós-modernista é através do aspecto
de ‘jogo’ autoral. Ou seja, legitima-se o Pós-Modernismo como
movimento distinto do Modernismo pelo uso peculiar de certos
jogos autorais, não (ou pouco) usados pelo movimento pregresso,
de uma maneira que esgota, pela ultrapassagem dos limites
tradicionais a esses jogos literários, as possibilidades estéticas
resultantes dessa exacerbação. E o que seria o ‘Jogo’ do autor
em literatura?
Segundo Hutchinson, a cultura humana é movida pelos jogos.20
O homem é definido tanto como Homo Sapiens quanto como
Homo Faber e Homo Ludens. E o jogo em literatura é a proposta
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do autor de competir com o leitor, desafiá-lo a participar de uma
atividade lúdica estimulante durante a leitura do texto. Os
propósitos disso são tanto os de instigar a curiosidade e tirar o
leitor de uma passividade que entedia, quanto o de incrementar
o prazer da leitura pela inserção de jogos no texto.
Para iniciar minha análise e justificar minha hipótese para a
separação entre Modernismo e Pós-Modernismo no âmbito da
literatura inglesa, utilizo dois romances21 usualmente classificados
como pós-modernos: Flaubert’s Parrot, de Julian Barnes; e The
French Lieutenant’s Woman, de John Fowles22. Estas duas obras
serão comparadas a obras literárias de diversos períodos, inclusive
do Modernismo, para que uma distinção clara seja realizada.
A paródia pode ser considerada uma técnica de jogo autoral
das mais frequentes na literatura inglesa do século XX. Esta forma
de imitação, às vezes respeitosa, às vezes crítica23, encontrou em
James Joyce um grande representante do seu uso respeitoso,
especialmente ao fazer um elaborado paralelo com A Odisseia de
Homero na sua magnum opus, intitulada Ulisses (1922). Mas o
escritor pós-moderno tendeu a usar a paródia em sua faceta
crítica, mais contundente – pois expõe claramente ao leitor essa
crítica, que é o uso exacerbado da paródia. Em The French
Lieutenant’s Woman, o autor escreve uma narrativa exatamente
nos moldes do realismo vitoriano, tendo uma trama que se passa
naquela época, para em seguida criticar veementemente, na voz
de um narrador ‘vacilante’ (ora onisciente, ora não-confiável), a
sociedade que nela viveu:
Perhaps one can find more color for the myth of a
rational human behavior in an iron age like the Victorian
than in most others.24 (FOWLES, 1981: 260) (…)
Charles was like many Victorian men. He could not really
believe that any woman of refined sensibilities could enjoy
being a receptacle for male lust.25 (Idem: 277)
A metaficção é um recurso de jogo literário que sempre foi
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usado: é a ficção que reflete sobre a escritura ficcional. Segundo
Patricia Waugh, “o jogo é facilitado por regras e atuações, e a
metaficção opera pela exploração de regras ficcionais para
descobrir o papel da ficção na vida. Ela visa descobrir como
cada um de nós ‘joga’ nossa própria realidade”26. O exemplo
clássico de metaficção na tradição literária inglesa é o romance
Tristram Shandy27, de Laurence Sterne (1713 – 1768). Na obra,
temos reflexões como esta:
The thing is this.
That of all the several ways of beginning a book which
are now in practice throughout the known world, I am
confident my own way of doing it is the best – I’m sure it is
the most religious – for I begin with writing the first sentence
– and trusting to Almighty God for the second. 28
(STERNE, 1960, p. 438)
O livro Flaubert’s Parrot pode ser considerado um exercício
original sobre escritura ficcional, tendo por base as obras do
consagrado prosador francês Gustave Flaubert (1821 – 1880).
Na obra de Barnes, a exacerbação deste recurso de jogo autoral
ocorre pelo fato de ser essa análise sobre Flaubert e sua obra a
base da narrativa, e não somente um ‘abre-parênteses’ reflexivo
sobre a própria obra durante a trama, o que mais comumente se
percebe em literatura. No livro de Barnes temos análises como
esta:
(...) Why does the writing make us chase the writer?
Why can’t we leave well alone? Why aren’t the books enough?
Flaubert wanted them to be: few writers believed more in the
objectivity of the written text and the insignificance of the
writer’s personality; yet still we disobediently pursue.29
(BARNES, 1990: 12)
A ‘indefinição’ ou ‘mescla’ de gêneros (o termo literário
em inglês, blurring of genres, é de difícil tradução) geralmente é
ci tada com o um a das m ai s em bl em áti cas e frequentes
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características da literatura pós-moderna. Tal indefinição não é
um recurso criado no século XX, sendo identificada em diversos
períodos literários anteriores, mais como tentativas de expandir
as possibilidades dos gêneros literários aos quais as obras
pertenciam do que como técnica de jogo autoral. Um bom
exemplo dessa tradição são algumas das peças produzidas por
William Shakespeare (1564 – 1616) no início do século XVII:
elas eram uma tentativa de expandir as possibilidades dramáticas
do teatro da época, mesclando elementos clássicos da tradição
das tragédias com os das comédias, formando peças denominadas
pelos estudiosos renascentistas de tragicomédia s, por
apresentarem trama trágica com um final feli z 3 0 . Pel as
descaracterizações temática e estrutural promovidas por
Shakespeare nestas peças, elas passaram a receber outros nomes
pela crítica literária dos séculos XIX e XX, como problem plays
ou romances31.
Para as narrativas pós-modernas, a indefinição de gêneros é
deliberadamente aplicada pelo autor como um jogo, que instiga
a curiosidade do leitor; e ainda atua como um elemento de
‘quebra’ de expectativas de leitura – uma preocupação constante
dos escritores pós-modernos: quem lê uma narrativa pós-moderna
esperando um tipo de narrativa que a tradição consagrou,
encontra na verdade uma multiplicidade delas. Em Flaubert’s
Parrot, Julian Barnes consegue alcançar um nível elevadíssimo
nesta técnica, ao compor cada capítulo desta obra em um gênero
textual diferente. O primeiro capítulo, que leva o nome da obra,
é uma apresentação da narrativa nos moldes tradicionais; mas a
partir do segundo, a ‘brincadeira’ com gêneros narrativos
impressiona: o capítulo “Chronology” (“Cronologia”) é uma
sucessão de datas com comentários, no estilo das antigas Easter
tables do período anglo- saxônico da li teratura inglesa 3 2 .
Alternando comentários solenes e respeitosos com outros bemhumorados e irônicos, o capítulo parece extraído de um
compêndio histórico:
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1821 Birth of Gustave Flaubert, second son of AchilleCléophas Flaubert, head surgeon at the Hôtel-Dieu, Rouen,
and of Anne-Justine-Caroline Flaubert, née Fleuriot. The
family belongs to the successful professional middle class, and
owns several properties in the vicinity of Rouen.33 (…)
(BARNES, 1990: 23)
1851-7 The writing, publication, trial and triumphant
acquittal of Madame Bovary. A succès de scandale, praised
by authors as diverse as Lamartine, Saint-Beuve and
Baudelaire. In 1846, doubting his ability ever to write
anything worth publishing, Gustave has announced, ‘If I
do make an appearance, one day, it will be in full armour.’34
(Idem: 25)
Nos capítulos seguintes há uma variedade surpreendente de
gêneros sendo ludicamente manipulados: um capítulo (“Flaubert’s
Bestiary” – “Bestiário de Flaubert”) que define animais, como
urso, camelo, ovelha, cão e, é claro, papagaio, com fragmentos
de textos escritos pelo próprio Flaubert; outro capítulo que imita
um texto de guia de viagem turística (“The Train-spotter’s Guide
to Flaubert” – “O Guia do Viajante Turístico de Trem”); o
capí tul o “Brai thwai te’s Dicti onary of Accepted Ideas”
(“Dicionário Braithwaite de Ideias Aceitas”) é uma série de
verbetes com definições que não definem, mas lançam várias
interrogações... Em suma, cada capítulo de Flaubert’s Parrot é uma
grata surpresa na ‘brincadeira’ de indefinição de gêneros.
