Cartas de Jogar, Cartomância e Tarot em Portugal

Transcrição

Cartas de Jogar, Cartomância e Tarot em Portugal
Primeira parte
Querem alguns que seja palavra Arábica. Em castelhano, Naipes vale o mesmo que Cartas
de Jogar; dizem que se chamam assim da primeira cifra que tiveram, na qual se encerrava o
nome do inventor [...]. Entre nós Naipe é o metal ou cor das cartas [...].
RAFAEL BLUTEAU, Vocabulário Português-Latino
[...] muito melhor conhece os lances do jogo aquele que o vê, que aquele que o joga.
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO, Carta de Guia de Casados
Não se conhece ao certo qual a origem das cartas de jogar, se oriental, se ocidental, mas tudo aponta para que tenham sido concebidas na
China, ou na Índia, como advoga, por exemplo, Roger Caillois, para quem
o baralho ocidental descende do chinês e do islâmico, herdeiros, por seu
turno, do Dasavatara hindu: dez séries, com doze cartas cada, correspondentes às dez incarnações ou Avataras de Vishnu e ilustradas com os seus
símbolos.
As cartas entraram na Europa pela Península Ibérica, nos séculos
VII-VIII, por intermédio dos muçulmanos, que dispunham de um baralho
não figurativo, constituído por dois naipes: espadas e cálices.
Não obstante as inúmeras e, por vezes, contraditórias, teses a respeito do foco de irradiação das cartas de jogar no Ocidente, a primeira
referência expressa a elas (kartenspiel), remonta a 1367, ocorrendo num documento proibindo a sua utilização no cantão de Berna (actual Suiça) 1.
Em 1387, Afonso IX de Castela determinava que os cavaleiros da
Orden de la Banda não jogassem cartas, enquanto, em França, Jacquemin
Guingonneur pintava para Carlos VI, em 1392, três jogos de cartas “em
ouro e diversas cores e vários símbolos”, assistindo-se, ainda, à regulamentação do jogo de naipes, no ano de 1398.
No século XV os baralhos estariam de tal modo disseminados que
São Bernardino de Siena pregava (1423), na Igreja de São Petrónio, em
Bolonha (Itália), contra o seu uso como jogo de fortuna e azar, enquanto
Eduardo IV de Inglaterra havia de interditar a sua importação (1464).
Entretanto, os diferentes contextos culturais europeus originariam
sistemas particulares, bem como uma significativa variedade de cartas de
jogar.
1
Arquiva-se na Osterreichische Nationalbibliothek de Viena.
123
Três de tais sistemas haviam de adquirir especial notoriedade: o Latino (também denominado Espanhol), ainda utilizado em Espanha, nas antigas
colónias espanholas da América do sul, em Itália, nas Filipinas e ainda em
algumas regiões da França e do Norte de África; o sistema Alemão, produto
da combinação de sistemas distintos; e ainda o sistema Francês, actualmente
o mais difundido (nomeadamente nos Estados Unidos e no Canadá).
Os primeiros naipes 2 padronizados foram adoptados no século
XV, em França, Espanha e Itália e, ulteriormente, no século XVI, pela Inglaterra.
E muito embora adoptando denominações, iconografia e semântica
diferenciadas, os naipes assumiram, quase invariavelmente, uma estrutura quadripartida hierarquicamente ordenada na sequência espadas, copas,
paus e ouros, de acordo com o sistema Francês, ou na de paus, espadas,
cálices (copas) e moedas (ouro), consoante o sistema Latino.
Já no que concerne ao sistema Alemão, a estrutura dos naipes, apesar da sua base quadripartida, não era tão rígida, dependendo do tipo de
jogo, o mesmo sucedendo quanto à iconografia: uma bolota (Eichel), era
equivalente aos paus; um guizo (Schellen), aos ouros; uma folha (Grun ou
Blatt), às espadas; e um coração (Herz), às copas.
Alguns investigadores contemporâneos têm relacionado os quatro
naipes com as quatro etapas da manifestação do mundo ou com os quatro
elementos que o configuram 3. Porém, autores pretéritos preferiram hermenêuticas mais consentâneas com a imagem depreciativa associada ao
jogo de cartas.
Assim, Pedro Aretino (Cartas falantes) considera que os paus indicam o castigo merecido por quantos mentem; as espadas se reportam à
morte daqueles que persistem no jogo; as copas à bebida onde as disputas
dos jogadores se apaziguam; os ouros significam o alimento do jogo.
Por sua vez, Covarrubias apresenta os paus e as espadas como símbolos de violência e crime, as copas de desordem e os ouros de cupidez e
crime.
A etimologia da palavra naipe (palo, em espanhol) é controvertida, admitindo-se, no entanto, que possa derivar do hebraico naibi, sinónimo de feitiçaria. Francisco de Luque Fajardo
aponta um madrileno, conhecido por Villán ou Vila, que acabou na fogueira, como o inventor dos naipes. Ver Fiel desengaño contra la ociosidade y los juegos, Sevilha, 1603.
3
Autores hodiernos, comparando as 52 cartas com o calendário, estabeleceram o seguinte
quadro de correlações: 52 cartas = 52 semanas do ano; 4 naipes = 4 estações; 13 cartas de
cada naipe = 13 meses lunares do ano e 13 semanas de cada semestre; 12 dignidades de um
baralho = 12 meses do ano e 12 signos do zodíaco.
2
124
O Joker foi a última figura a aparecer nos baralhos de cartas, tratando-se de uma invenção americana, surgida por volta de 1860. É uma carta
de conveniência, que não se insere em nenhum sistema ou naipe, e que
constitui um trunfo especial cujo valor depende do tipo de jogo.
125
Apesar de todas as interdições e tentativas para banir a sua utilização, o jogo de cartas rapidamente se difundiu por toda a Europa.
O fabrico de cartas de jogar em Espanha está atestado desde finais
do século XIV. Em 1429, Juan Alvarez manufacturava-as numa fábrica que
detinha em Sevilha, cidade da Andaluzia onde, no século XVI, chegou a
haver cerca de sete dezenas de fabricantes.
Portugal não fugiria à regra, aparentemente, por influência castelhana.
São contemporâneas de D. João II as duas mais remotas notícias
repertoriadas nos anais portugueses sobre cartas de jogar, curiosamente,
datadas do mesmo ano:
1. Nas Cortes de Évora, de 1490, os procuradores dos concelhos solicitaram que a coroa proibisse “a entrada dos alfeloeiros que vêm de Castela a vender alfeloa visto encarecerem o preço do mel, furtarem dinheiro,
ensinarem jogos de cartas e dados a moços, que para os jogos roubam os
seus donos [...]” 4.
2. Conta Garcia de Resende 5, que D. João II mandou, com pregão
de justiça, queimar a casa de um cavaleiro chamado Diogo Pires do Pé, em
Lisboa, pretextando que nela se realizava tavolagem, isto é, se jogavam
cartas, dados e outros jogos, episódio a que Sá de Miranda aludiria ao condenar os jogos de fortuna e azar:
Mal sem emenda é o jogo
Antre os seus males maiores.
Um rei de grandes louvores
Mandou que pusessem fogo
À casa e ós jogadores.
Das santas leis jogo imigo,
Desprezador das modernas,
Continuador do perigo,
Cf. Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, Livro de Reis, I., Lisboa,
1957, doc. n. 33, n. 35º, p. 240. Considerando o requerimento exagerado, o monarca apenas
interditaria o jogo de dados, porém, não o de cartas! O costume dos alfeloeiros mercarem
de mistura com jogos persistia no tempo de D. Manuel, porquanto este monarca, tendo
mandado passar Carta de Mercê a favor de Pedro Favela, a 14 de Julho de 1505, pela qual
o autorizava a fabricar alfeloa e a vendê-la na cidade de Lisboa, proibia, todavia, os seus
vendedores de jogarem “dados e cartas nem outro nenhum jogo e isto se entenderá até
quatro pessoas somente”. ANTT: Chancelaria de D. Manuel, liv. 20, fl. 17v. Cf. Sousa Viterbo,
Curiosidades históricas e artísticas, Coimbra, 1919, p. 64-65.
5
Garcia de Resende, Crónica de Dom João II, cap. CX, p. 145.
4
126
Penas sempre assi consigo,
Vai caminho das eternas 6.
Em suma, a atitude dominante relativamente ao jogo de cartas, em
Portugal, não era diferente da prática corrente contemporânea, em outros
Estados europeus, onde a interdição categórica, com penas pesadas para
os infractores, era cominada quer pelos poderes públicos, quer pelos eclesiásticos.
Em 17 de Novembro de 1513, D. Manuel fazia publicar um Alvará,
em consequência do qual se excluíam das Ordens e se multavam “os presos por jogos de cartas e dados”.
Leis coercitivas desta índole seriam sistematizadas nas Ordenações
Manuelinas (1521) 7, ampliadas pelas Ordenações Filipinas (1595-1603) 8 e ratificadas por D. João IV, em Janeiro de 1643.
Jogo de Cartas a dinheiro
Painel de azulejos do Palácio dos Guiões (Lisboa, século XVIII),
Poesias de Francisco Saa de Miranda (ed. Carolina Michaëlis de Vasconcelos), Lisboa, 1885, p.
243-244.
7
Livro V, título XLVIII: Como são defesas as cartas, e dados.
8
Livro V, título LXXXII: Dos que jogam dados, ou cartas, ou as fazem, ou vendam, ou dão tavolagem,
e de outros jogos defesos.
6
127
Como são defesas as cartas, e dados
(Ordenações Manuelinas)
Mandamos, e defendemos, que pessoa alguma de qualquer qualidade que seja, em
todos nossos Reinos, e Senhorios, não jogue cartas, nem as tenha em sua casa, nem
pousada, nem as traga consigo, nem as faça, nem as traga de fora, nem as venda.
1 E qualquer que cartas fizer, ou as trouxer de fora do Reino, ou as vender em
alguma parte de nossos Reinos, e Senhorios, mandamos que seja preso, e da
cadeia pague vinte cruzados se for peão, e seja açoutado publicamente com
baraço e pregão; e se for de outra mor condição seja degradado um ano para
nossa Cidade de Ceuta, e pagará quarenta cruzados.
