Estilo Individual e Estilo de Época
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Estilo Individual e Estilo de Época
ESTILO INDIVIDUAL E ESTILO DE ÉPOCA Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, de 1503-5 (detalhe) Jeanne Samary, de Renoir, de 1877 (detalhe) Marilyn tuyrquesa, de Andy Warhol, de 1962 (detalhe) Observem que apesar dos três quadros apresentarem o mesmo tema, a mulher, cada artista tem a sua técnica, a sua maneira própria e particular de se expressar. Texto 01 Texto 02 Moreninha Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você e te jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de cinema É tapeação Mentira CAI FORA (Manuel Bandeira. ln. Antologia Poética, Editora Sabiá, Rio, 1961) Moreninha, Moreninha Tu és do campo a rainha Tu és senhora de mim; Tu matas todos d’amores Faceira, vendendo as flores Que colhes no teu jardim. Casirniro de Abreu Toda e qualquer produção artística só tem sentido quando analisada considerando o contexto cultural no qual foi produzida, pois há uma relação muito íntima entre o homem e o momento histórico e social em que o mesmo vive, trabalha e cria. Por outro lado, á medida que o homem vai mudando ao longo dos tempos, mudam-se também as formas de ver o mundo, muda a sua linguagem, mudam os temas, modifica a forma de expressar os seus sentimentos, suas emoções e finalmente a sua arte. Por essa razão não faz sentido analisarmos uma obra de arte fora de seu contexto histórico e cultural, mesmo porque, toda produção artística está condicionada a influências do mundo exterior, por isso mesmo, a obra de arte produzida no período medieval, época de intensa religiosidade, apresenta traços diferentes daquela produzida durante a segunda metade do século XIX, época marcada por acentuado cientificismo. 17 O ESTILO INDIVIDUAL Observe bem os dois textos anteriores, cada um foi escrito numa determinada época, o primeiro no século XIX e o segundo no século XX. O texto 01 é mais emotivo, subjetivo e sentimental e pertence ao período romântico. Já o texto 02 é mais espontâneo, direto, irônico revelando até mesmo uma certa descrença diante da vida e do amor. A sua linguagem é acentuadamente coloquial, estando, portanto, filiado ao modernismo. Assim sendo podemos concluir que cada artista tem a sua marca, a sua concepção de vida e de criação, a sua maneira particular de ver o mundo, a isto é que chamamos de Estilo Individual. Desta forma podemos afirmar que o estilo de Casimiro de Abreu não se confunde com o estilo de Manuel Bandeira, assim como o estilo do pintor Leonardo da Vinci não se aproxima do estilo surrealista de Salvador Dali, pois cada um desses artistas viveu numa época e possui um modo próprio, uma maneira muito particular de se expressar. INTERTEXTUALIDADE Por outro lado devemos ficar atentos, pois em arte muitas vezes e o velho e o novo se misturam de forma natural, ou então, propositalmente, como uma forma de releitura que o novo faz do velho. Tanto na literatura, na música como nas artes plásticas é muito comum encontrarmos pontos de contatos entre duas obras produzidas em épocas bem distantes a este fenômeno cultural chamamos de intertextualidade. Observe como a obra clássica Mona Lisa, do pintor italiano Leonardo da Vinci é recriada por artistas contemporâneos sob um olhar satírico, próprio da modernidade. Em seguida leia os textos de Manuel Bandeira e de Millôr Fernandes, observando inclusive não apenas que o segundo aparece como uma paródia do primeiro, mas observando também o tom crítico e irônico do mesmo em relação à realidade política do brasileira, em determinado período de nossa história. Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Manuel Bandeira 18 Vou-me embora de Pasárgada! Vou-me embora de Pasárgada Sou inimigo do rei Não tenho nada que eu quero Não tenho e nunca terei Vou-me embora de Pasárgada Aqui eu não sou feliz A existência é tão dura As elites tão senis Que Joana, a louca da Espanha Ainda é mais coerente Do que os donos do país. A gente só faz ginástica Nos velhos trens da central Se quer comer todo dia A polícia baixa o pau E como já estou cansado Sem esperança num país Em que tudo nos revolta Já comprei ida sem volta Pra outro qualquer lugar Aqui não quero ficar, Vou-me embora de Pasárgada. (fragmento) (...) Fernades, Millôr, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1988 Um período literário é constituído por um conjunto de obras, espacial e temporalmente delimitado, que se caracteriza, no plano da expressão, por um sistema de normas e cânones estéticos e, no plano de conteúdo, por um complexo de idéias que apresentam uma cosmovisão. Individualizar e descrever um período importa, portanto, em conhecer seu sistema de normas e seu código ideológico [..J, sua evolução e sua transformação”. Salvatore D’Onofrio. Literatura ocidental. São Paulo, Ática, 1990. 19 Texto para leitura CANÇÃO DO EXILIO Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá, As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias, “Canção do exílio”) Europa, França e Bahia Meus olhos brasileiros se fecham saudosos Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’. Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’? Eu tão esquecido de minha terra… Ai terra que tem palmeiras Onde canta o sabiá! (Carlos Drummond de Andrade, Europa, França e Bahia”). Canção do exílio Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade! 20 ESTILOS DE ÉPOCA Em cada época existem obras e autores que apresentam traços comuns entre si, traços estéticos e estilísticos idênticos, revelando concepções próprias de recriar a vida, em determinado momento histórico. Esses pontos em comum, essa maneira própria de traduzir a vida e o mundo que aproxima a obra dos vários artistas numa determinada época é que chamamos de Estilos de Época ou Períodos Literários como é o caso do Renascimento, Barroco, Romantismo e assim por diante.. Por outro lado, como já dissemos, não podemos ser tão rigorosos na classificação desses períodos literários, já que um estilo de época sempre deixa alguma herança para o estilo futuro, da mesma forma que o novo busca a renovação no velho, por isso mesmo, a arte é uma permanente mistura de tradição e renovação. Desta forma encontramos autores do modernismo como Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira escrevendo poemas que abordam a vida e o amor, sob a tonalidade sentimental e melancólica que os colocam como herdeiros do Romantismo. Assim como, Cecília Meireles revela em vários de seus poemas, traços do Simbolismo, levando parte da crítica classificá-la como uma autora neo-simbolista, em parte de sua produção poética. No entanto, o processo de periodização, da inclusão de certos autores em determinado período histórico e literário, em determinada época, acaba acontecendo, obrigatoriamente, por razões didáticas. Texto para leitura Modernismo Gilberto Mendonça Teles No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado. No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito. Eu sou romântico de corpo e alma, de dentro e fora, de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito. Eu sou romântico de todo o jeito. Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião, um individualista confesso, que adora luares, que gosta de piqueniques e noitadas festivas, mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes. Um sujeito que nesta recta de chegada dos cinquenta sente que seu coração bate tão velozmente 21 que já nem agüenta esperar mais as moças da geração incerta dos dois mil. Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado, a minha expressão de timidez, as minhas várias tentativas frustradas de D.Juan. Vejam meu pessimismo político, meu idealismo poético, minhas leituras de passatempo. Vejam meus tiques e etiquetas, meus sapatos engraxados, meus ternos enleios, meu gosto pelo passado e pelos presentes, minhas cismas, e raptos. Vejam também minha linguagem cheia de mins, de meus e de comos. Vejam, e me digam se eu não sou mesmo um sujeito romântico que contraiu o mal do século e ainda morre de amor pela idade média das mulheres. (&cone de sombras, 1986,p.153.) Trabalhando com o Texto Desencanto Eu faço versos como quem chora de desalento... de desencanto... feche o meu livro se por agora não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca assim dos lábios a vida corre, deixando um acre sabor na boca. 22 — Eu faço versos como quem morre. Manuel Bandeira – in Bandeira: seleta em prosa e verso, pág. 92, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1971. Atividades Questão 01 O que você entende por Estilos de Época? R: Estilos de Época é o conjunto de traços comuns e semelhantes empregados pelos mesmos artistas numa determinada época. Assim podemos falar em autores pertencentes ao estilo Barroco, ao estilo Romântico etc. Questão 02 Porque não podemos falar numa classificação rígida ao relacionar autores com determinados estilos de época? R: Pelo fato de que os estilos se misturam, sendo assim, um autor moderno pode apresentar influencias ou heranças de um estilo do passado. Questão 03 Manuel Bandeira é um autor do modernismo, no entanto, podemos observar em seu texto “Desencanto”, a presença de elementos de outro período literário. Qual é o período? Justifique. R: O poema de Manuel Bandeira apresenta heranças do romantismo, sobretudo, pela presença da melancolia, do pessimismo e da morte. Observe que no primeiro verso, o verbo chorar tem sentido de morrer. PERIODIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA Há quem encare o problema da periodização em história literária como não tendo a menor importância, achando que ela se deve reduzir simplesmente a uma série de 23 nomes sem qualquer significado , no interesse puramente didático de oferecer uma arrumação ou ordenação correspondente aos capítulos da obra. Por isso é que muitos adotam a mera divisão cronológica vazia de qualquer sentido definitório quanto ao que e implícito no período assim delimitado e designado. Destarte, ao denominar a literatura inglesa do século XIX época vitoriana não levamos em consideração que e período inclui autores literariamente tão díspares como Oscar Wilde e Carlyle, Hopkins e Macauley, Pater Darwin, Kipling e Ruskin. Por outro lado, substituir a periodização, sob