Crônicas de um médico do sertão

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Crônicas de um médico do sertão
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Crônicas de um Médico do Sertão
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Médico do Sertão
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THS EDITORA
Textos, História e Serviço de Comunicação Ltda.
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© 2009 - Todos os direitos reservados para o autor
Editor
Lelé Arantes
Arte da capa
Cleiton Luiz Taborda
Diretora Editorial
Regina Célia Ferreira
Capa
Editoração Eletrônica
Luciana de Godoy
Kamila K. Tagliaferro
Rafael Neves Theodoro
Revisão
Maura Loria
Elma Eneida Bassan Mendes
óleo sobre a tela “Onde
nascem os gênios”, 80x60cm,
de Jocelino Soares
Organização
Maria Cecília Braga Braile
Elma Eneida Bassan Mendes
Eloíse Dóro
Braile, Domingo
Crônicas de um médico do sertão / Domingo
Braile. -- São José do Rio Preto, SP : THS
Arantes Editora, 2008.
ISBN 978-85-60397-27-3
1. Crônicas brasileiras 2. São José do Rio
Preto (SP) - História -. Título.
08-04107
CDD - 869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Crônicas : Literatura brasileira 869.93
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PREFÁCIO
Como o Dr. Braile sabe tantas coisas? Já perdi a conta de quantas vezes
respondi a essa pergunta nos últimos 25 anos. Às pessoas, digo sempre que
o Dr. Braile sabe tantas coisas porque ele, lógico, além de ter nascido muito
inteligente, tem ainda cultura invejável, raciocínio privilegiado, é um pesquisador incansável, adora ler e estudar, entre outras e muitas qualidades
que o fazem reconhecido e admirado. Mesmo assim, confesso, não dei a
todos a melhor resposta, a explicação mais completa, e o faço agora, ao
merecer, novamente, o privilégio de compor o prefácio de mais um livro
seu. Na tarefa de apresentar os motivos que o fazem saber tantas coisas,
encontro ajuda em seu autor preferido, Antoine de Saint-Exupéry, que escreveu: “Se queremos um mundo de paz e de justiça temos que pôr decididamente a inteligência a serviço do amor.” Quem conhece, mais de perto,
o trabalho e o exemplo de vida do Dr. Braile, sabe que seu conhecimento
circula do cérebro diretamente para o coração, em uma voltagem contagiante
e arrebatadora. E é a serviço do amor que está toda sua capacidade. Amor
à profissão. Seja no zelo e compaixão com os pacientes e seus familiares,
ou na preocupação, ativa, efetiva e valorosa, de transmitir experiência e
capacitação aos jovens médicos, e, ainda, na batalha diligente por mais
recursos para a Saúde. Amor à Rio Preto. Aliás, amor incondicional à cidade que ele chama de “pedaço de paraíso”, cujo passado reverencia em
histórias incríveis e relatos que avivam a memória e, por isso, mexem com
a saudade. Amor que o faz reclamar de sua gente “uma inquietação capaz
de mudar, criar e realizar uma Rio Preto próspera, renovada e agradável
para se viver”.
Porque sabe tantas coisas, Dr. Braile assume sua responsabilidade diante de sua profissão, de sua cidade, de seu próximo e, de forma implacável,
diante do futuro. Assim é que a sua visão se assemelha a mais verdades
como essas, de Saint-Exupéry:
“Ser homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção
do mundo”.
“Na vida, não existem soluções. Existem forças em marcha: é preciso
criá-las e, então, a elas seguem-se as soluções.”
Neste sentido, Dr. Braile tem sido um colaborador eficaz, um criador
talentoso, um batalhador atento e muito perseverante. Sua vida, e as crôni5
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cas deste livro, fornecem uma ótima noção do quanto um homem, que sabe
tantas coisas, precisa fazer e viver para conseguir seus ideais.
E, finalmente, para quem deseja conhecer mais sobre o saber do Dr.
Braile, fica aqui um parecer que é meu, uma impressão particular que tenho
sobre ele. A admiração que o Dr. Braile nutre pelo autor do Pequeno Príncipe passa pela coincidência de serem, ambos, escritores e pilotos, e vai mais,
e além. Trata-se de uma semelhança de alma, aspirações e sentidos, de quem
vive além de seu tempo e voa livre, acima de suas próprias angústias e até
indagações.
Dessa forma, poderia afirmar com absoluta convicção, serem, do Dr.
Braile, as seguintes palavras, de Exupéry: “o que conduz o mundo é o espírito e não a inteligência”.
Ainda quer saber como o Dr. Braile sabe tantas coisas? O melhor, então,
é seguir as próximas páginas. Elas são autoexplicativas e encantadoras.
Elma Eneida Bassan Mendes - Jornalista
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ASSIM
NASCEM OS GÊNIOS
Quando me inspirei em escrever o artigo para o jornal Diário da Região, que leva o título deste texto, eu desejei fazer um recorte na vida do
homem cosmopolita, voltar no tempo da sua infância lá da sua tão querida
Nova Aliança.
Tantos já escreveram sobre o cientista Domingo Marcolino Braile, da
sua genialidade, do seu lugar no “Pantheon” dos imortais. Do homem ligado
no mundo das válvulas e marcapassos. Da sua visão global.
Ao fazer o recorte, vi um céu de abril, azul como de todos os
outonos, as matas em flor, no ar, uma brisa fresca à sombra do frondoso
jequitibá. Na sua copa, o cantar festivo dos pássaros eram melodias aos
ouvidos dos caminhantes.
Vindos dos quintais e pomares das casas em volta, um cheiro de fruta
madura. No mamoeiro, um casal de assanhaços fazia a festa com um mamão
maduro que o dono deixou de apanhar.
As redondezas enchiam-se de um verde escuro que se iniciava no fim
da rua e perdia-se no horizonte: eram os imensos cafezais. Um verdadeiro
mar verde invadia toda a região desde as várzeas até lá no alto do espigão.
O viajante, depois da curva da estrada, avista ao longe a torre da
capela. Um pouco mais de uma vintena de casas, entre armazéns, máquinas
de benefício de arroz e café, açougue, pequenos bares. Um ponto de charretes
embaixo dos pés de murtas. No largo da capela um coreto e na esquina da
praça uma loja amarela: Casas Pernambucanas.
Assim era a pequena vila de Nova Aliança no ano de 1938. Para
orgulho de seus habitantes, a vila tinha um casal de moradores ilustre: o
médico Dr. Lino Braile e Dona Maria Neviani Braile. Italiano de nascimento,
da Calábria, Dr. Lino havia feito anos antes, a Faculdade de Medicina na
bela Nápoli. Inclusive, na entrada da cidade, uma placa diz: ‘Prima, vedere
Nápoli, dopo morire’, ou seja, “primeiro ver Nápolis, depois morrer.”
E foi neste ambiente bucólico, de uma vila de ruas descalças, de casas
com belos jardins e cadeiras na calçada que nasceu Domingo Marcolino Braile.
Cresceu como todo menino de seu tempo, livre e solto pelos campos.
Pegando, de vez em quando, “rabeira” de caminhão que passava, e, nas
noites quentes do sertão, pegar vaga-lumes, colocá-los em vidros transparentes para “alumiar” o quarto na hora de dormir. E as crianças em coros
cantavam com a aproximação dos vaga-lumes: “bagalun tem tem, teu pai tá
aqui tua mãe tamém”.
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Cresceu ouvindo ópera e grandes clássicos, gosto herdado dos pais
que, quando vindos da Itália, trouxeram na bagagem também os discos.
Estudou até o terceiro ano primário na sua terra natal. Depois, seus
pais acharam por bem mudarem-se para Rio Preto, cidade com mais recursos, pois o pequeno já mostrava sua genialidade nas conversas com adultos.
Terminados os estudos secundários em Rio Preto, parte para São Paulo
onde se forma na Faculdade de Medicina da USP, em 1962. Tornou-se pioneiro da cirurgia cardíaca no Hospital Santa Helena, no ano de 1963.
Seu gênio inventivo e seu amor pelo próximo o impulsionaram a fazer sempre mais pelo semelhante, criando e desenvolvendo técnicas cirúrgicas e produtos que salvaram e salvam muitas vidas.
Dr. Domingo Marcolino Braile, em nome da humanidade, lhe agradeço de coração.
Jocelino Soares
Artista Plástico, pós-graduando em Arte Educação, curador de Museus de São José do Rio Preto, membro da Academia Rio-pretense de Letras
e Cultura e fundador do Centro de Tradições Caipiras (CTC)
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SUMÁRIO
Primeira Parte
Crônicas da Cidade.............................................11
Segunda Parte
Crônicas do Sertão.............................................83
Terceira Parte
Medicina, Ciências e afins...................................143
Quarta Parte
Ideias e Opiniões..............................................221
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Primeira Parte
Crônicas da Cidade
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SAÚDE
E
ECONOMIA
Não sou um especialista em economia, mas entendo muito de pobres. Passei grande parte da minha vida dentro de hospitais, onde uma das
faces da pobreza se manifesta da forma mais contundente. É doloroso ver
um pai sem recursos implorar para seu filho ser atendido, ou um filho desesperado clamando por socorro ao seu pai. Quem quiser viver esta experiência, por um momento que seja, basta visitar o Pronto-Socorro do Hospital de
Base de nossa cidade. Apesar da dedicação dos médicos e de toda a equipe
multidisciplinar de saúde que atuam naquele setor, com competência e abnegação inegáveis, a demanda é muito maior que a capacidade de atendimento. Formam-se filas, internam-se pacientes nos corredores, mal acomodados em macas, à espera de uma vaga que muitas vezes demora para ser
conseguida. Não tem faltado boa vontade e esforço de todos para diminuir o
impacto desses problemas, sendo uma tônica da instituição o atendimento
humanizado e competente de todos que lá trabalham.
Mas vamos aos fatos. Por que isso acontece? Principalmente porque
faltam recursos econômicos para a saúde. Os hospitais, na sua grande maioria, vivem uma crise de proporções gigantescas e não têm condições de dar
atendimento aos muitos pobres que os procuram. Estes pobres doentes vêm
de muito longe procurar o milagroso Hospital de Base em busca daquilo a
que têm direito e que lhes é negado em suas cidades de origem. Este direito não lhes é negado por vontade dos pequenos hospitais periféricos, mas
por falta absoluta de viabilidade econômica deles. Na verdade, o Brasil
tem três vezes mais pobres do que a renda per capita faria supor (palavra
do Dr. Roberto Borges Martins – presidente do IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que não se trata de entidade privada e, sim, de
órgão do próprio governo. Tal condição reflete-se em todos os ramos de
atividade, representando um enorme fardo para a nação. Na saúde, provoca um sentimento de compaixão e revolta, pois atinge as pessoas em momento de extrema fragilização, quando por estarem doentes, mais necessitam de amparo e proteção.
Por que tudo isso acontece em um País onde não existem Furacões,
Terremotos, Tufões, Nevascas ou Vulcões? Não me sinto em condições
de analisar o problema em sua plenitude, mas gostaria de fornecer um dado
para que o leitor meditasse um pouco. À custa de uma política absurda e
antinacional, o Brasil paga só de juros 100 bilhões de dólares por ano, ou
seja, cerca de 200 bilhões de reais. Desta forma, cada brasileiro, incluindo
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recém-nascidos e velhinhos em fim de vida, paga cerca de 1.250 reais de
juros por ano, ou seja, mais de 100 reais por mês! Isso representa mais de
10% do Produto Interno Bruto (PIB) da nação. Quando sabemos que o governo investe na assistência à saúde apenas 6 bilhões de dólares (12 bilhões
de reais), representando pouco mais de 1% do PIB, fica fácil entender porque a Saúde está em crise, assim como os outros setores da economia, sem
nos esquecer da Educação, Pesquisa e Desenvolvimento. Será que não
seria conveniente diminuir o pagamento dos juros para as nações ricas e dar
um pouco de alento aos tão sofridos pobres do nosso País? Será que já não
pagamos o suficiente em dinheiro e sofrimento e está chegando o momento
de entendermo-nos como nação e não colônia? Não me atrevo a responder,
deixo a resposta para os amigos leitores.
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CAMPO
DE
AVIAÇÃO
Uma cidade que se preze tem que ter um aeroporto e Rio Preto, não
fugindo à regra, tem o seu. Estou ligado às atividades aviatórias desde 1954
e desejo, então, compartilhar um pouco deste mundo, de certa forma mágico
para alguns. Meu primeiro contato com um avião deu-se no campo de aviação que se localizava onde é hoje o Teatro Municipal. Tratava-se de uma
pista de terra batida, que se iniciava junto aos transformadores da subestação
de energia elétrica da Companhia Paulista de Força e Luz. Estes, vencendo o
tempo, ali permanecem até hoje. Essa subestação representava sempre um
grande desafio às aeronaves que faziam de nossa cidade o seu destino, pois
seus fios elétricos eram verdadeiras armadilhas para os pilotos. A pista prolongava-se por mais de um quilômetro em direção ao ponto em que estão
localizados o Riopreto Shopping Center e o Hospital Nossa Senhora da Paz.
Entre a pista e a estreita estradinha, que se transformou na importante Avenida Faria Lima, havia uma enorme erosão, que na falta de melhor nome era
chamada de buracão. Compunham ainda a paisagem três hangares cheios de
aviões e uma Estação de Passageiros, que nada mais era que uma casa com
um bar e alguns toscos bancos de madeira. Havia também, à sua frente,
árvores frondosas que, à sua sombra, abrigavam pioneiros. Eles acreditavam
em nossa cidade, fazendo deste precário campo de pouso um dos principais
pontos de convergência da aviação do Estado de São Paulo. Tanto o que
afirmo é verdade que a primeira linha regular implementada pela VASP (Viação Aérea São Paulo) teve como destino nossa cidade. Outras companhias,
como as saudosas Real, Aerovias Brasil, Sadia, etc., logo também colocaram
Rio Preto como ponto obrigatório de seus pousos e decolagens, ligando-nos
não só à capital do Estado como a muitas outras regiões do País. Ao lado
desta intensa atividade da aviação regular, os serviços de táxi-aéreo não eram
menos importantes. Foram uma das molas propulsoras do nosso desenvolvimento, levando e trazendo os desbravadores do sertão, que nas asas dos
aviões penetravam pelas novas fronteiras, abrindo fazendas, fundando cidades, levando progresso e colocando Rio Preto como centro irradiador de
toda essa atividade. Sinto saudades daquele tempo em que, de bicicleta,
fazia uma verdadeira “viagem” do centro da cidade até o campo de aviação,
seguindo por um trilho de gado, onde vacas pastavam. Passava pelas obras
iniciais do Hospital da Beneficência Portuguesa, e jamais poderia imaginar
que ali eu e alguns colegas implantaríamos um dos mais importantes Servi14
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Crônicas de um Médico do Sertão
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ços de Cirurgia Cardíaca do País. O caminho das vacas transformou-se na
Rua Antônio de Godoy, a Rodovia Washington Luiz cortou a cidade, o
Buracão desapareceu e o Campo de Aviação também.
No início dos anos 60, inaugurava-se o Novo Aeroporto, asfaltado,
com balizamento noturno e dotado de uma Estação de Passageiros em “estilo rural”. Só recentemente um Terminal moderno foi colocado em uso,
podendo tornar-se um cartão de visitas da cidade se dotado com todos os
requisitos necessários, como, por exemplo, o sistema de ar-condicionado,
prometido mas não efetivado. Além disso, nossa pista tem um comprimento
inadequado para aeronaves de grande porte. O problema poderia ser solucionado alongando-se a pista por cima da rodovia, fato comum em muitos aeroportos internacionais. Finalmente, creio que passou da hora de Rio Preto
possuir uma Torre de Controle para disciplinar o tráfego aéreo, além de auxílios a navegação compatíveis com a importância da cidade.
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LEGADO
DE
FELICIANO
Hoje quero reafirmar a importância de Rio Preto como polo de desenvolvimento e de difusão do progresso pelas rodovias que aqui se cruzam.
Com certeza foi Feliciano Salles Cunha, um grande sonhador, quem primeiro
vislumbrou a importância de abrir estradas sertão adentro para que nossa
cidade pudesse se tornar um dos maiores centros de convergência rodoviária
do Estado. Seus descendentes continuam aqui residindo e, como expoentes
da nossa melhor sociedade, são um exemplo de dignidade e de amor pela
nossa terra. O poder constituído rendeu-lhe justa homenagem ao dar o seu
nome a uma das principais rodovias que penetram no coração do Brasil.
Mas, cabe-me, agora, demonstrar-lhes como uma semente lançada com visão clara do futuro possibilitou transformar aquele sonho em realidade. Quem
poderia pensar que, passadas algumas décadas, as poeirentas ou barrentas
estradas de terra imaginadas por Feliciano seriam substituídas por importantes rodovias? São verdadeiras artérias por onde passam o progresso e o desenvolvimento que se difundem nesta vasta região. Mas estas vias de comunicação não se limitam aos confins da nossa área de influência direta – vão
muito além, ligando-nos de forma permanente e ágil com todo o País. Não
sei quantos rio-pretenses sabem que temos ônibus regulares que, partindo de
nossa cidade, vão muito longe, muito além do que a imaginação possa admitir. Vou citar alguns exemplos, não das linhas conhecidas que demandam a
São Paulo, Rio de Janeiro ou às cidades circunvizinhas do nosso Estado, mas
daquelas que nos ligam aos mais distantes rincões deste país continental.
Daqui partem ou por aqui passam ônibus que ligam:
1 - Santa Maria, no Rio Grande do Sul, com Barreiras, na Bahia.
2 - Foz do Iguaçu e Cascavel, no Paraná, com Imperatriz, no Maranhão.
3 - Rio Preto com todas as capitais do Centro Oeste: Cuiabá, Goiânia,
Palmas, etc.
4 - Pelotas, no Rio Grande do Sul, com Fortaleza, no Ceará, e Belém,
no Pará.
5 - Rio Preto com Natal, no Rio Grande do Norte.
6 - Rio Preto com Maceió, em Alagoas.
7 - Rio Preto com Recife, em Pernambuco.
8 - Rio Preto com Belo Horizonte e Montes Claros, em Minas Gerais,
e Feira de Santana e Salvador, na Bahia.
9 - Foz do Iguaçu, no Paraná, com Brasília.
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10 - Rio Preto com Brasília e Belém do Pará.
11 - Rio Preto com Porto Velho, em Rondônia.
12 - Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, com Vitória, no Espírito Santo.
Vou parando por aqui para não cansá-los, mas esta lista, apesar de
não ser completa, mostra a importância que tem nossa cidade no cenário
Rodoviário Nacional. Sinto que, muitas vezes, o rio-pretense não se
conscientiza de que não podemos pensar “pequeno”, temos que pensar “grande”, criar uma corrente positiva de otimismo e progresso para que cada vez
mais Rio Preto siga o destino que lhe foi traçado pelos pioneiros que acreditaram no seu potencial. Para o desenvolvimento de uma cidade é fundamental que ela disponha de transporte terrestre adequado. Tenho certeza de que
neste item estamos em posição privilegiada!
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A ERA
DO
SHOPPING
Não quero ser saudosista, mas, para quem passou a adolescência e
parte da juventude em Rio Preto, a deterioração do centro da nossa cidade é
deprimente. Os anos dourados foram intensamente vividos naquela área.
Ali se reuniam desde os jovens com seus “flertes” e namoros à moda antiga
até as famílias que disputavam um banco nas suas inúmeras praças. Estas
eram bem cuidadas, iluminadas e cheias de atrações que propiciavam um
ambiente alegre, seguro e acolhedor. Os cinemas, fonte de entretenimento e
diversão daquela época, também ali se concentravam e nos faziam sonhar
com filmes que deixaram marcas indeléveis em nossas memórias.
Um dia, arquitetos brasileiros pensaram em inovar, fazendo dos centros das cidades áreas de absoluto lazer. A ideia tinha um apelo teórico interessante. As ruas centrais seriam fechadas ao tráfego de veículos, deixando o
espaço reservado exclusivamente para os pedestres. Creio que o primeiro
“Calçadão” foi implementado em Curitiba e, rapidamente, disseminou-se
por todo o País. Rio Preto não fugiu à regra e passou a contar também com o
seu. Acontece que, coincidentemente, com esta ideia, rapidamente o Brasil
passou a viver a época do automóvel. As pessoas com algum poder aquisitivo aderiram ao transporte individual e passaram a frequentar, de preferência, os locais aonde fosse possível chegar de carro e estacioná-lo. Para atender a essa demanda, surgiram os shopping centers, onde estas características
foram implementadas com a criação de amplos estacionamentos.
Eis que, de repente, nossas bucólicas praças foram substituídas por
estruturas de concreto que, ao invés de árvores, têm ar-condicionado e onde
as mesmas pessoas que antes se divertiam ao ar livre, agora ali se reúnem.
Os cinemas se mudaram para dentro destas estruturas. O coreto com sua
banda, o pipoqueiro, o café da esquina, o bar com música em que os jovens
se reuniam também se deslocaram para o novo ponto de atenção e convergência da população. O que aconteceu com o centro da cidade? Foi abandonado em sua conservação. Durante a noite passou a ser reduto de mendigos
e marginais. O que poderia ser um “Shopping Mall” (traduzindo livremente
do inglês), uma alameda de comércio e entretenimento, transformou-se num
desalento para a cidade. Alguns sonhadores saudosistas, como meus amigos
e verdadeiros irmãos Pedro e Vavá Curti, acreditaram que dotando o “Calçadão” de um shopping moderno, funcional e acolhedor, pudessem reverter a
situação. Fizeram, como esta admirável família vem fazendo há muitos anos,
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desde os veneráveis Antônio e Chico Curti, com todo o amor e respeito que
têm pela nossa cidade. Preservaram a arquitetura do Cine Rio Preto, uma
marca inesquecível do nosso glorioso passado. Seu interior nada deve aos
mais sofisticados shoppings que tenho visitado no País ou fora dele. Então,
o que falta para que se possa fazer brilhar novamente a estrela do centro de
nossa cidade, revitalizando-lhe o comércio e o entretenimento? Falta o acesso fácil da população àquela área. Como transformar este desejo em realidade passa por muitas soluções, algumas mais simples outras mais complexas.
Dois pontos são fundamentais: 1) as pessoas que se deslocam de automóvel
têm que chegar até o centro; 2) devem existir áreas de estacionamento para
os veículos destas pessoas. Sem polemizar e apenas como sugestão, há muito
me persegue uma idéia que vi implantada em outras cidades, como, por exemplo, Denver, nos Estados Unidos.
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SHOPPING MALL
Diante da crônica passada, muitos rio-pretenses saudosos relembraram
os bons tempos em que tudo era mais fácil, pois as regras estavam estabelecidas
e bastava segui-las para ter certeza de estarmos no caminho certo. Assim era
com o nosso centro, onde a maior parte das atividades se desenvolviam, representando um foco de atração não só para os habitantes de nossa cidade. Visitavam-nos pessoas de toda a araraquarense para conviver com a atmosfera
moderna e acolhedora que ali encontravam. Aproveitavam para fazer suas
compras movimentando um dos mais ágeis comércios do Estado de São Paulo, do que resultou o vertiginoso progresso de Rio Preto.
Torna-se imperioso reviver o nosso centro urbano, o coração da cidade, que está mortalmente ferido e morrerá em pouco tempo se não lhe dermos alento. Temos que atrair as pessoas de toda a vasta região capitaneada
por nossa cidade para este verdadeiro shopping a céu aberto. Para isso, será
necessário facilitar-lhes a chegada e permitir que possam estacionar seus
veículos de forma conveniente. Algumas alternativas são viáveis para que
este fim possa ser atingido.
1) A construção de uma garagem subterrânea sob uma das praças
pode, a curto prazo, permitir o afluxo de compradores com poder aquisitivo
suficiente para mover novamente a máquina do comércio e do entretenimento naquela nobre área central. O custo do projeto em nada vai onerar os
cofres públicos, e produzirá empregos e renda para o município. Com a moderna tecnologia disponível, nenhum prejuízo teremos para o meio ambiente. Pelo
contrário, será possível reestruturar as praças seguindo o modelo tradicional,
como se tem feito em muitas cidades, revivendo as árvores, as flores e os
hábitos antigos, transformando-as de áreas de comércio ou antro de marginais
no centro das nossas atividades de lazer.
2) Além desta área de estacionamento, as outras já existentes adjacentes ao “Calçadão” poderiam ser melhor aproveitadas, fazendo circular
alguns micro-ônibus turísticos (com amplas janelas e entradas e saídas fáceis), que levariam as pessoas do local onde pararam seus veículos até seu
destino dentro da área central. Esses micro-ônibus circulariam de forma
ininterrupta, e em baixa velocidade, mostrando aos passageiros todas as
opções disponíveis nas belíssimas vitrines com que os lojistas procurarão
atrair os compradores. Este transporte poderia ser gratuito, estando seu
custo incluído no preço do estacionamento, ou ressarcido pelas lojas onde
o freguês tivesse feito suas compras.
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Desta forma, o “Shopping Mall” do centro da cidade seria uma atração ímpar e inovadora. Poderia também ampliar-se, crescer, tornar-se mais
alegre, mais moderno, diferente! Ficaria aberto à noite e nos finais de semana, seria visitado por milhares de pessoas e, alimentando o comércio, permitiria que este investisse em policiamento, iluminação, embelezamento, novas atrações, concertos musicais e tudo quanto pudesse atrair mais público.
Quando os estacionamentos do centro não fossem mais suficientes para conter
a enorme quantidade de automóveis que estariam demandando este moderno centro de compras, os mesmos poderiam se deslocar para áreas mais distantes, como o vale do Rio Preto. Os micro-ônibus continuariam transportando os compradores em sua contínua jornada pelo belíssimo centro de
nossa cidade. Os atuais estacionamentos poderiam integrar a desejada expansão do “Shopping Mall” do centro de Rio Preto que, por certo, ocorreria.
Alguns vão pensar que estive sonhando e ao acordar escrevi o meu sonho.
Não é verdade. Este sonho, conforme já relatei, eu o vivi em Denver, nos
Estados Unidos, e quem quiser comprová-lo, basta ir até lá para vê-lo.
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AOS OLHOS
DO
DR. XIE
Muitas vezes somos surpreendidos por observações que nos passam
despercebidas na faina do dia a dia. Nesta semana, ao contrário do que sempre acontece em nosso cotidiano, recebi a visita de um ilustre professor da
Universidade de Beijin (Pekin), capital da China. Sendo cirurgião cardíaco,
veio ao nosso país para aumentar seus conhecimentos, pois sabe do estado
de evolução que esta especialidade atingiu no Brasil. O fato em si nos enche
de orgulho e mostra que a nossa nação, apesar dos seus problemas, está na
ordem do dia, pois apresenta alternativas tecnológicas muitas vezes não convencionais, para Países em desenvolvimento como o nosso. A cirurgia cardíaca brasileira apresenta-se, sem dúvida alguma, como um marcador da viabilidade do nosso povo e desafia de frente, de cabeça erguida, as nações
assim chamadas desenvolvidas. Dr. Xie, ao escolher nossa cidade para conhecer o que aqui se faz no campo das operações do coração, foi motivo de
enorme satisfação. Quem poderia imaginar, há 35 anos, quando aqui cheguei, que um dia seríamos referência nacional, até para um professor que
vem da longínqua China? Mais uma vez ficam demonstradas a capacidade
da nossa gente e o brilho da nossa cidade. Depois de passar conosco vários
dias assistindo a operações, o Dr. Xie demonstrou seu reconhecimento ao
trabalho aqui realizado, solicitando permissão para enviar-nos dois dos seus
melhores assistentes, já com o grau de mestres, para estagiarem conosco por
um ou dois anos e levar para seu país toda tecnologia desenvolvida em Rio
Preto na área cardiológica. Com certeza, o convívio com colegas que virão
do outro lado do mundo será muito salutar também para nós, que com eles
teremos oportunidade de conhecer outras realidades.
Assim é que entendo o mundo globalizado, com trocas de experiências e vivências entre nações que estejam no mesmo patamar, no sentido de
encontrar soluções para problemas comuns, com grandes benefícios mútuos.
Mas o Dr. Xie não se limitou ao campo médico. Perguntou, observou, enfim,
absorveu o máximo de informações sobre o nosso modo de vida, nossas
aspirações, encantos e desencantos. Ficou surpreso e encantado com os jardins do canteiro central da Avenida Bady Bassitt. Admirou-se ao saber que
aquelas belas plantas e lindos gramados são mantidos pelos cidadãos que
têm suas casas ou seu comércio nas áreas circunvizinhas, numa demonstração de amor pela cidade e pelo belo. Fiquei, mais uma vez, orgulhoso e
consciente de que estamos no caminho certo para demonstrar ao mundo que
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aqui, em plena zona tropical e subtropical, está surgindo uma nação que dará
exemplo e rumo ao mundo no próximo milênio. Não podemos abater-nos
com problemas conjunturais que surgem de quando em quando, pela inépcia
dos nossos dirigentes maiores ou pela ganância das nações mais poderosas.
Nosso futuro é promissor porque temos reservas naturais incomensuráveis e
um povo ordeiro e bom que jamais se deixou levar por lutas fratricidas, e
nunca procurou fazer valer sua força contra quem quer que seja. Existe um
desequilíbrio social apavorante no momento, mas ele será superado, uma
vez que é provocado muito mais pela nova ordem internacional que nos é
imposta e só favorece os países ricos, do que por problemas internos. O
convívio com meu colega chinês me fez ter a certeza de que o melhor lugar
do mundo é aqui!
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A SOCIEDADE DOENTE
Na crônica anterior, salientei o orgulho que sentimos da nossa cidade, quando pessoas que nos visitam ficam admiradas com o progresso e a
beleza que ela apresenta. Agora, desejo analisar dois pontos que me parecem
fundamentais.
1 - Apesar da grande maioria dos rio-pretenses apresentar um padrão
de vida que nada deve àquele dos países desenvolvidos, esta não é uma
constatação universal. Pelo menos 5% ou 6% dos nossos habitantes vivem
em condições miseráveis. Apenas como exercício de raciocínio, seria interessante atentar para um cálculo bastante simples que fiz. Considerando que
nossa cidade tem cerca de 400 mil habitantes, facilmente chegaríamos à
conclusão de que 20 mil pessoas vivem aqui abaixo da linha da pobreza
(recebem menos de R$ 150,00 por família, por mês)! Para que saiam desta
condição, bastaria que estas famílias recebessem R$ 300,00 por mês ou R$
3.600,00 por ano. Isto representaria um investimento mensal de 3 milhões
de reais, quantia que parece imensa! Mas, se dividirmos este montante pelos
300 mil habitantes “ativos” que se encontram em melhores condições, veremos que uma contribuição de R$10,00 por cidadão por mês seria suficiente
para que tudo se modificasse. Esse pequeno investimento não seria feito na
forma de esmola, e sim de fomento para o desenvolvimento das pessoas
carentes. Como fazê-lo é um assunto complexo que tem sido estudado por
todos aqueles que se interessam pelo progresso das nações de forma homogênea. Aliás, cada um de nós, brasileiros ativos, já paga, em média R$400,00
mensais a título de impostos, taxas e outras contribuições que foram criadas
por nossos governantes para, em tese, equilibrar e ajustar tais profundas e
desesperadoras diferenças sociais. Entretanto, todos nós também sabemos
que esta imensa quantia arrecadada não chega ao seu destino certo.
Gostaria apenas de lançar a ideia e deixar uma singela mensagem: a
simples união dos esforços de uma coletividade pode resultar no bem de
todos e no equilíbrio da sociedade. De nada adianta estarmos bem vestidos,
num traje “chic” ou até a rigor, num “smoking” com gravata da última moda,
penteados e perfumados em uma festa super “badalada”, se tivermos um
dos nossos pés gangrenados. É esta a comparação que faço com a sociedade:
de nada adianta você estar bem se seu irmão está sofrendo a amargura da
fome, do desemprego, da falta de instrução, da falta de oportunidades. A
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sociedade é um conjunto de órgãos como o corpo humano, e quando um dos
seus membros está doente, ela adoece como um todo. Assim, quando a sociedade está doente, você também está doente! As consequências desse
desequilíbrio são o motivo do segundo ponto que desejo considerar.
2 - Por que, apesar de todo nosso progresso e de todo o aparente
bem-estar da nossa população, temos que conviver diuturnamente com mortes violentas, assaltos, roubos, sequestros, drogas e atos de vandalismo? Seriam expressões do homem primitivo a gritar por socorro diante de uma sociedade que o marginaliza, desconsidera e despreza? Seria culpa dos governantes,
que não têm sensibilidade para ver que o miserável não tem nada a perder, e
por isso não se importa nem em perder a própria vida? Ou seria culpa de
cada um de nós, pois não somos capazes de ver e enxergar o abismo que nos
separa daqueles que, por falta de oportunidades, tornam-se párias sociais,
porque nada mais lhes resta? Pense um pouco em seu irmão que sofre, quem
sabe assim você poderá ao menos compreendê-lo.
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RETRATO
DA
ECONOMIA
Acredito que os rio-pretenses, nascidos ou adotados, preocupam-se
com a evolução da nossa cidade e as oportunidades que ela possa continuar
oferecendo. Rio Preto ocupa uma posição de destaque dentro do cenário do
Estado de São Paulo e mesmo do Brasil. O progresso, tanto no campo material
como na qualidade de vida, tem sido aliado permanente a atrair quantos acreditem que tais requisitos são fundamentais como “polos de desenvolvimento
sustentado”. Apesar disso, às vezes, a finalização dos desejos acaba não sendo
coroada de êxito, por influência de fatores nem sempre confessáveis.
Consta que empresas determinadas a aqui desenvolverem suas atividades acabam desistindo da ideia pelas dificuldades burocráticas e outras, muitas vezes intransponíveis, por absoluta falta de vontade política
daqueles que deveriam, ao contrário, facilitá-las. Assim, empresas aqui localizadas têm abandonado nossa cidade por encontrarem dificuldades de
todo gênero, desistindo de prosseguir com suas atividades. Falta de um
mínimo de incentivo ou apoio. Quando analisamos os “Índices do Potencial Mercadológico”, renasce a esperança de mantermos nossa posição no
“ranking” das cidades, como também melhorá-la, se todos estivermos
motivados. No estudo publicado pelo Diário da Região no dia 22 de agosto
de 1999, e por nós comentado na crônica anterior, encontramos alguns
dados interessantes. No estudo, realizado pela Targetmark, a população
foi dividida em classes: A1 - A2 - B1 - B2 - C - D e E, de acordo com seu
poder aquisitivo. Sabe-se também que no Brasil serão gastos com compras
400 BILHÕES de dólares no ano corrente. Em Rio Preto, a população
urbana gastará 1,31 BILHÕES de dólares, ou seja, cerca de 2,6 BILHÕES
de reais. Acontece que a grande parcela destas compras será realizada pelas classes A e B. A classe C tem uma participação menos expressiva e,
infelizmente, as classes D e E pouca capacidade apresentam. Segundo a
pesquisa, temos 5,89% da população nas classes A1-A2 contra 3,88% para
as cidades de mesmo porte. Na classe B1-B2, encontram-se 26,6% dos riopretenses contra 19% em outras cidades. Na classe C, temos 42,3% de
habitantes, enquanto a média é 34,9%. As classes D e E representam 25,1%
das pessoas que aqui moram, enquanto a média nacional atinge a enorme
cifra de 46,51% (quase a metade dos 160 milhões de brasileiros).
Acredito que neste ponto o leitor já entendeu aonde quero chegar.
Temos um bom contingente das classes A e B que são responsáveis por
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manter ativo o comércio e os serviços. Contudo, a classe C é a que predomina. Felizmente, as classes D e E representam apenas 25,1% da nossa população, ou seja, praticamente a metade da média nacional. Diante disso, fica
fácil entender que temos que reverter o maior número possível do contingente da classe C para a classe B, e assistir os habitantes das classes D e E
com programas que lhes permitam desenvolvimento. Quanto à reversão da
classe C para a B, basta desenvolver o setor industrial e de serviços para que,
num “passe de mágica”, estas pessoas mudem rapidamente de status. Temos
15.249 empresas, a metade delas no setor comercial, um terço no setor de
serviços e apenas 13% no setor industrial. Quando analisamos os dados nacionais, vemos que o consumo está concentrado nas cidades que têm maior
proporção de empresas em relação à população. De forma simplista, bastaria
que nosso parque industrial dobrasse de tamanho para que a posição
socioeconômica de Rio Preto pudesse ser comparada à dos países desenvolvidos. Ficam o alerta e a sugestão para os responsáveis pelos destinos de
nossa cidade e para todos que amam Rio Preto.
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A CARTA
DE
IDINEY
Nas últimas duas crônicas, procurei desenvolver alguns raciocínios
sobre nossa estrutura socioeconômica, mostrando todo o potencial de Rio
Preto no contexto do Brasil. Creio ter ficado claro que temos uma posição de
destaque, tanto em âmbito estadual como nacional, que nos enche de orgulho. Somos o exemplo de uma cidade cravada no interior do País, que ainda
preserva boa qualidade de vida e oportunidades de progresso para seus habitantes. Apesar de eventuais falhas ditadas pelas características de polo de
desenvolvimento acelerado, nossos índices sociais suplantam aqueles de
muitas capitais. Logicamente temos que estar permanentemente atentos para
que não ocorra aqui a deterioração que assola muitos centros que outrora
foram o ponto de convergência daqueles que almejavam por melhores oportunidades. Talvez, por excesso de otimismo, ou pelo desejo incorrido de solucionar os problemas, declarei que seria muito fácil transformar boa parte
da sofrida classe “C” da nossa cidade em habitantes classe “B”, com melhor
qualidade de vida e maior poder aquisitivo, movimentando com energia a
engrenagem do desenvolvimento. Para tanto, bastaria um esforço conjunto
de todos, autoridades e cidadãos, no sentido de dotar nossa cidade de mais
indústrias e mais empresas de serviços. Desta forma, o desemprego e o
subemprego dariam lugar ao emprego formal e ao progresso econômico e
social. Parece, contudo, que as coisas não são tão fáceis como imaginei.
Recebi um e-mail do leitor e amigo Idney Favero que transcrevo na íntegra
para que sirva de alerta e reflexão para todos nós.
“Caro Prof. Dr. Braile:
Inicialmente, gostaria de parabenizá-lo pelos seus artigos e confessar-lhe que tenho pelo Sr. uma
profunda admiração e respeito. Com os olhos de estudante de economia na PUC de São Paulo há mais de 20
anos atrás, ainda procuro as minúcias dos gráficos e estatísticas como aquela publicada pela Target em 22/08/
1999 ao que o Sr. se refere. Daquele emaranhado de
números e dos 21 itens de consumo por perfil de domicílios, podemos notar que a classe denominada A1 consome em alimentação domiciliar 2,06 vezes mais do que
a classe C e esta, por sua vez, 2,04 vezes mais que a
classe D. Esta relação não exorbita e para padrões de
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terceiro mundo é razoável. Nos itens 15 e 16 da pesquisa, quando trata de gastos com livros, material escolar,
matrículas e mensalidades, inicia-se a deterioração, pois
a classe A1 gasta 26 vezes mais que a classe C e esta, 3,2
vezes mais que a classe D. Mas onde a realidade é realmente assustadora são nos itens higiene, gastos com
medicamentos e outras despesas com saúde. Enquanto
em cada domicílio da classe A1 gasta-se em média US$
4.810, nos da classe C e D valor se reduz a US$ 93 e US$
90, respectivamente, portanto, a espantosa quantia de
51,7 vezes mais. A distância da classe B para a C neste
item é de 20,7 vezes. Caro Dr. Braile, talvez estes números possam contribuir com suas pesquisas e certamente
estou olhando além deles para que possa discordar de
um parágrafo de seu artigo que diz ‘para a reversão da
classe C para B, basta desenvolver o setor industrial e
de serviços para que, num passe de mágica, estas pessoas mudem de status’, e citar o economista Nassau Senior
que em 1831 escreveu ‘A natureza decretou que o caminho para o bem invariavelmente passa pelo mal e que
não haverá melhora alguma em que a vantagem não esteja acompanhada pelo sofrimento parcial’.
Atenciosamente, Idney Favero”
Fica claro que o problema da pobreza, como já afirmei em uma das
crônicas anteriores, é muito complexo e passa, sem sombra de dúvida, por lutas
e sofrimentos, além da necessidade imperiosa de educação e muita doação (OU
MUITO EMPENHO?).
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Domingo Braile
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A BOCA
E OS
OLHOS
Penso ser importante voltar ao assunto do poder de compra da população, não segundo sua classe social, mas de acordo com as cidades em que
vivem. O que tem acontecido é que os recursos econômicos têm se concentrado de forma preponderante nas capitais. Assim, a capital do nosso Estado
predomina de modo isolado, trazendo grandes prejuízos para todo o interior,
que sempre foi a mola mestre do desenvolvimento sustentado. A cidade de
São Paulo, pela primeira vez na história e apesar do seu gigantismo, abriga
menos população que o resto do Estado. Mas, apesar disso, continua recebendo as mais polpudas verbas, que nem sempre são bem empregadas. Quando
se analisa o poder de compra, a diferença entre os habitantes da Capital e os
demais do Estado é mesmo brutal. Enquanto os habitantes da cidade de São
Paulo têm um poder de compra fantástico de 10,9 (calculado pela Targetmark),
cidades como Rio Preto ou Ribeirão Preto têm um índice 20 vezes menor.
Estas cidades ocupam posição de destaque em relação às demais do interior,
mas seus marcadores são ridículos quando comparados com os da grande
metrópole. Em resumo, o que faz o interior ser pobre é a capital do Estado,
grande sorvedouro dos recursos disponíveis, sem porém oferecer qualquer
vantagem em qualidade de vida ou segurança.
A política municipalista desapareceu há muito tempo, e acabamos
sendo considerados cidadãos de “Segunda Classe”. Para a capital do Estado,
“tudo”, para o interior, “nada”. Vou dar-lhes um exemplo dentro da área da
saúde. Apesar do interior ter uma população maior que a da Capital, ao ser
distribuída a verba da saúde, 70% desta destina-se à Capital e apenas 30%
para o sofrido interior. Existe mais um agravante: cerca de 40% da população da Capital conta com algum convênio privado, enquanto no interior este
número mal alcança a cifra dos 10%. Por que ocorre esta distorção? Porque
a boca fica perto dos olhos e o governador mora na Capital! Desta forma, ele
procura resolver os problemas que estão mais perto dos seus olhos. Se um
paciente de Cassilândia quiser ser tratado em Rio Preto pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), surgirão mil dificuldades. Se ele for para São Paulo, nem vão
perguntar-lhe de onde vem, pois os hospitais de São Paulo “tudo podem”. O
que acontece é que as pessoas acabam indo para a Capital, e por lá ficam,
porque é lá que as oportunidades se concentram. Creio que nossos políticos
e pessoas influentes deveriam atentar para estes fatos, e fazer valer o nosso
direito a ter progresso, educação, saúde e cultura no mesmo nível com que
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Crônicas de um Médico do Sertão
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são beneficiados os cidadãos “chapa branca” da Capital. Citei apenas um
exemplo na área da saúde, mas existem muitos outros, ou você, prezado
leitor, não sabe que paga para que seu conterrâneo de São Paulo use o caríssimo metrô. Este é deficitário e acaba sendo sustentado por você, que está
aqui, na base, produzindo alimentos a preço vil para manter uma política de
estabilidade monetária mentirosa.
Quem sabe um dia as coisas mudem e nós possamos demonstrar do
que somos capazes, se nos forem dadas as oportunidades a que temos direito
e merecemos. Aí está o Hospital de Base da Faculdade de Medicina de Rio
Preto, provando que somos competentes e podemos atender 100 mil pacientes por mês, com qualidade incomparável, a um custo 10 vezes menor que
aquele consumido nos hospitais da Capital. Amamos Rio Preto e devemos
continuar lutando pelo direito que temos a uma cidade progressista, e que
mantenha a qualidade de vida que se espera para o próximo milênio.
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Domingo Braile
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PENSAR GRANDE
Rio Preto é uma cidade que vive principalmente dos serviços que
presta à comunidade. Este é o setor que movimenta nossa urbe, com suas
clínicas, escolas, escritórios de advocacia, construtoras, assessorias contábeis,
hotéis, restaurantes e um bem desenvolvido comércio varejista. Talvez tenha sido esta a nossa vocação e sempre os empresários entenderam que –
pela posição geográfica que ocupa – a cidade responderia de forma adequada aos investimentos empregados nestas áreas. Agora mesmo, vemos a construção de vários hotéis de médio e grande porte a assinalar a confiança que o
setor privado tem em nosso desenvolvimento como centro de região. Não
me canso de procurar demonstrar que temos um potencial enorme para ocupar, cada vez mais, uma posição de destaque no cenário do Estado e da
Nação. Apesar de todos os problemas econômicos de forma geral, e da grande depressão do setor agropecuário - principal sustentáculo da nossa atividade - continuamos crescendo em tamanho e qualidade.
A nossa região é constituída por cidades de pequeno e médio porte,
mas todas com características de progresso e desenvolvimento econômico e
social dificilmente alcançados em outras partes do nosso país. Cito o exemplo de Catanduva, que, com uma administração enxuta e dirigida para o seu
desenvolvimento social, conseguiu destaque nacional por apresentar a menor mortalidade infantil em todo o Brasil. As outras cidades da região, em
um setor ou outro, também se destacam, cada uma delas orientando-se para
o ponto que possa ser-lhes mais favorável. Paulo de Faria investe no turismo, e tem planos arrojados para sediar a parte náutica do nosso querido
Palestra. Dedica-se também, com todo empenho, a fazer do rio Grande e sua
represa um ponto de atração nacional. Temos em Potirendaba uma das maiores indústrias de refrigerantes do Estado, demonstrando exemplarmente a
força da indústria no interior. Fernandópolis, Votuporanga, Jales e outras
cidades têm investido maciçamente no ensino. Tenho notícia que está em
fase final de estudos a implantação de uma Faculdade de Medicina em
Fernandópolis. Além disso, a nossa região tem uma reforma agrária natural,
pois cada propriedade agrícola ocupa, em média, uma área de 35 hectares,
fazendo de cada proprietário o dono de seu próprio chão e de seu destino.
A pergunta que se nos apresenta é: como fica Rio Preto neste contexto? Terá condições de manter sua liderança na área que se inicia na média
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araraquarense e se estende até Cuiabá e seus confins? Levamos alguma vantagem com o advento da ponte rodoferroviaria de Rubinéia, ligando-nos fisicamente ao Mato Grosso, e colocando-nos em posição privilegiada para sermos a capital, não de uma região restrita, mas o centro de convergência de
pelo menos quatro Estados da Federação. A tarefa não é simples: liderar
cidades pequenas com pouco desenvolvimento e escassa criatividade é fácil.
Tornar-se a cidade líder de centros também desenvolvidos é outra história.
Vejo os empresários com desejo e disposição de pagarem o preço para manter a merecida hegemonia. Não posso dizer o mesmo do poder público, que
ao longo dos últimos anos tem se mostrado apático e com os olhos voltados
para o próprio umbigo. Entendem a cidade como um acampamento, e não
um centro urbano atrativo moderno e resolutivo. Nossos políticos estão preocupados com o varejo e se esquecem do atacado. Ficam empenhados em
tapar buracos, ou discutir o óbvio em querelas pessoais inúteis, quando deveriam pensar maior, estender seus horizontes e desenhar uma cidade com
foros de primeiro mundo. Alguém responderá que progresso, desenvolvimento
e liderança passam por recursos econômicos, que são escassos em nossa
Prefeitura, ou, em outras palavras, falta dinheiro! Eu digo que o que nos
falta não é dinheiro e sim criatividade, visão ampla e amor pela cidade para
colocar os interesses de Rio Preto acima dos interesses políticos ou econômicos individuais. Para mim, não existe explicação para o fato do nosso planetário, com todas as suas dependências e equipamentos, estar abandonado
ao destino da destruição. Ali foi empregado dinheiro público, o nosso dinheiro, e apesar de estar pronto para funcionar, está se deteriorando. Será
que ninguém entende que este planetário, único da região, seria uma atração
ímpar para os habitantes de todo o “nosso” interior? Será que não entendem
que as pessoas vindo a nossa cidade movimentam os bares, restaurantes,
hotéis, meios de transporte, etc.? Será que não entendem que um centro de
convergência se estabelece pelas oportunidades de compras, negócios, aprimoramento, ensino, atendimento, serviços e lazer que oferece?
Citei apenas o exemplo do planetário. Existem muitos outros em Rio
Preto, como a própria represa municipal, a Swift e o Centro de Eventos, que
poderiam ser melhor explorados. Por que não passar alguns deles para a iniciativa privada, sem muita discussão, simplesmente para fazê-los funcionar?
Atrairiam para Rio Preto pessoas que, de outra forma, acabam indo para
cidades concorrentes ou para a capital do Estado (grande sorvedouro dos
recursos públicos). Vamos pensar grande, deixando de lado os interesses individuais para colocar, acima de tudo, o interesse coletivo. Com certeza, as
gerações futuras vão nos cobrar as condutas que adotarmos hoje.
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Domingo Braile
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PAÍS
DE
SOBREMESA
Apesar de procurar concentrar-me neste espaço à observação dos
fatos que são gerados pelo dia a dia de nossa cidade, hoje quero conversar
um pouco sobre a situação do nosso país. Não sei por que, de repente, tive a
sensação que jamais deixamos de ser uma colônia dominada por nações mais
fortes, que nunca permitiram que nossa personalidade como país pudesse se
manifestar em toda sua plenitude. Passaram-se 500 anos desde que os portugueses aqui chegaram e iniciaram o processo de colonização de uma nação
que já existia com seus índios a se autodeterminarem. O processo jamais
parou. Estão sempre tentando colonizar-nos à moda deles, não em nosso
benefício, mas simplesmente para impor um comportamento que não é o
nosso. Evidentemente, este tipo de domínio embota a mente mesmo dos
mais esclarecidos, atingindo a todos, inclusive o Presidente da República.
Talvez seja conveniente, ou próprio, lembrar duas passagens do grande escritor Oswald de Andrade (1890-1954), um dos baluartes da Semana de
Arte Moderna (1922), que soube muito bem retratar esta nefasta herança
colonialista de que somos vítimas. Assim ele definiu a chegada dos nossos
descobridores à então “desconhecida” terra, que viria mais tarde chamar-se
Brasil, não sem antes ter passado por outros epítetos. Mas vamos aos versos
simples e contundentes do nosso poeta Oswald de Andrade:
“Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português”
Continuamos a vestir-nos como os americanos do Norte ou os europeus das nevascas. A música brasileira, tão rica e bela, quase não mais é
ouvida em nossas rádios, e os programas de televisão, quando não são puros
enlatados americanos, não passam de imitações de fontes estrangeiras. Existem exceções elogiáveis, mas que aí estão apenas para confirmar a regra. No
campo científico, ficamos amordaçados. O Brasil contribui com menos de
1% da pesquisa mundial e o quadro tende a piorar, uma vez que o incentivo
à pesquisa tem diminuído de forma vergonhosa neste governo neoliberal,
comandado por um presidente com ares de professor universitário, mas re34
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fém dos compromissos internacionais. Tais compromissos o obrigam a pensar apenas em como pagar os juros dos investidores oportunistas, que saqueiam nosso país em mais de 100 bilhões de dólares anuais. Desta forma,
não sobram recursos para gerar progresso, empregos, bem-estar social e pesquisas autóctones. Ainda tentam convencer-nos de que as poucas pesquisas
aqui realizadas só têm impacto quando são publicadas nas revistas científicas editadas pelas nações “desenvolvidas”. Esta atitude é a mesma que colocar um simples mortal a lutar contra um Mike Tyson. Trata-se de uma luta
desproporcional, pois competimos com cientistas que têm à sua disposição
enormes quantidades de dinheiro, e recursos materiais e científicos de toda
ordem, além da proteção de seus governos. Mesmo assim, existem aqui demonstrações de competência e criatividade que deveriam ser valorizadas.
Dou como exemplo a criação pela FAPESP e BIREME do Banco de Dados
(http://www.scielo.br), que contempla um grande número de revistas científicas da América Latina e do Caribe, que é a nossa verdadeira área de
influência (a nossa praia), onde somos reconhecidos, pois não será na “praia”
do “Tio Sam” que irão nos dar a oportunidade que merecemos.
A outra passagem do acadêmico Oswald de Andrade a que quero
referir-me resulta do comentário que ele escreveu em 1948 a respeito da
morte de Roberto Simonsen (inspirador de Getúlio Vargas na política de
substituição das importações). Assim ele se expressou: “Sem Simonsen, seríamos não só o país de sobremesa que éramos – produzindo frutas, açúcar e
café – mas também a própria sobremesa dos banquetes imperialistas”. Após
mais de 50 anos continuamos na mesma: somos produtores de sobremesa, se
tanto, nossos produtos industrializados, embora tão bons ou melhores que
seus concorrentes, dificilmente são aceitos nos mercados internacionais de
primeira linha. Nossa carne bovina é considerada contaminada, e nosso suco
de laranja paga uma taxa alfandegária exorbitante para entrar no mercado
americano. No entanto, um grande número de produtos estrangeiros manufaturados entra em nosso país sem pagar qualquer imposto, e o que é pior,
pasmem, senhores leitores, os produtos similares produzidos no nosso país
estão sujeitos a encargos escorchantes.
Recentemente, fui recebido (acompanhado do Deputado Edinho
Araújo) em uma audiência pelo ministro Alcides Tapias, que entendeu muito bem a minha explanação a respeito dessa absurda distorção. Prometeu
providências urgentes. Espero que estas ocorram antes que outros 50 anos
decorram. Finalizo com uma pergunta: somos ou não somos uma colônia?
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Domingo Braile
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RIQUEZA
E
POBREZA
BERLIM - Pela “mágica” da Internet, esta crônica, escrita aqui em
Berlim, chegará aos leitores no sábado. Aproveitei esta longa viagem para ler
um livro que recomendo para todos aqueles que desejam saber um pouco da
História da Civilização. O livro interessa-nos particularmente porque trata
da Riqueza e Pobreza das Nações. Seu autor é David S. Landes, professor da
Universidade Harvard, em Cambridge, USA. O próprio título explica o seu
conteúdo: A Riqueza e A Pobreza das Nações – (porque algumas são tão ricas
e outras são tão pobres). Está na terceira edição em português, tendo sido
publicado em inglês, em 1998, com o título: The Wealth and Poverty of Nations.
A leitura chamou-me a atenção, pois, ao chegar a Berlim, fiquei admirado
com o progresso vertiginoso que a cidade apresenta e que salta aos olhos do
visitante. Estive aqui há dois anos e, neste período, a evolução foi espantosa. Acredito que em nenhum lugar do mundo exista um número tão grande
de construções e reconstruções como as que aqui se podem observar. Uma
verdadeira selva de gruas, guindastes e torres erguem-se contra os céus a
provar que o desenvolvimento, o progresso e a riqueza moram nesta cidade.
Visitei-a algumas vezes antes da “Perestroika” (a abertura da Rússia para o
Ocidente ), e logo depois da queda do muro de Berlim em 1985. O ambiente
era desolador, principalmente na parte oriental, que assemelhava-se a uma
cidade fantasma, sem vida, triste e parada no tempo. Quanta diferença!
Hoje existe aqui uma efervescência de progresso e desenvolvimento incomparáveis. Estou hospedado no Hotel Adlon, que havia sido no
passado sede de encontros memoráveis de políticos, magnatas, reis e sultões. Foi completamente destruído durante a II Guerra Mundial, restando
dele apenas escombros. Hoje voltou ao seu antigo “charme” completamente reconstruído, modernizado nos mínimos detalhes, porém conservando sua arquitetura e “atmosfera” dos anos trinta. Incomparável demonstração da determinação de um povo que soube valorizar a sua cidade e
fazê-la brilhar novamente. No caminho para o Hospital Charitè, um dos
mais tradicionais do mundo, passo pela área que foi outrora o espaço proibido limitado pelo Muro de Berlim. Novas surpresas! São construções gigantescas, com desenho arquitetônico avançado, a desafiar a imaginação
do visitante! Parques belíssimos, com muitas árvores e jardins encantadores, que mostram a preocupação com o verde e o bem-estar dos habitantes.
A implantação, revitalização e conservação dos parques e jardins foram
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Crônicas de um Médico do Sertão
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tão enfáticas que Berlim, antes uma cidade fria e triste, recebe hoje o epíteto
de Cidade Verde. O Hospital, que foi também destruído, hoje volta a ter
seu antigo brilho. Participo de uma reunião no laboratório do prof. Virchoff,
patologista do século passado, um dos introdutores da moderna Medicina.
Quanta história para ser revivida. Para deixar-nos ainda mais sensibilizados, uma das salas foi conservada no estado lastimável que se encontrava
logo após os bombardeios. Reforçaram a estrutura por fora, mas o interior
remete-nos ao horror da guerra com todas as nefastas consequências, que
jamais queremos ver repetidas.
Mas, afinal, qual o significado desta minha divagação a respeito de
uma cidade tão distante da nossa Rio Preto? Foi meu desejo apenas chamar
a atenção da nossa população para a obrigação de cada um de nós para com
a cidade, fazendo-a cada vez mais bonita, mais conservada e mais verde.
Entendendo que ela nos pertence, assim como nós pertencemos a ela, e que
este vínculo não pode ser desfeito. A riqueza e a pobreza das nações, assim
como das cidades, dependem das pessoas que nelas habitam.
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Domingo Braile
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IBORUNA?
Sinto-me muito à vontade ao falar de Rio Preto, de suas qualidades e
também de seus defeitos. Nasci aqui neste município, em verdade, na pequena Nova Aliança, quando era ainda um distrito de nossa cidade. Bons tempos aqueles quando tudo estava por ser feito, mas havia um impulso enorme
para as realizações. Rio Preto dominava geográfica e politicamente uma região
enorme, que era limitada principalmente pelos rios que cortam o norte do
Estado de São Paulo, ou seja: o Tietê, o Grande e o Paraná. Até hoje é esta a
nossa região de influência, onde se destacam cidades com excelente qualidade
de vida. Tanto isso é verdade que, na recente classificação das melhores cidades do Estado de São Paulo para se viver, nossa região ficou em segundo
lugar, perdendo por décimos para a região de Araçatuba. Rio Preto, como cidade, ocupa o 26o lugar, mas, como já foi comentado pelo meu grande amigo
Orlando Bolçone, consideradas as grandes cidades do interior, só perde para
Campinas. Estamos, portanto, em 2o lugar no Estado (estou excluindo São
Caetano por alocá-la como componente da “Grande São Paulo”). Assim, ocupamos uma posição de destaque no cenário do País.
Contudo, apesar dessas qualidades, não temos sido suficientemente
hábeis para transformar esta realidade em vantagem para nossa cidade. Rio
Preto continua sendo uma ilustre desconhecida pela maior parte dos brasileiros. Tenho sido “vítima” desta discriminação. Frequentemente, ao declarar nos “check-in” das companhias de aviação ou de ônibus que meu destino
é São José do Rio Preto, o atendente, de forma insistente, pergunta se não se
trata de Ribeirão Preto. Nos planos de voo, nem se diga. Ao preenchê-los e
colocar Rio Preto como ponto final da rota, sou sempre surpreendido pela
mesma frase: autorizado seu nível 100, com destino a Ribeirão Preto. Dias
destes, durante apresentação da peça “O Crime do Dr. Alvarenga”, aqui em
Rio Preto, com o excelente Paulo Autram, os artistas agradeceram emocionados a “calorosa acolhida que tinham recebido da gentil população de
Ribeirão Preto”... Foram vaiados, o que não deixa de ser uma grosseria, mas
me senti vingado! Poderia continuar citando um sem número de exemplos,
geralmente quando me perguntam onde fica nossa cidade, digo que fica perto de Catanduva ou Barretos, que evidentemente todos conhecem.
Não sei o que poderíamos fazer para que nossa cidade tivesse sua
“marca registrada”, e pudesse ser conhecida e reconhecida como o excelente
centro de ensino, comércio e serviços que é. Uma idéia não convencional,
que às vezes me passa pela mente, seria mudar-lhe o nome para Iboruna (Rio
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Preto em Tupy-Guarany), como já foi sugerido por alguns puristas, ou talvez
São José, simplesmente (apesar deste epíteto já ter sido “roubado” por São
José dos Campos). Parece que o assunto carece de importância, mas isto não
é verdade. Se desejamos continuar com a nossa liderança, mantendo qualidade de vida, temos que fazer “marketing” para atrair mais indústrias, mais
serviços, mais escolas e oferecermos os empregos e oportunidades que nossa população merece e tem direito. Deixo a sugestão para que este aspecto
tão importante na sociedade moderna não seja negligenciado e nem traga
arrependimentos futuros. Vamos fazer uma campanha em nível nacional,
mostrando quem somos e a que viemos, para não continuar a sermos confundidos com outras cidades. É de suma importância que tenhamos nossa
própria personalidade, para mostrar ao Brasil que aqui pulsa o progresso, o
desenvolvimento e a oportunidade de vida com qualidade. Desta forma,
geradores de conhecimentos, de trabalho e de cultura, ao abandonar cidades
deterioradas, como a capital do nosso Estado, possam para aqui mudar-se e
ajudar-nos a construir a cidade que todos desejamos.
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O CÉU
DE
BERLIM
Tenho certeza de que existe uma consciência coletiva de que somos
responsáveis diretos pela qualidade de vida e pelas oportunidades que Rio
Preto irá oferecer às futuras gerações. Isso ficou ainda mais certo para mim
ao receber o e-mail de Fernando Constantini Gomes e de sua esposa Carla.
Ambos encontram-se em Dallas, Texas, nos Estados Unidos da América do
Norte, onde leram as minhas crônicas pela internet. Estão lá vivendo a experiência maravilhosa de terem sua primeira filha, a adorável Gabriela, que
nasceu no dia 12 do mês que passou. Assim escreveu o Fernando: “Apenas
para finalizar, gostaria de dizer-lhe que seu amigo, meu pai, estaria muito
orgulhoso em vê-lo colocar-se como um espadachim em defesa da nossa
cidade, a qual, ele também, incansavelmente se punha a defender...”.
Fernando é filho do Dr. Edson Gomes, meu dileto amigo e companheiro de
tantos anos na luta pela implantação da Cirurgia Cardíaca em Rio Preto. O
Edson não está mais fisicamente entre nós, mas seu espírito brilhante continua a iluminar nosso caminho. Fernando é também neto do grande jornalista
Leonardo Gomes, incansável defensor de nossa cidade pelas páginas do
matutino A Notícia, que dirigiu com amor e competência durante muitíssimos anos. São pessoas que ajudaram a fazer a história de nossa cidade, e que
jamais poderão ser esquecidas.
Feita esta introdução, mudo um pouco o rumo destas crônicas para
não cansá-los. Estive recentemente na Alemanha, participando do julgamento
do prêmio Rudolf Virchow, o que representou um dos pontos altos da minha
carreira acadêmica. Mas nem só de trabalho vive o homem, e eis que, entre
uma reunião e outra, surge um domingo ensolarado, apesar da temperatura
de 5 graus centígrados, que nos fazia sentir completamente integrados ao
ambiente europeu. Contando com a colaboração de um amigo muito especial,
surgiu a oportunidade de visitar um Clube de Planadores nos arredores de
Berlim. Planadores são “aviões” sem motor que voam pela força dos ventos,
verdadeiros veleiros dos ares. O amigo é muito especial, pois, assim como
eu, é piloto de planadores e entusiasta pelo esporte. Bem cedo saímos do
centro da cidade e fomos passando por avenidas e ruas cada vez mais periféricas, com suas casas e suas gentes típicas. Em pouco tempo, já nos encontrávamos na zona rural que circunda a cidade de Berlim. Tudo muito limpo,
organizado, de uma beleza indescritível, neste início de outono, com suas
árvores multicoloridas, mostrando tons e sobretons que reproduzem o espectro do arco-íris. Mais alguns instantes e chegamos ao belíssimo Clube de
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Crônicas de um Médico do Sertão
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Planadores, 150 hectares de campos verdejantes e meia dúzia de pistas gramadas, com aspecto de um campo de golfe muito bem cuidado. Ali estavam
planadores de alta performance, mais de 20, a brilhar ao sol reluzente daquela manhã. Muitos sócios do clube deslocavam-se em todas as direções, cada
um cuidando de algum detalhe indispensável para que as operações fluíssem
de forma rápida e segura. Havia pilotos já maduros, marcados pelo tempo e
pela experiência. Ao lado deles, o que me chamou a atenção foi a presença
de uma grande quantidade de jovens: rapazes e moças dedicando-se aos trabalhos e aos voos com o mesmo afinco e determinação que os mais experientes. Quando perguntei ao presidente do clube quantos funcionários havia
para manter toda aquela área, com a beleza e a qualidade que saltava aos
olhos, admirei-me com a resposta. “Não senhor, não temos nenhum funcionário, somos cerca de duzentos sócios e cada um cumpre o seu dever em
preservar este patrimônio que é nosso e da cidade em que vivemos. Fazemos
tudo aqui, desde cortar a grama até dar manutenção nos nossos planadores,
aviões e demais equipamentos”. Fiquei admirado e compreendi o verdadeiro
sentido da palavra cidadania. Logo em seguida, coloquei o paraquedas nas
costas e, em instantes, estava na cabine de um planador de alta performance
(planeio de 50 por 1), para cada metro que desce, voa 50 metros na horizontal. Em outras palavras, estando a 1.000 metros de altura, pode voar à distância de 50 quilômetros. Engataram o cabo do guincho que puxa o planador, uma corda com 1.200 metros de comprimento que, ao ser enrolada rapidamente em um gigantesco carretel, acionado por um potente motor no fim
da pista, eleva o planador a 500 metros de altura em poucos instantes. Ao
atingi-la, a aeronave é liberada e passa a voar pela força do vento. De repente, eu estava livre dos grilhões da terra, a flutuar nas asas brilhantes que
cortavam a atmosfera com graça e precisão. A sensação de paz e serenidade
está acima da imaginação. Ficam lá embaixo, bem lá embaixo, os homens
com seus problemas insolúveis e suas obras, a mostrar todo seu engenho e
criatividade. Mais ao longe está Berlim, resplandecendo à luz do sol. Eu aqui
em cima, livre para voar como um pássaro, agradeço a Deus por mais esta
oportunidade de sentir Sua presença bem perto de mim.
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Domingo Braile
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DEVER CUMPRIDO
Hoje acordei com a sensação do dever cumprido, um sentimento
indescritível de realização, dificilmente superado por todo e qualquer bem
material, por mais valioso que este possa ser. Por que tanta euforia? Simplesmente pelo motivo que ontem receberam seus diplomas de conclusão da
residência em cirurgia cardíaca e cardiologia mais sete valorosos médicos da
Braile Cardiocirurgia. Com estes, completam-se quase três centenas de jovens que conviveram conosco em média quatro anos, recebendo não apenas
ensinamentos técnicos, mas também exemplo de conduta moral e Ética. Lembro-me bem quando iniciaram sua especialização, ainda muito jovens e cheios de ansiedade e esperança. Hoje, os vejo muito mais maduros, seguros de
si e confiantes de que serão capazes de dar aos seus pacientes o melhor dos
tratamentos. Não usarão apenas os remédios ou as operações, mas também
todo seu carinho e compaixão como fonte de energia. Aprenderam que estas
são armas poderosas no combate às doenças que atingem as pessoas não só
no seu corpo, mas nas suas almas.
Numa época materialista, em que os valores humanos vêm sendo substituídos pelo exercício da futilidade, cabe ao médico um papel relevante na
sociedade. Terá ele a função de estabilizá-la e fazê-la mais confiante em um
futuro mais digno e mais feliz. Sendo médico há mais de 37 anos, não tenho
nenhum receio de colocar a nossa profissão como fundamental para a manutenção da estabilidade social que tanto desejamos. Não falo do médico
mercantilista, que vê em cada paciente apenas a possibilidade de ganhar mais
alguns tostões. Falo do médico que já nasceu médico e cuja escola apenas
organizou-lhe os pensamentos. Dificilmente a nossa profissão poderá ser separada do exercício sacerdotal da atividade, buscando de forma veemente e constante o bem-estar do próximo no contexto da sociedade. Exemplos não nos
faltam. Nossa cidade contou e conta com profissionais que são paradigmas de
doação e competência, dignos de serem descritos em sagas épicas. Seria de
todo inconveniente citar nomes, pois com certeza incorreria em erros e omissões. Mas sei que você, caro leitor, se lembrará com carinho e gratidão do
médico capaz e bondoso que o atendeu, ou a sua família, num momento de
desespero ou de dor que possivelmente não poderia ser superado sem o auxílio
deste profissional, misto de cientista e conselheiro. É assim que entendo o
médico, uma pessoa confiável, muito culta, bem preparada, capaz de ter soluções adequadas para os mais diferentes sofrimentos humanos.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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Acredito numa Medicina humanista, cheia de fé e de esperança, buscando devolver ao nosso irmão doente aquilo que ele mais deseja: a sua
própria saúde. Saúde não apenas física, mas também psíquica e social, pois
este é o verdadeiro conceito moderno deste bem insuperável. Ao médico
cabe a função de guardião do bem-estar da sociedade, mantendo-a livre do
sofrimento e dando-lhe cada vez melhores condições de vida. Os maus médicos, estes eu os abomino, mas são tão poucos que não chegam a empanar
o brilho de uma profissão que sempre existiu e que deverá adentrar o próximo milênio ocupando o lugar de destaque que faz por merecer. As doenças
se apresentam com muitas facetas, e é muito difícil dizer quais as mais importantes ou as que deveriam ser tratadas prioritariamente. Às vezes, parece
que a solução seria cuidar apenas as doenças mais simples, com tratamentos
mais baratos. A ideia de prevenir também é muito atraente e efetiva, apesar
de muito cara. Acontece que, tratando-se de seres humanos, o médico tem
que empregar todo o esforço e conhecimento disponíveis para devolver àquela
pessoa a saúde perdida, sem pensar nos gastos!!! Não é, por acaso, esta a
atitude que você, prezado leitor, deseja do seu médico quando a doença
acontece consigo ou no seio da sua família? Espero que os novos especialistas que ontem se formaram possam levar estas mensagens aos seus filhos, e
aos filhos de seus filhos, para que jamais a tradição da Medicina, como profissão daquele que se doa ao próximo, venha a fenecer.
