fazer - Núcleo estudos de gênero

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
LEONARDO DIOGO CARDOSO NOGUEIRA MACHADO
PATOLOGIZAÇÃO DO DESEJO: O HOMOSSEXUALISMO MASCULINO NOS
MANUAIS DE MEDICINA LEGAL DO BRASIL DAS DÉCADAS DE 1940 E 1950
CURITIBA
2010
LEONARDO DIOGO CARDOSO NOGUEIRA MACHADO
PATOLOGIZAÇÃO DO DESEJO: O HOMOSSEXUALISMO MASCULINO NOS
MANUAIS DE MEDICINA LEGAL DO BRASIL DAS DÉCADAS DE 1940 E 1950
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito
parcial à conclusão do Curso de História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof.ªDr.ª Ana Paula Vosne Martins
CURITIBA
2010
AGRADECIMENTOS
À professora Ana Paula Vosne Martins, pela excelente orientação, apoio e
paciência. Pela seriedade de seu trabalho e pelo respeito que sempre demonstrou.
Aos meus grandes amigos Stefani Arrais Nogueira, Thiago Bragança Braga,
Fernanda Azeredo de Moraes, Débora Raquel Faria e Manuela Volaco, pelos
conselhos, longas conversas e carinho.
AGRADECIMENTOS À FAMÍLIA
À minha mãe, Sonia Maria Cardoso, e à minha avó, Terezinha da Luz Cardoso, pela
educação, amor incondicional e exemplo.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o discurso médico-legal brasileiro
das décadas de 1940 e 1950 acerca da homossexualidade masculina. A partir da
segunda metade do século XIX muitos médicos e psiquiatras começaram a escrever
sobre as perversões sexuais. Objeto de novos saberes, o corpo homossexual foi
constituído e institucionalizado na disputa de influência que existiu entre o saber
médico e o saber jurídico. A Medicina buscava então, através da patologização da
homossexualidade, consolidar-se enquanto instituição de controle social. Neste
sentido, o corpo homossexual, definido enquanto natureza patológica e desviante pelo
discurso médico, foi um elemento importante de um jogo político. Quais são as
imagens e representações da homossexualidade presentes nos manuais de medicina
legal brasileiros? Em que momento e como foi possível a ativação de tais
representações? Eis algumas questões que norteiam esta pesquisa.
Palavras chave: homossexualidade masculina, Medicina Legal, discursos normativos.
RESUMÉ
Ce travail a pour objectif d’analyser le discours de la médecine légale
brésilienne des années 1940 et 1950 en ce qui concerne l’homosexualité masculine. A
partir de la deuxième moitié du XIX siècle, beaucoup de médecins et de psychiatres
ont commencé à écrire sur les perversions sexuelles. Objet de nouveaux savoirs, le
corps homosexuel a été constitué et institutionalisé à partir de la lutte d’influences qui
a existé entre le savoir médical et le savoir juridique. A partir de la psychiatrisation de
l’homosexualité, la médecine cherchait alors à se consolider en tant qu’institution de
contrôle social. En ce sens, le corps homosexuel, défini en tant que nature patologique
et déviante par le discours médical, a été un élément important d’un jeu politique.
Quelles sont les images et les représentations de l’homosexualité présentes dans les
manuels de médecine légale brésiliens? A quel moment et comment a été possible
l’activation de telles représentations? Voilà quelques questions qui ont conduit cette
recherche.
Mots-clés: homosexualité masculine, Médecine Légale, discours normatifs.
SUMÁRIO
1 - Introdução .........................................................................................................8
2 – A emergência do homossexual no e pelo discurso médico ............................16
2.1 – Os médicos na era dos trens expressos............................................................17
2.2 – O poder do discurso ou o poder discursar. ......................................................22
2.3 – Psiquiatrização do prazer perverso: o olhar médico sobre o corpo
homossexual. ......................................................................................................................27
3 – Os contornos da perversão: definições e imagens do corpo homossexual nos
manuais de medicina e de sexologia do século XIX e da primeira metade do
século XX ..............................................................................................................37
3.1- Crepúsculo de juízes, manhã de médicos: a medicina-legal na segunda
metade do século XIX .......................................................................................................39
3.2 – A fabricação da diferença entre os sexos e a inversão sexual........................43
3.3 - Selva de definições: da multiplicidade de corpos desviantes .......................48
4 – O vício ao sul do Equador: medicalização e institucionalização da
homossexualidade no Brasil da primeira metade do século XX.........................64
4.1 – Na fronteira: a homossexualidade entre o crime e a loucura .........................65
4.2 – Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de
medicina legal do Brasil das décadas de 1940 e 1950 ...................................................73
5 – Conclusão........................................................................................................84
Fontes....................................................................................................................87
Referências Bibliográficas.......................................................................................88
Anexo – Imagens ..................................................................................................91
8
1. Introdução
O ofício da Santa Inquisição que se instalou em Portugal em 1553 e o código
penal português vigente no período previam que a sodomia deveria ser punida com
morte na fogueira, podendo ser confiscadas as propriedades dos culpados por tal ato1.
Assim, até a primeira metade do século XIX, os sodomitas foram definidos e
controlados pelo direito civil e canônico na metrópole e no Brasil.
Segundo James N. Green
Entre 1587 e 1794, a Inquisição portuguesa registrou 4.419
denúncias. (...) Do total, 394 foram a julgamento, dos quais
trinta acabaram sendo queimados: três no século XVI e 27 no
século XVII2.
Influenciado pelo Código Penal francês de 1791 e pelo Código Napoleônico de
1810, o Código Penal Imperial promulgado por Dom Pedro I em 1830, “eliminava
toda e qualquer referência a sodomia”3. No entanto, mesmo se a sodomia não era
mais criminalizada a partir de então, os indivíduos que mantinham relação amorosa e
sexual com pessoas de seu mesmo sexo não estavam livres da repressão policial e da
intervenção das autoridades.
A partir da segunda metade do século XIX, os indivíduos envolvidos em
práticas homossexuais começaram a chamar a atenção não só de juristas e juízes, mas
de médicos e psiquiatras. Em realidade, podemos perceber neste período uma lenta,
complexa e importante transformação; o sodomita, sujeito jurídico definido por um ato
criminoso, começou a ser suplantado pelo homossexual, indivíduo de personalidade
desviante que não deveria ser julgado por um crime, mas definido e tratado por sua
natureza anormal.
Foi na segunda metade do século XIX que o personagem do homossexual
começou a ser cercado e definido nas e pelas práticas médicas. As sexualidades
perversas passavam assim a ser objeto de responsabilidade da medicina, que, por sua
vez, reivindicava constantemente seu direito em se pronunciar sobre os anormais. Para
1
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
2
Op. Cit., pp.55-56.
3
Op. Cit. p. 56.
9
além, foi na e pela medicina que o homossexual enquanto indivíduo de personalidade
psíquica e somática desviante fez sua aparição. Como se deu esta transição? Em que
momento e como a medicina passou a se ocupar daqueles indivíduos que antes eram
sujeitos do controle do saber jurídico?
A transição do personagem do sodomita ao homossexual reflete e diz respeito a
diversas e complexas mudanças sociais, dentre as quais a emergência da medicina
enquanto importante instituição de controle social é uma das mais evidentes.
Neste movimento, diversos manuais médicos que buscaram cercar as perversões
sexuais foram escritos a partir do fim da segunda metade do século XIX e ao longo do
século XX. Na Europa e no Brasil, muitos médicos se propuseram a definir a inversão
sexual, estudar sua etiologia e suas manifestações para, se possível, curá-la, livrando
assim a sociedade deste “vício perverso”.
Compreendendo a importância da produção médica e em especial da produção
médico-legal para a definição das perversões sexuais, buscamos analisar neste trabalho
o discurso médico-legal brasileiro das décadas de 1940 e 1950 acerca da
homossexualidade masculina, tentando compreender como a medicina afirmou sua
autoridade em se pronunciar sobre estes indivíduos.
Desta forma, o presente trabalho se inscreve no estudo da história das
sexualidades que se preocupa em analisar os discursos sobre o sexo4. Não nos
propusemos em nossa pesquisa estudar a vivência das sexualidades, muito menos a
experiência dos próprios homossexuais, mas buscamos acompanhar e analisar a
produção de discursos normativos que definiram a homossexualidade e que, ao mesmo
tempo, criaram subjetividades.
Considerada um elemento a-histórico ou natural, a sexualidade foi desde o fim
do século XIX um objeto negligenciado pela história, sendo mais estudado pelas
ciências naturais e biológicas. No entanto, sob a influência das mudanças sociais
vividas nas décadas de 1960 e de 1970, começaram a surgir pesquisas historiográficas
que se propuseram a investigar a sexualidade. Os movimentos feministas e aqueles que
militavam pelos direitos gays e lésbicos incentivaram o trabalho de muitos
4
ENGEL, Magali. História e sexualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.)
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Campus. Rio de Janeiro, 1997. pp. 297-311.
10
historiadores que então começavam a se debruçar sobre novos temas e objetos. Foi
neste contexto que a mulher e o homossexual emergiram enquanto personagens da
História e objetos do saber historiográfico.
Sendo muito influenciados pelo militantismo gay e lésbico americano, os
trabalhos pioneiros de investigação histórica que se debruçaram sobre os
homossexuais e sobre a homossexualidade foram aqueles produzidos em língua
inglesa5. De fato, os primeiros trabalhos que surgiram neste campo de investigação
estavam diretamente ligados à militância gay e lésbica. O historiador Jonathan Katz
comenta que
à l’aube exaltante de la libération gay et lesbienne (…) nous
avions l’audace d’imaginer un futur sexuel radicalement libre
et différent. Il nous restait encore à reconstituer un passé
sexuel totalement différent6.
Os trabalhos em língua inglesa que surgiram no campo de investigação da
história das sexualidades se debruçaram desde cedo sobre as homossexualidades.
Durante a década de 1980, o grande debate entre historiadores “essencialistas” e
“construtivistas” incentivou a produção de muitos trabalhos que se propuseram a
analisar a construção histórica da “homossexualidade”.
“Essencialistas” compreendiam a homossexualidade em termos de continuidade
histórica e cultural, prevendo a existência de uma certa “essência homossexual” que
atravessaria diferentes períodos históricos, sendo a repressão o elemento que se
alteraria no tempo e no espaço.
Em outro sentido, os “construtivistas”, muito influenciados pelo trabalho de
Michel Foucault, analisavam a homossexualidade em termos de descontinuidade
histórica, prevendo que não é a mesma homossexualidade que atravessa a História de
maneira imutável. Majoritários no campo da produção do saber histórico, os
“construtivistas” compreendem que o processo de emergência e definição da
homossexualidade teria acontecido na segunda metade do século XIX. Desta maneira,
5
REBREYEND, Anne-Claire. Comment écrire l’histoire dês sexualités au XXème siècle? Bilan
historiographique compare français/anglo-américain. Disponível em: http://clio.revues.org/index1776.html#ftn8
6
“no raiar da libertação gay e lésbica (...) nós tínhamos a audácia de imaginar um futuro sexual radicalmente
livre e diferente. Restava-nos ainda reconstituir um passado sexual totalmente diferente”. (tradução livre)
Citação em REBREYEND, Anne-Claire. Comment écrire l’histoire dês sexualités au XXème siècle? Bilan
historiographique compare français/anglo-américain. Disponível em: http://clio.revues.org/index1776.html#ftn8.
11
seria anacrônico, por exemplo, falar sobre homossexualidade na Grécia antiga7. Este
trabalho vai ao encontro das formulações construtivistas da história da sexualidade.
Se a produção em língua inglesa é bastante rica, carecemos ainda de trabalhos
em língua portuguesa que tenham se proposto a escrever a história das
homossexualidades na América Latina e espanhola. James Green atenta-nos para o
fato de que
No campo da história, há alguns poucos artigos sobre a
homossexualidade, a sodomia e a Inquisição durante o
período colonial na América Latina espanhola e no Brasil, e
um número mais minguado ainda de obras relativas aos
séculos XIX e XX8.
Antes dos historiadores, foram os sociólogos e antropólogos que se debruçaram
sobre o estudo das homossexualidades no Brasil contemporâneo. Peter Fry é um dos
pioneiros nesta área, inaugurando estes estudos com artigos sobre a relação entre
homossexualidade e candomblé. Influenciados por Fry, autores como Carmen Dora
Guimarães, Edward MacRae ou mesmo Veriano de Souza Terto Júnior que em seu
trabalho “No escurinho do cinema” analisou a sociabilidade e o sexo homossexual nos
cinemas do Rio de Janeiro, contribuíram muito para este campo de estudo9.
O livro“O direito de curar: homossexualidade e medicina legal no Brasil dos
anos 30” do antropólogo Carlos Alberto Messeder Pereira é igualmente uma obra de
referência para os estudiosos da homossexualidade no Brasil. Pereira analisou em seu
trabalho os escritos de médicos e criminologistas no Brasil dos anos 1920 e 1930,
chamando nossa atenção pela natureza de suas fontes, em muito similar àquelas
analisadas no presente trabalho. No mesmo sentido, Talisman Ford analisa o discurso
da sexologia brasileira da primeira metade do século XX acerca da sexualidade10.
7
Op. Cit.
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
9
GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro. Garamond Editora, 2004.
TERTO JR, Veriano de Souza. No escurinho do cinema: socialidade orgiástica nas tardes cariocas. Rio de
Janeiro, 1989. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade Sexual e Política no Brasil da
"Abertura". Campinas, Editora da Unicamp, 1990.
10
PEREIRA, Carlos A. M. O direito de curar: homossexualidade e medicina legal no Brasil dos anos 30. FORD,
Talisman. Passion in the Eye of the Beholder: sexuality as Seen by Brazilian Sexologists, 1900-1940.
Dissertação de doutorado, Vanderbilt University, 1995.
8
12
Em outro sentido, o historiador Peter Beattie se propôs a analisar o
comportamento homoerótico no âmbito político, analisando a definição, pelo Estado
brasileiro, da sexualidade masculina ideal no contexto de crescente nacionalismo e
militarismo do fim do século XIX11.
Finalmente, o trabalho de James N. Green intitulado “Além do carnaval: a
homossexualidade masculina no Brasil do século XX” é uma obra de grande
importância no campo da investigação histórica acerca da homossexualidade
masculina no Brasil contemporâneo. A pesquisa de Green “atua como uma ponte
entre as análises históricas dos discursos médico-legistas dos anos 30 e os estudos
antropológicos de homossexuais brasileiros contemporâneos”12.
Por sua proposta e pela natureza de algumas de suas fontes, o trabalho de Green
nos foi de grande utilidade, nos permitindo ao mesmo tempo melhor contextualizar
nosso objeto e nos apontando um possível caminho de tratamento das fontes.
O objetivo de nosso trabalho foi o de analisar o discurso médico legal brasileiro
das décadas de 1940 e 1950 acerca da homossexualidade masculina. Buscamos
compreender não somente os termos dos debates estabelecidos entre os autores
brasileiros, mas procuramos igualmente analisar a influência dos autores europeus da
segunda metade do século XIX e início do século XX sobre a produção nacional,
inscrevendo assim nossos autores numa tradição mais ampla e mais antiga de
medicalização da homossexualidade.
Para tanto, dividimos nossas fontes em dois conjuntos distintos. O primeiro
conjunto de fontes analisado foi composto pelos autores “clássicos” europeus que
muito influenciaram a produção brasileira.
Primeiramente trabalhamos sobre a obra de 1859 do médico legista francês
Ambroise Tardieu intitulada “Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs”. Em
seguida analisamos a influente obra “Psycopathia sexualis” do psiquiatra alemão
Richard Von Krafft-Ebing publicada em 1895. O terceiro autor analisado foi Havelock
Ellis através do seu livro “Sexual Inversion” de 1896. Finalmente, nos debruçamos
11
BEATTIE, Peter. Asking, telling, and pursuing in the brazilian army and navy in the days of cachaça, sodomy,
and the lash. 1860-1916”
12
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000, p. 33.
13
sobre as formulações de Sigmund Freud presentes na obra “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” de 1909.
Ao analisar este primeiro corpo de fontes buscamos acompanhar os debates
entre estes autores, procurando estabelecer as nuances, discordâncias e singularidades
das obras bem como suas semelhanças. Desta forma, analisamos como estes autores
definiram a homossexualidade (disfunção psíquica, somática, moral, de causas
congênitas ou adquiridas, entre outros fatores...), com quais aspectos desta experiência
eles se preocuparam e quais as imagens do corpo homossexual que puderam ser
entrevistas naquelas produções.
Nosso segundo conjunto de fontes foi composto por autores brasileiros que, ao
terem produzido no interior de um espaço legítimo de enunciação, nos permitiram
acompanhar os debates existentes no interior da medicina legal brasileira.
Quatro obras foram contempladas. Analisamos em um primeiro momento a
obra “Homossexualismo Masculino” de Jorge Jaime, publicada em 1953. Em seguida,
nos debruçamos sobre “Psicologia Forense e Psiquiatria Médico-Legal” escrita por
Napoleão L. Teixeira e publicada em 1954. O livro “Sexologia forense” de 1934 e da
autoria de Afrânio Peixoto foi a terceira obra analisada. Finalmente, a obra de José
Alvez Garcia publicada em 1958 com o título “Psicopatologia Forense” completa
nosso segundo corpo de fontes.
Após termos analisado as concepções e representações do corpo homossexual
presentes nas produções européias, buscamos acompanhar o debate brasileiro,
tentando compreender quanto os autores nacionais foram influenciados pelos autores
europeus e quais são os elementos que marcam a originalidade de nossos autores.
Assim, nosso trabalho de análise buscou primeiramente acompanhar os debates
existentes entre os autores brasileiros e os autores europeus, com o objetivo de
compreender como se deu a apropriação, pelos médicos nacionais, das formulações
dos médicos europeus. Em seguida, procuramos traçar quais as semelhanças e
discordâncias existentes nas obras brasileiras analisadas.
Analisamos
a
produção
discursiva
da
medicina
legal
acerca
da
homossexualidade nos apoiando sobre as reflexões de Michel Foucault. Este autor
recolocou em questão a “hipótese repressiva” que tanto marcou a história da
14
sexualidade. Para Foucault, não deveríamos escrever esta história a partir da idéia de
crescente repressão da sexualidade, mas sob a luz da compreensão do processo de
“colocada do sexo em discurso” que teria se iniciado no fim do século XVI. Neste
sentido, procuramos analisar nossas fontes a partir da compreensão da emergência, no
século XVIII, de um novo saber sobre o sexo. O sexo teria assim se tornado um
elemento privilegiado pelo discurso médico que, por sua vez, se apoiou sobre o sexo
para afirmar a legitimidade de seu lugar de enunciação social.
Objetivando melhor contextualizar nossas fontes e, desta maneira, analisá-las
sob a luz das transformações históricas da sociedade e das comunidades profissionais
no interior das quais elas foram produzidas, dividimos o presente trabalho em três
capítulos que buscaram dar conta de algumas questões importantes.
O primeiro capítulo se propôs a compreender como se deu a emergência da
categoria “homossexual” nos discursos médicos do século XIX e começo do século
XX. Para tanto, dividimos este capítulo em três tópicos de análise. Apoiando-nos sobre
as reflexões de Peter Gay e de Michel Foucault13, analisamos primeiramente como, a
partir do século XVIII, os médicos passaram a poder se pronunciar sobre a saúde da
sociedade. Em seguida, buscamos compreender como o saber médico passou a ter
autoridade em pronunciar a “verdade sobre o sexo”. Finalmente, analisamos como o
corpo homossexual foi cercado, definido e materializado pelo saber médico.
Em nosso segundo capítulo buscamos analisar nosso primeiro conjunto de
fontes tentando compreender como se construíram as representações do corpo
homossexual nelas presentes. No entanto, com o objetivo de contextualizar nossas
fontes, analisamos neste capítulo a emergência, na segunda metade do século XIX, da
autoridade da medicina legal em se pronunciar sobre a sorte de certos indivíduos e a
interação e diálogo entre a medicina e a justiça no movimento de controle social dos
perversos sexuais. Em seguida, estudamos brevemente a produção da diferença sexual
no interior dos discursos médicos, objetivando assim melhor compreender a produção
da idéia de inversão sexual. Finalmente, sob a luz de tais análises, passamos ao exame
das nossas fontes.