alegação de que não é fácil resolvê-la convenientemente, é apenas fugir ao problema. Em vez de tentar periodizar, em lugar de um sistema de periodização, procurássemos fazer antes filosofia de valores, aconselham alguns. Mas, os que se colocam nessa posição não vêem que isso é sair da história literária para ficar exclusivamente na crítica. Essa distinção é necessária de início para compreendermos bem o problema. Fazer valoração dos autores passado por intermédio de ensaios críticos reunidos seguidamente, como uma antologia, não é fazer história literária. In Afrânio Coutinho. Conceito de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, pallas; Brasília, INL, 1976. pág. 17/18. A literatura brasileira tem sua história dividida em duas grandes eras, em dois momentos básicos, que de certa forma refletem os momentos históricos e culturais do país e do mundo. Dentre dessas duas eras encontraremos vários períodos literários separados por datas que delimitam o início e o final de cada período, de cada época, muito embora sabemos que muitas vezes essas datas são arbitrárias, mesmo porque que em arte não há começo nem fim, tudo se repete, tudo se renova. É bom lembrar também que essas datas não apresentam precisão, são muitas vezes convenções impostas por exigências didáticas. Senão vejamos; registramos na literatura brasileira que o Romantismo teve início entre nós no ano de 1836, com a publicação da obra “Suspiros Poéticos e Saudades”, de Gonçalves de Magalhães, mas na realidade a expressão do romantismo já havia acontecido anteriormente na literatura brasileira através de autores menos expressivos, mas que não tinham no entanto, trânsito na corte, e nem eram tão amigos de D. Pedro II, privilégios dos quais desfrutava Gonçalves de Magalhães. Na literatura brasileira temos duas grandes eras, a Era Colonial e a Era Nacional. Por sua vez essas eras estão subdivididas em períodos literários, escolas literárias ou ainda, estilos de época. ERA COLONIAL ( 1500 a 1836) Quinhentismo (séc. XVI) - engloba toda a produção de textos sobre o Brasil no início da colonização portuguesa, com destaque para os cronistas estrangeiros, que retratavam o Brasil como uma terra selvagem de belezas tocantes e exóticas. Em razão disso a produção em prosa desse período é também conhecida como Literatura Informativa, ou Literatura dos Viajantes. Ganha destaque também neste período, a produção literária de Padre José de Anchieta. Barroco – (séc. XVII) – com início em 1601 com a publicação de “Prosopopéia”, poema de Bento Teixeira. A produção literária do barroco brasileiro teve como cenário principal a Bahia, onde a estrela maior foi o poeta, Gregório de Matos Guerra. O Barroco se estende até 1768, com a fundação da Arcádia Ultramarina, em Vila rica, Minas Gerais. 24 Arcadismo –(séc. XVIII) – tem início em 1768 através da produção poética dos poetas mineiros de Vila Rica, quase todos, ligados à Inconfidência Mineira. Assim como em Portugal, o Arcadismo no Brasil não teve grande duração, termina em 1836 quando se dá o início do Romantismo. ERA NACIONAL (1836 até nossos dias) Romantismo – (séc. XIX) inicia-se em Saudades, de Gonçalves de Magalhães aparecimento do Realismo/Naturalismo. identidade nacional, a procura de nossa 1836 com a publicação de Suspiros Poéticos e e se estende até 1881 ano em que se dá o No Brasil o Romantismo foi a busca de nossa afirmação como povo, como pátria. Realismo/Naturalismo –( séc. XIX – segunda metade) consideramos o ano de 1881 como o marco inicial desses dois períodos literários, sendo os seus primeiros representantes, Machado de Assis e Aluísio Azevedo, com os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e O Mulato, respectivamente. A literatura produzida nesta época traz profundas preocupações sociopolíticas, as desigualdades sociais, a ironia, o pessimismo, a descrição profunda do indivíduo e as convicções científicas. Parnasianismo – ( séc. XIX ) No Brasil, a poesia parnasiana foi contemporânea da prosa realista-naturalista. Seu marco inicial deu-se com a publicação de Fanfarras, livro de poemas de Teófilo Dias, muito embora a maior expressão desse estilo tenha sido Olavo Bilac. A poesia parnasiana valoriza ao extremo o rigor formal ao mesmo tempo que condena a literatura subjetiva e sentimental para valorizar as descrições objetivas do mundo, os temas clássicos de inspiração greco-latina. Simbolismo (final do séc. XIX) o simbolismo chegou ao Brasil em 1893, com a publicação dos livros Missal (prosa) e Broqueis (poesia), de Cruz e Sousa. Assim como o Parnasianismo, o Simbolismo apresentou também grande preocupação formal, sendo apenas esse o ponto de contato entre os dois estilos, pois enquanto, uma vez que a preocupação temática do Simbolismo recai sobre os aspectos espirituais e metafísicos da existência humana. Por outro lado, o Simbolismo pode ser considerado como a porta de entrada da era moderna, na literatura. Pré-Modernismo (início do séc. XX) o período teve início em 1902 com a publicação das obras Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha. A preocupação principal desse período foi a redescoberta do Brasil através