Escrituras de Babel: Língua e tradução em

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Escrituras de Babel: Língua e tradução em
Revista Aproximação – 2º semestre de 2009 – Nº. 2
ESCRITURAS DE BABEL: LÍNGUA E TRADUÇÃO EM JACQUES
DERRIDA1
Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo2
Para Maria Continentino, mais de uma língua...
Em uma cena aparentemente corriqueira, o comandante de um navio recebe
algumas convidadas à sua mesa para o jantar. A conversa cotidiana poderia ser a mais
banal: uma empresária francesa, uma ex-modelo italiana, uma atriz e professora grega e
o anfitrião, um americano de origem polonesa. Falando banalidades, eles percebem em
determinado momento que cada um está falando a sua própria língua, e que todos eles
se compreendem perfeitamente. Com chegada de uma estrangeira, na verdade duas, uma
jovem professora de história e sua filha, ambas portuguesas, a comunicação parece
tornar-se mais problemática, já que, com esta chegada, a harmonia entre as diferenças
estremece.
Esta cena é de Um filme falado, de Manoel de Oliveira 3. À mesa, aos
consagrados John Malcovitch, Catherine Deneuve, Irene Papas e Stefania Sandrelli,
junta-se Leonor Silveira. Semelhante à entrada de Portugal na União Européia, a língua
portuguesa parece abalar o perfeito diálogo entre o imperialismo do inglês, com seu
sotaque hebraico, ou melhor, yiddish, o glamour do francês e a importância histórica,
filosófica e religiosa do grego e do italiano. Se a imperceptível estranheza da conversa
inicial surpreende o espectador e pode fazer pensar que assim é, ou deveria ser, o
pensamento filosófico, um diálogo perfeito entre as diferenças, a chegada do elemento
surpresa, aqui representado pela língua portuguesa, parece deixar entrever a mais efetiva
impossibilidade de comunicação. Se há algum diálogo verdadeiro, este é o diálogo
Texto apresentado no VI Seminário da Graduação de Filosofia da UFRJ. O texto aqui publicado é o
mesmo que fora lido na abertura do evento, para manter seu caráter oral e respeitar as condições de sua
escrita.
2
Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ.
3
Um filme falado, Manoel de Oliveira. Atlanta Filmes, Portugal, 2003.
1
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impossível, no qual, quando se pensa ter conseguido reunir as diferentes vozes em um
uníssono, o coral destoa com a estrada do estranho.
Ensaiar aqui uma proximidade entre Jacques Derrida e Manoel de Oliveira pode
não ser um despautério tão grande, pois sei de ao menos uma vez em que se deu um
encontro entre os dois: pouco tempo antes da morte do filósofo franco-magrebino, o
cineasta português esteve presente em sua laureação na Universidade de Coimbra. Mas,
para-além dos fatos – pois creio mesmo no dever de a filosofia se desapegar deste
obsessivo amor aos fatos –, esta cena pode muito bem ser lida sob a ótica
desconstrutiva: aliás, como toda cena digna deste nome, como toda escritura que assume
o seu caráter de encenação. Se o pensamento filosófico sempre se ocupou e se preocupou em escrever o perfeito diálogo, no qual cada filósofo cria seu relato através da
orquestração das diferentes vozes da história do pensamento de acordo com sua própria
partitura, os textos desconstrutivos - e espero poder incluir os meus dentro desta
"comunidade sem comunidade" - dedicam-se a mostrar a dissonância que se esconde
por detrás desta grande sinfonia chamada "a filosofia".
Mas de volta ao filme falado de Manoel de Oliveira e ao texto escrito de Jacques
Derrida, imaginemos Delfine, personagem de Catherine Deneuve, percebendo a
estranheza do diálogo aqui emblemático, antes da entrada em cena do português. Ela
diz: referindo-se à estranha possibilidade de os peixes se comunicarem que "também
nós nos comunicamos de forma estranha". E completa: "Sim. Estranha, inédita, insólita.