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PRINCÍPIO
DA
IGUALDADE
Pelo menos em parte, a famigerada “globalização” vem sofrendo alguns reveses nos últimos dias, e o mesmo já havia ocorrido no ano passado
em Genebra. Trata-se da conferência da OMC (Organização Mundial do
Comércio), que está reunida, ou “ tenta” reunir-se, em Seattle, nos Estados
Unidos da América do Norte. Ontem, para tristeza dos organizadores e para
alegria nossa, a poderosíssima Madaleine Albright, secretaria de Estado norte-americana, foi impedida de falar em plenário pelos protestos que tomavam conta da cidade. Foi decretado toque de recolher por 12 horas, num
desequilíbrio de forças provocado pelos manifestantes das ruas que demonstravam seus anseios de forma veemente. Trata-se de um grupo de moças e
rapazes, na grande maioria americanos, que se coloca contra a globalização,
que eles entendem beneficiar apenas meia dúzia de ricos e poderosos. O fato
é que, para que uns poucos ricos fiquem em posição privilegiada, a humanidade inteira tem que obedecer aos seus comandos, custe o que custar. Não
entra em cogitação o sofrimento humano, nem mesmo a dignidade ou o espírito de nacionalidade dos mais desafortunados. É admirável que num país
rico e poderoso como os Estados Unidos existam jovens que entendem esta
situação perversa, e se disponham a mostrar sua indignação diante do mundo. Acredito nas suas palavras, que poderão construir um mundo novo, assim como Cristo, com sua palavra e contando com apenas 12 apóstolos, foi
capaz de modificar o comportamento da humanidade há 2.000 anos.
A situação é crítica. Estamos diante de uma realidade em que as
mudanças têm que ser feitas com grande velocidade, para que o equilíbrio de
oportunidades entre as nações possa ser restabelecido. A OMC tem como
princípio (de fachada) a participação de quase todos os países. Fica, contudo, a nítida impressão de que os menos desenvolvidos estão ali apenas para
ouvir e obedecer. A esta altura, alguém pode estar se perguntando: o que
temos nós a ver com algo que está acontecendo hoje, na fria Seattle, se
moramos na longínqua e quente Rio Preto? Responderia que temos tudo a
ver com a manifestação dos jovens que lá estão, a mostrar que na humanidade ainda existem idealistas que pensam em nós. Sim, em nós que sofremos
com a destruição dos nossos meios de sobrevivência, pelo fechamento de
nossas pequenas indústrias e a falência total da agricultura e da pecuária,
gerando o aviltante desemprego em massa. O sofrimento que a globalização
está impingindo a países como o nosso só se compara aos horrores que nos
foram impostos pela guerra hegemônica criada na mente doentia de Hitler,
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que queria dominar o mundo com sua “cultura”. Na sua loucura, Hitler pensava que, em sendo seu sistema “perfeito”, todas as nações deveriam enquadrar-se a este, anulando-se todos os sentimentos e todas as manifestações
próprias de cada País. Deu no que deu: uma guerra que dizimou boa parte da
humanidade, e que deixou suas marcas até nossos dias. O que está acontecendo é muito parecido com o que ocorreu àquela época. Agora não se trata
apenas de uma nação tornar-se “dona do Mundo”. O que vemos são Grupos
Econômicos poderosíssimos que querem dominar todos os Países, com as
regras “perfeitas” do FMI (Fundo Monetário Internacional), levando as nações mais pobres ao desemprego, à fome e à desesperança. Que se cuidem
estes Grupos, pois quando o povo não tem nada mais a perder - como aconteceu no Camboja - ele pode retornar ao estado de ferocidade primitiva,
com riscos de destruição em cadeia.
Será que não estamos vivendo uma situação marginal, muito próxima
ao descalabro total? Ou não vemos todos os dias massacres, assaltos, sequestro, roubos, invasões, etc., a nos mostrar o desequilíbrio social que vai
degradando os cidadãos à condição de criminosos porque nenhuma esperança lhes resta? Até mesmo nossa imprensa acabou se transformando, preponderantemente, em órgão de divulgação de crimes e fatos policiais, descrevendo todos os dias a guerra sem fronteiras em que vivemos, cuja fronteira é
a falta de esperança. Quem são os culpados? Os governos corruptos que
perdem a noção de cidadania e tornam-se sabujos dos poderosos, para com
eles estabelecer uma relação de falsidade e submissão.
O que Rio Preto tem a ver com isso, pergunto novamente. Temos
tudo a ver, pois somos parte desta nação chamada Brasil, com suas qualidades e seus defeitos, mas que tem o direito de ser livre para, por si, arquitetar
o seu destino e deixar uma herança de paz e felicidade para seus filhos. A
globalização é apenas um nome novo que se dá ao domínio feroz do mais
forte contra o mais fraco, fazendo dele um escravo, tanto do ponto de vista
material como também intelectual. Queremos pertencer ao contexto das
nações, mas em igualdade de condições. A vida humana tem o mesmo valor
em qualquer lugar do planeta, e as pessoas não podem ser classificadas em
indivíduos de primeira e segunda classe. Queremos apenas a oportunidade
de poder continuar trabalhando, mantendo o sonhado e indispensável equilíbrio social, construído a partir do princípio da igualdade.
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40 ANOS
Talvez eu tenha sido criado numa outra realidade e não consiga conviver com os absurdos que hoje acontecem no relacionamento dos médicos
com os pacientes. O respeito que as pessoas tinham com meu pai (um médico da velha estirpe) é algo que me marcou profundamente e, com certeza,
influiu não só na escolha da profissão, como também na maneira de exercêla. O que vemos agora é uma verdadeira inversão de valores, colocando o
médico em permanente posição de réu, quando é impossível mudar o curso
das doenças por motivos que estão acima da sua vontade ou capacidade. O
médico, com certeza, sempre deseja o melhor para o seu paciente, pois esta
é sua função e seu mister.
Quando algo não vai bem, pela própria variabilidade da natureza dos
fenômenos biológicos, imediatamente surge alguém com o desejo de achar um
culpado. Por dever do ofício, quem está mais próximo do doente é o médico, que
acaba sendo, injustamente, acusado de incompetência, imperícia ou falta de conhecimento. Acontece que, quando a evolução do paciente não ocorre como o
desejado, isto se dá simplesmente porque a doença é mais forte do que o médico
e a própria Medicina como ciência e arte. Não podemos negar que, apesar de
raros, existem maus médicos que devem ser condenados, cassados e execrados
pelos seus pares e pela sociedade. Mas também existem maus pacientes, que
não podendo “brigar” com Deus, acabam por jogar toda a culpa da sua doença
no pobre médico, que, na imensa maioria das vezes, não poupou esforços para
modificar o curso, muitas vezes inexorável, de uma moléstia terminal. Além
disso, estes pacientes sempre encontram algum advogado oportunista que se
dispõe a entrar com processos milionários contra os médicos, com a única finalidade de ganhar dinheiro. Com isso, produzem um desequilíbrio social de
consequências muito graves, principalmente para os próprios pacientes. Senão
vejamos: diante do risco dos processos por “erro médico”, os profissionais da
saúde estão sendo obrigados a fazer seguros de alto custo para garantir-se contra
o risco permanente de serem acusados, injustamente, de má prática profissional.
Tais seguros irão beneficiar exclusivamente as companhias seguradoras (que são
as entidades mais lucrativas no mundo inteiro) e os maus advogados, que buscam apenas o lucro fácil. Além disso, acabam sobrecarregando de forma escandalosa o custo da já combalida conta da saúde, com graves consequências para
pacientes e médicos. Afastam também da Medicina profissionais de grande formação científica e moral, enojados com tanta falsidade e desonestidade.
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Será que é isto que queremos? Destruir de uma vez por todas a assistência médica, que sempre primou por seu caráter sacerdotal e cívico? Apenas para comparar, acredito que, ao processar um médico e um hospital, só
porque a evolução de uma doença não ocorreu da forma desejada, estaríamos tendo a mesma atitude que a de processar um padre e a igreja, só porque o milagre pedido a Deus, pelo seu intermédio, não tenha sido atendido.
Médicos não fazem milagres, dedicam-se, sim, de corpo e alma, empregando
todo o seu conhecimento adquirido ao longo de muitos anos de estudo e
dedicação, para melhorar os sofrimentos humanos. Não têm, contudo, a capacidade de decidir sobre a vida ou a morte do paciente. Muitas vezes, o
máximo que conseguem é aliviar as suas dores, diminuir os seus sintomas ou
prolongar-lhe um pouco a vida.
Nestes meus quase 40 anos de exercício da nobre profissão de
Hipócrates, tive milhares de pacientes agradecidos, que entenderam o meu
esforço para tirá-los da condição de doentes e transformá-los em pessoas
normais. Assusta-me profundamente a avalanche de reclamações que vêm
surgindo contra os médicos e os hospitais, incentivadas por organismos e
profissionais que nada têm a ver com a área de saúde. O único intuito que os
move a denegrir a classe médica é o de levar vantagem econômica, movendo
contra ela os famigerados e desonestos processos de indenização. Já disse e
volto a afirmar que os médicos sempre existiram e sempre existirão, pois
assim como os sacerdotes, cuidam não só do corpo como também da alma
das pessoas e são fundamentais para a estabilidade social. Aqueles poucos
pacientes que infelizmente se voltam contra seus médicos, movidos pelo
desespero, com certeza são doentes do corpo e da alma, sendo assim merecedores da nossa compaixão e compreensão. O que não é admissível é que
encontrem guarida entre os profissionais das leis e da Justiça a dar ouvido às
suas reclamações, com o único fim de auferir ganhos pecuniários. Espero
que a sociedade e a Justiça, constituída pelos Advogados, Juízes e Promotores, possam ter o bom senso de não deixar que uns poucos profissionais
desonestos instalem o caos e a desesperança numa classe que luta com todo
seu empenho para manter a saúde e o bem-estar da população.
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UMA CARTA SINGULAR
A minha crônica intitulada 40 ANOS teve uma repercussão muito
positiva. Apenas para reavivar-lhes a memória, tratava da situação insólita
da classe médica diante das acusações, geralmente infundadas, sobre a prática da profissão e a exploração indevida do conceito de erro médico. Recebi
manifestações de apoio de um grande número de colegas, o que era de se
esperar, em virtude do interesse que o assunto desperta na classe médica.
Além disso, meus alunos e assistentes ficaram entusiasmados em ver publicados os ensinamentos advindos das nossas conversas do dia a dia. Comentários positivos vieram também de pessoas leigas, que souberam entender a
importância do tema. Todos concordaram que, apesar de existirem maus
médicos, eles representam uma minoria sem expressão, que jamais poderá
ser generalizada. Concluíram que os bons médicos e os hospitais sérios não
podem sofrer o ônus decorrente das atitudes daqueles que são desonestos, e
que deveriam ser eliminados do sistema. Também os bons advogados e magistrados não podem ser julgados em decorrência de uns poucos
aproveitadores que buscam apenas o lucro fácil, acusando e processando
profissionais inocentes no exercício sublime da arte de curar. Mas, dentre
todas as manifestações, uma foi muito especial e não posso resistir ao desejo
de compartilhá-la com os prezados leitores. Trata-se da “Carta ao meu Pai”,
escrita por minha filha, Patrícia Braile Verdi, que é advogada. A Patrícia,
além de trabalhar ao meu lado na Braile Biomédica, é professora de Filosofia
do Direito na Faculdade de Direito da UNIRP. Assim ela escreveu:
- “São José do Rio Preto, 9 de dezembro de 1999.
Pai querido,
É... “tanto tempo faz que não te escrevo... ficaram velhas todas as palavras, até mesmo eu envelheci...”.
Mas hoje, após ler seu último artigo, resolvi escrever-lhe e dizer coisas que o Sr. já sabe, pois, na verdade, as
aprendi em casa, com o Sr., minha querida mãe e avós.
Sabe, pai, ao ler seu artigo, indignado e triste
com a atuação de certos advogados que, visando vantagens econômicas, colocam a moral e a dignidade de outros cidadãos à mercê pública, não pude deixar de indignar-me ao seu lado.
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Advogada que sou (não tendo continuado sua nobre missão), sigo, ou pelo menos tento seguir, as lições e
linhas mestras que, com tanta retidão, ouvi desde os primeiros ensinamentos. Ver, hoje, meu pai triste com o
Direito e seus profissionais é apagar a chama que vi em
seus olhos quando eu, ainda muito jovem, atravessei as
arcadas do Largo São Francisco em busca de meu futuro.
Pude ver seu orgulho...
Um profissional do Direito, pai, tem uma nobre
missão, se assim o quiser.
O amor e respeito ao Direito é a janela aberta
para aqueles que buscam, por meio de sua profissão, distribuir a Justiça, a verdade e o equilíbrio social. O Direito é, sem dúvida, o mais forte instrumento de controle e
organização da sociedade, mas depende de nós, seus profissionais, a realização deste fim. Aliás, querido pai, como
já dizia Platão: “Não há Justiça, há homens justos”. Depende de nós, de cada um de nós, o exercício da ética e
da dignidade. Nós, os seres humanos, somos o único animal livre para escolher nossos destinos, podemos escolher ser covardes ou heróis de nossa existência. Podemos
nos inventar, podemos inventar nossa própria vida. Escolher que vida queremos ter, temos liberdade. E ter liberdade é ser responsável pelo caminho escolhido... Ser
livre é não ter medo de suas próprias ideias, é não se
assustar ao olhar no espelho. Há, em nosso mundo, uma
grave inversão de valores e o Sr. bem sabe disso. Hoje o
bom é ser esperto, espertinho... É tirar vantagem! E
nós, profissionais do Direito, fomos prejudicados e diretamente influenciados por estes conceitos. Para muitos
é condição essencial do advogado ser malandro, saber
dar nós... enganar, mentir. Vamos parar com isso! Esta
ideia tem que mudar! Nosso mérito não é este! Não pode
ser este! Nosso mérito, como profissionais do Direito,
como seres humanos, é sermos dignos do afeto, da confiança de nossos semelhantes. Esta é a vantagem. E como já
disse Sêneca, um milhar de anos atrás: “A recompensa da
ação virtuosa é tê-la realizado”. Nosso mérito é buscar a
Justiça, a equidade, a verdade – é nos colocar no lugar
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do outro, é reconhecer que somos iguais e que, como
disse Shakespeare: “Somos feitos da substância com que
se tecem os sonhos”. Todos nós! Os advogados também...
Entretanto, pai querido, nem todos aprenderam que ninguém pode ser justo por nós. Somos nós, cada um de nós,
que devemos buscar a justiça e não as “vantagens”. Não
são todos que tiveram minha sorte, de aprender com
vocês a importar-se com seu semelhante, pois ele merece nossa atenção, nossa simpatia, nossa compaixão... Infelizmente nem todos reconhecem o Direito como instrumento do Bem, do Justo e do Ético. Mas como o Sr.
bem sabe, a vida segue em frente, não há retorno... é
preciso refletir, pensar sobre o que se quer dela, afinal,
somos livres para escolher. A vida não é uma ciência exata, não vem com Manual de Instrução. Nem com Certificado de Garantia. É uma pena, pai, que profissionais do
Direito tenham ferido você e seus princípios. Mas é esta
sua missão: buscar uma sociedade melhor. E seu último
artigo é mais uma tentativa na construção deste novo
mundo, mais digno e justo. Pai, somos aquilo que inventamos: sorte a minha poder nascer e conviver com alguém tão presente e atuante.
Que bom poder olhar no espelho e sorrir!
Te vejo mais tarde. Com carinho, de sua filha
Patrícia”
Tenho que confessar-lhes que fiquei muito emocionado com a
mensagem de minha filha, e espero que ela possa ajudar as pessoas de bem a
entender em a posição do médico no contexto da sociedade, e representar
um incentivo para os profissionais das leis, que fazem de sua profissão o
exercício absoluto da Justiça.
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FELIZ NATAL
Volto hoje a um assunto que tem me chamado a atenção ao longo dos
anos e sobre o qual tenho escrito ultimamente. Preocupa-me o futuro de
nossa cidade como centro de região que é ou pretende ser. Em recente artigo, um competente especialista em “marketing”, com muita propriedade e
conhecimento, mostrou sua opinião sobre o que entende como progresso.
Para ele o desenvolvimento de uma cidade tem que ser medido em qualidade de vida, com o que concordamos integralmente. Não podemos, contudo,
esquecer que a qualidade de vida dos cidadãos decorre de vários fatores,
como o nível de emprego, a renda per capita e a situação educacional e cultural dos mesmos, entre outros. A sociedade, por outro lado, tem que ser
equilibrada para que todos tenham iguais oportunidades, e que a saúde seja
considerada um bem comum e distribuída de forma equalitária. Para que
tudo isso aconteça é necessário “desenvolvimento sustentado”.
É difícil entender o que seja “desenvolvimento sustentado”. Talvez a
expressão seja mais bonita do que prática, porém vale a pena explorarmos
um pouco o seu significado. Na realidade, as cidades ou os países que param
no tempo estão sob forte ameaça, pois com certeza estão em franco processo de deterioração. Fico angustiado com a posição de Rio Preto no contexto
das cidades do nosso Estado. Embora ainda ocupe uma posição de destaque, corre o risco de tornar-se uma cidade de “Segunda Classe” pelo fato de
não existir uma política desenvolvimentista que supere as dificuldades de,
pelo menos, colocar-nos em igualdade de condições com as cidades do mesmo porte. Há muito tempo só temos notícias negativas. Das poucas fábricas
que tínhamos, muitas se fecharam sem que nenhuma medida para evitar esse
desastre fosse tomada por quem de direito, ou por aqueles que amam nossa
cidade. Não é o que acontece em outros locais, em que todos lutam tenazmente para que os empregos sejam preservados, a renda da cidade aumente
e todos possam ser beneficiados. Já sabemos que o próximo milênio será
caracterizado pela oferta de serviços, posição em que Rio Preto poderia muito
bem destacar-se, se esta fosse uma meta a ser perseguida diuturnamente
com o congraçamento de todas as forças vivas da comunidade.
Alguém já disse que uma cidade é bela e apaixonante por causa de
seus habitantes, o resto é apenas um cartão postal. Completaríamos essa
colocação afirmando que são os habitantes que determinam a paisagem deste postal. Depende de nós, que aqui vivemos, e daqueles que aqui poderão
vir a se instalar e adotar nossa terra como terra do coração e do seu ganha51
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Domingo Braile
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pão, fazermos com que a cidade de São José do Rio Preto seja um cartãopostal do progresso abençoado, desses que acontecem com critério, com
criatividade, com esforço comunitário e com atenção, cuidado e zelo de suas
lideranças. Acredito muito que devemos abrir a mente e o coração de Rio
Preto para abrigar, receber e hospedar novas iniciativas, negócios e novos
empreendimentos. Já está na hora da classe política local estar mais atenta,
ágil e decidida para não deixar escapar – como tantas vezes tem ocorrido na
nossa história – as oportunidades de desenvolvimento e propulsoras de progresso que batem à nossa porta.
É preciso que toda a sociedade rio-pretense, e nela se incluem pais,
mães, estudantes, adolescentes, crianças, universitários, prestadores de serviços, empresários, políticos, artistas, esportistas, jornalistas, profissionais
liberais, etc., esteja inquieta diante do futuro! Essa inquietação, essa sensação de inconformismo frente ao estado atual de nossa cidade certamente
serão fatores benéficos para que Rio Preto alcance melhores dias. É preciso
entender que nossos filhos e netos irão nos cobrar o fato de não termos tido
uma visão mais aguçada e preventiva do futuro; irão nos cobrar não termos
tido uma postura mais arrojada ante as decisões que poderiam ter mudado
nossa história. As próximas gerações certamente vão nos cobrar a nossa falta
de preocupação em preparar a cidade para o futuro. E no futuro que se abre,
a partir do ano 2000, as coisas só vão acontecer nas cidades em que as pessoas gostarem de morar. Portanto, neste dia de Natal, o melhor presente para
Rio Preto seria que cada um de nós, habitantes desta cidade tão amada,
fizesse uma reflexão profunda, promovesse um questionamento sério sobre
o que pode ser feito hoje para o bem do amanhã de nossa cidade. Que dessa
reflexão nasça uma inquietação capaz de mudar, criar, fazer e realizar uma
Rio Preto que não pára, sempre renovada, próspera e agradável para se viver.
Feliz Natal a todos!
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O ANO 2000
A Medicina não é uma ciência exata como a matemática ou a física
pretendem ser, e, por isso, não pode ser tratada pela frieza dos números.
Segundo o trabalho de Duncan e Schmidt sobre Medicina Baseada em Evidências, citados pelo colega Neuci da Cunha Gonçalves, em seu trabalho
sobre Bioética, é necessário entender que:
1 - Apenas 50% da prática médica baseia-se em avaliações
metodológicas sistematizadas;
2 - Destes, 50%, apenas a metade, demonstra-se efetiva quando aplicada aos pacientes (por estarem erradas ou terem sido mal interpretadas);
3 - Portanto, em Medicina, infelizmente por enquanto, somente 25% das
atitudes são baseadas na ciência pura com seu sentido pragmático e cartesiano;
4 - Desta forma, a prática médica, mais do que científica, tem que ser
Ética, baseada na bondade, na compreensão e na compaixão pelo doente
(tema que já discuti quando escrevi sobre a Medicina do terceiro milênio), e
que assim já definiu o grande mestre Miguel Couto: “Se toda a Medicina não
está na bondade, menos vale dela separada”. Portanto, o médico que não se
pautar pela ética não é médico, é um oportunista, um mercantilista ou um
charlatão. Este “pseudomédico”, perigoso para a sociedade, tem que ser
impedido de trabalhar na profissão, seu Diploma tem que ser cassado e a
Faculdade de Medicina que o formou tem que ser reavaliada, para ser fechada caso esteja formando apenas maus médicos.
Não entendo, ainda, qual o sentido de se buscar indenizações em
dinheiro, que jamais poderão devolver a vida ou a saúde a quem a perdeu.
Essa atitude irá beneficiar apenas as Companhias de Seguro que se enriquecerão ainda mais às custas dos médicos e dos pacientes, vendendo-lhes uma
falaciosa segurança. É claro que a sociedade tem que se defender de alguma
forma das imprudências e das imperícias a que esteja exposta, mas será que
restará ressarcida, em sua essência, por meio de indenizações? Creio que
tirar o diploma e efetivamente punir aquele que coloca a vida ou a saúde dos
outros em risco seria mais efetivo e legítimo. Veja bem, atento leitor, não
precisamos concordar com tudo que vemos e ouvimos, mas sim lutar para
que todos possam expressar suas ideias e opiniões. Devemos, na verdade,
fazer valer as ideias de um de nossos mais ilustres filósofos iluministas,
Voltaire. Assim ele escreveu a um seu adversário de ideias: “Prezado amigo,
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não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte
o seu direito de dizê-las”. Isso é o que reclamam a democracia e a liberdade.
Quanto às críticas ao caótico sistema de saúde brasileiro, devemos
ser a cada dia mais veementes ao fazê-las, pois nosso governo,
mentirosamente, prometeu ao povo dar-lhe saúde e melhores condições de
vida, mas, ao contrário, reduz cada vez mais as verbas destinadas aos hospitais, pagando a estes e aos médicos preços vis. Forçam a abertura de novas
Faculdades de Medicina, sem a mínima condição de formar médicos, no
verdadeiro sentido da palavra. É contra este estado de calamidade que todos
temos que nos unir. Nossa luta é árdua e longa. Buscar a segurança de um
atendimento humanitário e honesto, dentro das limitações impostas pela própria natureza das doenças e do ainda incipiente conhecimento de que dispomos, é um trabalho sem fim.
Mas, hoje é um dia muito especial, e eu gostaria muito de compartilhá-lo
com vocês. Este é o primeiro dia, depois de 1.000 anos, em que ao escrevermos
uma data mudaremos a expressão do milhar. Fico pensando como se sentiram os
nossos ancestrais na virada do seu milênio... De uma coisa tenho certeza: o homem sempre foi bom, pois, como disse Jean Jacques Rousseau, “o homem nasce
bom e é inocente no estado de natureza”. Tenho, a esse respeito, dois exemplos
incontestes para demonstrar a teoria de Rousseau em nossos dias. Um longe de
nós e outro, aqui bem perto, em Rio Preto mesmo. O prêmio Nobel da Paz foi
dado este ano aos “Médicos sem Fronteiras”, uma organização sem fins lucrativos, constituída por médicos altruístas que se deslocam para áreas carentes ou
sujeitas a cataclismas com a única finalidade de salvar vidas e levar alento aos
desesperados. Isso mostra a nobreza da nossa profissão e o seu reconhecimento
pela comunidade mundial. Em nossa cidade, ocorreu um fenômeno que deve
deixar-nos orgulhosos e cheios de esperanças. Um grupo de jovens que colabora
conosco, ao contatar asilos, casas de caridade, abrigos para desvalidos e instituições congêneres, nesta época de Natal e Ano Novo, para dar um pouco de carinho, presentes, alimentos e roupas aos desafortunados, teve uma grata surpresa:
há poucos dias vagos até meados de janeiro para qualquer festa nessas instituições. Os dias estão quase todos tomados por pessoas de bem de nossa cidade.
Querem dividir sua felicidade, seu bem-estar, sua saúde com aqueles que por
qualquer motivo se encontram em situação pior. Esta constatação fala por si só
da bondade das nossas gentes, do seu espírito altruísta, e da sociedade equilibrada que se nos apresenta neste ano em que nos preparamos para o novo milênio.
Felicidades a todos e que, em 2000, se realize o sonho de cada um, unidos sempre para a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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MENINA
DOS
OLHOS
Sempre acreditei que a difusão dos conhecimentos é prioritária para
o desenvolvimento individual e coletivo de um povo. Assim, foi com um
sentimento de profundo desencanto que constatei que os sinais da Televisão
Cultura não eram mais recebidos em nossa cidade. A surpresa foi substituída
pela curiosidade, afinal de contas, o que havia acontecido? Por que apenas o
padrão de cores gerado localmente aparecia em nosso vídeo? A resposta não
podia ser mais desalentadora. A transmissão fora cortada pela Embratel por
falta de pagamento. Não quero, nem tenho conhecimentos para saber quais
os caminhos tortuosos trilhados para que um desastre destas proporções
pudesse acontecer. Sei, contudo, que não é justo privar a população do Estado de São Paulo e do Brasil de uma das poucas Televisões Estatais de que
dispomos e... com a qualidade da TV Cultura. Não é possível que um Governador, eleito pelo povo, em nome de um pretenso saneamento das finanças do Estado, seja tão insensível. Privar a população de uma das únicas
fontes de difusão cultural existente é um crime sem justificativas. Fazer morrer
uma conquista de tantos anos, simplesmente para pagar juros escorchantes a
Bancos Internacionais é, com certeza, a melhor maneira de manter-nos no
atraso tão desejado pelas nações mais desenvolvidas.
Parece que estamos voltando à Idade Média, em que o povo necessariamente era mantido na ignorância para favorecer os nobres e os poderosos.
Chama também a atenção a pouca repercussão que o fato gerou. Fiquei esperando manifestações iradas da imprensa e das autoridades, porém elas não
apareceram. Que interesses escusos estão por trás desta atitude? Deixo esta
questão por conta da imaginação e do conhecimento do amigo leitor. Por
certo todos percebem que, tirando do ar uma Estação de Televisão que prima por programas culturais e educacionais, cria-se mais espaço para manter
a população imersa no ópio dos programas apelativos das Televisões Comerciais, que, com raras e dignas exceções, têm programação de nível deplorável, muitas vezes expondo crianças, jovens e mesmo adultos a apresentações de nível agressivo ou abusivo. Não quero ser moralista, acredito na
liberdade de expressão (sou contra a Lei da Mordaça), mas quero resguardar
o direito de escolha do público! Não podemos mais tolerar perdas sem reclamar. Lembremos aos nossos governantes que diminuir a difusão cultural é
uma atitude que lhes será cobrada, não só nas próximas eleições, mas também pelas gerações futuras. É possível que os historiadores descrevam este
fato como hoje estudamos as atrocidades da inquisição.
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Talvez a esta altura o leitor esteja se interrogando por que resolvi
escrever sobre este assunto. Quero dar-lhes pelo menos dois bons motivos.
1- Como Educador, não poderia silenciar-me, uma vez que este Governo,
assim como tirou a TV Cultura do ar, tem também tirado o “ar” das Universidades Públicas, levando-as a um verdadeiro estado de calamidade! Parece
que, em pleno ano 2000, nossos dirigentes não acreditam em desenvolvimento social e econômico baseado na Educação; 2- Nos idos de 1967, Rio
Preto recebia sinais de Televisão, precaríssimos, apenas da extinta TV Tupi.
Era prefeito Adail Vetorazzo, quando um grupo de cidadãos, com visão de
futuro, entre os quais se incluíam os queridos amigos Waldemar Verdi e Tácio
Dória, resolveram criar uma comissão para dotar nossa cidade de mais opções no campo da Televisão. Surgiu, assim, o SARTERP (Serviço Autônomo de Transmissão de Televisão de Rio Preto). Tratava-se de uma Autarquia
Municipal para promover o desenvolvimento do setor. Apesar de muito jovem, escolheram-me Presidente da citada autarquia. Foram anos e anos de
lutas, em que fui ajudado por muitos companheiros, cheios de ideal, que não
mediram esforços para que àquela época colocássemos no ar aqui em Rio
Preto todas as estações de TV de São Paulo. Priorizamos, desde logo, a TV
Cultura entre todas as outras, por seu alcance educacional e cultural. É inesquecível o trabalho desenvolvido pelos saudosos João Roberto Silva, Otacílio
Roque Camargo de Freitas e Anatole Rogachensco. Atuaram também com
dedicação ímpar: Edilson Chiquetto, Sebastião Faria, Higino de Carvalho e
Dimas Fernandes. Nos associamos num grande consórcio – Rio Preto, Bauru,
Lins, Araçatuba (mostrando que é possível unir as cidades de uma região
quando o interesse é comum, ficando-se acima das veleidades políticas).
Construímos 14 torres de transmissão de São Paulo até Rio Preto
(ainda não existiam os satélites de comunicação). Desenvolvemos nossos
próprios equipamentos: transmissores, antenas e torres, muitas delas no alto
dos morros, onde não havia eletricidade, sendo alimentadas por geradores a
diesel que funcionavam, ininterruptamente, 24 horas por dia, ou até se quebrarem. Chegamos a produzir um sistema de micro-ondas para transmissão
em cores com alta qualidade, fato que teve repercussão nacional. Tínhamos
muito orgulho do nosso trabalho, pois sabíamos que estávamos trazendo
progresso e cultura para a nossa região. Éramos impulsionados por puro idealismo, pois não havia remuneração para os diretores, apenas a vontade de
realizar falava mais alto. Porém, nem tudo eram alegrias... Quando o sinal
“caía”, as reclamações eram veementes e nos colocavam num corre-corre
cheio de aflição. Afinal, qualquer defeito em uma das 14 torres deixava-nos
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isolados. Não me esqueço da Copa do Mundo de 1970, em que destinamos
um técnico em cada torre, pois tínhamos certeza que seríamos “trucidados”
se perdêssemos a transmissão. Final de novela também era um pesadelo, e
nos colocava sempre de prontidão. Os tempos heroicos foram substituídos
pela tecnologia avançada, mas o trabalho não foi em vão, pois foi a semente
que levou Rio Preto a tornar-se um dos maiores centros de difusão televisiva
do País. Não posso admitir que agora, por falta de dinheiro ou de disposição
do Governo, fiquemos privados da TV Cultura, que sempre representou a
menina dos nossos olhos.
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Domingo Braile
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GRANDES LAGOS
Há tempos venho ensaiando para escrever uma crônica sobre a beleza da nossa região. O principal motivo é que nossa cidade e toda a vasta área
em que vivemos são mesmo muito bonitas. Acostumados à nossa paisagem
ondulada e verde, ao nosso pôr-do-sol fantástico e ao nosso céu estrelado,
acabamos por não dar valor a este presente da natureza. Que dizer das nossas represas, a transformar-nos na capital da região dos Grandes Lagos?
Devemos ao querido amigo Luiz Homero este epíteto tão sugestivo para Rio
Preto, chamando a atenção para o potencial desta conquista que mudou completamente o aspecto dos nossos rios. É verdade que perdemos as cachoeiras do Avanhandava, no Rio Tietê, assim como as dos Patos, dos Índios e a
do Ferrador, no Rio Grande. Perdemos também parte dos peixes típicos das
nossas corredeiras, e com eles memoráveis pescarias e histórias sem fim dos
pescadores. A fauna também modificou-se pela mudança do ambiente em
que viviam. Perdemos tudo isso, mas ganhamos enormes reservatórios de
água disponível para o consumo humano, e também para a irrigação, e uma
invejável potência de energia elétrica instalada.
É incrível que, embora dois terços do globo terrestre sejam constituídos por água (devido à enormidade dos oceanos), apenas 2% ou 3% da água
existente é potável. Imagine, amigo leitor, a riqueza da nossa região tão bem
definida como a Região dos Grandes Lagos. Esta riqueza potencial por certo
num futuro próximo será devidamente valorizada e explorada, de maneira a
trazer mais empregos e desenvolvimento para compensar as perdas naturais
que tivemos. Acredito que, nesse sentido, quatro pontos devem ser analisados com a devida importância.
1 - A irrigação das nossas terras férteis e quase planas poderá transformar-nos em um dos maiores celeiros agrícolas do mundo, pois temos sol
em abundância e possibilidades de produzir cereais, verduras, frutas, etc.,
para suprir de forma muito competitiva não só o mercado nacional, como o
mercado internacional. Temos exemplos atuais, com a produção de uva
irrigada na região ribeirinha do rio Paraná, a mostrar a viabilidade desta iniciativa. Outras culturas poderão ser implementadas e, com certeza, darão
retorno seguro a quem a elas se dedicar.
2 - A eletricidade abundante em nossa região jamais foi valorizada.
Governos centralizadores preferiram transportar nossa energia para os centros já industrializados, quando deveriam ter facilitado a instalação das in58
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dústrias aqui. Gastaram bilhões de dólares com as linhas de transmissão de
eletricidade que são sempre ineficientes, pois, durante o “transporte”, boa
parte desta energia é perdida. Centralizadores como são os governos, acabaram criando cidades inabitáveis, como São Paulo, que cresceu
desordenadamente mais do que deveria. A energia elétrica industrial deveria
ser consumida perto do lugar em que é produzida, ou seja, aqui mesmo.
Espero que um dia esta aberração seja corrigida e aí, sim, teremos a oportunidade de demonstrar toda nossa capacidade.
3 - O transporte fluvial é uma realidade no mundo todo. Com as
represas e as eclusas, temos cerca de 4.000 quilômetros navegáveis, podendo-se daqui atingir vários Estados brasileiros e todo o Mercosul. Podemos
sonhar com este transporte limpo, barato e eficiente a colocar-nos no centro
de uma vasta rede de navegação fluvial.
4 - Turismo será a tônica do novo século e do novo milênio. Como
bem diz o famoso sociólogo Domenico De Masi, o homem terá cada vez
mais tempo para o lazer, e os serviços serão progressivamente valorizados.
Ao contemplar o imenso potencial turístico representado pelos lagos maravilhosos de que dispomos, antevejo o dia em que toda esta região se tornará
um ponto de convergência de esportes e divertimentos, com suas praias,
seus barcos e suas pescarias. Estas estarão embasadas em programas científicos, que já começam a mostrar seus resultados pela repovoação das represas, com peixes mais adaptados a este tipo de águas. Finalmente, teremos a
oportunidade de fazer longos passeios fluviais, explorando as belezas que
estão escondidas em cada recanto desta maravilhosa região banhada pelas
águas resplandecentes de seus enormes lagos. Não seria formidável passar
uma semana em um barco confortável, com aposentos adequados, ar-condicionado, restaurante de primeira classe e paisagens indescritíveis e chegar
até a usina de Itaipu? Pois este sonho, muito em breve, poderá ser realizado
por aqueles que valorizarem a beleza da nossa terra.
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À UCRÂNIA
FORT LAUDERDALE - Participo aqui do 36o Congresso da Sociedade de Cirurgiões Torácicos dos Estados Unidos, à qual estamos cientificamente ligados. O contraste entre a riqueza, que aqui se manifesta por todos
os lados e em cada detalhe, e a pobreza com a qual somos obrigados a conviver em muitas áreas do nosso país, leva-nos a uma certa sensação de impotência diante da evidência geral dos fatos. Contudo, quando temos a oportunidade de analisar com espírito mais crítico o que acontece aqui e o que
ocorre no Brasil, no campo da Cirurgia Cardíaca, o panorama se modifica.
De fato, nosso país, apesar das limitações que todos conhecemos, consegue
impor-se neste campo por sua criatividade, seu arrojo e o indiscutível preparo dos seus profissionais. O Brasil, na construção da sua liderança, apresenta
alguns marcadores que evidenciam a sua viabilidade: a eficiente Embraer, a
resolutiva Embrapa e a adiantada Cirurgia Cardíaca.
Fundada por líderes com o caráter e a fleuma do prof. Euriclides de Jesus
Zerbini, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular tem demonstrado do
que é capaz um grupo determinado em realizar, com seus próprios recursos, medicina de alto padrão tecnológico em um país em desenvolvimento. Mesmo sem a
enorme quantidade de dinheiro disponível nos países desenvolvidos, os cirurgiões
brasileiros têm criado técnicas que acabam sendo absorvidas pelos países mais
adiantados, de importadores de tecnologia passamos a ser exportadores desta. É
esta a realidade que pudemos observar nesta reunião, que contou com mais de
5.000 profissionais de todo o mundo. Contrapõem-se a esse fato a sofrível situação
do nosso país quando se considera a sua capacidade de exportação em outras
áreas, seja de produtos primários ou manufaturados. Chega a ser irritante ver que
os Estados Unidos importam quase tudo, porém de países como a Índia, Paquistão,
México, Chile, Itália, China e tantos outros. Não consegui, contudo, encontrar um
produto que fosse fabricado ou produzido no Brasil. Por que isso acontece? Seria
tal situação decorrente de discriminação, ou da falta de uma política de governo
que promova a venda daquilo que é produzido em nosso país? Competimos com
nações de muito menor expressão que a nossa, no entanto, não conseguimos, nem
de longe, equiparar-nos a elas no mercado internacional.
Um fato que tem me chamado a atenção é que se torna muito difícil
para um brasileiro, desamparado e isolado, conseguir exportar o fruto do seu
trabalho por não ser orientado, ajudado e promovido por organismos governamentais a este fim dedicados. Para isso deveriam servir as embaixadas,
consulados, representações diplomáticas e congêneres, incluindo o próprio
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Presidente da República (como muito bem o faz o presidente Clinton). A
globalização prega a unificação comercial das nações, mas, por enquanto,
tem sido uma via de mão única, levando os países em desenvolvimento a se
endividarem de tal forma que serão eternos reféns dos países desenvolvidos.
Qualquer brasileiro que vier aos Estados Unidos poderá comprovar as informações que passo ao leitor. Se esta situação não se modificar, ficaremos para
sempre submetidos ao desemprego aviltante e ao crescimento zero, que levam a sociedade a instabilizar-se e tornar-se violenta.
Mas desejo voltar à análise da situação da Medicina e, particularmente, da
cirurgia cardíaca brasileira, um exemplo a ser seguido. Uma das principais conferências deste Congresso foi pronunciada por um eminente professor da Alemanha.
Trata-se do Dr. Hans Borst, meu amigo de muitos anos, que foi o chefe de Cirurgia
Cardíaca da Universidade de Munique e de Hanôver, e aposentou-se em 1996.
Desde então, vem se dedicando a ajudar os países do Leste Europeu como verdadeiro embaixador no campo da Medicina e da assistência social. Sua conferência
recebeu o título de “A Foice o Martelo e o Bisturi”. Mostrou com eloquência e
emoção a situação de penúria vivida pelo povo da antes altiva União Soviética.
Hospitais deteriorados, ausência de medicamentos, tecnologia atrasada em mais
de 30 anos e dependência total da caridade alheia para prover alguma assistência a
seu povo! Ficou claro que o comunismo não deu certo, nem mesmo na área médica e social, deixando uma herança desastrosa. Portanto, não é este o caminho a ser
trilhado. Enfrentamos problemas sérios em nosso país, mas temos liberdade para
pensar, agir e nos desenvolver.
Ao final da conferência, o Prof. Borst, conhecedor do nosso trabalho, solicitou-nos que colaborássemos no sentido de desenvolver na Ucrânia
um programa para a construção de oxigenadores (aparelhos utilizados para
substituir o pulmão durante as cirurgias cardíacas). Será motivo de orgulho e
satisfação para todos nós ajudarmos aquele sofrido povo com a implantação
de tecnologia inteiramente desenvolvida no Brasil e, especificamente, em
nossa querida Rio Preto! O fato é animador, pois demonstra mais uma vez
que existe a possibilidade de países e cidades como a nossa se integrarem na
comunidade internacional. Não podemos ficar presos aos grilhões dos países
que querem nos manter como colônia, desvalorizando o nosso trabalho, endividando-nos e cobrando juros extorsivos que impedem o progresso. Temos
que desenvolver a nossa própria personalidade, criando o “NOSSO BRASIL”, com suas características e seu jeito de ser. Com certeza, o futuro que
nos espera será brilhante pelo potencial de nossos recursos e de nossas gentes. Basta que, para isso, não nos submetamos ao imperialismo destruidor.
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EXEMPLO
PARA O
BRASIL
Muitas pessoas de bem têm se preocupado com os destinos de nossa
cidade, o que, na pior das hipóteses, representa um fato positivo a ser considerado. Na semana que passou, o Diário da Região abriu manchete para reportar
a mobilização das forças vivas da cidade para uma campanha efetiva de geração de empregos. Ficou claro que, ao longo dos anos, Rio Preto vem perdendo
sua competitividade para atrair novos empreendimentos, por motivos variados e nem sempre claros. Os Distritos Industriais, outrora fonte de orgulho e
esperança para nós todos, acabaram se transformando em motivo de preocupação e desencanto. Indústrias que haviam prometido aqui se instalar jamais o
fizeram, outras, muitas outras que desenvolviam suas atividades em nossa
cidade, foram sugadas pelas políticas governamentais entreguistas e fecharam
suas portas. Algumas simplesmente mudaram-se daqui para cidades onde lhes
eram oferecidas melhores condições. Ficamos mais pobres, menos desenvolvidos, criou-se desemprego, desesperança e violência. Perdemos, com o país, o
bonde da história nas madorrentas décadas de 1980 e 1990.
Agora sinto um novo alento. Pessoas da comunidade estão acordando para esta nova realidade e mostram disposição em mudar o perfil
monótono que se repete há tanto tempo. Até recentemente, parece que
havia uma anestesia profunda, a manter todos indiferentes com a necessidade de criar oportunidades para manter um ritmo de evolução compatível
com as exigências do mundo moderno. Como bem disse o meu amigo Dr.
Wilson Daher, temos que dedicar pelo menos parte do nosso tempo para
manter o equilíbrio da sociedade, exercendo o dever de cada cidadão de
criar condições melhores e mais humanas no ambiente que nos cerca. Ficamos desiludidos com as discussões estéreis da maior parte dos nossos políticos que, com sua miopia, só enxergam o próprio umbigo, esquecendo-se
de que foram eleitos para uma missão e não um cargo. Prolongam-se em
discussões absolutamente inúteis, em questões de cunho pessoal sem pensar no bem que poderiam fazer. Alguns, além de não ajudarem, são prejudiciais à comunidade ao defender seus próprios interesses, ou impedir que
colegas de boa vontade possam realizar algo útil para a comunidade. Norteiaos exclusivamente o interesse político. Impedem que um benefício possa
melhorar a cidade pelo simples fato de, eventualmente, ser capaz de aumentar o prestígio de um seu adversário. Não é assim que se produz desenvolvimento material e intelectual para uma comunidade. Temos que ser
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idealistas, pensar não só no presente, mas no futuro, e não só no nosso
futuro, como também no futuro dos jovens que dependem das nossas atitudes hoje para viverem numa cidade com mais oportunidades.
Paremos com as brigas inúteis, vamos nos unir em torno das necessidades de Rio Preto, para que possamos ser exemplo para o Brasil e fonte
permanente de orgulho para nossos filhos. Se cada um de nós tomar esta
tarefa como um compromisso solene, tenho certeza que, dentro em breve,
não mais existirão fábricas abandonadas, estabelecimentos comerciais transformados em depósitos de lixo e terrenos nobres servindo de pasto para
algumas cabeças de gado. Pelo contrário, veremos o progresso saltar aos nossos olhos, que poderão ver as crianças mais felizes porque o seu pai tem um
emprego seguro. Teremos também mais recursos para creches, escolas, bibliotecas, jardins, hospitais, postos de saúde, enfim, tudo que se necessita para
não cercear o direito dos cidadãos de viverem em uma cidade que lhes dá
trabalho e amparo. Estou otimista, parece-me que o momento da transformação das mentalidades é chegado e que, daqui para a frente, como canta o
cancioneiro popular, “tudo será diferente”. Tudo depende de você, cidadão,
da sua disposição em colaborar na medida das suas possibilidades, para que
a realidade seja maior que nossos sonhos. Rio Preto conta com você para
mais esta grande empreitada! Muito já foi feito por aqueles que nos antecederam, a quem devemos a situação privilegiada que hoje ocupamos. Com
um pouco mais de esforço e dedicação, seremos capazes de construir uma
cidade pronta para o novo milênio: limpa, ordeira, progressista, enfim, um
lugar agradável para nascer, desenvolver-se e viver. Não penso somente em
crescimento material. Com certeza, ao lado deste, teremos também o ressurgimento da cultura e da espiritualidade que farão de cada um de nós pessoas
melhores, mais humanas e mais felizes.
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Domingo Braile
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TRANSPLANTES
Estamos todos satisfeitos com as notícias alvissareiras a respeito dos
transplantes em nossa cidade. Como centro médico de primeira grandeza,
Rio Preto tem se destacado neste campo de forma a firmar-se cada vez mais
no contexto nacional. Fomos pioneiros nos transplantes renais, devolvendo
vida saudável a centenas de pacientes, antes condenados a ter vida curta,
permanentemente na dependência de máquinas dializadoras. Os transplantes de córnea há muitos anos vêm devolvendo a visão a pessoas antes condenadas à mais negra escuridão. A possibilidade dos transplantes de medula
tirou da morte certa muitas pessoas que, no seu desalento, não tinham mais
esperanças de viver. Num grande esforço, desenvolveu-se no Hospital de
Base da Faculdade de Medicina de Rio Preto um programa vitorioso para
transplantes de fígado que rapidamente deu frutos, colocando nossa cidade
entre as poucas que realizam esta difícil intervenção. São pessoas abnegadas, como o prof. Renato Silva e sua equipe, que nos deram tal privilégio,
restituindo a saúde a pessoas muito doentes, portadoras de lesões hepáticas,
cuja única solução e esperança concentram-se nos transplantes.
Resta, contudo, ainda uma barreira a ser vencida: o transplante de coração. Realizar este milagre está bem próximo de nós. Durante anos, a idéia
vem sendo acalentada e desenvolvida. A nossa cidade foi pioneira e inovadora
em muitos campos da cirurgia cardíaca, mas talvez lhe falte o coroamento
desta liderança, a ser representada pelos Transplantes de Coração. Não foi
pequeno o esforço desenvolvido neste sentido, e vários obstáculos tiveram
que ser vencidos para que um hospital, do porte da Beneficência Portuguesa,
pudesse obter a autorização para a realização deste procedimento. Esclarecendo os fatos: quis o destino que um dia eu fosse convidado a realizar o
concurso público para provimento do cargo de Professor de Cirurgia Cardíaca
da Universidade de Campinas (Unicamp). Pelos méritos, ou por sorte, fui eu o
escolhido para o cargo, em 1993. Reestruturei as atividades cirúrgicas no campo das operações de coração naquela Universidade, tornando-a eficiente e
resolutiva. Pela tradição e estrutura lá existentes, foi possível iniciar, em 1997,
um programa de transplantes cardíacos naquela entidade com pleno êxito.
Creio que a esta altura, o leitor estará se perguntando: o que Rio
Preto tem a ver com os transplantes de coração realizados em Campinas?
Respondo que sim, temos muito a ver, pois baseado na experiência por nos
lá adquirida e pelos esforços da administradora, Sra. Marilene Marques
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Olivieri, foi possível credenciar rapidamente, de acordo com a nova legislação, o Hospital da Beneficência Portuguesa para realização do milagroso
transplante de coração. A luta, contudo, não está terminada. Contamos com
uma grande equipe que há tempos vem selecionando pacientes para que
façam parte da lista única de transplantes de coração do Estado de São Paulo. Uma vez colocados na lista, esses pacientes são submetidos ao transplante, de acordo com a disponibilidade de órgãos no Estado, obedecendo rigorosamente a ordem cronológica de inscrição. Representam exceções os casos
de urgência, devidamente comprovados e atestados por profissionais não
envolvidos no processo. Fato importante é que esta lista de espera vale para
todo o Estado de São Paulo, e está centralizada na Secretaria da Saúde da
Capital, não existindo qualquer dependência de pretensos centros regionais,
como acontece com os transplantes de rim, cuja central para a nossa região,
indevidamente, localiza-se em Ribeirão Preto. Esse foi um árduo trabalho
desenvolvido pelo grupo que padronizou os transplantes de coração no Estado de São Paulo, do qual tivemos a honra de participar. Nos transplantes
cardíacos, seremos autônomos, independentes e vinculados exclusivamente
à lista única, em igualdade de condições com os demais centros. Com certeza, rapidamente teremos também o Hospital de Base credenciado para a
realização dos transplantes cardíacos, pela potencialidade intrínseca da nossa região, o que aumentará de forma muito positiva nosso poder de resolução. Os grandes beneficiados serão os pacientes que sofrem na espera do
transplante, única esperança de recuperar a alegria de viver da forma que
merecem, e a que têm direito. Como disse, muitas pessoas estão envolvidas
no processo para o desencadeamento de mais esta conquista para nossa cidade. Não se trata apenas de médicos, mas uma plêiade de profissionais da
área da saúde faz parte desta equipe maravilhosa. Cada um terá que desempenhar seu papel de forma brilhante, como músicos de uma grande orquestra, para que o resultado final seja harmonioso e aplaudido pelo público
quando o transplantado voltar a viver com plena saúde.
Vale ressaltar que os transplantes não envolvem apenas o receptor do
órgão, o grande beneficiado. Envolvem também o doador, que já não estará
no gozo de suas faculdades mentais para decidir sobre a doação. Essa atitude depende exclusivamente da vontade da família, no sentido de beneficiar
alguém que tanto necessita de sua ajuda. Sabemos que é difícil para uma
família, no momento da perda de um ente querido, ter caráter, bondade e
amor para realizar o ato transcendental de, pela doação de um órgão, devolver a outrem a qualidade de vida que desejariam para o seu parente. As
únicas palavras que podem resumir o ato da doação de órgãos são caridade,
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Domingo Braile
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amor e compaixão. Portanto, a sociedade deve participar ativamente do processo de doação, em uníssono com as equipes transplantadoras, sem o que
nada pode ser feito. Espero que mais esta etapa possa ser vencida e que os
grupos de transplante de Rio Preto, que se dispõem a trabalhar de dia ou de
noite, nos dias de semana ou nos feriados, possam contar com a colaboração
da nossa bondosa população para que muitas vidas sejam salvas e que o
milagre dos transplantes seja compartilhado por todos.
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CIDADE ANTIGA
Não sei bem se a nostalgia da virada do século e do milênio, ou a
vontade de voltar um pouco ao passado, que rapidamente vai desaparecendo, tem trazido em muitos a lembrança da Rio Preto antiga. Quando me
refiro aos anos 50 e 60, a sensação que se tem é que tudo ocorreu há muito
pouco tempo. Contudo, refazendo as contas, sou surpreendido ao verificar
que são lembranças de 40 ou 50 anos passados. Hoje quero lhes contar um
pouco da história dos hospitais que existiam na época, e descrever alguns
dos tipos que para mim se tornaram inesquecíveis. Os hospitais, na sua
maioria, eram chamados de Casas de Saúde, nome que sempre achei muito
próprio, pois não se tratavam de estabelecimentos meramente comerciais,
e sim lugares onde se cuidava da saúde no sentido mais amplo da palavra.
Lembro-me dos nomes sem qualquer dificuldade: Santa Casa de Misericórida
e Sanatório São José, a ela anexo. Na primeira, eram tratados os indigentes,
na segunda, aqueles que podiam pagar por seus tratamentos. As acomodações eram diferentes, porém os cuidados eram propiciados pelos mesmos
médicos, nas mesmas salas de exames, no mesmo centro cirúrgico e com a
mesma dedicação. Os indigentes nada pagavam, e os médicos os atendiam
gratuitamente, de bom grado, como parte do seu compromisso para com a
sociedade.
Havia também as Casas de Saúde “particulares” – Casa de Saúde Santa
Helena, Casa de Saúde e Maternidade Nossa Senhora das Graças, Hospital
São Luiz, Hospital Bezerra de Menezes e Casa de Saúde São João. Em cada
uma , “pontificava” um líder com características próprias, e que fazia da Medicina o seu sacerdócio. Quase todos os médicos, mesmo pertencendo às diferentes entidades, não deixavam de dar seu trabalho no atendimento gratuito
dos indigentes da Santa Casa. Não se tratava de obrigação, mas de atitude
espontânea e assumida de não deixar o pobre sem assistência. A população
também colaborava, pois o “governo” ainda não tinha se tornado o “guardião”
incompetente da saúde, e cada cidadão se sentia no dever de colaborar, dentro
de suas posses, para que a sociedade mantivesse seu equilíbrio.
Como já disse, os médicos davam seu trabalho e aqueles que mais
podiam mantinham as instituições de caridade com contribuições em dinheiro ou em espécie. Quantas vezes vi chegarem à Santa Casa sacos de
arroz e feijão, frangos, porcos, verduras e legumes como parte da demonstração da solidariedade vigente àquela época. Mas, como ia dizendo, cada hospi67
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tal tinha suas características, que eram determinadas pelo médico que assumia as funções de conduzir os seus destinos. Assim, sem querer esgotar
o assunto e sem prejuízo de muitos outros que contribuíram para a grandeza de nossa Medicina e de nossa cidade, citarei algumas das personalidades que marcaram minha infância, adolescência e idade adulta. De fato,
muitos deles influíram de forma decisiva na escolha, da minha profissão e
da minha especialidade.
Lembrar do Dr. Cenobelino de Barros Serra é um exercício de cidadania. Cirurgião exímio, político sagaz, contribuiu durante muitas décadas para
consolidar nossa cidade como centro de vasta região. Seguiu sua saga o Dr.
Oscar Dória, seu sobrinho, cirurgião virtuoso, político com idéias sempre
avançadas e um dos baluartes do nosso progresso no campo da Medicina.
Na Santa Helena, a figura ímpar do Dr. Gilberto Lopes da Silva era a própria
expressão do “médico operador”. Tive o privilégio de conviver com ele desde criança e, ao longo do tempo, como estudante de Medicina e já como
médico. Sua influência foi enorme, não só em mim, mas em toda uma geração de jovens, tendo como expressão máxima, seu filho, o Dr. Gilberto Lopes
da Silva Filho. Com certeza, todos conseguiram captar-lhe o verdadeiro sentido da arte de curar. No Hospital São João, que antes havia sido a Casa de
Saúde do Dr. Taves, que não tive o privilégio de conhecer, trabalhava o Dr.
Lotf João Bassitt, que, além de médico, era a identidade do cidadão comprometido com a sociedade, vindo a ser um dos melhores prefeitos que Rio
Preto já teve. Na Maternidade Nossa Senhora das Graças estavam o Dr.
Funes, o Dr. Nazareth (pai), o Dr. Arroio e o Dr. Tácio Dória, desenvolvendo o início da especialidade da ginecologia e obstetrícia em bases científicas.
O Dr.Tácio, pessoa extremamente afável, sempre foi um grande amigo e me
introduziu no mundo da eletrônica, naquela época em que os rádios funcionavam a válvula e o melhor da comunicação era feita pelos radioamadores,
campo no qual o Dr. Tácio foi um pioneiro e um entusiasta contagiante.
A geração da qual mencionei alguns representantes não se esgotou
nela mesma. A maior parte dos seus descendentes de primeira, segunda e
terceira gerações continuam exercendo Medicina, mostrando que a tradição
da profissão segue ainda os princípios do seu fundador Hypocrates, que pontificava a obrigação de que o médico deveria ensinar a profissão aos filhos e
aos filhos dos filhos dos seus colegas. Não quero, de forma alguma, dizer que
o médico deva sempre vir de uma família de médicos, pois isso seria um
absurdo, mesmo porque, tenho sempre afirmado que o médico já nasce médico. Ele existe no meio da população e é chamado ao mister de curar por
uma determinação que está acima da sua própria vontade. Mas, de qualquer
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forma, é muito interessante notar a influência genética ou comportamental
que têm os ancestrais a determinar os destinos das gerações que se seguem.
Aqui em nossa cidade é muito fácil verificar que os nossos pioneiros da
Medicina deixaram raízes profundas, não só na sociedade, mas em suas famílias, criando uma tradição muito benéfica para não perdermos o rumo que
a história nos impõe.
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CIDADE ANTIGA (2)
“Velha Rio Preto”. Será a expressão dos saudosistas ou trata-se de
relembrar um tempo em que tudo era mais simples, mais direto e menos hipócrita? Não sei a resposta, mas, com certeza, vivíamos muito mais alegremente,
sem sobressaltos. Conhecíamos a maior parte das pessoas e sabíamos suas
qualidades e seus defeitos. Estes nem sempre eram defeitos insuperáveis e a
sociedade procurava manter o equilíbrio necessário para que não houvesse
demasiado sofrimento. A Rio Preto antiga não era grande, mas tinha ares de
uma cidade cheia de progresso e de esperança. Todos estavam cientes de estar
vivendo o aparecimento de uma cidade que se transformaria em uma metrópole, e que seria um exemplo para o País. Esse era o clima que eu, criança e
jovem, sentia em cada manifestação da sociedade rio-pretense.
Pensei, então, se eu também poderia relembrar alguns fatos que trariam à memória aqueles tempos e passassem aos mais jovens, que não viveram aqueles tempos, um pouco do “clima”que aqui reinava. Não tínhamos
muitas escolas, e quase todas elas pertenciam ao Estado. A qualidade do
ensino era de alto nível, e rigorosamente controlada por Inspetores Federais
do calibre do Prof. Luiz Jacob, ou do sempre lembrado emérito cirurgião Dr.
Oscar Dória. As provas finais eram elaboradas pelo Ministério da Educação,
e quem não soubesse responder às questões era reprovado. O interessante é
que não se reprovava apenas o aluno, mas o professor também, pois se os
alunos de um determinado mestre não tivessem bom aproveitamento, ficava
claro que o professor não tinha competência.
Lembrar do Grupo Escolar Cardeal Leme no seu antigo prédio, onde
hoje está localizado o Fórum, e onde já havia sido o cemitério, nos trazem
lembranças indeléveis de organização, respeito e medo. Os professores faziam
da sua profissão a meta completa de suas vidas, e tratavam os alunos com um
misto de rigor e carinho, que se mostrava extremamente produtivo.
O atual Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, àquele tempo,
chamava-se Colégio Estadual Monsenhor Gonçalves e, acreditem os jovens
de hoje, para conseguir uma vaga no antigo primeiro ano do Ginásio, havia
um exame de admissão, como os vestibulares. Acontece que os candidatos
eram crianças de 10 ou 11 anos de idade, que tinham que disputar uma vaga
para continuar seus estudos. Lembro, como se fosse hoje, do medo do exame e da alegria de ter conseguido a tão almejada vaga. Também, imaginem
cerca de 400 candidatos para apenas 80 vagas! O Ginásio e o Colégio funci70
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onavam em regime semimilitar. Os alunos iam para as aulas trajando uma
“farda” de cor cáqui, composta de paletó e calças de estilo militar, camisa
branca e gravata preta. Os botões eram pretos e seguiam o modelo das forças armadas. Naquele tempo, o calor que fazia era o mesmo que sentimos
hoje, mas ninguém podia frequentar a escola sem o uniforme oficial, perfeito
para um país frio como o Canadá, por exemplo. A entrada para as classes se
dava rigorosamente às 7 horas da manhã, em fila dupla, absoluto silêncio e
concentração total. Uma vez na sala de aulas, ficávamos sentados, aguardando a entrada dos professores. Quando estes entravam, todos se levantavam em sinal de respeito e a aula começava. Os professores tinham posição
de destaque na sociedade, ganhavam como magistrados e eram considerados pedras angulares para a formação cultural e moral dos alunos. Citá-los
aqui seria quase impossível, foram tantos e tão queridos, que seria um crime
esquecer algum deles.
Ao lado das escolas do Estado, havia umas poucas particulares que
tinham o mesmo esmero no preparo dos seus alunos, orgulhando-se com as
vitórias de cada um deles. Se o que acabo de descrever é simples saudosismo
não sei. O que me preocupa é o rumo que o Ensino vem tomando ao longo
das últimas décadas. Não existe dúvida que ele era elitista no passado, dando
oportunidade a poucas pessoas que, ou tinham que ser muito capazes, ou ter
recursos econômicos para se deslocar para a capital do Estado, onde estudavam nos colégios internos. Fazia-se necessário democratizar o ensino, tornálo acessível a todos. Os poderes constituídos lançaram-se nesta campanha
meritória, mas não preservaram algumas das prerrogativas que jamais poderiam ter sido abandonadas. Não mantiveram a qualidade do Ensino, tornando-o superficial, pouco eficiente e apenas teórico. Deixaram de investir nos
professores, passando a pagar-lhes salários vis, obrigando-os a uma enorme
carga de trabalho para sobreviverem pobremente. Deixaram de fazer avaliações dos cursos para manter o ensino em um nível mínimo desejado. Surgiram consequências positivas e negativas. Uma grande massa de jovens tem
hoje acesso ao ensino fundamental e médio. Em contraposição, o nível de
conhecimentos transmitido é precário. Os professores, que eram molas mestres da sociedade, hoje são profissionais mal pagos, muitas vezes desinteressados e sempre cansados.
Será que é justo entregar a formação dos futuros dirigentes do nosso
País a uma classe desprestigiada e massacrada por políticas esdrúxulas de
um governo que não acredita em cidadania? Deixo a interrogação e o alerta
que, sem mestres bem formados, bem pagos e cientes da importante missão
que exercem, caminharemos cada vez mais pelas veredas do subdesenvolvimento intelectual e material. Não quero alongar-me e entrar no capítulo do
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ensino de terceiro grau, onde os problemas se intensificam, pois estamos
formando profissionais de segunda classe pela falta total de sensibilidade
dos dirigentes do País. Louve-se a atitude recente do ministro Paulo Renato,
que está tentando verificar pelos “Provões” e pela avaliação dos cursos superiores, a quantas anda o descalabro do Ensino Universitário. Vamos aguardar ansiosos os resultados, a médio prazo, destas medidas que poderão devolver dignidade ao Ensino, medida fundamental para o desenvolvimento e
equilíbrio da Nação.
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CORAGEM
Finalmente nosso Presidente da República parece ter acordado e
entendido que parte da pobreza que existe no Brasil decorre da ação predatória dos assim chamados países desenvolvidos. As barreiras alfandegárias a que submetem nossos produtos, sejam eles primários ou manufaturados, têm a única finalidade de proteger os seus cidadãos em detrimento
dos nossos. Isso seria até normal ou justo se não exigissem de nós comportamento completamente diferente e antagônico. Explicando melhor: nossos produtos não podem entrar nos seus países, mas os produtos deles têm
que ser internados no Brasil sem qualquer restrição. Não sei o que aconteceu com o Presidente FHC ao ser tão enfático sobre o assunto: ou teve um
vislumbre de lucidez durante sua estada no Uruguai ou perdeu o medo dos
Estados Unidos e da Comunidade Européia. Temos que estar cientes que
as barreiras alfandegárias não são exclusivamente representadas por taxas
aduaneiras. Existe uma outra forma de barrar os nossos produtos muito
mais sutil e difícil de ser transposta. Trata-se de barreiras “técnicas”– não
tarifárias. É desta forma que não permitem que a maior parte dos produtos
brasileiros manufaturados entre em seus países. Pelo “simples” fato de não
terem aprovação, por exemplo, do famigerado FDA Americano (Federal
Food and Drug Administration) – Administração Federal dos Alimentos
Medicamentos e Correlatos. Assim, protegem suas indústrias de forma escandalosa. O mesmo está acontecendo agora com o CE-Mark, o Selo de
Qualidade exigido pela Comunidade Européia, sem o qual é impossível
vender para os países pertencentes àquele mercado comum.
Temos experiência própria e bem vivida neste campo. Imaginem que
fabricamos, aqui em Rio Preto, válvulas cardíacas biológicas de alta qualidade que são aceitas em todos os países não alinhados. Não é possível, contudo, vendê-las nos Estados Unidos, pois dependeriam de aprovação governamental com custos incompatíveis com a nossa realidade. Desta forma, fecham seu mercado, permitindo que apenas duas companhias americanas as
fabriquem e as comercializem. Não existem diferenças científicas que justifiquem tal comportamento, pois, na literatura internacional provou-se que a
qualidade dos produtos brasileiros é tão boa ou melhor que a dos americanos. Acontece que temos condições de vender uma válvula por cerca de 300
dólares, enquanto eles a vendem por 3.000 dólares. Mas, pasmem, senhores
leitores, as válvulas americanas podem ser vendidas aqui sem qualquer bar73
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reira, e sem pagar impostos aduaneiros. Além disso, o lucro aferido é remetido para as matrizes sem pagar imposto de renda. Desta forma, fica fácil
entender porque somos pobres, e eles são ricos. Porque eles são desenvolvidos, e nós somos colônia. Porque eles têm recursos para desenvolver
tecnologia com rapidez, e nós continuamos a pensar no carro de boi como
solução do nosso transporte. Isso explica também porque a educação nos
países desenvolvidos é prioritária e porque, aqui, continuamos pensando em
como educar convenientemente o nosso povo.
O Brasil sofre como um todo, e nossa região também sofre. Por
exemplo: o desmonte da cultura da laranja foi motivado pelo simples fato
de que não é possível exportar o fruto do nosso trabalho por causa de
barreiras a nós impostas. Por outro lado, os insumos para o tratamento
fitossanitário e adubação entram no País, produzidos fora dele, e a preços
exorbitantes, inviabilizando a atividade. Não consigo compreender o motivo de não sermos competitivos com a borracha natural, pois temos em
nossa área uma das maiores plantações de seringueira do mundo. No entanto, a multinacional que aqui processava o produto abandonou-nos. Será
que, eternamente, seremos dependentes da vontade dos mais poderosos?
Ao longo do tempo, nossa população tem mostrado a sua capacidade de
adaptação tecnológica, implantando culturas e novos empreendimentos
que não necessitam de proteção governamental, mas carecem de apoio
para evitar a competição desleal provocada por multinacionais que, com a
desculpa da globalização, acabam destruindo todo o nosso esforço. Esperamos que o presidente, de fato, tenha acordado do seu sonho de ser um
ator shakespeareano e participe da nossa realidade, junto a Mário e Oswald
de Andrade, na construção da Nação brasileira.
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O HOMEM
EM
MARTE
Nem sempre é possível desenvolver um assunto que se encaixe como
uma crônica e, mais difícil ainda, que fique absolutamente restrito a nossa
cidade. Apesar dos fatos acontecerem diariamente, muitas vezes a nossa
sensibilidade não consegue transformá-los em algo que seja atrativo ou útil.
O que vou lhes contar hoje não é uma crônica e, tampouco, desenrolou-se
em nossa cidade. Trata-se da recente visita que fiz ao Cabo Canaveral, nos
Estados Unidos da América do Norte, onde se localiza o “Kennedy Space
Center” (Centro Espacial Kennedy). Desnecessário dizer que o centro pertencente à NASA (National Aeronautics and Space Administration), Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço, que recebeu este nome em
homenagem ao Presidente J. F. Kennedy cujo entusiasmo pelo programa espacial americano ecoa ainda em nossos ouvidos... Assim ele se expressou:
“Com certeza a entrada no programa espacial promete altos custos e muitos
sacrifícios, assim como grandes recompensas. Mas o homem, em sua busca
de conhecimentos e progresso, é determinado e não pode ser detido. Os
olhos da humanidade estarão a partir de agora voltados para o espaço, para
a lua e para os planetas mais distantes”. De fato, assim aconteceu. Após os
primeiros voos espaciais, o homem quis conquistar a Lua e o fez em dezembro de 1968. Neil Armstrong, ao pisar pela primeira vez o nosso satélite
natural, disse a famosa frase: “Este foi um pequeno passo para o homem,
mas um enorme salto para a humanidade”. Ele estava certo, o desejo de
novas conquistas tornou-se cada vez mais forte e a vontade de ir muito mais
longe tomou conta de astronautas, engenheiros, cientistas, técnicos, políticos e do povo em geral! Com enormes quantidades de dinheiro, muito esforço e um pouco de sorte, com certeza chegará o dia em que novos planetas
receberão nossa visita. O que se pode sentir hoje na atmosfera que reina no
Centro Espacial Kennedy é uma efervescência borbulhante de conhecimentos e de conquistas que desafiam a imaginação de qualquer ser humano, por
mais sonhador que ele seja. A ideia de que ficaremos eternamente confinados à Terra não parece ter guarida naquele local. Tudo nos induz a admitirmos como eminente a possibilidade de colonizarmos novos astros celestes e
passarmos a viver neles como vivemos hoje aqui. Evidentemente, as condições já conhecidas dos planetas que orbitam, como nós, em volta do mesmo
Sol, não são próprias para os seres que habitam a Terra. A tecnologia que
esta em desenvolvimento, porém, mostra com clareza que será possível criar
uma atmosfera artificial autossustentada, onde poderemos viver, procriar,
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trabalhar e lançar-nos na conquista de novos corpos celestes. Seremos precedidos por “Robots” extremamente “inteligentes” capazes de construir
este mundo do futuro que só era imaginado nas histórias de ficção. Quem
quiser vê-los trabalhando, basta percorrer a área a eles destinada dentro do
complexo do Centro Espacial e ver do que são capazes. Orgulham-se de
ser muito mais resistentes que o próprio homem e mais adaptados para
conquistar e adequar o espaço que um dia, eventualmente, será ocupado
por nós. Eles se “sentem” como os verdadeiros conquistadores do futuro e
“conversam” neste tom com os visitantes. Os enormes foguetes propulsores e os ônibus espaciais nos dão uma visão clara do futuro próximo que se
vislumbra. As viagens espaciais em breve não serão privilégio de uns poucos e sim uma conquista de todos. Já vivemos esta situação no passado
com a invenção da roda, da máquina a vapor, do automóvel, do avião, que
rapidamente foram integrados ao cotidiano do homem comum. Não é absurdo imaginar que ainda em nossa geração poderemos passar um fim de
semana na Lua ou férias em Marte. Por sinal, o programa para colocar o
homem em Marte nesta década está em contagem regressiva acelerada.
Diante de todas essas possibilidades, parece insano que o homem continue
mostrando sua face primitiva, matando-se em guerras inúteis, usando drogas que destroem a sua privilegiada mente, capaz de criar as realidades
ilimitadas geradas pela imaginação. Continue, ainda, sendo mesquinho para
com seu próximo, permitindo que seus irmãos morram de fome e frio, quando o equilíbrio da sociedade é mais importante que mais alguns tostões
avaramente guardados. Diante de todas as conquistas de hoje e das imensas possibilidades futuras, senti que Deus nos tem dado tantas provas de
amor, permitindo-nos transformar os desejos mais avançados em realidades palpáveis. Assim, que deveríamos parar e meditar profundamente se
não existe uma maneira de conquistar a nossa felicidade baseada também
no nosso amor pelo próximo. Afinal, estamos todos juntos nesta esfera que
gira sobre si mesma e se transloca em volta do Sol, que também se movimenta dentro do espaço infinito. Quem sabe a possibilidade concreta da
conquista de outros mundos nos torne mais unidos e menos egoístas!