de um olhar crítico sobre a nossa sociedade. Foi um período de curta duração, porém deixou-nos obras bastante significativas. Modernismo – (séc. XX) – esse período literário teve início com a Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo, no ano de 1922. De um modo geral, a crítica convencionou chamar de Modernismo a produção literária compreendida entre os anos de 1922 e 1945 O Modernismo rompe com os padrões estéticos do passado e abre espaço para formas artísticas inusitadas, contestadoras e revolucionárias rompendo todos os limites de criação tanto na poesia, na prosa como nas artes plásticas. Ganha força o debate em torno das questões políticas e estéticas. Após 1945 tem início um período denominado Pós-Modernismo ou Geração de 45 que representa um rompimento ainda maior dentro do universo da criação artística. Esse período se estende até nossos dias, revelando o que a crítica denomina de Produções Contemporâneas. 25 LEITURA COMPLEMENTAR A história da Literatura no Brasil inicia-se no ano de 1500, com a Carta, de Pero Vaz de Caminha. Na verdade a Carta nada possui de excepcional no plano literário, valendo portanto, mais como história do que como literatura. Sua narrativa, contudo não é fria e nem totalmente despida de valor literário, uma vez que o autor preocupase em alguns momentos dar à sua linguagem uma beleza estilística, deixando transparecer um cronista latente. "Esta terra, Senhor, me parece que da ponta mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, visto do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa." Na realidade esse foi o início da Literatura Brasileira, onde predominava as narrativas dos descobridores e catequistas, que relatavam fatos da terra e de seus habitantes, quase sempre sem muita profundidade e importância literária. Entre os principais nomes desse período destacamos Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães Gândavo, Fernão Cardim, Gabriel Soares de Sousa e Hans Standen, estes na condição de viajantes, e Pe. Manuel da Nóbrega, Pe. José de Anchieta e Manuel Couto, como jesuítas, sendo os dois últimos os responsáveis diretos pela introdução do teatro entre os nativos brasileiros. Todas essas manifestações aconteceram durante o século XVI, o qual no aspecto literário pode ser dividido em Período dos Jesuítas e Período dos Viajantes. No século XVII, logo no início, aparece no Brasil, especificamente, na Bahia, o Período Barroco, quando Bento Teixeira, em 1601, publica seu poemeto épico — "Prosopopéia" — trazendo fortes influências de Camões. O poemeto faz louvação ao donatário da Capitania de Pernambuco — Jorge de Albuquerque Coelho. Vindo mais tarde, porém com maior importância, para o Barroco brasileiro a figura de Gregório de Matos Guerra, que se imortalizou pelas suas agressivas sátiras, principalmente aos costumes baianos, o que lhe valeu o apelido de "Boca do Inferno". A CIDADE DA BAHIA Gregório de Matos Guerra Triste Bahia! Oh, quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo, a ti, e tu a mim empenhado, Rica de ti eu já, tu a mim abundante. A ti trocou-se a máquina mercante, Que a tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante. 26 Deste em dar tanto açúcar excelente, Pelas drogas inúteis, que, abelhuda, Simples aceitas do sagaz brichote Oh, se quisera Deus que, de repente Um dia amanhecerás tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! O Período Barroco vai se estender até 1768, época em que Cláudio Manuel da Costa, publica — "Obra Poética" (poesia) — dando início ao Período do Arcadismo, cujo centro de criação foi Minas Gerais, cruzando com o Ciclo da Mineração e com a Inconfidência Mineira. Entre os principais árcades brasileiros apontamos Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Basílio da Gama, Santa Rita Durão. O Neoclassicismo ou Arcadismo caracteriza-se especialmente pela busca da simplicidade e de motivos bucólicos. "Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, de expressões grosseiro, Dos frios gelos e dos sóis queimados. Tenho próprio casal e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E as finas lás, de que me visto. Graças Marilia bela, Graças à minha estrela! O Arcadismo predomina até 1836, ocasião em que Gonçalves de Magalhães, publica — "Suspiros Poéticos e Saudades" — (poesias) — obra que serve de marco ao início do Romantismo na Literatura Brasileira. Com o advento do Romantismo, passa a predominar em nossas letras intenso sentimentalismo e forte nacionalismo, iniciando-se aqui a chamada Fase Nacionalista, que vem para substituir a Fase Colonialista que corresponde ao período de 1500 a 1836. Nosso Romantismo herdou do europeu todas suas características, especialmente, dentro da concepção francesa de ideal romântico, excluindo apenas o indianismo, uma das mais autênticas características do movimento no Brasil. Não se pode esquecer também a onda de patriotismo que dominou nosso Romantismo, como consequência direta de nossa emancipação política. O Período Romântico no Brasil, dividiu-se em quatro grupos distintos, os quais são assim apresentados: 1º GRUPO — predomínio da poesia religiosa, tendo como principal nome Gonçalves de Magalhães. 