Adorno e Kafka - verlaine.pro.br
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Ricardo Timm de Souza ADORNO & KAFKA: Paradoxos do singular Passo Fundo IFIBE 2010 ·sUMÁRIO Apresentação !9 Prefácio 111 Introdução ou: contra o escapismo em filosofia !15 Preâmbulo A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou: 'da diferença entre respiração e estertor !19 O univer so de referência - agonia de uma era?· A composição profunda do século XX · filosófico-cultural: aproximações 135 A Escola de Frankfurt e o contexto de seu sur gi mento: Inquietações éticas no coração dos dilemas de uma época I 53 Estética como anti-i dolat ria 187 A asfixia do não-idêntico: Kafka, leitor do século XX 1 107 Adorno, leitor de Kafka, leitor do mundo "só há uma expressão para a verdade: o pensamento que nega a injustiçà' 1161 Referências bibliográficas 1 1 77 APRESENTAÇÃO Paulo César Carbonari · O livro Adorno & Kafka: paradoxos do singular, do pro fessor Ricardo Timm de Souza leva adiante a tradição de diá logo da filosofia com a literatura. Ao tomar Kafka como inter locutor de Adorno, apresenta questões que o subtítulo da obra resume enfaticamente. Não me atrevo a comentar o belíssimo material que a Editora IFIBE faz chegar às mãos dos leitores e das leitoras. Fico apenas em algumas considerações que pre tendem não mais do que expressar gratidão ao autor por con fiar sua vigésima obra solo ao nosso trabalho editorial. O professor Timm é conhecido pela ousadia das reflexões que propõe, visto que tocam o extremo da realidade e esticam audaciosamente os limites da racionalidade. Seus escritos de sacomodam as racionalidades prontas e desafiam os lugares -comuns do pensamento e da prática. Mais do que instigar a conhecer o legado da tradição, provoca para que a tradição - seja literária ou filosófica - sirva de subsídio para recolher sentidos que os interstícios do mundo põem àqueles e aquelas que insistem em não sucumbir ao dado, simplesmente. Ser9 ve de inspiração para todos quantos querem fazer da filosofia uma atividade e uma atitude, mais do que um protocolo. Os textos reunidos nesta obra fazem com que a emergên cia dos paradoxos do singular desafie os universalismos para doxais. Contra posturas que tomam estes últimos por vestais da unidade e da coerência e aqueles por insignificantes ou des prezíveis, indica que nem uns e nem outros são aceitáveis. Os escritos fazem com que a racionalidade não se acomode ao que a massificação recomenda: o silêncio e o descompromis so, tanto sobre o singular quanto sobre o universal. Servem de antídoto ao cinismo que professa a falência de toda crítica e também fazem uma terapia da crítica que só parece hipocrita mente crítica, mas que rigorosamente não é. Por isso, é um convite a desacomodar-se e a fazer da fi losofia um exercício de construção da reflexão comprometida com a radicalidade que imerge nas contradições e, acima de tudo, propõe construir possibilidades que estejam a serviço da mobilização da pluralidade que abre para que as singularida des sejam, apareçam e se manifestem. 10 PREFÁCIO Leite negro de manhã nós te bebemos ao entardecer/ nós te bebemos ao meio-dia nós te bebemos à noite/ nós bebemos e bebemos. Paul CELAN Quem escolhe hoje por ofício o trabalho filosófico tem de renunciar desde o princípio à ilusão com que partiam anteriormente os projetos filosóficos: a de que seria possível abranger a totalidade do real porforça do pensamento. Nenhuma Razão legitimadora saberia voltar a encontrar-se em uma realidade cuja ordem e configuração derrota qualquer pretensão de Razão; a quem busque conhecê-la, só se apresenta como realidade total na condição de objeto de polêmica, enquanto unicamente em vest{gios e escombros perdura a esperança de que algum dia chegue a ser uma realidade correta e justa. Theodor ADORNO. Atualidade da Filosofia A potência geradora de categorias do pensamento filosó fico - das quais derivam, a rigor, todos os conceitos dos campos epistêmicos que se multiplicam infinitamente e, por derivação evidente, de todas as artes e ciências, quando trazem à luz a verbalidade da linguagem que os habita é simultaneamente sua grandeza e a possibilidade de seu fracasso. A inteligência filosófica tem como papel central modular a capacidade con- 11 ceitualizante, de tal forma que esta nem se perca em alturas insondáveis, nem se torne rasa e presa fácil de operatividades estratégicas e instrumentais que nada têm a ver com sua ori gem e seu sentido. Conceitos que conhecem sua potência e seus limites me recem o nome de categorias filosóficas. Uma das mais notáveis, que recebe muitos nomes, mas que age continuamente como referência de calibragem do pensamento referido ao que dá o que pensar filosoficamente, ou seja, ao real - tome este termo a conotação que se quiser -, é a de Não-idêntico. Ela já provoca em seu próprio enunciado, com a negatividade intrínseca que extravasa da palavra que a constitui, sua solidão e in confundi bilidade. Ela remete, em Adorno, a uma base implícita de sus tentação de extraordinárias reflexões e cadeias argumentativas cuja explicitação é, justamente, o conjunto de sua obra. Todavia, o retorno analítico a essa categoria, por si só, encontra o limite da própria ideia de análise. Neste sentido, o contraponto da proliferação de sentidos que uma tal catego rià pode propiciar, em sua afirmatividade como singularidade, com a alta literatura - ou seja, a literatura que, uma vez vinda à luz, sobrevive à corrosão da história e a seus detratores, no caso, aspectos de Kafka - é condição de extravasamento do discurso argumentativo para a expressão de linguagem, sem que o argumento nela se dilua. O objetivo deste despretensioso opúsculo é, assim, des de uma determinada situação muito específica que não pode ser nunca olvidada, pontuar alguns momentos dessa trajetória contrapontística entre Adorno e Kafka, na interlocução com algumas obras do escritor tcheco que dizem o que a letra adorniana explícita. Não se trata, portanto, absolutamente, de um exame hermenêutica dessa categoria, no âmbito de algo seme lhante a um tratado filosófico ou de análise literária, ou ain da do arrolamento de suas incidências significativas e de suas conseqüências no pensamento filosófico, mas tão-somente de 12 i um conjunto de pequenos ensaios de compreensão do nível de significação - a que profundidade abissal o levar a sério esta categoria pode conduzir. Que não se espere, portanto, do presente livro mais do que ele pode oferecer; mas que se investigue, nessa categoria, tudo o que ela pode vir a signific ar, é o único desejo do autor. - Porto Alegre, fevereiro de 201 O. 13 INTRODUÇÃO ou: contra o escapismo em filosofia O que faz, pois, a escrevinhação de nossos filosofastros su mamente pobre de pensamentos e, portanto, torturantemen tefastidiosa é, em última análise, a pobreza de seu espírito, porém, antes de mais nada, o fato de que sua exposição se mova, do começo ao fim, por conceitos altamente abstratos, gerais e excessivamente amplos, e que por isso caminhe sole nemente, quase todo tempo por expressões indeterminadas, vacilantes e desbotadas. Mas são forçados a esse movimento acrobático e têm de evitar tocar a terra, como lugar onde eles, chocando-se com o real, o determinado, o singular e o claro, encontrariam recifes altamente perigosos, nos quais suas escunas de palavras poderiam naufragar. Arthur SCHOPENHAUER O insidioso poder de homogeneização do mundo con temporâneo, a voragem quantificadora que experimentamos e na qual temos de sobreviver, tem um alimento favorito, que lhe dá forças para elucubrar sempre novamente formas e ar timanhas de se impor à qualidade, ao particular, ao singular, ao diferente, ao não-idêntico. Tal se constitui, essencialmente, no uso abusivo e irresponsável de conceitos, despindo as cate gorias filosóficas de sua credibilidade pelo desabrido desenraiza mento de suas inquietações de origem. É um artifício antigo como 15 a própria filosofia, porque adequado à camuflagem: finge-se que se está pensando profundamente quando, na verdade, está-se escapando à responsabilidade que o pensamento sig nifica; finge-se que se está meditando a aspereza· do ainda -não-pensado quando se está a elucubrar vernizes encobri dores para aquilo que representa o perigo. Em lugar de deixar em aberto um espaço para o ainda-não, para o imponderável que chega do já pensado e obriga o pensamento a reconsi derar continuamente seu estatuto de validade, esta lógica de escapismo, astutamente, investe no caminho contrário: satura o universo intelectual com pretensas significações profundas e retóricas labirínticas, quando tudo o que quer é, justamente, evitar as significações comprometedoras que possam assomar das sombras das profundidades. O pensamento verdadeiro nunca é inofensivo: abre sempre as portas do inusitado, es cancara a verdadeira face da hipocrisia, escapa e denuncia a mediocridade, pois significa o seu reverso. Dadas essas suas três características, entre muitas outras, não é absolutamente de se admirar que seja, em regra, sistematicamente afastado, pelos paladinos do poder, do ambiente no qual se movem os espíritos inquietos que o procuram em todas as eras e lugares. Oferece-se, em troca, o banal, a proliferação patológica de jar gões e imagens, as pretensas cores de um mundo originalmen te empalidecido pelas contradições nas quais navega, até mes mo a loucura. Tudo vira objeto de compra e venda; tudo vira quantidade. Assim, o pensamento, que nasce do choque que a Diferença lhe significa exatamente no nascedouro do intelecto, é neutralizado exatamente pela neutralização da Diferença, na estranha esteira de um paradoxo ardiloso (Cf. Souza, 2000b, p. 189-208). São inúmeras as possibilidades de abordar essa espan tosa metamorfose, e temos, em vários de nossos trabalhos, tido a pretensão exatamente de expô-la em seus constitutivos 16 variados. 1 O presente conjunto de pequenos ensaios - alguns retomando e ampliando textos antigos, outros inéditos - que se constitui em mais uma dessas tentativas, abordando, no caso presente, aspectos relevantes para a desconstrução deste Odradek monstruoso que povoa sem tréguas o imaginário co letivo como fungos espantosamente proliferantes e adaptáveis, desde a inspiração precípua de um dos pensamentos mais po tentes da história da filosofia ocidental: o de Theodor Wiesen grund Adorno, em contraponto com a potência singular de exposição de exemplos da obra de Franz Kafka. Sua novidade em relação a outros escritos nossos relativamente aos autores abordados é o específico entrelaçamento que o presente con junto de escritos propõe. O livro tem, então, esta finalidade: mostrar como, a par tir de Adorno e Kafka, é possível não apenas desentranhar a amálgama espantosamente complexa que sustenta um pen samento sem conteúdo crítico, como também expor aqueles elementos dispersos por muitas instâncias de construção de linguagem que, justamente, imunizam a crítica contra sua própria inércia, pela desconfiguração radical do estilo mental da quimera que significa qualquer promessa de neutralidade em filosofia como em qualquer arte, literatura ou ciência. Tal presente intróito traz consigo já uma promessa de estilo: não se trata de um conjunto de textos necessariamen te para especialistas, repitamos, mas de um simples convite a 1 Ver, entre outros, nossos livros Totalidade & Desagregação - sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas; O tempo e a Máquina do Tempo -estudos de filosofia e pós-modernidade; Metamorfose e Extinção -sobre Kafka e a patologia do tempo; Razoes plurais-itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig; Fontes do humanismo latino -A condição humana no pensamento filosófico moderno e contemporâneo; Sentidos do Infinito A categoria de "Infinito" nas origens da racionalidade ocidental, dospré-socráticos a Hegel; Em torno à Diferença -aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea; Justiça em seus termos -dignidade humana, dignidade do mundo; Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal, além de artigos e textos inéditos. , Ver referências bibliográficas completas ao final do livro. 17 mentes inquietas, inclusive, eventualmente, de especialistas; assume, portanto, uma dimensão narrativa própria que rom pe com pretensões didáticas que ignora consciente e frontal mente limites epistemológicos em nome de uma linguagem, a qual, parodiando o próprio Adorno, "liberada da maldição da hipocrisia, possa finalmente repousar no seu objeto". 18 PREÂMBULO A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou: da diferença entre respiração e estertor Dasperennierende Leiden hat soviel Recht aufAus druck wie der gemarterte zu brüllen; darum mag es falsch gewesen sein, nach Auschwitz liesse sich kein Gedicht mehr schreiben. Theodor ADORNO I. Derrota e loucura2 Na verdade, não consigo acreditar em mais nada. Nem mesmo possuo a centelha da fé que se precisa para ser cético Dr. Beeber, personagem de Isaac B. SINGER. Um amigo de Kafka No notável A derrota do pensamento, o filósofo francês Alain Finkielkraut ousa circunscrever alguns temas difíceis do mundo contemporâneo. Longe de mergulhar freneticamente no fluxo contínuo da informação a fim de esmiuçar sua (i)lógica 2 Esta seção retoma e atualiza texto originalmente publicado em Souza, 1998. 19 ou de flagrar no inusitado do dia-a-dia anúncios de uma nova frente de (in)compreensão do atropelar-se dos fatos, prende -se a um tema, mas a um tema difícil: fixar elementos que per mitam o desnudamento das aparências da cultura hegemônica contemporânea. Pois, como diz Daniel Fresnot na contracapa da obra, "as aparências enganam': e enganam muito. Falar, hoje em dia, de "racionalidade", "pensamento', "culturà: não trai ne cessariamente uma nostalgia restauradora de tempos menos ágeis, ou um conservadorismo saudosista, nem significa por si só a anti-lucidez de hipotecar a confiança na inteligibilidade do presente a algum termo démodé; pode significar, antes, um caminhar em contra-fluxo, contra as expectativas do óbvio e as sugestões de um colorido espírito de massa. É isto que faz Finkielkraut nesta sua obra de 1 987, que mantém toda sua atualidade. Trata da transformação do pen samento e da cultura em "quinquilharias" (Finkielkraut, 1 988, p. 1 59 ), mas não com tédio ou de forma a dar a impressão exata de que flutua sobranceiramente por sobre os fatos: antes objeti vando-os ao assumir sua visceral equivocidade. Atém-se ao que é dito - e, desde o dito, tira continuamente conclusões. Mas não conclusões que convidem o leitor a abandoná-las continu amente em favor de suas irmãs mais novas. Finkielkraut ( 1988, p. 1 3 1 - 1 32) diz: O ator social pós-moderno aplica na sua vida os princípios que os arquitetos e pintores usam em seu trabalho: substitui, como eles, os antigos exclusivismos pelo ecletismo; recusando a bruta lidade da alternativa entre academicismo e inovação, mistura so beranamente os estilos; no lugar de ser isto ou aquilo, clássico ou vanguarda, burguês ou boêmio, une à sua maneira as predileções mais disparatadas, a inspirações mais contraditórias; leve, móvel e não preso a um credo e paralisado em um domínio, gosta de passar sem obstáculos de um restaurante chinês a um clube anti lhano, do cuscuz ao cassoulet, do jogging à religião ou da literatura à asa-delta.3 3 20 Ver também, a respeito da contínua flutuação das referências da contemporanei dade, a obra de Marc AUGÉ, Não-Lugares (1994), e de Zygmunt BAUMAN, Mo dernidade e Holocausto ( 1998). Eis aí a cultura da profusão, da modernidade líquida de Bauman, da intercambiável variedade de super-estimulações: tudo é estimulante e, de tão estimulante, tudo é igualmente vá lido; a validez pula de espaço cultural em espaço cultural como uma ave pula de galho em galho da árvore na floresta, à pro cu ra de pequenos vermes compensadores para tanto esforço. O artista, o ator cultural tem, assim, a oportunidade de se enfas tiar sem se dar conta disso; como em um moderno programa de computador, tão repleto de recursos que a ninguém é dado esgotá-lo em suas possibilidades e, não obstante, transmite uma estranha impressão de racionalidade saturada a quem o aborda, dá-se um tempo repleto de virtualidades e absoluta mente vazio de referências que não sejam a impossibilidade de assumir algo externo como referência. Trata-se, em suma, de uma excitada dialética da saturação estatuída em ideal de existência: Brilhar é a palavra de ordem desse novo hedonismo que rejeita tanto a nostalgia quanto a auto-acusação. Seus adeptos não aspi ram a uma sociedade autêntica, na qual os indivíduos viveriam confortáveis em sua identidade cultural, mas a uma sociedade po limorfa, a um mundo matizado que colocaria todas as formas de vida à disposição de cada indivíduo (Finkielkraut, 1988, p. 132). Assim, este brilho, estas cores, esta variedade de estímu los têm como pressuposição absoluta a abundância de disponi bilidades; que deles não se aproxime quem não pode escolher entre uma miríade de possibilidades! Mas estas possibilidades, estas disponibilidades infinitas são, em realidade, apenas isto: possibilid<:tdes. Como potências eternamente falhas em sua pas sagem à condição de ato, traem em sua essência: não passam de fantasmagorias flutuantes, miragens que se interpenetram continuamente e reivindicam seu átimo de brilho. Falando do pretenso apreço pelas culturas estranhas, o filósofo se aproxi ma da verdadeira essência de suas manifestações: 21 Uma vez que para eles [os atores pós-modernos, R.T.S.] multicul tural significa bem-abastecido, não são as culturas enquanto tais que apreciam, mas sua versão edulcorada, a parte delas que po dem testar, saborear e descartar após o uso. Consumid�res e não conservadores das tradições existentes, é o "cliente-rei" que neles tripudia diante dos obstáculos postos ao reino da diversidade pelos ideólogos vetustos e rígidos (Finkielkraut, 1988, p. 1 32). Reproduzem ali neste meritório campo, portanto, o que veem ao seu redor, ou melhor, o que não veem, mas mesmo assim existe: a hegemonia de uma determinada racionalidade. Como crianças aprendendo a falar, repetem o que ouvem, mas repetem à sua maneira, sob a forma de desajeitados balbucios, todos investidos em discursos modelares, já que a validez é universal. A fronteira entre a consciência e a inconsciência foi rompida pelas cores dos estímulos infinitos. Consume-se, dan do a impressão de que se produz algo, e algo de valor - pelo menos de tanto valor quanto qualquer outra coisa, qualquer outro momento que se suceda hipnoticamente no desvario dos dias. Como aceitar as formas, se estas não se confundem com os conteúdos? A propaganda invertida em absoluto e despida das necessidades do convencimento. O flutuante ator pós-mo derno não necessita mais do que de si mesmo para se conven cer de sua inquestionável auto-legitimação: nenhuma justifi cativa é necessária para um universo que se apresenta, em si, como uma infinita sucessão de justificativas e do qual o ator, ao assumir a validez, faz parte desde sempre. Uma feição de "niilismo", mas a quem a menção ao termo "niilismo" é abso lutamente estranha: não pode haver niilismo em um espaço de referências completamente saturado de vali dez " [ . ] este niilismo classificador dá lugar, no pensamento pós- moderno, a uma mesma admiração pelo autor do Rei Lear e por Charles Jourdan. Com a condição de que traga a assinatura de um grande estilista, um par de botas equivale a Shakespeare" (Finkielkraut, 1988, p. 1 34). Mas não é só isso: tudo equivale a tudo. "O jogador de futebol e o coreógrafo, o pintor e o costu reiro, o músico e o roqueiro são, da mesma maneira, criadores" - 22 . . (Finkielkraut, 1 988, p. 134). Para quem pode escolher, tudo é facultativo; e qual poderia ser o sonho da humanidade e de cada indivíduo, senão se transformar em epicentro da órbita infinita das escolhas? Vivemos o momento dos feelings: não há mais nem verdade nem mentira, nem estereótipo nem invenção, nem beleza nem feal dade, mas uma miríade de prazeres, nem diferentes nem iguais [ .. ] nenhuma autoridade transcendente, histórica ou majoritária pode modificar as preferências do sujeito pós-moderno ou dirigir seus comportamentos. Munido na vida de um telecomando como diante de seu aparelho de televisão, ele compõe seu programa com o espírito sereno sem se deixar mais intimidar pelas hierarquias tradicionais (Finkielkraut, 1988, p. 1 38). . Pois sejamos realistas: para que modificar preferências, se todas em realidade se equivalem, ou seja, se a questão é de quantidade, e não de qualidade? A capitulação final: a realida de já está decidida, e não é a favor de sua exploração ou de sua descoberta, mas a favor de sua transformação em um pretexto para o fastio, para a absoluta in -diferença que assume a para doxal - quase folclórica no pior sentido do termo - aparência de respeito pela Diferença. As aparências enganam. E a cultura contemporânea é este jogo de espelhos que, ao refletir todas as imagens umas nas outras, esvazia toda imagem de consistên cia; ao indiferenciar o concreto, transforma-o em uma função de uma vontade onipresente, de uma preferência particular. Não há mais pensamento, apenas a sua sombra a se refugiar da vergonha de não ser descartável. Sejamos claros: essa dissolução da cultura no todo cultural não acaba com o pensamento nem com a arte [ . ] as obras existem, mas, uma vez que as fronteiras entre a cultura e o divertimento não são mais claras, não há lugar para acolhê-las e dar-lhes sen tido. Elas flutuam, pois, absurdamente, em um espaço sem coor denadas ou balizas. Quando o ódio pela cultura torna-se ele pró prio cultural, a vida com o pensamento perde todo o significado (Finkielkraut, 1 988, p. 1 39). . . 23 Pois o significado consiste em deixar de questionar os sentidos infindos e flutuantes que o significado da preferên cia particular se atribui, sem que mais nada realmente conte. Para que esforço pela sobrevivência para aquele a quem é dado, kafkianamente, viver por inércia? Pois no aburguesamento da lógica da vida, outra inversão indiferente tem lugar: [ ] o hedonismo põe a razão burguesa contra o burguês: o pen sar calculante sobrepuja seus antigos vetos, descobre a utilidade ... do inútil, cerca metodicamente o mundo com apetites e praze res e, depois de ter rebaixado a cultura à categoria das despesas improdutivas, eleva agora toda distração à dignidade cultural: nenhum valor transcendente deve poder frear ou mesmo condi cionar a exploração dos lazeres e o desenvolvimento do consumo (Finkielkraut, 1 988, p. 1 42). Mais uma vez, as aparências enganam o observador in cauto; em um mundo que promete o paraíso a quem prometer não pensar, o reverso, nunca dito, é sempre infinitamente mais concreto; pois, no mundo contemporâneo, o inferno será as peramente experimentado por todo aquele a quem a lógica da obviedade não satisfizer. Eis aí a real violência, nada virtual, dos tempos que correm, o que realmente decide as ações por trás de toda liberdade anunciada. À infinita virtualidade das pos sibilidades aos que rezam pelo credo da indiferença, a extrema punição aos que hesitam em meramente escolher. Mais um pa radoxo, e não das mais fáceis: o infinito espectro de possibi lidades abertas tem, na realidade, limites extremamente sen síveis, e que em nenhuma hipótese podem ser transgredidos sem retaliação - ainda que esta retaliação, por uma particular desordem do pensamento reduzido pela hegemonia à inofen sividade, permaneça em muitos casos na órbita da radical in consciência, face visível da indiferença. Eis aí um inebriante ((ópio dos intelectuais" - em outros tempos, 24 [ ... ] os homens da cultura combatiam a tirania do pensamento calculante taxando-o de bobagem, ao passo que sua extensão pós -moderna não suscita praticamente protestos [ ... ] Pensando no cinema americano, Hannah Arendt escrevia nos anos cinqüenta: «Muitos dos grandes autores do passado sobreviveram a séculos de esquecimento e abandono, mas é questão pendente saber se serão capazes de sobreviver a uma versão divertida do que têm a dizer, (Finkielkraut, 1 988, p. 142- 1 43). Pois tudo pode ser divertido, inclusive a violência e exe cuções de todos os tipos, a tortura e o linchamento, quando a lógica da indiferença assim o prescreve. Se tudo é igual, tudo é in-diferente: tudo é igualmente divertido, tudo é igualmente irrelevante, e a ninguém será dado emitir juízos de valor. Pois a essência do mundo contemporâneo em sua profundidade é a violência mQdulada; é a expressão mais amadurecida da Totalidade. Ora, no momento mesmo em que a técnica, pela interposição da televisão e dos computadores, parece capaz de introduzir nos lares todos os saberes, a lógica do consumismo destrói a cultura [ . ] Doravante, é o princípio de prazer - forma pós-moderna do in teresse particular- que rege a vida espiritual [ .. ].Conglomerado desembaraçado de desejos passageiros e aleatórios, o indivíduo pós-moderno esqueceu que a liberdade é diferente do poder de mudar de prisão e que a própria cultura é mais que um impulso saciado (Finkielkraut, 1988, p. 145-146). .. . Mais uma vez as aparências enganam. Há pouco cego ao totalitarismo, o pensamento é agora cegado por ele. Os crimes do Ocidente colonizador ocultaram por muito tem po as monstruosidades cometidas em nome da revolução. Dora vante, é Big Brother que serve de álibi para a dispersão da cultura no Ocidente [ . ] a intrusão violenta do poder na vida privada jus tifica, pelo contraste, a agressão sorridente da música ambiente e da publicidade; o embriagamento forçado das massas dá aos dilemas do indivíduo, atraído por tudo e nada na Disneylândia . . 25 da cultura, a forma de um exercício soberano de autonomia, e, assim, o universo do telecomando vem a nós como o melhor dos mundos possíveis (Finkielkraut, 1 988, p. 147). Leibniz redivivo? De qualquer forma, sem a auréola das Luzes. Estas há muito se transmutaram em mercadoria e refu giaram-se no ocaso sombrio das utopias clássicas. No passado pouco se encontra que possa ajudar a compreender o presen te, quanto mais opor-se-lhe uma alternativa (Cf. Souza, 1 996, p. 22ss). Esta é uma tarefa que pressupõe bem mais do que alguma espécie de simples reordenamento de forças - pois, como bem mostra Finkielkraut, existe mais realidade por trás de inofensivas aparências do que gostariam de supor os arau tos do reformismo infinito. A obsessão pelo estático é muito intensa, ocupa as consciências agora travestidas em fugaci dade do efêmero; violentamente hipnótica, ela reflete-se em todos os nichos, ocupa os espaços, todos os espaços disponí veis, oferece-se impudicamente à compra a um preço módico: a inação - e metamorfoseia-se em aparência de movimento e de vida multifacética. A esta insinuante metamorfose do Mesmo em infinita In diferenciação, a esta inércia dispersiva podería mos, na esteira deste aluno de Levinas, denominar Derrota. * * * No livro de Hans Magnus Enzensberger de título Medio cridade e loucura e outros ensaios ( 1995), aparece um ensaio brilhante que empresta o nome à obra: ((Mediocridade e lou cura: uma proposta conciliatórià: Tratando nominalmente da sociedade alemã contemporânea, o conteúdo do texto, fiel à sua época, derrama-se naturalmente para fora de quaisquer fronteiras políticas e penetra em uma esfera global de valida de, tangenciando o núcleo de todo um modelo contemporâ neo de existência, toda uma Weltanschauung que - assumindo embora muitas nuances particulares - reivindica pelo menos 26 tanta abrangência mundial quanto a ideologia da informação ilimitada. Trata-se de uma conformação particular de existên cia, um modus vivendi massivamente coletivo que traduz todo um Zeitgeist, um Espírito do(s) Tempo(s) que se estabelece como o resultado de um desencanto profundo para com a su gestão de uma existência apaixonada, desencanto esse alimen tado - literalmente - por uma cultura da superabundância de coisas, imagens, cores e estímulos. Ocorre a crença no feérico, desde que este seja suficientemente moderado para não em bargar os apetites nem correr o improvável risco de acutilar alguma consciência ainda não suficientemente amortecida. É o contraponto existencial daquilo que chamamos em ou tras oportunidades uma cultura de "meios-tons intelectuais" (Souza, 1 996, p. 1 0 1 ) ; embora essencialmente violenta, estabe lece continuamente uma situação de vácuo entre sua realidade profunda e o jogo de imagens a que se entrega continuamente, sugerindo assim a inexistência de tensões ou conflitos ou, pelo menos, aureolando-os com a eterna ameaça de transgressão de margens de razoabilidade muito claras, embora não explí citas. É este vácuo o habitat próprio de grandes massas bem alimentadas da sociedade pós-industrial e de camadas privile giadas de países pobres. É este, também, o alvo da pena privi legiada de Enzensberger. O termo ((nós': despido de impulsos teleológicos, traduz antes de tudo um statu quo: "Quando digo 'nós', estou me re ferindo à nossa civilização, ou seja, à 'sociedade desenvolvida, pós-industrial e de informação': nomes curiosos que demos a nós mesmos. Eles revelam menos as limitações dos termos que as tortuosas frases do embaraço" (Enzensberger, 1 995, p. 142) - pois a ninguém é dado, na amálgama inqiferenciada em que se condensam os instáveis blocos sociais contemporâneos, distinguir com clareza as individualidades ativas em meio às infinitas sobreposições de aparências e imagens virtualizadas. Neste contexto, as opiniões sociais e políticas assumem a con dição de inofensividade - ((Como já disse o poeta, diquerda e 27 esreita tlocam-se com faciridade. Isto é válido também nesse contexto. Por exemplo, qual é a situação em relação ao ho mem das massas?" (Enzensberger, 1995, p. 144)4 essa estra nha criatura execrada pela tradição e, não obstante, multiplica da infinitamente em legião no indiferentismo pós-moderno? A despeito de todas as profecias e de todos os temores, as massas nunca conseguiram se ver a si mesmas como atores de algum tipo: "manipuladas por forças sinistras, as massas trabalha doras se transformaram num bando de idiotas consumistas" (Enzensberger, 1 995, p. 144), totalmente indiferentes aos - [ .. ] filósofos da imbecilidade da moda (que) com uma perseve . rança que seria digna de algo melhor, (continuaram) ano após ano proclamando a morte do indivíduo ou, para usar o jargão atual, a ''morte do sujeito" [como se a expressão ideológica de limites muito claros do agir viesse de ((lugar nenhum': e não de alguém ou de grupos que os dizem com uma clareza mais do que suficiente para ser entendida- R.T.S.]. Com o tempo, isso resultou numa estranha concordância por parte dos teóricos de direita e de es querda, com uma única diferença: os tradicionalistas se especiali zaram em mugir lamentações, ao passo que os reformadores cul tivavam um quê de zombaria que foi crescendo até se transformar num urro de triunfo [ ... ] Enquanto os marxistas ortodoxos ficaram decepcionados com as massas [ ... ] os pós-estruturalistas e outros pós-funcionários da teoria davam a impressão de sentirem uma enorme satisfação com o fato de o importuno sujeito finalmen te ter sumido. A capitulação deve ser um verdadeiro prazer, mas somente para aquele que se considera seu profeta (Enzensberger, 1995, p. 144-145). Todos ingênuos: os fatos precipitam-se a uma velocidade que não conseguem acompanhar. Há uma Razão, que repousa exatamente na anjibologia dessa palavra. A essência da ques � ão: os fenômenos não são o que parecem; como a eloquente 4 28 O trocadilho inspira-se na frase original de Ernst JANDL: "manche meinen/lechts und rinks/kann man nicht/velwechsern/werch ein illtum!" (Cf. Enzensberger, 1995, p. 165). mão visível do mágico que executa sua magia, não servem senão pára distrair a atenção de seu movimento interno real. A dis cussão acaba por se confundir com seu conteúdo; o que pode ser mais estéril e maçante - ou masoquisticamente gratificante - do que bebericar intelectualmente conceitos insossos e com eles elucubrar teorias mirabolantes, cuja funcionalidade con siste em, ardilosamente, ofuscar o concreto? E não obstante, a isso se dedicam compulsivamente os apóstolos da indiferença - os funcionários das teorias da "razoabilidade, -, na esperan ça que a rotação de seus cérebros possa acabar emprestando realidade à fugacidade das belas ilusões. Talvez em nenhum outro momento da história do pensamento do ocidente, sua forma pensante e seu conteúdo ilusório tenham se acoplado de maneira tão cabal: é improvável que se possa flagrar, em algum período detectável da história, uma tal horda de ideólogos tra vestidos de intelectuais, revestindo sua racionalidade com as co res hegemônicas oferecidas a preços modestos em cada esquina. Mas eis que aparece o inusitado sob a forma da verdadei ra essência das massas, aqui intercambiável com a verdadeira essência do indiferentismo, expresso sob a forma de uma me lancólica falência da teorização: Os indivíduos que elas [as teorias, R.T.S.] tanto se esforçam para suprimir as ignoram totalmente. Apática como é, a maioria silen ciosa continua a imaginar que as pessoas que a compõem, todas e cada uma por si, são sempre elas mesmas. Elas simplesmente não querem acreditar que se transformaram em zumbis, marionetes ou fantasmas [ . ] Uma ingratidão digna de nota! Uma surdez es tranha! (Enzensberger, 1 995, p. 145). . . Autoviolência mas, acima de tudo, um fato real - tão real que se teve de sofrer uma espécie de reorganização concep tual, à qual com alegria ora nos entregamos: "Esta sociedade é medíocre [ ... ] esta constatação tem algo de redentor [ .. ]. Finalmente existe uma correspondência entre o conceito . 29 e a aparência [ .. ]" (Enzensberger, 1995, p. 149). O caso agudo da Alemanha parece retomar continuamente este jargão, não obstante todo o ranço classificatório que se lhe possa atribuir: é como se a sociedade não suportasse transbordar dessa moldura. . A educação e a cultura, com ou sem aspas, estão acessíveis a quase todos, mas o ingresso nessas esferas é voluntário; quem não quer se envolver com essas coisas pode muito bem viver sem elas, uma opção feita com prazer por milhões de pessoas( ... ] Desempenhos extraordinários, seja na natação ou na física dos corpos sólidos, são permitidos, mas poucos estão ansiosos por imitá-los. A prin cipal função das "celebridades" não é a de estabelecer um parâ metro qualquer; o que importa é seu valor em termos de diversão (Enzensberger, 1 995, p. 152-15 3). Ocorreu a grande "Disseminação': oferece-se à observa ção uma infinita variedade de manifestações, todas mais ou menos contidas em limites mais que razoáveis: ((No lugar do caminhante solitário ou do idiota da aldeia, do excêntrico ou do esquisito, surge agora o dissidente médio que, em meio a milhões como ele, já deixou de chamar a atenção [ ... ] O médio não é apenas um postulado de lazer, mas a chave do sucesso" (Enzensberger, 1995, p. 155) - em um verdadeiro "paradoxo lógico: a mediocridade exagerada, a normalidade hiperbólica" (Enzensberger, 1995, p. 156). A flutuação do sentido. É apenas porque o sentido real da Violência do presente é extremamente sólido, que os intelectuais embasbacados pelo hedonismo esté tico podem se dar ao luxo de cultivar sua absoluta inutilidade enquanto intelectuais: um jogo de compensações. Não importa quantos milhões sejam gastos- está cada vez mais difícil encontrar alguém para desempenhar o papel principal de gênio. No seu lugar surge a estrela, o profissional, ou seja, aquele que consegue fornecer mercadorias medíocres em grande es cala. Andy Warhol tornou-se o ícone desse modo de produção (Enzensberger, 1 995, p. 1 60). 30 Em uma tal massividade, a ninguém é permitido inquie tar-se em sã consciência: apenas a consciência insana como a das ondas terroristas na Alemanha de 1977 pode sugerir a intrusão, no conjunto da massa compacta, da loucura extrava gante. É extravagante tudo o que não encontra meramente em - - si as razões de sua existência, bem como o que não aceita como inevitável a congênita moderação dessas razões. Mas até ali se estabelece, em uma sociedade a tal ponto supermoderna, uma estranha complementaridade, a suprema capitulação: A mediocridade e a loucura se relacionam de modo complemen tar; sua aparente oposição dissimula uma concordância profun damente enraizada. Não será possível encontrar qualquer espaço social fora desse emaranhado. Num equilíbrio mais ou menos pre cário, em padrões mais ou menos variáveis, esse entrelaçamento paradoxal ocorre em cada um de nós. A República da Mediocri dade não tem uma opinião muito boa de si: estranhamente sa tisfeita e loucamente normal, seu único problema é não estar à vontade consigo mesma (Enzensberger, 1995, p. 1 65). A sinceridade é envolta pelo jogo de espelhos; a radicali dade das causas, quando percebe, já não é mais do que vestí gio de si mesma refletido na grande lógica triunfante. Não há cidade com pretensões de pós-modernidade que não reserve aos seus outsiders uma pequena praça confortável; ali podem chocar as consciências o quanto quiserem: permanecerão ab solutamente inofensivos à marcha obsedante do prazer e do conforto egoístas. Mas que não tentem atirar alguma pedra na vitrine de uma loja: a ira do Deus absconditus da supermoder nidade voltar-se-á imediatamente contra eles, sob a forma de represália por parte de algum aparelho ideológico do estado. Consequência mais do que previsível em meio à promessa tola de imprevisibilidade que cada objeto inútil no balcão de' uma loja de departamentos parece oferecer a seu feliz comprador. Eis a essência da questão, aquilo que quer ser repetido ad nauseam: nem tudo é como parece. No grande e colorido universo da indiferença, nem tudo é indiferente; em meio às 31 promulgações da inelutável neutralidade, nada é realmente neutro. A sociedade supermoderna e suas caricaturas terceiro -mundistas conservam em si, como seu segredo mais reserva do, exatamente a mesma essência dos períodos mais·obscuros da história. A mediocridade, a infinita disseminação, a massa (Cf. Souza, 201 0), a multiplicação aparente do vazio, a trans formação contínua, maquínica, de qualidade em quantidade, não é mais do que a ardilosa e supremamente inteligente ex pressão que a hegemonia da violência naturalizada - a Tota lidade - encontrou para preservar seu verdadeiro núcleo de olhares indiscretos. 11. Desconstruir a naturalidade do mundo Porém, uma tal violência só pode se desenvolver de forma não auto-destrutiva no interior de algum abrigo, carapaça ou blindagem que a proteja de suas próprias invectivas. Como vivemos, talvez mais do que em qualquer outro período da história, uma época intrinsecamente violenta, a tal ponto que nos acostumamos a suportar o in-suportável, como se o insu portável não o fosse, numa contradição da própria lógica que sustenta nossos argumentos em todos os níveis ( Cf. Souza, 2010), este abrigo, blindagem ou carapaça tem de ser inusita damente firme e bem conectado em seus constitutivos, ou se desagregaria imediatamente. A primeira tarefa filosófica é, portanto, ver como se cons trói a naturalização de uma tal estrutura de violência - sempre, de algum modo, negação da alteridade, do diferente, do não -idêntico (Cf Souza, 2008)5 - que se esconde por detrás de algum tipo de aceitabilidade blindada, para que se possa empreender a desconstrução da lógica que a sustenta, habitando-a e recons5 32 Especialmente o capítulo "Três teses sobre a violência - Violência e Alteridade no contexto contemporâneo: algumas considerações filosóficas". truindo continuamente o arcabouço teórico-cognitivo que a faz perdurar e que se confunde com esta própria perduração. É de se notar então, previamente, que uma tal natura lização da violência pode se constituir, a rigor, apenas atra vés de um complexo itinerário, a saber: retirando da vida que constitui a significação dos acontecimentos sua característica própria de vida, ou seja, domesticando-a em sua espontanei dade temporal. Pois, por «vida", não se entende em nenhuma tradição filosófica ou científica algo outro que dinamismo vi tal. A vida se move, a vida vive - e quando «a vida não vive", como dizem alguns dos clássicos desse século, é que se chegou ao momento de contradição máxima - e não uma contradição dialética, mas paralisada e paralisante: uma espécie de deten ção do tempo dos acontecimentos, um respiro - ou estertor - de Odradek. Dá-se o caso, portanto, de perguntar se o período em que estamos não é, como tão bem viu e anteviu Kafka, um período de grave doença da temporalidade (Cf. Souza, 2000a). Naturalmente, tudo parece dizer em contra essa análise. Nunca se deram tem pos tão frenéticos como os que ora vivemos, tempos da ace leração, da virtualidade, do imediatismo, das simultaneidades que parecem levar a ideia de tempo justamente ao seu limite de realização. E, não obstante, toda essa procissão imagética pra ticamente indescritível pode estar sendo permeada, movimen tada, confundida, exatamente pelo seu contrário; não é abso lutamente implausível que esta agitação que, por definição, decorre em superfícies, denuncie o imobilismo pesado e iner cial da movimentação espontânea das coisas, tal como, num dia sem vento, seria a imagem de árvores balançando não por efeito do vento, mas por algum mecanismo que agitasse seus troncos. O excesso de movimentação, longe de ser testemunho de exuberância, trai justamente o abismo de sua ausência. O que aparenta ser dinamismo não passa de frenetismo obses sivo e circular, de irrelevância vital pelo sufocamento daquilo que faz com que se possa chamar de vivo ao que está vivo, con fundindo a simples respiração com o estertor do moribundo. 