2 E qualquer pessoa a que for provado, que jogou com cartas qualquer jogo, ou
lhe forem achadas em casa, ou as trouxer consigo, pague da cadeia se for peão
dois mil reais, e se for de outra mor condição pagará dez cruzados, e mais perca
todo o dinheiro que se provar que no dito jogo ganhou, ou que lhe no dito jogo
for achado. E isto se não entenderá no dinheiro que nas bolsas, ou em outra
parte consigo tiverem, que não tenham metido, nem posto no jogo.
3 E nestas mesmas penas, que dizemos do que faz as cartas, queremos e nos
praz, que incorram aqueles que jogarem os dados [...].
4 E se for provado que alguma pessoa fez dados, ou cartas por qualquer maneira
falsificados, se for peão seja açoutado publicamente com baraço e pregão, e
degredado dez anos para a Ilha de São Tomé, e se for de mor condição será
degredado os ditos dez anos para a Ilha de São Tomé somente, e mais pague,
assim o peão como [o] de mor condição, anoveado [i. e., multiplicado por nove]
tudo o que com as ditas cartas, ou dados falsos ganhar; e ganhando vinte
cruzados, ou sua valia, com as ditas cartas, ou dados falsos; e ganhando vinte
cruzados, ou sua valia, com as ditas cartas, ou dados falsos, e d[a]í para riba, ou
sua valia, além das nóveas [i. e., nove vezes o seu valor] serão degredados para
sempre para a Ilha de São Tomé; e todo isto além de pagar a pena que em cima
dissemos dos que jogam com cartas, ou dados.
5 E mandamos que pessoa alguma de qualquer condição e qualidade que seja,
não leve dinheiro de tavolagem por jogarem em sua casa, nem lhes dê de comer,
nem de beber em sua casa por dinheiro aos que jogarem em sua casa; e o que o
contrário fizer pague cinquenta cruzados, e seja degredado dez anos para a Ilha
de São Tomé; e sendo peão além disso será açoutado publicamente.
6 E os que em os sobreditos casos de jogar cartas, ou dados forem culpados,
poderão ser citados, e acusados, ou demandados do dia que cometerem cada
um dos ditos malefícios até quatro meses primeiros seguintes; e os que em os
outros casos sobreditos de fazer cartas, ou dados falsos, ou por terem tavolagem
como dito é, poderão ser acusados até um ano, e mais não.
7 Das quais penas sobreditas de dinheiro, contidas em toda esta Ordenação, a
metade será para quem os acusar e a outra metade para Nossa Câmara. E quanto
ao dinheiro, ou ouro, ou prata que for achado no jogo, será a metade do que o
128
achar, e a outra metade do Alcaide Mor do lugar, onde assim for achado jogando,
segundo no Título dos Alcaides Mores no Livro Primeiro é dito. As quais penas
de dinheiro se não entenderão nos escravos cativos, mas em lugar da pena do
dinheiro serão açoutados ao pé do pelourinho, onde lhe serão dados vinte açoutes;
salvo se o senhor do escravo quiser pagar a dita pena de dinheiro por eles.
*
Dos que jogam dados, ou cartas, ou as fazem, ou vendam,
ou dão tavolagem, e de outros jogos defesos
(Ordenações Filipinas)
Defendemos que pessoa alguma de qualquer qualidade que seja, em Nossos
Reinos, e Senhorios, não jogue cartas, nem as tenha em sua casa, e pousada,
nem as traga consigo, nem as faça, nem traga de fora, nem as venda. E a pessoa
que for provado que jogou com cartas qualquer jogo, ou lhe forem achadas em
casa, ou as trouxer consigo, pague da cadeia se for peão, dois mil réis, e se for
de maior condição, pague dez cruzados, e mais perca todo o dinheiro que se
provar que no jogo ganhou, ou que lhe no dito jogo for achado. E isto se não
entenderá no dinheiro que na bolsa, ou em outra parte consigo tiver, que não
tenha metido, nem posto no jogo.
1 Quem fizer cartas, ou as trouxer de fora do reino, ou as vender em alguma
parte de nossos Reinos, e Senhorios, seja preso e da cadeia pague vinte cruzados
se for peão, e seja açoutado publicamente. E se for de maior condição, pague
quarenta cruzados, e seja degredado um ano para África.
2 E os que jogarem dados [...].
3 E se for provado que alguma pessoa fez dados, ou cartas, por qualquer maneira
falsificados, ou que com dados, ou cartas, sabendo que eram falsos, jogou, ou lhe
forem achados em seu poder falsificados, se for peão, seja açoutado publicamente
com baraço e pregão, e degredado dez anos para o Brasil. E se for de maior
condição, será degredado os ditos dez anos somente para o Brasil, e mais pague
assim o peão como o de maior condição anoveado tudo o que com as ditas cartas,
ou dados falsos ganhar. E sendo o ganho de vinte cruzados, ou sua valia, ou daí
para cima, além das nóveas, será degredado para sempre para o Brasil, e tudo isto
além de pagar a pena que acima dissemos: Dos que jogam com cartas, ou dados.
4 Mandamos que pessoa alguma de qualquer qualidade que seja, não leve
dinheiro de tavolagem por jogarem em sua casa, nem dê de comer, nem de beber
por dinheiro aos que nela jogarem. E quem o contrário fizer, pague cinquenta
cruzados, e seja degredado dez anos para o Brasil, e sendo peão, além disso
será açoutado publicamente. E os Julgadores em cada um ano no tempo em que
tirarem devassas gerais, tirem devassa dos que dão tavolagem, e das pessoas
em cujas casas se joga continuadamente dinheiro grosso. E sendo os culpados
pessoas de tal qualidade, que pareça bem aos Julgadores não se proceder no
caso, sem no-lo fazerem saber, dar-nos-ão disso conta, para mandarmos o que
houvermos por nosso serviço.
129
5 E por se evitarem mais os jogos, mandamos que se ao que dá tavolagem em sua
casa algum dos jogadores que nela jogam, ou outra qualquer pessoa que a ela vai
ver jogar, enquanto se na casa joga lhe fizer algum furto, injúria, ou dano, não possa
pela pessoa que dá a tavolagem ser demandado, ainda que a injúria seja atroz, e de
lhe pôr as mãos, salvo se o matasse, ou ferisse, porque em tal caso será o delinquente
castigado, como se em outro lugar, ou a outra pessoa ferisse, ou matasse.
6 Porém se os jogadores entre si se injuriassem, ou roubassem uns aos outros,
serão julgados, e castigados com as penas ordinárias, que se dão aos outros
delinquentes de semelhantes delitos.
7 E porque acontece algumas vezes, que os jogadores obrigam outros a jogar
forçosamente, ou depois que jogam a lhe manterem jogo quando perdem, a fim
de se desquitarem. Mandamos que o que tal força fizer seja degredado quatro
anos para o Brasil. E fazendo além da força alguma injúria, será mais condenado
para a parte que o demandar, em pena corporal, e pecuniária, conforme a
qualidade da pessoa ofendida, e da injúria que se lhe fizer.
8 E os que forem culpados em jogar dados, ou cartas, poderão ser citados ou
demandados do dia que cometerem o malefício até quatro meses primeiros
seguintes. E os que forem culpados em os outros casos sobreditos de fazer
cartas, ou vender, ou trazer, ou jogar com cartas, ou dados falsos, ou por terem
tavolagem, poderão ser acusados até um ano, e mais não.
9 Das quais penas de dinheiro contidas nesta Ordenação, será a metade para quem
os acusar, e a outra para nossa Câmara. E quanto ao dinheiro, ouro, ou prata, que
for achado no jogo, será a metade do que o achar, e a outra do Alcaide Mor do lugar
onde assim for achado jogando, como fica dito no Livro Primeiro, no Título: Dos
Alcaides Mores.
10 [capítulo interditando o jogo de bola em determinadas circunstâncias 9].
11 E aos escravos que forem achados em qualquer parte de nossos reinos,
culpados em cada um dos casos acima ditos, ou jogando outro qualquer jogo
na Corte, ou na Cidade de Lisboa, ser-lhe-ão dados vinte açoutes ao pé do
Pelourinho, salvo se seu senhor quiser pagar pelo seu escravo quinhentos réis
para quem o prender, e que o não açoutem.
12 E quando os meirinhos, e alcaides acharem jogando dados, ou cartas
a alguns Oficiais mecânicos, ou pessoas semelhantes, levá-los-ão perante
um Julgador, onde serão ouvidos como for justiça. E sendo pessoas de mais
qualidade, os Julgadores os farão chamar a suas casas, e os ouvirão, e farão em
tudo cumprimento de Justiça, dando sentenças, das quais as partes poderão
apelar, e agravar, qual no caso couber. E os Corregedores da Corte despacharão
os tais feitos em Relação.
Enquanto isso as leis canónicas proibiam os jogos de cartas aos
clérigos. Atestam-no, entre outras: as Constituições do Arcebispado de Évora
9
Ver do subscritor, neste Boletim Cultural, o artigo: Jogos do Jardim do Cerco: bola, laranjinha e aro.
130
(1534) 10; as Constituiçoens do Arcebispado de Lixboa (1537) 11; as Constituições
do Arcebispado de Braga (1538) 12; as Cõstituições Synodaes do Bispado do Porto
(1541) 13; as Constituiçoes Synodaes do Bispado de Coimbra (1548) 14; as Constituiçoens do Bispado do Algarve (1554) 15; as Constituyções da Iurisdiçam Ecclesiastica da Villa de Tomar (posteriores a 1555) 16; as Constituyções Synodaes
do Bispado de Viseu (1556) 17; as Constituições Synodaes do Bispado de Lamego
(1563) 18; as Constituiçoens do Arcebispado de Evora (1565, ed. 1753) 19.
De resto, o carácter alegadamente diabólico dos naipes (“invenção
do Diabo”), apontado pelo já citado São Bernardino de Siena, persegui-losia recorrentemente, como um estigma, tanto nas letras como nas artes.
Tal se infere, por exemplo, do Auto da Feira (1527), de Gil Vicente,
que, num diálogo entre um Serafim e o Diabo, põe este a confessar que um
dos elementos do seu comércio são justamente as cartas de jogar, para as
quais encontra sempre clientes, incluindo no rol aos eclesiásticos:
[...] e trago d’ Andalusia
Naipes com que os sacerdotes
Arreneguem cada dia,
e joguem até os pelotes [...] 20.