A quebra de expectativas, que em determinados aspectos
também é promovida pela indefinição de gêneros, é um recurso
muito eficiente enquanto elemento lúdico no jogo autoral. O
leitor que é desafiado pelo autor da obra a desvelar o desenrolar
da trama, naturalmente faz uso das referências de leituras prévias.
E assim procedendo, falha fragorosamente na sua tentativa, fica
à mercê do autor, preso pela curiosidade de saber como a trama
irá se desdobrar. Este objetivo máximo do escritor, de ‘capturar’
a atenção do leitor até o fim da narrativa por meio de uma quebra
de expectativas, é recorrente em ficção pós-moderna. A obra
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The French Lieutenant’s Woman talvez tenha atingido um nível
elevadíssimo nessa estratégia de jogo literário: o autor recusa-se
a estabelecer um final à obra, algo que todo leitor espera em um
romance. John Fowles primeiro cria uma falsa conclusão à história,
depois promove uma inusitada reviravolta na trama e, perto da
conclusão, entra em cena na narrativa, numa viagem de trem,
tentando decidir o que fazer com Charles, um dos personagens
centrais do livro:
And now, having brought this fiction to a thoroughly
traditional ending, I had better explain that although all I
have described in the last two chapters happened, it did not
happen quite in the way you may have been led to believe.35
(FOWLES, 1981, p. 266)
(…) Now the question I am asking, as I stare at Charles, is
not quite the same as the two above. But rather, what the devil
I am going to do with you? I have already thought of ending
Charles’s career here and now; or leaving him for eternity on his
way to London. But the conventions of Victorian fiction allow,
allowed no place for the open, the inconclusive ending36; (…).
(Idem, p. 317)
Uma pergunta que naturalmente pode surgir, após analisar
todos os elementos de jogo acima expostos, seria: se escritores
modernistas, como James Joyce, também fazem uso constante
de jogos autorais em suas obras, seria coerente caracterizá-los
como pós-modernistas? A minha resposta seria “não”. É
incoerente considerar James Joyce um autor que se enquadra na
estética pós-moderna por dois motivos: primeiro, o elemento mais
preponderante em sua obra, especialmente as narrativas longas
da fase final de sua carreira, é a experimentação, a busca por
novas maneiras de representar artisticamente a linguagem
humana, tanto na forma consciente, quanto na subconsciente e
na inconsciente. Segundo, James Joyce e outros prosadores
modernistas não escreviam suas obras de forma a oferecer de
maneira nítida a proposta de jogo autoral aos seus leitores. Já os
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prosadores pós-modernistas têm a preocupação de deixar seus
leitores rapidamente cientes das ‘regras do jogo’ da obra. A
ausência, ou obscuridade, dos indicadores da proposta de jogo
na narrativa de Joyce acabam por impedir o leitor comum, não
especializado, de ingressar na atividade lúdica elaborada pelo
autor ao longo da narrativa.
Certamente, a acessibilidade do jogo autoral não era a
preocupação principal de Joyce em seus livros. A proposta estética
de Finnegans Wake, por exemplo, é tão radical que ultrapassou
qualquer limite outrora concebido por outros prosadores
vanguardistas europeus. Ouso até afirmar que nenhuma outra
narrativa produzida em solo europeu, posterior a Finnegans Wake,
chega sequer perto da magnitude revolucionária efetuada pelo
gênio irlandês no âmbito da linguagem literária.
O Pós-Modernismo é válido, enquanto movimento literário
distinto do Modernismo, por propor uma exacerbação, uma
ultrapassagem de limites anteriormente estabelecidos, em técnicas
e recursos autorais de criação de jogos com seus leitores.
Enquanto a busca por uma mudança radical e inovadora das
premissas estéticas era o ‘primo motor’ do artista modernista, o
escritor pós-modernista, particularmente o da literatura inglesa,
faz ‘as pazes’ com o leitor comum, e volta a priorizar o prazer da
leitura em si. A sobrelevada redefinição dos parâmetros de
‘ludicidade’ (em inglês, playability) do jogo autoral na leitura é
um recurso bem-sucedido, pois o prosador pós-moderno
consegue resgatar um público leitor que, em décadas anteriores,
se viu dissociado da (muitas vezes) inescrutável arte literária
modernista.
NOTAS
19
Cf. GREENBLATT & GUNN, 1992, p. 179-184.
Cf. HUTCHINSON, 1983: 4-5.
21
Talvez o termo ‘romance’ não seja o mais apropriado para classificar estas duas
narrativas longas, mas um nome preciso para tais obras ainda não foi criado pela
tradição crítica.
20
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22
Eu faço uma análise mais pormenorizada de outros aspectos pós-modernos
deste romance no artigo “The Subversion of the Conventions in The French
Lieutenant’s Woman”, publicado em 2009 – mais detalhes nas referências
bibliográficas.
23
Cf. BALDICK, 1996: 161-162.
24
“Talvez seja possível encontrar mais apreço pelo mito de um comportamento
humano racional em uma era totalitária como a vitoriana do que na maioria das
outras.” (Tradução livre)
25
“Charles era como a maioria dos homens vitorianos. Realmente não conseguia
acreditar que uma mulher de sensibilidades refinadas pudesse gostar de ser o
receptáculo da luxúria masculina.” (Tradução livre)
26
WAUGH, 1996: 35 – Tradução livre.
27
Na análise de David Lodge: “Laurence Sterne, narrando sob o leve disfarce de
Tristram Shandy, pratica todos os tipos de jogos com a relação narrador-leitor.”
(LODGE, 1992: 81 – Tradução livre)
28
“Esta é a coisa.
Que de todas as várias maneiras de iniciar um livro que agora se praticam pelo
mundo conhecido, acredito ser a minha própria maneira de fazê-lo a melhor –
tenho certeza de que é a mais religiosa – pois eu começo escrevendo a primeira
frase – e confiando no Poderoso Deus para a segunda.” (Tradução livre)
29
“Por que o escrito nos faz perseguir o escritor? Por que não nos damos por
satisfeitos? Por que os livros não são o suficiente? Flaubert queria-os assim:
poucos escritores acreditavam mais na objetividade do texto escrito e na
insignificância da personalidade do escritor; ainda assim nós desobedientemente
continuamos a perseguir.” (Tradução livre)
30
Um estudo pormenorizado do período elisabetano, juntamente com a vida e
obra de Shakespeare, é realizado no livro English Literature: The Elizabethan
Paradigm – mais detalhes nas referências bibliográficas.
31
Exemplos de problem plays de Shakespeare, também rotuladas como dark
comedies, são Measure for Measure (Medida por Medida) e All’s Well That Ends Well
(Tudo Está Bem Quando Acaba Bem). Para exemplificar romances do Bardo Inglês,
podemos citar The Tempest (A Tempestade) e Pericles (Péricles).
32
Uma análise detalhada do período anglo-saxônico é feita no livro The Beginnings
of English Literature – ver referências bibliográficas.
33
“1821 – Nascimento de Gustave Flaubert, segundo filho de Achille-Cléophas
Flaubert, cirurgião chefe do Hôtel-Dieu, Rouen, e de Anne-Justine-Caroline
Flaubert, nascida Fleuriot. A família pertence à bem-sucedida classe média
profissional, e possui diversas propriedades nos arredores de Rouen”. (Tradução
livre)
34
1851-7 – A composição, publicação, julgamento, e triunfante absolvição de
Madame Bovary. Um succès de scandale, elogiado por autores tão diversos quanto
Lamartine, Saint-Beuve e Baudelaire. Em 1846, duvidando de sua habilidade
em um dia escrever algo digno de publicação, Gustave anunciou: ‘Se eu fizer
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uma apresentação, um dia, será com armadura completa.’ (Tradução livre)
35
“E agora, tendo levado esta ficção a um fim totalmente tradicional, seria
melhor explicar que, apesar de tudo que eu descrevi nos dois últimos capítulos
ter acontecido, não aconteceu exatamente da maneira que você foi levado a
acreditar”. (Tradução livre)
36
“Agora a questão que eu estou perguntando, enquanto encaro Charles, não é
exatamente a mesma que as duas anteriores. Melhor perguntar: o que diabos eu
farei contigo? Eu já pensei em terminar a carreira de Charles aqui e agora; ou
deixá-lo até a eternidade no seu caminho até Londres. Mas as convenções da
ficção vitoriana não dão, não davam espaço para o fim aberto, inconcluso”.