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MENSAGEM
AO
MÉDICO
No livro Millenium reunimos uma série de crônicas sobre a Medicina
no Terceiro Milênio, publicadas no Diário da Região, a partir de novembro
de 1998. A obra contém ainda alguns outros escritos, mostrando nossa visão sobre a vida, a ciência e o mundo. O livro foi lançado junto aos colegas
da especialidade, no 27º Congresso Nacional de Cirurgia Cardíaca, no Rio
de Janeiro. No início do próximo mês, lançaremos nossa humilde obra em
nossa querida São José do Rio Preto. O último capítulo de Millenium mostra
a missão do médico, e é relembrado agora, também neste livro. Espero que
gostem, pois, realmente, é o que pensamos, é como vivemos e é o que aspiramos como sentido e ideal de vida.
Mensagem ao Médico
Somos médicos e devemos nos orgulhar de nossa
profissão. Tais palavras podem soar vazias no contexto
dos dias atuais, mas devem ser resgatadas, não só para a
valorização da nossa profissão, como também para a segurança da Sociedade. O conceito moderno de saúde é o
perfeito bem-estar físico, psíquico e social da comunidade. No centro da constelação, responsável pelo funcionamento harmônico do sistema, está o médico. Não o médico mercenário, indiferente, simples operador de máquinas, mas o médico humano, caridoso, carinhoso, competente e líder por excelência. Assim devemos ver e sentir a nossa profissão. Não somos frutos apenas de estudos
especializados, mas de uma vocação que devemos seguir
de forma simples e voluntária. O verdadeiro médico sempre existiu. Ele já nasce médico. Com o progresso
tecnológico, simplesmente foi possível aperfeiçoá-lo.
Mesmo as sociedades mais primitivas sempre tiveram, em
seu seio, aqueles que se dedicavam à arte de curar, ocupando posição de destaque e respeito. Estes sentimentos, esta postura e consciência precisam ser resgatados.
Somos parte importante e indispensável da Sociedade,
merecendo dela reconhecimento e valorização, não só
pelo que representamos para a sua economia, mas também pelo que lhe oferecemos em troca, principalmente
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Amor. É impossível separar a nossa profissão do amor.
Amor ao próximo, vontade de diminuir seus sofrimentos,
desejo incontido de ser-lhe útil, de prevenir-lhe as doenças, de curá-lo quando possível, de prolongar-lhe a vida
com boa qualidade, quando a cura for impossível. E, finalmente, fechar-lhe os olhos, quando a grande viagem
for irreversível. Assim deve ser o médico: feito de verdade e não de mentiras. Feito do desejo de servir, e não
forjado pela ambição do dinheiro e do poder. Os médicos
já nascem médicos. Entretanto, sabemos que muitos colegas, que não nasceram médicos,conseguem um diploma. Estes são apenas tecnocratas da Medicina, sem qualquer calor humano, sem o Dom de curar, sem a vontade
suprema de ser útil ao seu semelhante. Somos o centro
das atenções em todo o complexo sistema de saúde, e
somos também os responsáveis por nosso destino. Só poderemos resgatar o respeito que nos é devido, e de que
certamente somos merecedores, no dia em que nos doarmos à nossa profissão com todas as forças, almejando o
bem-estar da sociedade como um todo, e integrando-nos
a ela como líderes verdadeiros, e não impostos. Cada um
de nós faça um exame de consciência e procure analisar o
seu comportamento como médico no verdadeiro sentido
da palavra. Médico que cura, alivia, aconselha e participa de todas as atividades que se relacionam com a sua
profissão, pelo simples fato de que é médico e sempre o
foi. Mesmo antes de sê-lo. A relação do médico com o
paciente é única e insubstituível e, apesar das dificuldades atuais, decorrentes da intermediação dos provedores de saúde, temos que manter a nossa dignidade para
fazer jus ao respeito daquele que é o único motivo do
nosso trabalho: o doente, fonte primeira da nossa inspiração e alvo de todo nosso conhecimento e dedicação.
Orgulhem-se de ser médicos. Eis uma profissão privilegida
que permite penetrar no fundo da alma das pessoas, pois
a Medicina, quando exercida com o amor que deve sempre acompanhá-la, resulta na melhor recompensa que um
ser humano pode receber: obrigado, doutor, por salvarme a vida... por devolver-me meu filho... por curar minha mãe... por aliviar os sofrimentos da humanidade.
Obrigado, doutor!!!
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NOSSOS AVANÇOS
Participei na semana passada do 27º Congresso Nacional de Cirurgia
Cardíaca, realizado, desta vez, no Rio de Janeiro. O Congresso é itinerante, e
a disputa pela cidade que vai sediá-lo é uma verdadeira demonstração de
interesse e dedicação dos membros da Sociedade. São mostrados vídeos exaltando as qualidades de cada uma das concorrentes e, ao final, a assembléia
acaba decidindo quem vai ter a honra e o ônus de organizar um dos eventos
do mais alto nível científico em nosso país. Os próximos congressos já estão
agendados para Belo Horizonte e Natal. Espero um dia ter a honra de trazêlo para Rio Preto – mesmo não sendo uma capital – pela importância da
nossa cidade no cenário nacional da especialidade. Volto muito satisfeito
com os resultados apresentados durante os três dias de duração do conclave.
Tive o privilégio de participar da fundação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, e assisti ao seu primeiro Congresso há 27 anos.
Quanta diferença...
Éramos meia dúzia de cirurgiões, liderados pelo saudoso professor
Zerbini, tentando demonstrar capazes de desenvolver técnicas e de implantar uma cirurgia cardíaca de nível internacional em nosso país. Agora são
mais de 1.000 participantes, cada um muito confiante em seu desempenho,
mostrando que o Brasil, apesar dos seus problemas, das suas mazelas, da
violência que assola nossas cidades e nossos campos, é um país viável e que
ditará, com certeza, os rumos deste milênio que estamos adentrando. Participaram das atividades dez convidados estrangeiros, afora os muitos que
vieram aprender como se faz Medicina de alto padrão resolutivo em um país
em desenvolvimento, com criatividade ímpar e baixos custos. Procurei observar e conversar com estes nossos colegas estrangeiros e, durante todo o
tempo, senti o quanto ficam admirados com tudo o que acontece aqui neste
imenso e fantástico Brasil.
Recentemente, em um Fórum Mundial para avaliar as melhores e
mais importantes contribuições para a evolução da cirurgia cardíaca no mundo, foram escolhidas as 40 de maior impacto. Para satisfação de nós, brasileiros, 12 delas foram desenvolvidas em nosso país, sendo uma aqui em Rio
Preto! Durante este Congresso, um outro motivo de grande satisfação para
nós foi o fato de, pelo segundo ano consecutivo, ganharmos um dos principais prêmios oferecidos aos melhores trabalhos apresentados. A seleção é
feita por uma comissão de notáveis, que muito valoriza a conquista. Um dos
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meus discípulos, Dr. Orlando Petrucci, seguindo uma linha de pesquisa à
qual nos dedicamos há mais de 30 anos, foi capaz de demonstrar, experimentalmente em porcos, as vantagens de um sistema de proteção miocárdica
desenvolvido por nossa equipe. Trata-se do uso de soluções especiais, que
além de protegerem o coração durante as operações, podem mesmo ressuscitálo, quando se encontra em condições extremamente precárias. Fez juz ao
prêmio, e foi motivo de muita alegria vermos os frutos do nosso trabalho
serem recompensados com o reconhecimento dos nossos pares. Esta linha
de pesquisa tem sido um dos carros-chefes da nossa atividade no campo
experimental. Agora mesmo, dentro do princípio da ressuscitação, estamos
estudando, por enquanto em cobaias, a possibilidade de viabilizar corações
de pessoas que já tenham falecido a duas ou três horas para serem usados
nos transplantes cardíacos. Fica fácil imaginar qual seria o alcance de uma
técnica como esta, que ampliaria de forma exponencial o número de doadores, pois estaríamos lidando com cadáveres, e não com doadores apenas com
morte cerebral.
O nosso país, a nossa cidade e a nossa gente têm um potencial enorme que rapidamente vem desabrochando, apesar da má vontade e das imposições esdrúxulas dos chamados países desenvolvidos. Para eles, teríamos
que ser eternas colônias, a dizer amém a todos os seus conceitos e postulados. O que vemos é que temos personalidade própria em todos os campos,
desde a nossa música até os mais difíceis ramos da ciência. Aí esta a Embraer
com seus jatos, a quarta maior empresa de aviões do mundo. A Embrapa
com toda a conquista do cerrado. As nossas Universidades dando um testemunho da sua eficiência no estudo do Genoma. O Instituto Ludwig, comandado pelo Ricardo Brentani, meu colega de turma, apresentando novos conceitos no tratamento do câncer. E, entre tantas outras, a cirurgia cardíaca,
que neste 27º Congresso, mostrou mais uma vez todo seu potencial, firmando-se como uma das mais importantes do mundo.
Ao lado de toda esta alegria, fica a tristeza de ver a corrupção, principalmente dos políticos, tentando destruir nossa dignidade e confiança nos
dias melhores que por certo virão. O bem há de vencer o mal, e estes corruptos serão destruídos pela capacidade criadora e produtiva de um povo que
sabe o que quer, e que um dia cumprirá a profecia de Dom Bosco, para
tornar-se a nação que ditará os novos rumos da humanidade.
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BRASILIDADE
Sinto que nosso país e seus habitantes estão preparados para, com
civismo, colocar a nação brasileira na posição de destaque que merece pela
sua evolução ao longo dos tempos, principalmente no século que há pouco
terminou. É importante deixar claro que o Brasil foi a nação que mais
cresceu, tanto do ponto de vista econômico quanto social, no último século, apesar de mostrar-se ainda injusta pela péssima distribuição de renda
que ostenta. A explicação para esse fato não é difícil de ser entendida, pois
partimos de um patamar muito baixo, que leva tempo para ser revertido.
Mas, hoje, tenho certeza de que uma nova mentalidade do povo brasileiro
está formada e, rapidamente, muitas conquistas beneficiarão as classes menos favorecidas, simplesmente porque é essa a nossa vontade, é esse o
nosso sonho. A corrupção, um verdadeiro câncer social, continua existindo, mas já é vista como absurda e todos têm consciência de que ela deve
ser eliminada para que possamos ter uma distribuição de renda mais
equalitária. Políticos corruptos terão cada vez menos espaço e, com certeza, dentro em breve, serão riscados do cenário nacional. A Lei de Responsabilidades Fiscais está deixando muita gente preocupada, e a curto prazo
veremos seus resultados com o tratamento do dinheiro público como um
bem social, e não como o privilégio de uns poucos! Como não posso fazêlo, pelo espaço que demandaria, darei aos prezados leitores a oportunidade
de conferir um dos e-mails, que traduz, em linhas gerais, o sentimento de
“brasilidade” que, esperamos, possa espalhar-se como um rastilho de pólvora a incendiar as mentes de todos os brasileiros de todas as classes sociais e, principalmente, daqueles que são os responsáveis diretos pelos destinos desta “Nação-Reserva”, potencial do novo milênio. Mas vamos à síntese da mensagem, enviada por Vera Nice Bonfá Martucci.
“Venho por meio deste dizer-lhe o quanto gostei do seu artigo ‘Pensamentos’, publicado no Diário. Serviu para mim como reflexão, principalmente por muitas vezes ter a sensação que nosso país
não teria conserto! Afinal, esta geração dos anos 60 passou por maus
bocados e sem querer influenciou os filhos... Bem, mas amo o meu
país e agora que estou tendo mais contato com os jovens
intercambiários do ‘Rotary’, vejo que precisamos estar atentos e ter
conhecimentos para bem divulgarmos o Brasil. Minha filha caçula foi
intercambiária em 2000, tendo sido para nós uma luta conseguir material de divulgação do País, que não fosse só vídeo de carnaval, com
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Domingo Braile
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mulheres nuas. Achei um ‘folder’ sobre Rio Preto, com uma foto bonita, mas com muitos erros na descrição em inglês que o acompanhava.
Enfim, cada pai separadamente conseguiu incluir na bagagem dos filhos o que de melhor encontrou. Mas nossos jovens precisariam ter
mais aulas de cidadania, mais informações, recordarem história, saberem um pouco de economia e desenvolvimento do Brasil, de sua
cidade, etc. Afinal de contas eles serão nossos embaixadores nos diversos países onde estudarão por um tempo. Além disso, estaremos
recebendo, este ano, estudantes de mais de 10 países, desde a Tailândia
até Rússia e Noruega. Desta forma precisamos de pessoas como o Sr.,
com conhecimento e cidadania, para com eles manter contato. Serão,
no futuro, possivelmente, empresários, professores, enfim, pessoas
que levarão do Brasil, além dos sonhos da juventude, das praias, da
caipirinha, do povo simpático e cordial, o conhecimento de que estiveram em um grande país. Lugar para onde eles podem voltar sem medo,
trazendo também seus amigos, manter negócios e nos ajudar a crescer! Minha filha Nathalia é presidente fundadora do Rotex, que está
apenas começando, mas que tem entre os membros da sua diretoria
jovens idealistas (inclusive o Edinho, filho do nosso prefeito). O Rotex
é a associação dos ex-intercambiários, que estarão ajudando aqueles
que partirão nas próximas turmas. A idéia deles, da qual sou apenas
intermediária, é poder contar com o Sr. para conversar e discutir assuntos que mostrem o potencial do nosso país. Brevemente o Sr. receberá um convite para ajudar esta juventude corajosa que parte para
longe e retorna com muita garra e vontade de vencer!!! Abraços, Vera
Nice Bonfá Martucci”.
Não poderia haver maior recompensa, para um simples articulista
amador, do que ser cogitado para infundir um pouco mais de “brasilidade”
nesta juventude que representa o futuro do Brasil e do POVO BRASILEIRO, e que será, com certeza, parte importante da reserva humanista e moral
da humanidade!!!
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Crônicas de um Médico do Sertão
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Segunda Parte
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Domingo Braile
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RIO PRETO
E A
MEDICINA
A oportunidade de ressaltar a importância da Medicina como um dos
pilares mestres para o desenvolvimento de nossa cidade é, para mim, sempre
motivo de alegria e muito orgulho.
A Sociedade de Medicina e Cirurgia de São José do Rio Preto, fundada em 1926, portanto, muitos anos antes da Associação Paulista de Medicina, representou, desde seu nascedouro, um fórum avançado da elite pensante,
fincada nos sertões por ainda serem conquistados deste imenso país. No
início da década de 1960, quando aqui me fixei, a Sociedade continuava
sendo um centro de grande atividade intelectual, não se restringindo às atividades apenas científicas, razão principal de sua missão. Numa visão de vanguarda, já se preocupava com a difusão dos conhecimentos na sua forma
mais ampla e abrangente. O incentivo à cultura e o acesso às artes, essenciais para a percepção holística da humanidade, eram tratados de forma especial, para que, mesmo afastados dos grandes centros, pudéssemos manter
nossa erudição à altura dos que estavam mais próximos das fontes criadoras.
Com a qualidade de iniciativas pioneiras e muita informação, a Sociedade
mantinha a classe médica unida em torno dos seus ideais. Esta herança
permeou os anos e permanece, até hoje, com a seriedade que caracteriza não
só a Sociedade, como também nosso Sindicato e os outros órgãos de classe
que, sob sua guarida, formaram-se e desenvolveram-se.
Não creiam, contudo, que a tarefa foi fácil. A sorte nos brindou com
pioneiros do mais alto gabarito. Profissionais que para cá vieram na virada
para o século passado, trazendo um cabedal de conhecimentos que tornou
Rio Preto, desde então, num grande centro de atendimento médico, atraindo
doentes de todas as regiões do País. Citarei aqui figuras antológicas de um
passado que poucos recordam, fazendo-o sem o rigor que mereceria, pois,
por certo, a memória me trairá. Mesmo correndo esse risco, relaciono alguns
dos nossos colegas que sempre povoaram o cenário dos grandes médicos em
minhas lembranças: Dr. Cenobelino de Barros Serra, que foi colega de Lênin
na Alemanha e veio para Rio Preto para ser um grande cirurgião, além de
político sagaz, tendo sido eleito prefeito da cidade por mais de uma vez.
Dr. Gilberto Lopes da Silva, outro cirurgião na verdadeira acepção da
palavra, e que mantém até hoje seu nome e sua fama pelos méritos dos seus
descendentes. Como o Dr. Cenobelino, ele também foi prefeito da cidade.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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Dr. Mário Valadão Furquim, pediatra com formação internacional,
um dos iniciadores da especialidade no Brasil.
Dr. Sinésio de Mello e Oliveira, grande oftalmologista, de formação
esmerada, que sempre se dedicou às causas sociais da comunidade. Foi presidente da nossa Sociedade e também, como os anteriores, prefeito de Rio
Preto. Seus descendentes deram continuidade a sua saga, mostrando amor
pela profissão que abraçaram.
Dr. José Maria Rolemberg, oftalmologista de grande prestígio, deixou
o importante Instituto Burnie de Campinas, do qual foi um dos fundadores,
para desenvolver sua atividade incansável em nossa cidade. Seus filhos e
netos prosseguiram sua obra contribuindo com seu trabalho, não só no campo médico, mas também como líderes associativos, dando grande impulso
ao progresso da cidade e da nossa Sociedade Médica.
Dr. Oscar de Barros Serra Dória, cirurgião maiúsculo que fez de Rio
Preto um centro de atenção pela sua destreza e criatividade, dentro da especialidade. Foi incentivador incansável dos jovens e um idealista a toda prova. Se hoje temos o Hospital de Base, devemos aos seus ousados sonhos.
Deixou-nos cedo, mas seus filhos e netos são a memória viva da nobre profissão que herdaram de um ascendente ilustre.
Dr. Radovir Antonio dos Santos, cirurgião e paladino da ética e da
defesa dos médicos. Nossa Sociedade tem para com ele uma dívida de gratidão que deve sempre ser lembrada.
Muitos outros deveriam ser reverenciados, porém, tomo a liberdade
de citar apenas mais um, o Dr. Hubert Richard Pontes, grande psiquiatra,
mas também um homem de coragem e visão incomparáveis. Digo isso porque, ao se estabelecer o INPS, hoje SUS, o Dr. Hubert ocupava cargo de
destaque dentro da hierarquia administrativa do referido Instituto. Naquela
época, eu iniciava aqui minha luta para dotar Rio Preto de um serviço de
Cirurgia Cardíaca, pioneiro em todo o interior do País. Não fosse a atitude
destemida do amigo Hubert, que acreditou no potencial de nossa cidade e
não mediu esforços para que uma portaria antológica, de número 39/69,
fosse promulgada, jamais teríamos conseguido atingir nossos objetivos. Tal
portaria praticamente obrigava os pacientes de uma vastíssima área do Brasil, que extrapolava a do nosso Estado, a serem aqui atendidos, permitindo
que pudéssemos competir com os afamados serviços da capital, fazendo de
Rio Preto um polo de renome internacional. Essa é uma pequena amostra
dos muitos colegas que aqui viveram, fazendo com suas vidas a história de
Rio Preto. Por intermédio deles, homenageio todos os companheiros que
transformaram Rio Preto no centro médico de excelência que é hoje.
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Domingo Braile
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Para enriquecer a narrativa e encerrando este giro compacto pela história da Medicina de Rio Preto, cujos primórdios foram decisivos para a cidade ser hoje referência nacional em tantas especialidades, transcrevo, a seguir, trechos, livremente adaptados, de um texto escrito pelo meu pai, também médico, que aqui chegou nos idos de 1929 exercendo Medicina de corpo e alma, trabalhando na profissão amada até ser chamado a exercê-la em
outra dimensão, na provecta idade de 86 anos. Trata-se de um Editorial,
elaborado por ele, publicado na edição inaugural da Revista da Sociedade de
Medicina e Cirurgia de Rio Preto, datada de janeiro de 1968.
O texto joga luz sobre as dificuldades enfrentadas pelos pioneiros, deixando evidente que o sucesso de nossa Medicina sempre foi construído com
muito sacrifício, bravura, abnegação e coragem. O esforço e a dedicação de
médicos que se sagraram heróis no início do século passado são tão valorosos
como as lutas e as dificuldades que até hoje muitos heróis, porém anônimos,
embatem para preservar e solidificar a força e a competência da Medicina de
uma Rio Preto que, cada vez mais, se agiganta e ganha ares de metrópole.
VIDA EPISÓDICA DE RIO PRETO
Lino Braile
Na época desta narrativa, o trenzinho de bitola estreita chegado em 1912 — fazia ainda aqui ponto final e a cidade era considerada “fim de trilha” rumo a oeste. O povoado, disforme e variado, estendia-se entre os riachos Canela e Borá nas suas desembocaduras no
Ribeirão Rio Preto. Tudo dava a impressão de um “far west” cheio de
pujança e de vida, fadado a dar lugar a uma linda e grande cidade.
Corria muito dinheiro e o comércio atravessava uma fase áurea de
sólidos e grandes negócios. Dois grandes fatores contribuíram para o
desbravamento dos 250 km de sertão que separavam Rio Preto das
barrancas do Rio Paraná: 1º) o apoio e segurança que os recursos médicos e operatórios ofereciam às massas humanas que penetravam
sertão adentro; 2º) as possibilidades que os fazendeiros desbravadores tinham em colocar suas safras no sólido e grande mercado de Rio
Preto. Mas, eis que surge a crise econômica mundial de 1929, que
atinge também a nossa distante e outrora rica região, trazendo graves
consequências. Assim, numa manhã, proveniente do sertão do Marinheiro, chega a Rio Preto um campônio que, por sua desdita, tinha
engolido a própria dentadura. Dizia-se dono de vastas terras e de numerosas manadas de gado, não possuindo, porém, numerário em
consequência da crise. O Dr. Cenobelino de Barros Serra, cuja alma
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Crônicas de um Médico do Sertão
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grande e generosa não conhecia limites, opera o inditoso e na altura
do cárdia remove-lhe a mortífera dentadura. Tendo recebido alta, o
paciente ruma para seu sertão, deixando uma promissória para pagamento das despesas hospitalares e honorários médicos. Depois de um
ano, vencido o título e avolumando-se as dívidas dos Hospitais e dos
médicos, o Dr. Cenobelino resolve, com dois amigos de confiança, enfrentar, em plena estação das chuvas, as precárias estradas do sertão
para chegar com um “Ford 29” à casa do cliente. A comitiva deixa Rio
Preto em uma manhã garoenta, não sem os protestos dos amigos que
desaconselhavam a viagem. Sertão adentro, o tempo fecha-se e, ao
entardecer, a tempestade inunda a precária estrada, tornando-a um
impenetrável lamaçal. O carro fica suspenso no trilho fundo, ladeado
pela suntuosa mata e impossibilitado de avançar ou retroceder. Seguindo o latido de cães, chegam a um rancho e o morador os informa
que o indivíduo procurado, apelidado de “Zê do bode”, mora a 12 km
dali e que a estrada não comporta passagem. O bom homem fornece
três montarias e assim a comitiva, deixando o Ford, ao anoitecer,
chega à morada do “Sr. Zê”. O espetáculo é desolador! À porta de um
rancho coberto de sapé está o homem da dentadura, rodeado dos filhos desnutridos e maltrapilhos. No terreiro berram um velho bode e
três cabritas magras — hiperbolizadas em pingue rebanho de bois pela
fantasia do caboclo na iminência da morte. “Sr. Zê”, surpreso, na realidade de sua infeliz miséria, mas esperto e sonhador, reage e se
anima. Abre as portas de seu rancho aos visitantes; propicia-lhes fogo
para enxugar-se; divide com eles o magro cardápio da família e acomoda-os para dormir em improvisadas camas de palha. Os três, pelo
cansaço e desapontamento, dormem sobressaltados. O Dr. Cenobelino,
no meio de pesadelos, com frequência desperta com a mão na carabina, pronto a ir dar termo à vida do homem que tinha salvo da morte.
Os companheiros o seguram, impedindo o ato desatinado. Ao fim de
uma horrível noite, finalmente amanhece.
O Ford, para grande surpresa dos três, está ali no terreiro.
É que durante a noite, debaixo de chuva, o “Sr Zê”, ajudado por
peões e com duas juntas de bois, emprestadas pelo vizinho, o tinha
rebocado à porta do rancho!
Reunido o “estado maior” sertanejo, este decide rebocar o
Ford por mais 15 km até uma estrada transitável que ia à balsa do Rio
Tietê. Dali, pelas estradas mais conservadas e transitáveis da Noroeste, o desafortunado Fordéco pode seguir viagem. E assim, sem ver
sombra de dinheiro e ainda ficando gratos a este povo tão amável, os
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três itinerantes, agarrados novamente à máquina, rumam para alcançar, pelo grande circuito Araçatuba, Birigui, Penápolis, sua querida
Rio Preto. Abatidos, cansados, perseguidos pelas chuvas, descansam
de noite nas fazendas onde encontram boa hospitalidade. Durante cinco longos dias, as famílias não têm nenhuma notícia dos viajantes,
sem nem poder sair em socorro deles, pois a implacabilidade das chuvas fechou todos os caminhos.
No sexto dia, bem de manhãzinha, aparece na frente do “Café
Pinho” o heróico Fordinho com o Dr. Cenobelino e os companheiros,
cheios de barro, barbudos, com os olhos fundos, por terem tido a ousadia de antever cidades, estradas e riquezas, onde permanecia o sertão bruto à espera de desbravadores!
Com seu estilo refinado de narrar, meu pai continua recheando o
Editorial com descrições de um habitante atento e observador, otimista e
visionário do crescimento da cidade. Ao final, encerra com palavras que
hoje, para nós, ressoam em tom de profecia realizada. Assim finaliza ele:
...Rio Preto conta hoje com a recém-criada Faculdade de Medicina. Em um primeiro tempo, limitar-se-á a formar hábeis médicos e
técnicos para atender aos doentes provenientes da vasta zona geoeconômica
cujo centro é São José do Rio Preto. Em um segundo tempo, estenderá
suas atividades aos estudos experimentais e de pesquisas para prestar
seu contributo ao progresso da Ciência. E assim se fez...
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SOCIEDADE
DE
MEDICINA
E
CIRURGIA
Em 1963, tendo terminado minha formação em São Paulo, como
sempre havia sido meu desejo, retornei a São José do Rio Preto, indo trabalhar na Casa de Saúde Santa Helena, com meu amigo inseparável e mestre
Dr. Gilberto Lopes da Silva Filho. Logo, por orientação dos colegas, tornei-me sócio da Sociedade de Medicina e Cirurgia (SMC). Na época, o
presidente era o Dr. Raul de Aguiar Ribeiro. Em maio do mesmo ano, juntamente com um grupo de idealizadores, realizamos em Rio Preto a primeira Cirurgia Cardíaca do interior do Brasil, com repercussão nacional.
Com grande alegria, apresentei a técnica utilizada em reunião científica
aos membros da SMC, usando na exposição slides feitos aqui na cidade,
vencendo desafios. A possibilidade de estar em constante troca de conhecimentos me manteve atuante junto à SMC, em que desenvolvi funções
que foram fundamentais para o meu crescimento profissional. Fui secretário geral na gestão do Dr. Helion de Mello e Oliveira, sendo, em seguida,
eleito presidente da Comissão de Defesa de Classe e vice-presidente da
SMC, na gestão do Dr. Radovir Antonio dos Santos. Tive a honra de ser o
criador e primeiro presidente do Congresso Médico do Oeste Paulista, uma
novidade absoluta naqueles tempos! Anos mais tarde, fui novamente escolhido para vice-presidente, na gestão do Dr. Eliseu Denadai, quando, então, presidi o 11º Congresso Médico do Oeste Paulista, em 1989, sentindo
que a semente que havia sido plantada em terreno fértil, não tendo sucumbido ao tempo, continua até hoje. Nesta diretoria, fizemos grandes alterações estruturais na sede da SMC. Transformamos um salão de festas, com
uma escada no centro, em um verdadeiro anfiteatro, como está hoje, dotando-o pioneiramente de ar- condicionado, uma raridade para a época!
Também tive a alegria de ocupar a presidência em algumas ocasiões, em
virtude de licenças dos titulares.
Um legado que me dá grande prazer é a história da construção da atual
sede do Clube dos Médicos, uma vez que, na época, a sede da SMC era localizada no centro da cidade, em instalações limitadas, que já não condiziam com
as necessidades da classe médica, que crescia em número e qualidade.
Tudo começou quando fui a Barretos fazer uma conferência sobre a
cirurgia cardíaca que nascia aqui no sertão. Recebeu-me, entre muitos outros ilustres colegas, o Dr. Paulo Prata, fundador do Hospital do Câncer de
Barretos, orgulho nacional. Fiquei muito bem impressionado com o Clube
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Médico daquela cidade, onde era possível desenvolver atividades científicas
e de lazer num mesmo local que, por ser amplo e aprazível, comportava
reuniões com grande número de pessoas.
Entendi que Rio Preto deveria ter espaço semelhante. Foi então que,
aos 27 anos, com vibração e dinamismo próprios da idade, lancei a proposta
aos companheiros mais antigos da diretoria. A ideia e o desafio foram aceitos
por todos. A Santa Casa possuía uma vasta área de terrenos, onde hoje estão
localizados a SMC, o Hospital de Base e a Faculdade de Medicina. Em uma
reunião emblemática da Irmandade daquele Hospital, conseguimos a doação
do terreno para a nova sede. Eu nutria grande amizade com o Dr. Nicolau
Oppide Neto, então diretor da previdência da Associação Paulista de Medicina (APM), que dispunha de recursos financeiros razoáveis para incentivar o
desenvolvimento das entidades a ela ligadas. Ressalte-se que a nossa SMC é
mais antiga que a própria APM, tendo se juntado a ela para o fortalecimento
associativo da classe. Acertado o apoio da APM e a colaboração efetiva dos
médicos de Rio Preto e da região, foi possível tomar providências para erguer
a nova sede, destinada a atividades científicas, culturais, sociais e recreativas.
Fazia-se necessário um projeto que fosse moderno, ousado e confortável. Havia, recém-chegados a Rio Preto, vindos da Universidade de Brasília, os arquitetos Lima Bueno e Ezio Glacy de Oliveira. A nosso pedido, apresentaram
uma solução arquitetônica que agradou a todos, sendo aprovada por unanimidade. Mais um detalhe tem que ser ressaltado: nada cobraram pelo trabalho,
pois se sentiram prestigiados em participar deste importante empreendimento
para a cidade. Foi escolhido o Dr. João Freitas para comandar a obra, e o fez
com muita competência e rigor nas contas. Durante a construção, havia uma
grande união dos médicos que sonhavam com a inauguração o mais breve
possível. Ficava claro que o desejo superava as dificuldades. A SMC foi o centro da difusão dos conhecimentos científicos até 1968, quando foi fundada a
Faculdade de Medicina (FAMERP), mudando o foco da atualização profissional e da difusão dos conhecimentos para aquela entidade. Devemos ressaltar
que esta nasceu no seio da nossa SMC, configurando o anseio idealístico da
classe, desejosa de ver consolidada a hegemonia de Rio Preto na área médica.
Diferentemente do que aconteceu em outras cidades, nas quais os médicos se
postaram contra a instalação do curso de Medicina, em Rio Preto o apoio foi
enorme. Da SMC surgiram todas as ideias e ações, sob a liderança do Dr. Raul
de Aguiar Ribeiro, que, contando com um grupo de médicos, a maior parte
deles diretores da entidade, não mediram esforços para fazer um antigo sonho
tornar-se realidade. Citando de memória alguns dos que colaboraram para o
êxito da missão, relembro, com respeito e saudades, os nomes de Dr. Raul de
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Aguiar Ribeiro, Dr. Oscar de Serra Dória, Dr. Antoine Yunes, Dr. Neon de
Mello Oliveira, Dr. Cléo Roma e eu. Fomos os primeiros diretores e vivemos a
alvorada dessa instituição de ensino que honra a medicina brasileira. Sinto a
enorme satisfação de, até hoje, continuar como um dos diretores, exercendo
minha atividade na pós-graduação há mais de 14 anos, vendo destacar-se mais
este marcador de qualidade da nossa área científica.
Desejo ressaltar, mais uma vez, o fato da nossa SMC ter surgido antes da APM, em decorrência da qualidade dos médicos que aqui praticavam
a arte de curar, no início do século passado. Pelo trabalho e dedicação destes
colegas, São José do Rio Preto conquistou a sólida tradição em Medicina que
conserva até hoje. Exerceram aqui a profissão médicos muito preparados
que atraíam a atenção de toda a grande área de confluência que centralizava
suas ações em nossa cidade. Novamente, citando de memória, não poderia
deixar de mencionar os colegas Dr. Fritz Jacobs, alemão de nascimento, riopretense de coração, grande médico, um dos fundadores da Santa Casa que
doou um terreno no centro da cidade para a SMC e para a Santa Casa, a sede
antiga está construída e onde a Santa Casa construiu um edifício que leva o
nome do doador, na esquina da Voluntários de São Paulo com a Marechal
Deodoro; Dr. Cenobelino de Barros Serra, grande cirurgião, político sagaz
que foi prefeito de Rio Preto por várias vezes; Dr. Gilberto Lopes da Silva,
outro cirurgião de alta estirpe (pai do Dr. Gilberto Lopes da Silva Júnior,
também um dos fundadores da Santa Casa e da Casa de Saúde Santa Helena), que foi prefeito de nossa cidade em uma época conturbada, conseguindo tranquilizá-la; Dr. Mário Valadão Furquim, de família tradicional,
pediatra com formação na Alemanha; Dr. Justino de Carvalho e Dr. Ernani
Pires Domingues, outros entre os grandes nomes da Medicina rio-pretense;
Dr. Sinésio de Mello e Oliveira, oftalmologista de renome, que também foi
prefeito de Rio Preto; em anos mais recentes, a figura do exímio cirurgião
Dr. Oscar Dória, sobrinho do Dr. Cenobelino, que levou longe o nome de
nossa cidade por sua competência e espírito científico. Outros médicos
também foram prefeitos, como o Dr. Loft João Bassitt, e o nosso sempre
presente Wilson Romano Calil. Incontáveis colegas foram ou são deputados e vereadores, levando aquilo que aprenderam no trato com os pacientes e os sofredores para as esferas governamentais. Descrevê-los todos seria difícil, pois, certamente, minha memória faria injustiças. Temos que
saber, contudo, que nada é por acaso, e que, se hoje somos uma cidade
líder no atendimento médico, se temos uma SMC atuante e uma Faculdade
de Medicina que nos enche de orgulho, devemos às bases sólidas lançadas
pelos pioneiros que acreditaram que nos sertões da araraquarense seria
possível fazer medicina de padrão internacional.
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Um dos nomes que tenho a honra de listar na galeria dos desbravadores da Medicina de Rio Preto é o do meu pai, Lino Braile. Médico formado
na Itália, veio para o Brasil e, em 1929, chegando a Rio Preto, logo tornou-se
sócio da SMC. Na época, a SMC não era apenas científica, ela buscava também a atualização e o desenvolvimento cultural dos médicos que viviam
longe dos grandes centros. É muito difícil preparar pessoas para liderança
sem dar-lhes acesso à cultura científica e também à cultura geral. Por isso, na
SMC ocorriam com frequência palestras interessantes, debates de temas atuais e concertos musicais por renomados artistas. Do ponto de vista científico, as diretorias esmeravam-se para manter os médicos atualizados com as
últimas conquistas nas mais diferentes especialidades. Nas reuniões que ocorriam todas as quarta-feiras, médicos locais faziam palestras, apresentavam
seus casos mais interessantes e discutiam os problemas concernentes à profissão, criando um clima de solidariedade e ajuda mútua. Aos sábados, convidados das melhores universidades vinham a Rio Preto, de trem, para multiplicar conosco seus conhecimentos. Estiveram aqui grandes professores da
USP, da Escola Paulista de Medicina e tantas outras faculdades para nos
ensinar. Também presidentes e diretores da APM e da AMB nos visitavam
com frequência, pois os laços com as nossas entidades maiores foram se
fortalecendo. Disso resultou a inserção de nossa cidade no contexto nacional com a presença de rio-pretenses nas diretorias das associações médicas
brasileiras. Recentemente tivemos o privilégio de ter o Dr. Eleuses Paiva
como presidente da AMB por dois mandatos, realizando um trabalho elogiado por todos, marcado pela aproximação da AMB com o Conselho Federal
de Medicina, resultando em grandes benefícios para a classe.
Todos os presidentes esforçaram-se para que a SMC tivesse uma posição de destaque nacional, defendendo nossa relevância como entidade de
classe atuante e resolutiva. A medicina aqui exercida foi um dos fatores
impulsionadores do grande desenvolvimento da nossa cidade. Atraindo pacientes que buscam por tratamentos especializados de alta qualidade, traz
também progresso e movimento que se capilariza por muitas outras atividades presentes em uma cidade que tem como característica a prestação de
serviços. Dessas atividades decorrem aumento da atividade comercial, movimento dos restaurantes, shopping centers, rede hoteleira, etc., gerando
empregos e renda. Isso, para nossa satisfação, é historicamente reconhecido
pelas autoridades que comandam nossos destinos.
Os médicos que fizeram a história da Medicina em Rio Preto sempre
foram de vanguarda. Na minha área, fizemos a primeira cirurgia cardíaca do
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interior do País, e isso em grande estilo. Dessa forma, São José do Rio Preto,
até hoje, é uma das principais cidades em que se opera coração, tanto no
Hospital de Base quanto na Beneficência Portuguesa. A Santa Casa e o Hospital Austa também mostram seu poder e pujança nessa área. Outras especialidades tiveram grande desenvolvimento, como transplantes de toda ordem,
Oftalmologia, Dermatologia, Ortopedia, Hematologia, Endocrinologia, Cirurgia Vascular, Ginecologia e Obstetrícia, Diagnósticos por Imagens, Medicina Nuclear, Cardiologia, Medicina da Família e praticamente todas as 54
especialidades reconhecidas pela AMB.
A SMC vive um processo constante de evolução e crescimento
muito salutar. Com a mudança das características da profissão, as médicas vêm ocupando rapidamente posições de destaque dentro da medicina, o que se reflete também nos órgãos de classe. Mostrando sua característica de pioneirismo, temos hoje, na presidência de nossa SMC, uma
médica, a Dra. Regina Volpato Bedoni. Com sua capacidade de liderança
e carisma, conquistou a todos, realizando um trabalho associativo e científico, digno dos maiores elogios.
Exerço medicina de corpo e alma há mais de 50 anos, e sou testemunha do progresso e das mudanças que a profissão teve neste meio século. Na minha turma da faculdade, dos 80 alunos somente oito eram mulheres. Hoje, na FAMERP, 70% dos estudantes são do sexo feminino. Acredito que isso representa uma evolução para melhor. A medicina não pode e
não deve ser exercida somente por homens, pois a sociedade é constituída
harmonicamente e as profissões devem representá-la. A falta de mulheres
em uma profissão como a medicina é ruim, pois desvia o eixo da natureza
que se mostra sempre equilibrada.
Eu espero que as novas gerações possam dar continuidade a essa tradição, criada por profissionais fantásticos. Muitos desses médicos pioneiros estão vivos e servem de exemplo e paradigma aos jovens, que neles devem se
espelhar. Lembro-lhes a figura quase centenária do Dr. José Arroyo Martins,
que foi provedor da Santa Casa por muitos anos, fazendo dela um hospital
moderno. Foi também fundamental na construção do Hospital de Base, pois
acreditou poder realizar o que parecia impossível. Tenho plena consciência
que a nova geração saberá honrar o legado que recebeu daqueles que sempre
trilharam o caminho do bem e da medicina seguindo os preceitos de Hipócrates
adaptados aos tempos atuais. Sejam todos felizes na jornada que os espera.
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DO AMIGO ROLIM
Sinto que existe uma vontade incontida nas gentes rio-pretense de
ver a nossa cidade como uma estrela brilhante no firmamento deste país,
repleto de oportunidades para os bons cidadãos. O Brasil certamente será,
num futuro próximo, o infinito onde refulgirá esta nossa estrela, quando os
maus políticos, os ladrões de colarinho branco e os facínoras forem punidos
como merecem. Por outro lado, as pessoas de bem têm que ser prestigiadas
como exemplos a serem seguidos e modelos para que a sociedade seja mais
justa e mais harmônica.
O Comandante Rolim teve a gentileza de colocar em foco nossa cidade, usando para isto um veículo de grande penetração, que é a sua “Carta
do Presidente”, distribuída em todas as aeronaves da TAM.
O Comandante Rolim, que aqui morou e trabalhou como piloto no
início dos anos 60, anonimamente, como bom cidadão, muito tem feito por
nossa cidade. Com a pujança da sua empresa aérea, conseguiu transformar
Rio Preto em um importante polo de Aviação Comercial do interior do Estado de São Paulo e do Brasil. Tal fato tem importância transcendental para
uma cidade que queira ser moderna e capaz de atrair os negócios e os benefícios do mundo globalizado. Sabe-se que o tão almejado progresso sustentado ocorrerá nas cidades que dispuserem de:
1 - infra-estrutura urbana adequada;
2 - empregos dignos;
3 - distribuição de renda compatível com os preceitos da sociologia
centrada no homem;
4 - cultura e lazer para todos;
5 - serviços de saúde que possam garantir a segurança dos seus
habitantes;
6 - policiamento preventivo;
7 - meios de comunicação eletrônicos avançados e abundantes;
8 - energia suficiente para mover suas máquinas;
9 - estradas para a chegada e saída dos seus produtos;
10 - linhas aéreas que facilitem o trânsito dos sempre apressados
empresários, que permitam à população um ir e vir seguro e rápido, transportando as cargas urgentes e de alto valor agregado com a máxima eficiência.
O amigo Rolim sabia muito bem dessas coisas e, visitando a nossa
fábrica de produtos para cirurgia cardíaca, sentiu que ela representa um pe94
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queno tijolo na construção de um edifício social mais justo. Assim, reproduzo
a belíssima Carta que o amigo Rolim nos endereçou, e que representa uma
importante mensagem para Rio Preto.
“CARTA DO PRESIDENTE
Prezado Amigo:
Desde o início da década de 60, quando vivia em São José do
Rio Preto, conheço o Dr. Domingo Braile. Por ser ele extremamente
curioso sobre os assuntos da aviação, construímos, desde o princípio,
uma amizade fácil que procuro sempre renovar em função do respeito
que tenho pelas suas virtudes.
Eu penso que o sistema hidráulico sanguíneo do corpo humano deveria chamar-se Dr. Braile. E digo isso porque sei o quanto ele,
ao longo dos anos, perseguiu a solução dos problemas oriundos desse
sistema através de estudos, pesquisas e, não se surpreendam, fabricação de artefatos que pudessem estender ainda mais a vida do homem na face da Terra.
Quem teve, como eu, o privilégio de visitar a sua fábrica de
equipamentos para o coração e todo o sistema cardiovascular, em
São José do Rio Preto, ficará surpreendido com o nível de tecnologia
e os avanços que ele vem conseguindo com pesquisas ininterruptas e
bem sucedidas há muito tempo. Para ele, um exímio e renomado
cirurgião, e que sabe das implicações fundamentais dos equipamentos necessários para a correção de distúrbios no coração, não foi
difícil chegar à fabricação.
Creio que tudo começou em uma época em que importar era
palavrão, mesmo aqueles equipamentos tão necessários à preservação da vida humana; isso sem contar o elevado preço com que esses
artefatos chegavam ao Brasil. Com o seu conhecimento e com a necessidade do mercado, o Dr. Domingo Braile desenvolveu uma fábrica que
é um modelo para pequenas e médias empresas brasileiras que tanto
carecem de iniciativas individuais.
Lendo um livro de sua autoria — “Millennium” — descobri
que o Dr. Domingo não é apenas um grande médico e um industrial de
talento, mas também um grande conhecedor da história, um escritor
de poucas mas profundas palavras e, portanto, extremamente agradável de ser lido. Atravessou dificuldades por perseguir seu ideal,
mas não se demoveu de seu propósito de oferecer mais expectativa
de vida ao homem, dentro de custos compatíveis e com tecnologia
brasileira. Por isso, o lema de sua organização é o mesmo que o da
TAM: orgulho de ser brasileiro.
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Domingo Braile
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Somado a tudo isso, o Dr. Domingo é um excelente e seguro
piloto, que faz da aviação o meio mais adequado para estar nos mais
variados lugares onde seus pacientes e seus amigos, como eu, reclamam a sua presença. O Dr. Domingo Braile é, com certeza, uma dessas
pessoas predestinadas a inovar e servir ao próximo e, confesso-lhes,
gostaria de ver muitos outros homens como ele no Brasil.
ROLIM”
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A RIO PRETO
QUE
DESEJAMOS
Não só eu, mas uma grande parte daqueles que se dedicam a escrever
sobre nossa cidade, temos demonstrado preocupação constante com o futuro que nos espera. Todos desejamos que aqui seja um lugar em que as pessoas
tenham prazer em morar. Fiquei muito preocupado com os resultados da
pesquisa “Isto É/Brasmarket”, em que o nosso prefeito foi considerado entre os piores do Estado. Em contrapartida, o prefeito de Catanduva foi considerado um dos melhores. Será que apenas o nosso prefeito é responsável
pelo pessimismo que assola os habitantes de Rio Preto? Ou somos nós todos
um pouco culpados pelos rumos que nossa cidade vem tomando? Parece
que existe uma sensação generalizada de que não somos capazes de enfrentar os desafios do novo milênio, em que a sociedade terá que se preocupar,
ela mesma, com seu destino, e envolver cada cidadão no processo de desenvolvimento sustentado. Esta evolução só será possível se entendermos que
a era da agricultura de subsistência já desapareceu, e que a era industrial vai
cedendo seu espaço de forma muito rápida para a tecnologia. O que vale
hoje em uma cidade é sua capacidade de criação de novas oportunidades,
pela implementação de escolas e mais escolas que possam dar aos seus cidadãos a oportunidade de competirem no difícil mercado da eletrônica, dos
computadores, dos softwares e dos serviços. Será que não é esta a nossa
falha? Estamos muito preocupados com o presente, em que se busca o lucro
fácil, a assistência social gratuita, as ruas sem buracos, as avenidas sem radares (que controlam a velocidade que mata) e as benesses do poder público
sempre em proveito pessoal. Não estamos preocupados em gerar os conhecimentos necessários para continuar navegando, nestes tempos em que a
moeda de troca é representada pelo estado de desenvolvimento tecnológico
que a população consegue atingir.
É assustador o fato de que não se pode atingir a estabilidade social
sem uma adequada distribuição de renda, e esta só será possível quando o
trabalho de cada habitante gerar recursos suficientes para elevar sua categoria social e econômica. A riqueza de uma cidade não se mede mais pelo
número de agências bancárias que possui, mas sim pelo número de escolas
que for capaz de implementar. Quando contarmos com técnicos capacitados
e mão de obra especializada, capazes de rivalizar-se com as do primeiro mundo,
automaticamente faremos parte dele, e a distribuição de renda será equânime, como todos desejamos. O Presidente da República diz que o Brasil não
é um país pobre e, sim, injusto. Sua visão está correta, porém a única manei97
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ra de modificar essa situação constrangedora é investir no homem, educando-o para desenvolver as atividades que são mais bem remuneradas neste
mundo moderno em que vivemos. Essas ações não dependem apenas de um
prefeito e dos vereadores, que representam o povo, elas dependem de cada
um de nós, que precisamos estar conscientes de nossas responsabilidades
em relação às gerações que nos seguirão. Temos que preparar o caminho do
futuro, para que as pessoas possam ter prazer e orgulho de morar em uma
cidade em que o prefeito sempre será bom, pois a população estará inserida
no contexto mundial em que o bem-estar é primordial. Nações que adotaram
modelos de desenvolvimento baseado na educação tecnológica tiveram uma
evolução social e econômica muito rápida e surpreendente de sua população. Serve de exemplo o Canadá, que visitei recentemente, e onde me foi
possível constatar o esforço coletivo para tornar o conhecimento sua maior
prioridade. Também a Irlanda rapidamente tornou-se o segundo maior exportador de softwares, pelo investimento maciço que fez em educação há
duas ou três décadas. De país em desenvolvimento, rapidamente transformou-se em nação cheia de progresso, com alta renda per capita muito bem
distribuída. Vamos todos fazer um retrospecto das nossas ações em benefício da cidade, o que fizemos por ela ultimamente? O que poderemos fazer
por ela nos próximos dias, anos, décadas? Tenho certeza de que, se cada um
de nós ajudar um pouco, todos ganharão, e não teremos que ficar culpando
políticos e dirigentes pelo desgosto que temos de morar em um lugar que
amamos, mas que não preenche os nossos sonhos.
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AINDA RIO PRETO
Alegro-me ao constatar que o espírito cívico e o amor à nossa cidade
vêm crescendo de forma rápida e que, espero, sejam duradouros. Todos lamentaram profundamente o fato do projeto do arquiteto do início do século
passado, Ugolino Ugolini, não ter sido posto em prática. Parece que naqueles tempos ninguém pensava no verde, no lazer e no homem como os fatores
mais importantes de uma cidade. Por isso deixamos de ter um jardim com
cerca de três quilômetros de extensão e 60 metros de largura, no centro da
nossa urbe, transformando, desde o início, Rio Preto em uma cidade com
ares de capital. Tal não aconteceu por falta absoluta de sensibilidade e, em
lugar de praças e logradouros públicos, foram surgindo invasores, particulares ou não, que acabaram desfigurando por completo aquele magnífico projeto. Para os mais atentos, ainda é possível ver que se tentou preservar um
pouco daquilo que deveria ser nosso orgulho. É fácil observar: se sairmos da
Estação Ferroviária, veremos que, logo ali, bem próximo, está o prédio dos
Correios, que ocupou parte do lugar que deveria ser a extensão da Praça
Dom José Marcondes, que lá está a demarcar o traçado inicial. Pena que foi
transformada em um horrível espaço concretado, que vem sendo paulatinamente invadido pelos vendedores ambulantes. Segue-se a Catedral, que tomou mais uma parte do jardim. A antiga ainda tinha espaço ao seu redor, que
permitia ao riopretense ter um “largo da igreja”. Hoje nem isso temos, pois
um projeto esdrúxulo acabou destruindo a nossa Igreja Matriz original, colocando em seu lugar, um edifício enorme que seria mais conveniente funcionar como um hangar para grandes aeronaves. Ainda tenho esperança que um
dia a população se revolte com tal mastodonte, e tenha a força para erguer
ali uma igreja com aspecto de igreja, que possa atrair os fiéis e embelezar a
cidade. Se subirmos um pouco mais encontraremos a Praça Rui Barbosa, a
novamente nos mostrar um retalho da grande área que estaria destinada ao
povo. Agora está quase irreconhecível, suja e invadida por desocupados. Nada
que faça lembrar a praça da minha infância, com sua fonte luminosa feérica
sempre limpa a jogar para os ares luzes multicoloridas, enquanto as famílias
se reuniam à sua volta para contar as aventuras do dia a dia, rodeadas pelas
crianças que, correndo, produziam um alarido sadio, cheio de vida e de graça. Andando mais alguns quarteirões, encontramos o Fórum, que está localizado onde antes havia sido um cemitério, e depois o Grupo Escolar Cardeal Leme, com seu estilo clássico, rodeado de jardins que enfeitavam aquelas
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paragens. Hoje, se quisermos vê-lo, só é possível através de fotografias, pois
o seu substituto, localizado na Rua Independência, é um prédio anódino, que
não chama a atenção pela arquitetura ou beleza. Ainda bem que restam ali
algumas árvores frondosas e persistentes, nos ensinando que a terra se revolta contra a destruição da natureza.
Mas todas essas construções acabaram invadindo o espaço que antes
deveria ser destinado a ser um grande e belo jardim. Se os antigos habitantes
e dirigentes não tiveram visão preservacionista, também não a tiveram os
que se seguiram, pois destruíram o Campo do Rio Preto Esporte Clube, em
plena Redentora, e que também constava do eixo monumental que marcaria
o centro de nossa cidade. Mas o fenômeno não parou por aí. Os mais antigos
se lembram do nosso primeiro aeroporto e da chácara da Prefeitura, que se
localizavam onde estão hoje o Teatro Municipal, a Casa da Cultura, a Secretaria da Fazenda, o Shopping Center, o SENAI, os Ambulatórios do Hospital de Base (ex-Hospital da Criança) e tantas outras construções. Novamente a população e os dirigentes não tiveram a sensibilidade suficiente para
entender que, ao mudar o Aeroporto para o local onde atualmente se encontra, poderiam ter transformado aquela parte da cidade num enorme parque
cheio de verde, dando-nos um pouco mais de ar de cidade civilizada. Teriam
evitado também parte das avassaladoras enchentes que nos castigam, pois,
estando numa das partes mais altas da cidade, reteria grande quantidade da
água que hoje corre sem barreiras pelas ruas e avenidas. Porém, nem tudo
está perdido. A Prefeitura ainda detém naquele local grandes áreas livres ou
dotadas de construções toscas, como, por exemplo, sua garagem de veículos
e máquinas. Será que não seria a hora de transferir tais equipamentos para
área mais distante e menos nobre, como me foi sugerido pelo professor Eduardo Boskovitz? Talvez pudéssemos ainda ter entre os edifícios lá existentes
grandes áreas ajardinadas destinadas a humanizar e embelezar aquela parte
da cidade. Não me canso de repetir que os negócios e os empregos vão surgir
nas cidades em que seja agradável viver. Por que não deixamos de lado as
ideias retrógradas que sempre imperaram por estes rincões, e não pensamos
na cidade do futuro, em que o lazer e a preservação da natureza serão pontos
fundamentais para uma vida mais feliz e mais alegre? Não quero entrar aqui
em mais polêmica, porém existiram projetos para se construir um novo e
mais funcional aeroporto, longe da cidade, que pudesse comportar o crescente tráfego aéreo que, por sorte, demanda a nossa cidade. Nada mais justo
e importante para Rio Preto. Portanto, estejamos todos alertas e unidos para
que a área do atual aeroporto seja transformada num parque de mais de um
milhão de metros quadrados, que, talvez, possa compensar todos os erros e
desatinos até aqui cometidos.
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CONSELHO
DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
Decorreram cerca de dois anos desde o dia em que me encontrava em
Brasília, em companhia do então deputado federal Edinho Araújo. Vagávamos de repartição em repartição, no Ministério da Educação, buscando subsídios para que o Curso de Pós-Graduação Strictu Sensu da nossa Faculdade
de Medicina fosse reconhecido em nível nacional. O trabalho foi árduo e
contou com a colaboração de uma plêiade de dedicados professores, técnicos e políticos que não mediram esforços para que Rio Preto e nossos alunos
pudessem ser beneficiados pela conquista que há muito fazia parte de um
desejo coletivo. O deputado, na época, nem sonhava em ser candidato a
prefeito de nossa cidade, mas conversávamos, durante as longas esperas,
sobre a situação de inferioridade de Rio Preto em relação a cidades de porte
semelhante, e das eventuais soluções que pudessem ser adotadas para mudar o nosso infeliz destino. O tempo passou, e, pela sua capacidade e vontade do povo, Edinho (permitam-me que o chame assim, carinhosamente) foi
eleito prefeito de nossa sofrida cidade.
Logo após a eleição, pediu-me que colaborasse com ele dentro dos
princípios de uma nova maneira de governar. Desejava criar o Conselho de
Políticas Públicas, colocando-me à frente do mesmo, auxiliado por companheiros dispostos a enfrentar o desafio de fazer uma autocrítica das ações
desenvolvidas pelo executivo. Não me foi possível negar tal colaboração a
um dirigente que quer acertar e fazer de Rio Preto a cidade que sonhamos.
Aceitei a incumbência, ciente das responsabilidades e do trabalho a ser enfrentado. Estamos, em conjunto, escolhendo os cidadãos que irão compor
esse conselho. Nem eu nem qualquer deles receberá qualquer provento ou
vantagem, a não ser a satisfação do dever cumprido. Estaremos ao lado do
prefeito, sempre para ajudá-lo e com ele colaborar, diminuindo um pouco
sua carga de trabalho físico, emocional e político. O próprio Edinho disse
que “a Prefeitura é um triturador de seres humanos”. Procuraremos tornar
essa tarefa mais leve e mais ágil, pois o pensamento coletivo é sempre mais
produtivo que aquele individual e centralizador. Sendo um órgão apolítico,
esse conselho jamais colidirá com os nobres vereadores, que são os lídimos
representantes do povo e a quem devemos todo respeito e consideração.
Pelo contrário, estaremos sempre ao lado, para com eles também colaborar.
A nossa vice-prefeita, Maureen Cury, vem desenvolvendo um trabalho interessante junto à comunidade, fazendo-a participar de importantes decisões,
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que muitas vezes passam despercebidas por aqueles que se afastam do
povo. Estaremos também à sua disposição, não para dar “palpites”, mas
sim a opinião do Conselho, que terá por norma a defesa intransigente do
progresso e da qualidade de vida em Rio Preto. Estaremos atentos: não
queremos mais ver, por exemplo, as entranhas da nossa cidade expostas
aos olhos dos nossos habitantes ou daqueles que nos visitam, simplesmente porque o asfalto oxidou-se e foi levado pelas chuvas ou pelo trânsito
pesado. Parafraseando Victor Hugo, em sua obra magistral Os Miseráveis,
não queremos que nossos antigos armazéns, que foram representantes orgulhosos de um vigoroso polo de comércio atacadista, sejam transformados em escombros, como se fossem velhas desgrenhadas e sem dentes a
dizer que fomos um dia jovens e bonitos, mas que agora somos velhos e
decrépitos! Que dizer da população que para aqui migrou em busca de uma
vida melhor, e que, infelizmente, acabou indo viver em favelas pela falta
de ações políticas capazes de propiciar-lhes condições de trabalho digno?
Poderiam ter sido propulsoras do progresso, mas acabaram por representar
um peso para a sociedade, que tem a obrigação de resgatá-las. Não poderemos continuar vendo a Swift deteriorando-se e acharmos que isso é normal. Não poderemos ver o Parque da Represa transformar-se num depósito de lixo e fechar os olhos. Não deveremos esquecer o centro da cidade,
que, de cartão de visita que era, hoje é motivo de vergonha pelo desleixo e
pelo mau cheiro que exala. Será que, eternamente, teremos que conviver
com o Distrito Industrial Waldemar Verdi como obra inacabada de uma
cidade incompetente, de onde grande parte das fabricas se foi, deixando
como herança apenas um rastro de feiura e desconsolo?
Citei apenas alguns dos problemas que nos afligem. Posso parecer
utópico em tentar ajudar a resolver esses e outros, talvez mais graves, com a
liderança e a vontade de nosso prefeito, mas sinto que ventos novos sopram
na cidade. A população está ciente de que necessitamos do esforço conjunto
para alavancar uma nova Rio Preto bonita, progressista, aberta aos negócios,
serviços e indústria. Teríamos também grandes áreas de lazer e de atração
turística, contando com um centro de convenções moderno e funcional (pode
e talvez deva ser na própria Swift). Com isso, iríamos movimentar a “máquina” da cidade com indispensáveis bons espetáculos teatrais, cinemas de alta
qualidade, times de futebol e de outros esportes, apresentando em Rio Preto
concorridos jogos, sediando Convenções e Feiras de todo tipo, trazendo para
cá um grande contingente de pessoas. Seria salutar a construção de “shopping
malls”(áreas abertas de comércio), perfeitas para o nosso clima e para preencher as lacunas do centro da cidade, que voltaria ao seu antigo esplendor!
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Não esqueceríamos o metrô de superfície, que tornaria o transporte metropolitano ágil e moderno.
A população está ciente dessas necessidades, tanto é verdade que,
nestes dias, dois acontecimentos apontam nesta direção, quais sejam, a criação da Sociedade Rural do Noroeste Paulista, que muito poderá fazer pelo
nosso progresso, afinal de contas, temos o maior rebanho bovino do Estado
e somos os principais produtores de um grande número de itens agrícolas; e,
ainda, a constituição final do “Rio Preto Convention and Visitors Bureau”,
que certamente será fundamental para que os nossos sonhos de liderança
regional sejam cumpridos dentro da Nação. Sei que os mais céticos estarão
pensando que, para todos esses planos, serão necessários recursos econômicos, dinheiro, para ser mais explícito. A eles gostaria de lembrar a lição do
controverso Dr. Assis Chateaubriand (dono dos Diários Associados), que
nos deixou como legado um dos melhores Museus de Arte Moderna do mundo, o “MASP”: “Dinheiro é necessário, mas sem as idéias e os sonhos ele não
serve para nada!”.
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DESTINO
Estamos às vésperas de decidir os destinos de Rio Preto. Chegou o
momento de transformar nossa cidade no centro regional que merece e tem
o direito de ser. Há muitos anos estamos vendo desaparecer a nossa
hegemonia em benefício de outras cidades. Durante os últimos anos, recebemos do Governo do Estado apenas 10% das verbas que foram destinadas
a nossa sempre rival Ribeirão Preto! Rio Preto, que sempre foi uma cidade
pioneira, dotada de um fantástico comércio atacadista, vem se transformando em simples centro de varejo, trazendo no bojo consequências que prejudicam a nossa capacidade de investimento, a geração de empregos e a possibilidade de enfrentarmos os desafios da globalização e do neoliberalismo
com as armas que deveríamos ter desenvolvido ao longo dos tempos. Tenho
conversado com muitas pessoas, das mais diferentes camadas sociais, e é
voz unânime que estamos em um marasmo que chega mesmo a ser inexplicável
para uma cidade do porte e da importância de Rio Preto. Já me referi à “Marcha para o Oeste”, que foi aqui iniciada pelo Presidente da República, Getúlio Vargas, e sinto uma saudade imensa daqueles tempos em que não tínhamos dúvidas a respeito do futuro que nos aguardava.
Durante muitos anos, tivemos dirigentes que acreditavam em nossa
capacidade e sabiam reinvidicar os nossos direitos. Passaram por nossa Prefeitura homens ilustres que tinham prestígio e faziam valer a vontade do
povo, que sempre desejou fazer da nossa cidade um centro de difusão de
progresso, cultura e serviços a altura da nossa capacidade. De repente, fomos tomados pela falta de visão de dirigentes que entendem a nossa urbe
apenas nos limites do seu município ou até menos. Preocuparam-se apenas
com as coisas menores, e deixaram de pensar em progresso verdadeiro. Progresso verdadeiro se faz com pessoas que sabem escutar, e que não se preocupam em rifar cargos públicos em troca de votos, muito pelo contrário,
cercam-se de pessoas capazes e que tenham conhecimentos e prestígio nas
mais diferentes áreas, para que sejam acionados os mecanismos que deflagram
as ações positivas que acabam por beneficiar a todos. A grande virtude de
um político é saber escolher seus auxiliares e ter sensibilidade para entender
a “voz rouca das ruas”, como foi dito ao nosso Presidente da República,
quando sua popularidade despencava a níveis perigosos! Temos agora a oportunidade, pelo processo democrático do voto, de abandonar as velhas fórmulas que não foram capazes de nos colocar entre as cidades que serão pal104
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co de desenvolvimento com qualidade de vida. Temos que contar com um
dirigente que saiba enxergar adiante dos horizontes de um círculo restrito e,
com muita vontade, venha a ser o representante do progresso sustentado,
com a geração de empregos pela atração que a cidade representará para aqueles
que impulsionam a evolução de nosso país. Temos que agregar valor aos
produtos que aqui são manufaturados, de tal forma que possamos não só
criar os desejados empregos, mas também que eles sejam dignos e permitam
aos trabalhadores uma vida mais feliz. Temos que acreditar na proliferação
das escolas em todos os estágios, preparando nossa população para responder aos chamamentos da vida moderna, que exige cultura em todos os níveis, para que possamos ser competitivos. Por todas essas razões, peço aos
meus amigos e companheiros que pensem em uma Rio Preto moderna, ágil,
competitiva, e que seja foco de referência para as cidades que desejam entrar
no novo milênio com qualidade de vida aliada ao progresso.
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POR AMOR
A
RIO PRETO
Tento passar a minha impressão (latente e cada vez mais forte) de
que parece faltar amor, “garra”, vontade política e um desejo popular de sermos uma cidade de verdade, e não um amontoado de casas.
Pessoas que amam Rio Preto, e que por isso compartilham dos mesmos sentimentos e das mesmas preocupações, estão pressentindo que Rio
Preto está “prestes” a perder o “bonde da história”, se não houver uma mudança de mentalidade e a implantação de novas atitudes.
Procuro transmitir toda minha angústia ao perceber que falta a Rio
Preto uma política de desenvolvimento econômico sem o qual nosso futuro
poderá ser desastroso, principalmente para os mais jovens, com os quais temos
o compromisso inarredável de prover pelo menos um trabalho decente.
Sempre fui idealista: a inquietude e a ansiedade pela realização dos
sonhos me acompanham desde a mocidade. Talvez por isso, e graças a
muito trabalho e empenho, aliados a anos e anos de dedicação integral, tais
ideais tenham me permitido colaborar, junto a muitos outros incansáveis
colegas, para que Rio Preto seja hoje centro de referência para o tratamento de muitas doenças. Este seria um exemplo a ser compartilhado pela
nossa comunidade.
Não vivemos sós e, na imensa maioria das vezes, a conquista dos
almejados sonhos não é uma vitória egoísta: dividimos nossas realizações
com muitos que dela também se beneficiam. Acredito que está faltando para
Rio Preto a capacidade de sonhar vitórias coletivas, conquistas comunitárias
e de desenvolvimento sustentado. Estamos vendo o tempo passar enquanto
nossa cidade perde valiosas oportunidades de progresso.
Hoje a minha inquietude é por uma Rio Preto líder, organizada, próspera, onde o jovem possa planejar seu futuro, o idoso possa viver com qualidade, todos possamos morar com dignidade, o trabalho seja abundante e a
saúde esteja ao alcance de todos. Parece soar utópico, mas se assim não
pensarmos, estaremos navegando contra a correnteza, pois qualidade de vida
é a tônica do milênio que se aproxima a passos céleres.
Muitas pessoas se manifestam, soltam sua voz e seus sentimentos
em busca de um lugar melhor e mais equilibrado para viver com paz,
tranquilidade e certezas no âmago de suas famílias.
Transcrevo a seguir trechos resumidos das manifestações que recebo
de pessoas que compartilham do amor à Rio Preto. São pessoas que querem
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lutar, juntar forças e, por amor a Rio Preto, fazer desta a cidade ideal para as
próximas gerações.
“...Vim de São Paulo (capital) a trabalho e me decepcionei
muito com Rio Preto (políticos e associações) que tanto tentam defender Rio Preto do progresso, mas não enxergam que Rio Preto está
ficando cada vez menor...”
“Realmente parece que falta amor, garra, vontade política
(será que eles algum dia irão ter?), desejo popular de sermos uma
cidade de verdade e não um simples amontoado de casas.”
“...Apesar do desenvolvimento de Ribeirão Preto, não se
esqueça que o tráfico de drogas de lá está pesado (conexão caipira)
e número de assaltos lá é bem maior que o nosso. A grande qualidade de Rio Preto ainda é o baixo número de assaltos se comparados
com o restante do Estado. Porém falta combinar qualidade de vida
com desenvolvimento.”
“ ...Tenho muito orgulho de meu país, sou muito patriota,
dizem que a esperança é a última que morre, mas como nosso país
está caminhando, não sei o que vai acontecer, só sei que preciso agir,
mas não sei como.”
“... A nossa cidade está a cada ano sendo passada para trás. E
o que é triste é que não há nenhuma perspectiva de desenvolvimento...”
“...Quem sabe poderíamos ampliar o debate na cidade,
juntando forças para estudar a criação de uma Agência de Desenvolvimento Econômico que pudesse contribuir com o governo municipal nesse sentido?”
“...Sou um pequeno distribuidor de produtos magnéticos...
tendo como clientes as redes de TV e produtoras de vídeo da cidade e
região. Neste período eleitoral, os candidatos e produtoras de vídeo
deveriam ser nossos clientes em potencial. Tenho em contrato campanhas políticas de candidatos das cidades de Araraquara, São Carlos,
Votuporanga, Araçatuba, Mirandópolis e Penápolis. Em nossa cidade,
onde trabalho, resido, passeio, caminho, tenho que provar a alguns
candidatos a prefeito que a nossa empresa está totalmente apta a
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fornecer-lhes produtos magnéticos essenciais à sua campanha. Em
outras cidades, alguns candidatos e produtoras foram claros ao informar que preferem prestigiar o comércio do interior paulista a comprar
das distribuidoras paulistanas ou cariocas”.
Com as palavras sábias daqueles que amam este país e, particularmente Rio Preto, espero sensibilizar mais e mais rio-pretenses para que esta
cidade possa ser um lugar onde as pessoas gostem de morar, e se orgulhem
de ter contribuído para que esse desejo se tornasse realidade.
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PÓS-GRADUAÇÃO
DA
FAMERP
A pós-graduação em nossa faculdade foi implementada há 11 anos
pelo desejo de melhorar as condições de ensino, pesquisa e preparo do corpo
docente nas área das Ciências da Saúde em nossa região. Rio Preto e toda
sua vasta área de abrangência eram carentes de formação específica de professores de Medicina e das ciências correlatas. Durante cerca de dez anos, o
curso manteve-se em fase de organização e desenvolvimento, buscando, principalmente, criar uma mentalidade acadêmica que lhe desse o necessário
suporte. Com a estadualização da Faculdade de Medicina, surgiram novos
anseios e novas oportunidades para que o potencial latente pudesse manifestar-se em toda sua plenitude. Até então, apesar do enorme esforço por
parte da direção, dos alunos e dos professores, a nossa Pós-Graduação vinha
recebendo conceitos não compatíveis para sua validação em nível nacional.
A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
reiteradamente vinha insistindo em mudanças drásticas de orientação filosófica, curricular e docente para que pudéssemos atingir a tão desejada e necessária classificação entre os cursos reconhecidos.
Por meio de um trabalho intenso, mudando totalmente o enfoque,
criando linhas de pesquisa específicas e contando com um entusiasmo alentador, em um curto período de dois anos foi possível reverter toda a situação. Nosso curso de Pós-Graduação foi transformado em agente dinâmico
de produção científica, com técnicas modernas de ensino e acesso às mais
diversas informações. Os alunos enfrentaram os desafios de produzir Teses e Dissertações de alta qualidade, e os professores dedicaram-se em
tempo integral a produzir ciência. Citar nomes aqui seria motivo certo de
incorrer em erros e omissões injustificáveis. O que deve ficar claro é que
passamos a viver uma nova realidade com a colaboração irrestrita, desde o
mais humilde funcionário até o mais graduado dos diretores. Todos se uniram em torno do desafio que vai sendo vencido a largos passos. Os números são promissores: mais de uma centena de Teses foram defendidas, mais
de 70% delas só nos anos de 1998 e parte de 1999. Foram, no total, mais
de 90 Dissertações de Mestrado, e já passam de dez as Teses de Doutorado. Como vemos, houve uma resposta muito positiva ao apelo científico, e
hoje vemos uma plêiade de pós-graduandos vivendo o ambiente do desafio da ciência e a alegria dos pontos conquistados.