13
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das
Letras. São Paulo, 1988 e FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder.
Edições Graal. Rio de Janeiro, 1979. pp. 79-98.
15
Ao longo de nosso terceiro e último capítulo pretendemos dar conta da análise
de nosso segundo conjunto de fontes. Para tanto, analisamos em um primeiro momento
o contexto brasileiro da primeira metade do século XX, nos preocupando em
acompanhar o movimento de consolidação da medicina e da psiquiatria enquanto
instituições de controle social. Analisamos igualmente o movimento de superposição
das imagens de louco e criminoso nas práticas médicas e jurídicas que cercaram o
corpo homossexual.
16
2. A emergência do homossexual no e pelo discurso médico
Ao sodomita, sujeito jurídico cujos atos o direito civil e o antigo direito
canônico buscavam dar conta, sobrepõe-se a figura do homossexual, personagem que
nasce no interior do discurso médico do século XIX14. Se o sodomita era um indivíduo
julgado por um ato, o homossexual é um personagem definido por sua sexualidade;
« rien de ce qu’il est au total n’échappe à sa sexualité » 15 . Este novo sujeito possui
uma história, um passado, uma forma de vida, um corpo que pode e deve ser
identificado, separado e analisado. Muito diferente do sodomita, o homossexual não
corresponde ao pecador que passa a existir no ato, mas é de uma natureza singular que
merece atenção, controle e cura.
Como se deu e qual a natureza desta importante transformação? Em que
momento e como se deu a emergência deste curioso personagem que é cercado e
interrogado pelo discurso médico? Para responder a esta pergunta é necessário num
primeiro momento entender como a partir do século XVIII os médicos passaram a ter
autoridade para se pronunciar sobre a saúde da sociedade.
Em seguida, tentaremos compreender como o conhecimento médico se
constituiu como um saber legítimo de produção da verdade sobre o sexo e como por
sua vez o sexo se tornou uma das bases de sustentação do saber médico.
Finalmente, é então possível analisar como o corpo homossexual se constituiu
como um objeto privilegiado pelo olhar médico - olhar este que não apenas se volta ao
corpo homossexual, mas o define, materializando-o.
Estas questões merecem atenção especial se pretendemos melhor compreender
alguns autores e obras clássicas nas quais e pelas quais a homossexualidade foi
definida. Neste capítulo pretendemos apontar um caminho sólido em direção a
algumas respostas para a definição do homossexual e da homossexualidade no regime
dos saberes e das práticas de normatização produzidos no século XIX.
14
15
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976.
“nada do que ele é escapa à sua sexualidade” (trad. livre). Op. Cit. p.59.
17
2.1. Os médicos na era dos trens expressos
As inúmeras e rápidas mudanças nas estruturas sociais, no corpo das cidades,
nas técnicas, nas ciências humanas e naturais que vinham sendo percebidas no mundo
ocidental desde a Revolução Francesa e a Revolução Industrial produziram profundos
efeitos nas consciências e nos espíritos do século XIX. Cientes de estarem vivendo
uma nova era, os indivíduos do período o caracterizavam como uma “era de
mudanças” ou ainda uma “era de transições”16.
Este período de rápidas e nem sempre facilmente assimiláveis mudanças
produziu ansiedade, angústia e mesmo desespero. O progresso veio acompanhado de
certo desconforto psíquico.
Antes do século XIX a ansiedade tinha sido pontual e restrita já que as
mudanças eram acompanhadas pela previsibilidade de seus efeitos. Isto é, o ciclo de
boas e más colheitas, o fim do governo de um monarca ou a derrubada de uma
estrutura de poder eram movimentos que geravam conseqüências mais ou menos
previsíveis. Já “as mudanças que ocorriam no século XIX eram mais difíceis de serem
decifradas”17.
Neste processo de transformações insere-se um movimento de acelerada
migração do campo para a cidade e de conseqüente urbanização que preocupou alguns
observadores atentos da época. Entre 1800 e 1850 a população de Paris passou de 600
mil habitantes para mais de um milhão. Berlim aumentou sua população de 420 mil
habitantes em 1850 para 2 milhões em 1900. A população inglesa residindo em cidades de 10
mil habitantes ou mais passou de 21 por cento em 1800 aos 40 por cento em 1850. Mesmo
países que mantinham tradição de vida no campo como a Bélgica e os Estados Unidos
passaram igualmente por um importante processo de migração de suas populações rurais em
direção a médias e grandes cidades18.
A mudança na configuração do espaço urbano afetou as experiências daqueles
indivíduos que viram seus marcos orientadores sendo rapidamente modificados. Ora, a
expansão da cidade e o aumento da população urbana, a construção de estradas de
16
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das
Letras. São Paulo, 1988.
17
Op. Cit. p.51
18
Op. Cit. p. 45.
18
ferro e estações, a multiplicação das fábricas, a constante configuração e
reconfiguração de bairros que modificaram profundamente as formas de habitação não
foram pequenos detalhes sem efeito sobre a vida dos citadinos. A cidade mudava e a
percepção sobre o espaço urbano se transformava igualmente.
A imprevisibilidade das conseqüências de tão rápidas e profundas mudanças
parece ter tido como efeito um processo de racionalização da vida19. A religião
enquanto orientadora de um discurso de explicação dos fenômenos que operava tão
bem em um mundo menos ansioso e mais previsível perdeu espaço em um mundo
ansioso, agitado, em constante transformação e de futuro incerto. É então neste mundo
que clama por explicações racionais de certos fenômenos cotidianos que a medicina
forja um lugar de enunciação legítimo.
Desde o século XVIII a cidade começa a ser considerada um espaço patogênico,
no qual a transmissão de doenças e o aparecimento de epidemias colocam em questão
a qualidade do ar, a circulação da água, a concentração de pessoas e de coisas, etc20.
Neste processo, os médicos são interrogados sobre a saúde e higiene das cidades.
Para melhor compreender a ação do saber médico sobre o corpo urbano,
poderíamos analisar brevemente o caso da administração dos cemitérios. O poder de
discurso sobre a morte que era essencialmente detido pelos religiosos, passa a estar nas
mãos dos médicos a partir do século XVIII.
Os cemitérios eram espaços onde, até a primeira metade do século XVIII,
corpos eram amontoados de forma desordenada. Não havia então grandes
preocupações em relação a disseminação de doenças devido a proximidade dos vivos e
dos mortos.
No entanto, a crença amplamente difundida no período de que o ar tinha uma
influência direta sobre o organismo deu surporte a um pânico generalizado em relação
aos cemitérios. Importantes manifestações eclodiram por volta dos anos de 1740 e
1750 em Paris. A população exigia então a intervenção e controle médicos na gestão
19
Op. Cit.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de
Janeiro, 1979. pp. 79-98.
20
19
dos corpos mortos que podiam infectar o ar, elemento tão influente sobre o
organismo21.
É assim que se inicia um processo de individualização e de emigração dos
cemitérios para as regiões periféricas da cidade; processos estes sob o gerenciamento e
o controle do saber médico. Isto é, a partir do século XVIII, são os médicos que podem
e devem pronunciar a verdade sobre questões que colocam em risco a saúde e higiene
da população citadina.
Se o caso da gestão dos cemitérios é representativo da intervenção médica sob o
espaço urbano, ele não é único e isolado. Michel Foucault lembra que é na segunda
metade do século XVIII que
... se colocou o problema da unificação do poder urbano.
Sentiu-se a necessidade, ao menos nas grandes cidades, de
constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo
urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um
poder único e bem regulamentado22.
Constituída como corpo unificado, que possui uma saúde a ser vigiada, a cidade
é a primeira a ser medicalizada, é o espaço onde primeiro a medicina interveio como
saber institucionalizado e oficial. Isto é, um saber a serviço deste poder único e
regulamentado que começa a aparecer nas cidades do século XVIII. Patrice
Corriveau23 concorda com Foucault, reafirmando que a cidade sob a influência de uma
moral burguesa e através do núcleo familiar urbano foi a primeira a ser
“medicalizada”.
Ao estudar os casos da França e do Québec, Corriveau percebe uma importante
distância entre as práticas urbanas e rurais em relação à saúde e sua organização.
Enquanto no espaço urbano cada vez mais a intervenção médica se fez sentir, nos
espaços rurais franceses e da colônia a resistência ao processo de intervenção médica
21
Op. Cit. pp. 89-90. Para saber mais sobre a intervenção dos médicos na gestão dos cemitérios no Brasil do
século XIX, ver: REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitoscentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe
(org) História da vida privada no Brasil 2: Império: a corte e a modernidade nacional. Editora Schwarcz. São
Paulo, 1997.
22
Op. Cit. p. 86.
23
CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie.
Sillery, Septentrion, 2006.
20
foi evidente e se constituiu principalmente a partir da família tradicional ainda muito
apegada a valores e práticas religiosos.
Assim, não é um equívoco associar o processo de emergência da importância e
intervenção do saber médico a um processo de urbanização e mesmo ao processo de
formação da burguesia e de uma moral burguesa.
Neste sentido, Peter Gay não distoa muito de Michel Foucault e Patrice
Corriveau quando aborda a seriedade com que a burguesia tratava dos assuntos
relativos a sua saúde, descendência, em suma, sua sobreviência em um mundo que
ameaçava a pureza da raça24.
Ora, em um primeiro momento, não foi a partir da necessidade de controle da
mão de obra do proletariado que a medicina começou a intervir sobre o corpo social.
Foi a partir da vontade de afirmar a vitalidade de seu corpo e garantir a boa saúde de
sua descendência que a burguesia clamou pela intervenção do saber médico.
A extensão dos domínios de ação do poder e saber médicos se fez a partir da
família burguesa, do núcleo familiar burguês. Foi a família que exigiu e incitou o
discurso médico e foi ela que o reproduziu. Foi ela que articulou os objetivos gerais de
um projeto de ação sobre a saúde do corpo social com a ação sobre os indivíduos,
sobre o corpo individualizado. Segundo Foucault25, foi a família “medicalizada e
medicalizante” do século XVIII que permitiu o funcionamento da política de saúde do
século XIX; política esta marcada pela emergência do saber médico enquanto espaço
legítimo de enunciação sobre a saúde do corpo social.
Em suma, o mundo ocidental a partir do século XVIII viveu um processo de
racionalização da sociedade e de suas instituições. Este processo foi concomitante,
investiu e foi investido por outras importantes transformações sociais vividas no
período. A urbanização, a emergência da burguesia, os avanços tecnológicos e das
ciencias naturais e sociais marcaram o século XVIII e, principalmente, o século XIX,
gerando ansiedade e perturbando os espíritos, ou seja, inaugurando novas
sensibilidades que, mais propensas a serem influenciadas pela razão, clamavam por
24
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das
Letras. São Paulo, 1988, p. 237.
25
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de
Janeiro, 1979.
21
uma “ciência da sociedade”26. Uma ciência capaz de guiar os espíritos pelas trevas da
modernidade, de oferecer respostas e acalentar as almas.
Neste contexto, a medicina forja um espaço privilegiado de enunciação sobre o
corpo da sociedade. A burguesia emergente, vitoriosa, mas ansiosa, foi a primeira a
exigir a intervenção dos médicos. Com uma preocupação de si, querendo respostas
sobre o seu corpo, saúde, higiene e sobre seu sexo, os burgueses se voltaram aos
médicos - que eram também indivíduos de suas classes - e a eles dirigiram suas
perguntas.
26
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das
Letras. São Paulo, 1988, p. 52.
22
2.2. O poder do discurso ou o poder discursar
Recolocando em questão a “hipótese repressiva”, isto é, a idéia de uma contínua
e crescente repressão da sexualidade a partir do século XVIII, Michel Foucault27
defende que a história da sexualidade está marcada por uma explosão ou crescente
multiplicação dos discursos sobre o sexo desde o fim do século XVI. « Or un tout
premier survol fait de ce point de vu, semble indiquer que... la ‘mise en discours’ du
sexe, loin de subir un processus de restriction a au contraire été soumise à un
mecanisme d’incitation croissante ». 28
Desta forma, seria necessário analisar a história da sexualidade não do ponto de
vista da repressão, mas através da idéia da formação a partir do século XVIII de um
novo saber sobre o sexo. Para além, deveríamos seguir, analisar e tentar compreender a
formação deste saber no interior de um processo amplo de instalação na maior parte do
mundo ocidental de um novo tipo de poder, de uma nova economia de poder,
reconhecendo assim a relação entre poder e saber estabelecida por Michel Foucault29.
No que toca ao controle médico dos indivíduos, o mundo ocidental parece ter
apresentado dois grandes modelos que funcionaram no interior de economias distintas
de poder; o modelo da “exclusão do leproso” e o modelo de “controle da peste”30. O
primeiro é aquele da exclusão do indivíduo para a purificação da sociedade, sendo o
segundo modelo o da inclusão do indivíduo em um processo de vigilância minucioso e
rigoroso, modelo este da análise detalhada e cuidadosa que separa e circunscreve; que
tudo vê e nada ignora.
Ora, este segundo modelo parece ter substituído definitivamente no século
XVIII o modelo da “exclusão do leproso”. Com a ativação aparentemente definitiva do
“modelo da peste”31, o tipo de poder próprio a sociedades soberanas – direito de vida e
27
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976.
“Ora, um primeiro sobrevôo feito deste ponto de vista parece indicar que... a ‘colocada do sexo em discurso’,
longe de sofrer um processo de restrição foi pelo contrário submetida à um mecanismo de incitação crescente”
(trad. livre) Op. Cit.. p.21
29
Op. Cit..
30
FOUCAULT, Michel. Les Anormaux. Gallimard /Le Seuil. Paris, 1999.
31
O nome dado por Foucault à este modelo é “modèle de l’inclusion du pestiféré” do qual se distancia o “modèle
de l’exclusion du lépreux”. Ambos os conceitos são descritos pelo autor em sua obra « Les Anormaux » (Op.
Cit. pp. 40-46).
28
23
de morte32 - parece vacilar e começar a ser suplantado por um outro tipo de poder que
gera a vida, um poder sobre a vida que inaugura uma nova economia e que possui uma
tecnologia diferente; a este poder Foucault dá o nome de bio-poder33.
O bio-poder destina-se à “majoração da vida”, à otimização das forças ou ainda
à produção e organização das forças humanas. Neste sentido não se trata mais tanto de
excluir indivíduos, mas de disciplinar os corpos, de produzir corpos dóceis. Neste
contexto o corpo social como um todo é colocado sobre vigilância e a vida de cada
indivíduo é investida por este novo tipo de poder.
Desta forma, podemos compreender como o sexo se torna uma peça chave de
um jogo político. Ora, o sexo
... est à la chanière des deux axes le long desquels s’est
développé toute la technologie politique de la vie. D’un côté
il rélève des disciplines du corps: dressage, intensification et
distribution des forces, ajustement et économie des energies.
De l’autre il rélève de la regulation des populations, par tous
les effets globaux qu’il induit34.
O sexo é o elemento pelo qual este novo tipo de poder estende seu campo de
ação. Ele permite um novo investimento, uma nova forma de ação sobre o corpo
individual - dando espaço à uma vigilância constante e meticulosa, a um controle de
todos os instantes, justificando e abrindo a possibilidade a exames médicos e
psicológicos permitindo a ação de um “micro-poder sobre o corpo”35- e igualmente
sobre todo o corpo social36.
O sexo com seu poder de produzir a vida preocupou a burguesia do século XIX.
Não é por acaso que o sexo heterossexual reprodutivo foi o primeiro a ser interrogado.
Com o objetivo de se produzir uma descendência saudável, a burguesia vitoriana olhou
para seu sexo, tentando educá-lo e controlá-lo. Preocupando-se com seu bom uso e
tentando evitar o dispêndio desnecessário de suas energias, “a moralidade burguesa,
32
Op. Cit. p.177
“Bio-pouvoir”. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976.
34
“...está no interstício dos dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De
um lado, ele remete às disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajuste e
economia das energias. Por outro lado, ele remete à regulação das populações, por todos os efeitos globais que
ele induz”. (tradução livre). Op. Cit., pp. 191-192
35
“micro-pouvoir sur le corps” Op. Cit., p. 192.
36
Por medidas que visam o corpo social como um todo entendemos, entre outras, as práticas estatais de
regulação ou controle da reprodução humana.
33
24
especialmente no tocante à sexualidade, fazia duras exigências e impunha tensões sem
precedentes às classes médias”37.
Os “porta-vozes influentes da sociedade”38 veiculavam ignorância e pânico em
relação as práticas sexuais “não saudáveis”, isto é, aquelas que não objetivavam a
reprodução, criando intermináveis listas das conseqüências de uma sexualidade não
sadia. Os diversos manuais do século XIX sobre a masturbação e suas conseqüências
desastrosas para o organismo são um bom exemplo deste movimento.
Este pânico exprimido pelos educadores era o reflexo de temores acerca do sexo
muito presentes na cultura do período
... temores esses que tinham dimensões políticas, militares e
biológicas. Acreditava-se que a sífilis incapacitava muitos
jovens para o serviço militar, e por conseguinte os exércitos
corriam o risco de se enfraquecerem fatalmente; a
ignorância acerca da escolha sexual levaria os elementos
“desejáveis” da população a se afogarem em meio a uma
torrente populacional de espécies inferiores; rapazes e
moças desinformados ou mal-informados poderiam infectar
seus parceiros com horríveis doenças e prejudicar a
sociedade moderna, quando não a condenassem de todo39
Assim, o conhecimento sexual era extremamente importante naquelas
sociedades, uma vez que era através do sexo que elas poderiam garantir sua
sobreviência ou mergulhar na sua decadência. Este conhecimento sexual era
importante na cura das enfermidades sociais. Interrogando os indivíduos e obrigandoos a revelar a verdade de seu sexo, isto é, a exposição dos vícios e pecados individuais
era o primeiro passo de um longo caminho em direção à cura sexual da sociedade.
É neste contexto que a instituição médica40 enquanto autoridade estabelecida no
que diz respeito a saúde do corpo social forja um espaço de enunciação legítimo sobre
o sexo; um poder discursar ou um poder de discurso. Ora estes discursos médicocientíficos, e em especial aqueles fabricados no interior do saber psiquiátrico, parecem
também estabelecer na metade do século XVIII o sexo como uma de suas bases de
sustentação. Na realidade, o sexo, ou melhor, a sexualidade é ao mesmo tempo efeito e
37
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das
Letras. São Paulo, 1988, p. 51.
38
Op. Cit..
39
Op. Cit., p. 237.
40
Compreendendo esta instituição em um sentido mais amplo; medicina do sexo, psiquiatria, sexologia, etc...
25
instrumento destes saberes médico-científicos. Isto é, a sexualidade emerge no interior
destes discursos e é o elemento através do qual estes discursos estendem seu campo de
ação.
Este dispositivo de sexualidade produz igualmente subjetividades. Indivíduos
são ao mesmo tempo criados por certos discursos e assujeitados por eles através das
práticas do exame e da institucionalização. A histerização do corpo da mulher, a
pedagogização do sexo das crianças, a socialização das condutas de procriação e
enfim, a psiquiatrização do prazer perverso41 são algumas estratégias que atravessaram
e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos homens, não só delimitando o
sexo como objeto privilegiado, mas produzindo também os indivíduos sobre os quais
estas estratégias pesaram em busca de normalização. A mulher histérica e a mulher sã,
a criança onanista e aquela que não se masturba, o casal malthusiano, o adulto
perverso e o normal, são ao mesmo tempo os alvos, a criação e o ponto que permite a
ativação de saberes específicos. Ao serem examinados, interrogados, separados e
catalogados, aqueles individuos foram sendo desenhados, criados e materializados.
É no fim do século XVIII que emerge uma nova tecnologia do sexo. Mesmo se
ela não é completamente livre da temática do pecado, esta nova tecnologia não será
mais ordenada pela instituição eclesiástica. A partir de então ela começa a se ordenar
em torno da pedagogia, da medicina e da economia, fazendo do sexo uma questão
laica e uma questão de Estado42. Ora, mesmo se esta nova tecnologia se apropria de
temáticas próprias ao cristianismo – como por exemplo a questão da sexualidade das
crianças que já havia sido problematizada na pedagogia espiritual do cristianismo – ela
o faz transformando estas temáticas e o faz a partir e do interior de disciplinas
específicas que possuem um discurso e um vocabulario diferente.