A crítica vicentina seria reiterada tanto nas sátiras e farsas de António Ribeiro Chiado e de António Prestes, quanto em contextos estritamente
religiosos e moralistas, de que serve de exemplo o seguinte excerto, cujo
interesse redobrado reside na circunstância de nomear diversos dos jogos
de cartas então mais vulgarizados em Portugal (bem como alguma da respectiva gíria), e expressamente referir o baralho português, de 48 cartas,
mundialmente famoso por iconografar dragões nos Ases (conhecidos pelos
especialistas como os Dragões de Portugal ou cartas portuguesas do Dragão):
Título X, const. VII, fl. 21 e const. VIII, fl. 21-21v.
Título X, const. VII, fl. 23v e const. VIII, fl. 23v.
12
Título X, const. VI e VII, fl. 28v.
13
Título 13, const. 12, fl. 54 e 100-100v.
14
Título XIII, const. III, fl. 40-40v.
15
Título X, cap. VII, fl. 40-40v e VIII, fl. 40v.
16
Título 4, const. 2, fl. 26.
17
Título XI, const. X, fl. 48-48v.
18
Título XXXII, const. II, p. 214; título XII, const. VII, p. 80-81 e VIII, p. 81.
19
Título X, cap. 7 e 8, p. 52.
20
Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (ed. Maria Leonor Carvalhão Buescu), v. 1, Lisboa,
1984, p. 154-155.
10
11
131
Todo o jogo, em que a fortuna faz maior figura que a arte, é proibido em
Direito; mas como a proibição de ordinário desafia o apetite dos homens: Nitimur
in vertitum, comumente se inclinam àqueles jogos, a que as leis se opõem com mais
severidade. Um destes é o jogo das cartas, cujo exercício é tão universal em todas
as nações quanto é prejudicial às consciências; porque é um estragador do tempo,
um ladrão dos cabedais, e um violador dos respeitos. Nele são frequentes as juras,
as blasfémias, as desesperações, as vilezas, as mentiras, os roubos, os desafios, e as
desgraças; nesta arte quanto mais sábio é o homem, tanto mais mau o homem é.
Tudo isto é certo; porque a experiência o prova com o facto; e tudo, ou quase tudo
disse um discípulo de S. Tomás de Cantuária, Bispo Carnotense, natural de Serisbéria: Nonné fatis improbata est cujusque artis exercitatio, in qua quanto
quis doctior, tanto nequior. Aleator quidem omnis hic est. Mendaciorum
siquidem, et perjuriorum mater est alea, et aliena concupiscentia sua prodigio, nullam habens patrimonis reverentiam, cum illud essuderit, sensim
in furta delabitur, et rapinas.
Tudo isto, e muito mais se acha no jogo das cartas. Se nele se perdesse só o
respeito, o brio, a fazenda, e ainda a liberdade, como era alguma hora costume entre
os Alemães, menos mau era; mas também se perde a vida, e talvez a alma. Se eu não
receara escandalizar ao leitor, referira-lhe com mais individuação o caso seguinte,
que sucedeu em uma Cidade deste Reino, onde eu a este tempo me achava. Jogavam
três a Renegada, deram-se as cartas, passaram todos a primeira vez, e nas segundas
passagens foi um deles à cascarrilha com tão bom, ou com tão mau, sucesso, que
achou cinco vazas direitas; neste caso disse inadvertidamente um dos jogadores:
Isto é ventura de filho de tal. Picou-se o injuriado, porque a mãe merecia o nome,
que o homem lhe deu, e metendo a mão a uma faca, lha pregou no peito com tanta
fúria, que sem confissão o mandou para a outra vida, e talvez para a outra morte;
porque as circunstâncias, que revestiam este diabólico exercício, fazem muito provável esta conjectura. Se este caso servisse de escarmento aos futuros, assim como foi
de escândalo para os presentes, poderá ser que senão use tão mal em todos os estados
da eutrapelia, que degenere em tasularia, como estamos vendo todas as horas.
Juntamente proibiram os Turcos este, e semelhantes jogos pelas suas leis
não só com a pena de perderem a fazenda, mas também a honra; porque os compreendidos neste crime ficavam reputados por infames. Deram os Infiéis este quinhão
aos Príncipes Católicos, que dissimulam um exercício tão oposto às leis de Deus, e
tão comum nos homens, que apenas se juntam quatro amigos numa tarde de verão
ou numa noite de inverno, já o livrinho de quarenta, e oito folhas anda nas palmas,
como se não houvesse para passar o tempo outros livrinhos: uns espirituais para
os bem intencionados, outros de história para os curiosos: uns de políticas para os
Repúblicos, outros de guerras para os Militares; uns de Náutica para os Mareantes,
e outros de Agricultura para os fazendeiros.
132
O demónio, que segundo alguns escrevem, foi o inventor deste, e outros
semelhantes jogos, com grande astúcia multiplicou as espécies deste género: ensinou a Renegada, os Centos, a Gigajoga, os Piques, o Quinto, o Quarto, as Vazas, a
Polhinha, a Garatuza, a Primeira, o Cró, o Estenderete, o Osória, o Trinta, a Banca,
o Pacau, a Carteta, as Pintas, o Trunfo, o Quinze de Resto, o Vinte e um, o Cochino,
o Ganha perde, e outros muitos, que não numero, porque até o escrevê-los me enfastia, lembrando-me das ruínas, que tem causado no mundo o seu uso. Tudo isto foi
destreza do inimigo infernal para fazer este exercício mais comum; para que os que
não gostassem de um jogo, jogassem outro.
Para todos serve este desencadernado livro, não de letras, mas de estampas.
Nele se acham pintados os Reis, as Sotas, os Condes, e os Ases. Nele se veem diferentes naipes: os ouros, as copas, as espadas, e os paus. Tudo tem seu significado, de
que darei notícia aos que folheiam este livro da ociosidade. É livro desencadernado,
para significar os desmanchos, que faz nas consciências. Não tem letras, porque não
é livro, que tomem na mão homens cientes, e letrados. Tem Reis, para que se saiba,
que também se usa dele nos palácios. Tem Condes, por outro nome, cavalos, para
que entendamos assenta bem o nome de brutos naqueles fidalgos que estudam por
ele noites, e dias inteiros com grande escândalo dos seus criados. Tem Sotas, para
que se veja que o sexo feminino em todo o divertimento ilícito faz vaza. Tem Ases,
que são uns dragões; porque se quis estampar neste livro o seu autor: a este parece
que adoram os que trazem nas palmas este volume: Adoraverunt draconem.
Tem ouros, para que acabem os homens de persuadir-se, que no jogo reina
muito a ambição: uns, e outros, por mais amigos que sejam, querem-se tirar a capa,
ainda que se dão capotes. As copas querem insinuar-nos, que o jogar as cartas é
exercício de tabernas. As espadas indicam as brigas, as dissenções, que do jogo se
originam. Os paus são prognóstico da forca, em que muitas vezes vêm a parar os
jogadores; ou porque do jogo das cartas se levantam para o das pancadas, ou porque
a pobreza, a que os reduz, os incita a despojarem as bolsas alheias depois de vazarem
as suas. Não foram necessários os três paus para experimentar esta desgraça, e padecer a afronta do patíbulo o jogador, que deu matéria a esta reflexão; porque com
um laço o fez o demónio enforcar no ferrolho de uma porta.
Diz S. Paulo, que caem na tentação, e laço do demónio os que desejam ser
ricos: Qui volunt divites sieri incidunt in tentationem, et laqueum diaboli.
Nesta tentação, e neste laço cai o nosso jogador vendo-se pobre, por haver perdido
ao jogo o pouco, ou muito cabedal, que tinha. Aqui dá S. Bernardo um sentidíssimo
ai, doendo-se das muitas prisões que o demónio faz no mundo com este laço: Ergone laqueus diaboli divitia fut hujus saeculi? Hec quam poucos invenimus,
qui ab hoc laqueo liberati exultent; quod parum sibi videntur irretiti, et
abuc, quantum possunt, ipsi se involvere, et intricare laborant. Se os que
desejam ser ricos andam presos do demónio, os jogadores vivem mais enlaçados,
133
que todos os ambiciosos. Se perguntarmos a um destes, para que joga, responderá
para me desenfadar!; mas se a mim se fizesse esta pergunta, havia de responder com
mais verdade, para ganhar. Nenhum se senta à mesa do jogo com intentos de perder;
todos se enfadam, ou mais ou menos, se a fortuna os não favorece.
É para ver, e para ouvir um destes, quando o persegue a desgraça um dia,
e outro dia; uma noite, e outra noite. Lança mil maldições sobre as cartas, e sobre
as duas mil pragas jurando, e terjurando de não pegar mais nelas, e fugir da casa
do jogo, como do demónio; mas duram pouco tempo estes bons propósitos. Quando
muito no primeiro dia teme quebrar o juramento, não vai à casa do jogo, mas passa
pela porta: no segundo entra; e no terceiro senta-se à mesa como dantes fazia. Estes
são como os navegantes. No tempo da tempestade protestam de não meterem mais
pé em barco, e lembrados do perigo, em que se viram lhes parece muito arriscada a
passagem de qualquer rio; mas em aparecendo os editais ou para a Índia, ou para
os Brasis, já as ondas do Oceano no seu conceito são menos formidáveis, que as
do Tejo, ou Guadiana; e se necessário e, são os primeiros, que procuram lugar nas
embarcações para a jornada. Destes falou Ovídio: Qui post naufragium stagna,
lacusque timebat, Aequoreas iterum remige transit aquas 21.
O autor seiscentista deste autêntico libelo, imbuído de um evidente sentimento de militância contra-reformista, não pregava solitário, porquanto até as artes, nomeadamente a pintura e a azulejaria, acolitavam na
evangelização anti-jogo.