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A demanda pelos nossos cursos tem sido surpreendente, de tal forma
que, no ano passado, tivemos mais de 124 candidatos para as escassas 36
vagas disponíveis. Estes estão em fase final para completar seus créditos obrigatórios, em cursos de formação ampla e abrangente. Brevemente estarão terminando seus trabalhos, e oferecendo sua produção científica como o cabedal
de conhecimentos indispensáveis para que possamos continuar merecendo a
posição de destaque que já ocupamos, mas que desejamos não só consolidar,
como também ampliar. A grande prova que se nos apresenta é a da próxima
avaliação, que, esperamos, mostre ao Brasil como somos capazes e competentes. Para isso, contamos também com um conjunto de professores e pesquisadores que não têm medido esforços para que, além da orientação dos alunos e
da parte assistencial, tenhamos um nível de pesquisas e publicações compatível com o desempenho da instituição. São mais de 15 linhas de pesquisas que
são anualmente ofertadas e desenvolvidas pelos professores e nossos alunos.
No início do próximo ano, teremos novo exame de seleção, no qual serão abertas mais 38 vagas de Mestrado e 26 de Doutorado, num total de 64 vagas.
Abrem-se, assim, cada vez mais, as possibilidades para que todo o nosso corpo
docente possa estar preparado para exercer a função de professor. Para isso,
deverá receber os conhecimentos que são necessários e indispensáveis para o
crescimento da nossa instituição, tanto do ponto de vista da didática, como do
ponto de vista científico e assistencial.
“Adotando como critério de regionalidade a divisão administrativa
do Estado de São Paulo, a FAMERP é a única Instituição de Ensino Superior da 8a Região Administrativa que, abrangendo 131 municípios, possui Programas de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Combinando esta exclusividade regional com sua localização geopolítica e a origem da demanda de
atendimento e de clientela (460 municípios de 17 Estados do Brasil), o Programa procura atender ao critério de diversidade e flexibilidade visualizados
pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e ao critério de
competência dos clientes internos e externos pressupostos pelo paradigma
da qualidade. Se pensarmos em parâmetros de globalização, a FAMERP certamente pode ser considerada como um polo estratégico de pesquisas e
tecnologia para o desenvolvimento do MercoSul , em linhas de pesquisas,
tais como: Cirurgias Cardiovasculares, Neurocirurgias, Biologia Molecular,
Genética Humana e Médica, Transplantes, Autismo, Emprego de
Biomateriais, dentre outras.”
Rio Preto é, pois, um centro de região, para onde convergem cerca de
5 milhões de habitantes em busca de atendimento médico e aprendizagem
na área da saúde. Sendo o nosso curso de Pós-Graduação em Ciências da
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Saúde o único da 8a Região Administrativa, como já afirmamos, fica claro
que a sua tendência é crescer. Crescer não só para dar atendimento a toda
essa demanda, mas para suprir as necessidades de desenvolvimento e progresso das cidades que gravitam em torno da nossa. Queremos criar uma
geração de cientistas e professores que seja o orgulho da nossa escola, e que
estes possam ser muito úteis para o desenvolvimento harmônico do milênio
que se aproxima.
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RIO PRETO
COM
AMOR
Quando o gasoduto Brasil-Bolívia teve seu traçado definitivamente
estabelecido, fiquei bastante apreensivo com que esse fato pudesse trazer
sérias consequências para o desenvolvimento de nossa cidade e região. Não
foi necessário esperar muito tempo para que a primeira amostra dessa falta
pudesse apresentar-se como um fato concreto, que nos atinge frontalmente.
Tomamos conhecimento que a companhia Ultragaz está encerrando suas
atividades em Rio Preto. Muda o engarrafamento dos seus botijões para a
sempre concorrente cidade de Ribeirão Preto.
Não podemos deixar de fazer justiça a alguns líderes locais, entre os
quais destacamos a querida amiga Yolanda Bassitt (à época, presidente da
Associação Comercial e Industrial de Rio Preto), que tentou mobilizar a opinião dos políticos e da população em geral para o grave problema que teríamos
no nosso desenvolvimento, se não contássemos com os benefícios dessa forma de energia limpa. Parece que não foi ouvida, e agora começamos a pagar
pela nossa indiferença. Espero que não, mas este pode ser apenas o começo de
um amargo destino a tirar-nos da rota do progresso sustentado, única maneira
de propiciar empregos dignos para as milhares de pessoas que não encontram
trabalho nestas paragens do mais desenvolvido Estado brasileiro.
O gasoduto passa aqui bem perto, mas faltou-nos a capacidade política
de “puxá-lo”para dentro de nossa cidade. Não foi o que aconteceu com a rival
Ribeirão Preto, que estava completamente fora do traçado original, mas que
conseguiu ser incluída na trajetória do gasoduto na sua destinação para Brasília.
Poderia muito bem ter sido desviado daqui para a Capital Federal. A distância
seria a mesma, ou menor, e passaria por uma região tão ou mais importante
que aquela que agora ficou beneficiada, mas isto não aconteceu!
Coincidentemente, o secretário municipal de Indústria e Comércio,
Sidney de Paula, tenta arduamente convencer industriais a se instalarem em
nossa cidade, propiciando-lhes a doação ou venda de terrenos no Distrito
Industrial “Carlos de Arnaldo”. Nada mais elogiável, mas de pouco efeito,
pois, infelizmente, a humanidade, como um todo, é mesquinha. Não combatemos a injustiça que habita dentro de nós. Parece que não acreditamos no
progresso, não damos incentivos ou benefícios porque somos carentes. A
arrecadação da Prefeitura é pequena porque não existem aqui grandes fontes
geradoras de recursos e, se estas não forem criadas de maneira agressiva,
estaremos condenados a permanecer eternamente neste círculo vicioso. Não
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podemos atrair investimentos por não termos capacidade para dar-lhes incentivos, e não dispomos de recursos porque não temos empresas que geram
riquezas suficientes. A situação é grave, gravíssima mesmo, porque, além de
não conseguirmos novas indústrias, estamos perdendo as que tínhamos, por
terem falido ou ido embora daqui. Ainda não me conformei com a debandada da Coca-Cola, Firestone, Shoei Bratac e tantas outras, sem que ao menos
sentíssemos que este é um sinal do fim das esperanças de uma vida melhor
para nós, nossos filhos e netos. Parece que falta amor, “garra”, vontade política, desejo popular de sermos uma cidade de verdade e não um simples
amontoado de casas. A competição entre as cidades e regiões é um fato
inegável e todos conhecem, por exemplo, a luta que a Bahia tem desenvolvido para levar para seu Estado indústrias propulsoras de progresso de uma
forma tão agressiva que tem até desencadeado crises políticas e revanches
entre governos. Aqui também se trava a mesma luta!
Quando se estava definindo o traçado da Ferronorte e o local da construção da ponte sobre o Rio Paraná, a atuação de Ribeirão Preto foi tão
intensa que chegaram a mudar o mapa do Estado de São Paulo, com seus
acidentes geográficos e suas divisas, para mostrar que era melhor que a ferrovia por lá passasse. Tivemos, na ocasião, a liderança regional unida para
que essa distorção não se configurasse em fatos, pela atuação decisiva de
muitos cidadãos sob a liderança do saudoso Roberto Rollemberg e do incansável deputado federal e candidato a prefeito de nossa cidade, Edinho Araújo.
Eles demonstraram amor a nossa região e a Rio Preto, sabendo fazer valer a
força política e social de que somos detentores, impedindo que fossemos,
uma vez mais, roubados de nossos direitos.
Este artigo estava já alinhavado, quando fui visitar, aqui em nossa
terra, uma fábrica de alta tecnologia (Abezil-Lancer)que produz insumos
ortodônticos, emprega cerca de 80 jovens diferenciados e, além de suprir
uma grande parte do mercado nacional, também os exporta para muitos países, inclusive os Estados Unidos. Seu proprietário, o Dr. Tufy Lemos Filho,
ama Rio Preto e aqui quer ficar para sempre. Contudo, jamais recebeu a
mínima ajuda ou incentivo. Nem pagando conseguiu um terreno em um dos
Distritos Industriais, como tem acontecido com muitos pretendentes. São
tantas as exigências, que espantam aqueles que querem melhorar a qualidade de vida dos rio-pretenses, dando-lhes empregos dignos, com salários proporcionais aos valores agregados aos produtos que desenvolvem. Quanto
mais tecnologia é incorporada a um produto, maior valor este tem e maior
será a remuneração do profissional especializado. É assim que se faz distribuição de renda, valorizando o conhecimento e a habilidade inata em nosso
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trabalhador e, desta forma, tirando-o da pobreza. A indústria a que me refiro
tem recebido atraentes convites de muitas cidades, entre elas, São Carlos,
que como todos sabem, é polo de alta tecnologia e que já entendeu o valor
de um empreendimento deste quilate. Aliás, São Carlos conta com três Universidades: uma Federal, uma Estadual (USP) e outra particular, além de um
número incontável de operários altamente treinados, recursos com que não
contamos por aqui. Nós não podemos continuar perdendo as empresas que
temos, e ainda sendo incapazes de trazer para nossa cidade aquelas que possam desenvolver aqui uma sociedade justa e equilibrada. Pense nisto, você
que ama Rio Preto como cidade e deseja o melhor para seus habitantes.
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RIO PRETO
QUE EU VI
Vivi tantos anos nesta nossa querida Rio Preto que algumas lembranças, embora indeléveis, vão ficando esquecidas nas profundezas da
memória. De repente são trazidas ao consciente por algum fato que as
ativa, como se foram brasas apagadas, que ao simples sopro do vento se
tornam novamente vivas e brilhantes. Tão brilhantes que não podemos
deixar de revivê-las como se fossem o próprio cotidiano. O que me trouxe
tal sensação de nostalgia, nestes dias, foi o fato de ter se iniciado a demolição do Estádio Mário Alves Mendonça! Esta atitude pode parecer corriqueira para a maior parte dos rio-pretenses, mas cala fundo no coração de
quem vive esta cidade como a terra que foi de seus pais e é hoje seu abrigo,
assim como de seus filhos e netos. Que pena que nossa história venha
sendo destruída dia após dia, sem que uma voz se levante a dizer que
estamos, afinal de contas, negando-nos a nós mesmos. Se, ao menos, aquela área fosse transformada em um amplo e belo parque, ainda seria possível nos recordamos das emoções que foram lá vividas. Também daríamos
mais um “pulmão verde” para esta cidade, tão carente de áreas ajardinadas
a embelezá-la e torná-la mais habitável.
A memória remete-me agora a muitos anos passados, quando ainda
andava de calças curtas e o Estádio Victor Brito Bastos localizava-se numa
enorme quadra, compreendida entre as ruas Bernardino de Campos e Voluntários de São Paulo, limitada pelas ruas Penita e Cila. Tratava-se, como o
“Mário Alves Mendonça”, de um patrimônio do povo. Pertencia, na verdade, ao Rio Preto Esporte Clube, mas estava inserido no coração de cada riopretense orgulhoso pelas conquistas do seu time e entusiasmado com o lazer
que desfrutava. Um belo dia, como acontece hoje com o antigo campo do
América Futebol Clube, o Estádio do Rio Preto foi simplesmente demolido!
Seu gramado verde brilhante foi revolvido e em seu lugar surgiram casas
comerciais, consultórios médicos, residências, oficinas e tantos outros imóveis que compõe uma cidade comum, transformando aquele oásis em uma
estrutura urbana amorfa, que não consegue transmitir às gerações atuais nem
um pouco das emoções que lá foram vividas. Não posso me esquecer da
imagem recorrente em minha memória, do dia em que eu, ainda menino, ia
sendo levado pela mão de meu pai àquele Estádio de “Football” (era assim
que se escrevia), não só para assistir ao jogo Rio Preto versus Palmeiras, mas
também vê-lo, como Cônsul Italiano, dar o pontapé inicial da partida. Quantas
lembranças gostosas como essa desapareceram tragadas pelo rio dos tempos
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em curso inexorável rumo ao infinito. Tivessem os dirigentes a visão e a
coragem de transformar aquela área num belo jardim, talvez pudéssemos
ainda sentir o cheiro da relva fresca a alegrar-nos os corações. Não houve
visão e nem coragem e perdemos a oportunidade de enfeitar o prestigioso
bairro da Redentora com um jardim florido, onde, sob árvores de sombra
amena, poderíamos continuar contando estórias sem fim. No caso atual, bem
que nosso ex-prefeito tentou evitar a perda da nobre área do “Mário Alves
Mendonça”, doando-a ao povo. Comprou-a, mas não conseguiu os recursos
financeiros, o apoio e a vibração de seus munícipes para mantê-la como
propriedade pública evitando a hecatombe. Está acontecendo com a demolição do estádio e a promessa de sua rápida transformação em um amontoado de tijolos, concreto e telhados que virão aumentar ainda mais a temperatura desta urbe tropical em que vivemos. Perdemos uma grande área verde e
muito mais, pois perdemos também a oportunidade de demonstrar que queremos ser uma cidade com progresso. Sim, mas sem perda da qualidade de
vida. Pois essa é a premissa essencial para que o desejado progresso seja
sustentado e duradouro!
Porém, longe de mim a idéia absurda de que não queremos que nossa cidade abrigue novos empreendimentos comerciais, industriais e de serviços, que são os verdadeiros geradores dos empregos, fundamentais para
o desenvolvimento harmônico da sociedade. Muito pelo contrário, sejam
bem-vindos todos aqueles que queiram ajudar o progresso de Rio Preto,
partilhando conosco seus desejos, capitais e conhecimentos, porém sem
sacrifício de nossas áreas nobres ou históricas. Existem muitos terrenos
inaproveitados, que poderiam abrigar muito bem estes novos irmãos que
aqui chegam, sem prejudicar o pouco que nos resta do “Rio Preto Que Eu
Vi”. Não me conformo com a falta de sensibilidade que hoje estamos demonstrando, que, com certeza, nos será cobrada pelas gerações futuras.
Fico a pensar se eu estaria sonhando ou seria absurdamente utópico fazer
reviver um pouco as idéias do arquiteto Ugolino Ugolini, que no início do
século passado (não se assustem, 1910!) projetou nossa cidade com idéias
avançadas, dispondo de ruas e avenidas retas e largas. Além disso, teríamos um jardim contínuo, com 60 metros de largura, que se iniciava na
Estação da Estrada de Ferro e terminava onde é hoje a Beneficência Portuguesa. Imaginem a beleza e o conforto que desfrutaríamos se pudéssemos ter o que aquele arquiteto colocou no papel, quando nem se imaginava que Rio Preto pudesse ser a metrópole que é hoje! Vamos continuar
sonhando na esperança de preservar muito daquilo que aí está a pedir socorro, não só aos dirigentes da cidade, mas principalmente aos cidadãos
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que amam Rio Preto. Deixo aqui um repto: seríamos capazes de transformar a antiga “Swift” e a área das represas em um cartão de visitas para Rio
Preto, com jardins, espaços culturais, bares, restaurantes, “shoppings” e
tudo aquilo que a imaginação e a vontade possam desejar para beneficio
da cidade e da região? Espero que sim.
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RIO PRETO
X
NEW ORLEANS
New Orleans - Escrevo aqui de New Orleans, à beira do Rio
Mississipi, nos Estados Unidos. Daqui posso avistar o imponente rio e sua
famosa curva. Ao longe, vejo embarcações antigas e modernas a percorrê-lo
o tempo todo, mostrando a pujança deste país cheio de riqueza e progresso.
Quando saí de Rio Preto, circulava a notícia que o nosso eficiente prefeito
Edinho Araújo, de forma muito inteligente, buscava retirar do centro da
cidade os trilhos da estrada de ferro. A idéia é de grande alcance, pois evitará
a passagem pelo coração de nossa cidade dos trens de longo curso, que, além
de atrapalharem o trânsito, perturbam os moradores com o barulho das composições. Apesar do transtorno, não podemos negar o valor desses longos
comboios que por ali passam, deixando no seu rastro riqueza e esperança
para toda a região e, principalmente, para a nossa cidade. Urge, portanto,
uma solução rápida e inteligente para o problema. O aumento do tráfego de
trens de longo curso e seus benefícios econômicos foram consequência direta da construção da imponente ponte sobre o rio Paraná. Essa obra dependeu da dedicação, esforço e trabalho árduo de muitos, dentre os quais se
inclui, de forma especial, o nosso atual prefeito. Nada mais justo, portanto,
modificar o traçado da ferrovia que corta a cidade, tornando-a menos inconveniente para os nossos moradores. Isso posto, gostaria de sonhar um pouco,
e cabe aqui dizer que o cronista não vive apenas de fatos e, sim, e, principalmente, de sonhos, que vez ou outra acabam por materializar-se.
Li, com muita atenção, aqui em New Orleans, pela mágica da Internet,
o excelente artigo do historiador prof. Agostinho Brandi, com ele aprendendo um pouco mais a respeito da rica e interessante história de Rio Preto.
Porém, com a devida vênia, diria que a história não é só aquela oficial e
escrita, pois muito de seu conteúdo fica fora dos documentos e acaba sendo
transmitida pela tradição e pela comunicação pessoal. Refiro-me aos sonhos
de Ugolino Ugolini que me foram contados por pessoas que usufruíram sua
amizade e intimidade. Garantiram-me ter ele o projeto de construir um amplo jardim e uma larga avenida no eixo central de nossa cidade. Esse sonho
morreu com ele, como morrem muitos daqueles que temos agora, por falta
absoluta de visão e cultura.
Mas voltemos aos nossos sonhos atuais, que devemos vigorosamente
alimentar. Alguns deles vi realizados em New Orleans, cidade americana
que se notabiliza, principalmente, pelo turismo de convenções e negócios. O
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centro da cidade está absolutamente preservado e a famosa “Bourbon Street”
vibra sob o som agradável do jazz, que aqui nasceu. A atmosfera feérica e
cheia de gente fez-me lembrar, com saudades, da nossa Bernardino de Campos dos anos 50, com seu “footing” e jardins, onde, nos coretos, bandas e
orquestras irradiavam música e alegria. Mas também me chamou a atenção a
inteligência que tiveram ao transformar a antiga linha férrea que cortava o
centro de New Orleans em um metrô de superfície, que se tornou um dos
meios mais eficientes de transporte da população, evitando que o trânsito
nas ruas se tornasse caótico, como é comum em tantas cidades.
Fico imaginando como seria fantástico transformarmos o leito da
antiga EFA em uma via de trens urbanos (um verdadeiro Metrô), que serviria toda a área central de nossa cidade, além de ligar-nos às cidades vizinhas,
que constituem a região metropolitana de Rio Preto. Poderia também estar
conjugada com a própria estrada de ferro, que, quem sabe um dia, volte a ter
a utilidade e o charme que teve no passado, permitindo viagens confortáveis
e seguras. Teríamos cerca de 20 km de metrô no coração da nossa cidade
(São Paulo não tem mais que 50 km), com estações bem cuidadas, que permitissem à população deslocar-se com facilidade e eficiência. Estaríamos
também em contato direto com os terminais de ônibus urbanos e aqueles
intermunicipais, interestaduais e até internacionais, a serem construídos fora
da área central, desafogando o trânsito e permitindo que a qualidade de vida
da população fosse mais adequada. Como seria bom ter uma estação deste
metrô perto do conjunto das represas, permitindo que muitos pudessem aproveitar os fins de tarde ou os feriados em uma atmosfera sadia e acolhedora.
Sonhemos com estações também perto do distrito industrial, levando para
lá, com facilidade e rapidez, os operários que fazem o progresso da cidade.
Outra parada não ficaria longe do CEASA, onde compras e vendas poderiam
ser feitas por mais gente que para lá se deslocariam com mais conforto. Bolsões
de estacionamento de carros seriam construídos em locais estratégicos, permitindo o uso adequado do transporte metroviário associado ao automóvel.
Tudo isso parece ser um sonho absurdo, mas acredito ser perfeitamente viável se tivermos amor a Rio Preto e a sagacidade de transformar esse sonho
em realidade, evitando, assim, que áreas usadas em benefício da população,
de repente, se transformem em avenidas cheias de carros a poluir ainda mais
o nosso precioso ar. É agradável ver o que foi feito em New Orleans. Usemos nossa imaginação, sejamos criativos, e, com certeza, teremos os agradecimentos das gerações futuras.
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VOO NOTURNO
Impossível pensar neste título sem relembrar a obra de Saint-Exupéry, o
autor que encantou e continua encantando gerações e gerações com a sua obra
magistral O Pequeno Príncipe, na qual colocou em evidência, de forma muito especial, os mais profundos sentimentos dos homens. A quem ainda não teve oportunidade de ler esse pequeno tesouro, recomendo-o, independente da idade ou
da tendência política, religiosa ou literária, pois, com certeza, encontrarão a si
próprios em algumas das frases ou pensamentos do autor.
Saint-Exupéry escreveu muitos outros livros, entre eles Voo Noturno,
que também é de beleza ímpar por tratar dos fenômenos da natureza e da
nossa eventual ação sobre eles.
Partia eu do Aeroporto de Brasília, no início desta semana, quando
o Sol já havia se posto e a escuridão cobria, com seu manto, as paisagens
tão familiares por mim sobrevoadas tantas vezes nos últimos 40 anos. Porém aquela noite mostrava-se muito especial. Havia uma cobertura completa de nuvens negras ocupando toda a abóbada celeste, impedindo que o
brilho das estrelas ou mesmo o tênue reflexo da lua pudessem ser vistos,
criando uma paisagem fantasmagórica. Lá embaixo, pequenos pontos de
luz marcavam casas da zona rural isoladas do mundo atribulado das cidades. Uma atmosfera como essa torna-se toda propícia à introspecção e à
análise da nossa existência como seres humanos que teimam em modificar,
sem medir as consequências, as leis que regem o Universo. Mais ao longe,
surge uma pequena cidade toda iluminada querendo disputar seu brilho
com o das constelações galácticas escondidas pelas nuvens naquele momento. Depois aparecem cidades maiores, mais orgulhosas do seu esplendor, ligadas às outras por longos cordões dourados criados pelas luzes dos
veículos que transitam pelas estradas que as unem. Parecia que, naquela
noite, o céu havia chegado à terra, pois planetas, estrelas e galáxias apresentavam-se abaixo de nós, e não no infinito do universo que não podemos
“ver”, senão com a nossa imaginação.
Impossível não recordar as descrições de Saint-Exupéry, comparando cada cidade com os lugares especiais por ele descritos. Ali está um pequeno aglomerado de casas. Que estarão fazendo agora os seus habitantes? Alguns estarão voltando da estafante lide diária, reencontrando sua família,
abraçando seus filhos, preparando-se para o jantar e talvez para um pouco
de lazer, antes do reconfortante sono que os espera. Outros, pelo contrário,
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estarão saindo para o trabalho na calada da noite, simplesmente porque é
esse o seu destino. Mas será que todos foram contemplados por esta vida
que chamamos de ideal? Será que todas as pessoas que voltam cansadas, depois de trabalhar um dia inteiro, têm um jantar para saciar-lhes a fome, uma
família para recebê-los e uma cama para dormir? Será que todos aqueles que
estão saindo à noite irão trabalhar? Talvez não, pois, se não tiverem um trabalho honrado, poderão ter se transformado em ladrões ou assassinos, a mostrar
a imperfeição deste planeta, que a todo instante teima em querer rivalizar-se
com o paraíso perdido.
Vivemos num mundo imperfeito, onde, apesar de Deus ter espalhado a
capacidade, a inteligência, a criatividade e os dons de forma absolutamente
aleatória, a sociedade não consegue ser justa, colocando uns em situação privilegiada e condenando outros à extrema penúria. Estes infelizes, forçados pelas
circunstâncias e nada mais tendo a perder, não se importam mais com sua
alma ou com seu destino. Perpetua-se, assim, o desequilíbrio social que não foi
criado por eles, mas pela sociedade injusta em que vivem. Por que temos que
conviver com tanta desigualdade? Como seria fantástico poder ficar pairando
nos ares, acima das mazelas humanas – vaidade, inveja, corrupção – e da
força dos poderosos que pensam que tudo podem!
O tempo passa célere e, apesar dos devaneios que me levaram para
bem longe deste “vale de lágrimas”, sou, de repente, trazido de volta à realidade pelo chamado insistente do Centro de Controle de Tráfego Aéreo de
Brasília, ao avisar-me que é hora de iniciar a descida, pois me encontro a
apenas 50 quilômetros de Rio Preto. Dirijo meu olhar para a frente: lá está,
esplendorosa, a nossa cidade, que vista de longe e do alto, parece uma estrela de brilho invulgar a me atrair, como são atraídas as libélulas pelos focos de
luz. Tudo inspira felicidade neste pedaço de Universo encravado na Terra!
Estarei eu apenas imaginando uma situação ideal? Acredito que sim, pois sei
que existem muitos problemas a serem resolvidos na cidade em que vivo
com minha família, meus amigos, meus antepassados e os desconhecidos
que reverencio e respeito. Mas será que estaremos eternamente condenados
à imperfeição? Volta-me o ânimo quando penso que, apesar dos problemas,
a cidade soube mobilizar-se como um todo para salvar do fechamento a obra
do Serviço Social São Judas Tadeu. Concluo que talvez o sonho de uma
cidade justa possa se tornar realidade. Volto para casa, a jornada de hoje
terminou. Amanhã começará outro dia que, certamente, será melhor que o
anterior para quem tem esperança!
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TROPA
DE
ELITE
Vivemos ainda em uma comunidade com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos melhores do nosso país. Este índice mede, comparativamente, riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade,
etc., entre as cidades e as nações de todo o mundo. Nosso IDH é 0,85,
resultante de: Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) de apenas 10,0; Esperança de vida de 73 anos; Alfabetização de 95% da população
adulta; Evasão escolar de 0,85% (a mais baixa do Estado); Educação superior com 270 cursos de graduação e 70 cursos de Pós-Graduação (total de
23.000 mil alunos); Estrutura de saúde eficiente e diversificada (1.500 leitos
hospitalares, 2.000 médicos, 30 Unidades Básicas de Saúde); PIB (Produto
Interno Bruto) de 3,05 bilhões.
Com esses índices, somos a segunda cidade em longevidade, a terceira em escolaridade e qualidade de vida, figurando entre as dez mais ricas dos
654 municípios paulistas.
A esta altura, o leitor deve estar se perguntando o motivo do título
deste ensaio. O que temos a ver com o filme “Tropa de Elite”? Sugiro que seja
assistido para se ter uma ideia crítica sobre a situação do crime no Brasil.
Sem juízo de valor, o filme evidencia um submundo sórdido e violento, sem
vencedores, a ser conhecido por todos nós.
Em 2002, Rio Preto despontava como a cidade líder no combate a
criminalidade. Apenas 13 homicídios por 100 mil habitantes, com redução
de 25% em relação aos anos anteriores, foi assim considerada uma das cidades mais seguras do Estado.
Em 2006, a situação modificou-se. A cada três horas, uma casa é
furtada em Rio Preto, um aumento de 13,7% em relação a 2005!
A quantidade de assassinatos quase dobrou, ainda que não se compare com a hecatombe do Rio de Janeiro ou São Paulo. Qual a causa principal desta modificação do perfil de tranquilidade antes aqui reinante?
De acordo com o major Ivano Pedro Rodrigues, subcomandante do
17º Batalhão de Polícia Militar, o aumento de crimes contra o patrimônio na
cidade está ligado ao consumo de drogas. Felizmente, os índices ainda são
menores que os de cidades similares.
Rio Preto é mais tranquila quanto à violência se comparada Jundiaí,
Sorocaba e Ribeirão Preto.
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Não podemos, contudo, pensar que será sempre assim. Se medidas
enérgicas não forem tomadas e, principalmente, se a sociedade não se
conscientizar de que é necessário o envolvimento de todos para que possamos viver em segurança, estaremos fadados a um triste destino. O consumidor de drogas é fator importante na cadeia do crime. Propicia o avanço deste
comércio que destrói o equilíbrio harmônico de cidades e nações, tirando do
cidadão trabalhador o prazer de viver sem riscos e sobressaltos. Cito, de
memória, as palavras de Cláudio Humberto no começo deste ano: “Primeiro,
eles roubaram os sinais, mas não fui eu a vítima. Depois, incendiaram os
ônibus, mas eu não estava neles. Depois, fecharam as ruas, onde não moro.
Fecharam, então, o portão da favela, em que não habito. Em seguida, arrastaram até a morte uma criança que não era meu filho...”
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RIO PRETO
NO
SÉCULO 21
Vivemos uma época de muito progresso. As cidades que não se prepararem para desenvolver e usar as novas tecnologias estarão condenadas ao
atraso, com graves consequências para seus habitantes. Serão prejudicados
principalmente os jovens, que não poderão expressar suas potencialidades
em um mundo competitivo no qual vale mais quem for mais criativo.
Diante desse quadro, é grande a responsabilidade daqueles que se
preocupam em criar oportunidades a longo prazo, abominando o imediatismo.
Insisto em uma observação que resume o pensamento moderno do
que imaginamos ser uma cidade. Uma cidade não deve ser um aglomerado
de pessoas e, sim, um lugar em que estas gostem de morar, pois aí os negócios vão acontecer, levando ao desenvolvimento harmônico da sociedade, diminuindo as abomináveis diferenças entre as classes.
Em 2008, Rio Preto foi beneficiada com inúmeras conquistas para
torná-la uma cidade ideal, um verdadeiro exemplo de cidadania no contexto
nacional. Limito-me a chamar a atenção para aquelas que, sem juízo de valor, direcionam a cidade para um futuro auspicioso.
Estão adiantadas as obras que permitirão, já no ano que vem, o tratamento de 100% do esgoto. Isso nos coloca em situação privilegiada em relação a quase todas as cidades do Brasil, incluindo as capitais.
Os Institutos de ensino têm mostrado a que vieram. Como exemplo,
cito o desempenho invulgar da Pós-Graduação Stricto Sensu da FAMERP,
que recebeu da CAPES a nota cinco, motivo de orgulho para todos os riopretenses, pois esta nota é reservada para os cursos que têm produção científica com inserção internacional. A Revista Brasileira de Cirurgia
Cardiovascular, que é totalmente editada em Rio Preto, foi admitida na
MEDLINE, a mais importante base de dados do mundo científico, tornando-se a única revista da especialidade a conquistar essa posição em todo o
Hemisfério Sul.
Finalmente, a notícia que nos chega no ocaso deste ano. Rio Preto foi
beneficiada com a implantação pelo Estado de um PARQUE TECNOLÓGICO.
Essa conquista representa uma mudança de status para nossa cidade,
pois seus frutos serão sentidos ao longo de anos e décadas, trazendo progresso no campo da tecnologia – motor do desenvolvimento.
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Não foi fácil entrar no restrito clube das cidades que contam com
esse agente de transformação da sociedade rumo à modernidade.
Citar nomes dos que batalharam por esse feito certamente me levaria a cometer omissões inadmissíveis. Concentro-me nas entidades que tornaram viável o sucesso da proposta. Quando São Paulo, Campinas, São
José dos Campos, São Carlos e Ribeirão Preto receberam do Estado Parques Tecnológicos, para que nossa cidade não fosse preterida, imediatamente empenharam-se na árdua tarefa de incluir-nos entre as escolhidas as
seguintes entidades: 1 - PREFEITURA DE RIO PRETO, 2 - IBILCE, 3 FAMERP, 4 - FATEC, 5 - CIESP, 6 - APETI, além das empresas de
tecnologia aqui instaladas.
Contando com uma plêiade de colaboradores, um plano de viabilidade foi desenhado e executado sem qualquer auxílio de fontes governamentais, como: FAPESP, CNPQ, FINEP, etc.
Desta forma, apenas sete cidades do Estado de São Paulo, entre os
mais de 600 municípios, mostraram-se viáveis para tal empreendimento. Rio
Preto orgulhosamente pertence a essa elite.
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PARQUES TECNOLÓGICOS
Rio Preto, no ocaso de 2007, recebeu a aprovação do seu Parque
Tecnológico, o que representa para a cidade uma mudança de atitude para
evoluir neste século.
A tecnologia movimenta grandes somas de capitais, deflagra a oportunidade de centenas de milhares de empregos de alta qualidade e produz
progresso sem agredir o meio ambiente, quando assim configurada.
O esforço desenvolvido por tantos quantos se dedicaram ao projeto,
para dotar-nos do almejado benefício, tem características especiais. Não usou
recursos materiais externos e, do ponto de vista logístico, foi inteiramente
concebido por entusiastas de nossa cidade.
O Parque Tecnológico reunirá o que de mais importante existe em Rio
Preto na área de pesquisa e desenvolvimento. Será instalado na grande área do
atual IPA, transformando uma instituição repressora em uma entidade promotora do desenvolvimento. Promoverá a difusão do conhecimento por toda a
região que gravitará em torno deste polo de conhecimentos, com reflexos positivos na distribuição de renda e na qualidade de vida das pessoas.
O destino dá suas voltas. A área do IPA foi inicialmente concebida,
com grande espírito cívico, nos tempos do interventor do Estado de São
Paulo – Dr. Fernando Costa – para ser uma Escola de Agricultura em pleno
sertão da araraquarense, formando técnicos capazes de dar um sentido acadêmico-prático às atividades da terra.
Infelizmente, o governador Jânio Quadros, contrariando as expectativas otimistas dos rio-pretenses, modificou aquele sonho, criando um Instituto Penal Agrícola, talvez com boas intenções, mas que nos privou da
Instituição de Ensino tão desejada.
Agora, finalmente uma grande parte do antigo quinhão de terra será
destinada à área educacional. Constituirão o almejado Parque Tecnológico
as seguintes unidades:
1 - IBILCE (Instituto de Biociências), que, além do ensino e pesquisa que já desenvolve com grande repercussão, terá a responsabilidade de
estudar e cuidar da área de Reserva Ecológica ali existente, com mais de 11
milhões de metros quadrados, representando uma das reservas da quase extinta mata atlântica. A área a ser incorporada é de beleza natural invulgar e
tem em seu seio até uma límpida cachoeira.
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2 - FATEC (Faculdade de Tecnologia), que, entre os excelentes cursos já em execução, terá também um curso de Agronegócios, revivendo um
sonho que havia sido sepultado há muitos anos.
3 - FAMERP (Faculdade de Medicina de Rio Preto), que vem crescendo em qualidade, com seu ensino de graduação e pós-graduação e sua
grande inserção na área social, provendo saúde e tratamento de doenças que
vão muito além das fronteiras de nossa região e do Estado de São Paulo.
4 - PARQUE INDUSTRIAL, para a implantação de indústrias que
aproveitem o conhecimento desenvolvido nas unidades acadêmicas, transformando-o em produtos, fechando assim o círculo virtuoso do uso da ciência em benefício da comunidade e da Nação.
O Prof. Steiner, presidente da comissão para constituição dos Parques Tecnológicos do Estado de São Paulo, disse em tom de profecia, entre
outras considerações, que gostaria de ver em Rio Preto o desenvolvimento
de uma “EMBRAER do CORAÇÃO”.
O início foi dado, caberá às gerações futuras transformar a profecia
em realidade.
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COMUNIDADE
Já enfatizei a importância da Faculdade de Medicina de Rio Preto
ocupar destaque merecido no cenário educacional, científico e de extensão à
comunidade, em razão do excelente desempenho dos alunos-doutorandos
no exame do CRM. Tal posição não fica restrita aos muros da Instituição,
mas reflete em benefícios para a população local e toda a sociedade brasileira. A FAMERP e a FUNFARME têm colocado sua inserção no cotidiano
das pessoas como uma de suas metas prioritárias.
Falar que a assistência prestada pelo Hospital de Base é indispensável e vital chega a ser redundância. As pesquisas avançadas desenvolvidas
em seus laboratórios são conhecidas internacionalmente. O envolvimento
impressionante de equipes dedicadas à prevenção de doenças junto à população carente é fato a ser enfatizado. Realçar a Pós-Graduação na formação de Mestres e Doutores para suprir a falta de professores e pesquisadores indispensáveis ao progresso do País, é muito importante. Apontar os
programas de Residência e Aprimoramento como essenciais para oferecer
a sociedade, profissionais preparados e de elevado potencial, significa seriedade. Contar com os Cursos de Especialização para atender a demanda
crescente daqueles que, terminada a formação, continuam a aperfeiçoarse, é difundir conhecimento.
O que precisa ser anunciado, com franca determinação e orgulho, é
que uma instituição, nos moldes da FAMERP, não é uma simples escola. É
um farol a iluminar as trevas que nos envolviam.
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COINCIDÊNCIAS?
Leio sempre prazerosamente as crônicas inteligentes, com gosto de
um passado que nos remete aos tempos da mocidade, em que tudo era esperança e alegria. Assim é o admirável colega Dr. Wilson Romano Calil. Saborear sua escrita mágica, só comparável à eloquente oratória deste poeta, alimenta nossas almas. Mas a crônica do dia 5 de dezembro de 2005 tocou mais
fundo o meu coração, pois me fez lembrar fatos que o passar do tempo tinham esgarçado da minha memória. Com o título de “A Aydê”, o Wilson
levou-me de volta aos anos em que eu era assistente do sempre pranteado
Prof. Zerbini e seguia os passos de Adib Jatene. Lembro-me bem da operação da mãe do Romildo Sant’Anna, pois sentia nos pacientes de Rio Preto a
ligação do elo perdido com esta cidade que sempre amei, procurando darlhes o carinho e o amor que os conterrâneos merecem.
Os anos passaram céleres e minha vontade de voltar às origens trouxeme de volta. Com a ajuda dos idealistas rio-pretenses, foi possível um dos mais
pujantes centros de cardiologia e cirurgia cardíaca do País. Quis o destino que
um dia Deus incumbisse-me de salvar a vida daquele que havia orientado a
cura de dona Aydê. Ao ler os artigos do Wilson, sinto-me recompensado de têlo operado e poder contar com sua saudável presença entre nós, sorvendo no
dia a dia, toda a cultura e toda a bondade que o caracterizam.
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FIM
DE
ANO
Inicio com a última frase da crônica escrita pelo amigo dileto, orador
impecável e escritor envolvente, Dr. Wilson Romano Calil. “Existem mais
coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia.” Creio que existem mesmo. Um dos fenômenos que nos tem chamado a atenção é a rapidez
com que se escoam dias, semanas, meses e anos. Parece que o Ano Novo foi
ontem e já estamos novamente em clima de Natal, com suas luzes a brilhar
por toda a cidade, inundando nossos corações de alegria e de esperanças
como quis o Cristo, Nosso Senhor. Procurando explicações para essa aceleração, encontrei-as nas palavras de Leonardo Boff. Sugere ele uma teoria
descrita como “Ressonância de Schumann”.
Consta que entre a terra e a base da ionosfera, mais ou menos a 100
km de altitude, existe um campo eletromagnético, que sempre vibrou na
frequência de 7,83 pulsações por segundo. O nosso cérebro acompanha essa
frequência, assim como todos os fenômenos da natureza. Acontece que a
partir dos anos 80 e 90 essa frequência acelerou-se para atingir de 11 a 13
hertz. Desta forma, a jornada de 24 horas passou a ser sentida como de
apenas 16 horas! Poderíamos dizer que o marca-passo da terra acelerou-se e
que disto resultaram os cataclismos que vivenciamos ultimamente e o encurtamento do tempo disponível para nossas atividades.
De qualquer forma, já é Natal e os desejos de PAZ na terra ecoam
com inusitada intensidade, mesmo considerando que a velocidade dos acontecimentos esteja atropelando o nosso viver.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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EMBORA
PARA O
PASSADO
Em todo começo de ano, é comum ficar-se nostálgico e comigo não
foi diferente. Senti vontade de relembrar o passado que não volta, apesar da
vontade imensa que temos de revivê-lo. Tudo era mais simples. O Brasil era
o país do futuro, não um futuro longínquo, bastaria dobrar a esquina para
atingi-lo e entrar no sonhado primeiro mundo. Tinha “footing” na Bernardino,
os moços parados em pé, sempre nos mesmos lugares, bem alinhados, com
seus ternos de linho 120, usando “Glostora” nos cabelos bem penteados. As
moças passavam subindo e descendo os quarteirões com seu ar juvenil, suas
saias rodadas e sua pureza infinita.
De um lado ficava o Café do Pinho, centro de grandes atividades no
tempo do gado “Gir”. À noite, aconteciam negócios de milhões de “mil réis”.
A maior parte derretia-se sob a luz do sol que, iluminando a mente dos
boiadeiros de plantão, os trazia de volta à realidade. Tinha também, do outro
lado, a Casa Bueno, com suas vitrines atraentes, mostrando o potencial da
nossa cidade em transformar-se na metrópole que é hoje.
Ah... também vivíamos a época dos cinemas. Cine São Paulo, Ypiranga
e Rio Preto (onde é hoje o Praça Shopping) eram enormes, neste último, nos
“matinês” dos sábados e domingos, a Orquestra Paratodos (excelente) nos
brindava com lindos boleros que dançávamos bem colados. O governo, sob
a liderança de J.K., modernizava o País, industrializava a Nação, construía
Brasília e mudava a nossa mentalidade. Agora, ele é revivido na minissérie
da Globo, com todo seu carisma. Vale a pena!
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Domingo Braile
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RIO PRETO
QUE EU VIVI
Na última crônica, escrevi algo sobre uma Rio Preto que não mais
existe a não ser na nossa memória, que vai sendo tragada pelo passar
inexorável do tempo.
Falei de lugares e coisas, mas hoje quero falar de gentes. Não gente
importante, que destes, todos, ou alguns, ainda se lembram, mas de figuras
caricatas, que faziam parte do folclore da nossa cidade. Vagavam pelas nossas ruas pelo menos três figuras que poderiam ter saído dos contos dos Irmãos Grimm. O Caruaru, sempre vestindo uma farda à semelhança daquelas usadas pelos “Coronéis da Guarda Nacional”, título comprado da Coroa
por abastados e analfabetos coronéis de fachada. A farda não estava em bom
estado, mas escondia seus puídos com uma infinidade de medalhas. Ele tinha também um carrinho cheio de badulaques: espelhinhos, placas, buzinas..., talvez predecessor dos enfeitados automóveis de hoje. Vagava também pelas ruas a Vandéca, sempre suja e sempre muito maquiada a falar
coisas desconexas, ou nem tanto, mostrando a inutilidade da vaidade. Para
terminar a tríade, com ar de louco, andava com seu passo apressado o “Cabeça Branca”, que muito bem poderia ser um personagem de Victor Hugo.
Falava o tempo todo, mas tinha sua filosofia. Tanto é que, um belo dia,
tomou uma nota de 20 mil réis, amarrou-a em um barbante e saiu a puxá-la
pelas calçadas. Gritava para que todos ouvissem: vocês correm atrás do dinheiro, mas o dinheiro corre atrás de mim!
Será que a sua lição não deveria nortear nossa conduta nestes dias de
consumismo exagerado?
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ENSINO MÉDIO
EM
RIO PRETO
Foram publicados, no último dia 12, na Folha de São Paulo, os resultados do ENEN (Exame Nacional do Ensino Médio). Para os que se interessam pelo progresso do País, vale a pena atentar para estes dados, que
representam o futuro da nação, pois sem Educação Básica, jamais poderemos atingir a igualdade social que tanto desejamos. Observando os
dados com crítica, podemos ver que nossa cidade encontra-se em posição
privilegiada quando a comparamos com as congêneres do Estado de São
Paulo. No ranking nacional, ocupamos o importante 17º lugar, entre os 122
classificados. No nosso Estado, ficamos em 3º lugar, perdendo apenas para
São Carlos e Jundiaí.
O mesmo jornal não deu o destaque necessário à nossa posição, uma
vez que, ao analisar a performance da Rede Pública e da Rede Privada, simplesmente “esqueceu-se” de nós. Buscando informações no site do Inep,
www.inep.gov.br, podemos verificar que a média da nota dos alunos da Rede
Pública em nossa cidade é 42,662, apenas 0,706 pontos abaixo de São Carlos,
a campeã do Estado e segunda colocada no País. Em relação à Rede Privada, nossa cidade não foi citada. Com nota média de 59,36 pontos neste quesito, estamos três pontos abaixo do primeiro lugar e em 9º lugar no Estado,
perdendo para São Carlos, Franca, Jundiaí, Presidente Prudente, Suzano,
Campinas, São José dos Campos e Marília. No contexto brasileiro, estamos
em 19º lugar.
Desta forma, pode-se concluir que nosso Ensino Público se destaca, mas, sem particularizar nenhuma instituição, o Ensino Privado deverá
melhorar muito para nos igualarmos aos concorrentes. Condições para isso
certamente temos!
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Domingo Braile
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HOSPITAL
DO
CORAÇÃO
Meu amigo Lelé Arantes, com sua escrita inteligente e irônica, trouxe-me lembranças dos anos 90. Àquela época, a Revista Manchete publicou
um artigo dando a Rio Preto o epíteto de “Cleveland Brasileira”. Um grupo
de Cirurgiões Cardíacos e Cardiologistas estava prestes a consolidar este
“milagre”. Nossa cidade, pela localização privilegiada, características acolhedoras e renome em Medicina, tinha todas as condições de repetir, guardadas as proporções, o fenômeno “Cleveland”. Conseguimos o apoio do então
progressista prefeito Toninho Figueiredo e também dos deputados federais
Vadão Gomes e Edinho Araújo. Foi apresentado um projeto de lei, logo
aprovado por uma plêiade de seus colegas, destinando ao HC de Rio Preto, a
fundo perdido, a quantia de 6 milhões de reais.
O dinheiro foi imediatamente depositado na conta da entidade. A
contrapartida da Prefeitura seria apenas doar o terreno. O SUS garantia o
aporte econômico necessário para o funcionamento da unidade. Um novo
prefeito, recém-eleito, negou-nos o prometido terreno. Devolvemos o dinheiro,
não sem muita dor no coração e uma sensação insólita de fracasso. Perdeu
Rio Preto, perderam os pacientes que tanto necessitam de tratamentos
cardiológicos e perdemos nós pelo sonho desfeito. Foi uma pena. Barretos
ficou famosa pela sua Festa do Peão, mas também pelo seu Hospital de Câncer da Fundação Pio XII, um centro que rivaliza com os da capital e por isso
tem sido chamada de “Houston Brasileira”.
Nós ficamos a ver navios, mesmo estando longe do mar...
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Crônicas de um Médico do Sertão
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SAUDADE
Para Richard Bach, “Longe é um lugar que não existe”, uma verdade,
pois o mundo foi ficando cada vez menor em decorrência dos meios de transporte que avançaram de forma exponencial durante todo o século passado.
De repente, encontro-me em Washington, nos Estados Unidos, no
Congresso da American Association for Thoracic Surger. Sinto saudades do Brasil e
desta Rio Preto que nos envolve com sua simplicidade e seu jeito, ao mesmo
tempo, metropolitano e caipira. Saudades da capital do SERTÃO de outrora,
que mostra agora toda sua potencialidade e beleza. Rio Preto que sabe acolher
a todos que desejam uma vida digna ao lado de amigos sinceros e sempre
prontos a ajudar. A saudade, contudo, nos faz pensar que um dia poderemos
nos separar e sentiremos falta daquilo que juntos descobrimos, dos sonhos que
tivemos e conseguimos realizar, ou ficaram perdidos no tempo. Saudade dos
momentos compartilhados, das vitórias dos nossos companheiros e da tristeza
das derrotas. Lembraremos dos finais de semana que nos permitiram maior
convivência e mais alegria. Os finais de ano nos evocarão para sempre os
sentimentos de fraternidade que caracterizam esta época dos muitos abraços e
de bons desejos que permeiam nossas almas; é o tempo em que fazemos um
balanço da nossa existência, ao ver que o calendário insiste em dizer-nos que
mais um ano passou, e que outro virá com suas promessas e desafios.
Este texto foi ditado pela saudade que sinto dos tantos amigos que
me são caros, nesta terra abençoada por São José e que se chama Rio Preto.
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Domingo Braile
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ORAMINDA
O nome não é comum e muito menos a sua história!
Já ia alta a noite quando, finalmente, conseguimos atender a todas as
exigências para a implantação de um novo paradigma para nossa cidade e para
a Faculdade de Medicina de Rio Preto e seu hospital de apoio, o Hospital de
Base. O sonho dos médicos que vieram para os sertões da araraquarense nos
primórdios do século passado devagar se realizava. Aqueles pioneiros, com
certeza, imaginavam que um dia a nossa cidade lhes renderia tributo, colocando-a entre os principais centros médicos do País e do mundo. Não tenho qualquer receio em fazer tal afirmação, pois, pela dedicação dos médicos e de
todos aqueles que militam na área de saúde, hoje Rio Preto é referência inconteste
no tratamento de toda a vasta gama de doenças que atinge de forma inexorável
a nossa sofrida população. Oraminda venceu e vive há sete anos com o coração de um jovem infeliz que chegou ao HB com morte cerebral, decorrente de
afogamento. Não foi possível salvá-lo, mas sua família foi sublime ao fazer, em
um momento de dor, um ato de doação cristã. Oraminda irradia felicidade por
continuar viva ao lado dos seus, e a família do doador, certamente, sente-se
recompensada pelo seu ato de fé e caridade. A vida é um dom divino e nós,
médicos, simples executores da vontade de Deus.
Os dirigentes do País bem que poderiam ter um pouco de coração, eliminando os corruptos e o mau uso dos dinheiros públicos, alocando tais recursos
na promoção integral da saúde, dando-nos a oportunidade de continuar a ser
agentes da felicidade. Obrigado, Oraminda, por nos dar tanta alegria!
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PILOTOS
Sou um velho piloto, ou um piloto velho.
Foi nos anos 50, mais precisamente no ano de 1954, que iniciei meu
curso de pilotagem no nostálgico “campo de aviação” de Rio Preto. Localizava-se onde é hoje a casa da Cultura e o Teatro Municipal e estendia-se por
meros 1.200 metros até os domínios do Riopreto Shopping Center.
O Aero-Rancho, com seus aviões, ajudava a desbravar os sertões do
Norte do Paraná, Mato Grosso, Goiás e mesmo o nosso sertão. O Aeroclube
atraía jovens encantados com a aviação glamourosa daqueles tempos. O instrutor era o José Escobar Bergman, que havia aprendido a ensinar com uma
missão francesa, vinda ao Brasil para difundir a doutrina necessária para tal.
Vivíamos a aviação “pau e bola”, pois, além da bússola, estes eram os únicos outros instrumentos de que dispúnhamos para manter a atitude do avião.
O “pau” era um ponteiro que pela inclinação lateral da aeronave nos indicava se estávamos voando na horizontal. A “bola”, um simples nível (como o
dos pedreiros) que acionado pela força centrífuga nos informava se a curva
estava correta ou derrapada. Nada era elétrico ou eletrônico. Para dar partida ao motor, tínhamos que “dar hélice” usando a força dos braços para fazêla girar até a combustão iniciar-se. A decolagem e o pouso baseavam-se na
sensibilidade do piloto. Tínhamos que “sentir” o avião pela parte do nosso
corpo que fica em contato direto com o assento, tudo baseado na nossa
capacidade de interpretar novas sensações. As nossas aeronaves nem breque
tinham! Paravam, talvez, pela força do nosso pensamento!
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Domingo Braile
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PILOTOS II
Ainda estamos envolvidos pela forte comoção causada pelo acidente com o Airbus 320. Procuram-se culpados! Como se isso pudesse
diminuir o sofrimento das famílias e dar mais segurança aos que direta ou
indiretamente participam desta dor coletiva. Nada mais justo do que evidenciar as causas que provocaram o desastre, para evitar sua dolorosa repetição. Tenho, contudo, minhas idéias a respeito da conjunção de eventos que culminaram com a fatalidade.
Para que um acidente ocorra, é imperativo que um conjunto maléfico
de fatores se juntem. Certamente isso ocorreu naquele fatídico dia. Analiso,
contudo, apenas um aspecto que tem sido motivo de muitas especulações.
Morrem nos EUA mais de dois mil pacientes por ano em decorrência de
novas tecnologias implementadas nos aparelhos de respiração artificial, simplesmente porque os técnicos não conseguem entendê-las.
Nos aviões “modernos”, acontece um fenômeno similar. Incorporaram neles muita eletrônica embarcada. A Airbus foi pioneira no “Fly by
Wire”, trocando o manche, que sempre existiu nas aeronaves, por um “Joy
Stick”, como o dos jogos eletrônicos. As conexões mecânicas dos comandos
foram substituídas por fios elétricos, por onde trafegam informações dos
computadores, que determinam as atitudes do avião. Não sei se essas inovações ajudam ou atrapalham os pilotos. Baseiam-se em “situações ideais” nem
sempre presentes em um aeroporto “porta-aviões” como Congonhas.
Essa tecnologia moderna acredita mais nos computadores que no
cérebro humano, milhões de vezes mais eficiente que o melhor computador
que possamos imaginar.
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FAROL
As memórias são parte de nossa própria vida e acabam por constituir
a essência do ser que somos. Dia desses, algumas memórias me vieram à
mente quando estava parado, em pé, ao lado do farol rotativo que emite seus
sinais em forma de fachos de luz para a imensidão do espaço, a partir do
Aeroporto de Rio Preto. Cadenciadamente, a cada cinco segundos, um feixe
de luz amarela e, em seguida, de outra verde corta os céus, com uma mensagem constante e monótona. Parece a cada instante dizer: aqui existe um
aeroporto, há uma pista de pouso, com equipamentos e gente zelando pela
segurança das aeronaves e das pessoas que estão dentro delas. Talvez o farol
esteja dizendo que, como a Estrela do Oriente que guiou os Reis Magos em
sua viagem até o pequenino menino Jesus, assim ele também é um guia para
tantos viajantes dos ares!
Nestes devaneios, lembrei-me de uma noite muito escura, noite de
Natal, cuja distância nos anos a deixam no limbo da minha memória. O fato
ocorreu em uma época em que, na aviação, não existiam os sofisticados equipamentos que hoje nos auxiliam a chegar ao destino desejado com segurança. Não dispúnhamos de auxílios de Rádio-Navegação e o moderno GPS
(Ground Position System), “Sistema de Posicionamento no Solo”, que a qualquer instante nos informa a posição geográfica correta do avião, não havia
nem sido sonhado. Esse equipamento com informações de Satélites Artificiais
que giram em torno da terra emitem sinais eletrônicos com precisão de milésimos de segundo, utilizando a avançada tecnologia do mundo quântico. Eles
permitem aos pilotos saber qual a distância que os separa dos aeroportos,
assim como os informa acerca da velocidade do avião e do vento, além do
rumo correto a ser seguido. Fornece também a altura da aeronave em relação
ao solo e quanto combustível ainda lhe resta nos tanques. A hora exata da
chegada é mostrada matematicamente correta a cada instante, um verdadeiro milagre da engenharia moderna! Àquela época, pensar em usar radares e
transponders era impossível, pois não faziam parte do nosso cotidiano. Sabíamos apenas que existiam, e que podiam “ver” o avião o tempo todo durante
o voo numa tela de computador em um centro de operações, localizado,
muitas vezes, a centenas de quilômetros de distância, e orientá-lo da melhor
forma para levá-lo com segurança ao destino. Tudo isso se tornou real em
nossos dias, mas lembrar do passado sempre traz sensações interessantes,
geralmente impossíveis de serem repetidas e que nos enche de nostalgia e
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saudade. Naquele tempo, os aviadores dispunham, para orientar-se, apenas
de uma tosca bússola, sempre indicando o norte, de um cronômetro a marcar
os minutos, de um altímetro a mostrar a altitude e de um instrumento que
chamávamos de “pau e bola”. Era baseado no efeito giroscópico (em que
uma massa em rotação tende a se manter na mesma posição mesmo que o
seu suporte, no caso o avião, mude de atitude). Esse instrumento tinha um
ponteiro que nos informava se a aeronave estava voando em reta ou em
curva. Embaixo dele havia uma bola dentro de um tubo recurvado que nos
permitia saber se a curva estava sendo correta ou não. Eram esses os elementos com os quais contávamos para realizarmos as nossas grandes aventuras! Com eles tínhamos que nos manter orientados e chegar aos nossos
destinos são e salvos.
A memória levou-me de volta para aquela noite escura de Natal, em
que as estrelas não podiam ser vistas, porque o céu era negro e a terra desaparecera escondida entre as nuvens que cobriam como um manto toda a superfície que minha visão podia alcançar. Meu coração almejava chegar em casa e
encontrar os familiares, reunidos em festa, para comemorar o Natal. Porém,
sentia-me absolutamente só, eu e a massa de alumínio que me rodeava. O
único ruído que ouvia era o “ronronar” dos motores, a me dizer que ali estavam para me levar a um lugar seguro se eu fosse capaz de manter a altitude e
calcular com precisão o rumo e o tempo. O tempo e o rumo do nosso destino,
patrões de nossas vidas em todos os instantes de nossa existência. Minha altitude era de três mil metros e, pelo tempo calculado, poderia começar a descer.
Deveria estar a vinte minutos do meu destino e podendo baixar até mil metros
com segurança, mesmo sem ver o solo! Será que meu rumo e meus cálculos
estariam corretos? Se não estivessem, poderia chocar-me em uma elevação
inesperada do terreno, algum morro. A sensação imediata é de medo e apreensão, porque o aviador e o avião são estranhos à terra e só se sentem seguros
enquanto estão voando. Gostaria de me manter nas alturas até o clarear do dia,
mas tenho que continuar descendo, não existe outra possibilidade, pois o combustível é finito e tenho que chegar a um aeroporto, que infelizmente se encontra na terra e não no ar! Dois mil, mil e quinhentos, mil e cem metros, nada
mudou, tudo continua escuro como breu. Estou chegando aos mil metros, não
posso descer mais. De repente, toda a angústia, medo e insegurança desaparecem. Cortando os céus escuros, vejo, ao longe, o Farol com seus fachos amarelos e verdes a me apontarem o porto seguro, no qual a terra não será mais
minha inimiga, pelo contrário, me acolherá no seu âmago e me abraçará como
o bom filho que a casa torna. Lá não estarei mais só, reencontrarei meus familiares e amigos e terei mais uma história para contar! Exatamente como a Es140
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trela Guia fez com os Reis Magos. Senti-me privilegiado pelo amor de Deus
em minha vida. Pela sua maravilhosa segurança e providência significados
pelo farol naquela noite de Natal.
Passaram-se tantos anos e o Farol continua com sua missão anônima de indicar o caminho certo para aqueles que dele necessita e nele confia. Velho Farol com seus fachos brilhantes, quantas saudades, quantas
lembranças, quantas alegrias, quantas tristezas. Você é um exemplo que
não pode ser esquecido.
Fico pensando na luz que irradia da cruz de Cristo, que nasceu há
2.000 anos para salvar a humanidade do seu pecado e da escuridão das trevas. Creio que Jesus sempre foi e sempre será o Farol de nossas vidas, a única
luz, segura e verdadeira, em quem podemos confiar, seja nos bons momentos ou nas horas difíceis e de aflição.
Por isso, somos sempre vencedores através de Jesus Cristo, pois podemos chegar ao final de mais um ano, tendo a sua benção e proteção,
sabendo que, graças a sua luz, podemos aumentar o nosso acervo de memórias felizes e realizadoras.
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Terceira Parte
Medicina,
Ciências e afins
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MEDICINA
NO
TERCEIRO MILÊNIO
Sabemos que muitas conquistas da ciência e da tecnologia poderão
melhorar de forma apreciável o tempo e a qualidade de vida das pessoas. É
surpreendente a expectativa de vida daqueles que estão nascendo nos dias de
hoje, admitindo-se que possam passar dos 100 anos com facilidade. Mas de
nada adianta viver tanto se não existirem condições satisfatórias. Hoje, nos
países desenvolvidos, a expectativa de vida passa dos 80 anos. Mesmo aqui no
Brasil a evolução foi substancial, pois a barreira dos 70 anos já foi vencida e
caminhamos rapidamente para aumentar esse limite. A alta mortalidade infantil é ainda responsável por não termos atingido níveis melhores. O controle da
fome, das endemias e das doenças controláveis pela imunização, como a poliomielite, o sarampo, a febre tifóide e tantas outras, reverterá esse quadro e logo
estaremos no mesmo patamar dos chamados países desenvolvidos. Mas não
basta acrescentar anos à vida: também é importante acrescentar vida aos anos
das pessoas. Na área das doenças cardiovasculares, vislumbram-se progressos
consistentes, que concorrerão para diminuir o sofrimento daqueles que tenham necessidade de ser submetidos a operações para recuperar a saúde perdida. Entre as técnicas que estão evoluindo rapidamente estão as Operações
Minimamente Invasivas. Trata-se de operar os pacientes por incisões (cortes)
muito pequenos, usando tecnologia baseada nos sistemas de visualização de
imagens por minicâmaras de vídeo, acopladas a “Robôs”, guiados pela perícia
de cirurgiões no comando de potentes computadores. Com tal tecnologia, podem ser feitas grandes operações, com baixo risco e pouco sofrimento para os
pacientes. Sem grandes incisões, os pacientes estão menos sujeitos às infecções, não sentem dores e não chegam a imaginar a extensão da operação realizada, podendo ir para casa no mesmo dia, ou, no máximo, no dia seguinte ao
procedimento. Essa tecnologia já é uma realidade para muitas operações abdominais, torácicas e neurocirúrgicas e, possivelmente, muito em breve, será
rotina em todos os campos da cirurgia.
Na mesma linha, estamos vivendo hoje um momento muito especial
nos procedimentos Endovasculares. As artérias do nosso organismo são o
ponto de “choque” da ateroesclerose. Pela deposição de gorduras em seu
interior, acabam por entupir-se, com as graves consequências que todos conhecemos. O fluxo de sangue nessas artérias tem que ser restaurado, o que
até há pouco tempo só era possível por acesso cirúrgico direto sobre elas. Há
cerca de 10 anos, um hemodinamicista (Dr.Grundzick) teve a coragem de
introduzir um catéter, com um balão em sua ponta, dentro de uma artéria
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coronária e dilatá-la, com isto abrindo o enorme campo dos procedimentos
endovasculares. Médicos especializados introduzindo finas sondas no sistema circulatório são capazes de esmagar placas de ateroma, ou triturá-las
(rotablator) ou, ainda, implantar pequenas redes em forma de tubos (stents)
nos locais das obstruções para aliviar o estreitamento e permitir o livre fluxo
do sangue. Trata-se de um campo novo da medicina cujos resultados ainda
estão sendo avaliados, mas parecem promissores.
As artérias podem também dilatar-se formando os Aneurismas, que
sempre desafiaram a perícia dos cirurgiões. Estes acometem qualquer das artérias do organismo, sejam elas de grande calibre, como a Aorta – que é a principal via de saída do sangue do coração – assim como vasos muito finos, como
aqueles que nutrem os tecidos cerebrais. Quando o aneurisma atinge determinado diâmetro, a tensão nas suas paredes – seguindo uma lei física descrita por
Laplace - aumenta proporcionalmente ao raio da área dilatada. Forma-se um
verdadeiro círculo vicioso. Quanto maior o aneurisma, maior a tensão em sua
parede, que produz mais dilatação e assim subsequentemente. Desta forma,
fica fácil entender que, quando as artérias dilatam-se, elas têm tendência a
dilatar-se cada vez mais, até que suas paredes já não resistam mais à pressão
em seu interior e estouram! Tal fato, em geral, leva o paciente à morte. Quando
a Aorta se rompe, geralmente ocorre grande hemorragia incontrolável. Quando se rompe um aneurisma no cérebro, surge o derrame cerebral de
consequências gravíssimas. A correção cirúrgica dessas dilatações tem representado um desafio permanente para os cirurgiões. Trata-se de operações de
alta complexidade associadas a alto risco, e que envolvem tecnologia dominada por poucos centros. Imaginem que, para se operar os aneurismas da aorta, é
necessário parar totalmente não só o coração, mas toda a circulação. Para isso,
o paciente tem que ser esfriado a uma temperatura de 18 graus centígrados
(metade da nossa temperatura normal), para que resista à parada total da circulação. Essa parada, mesmo nessa temperatura tão baixa, não pode ser muito
prolongada. O cirurgião dispõe de no máximo 60 minutos para realizar uma
operação geralmente complexa e difícil, e, portanto,muito dependente de sua
habilidade. Com o desenvolvimento tecnológico, esse problema tem sido contornado, em muitos casos, pela possibilidade da introdução de um “stent
autoexpansível”. Nessa técnica, um tubo de material plástico inerte é introduzido dentro do aneurisma, com controle radioscópico, sob leve anestesia por
via intravascular. Esse tubo tem no seu interior uma mola de características
muito especiais, que levam o mesmo a expandir-se até atingir o diâmetro original da artéria. Reforçando a sua parede e recompondo as estruturas, permite
restaurações, anatômica e funcional, da área que estava dilatada pelo aneurisma,
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que certamente levaria o paciente à morte se não fosse tratado. Esse procedimento contrapõe-se àquele em que se fazia o acesso direto à lesão. Sua duração raramente passa de uma hora, e o paciente pode ter alta logo no dia seguinte à intervenção. Tivemos o privilégio de participar do desenvolvimento dessas próteses intravasculares, produzindo-as em nosso país com tecnologia inteiramente nacional. Nesse campo, o Brasil tem sido exportador e não importador, invertendo o fluxo de conhecimentos, levando-nos a ter orgulho do
engenho e criatividade presentes em nosso país.
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SAÚDE
E
PREVIDÊNCIA
NO
BRASIL
Já fiz muitas conferências e palestras e participei de infindáveis discussões sobre Saúde e Previdência no Brasil. Apesar do nosso país ser considerado de terceiro mundo, com uma distribuição de renda vergonhosa, temos alguns indicadores na área da saúde que nos permitem ter esperanças
em relação ao nosso futuro. O primeiro dado importante refere-se à expectativa de vida que os brasileiros têm ao nascer. Uma criança do sexo feminino,
que venha ao mundo na data de hoje, tem a perspectiva de viver 72 anos e,
se for do sexo masculino, terá chance de viver 65 anos. Isso nos coloca bem
perto dos países desenvolvidos da Europa. Um outro dado muito interessante refere-se à expectativa de vida para as pessoas que estão completando
hoje 60 anos. Se for mulher, tem a perspectiva de viver mais 19 anos e, se for
homem, mais 16 anos. Trata-se, sem dúvida, de uma boa notícia para as
pessoas que estão entrando na terceira idade, pois chegarão facilmente aos
79 e 76 anos, respectivamente. Mas é uma notícia temerosa para todo o
sistema previdenciário, e para os responsáveis pela saúde no País. Fica fácil
entender que a pirâmide social está se invertendo, com a presença, cada vez
maior, de pessoas “velhas” no lugar dos jovens. Pessoas mais idosas geralmente não trabalham, demandam mais cuidados e ficam mais doentes, aumentando o ônus social se não forem tomadas medidas saneadoras. A primeira delas seria aumentar a idade mínima para a aposentadoria, o que não
conta com a simpatia dos que estão para se aposentar. Acontece que a idade
para aposentadoria foi estabelecida muitos anos atrás, quando as pessoas
morriam muito mais cedo. Agora, uma mulher que se aposente aos 55 anos
terá que ser mantida pela sociedade, sem trabalhar, por cerca de 25 anos,
tendo que receber o salário, assistência social, cuidados médicos, etc., durante esse longo período. A situação para os homens é semelhante. A segunda medida refere-se ao tempo de serviço de 25, 30 ou 35 anos, que dá direito
a aposentadoria, sem considerar a idade mínima limite. Isso torna a situação
ainda mais crítica, pois permite que o cidadão se aposente aos 50 anos, com
uma perspectiva de viver mais 30 anos como um peso para a sociedade.
Diante desses fatos, fica claro que algo tem que ser feito para manter
o equilíbrio sem prejudicar ninguém. O que se tem visto nos países desenvolvidos é que a população da terceira idade mantém-se ativa, em trabalhos
compatíveis com sua capacidade e dando seu contributo para a sociedade.
Não são abandonadas à própria sorte com salários ínfimos, pelo contrário,
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são assistidas em todas as suas necessidades, mantendo-se “em forma” pelos programas de reabilitação e de assistência social, integrando-se como
elementos importantes do tecido social. A implementação de um programa
de tal natureza passa por ações de governo, iniciando-se pela formação de
uma estrutura de suporte a essa importante camada da sociedade. Por isso é
que a formação de enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais e professores de educação física, especializados na assistência às pessoas da terceira
idade, está entre as preocupações máximas dos países que fazem da qualidade de vida das pessoas sua maior prioridade. De propósito, não me referi aos
médicos que serão responsáveis pelo tratamento das doenças dos idosos.
Estes problemas também terão que ser enfrentados, mas se espera que com
a implementação das ações preventivas, os “velhos” terão cada vez mais
saúde, e dependerão menos de hospitalizações e tratamentos dispendiosos,
insuportáveis mesmo para as nações muito ricas. Os problemas, como os
coloquei, serão amplificados num futuro próximo, pois, com certeza, quem
estiver nascendo hoje, apesar da previsão otimista do início deste artigo,
poderá viver muito mais, chegando facilmente, ou ultrapassando, os cem
anos de vida, pelo advento das novas conquistas na área da saúde, principalmente no campo da genética aplicada à medicina. Não quero ser mal interpretado, mas, se a probabilidade de viver mais anos aumentou de forma
quase exponencial durante o século 20, os conceitos de aposentadoria também terão que ser mudados, pois foram baseados numa expectativa de vida
de cerca de 50 anos, há muito superada. Poucas pessoas eram beneficiadas
pelo “merecido descanso”, uma vez que a maior parte delas morria antes que
pudesse usufruir seus direitos. Agora a situação é completamente diferente,
e uma nova avaliação deverá ser feita, de tal forma que os idosos não representem um fardo muito pesado para a sociedade.
Em nossa cidade, dois fatos chamam a atenção para essa nova realidade: o primeiro deles refere-se à AGERIP, associação que se incumbe de
manter ativas as pessoas da terceira idade. Fui um dos seus fundadores,
sob a liderança do Sr. Antônio Correia Leite, de saudosa memória e baluarte da implantação, também, da nossa querida Beneficência Portuguesa.