33 Quando proliferam as dinâmicas virtuais que poupam aos que se veem o incômodo de se encontrarem, é o caso de se per guntar se a própria ideia de encontro ainda é possível. O que significa: é a vida possível? A obra de Adorno, em seu conjunto e em suas inumerá veis variâncias, consiste essencialmente num imenso e genial esforço de trazer à luz da racionalidade eticamente investida, ou seja, eticamente constituída ( Cf. Souza, 2004b ), aqueles ele mentos que, submersos por pretensas totalidades de sentido (Cf. Souza, 1996), permanecem a ponto de sucumbir aos escombros da proliferação da não-vida. Ou seja, em opor à doença do tem po que vivemos uma cura vital: Adorno encontra Kafka. O fato é que, para Adorno, os mecanismos repressivos da modificação das condições humanas e sociais existentes - se é que não podemos, para todos os efeitos do presente estudo, sinonimizar tais expressões - configuram-se a partir de uma espessa teia de aceitabilidade que se tece por sobre a superfí cie dinâmica dos fatos, de tal forma a, pretensamente, trans formar tal dinâmica numa mera expressão estática do desde -sempre dado, do meramente existente, do consolidado, do consolado. Uma espécie de envoltório que tem, exatamente na sua superficialidade que não resistiria a um embate dialético verdadeiro, ou seja, não-totalizante, negativo, a sua força: a promessa de totalidade completa do estabelecido que comporta a positivação contínua, pela negação da singularidade, do fa ticamente já existente. Pensar filosoficamente consistiria assim, para Adorno, essencialmente na perfuração aguda - ou na corrosão arguta - dessa estrutura de proteção das entranhas reais daquilo que se apresenta como realidade, através da dialética negativa que explora toda a potência que habita cada conceito que, segundo ele, no conhecido dito, significa os pensamentos <<que não se compreendem a si mesmos': Pensamentos que, ao encontrarem - nos mais variados sentidos deste termo - a literatura kafkia na, assumem com plenitude a espantosa dimensão de sua ur gência. · 34 O UNIVERSO DE REFERÊNCIA - AGONIA DE UMA ERA? A COMPOSIÇÃO PROFUNDA DO SÉCULO XX FILOSÓFICO-CULTURAL: Aproximações6 [. .. ] para a filosofia, a experiência da guerra e da totalidade não coincidem com a experiência e a evidência em si mesmas? [ . ] Emmanuel LEVINAS. Totalité et Infini. . . O nome da história não deve ser pronunciado, pois aquilo que seria história, o outro, ainda não se iniciou. Theodor AD ORNO. Anotações sobre Kafka. Introdução A necessidade da integração e da síntese deveriam acom panhar todo o labor filosófico com pretensão de real penetra ção nos estratos culturais sequestrados pela indústria cultural em suas mais diferentes e, por vezes, disfarçadas modalidades. 6 Este texto retoma, atualiza e amplia o capítulo "O século XX e a desagregação da totalidade" (Souza, 1996, p. 1 5-29). 35 É somente na síntese intensamente auto-reflexiva que uma determinada visão de conjunto pode-se dar à compreensão que supera as contingências lábeis, as perspectivas estreitas, as precariedades acríticas, as racionalidades ardilosas; é somente pelo imperativo da responsabilidade inaudita da linguagem que a irresponsabilidade da disseminação acrítica de pensa mentos que cintilam com a duração de fogos de artifício pode ser depurada e decantada em sua gestação de sentidos canse quentes em oposição à lógica do desespero. Uma tal tarefa sintética supõe, por sua vez, um imenso esforço integrativo. A compreensão do fato de que, muitas ve zes, não é no corpo da filosofia explícita que se pode dar sua ' "hermenêuticà: mas no seu contexto subjacente, no seu "mun do" particular, na sua "consciêncià' contemporânea para além de "escolas'' particulares - ainda que tal pareça evidente a in telectuais e filósofos da cultura em geral, a compreensão desde dado não é, de forma alguma, das mais fáceis. Neste texto, far-se-á o esforço de tentar captar, por detrás das obviedades explícitas da transmissão filosófica acadêmi ca em suas diversas escolas, elementos que permitam a per cepção daquilo que constitui o que se poderia denominar de alguns dos níveis da composição profunda do século XX - o século do qual vivemos -, em sua «ancoragem" no passado, níveis estes imprescindíveis para a compreensão do mundo no qual não apenas Adorno e Kafka se movem, mas igualmente, todos nós herdeiros de suas inquietudes. Por uma história não-fracionada da Filosofia: o passado do Ocidente O pensamento filosófico se instaura no mundo ocidental no momento em que a necessidade da abstração se coloca no âmbito da potencialidade máxima da linguagem, ou seja, no 36 instante em que a raiz estritamente conceptual da linguagem ''gregà' - o Iogas - perde qualquer ingenuidade pragmática e se torna alvo de atenção detida em termos de organização e aplicação teórico-procedimental. É evidente que já o discurso dos poemas cosmológicos contém a pretensão e o núcleo de enunciados amplos, de juízos de realidade e de verdade - ou não haveria sentido em escrevê-los - o que se vai sistemati zar a partir do pensamento tradicionalmente concebido como clássico. A procura obsessiva, a um tempo proto-metafísica e já metafísica, pela arché da realidade - exercício de poder do lagos - corresponde a um aprofundamento abstrativo e a uma sofisticação crescentes, que culminam gloriosamente na ldeia platônica e na Metafísica aristotélica. Ao factum do impulso abstrativo cujos testemunhos nos chegaram - ou seja, o que é, na tradição, considerado e tratado como sendo o impulso filosófico por excelência - corresponde um horizonte de sentido, por assim dizer, que permite imbri car indelevelmente, já neste estágio, o pensamento e seu con texto circundante: o respectivo "mundo humano" (no dizer de W Luipjpen, em Introdução à fenomenologia existencial, pas sim) em que o pensamento que passa à tradição hegemônica como genuinamente filosófico é gestado, e isso segundo um modelo compreensivo aqui apresentado de modo dual. Em primeiro lugar, está-se a traduzir fielmente a raiz do modus operandi da reflexão e da linguagem ocidentais. Esta linguagem e este pensamento são eminentemente, como sa bemos desde a origem do próprio termo Iogas, classificató rios, ''especificadores': determinantes - interessados, acima de tudo, na referência semântica tão unívoca quanto possível e na máxima precisão da ideia expressa, a qual não se deveria poder confundir, a rigor, com nenhuma outra. Este modelo de linguagem (ao qual se poderia opor, por exemplo, um outro, no qual a abertura e reabertura de camadas de significação pertence à própria essência da linguagem, antes do que a pre- 37 cisão e a univocidade da interpretação de certa forma "única" pela sua pretensão de unicidade) é o modelo básico corrente da filosofia que nos foi legada e recebida como merecendo o estatuto que seu nome designa, em suas inúmeras variações, e da ciência que, a certa altura, dela se separa. E, em segundo lugar - fato menos erudito e mais impor tante - está-se iniciando a tradução de um determinado impul so vital do Ocidente, uma potência, algo que habita os tempos mais remotos da cultura ocidental e que se dissemina crescen temente ao longo da história do pensamento e da história da humanidade: a tendência sempre renovada de reduzir o Dife rente ao Mesmo, intelectualmente ou faticamente expresso.7 Um exemplo é aqui necessário: Para a cultura grega, aquilo que se veio consagrar na his tória do pensamento com o nome de Infinito era algo intolerá vel (Cf. Souza, 2005). O apeíron (literalmente: i-limitado, entre outras significações que aqui não abordaremos), ao opor-se de algum modo a uma pretensão de kosmos (literalmente: ordem e beleza, igualmente entre outras significações que aqui não abordaremos), aparecia como repugnante ao intelecto, princí pio de caos e de desordem, fundamento inquietante de inde terminabilidade. Para um pensamento que iniciava suas pos tulações maduras, a um tempo deslumbrado com seu poder de abrangência e com seus sucessivos acoplamentos à realidade, que amoldava à sua figuração - que conhecia crescentemente - o apeíron significava, fundamentalmente, e não obstante Anaxi mandro, a ameaça do desconhecido. Muitos séculos após, o pensamento moderno afirmará a infinitude do Universo. 8 O que se está dizendo junto a esta 7 8 38 Ver o capítulo "Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de uma história multicentenárià' (Souza, 2000b, p. 189-208). É muito interessante observar o sentido extraordinário da ousadia intelectual que subjaz a esta postulação. Enquanto até Copérnico o mundo era finito, embora im mensum, Nicolau de Cusa constata a impossibilidade de determinar os limites do mundo, e Giordano Bruno afirma a infinitude do mundo de forma inédita, e com suficiente paixão para, entre outras, morrer por ela (Cf. Koyré, 1987, p. 39 e 47). afirmação? Simplesmente, que de alguma forma também o in telecto é infinito, ou não poderia afirmar a infinitude de algo.9 A distância que medeia entre a aparente timidez original grega e a ousadia moderna é a tradução do impulso original do espírito ocidental em processo de trofismo: a redução do des-conhecido ao conhecido, do diferente que se torna uma espécie entre outras espécies: modelo que, ínsito à origem, cla ro na Modernidade, aponta para uma determinada direção do futuro. A História do Ocidente tem consistido, em suas linhas mais amplas, na história dos processos utilizados para neutra lizar o poder desagregador do Diferente; e a História da Filo sofia ocidental tem sido, quase sempre, a maneira de favorecer e legitimar intelectualmente esta busca da neutralização.10 A esta busca de neutralização chamamos totalização, e à cons trução dialética, imanente e com pretensão de auto-compre ensão e auto-legitimação - em que convergem os resultados deste esforço de totalização, temos chamado Totalidade. 11 Assim, o não-fracionamento da compreensão do passa do filosófico do Ocidente permite a percepção de uma linha de desenvolvimento extremamente clara: a que conduz, em um paralelismo que supera realmente qualquer distinção aca dêmica entre teoria e prática, de um impulso original à preÉ muito sugestivo que o mesmo pensamento que afirma com inaudita potência a infinitude do mundo seja o mesmo que, rememorando "Solamos & Pythagoras': faça $CU o pensamento famoso do "nada de novo sob o sol" (Cf. Bruno, 1 984, p. XLVIII, especialmente o autógrafo: ''Quid est quod est? Ipsum quod fuit. Quid est quod fuit? Ipsum quod est. Nihil sub sole novum"). 10 É inviável, nas limitações deste texto, estudar detidamente os argumentos a fa vor desta tese; temos feito tal em vários de nossos trabalhos, principalmente O 9 Infinito para além do infinito - Estudo sobre a questão filosófica de Infinito de Emmanuel Levinas e seu sentido para o pensamento contemporâneo. Porto Alegre: PUCRS. Dissertação de Mestrado. 1991 e na primeira parte de Wenn das Unen d liche in die Welt des Subjekts und der Geschichte einfiillt - Ein mctaphiinomenolo Emmanuel Levinas. Freiburg i. B. Tese de Doutorado. 1994. Um trabalho pouco conhecido de Levinas, o verbete da Encyclopédie Universel le "Totalité et Totalisation" (Paris, l973ss, Vol. XVI, p. 192-194), apresenta este conceito de forma particularmente aguda. gischer Versuch über das ethische Unendliche bei 11 39 tensão de sua realização em um contexto hegeliano ou nietzs cheano. Todas as distinções teóricas entre a teoria e a prática são secundárias ante a originariedade dos fatos determinantes da história ocidental: o exercício concreto da totalização e sua correspondente legitimação filosófica. Não se trata de ne nhum jogo de conceitos, mas do grande jogo da realidade, tal como determinado pelas ''forças de determinação" maduras do espírito ocidental, que atingem sua plena potência e·spe cialmente a partir da modernidade. Afora isto, e com exceções raras e marcantes, o que se tem na história ocidental, seja em suas' dimensões factuais, sejam em suas dimensões reflexivas como história da cultura ou da filosofia, até pelo menos bem avançado o século XIX, são episódios mais ou menos signifi cativos para este grande movimento, claramente hegemônico, de totalização. Este é o passado com o qual a filosofia tem de conviver, sua história e, de uma ou de outra forma, o peso com que se terá de ver a filosofia contemporânea nesses séculos XX e XXI que não são senão herdeiros desse passado e trazem definitivamente à luz os seus frutos. Por uma história heterodoxa da Filosofia: o século XX Poucos momentos da história ocidental apresentam um tal acúmulo de fatos significativos como a transição entre os séculos XIX e XX transição esta que se dá completamente, ao nosso ver apenas ao fim da segunda guerra mundial. 1 2 Esta - 12 40 Entre as inúmeras obras de cunho histórico e de grande interesse sobre este periodo, encontram-se entre as filosoficamente mais significativas: JANIK, A.; TOULMIN, S. A Viena de Wittgenstein (1991); GAY, Peter. A cultura de Weimar (em que pese a precariedade da tradução) (2002); KONDER, Leandro. História do Fas cismo ( 1 979); SCHORSKE, Carl. Viena .fin-de-siecle - política e cultura ( 1 988); RICHARD, Lionel (Org.) Berlim, 1919-1 933 - a encarnação extrema da moder nidade ( 1 993); SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber - a paranóia à luz de Freud - Kajka - Foucault - Canetti - Benjamin { 1 997), etc. transição se inicia na flexibilização de uma série de parâme tros culturais, a partir de meados do século XIX. Na ciência matemática, por exemplo, a geometria euclidia na, vigente como única durante muitos séculos, perde seu posto absoluto desde as descobertas de Riemann e Lobatchewski; os números transfinitos de Cantor a um tempo ampliam e re-pro blematizam a noção de número. A física acelera seus avanços que culminarão na superação da teoria atomística clássica pela física quântica e da ampliação do universo newtoniana pe las descobertas einsteinianas. Nunca na história, como neste momento, revoluções científicas (no sentido de Kuhn) se im bricaram de forma tão densa, a ponto de impedirem a visão da unidade: apenas o movimento parecia ser visível. Tanto no macrocosmo galáctico como no microcosmo subatômico as verdades lógicas da tradição - inclusive de lógicas não-dualistas - são incisivamente relativizadas, sem esperanças de concilia ção com o bem-ordenado mundo do passado. Na indefinição entre onda e partícula estava muito mais do que umá querela científica parcial: a própria noção de ciência, tal como a tradi ção a ditava, está também sendo colocada em questão. O darwinismo questiona implicitamente o posto privi legiado do sujeito pensante na ordem da evolução - como o fizeram espacialmente, no início da era moderna, as desco bertas copernicanas - e, isto, apesar da insuficiência óbvia do conceito de ciência que celeremente se deslocou para as bases teóricas do evolucionismo (embora tal tenha obviamente a ver muito mais com Haeckel ou Spencer do que com Darwin em sua reconhecida prudência de generalizações).13 Está-se às voltas, �qui, com a relativização de algumas caras balizas metafísicas da ocidentalidade, embora, muito provavelmente, não tanto aquelas que se julgaram então atacadas - como cer tos dogmas eclesiásticos - mas, sim, a capacidade de transpo13 Ver a crítica de Bergson à concepção rígida de evolução, na Introdução de A evolução criadora onde critica, paralelamente, a noção de ciência do século XIX em sua rigidez anacrônica. - 41 sição intelecto-realidade, ou seja, finalmente, a capacidade de representação de um mundo, 14 um certo otimismo racionali zante, que só iria ruir completamente nas cinzas da Segunda Guerra Mundial. A psicanálise, por sua vez, relativiza o domínio consciente dos atos humanos; suas descobertas, em verdade, são por de mais significativas para permanecerem circunscritas ao modelo de ciência utilizado por Freud. As sistematizações freudianas, assim, acabam por contribuir para a própria implosão episte mológica então em curso. Para além da clínica e das individua !idades, a própria cultura torna-se passível de um procedimen to psicanalisante, e não apenas segundo o modelo freudiano. No domínio das artes, os cânones estéticos mais ou me nos hegemônicos do passado dão lugar, em um processo lento, porém constante, à variedade contemporânea de escolas, es tilos e concepções. Não é por acaso que, na virada do século, proliferam com tal vitalidade os movimentos que acabam por colocar em questão a própria noção de arte - e, tanto nas ar tes plásticas (com o abstracionismo e o cubismo, por exem pio, mas não somente: também no expressionismo) quanto na música (com o serialismo, o dodecafonismo, o concretismo de n1eados deste século e a música aleatória - e até mesmo, a despeito de Adorno, em certos aspectos do neoclassicismo) e em outras expressões artísticas, percebe-se a tendência a uma crescente objetivação das formas e materiais artísticos, uma autonomia da criação, que faz com que qualquer classificação soe falsa. Como classificar propriamente a obra de Franz Marc ou Kirchner, Otto Dix ou Grosz, Munch ou Max Ernst, Klee ou Kandinski com seus ''pontos" geradores de vida, ou como enquadrar artificialmente em um universo de sentido pré -explicativo a Guernica ou as Figuras na praia de Picasso? Da mesma forma, onde se situa propriamente o pós-romantismo carregado de Pfizner ou Reger, testemunhas do ocaso de um mundo, apesar das intenções dos autores? A diluição da tona14 42 Ver o capítulo "Status quaestionis" em Souza, 2008. lidade - expressão musical do sujeito moderno, que advém com Palestrina e chega a seu crepúsculo através da arte tão di ferente entre si de Mahler e Debussy - significa muito mais do que apenas interessa aos músicos: significa a terminalidade de todo um universo de sentido. Tal remete, no fundo, à questão da decadência de cânones e padrões: à decadência da socieda de, no seio da qual, desde há algum tempo de forma aguda, latejava a degradação. Na literatura, o exemplo de Kafka é sufi ciente para a percepção da fragmentação de um mundo - tan to quanto em Joyce ou Proust - fragmentação que chegará aos cumes artísticos na Montanha Mágica de Thomas Mann, con trapartida intelectual dos Buddenbrooks, enquanto seu irmão Heinrich colocava a nu alguns elementos menos desejáveis da sociedade bismarkiana no notável Der Untertan. Na política europeia, a tradição ao período neocolonial não se dava sem exacerbações colonialistas em seus restaura cionismos desvairados - veja-se o exemplo da Bélgica, as atro cidades do Congo e o famoso dito de seu imperador Leopoldo: "não existem nações pequenas, existem mentalidades taca nhas': O recrudescimento vigoroso do conservadorismo, por cujas veias corre o "novo" sangue do racismo e da intolerância, dos medos ocultos e manifestos, é provocado por movimentos libertários, como as abortadas revoluções de 1 905 na Rússia e 1 9 1 8 na Alemanha. O fato é que o século XX se desvela, realmente, apenas na Primeira Guerra Mundial. Conflito de interesses há longo tempo gestado, a conflagração exporá a verdadeira face do mundo contemporâneo. Nunca o imperia lismo foi, a um tempo, tão conservador e tão violento: por isto, a guerra foi mundial. Mas é na Segunda Guerra Mundial que o mundo tão lon gamente gestado revelará sua verdadeira face. Culminância ló gica dos Totalitarismos, a Guerra é também a culminância da lógica do Ocidente. O que é o Nazismo: a menos hipócrita das doutrinas, ao afirmar que o Ser é o Mesmo, o Bom, a Totali dade, enquanto o que a isto não pertence, o Não-ser, o Outro, 43 o Diferente, é ou deve ser Nada. É apenas no Nazismo - no momento da violência institucionalizada e da aniquilação per feitamente planejada, racional, iluminada, do Diferente - que a Totalidade ocidental pode finalmente encontrar seus verdadei ros impulsos constitutivos, aqueles que, em Heráclito, se davam no combate e na guerra e, em Parmênides, definiam de uma vez para sempre que o ser é e o não-ser não é. Na Shoah, como na Bomba Atômica, o ser foi e o não-ser não foi: pertencem ambos, grande extermínio e bomba exterminadora, ao mesmo lado, embora uma certa história que privilegia as contingên das geopolíticas tente ensinar o contrário. A grande Razão que culmina na mítica realização, simultaneamente absolutamente abstrata e absolutamente concreta, "monumento máximo de cultura que se mostra monumento máximo de barbárie": dois lados de uma mesma moeda totalizante, dois momentos do metabolismo de um mesmo e único modelo trófico hegemôni co de um determinado espírito e de uma forma de compreen der o mundo e o universo como "gigantescos campos de caça': O contexto da filosofia Com o Idealismo absoluto - especialmente com Hegel a Totalidade se auto-compreende e se auto-legitima de forma acabada. A dialética é seu motor e sua vida, arte acabada de transmutação do Diferente no Mesmo (Cf. Souza, 2005). Com Nietzsche, e por trás de todas as suas nuances interpretativas, a totalidade festeja a si mesma em seu futuro ainda não-reali zado, sem meias-palavras ou hesitações estratégicas: ali, o bom é o forte, e a realidade deve ser a realidade do forte.15 O século 15 44 Ver o capítulo "Nietzsche e a festa da Totalidade" (Souza, 1996). É esta percep ção de não-hipocrisia que levará Adorno e Horkheimer a afirmar preferirem 'as filosofias sem compaixão" às "filosofias dos lacaios morais da burguesia" (Adorno; Horkheimer, 1 97 1 ). século de Otimismo oficialmente iniciado em 1 789, dá completude ao grande arco espiritual do Ocidente. Mas já en tão as provocações de Marx, Schopenhauer, Kierkegaard - e também, certamente, do último Schelling - deveriam ter dado ainda mais a pensar do que então se percebeu. A inauguração do novo século é cercada por uma frag mentação de pensamento que sugere uma grave desagregação - crise que traz aos espíritos realmente sensíveis, antes de mais nada, inquietude. Todos os filósofos da época percebem uma atmosfera de desconforto, de perigo, de desinstalação. As direções a seguir são geralmente duas: ou uma certa "arqueologia restauradorà' - Husserl e Heidegger16 - ou a proposição de alternativas di versas. Husserl julga perceber na insuficiência de radicalida de do Cogito cartesiano a raiz do grande desvio cultural que culminará na decadência. Sua obra é também uma tentativa nostálgica e preocupada de retomada dos parâmetros da mo dernidade sobre bases de maior consistência. Esperança na correção de rumos da stultifera navis na qual se havia trans formado o Ocidente culto e civilizado. Heidegger, por sua vez, pretende retornar às nascentes do Ocidente, para corrigir e evitar os desvios causados pelo esquecimento do Ser. É prova velmente o primeiro filósofo a compreender a grande história do pensamento em suas conexões internas. Sua hermenêutica existencial, por seu lado, desnuda a facticidade do finito no pólo de percepção possível da Totalidade: o Dasein, doravante condenado, enquanto mônada, à percepção e ao assumir de sua própria indigência. A precariedade do Dasein é a preca XIX, - riedade do pólo de referência da Totalidade ocidental e, por extensão, é a marca indelével da precariedade desta Totalidade mesma. (É, por outro lado, extremamente interessante obser var a ressonância da consciência da finitude em dois grandes pensadores extremamente diversos: Heidegger e Rosenzweig. 16 Ver o capítulo "Husserl e Heidegger - motivações e arqueo-logias" (Souza, 1998). 45 Para Heidegger, a finitude é o fato radicalmente terminal, mo mento de completação autofágica da Totalidade do Dasein, exis tencial intrínseco e imanente. Para Rosenzweig, a morte é o que impede a Totalidade de chegar à sua completaçao, aquilo que a confronta com o que, em sentido mais radical possível e levando em conta todas as suas potências, não é ela mesma. 1 7 A finitude é o fim da filosofia, o fim da "determinação de ser': Estas diferenças entre os pensadores significam, evidentemente, muito mais do que distinções acadêmicas). As proposições alternativas, por sua vez, sem renegar, a rigor, o passado, se dirigem à raiz da decadência para tentar fundamentalmente superá-la. (Isto não significa, obviamente, que todos os autores importantes da época tivessem alguma inclinação "utópicà: embora muitos a tivessem; significa, antes, que o sentido geral do filosofar se transloca de forma muito in cisiva da construção sistemática, categoria! ou conceptual para a crítica do sistema, do conceito, da linguagem e da filosofia mesma). O seu movente geral, em um tempo de poucas espe ranças, é o futuro, ou que se puder dele salvar - mesmo que isto não esteja explícito em suas obras. Wittgenstein desloca para a questão dos enunciados e da linguagem em geral o pólo crítico do pensamento. A ideia do "calar-se ao não poder sobre algo falar", o princípio dos jogos de linguagem e a percepção da ética como não-dizível apontam para algumas das insuficiências desveladas nos oti mismos sistemáticos e nos construtos bem-acabados; reivin dicam prudência no trato da realidade. Lukács intenta, em sua obra madura, o compartilhamento da verdade ontológica para além de um foco de sentido, no processo de desdobramento ontológico em camadas com propriedades e particularidades não-intercambiáveis, em última análise não-interpenetrantes nem inter-substituíveis, dadas no múltiplo meta-conceptual: 17 46 "Vom Tode, von der Furcht des Todes, hebt alies Erkennen des All an. Die Angst des Irdischen abzuwerfen, den Tod seinen Giftstachel, dem Hades seinen Pest hauch zu nehmen, des vermisst sich die Philosophie" (Rosenzweig, 1996, p. 3). tentativa de re-colocação das concretudes mediatizantes na lógica do ser em ex-planação. Buber expressa a esperança no al çar da comunhão como categoria filosófica. Provindo de uma outra tradição, procura introduzir na obviedade filosófica oci dental, no modelo tão bem traduzido pelo Descartes ao pé da lareira, modelo per definitionem solipsista e egologista à Husserl, a não-obviedade de sua constituição comunitária, ou a possibilidade da constituição da verdade como questão a envolver, no mínimo, mais do que um ator.18 Esperança vã de que o espírito de comunidade reenvie a racionalidade a seus limites congênitos? Bergson desvela a rigidez dos esquemas normais de pen sarnento - esboça mesmo uma "crítica da razão rígida" - e pro põe o filosofar enquanto "inversão da ordem natural do pen sarnento", na intuição objetivante que procura reaproximar os conceitos da vida desde dentro, desde seus impulsos pré -racionais, para além dos esquemas pesados e que, em última análise, chegam sempre tarde demais em relação às realidades intuídas (Cf. Souza, 2004b). Bloch trabalha uma intuição úni ca, dos dezoito aos noventa e dois anos de idade: aquela que aponta a densidade ontológica não na sincronia do presen te, na tautologia do resolvido no ser paralisado, mas, sim, na aproximação da realidade à sua própria densidade, no Noch -nicht, no Ainda-não corretivo de cada momento em vias de fechamento. No fora-do-tempo e fora-de-lugar - no utópico - está a realização que a totalização do presente nega à reali dade: pulsão viva do futuro que a racionalidade do presente não pode compreender. Bachelard revisita a Epistemologia e a "contamina" com estranhas imponderabilidades; poetiza indi_ 18 Nem a concepção pré-socrática-heideggeriana de verdade como Aletheia, nem a formulação aristotélica da verdade como "adaequatio rei et intellectus': neces sitam, a rigor, de mais de um participante pensante para se darem; apenas na concepção hebraica de verdade como "Emunah': como confiança temporal na ex pressão da realidade a outrem, é necessário mais do que um interlocutor para que se dê a verdade: fundamental questão que envolve uma outra Weltanschauung, a expressão de um outro núcleo ético-mítico no sentido de Dussel (1969). 47 retamente, ao fim de seu percurso, a ciência. À continuidade do Todo auto-resolvido, propõe a descontinuidade das provas da realidade, a que somente uma "razão surrear' pode fazer justiça. Rompimento com a razão auto-compreensiva por um pensamento que procura o Outro para além do Mesmo? Scheler intenta fenomenologicamente 'solidificar" ou perceber a solidez - (de) realidades outras que aquelas a que normalmente se atribui peso e solidez: valores e atribuições normalmente percebidos como acessórios da essência. Algo mais se reapropria de seu valor intrínseco, ou à realidade pertence algo mais do que o dado na obviedade da ontologia clássica. A pessoa como ens amans, a vida como ars amatoria: traição da fixidez conceptual na qual o único valor real é o ser definido em si mesmo? Traição do ser? Ortega y Gasset de certo modo inaugura a fenomenologia existencial ao precisar a inseparabilidade entre um Eu e as cir cunstâncias nas quais este Eu se dá; Mareei reconduz a filosofia à questão da profundidade do que pergunta pela profundida de da realidade, à questão da indefinição e indefinibilidade ra dicais da existência em um universo pretensamente de-finido. Sartre se vê às voltas com a "ambiguidade da percepção, do diferente; na flutuação entre o Ser e o Nada, se imiscui a coisa sem nome, a Heteronomia, raiz da náusea.19 Merleau-Ponty ex põe as ilusões da ideia de uma consciência não "ancoradá' em uma substancialidade que constitui esta consciência mesma e que lhe é, por conseguinte, prévia. Camus eleva ao nível de categoria filosófica aquilo contra o que a filosofia mais tinha lutado, em termos conceptuais, até então: o absurdo, que é o mesmo absurdo que advém da combinação entre a desorienta ção e a falência real de uma confiança, na totalidade da guerra. Por sua vez, a Escola de Frankfurt intenta, desde motiva ções outras que as normais da tradição, criticar a totalidade da construção ocidental em seus constitutivos mais profundos e - 19 48 Ver nosso texto "Sartre e a ambigüidade da percepção" (Souza, 1996). em sua estruturação.20 Adorno expressa, com Benjamin, con tra Hegel, todo o espírito que pretende a recolocação do centro de decisão filosófica, o deslocamento do sentido totalizador dos sistemas para os fragmentos do que sobrou da constru ção teórica ou real da Totalidade: "verdadeiro é o que não é o todo", e a verdade do pensamento não está nele mesmo, mas no que ele ((em si não compreende". Poderíamos - deveríamos - seguir muito além neste rol de inovações filosóficas inquietantes, culminando na atualida de de Rosenzweig, Derrida, Agamben; tal o fizemos, aliás, em muitos outros trabalhos; para o momento, portanto, basta -nos, a título de exemplo, o já exposto. Pois o que nos importa é chegar ao ponto de ruptura, de irrupção da Alteridade, aquele ponto em que, segundo Kafka, '(já não há qualquer possibili dade de retorno". A ruptura - condições A cultura ocidental no século XX, desde seus centros de definição, está assim às voltas, em suas múltiplas facetas, não com uma questão de razão, mas com um fato dado, a preci pitação do processo de rompimento e desagregação de uma Totalidade fática e de sentido. O século XX é o século no qual a Totalidade e os otimismos do passado se puderam e se po dem realmente perceber no espelho da contemporaneidade, nas cinzas e fumaça de Auschwitz - espantoso processo de Aufhebung material do estranho -, na aniquilação perfeita do diferente em Hiroshima, na preservação espantosamente violenta do Mesmo contra as ameaças externas nos porões da história em geral e das pequenas histórias em particular. A 20 Ver o texto "A Escola de Frankfurt e o contexto de seu surgimento: inquietações éticas no coração dos dilemas de uma época': neste livro. 49 estas alturas, não se pode mais julgar que tais fatos sejam meros acidentes de percurso de um trofismo sadio: eles são, em verdade, expressões do real metabolismo interno da Totalidade, ou do que tem restado dela. Trata-se do doloroso testemunho do fracasso de uma promessa. A transformação do mundo em um "gigan tesco juízo analítico'' e do universo em um "gigantesco campo de caçà' (Adorno; Horkheimer, 1971, p. 285) prossegue célere, apesar da desagregação, na edificação da metafísica da acu mulação e do consumo infinitos - consequência lógica da pro mulgação do universo infinito sustentada teoricamente pelas - ideologias do "fim da histórià'21 e dos liberalismos redentores. O esgotamento ético-ecológico óbvio de tais modelos, no máximo a médio prazo - e as ideias de "desenvolvimento sus tentável" representam a aceitação tácita deste fato até mesmo pelos centros de decisão -, conduz necessariamente a um es tágio de ruptura. Conclusões: a ruptura - o futuro Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. Walter BENJAMIN. Obras Escolhidas 22 À desagregação interna de todo um sistema de sentido e de valores, necessita corresponder um modelo de inteligibilidade para além da subserviência à tradição em falência. É necessá rio levar às últimas consequências o processo de desconst.rução 21 22 50 Ver nosso texto "O fi m da história, a totalidade rediviva e a metafísica do consu mo infinito" (Souza, 1996, p. 1 0 1 - 1 16). Trata-se da 4a Tese "Sobre o conceito de Histórià' ( 1 987, p. 224). Esta intuição benjaminiana se apresenta, no contexto da hermenêutica crítica e ampla do sé culo XX, como a mãe de todas as intuições utópicas. da Totalidade, para que a reconstrução da história verdadeira, aquela citável a cada passo e, portanto, julgável em seu verda deiro sentido (Cf. Benjamin, 1987, p. 223), possa ser iniciada. A intuição de fundo de Rosenzweig, a que percebe no século XX a oportunidade final da re-situação da filosofia, significa o penetrar fundo no ser da contemporaneidade, perceber o sen tido real de ser, o que verdadeiramente se dá na ontologia, nos moldes dos pouco ingênuos Heráclito e Parmênides. Somente no século XX e em sua herança gigantesca é possível uma tal abrangência de conjunto e a percepção de sua história real, para além das palavras bem-construídas. O sentido real do ser deixado ((a si mesmo", em seu trofis mo natural, somente pode ser percebido de forma contrastiva, no momento em que a Ontologia é destituída de seu sentido absoluto de prima philosophia. A transmutação levinasiana de valores - a Ética como filosofia primeira - é a condição para a percepção de um futuro que traga em si mais do que o resultado da pulverização de um universo de sentido. É ape nas ali, neste novo modelo de inteligibilidade do universo, da realidade, baseado na singularidade e na não-quantificação da qualidade, que se pode realmente iniciar a construção do sentido não-totalizante, da história como um drama ético que se desenrola no gigantesco palco universal no qual o mundo e todas as suas virtualidades se constitui temporalmente. A fi losofia, em fins e início de século e de milênio, só tem sentido enquanto crítica da Totalidade que se exerce em nome da crí tica da violência contra o singular. Pois - e bem o aprendemos no rastro de Adorno e Kafka - o passado habita na tautologia; é apenas no futuro, para além do tempo paralisado em sua mera representação, que habita qualquer esperança. 51 A ESCOLA DE FRANKFURT E O CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO: Inquietações éticas no coração dos dilemas de uma época23 Introdução Só há uma expressão para a verdade: o pensamento que nega a injustiça Theodor ADORNO e Max HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Pensar em penetrar no corpo filosófica e historicamente di nâmico da Escola de Frankfurt para tentar dela extrair um deter minado ccsentido" unívoco apresenta-se, não apenas pela infinita complexidade da tarefa, um verdadeiro contra-senso. Poucos grupos de pensadores foram tão extraordinariamente variados, ativos, inquietos como aquele formado por intelectuais que de cidem, na década de 1920, se reunir para empreender uma crí23 Este capítulo amplia, atualiza e modifica substancialmente o texto original "Estética e restos da história" de nosso livro Totalidade & Desagregação ( 1 996, p. 31 -64). 53 tica radical da sociedade sua contemporânea,24 via exame dos pressupostos e condições objetivas desta sociedade. Jovens de variada procedência intelectual,25 porém com a mesma inquie tação perante o statu quo social e cultural, decidem conjugar seus esforços intelectuais em um bloco crítico mais ou menos homogêneo, que se vai construindo ao longo de muitos anos de profícua atividade a partir da sustentação material oferecida por Felix Weil, e isso em um momento e lugar críticos, no sentido de decisivo, da cultura do século XX.26 Sua produção é tão rica e va riada como o mundo que os autores vivenciam em seus consti tutivos profundos, na particularidade de seus locais epistemoló gicos de origem e na universalidade de suas preocupações; cada um elabora discurso particular, consoante sua personalidade própria e suas peculiaridades de formação e interesse, e no con junto destes discursos pontificam os mais variados campos da atividade pensante, que logo iriam transcender completamente a ideia de um centro de estudos marxistas. A difícil penetração neste universo crítico pode ser, contu do, reorganizada no sentido da investigação mais precisa de suas motivações originais, ou seja, uma instância da qual a própria discursividade irá haurir seu vigor filosófico-cultural. A nossa preocupação neste breve estudo será evidenciar a linha mestra 24 25 26 54 "[ . . . ] Um grupo de homens, interessados em teoria social e formados em escolas diferentes, agruparam-se em torno à convicção de que a formulação do negativo na época de transição era mais importante do que as carreiras acadêmicas. O que os uniu foi a aproximação crítica da sociedade existente" (Horkheimer, 1974, p. 9). Também ver "Seus membros estavam interessados na integração de filosofia e análise social" (Jay, 1974, p. 85). Neste texto meramente introdutório a um determinado espírito motívador do pensamento serão enfocados autores também como Benjamin e outros, mais ou menos afastados do núcleo central da Escola de Frankfurt, devido à convergên cia de seus interesses críticos e à importância que tiveram não só para a vida da Escola e da sociedade, como também para a filosofia contemporânea em geral. Para uma historiação bastante exaustiva da Escola é indispensável Rolf WIGGER SHAUS, A Escola de Frankfurt (2000), e também Susan BUCK-MORSS, Origen de la dialéctica negativa (ênfase em Adorno e Benjamin) ( 1 98 1), além do já clás sico livro de Martin JAY, La imaginación dialéctíca (1974), são obras importan c tes. Basear-nos-emos, nesse texto, especialmente em análises pontuais dos dois últimos autores. de motivação destes pensadores originais - tanto no sentido de "fundadores'' como de "heterodoxos, ou simpatizantes -, aquilo que faz com que o resultado de seus esforços tenha sido e per manecido absolutamente pertinente e seu legado extremamente importante para a filosofia, e isso ainda hoje, quase um século após a fundação do Institutfür Sozialforschung. Pois, ao contrá rio do que se quis acreditar em alguns momentos do final do sé culo XX, muitas das categorias gestadas no seio da reflexão desse variado grupo de pensadores permanece não apenas atual, mas torna -se até mesmo imprescindível para a compreensão desse início de século e de milênio em termos geopolíticos e culturais tanto amplos, no ocorrer do atual estágio da globalização, quanto específicos para o próprio pensamento de campos diversos da compreensão das errâncias culturais que nos devastam em seu frenetismo quantificador. Expressões tais como <<indústria cultu ral" são mais atuais do que nunca em seu significado interpreta tivo para os fenômenos que vivenciamos diuturnamente; quem não compreende isso, provavelmente não chega a compreender os reais impasses do mundo em que vive (Cf. Duarte, 2003). A motivação radical da E scola de Frankfurt Assim, não obstante toda a complexidade histórica do mo mento de nascimento desse singular movimento cultural, não é muito difícil, a partir de uma leitura atenta de textos representa tivos dos principais pensadores da Escola e dos itinerários que se configuraram historicamente aos seus membros individual mente considerados e ao grupo como um todo - ainda que clas sificações sejam sempre problemáticas neste quesito -, perceber claramente o delineamento de uma estrutura de motivação de referência de origem que assegure a consistência destas pesqui- 55 sas: sua motivação radical. 