Outubro – Dezembro/2014

Transcrição

Outubro – Dezembro/2014
EDITORIAL
Relatos de caso: o passo inicial para escrita científica
Desde Hipócrates, relatos de casos representam uma
importante fonte de ensino e pesquisa em medicina. No
início do século passado, Sir William Osler considerou os
relatos de casos que foram registrados com rigor como um
valioso recurso de educação e pesquisa. Harvey Cushing,
indiscutivelmente o maior neurocirurgião do século XX e
biógrafo de Osler, considerava o relato de caso como o
mais velho, o mais básico e um dos mais valiosos meios de
informação e ensino em medicina (1).
Nos últimos anos, relatos de casos ganharam status
de ‘segunda classe de publicação’ aos olhos dos editores e
leitores experientes. Muito desta condição se deve ao fato
do relato de caso ser uma desculpa para uma revisão de
literatura despretensiosa, sem propósito claro e sem uma
mensagem educacional para o leitor (2). Um relato de caso
é definido e julgado pela importância, clareza e praticidade
de sua mensagem educativa. A razão do relato de caso ter
atingido esta pouca importância se deve ao fato de esses
atributos serem ignorados.
Nesta edição, estamos dando prioridade a relatos de
caso e aproveitamos a ocasião para refletir sobre esta forma de artigo científico, muito comum em nossa revista e
que representa o primeiro passo de muitos de nossos autores no terreno da divulgação científica.
Relatos de casos e série de casos não fornecem evidências com a mesma força que a pesquisa clínica. Eles
são altamente sensíveis em identificar peculiaridades de
forma qualitativa, mas pouco específicos para confirmação quantitativa. Ensaios clínicos randomizados são desenhados para evitar vieses; por isso mesmo, eles não são
o delineamento adequado para identificar o novo. Relatos
de casos e série de casos têm grande potencial para estimular a aprendizagem do novo, mas carecem de garantias contra possíveis vieses. No entanto, não há nenhuma
outra maneira de detectar novas ideias e, sem essas, cessa
todo avanço da medicina (3).
O relato de caso, idealmente, deve ser estimulante e
agradável de ler e ajudar o leitor a reconhecer e lidar com
uma questão ou um problema semelhante que surgir em
sua própria prática. É essencial para a elaboração do relato
de caso que o postulado central do mesmo deve ser claro,
assim como a mensagem primária. Redação fluente, estilo
e estrutura são essenciais, o relato de caso é escrito para o
leitor e não para o autor. Um bom relato de caso é um artigo
científico, por isso precisará da dedicação de tempo e de esforço. Um conhecimento profundo da literatura especializada aumenta as chances de uma exposição convincente. Na
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 265-266, out.-dez. 2014
discussão, é importante considerar possíveis confundidores,
que possam influenciar a evolução do caso descrito (4).
O que merece ser publicado como um relato de caso?
Podemos arrolar algumas condições, a saber: 1) condição
totalmente original, por exemplo, uma nova doença; 2)
condição rara e de relato anterior ocasional; 3) apresentação incomum de uma doença comum; 4) associação inesperada entre sintomas/sinais relativamente incomuns; 5)
impacto de uma doença em outra; 6) evento inesperado
no decurso de um tratamento; 7) impacto de um regime
de tratamento de uma condição em outra doença; 8) inesperada complicação de tratamento ou procedimento; 9)
novo tratamento; 10) erros não intencionais no manuseio
de pacientes (5).
A lição que o leitor irá aprender e se beneficiar depois
de ler o relato – a mensagem educativa – deve ser clara e
sucinta. A seguir, alguns exemplos de temas para mensagens educativas: 1) alertar que o diagnóstico pode ser feito
mais facilmente no futuro; 2) lançar uma nova luz sobre a
possível etiologia/patogênese de uma condição ou complicação; 3) ilustrar um princípio novo, ou apoiar ou refutar a
teoria atual; 4) elucidar uma condição clínica anteriormente
incompreendida ou resposta a um tratamento; 5) informar
sobre como um problema pode ser previsto e evitado no
futuro. Uma vez selecionado o que é mais adequado, o
caminho fica claro para produzir um bom relato (5).