O mais digno caso de registo que conheço observa-se na igreja do
Carmo de Évora. Num enorme óleo sobre tábua (c. 1620) do pintor eborense Pedro Nunes (1586-1637), acham-se iconografados a Virgem do Carmo e
S. Simão Stock convertendo um cavaleiro hereje. A heresia é figurada na composição por cartas de jogar, espalhadas pelo chão em grande quantidade,
em torno da dramatis personae do cavaleiro, igualmente tombado por terra,
completamente derrotado, como, de resto, o decoro então vigente impunha
que fosse figurado um converso 22.
Não obstante, os sucessivos e reiterados interditos, só abolidos por
um Alvará régio de 17 de Março de 1605, o jogo de cartas tornara-se, nas
primeiras décadas de quinhentos, uma prática extremamente difundida
à qual todas as classes sociais aderiam, umas vezes, jogando a dinheiro,
outras “a molhados”, isto é, fazendo apostas sobre alimentos (donde a expressão jogar a feijões).
21
22
Frei Pedro Correia, Triumphos Ecclesiasticos, Lisboa, 1617.
Cf. A Pintura Maneirista em Portugal: arte no tempo de Camões, Lisboa, 1995, p. 494-496.
134
A Virgem do Carmo e S. Simão Stock convertendo um cavaleiro hereje, do pintor Pedro Nunes
(Évora, Igreja do Carmo). No chão, junto das cartas, veem-se, também, dois dados.
135
Inclusivamente, D. Manuel, contrariando as disposições legais
emanadas da sua própria Chancelaria, patrocinava jogos com naipes em
que intervinha toda a Corte. Para o efeito, chegou a ordenar a Garcia de Resende que compusesse quarenta e oito trovas, tantas quantas as cartas que
formavam o baralho corrente no Reino, destinadas a uma diversão áulica:
tais trovas dividem-se em dois grupos, por sua vez subdivididos em dois
outros: 24 eram dirigidas às damas, outras tantas aos cortesãos homens;
12 de cada um desses grupos eram de louvor, outras tantas de deslouvor.
Baralhadas as cartas, seriam tiradas uma a uma, reportando-se a cada um
dos presentes.
Estas quarenta e oito trovas fez Garcia de Rezende por mandado de el
rei nosso senhor para um jogo de cartas de jogar no serão desta
maneira. Em cada carta sua trova escrita e são vinte e quatro das damas
e vinte e quatro de homens, a saber: doze de louvor e doze de
deslouvor. E baralhadas todas hão-de tirar uma carta em nome de foã
ou foão e então lê-la alto e quem acertar o louvor irá bem e quem tomar
a de mal rirão dele. Começam logo os louvores das damas os quais fez
todos à senhora dona Joana de Mendonça
[Ás de copas]
Não sei que possa dizer
por vós que seja louvor
que se tão ousado for
perderei o entender.
Quando quero começar
é cousa que não tem cabo
antes me quero calar
que cuidarem que me gabo.
[Dois de copas]
Formosura tão sobeja
vos deu Deus cá entre nós
que não sei quem vos bem veja
que se não perca por vós.
Que nos deis sempre cuidado
que nos mateis cada hora
antes de vós difamado
qu`amado doutra senhora.
136
[Três de copas]
Pois sois sem comparação
de todas quantas nasceram
os que por vós se perderam
bem se perdem com razão.
E pois nunca vimos tal
nem creio que viu ninguém
que façais a todos mal
eu digo que fazeis bem.
[Quatro de copas]
Tendes tanta gentileza
tanto ar na fala e rir
que quem vos senhora vir
nunca sentirá tristeza.
Fostes no mundo nascida
com graças tão escolhidas
que só por vos ter servida
daria duas mil vidas.
[Cinco de copas]
Vossas grandes perfeições
manhas e desenvolturas
tiram todalas tristuras
que acham nos corações.
Vossas penas são prazer,
Vossos cuidados vitória.
Vosso mal é bem fazer.
E vosso esquecer memória.
[Seis de copas]
Quem vos não viu não tem vida,
quem vos não serviu senhora,
pode contar por perdida
toda a vida té’gora.
E quem vir tal formosura
seja certo qu’há de ter
enquanto viver tristura
juntos pesar e prazer.
137
[Sete de copas]
Do que vós tendes demais
podeis dar a todas parte
e em vós ficar que farte
sem falecer o que dais.
Que todas queiram tomar
manhas, graça e parecer
de vós não pode minguar
quanto nelas mais crescer.
[Oito de copas]
Dama de tal formosura
dama de tal merecer
o que vive sem vos ver
não teve boa ventura.
Para qu’é vida sem vós
nem se pode chamar vida
e se não foreis nascida
porque nasceramos nós?
[Nove de copas]
Quem viu nunca tal senhora
quem viu nunca tal mulher
que pode dar se quiser
a morte e vida num’hora.
Certo não dirá ninguém
que se viu tal criatura
nem que tal desenvoltura
donzela teve nem tem.
[Damas de copas]
Sois tão linda tão airosa
que muitos matais por fama
ante vós nenhu[m]a dama
não se chamará formosa.
Porque quantas damas são
juntas só nu[m]a figura
não terá comparação
ante vossa formosura.
138
[Valete de copas]
Se no mundo se perdesse
quanto se pode cuidar
tudo vós pudereis dar
sem que nada falecesse.
Porque o qu’em vós sobeja
é tanto qu’abastaria
a mil mundos e teria
cada u[m]a o que deseja.
[Rei de copas]
Em saber e descrição
em virtudes e bondade
e em toda perfeição
tendes primor na verdade.
Sois também mui piedosa
amiga de todo bem
sobretudo a mais formosa
do qu’ouviu nem viu ninguém.
[Ás de ouros]
Vós não sois muito manhosa
nem matais ninguém d’amores
sois mais feia que formosa
tendes poucos servidores.
E o que tão enganado
for que lhe pareçais bem
há mester desenganado
de vós mesma ou d’alguém.
[Dois de ouros]
Na dança sois mui atada
no bailo pouco jeitosa
em passear desairosa
em falar desengraçada.
Sois um pouco já taluda
de tempo para casar
e não sois muito aguda
em escrever nem falar.
139
[Três de ouros]
Pois por que galantaria
nunca haveis de ser condessa
o meu conselho seria
trabalhar por abadessa.
Servireis nosso senhor
tereis certo de comer
se quiserdes servidor
não há lá de falecer.
[Quatro de ouros]
Pareceis mal em janela
em serão muito pior
sois mais fria e sensabor
do que nunca vi donzela.
Vós fareis bem d’ensinar
as damas moças a ler
não a vestir nem falar
pois o não sabeis fazer.
[Cinco de ouros]
Vós não sois para senhora
nem menos para terceira
se me credes desd’agora
pareceis já mal solteira.
E pois manhas para dama
não tendes nem parecer
casai-vos e pode ser
que ainda sereis ama.
[Seis de ouros]
Se d’alguém por amizade
vós fosseis desenganada
e vos falasse a verdade
estaríeis na pousada.
Para vós não é serão
dança nem bailo mourisco
em feia pondes o risco
mais alto que quantas são.
140
[Sete de ouros]
Em falar sois enxabida
e em rir desengraçada
sois mui pouco entremetida
em responder mui pejada.
Sois também desensoada
para dançar tordião
quiçá se foreis vexada
bailareis bailo vilão.
[Oito de ouros]
Não vos acho nenhum jeito
para nos matar d’amores
o corpo não é bem feito
as manhas são sensabores.
Não sois das mais estimadas
nem menos das mais sabidas
que muitas são as chamadas
e poucas as escolhidas.
[Nove de ouros]
Vós senhora perdoai
se mal digo se mal faço
em dizer que vosso pai
fez mal trazer-vos ao paço.
Antes fora bom conselho
meter-vos no Salvador
ou casar-vos c’um doutor
ainda que fora velho.
[Dama de ouros]
Falais com pedras na mão
como se fosseis formosa
e sois mui presuntuosa
sobre ter má condição.
Não sois muito bem disposta
nem pareceis muito bem
se convosco fala alguém
a todos dais má resposta.
141
[Valete de ouros]
Senhora de meu conselho
por viverdes descansada
guardai-vos de ter espelho
nem vos entre na pousada.
Que se virdes o que vemos
direis que temos razão
de rirmos e de dizermos
que tendes mui má feição.
[Rei de ouros]
Sois mui má de servir
e sois sempre ravinhosa
não quereis ver nem ouvir
também tocais de raivosa.
Sois soberba sois infinta
sois mui forte mulher
s’eu tomar papel e tinta
muito mais hei d’escrever.
[Ás de espadas]
Sou tão gentil cortesão
que s’as cãs me não vieram
as damas todas souberam
que dou mate a quantos são.
Não curo de vaidade
pico-me de gracioso
também de falar verdade
às vezes sou comichoso.
[Dois de espadas]
Sou mui negociador
falo sempre à puridade
tenho muita gravidade
logo pareço senhor.
Sou sisudo e avisado
e sou grão visitador
d’oficiais ou privado
também de qualquer doutor.
142
[Três de espadas]
Sou mui brando e temperado
e por meus amigos faço
ando mui acompanhado
de pousada té ò paço.
A todos respondo bem
sou grande motejador
e está-me bem bedém
não sendo cavalgador.
[Quatro de espadas]
Entre todos cortesãos
m’hão d’enxergar e ouvir
sei bem as damas servir
bulo sempre com as mãos.
Sou subtil brando e delgado
mais universal que todos
e sobr’isso tão honrado
que dou três figas ós godos.
[Cinco de espadas]
Sou mui solto no falar
falo tudo quanto quero
não me dá nada de dar
más respostas e ser fero.
Sou na dança mui airoso
e bom músico também
e também sou gracioso
mas é à custa d’alguém.
[Seis de espadas]
Que me vós vejais calar
eu trago muito bom jogo
ando tão perto do fogo
que m’hei nele de queimar.
E por ser mui discreto
me fazem tantos favores
vai-me sempre bem d’amores
porque me tem por secreto.
143
[Sete de espadas]
Eu sou mui entremetido
com as damas e senhores
e com todos mui valido
e ando sempre d’amores.
Trago as damas em revolta
não me sabem entender
e à qu’é mais desenvolta
essa dou mais que fazer.
[Oito de espadas]
Eu sou mui gentil galante
d’idade par’o conselho
e que seja um pouco velho
sou nos amores constante.
E sou mui bom caçador
de toda sorte de caça
sei bem rir a u[m]a graça
sobr’isso bom dançador.