2º GRUPO — a intensa valorização dos temas nacionalistas, através da idealização do selvagem tanto na poesia como na prosa, destacando-se Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, Gonçalves Dias e Bernardo Guimarães. 3º GRUPO — predominância do subjetivismo, individualismo, dúvida e a configuração do "mal do século" — onde ganham realce Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Junqueira Freire e Laurindo Rebelo. 4º GRUPO — a presença de um Romantismo liberal e social marcado por um ideal político-social, voltado especialmente para a luta do abolicionismo. Essa poesia de cunho sócio-político, conhecida como "condoreira" teve como principais 27 representantes Luís Delfino, Tobias Barreto, e Castro Alves, sendo esse último o maior batalhador pela causa da abolição no Brasil, através de versos engajados e como podemos ver adiante, no poema — "A Cruz da Estrada": Caminheiro que passas pela estrada, Seguindo pelo rumo do sertão, Quando vires a cruz abandonada, Deixa-a em paz dormir na solidão. Que vale o ramo do alecrim cheiroso Que lhe atiras nos braços ao passar? Vais espantar o bando buliçoso Das borboletas, que lá vão pousar. É de um escravo humilde sepultura, Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz. Deixa-o dormir no leito de verdura, Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs. Não precisa de ti. O gaturamo Geme, por ele, à tarde, no sertão. E a juriti, do taquaral no ramo, Povoa, soluçando, a solidão. Dentre os braços da cruz, a parasita, Num abraço de flores, se prendeu. Chora orvalhos a grama, o que palpita, Lhe acende o vaga-lume o facho seu. Quando, à noite, o silêncio habita as matas, A sepultura fala a sós com Deus. Prende-se a voz na boca das cascatas, E as asas de ouro aos astros lá nos céus. Caminheiro! do escravo desgraçado O sono agora mesmo começou! Não lhe toques no leito de noivado, Há pouco a liberdade o desposou. O ano de 1881 passa à Literatura Brasileira como o marco ao início do Realismo e Naturalismo em nossas letras, data em que Aluísio Azevedo publica seu revolucionário romance — "O Mulato", criando assim um novo ideal estético à nossa Literatura. O Realismo se caracterizou pela contestação aos costumes da época, explorando fatos da sociedade — (vida conjugai, clero e política). Irão marcar presença nesse período Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia. Enquanto o Realismo se preocupa com a realidade social, o Naturalismo estará voltado para a realidade psico-biológica, tentando explicar cientificamente o modo e a conduta das personagens. Nesse período aparecem Domingos Olímpio, Inglês de Sousa, Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha e Coelho Neto. A seguir um trecho do romance "O Mulato" onde fica óbvio as manifestações do período: 28 "Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que não se podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças de água passavam ruidosamente a todo instante, abalando os prédios; e os aguadei- ros em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam compras para o jantar ou andavam no ganho." Não muito distante do início do Realismo vamos encontrar um outro Período Literário — Parnasianismo — cuja manifestação se realiza por meio da poesia, que por sua vez é marcada pelo anti-sentimentalismo, racionalismo e preocupação formal. Buscavam sempre a correção gramatical, eivando a poesia de um tom acentuadamente acadêmico e professoral, onde a maior preocupação era o culto à forma, como nesse poema de Bilac. A UM POETA Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! no aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; na trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua, Rica mas sóbria, como um templo grego. Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício: Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte Pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade. Entre os principais parnasianos destacamos Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, devendo observar que os três primeiros formam a famosa tríade parnasiana da poesia brasileira. Em 1893, aparece o Período Simbolista, introduzido pelo poeta negro Cruz e Sousa, com a obra — "Broquéis" — (poesias). Esse período aparece como uma oposição frontal ao Parnasianismo, situando-se por outro lado bem próximo das orientações românticas, de onde herdou o subjetivismo e o lirismo. Apesar da aparente oposição, os Simbolistas conservaram muitos dos hábitos de versificação dos Parnasianos, mas buscando sempre rítimos musicais e inebriantes, numa linguagem quase sempre litúrgica. Algo peculiar dentro desse movimento é a presença de elementos místicos, religiosos e indefinidos: SIDERAÇÕES 29 Para as Estrelas de cristais gelados as ânsias e os desejos vão subindo, galgando azuis e siderais noivados de nuvens brancas a amplidão vestindo. . . Num cortejo de cânticos alados os arcanjos, as cítaras ferindo, passam, das vestes nos troféus prateados, as asas de ouro finamente abrindo. . . Dos etéreos turíbulos de neve claro incenso aromai, límpido e leve, ondas nevoentas de Visões levanta... E