Eis a mudança capital situada na virada do século XVIII para o século XIX; o
sexo passa a pertencer ao domínio da medicina. A partir da exigência de normalidade e
se organizando ao redor da temática da vida e da doença – temáticas próprias ao
41
“Hystérisation du corps de la femme”, “pédagogisation du sexe de l’enfant”, “socialisation des conduites
procréatrices” e “ psychiatrisation du plaisir pervers ” (tradução livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la
sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. pp. 137-138.
42
Op. Cit., p.154.
26
sistema do bio-poder – a verdade sobre o sexo deverá a partir de então ser pronunciada
pela instituição médica.
O advento do “instinto sexual”, a abertura do grande campo médico-psicológico
das perversões, a questão da hereditariedade e principalmente o grande tema da
“degenerescência” do qual falaremos mais à frente, são igualmente os efeitos e os
intrumentos de um projeto médico mas também político de administração do sexo e de
sua capacidade de produzir a vida; a gestão estatal dos casamentos, dos nascimentos,
das perversões sexuais e da vida em si se legitima e pode existir graças à emergência
de uma medicina do sexo, domínio este que a partir de então se separa do grande
domínio da medicina geral dos corpos43.
Em resumo, o sexo teria se tornado um elemento muito importante no processo
de desenvolvimento e implementação do bio-poder nas sociedades disciplinárias
ocidentais, elemento pelo qual este poder estende seus efeitos e amplia seu campo de
ação. A exigência de normalidade e o controle sobre a vida passam pela normalização
e controle do sexo.
Ora, em sociedades que conheceram um processo de secularização desde o
Iluminismo e onde a ciência parece ter sucedido à religião na explicação do mundo44, a
instituição médica se consolida como um espaço legítimo de produção de um discurso
sobre o sexo.
Eis então o contexto no interior do qual é desenhado o personagem do “adulto
perverso”, que por sua vez dará origem ao homossexual; indivíduo este definido por
sua sexualidade anormal e desviante, que será diagnosticado e que deverá ser curado.
É então a instituição médica que o define, que o desenha e que dele se ocupa.
43
Op. Cit.
LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY,
Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin.
Editions des archives contemporaines. Paris, 2000.
44
27
2.3. Psiquiatrização do prazer perverso: o olhar médico sobre o corpo
homossexual.
A palavra “homossexualidade” data de 1869. Quem a usou pela primeira vez
foi o escritor austro-hungaro Karl Maria Benkert45, autor de dois panfletos anônimos
que se destinavam ao ministro da justiça da Prússia visando a abrogação do parágrafo
143 do código penal prussiano que condenava a “homossexualidade”46. Porém, não foi
através dos escritos de Benkert que o termo ganhou popularidade.
Na segunda edição de seu Psychopathia sexualis(1887), Krafft-Ebing47 se
apropriou da palavra e inscreveu no termo suas conotações médicas e médico-legais. A
partir de então, o termo foi amplamente utilizado e começou a aparecer nas
publicações de médicos, sexólogos e psiquiatras do fim do século XIX e do começo
do século XX48.
Este termo de uma incoerência conceitual gritante descreve um indivíduo que
nem sempre é bem definido, mas que é em todo caso cercado pela instituição médica.
Não nos bastaria analisar as definições dadas a estes indivíduos reconhecidos e
definidos a partir de suas sexualidades. Seria igualmente indispensável se debruçar
sobre a fabricação da sexualidade e por consequência investigar a emergência dessas
sexualidades desviantes, perversas e pervertidas, para então compreendermos como as
definições do corpo homossexual pelo discurso médico puderam ser criadas e ativadas
no interior desta disciplina e enfim entrever quais imagens ao mesmo tempo definem e
materializam o corpo invertido49.
45
Karl Maria Kertbeny – batizado Karl-Maria Benkert- (1824-1882) foi um jornalista, escritor, tradutor e
militante pelos direitos dos homossexuais. Ele se opôs ao parágrafo 143 de 1794 do código penal prussiano que
condenava as relações “contra a natureza”. Segundo este parágrafo: “a fornicação entre homens ou entre pessoas
e animais será punida de prisão”. Este veio a se tornar o parágrafo 175 do código penal alemão que esteve em
vigor de 1871 à 1994 e que continuou punindo a homossexualidade.
46
HALPERIN, D. Homosexualité. In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes.
Larousse, 2003.
47
Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902) foi um médico alemão, professor de psiquiatria e autor da conhecida
obra Psychopathia Sexualis publicada em 1885. Produzindo no fim do século XIX, este autor se inscreve na
tradição da medicalização da homossexualidade própria ao período.
48
HALPERIN, D. Homosexualité. In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes.
Larousse, 2003.
49
Referência ao termo “inversão” utilizado por Havelock Ellis.
28
Michel Foucault concebe a sexualidade não enquanto um dado natural que ao
poder cabe controlar ou mesmo enquanto um domínio obscuro que deve ser
desvendado por um tipo determinado de saber. Para o autor, a sexualidade seria
...le nom qu’on peut donner à un dispositif historique:...
(un) grand réseau de surface où la stimulation des corps,
l’intensification des plaisirs, l’incitation au discours, la
formation des connaissances, le renforcement des contrôles
et des résistances, s’enchaînent les un avec les autres, selon
quelques grandes stratégies de savoir et de pouvoir 50.
Estas estratégias de saber e poder das quais fala Foucault não seriam
exatamente uma luta contra a sexualidade ou uma vontade pura e simples de controle
do sexo. Trata-se na verdade da produção da sexualidade em si. Este dispositivo de
sexualidade encontraria sua razão de ser na proliferação de discursos, anexação,
invenção e penetração nos corpos de forma cada vez mais detalhada, minuciosa e
global. Isto é, através do dispositivo de sexualidade seria possível o controle dos
indivíduos, a incitação ao prazer e a sua canalização através de estratégias plurais e
muito diversas51.
Para Foucault, este dispositivo de sexualidade nasce no seio de nossas
sociedades modernas se sobrepondo, sem suplantar completamente, o dispositivo de
aliança – sistema anteriormente mais presente e mais ativo.
O dispositivo de aliança se constituira sobre um sistema de casamentos, de
parentalidade e de transmissão de bens e de nomes que funcionou através de um
conjunto de regras, do que era permitido e não permitido, lícito e ilícito em termos de
relações sexuais. A preocupação central neste sistema é a regulação dos laços entre
parceiros com o status bem definido52, dirigindo sua atenção principalmente ao casal
heterossexual monogâmico reprodutor.
50
“... o nome que se pode dar a um dispositivo histórico:... grande rede de superfície onde a estimulação dos
corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos
controles e das resistências, se encadeiam umas nas outras, segundo algumas grandes estratégias de saber e de
poder” (tradução livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard,
1976. p.139.
51
Op. Cit. p.139
52
Op. Cit. p. 140
29
Contrariamente a este sistema, o dispositivo de sexualidade – que começa a ser
implantado nas sociedades ocidentais por volta do século XVIII - funciona através de
técnicas móveis e polimorfas de poder, provocando uma extensão e expansão
permanente dos domínios e formas de controle. Este novo dispositivo não funciona
através da interdição como é o caso do dispositivo de aliança, mas através da
proliferação, multiplicação, anexação dos desejos e dos prazeres, expansão dos saberes
e de técnicas de poder sobre os corpos, visando um controle detalhado e global do
corpo social.
Assim, poderiamos ir de encontro à “hipótese repressiva” e levar em conta
algumas hipóteses que recolocam em questão o tema da repressão crescente da
sexualidade nas sociedades ocidentais, admitindo assim que se trataria muito mais da
emergência da sexualidade a partir do século XVIII que de uma tentativa de repressão
e neutralização de seus efeitos.
Neste sentido, Foucault contrapõe à idéia de uma sexualidade reprimida três
teses;
...la sexualité est liée à des dispositifs récents de pouvoir;
elle a été en expansion croissante depuis le XVIIe siècle;
l’agencement qui l’a soutenue depuis lors n’est pas ordonné
à la reproduction; il a été lié dès l’origine à une
intensification du corps – à sa valorisation comme objet de
savoir et comme élément dans les rapports de pouvoir53.
Desta maneira podemos entrever uma certa imagem da relação estabelecida
pelo pensador francês entre poder e saber. Em realidade, a análise da emergência do
dispositivo de sexualidade presente em “História da sexualidade” só pode ser
compreendida a partir e sob a luz do conceito de poder e da relação então estabelecida
entre poder e saber. Nesta relação, o corpo assume um papel central; alvo de discursos
e elemento importante nas relações de poder; é por esta razão que preferimos nos
servir da idéia de “corpo homossexual”.
53
“... a sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder; ela esteve em expansão crescente desde o século
XVII; as ações que a sustentaram não estiveram ordenadas em torno da reprodução; estas ações estiveram desde
sempre ligadas à uma intensificação do corpo – à sua valorização como objeto de saber e como elemento nas
relações de poder” (trad. livre) Op. Cit., p.141
30
O processo de ativação do dispositivo de sexualidade não parece ter sido
homogêneo em todas as classes sociais. Mesmo que seguindo caminhos de análise
muito diferentes e talvez irreconciliáveis, Michel Foucault e Georges Chauncey54
convergiram em suas análises ao perceberem um descompasso, uma assincronia na
ativação de práticas, discursos e representações entre as classes médias e populares.
Foucault afirma que o dispositivo de sexualidade que se dirigiu ao corpo, à
longevidade, à procriação, à descendência, foi dirigido antes de tudo às classes
dominantes. Mais que um dispositivo inicialmente voltado à repressão do sexo das
classes exploradas visando a otimização das forças de trabalho, o dispositivo de
sexualidade agiu, em um primeiro momento, sobre o corpo, a força, objetivando a
proteção dos descendentes das classes dominantes, operando uma “distribution
nouvelle des plaisirs, des discours, des vérités et des pouvoirs55”. Desta forma,
Foucault defende a idéia de que precisaríamos encarar a ativação deste dispositivo
mais como uma questão de auto-afirmação de uma classe que de sujeição de outra56.
A burguesia que então prosperava preocupada com a questão de sua
longevidade, de sua saúde, de seu corpo, de sua descendência foi a primeira a se
interrogar sobre o seu sexo. O sexo é aquilo que a inquietou, que exigiu a intervenção
de saberes, um elemento que precisou ser desvendado.
Assim, para o filósofo, a sexualidade enquanto “l’ensemble des effets produits
dans les corps, les comportements, les rapports sociaux par un certain dispositif
relevant d’une technologie politique complexe”57 não operou da mesma forma, não
surtiu efeitos de forma homogênea em todo o corpo social. Se ela emerge no seio das
classes dominantes, se ordenando ao redor da preocupação da vida, da longevidade e
da hereditariedade em um processo de auto-afirmação de classe, ao ser transposta para
as outras classes sociais produziu efeitos diferentes e revelou possuir objetivos
diversos.
54
CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003.
“como nova distribuição dos prazeres, dos discursos, das verdades e de poderes” (trad. livre) FOUCAULT,
Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976, p. 162.
56
Op. Cit., p. 162.
57
“o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais por um certo
dispositivo que tem origem em uma tecnologia política complexa” (trad. livre) Op. Cit., p. 168.
55
31
É a partir do século XIX que, não sem resistência, o dispositivo de sexualidade
será disseminado pelo tecido social. Para que o sexo, a sexualidade e a saúde do
proletariado fossem colocados em questão, foi necessária a eclosão de conflitos no
espaço urbano. A contaminação e transmissão de doenças ligadas a promiscuidade e
proximidade das habitações, a prostituição e a rápida disseminação de doenças
venerias, a necessidade do controle demográfico, são alguns dos elementos que
permitiram ou exigiram que o proletariado fosse interrogado, analisado e controlado;
que ele fosse também subjetivado através do dispositivo da sexualidade. Desta forma,
é possível compreender a idéia defendida pelo autor francês de que o sexo se ordenou
ao redor da temática da vida e da doença. Temática esta que funciona no interior ou
que faz funcionar o sistema do bio-poder.
Na primeira metade do século XIX a importante discussão em torno da
hereditariedade fez do sexo uma questão central, um elemento que deve ser levado em
consideração quando se trata da saúde do corpo social como um todo. Se o sexo não
fosse vigiado, controlado, tratado, as gerações futuras seriam colocadas em perigo58.
Os médicos enquanto autoridades capacitadas a discursar sobre a saúde e o sexo
da sociedade, começaram a propor explicações que se pretendiam racionais sobre as
conseqüências de certas relações sexuais no devir da civilização. Assim, não é uma
coincidência o fato de a teoria da degenerescência, amplamente difundida e aceita
pelos espíritos do século XIX, ter sido defendida em primeiro por um psiquiatra.
Foi Benedict-Auguste Morel59 um dos primeiros a conceitualizá-la e
desenvolvê-la. Afirmando que as anormalidades físicas, intelectuais e morais da
espécie humana eram decorrentes de um processo único de degenerescência, Morel
explicava como uma família sã pode caminhar de geração em geração em direção à
decadência60.
Assim, um conjunto indefinido de anormalidades seria transmitido de forma
hereditária, podendo tocar diversos ou todos os membros de uma família61. Um
58
Op. Cit., p.156
Benedict Augustin Morel (1809-1873) foi um psiquiatra franco-austríaco. Membro da Société de Médecine de
Rouen, da Académie des sciences, belles-lettres et arts de Rouen e da Société médico-psychologique de Paris,
Morel foi um dos primeiros a teorizar sobre a degenerescência e a demência precoce.
60
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.
61
BUSSCHER, P. O. De, Dégénérescence In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et
lesbiennes. Larousse, 2003.
59
32
indivíduo com alguma doença não muito grave transmitiria ao se reproduzir sua “tara”,
agravando-a.
L’irritabilité bénigne d’un ascendant devient à la deuxième
génération une déficience nerveuse plus grave, puis à la
troisième une disposition innée à la folie. Quatre générations
produisent le dégénéré complet avec qui la lignée s’éteint
puisqu’il est stérile62.
Mesmo se esta teoria foi formulada a partir de um vocabulário médico, ela não
se restringiu ao domínio da medicina enquanto disciplina, mas teve uma ampla
aplicação a partir da segunda metade do século XIX nas sociedades ocidentais63. A
medicina legal assim como o direito fizeram funcionar seus discursos durante muito
tempo com base neste sistema. Para além, a teoria de Morel marcou muito as
mentalidades e os espíritos da época, extrapolando os limites dos espaços oficiais e
legítimos de enunciação e se disseminando pelo tecido social.
Foi esta teoria que permitiu o estabelecimento e a articulação da idéia de
perversão e de hereditariedade, já que
elle expliquait comment une hérédité lourde de maladies
diverses – organiques, fonctionnelles ou psychiques, peu
importe – produisait en fin de compte un pervers sexuel...
mais elle expliquait comment une perversion sexuelle
induisait aussi un épuisement de la descendance –
rachitisme des enfants, stérélité des générations futures64.
Assim, poderíamos afirmar que a teoria da degenerescência foi um elemento
muito importante no movimento de intervenção do olhar médico sobre o corpo do
perverso sexual. O discurso médico de então percebia o perigo da perversão sexual já
que esta colocava em risco a descêndencia dos indivíduos e começou então a procurar
na ascêndencia destes “perversos sexuais” as marcas que conduziram-os à perversão.
62
“A irritabilidade leve e remediável de um ascendente se torna na segunda geração uma deficiência nervosa
mais grave, se tornando já na terceira geração uma disposição inata a loucura. Quatro gerações produzem o
degenerado completo, em quem a linhagem acaba já que ele é estéril”. (trad. livre) Op. Cit.
63
Op. Cit, pp. 156-157
64
“... ela explicava como uma hereditariedade carregada de diversas doenças – orgânicas, funcionais ou
psíquicas, pouco importa – produzia no fim das contas um perverso sexual... mas ela explicava também como
uma perversão sexual afetava a descendência – raquitismo das crianças, esterilidade das futuras gerações”. (trad.
livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976 p. 156
33
Esta relação que então se estabelecia entre perversão-hereditariedadedegenerescência dirigiu o olhar médico em direção ao corpo do perverso sexual,
tentando definí-lo. Isto é, os médicos que se preocupavam com o sexo deslocaram
então na segunda metade do século XIX seu olhar do casal heterossexual monogâmico
reprodutor para os múltiplos corpos anormais, perversos e desviantes. Corpos estes
que escondiam em seu sexo as doenças e as taras que poderiam conduzir ao declínio
da civilização, a contaminação e extinção da raça.
É então no sexo destes indivíduos que se encontra a verdade de suas existências.
O sexo deveria ser vigiado, interrogado e vasculhado já que nele se esconde a verdade
do indivíduo. Desta forma, a sexualidade passa a ser um domínio específico da
personalidade. O homossexual é e não está ou foi.
Ora, o sodomita não possuía um corpo específico, uma história, uma
sexualidade e uma personalidade, existindo no ato que o definia e sendo julgado não
por sua essência mas por uma ação. Já o corpo homossexual que assombrava os
manuais médicos do século XIX e começo do século XX é um corpo que possuía
formas, um passado e uma natureza específica. Este corpo era alvo de discursos e
sujeito em determinadas relações de poder.
A França pós-revolucionária tirou em 1791 da sua lista de crimes e delitos os
“atos contra a natureza”, dentre os quais a sodomia fazia parte. O novo código penal
napoleônico ratificou esta mudança e introduziu em seu corpo a idéia de demência no
momento do ato criminoso e da inculpabilidade do indivíduo se comprovada a
irresponsabilidade psíquica65.
É então que os médicos começam a ser interrogados pelo saber jurídico para
analisar e identificar se o indivíduo julgado por um ato criminoso estava em perfeitas
condições mentais no momento do crime. Desta forma, são cada vez mais os médicos
que devem se pronunciar sobre a condição e o futuro dos indivíduos detidos por
atendado à moral.
Assim,
65
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.
34
Petit à petit, expertise après expertise, ils énoncent le licite et
l’intolérable, délimitant du même coup les déviances et la
normalité en matière de comportement sexuel66
Os médicos começam então a separar e categorizar as diversas taras e
perversões sexuais tentando dar conta de todas as anomalias do instinto sexual, criando
e materializando desta forma o corpo perverso. Isto é, a prática médica criou também
subjetividades, circunscreveu e criou os indivíduos anormais – e por conseqüência os
normais - sobre os quais ela discursou.
É então no século XIX e no interior de um movimento de solidificação da
autoridade do discurso médico em pronunciar a verdade sobre a saúde da sociedade
que o perverso sexual parece começar a ser desenhado.
Em suma, poderíamos afirmar que a delimitação dos contornos do corpo
perverso se deu em um momento em que que a sexualidade começou a se tornar um
domínio específico da personalidade dos indivíduos e o sexo se tornou uma
preocupação para a sociedade por sua capacidade de produzir vida e de reproduzir
vícios e taras. Elemento que os define, a sexualidade é um domínio de sua natureza
que deve ser interrogado, revelado, confessado. O confessionário então dá lugar ao
consultório, ao divã e à clínica.
Esta discussão sobre a criação da categoria social do homossexual pelo discurso
médico foi iniciada nos trabalhos de Michel Foucault e em seguida animada pelo
lançamento, nas décadas de 1980 e 1990, de trabalhos influenciados por ele. Contudo,
ela está longe de ser consenso absoluto entre os historiadores.
Georges Chauncey em seu trabalho “Gay New York: 1890-1940”67 afirma que
os manuais médicos do fim do século XIX e começo do século XX permitem antes de
tudo e tão somente acompanhar a evolução dos termos da ideologia sexual da época, e
deveria ser esta então a utilização destes escritos como fonte para o historiador.
Chauncey defende que as categorias empregadas naqueles trabalhos médico-científicos
americanos já estavam disseminadas na cultura popular. Isto é, as caraterísticas do
“invertido”, do “perverso” ou dos “normais” presentes no discurso médico refletiam
categorias já ativas nas representações das pessoas comuns.
66
“Pouco a pouco, exame após exame, eles enunciam o lícito e o intolerável, delimitando ao mesmo tempo a
anormalidade e a normalidade em matéria de comportamento sexual”. (trad. livre). Op. Cit., p. 55.
67
CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003..
35
O autor vai ainda mais além ao afirmar que, contrariamente ao que propõe
Michel Foucault, o discurso médico sobre a homossexualidade teve um efeito e uma
influência limitados sobre as representações da população de Nova York até meados
do século XX.