De maneira muito pouco normal. Não notou que nesta mesa cada um fala a sua própria
língua e que viemos todos de países onde se falam línguas diferentes?", sendo
imediatamente interrompida por Francesca, a personagem italiana: "e o mais esquisito é
tudo parecer tão natural". E a estranheza para Francesca é outra. Ela observa:
"Sinceramente, não sei, mas acho que cada um de nós se exprime à sua maneira, seja
homem ou mulher. E nada é mais cômodo do que falarmos na nossa língua". O capitão
John, personagem de Malcovitch, depois de observar longamente a conversa entre as
três damas, sublinha com sua ironia: "De fato, estou começando a achar que vocês três
deviam se unir para reconstruir uma nova e harmoniosa Torre de Babel, onde todos
falássemos a mesma língua à sombra da árvore do bem", e é respondido
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afirmativamente na mesma hora por Delfine. E a cena termina com um brinde a esta
fórmula fabulosa de intercomunicação poliglota - para eles, extraordinária.
A meu ver, encontram-se aqui três aspectos importantíssimos para meu intuito de
pensar a relação entre monolingüismo e tradução: primeiro, a aparente surpresa com
relação à possibilidade de um diálogo entre os diversos idiomas europeus; em segundo
lugar, a não-participação do português neste cosmopolitismo lingüístico, que aparece
justamente como o elemento estranho; e at last but not least, a frase de Francesca que
diz que "nada é mais cômodo do que falarmos na nossa língua". A impossibilidade de
diálogo, que tem sérias implicações políticas na leitura desconstrutiva, a entrada em
cena do estranho, do outro da língua, e o consolador elemento próprio da língua:
temas-centrais de duas obras de Derrida, O monolinguismo do outro e Torres de Babel,
das quais eu pretendo agora uma espécie de "sinopse interessada".
*
Começo pelo “monolingüismo”. Perto do final do livro, Derrida sintetiza as
questões que parecem cruciais para se pensar a língua de modo desconstrutivo.
Pergunta-se ele: “como é que é possível que a única língua que este monolingüe fala e
está destinado a falar, para todo o sempre, como é que é possível que ela não seja sua?”;
ou ainda: “como acreditar que ela permanece ainda muda para ele que a habita e que ela
habita o mais rente possível, que ela permanece distante, heterogênea, inabitável e
deserta?”; e mais: “deserta como um deserto no qual é preciso crescer, fazer crescer,
construir, projetar até mesmo a idéia de uma via e o rastro de um retorno, uma outra
língua ainda?” (MO 89). Este texto de 1996 pode ser entendido como um passo a mais
de uma idéia que Derrida já aludia desde a década de setenta: se antes, em Margens da
filosofia, lia-se que “é necessário falar várias línguas e produzir vários textos
simultaneamente” (MF 177), mais de vinte anos depois, Derrida diria: “se eu tivesse que
arriscar [...] uma única definição da desconstrução, breve, elíptica, econômica, como
uma palavra de ordem, eu diria: mais de uma língua” (MO 23).
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O Monolingüismo de Derrida é escrito sob a forma de um diálogo em que se
entrecosturam a relação com o outro, a ficção e a autobiografia. Assumindo desde o
início tratar-se de uma estória escrita por um franco-magrebino apaixonado por uma
certa língua, a francesa, língua sua mas a ele imposta, e portanto também a história de
sua inscrição violenta nesta língua, o texto trará sempre a marca da tensão e das
questões (do) limite. É por essa razão que aqui não mais se pode guiar pela lógica da
oposição binária, luzente no simples "isto ou aquilo": na desconstrução, a lógica do
"ou" é substituída por duas economias indecidíveis que têm como função justamente
mostrar a precariedade do dualismo através da emergência de um terceiro termo que
desestabiliza a lógica opositiva e a desloca para outro nível de discussão. Trata-se então
de se pensar sob uma ótica do "nem nem" (como eu pretendi algumas vezes mostrar
através da indecidibilidade do termo "úmido", que nem é seco nem molhado), mas
também sob a ótica do "entre", como Derrida faz em Gramatologia, ao falar da
"brisura" como aquilo que rompe com a oposição dentro/fora, por estar ao mesmo
tempo dentro e fora.