as ânsias e os desejos infinitos vão com os arcanjos formulando ritos da Eternidade que nos Astros canta... (Cruz e Sousa) Em todos os seus representantes, percebemos que o Simbolismo teve a preocupação de exprimir as emoções no que elas tem de mais vago e pessoal, sem a menor eloqüência, e preocupado apenas com o nível de musicalidade de seus versos. Dentro dessa visão Verlaine, mestre do Simbolismo Francês, escreveu — "Art Poétique": "De la musique avant toute chose... Rein de plus cher la chanson grise Où l'lndécis au Précis se joint... Car nous voulons la Nuance... Pas la couleur, rein que la Nuance!... Prends l'éloquence et tords-lui son cou!... Além de seu introdutor, o Simbolismo na Literatura Brasileira, teve corno nomes importantes Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, Mário Pederneira, Nestor Vitor, Graça Aranha e Augusto dos Anjos. No final do século XIX, vamos sentir fortes mudanças nas Artes de um modo geral, inicialmente nas Artes Plásticas e mais tarde na Literatura. No Brasil as manifestações modernistas nas Artes Plásticas, foram introduzidas por Anita Malfatti, em 1916 através de uma exposição de telas que traziam influências do expressionismo alemão, causando na época, um dos maiores escândalos culturais. O escritor Monteiro Lobato, chocado com os trabalhos da pintora paulista, escreveu um artigo, cujo título era — "Mistificação ou Paranóia?". Aos poucos foram aparecendo outros nomes, e formando um grupo organizado dentro de um ideal modernista, que passou a dominar as Artes, dando início ao discutido Movimento Modernista, que veremos a seguir. ASPECTOS GERAIS DO MODERNISMO Com o advento do século XX ganharam nossas artes uma nova dimensão artística/criativa. O movimento eclodiu em São Paulo através da Semana da Arte Moderna em 1922. O importante é saber que isso não aconteceu de um momento para 30 outro, foi trabalho de muitos anos de elaboração e pesquisa através das artes plásticas, rítmicas e visuais. Destacam-se como elementos importantes dentro da Semana os seguintes artistas: Mário de Andrade, Menotti dei Picchia, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, Villa Lobos e Ronald de Carvalho. De todos esses elementos consagrou-se Mário de Andrade, pela sua ativa participação e realização diante do novo ideal estético, recebendo, portanto, a cognominação de "O Papa do Modernismo". As primeiras manifestações literárias dentro do modernismo aconteceram através da poesia, que logo de início deixou transparecer despreocupação total quanto à forma poética, até então consagrada e louvada por todos, especialmente, pelos parnasianos, a quem Manuel Bandeira atacou veementemente através dos poemas "Os Sapos" e "Poética". Buscando valorizar o moderno e ferir o passado, os modernistas adotaram como instrumento principal o verso livre, o humorismo, a condensação, o coloquial, e sobretudo, a liberdade de criação. "Paulicéia Desvairada" — de Mário de Andrade, aparece em 1922 como a concretização de todo o ideal estético cantado pelos modernistas, o que serviu de abertura a centenas de poetas novos adeptos da nova idéia artística/literária. O modernismo no Brasil pode ser dividido assim: a — geração de 1922 b — geração de 1930 c — geração de 1945 e Pós-Modernismo e Produções Contemporâneas. Texto para Leitura 45 A Domingos Carvalho da Silva Sou da geração de quarenta e cinco ou tenho na mão a porta sem trinco? (Nem sei quantas são as telhas de zinco que cobrem meu chão de quarenta e cinco.) Semeei meu grão? fui ao fim do afinco? pesquei a paixão de quarenta e cinco? 31 Tudo é sim e não em quarenta e cinco. E a melhor lição forma sempre um vinco de interrogação no tempo, onde brinco procurando um vão entre o 4 e o 5. Gilberto Mendonça Teles Primeira Geração — o que mais caracteriza a geração de 22 é o caráter destrutivo em relação a tudo o que era passado e convenciona- lismo. Nomes principais: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti dei Picchia, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Tasso da Silveira, Murillo Araújo e Ronald de Carvalho, entre outros. A segunda geração modernista teve como preocupação primordial apontar os problemas sociais, com muito mais equilíbrio, seriedade e afirmação no sentido de brasilidade e universalismo. Dentro da prosa modernista, dessa geração, inicia-se o ciclo do romance nordestino, de cunho essencialmente social. Entre os poetas encontramos: Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Augusto Mayer, Murilo Mendes, Frederico Schmidt e Vinícius de Morais. Na prosa os principais destaques são: Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida. A terceira geração modernista, ou geração de 45 e depois a Pós Moderna passa por uma transformação radical, é marcada pelo acentuado senso de medida. Acerca dessa geração escreve o professor Leodegário de Azevedo Filho: "em busca de uma expressão poética disciplinada ou em busca de transformar o poema num artefato técnico-formal, os poetas de 45 acabaram revalorizando os ritmos tradicionais numa espécie de neoparnasianismo de todo inconsequente." Dentro da poesia e da prosa os nomes mais representativos são: João Cabral de Melo Neto, Bueno de Riveira, José Paulo Moreira da Fonseca, Ledo Ivo, Geir Campos, Afonso Felix de Sousa, Darci Damasceno e Domingos Carvalho e Silva. Destacam-se também Guimarães Rosa, Mário Palmério, Bernardo Élis, Adonias Filho,Carmo Bernardes, Eli Brasiliense, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, José J. Veiga, Antônio Calado, Érico Veríssimo, Marques Rebelo e José Geraldo Vieira. Afirmam-se também como autores de importância nacional - Dalton Trevisam, João Antonio, Miguel Jorge, Gilberto Mendonça Teles, Luís Vilela, Bariani Ortêncio, Fernando Sabino, Nélida Pinon e Olga Savary, Mário Chamie, Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Milton Hatoum, Moacir Scliar,Manuel de Barros, Luis Fernando Veríssimo. 