(Tradução livre)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALDICK, Chris. Oxford Concise Dictionary of Literary
Terms. Oxford, UK: OUP, 1996.
BARNES, Julian. Flaubert’s Parrot. New York: Random
House / Vintage Books, 1990.
CHILDERS, J. & HENTZI, G. (Ed.). The Columbia
Dictionary of Modern Literary and Cultural Criticism. New
York: Columbia University Press, 1995.
FOWLES, John. The French Lieutenant’s Woman. New
York: Penguin / Signet, 1981.
FREITAS, Marcos Roberto. The Beginnings of English
Literature: General and Structural Characteristics. Rio de
Janeiro: CCAA Editora, 2008.
_______. “The Subversion of the Conventions in The French
Lieutenant’s Woman”. In: BRAGA, D. & TEIXEIRA, R. (Ed.).
InterSignos, Vol. 2. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2009.
FREITAS, Marcos Roberto & TEIXEIRA, Ricardo. English
Literature: The Elizabethan Paradigm. Rio de Janeiro: CCAA
Editora, 2012.
GREENBLATT, Stephen & GUNN, Giles (Ed.). Redrawing
the Boundaries – The Transformation of English and American
Literary Studies. New York: The Modern Language Association
of America, 1992.
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HUTCHINSON, Peter. Games Authors Play. London and
New York: Methuen, 1983.
LODGE, David. The Art of Fiction. New York: Penguin,
1992.
LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. Trad.: Ricardo
C. Barbosa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
STERNE, Laurence. Tristram Shandy. London and New
York: Signet Classics, 1960.
WAUGH, Patricia. Metafiction – The Theory and Practice
of Self-Conscious Fiction. London: Routledge, 1996.
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PANAMÉRICA X LEAVES OF GRASS: PÓSMODERNISMO E ENTROPIA(S)37
RAFAEL OTTATI
INTRODUÇÃO: TRANSGRESSÃO
Ao longo de boa parte da história da Literatura, muitos teóricos
acreditavam que esta possuía o poder de influenciar aqueles que
entrassem em contato com ela, por conta da sua apreensão do
real, a qual nem sempre resultava em uma cópia fiel do modelo
retratado. Ora expulsa da visão utópica que os teóricos tinham
de comunidade, ora entronada... Assim como a Filosofia, ao longo
dos séculos, digladiou acerca da natureza a priori do homem –
ele é essencialmente bom ou mau? –, a Literatura teve atrelado a
si um caráter moralista.
Em contrapartida, diversos foram os autores que contraatacaram a visão moralizante imposta à Literatura. Considerados
postumamente como transgressores, tais autores ultrapassaram
a redoma moral que englobava a arte como um todo, apontando
a hipocrisia da sociedade em suas linhas e abraçando o lado
“negro” da humanidade em suas imagens. O Iluminismo, por
sua vez, reforçou a moralidade literária, por fundar profundos
pilares morais e éticos: a necessidade de uma moral que agrupa
uma sociedade, a inibição de certos sentidos naturais do homem
em prol do bem-estar da comunidade, a apologia ao racionalismo
e ci enti fi ci sm o, o absol utismo da ci ênci a (que acabou
desvirtuando-se e recaindo na religião e em certos princípios
morais, como a fidelidade e o respeito ao próximo), entre outros.
No tocante ao continente americano, local-chave para este
trabalho, este é “dividido em dois: a América Latina e o império
do norte” (BENTO, 2008: 148). Tal diferença cria, como dito
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anteriormente, uma distância entre os povos que o formam.
Portanto, houve e ainda há uma luta ideológica e bélica para a
fusão de todos estes países: o sonho da humanidade sem
fronteiras. Enquanto o poeta de Leaves of Grass, obra poética
publicada na metade do século XIX, percorre e canta as belezas
rústicas dos estados pelos quais passa, juntando as heterogêneas
paisagens e pessoas em um canto homogêneo e em uníssono, o
narrador de PanAmérica, romance próximo à epopeia publicado
em 1967, explode em heterogeneidade, celebrando justamente
as diferenças entre o Eu e os Outros do continente.
Ambos os livros diferenciam-se nessa luta em prol do fim das
barreiras: enquanto Walt Whitman busca uma união dos povos
da América através de um canto rompedor com o cânone literário
até então, José Agrippino de Paula subverte o cânone literário,
cutuca-o e rompe com ele: uma poética da entropia, por assim
dizer, que busca um fim ideológico de completa destruição dos
valores ideológico-morais que a tradição pregava até então.
Enquanto há pequenas e relevantes semelhanças entre o
romance brasileiro e a obra poética norte-americana citados,
PanAmérica já recolhe em si elementos literários estudados e
catalogados posteriormente como “pós-modernistas” ou “pósmodernos”. Seu caráter entrópico inicia com as formas literárias
mais tradicionais e extrapola-as, rumo à entropia da hierarquia
social e da própria formação unitária do sujeito (o “Eu”).
O presente artigo busca, portanto, elencar uma pequena parte
das várias entropias causadas pelo narrador de PanAmérica,
partindo, para tal, de paralelos apontados com a importante obra
poética publicada mais de cem anos antes.
ENTROPIA TEMPORAL
Leaves of Grass impressiona pela quantidade de citações
bastante detalhistas de pessoas, cargos, ocupações, sentimentos,
em um formato quase rústico (se comparado a Alberto Caeiro,
por exemplo) – ou melhor, simplista, através de comparações
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diretas e quase nominais. Por outro lado, embora possa ser
rotulado como um livro de poesias de caráter transcendental e
místico, e que gira em torno de um eu lírico bem marcado e
identificado, ele não pode ser definido sob qualquer rótulo
temporal, já que não traz indício da época em que foi escrito
(exceto por poemas posteriores que aludem a Abraham Lincoln
ou à Guerra Civil).
Ademais, os tempos verbais são usados, em sua maioria, no
presente simples, o qual leva a uma ideia de fatos, de
imparcialidade, de exposição, ao invés de simples opinião ou
julgamento: por exemplo, muito pouco aparece ao longo do livro
o verbo “think” [pensar], exceto pelo prefácio. Aliás, quando ele
aparece (como no longo poema “To Think of Ti me”),
normalmente vem no infinito com uma elipse:
Is today nothing? (...)
If the future is nothing they are just as surely nothing.
To think that the sun rose in the east . . . . that men and
women were flexible and
[real and alive . . . . that every thing was real and alive;
To think that you and I did not see feel think nor bear our
part,
To think that we are now here and bear our part.
Como se pode ver, parte da expressão “In order to [think]” é
omitida, de forma que o verbo “think” surge como alegoria de
um sentimento de ultrapassagem do passado, garantindo uma
dramaticidade e um peso maiores ao fato que está sendo
desvelado.
No entanto, PanAmérica se vale de um outro artifício quanto
ao uso do tempo. Enquanto uma semelhança entre as duas obras
é palpável caso consideremos que o narrador desta também não
se prende a um momento histórico em si, o romance brasileiro é
singular quanto à não-linearidade de sua narrativa. O narrador
anônimo não se limita a apenas perambular pelas Américas; ele
o faz em diversos momentos dentro de uma década.
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Precisar as datas em que ocorrem os acontecimentos narrados
em PanAmérica mostra-se impossível, uma vez que o narrador
nunca as explicita. Contudo, pelo uso continuado de produtos
da Indústria Cultural da década de sua publicação e pelas
referência a personagens históricas da época, pode-se precisar o
livro de Agrippino de Paula como produto parcial de seu tempo.