Desse modo, entre as economias do nem x nem y e a do ao mesmo tempo x e y,
Derrida delineia o lugar da desconstrução em uma certa “dobra” da língua, sendo a sua
tarefa assumir a paixão por esta dobra que persiste para manter a dimensão intrínseca à
língua do segredo. Se, para Derrida, o meu monolingüismo, ou seja, o fato de eu falar
apenas uma única língua, é sempre um monolingüismo do outro, então há sempre uma
certa experiência de interdição na ordem da linguagem, algum segredo que deve sempre
permanecer secreto. Mas é fato que esta língua do segredo é também esta minha língua,
esta que eu creio ser minha, que eu creio manipular e que eu tenho a pretensão de quase
ser como uma matéria prima. Mas é na borda dessa língua, ou seja, na tensão da língua,
às suas margens e apenas aí que eu posso habitar, pois ela me pertence sem me
pertencer, eu sou dela sendo estranho a ela, e ela é minha sempre me escapando e me
desapropriando de mim mesmo e desapropriando-se de mim. É neste estranho lugar que
dá a relação mais "própria" (entre muitas aspas) destas duas ficções: "sujeito" e
"língua", ou melhor, neste caso entre "eu" e "minha língua". E a grande dificuldade que
se encontra no texto derridiano resulta justamente do fato de o autor se situar, ou
melhor, assumir esta borda como seu lugar de narração: Derrida escreve e escreve-se
neste limite da língua, nesta tensão entre o “dentro” e o “fora”, nem dentro nem fora da
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língua, dela ao mesmo tempo amante e ressentido, invejoso e apaixonado, querendo
dela se apropriar para apropriar-se de si.
Derrida diz que só se tem uma língua, o que constitui o monolingüismo, ou
ainda, o que torna o sujeito monolingüe. No entanto, essa língua não me pertence,
jamais será a língua de um determinado sujeito. Esta língua que, sendo de tal modo
única e singularmente minha, não é, nunca foi e nem será minha, é uma língua dividida,
desde sempre interditada, que frustra a cada instante meu desejo de fazer justiça às
coisas, o desejo de adequação ao falar, é o que “guarda” o impossível no coração de
toda língua: e o que se chama aqui de língua não é mais uma ou determinada língua,
mas a “minha língua” que todos são capazes de falar - a estrutura de ser e não ser minha
de toda língua. Em uma palavra, é isso que Derrida chama de escritura.
Esta “lei da língua” dissemina-se em uma dupla lei que diz que, ao mesmo
tempo, "não falamos nunca senão uma única língua" e "não falamos nunca uma única
língua" (MO 19), pois toda língua traz sempre consigo a marca do estrangeiro: não se
fala nunca uma única língua porque toda língua é desde sempre interditada, mesmo e
sobretudo a língua dita “materna”, sendo esta sempre estrangeira; ao mesmo tempo, não
se fala nunca senão uma única língua pois a soberania da língua se impõe ao falante
como única lei a ser seguida, o que configura o inevitável monolingüismo do outro:
O monolingüismo do outro quer ainda dizer outra coisa, que se descobrirá pouco a pouco: que de
qualquer modo não falamos senão uma língua - e que não a temos. Não falamos nunca senão
uma língua - e ela é dissimetricamente, a ele regressando, sempre, do outro, guardada pelo outro.
Vinda do outro, permanecendo do outro, ao outro reconduzida. (MO 57)
A alteridade irredutível da língua configura-a sempre como sendo minha e, ao
mesmo tempo, estrangeira, própria e desde sempre desapropriada. A língua é a língua do
outro, ou melhor, é a própria vinda do outro, sua emergência como alteridade absoluta e
radical que, por sua interdição, me será sempre inalcançável.
Esta minha língua do outro é o que faz dobrar a minha língua segundo sua dupla
lei e o que me obriga a falar nesta borda, neste limite impreciso que não permite que se
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distinga em que medida este monolingüismo é meu ou é do outro. Monolingüismos
embaralham-se nestas fronteiras, que não deixam de ser fronteiras, mas que, por isso,
por este processo de embaralhamento, não permitem mais nenhuma propriedade ou
identidade precisa, caracterizando o que Derrida chama de uma “ex-apropriação da
língua”: movimento também duplo que, desapropriando-me de toda identidade ou
pretensa autenticidade, contudo, me convoca, me obriga a permanecer nesta borda e
respeitar este segredo, a correr cegamente atrás deste impossível ao qual se deseja tanto
fazer justiça. E, no entrecruzamento destes monolingüismos, no qual escrevo meu
monolingüismo, que sendo a mim completamente estrangeiro não deixa de ser meu, ao
contrário, tendo nesta estrangeiridade a única possibilidade de se pensar em identidade
ou singularidade, línguas se falam e se escrevem, confundem-se, contaminam-se e,
somente assim, é possível que haja disseminação, proliferação de idiomas e, com isso,
que se fale mais de uma língua ao mesmo tempo.