32 Podemos citar ainda Martha Medeiros, Adélia Prado, Ivan Angelo, Ignácio de Loyola Brandão, Ana Cristina Cesar, Heleno Godoy, Ieda Schmaltz, Paulo Leminski., Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz , Arnaldo Antunes. Waly Salomão e outros. A partir da 60 ou um pouco antes, em 1956, novas tendências marcaram época no Modernismo Brasileiro, que parte da crítica convencionou chamar de A Poesia Brasileira de Vanguarda; a primeira manifestação denominou-se "Concretismo". Texto para leitura Casamento Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas" e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. Adélia Prado Acima de qualquer suspeita a poesia está morta mas juro que não fui eu eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos não adiantou nada 33 em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de ferro araraquarense porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece nunca ter existido nem eu José Paulo Paes EPITÁFIO PARA UM BANQUEIRO negócio ego ócio cio o José Paulo Paes À televisão Teu boletim metereológico me diz aqui e agora se chove ou se faz sol. Para que ir lá fora? A comida suculenta que pões à minha frente como-a toda com os olhos. Aposentei os dentes. Nos dramalhões que encenas há tamanho poder de vida que eu próprio nem me canso em viver. Guerra, sexo, esporte - me dás tudo, tudo. Vou pregar minha porta: já não preciso do mundo. PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 71 34 Décio Pignatari A Festa Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis branco, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos. Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas. O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos. – Duzentos e vinte. O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido. – Que tal o pão com molho? – sugere o rapaz. – Como? – Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso. O homem olha para os meninos. – O preço é o mesmo – informa o rapaz. – Está certo. Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida. O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira. Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão. O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida. Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa. Wander Piroli 35 A POESIA BRASILEIRA VANGUARDA Introduzido no Brasil por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, causou na época as mais sérias polêmicas, traçando assim a trajetória da Vanguarda Brasileira. Para o crítico e poeta Walmir Ayala — "O Concretismo é o movimento mais controvertido e sensacional da poesia brasileira. Em princípio visou a objetividade do poema e suas relações com o espaço gráfico. A página onde o poema é escrito (impresso) funcionava como elemento visual na apreensão do mistério poético, que passa a ser menos enigma e mais geografia. O trabalho sobre a palavra em si foi um dos núcleos de ação desta coluna. A palavra e a relação de suas partes, a palavra no contexto despojado, antidiscursivo, ou um discurso em que até os claros da página são movimentos valiosos. A palavra-objeto." Como exemplo de um poema concretista transcrevemos um trabalho de Augusto de Campos. s g s g a u a u n e n e g r g r u r u r e a e a a a a a r r r r e e e e s q s g a u a u n e n e g r g r u r u r e a e a r r r r e e e e i n n i a a a a s a n g u e r r a s g s g a u a u n e n e g r g r r r r r e e e e i n n i a a a a g a n g r e n a i n n i a a a a Considera-se o Concretismo como um movimento de conscientização poética tanto para o leitor como para o próprio Poeta, que veio descobrir definitivamente sua responsabilidade diante da arte. Deve-se considerar também que apareceram na época muitos pseudo-poetas, tirando proveito da situação, para expor ideias muitas vezes ao plano oposto da poesia. Passado a fase áurea do Concretismo, que teve seus pontos altos em São Paulo e Rio, vai aparecer uma nova tendência dentro da poesia: "Praxis". PRAXIS Diz a crítica que a experiência Praxis nasceu como um manifesto publicado no livro Lavra Lavra, de Mário Chamie, em 1962. Falando acerca das novas experiências dentro da poesia, Mário Chamie, assim comentou: 36 "O autor praxis possui na palavra uma matéria- prima transformável, nunca um mero componente subsidiário. Seu trabalho desenvolve um processo comum que ampara todas as opções pessoais." Sobre