... alors que quelques garçons étaient diagnostiqués comme
homosexuels par les médecins, un nombre beaucoup plus
grand était dénoncé comme anormaux (queers) par les
autres garçons dans la rue68
Desta maneira, não poderíamos reconhecer uma importância e uma influência
desmedida ao discurso médico como se este sozinho tivesse influenciado e mudado
completamente as representações em relação a estas práticas sexuais consideradas
anormais. Se reconhecemos uma importante mudança nos discursos médicos em
relação a estas práticas, não podemos esquecer que estes discursos foram criados em
um contexto histórico e ativaram representações que rivalizaram, entraram em contato,
influenciaram e foram influenciadas por outras representações.
Ora, esta reflexão presente no trabalho de Georges Chauncey nos permite
igualmente relembrar que os indivíduos que escreveram sobre as perversões e que se
interessaram por estas questões não estavam recortados da realidade social e cultural
de sua época. Eram, por outro lado, indivíduos que compartilharam crenças, idéias e
representações com seus contemporâneos. Assim, é importante ter em vista que os
médicos do século XIX e do começo do século XX que olharam para a perversão
sexual com interesse crescente não eram somente médicos, mas eram também e antes
de tudo indivíduos que viveram em um período histórico determinado e em uma classe
sócio-cultural bem definida, sendo, portanto, influenciados pelas ansiedades da época
e pelo desejo de controle e regulação das diferenças.
Contudo, o presente trabalho não se propõe a analisar as representações
populares das práticas sexuais desviantes ou o processo de subjetivação e de autoidentificação dos homossexuais. Uma vez que nosso objetivo é o de tentar
compreender e entrever as imagens do corpo homossexual produzidas nos manuais
68
“... enquanto alguns meninos eram diagnosticados como homossexuais pelos médicos, um número muito
maior era denunciado como anormais (queers) pelos outros meninos na rua”. (trad. livre) CHAUNCEY,
Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003, pp. 163-164.
36
médico-legais brasileiros das décadas de 1940 e 1950, as reflexões de Michel Foucault
não perderam sua atualidade e nem sua pertinência teórica.
37
3. Os contornos da perversão: definições e imagens do corpo homossexual nos
manuais de medicina e de sexologia do século XIX e da primeira metade do século
XX.
No século XIX as perversões sexuais se tornaram objeto de atenção especial da
parte de médicos, psiquiatras e juízes. O corpo perverso em sua particularidade e em
sua anormalidade começava então a ser melhor definido nos e através dos pareceres e
teses médicas e nas diversas revistas científicas da época.
Neste segundo capítulo analisaremos algumas obras clássicas de grande difusão
e aceitação nos espaços oficiais de produção dos discursos médicos da segunda metade
do século XIX e início do século XX.
Para tanto, devemos levar em conta as considerações feitas por Jean-Christophe
Coffin69 no que se refere aos cuidados a se tomar ao escrever a história de uma
comunidade profissional. Para evitar o anacronismo e a visão teleológica que
marcaram alguns trabalhos da história das ciências, devemos proceder a um estudo dos
conteúdos de nossas fontes primando pela análise das discordâncias e nuances
existentes nos debates promovidos no interior de comunidades profissionais
específicas. É igualmente importante não negligenciar um estudo do contexto histórico
no qual nossas fontes se inserem, pois mesmo se as ciências médicas “peuvent avoir
des rythmes propres et des critères de production du savoir qui leur sont spécifiques,
demeurent liées à la culture dans laquelle elles évoluent”70 Assim,
para
melhor
compreendermos nossas fontes e com o objetivo de inseri-las em seu contexto
histórico, estudaremos primeiramente neste capítulo a emergência da medicina legal
na segunda metade do século XIX e as disputas de influência então existentes entre a
medicina e a justiça para se determinar “de quelle sphère relèvent les pervers”.71
69
COFFIN, Jean-Christophe. Sexe, hérédité et pathologies. Hypothèses, certitudes et interrogations de La
medicine mentale, 1850, 1890. In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les
sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000.
70
“podem ter ritmos próprios e critérios de produção do saber que são específicos, continuam ligadas a cultura
na qual elas evoluem” (trad. Livre) Op. Cit. p. 100.
71
“de qual esfera pertencem os perversos” (trad. Livre). LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du
troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel.
Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. p.
154.
38
Em um segundo momento, analisaremos brevemente a produção do masculino e
do feminino no interior dos discursos médicos, já que a produção do corpo invertido
está relacionada a um processo de produção da diferença sexual.
Finalmente, estudaremos nossas fontes tentando identificar as imagens nelas
presentes dos perversos, invertidos e homossexuais, procurando compreender os
termos do debate que existiu entre os autores e acompanhando assim a evolução das
representações produzidas.
39
3.1. Crepúsculo de juízes, manhã de médicos: a medicina-legal na segunda
metade do século XIX.
A França do século XIX viu a ativação em seu corpo de leis de uma doutrina de
bons modos que visava assegurar a moralidade pública, a condenação da violência e a
proteção da família e da infância72. Já em 1810 o código penal francês através do
artigo 330 previa o crime de atentado público ao pudor. Outros crimes como o de
incitação de menores à corrupção, o de atentado ao pudor com violência e o de estupro
eram já reconhecidos e estavam mais ou menos bem definidos no código de então.
A partir da segunda metade do século XIX a infância e a juventude passaram a
ser objetos de preocupação e de novas observações por parte do Direito. As violências
morais começam então a ser punidas quando cometidas contra crianças e importantes
alterações da legislação em matéria de idade penal de consentimento em relações
sexuais puderam ser observadas. Se desde 1832 o atentado ao pudor sem violência era
somente considerado para as crianças menores de 11 anos, em 1863 a idade mínima de
consentimento passou a ser de 13 anos73.
Para Sylvie Chaperon, as preocupações dos juristas da época diante dos
“atentados ao pudor” eram de “soutenir la famille et surtout l’autorité maritale,
repousser la violence, s’assurer de la non-publicité de la sexualité”74. Contudo,
mesmo que a adoção de tais leis acusem a existência de uma preocupação com a
família e a juventude no que diz respeito ao sexo e à sexualidade, o Direito não tratava
e não era muito prolífico no tocante a discussão sobre o sexo anormal e aos desviante.
A sodomia foi retirada do corpo de crimes e delitos do código penal francês em
1791, sendo esta alteração reafirmada pela redação do código de 181075. A partir de
então, o direito francês se mostrou neutro diante das “perversões sexuais”. Contudo, os
pederastas não estavam protegidos da repressão policial. Mesmo se os juristas não
definiam o vício através das leis, os juízes e policiais não mediam esforços em fazer
uso das leis então existentes para punir a pederastia. Assim, o artigo 334 do código
72
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.
Op. Cit.
74
“manter a família e sobretudo a autoridade do marido, afastar a violência, manter a não-publicidade da
sexualidade” (tradução livre) Op.Cit. p.57
75
Op. Cit.
73
40
penal de 1810 que previa o crime de incitação à corrupção era freqüentemente ativado
em casos de relações pederásticas. Por volta de 6500 pederastas foram fichados pela
polícia parisiense entre 1860 e 187076.
O silêncio diante de um vício presente na sociedade e condenado por ela
deveria ser rompido. Foi a partir da necessidade de identificação dos perversos sexuais
e de maior definição científica de sua natureza que o discurso da medicina legal se
sobrepôs ao silêncio do direito.
Na França a emergência da medicina legal foi possível através de modificações
nas leis do Império que previam que todo tribunal deveria se cercar de um corpo de
médicos prontos a se pronunciar sobre determinadas questões que diziam respeito à
saúde dos acusados.
O artigo 64 do Código penal de 1810 estipulava que
Il n’y a ni crime ni délit lorsque le prévenu était en état de
démence au temps de l’action, ou lorsqu’il a été contraint
par une force à laquelle il n’a pu résister77.
Cada vez mais, a partir da metade do século XIX, a suspeita de lesão mental dos
indivíduos acusados por certos crimes é colocada em questão. Assim, a medicina
começava a ser interrogada pela justiça. A partir de então, são os médicos que devem
se pronunciar sobre a saúde mental do indivíduo cercado pela justiça e assim decidir
sua sorte.
Começam então a surgir numerosas pesquisas e pareceres médicos que se
debruçaram sobre o corpo perverso. Estas pesquisas se inscrevem em um amplo
quadro de produção científica sobre a histeria, as neuroses e as psicoses. Os perversos
sexuais passam a ser objetos de atenção por sua natureza fisiológica evidentemente,
mas também por sua natureza psíquica desviante.
Se o saber jurídico não pode dar conta das anormalidades sexuais, são os
responsáveis pela saúde da população que devem oferecer explicações científicas para
a definição da natureza daqueles indivíduos que carregavam consigo a possibilidade de
76
Op. Cit.
“Não existe nem crime nem delito se o acusado estava em estado de demência no momento da ação ou se ele
foi levado ao ato por uma força a qual ele não pode resistir” (tradução livre). Op. Cit. p.58
77
41
contagiar a sociedade com seu sexo anormal. Neste contexto de formação do saber
médico-legal é então dever dos médicos definir a natureza da inversão, identificar o
invertido em sua particularidade física e psíquica e se possível apontar os caminhos
que levam a sua cura.
Discutimos no primeiro capítulo como a cidade se torna no século XIX um
ambiente de produção e reprodução de vícios e doenças. Não é coincidência então o
fato de a medicina-legal emergir enquanto saber legítimo neste contexto. Ora, o
médico legista é o indivíduo que deve “répertorier les nouvelles formes de violences
urbaines et de proposer aux autorités publiques des outils scientifiques susceptibles
non seulement de diagnostiquer la perversion mais également de l’éradiquer”78
Ambroise Tardieu79 é um bom exemplo de um homem de ciência que cumpriu
seu papel no quadro de formação do saber médico-legal. Seu objetivo era o de oferecer
aos médicos e juristas não uma explicação das causas da pederastia, mas de apontar
um caminho sólido em direção a definição das marcas físicas da inversão. Assim, os
pederastas poderiam ser reconhecidos pelos homens de ciência e de lei.
Desta maneira, a inversão sexual enquanto um elemento constitutivo da
personalidade dos indivíduos era algo passível de ser identificado, diagnosticado e
talvez curado. Ela passa então a ser um objeto de estudo privilegiado pela medicinalegal recém nascida.
Os alienistas, médicos que se ocupavam das patologias e das alienações
mentais, desenvolviam por vezes exames médicos longos e dispendiosos já que um
parecer médico requisitado por um tribunal exigia diversos interrogatórios dos
acusados, vários exames médicos aprofundados, consulta aos documentos reunidos
pelos responsáveis do caso, visita aos parentes e vizinhos do acusado, entre outros
procedimentos.
Mesmo se eram os médicos os responsáveis por complicados e demorados
pareceres que tinham grande peso nos processos criminais, a decisão final no
78
“repertoriar as novas formas de violências urbanas e de propor as autoridades públicas as ferramentas
científicas que possibilitem não somente o diagnóstico da perversão mas também de sua erradicação” (tradução
livre) BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique.
Paris. Plon, 2005. p. 267.
79
Ambroise Tardieu (1818-1879) foi um dos principais nomes da medicina-legal francesa. Em sua obra “Étude
médico-légale sur les attents aux moeurs” publicada em 1857, Tardieu dedica um capítulo inteiro à “pederastia”
e a “sodomia”.
42
julgamento não cabia a eles. Em realidade, nem sempre os pareceres médicos eram
acatados pelos juízes. É interessante perceber que existia uma luta de influência entre
os discursos médico e jurídico no que diz respeito ao controle dos perversos sexuais.
Para além, a organização de alguns médicos renomados da segunda metade do
século XIX contra determinadas leis que penalizavam a pederastia são representativos
de jogos e disputas que comprovam que os saberes médico e jurídico nem sempre
andavam de mãos dadas.
Em países europeus como a Inglaterra e a Alemanha que possuíam uma
legislação mais repressiva que a da França em relação à pederastia, foram por vezes os
próprios médicos que lutaram pela descriminalização da homossexualidade. Carl
Westphal, Magnus Hirschfeld80 e Richard von Krafft-Ebing, por exemplo, foram
alguns dos médicos que se posicionaram contra o parágrafo 175 do código penal
alemão que condenava a homossexualidade.
Em resumo, poderíamos afirmar que o saber médico-legal emerge em um
momento em que os médicos passam a ter maior autoridade sobre questões de saúde e
de doença, bem como sobre as definições de normalidade e de patologia. Momento em
que os tribunais passam a interrogá-los, permitindo que o saber médico invista no
campo jurídico. Assim, podemos perceber um movimento de interação entre estes dois
campos de saber distintos.
O corpo perverso foi um objeto privilegiado nesta interação e se constituiu a
partir desta luta de influências. Ele começa a ser desenhado nos processos criminais,
nos pareceres médicos, nas teses de medicina legal e nas inúmeras publicações
médicas da época.
80
Carl Friedrich Otto Westphal (1833-1890) foi um neurologista alemão, alienista no hospital da caridade de
Berlim, professor de doenças nervosas e cerebrais e diretor da revista “Archiv für Psychiatrie”. É considerado
por Michel Foucault como um dos responsáveis pelo nascimento da homossexualidade moderna. Foi um dos
primeiros a escrever sobre a sexualidade enquanto um problema de desordem psíquica. Magnus Hirschfeld
(1868-1935) foi um médico e sexólogo alemão e é considerado como um dos pais dos movimentos de liberação
homossexual.
43
3.2. A fabricação da diferença entre os sexos e a inversão sexual
Inversão,
uranismo,
homossexualidade,
unisexualidade,
travestismo,
bissexualidade ou hermafroditismo psíquico foram alguma das muitas definições
criadas por médicos do século XIX que se esforçavam em cercar e definir as
aberrações sexuais de maneira cada vez mais exata e detalhada. Do interior das teses
de medicina-legal, dos trabalhos de psiquiatria e dos pareceres de médicos destinados
aos tribunais, as fronteiras entre a normalidade e anormalidade, entre o sadio e o
doente em termos de comportamento sexual começaram a ser traçadas.
Desta maneira, para poder delimitar a linha que separa a normalidade da
anomalia era necessário conhecer as leis naturais da sexualidade. Segundo Sylvie
Chaperon, o evolucionismo de Darwin que encontrou grande aceitação pelos espíritos
do século XIX teve uma grande influência sobre os médicos quando de suas tentativas
em explicar a sexualidade e seu desenvolvimento normal81.
A teoria do evolucionismo foi de grande utilidade para os médicos e psiquiatras
do período que não entraram em discussões muito aprofundadas sobre o assunto, mas
que retiveram dela a idéia da dinâmica, do movimento que vai do inferior ao superior.
Des espèces vivantes les plus primitives jusqu’à l’espèce
humaine, de l’aube de l’humanité jusqu’au présent, du
nourrisson jusqu’à l’adulte, ils (les médicins et les
psychiatres) observent le même passage du chaos vers
l’organisé, du simple vers le complexe, de l’instinct vers la
raison, mais aussi du corps vers l’intellect82.
Ora, este esquema poderia justificar todas as hierarquias. Em realidade, ele
serviu até mesmo para justificar a inferioridade feminina, dando a esta condição social
uma explicação científica.
Para além, a teoria do evolucionismo permitia muito mais. Oferecia as bases de
explicação do desenvolvimento da sexualidade humana e da diferença entre os sexos.
A partir da teoria de Darwin foi possível explicar a formação e a diferenciação dos
81
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007..
“Das espécies vivas mais primitivas à espécie humana, dos primórdios da humanidade ao presente, do filhote
ao adulto, eles (os médicos e psiquiatras) observam a mesma passagem do caos em direção ao organizado, do
simples ao complexo, do instinto a razão, mas também do corpo ao intelecto” (tradução livre) Op. Cit., p. 74.
82
44
sexos enquanto um processo ao mesmo tempo fisiológico e mental. A natureza
masculina, apesar de complementária, seria radicalmente diferente da natureza
feminina. De fato, quanto maior a diferença entre os sexos, mais forte seria a
expressão do progresso de uma civilização. Isto é, para aqueles indivíduos
influenciados pelo pensamento evolucionista, quanto mais bem definidas as
características masculinas e femininas, mais evoluída uma sociedade seria.
A história do termo sexualidade acusa certas representações do pensamento
médico do período em relação ao sexo. No Dictionnaire Dechambre a palavra
sexualidade era descrita como “l’ensemble des attributs anatomiques et physiologiques
qu’entraînnent avec elles l’apparition et l’existence des sexes.83 O termo se referia
então a formação do sexo masculino e do sexo feminino e não às práticas sexuais.
Seguindo as reflexões de Thomas Laqueur, Patrice Corriveau e Brigitte
Lhomond84 concordam sobre o fato de que o século XVIII parece inaugurar uma nova
maneira de perceber o sexo ou a diferença entre os sexos. Assim, o modelo de dois
sexos biológicos distintos tem sua própria história.
A percepção herdada dos gregos concebia um único sexo que poderia ter duas
variações em termos de gênero. Neste modelo, não haveria diferença biológica ou
natural entre o corpo masculino e feminino, sendo as diferenças existentes uma
questão de graduação de um mesmo corpo.
Dependendo da quantidade de calor atribuída a cada corpo,
ele se moldaria, em termos mais ou menos perfeitos, em um
corpo de homem quando o calor foi suficiente para
externalizar os órgãos reprodutivos, ou em um corpo de
mulher quando foi insuficiente e os órgãos permaneceram
internos85.
83
“...conjunto dos atributos anatômicos e fisiológicos que acarretam a aparição e a existência dos sexos”
(tradução livre). Dictionnaire Dechambre ou Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales foi publicado
de 1864 à 1889 pelo médico e jornalista Amédée Dechambre .
84
LAQUEUR, Thomas. Making Sex. Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge: Harvard
University Press, 1990. CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du
bûcher à la mairie. Sillery, Septentrion, 2006. LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe
à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et
la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000.
85
ROHDEN, Fabíola. “O corpo fazendo diferença” In: Mana vol.4 n.2 Rio de Janeiro Oct. 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131998000200007&script=sci_arttext
45
A partir do Renascimento e de forma mais clara a partir do século XVIII,
mudanças no pensamento científico articuladas a movimentos sociais e culturais
inauguraram um modelo de dois sexos biológicos distintos. Se antes a diferença era
expressa em termos de gênero, ela passa a partir de então a ser marcada pelo sexo.
Dois corpos radicalmente distintos, duas psicologias opostas.
Para os médicos os primeiros sinais do sexo apareceriam desde cedo na criança
sob a forma de gostos e predisposições específicos. O menino brinca de soldado e a
menina brinca de boneca. Assim, os médicos viam o sexo não somente no corpo dos
indivíduos, mas em todos os níveis de sua personalidade.
A teoria do evolucionismo oferecia naquele contexto ferramentas de explicação
do desenvolvimento da sexualidade. Neste sistema, os indivíduos partiriam de uma
infância de relativa indeterminação sexual para a idade adulta e de reprodução, quando
o sexo deveria estar muito bem definido. Assim, podemos perceber como a
sexualidade considerada normal no período dependia de uma determinação e
diferenciação sexual muito bem marcada86.
Apesar de natural e biologicamente distintos, os sexos eram percebidos como
complementares. A partir do fim do século XIX podemos perceber a ativação de idéias
e teorias no interior do campo médico que buscavam dar cientificidade a este princípio
de complementaridade dos sexos. Segundo uma analogia magnética, a vida sexual era
no período analisada sob o prisma das leis da eletricidade; os sexos contrários se
atraem enquanto os homólogos se afastam87.
Neste sistema de explicação os desviantes sexuais eram percebidos como
corpos que derraparam no movimento da evolução. Eram vistos como aberrações da
evolução e, por conseqüência, da natureza. Não é impossível neste sentido perceber
como se deu a ativação do modelo do invertido sexual.
O pensamento médico do período apresenta um continuum entre sexo, gênero e
práticas sexuais. Isto é, o sexo, definido pelos órgãos sexuais e pelas características
sexuais secundárias (pilosidade, desenvolvimento de seios, timbre da voz, etc) deveria
ser correspondido pelo gênero (mulher-feminina e homem-masculino), sendo os
86
87
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007..
Op. Cit.