*
Trata-se, então, aqui, em última instância, de tradução. E o que fica antecipado
no início d'O monolingüismo do outro quando Derrida diz que esta lei da língua não é
apenas a lei da tradução, mas mais ainda a "lei como tradução" (MO 22), parece, no
final do livro, enunciar o outro passo necessário para se pensar o movimento da
escritura:
Podemos também traduzi-la [a necessidade ou a legitimidade de todas as emancipações, não
obstante a hegemonia colonial de todo monolingüismo] no idioma de Celan, este poeta-tradutor
que, escrevendo na língua do outro e do holocausto, inscrevendo Babel no próprio corpo de cada
poema, reivindicou no entanto expressamente, assinou e selou o monolingüismo poético da sua
obra. Podemos também confiá-la, sem traição, a outras invenções de idioma, a outras poéticas,
ao infinito. (MO 102)
Assim, se pensarmos a tradução como simplesmente o transporte de um
conteúdo original de uma língua materna para outra língua, podemos já problematizála logo de início: desde a noção de transporte, que imprescinde de uma verdade a ser
transportada, uma "origem", passando pela idéia de conteúdo como "presença", onde há
algo a ser presentemente transportado, até a pressuposição de uma propriedade da
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"língua própria". Nesse sentido, o tema da tradução em Derrida faz confluir seus
escritos anteriores sobre a metaforaricidade da escritura (como, por exemplo, em
Gramatologia e Esporas - os estilos de Nietzsche), sobre a comunicação (como em
Assinatura acontecimento contexto), sobre a ficcionalidade (como em Atos de
literatura) e sobre o monolingüismo com os escritos do primeiro pensador da tradução:
Walter Benjamin. E esta confluência, que fica explícita em um pequeno texto de 1998,
chamado Torres de Babel, é a razão para que a tradução seja vista como uma questão
que diz respeito ao coração mesmo do pensamento, em que ele todo está em jogo - e o
exemplo desta situação aporética encontra-se na fábula bíblica de Babel. Para resumir a
trama, cito Geoffrey Bennington:
O Gênese conta como a tribo dos Shem (a palavra Shem significa nome em hebraico) quis tornar
seu nome famoso, edificando uma torre e impondo unicamente a sua língua a todos os povos da
terra. Para puni-los por essa ambição excessiva, Javé destruiu a torre gritando seu nome “Bavel”
ou “Babel”, que (confusamente) se parece com a palavra hebraica que quer dizer “confusão”, e
impôs a diferenciação lingüística em toda a terra. (...) Ao impor seu nome (confusamente
percebido como “confusão”) contra o nome do nome (Shem), deus impõe, desde então, a
necessidade e a impossibilidade da tradução. A dispersão das tribos e das línguas sobre a terra os
condenará à confusão, logo, à necessidade de se entretraduzir sem jamais conseguir alcançar a
tradução perfeita, o que significaria a imposição de uma única língua. Nesse meio de relativa
confusão, resultado de uma tradução confusa do nome de Deus, estamos condenados, não a uma
total incompreensão, nem a uma pura intraduzibilidade, mas a um trabalho de tradução que
jamais estará completo. Como a confusão absoluta é impensável assim como a incompreensão
absoluta, o texto está por definição “situado” neste meio, e, portanto, todo texto reclama uma
tradução que jamais será feita. (JD 124-125)
Em uma mesa redonda sobre tradução que aconteceu na Universidade de
Montreal em 1979, Derrida já teria aludido à passagem bíblica e dito que quando Javé
interrompe a construção da torre e condena a humanidade à multiplicidade de
linguagens, é “a necessária e impossível tarefa de tradução” (RT 98) que está entrando
em cena. Isso se dá porque, com a declaração de guerra de Deus à tribo, ou seja, de
Babel aos semitas, ou, ainda mais, da Confusão ao Nome, com a maldição que impõe
que haja singularidades, há algo que sempre permanecerá intraduzível: a estranheza
mesma da singularidade de cada língua. Derrida dá, então, o exemplo do conto “Pierre
