O SISTEMA PENAL DINÂMICO: UMA PROPOSTA

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O SISTEMA PENAL DINÂMICO: UMA PROPOSTA
O SISTEMA PENAL DINÂMICO:
UMA PROPOSTA EPISTEMOLÓGICA
(Comentários sobre a publicação do livro Sistema penal y problemas sociales)1
Bruno Amaral Machado
Promotor de Justiça em Brasília e
doutorando em Sociologia JurídicoPenal pela Universidade de Barcelona.
A pouca atenção dispensada, por grande parte dos cursos jurídicos no Brasil
(salvo elogiáveis exceções), às análises “externas” do direito sobre o sistema
penal em sua dimensão dinâmica é tema que merece ao menos uma reflexão. A
necessidade evidente de propiciar habilidades para o manejo de instrumentos legais
e a preparação técnica para o desempenho das diversas profissões jurídicas não
devem contudo suprimir a importância de análises que aprofundem a compreensão
sobre a origem, a eficácia e as conseqüências dos usos que se podem fazer de
uma particular forma de controle: o jurídico-penal. Enfoques pouco difundidos,
como o imaginário subjacente e construído a partir do relato do delito nos meios de
comunicação, a análise do discurso jurídico que reproduz ou oculta determinados
habitus2 nas práticas cotidianas dos operadores do direito, a “revisão” a que
deveriam ser submetidas obras clássicas que procuram explicar o surgimento de
instituições como a prisão diante da consolidação de perspectivas de gênero3 ,
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Anteriormente publicado pela Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 44, jul./set.
2003.
A referência aqui à categoria utilizada por Bourdieu: em BOURDIEU, Pierre. The genesis of the
concepts of habitus and field. Sociocriticism 2, 1985, pp. 11-24. Sobre a utilização desse conceito,
assim como a de capital e campo para análise do direito: BOURDIEU, Pierre. Poder, derecho y
clases sociales. Tradução Maria José Bernuz Beneitez, capítulos II e IV; Andrés García Inda,
prólogo e capítulo I; Maria José Ordovás, capítulo V e Daniel Oliver Lalana, capítulo III. Bilbao:
Desclee de Brower, 2001.
Entre outras poder-se-ia aqui mencionar o impacto de uma determinada “criminologia feminista”
em obras clássicas sobre a origem da prisão como: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2000; MELOSSI, D.; PAVARINI, M.
Cárcel y fábrica: los orígenes del sistema penitenciario. México, DF: Siglo XXI, 1987; RUSCHE,
G.; KIRCHHEIMER, O. Pena y estructura social. Bogotá: Temis, 1984. Em outras palavras,
repensar tanto o modelo marxista de análise quanto o modelo que privilegia a transição de um
paradigma disciplinador que passa do corpo à alma (mente) diante da realidade vivenciada pelas
mulheres. Outra dimensão é repensar essas explicações clássicas a partir da realidade latino-americana,
propiciando distintos matizes sobre a correpondência empírica desses modelos na periferia e
semiperiferia do espaço mundial.
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assim como o impacto e o significado subliminar que trazem a incorporação de
teorias sistêmicas pelas ciências penais, motivam abordagens que não se limitam
à Dogmática Penal. Merecem ainda referência a pouca atenção dada nesse âmbito
à origem do conceito de controle social, as implicações e os limites que haveriam
de indagar previamente da incorporação de categorias pertencentes às tradições
sociológica e politológica. Há, assim, razões suficientes para se buscarem na
multidisciplinariedade ferramentas para aprofundar o debate sobre algumas dessas
questões4 .
A recente obra publicada sob coordenação e colaboração do professor
Roberto Bergalli5 , Sistema penal y problemas sociales6 , cumpre o objetivo de
difundir os conteúdos do Master Europeu “Sistema penal y problemas sociales”
assim como reúne as reflexões de alguns dos professores e dos colaboradores
que integram o mencionado curso, ensejando assim análises e reflexões sobre
algumas das indagações acima mencionadas, além de outras não referidas
expressamente. Uma apresentação do conteúdo da obra requer assim uma breve
referência ao Master. Iniciado há seis anos pela Universidade de Barcelona,
historicamente remonta a quinze anos quando foi instituído o Common Study
Programme on Criminal Justice and Critical Criminology. Oferecido por sete
universidades européias, o curso originariamente, por iniciativa de Louk Hulsman
e Alessandro Baratta, integrou os seguintes centros: o Vakgroep Strafrecht em
Criminologia da Erasmus Universiteit, em Roterdam; o Middlesex University, o
Institut für Rechts und Soziaphilosopie der Universität Saarlandes e o
Departamento de Dret Penal i Ciències Penals de la Universidad de Barcelona.