Deve-se destacar que, para a pesquisadora Evelina Hoisel, por
conta do caráter caótico do texto, PanAmérica mostra-se como
um texto bastardo da literatura brasileira (HOISEL, 1980: 13).
Ela afirma, ainda, que
Tanto os textos de José Ag rippino de Paula
quanto o período são caóticos, repitamos. O
período é caótico porqu e se alimenta dos
descompassos do golpe de 64 e de suas
implicações a longo prazo. Os textos são caóticos,
porque neles se encontra dramatizado, de maneira
excepcional, um movimento progressivo que vai
do menos caos ao mais caos, terminando por
instalar uma situação apocalíptica, gerada pelos
acontecimentos políticos. (Id: 19)
Em PanAmérica, o enredo é construído através de capítulos
que não possuem fortes ligações entre si e os fatos narrados,
salvo raras exceções, sequer são mencionados posteriormente
na obra. Por exemplo, no início do romance, o narrador se mostra
como diretor de Hollywood e motorista de um jaguar, porém só
posteriormente somos apresentados ao momento quando ele o
adquire. Outro ponto importante é Marilyn Monroe: no início,
sabemos que o narrador possui um elo sentimental com ela,
porém só em capítulos posteriores somos expostos ao momento
quando os dois personagens se conheceram.
O conceito de enredo, portanto, é posto em dúvida, uma vez
que, de acordo com a ideia clássica de unidade de ação de
Aristóteles38, há a necessidade de uma unidade que conecte os
fatos narrados, ou seja, os acontecimentos independentemente
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dos locais em que ocorrem têm que possuir “começo, meio e
fim” (ARISTÓTELES, 2008: 38):
O que dá unidade à fábula não é, como pensam
alguns, apenas a presença de uma personagem
principal; no decurso de uma existência produzemse em quantidade infinita muitos acontecimentos,
que não constituem uma unidade.(...) Pelo que, na
fábula, que é imitação de uma ação, convém que a
imitação seja una e total e que as partes estejam de
tal modo entrosadas que baste a supressão ou o
deslocamento de uma só, para que o conjunto fique
modificado ou confundido, pois os fatos que
livremente podemos ajuntar ou não, sem que o
assunto fique sensivelmente modificado, não
constitu em parte integ rante do todo.
(ARISTÓTELES, 2008: 13)
Vê-se, portanto, que a ação deve ter suas partes bem
conectadas, fato inexistente no romance analisado: o narrador
descreve acontecimentos de momentos diferentes e, além disso,
mesmo os personagens que atuam ao longo da história surgem e
somem, adoecem e saram ou, mesmo, morrem e voltam à vida,
como no caso de Marilyn Monroe, a qual morre algumas vezes
ao longo da história, como neste trecho: “Louella Parsons fechou
a porta e se aproximou de mim dizendo que Marilyn tinha se
suicidado. Quando ela abriu a porta eu vi Marilyn Monroe nua
sobre o lençol(...).” (PAULA, 2001, p. 187). A atriz norteamericana é enterrada algumas linhas abaixo, porém, algumas
páginas depois...
Eu vi uma mulher gorda aparecer no fundo da
casa e eu pensei que poderia ser a mãe de Marilyn.
Eu entrei e falei que Frank Sinatra disse que Marilyn
Monroe tinha voltado. A mãe de Marilyn
respondeu que Marilyn esteve dois meses fora e
que havia voltado. (PAULA, 2001, p.192)
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Embora romances sem tempo linear ou, mesmo, sem
personagens não fossem uma novidade na década de 1960, o
fato de, ao longo de todo o enredo, o narrador expor uma
verborragia desconectada dos pilares de causa e efeito, e de
temporalidade, comprova uma ruptura ainda mais profunda do
que a causada por romances anteriores. Agrippino desenvolveu
um romance por assim dizer anti-Aristotélico: uma fábula sem
unidade temporal ou conexão lógica entre os acontecimentos da
mesma, mas que, porém, ainda assim, possui uma certa unidade: o
narrador, único denominador comum neste ambiente caótico.
Há algo, enfim, que liga todas as ações narradas e que
ultrapassa os limites do narrador: o caráter de destruição ou
aniquilamento de valores tradicionais não apenas da literatura,
como exposto acima, mas do próprio pensamento ocidental,
como será explicitado nas seções seguintes. A partir do eu, que é
o centro verdadeiro tanto de Leaves of Grass quanto de PanAmérica,
surge uma quase autoafirmação. Para tanto, a necessidade de
identidade e consolidação dessa reveste-se de um poder caótico
e destrutivo. Em outras palavras, o romance brasileiro é fruto
de uma “poética da entropia” ou uma poética da des-ordem.
LEAVES OF GRASS: CAOS NEM SEMPRE ENTRÓPICO
Tanto o livro de poesia Leaves of Grass quanto o romance
brasileiro PanAmérica abusam do caos. O primeiro, já em 1855,
espanta pela acuidade de detalhes e de facetas nas quais o “eu”
se divide e se transforma, como acaba sendo resumido no verso
1148 do longo poema “Song of Myself ”: “I am an acme of things
accomplished, and I an encloser of things to be”.
O eu lírico se vale de coisas simples, como o cantar de um
pássaro (“Where the hummingbird shimmers”, à página 59, por
exemplo) ou de figuras comuns, sem nome, meros coadjuvantes
agora elevados a um status mais digno (como em “I am the actor
and the actress... the voter... the politician” [Ibid: 103]), para criar
uma imagética absorvente, includente, totalizadora.
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A poética de inclusão de Walt Whitman não tem um fim de
destruir algo e, depois, afastar-se dos escombros. Na verdade,
pode-se perceber, em todo o cantar paralelístico e místico uma
vontade de criação, mais do que de destruição. Criar um novo
lugar, nivelar aquilo que foi desnivelado (conscientemente ou
não), consertar e dar respeito aquilo que foi relegado ao
ostracismo:
I have dreams that we are not to be changed so much...
nor the law of us changed;
I have dreamed that heroes and good-doers shall be under
the present and past law,
And that murderers and drunkards and liars shall be
under the present and past law;
For I have dreamed that the law they are under now is
enough. (WHITMAN, 1986, p. 103)
Uma poética da união, portanto, que dizima, sim, certos
valores, que chacoalha uma tradição excludente por natureza,
de supremacia racial ou étnica, de desrespeito, preconceito e
humilhação. Por outro lado, uma poética que precisa desse caos
enquanto ferramenta para um fim maior:
And I have dreamed that the satisfaction is not so much
changed... and that there is no life without satisfaction;
What is the earth? What are body and soul without
satisfaction? (WHITMAN, 1986, p.103)
Embora não fale de respeito ou previna quanto aos males
que possamos causar (especialmente porque na estrofe acima
nivelou aqueles à margem da lei junto com aqueles que criaram
a lei e que vivem sob ela), o poeta mostra de forma simples que
há um quê de igualdade nas pessoas dessa terra. Ele cria uma
utopia, um amálgama dos retalhos espalhados pela nação em que
passeia:
One of the great nation, the nation of many nations—
the smallest the same and the
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largest the same,
A southerner soon as a northerner, a planter nonchalant
and hospitable,
A Yankee bound my own way . . . . ready for trade . .
. . my joints the limberest
joints on earth and the sternest joints on earth,
A Kentuckian walking the vale of the Elkhorn in my
deerskin leggings,
A boatman over the lakes or bays or along coasts . . . .
a Hoosier, a Badger, a
Buckeye,
A Louisianian or Georgian, a poke-easy from sandhills
and pines,
At home on Canadian snowshoes or up in the bush, or
with fishermen off Newfoundland, (WHITMAN, 1986, p. 40)
Toda a seção da qual o trecho acima foi retirado é digna de
nota para exemplificar este viés interpretativo sobre a obra
máxima de Whitman. Nos versos acima relatados, vê-se com
clareza a posição crítico-ideológica da gênese de algo – no caso,
de um lugar que abarca as diferenças, que nivela, que equilibra,
que respeita; um lugar de lugares, cheio de identidades múltiplas,
mas que as aceita como um todo39.