Talvez, em 1968, estivéssemos adiante do nosso tempo, e a AGERIP ficou
em gestação até há dois anos, quando, diante da nova realidade e pelo
esforço dedicado de pessoas como a Candinha, como é carinhosamente
chamada a nossa querida Maria Cândida Pereira Azem, a associação tomou novos rumos. Estes condizem com a realidade atual, e têm demonstrado as possibilidades ilimitadas que esse tipo de atitude representa para a
reintegração dos idosos como pessoas atuantes da sociedade. O outro fato
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importante, neste contexto, foi o programa de Residência, com duração de
2 anos, para a formação dos médicos de família, implementado pela
FAMERP, Faculdade de Medicina de nossa cidade. Esses médicos de família serão importantíssimos para o desenvolvimento da nova Medicina
Baseada em Evidências, e para a manutenção da saúde de toda a população, desde o nascimento até a morte, cuidando de forma eficiente para que
as pessoas possam viver mais e com melhor qualidade de vida, usando a
prevenção como a principal arma do arsenal médico. Quanto ao problema
do financiamento da previdência, acho o assunto complexo, de solução
muito difícil, sem que se tomem medidas saneadoras em relação às contribuições, ao tempo de serviço e à idade mínima para aposentadoria.Também
tem que ser levada em consideração a possibilidade clara de que as pessoas da terceira idade podem e devem continuar contribuindo para a economia da Nação, dentro das suas possibilidades. Não se trata de uma penalidade, mas da oportunidade que se dará às pessoas mais experientes, de
sentirem-se úteis ao seu próximo, e viverem mais integradas a sociedade.
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INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA
Com muita honra, nesta semana, em Curitiba, o Dr. Fernando
Lucchese e eu recebemos, em nome dos 240.000 médicos brasileiros, a
Medalha da Integração Simão Bolívar, concedida pela CIPIS (Câmara Internacional de Pesquisas e Integração Social da América Latina). Nossos
nomes foram indicados por um dos seus membros mais ilustres, o professor Paulo Brofman, que é também presidente da Sociedade Brasileira de
Cirurgia Cardiovascular. A intenção foi premiar brasileiros que tenham
contribuído para a difusão de conhecimentos na Área Médica em toda a
América Latina e principalmente no Mercosul. O Dr. Fernando Lucchese é
proeminente cirurgião cardiovascular em Porto Alegre, desenvolvendo ali
a especialidade com um tal nível de excelência, que transformou aquela
capital em um centro de irradiação internacional das melhores técnicas em
cirurgia cardíaca. Nós, por outro lado, temos promovido nossa cidade não
só como centro formador de especialistas, como também de atendimento
de pacientes de uma vasta área do Brasil e dos países vizinhos. Além disso,
com a produção de equipamentos destinados à cirurgia cardíaca, temos
alimentado, a partir de Rio Preto, as equipes que militam na especialidade
em todo o território nacional, nos países irmãos das Américas e em tantos
outros espalhados pelo mundo. Numa sessão solene, a Medalha e o Diploma nos foram outorgados, tendo, na ocasião, o Prof. Dr. Paulo Brofman
proferido o discurso abaixo, que quero compartilhar agora pela profundidade de suas palavras ao definir o médico como um dos artífices do equilíbrio social que tanto buscamos. Assim ele se expressou.
“Senhoras, Senhores, colegas e amigos da Câmara Internacional de Pesquisa e Integração Social da América Latina.
Ilmo. Sr. Presidente João Carlos de Lucas.
Trago-lhes o sincero agradecimento, em meu nome e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, pela generosidade em
dar-me, nesta solene cerimônia, a honra de proferir estas palavras,
solicitado que fui para falar sobre a Cirurgia Cardiovascular no Brasil
para esta internacional e seleta platéia. Contudo, não é possível falar
desta especialidade sem falar em medicina, profissão que se destaca
no mundo utilitarista, impulsionada que é por um caráter singular, elevado e quase apostolar. Não como aquele de uma religião, mas, sim,
caracterizada pelo devotamento e compaixão, como já nos ensinava o
grande mestre Miguel Couto. Deve-se entender ainda, não obstante o
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materialismo que impera em nossa época, que a medicina tem, pelos
objetivos que persegue, pela dedicação que exige dos que a praticam
e pelo sentimento profundamente humano da sua missão, como algo
imponderável, algo que não se pode fixar no texto rígido das leis. Não
é possível legislar sobre o desprendimento, não é possível regulamentar a dedicação, sendo dedicação e desprendimento atributos inerentes e indispensáveis ao exercício da verdadeira medicina.
Na medicina busca-se um ideal sublime, qual seja, o de pôr
em prática a mais alta expressão da solidariedade humana, atuando
exclusivamente para edificar! Assim, jamais veremos a mão do verdadeiro médico armar-se que não seja para fazer o bem.
A aceitação por esta profissão implica num idealismo sadio,
levado por uma vida de lutas, constituída de vitórias e desalentos, de
sacrifícios e satisfações, em que os dias e noites não são patrimônios
próprios e sim dos doentes.
Diz o poeta Francisco Otaviano, em seu poema “Ilusões da Vida”:
Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu
Quem não sentiu o frio da desgraça
Quem não passou pela vida e não sofreu
Foi espectro de homem, não foi homem
Só passou pela vida, não viveu.
A cirurgia cardíaca brasileira foi introduzida nos moldes atuais
pelo Prof. E. J. Zerbini que, retornando dos EUA, na década de 1950,
conseguiu transmitir os conhecimentos de uma especialidade de alta
complexidade, divulgando-a e fazendo-a florescer em um país em desenvolvimento. Tal missão foi coroada logo nos primórdios, pelo fato
da realização em nosso país do 17º Transplante Cardíaco do mundo, o
primeiro da América Latina, em maio de 1968, apenas cinco meses
após o feito pioneiro de Christian Barnard, na África do Sul.
Além disso, sabendo das enormes dificuldades que enfrentaríamos se dependêssemos de materiais importados para a realização das
operações cardíacas, estimulou e conseguiu que toda a tecnologia utilizada em Circulação Extracorpórea, compreendendo a fabricação das
próteses valvares cardíacas implantáveis, oxigenadores, marcapassos
e demais equipamentos, fosse aqui desenvolvida, transformando o Brasil de importador em exportador de tecnologia e equipamentos para
Cirurgia Cardiovascular. Sob seu estímulo, e contando com cirurgiões de
primeira grandeza, muitas das técnicas cirúrgicas pioneiras para correção de defeitos cardíacos foram também aqui desenvolvidas, levando a
Cirurgia Cardíaca e o Brasil a serem respeitados neste campo do conhe151
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cimento humano em nível mundial. Desta forma, a nossa especialidade
tornou-se um dos marcadores de viabilidade deste país que amamos.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, SBCCV, é
hoje constituída por 672 membros, sendo 353 deles possuidores de
titulação máxima, aptos a realizar todos os procedimentos cirúrgicos
sobre o coração, por mais complexos que sejam, em 150 centros de
excelência presentes em todos os rincões do Brasil.
Tal qual estas palavras, em nenhuma outra profissão o valor
da vida e a grandeza da sua missão calam tão profundamente nos
homens. Existem muitas dificuldades e tristezas no exercício da profissão, que são amplamente compensadas pela alegria de aliviar um
ser humano das angústias de uma precordialgia, ou pelo sentimento
de dever cumprido ao devolver a uma mãe angustiada o seu filho curado. O pagamento por estes milagres fica muitas vezes restrito a um
simplesmente obrigado Doutor, mais do que suficiente para que continuemos nossa luta.
Apesar do momento festivo, não posso silenciar sobre o drama que está vivendo o médico, pela situação socioeconômica que a ele
é imposta.
O acesso da população à assistência médica é um direito
inconteste e os médicos, atendendo ao imperativo de seus deveres,
têm proporcionado este benefício a todos e em todos os tempos. As
falhas que ocorrem no sistema assistencial, e que são muitas, não são
devidas ao trabalho individual do médico. São, na verdade, falhas que
a ele não é dado o direito de corrigir.
O modelo médico assistencial vigente tomou para si todo o
encargo da assistência médica, sem, no entanto, estar devidamente
preparado, tenta às vezes amparar o doente esquecendo com frequência
dos médicos, roubando assim a mais sublime virtude da profissão que
é a liberdade de escolha e a relação direta médico-paciente.
O exercício da medicina tem aspectos próprios que não são
comparáveis a nenhum outro. Fixam-se horas de trabalho, esquecemse as horas de estudo, esquecem-se que ao tratar o doente o compromisso não acaba na visita diária, permanece no espírito, nas apreensões pela conduta adotada, na incerteza do diagnóstico e na responsabilidade de devolver uma vida ao seio da família. Estes e outros desenganos ferem a alma do médico.
Esta homenagem, hoje compartilhada por esta plêiade de
autoridades, outorga a Medalha Simão Bolívar a dois eminentes colegas: Domingo Braile e Fernando Lucchese. Entendo, contudo, que ela
não deva ser encarada como uma conquista pessoal dos dois representantes da classe, mas dividida com aproximadamente 240.000 médicos que exercem a nobre profissão em nosso país, com competência,
amor e compaixão.”
Espero que esta mensagem possa calar fundo no coração daqueles
que são responsáveis pelos destinos deste país e desta cidade.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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ESTADOS UNIDOS
E
BRASIL
NEW YORK - aqui me encontro a caminho de San Diego, onde participarei de mais um Congresso da Associação Americana de Cirurgia Torácica
(AATS). Trata-se de um dos mais importantes e prestigiados Congressos da
especilidade, que se realiza a cada ano. Tenho participado deste evento desde
meus tempos de jovem iniciante na cirurgia cardíaca, porém, desta vez, o acontecimento envolve-se de um caráter especial, pois, após todos estes anos, serei
admitido como membro ativo da referida Sociedade. Isso representa uma
conquista importante não só para mim, mas principalmente para a Cirurgia Cardíaca Brasileira. A Associação mantém em seus quadros apenas 600 membros,
e somente com a morte de algum deles é que outros são admitidos. Até o
presente apenas três brasileiros pertenceram à entidade: o falecido prof. E. J.
Zerbini, o ex-ministro Adib Jatene e o ex-presidente da Sociedade Brasileira
de Cirurgia Cardiovascular, Dr. Milton Meier, do Rio de Janeiro. Seria supérfluo dizer da minha satisfação em poder representar o Brasil neste ato de reconhecimento ao progresso que a nossa cirurgia cardíaca apresentou nos últimos
50 anos, rivalizando-nos com as nações que ostentam o galardão de serem
“desenvolvidas”. Não me canso de dizer que a Cirurgia Cardíaca Brasileira
representa a demonstração inequívoca da capacidade do nosso país e do nosso
povo de desenvolver tecnologia de primeiro mundo, altamente competitiva,
colocando-nos entre os líderes mundiais neste campo. Fica, desta forma, orgulhosamente provada a viabilidade do Brasil também no difícil setor das ciências aplicadas. Espero que esta seja mais uma contundente mensagem dirigida
aos céticos, que teimam em considerar o Brasil um país de segunda classe, sem
esperança e sem solução.
Visitando nossos “irmãos” do norte, sinto que estamos às vésperas
de mostrar ao mundo o que somos capazes em todos os campos do conhecimento humano, movidos pela nossa capacidade, nosso espírito pioneiro e
nossa criatividade. Não tenho dúvida em fazer tais previsões quando vejo
que, apesar do progresso material que encontro, não consigo sentir aqui a
vibração, o entusiasmo e a força de vontade que sinto em qualquer cidade
brasileira. Sei que existem problemas em nosso país, e não desejaria vê-lo
com “óculos verdes” que poderiam esconder-lhe as mazelas, porém tenho
certeza que estamos muito próximos de reverter a situação absurda de, ao
mesmo tempo, sermos ricos e pobres. Dispomos de instituições exemplares,
como a Embraer e a Embrapa, além das nossas excelentes Universidades
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(capazes de desvendar os segredos do Genoma) e trazer o progresso sustentado que tanto desejamos. Porém, somos detentores de analfabetismo, violência e vergonhosa corrupção que destróem o País, mantendo um estado de
pobreza e miséria, indignos de nós mesmos. Mas tudo indica que estes mecanismos de atraso estão com seus dias contados, pois os ídolos com “pés-debarro” estão finalmente sendo desmascarados e oferecidos ao escárnio público, para que nunca mais voltem a roubar dos que mais necessitam. Estando fora, posso sentir mais intensamente a vibração do povo brasileiro e sua
vontade de tranformar o Brasil na Nação que merecemos pelas condições
que temos, tanto do ponto de vista material, como intelectual.
Já vai longe o tempo em que éramos uma nação periférica,
desconsiderada no concerto mundial. Hoje o Brasil é respeitado e, porque
não dizer, temido, pois todos reconhecem seu potencial e sua importância
estratégica e comercial! Sem o Brasil não existe MERCOSUL e, muito menos, ALCA. Está chegando, portanto, o nosso momento e não podemos perdêlo. O nosso patriotismo terá que ser multiplicado sem xenofobismo, mas
com a visão clara da nossa importância e do futuro que queremos dar para as
gerações que nos seguirão. Continuo, como sempre, otimista e afirmo com
muita convicção que o Brasil é quem estará dando rumo aos destinos da
humanidade neste milênio. Basta, para isto, que acreditemos em nós mesmos, e que continuemos trabalhando para demonstrar de forma cabal que,
mesmo abaixo da linha do equador, existe um país que rivaliza com os gélidos
países do norte, que sempre dominaram o mundo à custa de se considerarem
superiores. Temos que ser nós mesmos, evitando as cópias mal feitas que
nunca resultam em uma obra bem acabada. Podemos e devemos
autodeterminar-mos, e com certeza o faremos, mesmo sem contarmos hoje
com lideranças que representam o pensamento global da nação. Com certeza
estas lideranças, carcomidas pela vida fácil, pelos roubos, pela arrogância e
pela incompetência, estão chegando ao fim e serão eliminadas no mar de
lama em que vivem. Aqui, de longe, vejo um alvorecer brilhante para o nosso Brasil, inundado pelo sol da igualdade social e pela felicidade que invade
a todos, na certeza de que dias melhores nos esperam!
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INTERVENÇÕES GENÉTICAS
O fato que me chamou a atenção esta semana, e que quero compartilhar com todos, refere-se ao tão esperado avanço da medicina baseado na
terapêutica gênica. A manipulação dos genes e a possibilidade de usá-los na
prática clínica tem desafiado cientistas e médicos nesta nova fronteira que
vai, muitas vezes, além da nossa própria imaginação. A primeira aplicação
clínica destes conhecimentos ocorreu em setembro de 1990 (há menos de
dez anos), quando uma menina com quatro anos de idade, portadora de
síndrome de imunodeficiência hereditária, recebeu, pela primeira vez, a então quase desconhecida terapêutica gênica. A imunodeficiência hereditária
manifesta-se por uma falta total de defesa do organismo contra as doenças,
mesmo banais, e decorre da falta de produção de anticorpos, por um defeito
genético. A intenção seria modificar as células da criança, tornando-as capazes de se defender. O resultado foi aquém do esperado. Nos anos que se
seguiram, centenas de ensaios clínicos foram desenhados e postos em prática visando o tratamento, tanto de doenças genéticas como adquiridas, baseadas em conhecimentos sobre os genes e suas funções. Embora nenhum
desses tratamentos mostrassem um resultado espetacular, também não havia notícias de que pudessem prejudicar os pacientes.
Tudo parecia correr bem até que, no final de 1999, uma moça de 18
anos morreu em decorrência do tratamento. Foi a primeira fatalidade confirmada decorrente da terapêutica gênica, sem relação com a doença de
base de que a paciente era portadora! Esse fato desencadeou um sem número de investigações de jornalistas e agências reguladoras dos medicamentos e das terapêuticas. Seguiu-se uma avalanche de denúncias de casos de insucesso, que não haviam sido devidamente relatados ou valorizados. Essas denúncias iam desde o declínio das condições de saúde dos
pacientes após a terapêutica até a contaminação pelo vírus da Aids. Seria
desnecessário enfatizar o impacto que tais fatos negativos tiveram na comunidade científica e mesmo no público leigo, colocando em cheque esses
procedimentos. Houve manifestações veementes para que todas essas experiências fossem abandonadas. Por sorte, não foram unânimes, e muitos
se uniram para reconhecer os erros e avaliar em novas bases todo o potencial deste novo ramo da ciência aplicada.
Com certeza, vamos galgar um novo patamar de conhecimentos, substituindo o desânimo e a descrença atuais por frutos positivos e esperança.
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Estou de acordo com o Dr. Inder Verma, do Instituto Salk de Ciências Biológicas, de La Jolla, Califórnia, ao afirmar que a terapêutica com genes deverá converter-se, em breve, na mais potente arma da medicina. Os cientistas
já desenvolveram dezenas de maneiras de introduzir os genes nas células
doentes e conceberam estratégias para tratar, por exemplo, desde câncer e
hemofilia até diabetes e mucoviscidose, apenas para citar uns poucos exemplos do grande elenco de possibilidades existentes. Do ponto de vista de
ciência básica, os estudos estão completos e os resultados são consistentes.
Acontece que a maior parte dessas técnicas tem que ser ainda aplicadas em
seres humanos para avaliar os reais benefícios que possam trazer sem que
haja qualquer risco de vida para os pacientes. Não resta dúvida que este
árduo caminho terá que ser percorrido com cautela e controlado por regulamentação rígida, para que os resultados possam ser apreciados pelas evidências oferecidas, restaurando a necessária confiança dos cientistas e do público em geral.
Esse é o sentido de estar colocando este assunto em pauta, pois a população tem o direito de saber como caminha a ciência, quais são suas possibilidades e qual é o risco inerente a uma terapêutica. Para que possam entender
melhor, talvez seja interessante descrever um pouco mais detalhadamente como
foram feitas as intervenções genéticas nos primórdios de sua aplicação em
seres humanos. No início da terapêutica gênica, os pesquisadores sempre utilizaram vírus para introduzir os genes nas células que deles necessitavam. Os
dois principais vírus escolhidos para essa finalidade foram: os retrovírus (uma
classe de vírus que se integram no genoma do hospedeiro) e os adenovírus
(causadores do resfriado comum) porque os biologistas moleculares estavam
muito bem familiarizados com sua estrutura. Ambos os vírus foram largamente empregados e produziram inesperados maus resultados. Não devemos, contudo, tornar-nos descrentes. Tenho certeza de que a persistência dos cientistas,
aliada à esperança que nunca nos falta, trará para os doentes muitas boas novidades num futuro que não será longínquo.
Os resultados da introdução de genes em indivíduos doentes, usando
como vetores alguns vírus, acabaram criando mais problemas que benefícios.
Na realidade, as células infectadas com um retrovirus produzem grandes
quantidades de proteínas terapêuticas quando em cultura de células. Mas,
quando estas proteínas são liberadas nos organismos vivos, seus níveis caem
a quantidades irrisórias, sem qualquer capacidade curativa. Este fenômeno
tem representado um grande obstáculo a ser superado. Para entendermos
melhor, citaremos um exemplo que poderá nos esclarecer parte dos mecanismos desencadeados quando se injeta um vírus, portador de um gene curati156
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vo, em um organismo vivo. Para levar os genes para o interior das células, é
necessário usar um vetor, como se fosse um “ônibus” que os conduzisse ao
seu destino. Esses “ônibus” são os vírus a que já nos referimos. O grupo do
Dr. Inder Verma, utilizando engenharia genética, colocou, em um vírus, um
gene que, uma vez introduzido nas células deficientes de um paciente, levaria estas à produção de uma proteína chamada FATOR IX. Essa proteína é
um fator essencial na cascata da coagulação sanguínea, e os pacientes com
deficiência desse gene (de origem congênita) têm hemorragias frequentes,
podendo mesmo vir a falecer em decorrência delas ou de suas consequências.
Nas células destes doentes falta o gene que comanda a fabricação do referido fator, e fica fácil entender que, se um gene normal for colocado em seu
lugar, o paciente poderá produzir a proteína essencial e curar-se de sua doença. O Dr. Verma injetou o vírus com o gene do fator IX no músculo de
camundongos e cães. Embora inicialmente os animais apresentassem alta
concentração do fator IX no sangue, logo estes começaram a cair a níveis
muito baixos. Como interpretar o fenômeno? Por que a teoria não funcionou
na prática? O que aconteceu foi que o sistema imunológico do organismo
dos animais começou rapidamente a atacar tanto os “ônibus-vírus”, como
os produtos transgênicos recém-produzidos.
Os mecanismos de defesa imunológica são essenciais para nossa sobrevivência, defendendo-nos dos ataques externos. Combatem toda e qualquer “invasão” dos organismos vivos por proteínas, substâncias ou seres
estranhos, conservando nossa integridade. Mas se o sistema imunológico é
fundamental para nos manter vivos, por outro lado representa um enorme
desafio para os transplantes de órgãos e para a terapêutica genética. A profundidade do problema imunológico em relação à intervenção gênica ainda
não está bem determinada. De qualquer forma, o FDA (The Food and Drug
Administration), órgão regulador do uso de alimentos e medicamentos dos
Estados Unidos da América do Norte, proibiu terapêutica genética nos portadores de Fibrose Cística, em virtude da intensa inflamação provocada pelos adenovírus injetados, que acabaram por provocar mais malefícios do que
benefícios nos pacientes. Também a morte da paciente Jesse Gelsinger, de
18 anos, quando recebia tratamento com genes para sua doença, parece ter
decorrido de uma intensa e incontrolável reação imunológica. Do que foi
dito, fica claro que a terapêutica genética necessita desesperadamente de um
veículo melhor para colocar os genes no interior das células. Um vetor (“ônibus”) ideal deveria ter algumas características especiais a serem perseguidas
intensamente pelos cientistas. Dentre elas, seria muito importante que: 1- os
vetores não provocassem novas doenças ou reações imunológicas adversas;
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2- penetrassem não apenas nas células em divisão, mas também naquelas
que não estão se dividindo, aumentando muito o seu poder de produção das
proteínas essenciais; 3- obrigatoriamente fossem produzidas com facilidade
nos laboratórios, em larga escala e a baixo custo. Pode até parece assustador,
mas uma das respostas potenciais para a criação deste vetor “ideal” seria o
uso do vírus da AIDS. Tal proposta foi sugerida pelo Dr. Verma e seu grupo,
do Salk Institute for Biological Sciences, em La Jolla Califórnia, em 1996.
Não é necessário enfatizar que muitos dos seus colegas ficaram chocados
com a idéia e, estupefatos, todos reagiram dizendo: – Oh! meu Deus, vocês
estão ficando loucos! O grupo continua trabalhando arduamente no projeto,
e chegaram agora a um ponto em que podem afirmar que os vírus da AIDS,
modificados, podem preencher sem riscos os três critérios pré-estabelecidos
em 1996, para se tornarem os “ônibus” ideais para introduzir genes em células de organismos vivos. Parece impossível que um vírus que representa um
dos maiores flagelos da humanidade possa vir a tornar-se a chave que abrirá
de forma definitiva as portas para a terapêutica gênica que tantas vidas vai
salvar. Temos que reconhecer que somos simples instrumentos de Deus, e
que, quando aplicamos nossa arte, engenho e criatividade, podemos transformar inimigos em amigos, e agentes de destruição em auxiliares eficientes
para atravessarmos as fronteiras da nossa imaginação.
A possibilidade de utilizar-se do vírus HIV (responsável pela AIDS)
modificado para introduzir genes em células defeituosas parece um paradoxo, mas poderá representar um caminho a ser seguido pelos pesquisadores
nesta difícil tarefa de transformar, de forma radical, o tratamento das doenças. Já foi possível demonstrar experimentalmente que o vírus do HIV, geneticamente modificado, pode servir de veículo para introduzir genes nas células fundamentais do sistema Hematopoietico. Este sistema é responsável
pela produção do sangue e de todo o sistema imunológico dos organismos.
Desta forma, fica muito fácil entender sua importância para a sobrevida das
pessoas, e as graves consequências que decorrem do seu mau funcionamento. Há muito tempo vem se tentando introduzir genes nestas células, quando
apresentam alguma deficiência genética. Existe, contudo, grande dificuldade em conseguir tal intento, em virtude das células Hematopoieticas fundamentais proliferarem com frequência muito baixa. A revista Science publicou, recentemente, resultados animadores que mostram que o vírus HIV
modificado consegue penetrar em cultura de células humanas
Hematopoieticas, e não apresenta qualquer dificuldade em transferir-lhes os
genes que estão defeituosos ou ausentes. Temos que aguardar mais tempo
para dispor de conclusões mais consistentes a respeito do comportamento
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destes vírus modificados quando introduzidos em organismos vivos, tanto
quanto ao seu funcionamento, como também para que fique definitivamente
comprovado que não produzem consequências desastrosas, como, por exemplo, o aparecimento da AIDS. Pode-se imaginar quanto trabalho e quanto
investimento essas provas vão exigir, mas, sem dúvida, representarão um
passo enorme na cura de doenças incapacitantes e mortais, contra as quais
dispomos de parcos recursos nos dias atuais.
Apenas para citar mais uma possibilidade de introduzir genes nas
células, vou descrever uma outra linha de pesquisa, que trabalha com vírus menos agressivos e menos estigmatizados que aqueles da Aids. Tratase de um vírus associado aos gânglios (ínguas) e que recebe, em inglês, o
nome de “adeno-associated vírus”, e por isso recebeu a sigla AAV, pela
qual é conhecido na literatura médica internacional. A grande vantagem
deste vírus é que ele não produz nenhuma doença humana conhecida.
Novas experiências foram iniciadas utilizando-se deste “ônibus” para introduzir o gene do fator IX (indispensável para a coagulação sanguínea)
em culturas de células humanas e, em seguida, em camundongos vivos
com excelentes resultados. Isso autorizou os pesquisadores a iniciarem os
testes em seres humanos. Buscaram-se portadores de Hemofilia B, doença
genética, hereditária, que leva a sangramentos frequentes, obrigando os
pacientes a receberem transfusões de sangue e tratamentos difíceis e caros
com o uso de fator IX quase rotineiramente. Esses doentes têm uma má
qualidade de vida e, além disso, sobrevida bastante reduzida em relação à
população normal. Foram tratados três pacientes, e em dois deles, os resultados foram bastante satisfatórios com aumento de produção expontânea
de fator IX. Tais resultados foram publicados com ênfase na revista “Nature
Genetics”, uma das mais conceituadas nesta área de desenvolvimento. O
único problema que está limitando o uso mais extensivo desta terapêutica
é a dificuldade de produzir o vírus AAV em larga escala em laboratórios.
Esperemos que esta dificuldade seja suplantada em breve.
Existe um outro ponto que tem levado os especialistas em terapêutica gênica a uma ampla discussão. Trata-se do uso deste tipo de tratamento
em doenças adquiridas, e não somente naquelas hereditárias. Muitos afirmam, como o Dr. Verna, que os tratamentos teriam que ser estabelecidos e
comprovados apenas nas doenças hereditárias, antes que novos campos fossem explorados. Outros, como o Dr. Jeffrey Isner, do “St Elizabeth’s Medical
Center”, da Universidade de Harvard, em Boston, acreditam que os genes
podem ser usados em doenças adquiridas, como, por exemplo, a angina de
peito causada por ateroesclerose das artérias coronarianas. De fato, esse au159
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tor e seus colaboradores publicaram, recentemente, os resultados da introdução de genes que promovem o crescimento de novos vasos sanguíneos no
coração de pessoas com obstrução das artérias, em que não era possível
fazer uma operação de revascularização. Os pacientes tiveram melhora importante dos sintomas, sem que, contudo, fosse possível demonstrar por
métodos convencionais um aumento substancial dos vasos sanguíneos. A
ciência, na realidade, exige medidas de precisão para provar resultados e
alívio de sintomas que, embora muito importantes para os pacientes, não
são cientificamente suficientes para conclusões definitivas. Assim, o caminho a ser percorrido neste campo é árduo. Talvez se tenha iniciado o uso
clínico do método muito precocemente, pois esta ciência é muito jovem, as
dificuldades enormes e as expectativas muito altas. Mas com certeza, conforme já afirmei, não tardará o dia em que toda a medicina será profundamente modificada por este seu ramo ainda emergente, mas cheio de promessas inimagináveis. Que neste Sábado da Aleluia e nesta Páscoa, em que sempre se renovam os votos de esperança, possamos confiar no Senhor Deus
que, no seu infinito amor pelo Homem, criado à sua imagem e semelhança,
com certeza, nos permitirá dominar mais este campo do conhecimento, para
o bem da Humanidade.
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CELERA
OTTOWA - Acabo de participar do Congresso da Associação Americana de Cirurgia Torácica realizado em Toronto. Hoje, eu e mais 10 colegas
brasileiros, estamos na capital do Canadá para discutir as possibilidades de
disponibilizar para o Brasil a Tecnologia do Coração Artificial totalmente
implantável. Tudo parece um verdadeiro sonho, desde esta belíssima e acolhedora cidade até a realidade do coração mecânico, funcionando, por enquanto, em animais, e abrindo um campo só imaginado há pouco tempo.
Tenho certeza de que seremos capazes de absorver os conhecimentos necessários para que os pacientes brasileiros possam dispor deste avanço da ciência aplicada que desafia a própria imaginação. Estas são as impressões vivas
e deslumbrantes de um mundo novo que se abre, e que por certo, beneficiará
de forma muito positiva a humanidade. O Congresso em Toronto também
marcou novos caminhos na área da cirurgia cardíaca, com uma expressiva
participação do Brasil na criação de operações menos invasivas e mais seguras para os pacientes.
Mas, talvez a parte que mais possa interessar aos prezados leitores,
refere-se a duas conferências proferidas por duas pessoas que nada têm a ver
com a cirurgia cardíaca. Trata-se do Dr. J. Craig Venter (diretor geral da Celera),
que veio nos falar sobre a Decodificação do Genoma Humano, e do Dr.
James L. Barksdale (dono da Netscape Communications, uma empresa
estadunidense famosa por ter produzido o Netscape Navigator, navegador
web muito conhecido no mundo da informática), que brilhantemente discorreu sobre o Efeito da Economia Interligada pela Rede Mundial de Computadores. O primeiro fato a ser analisado é a preocupação demonstrada
pela comunidade médica americana de manter-se atualizada em pontos básicos da evolução do conhecimento, representados pelos assuntos cobertos
nas aludidas conferências. O Dr. Venter mostrou até onde poderemos chegar
quando todo o genoma humano for conhecido. Temos, frequentemente, escrito sobre o assunto, mostrando que este avanço da genética será responsável por uma mudança completa na prática da medicina. Esse conhecimento
permitirá não só o diagnóstico, mas também o tratamento de doenças hoje
incuráveis, como, por exemplo, o Câncer. Também alguns tipos de medicamentos, como os antibióticos, deverão perder o seu lugar no arsenal
terapêutico, substituídos por proteínas “construídas” para matar as bactérias
ou eliminar por completo seu efeitos deletérios. Ouvir estas assertivas do
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cientista que, com seu laboratório privado (Celera), conseguiu vencer a corrida contra todos os sofisticadíssimos e conceituados laboratórios das universidades americanas, nos deixa confiantes em saber que esta nova era já é
uma realidade. De fato, esta corrida pela decodificação completa do Genoma
Humano foi vencida pelo grupo do Dr. Venter, que promete colocar na
Internet, gratuitamente, até o fim deste ano, todos os seus dados, que custaram bilhões de dólares e o trabalho de centenas de computadores 24 horas
por dia. O governo americano tinha uma previsão otimista de conseguir o
mesmo resultado dentro de seis ou sete anos, a um custo muito maior, o que
o levou praticamente a interromper o programa. O que a Celera deseja, e
onde vai buscar o lucro que toda companhia privada visa, reside no fato de
serem detentores da tecnologia para a produção das proteínas que permitirão o diagnóstico e o tratamento das doenças. Eticamente, porém, todos
terão acesso aos dados coletados e poderão desenvolver seus próprios programas. Eles acreditam que estarão tão à frente dos outros cientistas que
será muito difícil alcançá-los. Uma conclusão, contudo, é absolutamente verdadeira. Depois que esse conhecimento for completado e divulgado, a humanidade dará um salto fantástico na direção de uma vida melhor, com menos sofrimento e mais bem-estar.
A conferência do dono da Nestscape, Dr. Barksdale, também foi fantástica, mostrando o que a conectividade pode fazer. Ele fez a seguinte pergunta, muito interessante, que ninguém soube responder: “Quem foi o mais
eficiente vendedor do mundo?”. Como ninguém sabia, ele mesmo respondeu: “Aquele que vendeu o primeiro telefone”. Para que serviria um telefone
se ele não estivesse conectado com as outras pessoas? Falou também dos
desafios, e os comparou com uma cobra dizendo: “Se encontrarmos uma cobra viva, temos que matá-la, do contrário, vai nos picar. Ao nos depararmos
com uma cobra morta, melhor ficar longe dela, pois pode não estar tão morta
como imaginamos. Mas que seria de nós sem as cobras? Se elas não existissem,
não teríamos que nos defender delas, e seríamos muito menos agressivos, menos cuidadosos e menos criativos”. Para ele, são os problemas que dão a nós a
oportunidade de criar as soluções e, com isso, impulsionar o progresso coletivo e individual. Por falar em progresso, a fortuna do Dr. Barksdale foi avaliada
em 18 bilhões de dólares, e ele, recentemente, fez uma doação de 100 milhões
de dólares para o Estado de Missouri promover educação para os mais pobres.
Ele disse ainda em sua palestra que deixará como herança para sua família
“apenas” 10 milhões de dólares, e o restante ficará para uma Fundação que
terá por finalidade promover Educação para muito mais pessoas, pois ele acredita que é esta a única maneira de melhorar a humanidade.
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IMAGINANDO
O
NOVO MILÊNIO
Chamou-me a atenção artigo recentemente publicado na revista “Time”,
da Europa, no qual são analisadas as possibilidades futuras do homem no seu
trabalho. Há uma década ninguém poderia imaginar que desenhistas de páginas da Internet seriam requisitados como hoje, pois, na verdade, eles nem
existiam. Previsões futuristas são sempre difíceis de serem feitas, e não é
incomum a quem se aventure por este campo errar para mais ou, o que é mais
comum, para menos. Sem nenhuma pretensão, quero partilhar algumas das
possibilidades que se nos apresentam para os próximos anos.
1 - Engenharia de tecidos: com a pele feita pela mão do homem, já
presente no mercado internacional, não é demais pensar que daqui a 20 ou 30
anos os cientistas serão capazes de produzir um pâncreas a partir de células
cultivadas em uma placa de “Petri”(o mesmo recipiente usado para fazer culturas de bactérias em laboratórios). Hoje, pesquisadores já são capazes de produzir intestinos e bexigas urinárias no interior da cavidade abdominal de animais e estão a caminho de produzir também fígados, corações ou rins do mesmo modo. A aplicação dessa tecnologia no homem é uma questão de tempo.
2 - Programação de genes: mapas digitais do genoma humano permitirão fazer prescrições medicamentosas individualizadas. Depois de decifrar
os defeitos do DNA dos pacientes, os médicos do futuro vão poder usar
terapêutica gênica e moléculas “inteligentes” para prevenir quase todas as
doenças, incluindo certos tipos de câncer.
3 - Fazendas produtoras de remédios: fazendeiros que hoje plantam e
criam animais continuarão a fazê-lo, mas a tecnologia avançada permitirá o desenvolvimento de plantas e animais modificados geneticamente, de tal forma
que possam produzir proteínas terapêuticas. Trabalhos já em fase adiantada de
resolução vão permitir, por exemplo, que tenhamos tomates que carregam consigo vacinas, ou leite de vacas, cabras e ovelhas que contenham, na sua composição, medicamentos específicos para cura das mais diversas doenças.
4 - Manutenção à distância. A maior parte dos equipamentos que hoje
já são programados por computadores remotos poderão também ser reparados
por ações realizadas a centenas de quilômetros, em centrais especializadas
para esse fim. Imagine-se em um automóvel, movido a hidrogênio, que, ao
produzir energia, libera apenas água, evitando qualquer tipo de poluição, e que
ainda possa ser consertado em movimento por sistemas que transmitem as
informações via satélite. Parece longe da realidade, mas hoje já é possível, o
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rastreamento de qualquer veículo, em qualquer parte do planeta, por sistemas
de segurança que são capazes de desligá-lo, caso ocorra um roubo ou sequestro. Para sonhar mais alto (literalmente), imagine essa tecnologia aplicada também aos aviões, que poderão ser consertados enquanto voam.
5 - Condução de veículos, na terra ou no ar, por sistemas automáticos
centralizados, livrará o homem da atenção permanente necessária para esse
fim, e diminuirá ou eliminará os temíveis acidentes.
6 - Espetáculos interativos. Você não pagará para ver um programa
de televisão, e sim para interagir com atores virtuais que estarão presentes
no espaço cibernético, e se apresentarão em seu equipamento de televisão
halográfico em três dimensões.
7 - Novas maneiras de fazer propaganda. Esse campo terá um desenvolvimento fantástico, com anúncios personalizados, podendo, por exemplo, fazer você sentir o cheiro e o gosto de determinados alimentos, ou
implementar as características de um produto diretamente em seu cérebro,
criando sensações de realidade virtual.
8 - Computadores cada vez mais inteligentes e acessíveis a todos.
Para quem viveu a expansão e o aperfeiçoamento dos computadores nos
últimos vinte anos, acredito que fica fácil imaginar o que poderá acontecer
no futuro com estas máquinas que aprendem a “pensar”.
9 - Engenharia do conhecimento. Poderá surgir como consequência
do próprio desenvolvimento dos computadores, pelo aperfeiçoamento da
hoje já presente inteligência artificial. Engenheiros especializados nesse campo
poderão transferir os seus conhecimentos para um “software” e dispensá-lo
do emprego tão arduamente conquistado.
10 - Operações cirúrgicas a distância: serão conseqüência do progresso da cibernética e possibilitarão operar pacientes até mesmo no espaço sideral, como, por exemplo, astronautas que necessitem de uma intervenção de urgência.
Citei apenas algumas das possibilidades do ambiente em que viveremos nos próximos anos ou décadas, e para os quais teremos que estar preparados. Não duvidem das grandes transformações que enfrentaremos nos mais
variados campos da atuação humana, com a possibilidade de uma vida melhor
e, possivelmente, mais voltada para os princípios básicos que sempre foram
nossos desejos. Para isso, a Ética deverá ser rigorosamente seguida, de forma
que conquistas facilitadoras não se tornem perigosas para nós mesmos. Esperemos que todo este progresso e evolução sejam aproveitados para que a
humanidade seja mais justa e igualitária, possibilitando a todos uma vida mais
feliz e mais rica do ponto de vista espiritual.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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MEDICINA PREDITIVA
A Medicina iniciou-se, desde os tempos imemoráveis, como parte
importante da sociedade na manutenção da saúde dos seus habitantes. Sempre dedicou-se a curar as doenças, fazendo muito pouco para preveni-las. As
religiões buscavam orientar seus seguidores a evitar certas práticas que, pela
experiência de observadores argutos, poderiam levar ao aparecimento de
doenças ou sofrimento. Eram práticas empíricas e muitas vezes sem qualquer resultado efetivo, levando à criação de mitos que só foram eliminados
na época moderna. Como exemplos nada dignificantes, podemos citar as
bruxarias e a queima dos bruxos como maneiras de eliminar epidemias não
compreendidas, ou ainda, a teoria dos miasmas, que relacionava a malária
aos maus cheiros, entre outros.
No pós-guerra imediato, 1945, com os conhecimentos adquiridos
durante o conflito, foi possível o desenvolvimento de novas técnicas curativas na Medicina e na cirurgia. Foi assim que surgiram a antibioticoterapia, as
vacinações em larga escala, as operações do coração a céu aberto, a
neurocirurgia e outros avanços. Porém, uma nova conquista que nasceu nessa época, com reflexos muito importantes para a sociedade, foi a criação do
conceito de fator de risco.
Com ele foi possível provar a relação de causa e efeito entre certas
práticas e doenças que dele decorriam. Foram relacionadas, por exemplo, a
prática do fumo ao câncer do pulmão e outros órgãos mais; a elevação do
colesterol às doenças ateroescleróticas; e a hipertensão aos acidentes
vasculares cerebrais. Isso trouxe benefícios enormes, com redução da mortalidade e melhoria das condições de vida da população.
São medidas higieno-dietéticas que influem de forma eficiente para
melhorar a condição de saúde de grandes massas populacionais, aumentando a expectativa de vida e levando a grande economia no tratamento de
doenças degenerativas. O mundo moderno está fazendo surgir uma nova
maneira de enfrentar as doenças e suas consequências: é a Medicina Preditiva,
que busca descobrir quais são as pessoas que estarão sujeitas a determinadas
doenças. Pode-se, hoje, pelo estudo dos genes, saber quem vai ter câncer de
mama ou de próstata, além de tantas outras doenças, como o Mal de
Alzheimer, que leva a total deterioração intelectual. Calcula-se que 5% da
população com mais de 65 anos sofrerá deste mal nos próximos anos. Mas os
avanços não param. Com o desenvolvimento tecnológico, já é possível pre165
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Domingo Braile
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dizer o câncer de próstata através de um exame de sangue, evitando que o
diagnóstico só seja feito tardiamente quando surgirem os primeiros sintomas.
As doenças genéticas poderão ser identificadas com precisão absoluta. E, num
futuro breve, uma intervenção sobre estes genes, através de manipulação gênica,
poderá modificar o destino da humanidade. Resta sempre o grande problema
ético, que deve ser cada vez mais valorizado. Somente a conduta ética desta
prática poderá evitar o caos, uma vez que os médicos acabariam donos do
destino das pessoas, que estariam impedidas de pensar em seu futuro, quando
cientes que, embora sadios no momento, são portadores de males incuráveis.
Mas a certeza é que, em breve, haverá esperanças para essas pessoas que, de
outra forma, estariam condenadas a uma existência infeliz.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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O MÉDICO
E O
PACIENTE
Não é fácil ser médico e é difícil ser paciente. O sistema de saúde que
vem se impondo em nosso país torna esta assertiva cada vez mais real e
repleta de conotações, nem sempre de fácil superação. A distância entre o
médico e seu paciente vem aumentando pela intermediação não só do sistema público de saúde, mas pela avassaladora presença dos diferentes convênios médicos. Estes prometem atendimento integral aos pacientes, geralmente se esquecendo que nesta relação estarão envolvidas pessoas, com
toda sua carga emocional, seus desejos, seus anseios e suas personalidades.
Parece banal, mas não é, pois, quando um paciente procura um médico é
porque está doente, ansioso e necessita ter confiança absoluta naquele que
será capaz de dar-lhe de volta a saúde, a confiança e a alegria de viver. Quando ao paciente não é dada a opção da escolha, este relacionamento fica muito difícil ou mesmo impossível, pois confiança não pode ser imposta e nem
exigida. Senão vejamos alguns aspectos da difícil relação do Médico com o
Paciente. Quando alguém fica doente, sente-se extremamente fragilizado e,
ao procurar o profissional de saúde, o que a pessoa busca é a cura e o retorno
da autoconfiança. Como se pode perceber facilmente, o processo é mais
complexo do que se possa imaginar, quando o analisamos sem profundidade. Ao procurar o médico, a pessoa se sente exposta, agredida física e emocionalmente, não só pela Doença, mas também pelo próprio médico! Pois este
pergunta, apalpa, injeta, corta, subtrai esperanças, cria restrições e dita normas. A pessoa doente sente inquietações, angústias, medos, frustrações, inseguranças, inferioridades, incapacidades, raivas e outras emoções ainda mais
contundentes. Onde irá despejar ou colocar estas sensações? Algumas emoções são socialmente aceitas, como a raiva de se estar doente, raiva de si
mesmo ou raiva do médico que fez o diagnóstico não desejado. Além da dor
física, como lidar com todo este turbilhão emocional? De fato não é fácil ser
paciente, mas é mesmo muito difícil ser um bom médico, principalmente se
não contar com a confiança absoluta do paciente e de sua família. Afinal de
contas, o que nós, profissionais da saúde, mais fazemos? Frequentemente
transmitimos notícias ruins, dolorosas e evidentemente não desejadas. Na
realidade, quando um paciente procura um médico, quer ouvir que ele não
tem nada, que está perfeitamente saudável, ou que sua doença é banal e será
curada em uns poucos dias com alguns comprimidos ou algumas gotas de
um remédio milagroso. Nem sempre é assim. Quem quer ouvir do seu médi167
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co que aquela simples febre é, na realidade, a manifestação de uma pneumonia difícil de tratar, ou de uma infecção profunda nos ossos, ou em uma
válvula do coração? Também é difícil dizer ao paciente que aquela pequena
dor no peito quando caminha, é o sinal de que existe um entupimento nas
artérias coronarianas, e que ele terá que ser operado e mudar de vida daí para
frente se quiser viver mais alguns anos sem sofrimento? Mas pode ser ainda
pior, aquela pequena pinta escura em algum lugar do corpo pode ser um
melanoma, tumor maligno, que levará o paciente inexoravelmente à morte
em pouco tempo, na maior parte das vezes. A situação é ainda mais insólita
quando temos que diagnosticar uma doença incurável decorrente de um hábito que o paciente teima em não abandonar, como o fumo, por exemplo.
Evidentemente, ninguém quer receber esse tipo de notícia! Ninguém quer
estar enfermo, tampouco nenhum médico quer transmitir uma informação
dolorosa, ruim ou triste. Sofre o paciente. Mas sofre também, profundamente, o médico por diagnosticar uma doença e anunciar uma realidade desagradável e essencialmente indesejada. Na realidade, o profissional da saúde acaba
por identificar-se não como o anjo da anunciação, trazendo boas novas, mas
sim como mensageiro de dor e sofrimento. Sente-se, portanto, mal dentro
deste seu papel, que não foi o seu sonho quando escolheu a profissão, com a
vontade de curar a todos que a ele recorressem. Surge um conflito de negação escamoteado das formas mais diversas, muitas vezes representado por
frieza diante dos fatos mais contundentes, ou embate emocional com os
familiares do paciente. O leigo tem que entender que o médico, apesar de
praticar uma profissão divina, não é Deus, muito pelo contrário, é humano e
frágil, e está, permanentemente, em embate contra a morte e o sofrimento
do seu semelhante. Gostaria que os que lerem este artigo entendam as angústias de um médico, e que o considerem como um ser humano igual a
qualquer outro, devendo antes de tudo, ser tratado como alguém que merece
confiança e respeito. Isso é impossível sem que este relacionamento seja
absolutamente pessoal, eliminando a presença de intermediários que desvirtuam todo o sentido ético e moral da profissão de Hipócrates.
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MÉDICOS
DE
VERDADE
Esta época do ano é marcada pelas formaturas que se sucedem num
ritmo cada vez mais célere, para nossa grande satisfação. Uma Nação só
poderá desenvolver-se e criar uma sociedade mais justa na medida em que
seus habitantes estiverem preparados para atividades que possam elevar,
como um todo, o bem-estar geral. Faltam empregos em todo o Brasil e em
boa parte do mundo. Existe, contudo, demanda por operários especializados
para a indústria calçadista da cidade de Birigüi. Como um exemplo a ser
seguido, a comunidade daquele município, unida, realiza programas de alto
nível para formar a mão de obra especializada indispensável para o desenvolvimento desejado e que, por certo, será conseguido.
Mas me dispunha a escrever especificamente sobre as formaturas dos
médicos, motivado que fui pelo fato de ter sido procurado por um grupo de
doutorandos, que queria saber o que era ser médico. A pergunta pode parecer estranha, quando jovens, depois de seis anos de curso, perguntam o que
significa ser um discípulo de Hipócrates. Talvez saibam bem o que representa a sua profissão. Porém, as emoções das festas que comemoram o fim do
seu período de aprendizado da nobre arte, acabam despertando neles uma
certa curiosidade a respeito do seu papel na sociedade. Senti-me um pouco
constrangido quando disse nobre arte, mas, refletindo melhor, achei que é esta
a palavra adequada para definir uma profissão em que a doação deve ser o
norte principal de seus praticantes. Essa definição não vale para os maus médicos, aqueles que nunca o foram e estiveram frequentando uma escola médica simplesmente para adquirir algumas habilidades. Médico de verdade já traz
no seu código genético as qualidades que sempre existiram e sempre existirão,
e que o levam ao desejo incontido de curar! E se não for possível curar, que
pelo menos se possa diminuir o sofrimento deste ser indefeso e carente que é o
doente. Digo este ser indefeso e carente como o epônimo de todos os doentes,
sejam eles ricos, pobres, reis, príncipes, presidentes, governadores ou papas,
pois, quando a doença os atinge, deixa a todos iguais diante de Deus, das
forças da natureza e dos cuidados que um simples médico possa dar-lhes. Por
isso a profissão é nobre, porque ela lida com as pessoas quando estão absolutamente indefesas e dependem, muitas vezes, de uma decisão sábia para que
possam salvar-se do mal que as aflige, ou terem seus sofrimentos diminuídos
pela mágica de uma ação, pronta e eficaz.
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Perguntaram-me também os recém-formados se devemos ter orgulho
de ser médicos, e eu lhes respondi que sim... indiscutivelmente sim. Não
pela eventual posição que possamos ocupar na sociedade ou nas próprias
instituições de ensino, mas, pelo contrário, pela satisfação de termos o “Dom
de Curar”. Sabemos ser esta uma prerrogativa Divina, mas, orgulhosamente,
podemos nos considerar os agentes da salvação quando somos capazes de
fazer um cego voltar a enxergar, um surdo a ouvir, e uma mãe ver seu filho
nascer em segurança. Podemos também realizar milagres todos os dias ao
dizermos a um amargurado doente que sua doença foi curada, e que, agora,
ele é uma pessoa normal como as outras. Ou realizar um transplante e devolver a vida a um moribundo. Tenham certeza, disse aos recém-formados, que
esse é o maior presente, a maior recompensa que um médico pode ter, e que
representa a própria essência da profissão que abraçou, exercendo-a seguindo os ditames da Ética e da compaixão, que devem ser companheiros constantes daqueles que queiram seguir o seu mister com dignidade e sabedoria.
Ainda lhes disse: “Procurem ser não apenas médicos do corpo, mas penetrem bem fundo na alma dos seus pacientes, onde, com certeza, encontrarão
a resposta para muitas das perguntas que a medicina ainda não foi capaz de
responder. Mantenham alta a reputação da classe à qual pertencem, agindo
com honestidade e sendo sempre fatores de agregação da sociedade, tornando-a mais próxima do bem estar que é propiciado pela saúde, bem supremo
almejado por todos. Se vocês agirem como verdadeiros médicos, terão o
respeito de seus clientes e de seus pares e terão a satisfação íntima de estarem exercendo uma das mais antigas e úteis profissões do mundo, e o orgulho de poder dizer, ao final de suas carreiras, que vocês foram capazes de
realizar os milagres que lhes foram permitidos por Deus, e sentirem-se orgulhosos da profissão que abraçaram”.
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OS JOVENS
E O
BRASIL
Anima-me escrever sobre este tema, pois, seguindo os conselhos do
meu velho mestre prof. Zerbini, sempre procurei cercar-me deles. Esta sábia
atitude, transmitida por um dos maiores vultos da nossa Medicina, tem sua
razão de ser. Os jovens são sempre os representantes do futuro, que é, na
realidade, o segmento da existência que mais nos importa. Falar do presente
não passa de uma metáfora ou de algo virtual, pois as linhas que o amável
leitor acabou de ler acima já compõem o passado, e não mais ao presente. A
mensagem transmitida, de agora em diante, pertencerá a um tempo que ficará apenas na lembrança. É interessante notar que o passado, que deve ser
obrigatoriamente cultuado em todos os seus detalhes e formas, também é
mutável, porque, à medida que dele nos lembramos, os fatos vão tomando
novas conotações que, em geral, fogem à verdade absoluta do que deveriam
representar. Resta-nos, portanto, como dilema, apenas o futuro, pois é lá que
passaremos o resto das nossas vidas. Além disso, quando não mais pudermos participar dele, por encontrarmo-nos em outra dimensão, no futuro estarão os jovens de hoje, perpetuando nossas idéias e sentimentos numa corrente que prolongar-se-á até o infinito.
Faço esta introdução para reafirmar o nosso compromisso com as
novas gerações, que merecem receber ensinamentos e, principalmente, exemplos dignificantes que sejam paradigmas nos quais se espelhem e possam
tornar a humanidade mais honesta, mais justa e melhor. Exemplos deploráveis como os que são oferecidos por políticos, profissionais liberais e mesmo
homens comuns desonestos e corruptos levam os jovens a perderem os
parâmetros que poderiam ajudá-los a discernir entre o bem e o mal, e fazêlos crescer tanto moral como intelectualmente. Muitos adultos tendem a
desprezar a juventude, alegando que eles não têm vontade própria, não se
importam com o futuro, são adeptos de drogas e têm uma moral complacente. Quero dizer-lhes que esta não é uma verdade que possa ser generalizada.
Concordo que existem jovens “perdidos”, mas, com certeza, isso decorre do
mau exemplo que recebem e da influência nefasta do meio em que vivem.
Somos nós, portanto, os culpados pelo comportamento antissocial dos internos das “febens”, dos meninos de rua, das crianças que são aproveitadas no
tráfico de drogas ou na consecução de crimes inadmissíveis para crianças.
Elas, pelo contrário, deveriam estar brincando e estudando para se tornarem
os profissionais e os líderes de um futuro que chega mais rápido do que pode171
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mos imaginar. Mas nem tudo está perdido, pois a imensa maioria dos jovens é
de criaturas exemplares, com os quais muito temos que aprender enquanto
lhes ensinamos os misteres da vida e das profissões. Sempre acreditei nesta
juventude sincera, honesta, cheia de bons propósitos, que povoa as milhares
de escolas de nosso país. Milhares trabalham de dia e empregam suas poucas
horas de lazer para aumentar seus conhecimentos e se tornarem cidadãos dignos de uma pátria que espera muito deles.
Dia destes, estas minhas teorias sofreram um reforço que quero
compartilhar. O curso de Medicina e Enfermagem, que é ministrado na
FAMERP (Faculdade de Medicina de Rio Preto) se dá de forma integral, isto
é, os alunos começam a ter aulas as 7h30 e só terminam seus estudos por
volta das 18horas, quando o sol já vai se pondo. Um grupo de alunos,
expontaneamente, pediu a alguns professores, inclusive eu, que queriam mais
aulas, estariam dispostos a frequentar um curso suplementar à noite. Não
lhes estranhei a atidude, pois esse desejo não é incomum, quando se trata de
um grupo pequeno. O que me surpreendeu é que compareceram para o curso mais de 80 alunos... Fiquei ainda mais entusiasmado quando soube que
outros tantos estavam participando de um seminário de anatomia e, além
disso, cerca de 200 alunos do curso de enfermagem estavam reunidos em
outro anfiteatro para ter aulas de semiologia, aprendendo como examinar os
pacientes. Havia, portanto, no período noturno, nas dependências da
FAMERP, quase 400 alunos buscando conhecimentos depois de um dia extenuante de aulas, provas e outras atividades obrigatórias! Estavam ali por
vontade própria, mostrando como os jovens são ávidos por conhecimentos e
o quanto representam de reserva moral para esta nação, que tanto necessita
deles para mostrar ao mundo todo o potencial das nossas terras e de nossas
gentes. Com esse tipo de comportamento, tenho certeza de que nosso futuro
será brilhante, pois, além de sermos uma nação rica em recursos naturais,
contamos também com uma juventude cheia de entusiasmo e pronta para
servir ao País no limite das suas possibilidades. Nossa função é dar-lhes,
com todo empenho e dedicação, exemplos de trabalho, honestidade e amor
à pátria e, assim, construam o futuro que desejamos e que eles podem transformar em realidade.
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PAÍS IDOSO
Em muitos dos artigos que escrevo neste espaço, tenho deixado claro
o fato de que a população de idosos vem crescendo de forma importante
neste século que vai terminando. Não se trata de nenhuma novidade, e esse
fato tem sido motivo, ao mesmo tempo, de orgulho e preocupação para a
sociedade e os governos. Viver mais sempre foi um desejo do homem, o que
tem sido conseguido, de forma lenta, porém progressiva, ao longo dos tempos. A expectativa de vida no século 19 girava em torno dos 50 anos, e
agora, em alguns países desenvolvidos, está na casa dos 80 anos. Mesmo em
países emergentes como o nosso, a possibilidade de se atingir a idade de 70
anos tornou-se uma realidade para a maior parte da população. Ao lado
disso, a natalidade vem diminuindo pelas campanhas de limitação desta. A
consequência imediata deste binômio – menor número de nascimentos e
maior sobrevida da população – leva ao fenômeno chamado “inversão da
pirâmide social”. Explicando melhor, nascendo menos crianças e aumentando a sobrevida das pessoas, vamos progressivamente mudando as características da população, que era constituída principalmente de crianças e jovens e
que, agora, conta com um grande contingente de pessoas da terceira idade,
com mais de 60 ou 65 anos. Por políticas bem implementadas, não ocorreu
apenas a diminuição da natalidade. Para grande júbilo de nós todos, o governo tem anunciado a redução drástica da mortalidade infantil, fato de grande
importância como medida da evolução social que desejamos e merecemos.
Existem ainda diferenças entre a mortalidade das criancinhas até um ano de
idade entre as regiões mais e menos desenvolvidas do País, porém elas não
são gritantes e, com certeza, em um futuro breve, conseguiremos baixar esses valores para uma média comum compatível com a dos países civilizados.
Ao lado dessas boas notícias, temos, contudo, que atentar para alguns problemas que estamos enfrentando e que tendem a se agravar ao
longo dos anos. Com o progresso das medidas higiêno-dietéticas, com os
novos medicamentos e procedimentos médicos, a população do mundo
triplicou durante o século 20. Os habitantes da terra, que somavam cerca
de 2 bilhões há 100 anos, hoje atingem a cifra de 6 bilhões. Haverá lugar
para todos? Seremos capazes de alimentá-los adequadamente? Conseguiremos dar assistência médica e uma vida digna para o enorme volume de
pessoas idosas que logo constituirão um dos principais estratos da nossa
sociedade? Espero que sim. O problema não atinge apenas os países mais
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ricos, mas vai se tornando importante principalmente naqueles mais pobres, entre os quais, infelizmente, temos que incluir o Brasil.
Nosso país, que já foi chamado Nação jovem, hoje não pode mais
se dar ao luxo de ser assim considerada. Temos uma expressiva população
de terceira idade a ser protegida, amparada e integrada ao cotididano de
uma nação que pretenda ser justa. A família patriarcal há muito desapareceu. Tratava-se de família tradicional em que os bisavós, avós, pais e filhos
viviam todos juntos, geralmente em uma economia rural, em que cada um
tinha suas funções definidas. Estas iam desde o trabalho bruto dos mais
jovens, passando pelas lides domésticas das mulheres e crianças, até aos
conselhos dos mais velhos. Estavam todos sob o mesmo teto, mantendo
um equilíbrio geralmente estável. Os filhos e netos se sentiam na obrigação moral de dar sustento, companhia, assistência e carinho aos mais velhos, que assim se sentiam seguros e úteis, pois faziam parte da família.
Com a modernização, todos ficaram muito ocupados. As famílias se mudaram para as cidades, em casas pequenas que já não comportavam todos os
seus membros. Os homens passaram a trabalhar muito longe de suas moradias, perdendo muitas vezes duas ou três horas para voltar do trabalho aos
seus lares. As mulheres, para aumentar o orçamento doméstico, solicitado
pelo consumismo, passaram também a trabalhar fora de casa. As crianças
tiveram que ir para a escola, e aquelas menos afortunadas foram também
obrigadas a trabalhar desde cedo.
Os velhos ficaram sozinhos, às vezes abandonados, frequentemente
carentes de tudo, principalmente afeto! Simplesmente porque não há tempo
para dar-lhes atenção. O problema é muitas vezes agravado pela doença e a
necessidade de tratamentos. As aposentadorias, quando existem, são pífias,
não bastam nem para a compra dos medicamentos necessários, e menos ainda para manter uma razoável qualidade de vida. O Sistema Único de Saúde
não dá nenhuma vantagem para a pessoa idosa, pelo contrário, trata-a em
igualdade de condições com os mais jovens, que também têm o direito de ser
atendidos, mas são mais ágeis e menos dependentes. A situação se complica
definitivamente quando examinamos os Planos Privados de Saúde. Nenhum
deles quer ter pessoas idosas em seus quadros e, se forem doentes, nem
pensar, pois representam prejuízo certo.
Parece incrível, mas já presenciei conversas como esta: “tal plano de
saúde vai falir, pois só tem entre seus associados carros batidos”, significando o número de pessoas idosas que recebem sua cobertura. Qualquer pessoa
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acima dos 50 anos que deseja fazer um plano particular de atendimento à
saúde ou se aventurar em providenciar um sistema de previdência privada
vai enfrentar, apenas, desilusão, negativas e, muitas vezes, até desprezo.
Temos que repensar a nossa sociedade e saber que, um dia, se Deus
quiser, todos nós seremos velhos e desejaremos o respeito, o carinho e a
assistência a que temos direito. O prolongamento da vida deve ser motivo
de alegria e não de tristeza. Pense nisso. Você será o próximo!
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Domingo Braile
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OS TRILHOS
DO
TREM
SAN DIEGO - Aqui me encontro para participar do 81o Congresso da
Associação Americana de Cirurgia Torácica e, como já disse, para ser admitido nesta restrita Sociedade como membro ativo. Antes de chegar a esta belíssima
e encantadora cidade, estive em New York e Washington, locais onde visitei
alguns hospitais. Há muito tempo tenho esse costume, pois um dos pioneiros
da Cirurgia Cardíaca Brasileira, o Prof. Dr. Domingos Junqueira de Moraes,
me ensinou que essa é uma das melhores formas de ver “in loco” como andam
as coisas no atendimento aos pacientes nos diversos países. Disso resulta a
possibilidade da comparação sempre profícua, tanto no sentido positivo, como
negativo, se for o caso. Fiquei muito satisfeito com o que vi, pois me foi possível aquilatar, mais uma vez, como nós, no Brasil, mesmo dispondo de recursos
econômicos infinitamente menores que os americanos, conseguimos contar
com um atendimento médico que rivaliza de igual para igual com o dos países
mais desenvolvidos.
Talvez seja chocante uma afirmação assim contundente, principalmente
quando se alardeia que temos surtos não controlados de “dengue”, “malária”,
etc. Não podemos, contudo, esquecer de fatos importantes que nos colocam
na vanguarda no atendimento das necessidades da saúde da nossa população.
Lembremo-nos do flagelo da AIDS, que nos assustava de forma avassaladora
há poucos anos e que agora, apesar de continuar a representar um grave problema para toda a humanidade, teve no Brasil um dos melhores exemplos de
seu controle por medidas simples e efetivas. A poliomielite, que já foi a causa
de tantas sequelas irreversíveis, que mutilavam principalmente crianças, deixando-as aleijadas de forma definitiva, desapareceu do nosso cenário pela implantação de medidas efetivas e baratas. Citei apenas alguns exemplos para
avivar nossa memória, e para conscientizar os mais jovens de que o nosso país
é viável pelas suas próprias forças, utilizando os seus próprios meios para mostrar
ao mundo do que é capaz quando as decisões são tomadas e executadas não só
pelo governo, mas principalmente, pela vontade do povo.
Como disse acima, os nossos hospitais nada devem aos hospitais que
visitei, e possivelmente o nosso atendimento seja mais eficaz e humano que
aquele que aqui encontrei. Fiquei estarrecido com uma cifra que foi divulgada
durante o Congresso de que participei, e que logo foi “propalada aos quatro
ventos”, por todos os jornais de maior circulação nos Estados Unidos. A
cada ano morrem cerca de 100.000 americanos por erros banais cometidos
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dentro de seus “excelentes” hospitais. Buscando as causas para tamanho
absurdo, chegaram à conclusão que a incorporação de novas tecnologias,
sem o treinamento exaustivo do pessoal responsável pela sua execução, acabava por levar, muitas vezes, o paciente à morte, ao invés de curá-lo. Fica
difícil entender um fato como esse em uma nação que gasta 11% do seu
produto interno bruto com a saúde, ou seja, cerca de 4.000 dólares por habitante por ano! No Brasil, a situação é muito diversa, não se gasta mais que
100 dólares por habitante por ano para o provimento da saúde da população
e, no entanto, não temos números tão constrangedores de práticas inadequadas nos hospitais. Alguns dirão que o nosso sistema também não é perfeito e
que existem falhas. Concordo que elas existem, pois é humano errar, mas
sinto que as equipes de saúde no Brasil são mais responsáveis e mais ligadas
aos pacientes, trocando a tecnologia, muitas vezes inútil, por dedicação, carinho e compaixão fundamentais para a recuperação dos pacientes. Máquinas não curam pacientes, mas, com certeza, o amor e a atenção o fazem, e é
isso que não falta ao povo brasileiro, que nesta área dá um exemplo de desprendimento e profissionalismo invejáveis.
Cada vez acredito mais no Brasil pela sua maneira simples de ser,
mantendo-se independente, fora das perigosas “crises de excelência” comuns
nos países desenvolvidos, que parecem causar mais mal que bem. Sejamos
nós mesmos, acreditemos em nossas capacidades e estaremos demonstrando ao mundo que podemos fazer muito mais, com muito menos. Como disse
acima, San Diego é uma cidade muito interessante, mas infelizmente não
tive muito tempo para vê-la, em virtude dos compromissos que me prendiam ao trabalho. Porém, verifiquei que procurou desenvolver-se preservando
suas tradições. Não posso terminar este artigo sem dizer que aqui, como em
outras cidades, aproveitaram os antigos trilhos dos trens para fazer um metrô de superfície muito eficiente. Quem sabe um dia Rio Preto possa ter
também esse privilégio!
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FACULDADES
DE
MEDICINA
A difusão do conhecimento em qualquer país do mundo passa pela
educação do seu povo, que se inicia com implementação do ensino fundamental universal e termina na graduação universitária para um contingente
apreciável da população.
Temos que reconhecer que existe no Brasil um grande esforço, tanto
governamental como de entidades particulares, no sentido de prover ensino
em todos os graus em volume apreciável.
Existe, contudo, um exagero não condizente com as necessidades em
determinadas áreas do conhecimento.
A proliferação das faculdades de medicina chega a ser assustadora,
pois, se em 1808 tínhamos duas escolas médicas, uma na Bahia e outra no
Rio de Janeiro, decorridos 152 anos, em 1960, contávamos com apenas 22
faculdades. Agora, em outubro de 2007, atingimos a mega cifra de 171 instituições espalhadas por todo o território nacional. Números absolutos nem
sempre nos chamam a atenção, faz-se portanto necessário apresentar o cenário de outros países, para que possamos fazer ilações. Nos EUA, que tem a
medicina mais avançada do mundo, existem apenas 126 Faculdades de Medicina, com uma população de mais de 300 milhões de habitantes: uma Escola Médica para cada 2,5 milhões. Aqui temos uma faculdade para cada um
milhão, mais que o dobro de lá! Para citar dois países vizinhos: a Argentina e
o Chile que têm, cada, uma faculdade para cada 1,6 milhões. Destoa dessas
estatísticas Cuba, que tem uma faculdade de medicina para cada 500 mil
habitantes, o dobro do Brasil!
Certamente é esse um dos motivos pelo qual o Presidente Lula quer
a todo custo validar automaticamente os diplomas dos médicos cubanos
para exercerem a profissão em nosso país. Não necessito fazer nenhum
comentário a respeito, pois a única saída para diminuir a pletora de médicos em Cuba é exportá-los. Acontece que já temos no Brasil um excesso de
profissionais. A Organização Mundial da Saúde recomenda como ideal a
taxa de um médico para cada mil habitantes, hoje já temos um médico para
cada 650 habitantes! O problema agrava-se ainda mais, uma vez que se
graduam todos os anos mais 17.500 médicos, que se somam aos 350 mil já
existentes, lotando as capitais e as regiões economicamente favorecidas. A
competição aumenta geometricamente. A busca de vagas por residência é
um funil muito estreito, suficiente apenas para 60% dos recém-formados.
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Terminado esse período, que varia de dois a quatro anos, somados aos seis
anos curriculares, o médico vai enfrentar um ambiente muito hostil para
desenvolver suas atividades. Um editorial do Conselho Federal de Medicina mostrou que 55,4% dos médicos têm mais de três empregos, 62,2%,
mesmo aumentando a carga horária para 90 horas semanais, recebem salários não condizentes com sua formação, trabalho e responsabilidade. Trata-se da proletarização dos médicos. Infelizmente, essa situação caótica
acaba por refletir-se na assistência médica, que pode entrar em colapso ou,
como está na moda dizer vivermos um “apagão da saúde” com prejuízo
daqueles que são o motivo e a razão de vida do médico: o indefeso paciente. Termino com uma frase do grande antropólogo Darcy Ribeiro: “O Brasil é o único país do mundo que permite ao sujeito criar uma escola – como
uma padaria ou açougue – para ganhar dinheiro”.
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Domingo Braile
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O SUS
E A
CPMF
O assunto está por demais debatido, e talvez não coubesse a mim entrar
na seara dos economistas e dos políticos, que entendem muito mais dos assuntos
relativos às finanças e à equitativa distribuição dos impostos arrecadados.
Aventuro-me a escrever sobre o tema incentivado pelo artigo publicado
na Folha de São Paulo, do dia 3 deste mês, pelo eminente Prof. Adib D. Jatene,
meu amigo, meu mestre e figura invulgar no contexto médico internacional.
Concordo com tudo o que ele escreveu, com a clareza que lhe é
peculiar, mostrando que a CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira) é um imposto que evita fraudes. São palavras suas:
“Quando de sua regulamentação, foi proibido, na lei, o cruzamento de informações para efeito de Imposto de Renda, afinal revogado quando o
secretário da Receita à época mostrou que, dos 100 maiores contribuintes
da CPMF, 62 nunca tinham pago Imposto de Renda. O simples cruzamento de informações elevou a arrecadação de cerca de R$ 7 bilhões para mais
de R$ 20 bilhões/mês”.
A dúvida que me assalta é porque a alíquota inicial do imposto do
cheque subiu progressivamente até atingir o nível de 0,38% sobre as movimentações bancárias. Para ter o efeito defendido pelo meu professor, bastaria que tivesse uma incidência mínima, algo em torno de 0,02% para que a
Receita Federal pudesse continuar cruzando as informações de quem movimenta altas somas.
Como ele próprio disse, só com isso o governo teve um ganho de R$
13 bilhões por mês, uma arrecadação justa, que fez engordar os cofres Federais em R$ 156 bilhões por ano!
Coloco outras cifras para provar que a Saúde e a Educação, sempre
prioritárias nas campanhas eleitorais, ficam em segundo plano, para não dizer em último plano, quando as ações de governo são decididas.
O serviço da dívida pública (amortização do capital e pagamento de
juros) custou ao País, em 2006, R$158 bilhões, quatro vezes mais que o
propalado e falso déficit da Previdência, sempre anunciado como causa do
nosso descontrole financeiro, gerando a necessidade de cobrar mais e mais
impostos, uma verdadeira “derrama”.
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A CPMF quando criada com grande empenho do Prof. Jatene, deveria ser integralmente empregada no campo da Saúde. Infelizmente, não foi o
que aconteceu.
Entre 2002 e 2006, as despesas orçamentárias da União para financiamento da Saúde nunca ultrapassaram os R$ 40 bilhões, ou seja, um quarto
do que gastou com a dívida.