27 Pois, cada um a seu modo, cada pen sador deixa transparecer ao leitor atento o que realmente constitui a medula e o foco gerador de sua particular discursividade, ou seja, o que dá sentido aos seus esforços discursivos, sua motiva ção básica. Trata-se de uma inquietação ética radical, tão profunda quanto descontente com as reais condições do universo que a sen sibilidade particular deste grupo de pensadores conseguia captar. Esta "sensibilidade filosófica: que lhes permite a percepção do real estado de uma sociedade já naquele ponto insuportavelmente do ente, antes que estes sintomas se transformassem, por si mesmos, em consenso "externo'' com a nova guerra,28 foi-se traduzindo, ao longo dos anos, de acordo com o particular talento de cada um, em suas respectivas obras. O que nunca deixou de aparecer foi uma sólida ancoragem de suas reflexões naquilo que, propria mente e em última análise, justificava os esforços despedidos, e que seria a única coisa a dar verdadeiro sentido a estes esforços: uma penetração tão profunda nas mazelas da modernidade que esta seria como que ((desnudada'' em seus mais íntimos recônditos, abrindo-se finalmente, por entre seus espaços dilacerados, o espa ço de uma dignidade humana não violentada. É este, simplesmen te, o sentido original da crítica frankfurtiana. Aos fundadores da 27 Historiadores e analistas da história da Escola costumam muitas vezes descurar o fato de que, sem a percepção e o cuidado de manter continuamente à vista essa estrutura motivacional básica, à qual tudo o demais é subordinado, as contradi ções entre os membros e as categorias que utilizam para interpretar o mundo, as aparentemente arbitrárias escolhas de referências teóricas, que se modificam constantemente ao longo do tempo segundo autor e lugar, enfim, as idiossincra sias evidentes e aparentemente inexplicáveis do movimento - que não cansam de denunciar - são simplesmente ínínteligíveis. A pouca clareza por parte dos analistas dessa motivação básica aqui apresentada faz com que quaisquer análi ses de cunho exclusivamente epistemológico acabem por passar bastante longe do alvo, não obstante serem motivadas exatamente pela obsessão por clareza. A questão profunda da Escola de Frankfurt não é o conhecimento, no sentido de que não é ao melhor ou mais aprimorado conhecimento da realidade que seus esforços se dirigem, mas àquilo a que o melhor ou mais aprimorado conhecimento pode ou não conduzir. Um exemplo claro de tal linha interpretativa "epistemológica" é sinteticamente apresentada no prefácio da tradutora francesa de A Escola de Frankfurt, de RolfWIGGERSHAUS e Lyliane DEROCHE-GURCEL, por sua vez 28 56 igualmente traduzida e incluída na tradução brasileira da obra. "Em síntese, havia consenso universal acerca da ruína da cultura burguesa" (Buck-Morss, 1981, p. 26). Escola - como a toda uma geração de jovens inquietos da época, e de todas as épocas - lhes era insuportável o purofato da ocorrência da injustiça, 29 como também o era o refúgio do pensamento em um corpo sofismático, idealista ou de outro teor, que acabasse por justificar, de alguma forma, o ilegitimável. O ponto de partida da crítica é, portanto, a absoluta insatisfação dos pensadores para com um estado de coisas dado; a esta motivação ética radical segue-se a articulação crítica de um pensamento que se volta, desde sempre, para fora de si mesmo, ou seja, não se resolve em si mesmo, "não se compreende a si mesmo"; alimenta -se da multifacetada empiria circundante, da exuberância de fatos que se dão à observação ar guta de inteligências não apenas diferenciadas, mas bem formadas em termos da cultura clássica, e esta é sua verdadeira razão de ser. A seguir, serão examinadas algumas das mais representati vas proposições filosóficas destes autores, e também de outros que com suas motivações comungavam. Será dada especial atenção, neste momento, aos pressupostos categoriais gerais sobre os quais a crítica se erige e se constitui em um corpo de ideias coerente. A compreensão da Dialética do Esclarecimento Se eu tivesse conhecido a tempo a Escola de Frankfurt, muito trabalho me teria sido poupado. Eu não teria dito tantas tolices, teria evitado muitos rodeios tentando não me enganar, quando a Escola de Frankfurt já havia aberto o caminho. Michel FOUCAULT A obra conjunta de Adorno e Horkheimer Dialética do Esclarecimento constitui-se em uma das elaborações filosófi cas centrais do século XX, imprescindível não somente à sua 29 Adorno sobre Horkheimer: "[ ... ] em você a questão básica foi a indignação frente à injustiçà' (apud Buck-Morss, 1 9 8 1 , p. 147). Ainda: '�dorno incorporou cedo a preocupação de Horkheimer pelas injustiças do sofrimento humano" (Buck-Morss, 1981, p. 149). 57 compreensão, mas à compreensão da história que nele cul mina. Em poucos outros momentos, como ali, a indignação ética, temperada pela atmosfera de decadência de pós-guerra e por uma singularíssima capacidade de penetração ·crítica, se articula de modo filosoficamente tão luminoso, ao retirar do indeterminado da cultura (ainda) contemporânea vários de seus mais elementares constitutivos, expondo-os á análise de quem souber - ou suportar - lê-los. O que é o "Esclarecimento, para Horkheimer e Adorno? Esta é uma síntese do que dizem estes autores a respeito, em suas próprias palavras: No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclare cimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores [ ... ] seu programa era o desencantamento do mundo [ ... ] . O que os homens querem aprender da Natureza é como empregá-la para dominar comple tamente a ela e aos homens [ ...] . O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito [ . . . ] . O escla recimento é totalitário [ . .. ] e só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade ( ... ] ele torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas ( ... ] . ((Unidade" continua a ser a divisa, de Parmênides a Russel30 [ ] o ser se re solve no logos [ . .. ] o despertar do sujeito tem por preço o reco nhecimento do poder como o princípio de todas as relações [ .. . ] à identidade do espírito [ . .. ] sucumbem as múltiplas qualidades [ . . .] as múltiplas afinidades entre os entes são recalcadas pela única ••• 30 58 Percebe-se aqui uma meridiana consciência da insuficiência da totalidade filosófica para o mundo que de certa forma já não se entende, e não é pequeno mérito (nem exclusivo destes pensadores) perceber a conexão clara "de Parmênides a Russel" (poderia ser lido como o "de Jônia a Jena': de Rosenzweig); evidencia-se aqui uma grande lucidez filosófica, que ousa pensar adiante das palavras da própria filosofia, tal como foi elaborada, e chegar à sua essência dinâmica. Esta lucidez é que permite que questões do tipo: "mas não foi a época do Esclarecimento que permitiu a liberdade de que hoje gozamos, até de atacar o Esclarecimento?': pois mostra que esta fase obedece a uma continuidade maior, onde o permitir da liberdade é possibilitar a dinâmica da totalidade; em outras palavras, o que se fazia antes sem liberdade passa a ser feito agora com as vantagens da liberdade conquistada, a facilitação, por exemplo, da acumulação e a justificação da ideologia do infinito progresso. relação entre o sujeito doador de sentido e o objeto sem sentido, entre o significado racional e o portador ocasional de significado [ ... ] a insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol [ . .. ] o que seria diferente é igualado [ ... ] o poder mítico elimina o incomensurável [ ...]. O "eu, [ . . . ] não demorou a identificar a ver dade em geral com o pensamento ordenado r ( ... ] nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do "forà' é a verdadeira fonte de angústia ( ... ] o mundo como um gigantesco juízo analítico [ . .. ] (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 1 9ss).31 Este longo excerto é suficientemente claro desde si mes mo. Talvez pela primeira vez na história da filosofia - e já bem avançado o século XX - há uma explicitação a tal ponto clara da incompatibilidade radical entre ((Totalidade" - a dinâmica 31 Também das páginas referidas da mesma obra: " [ . .. ] destruídas as distinções, o mundo é submetido ao domínio dos homens [ . . . ] a natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstrata [ ... ] . A 'confiança inabalável na possi bilidade de dominar o mundo', que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa que a magia. Para substituir as práticas localizadas do curandeiro pela técnica industrial foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem autônomos em face dos objetos, como ocorre no ego aj u stado à realidade [ ... ] até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a indissolubilidade e a irra cionalidade, é cercado por teoremas matemáticos [ . .. ] a fatalidade com que os tempos pré-históricos sancionavam a morte ininteligível passa a caracterizar a realidade integralmente inteligível [ . . . ] os homens aguardam que este mundo sem saída seja incendiado por uma totalidade que eles próprios constituem e sobre a qual nada podem [ .. . ] com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie [ . .. ] os atrasados não representam meramente a inverdade. O espírito torna-se de fato o aparelho da dominação e do auto-domínio, como sempre havia suposto erradamente a filo sofia burguesa [ ... ] é da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermatu ridade da sociedade. Quanto mais complicada e refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz [ . .. ] o pensamento é negado pelos próprios dominadores como mera ideologia. Nenhum indivíduo é capaz de penetrar a floresta de cliques e instituições que, dos mais altos níveis de comando da economia até as últimas gangues profissio nais, zelam pela permanência ilimitada do status quo [ ... ] a forma burguesa de esclarecimento [ .. . ] jamais foi imune à tentação de confundir a liberdade com a busca de auto-conservação': 59 efetiva de domínio de todo o "externo': de redução do Outro ao Mesmo, do múltiplo ao uno, que se anuncia já nos alvores do pensamento ocidentaP2 - e '1\.lteridade" - a "diferençà' que resiste, enquanto tal e desde sua própria dignidade, à sua ab sorção em um corpo unitário de realidade portadora e doadora de sentido. A filiação "hegelianà' dos autores é tumultuada pela provocação daquilo que, irredutível às soluções da subjetividade filosoficamente onipotente e do desenvolvimento da totalidade, muito importa do ponto de vista ético. Há aqui uma clara rup tura com qualquer tipo de Aufhebung de índole idealista. É, ain da, talvez por vez primeira na história do pensamento filosófico ocidental que intelectuais tomam com tal clareza um determi nado partido da realidade, nítida e irrecorrivelmente o partido do pequeno e do fraco, do extra-sistemático como tal, e que vale e chama exatamente desta forma, e não enquanto elemento a ser com-preendido por uma Totalidade de sentido, por uma espé cie de polarização em torno a um "eu" cujo conteúdo é dado por sua capacidade de Sinngebung ao que não é ele mesmo. 33 Com a acentuação retórica desses dados, os autores penetram . em uma das estruturas últimas constituintes da contemporaneidade, em seu cerne e na fonte dinâmica de sua a um tempo antiquíssima e sempre renovada energia.34 As análises críticas subsequentes destes e de outros pensadores ligados à escola vão sempre mais somando dados interpretativos que permitem a 32 33 Ver o capítulo "O contexto - agonia de uma era? A composição profunda do século XX filosófico: aproximações" deste livro. "A frase de Espinosa: 'c onatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum', contém a verdadeira máxima de toda a civilização ocidental, onde vêm se aquietar as diferenças religiosas e filosóficas da burguesia. O eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de mitológico, não queria mais ser corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constitui, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da ação [ . J o instinto enquanto tal seria tão mítico quanto a superstição; servir a um Deus não postulado pelo eu, tão insano quanto o alcoolismo [ . ]" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 4 1 ) . "Durante milênios, os homens sonharam com o domínio ilimitado da natureza e com a transformação do cosmo num infinito campo de caçà' (Adorno; Horkheimer, 1 985, p. 231). . . 34 60 . . cada passo uma sólida desmontagem de um mundo de relações aparentemente "contestatórias': mas, na verdade, grotescamente ideologizadas, porque extremamente hábil em substituir cele remente a qualidade pela quantidade (Cf. Souza, 201 O). Com a análise do sentido profundo do Esclarecimento em sua comple xa dialética relativamente ao seu Outro (e de suas metamorfoses ao longo da história), chega-se à possibilidade de uma crítica extremamente arguta da sociedade, não em termos cronológi cos, porém ontológicos, no sentido em que se pode partir para a edificação de um corpo crítico coerente que não traia, por sua filiação profunda, seus fundamentos e conquistas - mas que se espraie fecundamente ao longo de sua própria formulação conceitual. Aí se embasam, ao menos em intenção, as análises empíricas do Instituto, já em sua fase norte-americana (estudos sobre a família e a autoridade, etc.); as análises sociológicas de Marcuse; as psicológicas-psicanalíticas de Fromm (apesar de tudo sempre coerente com as motivações originais da Esco la); as análises estéticas de Adorno - e também aquilo que se constitui em um corpo de ideias em princípio avesso a qualquer caracterização: as análises filosófico-culturais de Benjamin. Há um elo que une indissoluvelmente toda esta variedade de dife rentes pensamentos, elo este que se divide em, pelo menos, dois momentos igualmente relevantes: em primeiro lugar, tem-se a já referida "indignação" ética perante o statu quo, "mola mestrà' das pesquisas empreendidas, não como mero ideário teórico ou carta de princípios, mas como trabalho dos acontecimentos; e, por outro lado, a captação e organização de alguns elementos conceituais fundamentais que, difusos embora, vão-se manten do e dando logicidade aos esforços críticos empreendidos. A seguir, enfocaremos alguns destes elementos, via aná lise de alguns dos principais trabalhos de membros da Escola e pensadores afins. 35 35 Para uma análise específica das diversas seções constituintes da obra (Cf. Tiburi; Duarte, 2009) 61 Adorno e a negatividade do total Para (Adorno), [ .. ] a filosofia da história de uma civi lização fracassada tornava-se a base de uma paradoxal teoria multiforme do não-idêntico, em outras palavras, das formas nas quais, de uma maneira paradoxal, o não idêntico encontrava seu lugar. Adorno representava um pensamento simultaneamente micrológico e messiânico ... Rolf, WIGGERSHAUS. A Escola de Frankfurt. . A figura de Adorno é, fora de dúvida, um dos principais esteios de sustentação e desenvolvimento da Escola de Frankfurt. Adorno concentrou sua capacidade intelectual, a partir das mo tivações já referidas, ao redor de diversos pontos nodais de interligação e conjugação dos mais variados campos do co nhecimento. Sua habilidade em penetrar as mais complexas teias sócio-culturais é ímpar. Suas obras se constituem, de um modo geral, na negação da linearidade discursiva; são, antes, mosaicos extremamente burilados que espelham, também por sua estrutura, aquilo a que fazem referência. Em seus livros, os mais variados dados do pensamento crítico convivem não-li nearmente. Para compreender as linhas gerais do pensamen to deste autor, faz-se mister que o leitor aceite a ocorrência da "asperezà' e do atrito filosófico - expressões palpáveis de uma escrita dialética - como constituintes da filosofia mes ma. Em suma, pode-se dizer que o pensamento adorniano é tudo menos leve e fácil, por uma simples razão: nada tinha de leve e fácil o mundo no qual vivia o pensador. Trata-se de um intrincado microcosmo filosófico infinitamente variado, elaborado em estilo singular, e que não se deixa diminuir por alguma redução de seus tecidos e de sua dinâmica a qualquer instância ideal. Pode-se dizer que a própria vida se faz ali presente, simplesmente porque em cada momento "Adorno pretendia demonstrar [ ... ] a preeminência da realidade sobre 62 o pensamento'' (Buck-Morss, 198 1 , p. 1 6). Este é o movente fundamental do pensamento de Adorno: o pensamento que não esquece seus próprios condicionamentos, de suas origens e motivações originais, quase obsessivamente fixado em seus próprios limites, e que não suporta nenhum tipo de sublima ção hipócrita em qualquer nível. Todavia, neste mundo complexo, dá-se com clareza a chave para a compreensão de alguns de seus constitutivos fun damentais em termos de intuições traduzidas em conceitos, mesmo que provisórios e precários em sua definitiva e pro gramática não-congruência com a realidade estrita. Trata-se daquilo que Adorno percebe em sua análise, daquilo com o que sua sensibilidade filosófica o confronta, e que sua obra, em sua intrincação constelacional, mostra que foi percebido - aquilo que em realidade faz com que seu pensamento se ar ticule como o faz. A percepção de tais elementos, porém, de manda um certo desprendimento filosófico e uma capacidade de absorção do provisório e daquilo que, em Adorno, ocupa o lugar da centralidade gerativa do pensamento: a consciência da diferença como constituinte mais real da realidade, ou seja, da potência crítica da negatividade, do Não-idêntico. Desse modo, deve-se deixar que sua própria obra se mostre desde seus referenciais mais íntimos, muito embora muitas vezes não explícitos, pelo menos não em linguagem filosófica tra dicional. É preciso, para uma mínima compreensão, que se perceba onde cada expressão, pensamento, intuição, efetiva mente se apóia; de onde retira sua peculiar energia. Em ou tros termos: é necessária a consciência dessa categoria-chave - não-identidade - sempre na proximidade imediata de cada reflexão em particular, pois é desde aí que se pode pretender ver a riqueza da linguagem que se cria e recria a si mesma, em si e para além de si. 36 36 Ver p capítulo "Adorno e a razão do Não-idêntico" (Souza, 2004b). 63 Este movente original, este eixo condutor das análises, apresenta também a dimensão da repugnância pelo total. A obra de Adorno é uma tentativa de caracterizar à Totali dade seus próprios limites, não ao lhe contrapor uma outra totalidade, mas ao corroer filosoficamente, inelutavelmente, suas raízes. A referência crítica de Adorno: concepção de história e dialética Nenhuma história universal leva da selvageria ao humanismo, mas há uma história universal que leva da funda à bomba atômica. Theodor ADORNO O agudo e conhecido dito de Adorno que encabeça esta seção é, em nosso entender, bastante esclarecedor no que diz respeito ao que pensava o filósofo sobre qualquer otimismo de índole historidsta. 37 O tempo simplesmente não era para oti mismo.38 Quando Adorno dizia que "a história está na verda de, a verdade não está na história" ( apud Buck-Morss, 1981, p. 108) superava totalmente a ideia de uma totalidade histórica teleologicamente redentora. 39 É neste sentido que é válido di zer, por exemplo, que "a teoria crítica da escola [ . . . ] tanto deu 37 38 39 64 "Um certo ceticismo em relação a todas as interpretações da história como pro gresso foi um ponto de acordo fundamental entre Adorno e seus colegas intelec tuais" (Buck-Morss, 1 98 1 , p. 109). "Visto que a história enquanto correlato de uma teoria unitária, como algo de construtível, não é o bom, mas justamente o horror" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 209). "Para Adorno [ ... ] não havia 'lei' dialética alguma da história ou da natureza que funcionasse independentemente das ações humanas e garantisse o progresso na direção de uma sociedade racional sem classes" (Buck-Morss, 1981, p. 13). Isto porque ele, como Horkheimer, "[ ... ] se recusou a fazer da dialética um fetiche, como se fosse um processo objetivo fora do homem" (Jay, 1988). continuidade como minou sutilmente o marxismo hegeliano de Lukács e Korscn' (Jay, 1988, p. 1 7).40 Por outro ângulo, pode-se dizer também que o pensa mento de Adorno, bem como o de outros membros da Escola, tinha na dialética sua referência metodológica principal. Mas é fundamental que se note desde já que, nesta tradição, ins creve-se a obra adorniana a partir de parâmetros totalmente diversos, onde o marxismo não é absolutamente uma cosmo logia ou uma explicação suficiente da realidade, mas um itine rário interpretativo, do qual o pensamento dialético constitui a medula.41 Isto porque " [ ... ] a dialética, uma vez limpa do fer mento crítico, se presta tanto ao dogmatismo como em outro tempo a imediatez da intuição intelectual schellinguiana [ .. ] " (Adorno, 1981. p. 23). Para Adorno, a única "dialética'' que se poderia considerar como propriamente tal seria aquela aber ta, irredutível a uma "resolução" superior, negativa em relação à positividade da totalidade. . A ideia de uma Dialética Negativa "Es liegt in der Bestimmung negativer Dialektik, dass sie sich nicht hei sich beruhigt, als wãre sie total; das ist ihre Ge stalt von Hoffnung" (Adorno, 2003, p. 398). A dialética ne40 A respeito da crítica de Adorno à teoria de identidade de Hegel, comenta Susan Buck-Morss que este pensador acreditava, como Benjamin, na "pequena" história, aquela feita das "sobras" da grande História Universal: "a história não garantia a identidade entre razão e realidade. A história se desenrolava nos espaços entre sujeitos e objetos, homens e natureza, cuja não-identidade era precisamente a força motora da história" ( 1981, p. 109). Pois, contra o espaço sempre "central" ocupado pelo filósofo tradicional, " [ . . ] a obra de Adorno desenha o incessanll' peregrinar da consciência desventurada" (Rius, 1985, p. 1 3) . "A teoria crítica não considerava o marxismo uma cosmologia, e sim como mé todo, e o pensamento dialético seria a medula deste método - assim como consi derava a dialética uma ferramenta para a análise crítica da sociedade e não para a construção de um sistema metafísico" (Buck-Morss, S. 1 98 1 , p. 1 1 ) . . 41 65 gativa, como se percebe, é aquela que não se contenta com seu íntimo movimento, aquela cuja razão mesma de ser não está nela própria, mas que se aproxima a cada momento da não-identidade. 42 A própria ideia de "identidade" é vista por Adorno como uma aparência a ser desmistificada pela contra dição real da realidade - "Der Widerspruch [ . . ] ist Index der Unwahrheit der Identitãt" (Adorno, 2003, p. 1 7) que não se deixa enganar pelas "artimanhas" do pensamento que, em sua dinâmica tautológica, pretende se justificar e, permanecendo em si, ir mais além de si. 43 Por isso diz Adorno que [ ... ] die Entzauberung des Begriffs ist das Gegengift der Philosophie" (Adorno, 2003, p. 24). A filosofia dos conceitos não provados pela realidade é a suprema ideologização da atividade filo sófi ca, e a saída para um tal impasse não poderá ser senão a ((pre ponderância" absoluta do que, pela objetividade, acaba por realmente resistir a qualquer tipo de violentação conceitual; permanece como objeto em relação àquilo que a ele se refere e que lhe é, por conseguinte, secundário.44 Um dos dados mais característicos dos escritos de Adorno é que estes não permi tem, realmente, que o pensamento repouse em si mesmo e muito menos que se contente consigo mesmo. Os "objetos" de referência do pensamento são os que se vão descobrindo ao . - « 42 43 44 66 "Havia [ ... ] a simpatia de Adorno com relação à não-identidade como um fim em si mesmo" (Jay, 1988, p. 80). Ainda, "[ ... ] o mecanismo essencial do método críti co de Adorno é... um processo de dialética sem identidade" (Buck-Morss, 198 1 , p . 1 30). O próprio pensador diz: "Dialektik ist das konsequente Bewusstsein von Nichtidentitat [ ... ] zu ihr treibt den Gedanken seine unvermeidliche Insuffizienz, seine Schuld an dem, was er denkt" (Adorno, 2003, p. 1 7). Sobre a não aceitação in toto de totalidades "hermenêuticas" ver Rouanet, 1986, p. 69ss. "Durch die Formei von der 'Gleichheit mit sich', der reinen Identitat, enthüllt sich das Wissen des Objekts als Gaukelei, weil dies Wissen gar nicht mehr das des Objekts ist, sondem die Tautologie einer absolut gesetzen nóesis noéseos" (Adorno, 2003, p. 163). "Uma dialética genuinamente negativa reconhece aquilo que Adorno denomina 'preponderância do objeto: irredutível a [ ... ] uma subjetividade ativa" (Jay, 1988. p. 59). Ainda, "[A dialética de Adorno] [ ... ] é uma dialética materialista, porque concede prioridade ao objeto" (Rius, 1985, p. 57). Observe-se aqui a boa carac terização do "materialismo" de Adorno. longo da pertinaz procura adorniana de elementos materiali zados no discurso, estranhos porém intensamente presentes. 45 Adorno e a Totalidade Não é difícil inferir, a partir do que foi dito, que Adorno foi sempre - em princípio e por plena convicção - avesso a quaisquer concepções de Totalidade legítimas e redentoras. Para este filósofo, a história sempre foi mais vigorosa que o historicismo, e a ideia de uma totalização histórica estava, pela própria história, reduzida à sua original falta de sentido: "esta visão da história em movimento em direção a uma unidade sintética, à ressurreição da totalidade perdida, era urn aspec to do marxismo de Luckács que Adorno rejeitava categorica mente. Em sua conferência inaugural de 193 1 , Die Aktualiti:i.t der Philosophie, escreveu que o próprio conceito de totalidade estava irremissivelmente perdido na passagem da história" (Buck-Morss, 1981, p. 1 07).46 Para Adorno, a totalidade é sim plesmente a antítese de uma "humanidade libertadà': "ele in sistia que <uma liberdade não pode, de forma alguma, ser uma totalidade"' (Jay, 1988, p. 9 1 ). Estes trechos são suficientemen te eloquentes para dar uma ideia exata do parecer adorniano com relação às filosofias que têm na Totalidade sua razão de 45 46 "Adorno insistia no poder daqueles fragmentos heterogêneos que se insinuam de maneira sub-reptícia na rede conceitual, rejeitando toda filosofia da identidade ( ... ]" (Eagleton apud ]ay, 1988, p. 22). Veja-se ainda: '1\dorno sugere uma 'lógica da deslocação', que se apresenta como uma reabilitação do não-idêntico e do negativo" (Assoun, 1989, p. 30). Desde cedo tinha já Adorno uma ideia clara do sentido do heterogêneo para sua filosofia: "Se a filosofia deve aprender a renunciar à totalidade, tal implica que deve aprender a se conduzir sem a função simbólica, na qual durante muito tempo, pelo menos no idealismo - o particular parecia representar o geral j . . . j" (Adorno, apud Buck-Morss, 1981, p. 1 59). O que Adorno sempre desej o u foi o "particular" enquanto somente se define por sua particularidade. - 67 ser - e não é por aí, portanto, que se poderia rotular Adorno de "idealista'' ou "hegeliano". É apenas em relação à Estética que o termo "Totalidade" assume, para Adorno, um sentido de positivação ética. Adorno e a Estética "Adorno [ ... ] combinou uma mente filosófica rigorosa com uma sensibilidade mais estética do que científica" ( Jay, 1988, p. 54) pode-se verificar a procedência desta análise de Jay a partir de obras como a póstuma Teoria estética, que deixa entrever a capacidade de ((recepção" estética do autor.47 Na verdade, é pela obra de arte real que o pensador entrevê a possibilidade alternativa à totalidade dominante, ao "mundo administrado". No campo estrito da realidade da arte, termos como "totalidade': "identidade: assumem, como anteriormente referido, conotação totalmente diversa daquela até agora exami nada. O termo "identidade': por exemplo, é usado em sentido exatamente oposto ao usual na obra adorniana: "a identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à iden tidade oprime na realidade" (Adorno, 1988, p. 15). "Identida de" equivale aqui a "unidade de sentido':48 Isto porque na arte se dá verdadeiramente a paz: "o belo na arte é a aparência do que é verdadeiramente pacífico" (Adorno, 1988, p. 289); por isso, a arte é fundamentalmente estranha ao mundo: "a estra nheza ao mundo é um momento da arte; quem não percebe a arte como estranha ao mundo de nenhum modo a percebe" - 47 48 Aliás, uma das maiores dificuldades de quem se aproxima do pensamento de Adorno é compreender o quanto de estético constitui seu pensamento. É por isso que Adorno fala em uma "totalidade estética": "A totalidade estética é a antítese da totalidade não-verdadeira" (Adorno, 1988, p. 320). A negação desta unidade e autonomia de sentido seria aquilo que se poderia chamar de "obra medíocre": " [ . ] a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto é, no sucedâneo da identidade" ( 1 988, p. 123). .. 68 (Adorno, 1 988, p. 208). A obra de arte, repositório de verdade em meio ao turbilhão ideológico que banaliza esta categoria, contradiz verdadeiramente a lógica da totalização, porque é expressão da verdade do diferente que não se reduz ao "mes mo": "só compreende uma obra de arte aquele que a compre ende como complexão de verdade" (Adorno, 1988, p. 293). E a verdade é o que não está dito desde sempre, como algo intempo ral ou meramente conceitual: "a ideia de uma obra de arte con servadora contém algo de absurdo" (Adorno, 1988, p. 20 1 ); daí se deduz que, efetivamente, "a missão da arte, hoje, é introduzir o caos na ordem" (Adorno, 1988, p. 224), porque disso depende a subsistência do não-idêntico. Afinal, hoje mais do que nunca, "todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde sempre irritou a teoria da arte" (Adorno, 1988, p. 140). A arte é enigma, porque a substância da realidade, diferentemente do que acredita certo gênero de filosofia analítico-totalizante, permane ce estranha à sua violentação em conceitos e teleologias. Arte é des-ideologização por excelência, por isso é perigosa e precisa ser domesticada em comportadas salas de concerto ou assépticas ga lerias. "A grandeza das obras de arte reside tão-só em seu poder de permitir que sejam ouvidas as coisas que a ideologia ocultà' (Adorno apud Jay, 1988, p. 1 39). E são também, de certa forma, a prova cabal da existência do, para a totalidade violenta, não-existente: [ ... ] o facto de as obras de arte existirem mostra que o não-ente pode ria existir. A realidade (Wirklichkeit) das obras de arte dá testemunho da possibilidade do possível" (Adorno, 1988, p. 153). Descobre-se por ela o enigma do próprio ente: "Quanto mais compactamente os homens cobriam o que é diferente do espírito subjetivo com a rede de categorias, tanto mais profundamente se desabituaram da admiração perante este outro e, com familiaridade crescente, se frustraram de estranheza'' (Adorno, 1 988, p. 147). "As obras de arte sintetizam momentos incompatíveis, não-idênticos, que têm entre si pontos de fricção [ . . . ] " (Adorno, 1 988, p. 200) . Todas as obras de arte " [ ... ] são polêmicas a priorf' (Adorno, 1988, p. 20 1 ), porque sua própria existência é resistência aos '' 69 esforços empreendidos para que se reduza ao silêncio nebu loso da ideologia dominante. 49 Para a arte, o diferente não é mal-vindo: "A unidade estética é a síntese do disperso que ela, no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e nas suas contradições, e eis porque ela é efetivamente um des dobramento da verdade" (Adorno, 1988, p. 165). Mas a arte e o belo estão hoje em situação de perigo: ((na época atual, a fatali dade de toda e qualquer arte é ser contaminada pela inverdade da totalidade dominadora" (Adorno, 1988, p. 72). O belo lem bra a quem o vê aquilo que, apesar de tudo, ainda existe, embora ameaçado e feio: ''a dor nascida do belo é a nostalgia do que é interdito ao sujeito pelo bloco subjetivo [ ... r' (Adorno, 1 988, p. 297). Paradoxalmente, o belo enquanto tal não despreza, como pensavam as correntes estéticas idealistas, o feio enquanto tal50 ao menos se por feio se entende aquilo que "sobrou" ao longo do altaneiro desfile da grande história. Pois a arte é por essên cia viva, e "a sacralidade do vivente [ ... ] reflete-se até mesn1o no mais feio e disforme" (Adorno, 1993, p. 75); assim, "que seria - 49 Este é o motivo pelo qual obras ideologicamente comprometidas geralmente fracassam; negam a sua autonomia, e este servilismo é duramente castigado: "Pode duvidar-se que as obras de arte se empenhem politicamente l . ] se elas se esforçam por tal, costumam desaparecer sob seu conceito [ ... ] (o efeito social da obra) é altamente indireto" (Adorno, 1 988, p. 271). Ademais, e isto é muito importante, como adverte Jay, "[ ... ) tanto em música como em arte, o realismo socialista, advertia Adorno, era quase tão reacionário como o objetivismo neoclássico" (Jay, 1974, p. 302). Em suma, o poder desagregador da arte efetiva se para além de toda a manietação que a ele se queira aplicar. "Se a estética tradicional, incluindo Hegel, sabia celebrar a harmonia do belo natural, ela projetava a auto-satisfação da dominação sobre o dominado" (Adorno, 1 988, p. 1 8 1 ) "[ ... ] [Adorno possuía] conduta estética. [Esta tem a característica da} distância respeito à objetividade, mas já não só à objetividade externa, e sim, também, àquela que o próprio sujeito havia criado" (Rius, 1 985, p. 1 5 - o último grifo é nosso). Observe-se o contraste da concepção de estética adorniana - distanciamento, valorização do objeto estético para além das determinações do sujeito criador - com o "subjetivismo" estético hegeliano: "Só a interioridade sem objecto, a subjetividade abstrata se deixa exprimir pelos sons. Subjetividade abstrata que é um eu na sua simplicidade, a pessoa sem outro conteúdo que ela mesma. A missão principal da música consiste [ ... ] em fazer ressoar o eu mais íntimo [ ... ] a sua alma ideal [ . ] O seu conteúdo é o subjetivo em si [ ... ] é uma comunicação que, em lugar de ter um apoio sólido, é sustentada apenas pela interioridade [ .. ]" (Hegel, 1964, p. 1 82 - 1 83). . 50 . . 70 . . da arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulador' (Adorno, 1 988, p. 291). Por isso, não é anti-natural ou anti-artístico, como poderia pa recer a estetas que confundem arte com idealização-ideologi zação totalizadora, que "atualmente não há nenhuma música que não tenha em si algo da violência do momento histórico" (Adorno, 1 974, p. 149). A arte é, para Adorno, uma instância da verdade que, em princípio e por definição, se situa para além de toda possibili dade da ideologia que a quer manietar (poderíamos acrescen tar que é por isso que a música, por exemplo, é cercada geral mente de um grande aparato formal, quando de sua execução pública: esta é uma tentativa de mantê-la dentro dos limites de uma determinada "aceitabilidade" ideológica). Por isso, também, a arte só é "interpretável pela lei de seu movimen to, não por invariantes" (Adorno, 1988, p. 13). E sua verdade não advém de um sentido que um sujeito lhe possa atribuir, pois isso seria sua própria falência: "o conceito de gênio é fal so, porque as obras não são criações e os homens criadores" (Adorno, 1 988, p. 1 94) - a obra aparece, enquanto obra como autonomia "heterônoma" em relação a quem leva o título de seu autor: "ao final, o escritor não poderá nem mais habitar em seu� escritos [ ... ]" (Adorno, 1993, p. 86). Isto porque, para o frankfurtiano, "a experiência da arte enquanto experiência de sua verdade ou inverdade é mais do que uma vivência sub jetiva: é a irrupção da objetividade na consciência subjetivà' (Adorno, 1 988, p. 274) alguma coisa chega à consciência rigorosamente de fora de seus esquemas. Ou a arte é efetiva mente "objetiva" em relação ao sujeito, ou não é arte. "Webern (e nós poderíamos dizer: a imensa maioria dos verdadeiros artistas contemporâneos) [ ... ] compreendeu a insuficiência do próprio sujeito" (Adorno, 1 974, p. 92).5l - 51 Ver ainda a interpretação de Martin Jay: "A música de Schõnberg despreza a ornamentação falsamente consoladora da arte precedente, para mostrar, despi do de tudo, um mundo do qual o calor humano fugira" (Jay, 1988, p. 135). 71 Após séculos de onipotência subjetiva, o sujeito "artísti co': pela arte, começa em si mesmo a se dar conta da insufici ência de seus esforços no sentido de se fazer o absoluto foco de verdade referencial, em substituição à "subjetivídade" da qual extraiu até mesmo seu sentido enquanto sujeito. A pura e desconhecida "coisa" inclassificada começa a aparecer. A ressonância da coisa "A sensibilidade do artista é essencialmente a capacida de de proporcionar uma ressonância à coisa, de ver com os olhos da coisa" (Adorno, 1 988, p. 298). Aquilo que Adorno afirma com relação ao artista, poderia ser estendido ao filó sofo: também este necessita, para Adorno, negar sua condição de subjetividade doadora de sentido para que a realidade vá falando desde si mesma, em um processo que não se resolve no que se poderia chamar uma ''instância superior". A filo sofia, para Adorno, é o livre roçar do pensador e do pensado um no outro, quando "só são verdadeiros os pensamentos que não se compreendem a si mesmos",52 ou seja, que não se têm como pólo absoluto de referência da realidade do real, que não esgotam pretensamente o real em sua identidade con ceitual. O verdadeiro enquanto tal pura e simplesmente es capa à sua "promulgação': porque preserva, apesar de tudo, sua "objetividade': O verdadeiro nega (e esta ênfase é muito importante) , contra Hegel, a totalidade: "O todo é o não-ver dadeiro'' (Adorno, 1993, p. 48). Esta é a intuição fundamental adorniana, que expressa assim, de uma maneira audível à sua contemporaneidade e ao seu locus sócio-intelectual, a tradu ção filosófica da original inquietação ética que compartilhava, como já dito, com muitos colegas. Isto é o que dá propriedade 52 72 "Wahr sind nur die Gedanken, die sich selber nicht verstehen". à sua filosofia. Dadas as contingências da tradição filosófica, da ambiência cultural do pensador, este não poderia radica lizar absolutamente esta constatação, e extrair dela todas suas consequências. Porém emerge em sua filosofia, de maneira inequívoca, o incisivo clamar daquilo que a sistemas filosóficos não se reduz - e talvez esteja aí um dos elementos de dificul dade maior para a compreensão do pensamento adorniano. Adorno definitivamente enxergou seu mundo, e percebeu o que nele não tinha, simplesmente, ex-plicação. Estranha religiosidade profana Como as coisas resistem aos olhares ... Walter BENJAMIN Aquilo com que Adorno se debatia, a presença da hetero nomia, do Não-idêntico, que ele não desejava de nenhuma for ma trair e que acabava dando a seus trabalhos sua caracterís tica intrincação e densidade, era tratado por Benjamin como que com a mais absoluta naturalidade. Com a liberdade típica dos grandes poetas,53 este pensador deixava correr sua pena de uma tal maneira que as mais complexas circunvoluções erudi tas, os mais carregados matizes filosóficos e as trepidações dos tempos acabavam por se colocar de uma maneira por assim dizer "fluidà' - e, portanto, aparentemente "fácil" - ao leitor. Suas afirmações mais inusitadas nunca são chocantes, porque mantêm um campo próprio de validade onde são absolutamente reais, apesar do que a respeito se possa dizer; os objetos 53 · "Como aquele que se despede é mais facilmente amado! Porque a chama por aquele que se distancia queima mais pura, alimentada pela fugitiva tira de pano que acena do navio ou da janela do trem. O distanciamento penetra como maté ria corante naquele que desaparece e o embebe de suave ardor" (Benjamin, 1 987). 