[Nove de espadas]
Sou bem disposto e formoso
e que seja um pouco frio
sou em tudo mui manhoso
e em mim muito confio.
Sou das damas servidor
em muitas cousas sabido
danço bem, sou trovador
e mais sou muito provido.
[Dama de espadas]
Eu prezo-me d’escrever
e dar conselhos nuns motos
sei bem cantar e tanger
alguns são em mim devotos.
E sou prezado das damas
estimado dos senhores
e com todos meus favores
não lhe tiro suas famas.
144
[Valete de espadas]
E sou muito d’estimar
e assi[m] sou estimado
porque sei bem apodar
e também ser apodado.
E sou muito gracioso
despejado no terreiro
quero-me fazer pomposo
nunca falo escudeiro.
[Rei de espadas]
Eu sei bem falar trocado
e dar d’olho ós de redor
presumo d’andar dobrado
falo cousas de primor.
Sou dest’arte zombador
e não m’acode ninguém
sou longe de sensabor
folgo de parecer bem.
[Ás de paus]
Vós não no tomeis por vós
mas vós sois tão desairoso
que fareis qualquer de nós
de sensabor gracioso.
De mula e de cavalo
no terreiro e no serão
sois tão fora de feição
qu’eu já não posso calá-lo.
[Dois de paus]
Vós m’entendeis bem senhor
quando vestis a lobeta
que pareceis provisor
cavalgador da gineta.
Sois um pouco desazado
e não muito desenvolto
em manhas não muito solto
em dar de rir avezado.
145
[Três de paus]
Vossos dias já passaram
logo pareceis passado
sois das damas enjeitado
e nunca vos enjeitaram.
Sois mais pai que servidor
sois mais avô que galante
por isso dês hoje avante
deixai as damas senhor.
[Quatro de paus]
Vós andais arrepiado
não sabemos s’é de frio
e sois já tão engelhado
qu’às damas fazeis fastio.
Se o causa Almeirim
ou estes frios d’agora
por mercê crede-m’a mim
não enfadeis a senhora.
[Cinco de paus]
Que mostreis ser confiado
nós outros sabemos bem
o qu’há-de ter ou que tem
o galante namorado.
Sois um pouco repinchado
bom para ver em jubão
e pareceis fradegão
s’estais desatabiado.
[Seis de paus]
Galante blasfemador
tendes feição de varrão
tão longe de sensabor
coma perto de malhão.
Quem isto tomar por si
Há-de ser homem de paço
e já eu vejo daqui
alguém posto em embaraço.
146
[Sete de paus]
Por que vindes ò serão
por que vos meteis na dança
pois que para cortesão
andais mui longe de França?
Sois mui frio e sensabor
e sabei-vos mal vestir
então quereis presumir
de galante e dançador.
[Oito de paus]
Vós sois longo e destripado
bem para folgar de ver
pareceis grou espantado
bode morto por comer.
Se vos vier ter à mão
esta carta por acerto
quer estais longe quer perto
todos vos conhecerão.
[Nove de paus]
Galante sem se vestir
namorado sem ter dama
desavir, tornar a vir
ele se ama e desama.
Sem ninguém luta consigo
ele cai ele se alça
quem olhar isto que digo
verá de que pé se calça.
[Dama de paus]
Que vos eu pareça assi[m]
não vou lá nem faço míngua
que não solte muito a língua
outros piores há’qui.
Eu não sei por que não sou
no paço mui valido
pois que sou curto e corrido
e tenho grã presunção.
147
[Valete de paus]
Vós sois mui enfadonho
e falais sempre de siso
e amostrai-vos medonho
por não tolherdes o riso.
Mando-vos eu meter medo
mando-vos arengar
qu’haveis d’haver tard’ou cedo
que cous’é desgravizar.
[Rei de paus]
Vós andais amarlotado
que sejais muito sabido
e andeis atabiado
andais sempre entanguido.
Haveis mester enxugado
ao sol e muito quente
ou muito bem apodado
por dar desprazer à gente 23.
Um dos entretenimentos com cartas, preferidos da Corte quinhentista portuguesa, era o denominado Jogo de Primeira, equivalente ao Jogo de
l’Hombre, de origem espanhola 24. Consta que D. Sebastião terá mostrado
vontade de saber como se processava esse jogo. Uma vez iniciado pelo aio
na sua mecânica, terá até aprendido a fazer batota com a cumplicidade de
um moço fidalgo, durante uma curta ausência de D. Aleixo de Meneses:
D. Aleixo de Meneses aio que foi de el-Rei D. Sebastião, sendo o dito Rei
ainda moço e estando uma noite de inverno enfadado, quis passar duas horas dela
em jogar algum jogo de cartas, com outros moços fidalgos de sua idade e criação, e
porque então o que mais se usava era a Primeira na qual os outros eram já mestres,
el-Rei não começava ainda a ser discípulo, disse para o aio, quero jogar a primeira
porque a não sei jogar e vós me ensinareis, veio D. Aleixo nisso, estava detrás de elRei e ensinava-o, teve que fazer, chamou um moço fidalgo que também sabia jogar
e estava vendo de fora, e pô-lo em seu lugar para que ensinasse a el-Rei enquanto
De Garcia de Resende a um jogo de Cartas, in Cancioneiro Geral (ed. Andrée Crabée Rocha), v.
5, Lisboa, 1973, p. 402-415.
24
O Jogo do Homem, é, em muitos aspectos, semelhante ao ganjiva, indiano, que veio a dar a
quadrilha francesa.
23
148
ele faltava. Foi D. Aleixo e tornou; quis o moço que ele deixara ensinando a el-Rei
tirar-se do posto e D. Aleixo lhe disse que fosse continuando; ensinava o moço e
D. Aleixo via. Pelo decurso do jogo atentou D. Aleixo que el-Rei pelo conselho do
mestre que lhe dera, não envidava, nem tinha, senão com jogo muito seguro. Disse
então para o moço fidalgo, arredai-vos para lá que eu deixei-vos aí detrás de el-Rei
para o ensinardes a jogar, mas não para o ensinardes a ganhar 25.
Batota num jogo de cartas
Pormenor de um painel de azulejos do Mosteiro de Odivelas (século XVIII)
Esta anedota permite aferir que, dentro de limites que não passavam por uma dimensão moralizante, os jogos de cartas, propostos como
divertimento cortesão 26 no tão influente Il Libro del Cortegiano (1528) de
Baltasar Castiglione, eram uma das actividades dilectas dos nobres e cor-
Cristopher C. Lund, Anedotas portuguesas e memórias biográficas da corte quinhentista, Coimbra, 1980.
26
Com carácter não apenas lúdico, mas declaradamente honesto e esporádico.
25
149
tesãos nacionais, eventualmente, apenas suplantada pelas corridas de touros, como outro episódio, narrado por João Cascão deixa entrever.
O mesmo D. Sebastião, em 7 de Fevereiro de 1573, no decurso de
uma jornada ao Alentejo e Algarve, acompanhado pelo condestável do
Reino, D. Duarte, assistiria a uma corrida de touros em Serpa, durante a
qual um touro dando uma cornada a um moço de estribeira, havia de lhe
romper uma algibeira, espalhando pelo curro as cartas de jogar que nela
trazia:
[...] depois de jantar correram-lhe touros. Andou a eles, e o Senhor D. Duarte, o
Conde do Vimioso, Cristóvão de Távora, o Alferes-mor e D. Pedro de Meneses.
Houve dois touros muito arrazoados a que todos fizeram sortes, e a que de mais
gosto houve, assim em el-Rei como em todos, foi uma que fez um moço da estribeira
do Senhor D. Duarte, que tomando-o o touro lhe rompeu com um corno uma algibeira, que trazia bem provida de cartas de jogar e, de tentos, e algum dinheiro, e
lhe espalhou tudo pelo curro. Fica a história, sendo mais formosa, a quem souber a
inclinação que este homem tem a este exercício das cartas, e bem se enxergou nele
ser-lhe afeiçoado, porque muito devagar as tornou a apanhar todas 27.
Pela mesma época, Camões havia de asseverar, numa carta remetida de Ceuta a um amigo, descrevendo uma partida de Chincalhão:
Forçou-me Amor, um dia que jogasse;
deu as cartas e ás de ouros levantou;
E, sem respeitar mão, logo trunfou,
Cuidando que o metal que me enganasse.
Dizendo, pois, trunfou, que triunfasse,
A uma sota de ouros que jogou;
Eu então por burlar quem me burlou
Três paus joguei, e disse que ganhasse 28
João Cascão, Relação da jornada de El-rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora, in Francisco Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve, Lisboa, 1984, p. 126. A p. 92, o
cronista refere que, em Colos, D. Sebastião jogou cartas com o Duque de Aveiro e D. Pedro
Dinis, o Conde de Vidigueira e D. Álvaro de Castro, que ganhou o jogo, e, depois da ceia,
D. Duarte jogou as trezentas com D. Diogo de Lima que saíu vitorioso; a p. 96, em Odemira,
D. Duarte “gastou o dia em jogar”.
28
Carta I (remetida de Ceuta). Sobre o Chincalhão, ver Celestino Maia, Chincalhão (Jogo de Cartas), in Douro Litoral, s. 8, v. 7-8 (1958), p. 611-618.
27
150
O gosto dos portugueses por jogos de cartas revelar-se-ia mesmo
em circunstâncias no mínimo inesperadas. Referirei dois exemplos que julgo paradigmáticos:
1. Francisco Dias, alcaide da Inquisição de Coimbra, nomeado a 22
de Julho de 1574 e substituído em 1579, uma vez que além de não cumprir
as funções do seu cargo, era manifestamente corrupto. O processo no Santo
Ofício de Coimbra 29 viria a apurar que permitia aos presos terem dinheiro na sua posse; facilitava a comunicação de presos com seus familiares;
bem como se aproveitava, sem quaisquer escrúpulos, do que era devido
aos presos: comprava coisas para si da ração dos presos, vendia peixe dessa
mesma ração, chegando, frequentemente, a jogar cartas com os detidos 30.