Atualmente outorgam o título de Master Europeu os cursos oferecidos pela
Universidade de Barcelona, pela Middlesex University (Reino Unido) e pela
Universidade de Ghent (Bélgica), ressaltando-se que, há quatro anos, foi
conjuntamente instituído o Master Internacional, ministrado, sob a direção de
Roberto Bergalli, pela Universidade de Barcelona, pela Universidade Autônoma
Metropolitana e pela Universidade Autônoma de Tlaxcala, no México.
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Sobre o tema conferir: BERGALLI, Roberto. Control social y sistema penal. In: BERGALLI,
Roberto. Control social punitivo: sistema penal e instancias de aplicación (policía, jurisdicción y
cárcel). Barcelona: Bosch, 1996. pp. 1-5; MELOSSI, Dario. El Estado del control social. Tradução:
Martín Mur Ubasart, México: Siglo XXI, 1992.
Entre as mais destacadas propostas epistemológicas do professor argentino radicado em Barcelona,
assinala-se a preocupação com um objeto específico: o funcionamento do sistema penal. Uma
disciplina nutrida de conhecimentos da sociologia das profissões e das organizações, a que denomina
“sociologia do controle penal”.
BERGALLI, Roberto (Coord. y Colab.). Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2003.
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A obra privilegia o recorte epistemológico adotado nos mencionados cursos.
Analisa os sistemas penais e os problemas que socialmente se controem nas
sociedades contemporâneas, dirigindo o enfoque aos permanentes processos de
construção, desconstrução e reconstrução desses últimos. Reproduz-se a divisão
em blocos de disciplinas adotada pela versão do Master ministrado em Barcelona,
ressaltando o caráter multidisciplinar da proposta, já que reúne, no corpo docente,
não apenas juristas, mas também sociólogos, antropólogos, historiadores, um
psicólogo e um jornalista.
Com o objetivo de apresentar uma visão panorâmica de apenas alguns dos
artigos que compõem a obra, destaca-se do primeiro bloco, denominado La
construcción del delito y de los problemas sociales, o artigo Las funciones
del sistema penal en el estado constitucional de derecho, social y democrático:
perspectivas sócio-jurídicas, de autoria de Roberto Bergalli. Recuperam-se
conceitos fundamentais para a compreensão do sistema penal em sua dimensão
dinâmica, resgatando categorias jurídicas, como a “forma Estado”, e categorias
sociológicas, como o controle social, buscando identificar as origens, as precisões
terminológicas e as variantes do que se constitui o controle jurídico-penal do Estado.
Encerra-se com uma atualização desse instrumental na modernidade tardia (ou
pós-modernidade), advertindo-se o que o autor denomina de hegemonia da “cultura
da emergência”. O artigo Historia y legitimación del castigo ¿Hacia dónde
vamos?, de autoria de Iñaki Rivera Beiras, repassa dez tradições da filosofia
política, sociologia e da criminologia buscando pistas no que tange aos horizontes
penais que se desenham para um futuro próximo. Recuperam-se, assim, reflexões
a partir do pensamento iluminista, do positivismo criminológico, as leituras
funcionalistas, o discurso marxiano, o behaviourismo difundido a partir da Escola
de Chicago, a arqueologia das sociedades disciplinares com matriz foucaultiana, a
racionalização do sistema penal como característica da modernidade (Weber) e
culmina com o novo enfoque dramatúrgico (Goffman). Encerra-se com uma
reflexão sobre os usos instrumentais do Direito Penal na sociedade pós-moderna.