73 têm, definitivamente, vida. "O pensamento de Benjamin ( ... ) é conduzido não somente a despertar a vida congelada nos ob jetos petrificados - como na alegoria - mas também a forçar as coisas viventes a apresentar-se como antigas, <proto:.históricas: e a liberar abruptamente seu sentido" (Adorno apud Buck -Morss, 198 1 , p. 1 29). O espectro do interesse benjaminiano é o mais variado possível, a negação mesma da compactação da vida e da cultura em uma totalidade pelo desentranhar, do corpo da cultura, de seus elementos mais "desprezíveis"; pode-se dizer que "Benjamin [ ... ) se apaixona precisamente pelo que a cultura tem de fossilizado, de prescrito, de caduco e até de morto. Quanto mais enigmático [ .. . ] quanto menos <humano' em sua aparência de pura coisa, mais o objeto cul tural seduzirá o crítico [ . . . r (Merquior, 1969, p. 1 04), porque "os escritos de Benjamin são um ensaio no sentido de fazer filosoficamente fecundo, mediante enfoques sempre novos, o não-determinado pelas grandes intenções" (Adorno, 1993, p. 1 52). Em Benjamin, o pensamento se espanta com o que não é ele mesmo: a obra benjaminiana é a contínua busca de ex pressão para este espanto, e esta busca configura, conforme a possibilidade, um mundo literário ou filosófico. 54 Daí advén1 a ideia de sua famosa "teologia profanà: 55 E é a partir daí que Benjamin afirma que "a tarefa da futura teoria do conheci menta consiste em achar a esfera de neutralidade total em re lação aos conceitos de Objeto e Sujeito; em outras palavras, determinar a esfera original, autônoma, na qual este conceito de nenhum modo significaria a relação entre entidades me tafísicas'' (Benjamin apud Jay, 1974, p. 332, grifo nosso), por� 54 55 74 "Tudo o que Benjamin disse e escreveu soa como se o pensamento recolhesse as promessas dos contos e livros infantis, em vez de recusá-las com despectiva maturidade de adulto ( ... ] o que fica desde o princípio recusado em sua topografia filosófica é a renúncià' (Adorno apud Jay, 1974, p. 296). Benjamin se inclina àquele materialismo extremo, que converge para a teologia pelo desenvolvimento de seus próprios pressupostos: "Mit der Theologie kommt er (o "materialismo") dort überein, wo er am materialistischesten ist. Seine Sehn sucht ware die Auferstehung des Fleisches; dem Idealismus, dem Reich des ab soluten Geistes, ist sie ganz fremd" (Adorno, 1988, p. 207). que o conhecimento se dará de uma forma por assim dizer propriamente ((estética" (em todos os sentidos dessa palavra, ressaltando sua própria etimologia), via recepção do que se mostra desde si mesmo. A aura e seu desaparecimento aura, então, nos adverte que as coisas são o que são e não o que nós [.. ] nos habituamos a pensar que elas sejam... Leandro KONDER. Walter Benjamin A . Walter Benjamin esclarece da seguinte forma este con ceito tão importante no contexto de sua obra: Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura destas montanhas, deste galho [ ] (Benjamin, 1 987, p. 1 70). ... As coisas, simplesmente, nos trazem seu tempo e espa ço próprios, nos trazem sua realidade com propriedade, se oferecem desde si mesmas; sua realidade pode, por seu ((apa recimento", como que criar um tempo no qual sua realidade tenha plena evidência. O pólo principal da cognoscibilidade da coisa não está no sujeito ditador de regras, mas na intimi dade da novidade "distante, por mais próxima que ela esteja" - sua realidade é assim tão real como múltipla em seus focos de ocorrência que não dependem do aval de uma totalidade previamente dada para definitivamente existirem. O modelo cognitivo utilizado por Benjamin para descrever a aura, cor75 retamente percebido, rompe ((desde forà' as cadeias que man têm a própria consciência cognoscente aferrada à sua própria dinâmica tautológica. O esquema da aura benjaminiana - em seu processo de percepção, desaparecimento e idiossincrásico luto, tal como se dá em sua obra - é um dos primeiros momentos realmen te não-destrutivos de testemunho da implosão da totalidade ocidental, implosão cuja percepção ele muito bem herda de Rosenzweig e se positiva na construção de linguagem em suas obras finais, especialmente as sintéticas ((Teses" Über den Be griffder Geschichte;56 mas é possível que muito tempo se passe até que se perceba o que isto realmente significa. A filosofia do pequeno Benjamin é não apenas um filósofo e um crítico da cul tura, especialmente da literatura, mas também um poeta no melhor sentido do termo, aquele que não exclui a possibilida de de ele ser também um rigoroso observador de sua época, imune às tendências oligopolizadoras de qualquer tipo de his toricismo ingênuo. Também ele se deixa, sem medo, ((roçar" pelo maciço da realidade circundante. Sua vida e sua filosofia são a expressão do incômodo que este desagradável contato messiânico porque não suavizado por messianismos (leia-se: historicismos) totalizantes lhe causava. A matéria, o objeto, - - a realidade, a história não se transmudam em algo mais ima teria!, mais apetecível à consciência dos tempos, porque estão onde a consciência triunfante não chega, ou já deixou para trás - no pequeno e na sujeira mesma da história, seus ((restos" (Cf. Souza, in Ruiz, 2009). Os textos benjaminianos mostram continuamente a eterna novidade do ((ainda não conhecido", 56 76 Para uma análise detalhada das "Teses" ver Souza, 2010. porque "a faculdade da fantasia é o dom de interpolar no in finitamente pequeno, descobrir para cada intensidade, como extensiva, sua nova plenitude comprimida [ . . ]" (Benjamin, 1987, p. 4 1 ) . A filosofia é, então, "elevadà' ao nível não do puro conceito, mas da fantasia consciente, e sua tarefa é não ade quar o universo a seus esquemas, mas descobrir novos univer sos na improbabilidade mesma de suas existências. É assim, na condição de verdadeiro poeta à procura da realidade em seu recôndito - que não coincide com os bra dos de triunfo da grande história e de seus porta-vozes - que Benjamin se entrega às coisas mesmas e permite que elas assu mam sua identidade e a precedência absoluta em seu discurso filosófico; na condição de um homem que "esperà' estetica mente para então registrar. O discurso benjaminiano se retrai, e por sua pena pode surgir o que a si mesmo "se considerà' objetivo; e onde os coadjuvantes são, por exemplo, as crianças, não contaminadas por nenhum tipo de onipotência subjetiva que violente definitivamente o que não é elas, para além da pedagogia do mundo. A criança pode perceber o que se passa fora dela: "A (criança escondida) está encerrada no mundo da matéria. Ele se torna descomunalmente claro para ela, chega -lhe perto sem fala; assim, somente alguém que é enforcado toma consciência do que são corda e madeira [ . . ] (Benjamin, 1987a, p. 39-40, grifo nosso). E se ainda pudesse restar alguma dúvida a respeito do papel atribuído por Benjamin à exterio ridade como constituinte fundamental da realidade e da re -polarização anti-totalitária efetuada por ele na mais simples "gnoseologià: este trecho se encarregará de dissipá-la, toman do exatamente as crianças como testemunhos: . . '' Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos [ . ] que fossem apropriados às crianças, é tolice [ ] A terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercícios infantis [ .] as crianças [ ] sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resí duo que surge da construção [ ] em produtos residuais reconhe cem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e . . ... .. ... ... 77 para elas unicamente. Com isto, as crianças formam para si seu mundo de coisas [ ] seria preciso ter em mira as normas deste pequeno mundo de coisas, se se quer criar deliberadamente para as crianças e não se prefere deixar a atividade própria, com tudo aquilo que nela é requisito e instrumento, encontrar por si só o caminho que conduz a elas (Benjamin, 1 987a, p. 19). ... Os resíduos da construção são os resíduos da história, da grande História Universal. A fabricação de objetos: a pedante articulação e rearticulação de conceitos explicativos com pre tensão explícita ou implícita de autossuficiência. O rosto que o mundo volta para elas não é o rosto que só olha para frente; o filósofo é a criança envolvida no contato com seus detritos. E o angelus novus, seu atormentado anjo da guarda. Erich Fromm, psicanálise e rede cultural Quando Fromm,. membro apenas durante algum tem po da Escola, mas que nunca se desviou de suas motivações básicas, afirma que o "amor fraterno'' - este ideal tão grato à humanidade - inicia de "fora para dentro" (e não ao contrário - a partir de um pequeno núcleo, familiar ou outro - como normalmente se julga) - uma espécie de contraposição à tra dição milenar da fi lia - está de fato traduzindo em termos psicológicos a percepção, compartilhada com os companhei ros, de respeito ao que a partir de si somente não se define e não se sustenta, a saber, uma relação verdadeira, seja em ter mos humanos - uma verdadeira "inter-subjetividade" - seja em termos cognitivos. Está, em suma, traduzindo a crítica à totalidade vigente desde um parâmetro nuclear, psicologica mente definido. Por trás de suas (psico)análises da sociedade sua contemporânea está assim a consciência de que esta confi, 78 gura um complexo processo de pensamento e totalização, que se reflete em todos os seus níveis. 57 ((A espécie de 'divisão de trabalho', como a chama W ]ames, pela qual alguém ama sua família mas não tem sentimentos pelo 'estranho' é um sinal de incapacidade básica de amor" (Fromm, 1966, p. 87). Esta falta de amor que é característica geral de uma sociedade a um tempo narcisística e autofágica cujas excrescências mais visíveis são a destrutividade ["a destrutividade é o produto da vida não vivida" (Fromm, 1981 , p. 149) ] , a ânsia de poder ["a ânsia de poder não se origina da força mas da fraqueza" (Fromm, 1 98 1 , p. 133)] - da fraqueza de quem só se tem a si mesmo para se sustentar: os outros são, por definição, inimi gos) e o mercantilismo universal, legitimado pela ideologia da acurhulação infinita: "o homem não só vende mercadorias: ven de a si mesmo e considera-se uma mercadorià' (Fromm, 1981, p. 1 02). Os hotnens se vão transformando em autômatos, 58 "que não se podem amar; podem trocar seus 'fardos de personali dade' e esperar um bom negócio" (Fromm, 1 966, p. 1 1 8). Na melhor das hipóteses, "forma-se uma aliança de dois contra o mundo, e este egoísmo a dois é enganosamente tomado por amor e intimidade" (Fromm, 1966, p. 1 19) - ou seja, nada mais do que a internalização e reprodução da neurose social solip sista, a totalização monádica, raiz de todos os medos e fobias, pois tudo lhe é estranho, exceto ela mesma e sua aparente segu rança, fruto de sua própria rigidez medrosa, onde o diferente não pode ter vez, sob pena de desestruturar a própria ideia de estrutura que esta estrutura patológica construiu desde si. Esta é a essência da mentalidade pequeno-burguesa - "as pessoas via jam sobre pneus de borracha, rigorosamente isoladas umas das outras" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 206) - ventre no qual 57 58 "A vida não tem meta exceto a de movimentar-se, nem princípio a não ser o de boa troca, nem satisfação que não seja a de consumir" (Fromm, 1966, p. 138). "O homem moderno pensa que perde alguma coisa - o tempo - quando não faz as coisas rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o tempo que ganha - a não ser matá-lo" (Fromm, 1966, p. 144). 79 se gesta todo tipo de paranóia e preconceito (Cf. Souza, 2008). Esta a mentalidade que se constitui no substrato psicológico da sociedade contemporânea em suas linhas gerais, e que se arvora em dar a esta sociedade o direito de classificar os indi víduos no grupo dos "sãos'' - os que se curvam à degeneres cência amorosa vigente, e contribuem para sua manutenção também tautológica - ou no dos "neuróticos" - os que, como diz Fromm, "não se dispôs (dispuseram) a entregar os pontos completamente na luta por seu ego" (Fromm, 1 98 1 , p. 1 1 6).59 Assim, também os que resistem à ideia de se tornarem uma engrenagem na máquina delirante do mercantilismo univer sal, credor de concepções totalitárias de infinito; ou os que reagem - muitas vezes patologicamente à devoradora pato logia social e cultural, são muito suspeitos de haverem perdido a razão. E realmente a perderam, se por "razão" não se conse guir conceber outra coisa que uma racionalidade calculadora, estratégica, ardilosa. Em suma, Fromm, psicólogo de grande sensibilidade, traduz ao nível do retículo das relações humanas a dinâmica constatada em nível mais abstrato do macrocosmo cultural estudada e criticada por outros pensadores ligados à Esco la, bem como por muitos outros deste século das trevas, nos quais a lucidez consegue preponderar sobre o amalgamento in diferenciado de uma filosofia chamada - contraditoriamen te - de "neutrà' (como se a "neutralidade" não fosse já uma clara "posição"). - 59 80 Este esquema simplificador de Fromm, tal como aqui apresentado, soa obvia mente incompleto. Na verdade, o que está por trás destas reflexões é a subjacente concepção de felicidade que se segue: a uns, é prometida a felicidade pelo alcan çar do mundo aceito pelos não-neuróticos e pelo renunciar ao menos justificável mundo dos neuróticos; e, a quem se rebela contra estes esquemas mesmos, surge a noção de felicidade como algo que se constrói no processo do descobrir - por vezes com risco de sua própria vida e sanidade mental - o que escapa a estes modelos ou, melhor dito, o ponto de fuga da proposta equação da felicidade. A Libertação na ordem do dia: Herbert Marcuse O Inimigo (da sociedade administrada) não é o mesmo que o comunismo ou capitalismo atual - é {...] o espectro real da libertação Herbert MARCUSE. A ideologia da sociedade industrial [. .. ] a Filosofia é [...] o contrário do empreendimento (procla mado por Wittgenstein) que deixa "tudo como é". E a Filoso fia desconhece 'descoberta' mais inútil do que aquela que "dá paz à filosofia, de modo que ela não é mais atormentada por perguntas que põe ela própria em questão" (WITTGENS TEIN, Philosophical Investigations). E não existe mote mais anti-filosófico do que o pronunciamento de B. Buttler que adorna a Principia ethica de G. E. Moore: "Tudo é o que é, e não outra coisa" - a menos que '(?' seja entendido como se referindo à diferença qualitativa entre aquilo que as coisas realmente são e aquilo quefazem que elas sejam. Herbert MARCUSE. A ideologia da sociedade industrial Sem polemizar neste momento a respeito do pensamen to wittgensteiniano, o fato é que esta longa citação é suficiente para dar uma ideia bastante clara da motivação geral de Mar cuse e de sua aversão sempre reiterada ao conformismo filosó fico que outra coisa não faz senão legitimar as ideologias que de um já dado estado de coisas se utilizam. Marcuse mostrou, principalmente em termos sociológicos, a dinâmica de ''totali zação práticà' nas desenvolvidas sociedades contemporâneas, com seus óbvios desdobramentos extra-fronteiras - e o grau de insuportabilidade que estas sociedades vão assumindo inclusive para si mesmas. O pensador levou analiticamente os fatos até o confronto com as concepções que deles normal mente se tinha; foi neste sentido compreendido como uma es pécie de "profeta do presente': postulador de uma utopia que se baseava no retorno à razão como se na própria ideia de - razão geral não houvessem os germes da totalidade que ele com batia. Todavia, sua grandeza consistiu na percepção de que 81 a ruptura dos esquemas de totalidade é a verdadeira raiz da recepção da novidade "que todos almejam': Marcuse como que "aplicà' em termos de amplas análi ses sócio-políticas - com o compromisso político em· seu cer ne - as percepções e conclusões de outros autores mais sutis, porém menos abrangentes. Arnold Schõnberg e a cultura Basta um breve contato com um igualmente breve teste munho de Schõnberg para perceber até que ponto, de um modo ou outro, ele comunga com os princípios da Escola, tais como os temos apresentado nesse texto. O próprio Schõnberg diz: Você se queixa da falta de cultura neste mundo protegido pelos entretenimentos. O que diria você - então - no mundo no qual eu praticamente morro de desgosto [ ] Como exemplo, veja este anúncio que há aqui: mostra o retrato de um homem que cor re para a criança que está morrendo sob os pneus de seu carro. Em desespero, e com a cabeça entre as mãos crispadas, ele não diz nada do gênero «meu Deus! O que foi que eu fiz [ . ]"; porque há a seguinte legenda: SINTO MUITO, AGORA É TARDE PARA PRE ... .. OCUPAÇÕES - ADQUIRA SUA APÓLICE NA COMPANHIA DE SEGUROS X ENQUANTO É TEMPO! (Schonberg apud Leibowitz, 1981, p. 20).60 Apenas uma acentuada estreiteza de visão poderiam nos impedir a compreensão da efetiva ligação do músico-pintor com os membros da Escola, para além de circunstâncias aces sórias e em comunhão com o cerne da motivação ética, que se choca ao perceber uma tragédia reificada brutalmente e deca ída a um capítulo do mercantilismo universal. 60 82 Em carta de Schonberg a Kokoschka, Los Angeles, 3/7/1946. O próprio Adorno - músico também e abalizado ana lista schõnberguiano, apesar do parecer em contrário de Schõnberg ( Cf. Jager, 2003, p. 1 82ss) - testemunha a con vergência da atividade do músico em direção a profundas disposições dos frankfurtianos: " ( ao passo que) Strawinski furta-se ao doloroso movimento da coisa, ao tratá-la como regisseur, [ ... ] Schõnberg é obrigado (a tentar) chegar a uma objetividade sensível sui generis - o construtivismo dodeca fônico)) (Adorno, 1974, p. 163 - 1 64). Também o testemunho de Susan Buck-Morss ( 1 98 1 , p. 44), que dizia que "Schõnberg [ . ] acreditava que a música expressava a verdade, mas afirmava que esta verdade era mais objetiva do que subjetivà: confirma que na raiz das pesquisas metodológicas schõnberguianas es tava presente o mesmo tipo de crítica e motivação criativa que os pensadores da Escola - aqueles formal ou informalmente a ela ligados - tentavam traduzir discursivamente. A música de Schõnberg, aqui entendida como modelo estético afeito à motivação original da Escola -, é o seu tem po, que não faz concessões a suavidades e não se refugia por entre os sons, mas espreita a história e re-produz interstícios na totalidade.61 .. 61 É preciso que se note, contra o juízo geral de Adorno, que também Strawinski, tradicional "inimigo" de Adorno enquanto "neoclássico", estava muito profun damente penetrado pela decadência do tempo entre-guerras. Adorno não res salta suficientemente o extraordinário poder de certas obras de Strawinski, a despeito do que se diga desta personalidade, de "puxar para fora" da tessitura musical a degenerescência da sociedade no qual elas foram concebidas. Um bom exemplo é o Concerto para violino e orquestra (193 1), principalmente em seus últimos movimentos, onde a "artificialidade" se mostra encantadoramente na tural, sem decair em reacionarismo. A "riqueza intrínsecà' de que fala Adorno a respeito desta obra (Adorno, 1 974, p.l 60) deve-se justamente ao fato de que a obra como que absorve a atmosfera sua contemporânea e a condensa em uma unidade expressiva autônoma. E, de fato, pode-se dizer que o "Neoclassicismo" musical teve uma grande importância para a "des-hipocritização'' do mundo no qual apareceu. Isto inclui Prokofiev e sua sutilíssima ironia e também Ravel em suas aristocráticas construções, entre muitos outros exemplos - provas de que, de fato, o dado artístico real se insurge contra classificações prévias, e prova que seu conteúdo não é unívoco, e sim tão complexo como o mundo no qual surge e que o sustenta. 83 Algumas conclusões Desde G. Simmel, que "foi o primeiro, apesar de todo seu idealismo psicológico, a realizar (o) retorno aos objetos concre tos'' (Adorno apud Buck-Morss, 1981, p. 163), até as recentes pesquisas filosóficas que cada vez mais se reorientam em relação à realidade que fica fora do campo próprio do sujeito em evidên cia e do campo de ação de uma dialética mecânica, medeia lon go tempo filosófico. Ingentes foram os esforços para concreti zar a ruptura que, consciente ou inconscientemente, percebiam como necessária e desejavam os membros da Escola - e natu ralmente não só eles. Da utópica formulação de Bloch ("aquilo que não é pode ser verdadeiro') (apud Marcuse, 1979, p. 21) à seca constatação adorniana de que "o todo é o não verdadeiro: estende-se uma ampla malha crítica, que se esforça em tradu zir a doença e o horror da sociedade para ela mesma, tentando abrir caminho para a superação da patologia e irrupção de uma nova humanidade. A teoria crítica certamente avança em seus esforços62• Tanto Benjamin63 como Adorno,64 por exemplo, têm segurança sobre o sentido mais profundo do seu filosofar, 62 63 64 "No coração mesmo da Teoria Crítica havia uma aversão aos sistemas filosóficos fechados [ ... ]. Não foi acidental que Horkheimer (como outros membros da Escola) escolhesse articular suas ideias em ensaios e aforismos antes que em tomos volumosos tão característicos da filosofia alemã" (Jay, 1974, p. 83). Talvez em decorrência disto, Adorno definia a filosofia como "[ ... ] o pensamento que não se deixa travar" (Adorno, 1988, p. 293). De qualquer forma, "devemos voltar nossa atenção [ . .. ] para os notáveis esforços empreendidos por Adorno no sentido de detectar o fraco pulsar da utopia em meio à ensurdecedora cacofonia da cultura contemporânea" (Jay, 1988, p. 100). "Só por amor pelos desesperados conservamos ainda a esperança'' (Benjamin upud Jay, 1 988, p. 1 8 1 ) . "O pensamento aberto aponta para além de si mesmo" (Adorno apud ]ay, 1988, p. 5 1 ) . Além disso: ''Adorno [ . . ] continuou a defender a importância do pensamento crítico como 'garrafas atiradas ao mar' para futuros destinatários, cuja identidade ainda era desconhecida" (Jay, 1988, p. 5 1 ) . E o próprio Adorno acaba por se dar conta de que "o único modo que ainda resta à filosofia de responsabilizar-se em vista do desespero é tentar ver as coisas tal como aparecem desde a perspectiva da redenção" (Adorno, 1993, p. 250). . 84 de sua precariedade. E já Marcuse se dá conta de que ((a teo ria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna entre o presente e seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece negativà' (Marcuse, 1 979, p. 235). A própria filiação dos pen sadores da Escola, apesar de tudo, a uma marcada tradição intelectual, cujas linhas principais lhes são comuns; sua for mação, que se funde com uma extrema sensibilidade recepti va que faz com que nada do século lhes permaneça estranho ou indiferente; a percepção clara de que a ruptura necessária lhes seria ainda, de alguma forma, vedada; a compreensão, no exemplo de Adorno, de que, apesar da mobilização no sen tido de "deixar a coisa falar", ainda há um excesso de peso da tradição e de preconceitos gnoseológicos a respeito (tra duzidos ou pela tentativa de retornar a uma totalidade da razão - Marcuse - ou pela de "abrir" um processo dialetica mente negativo - Adorno) - tudo isto acaba por mergulhar estes filósofos numa atmosfera mais sombria que alegre, pois que ainda não têm motivos para se alegrar: " [ .. . ] à diferença dos socialistas mais ortodoxos, escreveram obras permeadas mais por um sentido de perda e decadência que de expecta tiva e esperançà' (Jay, 1974, p. 470) .65 Não quiseram ser hi pócritas, em um tempo que não poderia aceitar otimismos fáceis. De qualquer modo, as energias foram empenhadas e as garrafas filosóficas lançadas às águas negras deste tempo de "fim" de utopias. Permanecem todavia, ainda, em um esquema gnoseoló gico que não pode deixar de ser tradicional, e que acaba em certo sentido por trair os melhores esforços destes filósofos, artistas, poetas; estes inevitáveis preconceitos gnoseológicos tradicionais - kantianos ou hegelianos, algumas vezes até nos talgicamente historicistas - impedem-nos, em última análise, uma observação extra-sistêmica desde um ponto de vista por 65 Leandro Konder fala, a respeito de Benjamin, de "Marxismo da melancolia': 85 assim dizer desde a Alteridade como realidade que porta sua própria vida. Apenas em poucos momentos esta consciência está presente: quando, por exemplo, o velho Horkheimer per cebe a necessidade do absolutamente diferente "a religiosida de de Horkheimer no fim da vida não é apenas um refúgio de siludido: é, segundo nos parece, a (re)presentação do problema da alteridade [ .. ]" (Assoun, 1 989, p. 1 15). Benjamin abordaria também o problema da história desde um ponto de vista da Alteridade (Assoun, 1 989, p. 1 1 5). Que resuma esta impressão este texto de Benjamin, em sentido estético: "Pareceu- me que compreender um quadro - até onde isto se dá - não se trata, de maneira alguma, de penetrar em seu espaço, mas, muito mais, do avanço deste espaço - ou de pontos bem determina dos ou diferenciados dele - sobre nós" (Benjamin, 1989, p. 53). O legado da Escola é simples: a filosofia chega, neste fim do segundo milênio e início do terceiro, a um impasse de ímpar gravidade: ou ela reconhece sua função definitiva mente - aquela de crítica da Totalidade multiforme e hegemô nica - ou ela participa, por o missão, comodismo, escapismo ou desconhecimento da ideologia do progresso infinito e das apologias do fim da história, e deve, portanto, preparar, des de já, o discurso a ser irradiado desde as ruínas sobrantes de um desastre ecológico universal ou de uma convulsão social sem absolutamente nenhum precedente. Mas, certamente, os pensadores de Frankfurt já nada mais terão a dizer nesta segunda hipótese. - . 86 ESTÉTICA COMO ANTI-IDOLATRIA Introdução66 Se à estética67 se tem muitas vezes reservado um lugar subalterno na hierarquia das ciências filosóficas, isto se deve a mais das vezes à ignorância pura e simples de seu poder sin tetizador de épocas e vivências. Esta ignorância não surge por acaso: ela responde geralmente a uma necessidade ideológica de inofensibilizar aqueles elementos dispersos ao longo das manifestações da arte verdadeira que se desdobram pela his tória, em seu poder subversivo do presente. Uma outra preocupação pode, porém, se fazer presente nesta atitude: trata-se do zelo com que se trata a questão da 66 67 Este texto revisita, amplia e atualiza o Capítulo "Estética, sombras e história", de nosso livro Totalidade & Desagregação - sobre asfronteiras do pensamento e suas alternativas, de 1996. Compreende-se por "Estética", neste texto, principalmente o exame crítico de manifestações artísticas concretas - obras - em seu teor mais contemporâneo, e não, obviamente, especulações ao estilo das realizadas pela tradição da l;ilosofia da Arte. Esta conotação, se por um lado renuncia a muitos sentidos desta disciplina que, aliás, desenvolvemos alhures - como aquele em que a cstét ica ocupa um lugar central na própria hermenêutica existencial do ser humano -, por outro lado facilita a delimitação do tema. 87 substituição, por exemplo, de pessoas por obras. Se há uma tendência clara neste sentido - e isto é especialmente evidente na hegemonia da compra e venda como metafísica universal, pois ainda é relativamente menos escandaloso comprar aber tamente obras de arte do que pessoas, redundando em uma óbvia hierarquização valorativa não muito favorável aos seres humanos denegridos nesta escolha comercial - este não é se não um aspecto de uma ampla cosmovisão idolátrica. Nesta cosmovisão, tudo tem seu preço; felizes dos que tem seu preço expresso em milhões, como certos quadros: geralmente são muito bem tratados e vivem mais dignamente que a maior parte da humanidade. A arte cora então de vergonha e se re fugia em sua interioridade mais recôndita, permitindo apenas que alguns de seus reflexos e fantasmas - ídolos no sentido original do termo - se integrem ao grande jogo especulativo, ao jogo de imagens universal. Que se tome isto por arte plena: que diferença faz para a metafísica das profundidades comer ciais? O respirar do grande negócio segue em seus estertores. Nunca como agora as negatividades foram tão necessá rias para iluminar, contrastivamente, as positividades legíti mas. Em um tempo sem suavidades, repleto de mosaicismos entediados ou de perversões elevadas ao "status" de arte,68 o que se apresenta como suave repertório de amenidades tem de ser incisivamente provocado. Neste espírito, tanto a explícita anti-estética negativa e anti-idolátrica de Levinas quanto à estética negativa e anti-to talitária de Adorno têm algo a dizer. Vozes clamantes no deser to, escolhem o que de mais feio a arte pode conter e expressar 68 Ver o famoso caso do "artista'' que amarrou recentemente, em Bienal Internacio nal de Artes, um cão faminto ao canto de uma sala, e cuja "instalação" consistiu em uma reflexão sobre a morte durante os estertores do animal que, efetivamen te, morreu de inanição. A pergunta pela razão de o artista não haver amarrado a si mesmo e se exposto como objeto de observação - ou porque esse momento não foi alcançado na execução da "obra" é relevante em inúmeros sentidos, mas o que aqui nos interessa é perceber a que ponto a capacidade de confundir "arte" com "patologia dos tempos" se tornou metafisicamente comercial, ou seja, idolátrica em qualquer sentido desse termo: intercambiável. - 88 para mostrar, ainda que ·via negationis, que quase em nenhum campo como aqui o repouso satisfeito não pode conviver com os fatos. A circunscrição de um conceito pouco ingênuo de arte é talvez dedutível desde suas concepções. O estudo deste tema é a proposta deste breve trabalho. A realidade e sua sombra vida e morte na estética - levinasiana69 Emmanuel Levinas não é, em princípio, um filósofo da estética; a antropologia, a fenomenologia e sua superação, o humanismo do outro homem, a subjetividade que se consti tui como resposta ao traumático encontro com a Alteridade, se constituem em seus temas essenciais, aos quais devotou o melhor de seus esforços. Seus assuntos têm como moldura um amplo desencantamento da impessoalidade mágica; a sua concepção de realidade, em tonalidades judaicas, reporta seu sentido em um cruzamento antropológico, na subjetividade ética reconstituída, pós-estruturalista, pós-cogitante e pós -fragmentação pós-moderna, e na exterioridade ética para além do ser e de suas determinações e de sua linguagem. To davia, Levinas de modo algum negligenciou este tema central da cultura (Cf. Castro, 2007; Mattuella, 2009). Para os fins que aqui nos interessam, porém, a análise de seu texto clássi co e mais conhecido sobre o assunto é suficiente; a visão algo unilateral que ali se apresenta - diferentemente dos textos sobre temas estéticos em sua obra magna Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, por exemplo, muito mais nuançados nos ajuda a elucidar a tese geral de Levinas a respeito da ideia 69 Para aprofundamentos da relação entre o pensamento levinasiano e a questão estética, ver, entre outros, meu artigo "Levinas e a arte': em Haddock-Lobo, 2010 e as obras de Castro, 2007; Mattuella, 2009; Farias, 2007; Franck, 1985; Huizing, 1988; Ciglia, 1982; Armengaud, 1990. 89 de idolatria, e permite o estabelecimento de profícua articula ção com as teses adornianas. De fato, no texto ((La réalité et son ombre': testemunho eloquente de um momento histórico de grandes inquietações - o imediato pós-Segunda Guerra MundiaF0 -, Levinas apre senta como que uma espécie de anti-estética, que, compreen dida na sua melhor expressão como estética anti-idolátrica, resume uma variedade de elementos que se constituem no intento de, como diz o prefaciador, " [ . . . ] définir l'art comme l'étrange tentative de procurer une pseudo-présence du monde [ .. . ]" ( 1 948, p. 769) e que ''remet à une critique philosophique le soin de récupérer l'art pour la verité, de renouer des liens entre la pensée 'dégagée' et l'autre, entre le jeu de l'art et le sé rieux de la vie" ( 1 948, p. 770). Pois, segundo a áspera análise de Levinas nesse texto, "Le procédé le plus élémentaire de l'art consiste à substituer à l'objet son image. Image et non point concept. Le concept est l'objet saisi, lhbjet intelligible. Déjà par l'action, nous entretenons avec l'objet réel une relation vivante [ ... ] . L'image neutralise cette relation réelle" ( 1 948, p. 774). Aqui já se expressa o Leitmotiv da crítica levinasiana: ou a arte propõe, à vida real, a alternativa de uma semi-vida inspirada, à escuta das musas, imagi(em)nária, ou esta, menos delicadamente, conquista o terreno da realidade e instala ali seu fetiche sombrio. O campo de possibilidades da arte flu tua entre a semi-vida da suavidade inspirada e a não-vida das sombras de realidade. Um elemento de toda arte, o ritmo, é nesta flutuação paradigmático: "De la réalité se dégagent des ensembles fermés dont les éléments s'appellent mutuellement comme les sylabes d'un vers, mais qui ne s'appellent qu'en s'imposant à nous. Mais ils s'imposant à nous sans que nous les assumions" ( 1 948, p. 774). Eis aí os elementos da sedução e da conquista. A sedução da ordem fácil, da fragmentação 70 90 Aparecido originalmente em Les temps modernes 3 ( 1 948). Citaremos a partir da primeira publicação. artificial da realidade em elementos suficientemente pequenos para serem compreendidos em seu marchar e em seu saudar -se mutuamente, esta sedução conquista terreno e se impõe à revelia da vontade organizada, pois a própria vontade não mantém sua integridade, não permite mais o assumir algo. Também no ritmo a musa canta mais alto, ou seja, quando se pensa que se está tratando com a base de todo um processo, este processo inteiro já está ali presente. Esta conquista de es paço é a passagem "do si mesmo ao anonimato" ( 1 948, p. 775), um enfeitiçamento desumanizador, habitante do limbo entre a consciência e a inconsciência, sonho claro demais para ser só sonho, mas irresponsável como todo sonho ( 1 948, p. 775). Não é consciente, pois não pode ser conscientemente assumi do; não é inconsciente, porque se presentifica constantemente em seu desenrolar-se. "L'automatisme particulier de la marche ou de la danse au son de la musique est un mo de detre ou rien n'est inconscient, mais ou la conscience, paralysée dans sa li berté, joue, toute absorbée dans ce jeu" ( 1 948, p. 775). Desper sonificação do eu, coisificação bem-acabada da subjetividade: ((il (o sujeito) est parmi les choses, comme chose, comme fai sant partie du spectacle, extérieur à Iui-même [ . . ] extéríorité de l'intime, en vérité" ( 1 948, p. 775). Intimidade exteriorizada em automatismo. O ritmo conduz à sua mais óbvia aparição, à música, arte mais destacada da realidade ( 1 948, p. 776). O som, fora de qualquer objeto, qualidade mais descolada do objeto ( 1948, p. 776), é a impessoalidade pura - não fala, apenas acontece sonoramente, musicaliza-se em musicalidade. E "insister sur la musicalité de toute image, cest voir dans l'image son détache ment à legard de lobjet, son independance à l'égard de la cate gorie de substance [ ]" ( 1 948, p. 776). A imagem de conteú dos de-substancializados flutua no mundo sonoro, oferece um substitutivo fácil para a dificuldade do trato da sub-stância da realidade. O jogo se inicia e se multiplica: imagens se sucedem . ... 