2. Numa relação escrita pela própria religiosa, professa no convento carmelita da Esperança, de Beja, transcrita para a história da sua Vida,
composta pelo confessor e citada por Manuel Bernardes na sua Nova Floresta, Madre Mariana da Purificação conta como o Menino Jesus lhe apareceu
convidando-a para jogar cartas:
Quem pudera em parte, ou sequer de algum modo, dar a entender a Vossa
Paternidade com alguma notícia o amor, carícia e graça com que me disse: Queres
tu, filha do meu coração, jogar às cartas; então se tu ganhares, irás amanhã a comungar. Neste passo me ri muito, porque eu não sabia jogar... A ganhar te ensinarei
eu (me disse com muita graça) e te darei forças para ires... Ora vá, joguemos (me
tornou a dizer) para ver quem ganha. Da primeira vez ganhou ele e eu lhe disse:
Não vos disse eu, meu amor, que não sabia jogar? Agora como há-de ser? Que vos
hei-de dar de ganho? Dar-vos-ei o meu coração, que só isso é razão, suposto volo tenho dado já de todo, agora vo-lo torno a dar, para com a dor de vos ter tanto
ofendido o partais e abraseis em vosso amor. Ficou muito contente, como não se não
fora ele senhor de tudo; e tornou a dizer que para eu ganhar, havia de jogar outra
vez. E tornando a jogar, ganhei eu, sem saber jogar, e fiquei muito contente e ele
muito mais 31.
ANTT: Inq. Coimbra, proc. 9839 de 1578.
Elvira Cunha da Azevedo, A Inquisição de Coimbra no século XVI: a Instituição, os Homens e a
Sociedade, Fundação Eng. António de Almeida.
31
Frei Caetano do Vencimento, Fragmentos da Prodigiosa Vida da muito favorecida e amada Esposa de Jesu Christo, a veneravel Madre Marianna da Purificaçam, Religiosa Carmelita Calçada no
Seminário de almas Santas, o Reformadissimo Convento da Esperança da Cidade de Beja, Lisboa,
António da Silva, 1747, p. 193-194.
29
30
151
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
Durante o século XVI foi criado em Portugal um baralho com características distintivas nacionais, a que os investigadores modernos dão
o nome genérico de cartas portuguesas do Dragão ou, simplesmente, Dragões de Portugal. De facto, a aplicação de um Dragão na carta de maior
valor, o Ás, garantiu o reconhecimento indelével desse baralho com 48
152
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
Este baralho organizava-se em torno de quatro naipes (ouros = moeda; copas = taça com
tampa; espadas = cruzadas em panóplia; paus = cacetes desramados e entrecruzados), de
acordo com o sistema Latino (48 cartas, sem as quatro correspondentes ao dez).
As suas características distintivas mais notáveis são: um dragão ou serpente alada, nos
ases, eventualmente alusiva ao timbre das armas nacionais; as sotas (damas) de espadas
e paus domando serpentes; os reis entronizados; as formas enfaticamente arredondadas
dos símbolos do naipe de copas; os padrões das cercaduras; a figura jovem entrelaçada no
dois de paus; as panóplias (espadas cruzadas) no naipe de espadas; os rostos de querubins
assoprando nuvens nos cantos do seis de ouros.
A iconografia do seis de ouros, do dois de paus e da sota de paus sofreu sucessivas
alterações, até perder, com o tempo, as especificidades apontadas.
153
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
154
cartas, organizado segundo o sistema Latino. A sua relevância foi tal que
acabaria por ser copiado, de acordo com as idiossincracias locais, no Brasil, Japão, Índia, Indonésia, etc., tendo atingido uma longevidade de quase
quatro séculos 32.
Persistência dos Dragões de Portugal em baralhos japoneses
A influência dos Nambanjin, ou bárbaros do Sul, denominação utilizada pelos japoneses
para se referirem aos portugueses, teve expressão superlativa no vocabulário e no
armamento, mas igualmente nas cartas de jogar.
As mais antigas cartas portuguesas eram denominadas Tenshõ-karuta, isto é, cartas do
período Tenshõ (1573-1592). Tudo nelas é cópia dos modelos portugueses.
Desconhece-se, quer quem o concebeu, quer o responsável ou responsáveis pela sua manufactura, que se presume possa ter atingido uma
produção significativa, mesmo assim, decerto, inferior à enorme procura, a
julgar pela difusão que se lhe conhece em todo o Império português, espe-
32
Cf. Sylvia Mann e Virginia Wayland, The Dragons of Portugal, Surrey, 1973. Ver também de
Sylvia Mann, Portuguese playing cards and their journeys, in Roger Tilley, A History of Playing
Cards, Nova Iorque, 1973, p. 181-187 (Apêndice I).
155
cialmente no Oriente, onde a diáspora lusíada alcançou os mais recônditos
lugares 33.
Em quinhentos, houve, decerto, fábricas de cartas de jogar em território português, todas mais ou menos clandestinas, uma vez que a actividade era escrutinada de perto e os transgressores sujeitos a penas pesadas
que chegavam ao degredo 34.
Pelo menos de dois presumíveis fabricantes de cartas nos chegou
notícia, uma vez que, após terem sido denunciados e condenados, de acordo com as penas cominadas pelas Ordenações Manuelinas, solicitaram a D.
Sebastião lhes perdoasse, pelo menos o degredo, favor que o Desejado lhes
concederia.
Transcrevo os trechos mais significativos das duas Cartas de Perdão:
Carta de Perdão de João de Ribeira (1574)
Dom Sebastião etc. faço saber que João de Ribeira imprimidor de livros morador
nesta cidade de Lisboa me enviou dizer por sua petição que ele foi preso e acusado
pelo alcaide Marcos Lopes por se dizer que fazia cartas de jogar e pelo caso fora
condenado que pagasse 20 cruzados, a saber a metade para os cativos e a outra para
o dito alcaide e que perdera as ditas cartas que fazia e que com pregão em audiência
fora degredado por um ano para um dos lugares de além e custas segundo constava
da certidão da sentença que oferecia e pagara a condenação do dinheiro e cartas e
nela fora feita execução do pregão e para ir cumprir o dito degredo fora solto com
tempo de três meses que o governador lhe dera que ainda lhe duravam e porque era
casado com mulher e filhos e era muito pobre e havendo ele ir cumprir o dito degredo ficava perdido por não ter com que se manter sua família se não com seu ofício
de imprimidor de livros do qual nos lugares de além não podia usar e também era
necessário à República não se ir de Lisboa pela falta que havia de imprimidores me
pedia houvesse por bem de lhe perdoar o dito ano de degredo [...] 35.
Cf. Ana Maria Amaro, Os Jogos de Cartas na Expansão Ibérica, in Mare Liberum, n. 10 (Dez.
1995), p. 493-507.
34
Sabe-se que, antes de existirem manufacturas peninsulares, Toulouse, Thiers e Ruão produziam cartas de jogo em quantidades consideráveis, destinadas aos mareantes portugueses, espanhóis e flamengos. Cf. Catherine Perry Hargrave, A History of Playing Cards,
Nova Iorque, 1966, p. 248. No mesmo passo esta autora refere-se a um alegado fabricante de
cartas português quinhentista, cujo nome, Inferrera, mais não deve ser que a adulteração de
Ferreira, ignorando-se qual a fonte onde o obteve. João de Barros testemunha ter inventado
um jogo de cartas sistematizando a Economia de Aristóteles.
35
ANTT: Legitimações e Perdões de D. Sebastião, liv. 16, fl. 224. O documento encontra-se transcrito por Sousa Viterbo, Curiosidades históricas e artísticas, Coimbra, 1919, p. 55-56.
33
156
As mais antigas Cartas conhecidas em Portugal (2ª metade do séc. XVI)
Em quinhentos, as cartas portuguesas eram xilogravadas, em cor de laranja e preto, sendo
o papel utilizado semelhante ao das cartas produzidas em Limoges (França). Um dos
baralhos em apreço foi impresso sobre papel com a chancela de Alexandre Pimentel
(Colacção Eng. Manuel de Faria)
157
Carta de Perdão de João Tomé de Brisola (1576)
Dom Sebastião etc. faço saber que João Tomé de Brisola morador nesta cidade de
Lisboa me enviou dizer por petição que sendo ele condenado por sentença em um
ano de degredo para África por se dizer fazer cartas para jogar o suplicante dera
fiança a ir cumprir o dito degredo a 13 de Junho de [15]75 e eu neste tempo lhe fazer mercê perdoar-lhe o dito degredo e por o pronunciar com os autos por conforme
o suplicante gastara até 3 de Janeiro de 1576 e sendo pronunciado por conforme
levando a António Fernandes escrivão para desobrigar a dita fiança o não quisera
fazer por dizer ser passado o tempo que era obrigado trazer certidão e era homem
estrangeiro e cuidava que bastava ter perdão meu pedindo-me lhe perdoasse a culpa
que no caso tinha e que mandasse lhe fosse desobrigada sua fiança [...] 36.
Não é conhecido no país, tanto quanto foi possível apurar, qualquer
baralho quinhentista completo das cartas portuguesas do Dragão 37, apenas se
achando inventariadas cartas avulsas, com duas origens distintas:
1. as pertencentes a dois baralhos, encontradas no buraco de uma
parede, enquanto se procedia a uma obra de restauro no solar da Quinta
de Santa Bárbara, em Punhete (Constância) 38.
2. alguns exemplares, colados em livro setecentista na posse de um
coleccionador privado 39.
Depois de terem deixado de ser fabricadas em Portugal, em finais
do século XIX, e em virtude da intensa procura de que eram alvo, designadamente nos mercados coloniais, as cartas portuguesas do Dragão terão
continuado a ser produzidas no estrangeiro.
A mira de um negócio lucrativo para a Coroa terá constituído suficiente motivação para a legalização da manufactura e comércio de cartas,
cujos rendimentos passaram a ser arrematados, sob a forma de monopólio,
a partir de 1605. Por sinal em data quase concomitante com a promulgação
das Ordenações Filipinas (1595-1603), onde, sintomaticamente, tais actividades configuravam crimes graves.
ANTT: Legitimações e perdões de D. Sebastião, liv. 21, fl. 104v. Idem, ibidem, p. 54-55.