46
impulsos sexuais normais aqueles dirigidos ao sexo oposto. Neste quadro de
pensamento, aqueles indivíduos desviantes teriam não somente uma prática sexual
anormal, mas possuiriam igualmente uma personalidade anormal.
O termo “inversão sexual” aparece pela primeira vez na segunda metade do
século XIX. Em 1869, Carl Westphal escreveu “Die Konträre Sexualempfindung”
sendo em seguida a vez de Havelock Ellis88 de utilizar o conceito de “inversão sexual”
para dar conta de casos em que o desejo sexual do indivíduo é dirigido ao mesmo
sexo. Ora, o processo de concepção e utilização deste termo reflete o tipo de filosofia
em relação ao sexo no interior da qual se inserem os médicos responsáveis por seu
nascimento. Neste sistema em que sexo, gênero e práticas sexuais estavam
intrinsecamente ligados, a inversão se manifesta pela descontinuidade do sexo
anatômico e dos impulsos sexuais.
Assim, um homem que tivesse desejos sexuais pelo mesmo sexo era entendido
como alguém que possuía uma parte de feminilidade. Em todo caso, este indivíduo não
era e não poderia ser completamente homem já que ele possuía um impulso sexual
feminino.
Para outros autores como Krafft-Ebing, a inversão sexual seria uma espécie de
marca de degenerescência e um fenômeno parcial de um estado neuro-psicopatológico
que tem como causa a hereditariedade89. É importante ressaltar que a teoria da
degenerescência é ativada pelo saber médico para poder cercar os casos de indivíduos
que representam a exceção à regra da evolução. Assim, muitos psiquiatras vão explicar
as aberrações sexuais pelo prisma desta teoria. Desta maneira, poderíamos afirmar que
as teorias do evolucionismo e da degenerescência interagiram no seio das práticas
médicas da segunda metade do século XIX.
Contrariamente às proposições de Krafft-Ebing, para Havelock Ellis a inversão
não é uma doença, mas uma condição orgânica, congênita ou uma variação da
natureza. Contudo, parece que para ambos os autores ela é uma espécie de derrapagem
no continuum sexo-gênero-práticas sexuais.
88
“Inversão do instinto sexual” (tradução livre). Havelock Ellis (1859-1939) foi um médico, sexólogo, psicólogo
e reformador social britânico. Escreveu sobre a inversão sexual, considerando-a natural e congênita. ERIBON,
D. Havelock Ellis In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003.
89
CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.
47
Desta maneira, podemos concluir que a ativação do modelo de inversão sexual
se deu em um momento em que as práticas médicas estavam reforçando o modelo de
bicategorização sexual, produzindo um sistema de pensamento em que sexo, gênero e
impulsos sexuais estavam ligados.
Devemos agora, sob a luz do entendimento do contexto de nascimento da
medicina legal e da produção da diferença sexual no interior das práticas médicas,
observar e compreender melhor algumas de nossas fontes no interior das quais
podemos entrever imagens e representações dos desviantes sexuais.
48
3.3. Selva de definições: da multiplicidade de corpos desviantes
Ambroise Tardieu foi o primeiro médico a assumir a cadeira de medicina legal
da Universidade de Paris em 1861. É no contexto da emergência da medicina legal na
segunda metade do século XIX que ele produziu. Naquele contexto a cidade era
considerada produtora de vícios e doenças e precisava da intervenção dos homens da
ciência que fossem capazes de diagnosticar as novas formas de violência e curar os
perversos que tanto ameaçavam a juventude.
Em seu livro “Etude médico-légale des attentats aux moeurs”90 publicado em
1857, o autor dedica o terceiro capítulo à pederastia. Ao longo de “De la péderastie et
de la sodomie”, Tardieu pretendeu desenvolver um estudo científico com o objetivo de
oferecer aos médicos legistas as ferramentas necessárias para se identificar o
pederasta, indivíduo que carrega em seu físico as marcas de seu vício. Ele se propôs a
definir a pederastia, dar uma noção geral sobre as condições nas quais este vício se
exerce e finalmente traçar com a maior exatidão possível os seus sinais físicos.
Diferentemente de outros autores como Havelock Ellis e Krafft-Ebing, o autor
deste estudo não se preocupou com as causas da inversão. Segundo ele: “je ne
prétends pas faire comprendre ce qui est incompréhensible et pénétrer les causes de la
péderastie91.”
Ele comenta no começo do capítulo a escassez de estudos que se debruçaram
sobre este objeto de extrema importância, e afirma que em diversas ocasiões que
... m’ont été offertes dans les nombreuses expertises et
l’examen de pédérastes avoués m’a été confie, que j’ai pu
acquérir une expérience personnelle, qui me permettra
d’aborder avec plus de certitude et plus d’autorité l’histoire
des signes de la pédérastie.92
Ambroise Tardieu não cita, no entanto, as suas fontes, apresentando vagamente
alguns casos provenientes de dossiês de instrução da justiça penal. Em realidade, para
90
TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859.
“eu não pretendo explicar o que é inexplicável e penetrar nas causas da pederastia” (tradução livre). Op. Cit.
92
“... foram-me oferecidas nas diversas expertises e no exame de pederastas assumidos que me foi confiado, que
eu pude adquirir uma experiência pessoal que me permitirá abordar com mais certeza e mais autoridade a
história dos signos da pederastia” (tradução livre). Op. Cit.
91
49
muitos médicos que se voltaram a estudar as perversões sexuais, este tipo de fonte foi
muito utilizada articuladamente aos longos testemunhos de pederastas ou até mesmo
de descrições pouco científicas sobre a vida dos invertidos.
Nesta obra é possível perceber uma aproximação operada pelo autor entre a
pederastia e o crime, isto é, a imagem do pederasta criminoso parece ser mais
recorrente que a do pederasta doente. Tardieu levanta questões relativas ao lugar do
vício da pederastia na determinação do crime a partir do estudo e da observação de
casos de assassinatos cometidos contra “pervertidos” em que os autores eram seus
pares sexuais. Assim, para o autor, os “actes contre nature (qui) auraient servi de
pretexte et d’occasion à l’assassinat”93 é um objeto de análise que não deveria ser
negligenciado nas investigações de homicídio. Desta maneira, ele dedica uma parte
deste capítulo de sua obra ao estudo da relação dos elementos que devem ser levados
em conta pelo médico legista quando da análise da relação da pederastia e do motivo e
circunstâncias do assassinato. Em outro momento, Tardieu chega mesmo a citar um
juiz de instrução parisiense de nome M. Le Baron A. de Saint-Didier que sobre a
inversão sexual afirmava: “On peut dire que dans Paris la péderastie est l’école à
laquelle se forment les plus habiles et les plus audacieux criminels”94.
Ambroise Tardieu não foi o único autor a contribuir para a reafirmação da
imagem do pederasta criminoso. A partir de uma preocupação marcada pela proteção
das crianças e dos jovens que deveriam ser afastados do perigo da inversão sexual,
Krafft-Ebing reativa a imagem do pederasta corruptor. Assim, ele se esforça em
identificar as particularidades e os níveis diferentes dos múltiplos casos de inversão. O
autor tenta listar aqueles casos em que, por sua influência perversa, a deformação da
personalidade e da individualidade psíquica do indivíduo invertido colocaria em perigo
a saúde dos jovens.
Richard von Krafft-Ebing foi um dos principais nomes da tradição de
medicalização da homossexualidade do fim do século XIX. Professor de psiquiatria
nas universidades de Estrasburgo, Graz e Viena, ele publicou a famosa obra
Psychopathia Sexualis em 1885. Podemos perceber a particularidade dos objetivos e
93
“atos contra a natureza (que) teriam servido de pretexto e de ocasião ao assassinato” (tradução livre)Op. Cit.
“Podemos dizer que, em Paris, a pederastia é a escola aonde se formam os mais habilidosos e audaciosos
criminosos”. Op. Cit.
94
50
da produção deste autor em relação à produção de Ambroise Tardieu. Se Tardieu
buscava, sobretudo, oferecer uma lista completa das marcas físicas da inversão, se
preocupando em identificar os pederastas, Krafft-Ebing busca, para além, compreender
as causas da perversão95.
Sua dupla formação de médico-legista e psiquiatra o levou a construir uma
dupla imagem – a de pederasta criminoso e a de pederasta doente – além de operar
uma importante transição. A perversão que antes estava inscrita no físico dos
indivíduos passou, a partir de suas formulações, a se inscrever no domínio psíquico.
O antropólogo e sociólogo holandês Gert Hekma percebe aí um movimento
importante na história da medicalização da homossexualidade. Para ele as formulações
da medicina legal davam conta, antes de tudo, das conseqüências físicas das práticas
sexuais. Depois de 1880, período do advento de uma psiquiatria das perversões, os
médicos passaram a se concentrar na personalidade dos indivíduos. Foi então que as
perversões começaram a ser formuladas em termos de anormalidades no
desenvolvimento fisiológico e psicológico 96. Krafft-Ebing é um dos principais nomes
que contribuiu para tal transição da imagem do corpo homossexual nos debates
médicos sobre as perversões.
Na obra de Tardieu a inversão deve ser identificada a partir das marcas visíveis
inscritas no corpo. Para ele, o mau uso do corpo produziria aberrações enormes. E é
desta forma, a partir das anomalias físicas, que os pederastas poderiam ser
reconhecidos. A pederastia deixava as suas marcas no corpo daquele que a praticava, e
são essas marcas que ele se propôs analisar e listar em seu trabalho.
Para tratar da pederastia o autor divide o capítulo em duas partes; uma que leva
em consideração os sinais dos hábitos passivos dos pederastas e dos sodomitas e uma
parte dedicada aos sinais deixados pela prática pederasta ativa. Assim, o que define o
vício para Tardieu não parece ser o papel de gênero assumido na prática sexual (papel
masculino-ativo ou papel feminino-passivo), mas a escolha do objeto sexual. Mesmo
se o vício da prática sexual passiva parece ser mais sério do que o vício da prática
sexual ativa, ambos são problemáticos para o autor.
95
KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895.
HEKMA, Gert. Uma história da sexologia: aspectos e históricos da sexualidade. In: BREMMER, Jan (org.).
De safo à sade: momentos na história da sexualidade. Campinas. Papirus, 1995.
96
51
Quanto aos sinais da pederastia passiva, Ambroise Tardieu se preocupa em
listar todas as características que podem ser encontradas no corpo do paciente. Seriam
o
développement excessif des fesses, la déformation
infundibuliforme de l’anus, le relâchement du sphincter,
l’effacement des plis, les crêtes et caroncules du pourtour de
l’anus, la dilactation extreme de l’orifice anal,
l’incontinence des matières, les ulcérations, les rhagades, les
hemorrhoïdes, les fistules, la blennorrhagie rectale, la
syphilis, les corps étrangers introduits dans l’anus97.
Poderíamos afirmar que Tardieu não só observa o corpo invertido
objetivamente, mas o produz a partir de marcas específicas que ao mesmo tempo o
definem e o constroem. Tratar-se-ia não somente do estudo objetivo sobre a inversão,
mas também da construção das especificidades do corpo invertido.
Krafft-Ebing identifica igualmente em certos casos graves de perversão do
instinto sexual marcas no corpo dos indivíduos que se aproximariam mais das
características do sexo anatômico oposto. Isto é, um homem que se encontrasse em um
estágio de androginia, por exemplo, poderia apresentar um esqueleto, um rosto ou
mesmo uma voz que se aproximaria da de um indivíduo de sexo feminino. Da mesma
forma, a inversão sexual poderia levar o indivíduo a assumir um papel social diferente
do esperado para seu sexo anatômico.
Contudo, mesmo se o autor não nega a especificidade física em alguns casos de
perversão sexual, ele leva em conta casos onde somente as “sensations du sens
sexuel”98 fariam prova de inversão. Ou seja, alguns indivíduos poderiam apresentar
um físico e um comportamento social em conformidade com seu sexo anatômico, mas
possuir um desejo sexual desviante do considerado normal para seu sexo.
Krafft-Ebing segue uma direção de análise do corpo invertido bastante diferente
da praticada por Ambroise Tardieu. Antes de tudo, o autor alemão busca estudar
97
“desenvolvimento excessivo das nádegas, a deformação infundi buliforme do anus, o relaxamento do sfíncter,
o desaparecimento das dobras, as estrias ao redor do anus, a dilatação extrema do orifício anal, a incontinência
de matérias, as ulcerações, as hemorróidas, as fístulas, a blenorragia retal, a sífilis, os corpos estranhos
introduzidos no anus”. (tradução livre) TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs.
Paris. Baillière, 1859..
98
“as sensasões do sentido sexual”, (tradução livre).
52
profundamente as causas da perversão sexual, fazendo com que múltiplas imagens do
corpo perverso pudessem ser construídas.
Para Krafft-Ebing, as causas da inversão poderiam ser de origem congênita ou
adquirida, sendo que só esta última era passível de cura.
Neste mesmo sentido, o autor afirma também a importância da distinção entre
perversão e perversidade. Para ele o que define os perversos não é a prática sexual
anormal, mas uma constituição psíquica anormal. Já os pervertidos eram indivíduos
“normais”, isto é, de desenvolvimento psicossexual em conformidade com seu sexo
anatômico, que poderiam manter relações homossexuais esporádicas determinadas
pelo contexto e muitas vezes resultado da sedução e não de uma anormalidade
psíquica ou orgânica.
Assim, a “première tâche de la science sera donc de différencier les vrais
pervers des autres”99. Neste sentido, os pervertidos se distinguiriam dos perversos por
não possuírem uma disfunção psíquica. Seriam eles indivíduos normais que por terem
precocemente desenvolvido hábitos considerados prejudiciais a saúde sexual – dentre
os quais a masturbação era a mais freqüentemente listada pelos médicos – foram
levados a manter relações sexuais com pessoas de seu mesmo sexo.
Outra é a situação do “taré”100 que possuiria uma “emoção sexual” por
indivíduos de seu sexo. Esta emoção seria o “commencement d’un processus de
transformation du corps et de l’âme”101. Assim, perversão ou inversão sexual é para
Krafft-Ebing um fenômeno que possui níveis diferentes que vão da mais ou menos
simples inversão da escolha do objeto sexual – nível em que o indivíduo ainda mantém
o papel sexual e social de gênero próprio ao seu sexo – à “metamorphose sexuelle
paranoïaque”, estágio em que o “sentiment d’appartenance au sexe opposé est
99
“a primeira tarefa da ciência sera então a de diferenciar os verdadeiros perversos dos outros” (tradução livre
BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris.
Plon, 2005.
100
Tarado. (tradução livre).
101
“começo de um processo de transformação do corpo e da alma” (tradução livre). Citado em BORILLO,
Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. p.
290.
53
tellement fort... qu’il est impossible d’entreprendre une quelconque thérapie
curative”102.
Quanto à homossexualidade, Krafft-Ebing a considera como um fenômeno
congênito e de causa hereditária. Para a formulação da idéia de sentido sexual
homossexual, Krafft-Ebing faz então uso da teoria da degenerescência. Seria através
de um processo de degeneração da linhagem que a inversão sexual se desenvolveria
nos indivíduos, tendo por causa uma formação cerebral anormal. Assim, Krafft-Ebing
afirma que nos casos de inversão sexual “c’est la vie cérebrale morbide qui determine
la vie sexuelle”. A inversão sexual se inscreve então no cérebro, na organização
cerebral dos indivíduos.
Tardieu desenvolve formulações menos complexas e menos profundas que as
de Krafft-Ebing em relação às origens da pederastia. Para o autor francês, é a
ociosidade dos “maus lugares” que produz o vício e que o dissemina. Assim, o perfil
mais comum dos pederastas segundo ele são os jovens de menos de vinte e cinco anos
provenientes dos meios populares.
Michel Foucault e Peter Gay103 afirmam que as camadas populares eram
consideradas nos séculos XVIII e XIX os agentes nos quais as doenças poderiam ser
mais rapidamente disseminadas, e onde a delinqüência e a criminalidade encontravam
um ninho e um meio de reprodução. Ora, mesmo considerando a existência de certos
casos de pederastia entre “respeitáveis pais de família”, Ambroise Tardieu faz deste
vício um problema das classes mais baixas da sociedade. Isto não seria então uma
coincidência. Esta visão estaria muito provavelmente ligada às representações e aos
preconceitos disseminados nas classes médias do século XIX a respeito do sexo doente
e problemático do proletariado.
A sodomia é igualmente tratada em seu estudo. Não apenas a sodomia entre
pessoas de mesmo sexo é problemática para Tardieu, como é também criminosa e
problemática a sodomia entre homem e mulher, mesmo que dentro do casamento.
102
“o sentimento de pertencimento ao sexo oposto é tão forte... que é impossível proceder a uma terapia de cura”
(tradução livre) KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895.
103
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. e GAY, Peter.
A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo,
1988.
54
Desta forma, o autor dedica uma parte deste capítulo aos “attentats contre nature
commis sur des femmes”104
Devemos lembrar que uma das principais preocupações das políticas do sexo do
século XIX dizia respeito à proteção do núcleo heterossexual reprodutor. As práticas
sexuais que poderiam levar à reprodução eram então a normalidade em termos de
comportamento sexual. A prática médica extremamente influenciada por esta
preocupação com a regulação do sexo, acabou por delimitar as zonas do corpo que
poderiam ser ativadas em uma relação sexual e aquelas que não deveriam ser
utilizadas. Esta delimitação se deu - diferentemente da pedagogia sexual do
cristianismo que operava sob o sistema do pecado - a partir do que era considerado
saudável ou prejudicial ao corpo e a saúde.
O que pode ser entrevisto no trabalho de Tardieu é uma extensão das
interdições que já estavam ativas no antigo sistema de combate à sodomia que existiu,
dentre outras formas, sob a forma de proibição jurídica até o fim do século XVIII na
França e que continuou existindo em outros países da Europa no século XIX. Assim,
poderíamos nos perguntar se o que Ambroise Tardieu produziu quando tratou da
sodomia é de fato o resultado de pesquisas médicas ou a reprodução de representações
e preconceitos existentes e praticados em seu contexto sócio-cultural.
Em um primeiro momento podemos evidentemente perceber a reprodução de
imagens vinculadas entre as classes médias de seu século, contudo, o tema da sodomia
enquanto pecado e ato contra a natureza é reinvestido no trabalho de Tardieu a partir
da utilização de um vocabulário e de técnicas que se pretendiam médico-científicas.
No entanto, é certo que Tardieu não abriu mão de um vocabulário moralizador que
nada tinha de científico. “Attouchements obscènes”, “actes honteux”, “approches
immondes” ou “actes contre nature105” são termos utilizados pelo autor francês e que
nos permitem perceber a influência, na produção científica, da ideologia sexual e dos
preconceitos compartilhados pelos indivíduos das classes médias.
104
“atentados contra a natureza cometidos contra mulheres” (tradução livre) TARDIEU, Ambroise. Étude
médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859.
105
“carinhos obscenos”, “atos vergonhosos”, “aproximações imundas” e “atos contra a natureza”. TARDIEU,
Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859.
55
Krafft-Ebing pretende igualmente desenvolver um trabalho “livre dos
preconceitos do passado”106. No entanto, a reativação em sua obra de certos temas
recorrentes na cultura do período nos leva a crer que ele não avançou muito em
direção a uma abordagem inovadora. O modelo do casal heterossexual reprodutor, por
exemplo, é também o norte que indica a normalidade nas formulações do psiquiatra
alemão.
Como diversos autores da época ele produzia e reproduzia uma hierarquia
sexual que tinha a finalidade reprodutiva como base de normalidade. Assim, as
práticas sexuais que não conduzem à reprodução eram necessariamente perversões,
anormalidades no desenvolvimento sexual.
Para Krafft-Ebing a diferenciação e clara determinação dos sexos e o objetivo
reprodutor das práticas sexuais eram parte de um processo normal do desenvolvimento
sexual.
Une des parties constitutives les plus solides de la
conscience du moi, à l’époque de la pleine maturité
sexuelle, c’est d’avoir la conviction de représenter une
individualité sexuelle bien determinée, et d’éprouver le
besoin, pendant les processus physiologiques... d’accomplir
des actes sexuels conformes à l’individualité sexuelle, actes
qui consciemment ont pour but la conservation de la race107.
Esta passagem nos permite entrever algumas das posições adotadas pelo autor
em termos de produção da idéia de desenvolvimento normal da sexualidade. Os temas
da diferenciação dos sexos e da complementaridade dos sexos em seu objetivo de
reprodução encontram-se aqui presentes.