91 a imagens, levezas se seguem a levezas, em uma espécie de leviana embriaguez inspirada. Vê-se suavidade onde ela não existe, vê-se uma caricatura do peso de realidade onde ele não está. A arte como demiurgia de sensações, habilidàde de de sencarnação da realidade ( 1 948, p. 777), não-objetividade do objeto - ou melhor, "desconteudização" dos conteúdos obje tais na diafaneidade de uma projeção. O mundo real, ''coloca do entre parênteses" ( 1 948, p. 777), pulveriza seu peso em seu reflexo, em sua imagem que é "alegoria do ser" ( 1 948, p. 779). Trata-se de um processo de inversão da consciência que procura as coisas mesmas, como se as coisas mesmas deixas sem seu espaço a coisas outras que, adornadas de objetividade, retorcem a ideia de intencionalidade. "Le tableau a, dans la vi sion de l'objet représenté, une épaisseur propre: il est lui même objet du regard. La conscience de la représentation consiste à savoir que lobjet n'est pas là" ( 1 948, p. 779). Consciência que trai suas mais profundas intenções e, ingenuamente, pousa so bre as flutuações de uma realidade fraca, fruto de um jogo de espelhos. Em lugar de indicar a realidade propriamente dita, a imagem impede o acesso a ela - pedra no caminho que con duz ao mundo, ((essência fantasmática" que não diz a verdade ( 1 948, p. 780). Mentira. Mas esta mentira é refinada, propõe atrativos, porta ade reços sinuosamente sedutores, que se compõe naquilo que se conhece por "beleza", ao menos na arte figurativa realista. A beleza é, nesta reflexão, o ser em processo de dissimulação de sua caricatura, na dialética de sua sombra ( 1 948, p. 78 1 ) , pro cesso este que culmina na edificação do ídolo, ídolo estético, protótipo da imagem perfeita - estátua. Toda arte é, em fim de contas, o processd de soerguimento de estátuas ( 1 948, p. 782). Mas o que é uma estátua? Levinas responde com uma frase notável, muitíssimo citada: "La statue réalise le paradoxe d'un instant qui dure sans avenir" ( 1 948, p. 782). Uma estátua é a materialização de uma paralisia do tempo. A eternidade 92 fora da duração, o instante eterno que não se desdobra - a morte revestida de adereços artísticos ( 1 948, p. 782), fingindo que é vida. Futuro eternamente abortado, presente que nunca cumpriu sua tarefa de presente, cccomme si la réalité se retirait de sa propre réalité et la laissait sans pouvoir" ( 1 948, p. 782). O artista deu à estátua uma vida sem vida ( 1948, p. 782). No romance, o drama dos personagens nunca acaba, dura ainda, mas não avança ( 1 948, p. 784). Fixação não-dialética, revolver-se de boas intenções e de intenções de liberdade. Li berdade não-livre, caricatura do mundo. Intervalo eterno do correr do mundo, suspensão de sentido, expectativa de algo que não virá, e cuja não-vinda já se encontra na própria ex pectativa. "La durée etérnelle de l'intervalle ou s'immobilise la statue differe radicalement de l'éternité du concept - elle est l'entretemps, jamais fini, durant encare - quelque chose d'inhumain et de monstrueux" ( 1 948, p. 786). A inumanidade e a monstruosidade do intervalo eterno, porém, remetem para seus fundamentos. Estes fundamentos da realidade paralisada se constituem em umafuga da realida de propriamente dita, que chama à responsabilidade. Uma de terminada dimensão de evasão ( 1 948, p. 787), desengajamen to, recusa à iniciativa, pulsa sob a morte feita vida. Esta grande substituição original - da vida por sua caricatura morta - su gere uma outra substituição mais empírica - onde ((le monde à achever est remplacé par l'achevement essentiel de son ombre. Ce n'est pas le désintéressement de la contemplation, mais de l'irresponsabilité, ( 1 948, p. 787). Constrói-se um mundo per feito para não se ter de haver com as imperfeições do mundo real. Exílio na imponderabilidade das sombras. Fecham -se as fronteiras da autojustificação. A arte feita idolatria autoidolatria é para Levinas nes te texto a obliteração dos possíveis pontos de saída da tautolo gia da Totalidade. A hipocrisia reinante na fuga triunfal que se corporifica materialmente em um determinado intervalo de - - 93 tempo paralisado ou na obsedante desumanidade do ritmo hipocrisia, ardil racional, porque pretende justamente que esta paralisia não seja percebida como tal, e sim como uma glorifi cação da vida - consiste na condescendência do Mesmo com suas excrescências, em uma comédia que se desenrola à som bra da realidade e da possível liberdade - e do sofrimento do mundo. Feição apaziguada da violência, violência ornada de boas intenções, todo o contato com o Outro é abortado, pois a arte porta em si mesma seu sentido. Espécie de subjetividade purificada de contingências humanas, demiurgia pretensiosa do tempo que não lhe pertence, a caricatura da vida fascina por seus poderes aparentes. Apresentando-se como situada para além da realidade imediata, na verdade posta-se aquém de qualquer realidade assim propriamente chamada. Seu mundo não é o mundo que ela promulga, seus interesses não são o tempo, a realidade e a verdade: ideologia imoral. A arte iluminando as sombras da história - a estética adorniana e a ruptura da Totalidade na Teoria Estética Um dos grandes paradoxos do pensamento de Adorno é que este se debate em meio a uma Totalidade faticamente em ruínas - mesmo que ruínas evanescentes como a fumaça que sai das chaminés de Auschwitz ou da Hiroshima destruída - e que tenha, ao mesmo tempo, de combater a fênix totalitária que pretende a reconciliação do ocidente com seus impulsos mais primigênios apesar do passado, através de seu processo traduzido em hegemonia capitalista instrumentalizada ideo logicamente na pretensão de suavidade de promessas de um otimismo condescendente. A percepção desta missão comba tiva da racionalidade não-totalitária, o embate com a tradição 94 apesar da tradição, a cata à verdade que não é o todo, configu ram o característico mosaicismo filosófico adorniano. A inver são da ordem do pensamento, como diria Bergson, faz-se aqui necessário como nunca - mesmo que esta inversão conduza à desordem do mais fundamental. Vita brevis, ars longa: Ador no teve de trabalhar como se dispusesse de todo o tempo do mundo, examinando fragmento por fragmento, colecionando os restos da história, pulando de pedra em pedra, como tão magistralmente soube fazer seu amigo Benjamin - mas, dife rentemente deste, de forma menos poética, menos agilmente hábil, menos pontualizada lampejos de magistral intuição e mais por picos sintéticos de inteligência, eternamente perse guida pela potência dialética da negatividade. Mais uma vez o paradoxo: um tempo limitado para uma perscrutação infini ta, uma tarefa sintética ilimitada, onde subsistem as garrafas atiradas ao mar de Horkheimer sem ao menos um envoltório sólido, onde a mobilização de inteligibilidades, sua prontidão quase sem esperanças é sua única esperança pós-desencanto. Mas cada seixo no fundo do rio da história, desta história da cultura que é uma história de barbárie, refulge com reflexos próprios, detém e1n si seu sentido não-totalitário. Microsenti dos em um microcosmo não-totalizante, à espera de uma filo sofia feita micrologia, que possa se haver com a falta de vontade da realidade em ser descoberta em suas excrescências, que pos sa conviver com a falta de hábito da hesitação filosófica radical, onde cada momento constitui sua melhor e mais pragmática síntese, e que, apesar de tudo, esteja em cada momento aureo lado de todo rigor possível. Engrenagem difícil, sem o óleo da ideologia, com o atrito da realidade mais bruta possível que pode ser mediada pelo pensamento, onde este atrito mesmo é o tema de sua superação, em uma retorção dialética reticente às tentações da tautologia ardilosa. ((Retorno às coisas mesmas': A realidade pós-totalidade autocompreensiva é múltipla, e múltiplos são seus fragmentos, transformados em problemas 95 para a reflexão. Como esta realidade ampla, também a realida de artística tem de legitimar sua pretensão à existência - esta a primeira frase da Teoria Estética.71 A arte porta assim um alar gamento extremo de possibilidades que, mesmo podendo vir a se metamorfosear em um estreitamento (ÀT, p. 9), reconduz à sua refração original em ser abrangida por qualquer fórmula. A arte torna-se, em sua realidade própria meta-sistemática, um Outro - para além da naturalidade que, pensava-se, constituía seu fundamento e que foi ao solo no estertor contemporâneo.72 A arte e o consolo de qualquer tipo - leia-se condescendência com o statu quo e suas justificativas - são como nunca mutua mente repulsivos. Os tecidos da arte são agora preenchidos de tempo como nunca antes, e ela vale propriamente por aquilo em que ela se tornou ou pode vir a se tornar, e é "interpretável apenas pela lei de seu próprio movimento, e não por invarian tes" (ÀT, p. 1 2). A arte tem, como nunca, vida própria. Esta vida própria toma as rédeas de sua própria con dução, nem que esta condução signifique a negação de suas origens.73 "Pinta-se um quadro, e não o que ele representa", no dizer de Schõnberg (ÀT, p. 14), pinta-se a identidade do quadro consigo mesmo, esta identidade que é a inteligibili dade que ele mesmo porta - sua vida sui generis, que não se reduz ao sentido externo (ÀT, p. 1 4). A pulsação desta vida, esta identidade pulsante, conduz à primeira grande intuição expressa na Teoria Estética: "A identidade estética deve defen der o não-idêntico que, na realidade, é oprimido pela com71 72 Asthetische Theorie, doravante ÃT. "Zur Selbstverstãndlichkeit wurde, dass nichts, was die Kunst betrifft, mehr selbstverstandlich ist, weder in ihr noch in ihrem Vcrhaltnis zum Ganzen, nicht einmal ihr Existenzrecht" (ÃT, p. 9). "Jndem sie angreift, was die gesamte Tradition hindurch als ihre Grundschicht garantiert dünkte, verandert sie sich qualitativ, wird ihrerseits zum Anderen. Sie vermag es, weil sie die Zeiten hindurch ihrer Form ebenso gegen das bloss Daseiende, Bestehende sich wendete [ . ] So wenig ist sie auf di e generelle Formei des Trostes zu bringen wie auf die von dessen Gegenteil" (ÃT, p. 10- 1 1 ) . "[ ] fraglos indessen sind die Kunstwerke nur, indem sie ihren Ursprung ne gierten, zu Kunstwerken geworden" (ÃT, p. 12). . 73 96 ... . pulsão à identidade" (ÃT, p. 14).74 A arte não tem um poder glorificador do fático, e, sim, preservador do que nunca pôde chegar ao estado de fático. Eis aí um grande momento de con flito com determinadas tradições artísticas que, instrumenta lizando de forma aberta ou velada o factum artístico, de certa forma tentam sequestrar para si o poder eminentemente sub versivo da arte. Subversivo, porque potencialmente negador da auto-legitimação da totalidade dos vencedores, que a arte porta enquanto "antítese social da sociedade" (AT, p. 19) , não dedutível diretamente desta, e que se subtrai aos argumentos da auto-conservação (da sociedade), o que a sociedade bur guesa nunca perdoou, e transforma as tentativas de sua mani pulação comercial forçada em uma caricatura dela mesma.75 A arte participa da decomposição da contemporaneida de através da decomposição de seus próprios materiais - pre sença da alteridade em sua identidade/6 A felicidade da arte, quando existe, é de fuga e não de gozo auto-suficiente (AT, p. 30), fuga da totalidade sem-saída da violência do fático. Por isso, a felicidade da arte é fugidia, ao contrário do que tentam fazer crer as galerias, museus e salas de concerto bem-com portados. Dolorosa feli cidade, aceleração do tempo que se desejaria em processo de paralisação, e que o reacionarismo não suporta em seus ímpetos desagregadores. Mas este tem po é duração de fragmentos; e, pela duração, "a obra protesta contra a morte; a eternidade a curto prazo da obra de arte é alegoria de uma eternidade que não aparece. Arte é a apa rência daquilo que a morte não alcança". 77 Arte é aparência 74 75 76 77 ''Ã.sthetische Identitãt soll dem Nichtidentischen beistehen, das der Identitats zwang in der Realitãt unterdrückt" (ÂT, p. 14). "Ist schon die Kunst für den Betrieb der Selbserhaltung unnütz - gan z verzeiht ihr die bürgerliche Gesellschaft das niemals -, soll sie sich we n ig st ens dure h cinc Art von Gebrauchswert bewãhren [ . . . ]" (ÃT, p. 28). "Der Zerfall der Materalien ist der triumph ihres Fü rand ersscins" (Ã'C p. 3 1 ). "Durch Dauer erhebt Kunst Einspruch gegen den Tod ; dic ku rzfristigc Ewigkeit der werke ist Allegorie einer scheinlosen. Kunst ist Schcin dcsscn, woran der Tod nicht heranreicht" (ÃT, p. 48). 97 daquilo que sobra depois do esboroamento da totalidade fi nita, alegoria do não-integrado, não-sincronizado, primeira antevisão do não-ser. 78 Por isso sua vida é sui generis: não pertence às determinações da vida vitoriosa - é tristeza que porta os fragmentos absolutizados e isolados das essências outrora integradas e que decaíram com o desmoronamento da totalidade (Cf. ÃT, p. 49). Como sobra, a arte não pode ser bela, quer dizer ordena da, auto-harmonizante. Sua feiúra contemporânea não é mais do que a expressão de sua repugnância às ofertas de recon ciliação harmonizante da história - pois toda reconciliação neste contexto porta algo do cinismo absurdo da reconcilia ção entre torturadores e torturados, entre carrascos e vítimas, traz em si algo do fingimento essencial e da falsidade na crença pretensa da possibilidade do esquecimento cínico da realidade tal como esta foi e é. Intransigência absoluta nesta repulsa à reconciliação, a arte mantém viva a esperança da utopia ( Cf. ÃT, p. 55-56) que nunca se deu na história, apesar de qualquer possível promulgação do fim da história. A arte tem de ser feia porque o tempo é feio. 78 98 Cf. "Anotações sobre Kafkà' (Adorno, 1988, p. 261 -262). Sobre a forma como Kafka edifica sua obra a partir de uma espécie de radicalização desse "desvio': que faz com que certas obras kafkianas se aproximem de certos quadros de ani mais irreais - ou habitantes de uma outra realidade - e pacíficos do expressionis ta Franz Marc: "Kafka salva a idéia do expressionismo não ao se esforçar em vão para escutar os sons primordiais, mas ao transferir para a literatura os procedimentos da pintura expressionista. Ele se relaciona com essa pintura da mesma maneira que Utrillo com os cartões-postais, que teriam servido de modelo para suas ruas cobertas de gelo. Diante do olhar de pânico que retira dos objetos toda carga afetiva, estas ruas s e petrificam em algo diferente: nem sonho, que se deixa apenas falsear, nem macaqueamento da realidade, mas sim a imagem enigmática dessa realidade, composta de seus fragmentos dispersos. Várias passagens decisivas de Kafka podem ser lidas como se fos sem descrições minuciosas de pinturas expressionistas jamais pintadas. No final de O processo, o olhar de JosefK. incide 'sobre o último andar da casa situada no limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhas de uma janela abriram -se ali de par em par, uma pessoa que a distância e a altura tornavam fraca e fina inclinou-se de um golpe para a frente e esticou os braços mais para a frente ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem?"'. Mas a arte é também paciência. ((Die grossen Werke warten'' (ÂT, p. 67). Algo de sua verdade as mantém eloquen tes (Cf. ÃT, p. 67). Algo de seu conteúdo não se deixa formu lar na lógica da domesticação do diferente, do subversivo. A arte permanece como repositório das feiúras reais, ainda que re-harmonizadas em sua própria lógica; sua dimensão mimética, se por um lado nega-se a referendar a falsidade intrínseca do cinismo, por outro não se pode furtar à repre sentação da inverdade onipresente.79 Há tempo para tudo, até - e principalmente - para o irremediavelmente ((feio". Há tempo para a reintrodução do caos na ordem do falso, ou na falsa ordem (Cf. ÃT, p. 144). Porém, qual a modalidade deste caos de denúncia? O caos consiste também na não-condescendência com o modus operandi normal do espírito, consiste em não delegar a última palavra à violência de toda obra de cultura que também é de barbárie; o que menos aliena a obra de arte - apesar desta estar condicionada pela alienação universal - é o fato de que, nela, passou tudo pelo espírito e se humanizou sem violência.80 A arte é o paradoxo do espírito não-violento, o enigma de uma contradição sobrevivente, jogo de mostrar e esconder (C f. ÃT, p. 1 82). A arte fala de menos, não se explica, não vive a explicar o ser, ponto de interrogação que se nega à síntese81, escrita cuja ausência de codificação é a melhor codificação de seu conteú do (Cf. ÃT, p. 1 89). Singular paradoxo, paradoxo do singular. Este paradoxo, esta estranheza, advém do caráter de compromisso da arte para com a irresolução não-violenta. A arte procura brechas na colcha conceitual que abafa as dife79 80 81 "Es ist die Fatalitat einer jeglichen kunst im gegenwartigen Zeitalter, das..o.; sie vo n der Unwahrheit des herrschenden Ganzen angesteckt wird" ( A'J: 9 1 ). "So sehr Kunst von der universalen Entfremdung gezcichnet u n d gestcigcrl wird, darin ist sie am wenigsten entfremdet, dass alies an i h r d u rdt dcn (;eisl hindurchging, vermenschlicht ist ohne Gewalt" (À'I� p. 1 73). "Mit den Ratseln teilen die Kunstwerkc dic ZwicschHichtigkcit dcs Bcstimmlcn und des Unbestimmten. Sie sind Fragczeichnen, cindcutig nicht cinmal durch Synthesis" (ÂT, p. 188). 99 renças, colcha estendida pela boa vontade racional dos con ceitos: "Quanto mais espessamente os seres humanos cobriam o diferente do espírito subjetivo com a rede categoria!, mais profundamente se desacostumaram do espanto perante o Ou tro [ .. ] . A arte procura, debilmente, como em um gesto que se fatiga rapidamente, reparar isto" (ÀT, p. 191).82 Na arte respira necessariamente a utopia: nela se dá a enigmática intersec ção entre o inacessível e o realizável (ÃT, p. 1 94). Eis uma das maiores traduções de seu "conteúdo de verdade': verdade que o discurso não alcança, assim como a historiografia não alcan ça a utopia, pois pertencem a ordens diferentes de realidade. Mas utopia ten1, aqui, um sentido muitíssimo amplo. Uto pia é, também, o processo de sedimentação de realidades em nichos estreitos, em recônditos fora das engrenagens da grande cultura, embora eventualmente por ela envolvidos. É esta rea lidade mesma que escapa da determinação prévia, atemporal, de realidade. É a realidade às margens do ser, as sobras, o dife rente, o diverso, realidade que vem do diverso sem violência.83 Mas que diverso, que diferente, que outro é este? Com o que lida a arte que é a "síntese não-violenta do disperso: que ela con serva como "o que é, em sua divergência e em suas contradições [ . ] um desdobramento da verdade"?84 Que verdade é esta que se desdobra no disperso, que se dá não na unidade integradora da to talidade não-verdadeira, mas na integração não-violenta do dife rente que se integra desde si mesmo e que fala sua própria língua? Em outros termos, de que realidade se trata aqui, propriamente? . . . 82 83 84 100 "Je dichter die Menschen, was anders ist als der subjektive Geist, mit dem ka tegorialen Netz übersponnen haben, desta gründlicher haben sie das Staunen über jenes Andere sich abgewõhnt, mit steigender Vertrautheit ums Fremde sich betrogen. Kunst sucht, schwach, wie mit rasch ermündender Gebãrde, das wie dergutzumachen" ( AT, 191). "Die asthetische Einheit des Mannigfaltigen erscheint, als hãtte sie diesem keine Gewalt angetan, sondem wãre aus dem Mannigfaltigenselbst erraten" (ÁT, p. 202). "Sie ist die gewaltlose Synthesis des Zertreuten, die es doch bewahrt als das, was es ist, in seiner Divergenz und seinen Widersprüchen, und darum tatsãchlich eine Entfaltung der Wahrheit" ( AT, p. 216). A realidade presente na arte é a realidade que não pode ser real na não-arte da facticidade histórica do preponderante e do hegemônico. A arte é a testemunha viva de uma realida de diferente. Uma realidade que não é, que não teve tempo para ser, paradoxo no seio do ocidente: o Não-ente, aqui en tendido em seu máximo conteúdo de realidade. Não a impos sibilidade afirmada do para-além-do-possível na dinâmica da totalidade auto-suficiente, mas a possibilidade do possível que, à revelia de postulados autônomos de sentido, vibra ex centricamente em relação ao hábito ocidental de dotação de sentido: o não-ser. "Que a obra de arte existe, significa que o não-ente poderia existir. A realidade das obras de arte tes temunha a possibilidade do possível".85 A arte é o postulado de Parmênides, do ser do ser e do não-ser do não-ser, posto em questão, apesar do levar a sério da constatação heradi teana do ser da totalidade que se vem dando em combate; sua impotência frente a uma realidade é o questionamento desta realidade. A sua potência advém do reconhecimento de sua impotência - "a arte quer confessar sua impotência com relação à totalidade do capitalismo tardio e inaugurar sua supressão'� 86 O jogo da totalidade não é aceito. A arte sabe que, "se hoje nada mais é coerente, é porque a coerência de outros tempos era falsa'' (ÃT, p. 236). A falsa harmonia do passado, o pretenso equilíbrio do belo "natural': são desmisti ficados como exercício de violência sobre o fraco e o diferente - "Se a estética tradicional - Hegel inclusive - soube celebrar a harmonia do belo natural, isto se dava porque ela projetava a auto-satisfação da dominação sobre o dominado"87 e não 85 86 87 "Dass aber die Kunstwerke da sind, deutet darauf, dass das Nichtseiende sei n kõnnte. Die Wirklichkeit der Kunstwerke zeugt für die Mõglichkeit des Miigli chen'' (ÃT, p. 200). "Kunst will ihre Ohnmacht gegenüber der spãtkapitalistischen Totalitiit ci ng<! stehen und deren Abschaffung inaugurieren'' (ÃT, p. 232). "Wusste die traditionelle Âsthetik, Hegel inbegriffen, Harmonic am Nat ursdlil nen zu rühmen, so projizierte sie die Selbstbefriedigung von HcrrsdHtlt auCo; Beherrschte'' (ÃT, p. 2 38 ) . 101 porque aquele fosse algum mundo de paz ou algum paraíso perdido. Melhor para a arte, se esta pretensa harmonia veio abaixo junto com o que ela pregava: a arte é poupada a partir de agora da tentação de hipocrisias suavizantes. A arte não serve para celebrar os vencedores, ou para re produzir a dinâmica fática do desenrolar da história ocidental como totalidade: "Nenhuma obra é aquilo celebrado pela esté tica idealista tradicional, a saber, totalidade" ;88 pelo contrário, a arte é uma das poucas realidades anti-totalitárias que tem, de uma forma ou de outra, ainda podido respirar, ainda que manietada em galerias assépticas ou salas de concerto pedan tes. A arte é uma instância de legitimação do não-ser, do não -ser contaminado a priori pelo ser definidor. A arte é uma das mais reiteradas tentativas de, de uma forma fraca, mimética, impotente - mas sincera - tentar salvar aquilo que a Totalida de vem destinando aos esgotos da história. Conclusões por uma Estética não idolátrica e suas sugestões A dinâmica da Totalidade consiste em, perpetuamen te, desmobilizar o que se move na direção de suas bases de sustentação; tal qual a ideologia mais grosseira, que se trai ao perceber em seus reflexos as mais profundas ameaças a suas promessas falsas, a Totalidade se defende com unhas e dentes da antevisão de seus limites. O grande paradoxo da estética consiste no fato de que, em cada momento, a arte - ainda aquela 1nais hermética, desde que verdadeira - conspirou contra as promessas de harmonia que ela, enquanto filha da história, sempre necessariamente portou. 88 "Kein einzelnes Werk ist, was die traditioneHe idealistische Asthetik rühmt, To talitat" ( AT, p. 3 1 1 ) . 102 A arte e a harmonia da falsa conciliação do Mesmo e do Outro - embora inimigas mortais - foram de certa forma obrigadas a conviver em uma certa lógica de inteligibilidade, pois este era o mal menor, necessário para que a Totalidade pudesse se refu giar de sua própria insuportabilidade e incoerência lógica que só se sustenta enquanto fruto de ardis racionais. Que isto a partir de certo ponto se torna insuportável, é fato patente, que independe de seu reconhecimento por inte ligências canhestras; a degeneração da arte - e esta é a grande intuição de todos que, em qualquer tempo, organizaram ex posições de "arte degenerada" - indica de forma totalmente inequívoca a degeneração do pacto realista ou naturalista ou harmônico celebrado nos primórdios da estética idealizante: a degeneração de um determinado mundo, de uma determi nada era e de suas crenças.89 A arte é reconduzida, por sua de composição, à sua realidade precípua: não poder fingir indife rença junto ao não-indiferente, ao Outro, ou melhor, junto ao seu esmagamento e opressão. Seus fragmentos provocantes, a desagregação dos elementos que costumam chancelar na arte uma promessa unificadora e condescendente, alinhavam uma visão repugnante à Totalidade: a visão de que o Não-ser possa, afinal de contas, existir. A verdadeira obra de arte contempo rânea é a quebra de um pacto, um pacto que, de certa forma, já foi quebrado desde que a primeira obra de arte veio à luz. O mundo se afoga em falsidade: a arte utiliza-se desta falsidade para sustentar-se no mundo, reúne energias ao perceber sua própria falsidade social refletida na pretensa sincronia de sua essência com a essência da violência totalitária, e alça -se para além dos limites estritos que esta falsidade promulga: eis uma dinâmica inaceitável para a Totalidade. Levinas denuncia na arte feita falsidade a idolatria da arte totalizada, espelho fiel da Totalidade fática: automatismo 89 "Quando a construção de um mundo desaba, são soterrados soh as r u i nas tam bém as ideias que o conceberam e os sonhos que o penetraram" ( Roscnzwci g , 2008, p. 596). 103 e neutralidade, contaminação da humanidade com a desper sonalização dos fantasmas e das sombras da realidade nunca percebida como tal. Em um mundo falso, a possibilidade de uma falsidade com a mais plástica aparência de verdade: eis o que tem de ser combatido. Eis a essência da idolatria, ou, o que dá no mesmo, o núcleo de toda violência, dada à luz no parto da história, na história pano-de-fundo da Totalidade que es tende suas asas consoladoras por sobre os restos da realidade violentada, tentando convencer que a violência não existe pro priamente, apenas o desconsolo do que não se inclina à mera lógica do ser e do não-ser. Neste sentido, o estudo da Totalida de - inclusive aquele realizado pela arte - é a quintessência da crítica. Crítica é o estudo da negação da Alteridade. Adorno vê na aparência de verdade a maior das não-ver dades, a melhor das sombras que se dá no melhor dos mundos possíveis para a Totalidade não-verdadeira. Que esta grande hipocrisia possa ser analisada apesar de sua grande crise destes séculos XX e XXI, apesar das idas e vindas da racionalidade sequestrada por sonhos de grandeza; que nos interstícios des ta grande realidade racional e compacta ainda possa pulsar o não-idêntico, o diferente, e que a este diferente, a este disper so e diverso, ainda se possa achegar de forma essencialmente não-violenta: eis o mistério da inteligibilidade própria de uma estética que respeita as obras como tais sem reduzi -las a vari áveis de espécie alguma, ou seja, que não cultiva as aparências de pretenso equilíbrio num mundo cuja marca mais notável é, exatamente, a do desequilíbrio em todos os planos possíveis, do psíquico ao ecológico, do social e econômico ao onírico e ar tístico: frutos maduros da reificação da consciência. Encontrar, apesar da postulação da vida da Totalidade, o que restou de vida verdadeira para além - ou aquém - das possibilidades da vida da Totalidade: eis a imensa tarefa desta estética negativa, um outro nome para a ética do não-idêntico ( Cf. Souza, 2004b ). A percepção é a mesma em ambos: o verdadeiro é o que não é o todo da Totalidade. A obra de arte deve vir a ser um 1 04 posto avançado nesta reconquista da credibilidade pelo Não -ser. Sua urgência é a urgência do sofrimento. A mais aguda das racionalidades não pode ignorar este outro lado da his tória; este reverso da pretensa credibilidade da violência do neutro. A racionalidade ético-estética mais aguda acaba por perceber que a realidade possui infinitas dimensões. E esta percepção é um bom começo. 1 05 A ASFIXIA DO NÃO-IDÊNTICO: Kafka, leitor do século XX Era um homem e um artista de consciência tão escrupulosa que ainda se mantinha alerta onde os outros, os surdos, já se sentiam seguros. Milena TESENSKÁ O que pode acontecer quando a mais alta literatura, ex pressão da mais sofisticada inteligência, encontra o nervo expos to do século XX, após a falência de historicismos e otimismos acríticos de toda ordem? Seguramente, algo grandioso. Eis Ka fka, intérprete de sua época - a época da corrosão da totalidade (Cf. Souza, 1996), da crise radical do sentido (Cf Souza, 1998), do escancarado desmoronamento de uma certa ideia de razão e de história,90 da falência final do otimismo da representação (Cf. Souza, 2004b) e do tempo patológico (Cf. Souza, 2000a). 90 "O veredito histórico resulta da dominação disfarçada, que assim se configura como mito, como violência cega que se reproduz infinitamente. Em sua fase mais recente, a do controle burocrático, Kafka reconhece sua fase inicial, reto mando como história primitiva o que ela descarta. As rupturas e deformações da modernidade são para ele vestígios da idade da pedra, as figuras de giz no quadro-negro de ontem, que ninguém apagou, parecem-lhe os verdadeiros de senhos das cavernas" (Souza, 1998, p 257). 107 O fato é que Kafka é um autor cuja grandeza costuma se refugiar habilmente de seus intérpretes; todavia, interpretá-lo é apesar de tudo necessário - sem Kafka, não se entende abso lutamente o século XX, a profunda desordenação feita opaci dade que o acompanha, nem sua grande crise: a provavelmente maior crise civilizatória da história da humanidade ocidental. Sem Kafka, todo um espectro de novidade permanece na obs curidade da má-compreensão. Com Kafka, o mundo se agudi za até um ponto visceralmente insuportável, mas necessário. Filosoficamente considerada, a arte de Kafka poderia ser aproximada de uma concepção de literatura extremamente concreta, em um sentido diferente daquele que normalmente se considera como sendo a forma especificamente literária de concretude, ou seja, a realidade ínsita à literatura enquanto tal. Pois a concretude aqui reverbera estranhamente apesar da li teratura, ou seja, deixa de dizer-se no momento em que a letra elaboradamente a circunscreve e principia seu tenso, incom parável discurso, no instante exato em que a literatura chega a seu termo próprio, seja em termos formais, seja em termos de quaisquer intenções que lhe pudessem ser atribuídas. Muitas literaturas têm na singularidade e na criatividade agressiva a sua bandeira; mas a arte de Kafka é uma das poucas em que o extrapolar por excelência do comedimento das palavras tor na-se seu verdadeiro tecido: nenhuma de suas palavras atrai para si a atenção, nenhuma pretende enfeitiçar a qualquer pretexto e, apesar disso, não podem, a contragosto, deixar de fazer tal, e de tal forma fazem isso, que o mundo se revela verdadeiramente e sua segurança se distorce, a complexidade artificial da vida apresenta-se em sua dimensão de ilogicida de original com ares de uma infinita naturalidade, apesar do discurso estranhamente neutro, um irritante naturalismo de evidências que contraria e supera magistralmente, incompa ravelmente, qualquer naturalismo artificial, qualquer pretensa elaboração metafísica prévia, qualquer indecisão no acopla mento às camadas fundas da realidade. Um grande paradoxo 1 08 kafkiano: da indecisão para além dela, e sempre retornando, incomodamente, a ela, a um fundamentum inconcussum de estranheza e proximidade, de Ser, da real perplexidade - <<após qualquer interpretação, o que sobra de incompreensível em Kafka - e é muita coisa - repousa sobre uma base tão inaba lável quanto de difícil acesso. Eis porque seus escritos, com todo seu poder de criar a perplexidade, não deixam ao mesmo tempo nenhuma dúvida sobre a sua 'verdade interior"' (Heller, 1 976, p. 28). ((Verdade interioe': incapacidade de sucumbir à condescendência das palavras, de suavizar a irredutibilidade do real a um todo harmonioso e bem -construído: espelho do tempo. Ao contrário do que muitas vezes se pensa a partir de parâmetros ((realistas", a perplexidade, em Kafka, não é o alvo principal do discurso, apenas um corolário incômodo da hiper-realidade desvelada (origem de qualquer realidade des crita no naturalismo), a qual não finge ser de outra forma. É a esta «hiper-realidade" que o discurso se dirige, ou seja, esta é a sua realidade própria.91 A pretensa «incompreensibilidade" da obra kafkiana re pousa talvez sobre uma certa precariedade original de compre ensão, um involuntário vício «realista" - mas realista de menos , uma tendência de iluminação racional, tentação de sua e de nossa época - a qual não costuma aceitar nichos escuros no bloco do que supõe ser a ((realidade': É de ousar-se dizer que a realidade mais densa concebida nestes moldes é ainda muito - 91 Hiper-realidade: realidade que condensa em si uma multiplicidade de sentidos complementares ou contraditórios e uma variedade de vivências e existências; se à realidade se pode eventualmente contrapor a "fantasià' e o "sonho': a memória e as dimensões de contraste entre um indivíduo e um mundo social, a hiper -realidade não poderia ser concebida sem cada um destes aspectos em sua espe cificidade e plenitude, em sua vida própria, em um todo que tomará em certos momentos a aparência do mero absurdo (Cf. Souza, 2000a, p. 31ss). Em Lição de Kafka, Modesto Carone refere a conhecida expressão de Anatol Rosenfeld, segundo a qual "Kafka descreve a realidade, a nossa realidade, mas com o olhar de quem estivesse despertando"; essa afirmação é extremamente profunda em termos de enquadramento da obra kafkiana, e compartilhamos dela completa mente (Cf. Carone, 2009, p. 134). 1 09 fraca, excessivamente parcial, seja para sustentar a estrutura interna das obras, seja para servir de parâmetro comparativo a uma determinada elucidação da teia do discurso literário. Em Kafka, toda tentação de suavizar a realidade de suas· arestas mais incômodas, de aliviá-la de sua incomodidade, tem de ser, naturalmente, rapidamente abandonada - mas isto é apenas uma pálida dimensão da questão e não é simplesmente sufi ciente: há que se perceber o quão pouco a cronologia da reali dade cotidiana, o correr compassado dos instantes sucessivos e prenhes de pequenas promessas, pode acompanhar a hiper -realidade concentrada desta literatura, a qual é, em um sen tido muito preciso deste termo, ((anti-literária': Franz Kafka é um homem às voltas com um volume excessivo de elementos, de realidade, um bloco de incomodidade, e que não se pode desfazer deste peso, ainda que mergulhando profundamente em algum delírio ou sonho, os quais se revelam, na unicidade e solidão do Ser, nada mais do que apenas uma outra face, uma face obscura e neutramente cruel, real sempre, deste Ser repleto: ainda as mais diáfanas, as mais distantes imagens são reais demais, excessivamente presentes à indeclinável presen ça kafkiana, como Fraulein Bürstner afastando-se lentamente ao final de O Processo. 92 O tempo de Kafka, ao qual ele, em sua vida, com tanta inabilidade não consegue se integrar (Cf. Heller, 1 976, p. 50), é um tempo saturado de presente e de presenças, ele existe em função do ser parmenideano, é uma artística face deste Ser, e 92 Em termos filosóficos, poder-se-ia dizer: não há necessidade do estabelecimento de todo um corolário de circunstâncias descritas a fim de não deixar dúvidas a respeito da específica "realidade" dos personagens e da história: estes são já, em si mesmos, em sua generalidade, perfeitamente reais. Em outros termos: no universo hiper-real de Kafka, os adereços realísticos normais são excessivamente fracos- a realidade suavizada do dia-a-dia, a qual não se dá em bloco, como em seus romances, é excessivamente diáfana portanto, todo artifício destinado, na - literatura "normal': a carregar de cores os personagens descritos, são dispensá veis quando extrapolam a mera característica de cunstâncias e das paisagens em um inscrição das figuras, das cir determinado mundo repleto e que não dá explicações de sua essência nem de sua existência. 1 10 ser no presente do indicativo, repleto e onipresente, de des dobramento frenético, sufocado de sobras, ao mesmo tempo guerra hiper-concentrada dos espaços no qual este mesmo Ser se dá, como já intuíra Heráclito. Esta luta perfeitamente surda, pesadamente silenciosa, urbana, de gabinete, (em contrapon to com os grandes estrépitos dos canhões da guerra aberta), é sentida por Kafka como um a estranha luta interior, a qual ele é e na qual perecerá (Cf. Heller, 1976, p. 50). Um espantoso descompasso entre o interior e o exterior do Ser - eis o epi fenômeno desta luta: ((os relógios não estão iguais: o interior avança alucinadamente num ritmo diabólico, demoníaco, ou, na melhor das hipóteses, anti-humano; o exterior, prossegue em seu ritmo habitual. Que mais pode ocorrer, senão uma se paração violenta; e é isto o que ocorre, ou ao menos, eles se chocam de um modo terrível" (Kafka apud Heller, 1976, p. 52). Eis o seu tempo, simultaneamente de sua vida e de sua morte, vida de um ocaso e morte de uma era. Os espantosos mundos de Kafka são o resultado de uma tensão extrema, que culmina assim em neste espectro de hi per-realidade, de concentração de Ser, para a qual os parâme tros normais, sejam da realidade cotidiana ou interpretada, sejam da fantasia e da loucura, sejam da concretude literária e da recorrente normalidade de criação de mundos sucessivos de sentido, são simplesmente insuficientes. Todos os mundos dão-se ao mesmo tempo: trata-se de uma literatura visceral mente anormal - não dá, nem à intuição nem à razão, razões para crer que possam vir a captar sua essência e, talvez por isso, exerça um tal poder de sedução sobre espíritos inquietos, por sua vez imersos em tensão. Tensão absoluta, não admite relatividades sem, porém, utilizar-se de quaisquer argumentos para declinar desta admissão: chancelas e contra-chancelas são aqui, simplesmente, fracas demais. O turbilhão é excessi vamente forte, plastificado embora na sucessão das palavras; o milagre é que as palavras consigam, apesar da intensidade que pulsa sob elas, permanecer razoavelmente conectadas. A arte 111 literária de Kafka é uma arte improvável: nada, nenhuma aná lise prévia, poderia prever algum tipo de sucesso nesta tarefa ingrata à qual o autor se propôs - des-neutralizar a realidade, neutralizando a expressão em uma lógica excessivamente in teligível - desde que sejam abandonados os parâmetros nor mais, mornos, razoáveis, medíocres, de inteligibilidade. As raízes desta tensão hiper-concentrada, desta incômo da criatividade em contínua transmutação na direção de uma embriagadora estranheza, desta hiper-realidade, interessam sobremaneira à filosofia que pretende se aproximar dos cons titutivos e das raízes profundas do século XX. E isto porque exatamente este é o século XX: o mundo das realidades su focadas, onde os triunfos esmagam as sementes abortadas do novo. Kafka descobre o Ser presente em sua presença plena e, portanto, perfeitamente indiscutível; excesso de concentração de um Ser essencialmente não triunfante, mas antes incomo damente espalhado ao longo da infinidade dos instantes, ex cessivamente opaco. Cada palavra com uma auréola de discri ção, sugerindo muitíssimo mais do que diz - a obra kafkiana destila um humor muito particular, tão particular que não tem espaço cativo no circo da história: tem de criar seu pró prio espaço nos poucos interstícios do bloco de realidade que continuamente traduz. A obra de Kafka: uma grande, incom parável descoberta - o desvelamento do hiper-realismo antes e depois de qualquer realismo e idealismo. A espantosa solidão Esta descoberta, porém, não é simplesmente reproduzí vel. Ela tem como condição a situação de extremada solidão do autor, a solidão pertinaz que o perseguiu desde a infância, a mesma espantosa solidão de Gregor Samsa ao se perceber im pessoalmente excluído da comunidade humana, do Artista da 1 12 Fome em sua jaula, dos desencontrados segmentos da Muralha da China, do assustado animal da Construção ou de Joseph K. em todos os momentos de sua vida ao longo do Processo, não obstante os diálogos e as mulheres. Em Kafka, o coletivo real não existe, a não ser talvez como desejo distante de humanida de - como quando Karl Rossmann observa não sem expectati va a multidão no porto, ou como sombra amorfa, automática, em Josefina, a cantora; não existe a inter-humanidade, ape nas a humanidade solitária, que ao renunciar à coletividade renuncia também aos vícios coletivos; humanidade expres sa de uma vez para sempre em figuras dela sobrecarregadas, repletas de uma carga não intersubjetivamente compartilhá vel - um tempo pesado, uma figura da essência dos tempos modernos, um presente que é, antes de tudo, um estranho passado não-correspondido. Uma solidão cuja obviedade nos personagens é intensa, chocante, de realidade indubitável, e que dispensa completamente circunvoluções explicativas, ate nuações semânticas condescendentes, que pudessem iludir o leitor levando-o a pensar que a realidade não é tão intensa quanto aparece. É esta solidão que permite o verdadeiro corte vertical nas estruturas da realidade executado por Kafka. A solidão, a espantosa solidão em sua crueza e ausência de malí cia estética, conta-se no rol das mais profundas das realidades do mundo, e a mais bem captada por Kafka, trazida por ele - sem eufemismos à consciência de uma época perdida. 93 - 93 "A igualdade, ou intrigante semelhança, de um enorme número de objetos é um dos mais persistentes motivos de Kafka. Todas as espécies de seres híbridos pos síveis aparecem sempre aos pares, muitas vezes com a marca do infantil e do bobo, oscilando entre a bondade e a crueldade, como os selvagens nos livros infantis. A individuação tornou-se tão difícil para os homens, c é ainda hoje tão incerta, que eles são tomados por um susto mortal assim que se levanta um pouco o seu véu. Proust estava familiarizado com o leve mal-estar suscitado pelo reconhecimento da semelhança com um parente longínquo. Em Kafka, o mal-estar se transforma em pânico. O reino do déjà vu é povoado de sósias, revenants, bufões, dançarinos hassídicos, meninos que imitam o professor e de repente adquirem o aspecto de anciãos arcaicos. Em certa passagem, o agrimen sor [de O castelo, R. T. S.] duvida que os seus auxiliares estejam realmente vivos" (Adorno, 1998, p. 249). 113 Esta solidão se apresenta, por outro lado, de forma "purà': não há espaço para intimidades ou muros bem -construídos em torno a uma mônada especial, escolhida para simbolizar todas as outras - aliás, toda sua obra assemelha-se a um desa bar sincopado de muros e muralhas de todo tipo que aparen temente permanecem inabaláveis. Em seu trabalho não há símbolos privados, como nas obras simbo listas, nenhum fragmento cristalizado de sensações íntimas carre gadas de misterioso significado; nem há nele, à maneira dos expres sionistas, qualquer ensaio de novas atitudes da alma, mais de acordo com o novo ritmo da sociedade moderna. Em vez de tudo isso, o leitor defronta-se com o espetáculo chocante de uma alma mira culosamente sensível, incapaz de ser razoável, cínica, resignada ou rebelde ante a perspectiva da eterna danação (Heller, 1976, p. 1 00). Todos estes adereços, estes fragmentos de explicação, são desnecessários. Nenhum eufemismo, ainda que "negati vo" (exagerando nas cores do trágico, acentuando-as a ponto de destacá-las definitivamente dos tecidos da coloquialidade), pode ser utilizado; neste mundo, há apenas a realidade, um mundo "torturadoramente familiar". Heller diz, [ ] inquestionavelmente semelhante ao do próprio leitor: um cas telo que é simples castelo e "simboliza" apenas o que todos os cas telos simbolizam: poder e autoridade; uma burocracia que se afo ga num dilúvio de fórmulas e fichas; uma obscura hierarquia de funcionalismo que torna impossível encontrar a pessoa devida mente autorizada a cuidar de um caso determinado; funcionários que fazem horas extraordinárias e não chegam a coisa alguma; inumeráveis audiências que elidem o assunto; estalagens onde os camponeses se reúnem, e garçonetes que servem os funcionários (Heller, 1 976, p. 1 00). ... A este elenco se poderia juntar as infinitas precauções de segurança do animal de A construção, ao final inverificáveis e inúteis; o esquecimento que o Povo dos Camundongos devotará 1 14 a Josefina, a cantora, quando sua voz se calar definitivamente;94 a inutilidade dos ingentes esforços do Artista da Fome na busca solene da auto-perfeição e da tolerabilidade da sobre vivência, a indefinição entre a vida e a morte do Caçador Graco - tudo isso configura um maciço ancestral, no qual cada palavra �em excesso é um pecado imperdoável porque inútil. Em todos os casos, não há espaços para artifícios retóri cos ou para sutilezas literárias: a realidade simplesmente ocu pa todos os espaços, é una, intensa e indiferente. A realidade de Kafka é a solidão - os termos "solidão" e "realidade" sofrem de uma quase convertibilidade. Vida excessivamente concen trada em um determinado pólo de auto-referência solitária, um ponto focal que não gostaria de assumir tal responsabili dade, mas a assume, a bem da interpretação dos tempos, e in terpretação extremadamente sincera, da qual a mediocridade não ousa se aproximar: toda mediocridade recai no ridículo, na evidência de seu vazio, ao simplesmente ousar tentar inte ligir um ritmo que definitivamente não é o seu. Esta foi a vida do autor Franz Kafka em seu insuportável escritório burocrá tico: o ter de traduzir o quanto a mediocridade do mundo lhe é estranha, sabendo, não obstante, que tal explicitação é em si impossível e destinada lamentavelmente ao fracasso - pois pertence à essência da mediocridade entender-se não-estra nha, nem a si mesma, nem a nada, de tal forma invade os es paços, como o odor da decomposição que se dissemina pelos espaços e que narizes pouco sensíveis ou já acostumados nem ao menos percebem mais; quem nunca experimentou o que é vida não aguenta evadir-se do estado de morte. Kafka f areja a decomposição dos tempos. Sua vida, sua solidão, foi ter de li dar com esta incomodidade; sua arte, oferecer, de forma extra ordinariamente indubitável, esta incomodidade à posteridade. 