Sylvia Mann e Virginia Wayland apontam um baralho de 1597, manufacturado por Pietro
Ciliberto, como o mais antigo que lograram encontrar, remontando ao século XVII o mais
genuinamente português a que tiveram acesso. Ob. cit., p. 15-16.
38
Manuela Azevedo, As mais antigas Cartas de Jogar, in Novas Obras de Arte Quinhentista do
Tempo de Camões, [Lisboa], 1986, p. 55-58.
39
Tony Klauf, A Importância do Baralho Ordenado no Ilusionismo, [Porto], [1998].
36
37
158
Baralho brasileiro (c. 1840), reproduzindo as Cartas portuguesas do Dragão.
159
1
3
2
4
5
1 a 4 – Ases de baralhos manufacturados na Bélgica ou na Alemanha,
destinados ao Brasil, (Séc. XIX);
5 – Ás de um baralho concebido por Luís Schlicting (Rio de Janeiro, séc. XIX)
Doravante, e apesar de o percurso histórico dos naipes em Portugal ter-se tornado muito mais rastreável, nem sempre o investigador terá
a tarefa facilitada. A resenha cronológica que proponho é um contributo
singelo com vista ao preenchimento de algumas lacunas até à extinção,
em 10 de Setembro de 1832, do monopólio detido pela Imprensa Nacional,
herdeira da Impressão Régia, da qual dependia a Real Fábrica das Cartas
de Jogar, fundada por D. José I.
160
Solimão
Sublimado corrosivo,
ao qual se reconheceram
excelentes propriedades antisépticas,
porventura como desinfectante dos
baralhos
Subsídio Cronológico para uma história
da manufactura e comércio de naipes em Portugal 40
1605
A manufactura e comércio das cartas de jogar são entregues a sucessivos
monopólios por Alvarás, pelo menos desde 17 de Março deste ano. O primeiro
arrematante conhecido das rendas do Estanque das cartas de jogar e de Solimão é
João de Olmedo de Campos. A especulação resultante da legalização dos jogos em
Para compor este Subsídio Cronológico servi-me, além das fontes a seu tempo citadas, principalmente da seguinte bibliografia: Notice abrégée de l’Imprimerie Nationale de Lisbonne, nouvelle édition, Lisboa, 1869, p. 7, 33 e 49; Egas Moniz, História das Cartas de Jogar, Lisboa, 1942
e 1998; Pedro Vitorino, Cartas de Jogar, in Revista de Guimarães, n. 3-4 (1943); Enrique Garcia
Martin, Naipes Portugueses, in La Sota, n. 6 (Fev. 1993) e Naipes Portugueses II, in La Sota, n. 16
(Mar. 1997); Fernanda Frazão, As Cartas de Jogar Constitucionais – História de um baralho, in
Revista Museu, s. 4, n. 10 (2001), p. 173-186.
40
161
que entram cartas, permite ao fisco arrecadar anualmente dezasseis contos de réis
(cf. Rebelo da Silva, História de Portugal).
1636
Um Alvará, de 21 de Junho de 1636, declara que Gaspar Pacheco, Diogo Mendes de
Castro e Rui Dias Franco “tomaram por arrendamento de dois anos [com efeitos a
partir de 1 de Janeiro], o Contrato das Terças dos Concelhos do Reino com jurisdição
privativa, tal como vem na provisão passada aos Conservadores dos Portos Secos
e das Cartas e Solimão”. Na mesma ocasião é nomeado Juiz Conservador das
ditas Terças o Doutor Gregório Mascarenhas Homem, Desembargador da Casa
da Suplicação.
1644
Alvará, de 18 de Outubro [com efeito a partir de 3 de Agosto], a consignar o
“contrato por oito anos das rendas dos Estancos das Cartas de Jogar e Solimão
deste Reino [e Senhorios de Portugal], feito a Duarte Rodrigues Nunes, Henriques
Mendes da Costa e Gonçalo Rodrigues da Cunha”. Uma Carta de Privilégio a
favor dos mesmos arrematantes, concede-lhes “os mesmo privilégios, liberdades
e penas dos contratos realizados anteriormente”, ordenando devassas “a todas
as pessoas que fizerem cartas falsas, ou derem ajuda e favor para se fazerem, ou
jogarem com elas, ou as vendam ou comprem corridas, porquanto nas naus, que
deste Reino vão para a Índia, e outras partes vão muitas cartas falsas, e Solimão,
e se joga com elas nas naus. [...]. E se o escrivão de seu ofício não procurar a dita
devassa, se lhe dará em culpa, [...] que tanto que este contrato for arrematado a ele
Contratador e companheiros ninguém poderá usar, nem ter em sua casa, nem fora
dela nenhumas outras cartas, senão as que forem feitas, e dadas por sua ordem, e
seus feitores. Com condição que o Meirinho que servir na vara destes dois estancos
de cartas e Solimão, e os das mais partes do reino, possam ir com vara alçada a
quaisquer partes do Reino, e Ultramar [...] que por quanto nesta cidade e mais
partes do Reino em muitas casas se jogam dados secos e se recolhem homiziados
que fazem cartas falsas, e vão contra as condições deste contrato”. O documento
elenca ainda as penas cominadas aos transgressores.
1724
Romão da Costa Freitas requer ao Contador da Fazenda o privilégio do contrato
do Estanco das cartas de jogar e Solimão, o qual, à falta de outros elementos, se
presume possa ter sido deferido apenas em 1729.
1729
Contrato das Cartas de Jogar e Solimão, que se fez no Conselho da Fazenda com Romão da
Costa Freytas, por tempo de seis annos que hão de ter principio em 12 de Agosto de 1729 e
hão de ter fim em 11 de Agosto de 1735 (Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues).
162
1735
É renovado o contrato com Romão da Costa Freitas, ficando o contratante
obrigado a pagar pelas rendas dos estancos das cartas de jogar e Solimão, cinco
contos e quinhentos mil réis, forros, “em cada um ano, por tempo de seis”, isto
é, até 1741.
1741
A prosperidade do negócio das cartas de jogar é evidenciada pela Carta dos Privilégios
do contrato das cartas de jogar e Solimão de Anastácio da Costa Freitas dos trezentos do
número (Lisboa, Manescal da Costa [BN: Pombalina 472, fl. 339]), em virtude da
qual o contratador “tem a faculdade de nomear até trezentos estanqueiros [...]
com privilégios activos”, pelo período de seis anos (de 12 de Agosto de 1741 a 11
de Agosto de 1747), podendo cobrar a quantia de oitenta réis por cada baralho
vendido. Segue-se o Alvará de aprovação do contrato, feito em nome do rei por
José Rebelo Palhares que, entre outros títulos, tinha o de privativo dos estancos
das cartas de jogar e Solimão, sendo subscrito por António de Almeida Lobrão,
“proprietário do Ofício de Escrivão da Conservatória das Cartas de jogar e Solimão,
etc.”. Neste documento é, pela primeira vez, nomeada uma oficina gráfica, a do
impressor Manescal da Costa, cujos prelos produziam cartas certamente de fabrico
rudimentar.
1747
Carta dos privilegios do contrato das Cartas de Jogar, e Solimão, de que he contratador João
Francisco, e administrador Geral Anastacio da Costa Freitas (Lisboa, Oficina de Miguel
Manescal da Costa).
1753
Uma Resolução de 16 de Maio, revogando a Lei do Reino, no que respeita ao Contrato
das Cartas de Jogar, concede ao estanqueiro autorização para importar baralhos
estrangeiros, desde que o fisco aufira o lucro respectivo. O Alvará competente seria
publicado no ano seguinte.
1754
Alvará de 26 de Março revoga a Lei do Reino, relativamente à condição XIII do
Contrato das Cartas de Jogar, permitindo que o contratador possa “meter as Cartas
que quiser, de quaisquer partes que lhe forem necessárias, e Selar com o Selo do
Contrato, ou qualquer outro que lhe estiver bem, as quais cartas poderá trazer
livremente sem a isso lhe porem impedimento algum, e que com elas, como com
as dos Estancos, se poderá jogar todos os jogos livremente e se não poderá tirar
Devassa de quem der Casa de Jogo das ditas cartas do Contrato, nem as Justiças
prenderão por isso”.
163
Reis de um baralho da Impressão Régia
1769
André Faria da Rocha é o derradeiro contratador do Estanco das cartas de jogar,
antes da fundação da Real Fábrica de Cartas de Jogar, ocorrida em 31 de Julho
([Lisboa], Na Regia Officina Typografica), mediante Alvará de D. José I. No mesmo
documento é aprovado o contrato com Lourenço Solésio ficando a Impressão Régia,
com o exclusivo da manufactura e venda de Cartas de Jogar e papelões da autoria
deste mestre italiano. Os baralhos desta fase, inspirados em modelos espanhóis e
produzidos pelo processo da estampilha, ostentam no duque de copas a legenda Real
Fábrica de Lisboa, como indicação da sua origem. Durante os doze anos de duração
da concessão os baralhos fabricados ficam abrangidos pelo privilégio exclusivo da
venda para todo o continente e ilhas (ao preço unitário de 100 réis) e colónias (150
réis), contra o pagamento ao Erário Público da quantia de 10.000$00 réis anuais.
Em 22 de Outubro, Manuel Freire recebe 8 mil réis por “11 estampas para Cartas
164
Portuguesas”, depois de já haver recebido, em 14 de Agosto, 960 réis “por umas
Armas Reais para a capa dos baralhos” [IN/CM: Documentos de Caixa, n. 28].
1770
A partir de 1 de Janeiro é interditada a posse, bem como a utilização em jogos, em
casa ou fora dela, de quaisquer cartas de jogar que não tenham sido produzidas e
vendidas por ordem da Direcção da Administração e Vendas das Cartas (Condição
VII); as cartas falsas serão confiscadas (Condição VIII); nenhum estanqueiro poderá
adquirir cartas a outrém (Condição X); etc. Alvará de D. José, de 6 de Agosto [BN:
Res. 3626 V], concede privilégios aos oficiais empregados na Fábrica das Cartas de
Jogar, determinando, ainda, que “com cartas desta Fábrica se poderão jogar todos
os jogos [lícitos] livremente”.
1774
João Sacomano, depois mestre exímio no fabrico de cartas, inicia a sua actividade
na Real Fábrica de Cartas de Jogar.