A estrutura de um relato de caso compreende: Introdução; Descrição do caso; Discussão e Comentários
finais, em que são enunciadas as conclusões e recomendações. Não se recomenda introdução longa e revisão extensa da literatura. A discussão é o momento de contrapor
os dados da revisão bibliográfica com os achados do caso
relatado. Os aspectos encontrados assim como aqueles que
não foram encontrados devem ser confrontados com os
dados da literatura, com ênfase na mensagem educativa
proposta. Ilustrações e fotografias devem obedecer exatamente aos requisitos do jornal; isso inclui tamanho, coloração, textura e rotulagem.
Um relato de caso é uma produção científica simples,
que não requer uma equipe de pesquisa com vários membros, portanto a autoria deve ficar restrita àqueles que estiveram mais próximos do caso e que tiveram participação
ativa na condução do mesmo. O consentimento do paciente para o relato é imprescindível e deve ser obtido por
meio da assinatura do paciente ou seu representante legal
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, referendado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição
265
RELATOS DE CASO: O PASSO INICIAL PARA ESCRITA CIENTÍFICA Fagundes
na qual o paciente foi atendido. A não observância deste
quesito implicará em rejeição do manuscrito pela maioria
dos periódicos científicos.
Relatos de casos, em virtude de sua simplicidade, são
ideais para o escritor iniciante. A tentação é escrever qualquer coisa que pareça interessante na esperança de ser publicado. Por essa ótica, descobre-se que isso representará a
frustração de ter o manuscrito recusado.
Relatos de casos e série de casos têm seu lugar no progresso da ciência médica. Eles permitem a descoberta de
novas doenças e efeitos adversos ou benéficos, bem como
o estudo dos mecanismos das doenças, além de desempenharem papel importante na educação médica. Relatos de
casos e série têm uma alta sensibilidade para a detecção de
novidade e sugerir ideias novas. Ao mesmo tempo, bons
relatos de caso exigem foco definido para tornar explícito
266
para o público por que uma observação particular é importante no contexto do conhecimento médico existente.
RENATO B. FAGUNDES, MD PhD
Editor Executivo
REFERÊNCIAS
1. Cushing HW. The life of Sir William Osler. Oxford University Press
1926 Inc, USA.
2. Fox R. Writing a case report: an editor’s eye view. Hosp Med.
2000;61(12):863-4.
3. Vandenbroucke JP. Case reports in an evidence-based world. JRSM.
1999;92(4):159-63.
4. Kienle GS, Kiene H. Methodik der Einzelfallbeschreibung. Der
Merkurstab 2009;62(3): 239-42.
5. Chelvarajah R, Bycroft J. Writing and publishing case reports: the
road to success. Acta Neurochirur. 2004;146(3):313-6.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 265-266, out.-dez. 2014
RELATO DE CASO
Mielinólise pontina em paciente etilista
Pontine myelinolysis in an alcoholic patient
Bianca Astrogildo de Freitas1, Camila Muratt Carpenedo1, Maura Cirne Rodrigues2, Guilherme Brandão Almeida3,
Fernanda Dias Almeida4, Marcos Henrique Mattos de Sá5
RESUMO
A Mielinólise Pontina (MP) define-se como uma lesão desmielinizante, associada a quadro de tetraparesia e incapacidade na fala,
frequentemente relacionada a distúrbios eletrolíticos e observada em pacientes etilistas. Relatamos o caso de um paciente com diagnóstico de MP firmado por ressonância magnética.
UNITERMOS: Mielinólise Central Pontina, Síndrome de Desmielinização Osmótica, Alcoolismo, Hiponatremia.
ABSTRACT
Pontine myelinolysis (MP) is defined as a demyelinating lesion associated with tetraparesis and disability in speech, often related to electrolyte disturbances
and observed in alcoholic patients. Here we report the case of a patient diagnosed with MP through MRI.
KEYWORDS: Central Pontine Myelinolysis, Osmotic Demyelination Syndrome, Alcoholism, Hyponatremia.