Esta pretensão, este desejo utópico difere completamente do
romance brasileiro PanAmérica. Nem tanto pela destruição, uma
vez que ambos tentam e precisam chocar; ambos tencionam ao
caos, à junção e, por conseguinte, à quebra de tradições. Porém,
o resultado final, isto é, o objetivo dessa destruição é fatalmente
outro.
Enquanto o eu lírico de Whitman canta pela utopia, por um
lugar que venha a existir, ou melhor, um lugar que já existe, posto
que ele canta o presente e luta por este mesmo presente40; o
narrador de José Agrippino percorre um local sem nome, em
companhia de figuras famosas assim como de desconhecidos,
em um tempo que diverge, que desaparece, que é reconstruído,
rumo a uma destruição que só pode levar à destruição do próprio
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planeta. Esse narrador, o eu central da obra, do qual tudo vem,
busca não uma utopia, posto que para tal necessita-se da
existência de um local, mas, sim, uma entropia: o simples caos
destrutivo, que venha a mexer com os ditames e tradições aceitos
há centenas de anos.
A narrativa de PanAmérica, assim como a poesia de Leaves of
Grass, não poderia contentar-se simplesmente com um simples
relato de acontecimentos em volta de determinados personagens
que ganhariam (ou não) a simpatia dos leitores. Pelo contrário, o
romance brasileiro, no fim, tinha mesmo de ser descritivo: “Não
se trata, porém, da história do narrador. Não há um princípio
nem um fim, nem justificativas claras para muitas ações narradas
no texto. São descrições” (BENTO, 2008, p. 146). A intenção
não é narrar, mas mostrar, ou melhor, expor o caos enquanto
princípio ético-moral único capaz de balançar os pilares do
pensamento ocidental.
A partir de um momento caótico da história mundial, um
momento de excessos, Agrippino monta um narrador que não
age, que não participa ativamente das revoluções históricas que
descreve. Nas palavras do autor, “(...) o meu personagem não é
movido pela ação, ele é um observador, somente um observador”
(Apud BENTO, 2008: 146). Seu texto, desta maneira, assume
“um papel denunciador dessa situação sociocultural” (HOISEL,
1980: 20). Em toda a guerrilha mostrada no livro, o narrador
descreve-se como membro do grupo político anti-imperialista;
contudo, por mais que apareça algumas vezes com armas, não
dá a impressão de ser ele quem realmente age. É como se se
transformasse na pessoa que age apenas para expor um quadro:
uma pintura expressionista em que o personagem age por instinto
e não consegue, realmente, entender-se com o seu sentimento;
em suma, um personagem que age de acordo com o seu pathos,
ao invés de raciocinar – como as pessoas nos cargos que ocupa,
de chefe de guerrilha e de diretor cinematográfico, deveriam agir.
Esse personagem-narrador poderia atingir seu objetivo de
destruição só com a observação e sua posterior narração.
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Contudo, esse narrador não é um só. Enquanto narra, as mudanças
não anunciadas de lugar e de tempo são acompanhadas por frases
pertencentes a outro “Eu”. O narrador, que já fora diretor
hollywoodiano e parceiro sexual da Marilyn Monroe, também se
mostra guerrilheiro socialista, assim como militar ianque. Aqui,
pelo fato de PanAmérica estar em relação direta com a história
recente do continente (constituindo, assim, um recorte espacial
e temporal) a noção de pós-moderno mostra-se importante para
esta análise, já que se defende que parte das características desse
momento apoia-se na “(...) dissolução do vínculo social e [n]a
passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa
composta de átomos individuais”. Por conta disso, o “si mesmo
é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações
mais complexa e mais móvel do que nunca” (LYOTARD, 2008:
28).
A subjetividade móvel, não mais fixada por quaisquer pilares
exteriores a si mesma, será focada brevemente nas próximas duas
seções deste artigo. Através dela, Agrippino em específico e a
literatura pós-modernista em geral trarão um importante discurso
para dentro do campo literário: o do fim das Grandes Narrativas
da humanidade, isto é, a deslegitimação das instituições de saber,
causando um forte questionamento nos critérios que priorizam
e validam um único possível discurso científico ou histórico.
Agrippino de Paula com sua escrita, tentaremos esboçar, traz o
Outro, o marginal, o periférico, portanto, para dentro da obra,
chacoalhando tanto com os critérios de criação de narradores
literários, assim como o de narradores históricos.
PÓS-MODERNIDADE E ENTROPIA
A ordem vigente, isto é, as tradições mito-filosóficas que
regem o senso comum e a sociedade em geral fundam-se em
princípios morais e éticos baseados em ideais extraídos e
requentados da antiguidade clássica. Tais princípios são
enaltecidos através do elogio a diversos valores: ao pensar
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racional, ao amor cortês, à fidelidade, etc. (ou seja, a inibição da
naturalidade do homem), assim como o amor ao próximo, o
respeito mútuo, etc. (ou seja, a exploração da sociabilidade do
homem).
Tanto em Leaves of Grass quanto em PanAmérica, os valores
descritos acima são abalados por comentários mordazes, que
tencionam flechar a hipocrisia daqueles que pregam a defesa cega
dessa tradição antiga. De fato, se há a ambição de se revolucionar
o pensamento humano, tais valores seriam os primeiros a serem
questionados.
Por um lado, Whitman causou furor nos Estados Unidos com
a publicação de seu livro, assim como Baudelaire e outros “poetas
malditos”, aqueles que utilizam termos até então considerados
apoéticos, chulos, feios ou que gastavam suas linhas poéticas
para enaltecer aquelas pessoas ou situações que, para a burguesia,
não importavam. Leaves of Grass, para exemplificar, possui
diversos pontos de sexualidade explícita (LEWIS, 1962: 977):
My lovers suffocate me!
Crowding my lips, and thick in the pores of my skin,
Jostling me through streets and public halls . . . . coming
naked to me at night, (...) (WHITMAN, 1986:. 78)
A veracidade e a forma de tratar essa sexualidade chocava as
pessoas naquela época. Whitman tinha certeza de que o ser
humano é muito sexual, muito antes de a psicanálise prová-lo, e
exprimia seu pensamento no meio daquele fluxo de consciência
pelo qual ficou famoso.
Outro traço importante dessa sexualidade, da existência dela
e do moti vo pel o qual não a devem os esconder é o
homossexualismo: “I am the teacher of athletes, / (...) The boy
I love(…)” (WHITMAN, 1986: 81). Não apenas o poeta subverte
um tabu, como ainda por cima quebra outro: o da ética. Não
mais falamos apenas de virtudes e sexualidade, mas sim do
quanto esta sexualidade nos controla. Se uma pessoa não é capaz
de se controlar por conta do seu desejo sexual, a sociedade tenta
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controlá-la. É esse controle que é criticado pelo poeta, assim
como quando fere outro pilar moral, que é a fidelidade a amigos
e mulheres, ou melhor, a bigamia, outra forma de controle sexual:
I turn the bridegroom out of bed and stay with the
bride myself,
And tighten her all night to my thighs and lips.
(WHITMAN, 1986:. 61)
Tal trecho possui respaldo no romance brasileiro de pouco
mais de um século de diferença: pouco depois de cantar a
“Marcha Nupcial” no casamento entre Joe Di Maggio e Marilyn
Monroe, o narrador faz sexo com ela perante o herói esportista e
Humphrey Bogart (PAULA, 2001: 163). Além disso, PanAmérica
subverte outro pilar da repressão sexual da moral tradicional: a
hierarquia fálica do exército.