Sotas (damas) de um baralho da Impressão Régia
165
1800
Fabricam-se em Portugal três tipos de cartas: portuguesas, francesas e castelhanas.
As cartas são vendidas a dois preços: as portuguesas são fornecidas aos estanqueiros
a 90 réis o baralho, incluída a comissão de 20 réis aos administradores; as
francesas e as espanholas a 100 réis, compreendida a mesma comissão. O público
que se dirija aos armazéns da Impressão Régia compra-as a preços inferiores:
as primeiras a 80 réis o baralho, as segundas a 90 réis. O preço fixado para a
venda no ultramar inclui a comissão de 10 réis destinada aos estanqueiros. Os
administradores comissários recebiam seis por cento de venda e dois por cento de
remessa, “abonando-se-lhes a despesa de caixotes, fretes, alugueres de armazém,
riscos de mar e avarias”.
1801
Saem da Fábrica de Cartas de Jogar entre 192.000 e 240.000 baralhos de cartas, rendendo
dois terços da receita geral da Impressão Régia. Esses lucros são investidos na edição
de obras literárias e científicas e no subsídio, na quantia de 53 contos, da Real Fábrica
das Sedas. Falece Manescal da Costa, administrador da Impressão Régia.
1802
Um decreto concede a todas as pessoas empregadas na Impressão Régia as “mesmas
faculdades e isenções que pelos alvarás de 31 de Julho de 1769 e de 6 de Janeiro
de 1770” haviam sido concedidas aos empregados da Real Fábrica das cartas de
Jogar. Presume-se que os gravadores Francisco Bartolozzi e Gregório Francisco de
Queiroz terão exercido uma influência benéfica sobre o arranjo e ornato das cartas
de jogar produzidas pela Real Fábrica. O rendimento do Estanco sofre assinalável
decréscimo (diminuindo para menos de metade), em virtude da promulgação de
um decreto proibindo a saída de cartas de jogar para o ultramar.
1806
A 23 de Agosto, Decreto promulgado pelo Príncipe Regente Dom João, futuro Dom
João VI, no Palácio Nacional de Mafra, estabelece normas destinadas ao controlo
do comércio das cartas de jogar.
Tendo-se representado ao Príncipe Regente Nosso Senhor por parte da Junta
Administrativa, Económica, e Literária da Impressão Régia, a cujo cargo está a
Administração da real Fábrica de Cartas de Jogar; que, apesar das solicitações
da mesma Junta, e Precatórios do seu Conservador. alguns Magistrados
não tem cumprido com a precisa prontidão os ditos Precatórios passados
para cobrança e arrecadação de muitas dívidas desta Repartição; tendo sido
igualmente infructíferas as requisições que a muitos devedores se tem feito pela
166
Contadoria da dita Impressão Régia: E tomando Sua Alteza Real o referido em
consideração: é servido mandar o seguinte:
Todos os Provedores, Corregedores, Juízes de Fora, e Ordinários das Terras
do Reino darão o mais exacto, e pronto cumprimento aos Precatórios do
Conservador da Impressão Régia e Real Fábrica de Cartas de jogar, qualquer
que seja o objecto dos mesmos Precatórios. Nas cabeças de suas Comarcas
os Provedores, e nas mais terras delas os Juízes de Fora se informarão extrajudicialmente, se os Administradores das Cartas de jogar são pessoas que gozem
de conceito de boas contas; e no caso de acharem essa fama, lhes intimarão,
e participarão (sem ser por meio judicial) que observem cada um nas suas
Administrações a seguinte instrução, que a dita Junta exige impreterivelmente
para a boa direcção deste ramo de arrecadação que lhe está confiado, e se contém
nos quatro artigos que se seguem.
I. Que os Administradores remetam à Impressão Régia um balanço das suas
contas, com o Inventário das Cartas de jogar que lhe ficam em ser.
II. Que à mesma Impressão Régia remetam no fim de cada mês pelo Seguro do
Correio a importância das vendas feitas nesse mês, abonando-se-lhes em conta
o prémio do Seguro, ou aliás façam estas remessas pela Conduta do Tabaco,
para cujo efeito serão dadas as competentes ordens.
III. Que os mesmos Administradores cuidem em ter sempre sortimento
de Cartas de jogar em todas as terras do distrito de suas administrações: E
no caso que os Juízes das mesmas terras vejam que se representaram aos
Magistrados daquelas, em que se acham as administrações principais; e os
mesmos Magistrados darão providência, para que se supra semelhante falta,
intimando-o assim aos Administradores.
IV. Estes finalmente serão muito vigilantes sobre o contrabando que possa haver
de Cartas de jogar; e havendo-o, remeterão à Junta da Impressão Régia cópias dos
requerimentos que têm feito aos respectivos Magistrados para se evitar semelhante
mal; dando notícia individual do progresso, e resultado dessas diligências.
A participação extrajudicial, que fica dita, será porém feita judicialmente, se
os referidos Provedores e Juízes de Fora acharem que os Administradores são
suspeitos de más contas. E nesse caso, procedendo ao Inventário, e Balanço
judicial, lhes intimarão que satisfaçam ao conteúdo nos sobreditos quatro
artigos, com pena de serem excluídos das administrações, e de se proceder pelo
alcance em que se acharem. Aos Oficiais de Justiça, que forem empregados
nestas diligências, será dado a título de custas quatro por cento tirados das
importâncias que por efeito das mesmas diligências forem remetidas dentro de
um mês ao cofre da Impressão Régia; três por cento, se a remessa se efectuar até
três meses; e dois por cento somente, se a remessa for mais demorada.
167
168
169
170
Outrossim há Sua Alteza Real por bem que cada um dos Magistrados, a
quem estas Reais Ordens vão dirigidas, fique responsável à sua execução, de
tal modo que se a Junta Administrativa Económica e literária da Impressão
Régia representar a falta de cumprimento delas, e constar; no Real Erário serão
denegadas as Certidões de Corrente aos Provedores; e aos Juízes de Fora será
dada em culpa em suas Residências a mesma falta.
Palácio de Mafra em vinte e três de Agosto de mil oitocentos e seis.
Luiz de Vasconcelos e Souza.
Cumpra-se, e Registe-se. Lisboa 30 de Agosto de 1806.
Amaral. Escopezi. Oliveira. Neves Portugal.
Registado a fol. 103 vers. do Livro de Registo dos Decretos, Avisos, e Ordens.
Contadoria da Impressão Regia 30 de Agosto de 1806.
João Pedro Ladislau de Figueiredo.
Cavaleiros de um baralho da Impressão Régia
171
1807
Alvará pelo qual são postas por estanco as cartas de jogar no Estado do Brasil (in Collecção
de Leis, Decretos, e Alvarás, Ordens Régias, e Editais, que se publicarão desde o Anno
de 1803 até 1807, Lisboa, J. F. Monteiro de Campos e Impressão Régia, 1815-1818
[BPNMafra: 2-48-8-11/18]).
1820
Por deliberação das Cortes Constituintes, a Impressão Régia passa a denominar-se
Imprensa Nacional.
1821
São estampadas as 12 figuras das Cartas Constitucionais, concebidas por Manuel
Luís Rodrigues Viana, porventura o único baralho português de que é possível
reconstituir toda a história [IN/CM: Documentos de Caixa, 1821, I e II]. Os
primeiros baralhos produzidos são postos à venda no mês de Dezembro, ao preço
de 2.400 réis, cada maço de uma dúzia.
Letra de pagamento a Manuel Luís Rodrigues Viana.
172
Cartas Constitucionais
O único baralho completo (?) conhecido guarda-se no Museu Fournier (Vitória, Espanha).
Suspeita-se que as chapas originais possam ter sido destruídas pelas “autoridades
absolutistas em virtude da Dama de copas representar a Constituição”
(Nobreza de Portugal, v. 2, Lisboa, 1960-1989)
173
1831
Decreto de 19 de Setembro determina que “tanto as cartas como os livros que se
exportassem, ou para os domínios ou para fora do país” gozem de igual isenção,
competindo ao administrador geral da Imprensa Nacional regular o preço das
cartas, “de maneira que nem o contrabandista encontrasse interesse em as mandar
vir de fora, nem os estrangeiros as introduzissem no Reino”.
1832
A administração da Imprensa Nacional contrata o suiço João Luiz Weber, que tem
como contramestre Ângelo Bissum, com o objectivo de dirigir e melhorar a sua
laboração. São produzidas cartas de tipo francês, reversíveis, de grande qualidade.
O monopólio detido pela Imprensa Nacional, do fabrico e comércio de cartas de
jogar é abolido, por decreto de 10 de Setembro, ficando livre qualquer pessoa de as
manufacturar e vender sem pagar imposto algum.
Superstições com cartas de jogar
- Se num jogo de cartas uma carta especial (excepto o nove de ouros) vai
repetidamente parar às mãos do mesmo jogador, este deve comprar o baralho
ao dono, queimar todas as cartas, excepto aquela, passando-a pelo defumador
e guardando-a como talismã.
- Os jogadores de cartas nunca devem jogar sem terem um alfinete de ama
espetado na bainha das calças.
- Se alguém encontrar perdida uma carta de jogar (excepto o nove de ouros)
deve apanhá-la com a mão esquerda e trazê-la consigo durante uma lua inteira
(28 dias).
- Não é aconselhável jogar cartas com um baralho destinado à cartomância.
- Nunca roubar um baralho de cartas de casa de um amigo.
- Nunca se deve rasgar ou estragar um Ás de copas.
- Nunca deitar um baralho para o lixo, sem antes o queimar.
- As cartas de jogar devem ser embrulhadas num pedaço de pano vermelho
ou violeta enquanto durar a viagem de quem as traz consigo.
Uma vez extinto o monopólio da Imprensa Nacional, em 1832, e
restabelecido e aumentado para 60 réis, por decreto de 1 de Julho de 1867, o
imposto de selo, tornou-se inviável a concorrência da Fábrica das Cartas de
Jogar com outras oficinas nacionais, isentas dessa obrigação fiscal.
Os fabricantes particulares tomavam, definitivamente, conta do
negócio. Porém, essa parte da história da manufactura e comércio das cartas de jogar em Portugal fica reservada para outra ocasião.
174

Documentos relacionados