O indivíduo constitui-se em uma individualidade sexual bem determinada. O
menino se torna homem através de processos fisiológicos e ao atingir este estado ele
busca conscientemente os atos sexuais que têm por objetivo a reprodução, logo, a
conservação da raça.
106
KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895.
“Uma das partes mais sólidas que constituem o “eu”, é a de ter na época da plena maturidade sexual a
convicção de representar uma individualidade sexual bem determinada e de sentir a necessidade durante os
processos fisiológicos de praticar atos sexuais em conformidade com a individualidade sexual, atos que,
conscientemente, tem por objetivo a preservação da raça” (tradução livre). KRAFFT-EBING, Richard Von.
Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895..
107
56
Ora, dentre outros autores, Michel Foucault e Patrice Corriveau108 discorrem
sobre o fato de que a reprodução no século XIX era um elemento importante de um
jogo político. O medo da queda dos índices de natalidade e o pânico gerado pelas
doenças faziam da reprodução uma questão política de primeira importância. Restaria
saber se a palavra “conscientemente” utilizada por Krafft-Ebing não teria alguma
relação com o papel da reprodução na sociedade na qual o autor vivia.
A então recente constituição do Império alemão em 1871 poderia ter
influenciado as idéias do autor quanto ao papel da reprodução na sociedade já que o
desenvolvimento sadio da população é uma das bases de um desenvolvimento sadio da
nação. Assim o cidadão deveria, conscientemente, buscar a conservação da raça e da
nação através da reprodução.
A reafirmação da idéia de diferença sexual e de continuidade entre sexo, gênero
e impulsos sexuais encontra igualmente lugar na obra de Havelock Ellis.
Para o autor
...lors de la conception, un organisme peut être pourvu de 50
p. cent de caractères mâles et de 50 p. cent de caractères
femelles, et à mesure que le développement se poursuit, ce
sont soit les uns soit les autres qui prennent le dessus, en tuant
ceux de l’autre sexe; mais dans l’hermaphrodisme
psychosexuel, le processus ne s’est pas déroulé normalement
soit par suíte d’une non-équivalence dès le début, soit parce
que l’individu s’est trouvé organiquement construit d’une
manière plus appropriée à l’impulsion sexuelle invertie que
normale, soit pour les deux raisons109.
Desta maneira podemos perceber que Havelock Ellis acreditava em um estágio
primitivo de “bissexualidade” durante o processo de desenvolvimento fetal. Ao se
desenvolver, o sexo do indivíduo deveria ser mais bem determinado, sendo
acompanhado pelos impulsos sexuais normais correspondentes à individualidade
108
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. e
CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie. Sillery,
Septentrion, 2006.
109
“ quando da concepção, um organismo pode ser constituido de 50 por cento de características de macho e de
50 por cento de características de fêmea, e a medida que o desenvolvimento segue, são ou as primeiras ou as
segundas que dominam, matando as características do outro sexo, mas em caso de hermafrodismo psicossexual,
o processo não se deu de maneira normal, seja pela não equivalência desde o começo, seja porque o indivíduo se
encontrou organicamente construído de uma maneira mais apropriada ao impulso sexual invertido que ao
normal, seja pelas duas razões” (tradução livre) ELLIS, Havelock. L’inversion sexuelle. Mercure de France,
1909.
57
sexual. A inversão sexual então seria marcada por uma anomalia do desenvolvimento
no processo de determinação sexual.
Contudo, a palavra “anomalia” presente em nossa análise do trabalho de
Havelock Ellis não é pejorativa, uma vez que o autor não considera a inversão sexual
uma doença. Em realidade, para melhor compreender o trabalho de Ellis e a concepção
de inversão sexual deste autor seria necessário acompanhar brevemente seu percurso
de vida.
Médico, sexólogo e psicólogo nascido na Inglaterra da metade do século XIX,
Havelock Ellis se interessou profundamente pelo estudo da sexualidade humana,
publicando em 1896 a obra “Sexual Inversion” co-escrita por seu amigo pessoal John
Addington Symonds110.
Temendo o escândalo, a família de Symonds recorreu à justiça após sua morte
para recuperar todos os exemplares do livro com o objetivo de destruí-los. Em 1897,
Ellis decide republicar o texto assumindo sozinho sua autoria. Contudo, seu editor
inglês foi perseguido pela justiça acusado de “obscenidade”, tendo Ellis que buscar na
América outro editor111.
Havelock Elis freqüentava os meios anarquistas, socialistas e militantes em
favor da contracepção. Muitos autores como Daniel Borrilo e Dominique Colas
afirmam que tanto Symonds quanto a mulher de Havelock Ellis eram homossexuais,
explicando talvez em parte o interesse e a simpatia com a qual o autor discursava sobre
os invertidos.
Como Magnus Hirschfeld e Carl Westphal na Alemanha, Havelock Ellis
desejava que a lei inglesa que punia a homossexualidade fosse revista. Ele se insere na
tradição de médicos da sexualidade que se debruçaram sobre a inversão sexual com o
objetivo de comprovar suas causas congênitas. Ora, uma vez que a homossexualidade
fosse considerada um fenômeno orgânico e inato, ela não poderia ser considerada
antinatural ou contra a natureza e não deveria ser penalizada pelo saber jurídico.
Assim, a produção de Ellis, como a de outros médicos, se inscreve em um jogo
110
John Addington Symonds (1840-1893) foi um poeta e crítico literário inglês. Homossexual, Symonds militou
contra a repressão ao “amor entre iguais”. BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon
à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005.
111
Op. Cit.
58
político específico; o da tentativa de descriminalização da homossexualidade nos fins
do século XIX.
Poderíamos afirmar que Havelock Ellis dialoga e concorda com Krafft-Ebing e
Magnus Hirschfeld quanto ao caráter congênito da inversão sexual. Contudo, Ellis se
distancia de Krafft-Ebing ao considerar que a inversão não seria uma doença causada
por um processo de degeneração. Em realidade, Havelock Ellis apresenta uma
descontinuidade na tradição de criminalização e patologização da homossexualidade
ao considerá-la nem um vício, nem uma doença.
Havelock Ellis não concordava com a imagem vinculada nos trabalhos de Carl
Henrich Ulrichs segunda a qual a inversão sexual seria marcada pela idéia de “anima
mulieris in corpore virili inclusa”112. Para o autor de “Sexual Inversion”
... ce n’est pas là une explication; c’est simplement
cristalliser(...) une impression superficielle. (...) Cela est tout
simplement incompréhensible. Je ne dis rien du fait que,
chez les invertis mâles, les tendances psychiques féminines
peuvent être três peu marquées en sorte qu’il ne saurait être
question d’ “ame féminine” ni de cet autre fait important
que, dans une grande proportion de cas, le corps présente
des caractères sexuels secondaires qui sont nettement
modifiés113.
Neste sentido, podemos perceber que mesmo se Havelock Ellis não concorda
com a idéia de uma “alma feminina que vive em um corpo de homem” como modelo
de explicação para a inversão, ele é, no entanto, profundamente influenciado pelo
sistema de pensamento que forma e define as diferenças e as especificidades do corpo
masculino e do corpo feminino.
112
“uma alma de mulher que vive em um corpo de homem” (tradução livre). Carl Henrich Ulrichs (1825-1895)
foi um jurista e sexólogo alemão. Considerava a homossexualidade a partir da idéia de “terceiro sexo”. Cria o
termo “uranista” em homenagem a Afrodite Urânia (filha de Uranus) presente no discurso de Pausanias do
“Banquete” de Platão. ERIBON, Didier. Ulrichs In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et
lesbiennes. Larousse, 2003.
113
“... esta não é uma explicação; (esta imagem) somente cristaliza(...) uma impressão superficial. (...) Isto é
simplesmente imcompreensível. E ainda não digo nada do fato que, nos invertidos machos, as tendências
psíquicas femininas podem ser pouco marcadas de forma que não poderíamos falar de “alma feminina”, nem
(digo nada também) deste outro fato importante que, em um grande número de casos, o corpo apresenta
características sexuais secundárias que são claramente modificadas”. (tradução livre) ELLIS, Havelock.
L’inversion sexuelle. Mercure de France, 1909.
.
59
Outro importante autor que produziu no contexto de luta por modificações dos
códigos penais que reprimiam a homossexualidade foi Sigmund Freud. Freud tinha
relações de trabalho com o médico e militante pela ab-rogação do parágrafo 175 do
código penal alemão, Magnus Hirschfeld. Em 1908, Hirschfeld pediu a Freud que
interviesse junto à Sociedade Psicanalítica de Viena para requisitar a colaboração de
seus membros na elaboração de um questionário destinado ao estudo da pulsão sexual.
Ora, Freud não ignorava a homossexualidade de Hirschfeld, tampouco suas
intenções políticas na produção deste estudo. Assim, ao submeter a proposta de
Hirschfeld à Sociedade Psicanalítica no encontro de 15 de Abril de 1908 em Viena,
Freud parece, ao menos implicitamente, aprovar a luta travada pelo médico alemão
contra as leis que puniam a homossexualidade114.
Após certos debates no seio da instituição, ficou decidido que a Sociedade
Psicanalítica contribuiria para a criação de tal estudo e assumiria sua autoria, se
pronunciando publicamente pela primeira vez. Neste sentido, “il est (en tout cas)
notable que la psychanalyse s’institutionnalise, avec la création de sa première
Société,
autour
d’un
questionnaire
de
sexologie
lié
au
combat
contre
l’homophobie”115
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” publicado em 1905, Sigmund
Freud dialoga na primeira parte de sua obra com Richard von Krafft-Ebing, Havelock
Ellis e Magnus Hirschfeld ao discorrer sobre a inversão sexual 116.
Anteriormente discutimos o fato de Krafft-Ebing definir a inversão a partir da
idéia de degenerescência, encarando-a como um fenômeno congênito. Sigmund Freud
recupera neste trabalho algumas formulações do psiquiatra alemão, apresentando
nuances e discordando delas em grande parte.
Para Freud, a inversão sexual não se definiria como um fenômeno de
degenerescência. Ora, para o autor, não caracterizaria degenerescência
1- Quand il n’y a pas coexistence d’autres déviations.
114
BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris.
Plon, 2005.
115
“é (de toda forma) notável que a psicanálise se institucionaliza, com a criação se sua primeira Sociedade, em
torno de um questionário de sexologia ligado ao combate contra a homofobia”. (tradução livre) Op. Cit. p. 315.
116
FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard, 1962.
60
2- Quand l’ensemble des fonctions et activités de
l’individu n’a pas subi de graves altérations117.
Desta maneira, os invertidos não deveriam ser considerados degenerados, já que
muitos casos de inversão observados pelo autor não apresentaram outras anomalias,
sendo muitos dos indivíduos analisados sujeitos que atingiram um alto grau de
desenvolvimento moral e intelectual118.
Poderíamos dizer que a psicanálise de Freud foi o elemento que alterou a
relação perversão-hereditariedade-degenerescência anteriormente estabelecida pela
psiquiatria das perversões. Segundo Michel Foucault119, foi a psicanálise a responsável
por operar uma dissociação nesta relação até então estabelecida e reproduzida no
interior dos discursos médico-psiquiátricos. Desta forma, as formulações de Freud
contribuíram em grande medida para relativizar a idéia de homossexualidade enquanto
perversão, patologia mental e resultado de um processo de degenerescência.
Para Sigmund Freud, a explicação das origens da inversão não poderia se
concentrar no debate sobre seu caráter congênito ou adquirido. Assim, mais uma vez
ele se distanciava de Krafft-Ebing e se aproximava em certa medida de Havelock Ellis
ao afirmar que a explicação deste fenômeno deveria levar em consideração o papel de
uma bissexualidade primitiva no desenvolvimento da sexualidade humana.
Discutimos anteriormente o papel da bissexualidade nas formulações de
Havelock Ellis. É certo que Sigmund Freud dialogou com o autor inglês e foi em certa
medida influenciado por ele, contudo, Freud apresenta nuances em suas formulações
nos permitindo entrever certa originalidade em sua abordagem.
Da mesma forma que nas formulações de Havelock Ellis, a bissexualidade para
Freud se encontrava no começo de um processo de evolução da constituição dos
indivíduos em direção à “monossexualidade”. No entanto, os indivíduos, mesmo
aqueles considerados normais, poderiam conservar atrofiadas certas características do
sexo oposto.
117
“1- Quando não existe coexistência com outras anomalias. 2- Quando o conjunto das funções e atividades do
indivíduo não sofreu graves alterações” (tradução livre). Op. Cit. p. 22.
118
Op. Cit.
119
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976.
61
Para explicar a inversão sexual, Sigmund Freud desloca a análise da
bissexualidade enfocada na constituição anatômica do indivíduo para uma análise da
sua constituição psíquica, ativando a idéia de “hermafroditismo psíquico”. Isto é, para
compreender a inversão, Freud sugere a transferência do conceito de bissexualidade
para o domínio psíquico.
Diferentemente das afirmações de Havelock Ellis, Freud não acreditava ser
possível identificar uma relação entra o hermafroditismo anatômico ou somático com a
inversão. Assim, o autor afirma que “... les rapports de l’hybridité psychique avec
l’hybridité anatomique (...) ne sont certes pas aussi intimes, aussi constants qu’on a
bien voulu le dire”120.
Desta maneira, Freud retém dois pontos principais para a explicação da
inversão:
...d’abord, il nous faut tenir compte d’une disposition
bisexuelle; mais nous ne savons pas quel en est le
substratum anatomique. Nous voyons ensuite qu’il s’agit de
troubles modifiant la pulsion sexuelle dans son
développement121.
Poderíamos dizer que ao contrário das perversões sexuais de Krafft-Ebing, a
homossexualidade para Freud não é simplesmente determinada por uma disposição
particular do corpo, por um vício constitutivo do psíquico ou por uma constituição
inata, mas ela é considerada como o resultado de um percurso singular da pulsão
sexual122.
Mesmo se Freud utiliza o termo “inversão”, a homossexualidade não é, para
este autor, uma inversão da escolha do objeto sexual. Ora, na teoria freudiana o
conceito de “narcisismo” é ativado, caracterizando o homossexual enquanto um
120
“... as relações da hibridez psíquica com a hibridez anatômica não são tão intimas, tão constantes quanto
afirmaram” (tradução livre) FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard, 1962. p.
26.
121
“primeiramente, precisamos levar em conta uma disposição bissexual, mas nós não sabemos qual é seu
substrato anatômico. Em seguida, nós percebemos que se trata de distúrbios que modificam a pulsão sexual em
seu desenvolvimento” (tradução livre) FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard,
1962. p. 28.
122
BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris.
Plon, 2005.
62
indivíduo que ama não um objeto contrário aquele que ele deveria amar, mas ama a si
mesmo em seu objeto de amor123.
Assim,
L’homosexualité est bien, dans la perspective freudienne,
une “perversion”, c’est-à-dire “une fixation” de la
psychosexualité à un “stade” de son “évolution” qui chez
l’individu non pervers est seulement transitoire124.
Freud percebe então a homossexualidade enquanto uma espécie de interrupção
no
processo
de
desenvolvimento
psicossexual
dos
indivíduos.
Em
um
desenvolvimento normal, o indivíduo passaria pelo estágio de narcisismo, sublimando
o amor por um objeto homossexual em relações sociais que não possuiriam o
componente sexual – tais quais as relações de amizade – chegando enfim ao estágio de
heterossexualidade.
Assim, mesmo a homossexualidade não sendo considerada uma doença para
Freud, ela parece ser percebida em termos de interrupção de um desenvolvimento
psicossexual normal.
Tomando como referência a análise que Freud fez da homossexualidade
podemos perceber as múltiplas imagens e concepções que coexistiram no fim do
século XIX e começo do século XX acerca do corpo homossexual uma vez que este
autor posiciona claramente sua teoria em um debate científico. Freud cita
freqüentemente os autores com os quais ele dialogou e retoma, em parte, muitas das
discussões nas quais a inversão sexual foi sendo definida.
Definições diversas e por vezes opostas competiram no interior deste
movimento de produção da inversão. A pederastia enquanto vício que marca os
corpos, presente na obra de Ambroise Tardieu, destoa da perversão sexual de KrafftEbing e é em muito diferente da homossexualidade tal qual ela foi concebida por
Sigmund Freud.
123
Op. Cit. p. 307.
“A homossexualidade é, na perspectiva freudiana, uma “perversão”, isto é, uma “fixação” da
psicossexualidade em um “estágio” de sua “evolução” que no indivíduo não perverso é somente transitória”
(tradução livre) Op. Cit.
124
63
É possível então afirmar que as definições da inversão sexual não foram
homogêneas nem unânimes no seio das práticas médicas. As concepções do corpo
invertido produzidas nos diversos trabalhos científicos da época foram em grande
parte determinadas pelo contexto social e histórico no qual elas se inseriam, pela
história de vida de seus criadores, pelos debates dos quais eles participaram e pelo
vocabulário e pelas práticas disponíveis nas suas disciplinas. Desta maneira, muitos
elementos interagiram e influenciaram este movimento de definição e produção das
sexualidades perversas e da sexualidade normal.
As múltiplas imagens do corpo perverso ativadas no interior dos debates e da
produção médico-científica dos fins do século XIX e começo do século XX nos
permitem perceber um movimento intenso de crescente produção discursiva acerca do
sexo e das perversões sexuais. Ao longo deste capítulo buscamos recuperar
brevemente algumas destas imagens, iluminando este processo de produção dos corpos
desviantes.
64
4. O vício ao sul do Equador: medicalização e institucionalização da
homossexualidade no Brasil da primeira metade do século XX.
Assim como seus colegas de profissão europeus, os médicos brasileiros da
primeira metade do século XX também se preocuparam com a homossexualidade. Para
James N. Green125 é certo que muitos intelectuais brasileiros da época buscavam
inspirações nos escritos produzidos na Europa, no entanto, quais são as especificidades
das representações da homossexualidade presentes nas obras brasileiras escritas pelos
médicos?
Com o objetivo de dar conta desta questão devemos primeiramente observar o
contexto brasileiro da primeira metade do século XX; período no qual médicos legistas
e psiquiatras consolidavam sua autoridade na formulação de pareceres a respeito de
problemas de saúde mental e seus impactos nos comportamentos.
Uma vez que o corpo homossexual foi cercado e definido na fronteira das
concepções de crime e loucura, analisaremos igualmente neste capítulo o movimento
de superposição das imagens de louco e criminoso nas práticas médicas e jurídicas, em
especial aquelas que pesaram sobre o corpo homossexual.
Finalmente poderemos melhor analisar as imagens e representações da
homossexualidade (re)produzidas nos manuais brasileiros de medicina legal lançados
nas décadas de 1940 e 1950.
125
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
65
4.1. Na fronteira: a homossexualidade entre o crime e a loucura.
No fim do mês de agosto de 1927 Febrônio Ferreira de Mattos foi preso em
Petrópolis acusado pelo assassinato do jovem Alamiro José Ribeiro. A Promotoria se
debruçou sobre o passado criminal e moral de Febrônio tão logo levantada a suspeita
de sua responsabilidade no caso. Corruptor, estuprador, possível feiticeiro, sádico e
homossexual, Febrônio Índio do Brasil parecia carregar consigo a criminalidade desde
a infância. Primeiramente interrogado por seu crime, Febrônio passou, a partir da
intervenção médica, a ter a sua personalidade analisada.
Chocante por sua brutalidade e incompreensibilidade, o caso Febrônio
mobilizou juízes, advogados, médicos legistas e psiquiatras126. De fato as idéias e
teorias de muitos médicos brasileiros passaram a ser conhecidas do grande público e
foram aplicadas a partir do momento em que foram convocados a se pronunciar sobre
o destino de Febrônio, protagonista do primeiro grande caso de sadismo no Brasil.
Na análise do caso de Febrônio é possível entrever a interação entre o saber
jurídico e o saber médico no Brasil da primeira metade do século XX. Médicos e
psiquiatras começavam então a ser convocados pelos tribunais para atuar nos casos
que se situavam na fronteira que separava a loucura e o crime.
Assim, a crescente afirmação da autoridade de médicos em se pronunciar sobre
o destino de certos sujeitos se explicaria pela aproximação, nas e pelas práticas
jurídicas e médicas, das idéias de crime e loucura num momento em que a sociedade
brasileira passava por importantes transformações.