94 "Possivelmente, portanto, não sentiremos muita falta, mas Josefina, redimida da canseira terrena - a seu ver preparada para os eleitos - se perderá alegremente na incontável multidão de heróis do nosso povo e em breve - uma vez que não cultiva mos a história- estará esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da reden ção'' [de "Josefina a Cantora ou O Povo dos Camundongos" (Kafka, 1995, p. 58)). 1 15 A figura de Kafka se insere com clareza na última gera ção razoavelmente caracterizável como pertencente ao grande movimento de assimilação judaico-alemã em sua última fase - um movimento histórico extremadamente complexo - mes mo sendo o contexto do escritor considerado precisamente em suas particularidades. Este movimento de assimilação, remontando aos tempos do Iluminismo alemão e tendo em Moses Mendelssohn um de seus inspiradores mais diretos, significava, por si só, uma situação de extrema tensão que se inscrevia no cruzamento entre vidas particulares e contextos históricos coletivos. Os pais, as gerações imediatamente ante riores em processo de assimilação, haviam construído, apro veitando a disponibilidade histórica relativa e com grandes es forços, seu espaço social; o que é válido para Hermann Kafka o era também provavelmente para muitas famílias com filhos menos conhecidos: Filho de um açougueiro do interior, seu pai (de Kafka) foi criado como checo e, após anos de labuta, por esforço próprio, tornara -se próspero negociante, passando-se para o lado dominante, o dos alemães, sem, no entanto, chegar ao domínio completo da lín gua escrita destes - "foi capaz de sobrepujar os checos, depois os alemães, logo os judeus [ ...] não seletivamente, mas em todos os aspectos e, no final, restou apenas ele" (Heller, 1976, p. 18). O que foi válido para Kafka, e que ele precisou com tal clareza - que os filhos mantinham "as patas traseiras atoladas no judaísmo paterno, enquanto as dianteiras não se conse guiam firmar em terreno novo. O desespero daí resultante era sua inspiração" (apud Heller, 1976, p. 1 8 - 1 9) - é provavelmen te um lugar comum para todas as grandes produções judaico -alemãs da época, mas também para a simples sobrevivência em meio ao tumulto dos tempos e à incerteza geral reinante, que não era, naturalmente, apanágio de um determinado con texto particular, mas penetrava a cultura como um todo. 1 16 Mas esta particularidade cultural não permanece fecha da em si mesma; ela sugere a possibilidade de pensá -la como parâmetro interpretativo da tensão cultural em geral. O que se dá é que, ali, os frutos desta tensão criativa floresceram corn intensidade inusitada. As tensões individuais produtivas da época, das quais Kafka é uma instância paradigmática, tinham lugar porque se davam em uma cultura, ela mesma, tensio nada ao extremo, repleta de pontos de contato internos e ex ternos entre diversas dimensões, pontos de contato que eram, também, pontos de atrito, e atrito forte. Assim, Kafka não pode ser entendido se não o for no fulcro criado exatamente por esta excessiva aproximação do diferente: culturas diferen tes, línguas, individualidades e cosmovisões profundamen te diferentes. Sem isso, sem estes incômodos e estes choques dilacerantes, teria permanecido um escritor excessivamente circunstanciado para passar, com tal autoridade, à universa lidade do sentido. Em outros termos: é porque existe a tensão que existe a construção. São termos mutuamente referentes e, poder-se-ia adiantar, até certo ponto generalizáveis. O certo é, porém, que nenhum momento de intensa tensão cultural deixou de dar à luz a produções que podem levar a re alida de a coincidir consigo mesma, ou seja, que podem permitir o rompimento localizado ou mais generalizado do envoltório ideológico - do envoltório de insustentabilidade real - da To talidade, das hegemonias bem-pensantes. Dessa forma, as camadas em processo final de assimila ção concluída (acontecimento sobremaneira raro, e cuja ra ridade se deve, também à infinidade das variáveis envolvidas para além das vontades pessoais) ou abortada (situação mais comum e dolorosa, mais tensa e profícua) eram depositárias de vários níveis de tensão potencialmente produtiva, ou pro dutiva em níveis inusitados. Além da tensão particular a que se viam compelidas por seu próprio status de indefinição, encar navam também a esperança de objetivação da tensão reinante além do mundo de suas particularidades, ou seja, na cultura 1 17 europeia em geral, em estado de indefinição e profundo mal -estar na situação de virada de século e de sonhos já a estas al turas mais ou menos destroçados. Não detinham, obviamente, o monopólio da criatividade, mas esta se exprimia, ali, de for ma particularmente dolorosa, terrivelmente intensa e impos tergável, muitas vezes sufocante e desesperançada, outras vezes cuidadosamente sublimada e "bem organizadà' - mas sempre penetrante, penetrante no mundo do consenso tolo e da im previsão, desnudando definitivamente o rei que "já está nu': Esta criatividade se traduz, em Kafka, sobre a forma de um estranho e incisivo já referido corte vertical nas sucessivas camadas da realidade, até que nenhum disfarce mais sobrevi va: nenhuma meia-palavra poderá, a partir de então, ocupar o espaço da palavra inteira; nenhuma amplidão, nenhum hori zonte sedutor se substitui ao bloco que ocupa o espaço. E, por isso, é Kafka um autor definitivo. A tensão e a condenação à vida: "Primeira dor" A intensidade da escrita kafkiana, sua densidade pe netrante, pouco compassada, pouco moderada, que não faz concessão de nenhuma espécie a interpolações explicativas e circunstancialismos atenuantes, naquilo que se pode enten der como a realidade, a literatura despida do desnecessário esta particular intensidade pode ser percebida em alguns contos tardios do autor, como, por exemplo, em "Primeira dor'', escrito entre janeiro e fevereiro de 1 922 e pertencen do, portando, ao conjunto das últimas obras do escritor já há tempos manifestamente doente (C f. Carone apud Kafka, 1 995). Trata-se de uma bela e concisa fábula; em cerca de quatro páginas se descreve com extrema intensidade e suti leza o processo de inserção de uma determinada <<subjetivi dade" l)a vida, um atrito doloroso, amadurecedor, inelutável, - 118 dominado pelo tempo; e, ao longo da descrição, o discurso - nota característica do Kafka maduro - permanece a uma prudente distância do leitor. Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, depois peJo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio[ .. .] (Kafka, 1 995, p. 9). Eis que o artista constrói seu mundo, um mundo que lhe é próprio, bem organizado, campo de exercício da perfeição de sua arte, alimento de sua sobrevivência, um mundo particular modesto, mas seguro e bem ordenado, otimamente constituí do. O mundo externo participa de certa forma da manutenção deste mundo particular, circunscrito, porém pacífico, ajuda a manter a ordem - "Todas as suas necessidades, aliás bem ínfi mas, eram atendidas por criados que se revezavam [ ... ] " (Kafka, 1995, p. 9). A este artista "extraordinário e insubstituível" era concedido o direito a uma tal excentricidade, e mesmo quan do o olhar do público, quando da execução de outros núme ros, se voltava para ele, escapava à ira dos diretores. O artista dó trapézio mantinha assim a perfeição de sua arte, em um âmbito de existência humana restrito, porém dentro dos limites da tolerabilidade, do equilíbrio, congruente com seu mundo; com exceção de algum colega ou funcioná rio, que com ele conversava ou lhe dirigia a palavra em tom ((respeitoso mas pouco inteligível" ( Kafka, 1 995, p. 1 0), pou co era o contato do trapezista com outros seres - uma vida penetrada pelo silêncio, pela calma das significações claras e bem-controladas: [ . .. ] o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qua]quer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura- que quase fugia à vista- onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que a1guém o observava, exercia sua arte ou descansava (Kafka, 1995, p. 1 0). 1 19 Ninguém observava propriamente o seu mundo; seu mundo não pertencia à ordem das realidades observáveis. Pos tava-se alto demais para a interpenetração com mundos estra nhos: era ali que transcorria sua vida, inacessível a olhos· baixos. Mas a paz, a vida tranquila do trapezista, é perturbada; as viagens inevitáveis do circo, os deslo� amentos na direção de novas praças de apresentação, tudo isso, não obstante os esforços do dono do circo, se constituía em perturbação da harmonia interna do artista do trapézio "Por mais bem suce didas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezistà' (Kafka, 1995, p. 11). Esta paz relativa, esta sobrevivência tolerável, não está destinada a durar. Em uma das viagens, o trapezista segreda ao empresário, que o acompanhava, que dali em diante neces sitaria sempre de dois trapézios, e não de apenas um, para a realização de seu número. Em nenhuma hipótese concorda ria em trabalhar o artista com apenas um trapézio - "parecia estremecer só com a ideia de que isso acontecesse novamen te" (Kafka, 1 995, p. 1 1 ) - não obstante as promessas e a co miseração do empresário. Tudo foi inútil, porém; o ritmo se intensifica - todas as promessas do empresário tinham sido inúteis para abordar a solidão e a intensidade do sentimento do trapezista. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamen te assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou -o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágri mas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. Mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?" Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prome teu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio [ .. .] Foi assim que o em presário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto (Kafka, 1995, p. 11-12). 120 Não há o que penetre no desconsolo do trapezista, o que o justifique e o anule, uma vez acontecido: unicidade espanto sa e definitiva do indivíduo, percepção de indigência; apenas a exaustão humana se sobrepõe, em termos muito relativos, à dor humana. Trata-se de uma espécie de protótipo perfeito do nascimento. Nenhuma linguagem cicatriza o ferimento vital, a ninguém é dado anulá-lo para sempre - a inscrição no tempo e no espaço, no decorrer indiferente dos fatos, dos sucessivos aconteceres, esta inscrição incômoda e real é definitiva, pois a condição humana não pressupõe gradações. Assim, nenhum consolo é definitivo, nenhum consolo é propriamente real; bem o sabe o empresário, o qual, mais experiente, mais realis ta, não guarda ilusões de redenção: a cadeia de pensamentos o cerca, envolvendo-o na realidade presenciada, em sua gravi dade. Lúcido, embora não excessivamente lúcido, o empresá rio compartilhava da preocupação: Mas ele mesmo não estava tranqüilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pen samentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam ces sar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista de trapézio (Kafka, 1 995, p. 12). Está iniciada a tensão vital, deu-se a solitária e definitiva inscrição na vida; todo o resto pertence ao campo improvável das linguagens justificadoras, sempre atrasadas em relação aos fatos, às expressões sucessivas do peso da realidade. Não há nenhuma esperança de o artista do trapézio voltar ao estado anterior, ou seja, quando ainda não havia experimentado a Primeira Dor; a dor primigênia que é também, de certo modo a dor final; a dor efetiva da inserção na realidade, este parto ao contrário, é única e definitiva - ela caracteriza a tensão vital que se expressa na sobrevivência apesar dela, ainda antes dela, 121 definitivamente existente sem surpresa excessiva, sem descon tentamentos inúteis, sem existencialismos -: apenas consigo mesma - solitária. Um Kafka al modo riverso, com espaço para a preocupa ção genuína de alguém por outrem? Não, apenas um Kafka hi permaduro, de uma sobriedade absoluta que faz justiça a uma intensidade absoluta. O ser e o frenetismo de ser: o tempo sem espaços de "Uma mulherzinha" '�i de mim!" Exclamou o camundongo, "o mundo está ficando cada vez menor. De início era tão grande, que eu me apavorava. Vivia correndo para lá e para cá, e só me tranqüilizava quando via porfim, paredes bem distantes à esquerda e à direita. Mas o espaço entre essas paredes estreitou-se tão rapidamente que já me encontro na última câmara, e vejo ali no canto a ratoeira onde de certo esbarrarei". "Ora, basta-lhe escolher outro caminho', disse o gato", antes de engoli-lo. Franz KAFKA. Uma fabulazinha Este conto, exercício de extremo virtuosismo narrativo (uma das últimas obras do autor), mantém da primeira à úl tima linha um ritmo frenético, completo, sem hesitações nem espaços. A banal história da mulherzinha incomodada pela existência do narrador acaba por se revelar ao fim uma anti -fábula, sem espaços para metáforas, respirações ou pausas revitalizantes. O notável deste texto é exatamente que ele não possui pausas em nenhum sentido, não possui espaços abertos para considerações, nenhuma construção é plurívoca. As pa lavras dizem apenas o que dizem, e no ritmo infernal em que dizem. Os acontecimentos têm o mesmo peso que as conside rações do autor, o exame das possibilidades que se lhe suge rem para poder lidar com o incômodo da mulherzinha: é que 122 tudo, neste texto, tem o mesmo valor, um mesmo sentido de repleção e asfixia num tempo e espaço infinitamente estrei tos, refletido na infinita estreiteza mental da mulherzinha que, exatamente por isso, é absoluta.. Pois a pequena mulher invade todos os espaços com sua presença; toda ela é frenesi e sua presença é já pura tensão, ou, pelo menos, notável retesamento; denota uma definitiva in comodidade emoldurada por uma agilidade que garante que nada, nenhum nicho da realidade, lhe escapa; está, sempre, prestes a devassar todos os escaninhos da existência. É uma mulher pequena; embora esbelta por natureza, anda muito espartilhada [ . . ]. Apesar do espartilho seus movimentos são ágeis, . naturalmente ela exagera essa mobilidade, gosta de conservar as mãos nos quadris e vira a parte superior do corpo para o lado com um arremesso surpreendentemente rápido (Kafka, 1995, p. 13). Mas a incomodidade não permanece neutra: Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qual quer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela (Kafka, 1995, p. 1 3 - 1 4). Eis aí o início de uma situação penosa; a mulherzinha não pode ignorar a existência do narrador, com que tudo acabaria - permanece na obsessão do sofrimento irresolvido: [ ... ] todo esse (meu) padecimento não é nada em comparação com sua dor" (Kafka, 1995, p. 14). Esse sofrimento se enraíza também no fato de que a mulherzinha desenvolveu uma ideia fixa: "Mas mi nha evolução também não a preocupa; ela não se preocupa con1 outra coisa que não seja o seu interesse pessoal, isto é: vingar-se do tormento que provoco nela e impedir o tormento que, vindo de mim, a ameaça no futuro, (Kafka, 1995, p. 1 4). O mundo " 123 da mulherzinha é sem virtualidades nem possibilidades novas, pois tem como sinônimo uma ide ia fixa; todo o seu sentido deu-se de uma vez, inteiramente, no incômodo extremo e no · sofrimento particulares, no presente infinito. Presente, passado e futuro resumem-se nisso: incômodo sofrimento e apreensão advinda da continuidade desse sofrimento. O narrador nada pode contra isso; sua ação é inútil e sem sentido: "Já tentei uma vez apontar-lhe o melhor caminho para pôr um fim a esse dissa bor permanente, mas com isso levei-a a uma comoção tamanha que não repetirei mais a tentativa" (Kafka, 1995, p. 14). Não há tempo para tentativas ou apaziguamentos, para a racionalida de ou a ponderação bem -comportada: o tempo está completa mente ocupado, repleto até o seu último instante dolorosamente contraído no presente, preso absolutamente a si mesmo. É tão intenso o frenetismo do aborrecimento, tão com pleta a carência de alternativas, que o narrador quase cede à tentação de uma espécie de paranóia particular " [ . . ] suspei to até que ela - pelo menos em parte - só se põe doente para, desse modo, dirigir a suspeita do mundo contra mim" (Kafka, 1 995, p. 1 5). Talvez, nesse espectro extremo, um esforço con siderável, por parte do narrador, pudesse conduzir a um alívio do estado de tensão presente. Mas os esforços de modificação do narrador, na tentativa de aplacar ou minimizar a irritação da mulherzinha, não têm nenhuma esperança de êxito - "ne nhum êxito me foi concedido" (Kafka, 1 995, p. 1 8). Pois a questão é anterior, realmente primordial (( [ . ] é uma questão de princípio; nada pode suplantá-la, nem mesmo a supressão de minha pessoa; a notícia de meu suicídio, por exemplo, pro vocaria nela acessos de fúria sem limites" (Kafka, 1 995, p. 1 8). O tempo nunca nasceu, antes deu-se, de uma vez para sempre, sem passado nem futuro, paralisado em si mesmo. Não há ne nhuma possibilidade de retomar o caminho celeremente per corrido, assim como não há a menor possibilidade de a racio nalidade intervir no caso com felicidade - «Ora, não posso imaginar que uma mulher tão aguda não enxergue tão bem - - 124 . . . como eu tanto a falta de perspectiva de seus esforços, quanto a minha inocência e a minha incapacidade para correspon der, mesmo com a melhor das vontades, às suas exigências, (Kafka, 1 995, p. 18). Por nenhum lado, desde nenhuma pers pectiva, é possível romper o círculo diabólico do frenetismo; trata-se de um redemoinho monstruoso, um mundo perfei tamente fechado, totalmente sem camadas subjacentes àquilo que dele é apreensível, ao seu epifenômeno total - sem inters tícios, em uma paradoxal transparência perfeitamente opaca. A irracionalidade franca do caso impede que se expresse com clareza seu real conteúdo; o amigo consultado a respeito che ga a sugerir um conselho disparatado, aconselhando o narrador a viajar por algum tempo - mas nenhuma racionalidade externa penetra na carapaça do auto-referente (Kafka, 1995, p. 19). Ora, o caso não é de viagem; em que qualquer viagem poderia contribuir para amenizar a intensidade da situação? Na verdade, esta intensi dade já está dada de modo completo, em plena completude de Ser que se afoga em si mesmo, não podendo nem se atenuar, nem se exacerbar, podendo, apenas, sufocar-se em si mesma. Ocorrem, sim, mudanças; mas essas mudanças nada têm a ver com a essência da questão - apenas com a percepção des ta por parte do narrador, onde este já reserva um espaço para a intrusão de um crescente nervosismo que se insinua no todo Como mostram reflexões mais precisas, as mudanças que a ques tão parece ter sofrido no correr do tempo não são alterações do assunto em si, mas apenas um avanço na visão que tenho dele, na medida em que essa visão se torna, em parte, mais serena, mais máscula, mais próxima do cerne e, em parte também, adquire um certo nervosismo sob a influência insuperável dos contínuos aba los, por mais leves que estes sejam (Kafka, 1995, p. 1 9-20). É o início de um contraponto complexo - de um lado, uma crescente serenidade no trato da difícil questão; de ou tro, e apesar desta serenidade, uma inquietação visceral, de origem irracional, logo superada, mas que, de algum modo, 125 acaba deixando algum tipo de vestígio atrás de si, uma seque la, em uma espécie de antevisão. A sua superação, porém, não advém de seu enfrentamento; é a ausência de enfrentamento, a manutenção do quase-insuportável, que se faz presente no dia-a-dia de modo mais suportável, não para o narrador ou um ator qualquer, mas para a situação como um todo - situa ção preenchida por irritação e sua manutenção, em um ritmo sem desvios de sua lógica - "fico mais calmo diante da coisa quando creio reconhecer que uma decisão, por mais próxima que pareça estar, não virá [ ... ] nada de decisões, nada de expli cações [ ... ] o mundo não tem tempo para prestar atenção em todos os casos" (Kafka, 1 995, p. 20). Nada no mundo é capaz de conduzir à inelutabilidade de uma decisão, quando todos os atores potenciais, mergulhados na anomia, alimentam-se de sua própria inutilidade, inutilidade para romper a estrutura rítmica compacta e para inserir, no corpo da questão, a mais leve sugestão de uma mudança real: No fundo porém sempre foi assim, sempre houve esses especta dores inúteis das esquinas e esses inúteis consumidores de ar, que sempre desculparam sua proximidade de modo superastuto [ ] sempre tiveram o nariz cheio de faro, mas o resultado disso tudo é que apenas continuam aí. A única diferença é que aos poucos fui conhecendo e distinguindo as suas caras; antes eu acreditava que viessem de todos os lados, sucessivamente, que as dimensões do caso aumentavam e forçariam por si mesmas a decisão; hoje julgo saber que estavam todos ali desde sempre e que nada ou muito pouco têm a ver com a chegada da decisão (Kafka, 1 995, p. 20-21). ... Não há atividade de nenhuma espécie em termos reais; apenas uma passividade doentia, excessivamente presente, que avaliza com sua existência o grande movimento da engrena gem, desproporcional às dimensões reais do caso, de toda for ma ((pouco tendente a me intranquilizar" (Kafka, 1 995, p. 2 1 ) . Mas o todo é, de certa forma, intranquilizador; a ausên cia absoluta de linguagem, a obsedante rotação do caso em 1 26 torno ao seu próprio eixo, a pertinácia infernal da irritação da mulher, sua irracionalidade extrema que se alimenta de si mesma, sua anti-discursividade autodestrutiva, a falta de no vidades reais a questionar esse todo compacto, tudo isso não pode deixar de inquietar - ainda que o narrador, humana mente, tente eufemizar a intensidade dessa inquietação: Não tem nada a ver com o sentido real da coisa o fato de que com os anos me tornei um pouco inquieto [ ...]. Mas em parte trata-se apenas de um sintoma da idade[ ... ] mesmo que alguém, quando jovem, tenha tido um olhar um tanto à espreita, isso não é leva do a mal, não é notado nem por ele próprio; mas o que sobra na velhice são resíduos e cada um deles é necessário, nenhum é reno vado, todos ficam sob observação [ . . ]. Mas também aqui não se trata de uma piora real e efetiva (Kafka, 1 995, p. 21-22). . A condução final do texto, o último parágrafo, é sua sín tese: o surdo diapasão da insolubilidade de um todo auto-re ferente, sua adimensionalidade insignificante porém presente, sempre presente, um caminho pré- traçado, invisível, abafa do, anti-eloquente em sua rotatividade desumana, que habita exatamente as fronteiras entre uma consciência incompleta e uma inconsciência apesar de tudo auto-complacente: um con vite suicida à inamovibilidade do movimento dos dias, o suave rosnar de uma situação sem saída, a sedução em que se consti tui a ausência, no horizonte, da possibilidade de um espasmo libertador- apenas inércia, mas inércia pesada, infinitamente real, recorrente, habitante, como o caçador Graco, dos limites imprecisos entre a vida e a morte: Portanto, de onde quer que observe este pequeno caso, evidencia -se sempre - e nisso me apego - que, se eu o mantiver tapado com a mão, mesmo que seja bem de leve, poderei prosseguir ainda por muito tempo, calmamente, sem ser importunado pelo mundo, na vida que tenho levado até agora - a despeito de toda a fúria dessa mulher (Kafka, 1995, p. 22). 127 *** Afinal, que frenetismo é esse, tão completo, sem espe ranças de ruptura em sua mortificante solidez, em seu rede moinho incansável? Um fragmento das seis horas da tarde em qualquer grande cidade do mundo? Um navio repleto de refu giados, sem tempo de decidir o rumo a tomar e, não obstante, com os motores a toda máquina? Um conluio de políticos cor ruptos e tecnocratas ávidos por dinheiro? Um hospital lotado, uma maternidade lotada, em seu frenesi de sobrevivência, em sua vida palpitante, em sua semi-vida espasmódica? Um sis tema econômico suicida? O infinito das tensões que se criam entre indivíduos tão próximos uns dos outros que nada mais são - nada mais podem ser - do que massa, uma massa pós -moderna talvez, mas sempre massa? (Cf. Souza, 2010) O ar irrespirável, repleto de partículas excessivamente próximas umas das outras, em um atropelo apocalíptico? Talvez tudo isso, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, em uma sincronia absurdamente perfeita, porque total? Ser demais? Talvez, se o mundo contemporâneo pudesse ser dividido em mínimas partes, como a vida do narrador, talvez a maio ria destas partículas fosse já demasiado ontológica, demasiado pesada, tivesse como elemento de realidade a mesma intolerá vel espessura de insuportabilidade que caracteriza a irritação da mulher. Talvez o frenesi descontrolado das imagens exces sivas, dos estertores mortais, do dinheiro em turbilhão virtu al, da adoração do consumo, nada mais seja do que o aflorar, na superfície do inteligível, destas sementes em que se cons tituem tais partículas. Talvez a resignação e a inércia do fas tio desconsolado da "modernidade líquida" de Bauman nada mais seja do que uma morna consciência destes fatos, expe rimentada desde seu lado mais suave: aquele que "tapa com a mão, mesmo que seja bem de leve", os verdadeiros consti tuintes da "realidade" transformada então, na medida em que se constitua em um dos pólos de inteligibilidade do real, em 128 um foco de tensão real e insuportável, hiper-real, de ruptura da auto- inteligibilidade do bloco maciço em que se constitui a Totalidade. Pois, para perseguir o todo auto-referente em sua inesgotável capacidade de metamorfose, somente uma inte ligência de índole tão lúcida como a de Kafka, que o capta pela dimensão da - paradoxal, para quem sabe do que a To talidade é capaz - insignificância desta mesma Totalidade. É exatamente aí, neste ponto específico de captação, que Kafka, ao nos ((prometer" a luz, nos conduz, em realidade, à sombra mais luminosa e colorida que possamos conceber - aquela do auto-apaziguamento da crítica na eternidade do presente: ver dadeira atemporalidade mortal, agora sem nenhuma possibi lidade de refúgio nem eufemismo possível: (auto)retrato de um tempo perfeitamente asfixiado em si mesmo, legítima e etimológica a-gonia. Ser e a repleção de ser: a Totalidade maquínica de "Na colônia penal"95 Corno esclarecimento desta narrativa acrescento apenas que não só ela é penosa, mas que o nosso tempo em geral e o meu em particular também o são. Franz KAFKA a seu Editor, sobre Na colônia penal A colônia penal gira em torno ao aparelho de execução: "- É um aparelho singular, disse o oficial ao explorador, percor rendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho que ele no entanto conhecia bem" (Kafka, 1998, p. 3 1 ). É uma máquina, mas uma máquina especial, poderosa, que traduz de forma fiel as intenções do antigo comandante, seu inventor, 95 Para uma análise pormenorizada desse conhecido texto kafkiano desde o ponto de vista de categorias como "justiça" e "linguagem'� 129 onipresente embora morto, sempre certo, a um tempo "solda do, juiz, construtor, químico, desenhista" (Kafka, 1998, p. 39); embora inanimada, está animada por uma intensa dimensão de humanidade, mas uma humanidade despida de ·humano: o antigo comandante, já falecido, ali não está para apreciar a intensidade e a sofisticação de sua invenção - apenas o novo oficial, subalterno mas soberano, nomeado juiz na Colônia Penal, pode assumir a responsabilidade de acionar um apa relho tão perfeito, uma máquina tão incomparável. Uma vez posta a caminho, nada deterá a Máquina; nenhuma lógica que não a sua prevalecerá. Mas a Máquina não está apenas no aparelho de metal; está também na própria estrutura que ocasionará seu funcio namento. O condenado terá a sentença - "honrarás a teu su perior" inscrita na própria carne: nenhum tecido é imune à Verdade, pois ela atravessa a totalidade da realidade e é sempre Justa: "O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável" (Kafka, 1998, p. 4 1 ) . Trata-se de uma cul pa limpa, asséptica, sem hesitações, considerações ou resíduos de nenhum tipo - assim como a execução em si é limpa, pois o sangue do condenado e a água da limpeza "são depois con duzidos aqui nestas canaletas e escorrem por fim para a cana leta principal, cujo cano de escoamento leva ao fosso" (Kafka, 1998, p. 44). Um Processo perfeito - nada sobra de impurezas, nem da Justiça, nem da Injustiça, nem da Máquina: o impuro é subsumido na perfeição do ato realizado, irretocável, de uma vez para sempre inscrito no rol infinito dos acontecimentos. Bem estava o explorador interessado em entender a es crita que seria inscrita no corpo do condenado, "mas enxer gava apenas linhas labirínticas, que se cruzavam umas com as outras de múltiplas maneiras e cobriam o papel tão den samente que só com esforço se distinguiam os espaços em branco entre elas" (Kafka, 1998, p. 46). O interior da Máquina é sempre infinitamente complexo, ninguém sabe o que diz exatamente (pelo menos não em um ato de inteligência clara 130 e simples), nem o que realmente expressa, nem como fun ciona, de onde afinal provém seu discurso, mas todos devem saber que funciona. A penetração em sua inteligibilidade é di ficílima: "Não é caligrafia para escolares. É preciso estudá -la muito tempo. Sem dúvida o senhor também acabaria enten dendo" (Kafka, 1998, p. 46) - como bem explica o oficial ao explorador. Sua Essência, porém, é apesar de tudo penetrável, uma vez separada do in essencial: "É preciso [ ... ] que muitos floreios rodeiem a escrita propriamente dita; esta só cobre o corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamen tos" (Kafka, 1998, p. 47). A Máquina, seus produtos, têm uma estrutura; mas esta estrutura não é o que parece - é infinita mente mais complicada e ornamentada. Nem tudo, porém, são flores. Ainda a mais perfeita Má quina tem pontos de atrito entre suas delicadas partes cons titutivas internas. Durante a demonstração da máquina feita pelo oficial ao explorador, ela range, apesar de toda sua per feição - '(Tudo entrou em movimento. Se a engrenagem não rangesse seria magnífico" (Kafka, 1998, p. 4 7). A sentença dá-se ao longo de um longo tempo, corres pondente à sua gravidade e à justeza de sua aplicação. Apenas a partir da sexta hora que decorre desde que o condenado pas sou a receber sua sentença em .seu corpo, ele principia final mente a entender - momento glorioso: Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendi mento ilumina até o mais estúpido [ . . . ] o homem simplesmente começa a decifrar a escrita [ . ] o senhor viu como não é fácil de cifrar a escrita com os olhos, mas o nosso homem a decifra com seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue mistura do à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e o soldado, o enterramos (Kafka, 1998, p. 48-49). .. 131 Mas é, como já dito, uma inteligibilidade difícil - "O ex plorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e, as mãos no bolso da jaqueta, observava o trabalho da máquina. O con denado também olhava, mas sem entender" (Kafka, 1998, p. 49) e este seu não-entendimento expõe sua nudez e sua im potência perante a Máquina: [ .. ] o soldado, com uma faca, lhe cortou por trás a camisa e as calças, de tal modo que elas caíram; o condenado ainda quis segurar a roupa para cobrir a nudez, mas o soldado o levantou no ar e arrancou dele os últimos trapos" (Kafka, 1998, p. 49). Uma correia da máquina rebenta, no momento em que ela é posta em movimento; mas o oficial não deseja que tal fato possa pôr em questão a excelência do conjunto, princi palmente quando se leva em conta sua infinita complexidade - cc- A máquina é muito complexa, aqui e ali alguma coisa tem de rebentar ou quebrar; mas não se deve por isso chegar a um falso julgamento do conjunto" (Kafka, 1998, p. 50). Afi nal, os recursos para a manutenção da máquina são cada vez mais limitados. O passado sempre foi melhor, e esta consta tação é sempre um bom pretexto para a intrusão do patético e do desconsolo na desordem que testemunha a decadência do presente: " . - Tanto o procedimento como a execução que o senhor está ten do a capacidade de admirar não têm no momento mais nenhum adepto declarado em nossa colônia. Sou seu único defensor e ao mesmo tempo o único que defende a herança do antigo coman dante. Não posso mais cogitar de nenhuma expansão do processo, dispendo todas as energias para preservar o que existe. Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de partidários seus; tenho em parte a força de convicção dele, mas me falta intei ramente o seu poder [ . . ] (Kafka, 1998, -p. 53). . Eis a oportunidade da grande questão, o grito lancinante que denuncia a traição de uma grandeza: "E agora eu lhe per gunto: será que por causa desse comandante e das mulheres 1 32 . que o influenciam deve perecer a obra de toda uma vida, como esta? - e apontou para a máquinà' (Kafka, 1 998, p. 53-54). Antigamente, as execuções eram acontecimentos públicos de imenso significado e alcance: Como era diferente a execução nos velhos tempos! [ ... ] A máqui na, polida um pouco antes, resplandecia ( ... ]. Diante de centenas de olhos [ . . . ] o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante [ ... ] . E então começava a execução! Nenhum som discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados; todos sabiam: agora se faz justiça ( ... ] . Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banháva mos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada! (Kafka, 1 998, p. 54-55). Tal constatação de decadência não exige por si só justiça? Não é esta exigência de justiça por si só, e um argumento racio nal, para a necessidade de preservação da Máquina? (([ ... ] Não é preciso tentar até o inexeqüível para conservar este procedi mento?" (Kafka, 1998, p. 60). Afinal de contas, a mudez relati va do explorador é encorajadora, terá este provavelmente sido também tocado pela Grandeza, e pertence a uma convicção de tonalidades meta-racionais do oficial, a um pensamento maior, que o explorador, em uma leitura de profundidade, aprova e admira a Máquina - " [ ... ] o senhor não chamou o meu pro cedimento de desumano, pelo contrário, de acordo com a sua percepção mais profunda, o senhor o considera o mais humano e o mais digno de todos, o senhor também admira este maqui nismo" (Kafka, 1998, p. 58). Mas o explorador se nega a ajudar o oficial a defender a máquina perante o comandante. O oficial percebe, então, ha ver chegado a hora de fundir-se com a Justiça: instalar-se-á na máquina e deixara que esta lhe injete a mensagem: ((seja justo,; mas esta mensagem é, conforme apresentada em sua caligrafia complexa, indecifrável para o explorador. Quando o oficial per cebe esta dificuldade, tenta ajudar o explorador - " [ ... ] seguiu as 1 33 linhas com o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel, como se não pudesse de forma alguma tocar a folha, para desse modo facilitar a leitura do explorador [ ... ] - Seja justo, é o que consta aqui, disse outra vez o oficial. - Pode ser, disse· o explora dor. - Acredito que sim:' (Kafka, 1998, p. 67-68). O oficial inicia então sua auto-imolação. Para surpresa do explorador, até os rangidos que ouvira anteriormente desa pareceram: homem e Máquina haviam finalmente se fundido em uma Unidade perfeita. O condenado estava fascinado com a perfeição e a suavidade da máquina - " [ . . ] as engrenagens literalmente o fascinavam, estava sempre querendo agarrar uma, ao mesmo tempo conclamava o soldado a ajudá-lo, mas retirava a mão com medo, pois logo aparecia outra engrena gero, que pelo menos enquanto começava a rodar o assustavà' (Kafka, 1 998, p. 73). A Máquina é uma figuração perfeita do Eterno Retorno, saudade eterna da tautologia. Esta suavidade interessante, porém, não dura muito; logo inicia a máquina a descontrolar-se, vibra excessivamente, de sencontra-se, acabando por dilacerar o oficial, o que somente deveria se dar à décima-segunda hora. E este não encontrara a paz que certamente esperava: . Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros haviam en contrado na máquina, o oficial não encontrou; os lábios se com primiam com força, os olhos abertos tinham uma expressão de vida, o olhar era calmo e convicto, pela testa passava atravessada a ponta do estilete de ferro (Kafka, 1998, p. 75). O oficial foi, assim, subsumido pela Máquina: entre gou a ela sua essência e sua existência. Caso se pensasse que a máquina dependia do oficial, estaria tudo acabado; mas a Máquina ressurge ainda que de forma inusitada. Em verdade, no assoalho da casa de chá, onde o antigo comandante estava enterrado, o explorador acompanhado do soldado e do con denado pôde ler esta profecia: 1 34 Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determi nado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai! (Kafka, 1 998, p. 77). A Máquina domina o tempo e torna o impossível possí vel. Suas engrenagens infinitas se reconstroem à medida em que se destroem ou são destruídas. Penetra na realidade e faz dela função sua: auto-legitima-se em seu crescimento. As possibilidades de evasão de seu controle são inexistentes pe las vias normais - "(O soldado e o explorador) provavelmente queriam forçar o explorador a levá-los consigo. Enquanto o explorador negociava com o barqueiro a travessia até o navio a vapor, os dois desceram a escada a toda pressa, sem dizer nada, pois não ousavam gritar. Mas quando chegaram embai xo, o explorador já estava no barco, indo embora - e, apesar de seus esforços, não conseguiram que ele os levasse junto': É praticamente impossível, sej a de que ângulo for, subtrair-se ao domínio da Máquina.96 Blumfeld e a condenação do Não-idêntico (Kafka e seus dois ajudantes) É recorrente, em Kafka, a famosa aparição de ajudantes inúteis que surgem como que do nada e se acoplam de modo incontornável à vida do personagem. Talvez os mais conhe cidos sejam os ajudantes de K. em O castelo, mas em muitos outros textos ocorre o surgimento dessas figuras, quase sem96 Conforme Adorno, em Kafka " [ ] cada frase traz a marca de um espírito seguro ... de si, mas também foi anteriormente arrancada da zona da loucura na qual todo conhecimento deve se aventurar para se tornar de fato conhecimento, principal mente em uma era na qual o sadio bom senso apenas contribui para reforçar o ofuscamento universal" ( 1 998, p. 249). 