INTRODUÇÃO
A Mielinólise Pontina (MP) define-se como uma lesão
desmielinizante do encéfalo (1), que atinge principalmente a ponte, podendo comprometer outras regiões, caracterizando, dessa forma, a Mielinólise Extra-Pontina (MEP).
Pode ocorrer esporadicamente em todas as idades, na
mesma proporção entre os dois sexos, e sua incidência
exata ainda é desconhecida. Está relacionada, principalmente, à correção abrupta de hiponatremia, mas quando
não associada a distúrbios hidroeletrolíticos, pode ser observada em pacientes com fatores de risco, como abuso
de álcool e drogas, desnutrição, doença hepática, câncer e
doença de Addison (2).
Sua apresentação clínica, muito variável, inclui um quadro de paralisia pseudobulbar, tetraparesia, e alterações
agudas no estado mental, variando de queda do nível de
consciência até síndrome do encarceramento, coma e mor1
2
3
4
5
te (3). Pode haver melhora significativa do quadro após
algumas semanas, e o prognóstico parece independer do
grau de anormalidades neurológicas (4). Através da Ressonância nuclear magnética crânio-encefálica (RNM-CE),
exame de melhor acurácia para detecção de lesões típicas
da doença, pode ser feita a confirmação diagnóstica (2,4).
Nenhum tratamento específico foi estabelecido até o presente momento (6).
Os autores relatam um caso de paciente etilista com
diagnósticos firmado de MP por RNM-CE, com evolução
favorável. Foi obtido consentimento livre e esclarecido do
paciente acerca da publicação deste estudo.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 44 anos, raça negra, aposentado, com antecedentes de etilismo crônico e tabagismo,
recorreu a Pronto Socorro no dia 14/11 por um quadro
Acadêmica de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Médica. Residente de Clínica Médica do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. da FURG.
Mestre. Médico Cardiologista, Preceptor de Clínica Médica do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG.
Mestre. Médica Neurologista do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG.
Médico Clínico Geral, Preceptor de Clínica Médica do Hospital Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. e Docente da FURG.
268
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014
MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al.
de vertigem e alteração da marcha. Na chegada, paciente
encontrava-se com sinais vitais estáveis e ataxia. Foram realizados exames de rotina, incluindo eletrocardiograma, que
não evidenciou alterações, e laboratoriais (Tabela 1). Após
exames, foi iniciada a reposição iônica. No dia seguinte ao
início do quadro, em 15/11, o paciente evoluiu com febre,
sudorese intensa, agitação psicomotora, desorientação no
tempo e espaço e déficit global de força. O exame neurológico evidenciou pupilas isocóricas e fotorreagentes,
sem alterações oculomotoras, e tetraparesia assimétrica.
Os sistemas cardíaco e respiratório e exame de abdome não
evidenciavam nenhuma alteração. Foram solicitados novos
exames (Tabela 1) e Tomografia Axial Computadorizada
Crânio-Encefálica (TAC-CE). Teste rápido para HIV e
sorologias para Hepatites A, B e C não reagentes. Exame
comum de Urina apresentou bacteriúria moderada a intensa, com 20-25 eritrócitos e 10-15 leucócitos por campo.
O exame tomográfico do crânio revelou proeminência dos
sulcos corticais, cisternas basais e fissura de Sylvius; tecido
encefálico com coeficiente de atenuação normal; sistema
ventricular de configuração anatômica; fossa posterior sem
alterações. Foram prescritos na emergência enema, dieta
para hepatopatia crônica via sonda nasoenteral, sonda vesical de demora, para controle da diurese, lactulose solução,
suplementos vitamínicos e antibioticoterapia após coleta
de culturais, com as hipóteses diagnósticas de Encefalopatia Hepática, Síndrome da Abstinência e Infecção do Trato
Urinário. Após quatro dias, diante da alteração de função
renal apresentada pelo paciente, foram suspensas medidas
para Encefalopatia e mantidos antibioticoterapia, suplementos vitamínicos, acrescidos de hidratação parenteral.