Ménard” de Jorge Luis Borges. No conto, o autor cria um personagem fictício que
desejava escrever, pela primeira vez, “Dom Quixote” – e nota-se que o personagem não
queria escrever uma versão, mas sim o original. O conto está escrito em espanhol, mas é
marcado por uma atmosfera estritamente francesa: “Pierre Ménard é um francês, a
estória acontece em Nîmes e há todo tipo de ressonâncias que levam Borges a escrever
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seu texto em uma língua espanhola que é muito sutilmente marcada por uma certa
francesidade”(RT 99). Quando Derrida ouvira um comentário sobre esse texto, dizendo
que no fim das contas a tradução francesa pareceria bem mais fiel que o original, ele
disse que sim e que não, primeiro pelo fato de não haver “originalidade” no original, por
não se acreditar mais na primazia da língua materna, como também pelo fato de, na
tradução, ter se perdido à estranheidade que a língua francesa operava no espanhol. E
conclui: “a tradução pode fazer tudo, menos marcar esta diferença lingüística inscrita na
linguagem” (RT 100). E, certamente, esta é a “moral” que Derrida retira do relato
bíblico, uma certa contaminação já presente em cada língua, uma contaminação que é
de tal modo sua que quase se assemelha a uma originalidade e que é o que impossibilita
a tradução perfeita. E é isso também que faz com que Derrida veja no exemplo de Babel
uma “epígrafe para todas as discussões sobre tradução”, tanto por seu tema, que
confronta o nome próprio, ou seja, o desejo de propriedade da língua, com a confusão
mais própria que a propriedade do nome, como pelo próprio relato, que, ao se traduzir
para qualquer língua, ao pretender se ajustar a qualquer outra língua, perde o seu jogo
de nomes e de palavras que compõem a trama do relato.
Uma primeira observação aqui então se dirigiria à tribo de Shem, ou melhor, às
"tribos do nome" em geral. Eles pretendiam conquistar um nome para si e carregar,
assim, o nome do nome, e impondo sua língua a todos os outros povos, seu nome
reinaria sobre todos os nomes e sua língua seria a única a ser falada. O nome do nome é,
portanto, o nome mais próprio que pretende ver sua identidade estendida a todos os
outros, e, através da imposição de sua língua, a vitória do Mesmo sobre o Outro. Então
intervém Deus, que derruba a torre, impondo seu nome, o nome de Deus, à torre. Ele,
Javé, grita seu nome, não seu nome dado, mas seu nome por si escolhido, seu nome
“próprio” – o que demonstra sempre um duelo entre nomes próprios: e a guerra de
Deus contra os semitas dá-se pela destituição do nome “Shem” por “Babel”, o nome da
torre destruída. Além disso, o nome escolhido de Deus, “Babel” confronta-se com seu
nome dado pelos hebreus “Javé” e, nesse sentido, o nome “Babel”, substantivo comum
tornado próprio, a confusão maiusculada, destitui, de uma só vez: 1. o nome próprio de
Deus (que nunca foi próprio, mas que, agora, mais que nunca, significando “confusão”,
não pode ser de modo algum apropriável); 2. o nome da torre (que é destruída ao ser
nomeada, passando a chamar-se, em meio aos escombros, “confusão”, ou seja, que só
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passa a ser algo no momento de nomeação, que é, ao mesmo tempo, o momento de
destituição de qualquer propriedade); e 3. o nome do povo (que se chamava “nome” e
que agora não possui mais nome, por ter sido vencido pelo nome e pela confusão de
Deus, pelo nome que é da confusão e de Deus, por Deus e pelo nome da confusão...). E
tudo isso acontece apenas no simples ato de se dizer: Babel.
Derrida então aponta o problema de se traduzir “Babel” por “confusão”, porque
assim se estaria traduzindo um substantivo próprio por um comum, mas apenas assim
fica claro o fato de Deus estar declarando guerra aos homens no mesmo momento em
que os força a traduzirem seu nome por um nome comum, condena-os com isso à
multiplicidade de línguas.