Ambos os exércitos que aparecem ao longo do romance (o de
anjos, o imperialista e as guer rilhas) são descritos de forma
machista, com poderes, com força, mas, também, com perversão
sexual. No caso do exército de anjos, no intervalo do duelo contra
o exército de arraias de Di Maggio, “alguns anjos tomavam banho
de sol nus de nádegas para cima” (PAULA, 2001: 177) – exemplo
singelo em que os soldados escapam da ordem absoluta
representada pela sua vestimenta-uniforme para, ademais, ir de
encontro a toda a cultura tradicionalista que obriga as pessoas a
usarem roupas para se banhar em praias e em outros locais
públicos. Já nos outros dois exércitos, o imperialista e o
guerrilheiro, o narrador descreve tórridas cenas de sexo
homossexuais, inclusive descrevendo jovens soldados de forma
andrógena, tendendo para o feminino, e bem sexualizada,
diferentemente do que a tradição rígida militar e o seu próprio
uniforme tentam incutir.
Deve-se ressaltar, contudo, que a narração de José Agrippino
de Paula abre espaço ao direito à voz do Outro. Embora todo o
livro seja narrado através de frases conjugadas pelo pronome
pessoal “eu”, o fato de o indivíduo narrador ser múltiplo,
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conforme mencionado anteriormente, abre a possibilidade de
apontarmos essa forte alteridade na obra analisada, ao contrário
de em Leaves of Grass. A diferença ideológica entre ambas as
épocas é relevante neste caso. Para os que viveram a década de
1960, houve uma gradual mudança na forma de pensar: a
refutação dos conceitos absolutos. Para Linda Hutcheon,
o romance pós-modernista questiona toda
aquela série de conceitos inter-relacionados que
acabaram se associando ao que chamamos, por
conveniência, de humanismo liberal: autonomia,
transcendência, certeza, autoridade, unidade,
totalização, sistema, universalização (...)
(HUTCHEON, 1991: 84)
Acompanhando a teórica norte- am ericana, esse
questionamento dos valores herdados do Iluminismo causou na
literatura, a partir da década de 1960, o seguinte fenômeno:
“Quando o centro começa a dar lugar às margens, quando a
universalização totalizante começa a desconstruir a si mesma, a
complexidade das contradições que existem dentro das
convenções (...) começam a ficar visíveis” (Id: 86). Em outras
palavras, os autores buscaram levar para o centro literário aquilo
que era vivido cotidianamente na periferia social, nas margens
da sociedade.
O múltiplo, o heterogêneo, o diferente: essa é a
retórica pluralizante do pós-modernismo (...). A
linguagem das margens e das fronteiras assinala uma
posição de paradoxo: tanto dentro como fora.
Tendo-se essa posição, não surpreende que a forma
muitas vezes assumida pela heterogeneidade e pela
diferença na arte pós-moderna seja a da paródia –
a forma intertextual que constitui, paradoxalmente,
uma transgressão autorizada, pois sua irônica
diferença se estabelece no próprio âmago da
semelhança. (Ibid.: 95)
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PanAmérica, voltando à pesquisadora Evelina Hoisel, abarca
a paródia fortemente. Ademais, Nelson de Oliveira, em coletânea
que organizou com jovens escritores brasileiros da década de
1990, aponta José Agrippino de Paula como um transgressor,
presente na “bibliografia básica dos transgressores” da citada
década (OLIVEIRA, 2003, p. 11). O texto ag rippiniano
desconstrói o discurso literário e suas classificações castradoras
e limitadoras, assim como desconstrói o discurso histórico, por
acrescentar ao seu corpus o ponto de vista marginal. Enquanto
militar homossexual ou tarado pedófilo, o narrador do romance
analisado consegue acrescentar visões de mundo desacreditadas
e/ou desconsideradas pelo centro cultural, através de afirmações
que causam incômodo por so arem naturais, de imagens
aparentemente simples. Com isso, ele passa a forte ideia ao leitor
de entropia moral e ética enquanto crítica da hipocrisia vigente.
O narrador não diz o que quer ou o que acha, como o eu lírico de
Leaves of Grass. Porém, ele narra apenas o que vê ou o que está
em contato – emocional ou sensível – direto com ele. Só há uma
verdade na obra: a sua. Ela não é anunciada: ela é dada como
real. E ela espelha as várias verdades espalhadas ao longo do
continente americano.
EBTROPIA DO EU
Por fim, chega-se ao eu, de onde tudo se origina em ambos os
livros. Toda a volta através do artifício do tempo, da inversão da
ordem e dos valores morais, e da subversão apocalíptica da
religião, relegada (ou elevada, dependendo do ponto de vista) a
mitos culturais de uma época; toda essa volta foi necessária para
se abordar melhor um “eu” que não se mostra fácil de ser
apreendido.
Em Leaves of Grass, o eu lírico abusa das comparações a
inúmeros animais, situações e pessoas, em uma tentativa de
criação de identidade. Em 1855, antes, portanto, da publicação
dos textos clássicos de Freud que mexeram com o egocentrismo
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da humanidade em geral, Walt Whitman já se apresenta como
alguém que não é, em si, um só. Ele apresenta um pensamento
posteri or à sua época – talvez por i sso tenha sido tão
incompreendido em sua época, como explicita o crítico R. W. B.
Lewis: “For a number of decades, Whitman was the most
misrepresented of our major poets” (LEWIS,1962: 970).
Ao longo do épico “Song of Myself ”41 (embora este traço
multiforme continue explícito nos poemas subsequentes),
Whitman se transmuta, se transforma, recorta e cola sua própria
identidade – cantada no verso 412: “I exist as I am” – misturandose com os outros, com aqueles que viu e vê, presenciou, ajudou
(“I am he that walks with the tender and growing night;”, verso
434; e “I am he attesting sympathy;”, verso 464).
No início, este eu multifacetado expõe-se (“I assume myself ”,
primeiro verso, assim como “I am exposed”, verso 607), depois
mostra-se através e entre comparações (“I am of old and young,
of the foolish as much as the wise”, verso 326; ou “I am the
poet of the woman the same as the man”, verso 426), e,
posteriormente, modifica-se à base de re-identificações, de reinvenções de si mesmo, em um mosaico de identidades (“I
become as much more as I like”, verso 940) coladas de outros
(“I am the hounded slave”, verso 830).
Em busca de uma identidade que agregue a todos, o poeta
abusa de uma super-aceitação impossível a homens. Whitman
não pode se ater a limites corporais humanos, senão será
impossível abarcar toda a infinita gama de pessoas, de tão
diferentes identidades, como deseja e explicita nos versos 997 e
998: “I do not ask who you are... that is not important to me, /
You can do nothing and be nothing but what I will infold you”.
Por isso o caráter cósmico conferido pelos críticos: Whitman
tenta criar uma identidade através da destruição. Ele se torna
um amálgama, sendo pioneiro do movimento antropofágico que
a literatura (especialmente a brasileira), assim como a cultura
em geral, vai adotar com a mudança de paradigmas na virada do
século42.
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Sendo, portanto, um pioneiro quanto à demonstração de nãounidade ou não-integralidade de um eu – ao contrário, o eu é,
sim, modificável por conta de situações e de contatos com outros
– Whitman lança as bases na poesia para o que Agrippino acaba
chacoalhando um século depois. Enquanto no primeiro, o poeta
ainda busca uma identidade, mesmo que esta seja contraditória43,
no segundo a identidade é um ideal relegado ao ostracismo. O
herói-narrador não se identifica, não se revela, apenas revela os
fatos que narra e mostra-se como dependente do pathos e de seus
desejos, consumistas, carnais ou de poder.
Em PanAmérica, o narrador aceita-se como é sem explicitar.
Ele simplesmente vive. Embora ele também seja muitos,
igualmente não deixa isso explícito, como em um dos momentos
de guerrilha do qual faz parte: ele faz parte do grupo norteamericano – “Nós entramos no porta-aviões ‘Lyndon Johnson’”
– para logo depois sair do conflito, para no dia seguinte descobrir
que os comunistas ganharam e se alegrar – “O regime capitalista
e as forças do governo haviam caído e os comunistas estavam
no poder. Eu saltei de alegria no meio da multidão” -, para,
posteriormente, amedrontar-se junto a essa multidão do contraataque norte-americano – “Eu gritei espremido na multidão
irada”, que denota o desgosto para com os americanos, “O portaaviões (...) atracou no cais, e a multidão se dispersou em pânico”
– e, por fim, voltar pro lado americano da história – “Eu balancei
os pés sentado na longa mesa de mármore do frigorífico e olhei
para as altas e volumosas cabeças dos comunistas que tinham
sido enforcados(...)” (PAULA, 2001: 98-9).