Lembro ainda que, enquanto não for aprovada em seus termos iniciais,
a Emenda 29 da Constituição Federal incluem-se como gastos com a saúde
gasolina para ambulâncias, saneamento básico, merenda escolar e até bolsa
família. Afinal, quem morre de fome morreu desta “doença”, que não mais
deveria existir!
A Educação foi ainda mais prejudicada, pois recebeu para manter toda
sua estrutura cerca de 10% do montante empregado para pagar dívidas e juros.
Quem ganhou com isto? Os bancos e os aplicadores financeiros,
cuja maioria são estrangeiros que se aproveitam: 1- dos juros mais altos do
mundo; 2- da desvalorização contínua do dólar; e 3- da absurda isenção
tributária que os beneficia enormemente, levando o Prof. Fábio Konder
Comparato a concluir que o povo brasileiro não é de forma alguma
xenófobo, pois continua comportando-se, depois de mais de 500 anos, como
se ainda fosse uma colônia.
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Domingo Braile
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ALÉM
DE
FRAMINGHAM
O assunto de hoje interessa a todos. Trata-se de uma verdadeira “epidemia”, responsável pela maior morbidade e mortalidade da população no
século 20. Tal “epidemia” não diminuiu neste século, pelo contrário, continua aumentando. As estatísticas americanas mostram que morrem de doenças cardiovasculares 400 mil homens e 500 mil mulheres por ano. Menos
pessoas falecem de câncer: 280 mil homens e 250 mil mulheres. Estes dados
podem ser extrapolados com segurança para nossa população.
Pouco se sabia a respeito das doenças cardiovasculares até 1948,
quando foi iniciado o “Estudo de Framingham”, que criou o Conceito de
Risco. Verificou-se que hipertensão, fumo, taxas elevadas de colesterol, obesidade, vida sedentária, entre outras, eram causas provocadoras e agravantes
de doenças do aparelho circulatório. Os diagnósticos e os tratamentos foram
todos dirigidos nesse sentido, com resultados práticos, mas sem o impacto
epidemiológico desejado.
Recentemente, um novo e interessante passo foi dado para entender
um detalhe sutil das causas predisponentes para instalação destas doenças.
Trata-se da definição de um conjunto de fatores que recebeu o nome de
“Síndrome Metabólica”. Esta se caracteriza por fatores fáceis de diagnosticar e alguns até simples de evitar-se. Tomou importância a Circunferência
Abdominal, o que chamamos vulgarmente de “barriga de cerveja”. Agora, a
recomendação para os especialistas é que logo que o paciente entre no consultório, antes de medir-lhe a pressão, examiná-lo e solicitar-lhe exames, meçase a circunferência abdominal. Se a medida exceder a 94 cm nos homens ou
80 cm nas mulheres, estamos diante de um indicador de alta sensibilidade
para a tal síndrome, com suas graves consequências.
Ao final desta leitura, o leitor poderá fazer a medida por si próprio. Se
os diâmetros estiverem fora do padrão, procure um médico com urgência.
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SAÚDE
NO
BRASIL
Saúde é um Direito de todos e um Dever do Estado. Apesar de
ser um dos artigos da Constituição de 1988, ao promulgá-la, esqueceram-se
de que, para a realização deste programa de reconhecido alcance social, é
necessário alocar recursos suficientes para que a utopia possa ser concretizada. Infelizmente, foi o que aconteceu.
Nos Estados Unidos (sempre lá), se gasta R$ 9.000,00 por habitante
por ano com a Saúde. Aqui se empregam míseros R$ 357,00 por brasileiro
por ano, menos de R$ 1,00 por dia!
Mesmo assim, querem que o SUS funcione a contento. Esses dados
falam por si próprios, mas alguém pode pensar que comparar a nossa economia com a mais avançada do mundo configura um sofisma.
Faço, então, ilações que nos permitam raciocinar com mais lógica
diante da nossa realidade. Na Argentina (pobre Argentina!), o investimento
em Medicina é três vezes maior que o nosso. Pior é ter que tanto o Brasil
como a Argentina perdem feio para o Chile e a Colômbia e, ainda para vergonha de todos nós, perdemos também para a Bolívia, que aplica o triplo do
que os governantes empregam aqui para esta área tão sensível.
Parece que querem tapar o sol com a peneira, encontrando mil desculpas, como má gestão, falta de vontade das equipes multidisciplinares de
saúde e tantas outras balelas, quando, na verdade, faltam recursos mínimos
para proporcionar assistência médica ao menos descente. Se o custeio da
Saúde é insuficiente para o indispensável para a população, o que dizer dos
investimentos?
O orçamento total da União, para investimentos em 2005, é de R$ 22.110
bilhões, dos quais seriam destinados à Saúde apenas R$ 2.673 bilhões, (12%).
Acontece que, até o mês de outubro passado, liberaram somente R$ 141
milhões (0,6%), mostrando total falta de sensibilidade e de amor ao próximo. No mesmo período, a Fazenda pagou em juros mais de R$ 120 bilhões!
Isso tudo, mesmo considerando que o ministro é médico. Reflitam sobre
estes frios números desta fria realidade.
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EXÉRCÍCIO
E
CORAÇÃO
Novos estudos mostram algo surpreendente em relação aos exercícios.
Artigo publicado pelo Dr. Ducha e colaboradores da “Duke
University”, em outubro de 2005, na conceituada revista “Chest”, evidenciou um fato que pode ajudar muitas pessoas que estão sob risco de doenças cardiovasculares. Explico a razão: sempre se pensou que os exercícios
aeróbicos deveriam produzir frequência cardíaca elevada. Seriam praticados por cerca de 40 minutos por dia, quatro vezes por semana, sempre
atingindo 80% do pico máximo da capacidade individual. Isto é, de maneira muito simplificada, durante tais exercícios, os batimentos cardíacos deveriam manter uma frequência facilmente calculada. Basta subtrair do número 220 a idade do candidato, multiplicando-se o resultado por 0,80,
tem-se a frequência a ser mantida. Dando um exemplo: para uma pessoa
de 60 anos, teremos: 220 menos 60 igual a 160, multiplicando-se por 0,80
obtém-se 128, que é a frequência cardíaca a ser mantida durante o exercício. Esta prática geralmente é extenuante, levando as pessoas que tanto
necessitam dela a não se engajarem nos programas ou a abandoná-los pouco tempo depois.
Neste recente estudo, ficou evidente que, se mantendo a frequência
cardíaca em 50% do calculado para o pico máximo, o exercício pode ser
igualmente benéfico, aumentando progressivamente o aproveitamento do
oxigênio e diminuindo os riscos de doenças do coração. Para o exemplo dado,
bastaria, portanto, o paciente manter a freqüência de 80 batimentos por minuto durante o exercício. Representada por caminhar 18 quilômetros por
semana, tranquilamente divididos, por exemplo, em 2,5 quilômetros por dia.
Isso não significa que os exercícios com picos máximos não sejam benéficos,
mas podem afastar as pessoas que mais deles necessitam.
Para finalizar, nenhum destes modelos serve para emagrecimento. São muito úteis, apenas, para evitar as doenças cardiovasculares, o
que já é o bastante.
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HOMENS
E
CHIMPANZÉS
Recentíssimos estudos mostram que o homem e o chimpanzé estão
separados, do ponto de vista genético, há apenas um milhão de anos e seus
genomas apresentam uma semelhança de 98,8%. É o que declaram os cientistas Navin Elango, James W. Thomas e Soojin V. Yi, em artigo publicado
no Proceedings of the National Academy of Sciences. Essa diferença, apesar de
parecer significante, é mínima na torrente dos milênios.
Surpreende sabermos que os chimpanzés estão mais perto do homem
que dos gorilas e orangotangos. Somos, portanto, mais parentes dos chimpanzés do que eles são dos outros símios!
Para entendermos esses achados, devemos saber que no estudo da
genética existe um fenômeno que recebe o nome de “taxa molecular da evolução” ou, simplesmente, “relógio molecular”. Os seres humanos começaram a atrasar o seu “relógio molecular” há cerca de um milhão de anos. Antes, homens e chimpanzés tiveram o mesmo ancestral. Esse atraso, que na
prática significa gerações mais longas, fixando características genéticas
fortificadas nos descendentes, foi fundamental para o sucesso da espécie
humana. Verificou-se que o “relógio” dos seres humanos andava 3% mais
lento que o dos chimpanzés, e 11% mais devagar que o dos gorilas. Tendo
uma velocidade menor, o homem aumentou o tempo entre uma geração e
outra, podendo desenvolver as características que apresentamos até hoje. A
gestação mais prolongada permitiu ao homem desenvolver seu cérebro
exponencialmente, sendo hoje três vezes maior que dos outros primatas.
Tomando conhecimento desses dados, ficamos pensando no quanto
ainda teremos que evoluir para tornar-nos perfeitos.
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UM LONGO CAMINHO
A esperança despertada na área cardiológica, pela possibilidade do
tratamento de pacientes com infarto do miocárdio ou dilatação do coração,
com o implante de Células-Tronco, parece estar longe de ser uma realidade
para os dias atuais. Estudos anteriores realizados com poucos pacientes, inclusive em nosso país, criaram a expectativa de cura desses graves doentes.
Contudo, um trabalho recém-publicado no Journal of the American Medical
Association mostrou resultados desapontadores do estudo REVIVAL-2, no
qual era usado um fator estimulante para as células-tronco, cuja sigla em
inglês é G-CSF .
O Dr. Dietlind Zohlnhöfer, da Universidade de Munich, na Alemanha, selecionou para o estudo 114 pacientes submetidos à revascularização
do miocárdio, que haviam perdido pelo menos 5% da massa muscular cardíaca. Sorteou metade para receber as células-tronco e a outra metade,
apenas placebo. Depois de seis meses, apesar de discreta melhora, não
houve nenhuma diferença entre os grupos. Aventaram-se várias hipóteses
para explicar a “discreta melhora” que ocorreu nos dois grupos, sem relação com as células. A esperança, contudo, não está perdida. Novos estudos experimentais e em seres humanos deverão prosseguir, como afirma
no Editorial o Dr. Robert A. Kloner, da Universidade da Califórnia, parafraseando Thomas Alva Edson (que após mais de mil tentativas fracassadas de fazer uma lâmpada elétrica, em vez de desanimar, afirmava saber
agora mil maneiras de não fazê-la).
Esse fracasso também deve abrir novas avenidas no conhecimento
deste atraente campo da Medicina.
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MÚSCULOS ARTIFICIAIS
O desenvolvimento da robótica e dos órgãos artificiais implantáveis,
como o sonhado coração artificial ou próteses mecânicas “inteligentes”, sempre envolveu um desafio até agora não superado. Trata-se da fonte de energia para alimentá-los. Usam-se baterias que, como aquelas que equipam os
automóveis, são pesadas e requerem recargas constantes.
A comparação é válida, pois, apesar dos aperfeiçoamentos que tais
dispositivos tiveram, não foi possível fazê-los leves e eficientes, uma vez
que o princípio que os rege foi descoberto no século 18 por Galvani & Volta,
e persistentemente empregado.
Um novo princípio de geração de energia foi publicado na Revista
Science. A equipe do Instituto de Nanotecnologia da Universidade do Texas,
em Dallas, desenvolveu dois tipos diferentes de músculo artificial. Nos dois,
a energia química presente na fonte combustível, etanol ou hidrogênio, é
transformada em energia mecânica, como ocorre nos nossos músculos.
As estruturas funcionam ao mesmo tempo como músculos e como
células combustíveis. Com isso, abre-se uma nova era, em que a energia
será produzida à semelhança do que ocorre na natureza. Em um dos tipos,
ela é gerada em nanotubos de carbono, transformando energia química em
energia elétrica. No outro modelo, surpreende-nos que a reação catalítica
seja feita entre o “combustível” e o oxigênio do ar, imitando de forma
absoluta o metabolismo natural. Chama a atenção que um destes combustíveis é o etanol, ou seja, o álcool, que produzimos em quantidades fantásticas em nossa região.
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OBESIDADE?
É do conhecimento de todos que a obesidade configura-se como uma
epidemia neste século 21. As consequências: Hipertensão, Diabetes, Doenças Cardíacas, Derrames, Doenças Circulatórias e até Câncer fazem parte
dos riscos inerentes aos obesos. Submetidos a dietas rigorosas, podem emagrecer, mas com o tempo, voltam a engordar.
Recentemente, atitudes mais drásticas têm sido adotadas. A Cirurgia
Bariátrica reduz o tamanho do estômago, propiciando aos operados a sensação de saciedade após pequenas refeições. Os resultados são surpreendentes, porém trata-se de um artifício para “enganar” os sensórios orgânicos.
Infelizmente, a longo prazo, uma parcela deles volta teimosamente a
engordar. Estudos recentes têm jogado luz sobre este mal que a tantos aflige.
Um grupo da Universidade de Nova Jersey, nos EUA, identificou um gene e
a função molecular da proteína dele resultante, que oferece uma nova pista
para entender a obesidade, podendo levar ao desenvolvimento de novos
medicamentos para o controle do metabolismo da gordura. Os pesquisadores descobriram que a proteína conhecida como Lipina é uma enzima importante no processo de regulagem da gordura. Já era conhecido que o seu excesso produz acúmulo de gordura, só não se sabia como isso se dava. Com a
identificação do gene PAH1, que produz o PAP, que tem a mesma sequência
de aminoácidos que a Lipina, o mistério foi desvendado, trazendo nova esperança no tratamento definitivo dos obesos.
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ENSINO UNIVERSITÁRIO
O ensino universitário torna-se cada vez mais uma conquista necessária para o desenvolvimento dos países. Nós, que ainda estamos “em desenvolvimento”, temos premência em utilizar todas as vertentes para
maximizar o aprendizado dos que frequentam os cursos superiores.
Os institutos públicos e particulares não podem perder a perspectiva
indispensável da difusão do saber. Muitos pensam que o importante é apenas
ensinar, contrapondo-se ao conceito pedagógico moderno, no qual a ênfase é
o aprendizado. Dificilmente conseguimos passar conhecimentos aos alunos
sem que eles vivenciem as situações com que se defrontarão durante a vida
profissional. Por isso, a Universidade tem como objetivos fundamentais e rígidos: Ensino, Pesquisa e Extensão à Comunidade. Só dessa maneira é possível
que os conhecimentos propiciem o desenvolvimento de raciocínio lógico e
prático. Essas prerrogativas não podem concentrar-se apenas nos cursos de
graduação, devem estender-se, até com mais intensidade, na Pós-Graduação.
Com essas diretrizes, a Faculdade de Medicina de Rio Preto instituiu,
pela sua Fundação, cursos que utilizam todas as condições para que os alunos sejam incluídos na sociedade com sólidos conhecimentos teóricos e
práticos, com especial direcionamento para a extensão à comunidade, que é
onde os profissionais poderão transformar positivamente a sociedade. São
24 cursos com 35 turmas, somando mais de 2.000 alunos a beneficiar-se
desta iniciativa louvável.
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AMÉRICA LATINA
Participo do XV Congresso de Cirurgia Cardíaca do México e I Congresso Latino-Americano da Especialidade. Não é meu desejo escrever sobre os importantes assuntos discutidos em um evento deste porte, no qual o
Brasil destaca-se de maneira toda especial, por suas técnicas inovadoras e
pelos seus excelentes resultados, mesmo considerando a falta de recursos do
SUS, pois, infelizmente, temos na saúde um dos menores índices de investimento por habitante por ano de toda a América Latina. O nosso sistema,
apesar de ser universal, carece de uma política de investimentos que possa
alavancar o funcionamento idealizado para ele.
O que gostaria de transmitir é a responsabilidade que pesa sobre os
nossos governantes e, principalmente, sobre nós, como “povo brasileiro”,
pela posição de liderança que ocupamos dentro do contexto das nossas
Américas. Senti o quanto somos admirados e considerados entre os povos
latinos, pelo nosso tamanho e nosso nível de desenvolvimento industrial,
científico e social.
O Brasil, apesar das mazelas com as quais convivemos, tem uma
população ativa, determinada e muito querida por todos os irmãos das nações que com nós participam dos mesmos desafios e esperanças. Com orgulho, mas sem o espírito jacobínico que permeia as nações autodenominadas
desenvolvidas, vejo que o nosso futuro é, hoje, ditado pela conduta de um
povo que sabe do seu valor e certamente servirá de exemplo para esta grande Nação Latino-Americana, que está, finalmente, tornando-se uma realidade para o bem de nós todos.
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MORTE CELULAR PROGRAMADA
Participando do Congresso da Associação Americana de Cirurgia
Torácica, na bonita e fria Philadelphia, no Estado da Pennsylvania, nos EUA,
passei por duas vivências interessantes. A primeira foi constatar que o nível
alcançado pela Cirurgia Cardíaca e Torácica no Brasil em nada deve àquela
praticada em países autodenominados desenvolvidos. A segunda foi assistir à
conferência do Dr. Robert Horvitz, prêmio Nobel em Medicina em 2002, pelos estudos que identificaram os genes responsáveis pela regulação do desenvolvimento dos órgãos e a morte programada das células. A pesquisa foi realizada em um nematóide (verme redondo) parecido com uma minhoca, de dimensões diminutas. Este verme tem células cujo conteúdo gênico pode ser
acessado com facilidade. Aprofundando os estudos, demonstrou-se que muitos desses genes tinham correspondentes no homem, e descobriram-se os genes
que determinam a morte celular (apoptose). A importância deste fenômeno
foi transcendental, pois permitiu, pela primeira vez, identificar células programadas para morrer. Se tal não acontece, surgem alterações responsáveis por
doenças como câncer, degeneração do sistema nervoso, etc.
O campo que se abre é desafiante, pois poder-se-á interferir nesse
mecanismo, evitando ou mesmo curando pacientes com proliferação
desordenada de células que deveriam ser eliminadas, mas que, não o sendo,
produzem tumores malignos.
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D OR
Se perguntarmos às pessoas sobre quem nunca sentiu dor, a resposta
será monótona, pois ela estará presente, com maior ou menor intensidade,
por períodos fugazes ou prolongados, na vida de cada um de nós. Os registros históricos da dor datam de muitos séculos e estão associados aos valores culturais e sociais da humanidade. Existem referências sobre a dor e suas
manifestações desde o século 8 a.C. Isso não nos permite divagar afirmando
que antes ela não tenha existido.
Hipócrates de Cós, o pai da Medicina, que viveu entre 460 e 377
a.C., importou-se com o fenômeno, criando o aforismo que é repetido até
hoje, como uma das principais funções do médico e toda a equipe de saúde:
“Sedare Dolorem Opus Divinum Est”, ou seja, “Sedar a Dor é obra Divina”.
Na Idade Média, por influência da Igreja e tentando uma explicação
para tal sofrimento, difundiu-se a idéia de que a dor era algo a ser suportado
de forma estóica, levando as pessoas tolerantes a ela a ter proximidade maior
com a perfeição e o paraíso.
Outro conceito interessante, que surgiu com o advento de um raciocínio mais cartesiano, é o de que a dor tem função protetora, sinalizando a
presença de alguma lesão ou doença no organismo, um verdadeiro sistema
de alerta! Só em 1883 começamos a compreendê-la cientificamente, e a
dominá-la com o surgimento de uma substância formada por cristais produzidos a partir do ópio. Recebeu o nome de Morfina, em homenagem a Morfeu,
o deus dos sonhos, realizando-se o milagre de aliviar a dor.
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SUS
O Sistema Único de Saúde, em sua concepção, atende ao dispositivo
da Constituição de 1988, que afirma textualmente que a “Saúde é um direito
de todos e um dever do Estado”. Sua estruturação é moderna e pela universalidade do atendimento representa um sistema diferenciado, mesmo quando comparado àquele de países mais desenvolvidos. Deveria, portanto, funcionar a contento. O grande problema reside, como na maior parte dos programas de governo, no seu financiamento. Analiso alguns números que “falam” por si. O gasto público em saúde, no Brasil, é de R$ 275,00 (3,2% do
PIB). Na Argentina, é de R$ 800,00 e, no pequeno Uruguai, R$ 670,00. O
pior é que em nosso país estes recursos não têm aumentado, apesar do crescimento populacional e das novas técnicas incorporadas à prevenção e tratamento das doenças. Em 2000, o orçamento da Saúde era praticamente o
mesmo de hoje! Nesse período, ocorreu um fato ainda mais crítico. Apesar
do Governo Federal ter tomado para si a maior parte dos escorchantes impostos (COFINS, CPMF, etc.), deu aos Estados e municípios a incumbência
de financiar a saúde sem a adequada contrapartida. Em 2000, estes eram
responsáveis por 40% dos gastos e hoje comparecem com mais de 60%.
Para termos uma ideia da nossa posição calamitosa em relação ao mundo,
eis alguns dados para as devidas comparações. Em Portugal (do Felipão), o
governo investe na Saúde R$4.000,00 por habitante/ano (9,6% do PIB) e, nos
EUA, R$12.400,00 (15%). Não se trata de inventar teorias ou mágicas. Para
termos um atendimento digno, as políticas de saúde têm que ser prioritárias,
com aporte dos necessários e indispensáveis recursos econômicos.
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CIÊNCIA
NO
BRASIL
Apesar do crescimento da economia brasileira ter sido de apenas 2,4%
no ano de 2005, a Pesquisa Científica cresceu 19% no mesmo período! Isso
ocorreu mesmo sem aumento do financiamento para esta importante atividade no País. Deduz-se que a produtividade dos nossos pesquisadores foi
mais eficaz, permitindo que o Brasil subisse mais um degrau no concerto das
nações. A nossa situação ainda não é confortável: estamos na 17ª posição no
ranking das nações, mas é estimulante saber que estamos avançando nesse
importante marcador da viabilidade de um país. A produção de artigos científicos em Revistas Indexadas (aquelas que têm inserção internacional) cresceu 50% nos últimos cinco anos, o que significa que em três anos deveremos
ocupar a 15ª posição, ultrapassando dois importantes competidores, a Suíça e
a Suécia. A área que mais se destacou no último ano foi a área Médica, responsável por 20% das publicações, vencendo a disputa com a Física, que ficou
com apenas 15% dos artigos, perdendo a hegemonia que durava há muitos
anos. A Pós-Graduação da FAMERP certamente contribuiu para essa vitória,
pois o Curso Stricto Senso de Mestrado e Doutorado em Ciências da Saúde da
instituição fez sua parte para que essa audaciosa meta fosse conquistada. Estão de parabéns a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior), pelo rigor e exigência de qualidade; a FAMERP, pelo esforço
em igualar-se às melhores instituições científicas do País; e Rio Preto, por contar com pesquisadores que honram a classe.
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HIV/AIDS - 25 ANOS
No dia 5 de junho de 1981, foram descritos, em Los Angeles, os
primeiros cinco casos de pacientes jovens que faleceram de infecções consideradas banais, causadas pelo Pneumocystis carinii. Um mês depois, 36 pacientes jovens faleceram em New York e na Califórnia, vítimas também de infecções, sem explicações convincentes. Ninguém poderia imaginar que esse era
o primeiro sinal de uma era histórica nos anais da saúde global.
Vinte e cinco anos depois, o vírus da imunodeficiência humana (HIV),
causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), atingiu todos
os cantos do globo terrestre, infectando mais de 65 milhões de pessoas, dos
quais 25 milhões faleceram. Os recursos empregados para a descoberta da
doença e seu tratamento não tiveram precedentes na história. Só um dos
Institutos de Pesquisa dos EUA gastou mais de 30 bilhões de dólares!
Rapidamente, descobriu-se a relação entre o vírus e a doença, desenvolveram-se testes diagnósticos precisos e iniciou-se a luta que persiste até
hoje. No início, os tratamentos foram apenas paliativos, mas logo drogas
antivirais foram descobertas, reduzindo a morbidade e a mortalidade da doença que, ainda assim, mata cerca de quatro milhões de pacientes por ano,
principalmente nos países pobres que não têm acesso às novas e potentes
medicações. O Brasil é um exemplo: controlou parcialmente a doença com
grandes campanhas e fornecendo os remédios, gratuitamente, ao alto custo
de R$ 5.000,00 por paciente por ano, vítima que é das multinacionais, por
importar 80% destes medicamentos.
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O CIRURGIÃO
O médico sempre existiu e sempre existirá! Nas sociedades mais primitivas, lá estava ele a exercer sua arte, decorrente de um impulso interior,
independente de qualquer interesse ou vontade. Podemos citar como exemplos: pagés, curandeiros, xamãs, carimbambas, abençoadeiros, rezadores,
feiticeiros, parteiras e barbeiros cirurgiões. Estes últimos são o antigo
repositório dos conhecimentos que, ao longo dos anos, acabou por criar uma
grande especialidade dentro da Medicina. Guarda com ela relações estreitas,
mas depende de habilidades absolutamente peculiares daqueles que a exercem. O Barbeiro Cirurgião levava consigo os toscos instrumentos de trabalho da época e seu próprio hospital, geralmente uma carruagem puxada a
cavalos. De cidade em cidade, oferecia seus préstimos àqueles que sofriam
de males incuráveis pela medicina não invasiva daqueles tempos. Seus conhecimentos eram passados de geração em geração por mestres que ensinavam a seus discípulos as técnicas por eles desenvolvidas ou aprendidas. As
doenças que podiam ser tratadas cirurgicamente eram poucas e sempre acompanhadas de enorme risco e grande sofrimento, pois infecções e hemorragias
eram constantes e a anestesia era um sonho. Os Barbeiros Cirurgiões nem
sempre eram bem-sucedidos em seus procedimentos, e a morte dos pacientes não era um evento raro. Quando tal ocorria, fugiam na calada da noite,
antes que fossem massacrados pelas famílias e amigos do falecido.
Veremos que estes homens dotados de qualidades inatas, que lhes
permitiam penetrar as entranhas dos seus semelhantes, paulatinamente foram sendo admitidos nas escolas médicas, passando a fazer parte da elite
daqueles que se dedicavam a dominar os conhecimentos da anatomia, fisiologia e patologia, os pilares mestres que transformaram a medicina empírica
em ciência. Mas a arte continuou a fazer parte do cotidiano dos cirurgiões,
pois, por mais que ele seja conhecedor das ciências, se lhe faltarem as habilidades, jamais terá sucesso. O advento da anestesia geral ocorrido em 16 de
outubro de 1846, pela insistência do dentista prático William Thomas Green
Morton, permitiu que o cirurgião John Collins Warren, do Massachusetts
General Hospital, em Boston, extirpasse um tumor do pescoço do jovem
Gilbert Abbot, de 17 anos, sob sono profundo, sem que o paciente sentisse
qualquer dor. Estava aberto o campo da Cirurgia Moderna como a conhecemos hoje. Neste curto período, de apenas 160 anos (quase nada na evolução
milenar da humanidade), a cirurgia atingiu limites nunca antes imaginados. A
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entubação endotraqueal, tão simples no conceito, mas tão difícil de ser admitida, permitiu adentrar o tórax dos pacientes e tornar a anestesia mais segura e
reprodutível. Logo outros importantes e fantásticos avanços se seguiram...
O avanço da cirurgia deu-se de forma difícil e lenta durante séculos,
sempre tendo que vencer preconceitos. Como fio condutor desta luta pelo avanço da cirurgia, contarei histórica saga pela implantação da Cirurgia Cardíaca.
Em 1882, Theodor Billroth, o mais famoso cirurgião da época, comentou que a realização da pericardiectomia (abertura do pericárdio, membrana que envolve o coração) equivaleria a um ato de prostituição ou frivolidade cirúrgica. Esse mesmo “Doutor” afirmou no ano seguinte que todo
cirurgião que tentasse suturar uma ferida cardíaca deveria perder o respeito
de seus colegas. Não demorou, porém, para que Ludwig Rehn, em 1896,
obtivesse êxito ao suturar um ferimento cardíaco. O fato foi notável, mas
tão importante quanto ele foram as palavras proféticas de Luwig: “Este feito
não deveria permanecer como uma experiência isolada, muito pelo contrário, espero que sirva de incentivo para prosseguirmos pesquisando este promissor campo da cirurgia”. Sua exortação produziu efeitos, pois muitos se
aventuraram a fazer procedimentos simples sobre o coração até então considerado intocável. O volume das intervenções sobre o coração foi suficiente
para que Sherman, em 1902, no Journal of The American Medical Association,
comentasse que a distância para atingir cirurgicamente o coração não é maior que uma polegada, mas foram necessários 2.400 anos para que a cirurgia
pudesse percorrer esse pequeno caminho.
Sigo pelo fio condutor da Cirurgia Cardíaca, campo em que atuo há
mais de 50 anos, tendo tido o privilégio de viver boa parte da sua evolução
no Brasil e no mundo. Como citei há pouco, Sherman, em 1902, foi clarividente ao escrever que a pequena distância entre o esterno e o coração havia
sido superada depois de 2.400 anos! De fato, em 1925, o Dr. Henri Souttar
realiza a primeira “comissurotomia mitral” numa jovem paciente agonizante, em virtude de um estreitamento da válvula mitral (que orienta o fluxo
sanguíneo do átrio esquerdo para o ventrículo esquerdo). O estreitamento
decorrente da febre reumática que a paciente havia sofrido anos antes impedia a livre passagem do sangue entre as duas cavidades, com repercussões
graves para o pulmão, que fica inundado de líquidos. Pior ainda, não podendo passar pela válvula estreitada, pouco sangue era bombeado pelo coração
para o corpo, levando a um quadro que chamamos de baixo débito, produzindo um estado de choque periférico. A morte era eminente. O Cirurgião
abre o lado esquerdo do tórax da paciente, chega ao coração e introduz o
dedo indicador dentro do átrio esquerdo, atinge a válvula mitral e a dilata,
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usando sua unha como instrumento. A paciente imediatamente melhora.
Recupera-se da anestesia e vive muitos anos, falecendo em provecta idade,
de outra doença. Um grande passo havia sido dado no tratamento dessa
insidiosa e mortal moléstia. A luta, contudo, não havia sido vencida...
Embora o Dr. Soutar, do London Hospital, tenha operado uma paciente portadora de estenose mitral com sucesso, ele não conseguiu repetir a sua
façanha, pois os clínicos jamais lhe enviaram outro paciente com a mesma
doença, dizendo que não havia nenhuma razão para realizá-la, uma vez que
o coração é que estava deteriorado e de nada valeria simplesmente dilatar a
válvula mitral. Essa operação só foi “revivida” vinte e cinco anos depois,
concomitantemente por dois cirurgiões, o Prof. Dwight Harken, da já famosa à época Harvard Medical School, e o Dr. Charles Bailey, do não tão famoso Hahneman Hospital, na Philadelphia. O Prof. Harken enviou uma carta
ao Dr. Soutar perguntando porque ele não havia continuado com a sua bem
sucedida técnica, ao que ele respondeu: “é sempre muito difícil estar adiante
do próprio tempo”. Cito aqui uma frase lapidar do autor Daniel Boorstin,
em seu livro The Discovers, que define a dificuldade que temos em admitir
novos conceitos ou novas idéias. “O maior obstáculo para a descoberta da
forma da terra, dos continentes e dos oceanos não foi a ignorância, mas a
ilusão do conhecimento”. Manter mentes abertas é uma qualidade que devemos valorizar e implementar em nossas interpretações e atitudes.
O preparo de um cirurgião é um processo longo, cujo treinamento
passa por imersão em mundos nem sempre imaginados. Foi o que caldeou a
vida do cirurgião Dwight Harken, um dos introdutores da cirurgia das Válvulas Cardíacas na era moderna. De certa forma, foi o prólogo da atuação
de Harken, como Capitão Médico das Forças Armadas Americanas na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. Aos 35 anos, Harken era o homem
certo no momento certo. Teve a oportunidade de operar e salvar centenas de
soldados nos Hospitais de Campanha em que atuava. Seu espírito intrépido
e seu treinamento anterior permitiram que ele avançasse em um campo
nunca antes percorrido. O Capitão realizou uma série de 134 operações em
soldados feridos no “front” para remoção de estilhaços de granada que haviam penetrado em seus corações. O fato em si seria fantástico, mas cresce em
importância em virtude de nenhum deles ter falecido. A Cirurgia Cardíaca
nunca mais foi a mesma depois do Dia D na batalha de “Omaha Beach”, em
6 de junho 1944, com a participação do heroico doutor. As guerras são aberrações do comportamento humano, mas, vez por outra, permitem que avanços tecnológicos sejam conseguidos em curtos períodos, impulsionando os
homens a vencer barreiras aparentemente intransponíveis.
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Tive a oportunidade de conviver com este simpático pioneiro, que
tratava a todos como velhos amigos, qualidade comum àqueles que representam pontos de referência na evolução da humanidade.
Muitos preconceitos tiveram que ser vencidos para que a Cirurgia
e, particularmente, a Cirurgia Cardíaca pudessem atingir estágios mais avançados. Já contei a epopéia do Prof. Harken para implementar as operações
sobre as válvulas do coração. Antes dele, dedicava-se a esse desafio o médico Dr. Charles Bailey. No final do ano de 1946, aos 38 anos de idade, ele
havia realizado duas tentativas para dilatar a válvula mitral que resultaram
em morte dos pacientes. Seu chefe no Hahnemann Medical College, em
Philadelphia, Dr. George Geckekeler, comunicou-lhe enfaticamente: “É
meu dever de cristão não permitir mais que estas operações homicidas
sejam realizadas”. O Dr. Bailey, que, aos 12 anos, assistira, impotente, à
morte de seu pai devido à mesma doença, respondeu: “É meu dever de
cristão aperfeiçoar esta operação, pois nada pode ser pior do que morrer
asfixiado, simplesmente por ter uma válvula do coração entupida”. Fez
mais duas intervenções, também sem sucesso, mas, com determinação
heroica, persistiu no desafio. Em um mesmo dia, em junho de 1948, operou dois pacientes em hospitais diferentes, separados por uma distância de
30 km. O primeiro faleceu! Sem esmorecer, dirigiu-se para o outro e realizou a primeira comissurotomia mitral com sucesso. Quatro dias depois, em
Boston, o Prof. Harken repetia a façanha e, logo após, o médico e Lord Dr.
Russel Brock reproduzia a técnica em Londres. Estava encerrado mais um
capítulo contra o preconceito.
Anomalias, principalmente de origem congênita, atingem não só o
coração mas também o sistema circulatório. Saem do coração duas artérias:
Aorta, responsável pela distribuição do sangue para todo o organismo, e Artéria Pulmonar, que leva sangue para os pulmões. Muitos defeitos podem
ocorrer nessas estruturas. Uma delas é o Canal Arterial Persistente. Trata-se
de uma comunicação entre a Aorta e a Artéria Pulmonar, indispensável para
a circulação do feto. Ao nascimento, a criança começa a respirar e esse canal
deve fechar-se. Se isso não ocorre, parte do sangue da Aorta vai para os
pulmões, inundando-o. Muitos bebês morreram antes que fosse possível eliminar esta comunicação. Isso ocorreu em 26 de agosto de 1938, quando o
Cirurgião Infantil, Dr. Robert Gross, do Children’s Hospital, em Boston, realizou a primeira ligadura de um Canal Arterial. Ele chamou a operação de
uma “extravagante aventura”, principalmente porque a fez na ausência do
seu chefe! A natureza é muito caprichosa. Como disse acima, logo após o
nascimento, o Canal Arterial deve fechar-se. Às vezes, a reação do organis199
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mo para que isso ocorra é tão intensa que a Aorta acaba estreitando-se, criando um grave obstáculo à passagem do sangue. Esta doença chama-se
Coartação da Aorta.
O fio condutor da história leva-nos ao ano de 1944, quando foi realizada a primeira correção da Coartação da Aorta, grande artéria que distribui
o sangue para todo o organismo. Esta artéria pode apresentar um grave
estreitamento, logo após a saída dos ramos que alimentam o cérebro e os
membros superiores. Logicamente, isso produz alterações importantes na
circulação, o que resulta em hipertensão arterial persistente com grande sobrecarga para o coração, além de problemas renais e de outros órgãos e sistemas. As crianças com esta doença tem sintomas que limitam sua atividade e
drástica diminuição da sobrevida, se a lesão não for corrigida a tempo. Houve um lapso de seis anos, após a ligadura do canal arterial pelo Dr. Gross,
para que o cirurgião sueco Dr. Clarence Crafoord, no dia 19 de outubro de
1944, realizasse a proeza de corrigir essa anomalia. Mais um passo havia
sido dado para que o homem, com seu engenho, sua coragem e sua fé, fosse
capaz de corrigir os defeitos que a natureza por vezes impõe aos seres humanos. Essas duas intervenções foram fundamentais para animar dedicados
pesquisadores, médicos e cirurgiões a aventurar-se na cura de doenças cardíacas mais complexas.
Muitas crianças nascem com o coração apresentando defeitos de tal
monta que permitem a mistura do sangue venoso (vermelho escuro) com o
sangue arterial (vermelho rutilante). Essas crianças têm a pele azulada e são
chamadas de “Blue Babies”, Crianças Azuis.
Os “Blue Babies”, ou crianças azuis, manifestam a “doença azul” ou
cianose, como é denominada em termos médicos. Nelas o sangue arterial
tem pouco oxigênio, porque apenas uma pequena quantidade de sangue venoso chega aos pulmões para ser oxigenado, pelo contrário, ele é bombeado
diretamente para o ventrículo esquerdo e a circulação arterial. A nutrição
dos tecidos e órgãos fica extremamente prejudicada, pela falta do oxigênio,
essencial para a preservação da vida. Logo após o nascimento, muitos destes
bebês morrem, outros falecem com poucos anos de vida. A doença foi descrita em 1888 por Étienne-Louis Arthur Fallot, recebendo a denominação
descritiva de Tetralogia de Fallot. Só foi possível tratá-la quarenta e quatro
anos depois, pela persistência de uma médica surda, a Dra. Helen Taussig.
Numa época em não se dispunha de avanços tecnológicos, usando apenas a
observação arguta e a radioscopia do coração, esta médica percebeu que os
recém-nascidos com a doença pioravam muito ou faleciam quando o Canal
Arterial (presente na vida intrauterina) fechava-se. Teve a ideia de construir
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um novo canal arterial para mantê-las vivas. Sua primeira atitude foi falar
com o Dr. Gross, de Boston, que havia desenvolvido a técnica de fechar os
Canais Arteriais persistentes. A resposta foi desanimadora: “Eu fecho Canais, não vejo sentido em construí-los”. Taussig não desanimou, procurou o
cirurgião Alfred Blalock, recém-chegado ao Departamento de Cirurgia da
Universidade Johns Hopkins.
A Dra. Helen Taussig teve a idéia de aumentar o fluxo de sangue para
os pulmões para tratar as crianças azuis. Não tendo sido atendida pelo Dr.
Gross, procurou em seu próprio hospital um jovem cirurgião não tão famoso,
o Dr. Alfred Blalock, convencendo-o a realizar a operação por ela proposta:
criar uma derivação entre a Aorta e a Artéria Pulmonar. O Dr. Blalock havia
estudado na Universidade Johns Hopkins, mas não havia atingido os créditos
necessários para ocupar o cargo de Residente na Instituição. Em 1925, ele
deixou a culta cidade de Baltimore e a famosa Universidade para ser Residente
no Hospital da recém-criada Universidade Vanderbilt, na cidade da música
“country”– Nashville. Isso fez toda a diferença, pois lá conseguiu realizar as
pesquisas que sempre desejara. Trabalhou na criação de um modelo experimental de Hipertensão Pulmonar em cães. Para tal, fazia uma anastomose
entre a Artéria Subclávia (ramo da Aorta) e a Artéria Pulmonar. O desenvolvimento desse procedimento contou com a colaboração de um técnico excepcional, o afroamericano Sr. Vivien Thomas, cuja habilidade foi fundamental para
tornar possível o procedimento salvador nos “Bebês Azuis”. A operação ficou
conhecida como Cirurgia de “Blalock Taussic” e sua saga foi contada no filme
“Something the LORD made”, cujo título em português é “Quase Deuses”,
que joga luz sobre a história de dois homens, um cirurgião branco e um carpinteiro negro, transformado em técnico de laboratório.
Contar a história de Vivien Thomas será como viver um conto de
fadas, pois seus desafios, seus fracassos e sua vitória final são um exemplo
de coragem e persistência, alimentados pelo dom de uma admirável capacidade cirúrgica. Thomas nasceu na cidade de Lake Providence, no Estado de
Louisiana, no sul dos EUA, em 1910, filho de um carpinteiro. Em 1920, foi
estudar em Nashville. Sendo afrodescendente, sofreu desde o início todas as
agruras da segregação racial fortemente presente àquela época. Mesmo assim, teve uma formação primorosa e seu grande desejo era matricular-se na
Universidade para tornar-se médico. Nuvens negras surgiram no horizonte
dos americanos com a quebra da Bolsa de Nova York, mergulhando a nação
na grande depressão de 1929. Não podendo pagar os estudos, Vivien foi
trabalhar como carpinteiro na histórica Fisk University, dedicada aos negros,
com a intenção de poder com seu trabalho cursar medicina. A crise
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aprofundou-se e ele foi dispensado poucos meses depois. Sem desanimar,
em 1930, conseguiu emprego de Assistente de Laboratório na Vanderbilt
University. Lá conheceu o Dr. Alfred Blalock, com o qual trabalharia pelos
próximos 34 anos. O relacionamento foi proveitoso para ambos e para a
humanidade, mas também complicado e contraditório, pois Thomas era negro e sem titulação e o Dr. Blalock, branco e chefe do Serviço de Cirurgia
Cardíaca na Universidade. Blalock o defendia junto aos seus superiores, mas
tinha limites na sua tolerância, principalmente em relação ao reconhecimento acadêmico e à interação social fora do trabalho.
Vivien Thomas trabalhava com afinco em sua nova função como
Técnico de um Laboratório Experimental, tentando superar a frustração de
não ter realizado seu sonho de tornar-se médico. Isto seria para ele e para sua
comunidade negra uma resposta ao preconceito reinante naquela sociedade
em que imperava a segregação racial de infeliz memória. Esse odioso processo só seria mitigado lentamente. Vale lembrar que Martin Luther King,
pastor e ativista político estadunidense, Prêmio Nobel da Paz em 1964, foi
assassinado em Menphis, no Estado de Tennessee, em 1965! Ecoam ainda
fortes suas palavras “I have A Dream (Eu tenho Um Sonho)”, que talvez
ainda não tenham se materializado, mesmo na época em que vivemos. Nesse
ambiente, trabalhavam, lado a lado, Thomas, o técnico, e Blalock, o cirurgião, que amargava uma espécie de “exílio” na pequena Nashville, no citado
Estado do Tennessee. Auxiliado pelo gênio criativo e pela inata capacidade
cirúrgica de Vivien, Blalock desenvolveu pesquisas cujos resultados logo
transpuseram as fronteiras do seu Estado, dando-lhe notoriedade nacional.
O reconhecimento culminou com o convite feito em 1941 para que ele voltasse para a Universidade Johns Hopkins, de onde de certa forma havia sido
“banido” anos antes. A oferta era irrecusável, pois iria ocupar o cargo de
Chefe do Departamento de Cirurgia daquela famosa instituição. A única exigência que fez é que pudesse levar consigo seu companheiro de pesquisas, o
afroamericano Vivien Thomas.
Vivien Thomas aceitou com relutância sua transferência para
Baltimore para trabalhar com Alfred Blalock, na Johns Hopkins University.
Sua família fazia-lhe advertências de que ele iria defrontar-se com maiores
preconceitos numa cidade grande e numa instituição que só aceitava negros
para trabalhos braçais. Naquela época, Vivien estava casado e tinha um filho, o que aumentava sua responsabilidade. Porém o desejo de fazer pesquisa e continuar a praticar cirurgia, mesmo que só em animais, foi mais forte e
ele cedeu aos apelos de Blalock. Thomas, sua esposa Clara e seu pequenino
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filho chegaram a Baltimore em junho de 1941. Tiveram enorme dificuldade
para encontrar uma moradia, vítimas do preconceito e dos seus poucos recursos econômicos. Se na cidade o racismo era forte, na Universidade manifestava-se com mais intensidade. Os negros que lá trabalhavam eram zeladores, porteiros, guardas ou faxineiros. Imaginem, de repente, defrontar-se
com um afrodescendente vindo do interior com a pretensão de ser um Técnico do Laboratório de Cirurgia Experimental e, eventualmente, passar a
ensinar aos alunos da Hopkins técnicas que eles nem imaginavam. Jamais
deixaram-no entrar pela porta da frente do Hospital e, quando cruzavam
com ele pelos corredores vestindo seu avental branco de “cirurgião de animais”, viravam-lhe o rosto para não cumprimentá-lo. Mesmo sob essa forte
pressão, recebendo salário igual ao dos faxineiros, sua vontade foi maior que
as dificuldades. Em dois anos de trabalho, ele operou mais de 200 cães,
buscando a solução para o tratamento das crianças azuis.
No dia 29 de novembro de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial,
enquanto o conflito fazia milhares de vítimas, matando jovens soldados e
grandes massas da hígida população civil, em contraponto, uma equipe de
médicos lutava para salvar a vida de crianças que tinham nascido com graves defeitos no coração. A guerra culminou com a chacina de Hiroshima e
Nagazaki, pelo uso impensável da energia atômica, destruindo as duas cidades japonesas e milhares de seus habitantes, levando a sofrimento desumano
os poucos que sobreviveram para contar a história. À mesma época, no Hospital Johns Hopkins, realizava-se a aventura de operar a primeira criança
azul, para aliviar-lhe os sintomas e prolongar-lhe a vida. O ambiente era
tenso e todos temiam pelo insucesso, que certamente atrasaria por muitos
anos a evolução do tratamento desses infelizes seres humanos. Vivien Thomas,
um técnico negro, havia operado centenas de cães com a técnica que deveria
ser empregada na criança, enquanto o Dr. Alfred Blalock, que faria a operação, somente em uma ocasião o havia auxiliado a realizar o procedimento
experimental. Com seu espírito criativo e ciente de seu papel pioneiro, Thomas
adaptou os toscos instrumentos que havia desenvolvido para operar os cães
para serem usados nas operações em seres humanos. No dia da operação, a
sala de cirurgia estava cheia dos mais eminentes professores e auxiliares graduados, ansiosos para participar do histórico acontecimento. O Dr. Blalock
lentamente abriu o tórax da criancinha e chegou à área onde deveria realizar
a anastomose da artéria subclávia com a artéria pulmonar. Nesse ponto, ele
parou amedrontado, pois não se sentia seguro para prosseguir. Pediu à enfermeira-chefe que chamasse Vivien. Pelo preconceito contra os negros, Thomas
vivia confinado no laboratório de pesquisas, proibido de frequentar as de203
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pendências do hospital, inclusive o centro cirúrgico. O hospital contava com
um sistema de comunicação, pelo qual os médicos eram anunciados para os
atendimentos de emergência. A facilidade era exclusiva para os mais graduados, e pensar em anunciar um afrodescendente pelos alto-falantes seria uma
heresia. Contrariando as regras, Blalock exigiu que Vivien fosse anunciado.
A enfermeira negou-se. Em um ato de coragem, ou desespero, o cirurgião
abandonou o campo operatório, tomou o microfone e chamou com ênfase
Thomas para que viesse com urgência ao centro cirúrgico. Todos ficaram
pasmos, aquilo jamais havia ocorrido! Vivien chegou rapidamente, vestiu-se
de cirurgião sob os olhares incrédulos dos circunstantes e, colado a Blalock,
orientou-o passo a passo sobre como deveria proceder. Existem dúvidas sobre o episódio, pois se conta que foi Vivien quem realizou a anastomose,
fato que, contudo, não poderia passar para a história.
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PIONEIROS
Vivien Thomas, um afroamericano pobre, foi técnico de laboratório
experimental, que acabou por receber o título de “Doutor Honoris Causa” e
a honra de ter seu nome estampado em um dos principais edifícios da Universidade Johns Hopkins, uma das mais importantes dos EUA.
Na verdade, o que estou escrevendo são crônicas baseadas na história da cirurgia cardíaca, da qual tive a honra de viver uma parte. Desta forma, sem juízo de valor, continuarei contando os fatos que permitiram o desenvolvimento desta nova especialidade cirúrgica a partir da metade do século passado. As décadas que se seguiram à II Guerra Mundial produziram
avanços fenomenais no diagnóstico e tratamento das mais variadas doenças,
mas nenhuma foi mais espetacular que o desenvolvimento da Cirurgia Cardíaca. O período de 1950 até hoje tem sido denominado, apropriadamente, a
era de ouro da cardiologia.
Um importante responsável pelo início deste processo foi o cirurgião
e cientista canadense Dr. Wilfred Bigelow, carinhosamente chamado “Dr.Bill”.
No seu tempo de Residência em Cirurgia, ao ter que amputar os dedos congelados de um jovem, começou a interessar-se pela hipotermia. Servindo
como cirurgião em uma fria região do Canadá, durante a II Guerra Mundial,
ele, ao contrário do pensamento comum de que o frio sempre destruiria os
tecidos, imaginou que poderia transformá-lo em um aliado da medicina. São
palavras dele durante uma homenagem que recebeu pela sua grande descoberta: “Eu estava interessado em resfriar os membros dos acidentados que
haviam sofrido interrupção da circulação sanguínea, de tal forma que fosse
possível mantê-los viáveis até que a circulação fosse restaurada. Um dia
acordei e pensei, porque não esfriar o corpo como um todo?”. Bigelow deixou os colegas sem fala quando apresentou seus resultados experimentais no
Congresso da American Surgical Association, em 1950, mostrando que, com
a hipotermia corpórea, seria evitada a deterioração de todos os órgãos, inclusive o sensível cérebro, mesmo com a parada total da circulação por um
período de 15 a 20 minutos. Estava criado o conceito de hipotermia sistêmica,
que possibilitaria a primeira operação cardíaca a céu aberto tempos depois.
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ENERGIA ELÉTRICA
X
ENERGIA PSÍQUICA
Já escrevi sobre Wilfred Bigelow, um cirurgião e cientista a quem devemos a descoberta da hipotermia para salvar órgãos e vidas. Seu conceito pioneiro persiste até hoje, válido não só para a Cirurgia Cardíaca, como outros
campos da Medicina, como a preservação de órgãos para os transplantes, o
tratamento de traumatismos do sistema nervoso central e tratamento de graves infecções sistêmicas. Nestes pacientes, a temperatura é mantida abaixo do
normal, evitando gasto da energia necessária para a recuperação dos órgãos ou
do organismo como um todo. Bigelow, porém, não ficou só na criação desse
conceito. Convidado para uma palestra quando tinha mais de 80 anos, mostrou todo seu caráter, sua grande cultura e sua fé. Assim ele começou: “Agradeço a oportunidade de falar-lhes com a experiência que só os anos trazem.
Peço-lhes que me acompanhem por um tempo, para poder compartilhar com
vocês alguns pensamentos que permeiam minha mente”.
Gostaria de lembrar-lhes, em primeiro lugar, o limite lastimável do
nosso conhecimento. Apesar da engenharia genética, do genoma humano
desvendado e tantos outros avanços, não sabemos ainda as causas de quatro
das principais doenças que acometem a humanidade.
Não sabemos a causa do câncer. Seu tratamento embora tenha evoluído, ainda tem muito de empírico, é como usar bomba atômica para matar mosquitos. As doses de quimioterápicos e de radiações ionizantes são
tão brutais para tentar debelar um tumor que nem sempre o organismo as
suporta ou o faz com incalculável sofrimento e sequelas incapacitantes. As
operações para os tumores malignos são mutilantes e o resultado deixa
sempre muito a desejar.
As doenças mentais representam um capítulo doloroso enfrentado por
médicos, psicólogos e todos que tentam trazer à realidade aqueles que perderam a capacidade de discernir entre o sonho, o pesadelo e a realidade. Fomos
agraciados com a descoberta de muitos medicamentos ativos no controle das
funções cerebrais e cognitivas, mas estamos longe da cura destes infelizes.
Por incrível que pareça, a artrite, diagnosticada mesmo nos fósseis
mais antigos, continua a desafiar os médicos, pois seu tratamento ainda é
paliativo e dificilmente consegue-se a remissão dos dolorosos sintomas que
a acompanham. Os medicamentos utilizados no seu controle ainda são experimentais e, muitas vezes, causam mais malefícios que benefícios. Recentemente, um deles foi banido, pois destruía as válvulas do coração.
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DOENÇAS CARDIOVASCULARES
A doenças do coração são a causa da morte de mais de 35% das
pessoas: uma verdadeira “epidemia” neste campo obscuro do atual século.
Apesar do conhecimento dos fatores de risco, desde os estudos
epidemiológicos pioneiros de Framinghan, em 1948, demonstrando que o
fumo, diabetes, obesidade, hipertensão, vida sedentária, herança genética
e estresse são fatores desencadeantes da epidemia, ainda não foi possível
debelar as doenças do coração e das artérias. A aterosclerose e suas manifestações são alvos de pesquisas e investimentos de alta monta, que buscam diminuir sua ação arrasadora, ao retirar do convívio das famílias e da
sociedade não só as pessoas idosas. Matam também pais de família jovens,
deixando, muitas vezes, sem amparo, esposas, filhos e demais dependentes. Do ponto de vista econômico, a morte de profissionais altamente preparados para contribuir com os conhecimentos adquiridos ao longo de anos
de estudo e experiência deixa órfãos organizações governamentais, indústrias, centros de pesquisa, redes comerciais e setores de entretenimento,
para citar apenas alguns.
Medicamentos novos e campanhas de esclarecimento ainda não surtiram os efeitos desejados. Continuamos morrendo de infarto e de derrame
cerebral, apesar de tudo.
Quanto aos medicamentos, apesar do avanço tecnológico e da ampliação dos conhecimentos da biologia, da genética e campos afins, a maior
parte deles foi descoberta na era pré-científica. Cito alguns para reavivar a
memória dos leitores:
Aspirina - na antiga China, existia uma árvore, que continua lá existindo, chamada “Salix Alba”. De suas folhas era feito um chá com poderes
antitérmicos e anti-inflamatórios. Descobriu-se que o princípio ativo deste
chá era o Ácido Acetil Salicílico (AAS). O laboratório alemão Bayer sintetizou quimicamente o componente, juntou-lhe um pouco de cafeína, presente
no café, e deu-lhe o nome da “Cafiaspirina”. Fazia alarde de suas qualidades,
anunciando-o assim: “A fama proclama o melhor contra a febre e todas as
dores, é o remédio de confiança!”.
Hoje, a aspirina é um dos medicamentos de mais amplo emprego no
mundo. Provou-se exaustivamente que previne infartos e acidentes vasculares
cerebrais pela sua ação de inibir a ciclo-oxigenase, agente facilitador da for207
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mação de trombos no sistema vascular. O médico que não prescrever aspirina para um paciente que tenha tido infarto do miocárdio ou que corra risco
de isquemia cerebral pode ser processado por negligência. O melhor disso
tudo é que é um dos remédios mais baratos dentro do armamentário disponível no receituário médico.
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MEDICAMENTOS
E
VACINAS
Escrever sobre medicamentos e vacinas é uma tarefa com toques de
magia e sabedoria popular. Como vimos, a Aspirina era usada na China antiga como antitérmico e anti-inflamatório. Quem viveu no século passado,
quando ainda os medicamentos caseiros eram muito empregados, haverão
de lembrar-se do Chá de Sabugueiro que as mães preparavam para aliviar a
febre e diminuir o sofrimento das crianças com Sarampo. As folhas do nosso
sabugueiro, um modesto arbusto, têm as mesmas propriedades daquelas da
Salix Alba, ambas precursoras da Aspirina. Pelas pesquisas avançadas, foi
possível debelar o Sarampo, responsável pela morte de muitas crianças em
consequência das complicações que o acompanhavam. A solução decorreu
dos princípios cristalizados por Edward Jenner, em 1796, que desenvolveu a
vacina contra a Varíola. A partir de então, passou-se a usar os próprios vírus
causadores das doenças, na produção de vacinas, para imunizar a maior parte da população do mundo. É impossível escrever sobre vacinas sem descrever a saga que representou o combate às epidemias decorrentes do Sarampo,
Varíola, Varicela e algumas outras doenças contagiosas, que mataram 90%
da população do Continente Americano após a sua descoberta por Colombo.
Essas doenças derrotaram e destruíram as civilizações Asteca e Inca
com muito mais voracidade que a carnificina provocada pelos sanguinários
espanhóis Hernán Cortés e Francisco Pizarro. A temida Varíola já era conhecida desde tempos imemoráveis, tendo sido responsável por epidemias mortíferas: na Índia (onde era adorada a Deusa da Varíola, Sitala); na China, onde
destruiu completamente o Império Han; na Grécia, onde foi responsável pela
morte misteriosa e catastrófica de um terço da população de Atenas no ano
430 a.C.; no Império Romano, que não ficou imune ao desastre provocado por
este vírus maligno, que nos séculos II e III matou grande parte da população.
É interessante, contudo, insistirmos que grande parte dos conhecimentos para combater as doenças foram descritos na era pré-científica, baseados em arguta observação de pessoas especiais. Imaginem que no século18, a Sra. Mary Montagu, esposa de um importante Embaixador no Império Otomano, trouxe para a Inglaterra uma técnica que já era conhecida na
China e no Oriente Médio para “vacinar” as crianças contra a Varíola. Recolhia-se com algodão pus das pústulas de doentes acometidos de Varíola, introduzindo-o a seguir em uma pequena ferida feita com um instrumento
cortante nas pessoas a serem “imunizadas”. A mortalidade era de apenas
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1%, muito menor do que os 40% correntes à época, na população infectada.
A resistência contra a medida, amplificada pela ignorância, era violenta. Para
dar uma demonstração que o procedimento era seguro e útil, foi necessário
inocular publicamente a família Real inglesa.
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ERA CIENTÍFICA
DAS
VACINAS
A era científica das vacinas começou somente em 1796, quando o
médico inglês Edward Jenner descobriu a “vaccinia”, uma poderosa arma contra
as doenças do homem e também de animais. Jenner reparou que as mulheres
que tiravam leite de vacas não apanhavam a mortal Varíola. Descobriu que a
imunidade devia-se à infecção não perigosa provocada por uma variante do
vírus da Varíola. Esta doença benigna chamava-se “Cowpox” (Vaccinia) ou
Varíola das Vacas. A denominação “Vaccinia” originou-se da palavra em latim
“Vacca” e legou-nos o nome Vacina dos dias atuais. Ele propagou a prática de
usar inoculações deste vírus na população. As pessoas tinham uma pequena
reação ao vírus da Vaccinia e ficavam definitivamente imunes à Varíola. Foi a
primeira vacina criada, abrindo um campo novo da pesquisa e tratamento de
graves doenças responsáveis por epidemias mortais.
Lembro aqui, como exemplo, apenas uma vacina, que certamente todos conhecem e que salvou da morte e do sofrimento dezenas de milhões de
seres humanos. Trata-se da vacina contra a paralisia infantil, um flagelo que no
passado matou e deformou lindas crianças que se tornavam aleijões pelo resto
de suas vidas. Em 1955, Jonas Salk, um médico americano, usou vírus mortos
da Poliomielite (Paralisia Infantil) para combater a doença. A vacina era eficaz
na prevenção da maioria das complicações da pólio, mas não prevenia a infecção inicial de acontecer. Só em 1961, um outro médico de origem Russa,
radicado nos EUA, o Dr. Albert B. Sabin, corajosamente usou, por via oral,
vírus vivos atenuados da doença para criar a gota que salva.
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PENICILINA
Tenho usado fatos históricos para demonstrar a importância do espírito de observação arguto, associado ao conhecimento para dominar as doenças. Um exemplo emblemático é representado pelo cientista Sir Alexander
Fleming, filho de um pobre granjeiro na Inglaterra. Por ter salvado o filho de
um nobre do afogamento, o pai de Fleming foi presenteado com o pagamento dos estudos para seu filho. Alexander estudou na Faculdade de Medicina
do Hospital Saint Mary, em Londres, uma das melhores da Inglaterra. Formado, Fleming dedicou-se à pesquisa. No laboratório em que trabalhava,
havia um aviso que nunca chamou a atenção dos outros pesquisadores. Dizia: “Atenção, não deixem as culturas de bactérias contaminarem-se com
fungos, do contrário elas morrem”. Fleming intuiu que, se os fungos matavam bactérias, ele poderia administrar as substâncias neles presentes para
eliminar as bactérias causadoras das infecções dos pacientes. Estava descoberta a Penicilina, produto do fungo “Pennicilium Notatum”, que cresce até
no bolor do pão. A descoberta representou o nascimento de uma “nova medicina” baseada nos antibióticos, cuja importância é desnecessário salientar.
Nesta história, existe ainda um fato insólito reservado pelo destino.
O menino salvo do afogamento pelo pai de Fleming viria a ser Sir Winston
Churchill, o grande líder das Nações Unidas na Segunda Guerra Mundial.
Durante esta, Churchill teve pneumonia. Salvou-o a Penicilina, descoberta
pelo filho de seu primeiro salvador.
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INFARTO
DO
MIOCÁRDIO
As doenças cardiovasculares, particularmente o Infarto do Miocárdio,
emergiram no século passado como uma verdadeira pandemia. A diminuição
das causas de morte por doenças infecciosas e parasitárias e o envelhecimento
progressivo da população tiveram participação nesse processo iniciado no
mundo ocidental industrializado. Expandiu-se, contudo, por todo o globo, atingindo rapidamente os países menos desenvolvidos. Em artigo publicado neste
mês pela Sahlgrenska University da Suécia, tomamos ciência de uma informação inquietante. O Infarto do Miocárdio diminuiu nos países desenvolvidos
2% ao ano, entre 1970 e 2000, enquanto nos países pobres vem aumentando
assustadoramente, esperando-se um incremento de 80% da sua prevalência
nos próximos 15 anos. Atribui-se a diminuição nos países ricos como decorrência das campanhas de prevenção que combatem de forma agressiva os fatores de risco: fumo, hipertensão, diabetes, aumento das gorduras no sangue,
obesidade, sedentarismo, abuso de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, estresse,
etc. Influíram também para a melhor sobrevida dos pacientes o acesso a tratamentos secundários, como cirurgias de revascularização e outros procedimentos. Cristalizados esses conhecimentos, um fato inusitado tem surpreendido os
médicos americanos: apesar da diminuição dos casos de Infarto na população
mais idosa, a doença tem aumentado nos mais jovens.
Deve-se seguramente à epidemia de obesidade que atinge aquele país.
Infelizmente, o mesmo está acontecendo no Brasil. O sobrepeso da população
jovem também aqui é uma realidade. Prevenir é a solução!
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EVOLUÇÃO
DA
CIRURGIA CARDÍACA
A História da Cirurgia Cardíaca é fascinante, pois sua evolução é
bastante recente e contínua.
Em 1902, Sherman postulou diante das primeiras tentativas de
suturar feridas do coração: “a distância para se atingir este órgão não é
maior que uma polegada, mas foram necessários 2.400 anos para percorrer
este caminho”. A Cirurgia Cardíaca, em sua versão atual, só foi possível a
partir de maio de 1953, quando John Gibbon operou o primeiro paciente
com Circulação Extracorpórea, substituindo o coração por uma bomba e
os pulmões por um oxigenador artificial, abriu o coração parado e corrigiu
um defeito intracardíaco.
Nestes poucos mais de 50 anos, o desenvolvimento foi fantástico.
Superou-se ano a ano, tornando as operações seguras e efetivas. Recentemente, novo desafio apresenta-se aos cirurgiões cardíacos. Realizar as intervenções com pequenas incisões, para que os pacientes não sejam drasticamente invadidos ao corrigir os defeitos do coração doente. O novo capítulo
recebe o nome de Cirurgia Cardíaca Minimamente Invasiva, Vídeo Assistida. Graças ao advento do CCD (Color-Capture Device), o sensor de imagens
presente nas novas câmaras de fotografia ou vídeo, foi possível dispor de
sondas finíssimas que transmitem imagens do interior do corpo e dos órgãos.
Usando este incrível avanço técnico, é possível operar os pacientes não mais
olhando para dentro das cavidades e, sim, para um monitor com imagens
nítidas e muito ampliadas. As incisões são pequenas, as complicações, mínimas e o sofrimento do paciente, extremamente reduzido.
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CORAÇÃO
Como sabemos, a aterosclerose provoca entupimento das artérias
coronárias. Quando isso ocorre, as consequências podem ir de uma simples angina estável até o infarto do miocárdio. Com a mudança dos hábitos alimentares, a
vida sedentária e estressada ao lado do envelhecimento da população, as doenças cardiovasculares são hoje a principal causa de morte no planeta.
Com o advento da cinecoronariografia, em 1968, foi possível ver os
entupimentos em pacientes vivos. Em seguida, iniciou-se o tratamento das
lesões, com as pontes de safena e os enxertos de artéria mamária. Nenhuma
operação foi mais estudada que essa. Os resultados consistentes salvaram e
continuam salvando uma imensidão de vidas.
Em 1977, uma técnica menos invasiva, usando um balão inflável na
ponta de um cateter, possibilitou dilatar as lesões. Os resultados foram precários. Em 1986, para evitar as reobstruções, criaram-se molas (Stents) a serem
colocadas nos pontos estreitados das coronárias. Os problemas continuaram.
Desenvolveram-se, então, os Stents recobertos com medicamentos.
Os resultados ainda estão em avaliação, mas parecem não oferecer vantagens sobre os antigos e podem provocar morte súbita. A boa notícia é que
um estudo recente chamado “COURAGE” demonstrou que o tratamento clínico, com remédios, dá o mesmo resultado que os Stents. As operações continuam com seu lugar garantido para os pacientes com angina intratável, diabetes, obstruções de três artérias ou mais, e para os doentes que, pelas obstruções, tiveram alterações das válvulas ou dos músculos cardíacos.
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CIRURGIÕES INATOS
Já contei a história de Vivien Thomas, um negro sem qualquer formação acadêmica que, trabalhando com Alfred Blalock, na Johns Hopkins
University, foi protagonista de um passo gigantesco na implantação da Cirurgia Cardíaca em novembro de 1944. Outro feito memorável com a participação do também negro Hamilton Naki, jardineiro da University of Cape
Town, na África do Sul, ocorreria muitos anos depois. Em dezembro de 1967,
Christiaan Barnard realiza o primeiro transplante bem-sucedido de coração
em um ser humano. A humanidade ficou atônita com a possibilidade de ver
bater no peito de um paciente terminal o coração perfeito de um caridoso
doador. Estava inaugurada mais uma etapa da saga da cirurgia cardíaca.
O inusitado desta conquista é que, como ocorrera com Vivien
Thomas, a participação de Hamilton Naki foi fundamental para que o coração a ser transplantado fosse retirado da doadora Denise Darvall com a necessária técnica. Naki tornara-se exímio cirurgião, como auxiliar de Barnard,
no longo preparo experimental no Hospital Groote Schuur. Hamilton durante a vida foi promovido de jardineiro a preparador de laboratório. Pela sua
habilidade cirúrgica, passou de limpador das baias de porcos a instrutor de
alunos e médicos nas operações em animais e, finalmente, um dos protagonistas de uma das maiores conquistas da cirurgia no século 20.
O cirurgião já nasce cirurgião, a escola apenas evidencia suas qualidades.
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TRISTEZA
Não costumo comentar assuntos que inundam a mídia, pois é muito
difícil concorrer com articulistas de renome que informam com precisão e
estilo incomparáveis. Não resisto, contudo, em deixar o testemunho da minha tristeza pelo acidente com a aeronave da TAM, que nos envolveu em
uma enorme comoção. Tinha razão Martin Luther King ao dizer que estamos
todos envolvidos no mesmo “garment” ou, traduzindo literalmente, no mesmo vestuário ou envólucro. Sofremos com as quase duzentas famílias que
choram seus pais, mães, filhos, filhas, maridos, esposas, seus entes queridos,
amigos e mesmo desconhecidos, deixando-nos saudades, angústias e medos.
A tragédia atingiu-nos no momento em que festejávamos os tão sonhados
“XV Jogos Pan-Americanos Rio 2007” a nos dar um pouco de alegria em
meio às atribulações do difícil dia a dia que vivemos. Impossível não chorar
pelas vidas perdidas e pelos dramas desencadeados. Lembro, porém, que
nestes momentos de reflexão deveríamos tornar-nos mais sensíveis e participar não só da dor por este desastre, mas estarrecidos ao sabermos que morrem todos os dias por acidentes de trânsito 150 pessoas, quase um avião
como este, sem nos causar espanto! Morrem, ainda, por dia, neste país, por
doenças 2.600 pessoas, muitas delas por falta de atendimento médico digno,
negado por um sistema de saúde que emprega, incluindo SUS e Convênios,
apenas R$ 522,00 por habitante por ano, enquanto nos EUA empregam R$
11.000,00, ou seja, 21 vezes mais. Talvez tenhamos motivos para ficar tristes e chorar todos os dias!
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A MORTE
DE UM
SALVADOR
DE
VIDAS
No dia 30 de julho, enquanto proferia uma Conferência no Congresso
Brasileiro de Cardiologia de 2002, que se realizava no Rio de Janeiro, e onde,
com outros colegas, discutíamos as indicações da cirurgia das pontes de safena,
fomos, de repente, surpreendidos por uma notícia que nos deixou pasmos.
Acabava de falecer o criador da técnica, seu principal divulgador, e que durante toda existência havia se dedicado de maneira integral a salvar vidas.
Toda morte nos leva a uma sensação de perda, mas as condições em que esta
ocorreu nos fizeram imediatamente repensar a vida e seus valores. Rene
Favaloro, um dos mais conceituados cirurgiões cardíacos do mundo, acabara
de se suicidar aos 77 anos de idade!
Não se tratava apenas de um cirurgião, era também um educador e
um Herói Nacional na Argentina, onde sempre procurou ser paradigma para
nós, pobres mortais que vivemos no Terceiro Mundo! De fato, este homem,
que nasceu em 1924, em La Plata, capital da província de Buenos Aires, na
Argentina, formou-se em primeiro lugar na Universidade de mesmo nome,
em 1949, e, logo em seguida, mudou-se para uma pequenina cidade perdida
nos pampas, onde exerceu medicina para os pobres e desvalidos que sofriam
naqueles ermos confins da civilização. Talvez ali tenha adquirido seu amor
pelas causas sociais que defendeu durante toda a vida, representando um
exemplo do médico comprometido com o meio que o cerca, e não fechado
nas redomas que protegem aqueles que não querem ver e participar das misérias humanas. No início dos anos 60, decidiu aperfeiçoar-se em cirurgia
cardíaca, que era incipiente em seu país àquela época. Obteve uma bolsa de
estudos para dedicar-se à especialidade no Departamento de Cirurgia Torácica
e Cardiovascular da “Cleaveland Clinic”, hoje muito famosa, mas não tanto
naqueles tempos. Sob orientação do prof. Donald Effler, deu seus primeiros
passos neste campo ainda inexplorado da medicina e da cirurgia. Teve a
sorte de conviver, logo de início, com um dos maiores nomes da cardiologia
contemporânea, o prof. Mason Sones, que foi o pai da cinecoronariografia.