o mesmo problema escreveu Cassiano Ricardo: — "Em qualquer hipótese, a praxis se distingue de todos os experimentos de vanguarda, hoje, justamente pelo apreço que dá à palavra, único meio de formulação de um novo produto poemático, numa estrutura como a caracteriza o mundo da atualidade, em que a palavra vale mais, precisamente pelo não verbal que a ela se juntou. Ao invés do poema que se faz com palavras, o que se instaura é a palavra em sua energia procria- tiva irradiadora, mas manipulável." De Mário Chamie transcreveremos o poema Veículos de Massa — TV. o vidro transparência / o olho cego consciência a consciência no vídeo / a transparência do vidro o povo cego da praça / o olho negro da massa a praça de olho cego / a massa de olho negro o vidro transparência o cego consciência a massa diante do vídeo a massa = globo de vidro a praça de olho negro o povo = olho morcego sem ver o povo com a venda a câmara negra = sua tenda sem ver / a venda no olho do povo te vê / a câmara negra do sono Embora tenha conseguido grande número de adeptos, o Praxismo, assim como o Concretismo, teve pouca duração, restando apenas o fruto do trabalho de alguns grupos mais sérios e dedicados. POEMA-PROCESSO Como derivação direta da Poesia Concreta, aparece em fins de 67, no Rio, liderados por Wladimir Dias-Pino, um grupo de poetas, que busca em sua criação destacar uma nova linguagem poética, onde a palavra é o que menos importa. 37 Em seu livro "Processo: Linguagem e Comunicação" — Dias-Pino escreveu: "Poema-processo é aquele que, a cada nova experiência, inaugura processos informacionais. Essa informação pode ser estética ou não: o importante é que seja funcional e, portanto, consumida. O poema resolve-se por si mesmo, desencadeando-se (projeto), não necessitando de interpretação para sua justificação. (...) Não se trata, como alguns poderiam pensar, de um combate rígido e gratuito ao signo verbal, mas de uma exploração planificada das possibilidades encerradas em outros signos (não verbais). É bom lembrar que mesmo as estruturas não se traduzem: são codificadas pelos processos que visam a comunicação internacional." Para alguns críticos o Poema/processo não passa de uma antilitera- tura, que visa muito mais a imagem plástica do que novas descobertas dentro da palavra. Entre os vários tipos de poema/processo, destacamos — o poema animação, explosão tipográfica, gráfico, montagem e objeto-poema. Como exemplo de nova tendência literária transcrevemos 3 poemas; o primeiro de Neide Sá, o segundo de Sônia Figueiredo, e o terceiro de Luís A. Fachini Gomes POEMA/PROCESSO NEIDE SA 38 POEMA/PROCESSO * leitura pela aproximação dos cantos do código In — "Processo: Linguagem e Comunicação" WLADIMIR DIAS-PINO, Editora Vozes, Rio, 1971 39 in — "Processo: Linguagem e Comunicação" WLADIMIR DIAS-PINO, Editora Vozes, Rio, 1971 POEMA/ PROCESSO 40 POESIA MARGINAL In — "Processo: Linguagem e Comunicação" WLADIMIR DIAS-PINO, Editora Vozes, Rio, 1971 41 Nos anos setenta, logo após o movimento tropicalista, surgiu um tipo de produção poética que foi chamada de Poesia Marginal. Na época da Ditadura - anos 70 - a repressão política conduziu poetas e escritores a busca de um poetar livre: da censura, da estruturação erudita, da repressão política, etc. A geração da Poesia Marginal vai levar a poesia às praças, universidades e os textos circulavam em cópias mimeografadas pelas ruas e praças deixando de lado a formalidade das editoras e livrarias. A poesia marginal terá como marca o humor e a alegria. Entre os nomes mais notáveis ganham destaque poetas como Chacal, Charles, Francisco Alvim, Cacaso, Paulo Liminski além de outros poetas. Textos para leitura Fogo-Fátuo Ela é uma mina versátil O seu mal é ser muito volúvel Apesar do seu jeito volátil Nosso caso anda meio insolúvel Se ela veste seu manto diáfano Sai de noite e só volta de dia Eu escuto os cantores de ébano E espero ela chegar da orgia Ela pensa que eu sou fogo-fátuo Que me esquenta em banho-maria Se estouro sou pior que o átomo Ainda afogo essa nega na pia. (Chacal) Publicado no livro Nariz aniz (1979). Razão de ser Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, E as estrelas lá no céu Lembram letras no papel, Quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? RECEITA Paulo Leminski Ingredientes 2 conflitos de gerações 42 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções do beatles Modo de preparar dissolva os sonhos eróticos nos 2 litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração leve a mistura ao fogo adicionando dois conflitos de gerações às esperanças perdidas corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples ou com ilusões Nicolas Behr Papo de Índio Veiu uns ômi di saia preta cheiu di caixinha e pó branco qui eles disserum qui chamava açucri aí eles falarum e nós fechamu a cara depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo aí eles insistirum e nós comemu eles. vocês repararam como o povo anda triste ? é a cachaça que subiu de preço a cachaça e outros gêneros de primeira necessidade cachaça a dois contos, ora veja, veja a hora, que horas são, atenção apontar: FOGO Chacal 43