O Brasil pós Primeira Guerra Mundial sofreu profundas mudanças que tinham
como pano de fundo o processo de urbanização e industrialização do país. As
alterações na organização tradicional da sociedade e de suas instituições articuladas ao
processo republicano de laicização e modernização do Estado brasileiro abriram
espaço para a intervenção de médicos, criminologistas e juristas no que dizia respeito
aos problemas sociais e morais127.
126
FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In:
Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982.
127
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
66
Segundo James N. Green
As décadas de 1920 e 1930 testemunharam uma crescente
intervenção dos médicos, juristas e criminologistas brasileiros
em questões sociais que abrangiam desde a função ‘higiênica’
da mulher na família até a relação entre raça e crime128.
A criminalidade se tornou uma preocupação crescente no Brasil cada vez mais
urbano do século XX. Em uma sociedade moderna seria através da racionalidade que o
crime poderia ser cercado, compreendido e punido. Racionalmente, os juristas
deveriam analisar os atos criminosos tentando compreendê-los para puni-los
adequadamente.
Desta maneira, foram os crimes que abalaram a lógica do sistema que vão exigir
a intervenção médica. Isto é, os crimes que desafiavam a racionalidade considerada
“intrínseca às ações humanas” colocavam em questão a própria “natureza humana” de
seu autor129.
Para Sérgio Carrara
Os crimes que clamam pelas considerações médicas (...)
dizem respeito, primordialmente, à subversão escandalosa de
valores tão básicos que se pretendem estejam enraizados na
própria ‘natureza humana’ – amor filial, amor materno ou
piedade frente à dor e ao sofrimento humano. Desta maneira,
não é surpreendente que tais subversões, tão radicais e
escandalosas, coloquem em questão a própria ‘humanidade’
de parricidas, infanticidas, assassinos cruéis, sendo mais bem
interpretadas no contexto das selvagerias da natureza, mais
afeitas, portanto, à abordagem das ciências biológicas ou
naturais130.
O brutal e chocante caso de Febrônio é um bom exemplo da intervenção do
saber médico no campo jurídico. O advogado do acusado, Letácio Jansen, estruturou
sua defesa não no sentido de negar os atos criminosos do caso, mas decidiu seguir pelo
caminho da afirmação da loucura de seu cliente. Ora, Jansen sabia que se comprovada
a loucura de Febrônio, comprovada seria igualmente sua irresponsabilidade penal. O
128
Op. Cit., p. 127.
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio
de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 70.
130
Op. Cit, p. 71.
129
67
juiz responsável pelo caso precisou então convocar psiquiatras que deveriam proceder
a uma análise da condição psíquica do réu131.
Quando levantada a suspeita de loucura o juiz precisava exigir relatórios
médicos sobre a condição do acusado, podendo, no entanto, negá-los parcial ou
totalmente na pronunciação do veredicto final. Assim, um indivíduo cercado
inicialmente pelo saber jurídico passa a ser sujeito do saber médico. Desta maneira
podemos perceber como alguns indivíduos se situaram na fronteira entre crime e
loucura, sendo sujeitos de dois modelos de intervenção social; o modelo jurídicopunitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico132.
Foi Heitor Carrilho133 o médico nomeado oficialmente no caso Febrônio. A
análise do relatório de Carrilho desenvolvida por Peter Fry134 nos permite perceber
algumas características da intervenção médico-legal do período, lançando luz sobre a
interação de teorias e práticas médicas ativas então.
O relatório em questão é dividido em quatro partes que contemplavam
respectivamente os antecedentes familiares e a história de vida do “acusado-paciente”,
seu exame somático, seu exame mental e, finalmente, as considerações clínicas gerais
ao longo das quais é “comprovada” a loucura de Febrônio.
Ao se ocupar dos “antecedentes mórbidos pessoais”, a primeira parte do
relatório vasculha o passado do acusado em busca de eventos na sua história que
explicariam de certa forma seu crime. Reconstruindo a história de vida de Febrônio em
uma narrativa linear e lógica o médico buscava explicar o crime pela natureza de seu
autor. Esta operação reflete uma mudança importante nas práticas jurídico-punitivas
do Brasil da primeira metade do século XX. O crime não era julgado, mas a natureza
de seu autor135.
131
FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In:
Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982.
132
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio
de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.
133
Heitor Carrilho (1890-1954) foi um psiquiatra de renome e primeiro diretor do Manicômio Judiciário do Rio
de Janeiro.
134
FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In:
Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982.
135
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio
de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.
68
Em um segundo momento, Carrilho procede à análise das características físicas
de Febrônio. Para Peter Fry, o fato de constar no relatório observações sobre a
“feminilidade do corpo de Febrônio” tem provavelmente a ver com a “intenção do
relator (em) sugerir que a sua homossexualidade possui fundamentos biológicos, de
acordo com algumas teorias da época”136.
O corpo enquanto objeto de análise dos pareceres médicos refletia a grande
influência das idéias de Cesare Lombroso137 sobre os médicos brasileiros. As
formulações de Lombroso previam a existência de um “criminoso nato” que não era
apenas o autor de um crime, mas era um delinqüente em sua essência. Este indivíduo
“naturalmente” criminoso apresentaria marcas físicas a partir das quais seria possível
identificá-lo;
... a ausência de pêlos, o comprimento exagerado dos braços,
a obtusidade das feições, as orelhas munidas do tubérculo de
Darwin, os maxilares superdesenvolvidos, a fronte ‘fugidia’,
a saliência dos zigomas, o exagerado escavamento da
abóboda palatina e das fossas oculares e ainda outras
peculiaridades do crânio desenhavam sobre o corpo do
criminoso o perfil anatômico dos símios138.
O conceito de criminoso nato aparece em 1870 com a publicação do livro Uomo
delinqüente de Cesare Lombroso. A partir desta concepção o crime passa a ser
considerado como a expressão da natureza daqueles que seriam uma “variação
antropológica da espécie”139. Muito influenciado pelo pensamento darwiniano,
Lombroso concebia o ato criminoso como “um fenômeno de ‘atavismo’, ou seja, como
um comportamento apropriado a formas humanas inferiores”140.
Muitos médicos brasileiros formularam suas explicações para o crime e para a
homossexualidade baseando-se nas idéias de Cesare Lombroso. Leonídio Ribeiro,
diretor do Departamento de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal na
década de 1930 foi um destes indivíduos extremamente influenciado pelas
formulações do médico italiano. Por suas investigações antropológico-criminais
136
Op. Cit.
Cesare Lombroso (1835-1909) foi um médico italiano que atuou na área da antropologia criminal. Defendia
em seus trabalhos a existência de um Homo criminalis, o “criminoso nato”.
138
Op. Cit, p. 105.
139
Op. Cit.
140
Op. Cit., p. 104.
137
69
Ribeiro foi contemplado pelo prêmio Lombroso de 1933 da Academia Real de
Medicina Italiana141.
As teorias eugenistas que estavam em voga no Brasil da primeira metade do
século XX e a veiculação das idéias de Lombroso nos meios científicos da época
foram em grande parte responsáveis pelo estabelecimento de uma relação entre raça,
homossexualidade e criminalidade. Assim, negros ou mestiços eram considerados
mais pendentes ao crime e ao vício que os indivíduos brancos.
Obviamente que estas teorias não foram as únicas responsáveis pela intervenção
do Estado, da polícia, dos juízes e dos médicos sobre as classes mais baixas. Em outro
sentido, a ativação de teorias eugenistas e a relação que se estabelecia entre raça e
crime eram ao mesmo tempo efeito e instrumento de projetos políticos bem
determinados.
A República recém instaurada foi palco de debates acerca do devir da nação e
de sua constituição racial. Para aqueles que defendiam a superioridade da raça branca,
as idéias “científicas” que contribuíam para o estabelecimento de uma relação entre
raça e criminalidade eram o instrumento perfeito que permitia e legitimava o controle
das classes inferiores da sociedade.
Outras transformações importantes na sociedade brasileira nos permitem melhor
compreender em que contexto e como as classes sociais inferiores foram objeto da
intervenção da polícia, de juízes e de médicos.
Segundo James N. Green,
a modernização, a urbanização e a crescente medicalização
dos assuntos sociais, ocorreram todas em meio à instabilidade
política que se instaurou, sem interrupção, durante as décadas
de 1920 e 1930142.
Crises políticas e econômicas nas décadas de 1920 e 1930 vieram
acompanhadas de grande insatisfação popular. A queda do preço do café nos primeiros
momentos da Grande Depressão na década de 1930 desestabilizou consideravelmente
a economia brasileira, levando desconforto e descontentamento a muitas parcelas da
população. As greves gerais e a ascensão do comunismo são emblemáticos das
141
FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In:
Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982.
142
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
70
mobilizações populares que não estavam à margem do olhar do Estado e que muito
inquietavam as elites. Em um momento de grande expansão das cidades e em resposta
às mobilizações e movimentações de um proletariado descontente, o Estado Novo
recém instaurado deveria encontrar meios eficazes de identificação e controle da
população.
É neste contexto que Leonídio Ribeiro é nomeado para dirigir o Instituto de
Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal. A atividade de Ribeiro reflete as
intenções do governo de Getúlio Vargas; identificar, catalogar, cercar e definir os
indivíduos que ameaçavam a ordem social.
A análise das atividades de Leonídio Ribeiro na década de 1930 permite-nos
entrever não só as teorias e idéias a partir das quais este médico formulava suas
pesquisas, mas nos permite igualmente perceber a conivência então existente entre
policiais
e
médicos
no
processo
de
controle
e
institucionalização
da
homossexualidade.
James N. Green atenta-nos para o fato que
Para realizar seu estudo em 1932, Ribeiro solicitou o apoio do
Dr. Dulcídio Gonçalvez, um oficial da polícia do Rio de
Janeiro, que trouxe um ‘precioso contingente’ de 195
homossexuais ‘profissionais’ ao laboratório de Antropologia
Criminal para serem fotografados e medicados...143.
A sodomia deixara de ser crime no Brasil com a promulgação do Código Penal
Imperial por D. Pedro I em 1830. O Código Penal do regime republicano aprovado em
1890 manteve a sodomia fora do corpo de crimes e delitos. Entretanto, ainda que a
homossexualidade não fosse em si considerada crime, “a nova lei buscava controlar
tais condutas por meios indiretos e restringia o comportamento homossexual de
quatro maneiras distintas”144. Através do crime de atentado violento ao pudor previsto
pelo artigo 266, pelo “Atentado Público ao Pudor” do artigo 282, pelo artigo 379 “Do
Uso de Nome Suposto, Títulos Indevidos e Outros Disfarces” que tornava o
travestismo ilegal e, finalmente, através do artigo 399 que previa a vadiagem como
143
144
Op. Cit., 131.
Op. Cit., p. 57.
71
crime, muitos homossexuais podiam ser cercados pela polícia, por juízes e,
posteriormente, por médicos145.
Desta maneira, mesmo a homossexualidade não sendo prevista como crime pelo
código penal republicano, os homossexuais não estavam a salvos da intervenção
policial. Muitos médicos como Leonídio Ribeiro conseguiam seu “precioso
contingente” de pesquisa através de sua relação e conivência com as práticas de
repressão policial das condutas homossexuais. Peter Fry nos revela que indivíduos de
classes sociais mais baixas considerados “delinqüentes homossexuais” eram levados
ao Laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificação do Rio de
Janeiro e para o Laboratório de Antropologia do Serviço de Identificação de São Paulo
onde os médicos procediam livremente a seus estudos e análises146.
É na fronteira entre a prática jurídico-punitiva e a prática psiquiátricoterapêutica que o corpo homossexual foi definido e institucionalizado. Este corpo
começou a ser desenhado na relação complexa e conflituosa de médicos, juristas e
policiais.
Esta múltipla intervenção de saberes distintos sobre o corpo homossexual é ao
mesmo tempo causa e conseqüência de um movimento de superposição da idéia de
loucura e crime em um momento onde os médicos tentavam afirmar seu poder e
legitimidade em discursar sobre a sorte de certos indivíduos.
Abordamos anteriormente neste trabalho como o corpo homossexual se
constituiu como um objeto privilegiado na luta de influência entre o saber médico e o
saber jurídico. Ora, o caso de Febrônio é um bom exemplo de que no Brasil da
primeira metade do século XX esta luta de influência existiu. O desfecho do caso é
representativo não só destas disputas como do processo de afirmação da autoridade
dos médicos na República brasileira.
Ao acatar o parecer do médico Heitor Carrilho sobre a condição psíquica e
moral de Febrônio, o juiz decide enviá-lo ao então recém inaugurado Manicômio
Judiciário do Rio de Janeiro. Febrônio, identificado como homossexual e sádico, não
foi durante seu processo julgado pelos crimes de que foi acusado, mas foi examinado,
145
146
Op. Cit.
FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
72
analisado e finalmente julgado por sua personalidade desviante. Peter Fry afirma sobre
o caso de Febrônio que
Embora nunca julgado pelos crimes de que foi acusado e
tendo-os negado sistematicamente, o recurso da acusação de
‘loucura moral’ foi mais do que suficiente para afastar o
‘monstro’ definitivamente da vida social147.
Desta maneira podemos perceber como a Medicina e a Psiquiatria enquanto
instituições começam a se consolidar como “instrumento legítimo de controle
social”148. Ora, durante todo o processo e durante todos os anos de encarceramento
que seguiram o julgamento de Febrônio, coube a um psiquiatra se pronunciar sobre sua
condição e seu destino. Sendo considerado “louco moral” Febrônio não deveria mais
ser cercado pelo saber jurídico, mas passaria a ser objeto dos discursos e intervenção
médicos.
É então neste contexto de consolidação da autoridade do saber médico que a
homossexualidade passará a ser objeto de um discurso científico e se
institucionalizará. A partir destas colocações passamos a analisar nossas fontes nas
quais procuramos entender como se construíram imagens e representações do corpo
homossexual.
147
FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In:
Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982., p. 79.
148
Op. Cit.
73
4.2. Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de
medicina legal do Brasil das décadas de 1940 e 1950.
Com o objetivo de analisar as representações do homossexualismo149 nos
manuais de medicina legal optamos por trabalhar com quatro obras que, produzidas
em meios oficias de fabricação do discurso científico, nos permitem entrever os
debates então travados no interior desta disciplina.
A primeira obra é intitulada “Homossexualismo Masculino” e é de autoria de
Jorge Jaime. Recorremos à 2ª edição de 1953 que faz parte do acervo da Biblioteca de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Este trabalho foi apresentado
pela primeira vez em 1947 como tese de seminário na cadeira de Medicina Legal na
Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.
Analisamos também a obra de Napoleão L. Teixeira, professor catedrático de
Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. A obra de
Teixeira, “Psicologia Forense e Psiquiatria Médico-Legal” foi publicada em Curitiba
no ano de 1954.
O outro livro que analisamos é da autoria de Afrânio Peixoto, professor de
Medicina Legal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e grande nome da sexologia
brasileira. Analisamos a 3ª edição de sua obra “Sexologia Forense”, publicada pela
Companhia Editora Nacional em 1934. Esta é a única obra que não foi produzida na
década de 1940 ou na de 1950, contudo ela foi muito lida e comentada nas décadas
que se seguiram ao seu lançamento, o que justifica nossa escolha.
A obra “Psicopatologia Forense” de José Alves Garcia, publicada em 1958,
conclui nosso corpo de fontes. Garcia foi professor entre 1950 e 1954 no curso de
doutorado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.
Já no início de sua obra, Jorge Jaime apresenta uma discussão sobre o embate
de concepções jurídicas e médicas na definição da criminalidade, mostrando como no
início da década de 1950 a ambigüidade do lugar do homossexualismo entre as
concepções de crime e doença não havia se dissipado. O autor começa sua
149
Homossexualismo era o termo utilizado muitos médicos da época.
74
apresentação a partir de um debate então importante sobre o estatuto do indivíduo
criminoso, afirmando que
Duas são as correntes que ora se defrontam em Direito Penal.
De um lado, os juristas, seguidores da antiga tradição
clássica, que vêm o delito como pura entidade anti-jurídica,
dando como causas predominantes do crime os fatores
sociais; e, de outro, os médicos influenciados pela escola
lambroseana que procuram estudar as relações das doenças
com a conduta humana. Para esses, mais interessa o
conhecimento do criminoso que do crime150.
Ao recuperar logo em seguida a história de Febrônio, Jorge Jaime discorre
sobre os “perversos”, afirmando indiretamente a necessidade de considerá-los não
enquanto autores de um crime, mas enquanto personalidades desviantes que precisam
não da punição, mas do tratamento médico. Assim como grande parte dos médicos da
época, Jaime tentava reafirmar a autoridade médica em se pronunciar sobre certos
casos. Na realidade, Jorge Jaime foi aluno de Heitor Carrilho, diretor do Manicômio
Judiciário do Rio de Janeiro do qual Febrônio foi o primeiro interno. Devemos
sublinhar o fato de que Carrilho foi um ator importante no caso de Febrônio e pode em
muito ter influenciado o trabalho de Jorge Jaime.
Jaime afirma que a reincidência de um criminoso comprovaria sua natureza
patológica, reforçando que
A constância com que um indivíduo comete vários crimes,
sempre da mesma maneira, já revela um tipo especial de
debilidade mental151.
Sérgio Carrara demonstra em seu trabalho como a figura do “reincidente” foi
uma peça chave para a aproximação de loucura e crime através da construção deste
“enquanto uma manifestação de uma doença mental ou nervosa”152. Ora, o indivíduo
que após a punição voltasse a cometer crimes atentando contra a sociedade que lhe deu
uma segunda chance só poderia ser louco.
Jaime afirma que neste grupo de indivíduos que reincidem na criminalidade ou
no vício revelando sua natureza patológica estão os homossexuais. Assim, ao fazer
150
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947, p. 21.
151
Op. Cit., p. 22.
152
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio
de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.
75
suas primeiras considerações sobre a relação entre homossexualismo e crime, o autor
reivindica imediatamente o direito dos médicos em se pronunciar sobre estes
“miseráveis” que são “como que impelidos por uma força instintiva poderosa que os
arrasta, numa alucinação desenfreada, à uma vida delituosa”153.
Desta maneira, o autor aproxima homossexualidade e doença, bem como
relaciona a homossexualidade ao crime.
O pederasta é um criminoso consumado. Atenta contra a
moral pública nos cinemas, rouba nas casas comerciais,
assassina nos quartos fechados e usa de meios secretos para
perpetrar injúria, difamação e calúnia154.
Utilizando-se de publicações da imprensa, Jorge Jaime revisita casos sórdidos
recorrendo a uma narrativa romanesca, colocando em cena pederastas depravados,
loucos e movidos por um ímpeto assassino, produzindo, assim, uma articulação entre a
homossexualidade e o homicídio. Lembremos que na obra de Ambroise Tardieu
analisada anteriormente tal aproximação já havia sido operada. Podemos perceber
assim que o tema da homossexualidade articulada ao homicídio esteve muito presente
na produção médico-legal tanto européia quanto brasileira.
Alguns são os elementos que aproximam a produção de Ambroise Tardieu e
Jorge Jaime. Mesmo se ambos os autores se preocuparam em identificar os pederastas
e os homossexuais a partir das marcas físicas deste vício, ambos reconheceram o fato
de que freqüentemente nenhum traço evidente diferencia o corpo de um homossexual
do de um homem “normal”.
Contudo, Jorge Jaime se afasta de Ambroise Tardieu ao se voltar para as causas
do homossexualismo. Após apresentar algumas fotos pouco conclusivas nas quais o
anus de um paciente se encontra exposto, o médico brasileiro afirma na legenda das
fotos que “Em muitos (casos) o aspecto externo do organismo é normal. É necessário
que aos exames físicos acrescentem-se os psicológicos”155. Nota-se como para o olhar
médico não bastavam as evidências físicas quando já se havia classificado o indivíduo
153
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947, p.22.
154
Op. Cit., p. 25.
155
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947, p. 27 (Imagem em Anexo).
76
na grade patológica. O olhar devia superar os obstáculos do corpo, penetrando nos
recônditos psíquicos do anormal.