Segundo avaliação do neurologista, as alterações apresentadas pelo paciente, nesse momento, eram sugestivas de
Abstinência Alcoólica.
Apesar da melhora do padrão laboratorial durante a
internação, verificava-se redução progressiva da colaboração e persistência do quadro febril. Após cerca de 10 dias,
observou-se degradação do estado geral do doente, o qual
apresentou afasia motora, diaforese, tremor de extremidades e febre. O exame neurológico revelou “síndrome
do encarceramento” (locked-in syndrome). O paciente apresentava abertura ocular espontânea, sem resposta verbal
e obedecendo a comandos, pupilas isocóricas e fotorreagentes, movimento ocular extrínseco preservado, ausência
de papiledema à fundoscopia, tetraparesia assimétrica, com
força grau I em hemicorpo direito e grau 0 em esquerdo,
hiporreflexia profunda e cutâneo-plantar extensor bilateral.
Na ocasião, foi suspensa a antibioticoterapia e, após 48h,
coletados novos culturais. A análise do líquido cefalorraquidiano foi inespecífica. Ultrassonografia de abdome revelou moderada hepatomegalia, ausência de líquido ascítico,
veias porta-esplênicas de calibre normal e demais órgãos
sem alterações. Nova TAC-CE evidenciou hipodensidade
de tronco cerebral, comprometendo principalmente ponte
e mesencéfalo, e proeminência dos sulcos corticais. Foram
mantidas as medidas terapêuticas iniciais com vitaminas do
complexo B, Tiamina, e reintroduzida antibioticoterapia.
Diante da persistência do quadro neurológico, mesmo
após normalização dos níveis séricos de Na e K do paciente, foi realizado exame de RNM-CE, que revelou leve
redução volumétrica encefálica caracterizada por acentuação das cisternas basais e sulcos corticais, e hipersinal em
T2 na região central da ponte (Figura 1), sem impregnação de contraste ou efeito de massa significativo. Embora
a RNM-CE não tenha revelado a imagem clássica dessa
patologia, o quadro clínico exuberante somado ao exame
radiológico sugestivo permitiram selar o diagnóstico de
Mielinólise Pontina.
Durante a internação, a terapêutica baseou-se essencialmente em fisioterapia motora e respiratória, dieta por son-
Tabela 1 – Exames Laboratoriais.
14/11
15/11
18/11
39
40
39
-
Hemoglobina (g/dl)
12,8
13,4
12
-
Sódio (mEq/L)
134
141
154
138
Potássio (mEq/L)
2,3
2,2
2,1
4,2
Magnésio (mg/dl)
1,9
0,7
1,5
1,7
Ureia (mg/dl)
21
12
-
35
Creatinina (mg/dl)
0,6
0,6
4,5
0,6
TGO (U/L)
-
233
627
48
TGP (U/L)
-
98
178
35
Gama GT (U/L)
-
2.173
2.085
729
Hematócrito (%)
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014
27/11
Figura 1 – Imagem de RNM-CE, no plano axial, que evidencia áreas
de hipersinal em T2.
269
MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al.
da nasoentérica, além de antibioticoterapia, polivitamínicos
e medidas de suporte.
Após um mês, com melhora progressiva do quadro
clínico, o paciente voltou a contatar verbalmente, houve
progressão da dieta para via oral e recuperação parcial dos
déficits de força. Foram mantidos os suplementos vitamínicos e fisioterapia, porém no dia 31/12, houve evasão
hospitalar do paciente.
DISCUSSÃO
A Mielinólise Pontina define-se como uma lesão desmielinizante do encéfalo, descrita pela primeira vez em
1959, por Adams et al., que detectaram um quadro de tetraplegia, afetando pacientes alcoolistas ou com má nutrição
(1). Em seguida, observou-se sua associação com distúrbios eletrolíticos e, mais tarde, seu maior risco quando a
hiponatremia era corrigida rapidamente. Posteriormente,
o conceito foi alargado com o reconhecimento de lesões
fora da região pontina – Mielinólise Extra-Pontina (MPE).
Após, a MPC e MEP foram integradas no conceito Síndrome da Desmielinização Osmótica (SDO).