O Dr. Sones teve a “coragem” de, em 1958, injetar uma substância contendo iodo e, portanto, opaca aos Raios X, diretamente nas artérias coronárias
em pessoas vivas, portadoras de angina de peito. Isso antes só havia sido
realizado em cadáveres. Sendo possível diagnosticar as obstruções das artérias coronárias antes dos mortais infartos, tornava-se imperioso desenvolver
uma técnica que possibilitasse reconstruir aquilo que a natureza adversa218
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mente havia destruído. Muitos professores e pesquisadores perseguiam a idéia
de revascularizar o miocárdio carente de sangue em decorrência das doenças
coronarianas.
Coube ao humilde argentino, o médico dos pampas, a glória de ter realizado a primeira ponte de safena em 1967. Tratava-se de uma mulher de 51
anos de idade, que ficou imediatamente livre dos sintomas e do risco de morte
iminente que a perseguia. Estava aberto um dos maiores capítulos da cirurgia
em todos os tempos. Repito, um dos maiores capítulos da cirurgia e não só da
cirurgia cardíaca. Desde 1967, centenas de milhares de pacientes tiveram suas
vidas prolongadas e seus sintomas aliviados por esta intervenção, conhecida
como “pontes de safena”, que foi, na história da medicina, a operação realizada em maior número de pessoas, e também a mais estudada quanto aos seus
resultados e implicações sociais, econômicas e técnicas.
Rene Favaloro poderia ter permanecido na “Cleaveland Clinic”, cercado de glórias e longe dos pobres que tinha aprendido a amar e a respeitar. Não fez isso. Em 1971, retornou à Argentina com o intuito patriótico
de devolver para sua nação o que dela havia recebido em instrução e carinho, na forma de assistência indiscriminada a pobres e ricos, orientado
apenas pelo sublime desejo de diminuir o sofrimento dos pacientes. Foi
assim que, em 1980, criou a “Fundação Favaloro”, entidade sem fins lucrativos, com um projeto arrojado que envolveu a construção de um Hospital dedicado a realização de Cirurgias Cardiovasculares e ao ensino da
especialidade em todos os seus níveis, desde a formação acadêmica completa até a instrução tecnológica indispensável nestes nossos países em
desenvolvimento. A instituição passou a ser um exemplo e um paradigma
para nós todos, carentes de centros onde possamos desenvolver toda nossa potencialidade. Por adversidade do destino, foi a instituição que o matou. Sem o necessário auxílio governamental e sem a piedosa colaboração
da sociedade, afundada na grave crise econômica por que passa o país
irmão, a “Fundação Favaloro” tornou-se inviável, acumulando dívidas que
ultrapassavam a casa do 40 milhões de dólares. O Herói implorou, apelou
para que não deixassem morrer seu sonho.
Não o atenderam, como ficou claro nos escritos que deixou justificando seu ato extremo, que foi consumado para tristeza de todos. Estamos
tristes pela perda irreparável, e pelo descaso das autoridades constituídas e
da própria sociedade, que não conseguem entender que somos um “todo” e
quando alguém sofre somos responsáveis. Conheci o prof. Favaloro logo
após seu retorno à Argentina, em 1971, quando passei alguns dias em seu
hospital em Buenos Aires. Ao contar-lhe que estávamos fazendo pontes de
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safena em Rio Preto, uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo (naquela época com cerca de 100 mil habitantes), desde o ano de 1970,
ficou entusiasmado e disse que se sentia feliz e recompensado pelos esforços
que havia realizado. Na ocasião, me foi possível conhecer não só o famoso
cirurgião mas também o cidadão Rene Favaloro, cheio de ideais, preocupado com o destino de nossos países, com sua perversa distribuição de renda.
Ele acreditava no ideário de que pessoas de bem teriam o poder de modificar
tal destino e seguiu essa filosofia durante toda sua produtiva existência. Talvez, aos 77 anos, tenha chegado à conclusão que esta luta é maior que nossas próprias forças.
Espero que sua morte possa servir de exemplo para os ímpios, que
não acreditam no bem e pensam que o mundo lhes pertence. Que repensem
suas atitudes e acreditem na possibilidade da construção de uma sociedade
melhor e mais justa. Amigo Rene, sua obra jamais será esquecida.
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Quarta Parte
Ideias e Opinões
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ORGULHO
DO
BRASIL
Em recente pronunciamento, o Presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, voltou a insistir no abismo que separa as classes mais
ricas daquelas mais pobres em nosso país. O interessante é que, durante sua
fala, ele acabou por omitir alguns dados que acabaram vindo a público quando foi publicado o seu discurso na íntegra pelo jornal Folha de São Paulo.
Um deles é um gráfico que mostra a distribuição de renda no País. O Produto Interno Bruto Brasileiro, PIB (soma de todas as riquezas geradas no País),
anda hoje pela casa dos 900 bilhões de reais. Essa riqueza é assim distribuída: 10%, ou seja, 90 bilhões, ficam com o 1% da população mais rica. Outros 10% ficam com os 50% dos brasileiros de baixa renda e, finalmente, 720
bilhões de reais concentram-se nos restantes 49% da nossa população. Estes
49% somam mais de 80 milhões de brasileiros, que se não são ricos, pobres
também não são. Basta dizer que têm uma renda “per capita” anual de cerca
de 9.000,00 reais, que os coloca em igualdade de condições com os habitantes dos países desenvolvidos, quando se considera o poder de compra do
real dentro do País. Não podemos fazer comparações em dólares, pois nossa
economia doméstica está, no momento, bastante desvinculada da forte moeda
americana. Basta dizer que um litro de óleo comestível custa apenas 0,80
reais, e que um quilo de carne sai por cerca de 3 ou 4 reais, preços muito
diferentes daqueles praticados em outras nações. Temos, contudo, que lamentar profundamente a parcela de mais de 80 milhões de pobres que lutam
todos os dias para pôr um prato de comida em sua mesa e, dos quais, cerca
de 30% são mesmo miseráveis. Isso constitui-se numa verdadeira vergonha
para um país que poderia ser muito mais justo se cada um de nós e, principalmente os nossos dirigentes, tivessem mais espírito cívico! As leis aqui só
valem para os mais fracos e o roubo institucionalizado e impune faz parte do
nosso cotidiano, impedindo que possamos melhorar a condição econômica e
social desta imensa parcela de nossos irmãos.
Mas não vivemos só de desgraças. Os 80 milhões que constituem a
classe média brasileira, embora sofrida, representa um enorme potencial de
produção e consumo que procurarei analisar aqui. Em um recente artigo
publicado na conceituada revista The Economist, assim se expressou o articulista: “Fazendo as reformas necessárias, o Brasil continuará sendo uma
das melhores opções para o capitalismo ocidental...”, além disso, continua:
“O Brasil estará entre as três maiores plataformas exportadoras do mundo
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nos primeiros quinze anos do século 21”. Quando se considera o poder de
compra do nosso país, surpreende-nos que ocupemos a 9a posição no mercado internacional, com o montante de mais de 2 trilhões de reais por ano.
Ainda mais animadora é a previsão de que, em 2001, ocuparemos o 5o lugar,
atrás apenas da poderosa Alemanha. Se atentarmos para alguns dados referentes ao mercado brasileiro, essas afirmativas tornam-se mais evidentes.
Vejamos o que nos diz o consultor Marins Filho, em recente conferência
para grandes empresários:
1 - Vendem-se, no Brasil, anualmente, 1,3 milhões de lavadoras de
roupas (82% mais do que no Canadá), representando o 4o mercado mundial;
2 - São consumidos aqui 96 milhões de litros de shampoo, 352% mais
do que no Canadá;
3 - Bebem-se 8 trilhões de litros de refrigerantes no País, constituino
do o 3 maior mercado mundial;
4 - Usam-se 64 mil toneladas de creme dental (456% mais que na
Itália);
5 - Somos o 5o maior mercado fonográfico do mundo, com a venda de
mais de 1,2 bilhões de CD sem contar aqueles “piratas”;
6 - É também surpreendente o mercado de livros no Brasil, com a
venda de 52 mil títulos por ano (12% maior que o mercado italiano);
7 - Comem-se aqui 682 mil toneladas de biscoito, constituindo o 2o
maior mercado do mundo neste setor da alimentação;
8 - Vendem-se 3 milhões de geladeiras , colocando-nos no 3o lugar no
ranking mundial;
9 - Não se assustem, mas somos também o 2o maior mercado mundial em jatos executivos e em helicópteros;
10 - Para terminar, sem pretender ter apresentado todo nosso potencial, fico satisfeito em dizer que ocupamos o 2o lugar mundial nas vendas de
fornos de micro-ondas, aparelhos de fax e telefones celulares. Além disso,
contamos hoje com mais de 4 milhões de computadores ligados à Internet.
Na realidade, contamos com 28 milhões de famílias que movimentam de forma muito eficiente o País, representando uma população maior
que aquela do Canadá e da França juntos. Do ponto de vista econômico, o
nosso PIB constitui praticamente 50% das riquezas de toda a América Latina, que inclui Argentina, Venezuela, Chile, México, etc. Para termos uma
noção comparativa do nosso potencial, é importante saber que o PIB da
Argentina é igual ao do interior do Estado de São Paulo. Aquele do Chile é
igual ao da cidade de Campinas, e o do Uruguai corresponde ao do bairro de
Santo Amaro em São Paulo. Apesar das turbulências da globalização e das
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manobras dos exploradores internacionais, o Brasil não vai “quebrar”, mas
se isso, por infelicidade, acontecer, o México quebra em 30 minutos, a Argentina, em 15 minutos, o Chile, em 5 minutos, e o Paraguai já terá sucumbido à avalanche! Temos que ter orgulho de nosso país como Nação líder
deste continente e saber que, com nosso trabalho e dedicação, seremos exemplo para o mundo quando resolvermos o problema dos cerca de 20 milhões
de miseráveis que dependem de nós e só de nós para saírem da condição
subumana a que estão submetidos. O Brasil já deixou de ser a nação do
futuro, tem posição definida no contexto que norteia a civilização do milênio que se aproxima. Basta para isso que eu, você e todos nós, tenhamos a
certeza de que isso é possível com honestidade e espírito cívico.
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PESQUISA
NO
BRASIL
Normalmente, imagina-se que o Brasil, infelizmente taxado como de
terceiro mundo, não se dedica à pesquisa científica, que representa fator fundamental para o desenvolvimento das nações. Isso não é verdade. Quando se
diz que a produção científica brasileira representa apenas 1,2% da pesquisa
que produz impacto internacional, pode-se imaginar que isso seja muito pouco, e realmente o é. Porém duas informações interessantes são frequentemente
sonegadas: 1 - O crescimento científico brasileiro, representado pelo número
de publicações aceitas e citadas nas melhores revistas do mundo, teve um
crescimento exponencial nas últimas duas décadas, só sendo suplantado pelo
da Coréia do Sul. Estamos com um aumento de publicações muito acima daquele demonstrado pelos países desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos;
2 - Quando se analisa a produção relativa ao montante de recursos empregados, o fato é ainda mais surpreendente, pois, para cada unidade monetária
empregada, a nossa produção em ciência suplanta, em muito, países como a
França, Alemanha e o Japão. Fica claro, portanto, que, apesar da oferta de
dinheiro para a ciência não ser grande, pela indisponibilidade de recursos, quando
estes existem e são empregados, produzem resultados altamente eficientes.
Demonstra-se assim a capacidade do cientista brasileiro, apto a gerar conhecimentos, mesmo não contando com o apoio que deveria merecer dos governos,
que geralmente estão alienados da importância de aumentar a capacidade
resolutiva de seus pesquisadores. Recentemente, em companhia de vários professores da nossa Faculdade de Medicina, participei do 8º Encontro de PósGraduação em Ensino Médico, realizado em Belo Horizonte. Estamos comparecendo a esses conclaves desde seu início, e não pudemos deixar de perceber o amadurecimento e as conquistas que a Pós-Graduação vem atingindo
rapidamente. Há poucos anos, formávamos apenas 800 doutores por ano. Hoje,
formam-se mais de 4.000. Esse contingente de professores, preparados não
apenas para ensinar mas também e principalmente para pesquisar, representa
uma massa de cérebros pensantes que, por certo, darão em pouco tempo muitos frutos positivos. Estarão alavancando o desenvolvimento tecnológico de
que somos ainda carentes, e que representará a nossa independência nesse
importante campo, e a conquista de um lugar digno no concerto das nações
mais desenvolvidas do planeta.
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Quero destacar aqui a atuação de nossa cidade nesse processo, e a
possibilidade que se vislumbra de transformar Rio Preto num centro de difusão de cultura e progresso. Essa realidade surgirá pela implementação de
centros de excelência para a formação de profissionais nas mais diversas
áreas de atuação, e também para a criação de um parque de pesquisa que
produza conhecimentos, tanto no âmbito da ciência pura como naquele da
ciência aplicada. Esse foi o modelo aplicado na Coréia do Sul, que rapidamente vem conquistando o progresso tecnológico já citado e por nós almejado. Temos bons exemplos aqui na cidade, como o Instituto de Biociências
(Ibilce) que há muitas décadas vem formando professores, matemáticos,
engenheiros, zoólogos, analistas de sistemas, geólogos, etc., e, principalmente,
cientistas capazes de transformar o ambiente em que vivem pela sua atuação em campos avançados do pensamento humano. Na Faculdade de Medicina de Rio Preto (FAMERP), segue-se o mesmo caminho. Pelo esforço e
dedicação de muitos abnegados professores e dirigentes, a entidade vem rapidamente se transformando não apenas em um centro de ensino e assistência mas também em uma Instituição de Pesquisa. Esta vem atuando com
uma tal qualidade que, como pudemos comprovar no Encontro de Belo
Horizonte, instantaneamente passa a rivalizar-se com as melhores do País.
Nos últimos dois anos, foram defendidas mais de 120 Dissertações de
Mestrado e Teses de Doutorado, sempre com um tal nível científico que
surpreende os examinadores mais exigentes, daqui ou de fora, que são convidados para participar das Bancas Examinadoras. Acredito que é assim que se
faz o progresso. A partir da observação armada pelo conhecimento são criadas as soluções para os problemas do mundo moderno em que vivemos,
trazendo novas tecnologias, empregos, bem-estar social e harmonia. Espero
que outras instituições rio-pretenses sigam os exemplos, e possam também
ajudar Rio Preto e região a transformarem-se num polo de pesquisa e desenvolvimento compatível com a demanda deste milênio.
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PENSAMENTOS
Chama a minha atenção a mudança progressiva que o Brasil vem
sofrendo ao longo dos anos, perdendo a sua personalidade e deixando de
ter a identidade que lhe deveria ser própria. É muito difícil identificar o
ponto de ruptura, ou seja, quando deixamos de ser nós mesmos para tentar
imitar outros países que, por uma distorção de conceitos, são considerados
melhores que o nosso. Talvez isso tenha ocorrido desde a época do descobrimento, há 500 anos, quando se pensou em instalar aqui um país semelhante a Portugal, que já lutava por sobreviver dentro da avassaladora dominação inglesa. Ou o fato tenha se configurado com a vinda da Família
Real Portuguesa para o Brasil, fugindo de um Napoleão que dominava a
Europa. Mas, provavelmente, o ponto de não retorno acabou por acontecer quando o Vice-presidente da República, Jango Goulart, foi impedido
de continuar governando o País, em substituição a Jânio Quadros, que
havia sido eleito pela maioria esmagadora dos eleitores brasileiros e renunciado ao importantíssimo cargo. Alegava ele, na ocasião, pressão de forças
ocultas insuperáveis! Possivelmente o eram, pois, a partir da revolução de
1964, deixamos de ser a nação com que sonhávamos e passamos a ser a
nação dos sonhos dos estrangeiros. Não quero ser jacobinista e negar a
importância de todos os imigrantes que formaram esta Pátria, mesmo porque sou descendente direto de pai e mãe italianos. Trata-se, contudo, de
não nos curvarmos aos desejos de nações mais poderosas que querem fazer do Brasil uma colônia submissa aos seus desígnios e às suas vontades.
Usando termos como globalização e neoliberalismo, procuram enganar e
nos manter reféns de suas tecnologias e de seus capitais. Vai desaparecendo de forma rápida e devastadora o sentido de brasilidade, chegando-se ao
absurdo de termos vergonha de ser brasileiros!
O atual governo tem contribuído de forma muito especial para que
este estado de coisas possa acentuar-se e tornar-se irreversível. Deixamos de
ser o país simples e ameno, que sempre desejamos ser, para tornar-nos num
país violento, cheio de dívidas e absolutamente consumista. Despreza-se
toda iniciativa nacionalista como se essa atitude fosse um pecado capital.
Inunda-se o País com importações desnecessárias, muito úteis apenas para
os países tradicionalmente exportadores. Impedem de várias maneiras que
exportemos nossos produtos com barreiras alfandegárias ou não-alfandegárias. Explico melhor com algumas informações interessantes encontradas no
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excelente artigo publicado na Folha de São Paulo do dia 4 de julho de 2000,
escrito pelo competente Benjamin Steinbruch, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional e da Valepar (gigantes na produção de aço no País). Os
15 produtos que o Brasil mais exporta para os Estados Unidos pagam lá uma
tarifa média de importação de 45,6%. Os 15 produtos que os Estados Unidos mais exportam para o Brasil pagam, aqui, apenas 14,3% de tarifa alfandegária. Cada tonelada do nosso suco de laranja exportado para a América
do Norte paga lá 430 dólares de taxa de importação, tornando a venda do
nosso produto inviável naquele país, protegendo o laranjeiro americano e
asfixiando o pobre agricultor brasileiro. O açúcar, que tantos empregos poderia gerar no Brasil, paga uma taxa de 236% para entrar na terra do “tio
Sam”. O nosso aço, que é extremamente competitivo, poderia ser vendido
por 165 dólares a tonelada nos EUA, onde custa 250 dólares. Porém existe
uma cota ínfima para a entrada do aço brasileiro naquele mercado. Poderia
continuar citando um sem número de outras atrocidades do gênero, mas creio
que as explanadas já foram suficientes para mostrar como somos tratados
pelos países ricos!
Contudo, eu havia dito que existem também barreiras não-alfandegárias. Trata-se da exigência de uma suposta qualidade que os países “desenvolvidos” teimam em dizer que nós não temos. Aventure-se alguém a exportar uma válvula cardíaca ou um oxigenador de sangue para serem usados em
americanos, nos Estados Unidos, e sofrerá todo tipo de discriminação e desprezo. Isto, mesmo considerando que o produto é de alta qualidade, tem
registro do nosso Ministério da Saúde, ISO 9000 e é exportado para mais de
40 países. A questão é de puro protecionismo, visando manter a reserva de
um mercado em que uma válvula cardíaca é vendida por 3.500 dólares, enquanto a brasileira poderia ser fornecida por apenas 500 dólares, gerando
aqui uma grande quantidade de empregos qualificados. O inverso não é verdadeiro. “Eles” podem vender aqui o produto que quiserem, pelo preço que
bem entenderem, como acontece, e todos sabem, com os medicamentos e
outros insumos para a saúde, agricultura, etc. Geralmente não pagam impostos e outras taxas e quando o fazem, são pagamentos irrisórios. Esse é o
quadro que se nos apresenta e que só poderá ser revertido com nacionalismo
verdadeiro, quando tivermos orgulho das nossas gentes e de nossos produtos. Sejamos, pois, patriotas, dando valor ao que é aqui produzido, gerando
empregos e, como sempre insisto, promovendo o homem dentro de uma
sociedade justa e equilibrada. Em Rio Preto, inaugura-se, com a presença de
altas autoridades do governo, o Porto Seco. Vamos fazer valer os nossos
direitos, competindo em igualdade de condições com os países desenvolvidos, colocando o fruto do nosso trabalho nos mais distantes rincões do planeta, mostrando que Brasil, orgulhosamente, se escreve com S.
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CIDADANIA
Talvez muitos tenham insistido neste tema, inclusive eu mesmo,
mas não custa repeti-lo, para que, assim, estejamos definitivamente convencidos de que, sem a sua prática da maneira mais simples e pura, é impossível construir uma nação ou mesmo uma cidade. Ainda sob os ecos
das manifestações decorrentes da morte do jornalista Barbosa Lima Sobrinho, definido como reserva moral do País, ficamos inclinados a, respeitosamente, relembrarmos sua luta por um país independente, com personalidade própria e dono do seu destino. Lembro-me de um de seus escritos,
onde mostrava que, por falta absoluta de amor ao Brasil, nossos dirigentes
preferiram pedir dinheiro emprestado a nações ricas, em lugar de incentivar a poupança nacional e criar um círculo virtuoso de desenvolvimento,
progresso e bem-estar social.
Os governos, sob influências externas, vêm, desde a muito, criando
dívidas monstruosas para manter o País em um estado de letargia ditada pela
impossibilidade de ser independente. Isso ocorre por via dos juros
escorchantes que pagamos para as potências estrangeiras. São mais de 100
bilhões de dólares por ano, cerca de 200 bilhões de reais que representam
uma sangria permanente que nos mantém numa anemia quase mortal. Se
fizermos uma conta simples, ficaremos estarrecidos ao verificar que cada
brasileiro em atividade paga, por ano, cerca de 2.000 reais de juros para os
países ricos, retirando-nos a possibilidade de termos ensino, saúde e segurança, componentes indispensáveis para que o progresso e a distribuição de
renda tão decantada possam ser conseguidos. Nossos dirigentes preferiram
seguir a cartilha dos banqueiros internacionais, aumentando a nossa carga de
impostos, impedindo a poupança nacional e a criação de empresas genuinamente nacionais, possíveis formadoras de uma cidadania realmente brasileira. Preferiram vender as estatais, propositadamente mal administradas, para
o capital internacional, para que assim não possamos, de forma alguma, controlar o nosso destino, sendo obrigados a receber tecnologia pronta, sempre
com qualidade inferior e muitas vezes duvidosa na sua utilidade. Apenas
para citar alguns exemplos, lembro que já tivemos uma indústria cinematográfica genuína, que foi destruída pela invasão da cultura alienígena. Nossa
música, marca registrada da criatividade brasileira, vem sendo sufocada pelo
ritmo “bate estaca” de uma cultura que não prima pela emoção ou sensibilidade, colocando, acima de tudo, o dinheiro, a guerra e o comércio predatório.
Parece que o País foi tomado por um furacão que varreu seu modo de ser,
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substituindo-o por uma imitação que não está de acordo com sua personalidade ou seus recursos naturais. Somos como um trem carregado de mercadorias riquíssimas, levando passageiros cheios de vontade de progredirem e
serem felizes, mas que, infelizmente, foi colocado fora dos trilhos. E por
mais poderosa que seja a potência desta locomotiva, assim descarrilada, ela
jamais conseguirá atingir o seu destino! Acredito que os trilhos são a cidadania, que tem que ser própria, e não importada. Ela será a responsável por
políticos decentes, que amem seu país e não seus cargos. Evitará os escândalos permanentes que enchem as páginas dos jornais e acabam sempre em
nada, pois são gerados por aqueles aos quais falta um mínimo de patriotismo, representando os verdadeiros vendilhões do templo.
Exemplos de cidadania existem aos milhares no Brasil: os professores, que ensinam tudo o que sabem, mesmo sendo tratados pelo governo
como cidadãos de segunda classe; os cientistas, que tantas glórias têm
dado para o conhecimento universal; os médicos, que, apesar de limitados
em suas condições de trabalho, continuam dando o melhor de si para manter os seus semelhantes livres dos sofrimentos impostos pelas doenças.
São verdadeiros cidadãos os operários humildes, que, com seu trabalho
anônimo, movem a Nação apesar de receberem salário vil. São peças fundamentais deste tecido social, vocês, leitores, que, na sua ânsia de viver
em um país mais justo, não se cansam de divulgar a idéia de que somos
uma Nação com todas as qualidades para ser repleta de felicidade, bastando, para isso, sermos “nós mesmos”, com nossas virtudes e nossos defeitos, porém livres para vivermos e realizarmos os nossos sonhos. Quem
sabe o exemplo de Barbosa Lima, com seus 103 anos de vida dedicada a
criar uma nacionalidade brasileira, possa representar, a partir de agora, uma
alavanca para, rapidamente, tomarmos consciência do que somos, do valor que temos e da possibilidade transformadora que existe em cada um de
nós. Por favor, não se envergonhem de ser brasileiros. Pelo contrário, orgulhem-se de viver em um país que – apesar da pobreza de parte de sua
população, da violência que nos deixa assustados e dos maus políticos que
fazem de seus cargos trampolim para enriquecimento ilícito – está na ordem do dia no concerto das nações, pois é um país diferente, com um povo
alegre que acredita no futuro. Cidadania é a palavra de ordem!
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Crônicas de um Médico do Sertão
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O BRASIL
E A
ALCA
O assunto tem sido recorrente, e talvez eu tenha escrito mais sobre
este tema do que o desejado, mas me sinto impulsionado a voltar a ele em
razão das últimas estocadas com que nossos “irmãos” do Norte têm procurado desestabilizar o Brasil. Não é possível que, em sã consciência, alguém
possa aceitar um contrato como o que foi oferecido pela Agência Espacial
Americana (NASA) para “aluguel” da Base de lançamentos de foguetes de
Alcântara. Caso seus termos sejam aceitos, simplesmente querem proibir a
entrada de brasileiros em uma área localizada dentro de seu próprio país! E
mais: os magros 10 milhões de dólares que pagariam pelo arrendamento não
poderiam ser utilizados sob qualquer pretexto no desenvolvimento do Programa Espacial Nacional. Trata-se de uma verdadeira invasão da nossa terra, com queda completa da soberania do País. Isso mostra bem o espírito
belicoso e imperialista deste povo que tem como deus o dinheiro, que faz do
comércio predador a sua razão de vida, e que é guerreiro por excelência,
nunca deixando de colocar os seus pés em qualquer conflito que exista entre
nações, como se fossem eles os juízes do Universo. Não me assusto ao partilhar estes meus pensamentos, principalmente depois que li o excelente
artigo“Precisamos aprender a negociar com os americanos”, escrito por
Arnaldo Jabor, na Folha de São Paulo. Na sua ótica, Jabor mostra o medo e a
pouca agressividade dos nossos embaixadores, que pensam poder resolver
tudo diplomaticamente, quando, na realidade, teríamos é que aprender a
negociar como os americanos. Estes não medem esforços para colocar os
seus produtos em todos os países do mundo e, quando não conseguem, tentam desenvolver táticas especiais baseadas na intimidação, na invasão ou na
compra de consciências. Há tempos eu já dizia que implementar a ALCA
(Área de Livre Comércio das Américas) nos termos propostos pelos mais
fortes será, no Brasil, causa de aumento do desemprego, da miséria e da luta
de classes, todos motivados pela distribuição de renda cada vez mais desigual com a qual já convivemos. Como poderemos competir com um país que
faz as regras segundo sua conveniência? Como poderemos enfrentar os
altíssimos subsídios que a agricultura, a pecuária, a indústria e os serviços
americanos recebem para proteger os seus empregos? Como enfrentaremos a
tecnologia que lá foi desenvolvida a custa dos juros escorchantes que deixaram as nações mais pobres ainda mais pobres e endividadas? Será a luta de
uma criança contra um campeão mundial de boxe, mal fazendo a compara231
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ção. No esforço para tornar a ideia da ALCA vitoriosa, os filhos do tio “Sam”
já conseguiram dois importantes aliados: a Argentina e o Chile que, sendo
absolutamente dependentes do capital estrangeiro, não têm outra opção a
não ser a de juntar-se à ALCA, mesmo em prejuízo do Bloco Sul-Americano,
representado pelo MERCOSUL (Mercado Comum do Sul). Este, sim, legítima expressão da nossa cultura e da nossa formação étnica. Possivelmente,
os Estados Unidos compreenderam o alcance desta união e o perigo que ela
poderia representar para a sua hegemonia. Agora querem destruí-la a todo
custo. Se não estivermos atentos, poderão ter sucesso, pois as poucas vozes
que se rebelaram contra a formação da ALCA têm sido caladas ou rapidamente tiradas do campo de batalha. Este é o caso do Embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães, que foi demitido do Instituto de Relações Internacionais simplesmente porque tinha posições claras e pragmáticas na defesa dos
interesses nacionais. Sei que, apesar dos muitos brasileiros que têm amor
pela Pátria, talvez não seja possível reverter, de imediato, a impiedosa
globalização que nada mais é que um nome moderno para o sistema colonial
que esteve presente, com consequências desastrosas, em muitas nações, inclusive o Brasil, até os fins do século 19. Mas temos que continuar lutando,
não só com palavras, mas com ações positivas pela autodeterminação dos
povos, com a manutenção das suas características, aperfeiçoando-se pela
própria vontade dos cidadãos, como está acontecendo hoje no Brasil. Acabemos com os corruptos e a corrupção, deixemos os brasileiros construírem
a sua Nação com as peculiaridades que fazem de nós a esperança do terceiro
milênio, e veremos que será possível, aos nossos filhos e às novas gerações,
viverem em um país onde tudo será melhor e inteiramente nosso!
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O IMPÉRIO
O Brasil não existia como nação antes da sua Independência. Mas,
desde então, o sistema de colonização, embora tenha conseguido o feito de
manter com uma só bandeira e uma só língua nossa enorme concentração
territorial, apresentou defeitos pelos quais pagamos até hoje. A instituição
das Capitanias Hereditárias criou no País um grupo de senhores que não
precisava trabalhar, e um enorme contingente humano de trabalhadores e
escravos que nada podiam reivindicar. O pior é que, nestes anos todos até
hoje, nada mudou. Continuamos subjugados por uma minoria de “donos” do
País, que comandam o espetáculo segundo suas regras e conveniências! Os
políticos, na sua maioria e com elogiáveis e raras exceções, nada mais são
que lacaios deste poder que nada tem a ver com o povo que constitui o País.
Ambos, “donos” e políticos, apenas fingem importar-se com o bem social e a
nefasta distribuição de renda, mas, na verdade, quando passam diante de uma
favela, não a enxergam. Quando a veem, não acham que aquele amontoado de
casas e gentes miseráveis representem qualquer problema que os possa sensibilizar. Também não se importam com a cultura e a educação ou, muito pelo
contrário, importam-se muito com elas, impedindo que sejam distribuídas de
modo equânime pelo povo. Têm medo que a população, de repente, passe a ter
conhecimentos para entender a situação como um todo, e deixe de viver e
pensar apenas no gueto a que está confinada. Uma das maneiras de evitar que
ambas se propaguem é pagar somas irrisórias aos professores de qualquer nível, de tal forma que não possam pertencer nem mesmo à classe média, rebaixando-os à condição de pobres, quando não de miseráveis.
Tivemos algumas oportunidades de mudar o nosso curso histórico
com Getúlio Vargas, quando “obrigou” o presidente americano Delano
Roosevelt a vir até o Brasil e “permitir”que iniciássemos o processo de
industrialização com a incipiente usina de metalurgia de Volta Redonda.
Até então, até gelo era importado para se fabricar sorvetes no Rio de Janeiro. Depois, tivemos Juscelino Kubistscheck, que fez o Brasil progredir 50
anos em cinco, como era seu slogan. Jânio Quadros quis fazer algo. Condecorou Che Guevara e não resistiu aos poderosos que não compactuavam
com suas ideias, ficando conhecidos como “forças ocultas”. Finalmente, a
última oportunidade veio com Jango Goulart, que queria fazer do Brasil
não uma potência dominadora, mas o centro de atenção da América Latina, liderando movimentos de união dos povos e do proletariado para o
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enfrentamento do que no futuro viria chamar-se Globalização. Não tivemos sorte. Amargamos 20 anos de ditadura, que extinguiu de vez todos os
possíveis líderes no seu nascedouro. Nos conformamos em eleger um incompetente Collor, rodeado de corruptos.
Passada a tempestade, esperávamos, finalmente, a grande oportunidade. Infelizmente, esta não veio, porque a Globalização já grassava a todo
vapor e os nossos dirigentes ficaram encantados com ela e se entregaram aos
chamamentos das potências estrangeiras, sempre lideradas pelos Estados
Unidos. Passaram a acreditar que tudo que é importado é melhor e mais
barato, inclusive o dinheiro (dólares), esquecendo-se de que, ao importar,
criam desemprego, violência, desesperança e desnacionalização. Num rasgo
de lucidez, criaram o Mercosul. Contavam com Brasil, Argentina, Uruguai e
Paraguai na intenção de recriar o bloco Sul-americano, tão desejado e tão
importante para o progresso continuado e harmônico desta esquecida região
do planeta. Tinha tudo para dar certo: recursos naturais, população, indústrias, consumo, proximidade geográfica, etc. O único senão era a língua, que
nos separava dos demais companheiros, mas que não se tratava de barreira
intransponível, pois é possível que brasileiros entendam espanhol e viceversa. Parecia que tudo caminhava bem para que pudéssemos enfrentar em
igualdade de condições o Império (“gigante do norte”), que jamais admite
ver sua hegemonia ameaçada. Porém, eis que estes dias o Chile, ponto importante para a consolidação do processo, capitula diante do ímã americano
e praticamente entra para o “Nafta”, que já conta com o México e o Canadá
em suas fileiras. Agora estamos em xeque, pois o poder de negociação do
Mercosul está em desvantagem flagrante. Essa situação decorre da atitude
desleal de um país sem personalidade, que teve a coragem de matar um presidente, que era um homem puro, o médico Salvador Allende, e mantém em
liberdade um assassino, como o General Pinochet. Agora, os Estados Unidos fincaram sua bandeira bem perto de nossas fronteiras, e logo estarão nos
forçando a entrar para a “Alca”.
Quando todas as fronteiras forem abertas aos produtos que vêm do
Império, certamente nós estaremos sendo impedidos de exportar os nossos
para eles, por barreiras não alfandegárias. Explico melhor. Poderíamos vender
nossos produtos livremente sem pagar impostos aos Estados Unidos e demais países signatários da “Alca”, desde que fossem aprovados pelos seus
órgãos controladores FDA , FAA e tantos outros. Já conhecemos esta história... Na opinião deles, nossa carne sempre terá aftosa, a nossa laranja
sempre terá cancro cítrico, os nossos equipamentos, com raras exceções,
jamais preencherão as exigências de um mercado que se protege com unhas
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e dentes! Os dirigentes e os “donos” do País, ou não entendem ou não
querem entender que, desta forma, continuaremos sendo eternamente colônia, com desemprego crescente e violência alastrando-se a tal ponto que
poderá tornar-se incontrolável. Vamos desejar que nada disso aconteça,
mas tenho muito medo que, seguindo essa orientação, dentro em pouco, os
votuporanguenses estarão dormindo em camas feitas nos Estados Unidos,
enquanto suas fábricas de móveis ficarão cada vez mais vazias e abandonadas. Que Deus nos ajude!
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OPORTUNIDADE
Apesar de todo o “barulho” em torno da ALCA e seus evidentes
malefícios em relação ao Brasil; apesar da falta de um mínimo de espírito de
corpo dos antigos signatários do “finado” MERCOSUL, que, sem patriotismo sul-americano, abandonam o Brasil encantados que estão pelo “canto da
sereia” dos imperialistas norte-americanos; apesar de sermos ainda um país
em desenvolvimento, sinto agora, mais do que nunca, a potência que somos
e o futuro fantástico que nos espera. Mesmo não tendo o melhor dos governos, o Brasil tem a vantagem de ter “O Povo Brasileiro”, capaz de resistir a
toda e qualquer turbulência, dando a volta por cima nos problemas que tem
que enfrentar de forma altaneira! Este povo certamente demonstrará ao mundo
a que viemos, pelo seu trabalho e sua criatividade. Este povo resistiu ao
descontrole monetário que vivemos até meados dos anos 90 e foi capaz de
sair da inflação galopante, que nos tirava o sono e o sustento, mantendo um
crescimento que, se não foi o desejado, superou em muito aquele das nações
que nos cercam.
Como exemplo, aí está a Argentina, nosso vizinho do Sul, que, para
sanar as finanças, destruiu toda sua indústria, agricultura e pecuária, que já
foram expressões importantes no contexto mundial. O Chile gosta de se arvorar de Nação progressista e com economia estável e confiável. Na verdade, não passa de uma colônia, com uma população não maior que a da cidade de São Paulo e um Produto Interno Bruto igual ao da região de Campinas.
Lá o povo não tem nenhuma voz e sua dependência externa é enorme em
qualquer setor que analisemos. O Uruguai, que melhor teria feito se não
tivesse se separado do Brasil (sua Pátria mãe), é um país de idosos, que vive
da exploração dos capitais que o usam como “paraíso fiscal”, não tendo
nenhuma influência nos destinos dos povos. O Paraguai, todos nós conhecemos pelas suas mazelas exemplificadas, pelo fato recente de que o BMW da
Presidência da República era um carro roubado do Brasil. É uma pena que
estes vizinhos nos abandonem numa quadra da evolução dos povos em que
poderíamos estar juntos.
Apesar disso, tenho certeza de que sairemos vencedores desta batalha e tenho motivos para fazer esta afirmativa. O Brasil é um país continente, com 170 milhões de habitantes. É a 8a maior economia do globo e, pasmem, o 5o maior mercado consumidor no mundo (superando 2,5 trilhões de
reais por ano). O Brasil foi o país que mais cresceu entre 1900 e 2000 e, com
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certeza, saberá continuar crescendo ininterruptamente neste novo milênio.
Não temos nada a temer pois a nossa produção de grãos vai chegando perto
dos 100 milhões de toneladas, tornando-nos capazes de rivalizar e causar
inveja a qualquer concorrente. Temos também um dos maiores rebanhos
bovinos do mundo, cerca de 150 milhões de animais, quase um para cada
habitante do País. Todos estão cientes dos problemas enfrentados pelos países
do primeiro mundo com suas “vacas loucas” e seus surtos de aftosa e outras
doenças. Estas não ocorreram por acaso e, sim, pela falta absoluta das medidas mais comezinhas de prevenção e pelo uso de alimentação inadequados.
Na realidade, alimentavam seus animais com carcaças de animais mortos, o
que acabou por difundir uma proteína primitiva que recebe o nome genérico
de “Prion”, que nos organismos vivos acaba por transformar-se em um vírus
que produz a temível “encefalite espongiforme”, mortal para os animais e o
gênero humano! Pelo trabalho árduo dos pecuaristas brasileiros, mesmo sem
auxílios governamentais, dispomos hoje de um enorme rebanho sadio que
será capaz de fornecer carne de primeira qualidade para os mercados do
primeiro mundo. Estes, mesmo com os subsídios absurdos que recebiam de
seus governos (quase um bilhão de dólares por dia na Europa), buscaram o
lucro fácil, o que os impossibilitou de manter os padrões mínimos necessários
ditados pelas normas internacionais.
Não quero ser considerado mais uma vez um ufanista, sem direito a
perdão. Pela minha própria profissão, sei como poucos que o Brasil é afligido
por problemas gravíssimos de distribuição de renda e de pobreza absoluta.
Talvez seja este o momento de nos unirmos na ideia de transformar o Brasil
em uma nação mais equalitária e mais digna do destino que nos é reservado.
Temos condições de nos autogerir e mostrar ao mundo que a Nação do futuro finalmente está chegando ao Presente!
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A AVIAÇÃO
E O
PROGRESSO
Ao escrever esta crônica, estou voando a 10 quilômetros de altura
em direção ao Canadá para participar, em Toronto, de um dos mais importantes Congressos de Cirurgia Cardíaca do mundo. Além disso, vou visitar a
Universidade de Ottawa e acertar os últimos detalhes para iniciar, em Rio
Preto, um programa conjunto com aquela instituição para o uso em seres
humanos de um coração artificial totalmente implantável. Durante o voo,
vieram à minha mente lembranças antigas que me permitem tratar aqui de
um assunto mais ameno, as emoções de um piloto de aviões com quase meio
século de vivência.
Comecei a pilotar no longínquo 1955 e, desde então, tive a sorte de
jamais ter abandonado os ares. Vivi o final da era romântica da aviação,
voando em aviões feitos de pano, com hélices de madeira que arrastavam a
cauda no chão, puxados por motores com potência sempre menor que a desejada e pouco confiáveis. Os instrumentos resumiam-se a uns poucos, e a
navegação era feita usando-se a bússola, o relógio e a observação de cada
detalhe do terreno. Os rios representavam referências indispensáveis, e era
necessário conhecer cada curva deles para não se perder. Os demais acidentes geográficos, como morrotes, montanhas e planícies, eram anotados na
memória, que não podia falhar em reconhecê-los. Estradas e, principalmente, linhas férreas podiam ajudar, mas nem sempre constavam dos precários
mapas existentes na época. Certas cidades eram difíceis de ser localizadas e,
muitas delas, semelhantes entre si, levavam os pilotos a aterrizar fora do
destino desejado. Não era infrequente o piloto, ao descer da aeronave, passar pelo vexame de ter que perguntar a alguém em que cidade ele havia
chegado (geralmente alguma criança curiosa que se acercava para ver de
perto o avião). Com isso, evitava que o “guarda-campo”, ou outros pilotos
tomassem conhecimento da sua falha. Muitas cidades tinham o cuidado de
escrever com letras bem grandes o seu nome sobre um grande armazém ou a
estação da estrada de ferro, quando esta existia. Era um recurso fantástico
no auxílio à navegação aérea!
Os tempos mudaram depressa, talvez mais rapidamente do que o desejado. Vieram os instrumentos de navegação, os aviões feitos de alumínio, os
motores a reação (usando a força do jato). As aeronaves cresceram de tamanho, o peso, que era medido em quilos, passou a ser medido em centenas de
toneladas. Os dois ou três passageiros converteram-se em três ou quatro cen238
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tenas dentro de um mesmo avião. A velocidade, que era medida em unidades,
passou a ser medida em muitas centenas de quilômetros, sendo comparada
com a velocidade do som. Mesmo esta foi ultrapassada com o aparecimento
dos supersônicos, que voam com duas a três vezes a velocidade do som de
2.000 a 3.000 quilômetros por hora! Quando os sistemas de navegação e pouso já haviam evoluído, de tal forma que era possível localizar-se instantaneamente em qualquer parte do globo e aterrizar sem visibilidade, auxiliados por
poderosas estações de rádio e radares terrestres, surgiram os satélites. Com
estes, foi possível o desenvolvimento dos GPS (global positioning system),
sistema de posição global que, a um custo muito baixo, permite navegar para
qualquer parte do globo com precisão absoluta, desde que se conheça as coordenadas geográficas do destino. Este destino pode ser uma grande cidade, ou a
mais remota pista de pouso de uma fazenda no Pantanal do Mato Grosso ou
na Amazônia. Nenhum piloto tem agora que perguntar se o destino a que
chegou é mesmo aquele onde queria chegar. O GPS, cujo funcionamento se
baseia na Teoria da Relatividade do Tempo descrita por Einstein, vem se aperfeiçoando a cada dia, e já permite, além da navegação, o pouso seguro em
condições mínimas de visibilidade, mesmo sem qualquer auxílio terrestre. Isso
viabiliza, por exemplo, uma aterrissagem por instrumentos numa fazenda em
que nem eletricidade exista. As demais aplicações para o GPS são incontáveis,
como seu uso na aviação agrícola, permitindo pulverizações precisas, assim
como na demarcação de áreas, desde um sítio até as divisas de uma nação. A
navegação marítima, que sempre foi difícil pela falta absoluta de referências, a
não ser o sol e as estrelas, ficou também extremamente facilitada. Que dizer
então da orientação para os automóveis nas cidades ou nas estradas? O GPS
representa um impacto fantástico para o deslocamento ágil e confiável para os
motoristas, mesmo em lugares que ele não conhece. Já tive a oportunidade de
usar essa facilidade nos Estados Unidos e na Alemanha, e não vejo o dia em
que possamos beneficiar-nos com a mesma no Brasil (basta, para isto, a criação de cartas especiais, pois os sinais dos satélites são captados em qualquer
lugar da terra). O interessante é que o GPS foi inventado e desenvolvido para
fins menos nobres. Inicialmente, infelizmente, o GPS foi usado com fins bélicos para orientação de bombas de longo alcance durante as guerras, levandoas aos alvos planejados com precisão de centímetros. Ainda bem que logo
perceberam que essa conquista maravilhosa tinha aplicações muito mais importantes do que orientar bombas mortíferas!
Desta forma, a aviação tornou-se quase uma ciência exata cheia de
fórmulas, computadores e teorias, levando-a a ser confiável e segura. Em
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contrapartida, a aviação romântica vai desaparecendo e deixando saudades
em quem dela tenha participado. Hoje tudo nos parece tão mecanizado,
automatizado e impessoal, que chega a dar a impressão de que o homem vai
se tornando um escravo de suas próprias criações. Porém, aos saudosistas,
resta ainda tomar os comandos de um avião convencional, decolar ao pôrdo-sol, elevar-se do solo e poder rever o mesmo pôr-do-sol por várias vezes
em todo seu esplendor, numa experiência única que nos aproxima da beleza
mais pura. Também é possível voar sob a luz prateada da lua, conferindo um
espetáculo talvez indescritível, mas que prometo, qualquer dia, tentar narrálo com a emoção que tal visão nos propicia, fazendo-nos sentir muito pequenos diante da grandeza do Criador.
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TRANSPARÊNCIA
Existe uma campanha mundial sobre a corrupção que visa, se não
eliminá-la, pelo menos minimizá-la. Parece um absurdo que pensemos apenas em dirimir sua ação, uma vez que, eticamente, não poderíamos nem
imaginar que existisse. Infelizmente essa não é a verdade. A corrupção, como
um “polvo”, grassa em todo o mundo, existindo uma relação direta entre sua
presença e a desigualdade social. Ou seja, onde há mais corrupção existe um
grande abismo entre os mais ricos e os mais pobres, tornando estes em verdadeiros párias sociais, com todas as consequências que conhecemos. Estas
consequências não são só de ordem puramente moral, mas nos atingem em
cheio na nossa própria segurança e na nossa alegria de viver.
Quem não gostaria de morar em um país onde as diferenças sociais
fossem mínimas, e não tivéssemos medo de exercer o direito de ir e vir sem
o risco de ser assaltado ou morto por uma bala perdida? Podermos deixar a
casa aberta sabendo que ninguém irá invadi-la, pelo simples fato de que este
alguém não necessita exercer esse ato de violência que envergonha o próprio
agressor? Quem não gostaria de conviver com pessoas respeitosas, que ficariam entusiasmadas com o seu progresso individual, simplesmente porque
têm a mesma oportunidade de atingir o seu status, não tendo inveja ou
vergonha para recriminar-se? Parece utópico, mas, simplesmente, eliminando a corrupção, poderíamos atingir um estado de desenvolvimento social
compatível com a moral, a ética e os princípios cristãos mais básicos.
Vamos aos fatos. O movimento mundial que tenta esclarecer e mostrar os malefícios da corrupção recebeu o sugestivo nome de Transparência.
Por sorte e empenho de pessoas de boa vontade, o movimento instalou-se
também neste tão necessitado Brasil. Através dele, têm sido veiculadas, pela
televisão, jornais e outros meios de comunicação, mensagens contundentes
que espero possam esclarecer a população e amolecer o duro coração dos
corruptos, fazendo-os sentir o mal que causam ao mundo. A organização
dispõe de um “site” na Internet, http://www.transparencia.org.br, que sugiro seja consultado pelos quatro milhões de brasileiros que estão conectados
à rede mundial de computadores. Lá encontrarão informações importantes
para, em conjunto, desenvolverem uma atividade que poderá modificar a
vida de milhões de pessoas! Acredito que muitos já tiveram acesso a um
dado estarrecedor: a corrupção em nosso país ROUBA de cada brasileiro a
absurda quantia de 6 mil reais por ano. O número frio pode não dizer muito,
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porém quero lembrar-lhes que a “renda per capita” no país é de cerca de 5
mil reais por ano. Entenda-se que a renda “per capita” representa a soma de
todas as riquezas geradas no país por ano, dividida pelo seu número de habitantes. Imaginem o descalabro que a corrupção representa. O roubo dos
corruptos é maior que toda a riqueza gerada no País por ano. Não é difícil
entender que, se este volume de dinheiro fosse distribuído, dobraria a renda
de cada brasileiro com benefícios incalculáveis para toda a nação. A fome
desapareceria, assim como a violência gerada pela ignorância, resultado da
falta de escolas. Os hospitais poderiam atender a todos os necessitados e o
lazer seria um benefício para todos sem exceção. A organização Transparência fez uma relação da corrupção em 100 países. O Brasil ocupa o 45º
lugar, com nota 4,1. O país menos corrupto é a Dinamarca, com nota 10.
Estaríamos no meio da escala se atentássemos apenas para a posição na
tabela, porém a nota 4,1 é muito baixa e os que se seguem na lista, com
poucos pontos menos que o Brasil, geralmente são países em que existem
conflitos étnicos, religiosos ou guerra civil instalada. Mesmo sem uma guerra
declarada, estamos vivendo numa sociedade muito corrupta, que rouba do
pobre o direito de ser gente. Não estamos perdidos, dependemos de nós
mesmos para transformar um dos mais belos e promissores países do mundo numa Dinamarca sem o horrível frio que castiga aqueles cidadãos. Sejamos otimistas, vamos todos entrar nesta campanha moralizadora e, com
certeza, seremos vencedores.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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REVOLUÇÃO BRANCA
Apesar de não participar diretamente do carnaval, admiro a capacidade
de organização que impera em todas as suas manifestações, tanto nos clubes
como naquelas que ocorrem nas ruas, avenidas e sambódromos. Ninguém duvida
que a expressão máxima desta capacidade concentra-se no desfile dos blocos e
escolas de samba que, em verdadeira apoteose, mostram ao mundo que somos
capazes de realizar um espetáculo com milhares de participantes, um “show”
de beleza ímpar, coreografia e enredo de fazer inveja aos mais sofisticados
espetáculos da Broadway ou de Hollywood. Este é o povo brasileiro, tão bem
descrito por Darcy Ribeiro, diferente dos outros, possuidor de música e pensamento próprios e capaz de rivalizar-se, positivamente, com qualquer outro
povo do mundo. Falta-nos, talvez, um pouco mais de civismo, orgulho nacional e educação formal para que possamos estar entre as melhores nações do
mundo. Em vez de guerras, carnaval; combatemos a violência com tolerância,
e a esperança é sempre o nosso norte.
Alguém pode julgar que estou fora dos problemas do cotidiano, ou,
tomado por alguma entidade estranha a me sugerir utopias absolutamente
ausentes na realidade, e só presentes na minha mente sonhadora. Mas não é
verdade. O carnaval jogou um balde de água fria na briga ACM x FHC,
fazendo o povo rapidamente esquecer-se de detalhes políticos que não têm
nenhuma importância para nós e nem para o País, e que, na realidade, só
interessam a políticos que estão em franca decadência. A revolta dos presidiários do Estado de São Paulo acabou com um saldo lamentável de mortes,
que poderia ter sido muito pior, não fosse a calma e a sensatez que reinaram
na solução do conflito. Temos uma população carcerária enorme e mal tratada, mas não se compara àquela existente na mais rica nação do mundo, os
Estados Unidos da América do Norte, cujo número já chega perto dos dois
milhões. Aqui temos explicação para a violência: o tráfico de drogas e as
prisões abarrotadas, pois, infelizmente, ostentamos uma das piores distribuições de renda do mundo, que acaba gerando uma quantidade enorme de
desesperançados! Sempre insisto na tese de que a pessoa que não tem mais
nada para perder torna-se vítima de si própria e não mede as consequências
de seus atos. Nos Estados Unidos, pelo contrário, a violência tem outras
origens, decorre de desequilíbrios sociais, preconceitos inexpugnáveis e manifestações de insanidade de pessoas ou grupos.
Tenho absoluta certeza de que a bondade do povo brasileiro e sua
formação étnica, resultante do caldeamento de raças sem antagonismos, se243
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rão capazes de reverter rapidamente a grave situação de violência preponderante nas grandes cidades, onde a miséria é maior e a esperança de trabalho,
menor. Cada cidadão tem que se sentir responsável pela comunidade em que
vive, e os governos têm que ouvir o clamor do povo, propiciando-lhes os
meios de sustento pelo trabalho honesto que cada um deseja e pode desempenhar. Se somos capazes de realizar um carnaval que causa inveja ao mundo... Se temos aviões que rivalizam com os canadenses, americanos e franceses... Se temos uma produção agrícola, por área, que assusta os países desenvolvidos, nada temos a temer! Quando tivermos consciência da potência
que somos, podendo transformá-la em realidade simplesmente dando trabalho, educação e saúde à nossa sofrida população, verão que estávamos fazendo tempestade em copo d’água.Tempestade decorrente, principalmente,
dos maus agouros de organismos internacionais, como o FMI, Organização
do Livre Comércio e tantas outras instituições globalizantes que temem o
aparecimento de uma nova potência baseada no amor, na fé, na liberdade,
na música e no carnaval. Esta nação dará exemplo ao mundo, realizando
uma verdadeira “revolução branca”, mostrando que nações pobres também
podem ter seu lugar ao sol. Não somos os maiores e melhores hoje, mas
somos a esperança dos desesperados do mundo todo!
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VERÃO
A palavra tem conotações diferentes nos diversos rincões do mundo.
Para alguns, representa férias a serem desfrutadas rápida e avidamente, pois
é a única época do ano em que dispõem de um pouco de sol. Assim é nos
países do hemisfério setentrional, onde na maior parte do ano as temperaturas são tão baixas e o sol tão fraco que não resta aos seus habitantes outra
alternativa a não ser a de ficar em casa ou em ambientes de trabalho fortemente protegidos contra as intempéries. A neve acumula-se nas ruas, estradas e campos, muitas vezes atingindo mais de um metro de altura e, seguramente, produzindo lindas paisagens, bonitas de ver, mas difíceis de tolerar.
Essa situação impede o livre caminhar de gentes e veículos de qualquer
natureza, além de impossibilitar que todo tipo de vegetação se desenvolva, a
não ser em estufas climatizadas. Quando o sol surge brilhante e forte nessas
áreas, a alegria toma conta de todos e aqueles tipos taciturnos e brancos,
como a própria neve, saem em corrida desenfreada para absorver a maior
quantidade dos raios do astro rei, na tentativa de compensar os oito ou nove
meses de reclusão e desconforto. O trabalho cessa quase por completo e os
países parecem viver uma festa permanente em veneração ao deus Sol.
A situação é completamente diferente no nosso hemisfério e nas regiões mais próximas do equador e dos trópicos, onde temos altos níveis de insolação permanente, que apenas se acentuam durante o verão. Aqui também ele
é desejado e louvado, trazendo no seu bojo as tão esperadas férias à beira das
praias, rios, lagos e piscinas, fazendo a alegria transbordar na face de todas as
pessoas. Logicamente tendo o Sol deslocando-se na abóbada celeste quase em
posição zenital, todo cuidado é pouco para que, ao invés de nos acariciar, ele
acabe por nos queimar! Ao contrário do que acontece nos países nórdicos ou
naqueles deslocados ao extremo sul, onde as precipitações atmosféricas coincidem com a época do frio e da neve, aqui o verão vem acompanhado das tão
decantadas chuvas de verão. Elas que inspiraram tantos poetas e que continuam a seduzir-nos pela maneira como chegam, quase sem nos avisar, e de repente vão embora, fazendo surgir todo o esplendor da atmosfera, pura, límpida
e multicolorida, banhada por uma luz tão especial que só é possível de ser
descrita pelas almas sensíveis dos menestréis.
Mas, e sempre existe um mas. Se os povos das neves sofrem tanto
com o frio, que impede qualquer tipo de vegetação de crescer, florescer ou
produzir grãos ou frutas, nós, por outro lado, somos castigados pela seca
inclemente que nos assola durante uma grande parte do ano, ressequindo e
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retorcendo nossas árvores, campos e plantações, levando-nos muitas vezes
ao desespero e a desesperança. Rios, lagos e nascentes secam e nos dão a
sensação de que tudo está perdido! Mas a natureza, na sua sábia regularidade, vem mostrar-nos o quanto somos pequeninos diante das forças divinas.
Quando as esperanças estão quase terminando, eis que vêm o calor e a chuva benfazeja a irrigar cada metro da terra ressequida e da nossa alma ímpia.
Como em um toque de mágica, as fontes voltam a brotar com seu murmúrio
musical. Os rios voltam a correr, os lagos se enchem e um novo ciclo de
esperanças recomeça. Os imensos campos produzem um espetáculo à parte,
pois, logo ao receberem as primeiras gotas de chuva, pintam-se de um verde
tão intenso que conseguem alegrar até as pessoas mais pessimistas. Surge,
então, o ímpeto de plantar, que está arraigado na população de forma atávica
desde os tempos imemoriais, para fazer de novo o milagre da multiplicação
dos pães. Assim aparecem as imensas plantações das mais variadas culturas,
que virão saciar a nossa fome ou o nosso desejo por uma fruta especial que,
com sua doçura, reafirmará o quanto Deus é bondoso, colocando a nossa
disposição néctares que só são imaginados no paraíso.
Viver em uma nação cheia de sol o ano inteiro, mantendo a sua juventude sempre dourada, e ainda poder contar com um verão especial com
suas chuvas tropicais é um presente que deve ser recebido como uma dádiva
da natureza, que desejou nos premiar de forma muito especial. Não existe
espetáculo mais grandioso que observar os campos verdes cultivados sendo
banhados pela água que os alimenta e ainda, vez por outra, nos permite
usufruir a formação de um arco-íris, em cujas pontas com certeza encontraremos potes cheios de ouro.
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VISÕES
DA
CHINA
Acabo de chegar deste país milenar que tem representado um verdadeiro desafio para o mundo ocidental. Moram lá um bilhão e duzentas mil
almas que têm que se alimentar, se vestir, se divertir, enfim viver! Existem
problemas de pobreza extrema, mas o progresso que é visível por todo o país
de nos surpreende. Estivemos durante toda a tarde do dia 30 de setembro
visitando a Praça da Paz Celestial, em chinês “TIAN’ANMEN”. Este enorme espaço fica diante do Portal da Força Divina, que na sua parte externa
ostenta a majestosa fotografia de Mao Zedong, fundador do Partido Comunista Chinês. Faleceu em 1976, mas continua a ser reverenciado de forma
muito especial pela população. Não quero entrar no mérito da política que
foi implementada por ele naquele país, mas temos que admitir que, apesar
do regime forte que lá impera, os resultados, do ponto de vista de progresso
material, surpreendem o visitante, que sempre pensa na China como um país
antiquado, com ruas, vielas estreitas e casas de Ópio compondo sua paisagem. Nada disso está aparente para quem anda por suas largas avenidas, seu
moderno “metrô” ou suas praças monumentais. De fato, a Praça da Paz
Celestial é uma das maiores do mundo, cabendo nela mais de um milhão de
pessoas. Tive sorte de vê-la muito enfeitada, pois no dia seguinte à minha
visita (1º de outubro), comemorar-se-ia o aniversário da revolução comunista. Existiam arranjos de flores formando monumentos, com fontes luminosas, pontes, lagos e vegetação representando os múltiplos estados que
compõem o enorme e diversificado país. Estranhei a grande quantidade de
policiais e de militares presentes junto à enorme massa popular, que, mesmo
na véspera das festividades principais, se acotovelava nos espaços, disputando ombro a ombro uma posição para ser fotografada diante das alegorias
espalhadas por toda a praça.
Dizia que tive sorte em ver a praça preparada para as comemorações
do dia seguinte, e tive sorte também em lá não estar durante as solenidades
oficiais, pois, como foi amplamente divulgado pela imprensa internacional,
ocorreu um grande tumulto, com manifestações de grupos dissidentes, que
foram reprimidos com violência pela polícia e pelo exército. Os turistas foram retirados da praça e só puderam voltar a ela escoltados, um a um, em
fila e sem poder fotografar o “caravanserralho” que tomou conta da festa.
Fica claro, portanto, que não existe unanimidade na China, mesmo porque a
unanimidade é “ burra” e as forças de repressão são violentas e agem de
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forma brutal para evitar qualquer manifestação que os desagrade. Regimes
fortes podem ter sua utilidade, mas cerceiam a liberdade, ponto fundamental
para a felicidade de um povo!
Um outra observação que fiz dessa viagem é que a China soube se
modernizar conservando suas relíquias do passado. A visita à Muralha da
China (The Great Wall) é uma experiência inédita para quem percorre o mundo
com vontade de ver e sentir o significado das obras realizadas pelo homem.
Um dito popular na China diz que você não é um homem se você não visitou
a Grande Muralha. De fato, trata-se da única obra realizada pelos seres humanos que foi vista pelos astronautas quando se encontravam na lua durante as viagens do projeto “Apollo”. Tem 5.000 km de extensão e foi construída
durante três dinastias de Imperadores Chineses. Existem assim as muralhas
das dinastias: Ming, Han e Qin, a última delas. Sua construção foi iniciada
sete séculos antes de Cristo e a finalidade era evidentemente de defesa do
país contra a invasão de reinos rivais. Quando o Imperador Qin Shihuang,
primeiro Imperador da dinastia Qin, unificou o país, no ano 221 antes de
Cristo, ele uniu as diferentes muralhas evitando assim a invasão dos dissidentes que desejavam destruir o seu Império. Se, por um lado, impediu a
entrada de estranhos em seu país, também isolou-o do resto do mundo, tanto
do ponto de vista físico, como do ponto de vista intelectual e de relacionamento externo. A barreira só foi rompida em nossos dias, no final dos anos
70, quando a China finalmente saiu do seu isolacionismo e abriu-se para o
mundo ocidental. A muralha tem, em geral, 8 a 10 metros de altura e corre
por sobre o cume das montanhas, com subidas e descidas íngremes que demandam um bom preparo físico do turista. O sentimento que a visita nos
proporciona é de admiração profunda ao trabalho do homem, capaz de realizar uma majestosa e impressionante obra em tempos remotos em que nem
se sonhava com os recursos tecnológicos propiciados pela revolução industrial. Quanto esforço, quanta determinação e quanto amor à pátria estão
contidos nessas muralhas. Isso tudo fica fácil de ser entendido quando se
anda por sobre ela. Consta que durante muitos períodos até 20% da força de
trabalho do país dedicava-se integralmente a construção desta obra gigantesca, com mais de um milhão de pessoas envolvidas no projeto. As condições de trabalho, como se pode imaginar, eram extremamente árduas e os
trabalhadores que faleciam durante a jornada eram enterrados entre as próprias pedras que constituem a muralha. Poder ver esta grande obra de perto
é uma experiência inesquecível.
Os tempos mudaram, e hoje a Grande Muralha é apenas um monumento, pois as multinacionais conseguiram “invadir” a China, apesar
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do regime comunista totalitário que lá impera. A globalização tornou-se
tão universal que mesmo para visitar a própria “Great Wall” é necessário
pagar uma taxa. Os estudantes têm que pagar pelo ensino superior público, e não há estrada na China em que não se pague pedágio a cada 20 ou
30 quilômetros. Parece ser essa a “moda” atual no mundo, e não deverá
ser diferente no Brasil. Resta ver como vamos nos comportar diante desta globalização, para não nos transformarmos em simples escravos de
nações que dominam o capital.
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DIVERSIDADE
BUENOS AIRES - Aqui estou participando do IV Congresso Mundial de Cardiologia e Cirurgia Cardíaca Pediátrica com colegas do mundo
todo. Represento a nossa Faculdade de Medicina, tendo a oportunidade de
conviver com médicos dos mais distantes países. Tais experiências são sempre proveitosas, permitindo-nos comparar a Medicina brasileira com aquela
praticada em outros centros, de excelência ou não. Transmito-lhes, com justificado orgulho, que nossa posição nessa área nada deixa a dever a qualquer
nação desenvolvida. Nossa assistência médica universalizada, mesmo com
os problemas de um país continental, permitiu-nos sobrepujar as dificuldades e criar técnicas e equipamentos próprios, que resultaram em benefício
real para todos que demandam tratamentos especializados, o que não acontece com as classes menos favorecidas em outras nações. A nossa Medicina
representa um dos melhores marcadores da viabilidade do Brasil, mesmo
que ainda tenhamos muito a caminhar.
Estando na Argentina, foi-me também possível sentir que a pretensa
rivalidade entre nós só existe na cabeça dos dirigentes de nossas nações, pois
lá somos tratados como verdadeiros irmãos, embarcados no desafio de mostrar ao mundo identidades comuns. As barreiras entre países não passam de
fronteiras teóricas que são valorizadas por poderes constituídos, o que nem
sempre, ou quase nunca, traduzem os desejos dos habitantes das nações.
Buenos Aires, com seu estilo europeu, é um exemplo de como podemos ter
vertentes diferentes dentro de um mesmo continente, sem que isso possa
representar obstáculos intransponíveis de comportamento. Ao deixar a Argentina, relembrei-me dos desejos do unificador San Martin, cultuado com
um altar na Catedral da capital portenha, por dedicar-se à união de toda a
América Latina contra o domínio dos colonizadores. Lembrei-me também
do Barão de Mauá, que sempre acreditou que da união dos nossos países
resultaria o bem-estar de nós todos.
Não parece ser esse o caminho traçado pelos atuais líderes do continente, que, em recente encontro em Brasília, chegaram a desentenderse. Infelizmente para toda a comunidade latino-americana, que perde,
novamente a chance de somar os frutos valorosos e singulares da sua
rica diversidade para conquistar posições mais avançadas no “ranking”
das grandes potências mundiais.
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ECONOMIA EXCÊNTRICA
Acabo de ler o livro Freakonomics, de Steven Levitt e Stephen Dubner
- Editora Campus. Apesar do nome rebarbativo, que poderia ser traduzido
por “Economia Excêntrica”, o original foi o best-seller número um do New
York Times. O livro levanta uma premissa heterodoxa: se a Moralidade representa o modo como gostaríamos que o mundo funcionasse, a Economia
representa o modo como ele realmente funciona.
Eis o que aprendi com este economista. Vou limitar-me a tratar da
violência que nos atinge no dia a dia, com a esperança de ver esse flagelo
saneado se medidas viáveis e apropriadas forem tomadas. Segundo os autores, gangues existem desde que as cidades foram criadas. Imagine-se que, em
Chicago nos anos 20, circulavam mais de 1.300 gangues, englobando todas
as tendências étnicas, políticas e criminosas imagináveis. Nos anos 70, seus
integrantes contavam-se às dezenas de milhares, em todas as importantes
cidades americanas, praticando crimes hediondos, como os que hoje abalam
o nosso cotidiano. Com o advento do “crack”, esse contingente aumentou
ainda mais, pois a droga é barata, tem alto poder de viciar em curto período
de ação, de forma que o usuário logo necessita de mais droga! Chegou-se a
um ponto em que ficou tão perigoso morar em Chicago, St. Louis, Los Angeles
ou Nova York como em Bogotá. Aclamados criminologistas, como James
Fox, fizeram previsões apocalípticas, prevendo um banho de sangue
consequente à violência juvenil. Contudo, a partir dos anos 90, quando a
criminalidade havia atingido seu pico máximo, constituindo a essência dos
telejornais e das discussões nacionais, semelhante ao quadro que vivemos
hoje no Brasil, ela começou a cair de modo abrupto, surpreendendo a todos.
Para resumir, essa queda nada teve a ver com aumento de empregos,
crescimento da economia ou instituição da pena de morte. Teve a ver com
medidas simples: 1 - Endurecimento das punições pelos Tribunais; 2 - Manutenção dos presos encarcerados (nos Estados Unidos, em 2000, havia mais
de 2 milhões); 3 - Talvez a mais importante de todas, estratégias policiais
inovadoras. Como exemplo, cito a ação do prefeito de Nova York, Rudolph
Giuliani, e seu secretário de Segurança, Willian Bratton, que instituíram o
conceito da “vidraça quebrada”. Combatendo pequenos delitos (tolerância
zero), inibem-se crimes maiores. Hoje se pode andar em Nova York a qualquer hora do dia ou da noite sem sobressalto. Tenho certeza de que proximamente passaremos por processos semelhantes, que nos trarão de volta a
tranquilidade que tanto desejamos. Trata-se apenas de vontade política.
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MENTES BRILHANTES
O Prêmio Nobel de Economia este ano foi vencido pelos cientistas
Robert Aumann e Thomas Shelling, que se dedicam ao estudo da “Teoria
dos Jogos”. Os mais desavisados podem pensar que se trata de alguma teoria
relacionada com os jogos de azar. Na realidade, estes são sempre jogos de
soma zero, ou seja, para que um ganhe o outro tem que perder. A teoria sobre
a qual estamos falando vem sendo desenvolvida há séculos. Foi cristalizada
em 1950, na Universidade de Princeton, pelo matemático John Nash, que,
com apenas 21 anos de idade, escreveu sua tese de Doutorado, “Jogos não
Cooperativos”, em 27 páginas que revolucionaram os conceitos vigentes.
Em 1958, a esquizofrenia retirou-o do convívio social por mais de 20 anos,
ao fim dos quais retornou a Princeton, ainda doente, recebendo a alcunha de
“O Fantasma do Fine Hall”. A doença evaporou-se a partir de 1970 e, em
1994, com John Harsanyi e Reinhard Selten, recebeu emocionado o Prêmio
Nobel de Economia.
Esta saga deu ensejo ao filme Mentes Brilhantes, que conta sua pungente história. O filme vale a pena pela história e pela explicação desta Teoria, que é uma análise matemática de situações que envolvam interesses em
conflito a fim de indicar as melhores opções de atuação para que seja atingido o objetivo desejado. Dou um exemplo simples, que explica a vertente
deste novo campo de estudo. Trata-se de uma situação na qual dois criminosos são presos e colocados em celas separadas. Devem escolher a opção que
mais lhes favoreça. Propõe-se um acordo: se um deles confessar, estará livre
e o outro pegará dez anos de cadeia. Se nenhum dos dois confessar, ambos
ficarão presos por cinco anos. Se os dois confessarem, ficarão presos por oito
anos. O dilema é que a melhor opção para um dos suspeitos pode ter
consequências bem diferentes para os dois. Já, se se mantiverem em silêncio,
o destino será o mesmo para eles.
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PÓS-GRADUAÇÃO
NO
BRASIL
Apesar dos problemas na Educação Brasileira, a Pós-Graduação, na
sua vertente de Stricto Sensu, responsável pela formação de Mestres e Doutores, apresentou desempenho nas últimas quatro décadas, o que nos permite
rivalizar com a maior parte das nações. Dispomos hoje de quase três mil
cursos de pós-graduação avaliados pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que formaram em 2004, 27 mil
Mestres e 8 mil Doutores. Com isso, o Brasil, respondendo por mais de 50%
da produção científica, tornou-se o líder absoluto na América Latina. O aspecto mais importante é que, em apenas 40 anos, fizemos a revolução educacional que os Estados Unidos levaram 300 anos para realizar.