Outro autor que se preocupou com a análise física dos pederastas foi Afrânio
Peixoto156. Ao tratar do “atentado contra o pudor”, Peixoto se dispõe a recuperar as
formulações de Ambroise Tardieu no tocante às marcas físicas deixadas pela prática
pederástica passiva. Peixoto considera que são questionáveis “os caracteres somáticos
de inversão sexual” sobre os quais o médico francês insistiu. O autor brasileiro
também afirma que “nem sempre a perversão se estereotipa em caracteres
reconhecíveis”157.
Assim como Jorge Jaime, Afrânio Peixoto faz uso de fotografias para ilustrar
suas considerações. Peixoto apresenta em sua obra fotos de uranistas travestidos
reforçando a idéia de ser a homossexualidade uma acentuada inversão de gênero158.
Ao analisar o trabalho Homossexualismo e endocrinologia de Leonídio Ribeiro,
James Green chama a atenção para o fato de que médicos utilizavam fotografias para
complementar suas formulações pouco conclusivas, sendo as fotos e imagens
utilizadas parte importante no processo de construção explicativa do objeto de seus
trabalhos159.
A historiadora Ana Paula Vosne Martins explica, a partir das formulações de
Michel Foucault, como ao longo do século XIX o olhar passa a ser soberano na
investigação científica sobre o corpo humano. Para a autora,
A reorganização do conhecimento científico que aconteceu
nas primeiras décadas do século XIX levou ao abandono
definitivo das explicações especulativas sobre o corpo
humano. O corpo se transforma num cenário material e
visível, num novo território cujas verdades eram acessíveis ao
olhar atento do médico e do cientista160.
Martins analisa as imagens do corpo feminino presentes nos tratados de
obstetrícia e, ao fazê-lo, percebe como muitos médicos buscavam apresentar - a partir
156
PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934.
Op. Cit. p. 154.
158
Op. Cit. (Imagem em Anexo)
159
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
160
MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia
científica no século XIX In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 2005., p, 652. Disponível em:
http://www.scribd.com/doc/7275846/A-Ciencia-Dos-Partos.
157
77
da observação cuidadosa, do debate e da divulgação de seus resultados - “o
fundamento material e natural para as diferenças entre homens e mulheres”161. Desta
maneira, o olhar desimpedido do médico percorria os corpos e definia suas
especificidades, naturalizando-as.
Assim como as imagens do corpo feminino presente nos livros de obstetrícia do
século XIX buscavam, a partir do “visível e enunciável”, expor a natureza feminina, as
fotografias dos perversos sexuais utilizadas pelos médicos tinham igualmente por
objetivo demonstrar ou comprovar as especificidades e a natureza do corpo invertido.
As fotografias presentes nas obras de Jorge Jaime e Afrânio Peixoto nas quais
indivíduos travestidos eram apresentados buscavam comprovar as formulações a
respeito da natureza invertida daqueles indivíduos. A idéia de que o olhar era um
elemento neutro legitimava o uso da fotografia enquanto uma prova científica objetiva.
É compreensível assim o porquê de Afrânio Peixoto ter legendado uma de suas fotos
da seguinte maneira: “Rapaz de 25 anos. Homossexualismo. Tendências feminis. A
fotografia prova o gosto pelo vestuário do sexo oposto”162.
Para além, as fotografias permitiam ao leitor assumir o mesmo olhar do médico
no momento do exame, oferecendo à obra um efeito de realidade. Texto e imagem se
complementavam naquelas obras buscando este efeito que legitimaria formulações por
vezes pouco conclusivas.
Era comum entre os autores brasileiros a reprodução da idéia de marcada
feminilidade na homossexualidade masculina. Assim como os autores europeus que
trabalhavam sobre um sistema de constante delimitação da diferença sexual, os
médicos brasileiros reafirmavam a todo o momento a “inegável” e “natural” separação
dos sexos, reconstruindo a imagem do homossexual enquanto um indivíduo de gênero
invertido.
No entanto, os médicos brasileiros consideravam a homossexualidade não a
partir da escolha do papel social de gênero e do comportamento sexual, mas a partir da
escolha do objeto sexual ou, como prefere Peter Fry163, da orientação sexual. Isto é,
eram homossexuais não somente aqueles indivíduos de prática sexual passiva, mas
161
Op. Cit., p. 647
PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934. (Imagem em anexo).
163
FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
162
78
todos os indivíduos que mantinham comércio sexual e amoroso com alguém de seu
mesmo sexo. No entanto, ao trabalhar sob a luz das idéias de autores como KrafftEbing que propõe a separação entre homossexualidade congênita e adquirida, alguns
médicos brasileiros também reproduziram certa hierarquia entre homossexuais ativos e
passivos.
Na obra de Napoleão Teixeira164 podemos entrever a confluência de idéias e
teorias de alguns autores clássicos europeus como Hirschfeld, Ulrichs e Krafft-Ebing.
Teixeira não parece formular um discurso original, fazendo antes de tudo uma
compilação de hipóteses que até a década de 1950 eram enormemente veiculadas entre
os homens de ciência que se ocupavam em estudar a etiologia da homossexualidade.
Se o estudo da obra de Teixeira não avança muito na direção da compreensão
das especificidades da produção médico-legal brasileira acerca da inversão sexual, ele
ilumina, num outro sentido, as discussões em voga na década de 1950 no interior da
medicina legal. A análise do trabalho de Teixeira lança luz sobre as hipóteses aceitas e
a partir das quais muitos médicos formularam suas explicações.
Três hipóteses buscam explicar a inversão sexual: a
intelectualista
ou
educacional
(Krafft-Ebing),
a
endocrinológica (intersexualidade, de Marañon) e a
psicogenética (fixação da libido, de Freud)165.
James Green explica que Gregório Marañon foi uma grande influência para os
médicos brasileiros166. Este autor espanhol afirmava que “homossexuais possuíam
características tanto masculinas quanto femininas por causa de desequilíbrio
endócrino”167, propondo que estas características não eram, no entanto, decisivas para
o desenvolvimento da homossexualidade. Assim, ele acreditava que fatores exógenos
como uma reorientação ética e moral poderiam moderar ou impedir o desenvolvimento
da homossexualidade. Desta maneira, a condição da intersexualidade causada por
disfunções endócrinas era apenas uma predisposição para a homossexualidade.
164
TEIXEIRA, Napoleão L. Psicologia forense e Psiquiatria médico-legal. Curitiba, 1954.
Op. Cit. p. 135.
166
Gregório Marañon (1887-1960) foi um professor de medicina da Universidade de Madrid e autor da obra La
evolución de la sexualidad e los estados intersexuales publicada em 1930. Idem 1.
167
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
165
79
Jorge Jaime dedica em seu trabalho um espaço ao estudo das “causas
endócrinas” do homossexualismo, afirmando que
Há (...) uma constituição orgânica, funcional, própria do
uranista como existe outra, diferente, das pessoas normais168.
Desta maneira podemos perceber como os médicos brasileiros foram
reconstruindo a idéia de “condição homossexual”. Reforçando as particularidades
somáticas, orgânicas e psíquicas da constituição do corpo homossexual, aqueles
autores afirmavam a existência de uma “essência homossexual”.
José Alves Garcia também constrói suas representações da homossexualidade a
partir da idéia de intersexualidade e de confusão de gênero. Para o autor
Os homossexuais masculinos ou uranistas, são seres
indiferenciados física e psicologicamente, têm ademanes
femininos, têm pudor diante dos homens, enfeitam-se,
perfumam-se exageradamente169.
Bem como Garcia muitos autores caracterizavam os homossexuais como
indivíduos que, ao adotar maneiras femininas, revelavam sua natureza confusa,
andrógina ou mesmo invertida. Garcia recupera e aceita a hipótese endocrinológica de
Marañon revelando como os médicos brasileiros foram influenciados pelo trabalho
deste espanhol.
Sigmund Freud foi outra grande influência para os autores brasileiros. No
entanto, alguns discordaram veementemente de suas explicações. Freud afirmava que a
inversão sexual não poderia ser classificada enquanto resultado de um processo de
degeneração uma vez que muitos homossexuais por ele observados pareciam ter
atingido um alto grau de desenvolvimento moral, além do fato de que alguns dos
homens mais notáveis haviam sido invertidos. Jorge Jaime se afasta radicalmente de
Freud ao afirmar que
Os invertidos são semi-loucos, degenerados, não tem senso
moral. O gênio é, quase sempre, um anormal, e nada impede
que alguém seja ao mesmo tempo pederasta e gênio, mas será
um gênio sem as qualidades morais que lhe atribui Freud170.
168
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947.
169
GARCIA, J. Alves. Psicopatologia Forense. 2ª edição. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1958.
170
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947, p. 42.
80
Grande parte dos autores brasileiros se preocupou igualmente em descrever as
práticas sexuais dos homossexuais. Alguns demonstraram que o coito anal era o fim
sexual mais comum do homossexualismo (Jorge Jaime). Outros apresentaram em seu
trabalho uma maior variedade de práticas sexuais, como é o caso de Afrânio Peixoto
que defendia a idéia de que
... o amor entre os invertidos nem sempre vai até a pederastia:
exerce-se pelo coito perineal ou intergluteo, pela masturbação
mútua, raramente pela felação (coito bucal), contatos e afagos
no leito, convivência, e, muitas vezes, nenhuma relação
física, no que são retidos (!) por considerações morais171.
Assim, todos os autores brasileiros analisados tentavam cercar através de uma
escrita culta e a partir de um vocabulário “científico” a totalidade da experiência e da
“natureza” homossexual. O aspecto físico, a natureza psíquica, a constituição orgânica,
as escolhas pessoais (como a escolha de um emprego) eram analisadas pelos médicos
que visavam revelar a verdade sobre a perversão.
É curioso o fato de que o menor gesto ou o mais insignificante dos detalhes
eram analisados por aqueles autores como o sinal natural que acusava o “vício” da
homossexualidade. Desta maneira, o linguajar adotado nos meios de sociabilidade
homossexuais, as vestimentas ou mesmo o fato de alguns indivíduos terem escolhido
seguir uma profissão socialmente reconhecida como “feminina” eram elementos que,
para aqueles médicos, revelavam a natureza invertida dos indivíduos. Michel Foucault
tinha razão ao afirmar que, “nada do que ele (o homossexual) é escapa à sua
sexualidade”172.
Os homens efeminados eram os mais visados pela produção médico-legal
brasileira. Eles eram indivíduos mais visíveis no espaço urbano e aqueles que, por esta
razão, eram mais suscetíveis ao assédio e repressão policiais173. Para além, mesmo se
os autores brasileiros consideravam a existência de homossexuais “ativos”, suas
atenções se voltavam aos indivíduos que se enquadravam “mais de perto às
171
172
PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934., p. 154.
“...rien de ce qu’il est au total n’échappe à sa sexualité”(tradução livre). FOUCAULT, Michel. Histoire de la
sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976, p. 59.
173
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
81
representações tradicionais da mulher na sociedade brasileira, ou seja, o homem
efeminado que, segundo as aparências, era receptivo no ato sexual”174.
Este fato revela como os médicos brasileiros adaptaram os modelos teóricos
europeus
à
“elaboração
e
reelaboração
de
conceitos
populares
sobre
homossexualidade” ativos no Brasil de então175. Em seu trabalho “Para inglês ver:
Identidade e Política na cultura brasileira”176, Peter Fry nos expõe um sistema de
representações sobre a sexualidade ativo no Brasil da primeira metade do século XX e
em alguns setores da sociedade brasileira da segunda metade do mesmo século.
Neste sistema de representações, a homossexualidade enquanto perversão ou
inversão da orientação sexual não era um conceito tão importante quanto a idéia de
hierarquia, de dominação ou submissão baseada nos papéis de gênero. Isto é, um
“homem” poderia se relacionar com uma “bicha” – indivíduo que adota um papel
feminino, logo submisso, de gênero – sem perder seu status. Neste sentido, um homem
poderia manter relações sexuais com um indivíduo de mesmo sexo e continuar sendo
considerado “homem” contanto que assumisse o papel ativo na relação sexual.
A partir deste sistema em que a orientação sexual não é o elemento
classificativo mais importante, o mundo masculino não seria dividido entre
homossexuais e heterossexuais, mas entre “homens” e “bichas”. Assim, as
representações das relações sexuais e afetivas eram baseadas muito mais no papel de
gênero assumido (papel masculino ou papel feminino) e no comportamento sexual dos
indivíduos
(atividade
ou
passividade
sexual)
que
na
orientação
sexual
177
(heterossexualidade ou homossexualidade) .
Fry defende a idéia de que este sistema de representações esteve ativo em toda a
sociedade brasileira e concorreu com outros sistemas durante a primeira metade do
século XX. Ora, a preocupação de muitos médicos brasileiros com a “natureza
feminina” dos homossexuais e a verborragia acerca dos indivíduos de maneiras
femininas acusa a possível influência que este sistema de representação teve sobre as
produções por nós analisadas.
174
Op. Cit., p. 238.
Op. Cit., p. 239.
176
FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
177
Op. Cit.
175
82
A análise da produção médico-legal brasileira acerca da homossexualidade nos
permite compreender como os autores brasileiros se apropriaram das teorias européias.
James Green defende que apesar de serem muito influenciados pelo pensamento
europeu da época, os médicos brasileiros se apropriaram daquelas teorias construindo
algo diferente178. A preocupação com as maneiras femininas dos homossexuais, com a
natureza passiva de seus modos e de sua personalidade que pode ser entrevista nas
produções analisadas revela a possível influência de sistemas populares de
representação da sexualidade na produção científica brasileira.
Ao contrário dos autores europeus que dialogaram e discordaram muito entre si,
os autores brasileiros eram muito mais cuidadosos na formulação de críticas aos
trabalhos de seus conterrâneos. Green nos mostra como a área de estudos da medicina
legal era marcada por um sistema de apadrinhamento que desencorajava “a crítica aos
mestres, patrocinadores e colegas”179. Os médicos legistas que se debruçaram sobre a
sexualidade faziam muito mais elogios, uns aos trabalhos dos outros, que críticas.
Assim, podemos mesmo perceber o porquê da certa semelhança existente entre os
trabalhos analisados.
A recuperação da discussão da homossexualidade enquanto fenômeno comum a
diversas sociedades (como a grega e a romana), a utilização de fotos que buscavam
legitimar afirmações pouco conclusivas e o emprego de um vocabulário culto e repleto
de termos científicos e em latim aproximam enormemente as obras analisadas.
Obviamente estes recursos acusam muito mais a fidelidade a uma prática oficial em
acordo com os preceitos de uma disciplina específica que uma “falta de originalidade”.
Contudo, estes elementos nos revelam igualmente a necessidade dos médicos
brasileiros em reafirmar constantemente, pelo caminho da erudição e da cientificidade
de suas produções, sua autoridade em se pronunciar sobre a homossexualidade.
Desta maneira podemos perceber como, ainda nas décadas de 1940 e 1950, o
problema da homossexualidade enquanto domínio ou objeto de responsabilidade de
um saber específico não estava completamente resolvido. Os médicos brasileiros
buscavam assim reafirmar constantemente a legitimidade de seu lugar de enunciação.
178
GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora
UNESP. São Paulo, 2000.
179
Op. Cit., p. 213.
83
A homossexualidade foi assim um elemento importante nas disputas de influência
entre saberes e poderes distintos.
84
5. Conclusão
A Medicina e a Psiquiatria buscaram se afirmar, no Brasil da primeira metade
do século XX, enquanto instituições de controle social. A ativação de certos
dispositivos legais permitiu então que médicos e psiquiatras fossem convocados pelos
tribunais a se pronunciar sobre os casos que mexiam com a opinião pública e com a
lógica do sistema judiciário. Isto é, aqueles crimes que por sua brutalidade e
incompreensibilidade colocavam em questão a racionalidade do sistema a partir do
qual trabalhavam os juristas, exigiam a intervenção de profissionais mais aptos a
vasculhar o domínio mais íntimo da personalidade psíquica dos indivíduos. Assim,
médicos e psiquiatras entraram em diálogo direto com os juristas, buscando afirmar a
legitimidade de seu lugar de enunciação.
O corpo homossexual foi privilegiado pelo saber médico neste momento de luta
pela consolidação de sua autoridade. Ele foi cercado, vasculhado e tratado pelos
médicos então considerados os mais capacitados a se pronunciar sobre os indivíduos
de natureza desviante. Assim, é possível compreender, por sua vez, como o discurso
oficial de maior expressão no período acerca da homossexualidade foi aquele
produzido no campo do saber médico.
A análise de nossas fontes nos permitiu perceber a grande influência que os
médicos europeus tiveram sobre a produção do saber médico nacional acerca da
homossexualidade masculina. Contudo, mesmo considerando esta influência, os
médicos brasileiros produziram algo diferente e novo.
A discussão acerca da “feminilidade” dos homossexuais esteve obviamente
presente na produção européia que, muito marcada pela construção das diferenças
sexuais não deixava de ver a homossexualidade enquanto inversão de gênero.
Contudo, as obras européias analisadas reservavam igualmente um lugar ao estudo dos
homossexuais que não pareciam ter modos e personalidade femininos.
Os médicos brasileiros consideravam igualmente a homossexualidade a partir
da escolha do objeto sexual. Isto é, eram homossexuais todos aqueles indivíduos que
mantinham comércio sexual e amoroso com pessoas de seu mesmo sexo. Contudo, em
suas produções científicas e em suas práticas profissionais cotidianas, os médicos
85
brasileiros se debruçaram em especial sobre os indivíduos de maneiras femininas. A
atenção especial que nossos médicos reservaram a estes indivíduos acusa a possível
influência de representações populares da sexualidade sobre a produção científica.
A evolução das ciências médicas está ligada à evolução da sociedade no interior
da qual elas se encontram. Neste mesmo sentido, poderíamos afirmar que os médicos
são indivíduos que compartilham com seus contemporâneos crenças, representações e
idéias. Nenhum indivíduo se encontra fora ou no exterior de seu contexto histórico.
Desta maneira, podemos afirmar que os médicos brasileiros da primeira metade do
século XX influenciavam e eram influenciados pelos diferentes sistemas de
representação que coexistiam então.
Neste sentido, não é absurdo afirmar que a produção médico-legal brasileira da
primeira metade do século XX acerca da homossexualidade masculina apresenta
alguns elementos em comum a outros sistemas de representação da sexualidade ativos
no período.
A demasiada preocupação com as maneiras femininas dos homossexuais, a
idéia de que estes indivíduos possuíam uma alma de mulher ou uma disfunção
somática que os posicionariam mais do lado do universo feminino que do masculino,
são imagens em muito semelhantes àquelas presentes no sistema popular de
representação da sexualidade estudado por Peter Fry180.
Neste sistema popular de representação ativo na primeira metade do século XX,
o gênero e o comportamento sexual definiam a fronteira entre o normal e o anormal
em termos de conduta sexual. O “bicha” era o outro do “homem”. Ou seja, o machoefeminado se opunha ao macho de maneiras masculinas. Ora, a análise dos manuais
médico-legais da primeira metade do século XX nos indica que o indivíduo de sexo
masculino que apresentava em sua personalidade elementos do sexo feminino eram
aqueles sobre os quais mais fortemente pesou o olhar médico.
Esta análise nos permitiu entrever a interação e circularidade de representações
entre sistemas diferentes que interagiram no Brasil do início do século XX. Indo além,
poderíamos nos perguntar se as representações criadas, investidas ou apropriadas pelos
homossexuais nos processos de construção identitária coincidem com aquelas
180
FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
86
produzidas e reinvestidas pelo discurso médico oficial. Seria, assim, necessário
investigar o processo de subjetivação, de construção identitária e de autorepresentação dos homossexuais para que pudéssemos medir a influência real do
discurso médico sobre a vivência e a experiência da sexualidade.
A investigação do processo de construção identitária e de auto-representação
dos homossexuais é ainda uma história a ser escrita. Esta análise seria de grande
utilidade no sentido de se compreender a importância da produção “oficial” de
discurso sobre a vida e experiência dos homossexuais. Para além, estudos desta
natureza contribuiriam para que os homossexuais fossem compreendidos não só
enquanto sujeitos de discursos normativos, mas igualmente enquanto atores da
História.
87
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à nos jours. Poche, 2005.
91
Anexos
Imagem 1 – Fotografia presente no trabalho de Jorge Jaime181
181
JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, 1947.
92
Imagem 2 – Fotografia presente no trabalho de Afrânio Peixoto182
182
PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934.