Percebe-se no trecho explicitado parte a parte no parágrafo
acima, que o narrador não se importa em dizer quem é. Na verdade,
ele não se importa em saber se possui identidade ou não, e qual
ela seria, caso a tivesse. Suas posições ideológicas não são
explicitadas enquanto pensamento, apenas as decisões que toma
são descritas. Como já dito anteriormente, sua narrativa é como
a exposição de quadros. E estes quadros, no fundo, são
representativos de um eu fragmentário. Na verdade, de um eu
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que é igual a toda a humanidade, em especial em uma época
movimentada como a que vivemos hoje em dia.
Este narrador quer tomar parte no que está acontecendo.
Assim, ele surge em todos os locais onde algo acontece: no campo
de beisebol quando Di Maggio se revolta contra os torcedores,
nos bastidores de Hollywood quando decidem adaptar a Bíblia,
na derrota de Hollywood para o CineItália. No fundo, o eu de
PanAmérica é desejoso de tomar parte em tudo: a ideia popular
de se “abraçar o mundo com as pernas”. O desejo de tomar parte,
ao invés de o desejo de ser alguém. Não fazer parte de um grupo
para se definir, mas, sim, ser de um grupo para, por conseguinte,
ajudá-lo.
Essa é uma omissão do eu, uma destruição do ideal de
identidade que marca radicalmente o momento em que vivemos.
Por isso, o enredo da obra é contado por um “eu” repetitivo,
através de uma sintaxe sem elipses. Não se sabe quem é porque
ele é todos, embora não busque ser todos – ele simplesmente é.
Não se sabe onde está, pois ele está em todos os lugares: onde
quer que algo aconteça, ele se mostra por lá. Vive entre heróis
míticos idealizados pela cultura pop da época; ídolos no sentido
religioso do termo. Trai, faz sexo, estupra, assassina, muda de
posição, assiste indiferente: o eu-narrador de PanAmérica consegue
o que Whitman deixa escorrer por entre os dedos: transforma-se
no leitor.
Através do uso de um dêitico poderoso, sabiamente sem
preocupar-se em identificar-se ou em conhecer-se, o narrador
criado por Agrippino de Paula também se mostra multifacetado:
mas apenas porque, ao ler o texto em que mais da metade dos
períodos começa com o pronome “eu”, o leitor se torna parte
integrante da história. Não é “ele” quem faz sexo com Marilyn
Monroe; sou eu. Eu, Rafael Ottati, quem escreve este artigo.
Eu, qualquer leitor.
Por isso a necessidade de entropia de um eu fechado e único:
somente vivendo este mosaico, sem racionalizar sobre o mesmo,
apenas descrevendo, o autor pôde passar um pequeno quê de
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caos de identidade para o leitor. Este, então, tornou-se cúmplice,
mesmo que por pouco tempo. Tanto que esta é a parte mais
importante da obra. PanAmérica nada seria acaso não possuísse
esse “eu”, que é todos sem se dizer assim: nenhuma outra
entropia, nenhum outro pilar Iluminista poderia ser destruído se
o mais importante ainda continuasse de pé: a convicção plena
de que existe um eu único, íntegro e unitário. Um eu que assiste
à destruição do mundo no final, através de um dos símbolos
máximos de identidade da nação norte-americana, a Estátua da
Liberdade, começar o trabalho de entropia – e que também assiste
indiferente a isto, acoplado na coroa da estátua, observador quase
anônimo à morte dos outros.
Assim, PanAmérica torna-se o espetáculo da negação do outro.
O outro não existe: ele é sempre decapitado ou mastigado ou
explodido, como na cena em que o narrador explode os testículos
de Di Maggio com uma bazuca para depois expô-los em uma
exibição em Nova Iorque. A identidade em si passa a ser
gradativamente eliminada, humilhada, relegada ao nada: tal
exibição é demolida pelos flatos de Churchill, um símbolo
estrangeiro; assim como os mitos usados nesta epopeia são
baseados na cultura pop, ou seja, imaginário popular, frutos do
senso com um e sím bol os de uma i dentidade, portanto,
fragmentária e não unitária.
CONCLUSÃO
Whitman prezava por uma identidade nacional, mesmo que
esta fosse fruto de uma junção dos países da América do Norte.
Agrippino, ou melhor, o narrador de PanAmérica subverte esse
ideal: não se pode haver identidade, pois ela sempre fará parte
de um jogo de poder. A cada momento, uma estará dominando a
outra: os Beatles, por exemplo, ícones extracontinentais, foram
transformados em meros serviçais (PAULA, 2001: 225) dos
grandes atores de Hollywood, porém pouco depois estes mesmos
atores acabam por ser aglomerados aos serviçais de Carlos Ponti
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(PAULA, 2001: 231).
O século XX ruminou parte da literatura transgressora anterior
a ele, Leaves of Grass inclusa, de forma a perceber que não se
deve prender a idei as i mutáveis ou a objeti vi dades
imparcialmente descritas e desejadas. A inclusão do Outro no
discurso literário apenas vem corroborar que o saber tornou-se,
conforme aponta Lyotard, descentralizado, assim como as
institui ções que histori camente o legi ti mavam foram
deslegitimadas.
Por isso, os conceitos de integridade, de unidade e de fidelidade
a princípios morais, entre tantos outros, tornam o sujeito tão
despreparado para a vida contemporânea, que pede cada vez
mais uma forma de pensar diferente da que dominou (e ajudou)
a Modernidade. Por conta disso, a necessidade tão grande da
entropia dos valores: somente o caos destrutivo, não no sentido
nietzschiano da imagem poética, ao apelar para a explosão da
pathos que rege o homem, pode levá-lo a superar a transição entre
a Modernidade e a Pós-Modernidade, conforme esboçado
resumidamente neste artigo. Somente o indivíduo enquanto caos
pode irromper contra esses valores castradores e realizar esta
transição sem perder sua sanidade.
NOTAS
37
Este texto é uma versão revista, ampliada e modificada de um artigo publicado
na Revista Pontes, sob o título “O Eu Enquanto Caos: Poética da Entropia em
Leaves of Grass e PanAmérica”, em 2011. Fruto do grupo de estudos, coordenado
pelo prof. Dr. Luis Carlos de Morais Jr., Estudos Transdisciplinares em Línguas
e Literatura, esta nova versão do texto foi refeita por conta de novos achados
derivados da pesquisa que desenvolvo para a minha Dissertação de Mestrado,
intitulada “Ecos da Poética da Entropia”.
38
A unidade de ação é explicada nos capítulos VIII e XXIII. ARISTÓTELES,
2008.
39
“[Ele cantou uma canção,] a unifying song compounded of ego and society,
people and landscape, male and female, death and life, personal sensation and
historical destiny”. (RULAND, et al., 1992, p. 168)
40
I do not talk of the beginning or the end. / There was never any more inception than
there is now,/ Nor any more youth or age than there is now; / And will never be any more
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perfection than there is now, / Nor any more heaven or hell than there is now. (WHITMAN,
1986, p. 26)
41
Nesta seção, as citações ao livro de poesia não será feita por página, mas, sim,
por verso, uma vez que a base interpretativa encontra-se no poema “Song of
Myself ”, o qual, nesta edição, tem seus versos numerados e que se encontra
entre as páginas 25-86.
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“This Whitman is a great and unique figure who is also the recognizable
ancestor of many significant poetic developments since his creative prime(...)”
(LEWIS, 1962: 970).
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Maravilhosamente bem explicitado nos versos 1314-16: “Do I contradict
myself? / Very well then... I contradict myself; / I am large... I contain
multitudes”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
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Leaves of Grass. Poets.org, 2005. Disponível em: http://
www.poets.org. Acesso em: 28 mar. 2013.