1 35 pre em duplas quase robóticas, ao mesmo tempo ridículos, patéticos e obtusos em sua extraordinária esperteza. E, em sua recorrência, tais personagens encarnam o eterno _fantasma do indiferenciado que, desprezível, não deixa de atormentar a quem seguem; não fazem nada útil, nada significam, pra ticamente não existem, mas atravancam a vida e a racionali dade do personagem ao qual seguem de forma exasperante, no constante relembrar, por suas presenças, da onipresença da mediocridade. Personificam a irracionalidade espantosamen te racional do indiferenciado, que os controla como que por via remota; variam sua dança persecutória e seu cínico sor riso apenas para deixarem clara a extensão de sua argúcia. E surgem em contextos que, exatamente, sugerem alguma pos sibilidade remota de individuação por parte do personagem a quem seguem, ou ao menos por ocasião da possibilidade de um encontro desse personagem com alguém ou algo que o arranque da estreita fresta existencial no qual se acha e que crescentemente o asfixia. Um dos mais virtuosísticos textos de Kafka, exemplar na apresentação rítmica desses duplos, é Blumfeld, um solteirão de meia-idade (Cf. Kafka, 2002, p. 30-63). É a ele que recorrere mos para fechar o arco de pequenas análises da obra kafkiana desse capítulo. I Blumfeld, um solteirão já meio idoso, subia uma noite ao seu apar tamento, o que era uma tarefa cansativa, pois morava no sexto an dar. Enquanto subia, ia pensando - como fazia com freqüência nos últimos tempos - que aquela vida totalmente solitária era bas tante penosa, que agora tinha de subir os seis andares em absoluto segredo para chegar, lá em cima, aos seus aposentos vazios; uma vez ali, outra vez em completo silêncio, vestir o roupão, acender o cachimbo, ler um pouco a revista francesa que, fazia anos, tinha 1 36 assinado, bebericar enquanto isso a aguardente de cereja prepara da por ele mesmo e finalmente, meia hora depois, ir para a cama, não sem antes precisar arranjar de novo, de cabo a rabo, a roupa de cama que sua empregada, refratária a toda instrução, dispunha de qualquer jeito, seguindo sempre o seu humor. Qualquer acom panhante, qualquer espectador dessas atividades teria sido muito bem-vindo a Blumfeld. Já havia pensado se não devia adquirir um cachorrinho. Um animal como esse é engraçado e principalmente grato e fiel; um colega de Blumfeld tinha um cachorro assim; ele não se dá com ninguém a não sei com o dono e se passa alguns instantes sem vê-lo recebe-o logo com grandes latidos, com os quais evidentemente quer expressar sua alegria por ter encontra do o dono, esse benfeitor extraordinário (Kafka, 2002, p. 30-31). Blumfeld é uma das características figuras de Kafka, exaustas de existência, que acabam por perceberem que, com um pequeno rearranjo, poderiam temperar sua vida com algo mais de tolerabilidade, porém que até mesmo tal rearranjo lhes está vedado; figuras de gostos modestos, relativamente enclausuradas, em sua vida privada, em quartos confortá veis em andares altos de pensões conduzidas por estranhos (a semelhança de Blumfeld com Joseph K. é patente nesse teor); solitários, sem por isso se mortificarem, gostariam de alterar, ainda que levemente, o ritmo rotineiro de seu existir. Um cachorrinho significaria uma novidade considerável; uma companhia engraçada e fiel, uma alteração clara na rigidez de gestos e rotinas quase mecânicos que devoram, pelo menos quando está em seus aposentos, os dias de Blumfeld. Porém a breve tentação da mudança é logo interrom pida; considerações as mais diversas, de ordem prática e do desconforto que a própria alteração da rotina por si só significaria, acabam por povoar compactamente os pen samentos do solteirão ((já meio idoso";97 especialmente a 97 É clássico, em Kafka, comparar essas figuras solitárias, e especialmente Blumfeld, a Kafka mesmo, aceitando-se que já se achava "meio idoso" aos trinta e poucos anos; não são essas comparações desprovidas de fundamento, pois, mesmo na casa paterna, Kafka viveu sempre de modo passavelmente recluso. 1 37 figuração de sua própria decadência refletida no olhar do animal j á velho parece decisiva para a manutenção do soli tário statu quo do presente: É certo, no entanto, que um cão também oferece desvantagens. Por mais que seja mantido limpo, vai sempre sujar a casa. É uma coisa que não se pode evitar; não é possível, toda vez que vai en trar no quarto, lavá-lo com água quente, e sua saúde tampouco agüentaria isso. Mas Blumfeld, por seu turno, não suporta sujei ra no quarto; a limpeza da casa é algo imprescindível para ele; várias vezes por semana discute com sua empregada, que neste ponto infelizmente, não é muito escrupulosa. Como é meio sur da, ele habitualmente a arrasta pelo braço aos lugares onde há algo a objetar quanto à limpeza. Por conta dessa severidade ele conseguiu que a ordem na peça corresponda mais ou menos aos seus desejos. Com a introdução de um cachorro, porém, ele iria levar sujeira por conta própria justamente ao cômodo até então cuidadosamente protegido. Pulgas, as eternas companheiras dos cães, também compareceriam. Mas, uma vez instaladas ali, não estaria distante o momento em que Blumfeld deixaria o quarto confortável ao cachorro e procuraria outro. A sujeira, no entanto, era apenas uma desvantagem dos cães. Eles ficam doentes e de enfermidades de cães na verdade ninguém entende. O animal fica agachado num canto, coxeando de lá para cá, gane, tem uma tos sinha, sufoca por causa de alguma dor; envolvem-no numa cober ta, assobiam-lhe qualquer coisa, empurram-lhe leite - em suma: tratam-no com a esperança de que seja, o que também é possível, um mal passageiro; mas em vez disso pode ser uma doença séria, repulsiva e contagiosa. E, mesmo que o cachorro permaneça sa dio, chega o dia em que ele sem dúvida envelhece e a pessoa deve tomar a decisão de se desfazer dele em tempo, e vem a ocasião em que a própria idade dela a olha através dos olhos lacrimejan tes do cão. É preciso, aí, atormentar-se com o animal meio cego, fraco dos pulmões, quase imóvel em virtude da gordura e com isso pagar caro as alegrias que o cachorro deu antes. Por mais que Blumfeld gostasse agora de possuir um cão, prefere sem dúvida subir mais trinta anos a escada a suportar mais tarde um cão velho desses, que, gemendo mais alto do que ele, se arrasta ao seu lado de degrau em degrau (Katka, 2002, p. 3 1-32). 1 38 Acima de tudo, a sujeira que atualmente é a muito cus to afastada se tornaria inevitável; Blumfeld tem, como muitos personagens kafkianos, o hábito maníaco da assepsia (reflexo do Kafka naturista?), e viver consiste para ele, em boa medida, em tornar-se e se manter existencialmente tão asséptico quanto possível, como que flutuando num mundo que passa velozmen te. Sabemos que seus personagens costumam pagar caro por essa sua obstinação por limpeza; passar incólume por um mun do contaminado é praticamente impossível; e Blumfeld, com sua vida bem arranjada, já não desejaria surpresas e tumultos em seus domínios que, com imenso custo, faz manter limpo ao seu feitio. E, não obstante, apesar de afastar a ideia de ter um cão, tal ideia retorna recorrentemente: é a tentação da vida: De modo que Blumfeld permanecerá só; não alimenta os apetites de uma velha solteirona que deseja ter perto de si um ser vivo subalterno qualquer, ao qual deve proteger, com o qual pode ser carinhosa e atender continuadamente, de tal maneira que, para alcançar essa finalidade, bastam um gato, um canário ou até pei xinhos dourados. E, se isso não for possível, contenta-se inclusive com flores na janela. Blumfeld, pelo contrário, só quer um acom panhante, um animal com quem não tenha necessidade de se pre ocupar bastante, a quem não prejudique um pisão ocasional, que em caso de força maior possa também pernoitar na rua, mas que, caso Blumfeld o exij a, esteja à disposição, de imediato, com lati dos, saltos, lambidas na mão. É a alguma coisa assim que Blumfeld aspira, mas que, como ele próprio percebe, não pode conseguir senão com desvantagens muito grandes, por isso renuncia a ela; entretanto, de tempos em tempos, como nesta noite, segundo a base de sua natureza e temperamento, volta aos mesmos pensa mentos (Kafka, 2002, p. 32-33). Esse itinerário especulativo, porém, à chegada nos aposen tos, é interrompido pelo inusitado que se anuncia. Duas entida des de difícil classificação vêm exigir atenção; nada que alguém possa entender ou esperar é a mensagem que sua despreocupa da existência saltitante traduz. As tentativas de Blumfeld de ali- 139 nhar o que infere apenas pela audição, esse arranjo normal da racionalidade que é apresentada ao absolutamente estranho, acabam por se provarem logo vãs: Quando está lá em cima, diante da porta de entrada, tira a chave do bolso; percebe um ruído que vem de dentro: é um rumor especial, de guizos, muito vivaz, muito regular. Como Blumfeld tinha aca bado de pensar em cães, o barulho lembra-lhe o que produzem as patas dos animais, quando batem alternadamente no chão. Mas não há patas que imitem o chacoalhar de guizos: não se trata de patas. Abre às pressas a porta e acende a luz elétrica. Porém não estava preparado para aquela visão. É uma bruxaria - duas pequenas bolas de celulóide, brancas, com estrias azuis, saltam sobre o assoalho, uma ao lado da outra e de cá para lá; quando uma bate no solo, a outra está no alto e assim, incansáveis, executam o seu jogo. Cer ta vez, no curso secundário, Blumfeld viu, durante uma conhecida experiência elétrica, bolinhas saltarem de forma semelhante, mas em comparação com aquelas, são esferas relativamente grandes; elas saltam no aposento livre e ninguém está realizando um expe rimento elétrico. Blumfeld agacha-se para observá-las melhor. São sem dúvida bolas comuns, provavelmente contêm em seu interior outras menores e são estas que produzem o barulho de guizos. Blu mfeld passa a mão no ar para verificar se elas não pendem, por aca so, de fios; não, elas se movem com completa autonomia. Pena que Blumfeld não seja um menino, duas bolas assim teriam sido uma alegre surpresa para ele, ao passo que agora tudo aquilo lhe causa uma impressão acima de tudo desagradável (Kafka, 2002, p. 33-34). As pequenas bolas não pendem do teto, não estão ligadas a nada; saltitam prisioneiras apenas do ritmo que se auto-im põem; nada as explica, e sua atividade consiste na sua própria existência; o retorno ao universo pueril, quando uma "bruxa ria" seria considerado apenas uma "maravilhà: é interditado; nunca há, em Kafka, caminho para trás ou espaço e tempo para retorno. "São sem dúvida bolas comuns": ligá -las a alguma pre tensão de causalidade não causa senão desconforto; tal como Odradek, aparecem sem estardalhaço, apenas com seu ruído compassado e não exagerado. Enfim, existências que causam a Blumfeld uma impressão ((acima de tudo desagradáver'. 140 Segue a racionalização; algum elemento de paranóia, de verdadeira "vergonha existencial': está sempre presente nesta como em geral nas obras de Kafka, mas as bolinhas simples mente estão lá, em sua atividade contínua e sem sentido. Mas as bolinhas trazem consigo a puerilidade em sua forma mais elementar: ao que parece, querem brincar. Certamente não é totalmente sem valor viver como um solteirão ignorado, mas em segredo; agora alguém, não importa quem seja, ventilou esse segredo e introduziu em sua vida essas duas ridícu las bolas. [ .. ) Blumfeld quer agarrar uma delas, mas as duas se desviam, recuando, e o atraem a persegui -las pelo aposento. "É estupidez demais" - pensa ele - "correr atrás das bolas desse jeito"; fica parado e segue-as com o olhar, enquanto elas, uma vez que a perseguição parece ter cessado, também permanecem no mesmo lugar. [ . ] "Mas eu tenho, apesar de tudo, de tentar pegá-las" volta ele a pensar e corre em direção a elas. [ . . ] Imediatamente as bolas fogem; Blumfeld, no entanto, com as pernas abertas, as impele para um canto da peça e, diante da mala que ali se encon tra, consegue agarrar uma bola. Ela é fria e pequena e gira em sua mão, evidentemente ansiosa para escapulir. A outra bola, como se visse a aflição de sua companheira, salta mais alto que antes c alarga os saltos até roçar a mão de Blumfeld; desfere um golpe contra ela; bate com saltos cada vez mais rápidos, muda os pon tos de ataque; depois, uma vez que não consegue nada contra a mão que encerra a outra bola por completo, pula mais alto ainda, querendo provavelmente atingir o rosto de Blumfeld, que poderia também agarrá-la e prender as duas em algum lugar; mas no mo mento parece-lhe aviltante tomar medida como essa contra duas pequenas bolas (Kafka, 2002, p. 34). . . . . "No momento parece-lhe aviltante tomar medida como essa contra duas pequenas bolas'': Blumfeld retorna à raciona lidade que ainda possui, e que não é desprovida de tudo aquilo que essa existência maquínica das bolas parece dispensar: sen tido de proporção, sentido de realidade mais ou menos forte, razoabilidade, enfim. As bolas, com seu ruído ilocalizável, um murmúrio de coisas sólidas envolto pela tênue cobertura de 141 celulóide, o obrigam a tentar com toda a racionalidade dispo nível, sem frestas, num anúncio típico de Kafka de um deses pero com sordina, achar um sentido, ainda que insignificante ou desprezível, para tudo aquilo: Pois afinal é divertido possuir duas bolas como aquelas; elas tam bém vão logo ficar cansadas, rolar para baixo de um móvel e dar sossego. A despeito dessa reflexão, porém, Blumfeld lança com uma espécie de raiva a bola de encontro ao solo: é um milagre que nesse ato a cobertura quase transparente de celulóide não quebre. Sem transição, as duas esferas recomeçam seus saltos anteriores, baixos, sincronizados por oposição (Kafka, 2002, p. 34-35). Assim, as bolinhas não apenas não substituem, com sua caricatura de vivacidade, qualquer ser vivo - como o sonha do cachorrinho ou uma outra companhia qualquer - como sua existência é uma espécie de atestado obsedante, reitera do, de ausência de vida; seu remexer-se, seus espasmos, sua sincronia sem sentido porém perfeitamente funcional em sua funcionalidade simétrica em alternância, conseguem apenas exasperar quem as tenta entender ou com elas se relacionar de algum modo. E - importante - por trás de sua aparente fragilidade, nada têm de frágeis; o tosco material de que apa rentam ser feitas trai - até ele - qualquer expectativa racio nal que Blumfeld ainda pudesse alimentar. As bolinhas não são amigas nem inimigas - são só um estorvo à mera ideia de ordem ou de razão, assemelhando-se, ao fim dos esforços de Blumfeld, muito mais a uma paralisia automática da própria ideia de racionalidade, invadida e como que aniquilada agora por essa existência pura, gemelar e saltitante. Sua forma - seu frenetismo ritmo - é seu conteúdo inteiro. Nisso consiste sua essência mais profunda: em jogar um jogo idiota, uma contra dança sem sentido, e cujo próprio ((sem sentido' vai como que sugando as energias, não apenas racionais, mas existenciais, de Blumfeld: 1 42 Blumfeld se despe calmamente, arruma as roupas no armário; cos tuma verificar sempre se a empregada deixou tudo em ordem. Uma ou duas vezes olha por cima do ombro para as bolas, que agora, livres da perseguição, parece até que o perseguem; avizinharam-se e saltam bem atrás dele. Blumfeld coloca o roupão e faz menção de ir até a parede do lado oposto para apanhar um dos cachimbos que estão pendurados ali num suporte. Involuntariamente, antes de se voltar, dá uma passada para trás com um dos pés, mas as bolas conseguem se desviar e não são atingidas. Quando então vai buscar o cachimbo, as bolas logo o acompanham; ele arrasta as chinelas, realiza passos irregulares mas cada passo, quase sem pausa, é seguido por um golpe das bolas, que acertam a marcha com ele. Blumfeld vira-se inesperadamente para ver como elas se comportam. Mas mal havia se virado as bolas descrevem um se micírculo e já estão de novo atrás dele; isso se repete todas as vezes que ele se volta. Como se fossem acompanhantes subalternos, pro curam não se deter diante de Blumfeld. Até esse momento, ao que parece, ousaram somente apresentar-se, mas agora já entraram em serviço. [ ... ] Até o presente Blumfeld, em todos os lances excepcio nais, nos quais suas forças não foram suficientes para dominar a situação, escolheu o expediente de agir como se não notasse nada. Muitas vezes isso ajudou e na maioria dos casos pelo menos me lhorou a situação. [ ... ] Agora também procede assim: pára diante da grade de cachimbos, escolhe um levantando os lábios, carrega -o meticulosamente, tirando o tabaco da bolsa, preparado para a ocasião e, ignorando as bolas, deixa-as saltar, despreocupado, atrás de si. Só hesita para ir até a mesa, pois ouvir os pulos coor denados e os próprios passos quase lhe causa dor. Por isso estaca, carregando o cachimbo por um tempo desnecessariamente longo e calcula a distância que o separa da mesa. Finalmente, porém, vence a própria fraqueza e percorre o trecho batendo os pés de tal forma que não escuta absolutamente as bolas. Seja como for, uma vez sentado, elas continuam a saltar atrás de sua cadeira de modo tão perceptível quanto antes (Kafka, 2002, p. 35-36). Assim, dado o incontornável do existente, não resta a Blumfeld senão ensejar esforços para suavizar ao máximo a estranha dor e o opaco desconforto que a situação lhe causa; seu cérebro está 1 43 exausto de procurar saídas para a situação configurada à revelia de sua vontade e de tudo o que pudesse conceber ou entender, não obstante, como fica evidente no detalhismo descritivo, Blumfeld não deixa escapar nada de razoável em sua observação· e nada tem, em princípio, de néscio; é momento do aprendizado relativo à difícil convivência conviver com ela. Afinal, o que aparentou fragilidade trai quem o observa e mostra sua verdadeira força; a existência do inusitado é testemunho de seu próprio poder, e sobre isso nada pode razão alguma: Está na espreita: de repente, de modo completamente inesperado, sua imobilidade cede e ele se volta, num solavanco, com a cadeira. Mas as bolas estão vigilantes de forma correspondente ou seguem, sem pensar, a lei que as domina e, ao mesmo tempo que Blumfeld gira na cadeira, elas também mudam de lugar e se escondem atrás dele. Agora Blumfeld está sentado de costas para a mesa, o ca chimbo frio na mão. As bolas saltam sob a mesa e como ali há um tapete só podem ser pouco ouvidas. É uma grande vantagem; produzem-se apenas ruídos muito fracos e abafados, é preciso prestar muita atenção para ainda percebê-los com o ouvido. Blu mfeld no entanto mantém-se bem alerta e as ouve perfeitamente. lvlas apenas agora é assim, num instante é provável que não se rão mais de maneira alguma escutadas. Para Blumfeld parece um grande sinal de fraqueza das bolas só poderem ser percebidas tão pouco sobre tapetes. Basta colocar um deles por baixo, talvez dois, para torná-las quase impotentes. Seja como for, é por um período determinado de tempo; além do mais, sua existência já significa um certo poder (Kafka, 2002, p. 37-38). A tentação da vida retorna, após o quase-mergulho no sem-sentido mecânico do jogo de perseguição e das sensa ções que se sucedem sem obter êxito algum. O cachorro seria agora fundamental para acabar com as bolas - ao que parece, Blumfeld não percebe que há uma incompatibilidade total e mutuamente excludente entre aquilo que nasce, cresce, vive e morre e aquilo que, como as bolas, simplesmente existe: 1 44 Agora Blumfeld bem que poderia fazer uso de um cachorro - um animal jovem, selvagem, acabaria logo com as bolas; imagina-o cor rendo atrás das duas para caçá-las com as patas; como as expulsa dos seus postos. Como as persegue de um extremo a outro do aposento e finalmente as prende entre os dentes. É bem provável que dentro em breve arranje um cachorro. [ ... ] Mas no momento as bolas têm de temer apenas Blumfeld, e agora ele não está com vontade de destruí-las, talvez para isso lhe falte poder de decisão. Chega cansado, à noite, do trabalho, e justo nessa hora, quan do necessita de repouso, fazem-lhe essa surpresa. Só agora sente como está realmente cansado. Sem dúvida irá destruir as bolas, na verdade o mais breve possível, mas não nesse instante, provavel mente só no dia seguinte. Quando se considera a questão impar cialmente, aliás, as bolas se comportam com bastante modéstia. [ .. ] Poderiam, por exemplo, saltar para a frente de tempos em tempos, mostrar-se e regressar ao seu lugar, ou poderiam pular mais alto, para bater na tábua da mesa e desse modo se ressarcir do amortecimento do tapete. Mas não o fazem, não querem irri tar Blumfeld sem necessidade, limitam-se evidentemente ao que é estritamente preciso (Kafka, 2002, p. 38-39). . "Fazem -lhe essa surpresa" - indeterminação absoluta. Quem faz o quê? O que sobra da mais inútil das perguntas é o mais pesado dos cansaços, o cansaço vital, o cansaço que obriga a adiar a vida - temática kafkiana recorrente - o momento de destruição das bolas - para o "dia seguinte': Retorna a racio nalidade, agora em outro feitio: moderada, afundada em sua própria impotência e inutilidade ante a opacidade dos aconte cimentos, contenta -se em constatar que tudo poderia ser ainda pior, caso as bolinhas realmente tivessem má intenção. O próxi mo passo é a inteligência se rebaixar ao fulcro do instante onde algo pode ser obtido e uma intenção completada, sem absolu tamente nenhuma esperança de transcender as contingências: É verdade, que essa exigência basta para amargurar a perrnanên cia de Blurnfeld à mesa. Só fica alguns minutos lá e já pensa em ir dormir. Um dos motivos para isso é que ali não pode fumar, pois 1 45 deixou os fósforos em cima do criado-mudo. Teria, portanto, de ir buscá-los, mas, uma vez que está perto do criado, é com certeza melhor ficar por lá e deitar-se. Atrás disso existe uma segunda in tenção: acredita, na verdade, que as bolas, no seu afã cego ficarem sempre atrás dele, vão saltar sobre a cama e, uma vez ali, quando ele se deitar, irá esmagá-las, querendo ou não. Rejeita a objeção de que os restos das bolas também seriam capazes de ficar saltando. Até o inusitado precisa ter limites. Bolas inteiras saltam também em outras ocasiões, embora não ininterruptamente; pedaços de las, ao contrário, nunca saltam, e neste caso também não irão dar pulos (Kafka, 2002, p. 39). Até mesmo os atos se tornam passivos: Blumfeld alimen ta a esperança de se livrar das bolas esmagando-as, mas sim plesmente ao deitar-se, sem nenhuma ação além disso; vai esmagá-las sem vontade, "querendo ou não". A mediocrida de rítmica dos saltos exauriu sua condição de ter vontade, após haver reduzido sua racionalidade ao mais elementar ato de lidar com contingências do cotidiano - a tal ponto pare cem chegar as potências do medíocre. Agora, chega a acre ditar que suas esperanças serão realizadas, o que, no tempo de homem racional, não lhe era absolutamente provável - e, assim, ordena às bolas que façam o que deseja, para obter a finalidade que pretende: - Para cima! - brada, tornando-se quase imprudente com essa reflexão; dirige-se para a cama em passos pesados com as duas esferas outra vez atrás dele. [ ... ] Suas esperanças parecem con firmar-se: quando se põe deliberadamente bem perto da call).a, imediatamente uma das bolas salta sobre o leito. Pela via contrá ria, porém, entra em ação o inesperado - a outra bola se coloca debaixo da cama. Blumfeld não havia absolutamente pensado na possibilidade de que as bolas pudessem também saltar para baixo da cama. Está indignado com a bola embora sinta como isso é injusto, uma vez que, com esse salto, a bola talvez realize ainda 1 46 melhor sua tarefa do que a bola em cima do leito. Tudo então depende do lugar pelo qual as bolas se decidam, pois Blumfeld não crê que elas possam trabalhar separadas por muito tempo. Com efeito, no instante seguinte a bola de baixo também pula para cima da cama. 'l\gora elas são minhas': pensa Blumfeld, ar dente de alegria, e arranca o roupão do corpo para se lançar sobre o leito. Mas justamente nesse momento a mesma esfera volta a saltar para baixo da cama. Sobremaneira decepcionado, Blumfeld literalmente desmorona. É provável que a bola tenha apenas dado uma olhada em cima e não gostando do que viu. Aí a outra a segue e naturaln1ente permanece de baixo, pois ali é melhor. 'l\gora vou ter esses dois batedores de tambor a noite inteira aqui': pensa Blu mfeld, morde os lábios e balança a cabeça. Está triste, sem saber propriamente como as bolas poderão prejudicar-lhe a noite. Seu sono é excelente, irá superar com facilidade o pequeno rumor. Para ficar totalmente seguro disso, empurra por baixo delas dois tape tes - segundo a experiência feita. É como se tivesse um pequeno cachorro para o qual preparasse uma caminhada macia. Porque as bolas talvez estejam cansadas e com sono, seus saltos são mais bai xos e vagarosos do que antes. Quando Blumfeld se ajoelha diante da cama e ilumina a parte de baixo com o abajur do criado-mudo, julga por vezes que as bolas vão permanecer para sempre sobre os tapetes, por caírem tão debilmente, rolarem tão devagar mais um curto trecho (Kafka, 2002, p. 39-4 1 ) . "Blumfeld literalmente desmorona: Nenhum recurso é possível contra o ardil da esperteza que se esconde por detrás da máquina obtusa. Agora são as bolinhas que adquirem al gum tipo de vida, "talvez estejam cansadas e com sono': talvez algo da vitalidade que sugaram, pelo seu incômodo existir, de Blumfeld. É o momento exato em que sonho e realidade se fundem para Blumfeld; ou, talvez melhor dito, em que a rea lidade se transforma em cacofonia, em susto, ao qual só pode responder um "bocejo mudo": o instante prévio à queda que, 1 47 de algum modo, já é o do desmoranamento.98 Aqui surge, por detrás do ridículo episódio, uma outra sua face, um manto ameaçador que segue a limpidez das formas perfeitamente esferoidais, com cores bem definidas, o azul e branco; agora é a intranquilidade, o sobressalto que nunca se configura em ameaça palpável, pois se confunde com a noite e o sono; o inu sitado foi apenas anúncio, ao que parece, de algo maior que entrará pela porta, que nela baterá sem delicadeza nem pue rilidade alguma. E não obstante, tal situação se repete em um número ((monstruoso' de vezes, o que o desanima até mesmo a arrolar as vezes que acontece o sobressalto, seguido por algo , ((pequeno e repulsivo' , batidas que constituem a escolta de algo poderoso. De qualquer modo, ainda que desejasse tomar alguma atitude, vê-se na mesma situação de Gregor Samsa ao acordar certa noite de sonhos intranquilos: era tarde demais para pegar o trem certo, e mesmo que se esforçasse loucamente, talvez não conseguisse nem ao menos apanhar o trem atrasa do. Para Gregor então, como para Blumfeld agora, é simples mente ((tarde demais": Claro que depois se erguem de novo de acordo com o seu dever. Mas é bem possível que quando Blumfeld olhar de manhã debai xo da cama irá encontrar duas silenciosas e inofensivas bolas de criança. [ ... ]. Desiste com prazer até de fumar, vira-se de lado e adormece logo. Porém não permanece tranqüilo; como de cos tume, também desta vez tem um sono sem sonhos, mas muito intranqüilo. Inúmeras vezes, durante a noite, se sobressalta com 98 "Tudo o que se equilibra no auge do instante, como um cavalo empinado so bre as patas traseiras, é fotografado como se a cena devesse ser preservada para sempre. O exemplo mais terrível disso encontra-se em O processo: Josef K. abre a porta do quarto de despejo, no qual no dia anterior seus guardas haviam sido espancados, e encontra fielmente reproduzida a mesma cena, inclusive com a in vocação dele próprio. "Imediatamente, K. fechou a porta e bateu nela com os pu nhos como se desse modo ela ficasse fechada mais firmemente." Este é o gesto da própria obra de Kafka, que, como já ocorria por vezes em Poe, se afasta das cenas mais extremas, como se nenhum olho pudesse sobreviver àquela visão. Nela se mesclam o efêmero e a mesmice. Titorelli pinta sempre e repetidamente essa an tiquada paisagem de gênero, repleta de campos" (Adorno, 1 998, p. 247-248). 148 a ilusão de que alguém bate à porta. [ ... ] Sabe sem dúvida que ninguém bate, pois quem iria à noite bater à porta - justamente na sua, a de um solteirão solitário? Mas, por mais que tenha consci ência disso, acorda assustado sem cessar e por um momento olha tenso para a porta, a boca aberta, os olhos arregalados e os tufos de cabelo sacudindo sobre a fronte úmida. Tenta contar quantas vezes é despertado, mas, aturdido com as cifras monstruosas que resultam desse cômputo, cai outra vez no sono. Supõe saber de onde vêm as batidas, não são da porta, mas de outra parte qual quer; porém, na atrapalhação do sono, não consegue se lembrar em que se baseiam suas suposições. Sabe somente que muitas ba tidas, pequenas e repulsivas, se juntam, antes da batida grande e poderosa. Suportaria toda a repugnância dos pequenos golpes se pudesse evitar essa batida, mas por algum motivo é tarde demais, neste caso não pode intervir, é uma parada perdida, não tem nem mesmo palavras, a boca só se abre para um bocejo mudo; furioso com isso afunda o rosto nos travesseiros. E assim passa a noite (Kafka, 2002, p. 4 1 -42). * ** II A manhã seguinte chega a um Blumfeld que, transtorna do pela noite mal-dormida (mau sono que Blumfeld atribui ao fato de não haver fumado nem bebericado seu licor antes de adormecer), antes de seguir ao trabalho ainda tem que enfren tar um longo périplo de percalços, o incômodo de esconder as ridículas bolas da empregada algo surda, tentar oferecê-las ao filho da empregada, infelizmente obtuso demais para enten der até mesmo o que Blumfeld lhe diz e, finalmente, liberar seu quarto para que as cjuas filhas do zelador, espertíssimas meninas, apanhem as bolinhas. Finalmente põe-se a caminho ao local de trabalho, estreito e comprimido em todos os senti dos possíveis dessa palavra: 1 49 No caminho para a fábrica de roupas de baixo em que Blumfeld está empregado os pensamentos acerca do trabalho aos poucos prevalecem sobre tudo o mais. Acelera o passo e, a despeito do atraso de que o menino é culpado, chega ao escritório em pri meiro lugar. É um espaço cercado por vidros, contém uma escri vaninha para Blumfeld e duas carteiras de tampa reclinável para os aprendizes subordinados a Blumfeld. Do mesmo modo que as carteiras são tão pequenas e estreitas como se fossem destinadas a escolares, no escritório tudo é muito estreito, e os aprendizes não podem sentar-se porque caso contrário não haveria mais es paço algum para a poltrona de Blumfeld. Por isso ficam o dia inteiro premidos contra suas carteiras. Sem dúvida é muito des confortável para eles, mas desse modo fica difícil para Blumfeld vigiá-los. Com freqüência comprimem-se com fervor na carteira, não porventura para trabalhar, mas para cochichar entre si ou até para tirar uma soneca. Blumfeld se irrita muito com eles, que nem de longe o auxiliam o suficiente no gigantesco trabalho que lhe é imposto. A tarefa consiste em manejar todo o movimento de mer cadorias e dinheiro com as trabalhadoras da casa, incumbidas pela fábrica da produção de certas peças mais finas. Para poder julgar a magnitude desse trabalho é preciso ter uma visão mais precisa do conjunto. Mas desde que morreu o superior imediato de Blumfeld, alguns anos antes, ninguém mais possui esta visão, por isso nem mesmo ele é capaz de conceder a quem quer que seja o direito de emitir um julgamento sobre seu trabalho (Kafka, 2002, p. 5 1 -52). Lá es�ão, portanto, as formas gêmeas à espera de Blumfeld, na figura de um par de aprendizes inúteis e cheios de artima nhas - o que não impede Blumfeld, num característico diver sionismo desses personagens devastados pelo peso do mundo, de pensar em o quanto seu trabalho é desvalorizado por seu superior, bem como é menosprezado por todos os demais em pregados, exatamente devido à desvalorização de seu superior. O industrial, senhor Ottomar, por exemplo, subestima osten sivamente o trabalho de Blumfeld; naturalmente ele reconhece os méritos que Blumfeld acumulou na fábrica no curso de vinte anos, não só porque tem de fazê-lo, mas também porque aprecia I SO Blumfeld como pessoa fiel, digna de confiança; seja como for, su bestima seu trabalho, acreditando, inclusive, que poderia ser or ganizado de modo mais simples e, nesse aspecto, mais vantajoso em todos os sentidos do que a maneira como Blumfeld o realiza. Dizem, certamente não é algo destituído de verdade, que só por isso Ottomar aparece tão raramente na seção de Blumfeld - para se poupar da irritação que lhe causa ver os métodos de trabalho de Blumfeld. [ .. ] Com certeza é triste para Blumfeld não ser reconhe cido dessa maneira, mas para isso não há remédio, pois não pode forçar Ottomar a permanecer, por exemplo, por um mês ininter rupto, na seção de Blumfeld, estudando as múltiplas formas dos trabalhos que ali devem ser executados, fazendo valer seus pró prios métodos supostamente melhores, e deixar-se por fim con vencer da razão que assistia a Blumfeld com a conseqüência, no caso inevitável, do colapso da seção. [ ] Se o chefe subestima al guém, então é natural que os empregados procurem ultrapassá-lo, nesse aspecto, o máximo possível. Daí que todos menosprezam o trabalho de Blumfeld; ninguém considera necessário à sua forma ção trabalhar um tempo na seção dele e, quando são admitidos novos empregados, nenhum, por iniciativa própria, é destinado ao departamento de Blumfeld. É em conseqüência disso que lhe falta renovação do pessoal (Kafka, 2002, p. 53-54). . ... Assim, Blumfeld necessita de um auxiliar. Todavia, o tra balho para convencer o senhor Ottomar de tal necessidade é desmedido, e significa para Blumfeld o caminho de sua des graça - em vez de um, recebe dois ajudantes inúteis - apren dizes, auxiliares, que agora aprontarão suas inofensivas traves suras na estreiteza do espaço de que Blumfeld já dispõe, que é tudo o que ele dispõe: Foram semanas da luta mais árdua quando Blumfeld, que até então havia cuidado de tudo na seção completamente sozinho, ajudado apenas por um servente, solicitou a contratação de um auxiliar. Quase todos os dias Blumfeld aparecia no escritório de Ottomar e lhe explicava, de uma forma tranqüila e pormenoriza da, por que precisava de um auxiliar na seção. Ele não era necessá rio, certamente, porque Blumfeld queria se poupar; Blumfeld não 151 queria se poupar, cumpria sua tarefa mais que abundantemente e não cogitava em deixar de fazê-lo; queria apenas que o senhor Ottomar refletisse como, no decurso do tempo, o negócio se de senvolvera e todas as seções foram aumentadas de modo corres pondente; só a de Blumfeld era sempre esquecida. E de que modo o trabalho ali aumentara! [ ... ] a despeito de tudo vai-se aferrar ao seu posto enquanto de algum modo isso for possível; de qualquer maneira tem razão e, por mais que às vezes demore, a razão final mente tem de encontrar reconhecimento. Assim é que, de fato, Blumfeld no fim recebeu até mesmo dois ajudantes - mas que aju dantes! (Kafka, 2002, p. 54-55) Aí estão, portanto, os dois clássicos ajudantes kafkianos. Nessa versão, expressões abertas da puerilidade irresponsável, porém ardilosa - sua fraqueza, sua palidez doentia tão carac terística desse universo kafkiano, é exatamente sua força extre ma; nem ao menos pequenos movimentos conseguem realizar a contento, é seu lado infantil e inofensivo - inútil e estorvan te, inadequado, porém ocupando espaço precioso e indo além do que parece e aparece a algum observador incauto - e, por outro lado, portadores da figuração mais terrível da ameaça, aquela capaz de trair qualquer boa intenção. Imensa fragili dade que é, em si imensa, ardilosa força destrutiva, recolhida em corpos franzinos, pele aparentemente tão frágil quanto era aparentemente frágil o celulóide de que eram feitas as insidio sas bolas que haviam penetrado de modo tão despudorado na intimidade do quarto de Blumfeld. Crianças pálidas, frágeis. Por seus documentos já deviam ter atin gido a idade pós-escolar, mas na realidade não era possível acre ditar nisso. Não era desejável confiá-los nem mesmo a um mestre, de tal modo era nítido que ainda permaneciam nos braços da mãe. Ainda não conseguiam se mover razoavelmente, ficar em pé por muito tempo os cansava de modo incomum, especialmente nos primeiros dias. Se ninguém os vigiava, dobravam-se logo de fraqueza, punham-se num canto tortos e curvados. [ . ] . Incumbir os . .. 1 52 ajudantes de um pequeno movimento era uma coisa ousada: certa vez um deles quis transportar algo apenas uns passos, excedeu -se na velocidade e feriu o joelho na carteira. A sala estava cheia de costureiras, as carteiras cheias de mercadorias, mas Blumfeld teve de largar tudo, levar o ajudante que chorava ao escritório e ali aplicar-lhe uma pequena atadura (Kafka, 2002, p. 56-57). E, não obstante toda essa infantilidade e fragilidade, sa bem se ver mais do que bem com as costureiras; por trás da aparente prontidão e servilismo que publicamente demons travam, j aziam intenções aparentemente nada boas, porém provavelmente credoras de sua imaturidade irresponsável: en ganar Blumfeld, que, por sua vez, exatamente devido à infan tilidade e à fragilidade evidentes dos ajudantes, não poderia nem ao menos puni -los como mereciam. Tinha de continuar a padecer de sua presença e de seus ardis: Mas esse zelo dos auxiliares era só aparente; como verdadeiras crianças que eram, queriam destacar-se uma ou outra vez, mas com mais freqüência ainda, ou antes; quase sempre, desejavam somente desviar a atenção do superior e enganá-lo. N�m momento em que o trabalho era dos maiores, Blumfeld passou correndo, pingando de suor, pelos dois e observou como eles, entre far dos de mercadorias, trocavam selos. Sua vontade foi descarregar os punhos sobre suas cabeças - para um comportamento como aquele teria sido a única punição possível; mas eles eram crianças, Blumfeld não podia desferir um golpe mortal sobre elas. E desse modo continuou a se torturar com os dois ajudantes. A princípio imaginou que os auxiliares o ajudariam em pequenos serviços na época em que a distribuição das mercadorias exigia tanto esforço e atenção. [ ... ] Aplicadas a esses ajudantes, eram esperanças com pletamente vãs; Blumfeld logo percebeu que não podia de modo algum deixá-los falar com as costureiras. Com efeito, desde o início, isso não era viável com muitas delas, porque tinham an tipatia ou medo deles; em relação a outras, pelo contrário, pelos quais eles tinham preferência, muitas vezes saiam correndo até a porta para recebê-las. A estas levavam tudo o que desejassem e, 1 53 mesmo que as costureiras tivessem direito a elas, apertavam-lhes a mão com uma espécie de mistério; para essas prediletas junta vam numa estante vazia diversos retalhos, restos sem valor, mas também miudezas ainda utilizáveis; acenavam-lhes de longe com estas, felizes, pelas costas de Blumfeld e, como recompensa, elas os presenteavam com bombons que lhes enfiavam na boca (Kafka, 2002, p. 57-58). Um outro tema clássico em Kafka é aqui reencontrado: as furtivas aproximações, os furtivos flertes, para os quais os ajudantes, "que nem ao menos poderiam ser confiados a um mestre': eram mais do que capazes, e hábeis; tudo ocorre em um universo de signos por assim dizer "paralelo': inabordável diretamente por Blumfeld, "por suas costas"; significações ex tremamente espertas, sem necessidade de palavras para serem entendidas, trocas de favores, pequena desordem que, porém, obriga Blumfeld a tomar atitudes às quais os ajudantes respon dem com a característica raiva muda de palavras porém caco fônica, ruidosa, típica de um universo desabitado de linguagem e, todavia, extremamente elo quente, dessa linhagem de auxi liares kafkianos: Obviamente Blumfeld pôs fim, logo, a essa anomalia e, quando as costureiras chegavam, forçava os auxiliares a irem para seu canto. Mas por muito tempo eles consideraram essa atitude uma gran de injustiça: resistiam, quebravam de propósito as canetas e várias vezes - sem apesar de tudo ousar erguer a cabeça - batiam forte nos vidros para chamar a atenção das costureiras para o mau trata mento que - na opinião deles - Blumfeld os fazia suportar (Kafka, 2002, p. 58). Tudo converge, ao fim e ao cabo, àquilo que parece haver estado desde sempre escrito: os auxiliares permanecerão em sua aparente infância eterna, e por detrás dela e de sua fragi lidade, surge a ameaça velada e simultaneamente explícita de 1 54 quem sabe fazer valer seus direitos "reais ou aparentes": é uma das expressões kafkianas igualmente clássicas na descrição do despudor de um mundo definitivamente medíocre, habitado essencialmente por figuras estreitas em todos os sentidos99 e que, inobstante, portam um virtual poder desagregador de in suspeitadas proporções, como seu olhar firme nos olhos ela ramente denuncia: - Os dois para o trabalho! E sem mais um pio! - brada Blumfeld apontando com o braço estendido, aos auxiliares, o caminho para suas carteiras. [ . ] Eles obedecem logo, mas não, entretanto, en vergonhados e de cabeça baixa; ao contrário, giram rígidos quan do passam por Blumfeld e o fitam firme nos olhos, como se desse modo quisessem demovê-lo de bater neles. Certamente estão sabendo, por experiência suficiente, que Blumfeld por princípio nunca bate. Mas são excessivamente medrosos e sempre sem o menor tato procuram fazer valer seus direitos reais ou aparentes (Kafka, 2002, p. 63). .. A questão que sobra é, então: em que se diferenciam os ajudantes de Blumfeld , essas silhuetas incomodativas, das bo linhas gêmeas e maquínicas com suas brincadeiras idiotas? Onde acabam uns e iniciam os outros?100 Tratar-se-á de uma Ver, a respeito, Adorno: "O sistema é lógico do início ao fim e, como qualquer sistema, desprovido de sentido. Tudo o que Kafka narra pertence à mesma or dem. Todas as suas histórias desenrolam-se no mesmo espaço sem espaço, e to dos os buracos são tão perfeitamente tapados que as pessoas levam um susto quando se menciona algo que não caberia ali, como a Espanha e o Sul da França, evocados em uma passagem de O castelo" (Adorno, 1998, p. 252-253). 