Da segunda parte, correspondendo ao segundo bloco do Master,
Selectividad y funciones de las instancias del sistema penal, destaca-se: El
análisis de las instituciones y organizaciones del sistema penal: una propuesta
metodológica, de autoria de Julio Zino Torraza. O artigo busca nas ciências sociais,
particularmente na sociologia das organizações, ferramentas a serem utilizadas
para análise do sistema penal. Recuperam-se, assim, conceitos fundamentais como
de socialização e institucionalização, estrutura social e aparatos do Estado. São
recuperadas, ainda, categorias como “organização resposta” e “organização
construção” ou sistemas de ação concreta, propostas como instrumentos úteis
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para análise do sistema penal “dinâmico”. O artigo de autoria de José Luis
Domínguez Figueiredo, intitulado Sociología jurídico-penal y actividad
legislativa, sistematiza categorias da sociologia e da criminologia, apresentando
uma proposta de análise do processo legislativo. O artigo se complementa com
uma análise sobre as diversas racionalidades legislativas, ensejando-se enfoques
que privilegiam a racionalidade comunicacional, jurídico-formal, pragmática,
teleológica e ética. O artigo de autoria de Amadeus Recasens i Brunet, La
seguridad, el sistema de justicia criminal y la policia, incorpora ferramentas
do modelo sistêmico e sistematiza conceitos-chave como segurança e sociedade
de risco, propondo-se uma nova leitura que englobe o conceito de complexidade
da sociedade contemporânea, deslocando-se o foco do aparato policial e
privilegiando o tema segurança. O artigo de autoria de Roberto Bergalli,
Jurisdicción y administración de justicia. Jueces y fiscales en la sociedad
compleja, após um breve recorrido dos modelos de Estado, centra-se na
complexidade social e no crescente papel da jurisdição como componente do sistema
político contemporâneo. Temas como o protagonismo judicial, a politização da
justiça e a judicialização da política são analisados em seus diversos aspectos. O
artigo intitulado La cárcel y el sistema penal (en España y en Europa), de
autoria de Iñaki Rivera Beiras, apresenta uma visão crítica do reformismo
penitenciário espanhol e o papel da jurisdição na construção do preso como cidadão
de segunda categoria e encerra com um retrato sociológico do cárcere “real” no
novo milênio. O artigo intitulado El impacto carcelario, de autoria de Josep GarcíaBorrés Espí, recupera, no pensamento criminológico e na psicologia cultural,
elementos para analisar os efeitos da pena de prisão e critica a proposta
reeducadora a partir de uma análise sobre o ambiente em que se encontra inserido
o preso.
O terceiro bloco de disciplinas corresponde parcialmente à terceira parte
do livro Problemas sociales y alternativas de control. Engloba contribuições
distintas para repensar problemas sociais tratados de alguma forma pelo sistema
penal. O artigo de autoria de Oriol Romaní, intitulado Prohibicionismo y drogas:
¿Un modelo de gestión social agotado?, aborda questões centrais para se
compreender de que forma o tema drogas foi tratado social e politicamente.
Resgata, assim, categorias importantes como controle social, civilização e
modernidade, centrando-se no tema relativo à construção social do problema da
droga a partir da opção “proibicionista”, tanto penal quanto médica. Encarna
Bodelón é autora do artigo Género y sistema penal: los derechos de las mujeres
en el sistema penal, dissertando sobre o papel do Direito Penal na construção da
exclusão feminina e delimitando a construção social do gênero e da justiça. O
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artigo recupera “histórias” sobre a criminalização feminina, dissecando estudos
empíricos sobre as mulheres estrangeiras presas na Espanha, e apresenta ao final
uma visão crítica, expondo-se as insuficiências do Direito Penal como instrumento
para a definição e a resolução dos problemas de gênero. Francesc Baratta é autor
do artigo Los mass media y el pensamiento criminológico, no qual reconstrói a
origem do relato do delito e a forma como a mass media e o positivismo criminológico
se confluíram na incorporação pelos meios de comunicação da notícia delituosa.
Recuperam-se a nova cultura do delito nos meios de comunicação, como o tema
é analisado pela “nova criminologia” e o surgimento da televisão e dos programas
de informação criminal e séries policiais. Encerra-se com uma breve referência
ao caso espanhol.
A obra se constitui em importante referência a um paradigma que rompe o
monólogo do discurso positivista, como já salientado, predominante em diversos
cursos jurídicos (seguramente não apenas no Brasil). Opta-se por uma visão
multidisciplinar, privilegiando um conceito amplo do sistema penal (sociojurídico
ou dinâmico) e enriquecendo a proposição jurídico-penal ou estática. A amplitude
dos assuntos tratados e a utilização de categorias de outras disciplinas, como a
psicologia, a antropologia, a sociologia, a ciência política e a teoria da comunicação,
propiciam farto material para se aprofundarem investigações sobre o tema.
Seguramente a obra vem, assim, se juntar a uma tradição ainda pouco difundida
no contexto espanhol e latino-americano.
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