É interessante, também, saber que o Ministério da Educação teve
uma participação secundária no processo, pois os recursos vieram fundamentalmente do Ministério do Planejamento e da FINEP (Financiadora de
Estudos e Projetos). A CAPES adotou uma política “Podar para Crescer”,
que, de início, foi duramente criticada por aqueles que, dormindo sobre louros passados, nada produziam de novo. Fecharam-se cursos ineficientes, eliminaram-se e continuam sendo eliminados os professores que não apresentam publicações com inserção nacional e internacional, fator crítico para
obtenção dos necessários aportes financeiros. Um novo salto foi dado na
década de 1990, com a aproximação da Universidade com o Setor Produtivo, criando-se o mestrado profissionalizante, uma variante daquele acadêmico, destinado a suprir a nação dos indispensáveis técnicos para seu progresso tecnológico.
Dando seguimento às pílulas de informação sobre este importante
assunto, do qual depende a evolução educacional e tecnológica do nosso
país, trago mais alguns dados que nos permitirão avaliar a real posição do
Brasil neste campo. Não só em relação à América Latina mas sim nossa
inserção no concerto das nações. Espero que estes dados possam alertar
tanto os cidadãos que vivem o dia a dia, como aqueles responsáveis pela
política educacional. Na década de 1990, foram criados os Mestrados
Profissionalizantes, proposta arrojada que deveria ter expansão geométrica
pela necessidade que temos destes profissionais. Não foi o que ocorreu, pois
dispomos de 3.000 cursos de Pós-Graduação Clássicos e apenas 155 daqueles Profissionalizantes. Neste tempo, ocorreu grande expansão do Senso Latu,
representado por Cursos de Especialização e MBA (Master of Business
Administration), que não têm o mesmo rigor daqueles. Assim, ainda estamos
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longe de alcançar o desafio de colocar recursos humanos de sólida formação
nas empresas que são os verdadeiros motores do progresso. Temos, contudo,
metas ambiciosas. Hoje formamos cinco Doutores por 100 mil habitantes,
enquanto a Coréia do Sul forma mais de 14, igualando-se aos Estados Unidos. A partir de 2010, a previsão é que entrem no mercado de trabalho brasileiro 16 mil doutores e 45 mil mestres por ano. Posso garantir-lhes que para
estes não faltarão bons empregos.
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BIORREFINARIAS
Lembro-me bem das agruras do racionamento que nos atingiu de forma devastadora à época da II Guerra Mundial. Filas para comprar pão, azeite, sal e quase todos os gêneros necessários à vida normal. Mas o pior de
todos os males concentrava-se na ausência de combustíveis para acionar
automóveis, caminhões, ônibus, tratores, etc. Tínhamos voltado à idade da
tração animal! Engenhosas soluções buscaram minorar o problema. Na Alemanha nazista, sem petróleo, desenvolveram, a um altíssimo custo, gasolina
a partir do carvão mineral. No Brasil, o engenho de nossa gente “inventou”
o “gasogênio”. Partia-se de carvão vegetal para dele extrair esse gás. O sistema era constituído de um “queimador” onde se colocava o carvão, e um
outro “trambolho” que deveria funcionar como filtro. O produto ia diretamente para o carburador dos motores e, por incrível que pareça, fazia-os
funcionar. A velocidade desenvolvida era baixa, mas permitia que pudéssemos deslocar-nos, mesmo que precariamente. Um dos problemas insólitos
para os automóveis é que tinham que carregar sacos e mais sacos de carvão
para dar-lhes alguma autonomia. Imaginem a convivência com esta sacaria
sempre a contaminar tudo com sua fuligem negra, também produzida durante a queima do mesmo! Quando o carvão acabava no meio da viagem, podia-se lançar mão de uma solução inverossímil. Colocava-se lenha na fornalha. Agora com o bagaço da cana de açúcar, poderemos produzir álcool,
gasolina etc., baseados no mesmo princípio, mas com tecnologia limpa.
Este assunto nos toca de perto, pois a área já plantada e a ser plantada de cana de açúcar na nossa região é de grandes proporções. Com estudos bem desenvolvidos pela EMBRAPA e outros órgãos de pesquisa
agropecuária, o rendimento alcançado na produção de álcool teve uma
expansão geométrica. Sabe-se hoje que uma tonelada de cana produz, por
fermentação, 90 litros de álcool, o que é surpreendente. Porém mais intrigante é saber que o álcool, assim produzido, representa apenas 30% do
poder energético contido na planta. Cientes disso, pesquisadores do IPT
(Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo) passaram a
estudar o bagaço da cana como fonte para geração de energia. Na prática,
o bagaço entra de um lado e do outro sai combustível líquido! Com isso,
será possível dobrar a produção de álcool por área plantada. O processo
não é simples, porém é eficiente e limpo. O bagaço é peletizado e colocado em um equipamento já desenvolvido pelo IPT, no qual será produzido
um gás (lembram-se do gasogênio?) que, uma vez muito purificado, será
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bombeado para um reator catalítico. Neste, por processos sintéticos, serão
produzidos combustíveis como metanol, etanol, gasolina, diesel, amônia,
etc. Com essa tecnologia, é possível visualizar a transformação de uma
simples usina de açúcar e álcool em uma Refinaria de Biomassa, produzindo os mais diversos produtos de uma refinaria de petróleo convencional, a
partir de uma fonte renovável e limpa. Ficará, assim, vencido o desafio da
dependência do petróleo como fonte de energia finita.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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PLANETA TERRA
A presença do astronauta Marcos Pontes girando em torno de nós na
Estação Orbital Internacional, localizada a 450 km da terra, leva-nos a pensar no nosso Planeta, que dever-se-ia chamar Água e não Terra, uma vez que
75% de sua superfície é constituída desta. Este pequeno astro em que vivemos tem, segundo os entendidos, 4,6 bilhões de anos. Para simplificar, imaginemos que a Terra fosse uma pessoa com 46 anos de idade. Até os sete
anos, nada sabemos sobre este “ser”. Até ele fazer 42 anos, sabe-se também
muito pouco a seu respeito. Os dinossauros e outros animais só apareceram
aos 45 anos. Os mamíferos surgiram apenas nos últimos oito meses. Na metade da última semana, alguns macacos evoluíram para um Homem que se
parecia muito com eles. O “Homem Moderno” só apareceu nas últimas quatro horas. Decorreu apenas uma hora desde que o homem descobriu a agricultura e deixou de ser nômade. A revolução industrial surgiu no último
minuto. Nos 60 segundos seguintes, o homem conseguiu transformar um
paraíso em um lixo. Faz poucos segundos que parte da humanidade percebeu que, se quisermos resgatar este paraíso, teremos que restabelecer a harmonia com a natureza.
Devemos ser defensores do pequeno planeta que nos abriga, cuidando dele com carinho, para deixá-lo melhor para as próximas gerações.
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LEI
DE
MOORE GANHA NOVO FÔLEGO
O título pode parecer estranho, pois existem tantas leis que não
valeria a pena falar de mais uma. Esta, contudo, interessa-nos, porque acaba de ser batida. Em 14 de abril de 1965, o fundador da INTEL, Gordon
Moore, publicou na revista Electronics Magazine um artigo sobre o possível
aumento da capacidade dos computadores, que à época era muito limitada. A maneira de fazê-lo seria comprimir mais componentes nos circuitos
integrados, que são a “alma” dos processadores de dados. Ele previu que o
crescimento seria constante, mas nunca cravou um período para isso. Criouse, assim, aleatoriamente, a Lei de Moore, enunciando que a capacidade
dos computadores dobraria a cada 18 meses. Nos últimos anos, a dificuldade cada vez maior para incluir mais componentes nos processadores, já
abarrotados, levou diversos especialistas a afirmarem que a Lei de Moore
estaria chegando ao limite.
Uma novidade, porém, acaba de limpar o caminho para que a lei continue valendo pelos próximos anos. Pesquisadores da IBM acabam de anunciar uma nova tecnologia. Com ela, será possível criar chips com fios com
espessuras de menos de 30 nanômetros (bilionésimo do metro), pelo menos
três vezes mais finos do que os atuais. Os processadores mais densos atualmente são capazes de armazenar 4 bilhões de bits (unidades) de informação.
Com a extensão da Lei de Moore, os chips poderão conter 64 bilhões de bits! Vejam como a criatividade aliada à tecnologia reserva-nos
surpresas agradáveis.
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Crônicas de um Médico do Sertão
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CHARLES DARWIN
Visitando o Museu de História Natural de New York, tive a oportunidade única de conferir a exposição sobre Charles Darwin, o grande observador que mudou o conceito de evolução na natureza. Nascido na pequena
cidade de Shrewsbury, na Inglaterra, iniciou o curso de Medicina na Universidade de Edinburgh. Após assistir duas operações, desistiu da carreira. Foi
então estudar na Universidade de Cambridge, para ser Ministro da Igreja
Anglicana. Nesta Universidade, recebeu a influência do Prof. John S. Henslow,
que o interessou pelo estudo da Botânica e das Ciências Naturais, mudando
para sempre sua vida e sua visão do mundo. Para surpresa de Charles, após o
término do curso, o professor o convidou para uma viagem de dois anos ao
redor do mundo no veleiro Beagle. A viagem, na realidade, durou cinco anos,
período em que Darwin tornou-se um verdadeiro cientista. A expedição passou pela costa da África e depois por toda a América do Sul, tanto no lado do
oceano Atlântico como no lado do Pacífico. Charles fez incontáveis incursões terra adentro, a pé ou a cavalo, visitando inclusive o Rio de Janeiro.
Interessou-se por tudo que via na natureza, estudou e colecionou espécimes.
Foi na Ilha de Galápagos que, finalmente, cristalizou sua Teoria da Evolução, mostrando que todos os seres evoluem com o passar do tempo, e que o
homem tem como ascendente um tipo de macaco. A teoria era tão agressiva
no século 19 que Darwin demorou 21 anos para publicar seu livro.
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SANTOS DUMONT
Alberto Santos Dumont nasceu no sítio Cabangu, em Minas Gerais,
próximo à pequena cidade que hoje leva seu nome. Logo a família mudou-se
para a região de Ribeirão Preto, onde passou uma infância cheia de sonhos,
admirando e invejando os pássaros a voar.
Atrelar a qualificação de cientista ao nome de Santos Dumont (18731932), mesmo sabendo que ele nunca concluiu um curso universitário, não é
um exagero. O mesmo vale para a palavra designer. O seu processo de criação é um raro exemplo no campo da inovação tecnológica. Ele projetou,
construiu, testou e demonstrou seus modelos de máquinas voadoras mais
pesadas do que o ar. Voar e controlar o voo foram grandes desafios que
mobilizaram lendas, cientistas, engenheiros, curiosos e “malucos” por mais
de dois séculos. O Brasil foi predestinado a fazer parte da história neste
campo. Bartolomeu de Gusmão, jesuíta brasileiro, em 1709, mostrou com
seu Balão de Ar Quente que um dia iríamos conquistar os ares.
Outro brasileiro, Júlio Cezar Ribeiro de Souza, em 1880, deu um passo importante na sua dirigibilidade. Santos Dumont, em 1901, contornando
a Torre Eiffel, cristalizou o conceito. Em 1906, voando com o 14 BIS, dotado de um motor de 50 cavalos que havia ajudado a desenvolver, o nosso
Herói cria o Avião, que viria modificar profundamente as relações internacionais e a vida moderna. O Museu da Casa Brasileira (em São Paulo) conta
até o mês de junho toda a história deste ícone. Vale a pena visitá-lo.
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COPA
DO
MUNDO
Estamos envolvidos, com espírito cívico, para “participar” da 17ª Copa
Mundial de Futebol. Vencemos 30% das competições. Queremos chegar ao
Hexa e ter aproveitamento de 35%! Nossos jogadores, empiricamente usando o método da tentativa e erro, criaram o espetacular chute forte, com efeito. Esse fenômeno tem explicações científicas embasadas nas equações do
mundo quântico, como demonstrou o pesquisador alemão Metin Tolan, da
Universidade de Dortmund. Calculou-se a curva que a bola faz no caminho
do gol, ou o que determina a força que explode as redes e o grito incontido
dos torcedores. Um dos segredos que os jogadores bem sabem é bater na
bola com “efeito”. Pelos cálculos, esse efeito é conseguido aplicando-se na
bola uma força que a faça girar cinco vezes. Isso fará com que sua trajetória
seja parabólica, desviando-a em curva por cinco metros em direção ao centro do gol. É o efeito Magnus, muito conhecido dos físicos: a pressão sobre
um corpo empurra-o e o faz voar em curva. Outras variáveis também pesam
na finalização de um gol. A superfície da bola, seu desenho, os gomos da
esfera e o tipo da costura influem no seu deslocamento e na sua velocidade,
que, em um chute bem dado, atinge entre 75 e 100 km/h. Nestes pontos é
que a arte se encontra com a ciência, que apenas explica as qualidades com
que a natureza privilegia jogadores de corpo e alma como os nossos.
Quando comecei a escrever esta crônica, faltavam 19 dias 20 minutos e 49 segundos para o início da Copa. “Haja coração.”
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BOLA
NO
FUNDO
DA
REDE
Com todo o envolvimento da Nação na Copa do Mundo, seria impossível não participar da conjunção da torcida com nossos jogadores. São eles
que nos representam, trazendo-nos alegrias, emoções e a gostosa sensação
das vitórias. Percebemos que os times têm se aperfeiçoado na defesa: prova
disso é o parco número de gols desta Copa. A solução seria chegar ao fundo
das redes com chutes feitos de fora da área. Nicholas Linthorne e David
Everett, da Universidade Brunel, verificaram que, para chutes, especialmente
os de longa distância, as regras de balística usadas no lançamento de projéteis não se aplicam ao futebol. Qualquer estudante de física sabe que, para
conseguir a distância máxima no disparo de um canhão, o ângulo ideal de
lançamento é de 45 graus em relação ao solo. Mas no estudo dos pesquisadores britânicos, que analisou chutes feitos por atletas profissionais, os ângulos
usados foram sempre menores. Por meio de análise matemática, calcularam
que os melhores chutes de fora da área foram disparados a partir de ângulos de
20 a 35 graus. A diferença, segundo eles, deve-se à estrutura do corpo humano, para o qual é muito mais fácil aplicar uma força elevada à bola em ângulos
menores. Dessa forma, a velocidade de lançamento é muito maior. Os pesquisadores verificaram também que, ao diminuir o ângulo de lançamento, a bola
leva menos tempo para chegar ao gol. A diferença ficou na casa dos décimos
de segundo, que podem fazer grande diferença em uma difícil Copa do Mundo.
Quem sabe o Parreira possa explicar esses truques para nossos excelentes jogadores, para que nos tragam o hexa.
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PROFESSOR-EDUCADOR
Dedico esta crônica a todos os professores que merecem o título de
Educadores. A distância entre ensinar e educar é abissal, e fará toda a diferença para os discípulos que, além das necessárias informações, receberem
também amor, carinho e exemplos de vida. Um amigo enviou-me uma mensagem que me tocou fundo o coração. Um aluno, que apresentava em aula
mau comportamento e falta de interesse decorrentes de importantes motivos emocionais, foi resgatado desse quadro pelo amor e interesse de uma
professora, que soube entendê-lo e dar-lhe toda a dedicação. O autor do
texto é desconhecido, mas mostrou, com sensibilidade, a importância que os
mestres têm ante seus alunos, não apenas no curto período da mútua convivência, mas também em toda sua vida. O professor conquista seus alunos
usando uma ferramenta simples e sempre disponível: o amor. Além disso,
Saint Exupéry, em seu maravilhoso Pequeno Príncipe, chama nossa atenção
para o diálogo da raposa com o principezinho: “Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas”. Portanto, ao conquistar a confiança dos
alunos, assumimos a responsabilidade de perpetuá-la.
Afinal, o que faz toda a diferença? É o fazer acontecer, a solidariedade, a compreensão e o amor entre as pessoas. É o segredo oferecido pelo
Evangelho: tudo depende da Pedagogia do Amor. Jesus disse: “Vocês saberão que são meus discípulos se vos amardes uns aos outros como vos amei”
(Jo 13, 34-35).
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O LIVRO
Talvez ninguém melhor que Bill Gates para nos dar uma opinião sobre o livro, agente de disseminação do conhecimento nesta época de explosão da comunicação em massa pelos fantásticos meios eletrônicos de difusão. Neles estão embutidos desde os antigos telégrafo e telefone, amplificados pelo advento do rádio, televisão e, da hoje onipresente, Internet, a nos
trazer informações sobre quase todos os assuntos, ao simples toque de um
teclado. Bill Gates e sua esposa Melinda, apesar de acreditarem no poder da
Internet, como recurso educacional, dão ao livro valor excepcional na formação das pessoas e na manutenção da cultura. Recordam-se como as bibliotecas das suas comunidades foram importantes na sua educação e no seu
desenvolvimento. Insistem que as bibliotecas não devem negligenciar os seus
acervos, repositórios da história e do processo de conhecimento da humanidade, verdadeiros espelhos da sociedade.
Mas, afinal, o que é um livro? A UNESCO definiu-o como “uma
publicação impressa, não periódica, que consta de no mínimo 49 páginas,
sem contar as capas”. O livro é uma produção industrial e existe desde a
mais remota antiguidade, pela vontade do homem em perpetuar o conhecimento. Assim constituíram-se enormes bibliotecas com textos gravados em
“tabuinhas” de barro cozido, que nos permitiram saber muito da história de
que nos valemos para nortear nossa conduta e conhecer o verdadeiro potencial do homem como ser racional.
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EINSTEIN
Einstein, nascido em 14 de março de 1879, apareceu no cenário do
início do século 20 como um cometa! Formado em Física e Matemática em
1901, recebeu o título de Doutor em 1905. A partir de então, estudando a
Teoria Newtoniana, encontrou discrepâncias que o levaram à formulação da
Teoria da Relatividade. Humildemente, reconheceu que nada teria feito não
fossem as bases teóricas e práticas que Newton havia desvendado. Descrevo, porém, uma outra vertente da personalidade deste homem invulgar que
mudou conceitos e abriu caminhos jamais imaginados. A importante revista
Enciclopédica de 1969 confirma o que muitos já haviam afirmado ou adivinhado. Einstein se aproxima dos antigos mágicos, alquimistas e taumaturgos
(fazedores de milagres), devido ao seu pensamento intuitivo e não meramente analítico. Aos 29 anos, às vésperas de lançar sua fórmula E=mc²,
desapareceu da Universidade de Zurique, reaparecendo só muitos dias depois, faminto, desalinhado; um verdadeiro asceta, acepção que talvez melhor
o descreva. São palavras suas: “Eu penso 99 vezes e nada descubro; deixo de
pensar, mergulho em um grande silêncio – e a verdade me é revelada”.
Para certos teólogos, Einstein era ateu. Questionado por um rabino de
Nova York, respondeu: “Eu aceito o mesmo Deus que o grande Spinoza chama
de Alma do Universo, não creio em um Deus que se preocupe com as nossas
necessidades pessoais, mas em um Deus Cósmico”. Ele era profundamente feliz e amigo de todas as criaturas. Muitos homens são maus unicamente por serem
interiormente infelizes e não terem a fé que Einstein tinha.
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J.K.
Estou no aeroporto de Brasília. É impossível não relembrar mais uma
vez Juscelino Kubitschek. Vem à minha mente o sonho deste mineiro de
Diamantina, que transformou o Brasil de uma grande fazenda em um país
voltado para o futuro. Durante sua meteórica trajetória política, foi criticado, pois seus sonhos estavam adiante de seu próprio tempo. Agora, o imponente e moderno aeroporto leva seu nome, uma pequena homenagem para
um homem que pensou grande e realizou um plano de metas audacioso,
transformando o país que amava. São suas as palavras que transcrevo, ditas
no local onde seria construída Brasília, seguindo uma premonição de Dom
Bosco. “Deste planalto central, deste lugar solitário, que logo será o centro
das altas decisões nacionais, eu antevejo com fé uma nova alvorada para
meu país em direção ao futuro.” Maria Adelaide Amaral definiu muito bem o
que J. K. representou para nosso sofrido povo: “Os anos JK foram uma época em que os sonhos se realizavam. Ele fez cair por terra o complexo de viralata dos brasileiros’’. Para mostrar como aqueles que realizam sonhos são
perseguidos, lembro-lhes que J. K., após terminar seu mandato, enamorado
pelo planalto central, comprou uma pequena fazenda em Luisiana. Viajando
para este recanto, o avião que o conduzia sofreu uma pane no motor. Apesar
dos apelos do piloto para pousar em emergência no aeroporto de Brasília, foi
proibido de fazê-lo. De nada adiantou a truculência, hoje este aeroporto
leva, com justiça, o seu nome.
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AMAZÔNIA
Em 1938, Gastão Cruls escreveu o livro A Amazônia que Eu Vi.
Frequentava eu, em 1949, o então Colégio Estadual de Rio Preto, depois
transformado em Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, quando
tive acesso, na biblioteca da instituição, à descrição do mundo encantado do Amazonas. Desde então, jamais deixei de me interessar por esta
vasta e cativante região do mundo, com suas características únicas e
inigualáveis. Visitei-a muitas vezes, podendo viver o esplendor de seus
rios gigantescos, suas matas impenetráveis, seus ribeirinhos isolados de
tudo, tão brasileiros como nós.
Estive lá, recentemente, participando das comemorações da implantação definitiva do Serviço de Cirurgia Cardíaca da Universidade Federal do
Amazonas e da implantação do Curso de Pós-Graduação Stricto-Sensu da sua
Faculdade de Medicina. Imaginem a diferença sentida entre os escritos do
Gastão Cruls e a modernidade e pujança de uma Manaus que se industrializa, com mais de 500 unidades fabris e provê ensino de qualidade à população de todo aquele imenso Estado.
A Amazônia tem 25% de toda a água doce da terra, é a maior floresta
tropical do mundo e representa 60% do nosso território. O seu potencial de
vida vegetal, animal e de recursos minerais deve ser nosso orgulho, e merece
ser preservado como jóia preciosa de nossa coroa. Todos os brasileiros deveriam ter a oportunidade de conhecê-la para admirá-la e defendê-la.
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GÊNIOS
Eis algumas recomendações que nos foram presenteadas por reconhecidos gênios, como Albert Einstein, talvez o maior deles no século 20. A
tradução que faço é livre, mas mantém rigorosamente o sentido transmitido.
1 - Qualquer tolo pode tornar as coisas maiores e mais complexas,
mas é necessário um toque de geniliadade e muita coragem para mover-se na
direção oposta.
2 - Imaginação é mais importante que conhecimento.
3 - Nas dificuldades moram as oportunidades.
4 - Não podemos resolver problemas usando o mesmo raciocínio que
usamos para criá-los.
5 - Quem nunca fez um erro, jamais tentou algo novo.
6- Curiosidade, obsessão, paciência canina, combinadas com
autocrítica, são mais importantes que talento na criação de idéias brilhantes.
7 - Temos que estar permanentemente inspirados para realizar nossos desejos.
8 - Muitos acreditam ser fundamental a esperteza, mas o mais importante é dedicarem-se longamente sem esmorecer, sobre os problemas
que enfrentam.
9 - Não é necessário ter talento especial para resolver problemas, o
que temos que ter é permanente curiosidade.
10 - Intuição é mais importante que dedução.
Espero que essas frases possam levá-los à maior dedicação na busca
do sucesso que merecemos, o que certamente multiplicará as oportunidades
do país em que vivemos.
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APOCALIPSE
Vivemos uma época em que a violência e a falta de amor dominam
as nossas preocupações, criando a sensação de insegurança e medo em
nosso cotidiano, como uma espada apontada contra nossas vidas. Seria
muita pretensão querer entender o fenômeno como um todo. Aventuro-me
a fazer algumas considerações das causas deste mal que se alastra e se
perpetua, sem que possamos vislumbrar uma solução. Coloco como as “bestas” deste apocalipse quatro sentimentos arraigados no ser humano, que
perde a capacidade de lutar contra essas forças malignas. São elas: Inveja,
Dinheiro, Fanatismo e Orgulho. A Inveja é um sentimento baixo, que se
opõe à emulação, pois, ao contrário de superar o competidor por qualidades nobres, tenta, a todo custo, destruí-lo. O Dinheiro, fundamento do
capitalismo burro, traz no seu bojo o sentido de poder, domínio, luxúria e
todas as suas consequências, destruindo famílias e minando a sociedade.
O Fanatismo tem consequências funestas. Os exemplos estão na mídia
todos os dias a mostrar-nos como somos imperfeitos e facilmente levados
a atos de terror por convicções falsas. O Orgulho faz do homem o déspota
que não mede o efeito destrutivo dos seus atos, ao perder os mínimos
valores de um ser humano racional. Quem sabe um dia esses quatro sentimentos, vindos das profundezas do nosso DNA defeituoso, sejam eliminados e possamos viver em paz e felicidade plenas.
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CÉU CARREGADO
DE
RAIOS
Os raios são o resultado de tempestades que, por sua vez, são causadas por massas de ar úmidas e quentes que atingem grandes altitudes na
atmosfera. Essas massas de ar, ao serem impulsionadas para cima, encontram temperaturas mais baixas, transformando-se em gotículas de água e
logo em seguida em partículas de gelo. No interior destas nuvens denominadas Cúmulos Nimbos (CB), existem correntes ascendentes e descendentes
de altíssima velocidade. Essas correntes movimentam as partículas de gelo
para baixo e para cima de forma repetitiva. O atrito entre elas carrega as
nuvens de eletricidade eletrostática. Cria-se, desta forma, o potencial elétrico para deflagrar os raios, que resultam em consequências muitas vezes desastrosas. No Brasil, ocorrem 60 milhões de descargas elétricas por ano, gerando prejuízos de mais de 1 bilhão de reais Atingem mais de 500 pessoas
anualmente, destas, cerca de 100 morrem. As mortes, na grande maioria,
decorrem de parada cárdio-respiratória. Instituição de treinamentos da população na recuperação deste quadro dramático poderia salvar muitas vidas.
A região da grande São Paulo é a que mais raios recebe. São 12 eventos por
quilômetro quadrado por ano, um número assustador! O grande vilão neste
caso é o processo de urbanização. A enorme quantidade de áreas asfaltadas,
o crescimento vertical com grandes massas de concreto e os poluentes emitidos pelas indústrias e meios de locomoção motorizados produzem verdadeiras “ilhas de calor”, que são uma fonte inesgotável de tempestades.
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VIAGENS
Partir sempre nos enche de expectativas e curiosidades, mesmo que
seja quase a rotina de nossas vidas. Voltar nos traz a sensação de retornar ao
ninho, com a proteção e o carinho que nos envolvem no convívio de todos
os dias. Retornamos a nossa rotina, à simplicidade da vida, que incluem a
família, os amigos e o trabalho, coisas simples que nos fazem sentir parte de
uma comunidade que nos envolve e nos protege.
Ir e voltar representam a própria existência, pois, de uma forma ou
outra, estamos sempre indo e voltando, não de uma viagem, mas dos próprios desafios que se nos apresentam a cada momento, levando-nos a decidir qual o melhor caminho a percorrer. Podemos, portanto, dizer que viver
é uma eterna viagem com partidas e chegadas. Muitas partidas são dolorosas e tristes, outras, alegres e emocionais. O retorno às nossas origens deveria ser sempre agradável ao nos devolver o passado que está guardado
em nosso DNA, parte integrante do nosso ser. Viver é uma aventura a ser
escrita como um romance com final feliz. São felizes aqueles capazes de
fazer de sua vida uma ópera em atos de bondade e muita compaixão. Este
é o sentido de uma existência bem vivida com todas as suas dificuldades e
a sensação de vitória ao superar as próprias expectativas. Não poderia terminar este pequeno ensaio sem citar aqui um trecho do “Testamento” de
Manuel Bandeira, um dos nossos poetas maiores: “Vi terras de minha terra, por outra terras andei, mas o que ficou marcado, neste meu olhar fatigado, foram as terras que inventei”.
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ENERGIA LIMPA
O planeta Terra é nossa “casa”. Para continuarmos a usufruir todas
as comodidades e belezas deste paraíso, é indispensável mantê-lo limpo,
sem renunciar ao progresso. Ninguém pensa hoje em fazer uma viagem em
um ecológico carro de bois, viver às escuras, sofrer os rigores do inverno,
deixar de ouvir rádio, ver televisão, abandonar os computadores, etc. Para
tudo isso e muito mais precisamos de energia! Surge assim o conceito de
energia limpa para continuar desfrutando a tecnologia de que dispomos. O
álcool como fonte de energia renovável, pouco poluidora, desenvolvida no
Brasil, é um exemplo emblemático de criatividade. Existem outras alternativas, muitas delas mirabolantes, como a que lhes descrevo. Trata-se de um
conversor de energia solar, constituído por um coletor de calor, que tem uma
base de material transparente do tamanho de um campo de futebol. Placas
metálicas colocadas no seu interior se aquecem por irradiação. A temperatura
nesta “estufa” fica cerca de 40 graus mais alta que aquela do ar externo. No
centro desta base há uma chaminé com 1.000 metros de altura (duas vezes
mais alto que o Empire State). Estrategicamente entre a base e a chaminé são
instaladas turbinas que giram pela passagem do grande fluxo de ar, que é sugado da base para a enorme chaminé produzindo eletricidade. O equipamento
poderá produzir 200 mW por hora, dia e noite. Energia suficiente para suprir
uma cidade de 200 mil habitantes. Um protótipo menor já funciona, provando
que esta é mais uma alternativa para manter nossa “casa” limpa.
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JARDIM
OU
QUINTAL
A “reinvenção” do álcool como combustível ideal nesta época de
demanda desenfreada por mais energia, com menos poluição, não é unanimidade entre aqueles que se aventuram em fazer previsões. Lester Brown, um
já vivido ambientalista, lança dúvidas sobre o envolvente tema. Faz uma
projeção que é no mínimo preocupante: “o uso do milho para produzir álcool desencadeou uma disputa épica entre os 800 milhões de donos de carros
no mundo e os pelo menos 2 bilhões de pobres do planeta”. O Brasil pode
levar vantagem nesta disputa talvez sem destruir completamente a agricultura de subsistência. Produzindo álcool a partir da cana de açúcar, gasta-se
uma unidade de energia para obter-se oito. No caso do milho, emprega-se
uma unidade de energia para desenvolver míseras 1,3 unidades. Mas nem
tudo é tão simples. A área a ser plantada em cana para suprir o mundo com
uma quantidade apreciável de álcool é enorme e pode transformar o Brasil
no quintal do mundo, ao contrário do sonhado jardim. Explico-me: o álcool,
como os outros produtos biocombustíveis, tem baixo valor agregado. A mão
de obra empregada cria verdadeiros escravos dos modernos senhores de engenho. Exportamos produtos primários que empregam infelizes com
baixíssimos salários. Importamos produtos manufaturados que criam empregos altamente remunerados. Estamos importando pobreza para nosso sofrido povo. Cria-se um círculo desastroso, ao contrário do tão desejado circulo
virtuoso. John Kennedy, presidente dos EUA no início dos anos 60, estava
certo prevendo que o Brasil seria o quintal dos americanos.
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Domingo Braile
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PARÁBOLA
Imaginem que, no final do século 19, tenha aparecido um gênio, destes que povoam as estórias e moram em lâmpadas mágicas. Este gênio prometeu um grande benefício à humanidade, pois permitiria que as pessoas
pudessem visitar locais distantes do seu cotidiano. Até então, a maior parte
dos habitantes estava confinada a não mais que uns poucos quilômetros ao
redor do local de seu nascimento. Andavam a pé, quando muito a cavalo, ou,
os mais abastados, em carroças puxadas por animais. Com essas alternativas,
poderiam aumentar um pouco seu raio de ação, sem esforço pessoal. Aqueles mais privilegiados, morando à beira de rios ou mares, tinham a vantagem
de navegar com a força dos remos ou aproveitar-se dos ventos para deslizar
sobre as águas, visitar lugares mais distantes, descobrir novas terras e outras
gentes. De outra forma, não era possível longas travessias. O gênio prometia-lhes viagens e transporte de mercadorias, sem esforço físico. Haveria deslocamentos continentais e transcontinentais em altas velocidades. A promessa seria cumprida com adventos de navios a motor, trens, automóveis,
ônibus, caminhões, aviões, etc. O planeta seria uma aldeia global! Fazia apenas uma exigência. Para satisfazer o seu amo e senhor, exigia o sacrifício,
todos os anos, de milhares de seres humanos: os mais amados, mais jovens,
mais bonitos, mais trabalhadores, enfim, os que mais pudessem satisfazer
seus distorcidos desejos. O presente foi aceito. O mundo mudou, as relações
humanas também, mas o preço que pagamos é muito alto!
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OUTRA OPINIÃO
Tenho recebido dos engenheiros aeronáuticos do ITA informações
que buscam explicações para o acidente do Airbus 320. Relato aqui alguns
trechos da entrevista que Kenneth Funk deu à BBC Brasil. Ele é professor
de Engenharia da Universidade de Oregon nos EUA.
Para Funk, especialista na interação do homem com os computadores, o alto nível de tecnologia presente atualmente nos aviões pode levar os
pilotos a confiarem neles mais do que deveriam.
Em 1998, conduziu um amplo estudo para verificar como a automação
das cabines dos aviões estaria afetando os homens no comando das aeronaves. Descobriu que os computadores e a “sofisticação” dos aviões criaram
novos desafios para os comandantes.
A automação substituiu funções que antes eram do piloto. Este se tornou um supervisor de sistemas, tendo menos funções no sentido de controlar
o avião de momento a momento. O piloto destes aviões programa o computador, determina os parâmetros e simplesmente monitora a automação.
Quando tudo funciona bem, a pilotagem fica muito fácil. Contudo,
se algo incomum acontece, o piloto pode não estar suficientemente alerta
para lidar com a situação com a rapidez necessária. Criam-se as condições
para o acidente pela confluência de múltiplos e variados fatores, que se
juntam para provocá-lo. A culpa nem sempre é do piloto, mas ele é uma
pessoa muito conveniente para se culpar porque geralmente está morto e
não pode se defender.
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Domingo Braile
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LUZ ELÉTRICA
O mundo mudou quando Thomas Alva Edson, em 1880, construiu a
primeira lâmpada incandescente. Parodiando, podemos dizer que, até então,
vivíamos nas trevas. A invenção separou a era do fogo da era moderna. A
conquista foi emblemática, particularmente pela persistência deste inventor, que nunca desanimava. Certa vez, depois de mais de 1.000 tentativas
frustradas, perguntaram-lhe se não estava cansado de tentar usar a eletricidade para produzir luz.
Respondeu imediatamente: “de nenhuma maneira, agora já sei mil
maneiras que não dão certo”. Isso deveria servir de incentivo para nós, e
particularmente para os jovens. Nunca considerem um fracasso algo negativo, pelo contrário, deve incentivar-nos a prosseguir!
Finalmente, usando um filamento de bambu carbonizado, alcançou
o desejado sucesso, durava muito pouco, e logo foi substituído por
Tungstênio. Um “Metal de Transição” que resiste a mais de 3.000 graus de
temperatura e é usado até hoje. Ao longo dos séculos 19 e 20, muitos
foram os progressos no campo da iluminação e da ótica, mas foi só na
década de 1960 que outra fonte de luz viria a produzir a segunda revolução
neste desafiante campo da física aplicada. Havia sido inventado o Laser,
“ampliação de luz por meio da emissão estimulada de radiações”. Ao contrário da luz elétrica, o Laser possui propriedades especiais, criando
aplicativos antes inimagináveis com a luz comum. Suas aplicações na transmissão de informações, com as fibras ópticas e na medicina, são os exemplos mais evidentes da era “fotônica”, um novo ramo da ciência.
Depois da invenção do Laser, surgiu uma terceira revolução no cativante campo da óptica. Trata-se do desenvolvimento dos LEDs (Diodo
Emissor de Luz). Eles funcionam de forma completamente diferente na
maneira de produzir luz. Num material semicondutor (presente nos diodos
usados em circuitos eletrônicos), usando-se tecnologia avançada, é possível
conseguir a formação de “buracos” na sua estrutura. A passagem de corrente elétrica nestes diodos “defeituosos” produz uma recombinação dos elétrons, do que resulta a emissão de luz. Todas aquelas luzinhas dos aparelhos
de som ou dos eletrodomésticos são LEDs.
Eles são muito convenientes, elegantes e têm uma vida longuíssima,
duram muito mais que os aparelhos onde são utilizados. Até pouco tempo,
os LEDs eram eficientes, porém bastante fracos em luminosidade. A grande
novidade é que agora consegue-se produzir LEDs de alta potência, capazes
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de emitir luz intensa, com foco definido e totalmente branca. Os LEDs são
muito eficientes na conversão da energia, produzindo iluminação com uma
economia superior a 50% em relação aos valores atuais. Além dos LEDs à
base de semicondutores, há hoje um grande avanço com os chamados OLEDs
(Diodo Orgânico emissor de Luz), que produzem luz à base de substâncias
orgânicas. Se os LEDs convencionais já estão fazendo uma revolução, os
OLEDs irão amplificar esses efeitos, pois são emissores de luz maleáveis e
transparentes, com promissoras aplicações. A imaginação será o limite.
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Domingo Braile
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MÉDICOS
E
BARBEIROS
Um médico, Dr. Alexandre Haman, escreveu um artigo para Folha de
São Paulo, que não foi publicado. Frustrado, decidiu divulgá-lo na internet.
O seu conteúdo é emblemático e todos deveriam conhecê-lo acessando: http:/
/www.braile.com.br/medicosebarbeiros.htm. Transcrevo, livremente, alguns
trechos sobre o problema que atinge a classe médica e que desembocará em
graves problemas para a população. Escreve ele: “Tendo ido ao barbeiro,
paguei R$ 40,00 referentes ao corte do cabelo e mais 10% de gorjeta. No
consultório, me deparo com uma situação constrangedora, uma paciente recusava-se a fornecer seu cartão do plano de saúde, pois alegava que era
retorno! Eu pagara R$ 44,00 ao cabeleireiro e, no mesmo dia, tivera recusado uma cobrança de R$ 34,00 referente a uma consulta médica.
No mês seguinte, voltei ao barbeiro. Conversando com o Amauri,
ele me disse que fizera curso de um ano em escola de cabeleireiros. Considerando o investimento em formação técnica e profissional, se eu recebo
R$ 34,00 por uma consulta, deveria pagar não mais do que R$ 5,00 para
cortar o cabelo! Acontece que o Amauri maneja muito bem a tesoura e dá
o que o cliente quer: satisfação.
E nossas diferenças? Bem, frequentei a faculdade seis anos, após dificílimo vestibular. Fiz prova para residência, um funil ainda mais apertado.
Mais dois anos básicos se foram e, para aprender uma especialidade, mais
quatro ou cinco anos!”
Muitos médicos têm vergonha de falar sobre isto.
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LUCANO
Assim era conhecido São Lucas na sua infância e juventude. Comemoramos nesta semana o Dia do Médico, pois dia 18 de outubro é o dia do Santo
protetor de quem se dedica a diminuir o sofrimento dos seus semelhantes.
Lembro o legado de Hipócrates: “Sedare Dolorem Opus Divinum
Est” - Sedar a Dor é obra Divina.
São médicos todos aqueles que se envolvem neste mister, quase divino, fazendo da sua vida um contínuo ato de amor. São médicos, não apenas
aqueles que têm um diploma. No sentido humanístico, médicos já nascem
médicos, a escola apenas organiza seus conhecimentos. Que dizer das parteiras, curandeiros, carimbambas, benzedores, pagés e tantos outros que se
dedicaram e se dedicam a cuidar de doentes, simplesmente porque assim
lhes foi determinado por Deus?
Os médicos diplomados, que não nasceram com o dom, exercem a
profissão sem a compaixão que deve sempre acompanhar todo ato diante de
quem sofre. São Lucas foi um ícone indelével. No seu livro Médico de Homens
e de Almas, Taylor Caldwell traçou o perfil deste Santo, exemplo para todos
que querem servir ao próximo nesta profissão milenar.
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A VITÓRIA
DA
DIVERSIDADE
A delegação do Brasil que disputa a Paraolímpiada em Atenas, na
Grécia, brinda os brasileiros e o mundo com um show de talento e excelentes performances.
Esses superatletas vencem primeiro suas próprias carências, seus traumas, seus gigantes interiores, seus limites. Considerados pela nomenclatura
politicamente correta como “portadores de direitos especiais”, essas pessoas
assumem hoje não só o pódio da Paraolimpíada. Eles representam, na verdade, uma força extraordinária e exemplar dentro dos grupos que, considerados minorias, ganham cada vez mais visibilidade com o exercício crescente
da diversidade em nosso país. A questão da diferença hoje é tratada com um
novo olhar em todo o mundo, e o Brasil tem mostrado ganhos reais neste
campo sempre tão delicado e de tantas barreiras e preconceitos.
A revista Exame Você S/A revelou, recentemente, alguns números que
mostram a realidade da diversidade no Brasil. Eis os números da diferença:
- 46% da população é formada por negros ou pardos;
- cerca de 3% da população é de homossexuais;
- há 24,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência;
- cerca de 12% da população brasileira têm mais de 55 anos.
Diante disso, percebemos que é cada vez mais urgente que o ser humano deste novo século se prepare de forma integral para conviver adequadamente com a diversidade. Bons modos, cultivo da ética, quebra de tabus,
eliminação de (pre) conceitos, desenvolvimento de habilidades sociais e de
relacionamentos, respeito ao próximo, interação com as diversas naturezas e
um olhar novo e oxigenado sobre as diferenças de cada um tornam-se fatores
indispensáveis para quem deseja se relacionar melhor, ter sucesso profissional, ser reconhecido em sua comunidade e, principalmente, para quem deseja estabelecer uma vivência plena de felicidade e abundante de boas e prósperas realizações. Porque nossas vidas só adquirem realmente algum sentido
quando fazemos a diferença em outras vidas. Isso é particularmente notável
no mundo plural em que vivemos hoje. O desafio da diversidade está aí.
Basta encará-lo com os olhos do amor, da humildade e da igualdade. A alegria verde-amarela que vemos hoje, subindo ao pódio da Paraolimpíada, é
apenas um dos bons exemplos do retorno que nossa sociedade terá ao tratar
a diversidade com dignidade e respeito.
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COMO VENCER
O
SUBDESENVOLVIMENTO
Nestes tempos de globalização, tem-se tornado lugar comum a frase
acima, geralmente acompanhada de um sem número de fórmulas mágicas.
Umas são impossíveis de implementar, outras pecam por não terem em seu
bojo qualquer sentido. Considerando que somos livres para emitir opiniões,
quero também dar a minha. Estou mais do que convencido de que a única
maneira de nos transformarmos num país digno e justo será multiplicarmos,
de forma exponencial, os conhecimentos de nossa população. A única forma de realizar esse desejo e essa necessidade é cuidar da Educação como
área prioritária em qualquer nível. Se isso vale para a nação como um todo,
não deixa de ser verdade para as cidades que tenham o desejo de competir
no mercado global, pelo menos em igualdade de condições. Não podemos
admitir que nossas crianças frequentem a escola apenas umas poucas horas
por dia. Teríamos que ter a preocupação de mantê-las em ambiente de difusão de conhecimentos pelo menos em jornadas de seis horas, tirando-as da
rua (sempre má conselheira) ou da frente de um aparelho de TV, que nada
acrescenta a sua cultura. Deveriam permanecer na escola de forma que pudessem aprender ao conviver com professores, que teriam a função de ensinar de fato, e não simplesmente cumprir um horário apertado e geralmente
pouco produtivo. O professor moderno deixou de ser apenas um transmissor
passivo de conhecimentos. Ele tem que se tornar um facilitador, como já
pregava Paulo Freire; ensinar aos seus alunos os caminhos a serem seguidos
para que possam adquirir as habilidades que lhes serão úteis durante toda a
vida. Como ter estes professores? 1 - Pagando-lhes salários dignos para que
possam voltar a representar as pedras angulares da sociedade; 2 - reciclandoos com cursos que ensinem não as matérias convencionais, mas, principalmente, a arte de ensinar nestes tempos modernos; 3 - fazendo que toda a
população se sinta responsável por aumentar o nível educacional, convencendo-os de que é esta a única maneira de termos um futuro melhor; 4 criando um ambiente social de ensino-aprendizado contínuo que propicie
atualização constante e acesso a informação atualizada. Não se trata apenas
de pensarmos em ensino elementar, temos também que nos preocupar com
o profissionalizante e o universitário, sem os quais não poderemos dispor de
mão-de-obra especializada ou de profissionais que se responsabilizem pelo
progresso, segurança e desempenho da nação. Sem preocupação com a qualidade do ensino, estaremos eternamente condenados a ser cidadãos de segunda classe, impedidos de competir no mundo moderno, cada vez mais
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exigente na valorização de conhecimentos sólidos e atualizados. Sem qualidade, jamais atingiremos as metas que eventualmente nos propomos, pois
seremos barrados pelos nossos concorrentes, melhores preparados.
Repensar a Educação é prioridade. Não podemos mais visionar o
Brasil sem o brilho da estrela do ensino e do conhecimento a nos orientar
para um futuro de conquistas, desenvolvimento e justiça social.
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É PRECISO EDUCAR
O
OLHAR
Três pedreiros trabalhavam juntos numa obra. Perguntaram ao primeiro o que ele estava fazendo, ao que respondeu: “Estou erguendo uma
parede”. A mesma pergunta foi feita ao segundo, que assim respondeu: “Estou fazendo uma casa”. Pergunta idêntica foi endereçada ao terceiro pedreiro, que disse: “Estou construindo uma cidade.”
O relato dos três pedreiros é exemplar ao sintetizar tanto a limitação
quanto a potencialidade da visão do ser humano. É possível minimizar gratas realizações; depreciar bons atos; resistir à satisfação existente em uma
missão cumprida com êxito. O olhar que temos dos nossos próprios feitos e
a visão com a qual observamos o mundo dependem da capacidade de alcance e da qualidade de apuração do nosso foco. Por que, em uma mesma ocupação, alguém acredita estar apenas erguendo uma parede, enquanto outro
crê estar construindo uma casa e outro, finalmente, regozija-se de estar construindo uma cidade? As respostas a essas perguntas encontram-se, certeiras
e latentes, na intensidade do olhar de cada um dos envolvidos. E, neste
momento, é preciso entender que a visão – que é quem apura e regula o foco
do olhar – é controlada pela alma e pelo coração.
Quanto maiores forem a saúde, a harmonia e a fé do enlace alma e
coração, tanto menor será o grau de miopia da visão de cada pessoa.
“Se teus olhos forem bons, todo teu corpo será bom”, diz a Palavra
de Deus, atestando que é a alma e o coração quem definem a visão e conduzem o olhar. E é com alegria que vemos acontecer hoje, em todos os níveis
da sociedade brasileira, um olhar de amor sobre fatos e circunstâncias que
podem ser mudados. De grandes empresas a pequenos empreendimentos, de
todos os degraus da formação escolar e também da universidade, passando
pelas ONGs e instituições que fazem os vários núcleos de organização de
um país, constatamos que o olhar do Brasil, civil e não-governamental, está
se colocando a favor do próximo. São iniciativas maravilhosas, cheias de
genialidade e criatividade, lançadas a favor da parcela brasileira que talvez
nunca pudesse fazer a diferença, para melhor, não fossem o apoio, o calor e
a doce presença de um bom olhar. Há trabalhos belíssimos, de resgate de
cidadania, de formação de mão-de-obra, de restauração de vidas e lares, de
recuperação de jovens viciados em drogas, de alfabetização, de capacitação
profissional para mulheres, de ministração de alegria e força para crianças
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vítimas da Aids ou do câncer, entre centenas de outras expressões de amor e
fé no voluntariado.
Não devemos crer em modismo. Devemos ter a absoluta certeza de
que o olhar de amor e de responsabilidade social do Brasil para o seu povo é
uma força consolidada, que tem no avanço do Terceiro Setor a representação organizada de toda a sua potencialidade. É preciso acreditar que, cada
vez mais, nosso país vai educar, com generosidade e brilhantismo, o olhar
para as coisas que realmente valem a pena. Se nosso olhar for bom, todo
nosso corpo será bom e, com certeza, em um futuro ideal e bem próximo, no
Brasil, todos responderemos que juntos construímos não apenas uma cidade, mas, sim, um país.
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SOBERANIA BRASILEIRA
O pior tipo de colonização talvez seja a intelectual, pois atinge de
forma profunda todas as pessoas de um país, não poupando nem as mais
cultas e nem os seus governantes. Este receio surge cada vez que vemos
atitudes tendenciosas da população ao pensar que tudo que vem “de fora”
é melhor do que aquilo que é desenvolvido e produzido no seu país, seja
de ordem material ou intelectual. O Brasil infelizmente não foge à regra e,
tendo sido colônia até os fins do século 19, ainda mantém em seu cotidiano hábitos de se referir à metrópole como fonte de todo saber e de toda
eficiência. Sinto, porém, que os tempos e comportamentos estão mudando
e o povo brasileiro já não se curva docilmente aos absurdos de países
hegemônicos como os Estados Unidos da América do Norte. Com certeza,
a recente decisão daquela nação de não obedecer a regras de Kiotto para a
população deste planeta mostra bem o quanto os poderosos não se importam com a vida dos habitantes da terra e nem com a sua própria. Os Estados Unidos são responsáveis pela emissão de mais de 50% dos poluentes
que destroem a atmosfera e poderão tornar o paraíso em que vivemos em
um inferno que não desejamos.
Mas este absurdo deu-me a oportunidade de compartilhar, em uma
livre adaptação, as declarações de um ilustre brasileiro, o ex-governador do
Distrito Federal, Cristovam Buarque, quando em visita a uma Universidade
Americana. Foi ele questionado sobre a internacionalização da Amazônia
por um jovem estudante, dizendo que esperava a resposta em termos
humanísticos e não de um brasileiro (como se isso fosse possível!). Buarque
respondeu-lhe que como brasileiro somente poderia falar contra a
internacionalização da maior floresta tropical do mundo, pois, por mais que
eventualmente nossos governantes não lhe prestem o devido cuidado, ela é
simplesmente nossa! Porém, como humanista, consciente do risco da degradação ambiental, até poderia imaginar o seu controle por organismos internacionais, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade. Se a Amazônia, por uma ótica humanística, deve ser internacionalizada, o mesmo deveria se feito com as reservas de petróleo do mundo inteiro, pois este é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a
Amazônia para nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se
no direito de aumentar ou diminuir a sua extração, fazendo seu preço
extrapolar a capacidade de compra das Nações mais pobres que tanto dele
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necessitam para seu desenvolvimento. Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Sendo a Amazônia uma
reserva para o planeta, ela não pode ser queimada pela vontade de um “dono”
ou de um país. Porém, queimar a Amazônia é tão grave como o desemprego
provocado por decisões arbitrárias de especuladores globais, arautos da
famigerada globalização. Não podemos deixar que as reservas financeiras
sirvam para “queimar” países inteiros na volúpia da especulação desenfreada. Antes da Amazônia, seria interessante ver a internacionalização de todos
os museus do mundo. O Louvre não deveria pertencer apenas à França. Os
museus do mundo são guardiões das mais belas peças produzidas pelo gênio
humano. Não se pode deixar que este patrimônio cultural, como o patrimônio
natural amazônico, seja manipulado ou destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Como exemplo grotesco deste descaso, não faz muito
tempo um milionário japonês decidiu enterrar com ele o quadro de um dos
maiores mestres da pintura! Antes desta aberração, tal obra prima deveria ter
sido internacionalizada! Nova York é a sede das Nações Unidas e nem sempre é permitido aos mortais de países periféricos ou não alinhados comparecer às reuniões daquela entidade, por serem barrados nas fronteiras dos Estados Unidos. Para evitar esse constrangimento e essa discriminação, Nova
York deveria ser também internacionalizada. Se os americanos querem internacionalizar a Amazônia, pelo “risco” de deixá-la na mão dos brasileiros,
internacionalizemos todos os seus arsenais nucleares, até porque já mostraram que são capazes de usar essas armas, provocando destruição milhares
de vezes maior que as lamentáveis, porém limitadas, queimadas feitas nas
florestas do Norte do Brasil.
Os povos do Hemisfério Norte julgam-nos sempre incompetentes,
esquecendo-se de que acidentes acontecem por fatores aleatórios e muitas
vezes independente da vontade do homem. Se não fosse assim, a Força Aérea Americana não teria bombardeado os seus próprios soldados recentemente! Quanto à competência destes povos “desenvolvidos”, tenho também dúvidas, para isso bastando relembrar as “trapalhadas” das recentes
eleições para a presidência do Estados Unidos. É interessante lembrar que
durante os debates pré-eleição, os candidatos falaram muito em internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida das nações pobres. Dívida esta resultante da usurpação que os países ricos impõem àqueles que subjugam com seu poderio econômico. Seria mais humano internacionalizar essa dívida para permitir que ninguém no mundo passasse fome e
que as crianças tivessem seus direitos assegurados para que não morram
quando deveriam viver e que possam frequentar uma escola que lhes permi286
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ta entender e participar do mundo moderno em que vivemos. Por que então
não internacionalizar todas as crianças do mundo? Cristovam Buarque terminou sua resposta, dizendo que: “como humanista, defendo a
internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como ‘brasileiro’, lutarei para que a Amazônia seja nossa, só nossa”. Espero que esta
lição de civilidade seja um estímulo para que todos continuemos lutando
pelo nosso país, nosso estado e nossa cidade. Não posso terminar sem agradecer a confiança que minha sempre professora Fulvia Tessarolo depositou
nos filhos desta terra em busca do ideal comum de tornar nossa cidade mais
alegre, mais bonita, mais acolhedora e na qual a justiça social seja a tônica
predominante. Muito obrigado, professora.
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TEMPO
Nós sentimos a passagem do tempo como uma experiência pessoal,
contidos no mundo que nos cerca. Pensamos, vivemos e agimos de acordo
com a passagem do tempo. Einstein, muito propriamente, disse: “Espaço e
tempo são os modos pelos quais pensamos neles, não as condições em que
propriamente vivemos”. Contar o tempo pela maneira convencional, usando
relógios e calendários, foi inventado pelo homem e introduzido no nosso
cotidiano independente de nossa vontade. Porém o homem sempre preocupou-se com a medida do tempo, trata-se de uma ciência antiquíssima, embora a maior parte das descobertas úteis seja relativamente recente. Imaginem
que os Cro-Magnons anotaram as fases da Lua cerca de 30 mil anos atrás, e
a primeira contagem do minuto só foi possível há “apenas” 400 anos. Tal
medida era carente de precisão, e somente com o aparecimento dos Relógios
Atômicos, há poucos anos, foi possível controlar a passagem do tempo físico com a acurácia de um bilionésimo de segundo. Na realidade, a medida do
tempo representa uma lente pela qual podemos observar o esforço da humanidade em obter informações olhando para o céu, e um espelho que reflete o
progresso da ciência e da civilização. Talvez neste ocaso do milênio, os instrumentos que dividem e medem os dias nos levem a uma melhor compreensão de como tudo começou.
Falar de tempo e de espaço obriga-nos a repetir as palavras de Albert
Einstein que, em sua obra No que Acredito, assim se expressou: “As coisas
mais bonitas que podemos apreciar são aquelas envoltas em Mistério. Elas
são a fonte de toda a verdadeira arte e ciência”. Desta forma, desvendar os
mistérios da natureza, como a medida do tempo, dá ao homem um sentido
de conquista e de satisfação dificilmente suplantado. Os egípcios tinham sua
cultura religiosa dominada por deuses representados pelo Sol e astros celestes. Sua civilização, contudo, era também dependente do ciclo anual do rio
Nilo. Este apresentava cheias regulares que anunciavam sempre a mudança
das estações. Sendo bons astrônomos e comparando os movimentos do Sol
com as mudanças do rio Nilo, eles chegaram a medir um ciclo de 365 dias
que representava um ano, numa aproximação bastante razoável com a duração do ano solar tropical. Essa medida foi depois melhorada com as observações da estrela Siriús, que observaram elevar-se no firmamento uma vez
por ano alinhada com o sol. Foi assim possível calcular a duração do ano
como sendo de 365,25 dias. Estavam quase certos. O extraordinário astrô288
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nomo grego Hipparchus, há 2.200 anos, conseguiu refinar esses cálculos
baseado em conhecimentos que seriam tediosos descrever aqui. De qualquer forma, chegou à conclusão que um ano durava na realidade 365,242
dias. O que é admirável, quando considerando os cálculos atuais baseados
nos relógios atômicos, e que nos dão a duração do ano como sendo de
365,242199 dias. Ele também calculou o ciclo da lua como sendo de 29,53058
dias, o que foi praticamente confirmado pelas sofisticadas técnicas atuais,
que mostram ter este ciclo a duração de 29,53059 dias.
Fico imaginando quanto trabalho, engenho e imaginação tinham estes observadores e cientistas do passado, que, sem dispor das facilidades
atuais, podiam chegar a cálculos tão precisos. Quanto foi importante para a
humanidade a atuação destes seres humanos privilegiados é difícil ser avaliado, mas vale a pena repetir as palavras do festejado autor do livro The
Discoverers, 1983, Daniel Boorstin: “Se tivesse sido possível calcular com
precisão absoluta os anos e suas estações simplesmente multiplicando os
ciclos da Lua, a humanidade teria ficado livre de um árduo trabalho. Mas ao
mesmo tempo teria perdido a oportunidade de estudar os Céus e desenvolver a Matemática”. As descobertas de Hipparchus foram ignoradas pelos
elaboradores de calendários, influenciados por líderes civis e religiosos, durante séculos. Mesmo Júlio César, Imperador Romano que reformulou o calendário em 46 a.C., falhou no sentido de incorporar conhecimentos já adquiridos, utilizando em seus cálculos o ano com duração de 365,25 dias,
sabidamente 11 minutos mais longo que o real. Essa discrepância mantevese inalterada até o ano de 1500, quando o Brasil já estava sendo descoberto!
Nessa época, percebeu-se que o calendário Juliano, então em uso, apresentava-se atrasado em 10 dias em relação ao Calendário Solar, o que provocava
sérias discrepâncias com relação aos dias santificados, que eram comemorados em datas não corretas. Isso levou o Papa Gregório XIII, em 1582, a
revisar a duração do ano, admitindo-o com 365,242 dias, criando o ano bissexto e eliminando, à época, 10 dias que simplesmente desapareceram! Com
a invenção dos relógios foi possível verificar que existiam certas diferenças
entre o ano solar e aquele avaliado por mecanismos que dividiam e contavam o tempo. Essa teoria foi definitivamente provada com a invenção do
relógio a pêndulo, feita por Christiaan Huygens em meados de 1600. Mas os
relógios mecânicos não eram muito precisos devido, principalmente, ao atrito e às variações de temperatura. Foi só em 1927 que W. Morrison criou o
relógio de quartzo, que é usado até hoje. Baseia-se num fenômeno físico
chamado efeito piezoeléctrico, ou seja, quando um cristal de Quartzo é submetido a uma corrente elétrica, vibra em uma frequência ultrassônica cons289
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tante que permite contar o tempo com precisão de milésimos de segundo.
Tais “relógios”, eficientes e baratos, permitiram seu uso em larga escala pela
população e aos cientistas verificarem que, devido a variações da rotação da
Terra, um “segundo” corresponde a 1/86.400 do dia solar médio, um erro
que vinha se perpetuando ao longo dos séculos, baseado na rotação terrestre. Finalmente, em 1967, a definição do “segundo” foi oficialmente divorciada da rotação da Terra. Usando agora relógios atômicos, baseados na radiação do Césio 133, medida com auxílio de raios Laser, cientistas redefiniram
o “segundo” baseados em constantes físicas imutáveis. Os ciclos de oscilação de todos os átomos de Césio são absolutamente constantes e duram
indefinidamente sem qualquer desgaste. De fato, finalmente, um medidor de
tempo perfeito! A medida de tempo que utilizamos hoje é o UTC (Coordinated
Universal Time) que é baseado no “segundo” atômico e mantido dentro de
uma margem de tolerância de 0,9 do “segundo” solar, adicionando um segundo extra quando necessário. Por que tanto interesse? Santo Agostinho,
em Confissões, referiu-se a respeito da utilidade do tempo: “Para que serve a
noção de Tempo? Quem, mesmo em pensamento, pode compreendê-lo, de
forma a poder dizer uma palavra a seu respeito? Se ninguém me pergunta, eu
sei seu significado. Se tenho que explicar para alguém, eu não sei”.
Fica para cada um a análise a respeito do Tempo e da complexidade
em medi-lo. Hoje sua medida tem interesse nas áreas de navegação, estratégica, comunicações, econômicas, sociais e tantas outras. Não podemos mais
viver sem a medida absoluta do tempo! Termino citando, mais uma vez, o
cientista do século e do milênio, Albert Einstein, que assim definiu jocosamente o tempo: “Quando um homem senta-se ao lado de uma linda mulher
por uma hora, o tempo passa rápido como se fosse um minuto. Mas deixe-o
sentado por um minuto sobre um fogão quente e este minuto será o mais
longo de sua vida”. Isto é relatividade!
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REDE MUNDIAL
Nas últimas semanas, houve uma enorme quantidade de informações relativas à Internet. Jornais e revistas, especializadas ou não, derramaram reportagens, anúncios e explicações sobre a rede mundial de informações. O fato que mais interessou a todos foi a possibilidade de acessar a
Internet gratuitamente! Nunca acreditei muito na possibilidade de fornecer
bons serviços sem que estes sejam cobrados. Há uma expressão, muito usada nos Estados Unidos, que diz “lunch is never for free”, ou seja, “não existe
almoço grátis”. As operadoras que estão oferecendo o serviço gratuito afirmam que o lucro virá da propaganda inserida em suas páginas. Não acredito
que essa possibilidade seja a finalidade única das empresas. A maior parte
delas está associada às companhias telefônicas, e, sem dúvida, o alto lucro
será decorrente da conexão que o usuário terá que manter durante a sua
“navegação” pelas páginas da Internet. Por outro lado, os provedores locais
– pequenas empresas geradoras de serviços e empregos, localizadas em quase todas as cidades brasileiras – serão ferozmente prejudicados. Não contando com grandes capitais, vivem da contribuição dos assinantes e dão lucro
às telefônicas, pagando pelo acesso à rede e propiciando ainda um enorme
fluxo de ligações para aquelas.
A característica principal da WWW (world wide web) foi a de criar
uma rede de documentos em formato HTML (hipertexto) interligados entre
si e espalhados por servidores em todo o mundo. No momento em que uns
poucos “Portais” gigantescos dominarem o sistema, estaremos desvirtuando
totalmente a finalidade mais interessante da rede mundial. Na realidade, a
Internet nasceu da necessidade de manter-se as comunicações estratégicas
do Pentágono Americano, no caso de um desastre com as comunicações
convencionais durante a guerra fria com a Rússia. Rapidamente foi percebido o alcance que o sistema poderia ter na difusão dos conhecimentos, e ele
foi assumido pelas Universidades no mundo todo. Aqui no Brasil, iniciou-se
também por esse caminho, com a criação da RNP (Rede Nacional de Pesquisa), que foi pioneira, produzindo resultados de incontável valor. Ainda hoje
o registro dos endereços eletrônicos (IP- identification protocol) é feito pela
FAPESP (Fundação de Auxílio à Pesquisa do Estado de São Paulo), entidade que pertence ao governo estadual e, como seu próprio nome diz, dedicase à pesquisa e ao seu desenvolvimento.
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A difusão dos conhecimentos pela Internet talvez tenha sido a maior
conquista deste século. O que nos assusta agora é deixar que se transforme
em mero instrumento comercial, sem qualquer finalidade científica, cultural
ou artística. A Internet tem permitido que mesmo nações, regiões, cidades
ou vilarejos afastados dos grandes centros possam dispor de tantas informações como os privilegiados cidadãos dos países desenvolvidos. Se a Internet
se transformar em simples “Loja Eletrônica”, tudo isso será perdido e, além
do mais, seremos “obrigados” a comprar os produtos nela anunciados, em
prejuízo do comércio local.
Mas nem tudo está perdido, e tenho certeza de que nossos dirigentes
e a sociedade como um todo saberão reagir de forma a preservar as conquistas fantásticas que esta tecnologia nos propiciou. A Internet, entre tantas
vantagens, recriou a troca de cartas, um costume que se havia perdido no
tempo. O “ E-mail” tem permitido que pessoas dos mais distantes pontos do
mundo se comuniquem por escrito, deixando indeléveis seus pensamentos.
Foi assim que recebi a mensagem que quero compartilhar com os amigos
leitores. O autor é desconhecido, mas sua difusão bem mostra o espírito que
deve nortear a conduta ética e moral a ser adotada neste revolucionário meio
de comunicação. Mas vamos à pequena história de um homem muito bom.
“Havia em uma cidade um senhor que era conhecido pela sua extrema bondade e pelo amor que tinha por seus semelhantes. Os anos passaram
e este senhor, tendo cumprido sua missão aqui na terra, faleceu. Subiu aos
céus e lá foi recebido por uma mocinha que operava um computador (até o
céu modernizou-se e já não tem mais as anotações no velho livro da vida).
Procurando pelo nome do recém-chegado, não o encontrou, e disse-lhe que
deveria dirigir-se ao inferno, pois lá era o seu lugar. O homem, com toda sua
bondade, não reclamou. Desceu ao inferno onde, para entrar, não exigem
nenhum crachá ou credencial. Sendo uma pessoa boa, imediatamente começou a conversar com os seus companheiros, olhar em seus olhos, mostrarlhes amor e compaixão. Em poucos dias, fazia reuniões, nas quais todos
podiam sentir-se um pouco mais felizes. Satanás tomou conhecimento do
que estava acontecendo e ficou furioso... o seu inferno estava se tornando
um paraíso! Solicitou uma audiência com Deus, que muito a contragosto, o
recebeu. O pedido do Satanás a Deus foi que retirasse imediatamente do
inferno aquele elemento que estava desorganizando o seu reino. Deus, na
sua extrema bondade, reparou o erro e trouxe o bom homem de volta ao
paraíso.” Moral da história : “Se você for bom de fato e, mesmo que por
engano for parar no inferno, alguém vai tirá-lo de lá”.
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BRASILEIRO, PROFISSÃO ESPERANÇA
“Mesmo as noites totalmente sem estrelas podem anunciar
a aurora de uma grande realização.”
Martin Luther King
Filósofos e religiosos tentam definir a esperança. Cada qual procura
explicá-la de acordo com sua visão de mundo. Os primeiros para justificar
sua crença no ser humano. Os religiosos para confirmar sua fé em Deus.
Apesar de trilharem caminhos opostos, a intenção é a mesma: encontrar a tal
da felicidade, seja por meio de ações humanas ou intervenções divinas.
E o que somos nós, médicos, em suma, senão a esperança de cura
para nossos pacientes? O nosso compromisso é o de fazer com que essa
expectativa não seja frustrada.
Por que essa busca incessante, esse conceito tão presente no consciente e inconsciente do ser humano? Talvez pelo fato de a esperança ser quase um antônimo do medo. E como o futuro sempre permanece envolto num
manto de mistério, nada melhor do que sonhar com dias melhores para superar a angústia que nos traz o presente, muitas vezes insuficiente e frustrante
para nós que temos a eterna teimosia de nunca estarmos satisfeitos com o
agora.
Claro que devemos lutar para melhorar de vida, para sermos mais felizes, mesmo porque não podemos nunca deixar de perseverar. E se nos influenciarmos pelas mazelas do dia a dia e nos entregarmos ao desânimo, certamente o imobilismo tomará conta, transformando nossa vida em um vazio.
Poderíamos ficar horas debatendo o melhor modo de se chegar aonde cada
pessoa quer, mas deixemos de lado os aspectos individuais da esperança, para
focar nosso olhar sobre o que pode representar este conceito para uma Nação.
Ouvimos desde criança o mote de que o “Brasil é o país do futuro”.
Embora exista muita frustração por sabermos que este “futuro” está demorando demais para chegar, a frase carrega uma carga enorme de esperança de
o potencial imenso que este país possui deixar de ser uma utopia para tornarse alegre realidade.
Entretanto, não podemos nos esquecer de que a esperança motivou
os antepassados de muito de nós, que abandonaram seus países para migrar
a uma terra desconhecida em busca de dias melhores. Milhões de imigrantes
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polvilharam e enriqueceram a nossa terra com suas tradições, sua língua, sua
cultura, permitindo que deste amálgama surgisse um povo mestiço, que traz
em si a cordialidade como marca inerente.
No início do século 21, as incertezas sobre o que o futuro reserva
para o Brasil ainda são grandes. Temos problemas diversos, fruto principalmente da corrupção e da má distribuição de renda, que geram graves conflitos, inclusive a violência crescente, que assusta a todos.
As nuvens escuras não podem inibir a perseverança, que deve obrigatoriamente andar de braços dados com a esperança, que continua sendo fundamental para transformarmos o Brasil dos nossos sonhos, pois, parafraseando o grande Martin Luther King, essas nuvens podem estar escondendo
uma bela alvorada.
Portanto, jamais percamos a esperança, ilustrada na peça de Paulo
Pontes, cujo nome emprestamos para dar título a este escrito, e que tão bem
retrata os brasileiros. Mesmo nos momentos em que tudo parece dar errado,
em que não parece haver perspectiva para nada, precisamos concentrar nossos esforços para fazer o possível a fim de superar o momento difícil, pois o
imobilismo não combina com a esperança.
Com cada um consciente de seus direitos e deveres, fica mais fácil
sonhar e, por consequência, ter esperança de que dias melhores virão para
cada indivíduo e para o nosso Brasil.
Tracemos, então, o objetivo de fazer a nossa parte para que o futuro
seja mais rápido e benfazejo para todos.
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VIDA
Muitos a descreveram com grande propriedade e sabedoria. Faço-o,
não do ponto de vista filosófico, mas criando uma comparação a mim ditada
pelos anos de quem já viu o sol nascer muitas vezes.
Imagino a nossa vida como se estivéssemos navegando em direção à
foz de um caudaloso rio. Por vezes, nos encontraremos em serenos, em remansos, convivendo placidamente com a nossa amada família e amigos que
acreditamos serem eternos, compartilhando nossas alegrias, angústias e tristezas. Podemos ali permanecer por muito tempo ou ter uma passagem breve
por este lugar acolhedor. O destino talvez nos empurre para uma forte
corredeira a nos tragar em seu algoz turbilhão, criando perigos sem fim e
muitas vezes desilusões por não encontrarmos os amigos que deveriam ser
solidários e arriscar a própria vida para salvar-nos. Sucumbiremos ou sobreviveremos por nossas próprias forças, criando, muitas vezes, a ilusão inglória
de onipotência. Após a tormenta, águas serenas poderão abrigar-nos, deixando-nos alegres e autoconfiantes para viver novas aventuras com os parceiros do comum destino.
Viver é um fenômeno de resistência e, quando tudo parece resolvido
nesta jornada imaginária, eis que surge à nossa frente uma grande cachoeira
a nos desafiar. Superá-la pode ser uma grande vitória ou um fracasso definitivo. Mesmo vencida esta batalha, o rio que nos envolve nos abraça e nos
conduz, como todos os rios, vai terminar no mar, onde, com certeza, todos
nos encontraremos. Será o fim ou um novo começo?
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Domingo Braile
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Este livro foi impresso pela Gráfica Prol,
para a THS Editora, no Outono de 2009.
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