1 00 " A fronteira entre o humano e o mundo das coisas -torna-se tênue. Esta é a razão de seu muito comentado parentesco com Klee. Kafka chamava sua maneira de escrever de 'rabisco'. O reifi.cado torna-se signo gráfico, os homens proscritos não agem por si mesmos, mas como se cada um tivesse caído em um campo magnético. É exatamente essa definição externa de personagens interiorizadas que confere à prosa de Kafka a aparência ines crutável de uma objetividade sóbria. A zona na qual não se pode morrer é ao mesmo tempo a terra de ninguém entre o homem e a coisa: nessa terra Odradek, visto por Benjamin como um anjo no estilo de Klee, encontra -se com Gracchus, a modesta imitação de Nimrod" (Adorno, 1998, p. 260). 99 155 mesma forma dupla, espelhada indiferenciada que habita todos os espaços que a vontade de alguém ocupa? As bolas não são procuradoras dos inúteis ajudantes sob forma huma na que se encarregam de exasperar Blumfeld até mesmo no recôndito de seu lar: são os próprios ajudantes, apenas sob ou tra forma, são sua esperteza com outra configuração; são, re lativamente a eles, igualmente indiferenciadas, existência des prezível que não obstante não só se faz agressivamente notar, mas que constitui o mundo no qual Blumfeld está condenado a viver. Afinal, o cachorrinho, que poderia ser uma espécie de elo de ligação entre Blumfeld e a vida, permanecerá ausente.101 O universo de Kafka se modifica levemente a cada obra, mas permanece, essencialmente, o mesmo: um mundo sem tem po assim se pode denominar uma temporalidade mortalmen te doente, ou uma dialética entre esses dois estados de c9isas ( Cf. Souza, 2000a) no qual restolhos humanos claudicantes - - - - têm de se confrontar continuamente com expressões dessa au sência de temporalidade que assumem forma aparentemente humana e expressam exatamente, nos mínimos detalhes, cada aspecto da mediocridade do mundo que representam. Essa é a condenação eterna. 101 1 56 Não é demais lembrar a que ponto os animais são importantes na obra de Kafka, no sentido de respiração da existência. Ver igualmente, a respeito, Adorno: "Assim como seu compatriota Gustav Mahler, Kafka fica do lado dos desertores. Em vez da ideia de dignidade humana, conceito supremo da burguesia, aparece em Kafka a ideia da salutar semelhança do homem com o animal, presente em grande parte de suas narrativas. O mergulho no interior da individuação, que se completa nessa reflexão, depara com o princípio da própria individuação, aquele 'colocar-se a si mesmo' sancio nado pela filosofia: a teimosia mítica. A reparação é procurada na medida em que o sujeito deixa de lado a teimosia. Kafka não glorifica o mundo pela subordinação, antes resiste a ele pela não-violência. Diante dela, o poder deve reconhecer-se como aquilo que realmente é. Kafka conta com isso. O mito deve se prostrar diante da própria imagem no espelho. Os heróis de O processo e de O castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa - eles não têm nenhuma -, mas porque procuram trazer a justiça para o seu lado" (Adorno, 1 998, p. 268-269). · Como conclusão: Kafka e a vida danificada Velho e nu, exposto aos infortúnios deste desafortunado mundo, vejo-me andando a esmo num carro indiscutivelmente real, puxado por cavalos indiscutivelmente sobrenaturais Franz KAFKA. Um médico da aldeia Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas inúmeras patas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos. - O que aconteceu comigo ? pensou Franz KAFKA. A metamorfose A sugestão do absurdo penetra o primeiro parágrafo de A Metamorfose; cúmulo do desconforto, sugere-se o início de um conto fantástico, afastado das possibilidades do real, do lei tor, da normalidade - a estranheza apresenta-se. É a porta de entrada do mundo. Mas um mundo percebido inicialmente como estranho, inusitado, anti-natural, excessivamente bem ordenado, excessivamente literário. - Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esqueces se todas essas tolices? Pensou, mas isso era completamente irre alizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nesta posição [ . . ] Tentou [ . ] e só desistiu quando começou a sentir do lado uma dor ainda não experimentada, leve e surda (Kafka, 2001 , p. 8). . . . A relativa normalidade da reação sugere uma certa nor malidade nos fatos. Gregor Samsa gostaria de dormir e não 157 perceber o quão real, o quão normal é a Metamorfose; tal, po rém, é impossível - a impossibilidade da evasão é uma ((dor ainda não experimentada" (Kafka, 1 993). O mundo segue: um estranho contraponto tem início. Em posição de inseto, sem que algo se tenha alterado ou que sua aparência se tenha modificado minimamente em direção a uma morfologia mais normal, Gregor Samsa inicia uma pe quena meditação sobre sua condição totalmente humana: - Ah, meu Deus, pensou. - Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia - viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e além disso me é imposta essa can seira de viajar, a preocupação com a troca dos trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, ja mais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso! (Kafka, 1993, p. 8-9). Está dado assim, no quinto parágrafo da obra, o contra ponto definitivo, perfeita tradução da tensão original: o absur do não é tão absurdo quanto parece, assim como o normal não é tão naturalmente normal quanto se apresenta - desde que nenhuma de suas dimensões, do ((absurdo" como do ((normal", seja suavizada em uma inteligibilidade parcial, ou seja, por uma indiferenciação. O bloco da realidade, a hiper-realida de, comporta todas estas dimensões (e ainda outras), e estas dimensões se tornaram ou tendem a se tornar crescentemente indisfarçáveis no tempo presente, o tempo da crescente quan tificação em detrimento da qualidade. Este é o contraponto vital, tal como é vivido no desatino do tempo contemporâneo, da globalização ilimitada e do frenesi das imagens. Setenta anos antes, Kafka já se enfrenta com os desafios de um mundo ((virtual" - que, na verdade, nada mais é do que a outra face da realidade maciça e humanamente intolerável, pois essencial mente indiferenciado - o que é intrinsecamente insuportável ao humano, pois esse se distingue exatamente por sua diferença em relação a todo o resto, por sua qualidade de singular, irre1 58 dutível singularidade. A obra de Kafka, antecipando em de cênios os arroubos da "virtualidade, ilimitada e da violência asséptica, controlada remotamente e invadindo a profundida de das intimidades e dos corpos na expressão da "vida nua, "nacktes Leben': é a história desta indisfarçabilidade, o ponto de partida desta indisfarçabilidade, a entrada real no mundo real da contemporaneidade em suas cores mais próprias: a vida - semimorta, semi-viva - danificada. 102 O mesmo mundo que Adorno, não por acaso, em uma de suas mais conhecidas obras, assim classifica em seu subtítulo: Mínima moralia - re flexões desde a vida danificada (beschãdigt). A seguir, aborda remos alguns aspectos do modo como o autor frankfurtiano reflete filosoficamente sobre esse universo sufocado no qual o sentido humano de racionalidade está ausente, por mais que configure um universo perfeitamente racional. 102 Onde há vida em Kafka? "Ele se apega à salvação das coisas, daqueles obje tos que não estão mais envolvidos na rede de culpa, que não podem mais ser trocados, que são inúteis. O sentido mais profundo do obsoleto na obra de Kafka refere-se a estas coisas. O seu mundo de ideias - como no "Tea tro natural de Oklahomà' - assemelha-se a u m mundo de saldos de lojas: nenhum teologoumenon adaptar-se-ia melhor a ele do que o título de um cinema americano de comédia: Shopworn angel. Enquanto no interior das casas, onde as pessoas moram, há desgraça, nos cantos e nas escadas onde brincam as crianças há esperança. A ressurreição dos mortos deveria ter lugar no cemitério de automóveis. A inocência do inútil é o contraponto ao parasitário: 'O ócio é o início de todo vício, e a coroação de todas as virtudes'. Segundo o testemunho da obra de Kafka, toda positividade, toda contribuição, poder-se-ia mesmo dizer que todo trabalho que reproduz a vida apenas promove o intrincamento" (Adorno, 1998, p. 269). 1 59 ADORNO, LEITOR DE KAFKA, LEITOR DO MUNDO "só há uma expressão para a verdade: O pensamento que nega a injustiça" Hélcio era biscateiro e morava na rua Campo Grande. As 16 horas daquele dia de janeiro de 1 982 ele saltou do trem vindo do trabalho em Madureira. Ninguém sabe porque foi preso por quatro homens que se diziam policiais, que o colocaram num Opala preto. Seis horas depois, na rua Coronel Tamarino, quem passasse pelo local ia achar que o povo fazia festa. Gritos, gargalhadas, corre-corre geral, até fogos de artifício foram soltos na folia acompanhada pela criançada. O biscateiro Hélcio acabava de morrer linchado por 200 pessoas [ . ] - Mas Hélcio não roubava diz Durvalina (sua mãe), amparada pelo filho Paulo. Carlos Alberto LUPPI. Malditos frutos de nosso ventre. . . Essa paródia moderna, pós-moderna, hipermoderna, con cisa e precisa - a ponto de nos fazer lembrar o borgiano Pierre Menard, autor del Quijote de O processo contém, em sua elo quência comprimida em palavras exatas, exatamente o mesmo conteúdo daquela obra magna kafkiana, apenas que adapta do ao ritmo dos tempos que correm. Ali estão: a prisão sem motivo aparente, a razão que não alcança os motivos, a massa -, 161 tornada indivíduo para realizar um ato - o linchamento -, os atores que prendem, que nem ao menos se sabe se são quem dizem ser - e que se mostram em dose dupla em relação ao par de ajudantes e funcionários kafkianos -, e talvez até mes mo, num acréscimo compreensível, por empréstimo, o coral infantil de "O médico rural": a combinação kafkiana perfeita do sórdido com o burlesco em suas mais sutis tonalidades. Al guma mera coincidência? Ora, uma das principais questões que a obra kafkiana põe a seus leitores, como toda grande obra literária, é o tema da li nha interpretativa a seguir. Bibliotecas inteiras têm sido escri tas procurando elucidar uma modalidade interpretativa geral que permita a compreensão das premissas maiores da escrita do escritor tcheco. O fruto desses esforços de gerações de crí ticos são as inúmeras chaves de leitura que foram sendo pro postas - a religiosa, mais ou menos especificamente judaica, a psicanalítica, a histórica, a sociológica e muitas das filosóficas são testemunhos de tais tentativas. E, não obstante, a obra permanece, porque o concreto per manece; há uma espécie de enigma infinitamente repetido, e ante este enigma se recorre às ferramentas da tradição - ou das mais diversas tradições - para tentar esclarecê-lo desde um ponto de vista como que "externo, ao mundo da vida, confi nado ao cérebro e à criatividade do crítico ou a alguma condi ção de eternidade imutável. O que temos proposto, numa leitura radicalmente anti -enigmática de tal obra (C f. Souza, 2000a e 200 1 ) , é exatamente o contrário: o único enigma de Kafka é que sua obra continue a atrair a perspicácia dos leitores como se flutuasse a anos-luz da terra real, em um passado remoto ou em um futuro ine fável, ou na terra do absurdo, e não como realmente se dá: na palpabilidade imediata das horas, minutos e segundos que se sucedem naquilo a que chamamos mundo, o cotidiano da ci vilização ocidental com todos os seus paradoxos. Em outras 1 62 palavras: que a obra de Kafka permaneça "enigmática, é que se apresenta, para nós, não somente como índice de sua atua lidade, mas como denúncia de uma cegueira. Tal posição tem em Adorno um precursor muito abali zado. De fato, em seu famoso texto '}\notações sobre Kafkà' (Adorno, 1 998, p. 239-270) , o filósofo caracteriza desde o iní cio aquilo no que se apresenta, de algum modo, como o mote do estudo: trazer Kafka e sua obra à consideração imediata do vivido e de suas contradições. O texto, que será aqui analisado brevemente em alguns de seus aspectos relevantes, inicia exatamente por esta via - a da denúncia do pretenso hermetismo kafkiano e de sua transfor mação em bizarra curiosidade no circo das letras - e se utiliza da solidez eloquente de uma tessitura intelectual extremamen te tensa, característica de Adorno, para mostrar a que ponto tal compreensão - o inverso do quietismo ante o que Kafka mostra é necessária. - A popularidade de Kafka, o conforto no desconfortável que o re baixa a escritório de informações sobre a condição eterna ou atual do homem, removendo com desenvolta familiaridade justamente o escândalo pretendido pela obra, desperta resistências à idéia de colaborar com isso ao alinhar outra opinião, por mais divergente que seja, às opiniões correntes. Mas justamente essa falsa fama, variante fatal do esquecimento que Kafka teria seriamente deseja do para si mesmo, obriga à insistência diante do enigma (Adorno, 1998, p 239) . . A obra de Kafka "pretende um escândalo': ela não é um escândalo: pensar que ela, nela mesma, se constitua em algum tipo de escândalo, é um arranjo mental para escapar daquilo que ela simplesmente diz, ou seja, escamotear a letra e o sen tido que se insinua com a letra, apesar da letra, no trabalho espantosamente árduo que a confecção de sua obra significou para ele: 1 63 Kafka é enquadrado em uma corrente de pensamento estabeleci da, em vez de se insistir nos aspectos que dificultam o enquadra mento, e que por isso mesmo requerem interpretação. Como se o trabalho de Sísifo de Kafka não tivesse sido necessário, como se a força de maelstrom de sua obra pudesse ser explicada caso ele ti vesse dito apenas que o homem perdeu a salvação, que o caminho para o absoluto lhe foi negado, que sua vida é obscura, confusa ou, como se diz hoje em dia, está contida no nada, e que teria restado ao homem apenas cumprir humildemente e sem muita esperan ça seus deveres imediatos, integrando-se a uma comunidade que espera exatamente isso, uma comunidade que Kafka de maneira alguma precisaria ter afrontado se concordasse com ela. Explicar as interpretações desse tipo com o argumento de que Kafka obvia mente não disse isso com palavras tão secas mas, enquanto artista, se esforçou em traduzi-Ias em um simbolismo realista é admitir a insuficiência dessas formulações, mas não muito mais que isso (Adorno, 1998, p.239-240). Transformar a obra de Kafka, por sua leitura, em "símbo lo" de algo, como se ela desde sempre não fosse um eloquente símbolo de si mesma, por sua vez, é cair na tentação de realocá -la em lugar mais controlável, onde sua precisão absoluta ao dizer o que diz pudesse ser inofensibilizada pela multiplicação de interpretações que se lhe seguem, onde se desvanece o que é sólido e se solidifica o devaneio, eis que esses são os hábitos mentais mais correntes em nosso estágio civilizatório. Pois uma representação ou é realista, ou é simbólica; não importa quão densamente organizados possam estar os símbolos, seu peso específico de realidade não prejudica em nada o caráter simbólico. A Pandora de Goethe não é menos rica em configuração sensível do que um romance de Kafka, mas apesar disso não pode haver dúvida quanto ao simbolismo do fragmento, mesmo que a força dos símbolos - por exemplo, o de Elpore, que personifica a espe rança - transcenda a intenção imediata do autor. Se o conceito de símbolo tem alguma pertinência na estética, âmbito no qual ele é suspeito, ela se deve unicamente à afirmação de que os momentos individuais de uma obra de arte remetem, em virtude da força que os conecta, para além deles mesmos: a totalidade dos momentos 1 64 converge em um sentido. Nada, porém, seria mais inadequado no que diz respeito a Kafka. Mesmo em criações como a de Goethe, que joga tão profundamente com os momentos alegóricos, esses momentos só transmitem seu sentido ao movimento do todo gra ças ao contexto no qual se encontram. Na obra de Kafka, porém, tudo é o mais duro, definido e delimitado possível; assim como nos romances de aventuras, conforme a máxima que James Fenni more Cooper escreveu no prefácio ao Corsário vermelho: ''A ver dadeira idade de ouro da literatura só surgirá quando as obras se tornarem tão meticulosas em sua impressão quanto um diário de bordo - e tão granuladas em seu conteúdo quanto um relatório de vigià' (Adorno, 1998, p. 240). Assim, não há em Kafka nenhum recurso a nada que não seja a literalidade da escrita não envolta por uma aura de sim bolismos, mas com esses em luta constante, pois os sabe capcio sos, incorporando-os e desincorporando-os no próprio ritmo da narrativa, na qual tudo cabe é o que temos denominado, na falta de termo melhor e correndo o risco da falsa interpre tação, ((hiper-realidade" (Cf. Souza, 2000a). Isso basta para que a obra se sustente não obstante a mútua repulsão daquilo que a constitui e que abre mão de qualquer recurso de linguagem que não seja o simplesmente dito, tal como a breve narração aposta como epígrafe a este capítulo meramente diz o que diz: nada há ali do teor de um expressionismo forçado, mas tudo, plenamente ocupando seus limites, de exatidão. - Em nenhuma obra de Kafka a aura da idéia infinita desaparece no crepúsculo, em nenhuma obra se esclarece o horizonte. Cada frase é literal, e cada frase significa. Esses dois aspectos não se mis turam, como exigiria o símbolo, mas se distanciam um do outro, e o ofuscante raio da fascinação surge do abismo que se abre en tre ambos. Apesar do protesto de seu amigo, a prosa de Kafka se alinha com os proscritos também por buscar antes a alegoria do que o símbolo. Benjamin a definiu com razão como parábola. Ela não se exprime pela expressão, mas pelo repúdio à expressão, pelo rompimento. É uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a 165 chave seria induzido ao erro, na medida em que confundiria a tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência, com o seu teor (Adorno, 1998, p. 240-24 1). A "tese abstratà' se dá quando se abstrai (d)aquilo que é a espessura que se faz palavra no texto kafkiano; se entender mos, no rastro da etimologia e da tradição, "abstração" como uma espécie de possibilidade ou modalidade de subsunção, nes te caso estaremos em maior distância do próprio texto kafkiano na exata proporção em que nos julgarmos mais próximos pois é exatamente a interdição maciça a toda e qualquer possi bilidade de sin1ples abstração ou subsunção que constitui sua obra, pois em certo sentido, e de modo muito forte, ela assume mesmo o teor de uma denúncia da abstração. Cada frase diz: "interprete-me"; e nenhuma frase tolera a interpre tação. Cada frase provoca a reação "é assim", e então a pergunta: de onde eu conheço isso? O déjà vu é declarado em permanência. A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a dis tância estética. Ele exige do observador pretensamente desinteres sado um esforço desesperado, agredindo-o e sugerindo que de sua correta compreensão depende muito mais que apenas o equilíbrio espiritual: é uma questão de vida ou morte. Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dis postos de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas sim excitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente (Adorno, 1998, p. 24 1). 103 103 1 66 Segue: "Essa proximidade física agressiva interrompe o costume do leitor de se identificar com as figuras do romance. Graças a esse princípio, o surrealis mo pode com razão reclamar Kafka como um de seus representantes. Ele é Turandot tornada escritura. Quem percebe isso e prefere não fugir correndo deve arriscar a cabeça, ou então tentar derrubar a parede com a própria cabeça, correndo o risco de não ter uma sorte melhor que a de seus antecessores. Como num conto de fadas, o destino dos que falharam em resolver o enigma, em vez de assustar, serve de incentivo. Enquanto a palavra do enigma não for encon trada, o leitor permanece preso" (Adorno, 1998, p. 241). Se na obra de Kafka deve-se temer que o narrado venha na direção do leitor, é porque na realidade os acontecimentos vêm na direção de quem existe. Mais uma vez, de modo re novado, surge o tema: o que faz com que a obra kafkiana seja considerada misteriosa ou fantástica? Tal pergunta tem como resposta agora evidente: o medo de ser atingido por ela. Pois normalmente são relegados ao reino do fantástico ou do fan tasmagórico aquilo que é excessivamente real para ser suporta do em sã consciência, à luz do dia; se alguém não entende que hoje, por exemplo, milhões e milhões de pessoas ajam como maquinismos dirigidos por via remota, ou se transformem voluntariamente em massa amorfa, dificilmente entenderá , - ou melhor: suportará , sem sofisticados mecanismos de defesa psíquica, uma figura como Odradek, o herói das "Preo cupações de um pai de famílià: na medida que este representa exatamente essa configuração, comprimida, como Blumfeld, por todos os lados, ao mesmo tempo em que, como "Uma mu lherzinha': nega-se a ao menos tentar entender a razão desse aviltante estado de coisas. - As criações de Kafka se protegem do erro artístico mortal que con siste em crer que a filosofia que o autor injeta na obra seja o seu teor metafísico. Se fosse assim, a obra teria nascido morta: ela se esgotaria naquilo que diz e não se desdobraria no tempo (Adorno, 1998, p. 242). Qual, então, a forma como Kafka evita que seu trabalho se apresente como mero reflexo de um estado dado de coisas? Exatamente, como bem detecta Adorno, na evitação daquilo que tantos críticos julgaram perceber na obra: uma significa ção metafísica qualquer. E isso porque, como fica patente a cada exame, o tempo de Kafka não é um tempo de vida, e esse não-ser constitui praticamente a sua essência. Nenhuma obra é a mera duplicação de seu tempo, ou seria não somente inútil, como inconcebível; qualquer obra é tempo feito obra, ainda que tempo feio e doente (Cf. Souza, 2000a); a pequena 1 67 dialética que se cria entre a anulação do tempo na realidade por exemplo, na realidade de uma execução de Hélcio ou de Joseph K., execução sem volta significando um presente eter no, fixado em si mesmo -, e um tempo patológico, em rotação, que atravessa e é atravessado por todas as obras - parábolas - de Kafka, é o que se constitui no mínimo suficiente para que tal obra não apenas exista, mas sobreviva a seu próprio nas cimento. Para se prevenir contra o curto-circuito causado pelo sentido pre maturo já visado pela obra, a primeira regra é tomar tudo literal mente, sem recobrir a obra com conceitos impostos a partir de cima. A autoridade de Kafka é a dos textos. Somente a fidelidade à letra pode ajudar, e não a compreensão orientada. Em uma escrita que continuadamente obscurece e esconde o que quer dizer, todo enunciado determinado contrabalança a cláusula geral da inde terminação (Adorno, 1998, p. 242). A salvação da escrita é aquilo que todo escapismo quer desesperadamente evitar: a literalidade. Entender que os sim bolismos e a discussão acerca deles é, em Kafka, não apenas inútil, mas obliterante, é entender que somente através da letra seca é Kafka abordável. O princípio da literalidade, sem cuja medida o ambíguo certamen te se diluiria no indiferente, condena a tentativa usual de associar na interpretação de Kafka a pretensão de profundidade com a au sência de rigor. Cocteau ressaltou com razão que a introdução do estranho como um elemento onírico faz com que a obra perca o gume. O próprio Kafka, para impedir esse mau costume, retirou de O processo uma passagem decisiva, que tinha o caráter de um sonho - a peça, verdadeiramente monstruosa, foi publicada em Um médico rural -, sublinhando assim que pelo contraste com este sonho todo o resto é confirmado como realidade. Também poderiam ser lembradas as passagens oníricas que se encontram às vezes em O castelo e em América, construídas de maneira tão tenebrosa que o leitor tem medo de nunca mais acordar do pe sadelo. Entre os momentos do choque não é o mais fraco aquele 1 68 que faz com que os sonhos sejam tomados à Ia lettre. Tudo o que se assemelha ao sonho e a sua lógica pré-lógica é eliminado, e por isso o próprio sonho é eliminado (Adorno, 1998, p. 243). A aparência de sonho, tão presente em tantas obras de Katka, é exatamente uma forma que o discurso estatui para liberar-se de seu elemento onírico; não fosse assim, e o excesso de realidade que perpassa a obra katkiana - tão palpável quanto o linchamento de Hélcio - daria azo a uma "onirização)) esca pista. Essa apenas, e não outra, é a razão pela qual Não é o monstruoso que choca, mas sua naturalidade. Logo após o agrimensor ter expulsado de seu quarto os inoportunos auxi liares, estes voltam a entrar novamente pela janela, sem que o romance dedique ao episódio mais do que a mera comunicação do fato: o herói está cansado demais para expulsá-los novamente (Adorno, 1998, p. 243). O excesso de realidade e sua percepção têm como efeito inescapável o cansaço, o esgotamento, o adiamento. Os relógios só aparecem, em Kafka, quando são absolutamente imprescin díveis; em todos os outros momentos, o próprio decorrer dos acontecimentos é mais tirânico do que o mais tirânico dos re lógios concebíveis, pois é ali que acontece o "monstruoso" - e "não é o monstruoso que choca, mas sua naturalidade". 104 Por 104 Ver o final do capítulo anterior, como tal se dá numa das mais "monstruosas" obras de Kafka, A metamorfose. Ver ainda: "Quem quisesse entender como se chega a experiências tão fora do comum como as descritas por Kafka deveria presenciar um acidente numa cidade grande: inúmeras testemunhas se apre sentam e declaram conhecer a pessoa acidentada, como se toda a comunidade tivesse se reunido para assistir ao instante no qual o poderoso ônibus se lançou sobre o velho e frágil táxi. O permanentemente déjà vu é o déjà vu de todos. Por isso o sucesso de Kafka, que se transforma em traição apenas no momento em que o universal é destilado, poupando-se o esforço da reclusão mortal. Talvez o objetivo oculto de sua arte seja a disponibilização, a tecnificação e coletivização do déjà vu. O melhor, sempre esquecido, é relembrado e colocado em uma garrafa, como a sibila de Cumas. Mas com isso o melhor se transforma no pior possível. 'Quero morrer', mas isso lhe é negado. O efêmero, ao ser perpetuado, é atingido por uma maldição" (Adorno, 1998, p. 248). 1 69 isso, suportar ainda um momento depende completamente que se consiga desviar o suficiente o ângulo de percepção para que todo o esperado se torne inesperado, e o ines pera do esperado; ainda que sem maiores garantias, a linguagem que decorre dessa distorção - na qual os discursos pomposos e geralmente insanos se inserem como contraste suficiente é expressão da única esperança de que a própria linguagem sobreviva ao choque com as coisas, ainda que em uma espé cie, muitas vezes, de combinação com um determinado gesto, configurando uma língua nascitura. O que, em um mundo menos doente, pareceria uma fabulação inofensiva, adquire aqui uma importância mortal, decisiva para a continuidade do próprio mundo: desviar em pouquíssimos graus o ângulo de abordagem, de modo que aquilo que nunca seria visto de outro modo agora o seja. O leitor deveria se relacionar com Kafka da mesma forma como Kafka se relaciona com o sonho, ou seja, deveria se fixar nos pon tos cegos e nos detalhes incomensuráveis e intransparentes. O fato de que os dedos de Leni estejam ligados por uma membrana ou que os executores pareçam tenores são coisas mais importantes do que as digressões sobre as leis (Adorno, 1998, p. 243). Kafka constrói sua linguagem nesse interstício entre o no vum do nunca dito e o ancestral, o pré-original, o primevo que transborda sobriamente de qualquer forma pré-dita, numa ante rioridade por assim dizer - numa referência indireta a Levinas anterior à própria ideia de anterioridade, de antiguidade, numa língua que se funde com um gesto, numa imagem que se amalgama com uma sentença, num verbo paralisado no tempo sem nunca se metamorfosear em substantivo. - É o mais novo estado de uma língua que enche a boca dos que a falam, é a segunda confusão babilônica, à qual a dicção sóbria de Kafka resiste, forçando-o a inverter a relação histórica entre con ceito e gesto, como num espelho. O gesto é o ((assim e: A língua- 1 70 gem, cuja configuração deveria ser a verdade, torna-se inverdade quando distorcida. "O senhor deveria também ser mais reservado ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ser deduzido do seu comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras; além disso, não foi nada de extremamente favorável ao senhor." Às vezes, as experiências sedimentadas nos gestos seguirão a in terpretação que deveria reconhecer na sua mímese um universal reprimido pela consciência humana. "Pela janela aberta se via outra vez a velha senhora, que com uma curiosidade verdadeira mente senil agora havia passado para a janela que ficava defronte para continuar vendo tudo", lemos na cena da prisão no início de O processo. Quem já não se sentiu observado da mesmíssima forma pelo vizinho em uma pensão qualquer; quem já não teve a intuição de um destino repugnante, incompreensível e inevitável? O leitor que conseguisse decifrar tais cenas saberia mais de Kafka do que quem encontra nele uma ilustração da ontologia (Adorno, 1998, p. 246-247). Por outro lado, ao haver acertado precocemente as contas com a psicanálise, em O veredicto, Kafka pode se dar a liberda de de lidar com esta como que "ao pé da letrà: desenvolvendo -a e levando suas consequências a pontos inimagináveis, ra dicalizando-a ad absurdum, como só à literatura é dado fazer em seu encontro com a carne do humano, 105 e tornando, nessa radicalização, o simbólico e o psíquico tão fisicamente palpá veis como qualquer objeto que se tome com a mão: "Ele aceita a psicanálise na medida em que ela desmascara a aparência da cultura e do indivíduo burguês; e a explode na medida em que a toma mais literalmente do que ela próprià' (Adorno, 1998, p. 247). Não se trata mais, em suma, de uma questão de inter pretação, em qualquer sentido que se tome esta categoria, ainda 1 05 "Por isso seus pequenos discursos, sobretudo os do agrimensor, têm algo de tolo, idiota e ingênuo: o seu bom senso aumenta o ofuscamento contra o qual eles se levantam. Kafka quer, através da reificação do sujeito, exigir da de antemão pelo mundo, sobrepujar, na medida do possível, essa reificação: o mortal torna-se mensagem da paz sabática. Este é o avesso da teoria de Kafka acerca da morte fracassada: que a criação danificada não possa mais morrer é a única promessa de i mortalidade" (Adorno, 1998, p. 269). 171 os mais sutis e refinados; trata-se de um choque de realidade, como um objeto físico que, ao chocar-se com outro, fosse des viado de seu curso de forma quase obscena, tal como teria aparecido, a um desavisado, menos escolado nos labirintos da realidade (uma criança, talvez), a execução de Joseph K., o aparecimento de Gregor Samsa em um idílico recôndito fami liar ou o linchamento de Hélcio em plena luz do dia. Entende-se melhor a relação entre o pesquisador do inconsciente e o parabolista da impenetrabilidade quando se lembra que em Freud cenas arquetípicas como a do assassinato do pai pela horda primordial, a narração ancestral de Moisés ou mesmo a observa ção pelas crianças da relação sexual dos pais não são entendidas como sínteses da fantasia, mas como eventos reais. Nessas excen tricidades, Kafka segue Freud até o absurdo, com uma fidelidade digna de Eulenspiegel. Ele arranca a psicanálise do âmbito da psi cologia. Na medida em que deduz o indivíduo a partir de impul sos amorfos e difusos, o Ego a partir do Id, a psicanálise já se opõe, em certo sentido, ao especificamente psicológico. A personalidade se transforma de entidade substancial em mero princípio organi zatório de impulsos somáticos. Tanto em Freud como em Kafka, a vigência da alma é cancelada; Kafka, na verdade, a ignorou desde o início. Ele se distingue de Freud, mais velho e com espírito cien tífico, não por uma espiritualidade mais delicada, mas sim por um ceticismo ainda mais radical em relação ao Ego. É para isso que serve a literalidade de Kafka. Como se conduzisse uma experiên cia, Kafka estuda o que aconteceria se os resultados da psicanálise não fossem corretos apenas metafórica e mentalmente, mas tam bém fisicamente (Adorno, 1 998, p. 247). As conclusões de um tal mergulho se tornam mais e mais claras na leitura de Adorno; reconhecendo uma espécie de im pulso benjaminiano no todo, lê este mundo kafkiano como um precipitar-se sem volta na crise, nos escombros e ruínas, da qual é preciso sair com os elementos que a própria crise - e nada mais - é capaz de fornecer. Desmoronadas as falácias da promessa de uma sociedade bem-arranjada pela realidade 1 72 que agride mortalmente quem acredita em tais falácias, sobra a ruína dessa miragem que, todavia, é tão concreta como só os entulhos podem ser. A imagem da sociedade vindoura não é esboçada imediatamente - pois Kafka, assim como toda grande arte, se comporta as cetica mente diante do futuro -, mas montada a partir do entulho que o novo, em processo de formação, elimina do presente que se torna passado. Em vez de curar a neurose, ele procura nela mesma a força que cura, a força do conhecimento: os estigmas com que a sociedade marca o indivíduo são interpretados como indícios da inverdade social, são lidos como o negativo da verdade (Adorno, 1998, p. 247). Pois, de fato, A força de Kafka é a da demolição. Diante do sofrimento incomen surável, ele derruba a fachada acolhedora, cada vez mais submeti da ao controle racional. Nesse processo de demolição - e nunca este conceito foi tão popular como no ano da morte de Kafka -, ele não se detém, como a psicologia, diante do sujeito, mas alcança a matéria em estado bruto, o mero ente que emerge na esfera subje tiva através do colapso total de uma consciência alienada, que re nuncia a qualquer auto-afirmação. A fuga atravessa o homem até chegar ao desumano - esta é a trajetória épica de Kafka (Adorno, 1998, p. 247). Já que toda esperança repousa sobre um sistema, e "não há sistema sem resíduo" (Adorno, 1 998, p. 253 ) , além do fato de que Em sua obra, tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam consciência de que não são eles mesmos, são coisas. As longas e fatigantes seções desprovidas de imagens têm por obje tivo, desde a conversa com o pai em O veredito, demonstrar aos homens o que nenhuma imagem seria capaz de fazer: sua falta de identidade, o complemento de sua similaridade copiada (Adorno, 1998, p. 25 1 ). 1 73 ** * Fazer o negativo é o nosso dever: o positivo já nos foi dado Theodor ADORNO. Anotações sobre Kafka As conclusões são evidentes: a obra de Kafka permanece extraordinariamente enigmática porque corresponde exatamente ao mundo no qualfoi gestada, e que é o nosso, que se suporta em sua insuportabilidade, quando não em nome dela. Ou seja: esta obra permanece enigmática porque não guarda enigma algum: o único enigma é que não se perceba o quão espantosamente real, experienciável no dia-a-dia, ela é: seu enigma, essencial mente, é a ínfima distância que guarda com relação à realidade que diuturnamente experimentamos. A incapacidade que se tem de ver no coditiano de uma determinada época exatamen te aquilo que a caracteriza é exatamente o que realoca a obra kafkiana em um presente tão íntimo que surpreende sempre a pequena distância que se estabelece, pelo alento literário in comparável dos escritos, entre o mundo que a si não percebe em seus constitutivos mais reais - o mundo kafkiano - e os escritos que o espelham de modo absolutamente magistral. lo6 Num mundo pleno de vida, sem duplicações mecânicas, sem transformação contínua da qualidade em quantidade, sem au tomatismos de infinitos tipos e violência fria tornada lugar co mum, no qual o insuportável fosse realmente insuportável, um mundo no qual o Outro, o singular, não pudesse ser, em nenhu ma hipótese, termo incógnito de uma determinada equação, a obra kafkiana teria realizado seu papel: pertenceria à história da literatura. Num mundo como o nosso, porém, no qual a es perança é o horizonte mais distante e, simultaneamente, aquilo pelo qual ainda vale a pena viver, a obra de Kafka está excessi vamente próxima, poderíamos dizer: terrivelmente próxima, pois Hélcio e toda a multidão infinita de singularidades de106 1 74 Ver, por exemplo, a questão da realização da justiça (Souza, 2010). vastadas continuam gritando aos nossos ouvidos como quem sussurra; obra próxima demais para que possamos dispensá-la por um segundo que seja - ela nos assombra a cada momento com a urgência do que nela lateja, e transforma o ininteligí vel na inteligibilidade absoluta do opaco que renasce de seus destroços. E, por isso, não podemos senão dizer com Adorno, A filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespe ro, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da reden ção. O conhecimento não tem outra luz além daquela que, a partir da redenção, dirige seus raios sobre o mundo: tudo o mais exaure -se na reconstrução e permanece uma parte da técnica. Seria pro duzir perspectivas nas quais o mundo analogamente se desloque, se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um dia, indigente e deformado, aparecerá na luz messiânica. Obter tais perspectivas sem arbítrio nem violência, a partir tão-somente do contato com os objetos, é a única coisa que importa para o pen samento. É a coisa mais simples de todas, porque a situação cla ma irrecusavelmente por esse conhecimento, mas ainda, porque a perfeita negatividade, uma vez encarada face a face, se consolida na escrita invertida de seu contrário. Mas é também o inteiramen te impossível, porquanto pressupõe um ponto de vista afastado ainda que só um pouquinho - do círculo mágico da existência, ao passo que todo conhecimento possível não só deve ser extorquido do que existe, de modo a chegar a ser obrigatório, mas se vê por si mesmo marcado pela mesma deformação e pela mesma indi gência que pretende se subtrair. Quanto maior é a paixão com o que pensamento se fecha contra seu condicionamento por amor ao incondicionado, tanto mais inconsciente, e por isso mais fatal, é o modo pelo qual ela fica entregue ao mundo. Até mesmo sua própria impossibilidade tem que ser por ela compreendida, a bem da possibilidade. Mas diante da exigência que a ele se coloca, a própria pergunta pela realidade ou irrealidade da redenção é qua se que indiferente (Adorno, 1993, p. 2 1 5-216). Para terminar. - 1 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAMZIK, Sylvelie. Kafka. Topographie der Macht. Basel; Frankfurt a. M.: Stroemfeld, 1 992. ANDERS, Günther. 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