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www.cfh.ufsc.br/~wfil/poetica.pdf. Acesso em: 12 abr. 2013.
BENTO, C. H. Pan e latina América: o delírio épico de José
Agrippino de Paula. IPOTESI., v. 12, n. 1, p. 145-153, 2008.
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HOISEL, Evelina. Supercaos: os estilhaços da cultura em
“PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira;Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980.
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Janeiro: Imago Ed., 1991.
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Whitman e “Saudação a Walt Whitman”, de Álvaros de Campos.
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v. 6, p. 29-43, 2005. Disponível em: HTTP://www.uel.br/pos/
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LEWIS, R. W. B. Walt Whitman (1819 – 1892). In: MILLER,
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& World, Inc., 1962. p. 969-987.
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Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
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São Paulo: Boitempo, 2003.
PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. 3a. Ed. São Paulo:
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1992. p. 164-178.
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Cambridge’s Companion To Kant. Cambridge, UK: CUP,
1999. p. 309-341.
TELLES, L. F. P. PanAmérica de Jose Agrippino de Paula:
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contemporânea. FALLA. Falla dos Pinhaes, SP, v. 1, n. 1, p. 115, 2004. Disponível em: HTTP://www;unipinhal.edu.br/ojs/
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New York: Penguin Books, 1986.
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VIVO EM UM MUNDO FELIZ
GABRIELLY VASCONCELLOS
Vivo em um mundo
feliz
ligo a tv e me sinto satisfeita
vivo em um mundo perfeito
vejo as modelos e me sinto feia
vivo em um mundo em que não quero viver
vivo em uma fantasia
elaborada por personagens coletivos
vivo em um mundo virtual
hoje todos querem ser diferentes
e desejam tudo igual
onde
Vivo em um mundo que cabe no meu cartão de crédito
tão pequeno
que posso guardá-lo na bolsa
mas não sei se quero viver
esse mundo não foi feito para mim
bombardeada de informações
onde o conteúdo não importa
vivo no mundo da velocidade
mas não quero ter que correr para ser feliz
vivo em um mundo coberto pelo
egoísmo
pela discriminação
pelo medo de dizer não
vivo em mundo em que não quero viver
pois sei que a vida acontece aqui e não na tv
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SOBRE OS AUTORES
FLAVIO PEREIRA SENRA graduou-se em Letras – Português/
Literaturas pela Universidade Federal do Rio Janeiro, onde sagrouse Mestre e, em 2012, Doutor no Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Literatura, na área de concentração Literatura
Comparada, com a tese Heavy Metal, trilha sonora da PósModernidade. O artigo aqui apresentado é um recorte dessa tese.
Sua principal área de pesquisas é a Literatura Comparada, com
ênfase nas representações culturais/identitárias da Indústria
Cultural na contemporaneidade, tema desenvolvido em seu PósDoutorado (em andamento, com previsão de conclusão para
2014). Além de pesquisador e professor de Língua Portuguesa &
Literaturas, desenvolve atividades de cunho artístico. Atua como
músico desde 2000, com participação em registros fonográficos
de diferentes grupos musicais. Tal vivência se mostrou relevante
ao longo de sua vida acadêmica, em especial no tocante às suas
atividades de Pós-Graduação.
ELIANE COLCHETE é filósofa e escritora carioca, autora de
obras de filosofia, crítica literária, poesia e literatura. Publicou
vários livros em parceria com Luis Carlos de Morais Junior, e é
autora de Contos da musa irada, Contos do Espelho, O Pós-moderno
poder, linguagem e história e Filosofia, ceticismo e religião, com um estudo
sobre Diógenes Laércio, todos pela editora Quártica.
GABRIELLY VASCONCELLOS atualmente cursa Comunicação
Social, focando Publicidade e Propaganda, pela Faculdade
CCAA, no Rio de Janeiro em 2013. Formada em Teatro desde
2010, pelo Curso Profissionalizante Le Monde, assim como se
formou em Técnica em Informática pelo Colégio Técnico
Graham Bell em 2009.
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IVO VENEROTTI É doutorando em geografia no Programa de
Pós-graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (PPGEO/UERJ). Mestre também pelo PPGEO/
UERJ, especializou-se em Políticas Territoriais no Estado do Rio
de Janeiro. Graduou-se em história pela mesma universidade e
atua como professor colaborador do projeto de extensão Roteiros
Geográficos do Rio, que promove caminhadas gratuitas pela urbe
carioca.
L IN COLN P ONTUAL , aluno do curso de Marketing, pela
Faculdade CCAA, atua como Diretor de Marketing, responsável
por planejar, organizar e dirigir os programas mercadológicos da
empresa, avaliar a performance de produtos existentes, coordenar
estudos sobre lançamento de novos produtos, e acompanhar a
evolução do mercado e identificar novas oportunidades de
negócios. Também define planos estratégicos de marketing e,
como consultor de negócios.
LUIS CARLOS DE MORAIS JUNIOR é doutor em Ciência da
Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor
Titular da Faculdade CCAA, e autor de 23 livros publicados,
incluindo romance, poesia e crítica literária.
MARIANA AYRES TAVARES é bacharel em Comunicação Social
– Publicidade, pela UFF, e aluna do curso de especialização em
Pesquisa de Mercado e Opinião pela UERJ.
M A RC OS R OBER TO F R EITAS graduou-se em Letras –
Português/Inglês pela Faculdade de Formação de Professores
(FFP) da UERJ. Especialista e Mestre em literaturas de língua
inglesa pela UERJ, e Doutor em literatura comparada, também
pela UERJ, é autor dos livros The Beginnings of English Literature:
General and Structural Characteristics (2008) e English Literature: The
Elizabethan Paradigm (2012 - Este em parceria com Ricardo
Teixeira). Atualmente ministra aulas de literatura inglesa na
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Faculdade CCAA, e aulas de teoria literária e literatura comparada
na UNIABEU.
MARIA DO SOCORRO MOREIRA LOUREIRO é especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior de
Advocacia do Estado do Rio de Janeiro/ ESA. Especialista em
Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes /
RJ – UCAM. Especialista em Docência do Ensino Superior pela
Universi dade Cândi do Mendes/RJ. Especi al ista em
Responsabilidade Civil pela Universidade Cândido Mendes/RJ.
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Augusto Motta.
Pós-Graduanda em Gestão Estratégica e Qualidade. Professora
da Faculdade CCAA, Advogada.
RAFAEL OTTATI graduou-se em Letras – Português/Inglês pela
Faculdade CCAA, no Rio de Janeiro em 2011. Desde 2012, é
mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura, na Faculdade de Letras da UFRJ, na área de
concentração Literatura Comparada, além de ser bolsista da
CAPES e aluno do curso de pós-graduação lato sensu em Filosofia
Contemporânea, pela PUC-RJ.
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo
PPGF-UFRJ. Professor Titular do Curso de Comunicação Social
da Faculdade CCAA, onde leciona Comunicação e Filosofia,
Ética e Legislação do Audiovisual, Comunicação e Realidade
Brasileira, Teoria da Comunicação e Metodologia do Trabalho
Científico; professor do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa
de Mercado e Opinião da UERJ; lecionou no Colégio Pedro II
em duas ocasiões (2006-2007 e 2011-2012); Professor da
Universidade Cândido Mendes, da UNIABEU, da Faculdade
Flama – UNIESP, e Membro do Grupo de Pesquisa Spinoza &
Nietzsche. Articulista da Revista Filosofia Ciência & Vida
(Editora Escala).
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T HIAGO O LIVEIRA C ARVALHO graduou-se em Letras –
Português/Inglês pela Faculdade CCAA, em 2010. É estudante
do curso de pós-graduação lato sensu em Literaturas de Língua
Portuguesa, pela Universidade Estácio de Sá, desde 2012.
Embora não seja sua área de formação acadêmica, nutre
apaixonado interesse por linguagens visuais e manifestações
artísticas de um modo geral.
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