Traduzam meu nome, diz Ele, mas ao mesmo tempo Ele diz: vocês não conseguirão traduzir meu
nome porque, em primeiro lugar, é um nome próprio e, em segundo, o meu nome, o nome que eu
próprio escolhi para esta torre, significa ambigüidade, confusão, et cetera. Assim, Deus, em sua
rivalidade com a tribo dos Shems, dá-lhes, em um certo modo, um comando absolutamente
duplo. Ele impõe um duplo vínculo [double bind] a eles quando diz: traduzam-me e, o que é
mais importante, não me traduzam. Eu desejo que vocês me traduzam, que vocês traduzam o
nome que eu impus a vocês; e, ao mesmo tempo, o que quer que vocês façam, não o traduzam,
vocês não serão capazes de traduzi-lo. (TB 11)
*
E Deus, aqui, nada mais é que o nome sem-nome da desconstrução da Torre de
Babel, pois é ele quem interrompe a construção; e ele interrompe a construção no
próprio ato de interditar a tradução; e interditar a tradução significa ordenar e proibir:
significa dizer “que haja tradução” e ao mesmo tempo advertir que a tradução será
sempre impossível. Desconstrução, então, como uma injunção à ação, mas a uma ação
que se sabe desde sempre interdita e, por isso, infinita. Aqui, Derrida diz o seguinte:
Quando Deus lhes impõe e opõe seu nome, ele rompe a transparência racional, mas inte rrompe
também a violência colonial ou o imperialismo lingüístico. Ele os destina à tradução, ele os
sujeita à lei de uma tradução necessária e impossível; por conseguinte, do seu nome próprio
traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais submetida ao império
de uma nação particular), mas ele limita por isso a universalidade mesma: transparência
proibida, univocidade impossível. A tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas a dívida que
não se pode mais quitar. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel:
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que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertence sem pertencer a uma língua e endividase junto dele mesmo de uma dívida insolvente, ao lado dele mesmo como outro. Tal seria a
performance babélica. (TB 25-26)
E não seria isso o mesmo que, alguns poucos anos antes, ao falar da necessidade
ou da legitimidade de emancipações no interior mesmo da hegemonia colonial que o
monolingüismo do outro comporta, Derrida queria dizer, ao invocar as invenções
poéticas de idioma como as de Celan? Não seria essa a mesma "guarda ciosa" que
montamos junto à língua e que, como Derrida, nos obriga a denunciar as "políticas
nacionalistas do idioma"? Não seriam esses os tantos pedágios pagos nas fronteiras das
línguas que exigem que se multipliquem os shibboleths? Pelo menos, para mim, este
caráter profundamente ético e político, no sentido mais radical que podem suportar as
palavras “ética” e “política”, é o que deveria motivar o imperativo desconstrutor
endereçado a nós, tradutores dignos desse nome.
Inventa pois na tua língua se fores capaz ou se quiseres ouvir a minha, inventa se podes ou
queres dá-la a ouvir, a minha língua, como a tua, aí onde o acontecimento da sua prosódia não
tem nela lugar senão uma vez, aí mesmo onde o seu "foro próprio" perturba os coabitantes, os
concidadãos e os compatriotas... Compatriotas de todos os países, poetas-tradutores, revoltai-vos
contra o patriotismo! De cada vez que escrevo uma palavra, ouves, uma palavra de que gosto e
que gosto de escrever, o tempo desta palavra, o instante de uma única sílaba, o canto desta nova
internacional ergue-se então em mim. Nunca lhe resisto, estou imediatamente na rua ao seu
apelo, mesmo se aparentemente, desde madrugada, trabalho em silêncio à minha mesa. (MO 98)
Referências bibliográficas
BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida (JD). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1996.
BORGES, Jorge Luís. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 2001.
DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro (MO). Tradução de Fernanda
Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001.
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia (MF). Campinas: Papirus, 1991.
DERRIDA, Jacques. “Roundtable on translation” (RT). In: The ear of the other.
Otobiography, transference, translation. Lincoln and London: University of Nebrasca
Press, 1985.
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DERRIDA, Jacques. Torres de Babel (TB). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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