A SDO ocorre principalmente quando há correção
excessivamente rápida da hiponatremia grave (geralmente com valores séricos de sódio iguais ou inferiores a 120
mEq/L ou menos), presente há mais de dois ou três dias
(tempo necessário para a adaptação cerebral). No entanto,
alguns pacientes podem desenvolver a SDO com concentrações séricas de sódio mais altas e com menores taxas
de correção. Tais pacientes apresentam alguns fatores de
risco como: doença hepática grave, transplante de fígado,
diabetes insipidus em tratamento com desmopressina, desenvolvimento mais gradual de hiponatremia (dois a três dias),
desnutrição e hipocalemia. A autocorreção do sódio sérico
pode ocorrer quando há administração de solução salina
a doentes com verdadeira depleção de volume, administração de glicocorticoides em pacientes com insuficiência
adrenal, suspensão de medicações que causam Secreção
Inapropriada do Hormônio Antidiurético (SIADH), como
os inibidores seletivos da receptação de serotonina, carbamazepina e desmopressina, interrupção de diuréticos tiazídicos, resolução espontânea de uma causa transitória de
SIADH e tratamento com um antagonista do receptor da
vasopressina (5). Outros eventos já foram, também, associados à MP e MEP, tais como: queimaduras extensas e
pós-cirurgias pituitárias, urológicas e ginecológicas (6).
As lesões cerebrais desmielinizantes associadas à SDO
podem ser detectadas ocasionalmente por TAC-CE, contudo, a RNM-CE é o método mais sensível (2, 4). As lesões são simétricas e hipointensas nas imagens pesadas em
T1, poupando tipicamente a parte periférica da ponte, e
hiperintensas nas imagens pesadas em T2 e FLAIR (3, 6),
sendo esta última evidenciada na RNM-CE do paciente em
questão. Em alguns casos também, esse exame de imagem
pode revelar a lesão típica em “asa de morcego” na base
270
da ponte (3, 9). Ainda assim, a RNM-CE pode não demonstrar alterações nas primeiras semanas após o início da
doença (10), por esse motivo, um exame radiológico inicial
sem alterações em pacientes com alterações neurológicas
sugestivas de SDO não exclui tal diagnóstico.
Clinicamente, a MP costuma ter um curso bifásico. Inicialmente, os doentes apresentam-se encefalopatas ou com
convulsões decorrentes da hiponatremia, o quadro que melhora assim que a normonatremia é restaurada, vindo a piorar
apenas dias após a fase inicial. Na segunda fase da doença,
a MP apresenta-se com disartria, disfagia, tetraparesia flácida – que, posteriormente, torna-se espástica – e, se houver
comprometimento do tegumento da ponte, alterações oculomotoras podem ocorrer (6). O diagnóstico é fortemente
sugerido nesta situação, tendo sido confirmado através da
RNM, que mostrou aspectos consistentes com SDO.
A forte associação com o alcoolismo fez com que os autores encontrassem similaridades patológicas entre MP e outras doenças também relacionadas ao etilismo. Outros efeitos
patológicos do álcool sobre o SNC também foram colocados
como hipótese de diagnóstico provável do caso, mas excluídos por não apresentarem quadro clínico nem exames confirmatórios. A Encefalopatia de Wernick é uma entidade frequentemente associada à MP, corresponde a uma desordem
cerebral causada pela deficiência de tiamina e é caracterizada
por anormalidades oculomotoras, ataxia da marcha e estado
confusional. No caso anteriormente descrito, além do doente
não apresentar a tríade clássica, a RNM não revelou sinais
sugestivos dessa patologia, que consistem em lesões em nível dos corpos mamilares. A doença de Marchiafava-Bignami
associada ao etilismo crônico também foi excluída, uma vez
que a desmielinização e consequente necrose ocorrem principalmente no nível do corpo caloso (4,7).
A evolução desses pacientes é variável, desde a recuperação total, sem sequelas, até o óbito por complicações
como pneumonia, ITU e sepse, TVP ou TEP (2,8). Nosso
doente apresentou algumas complicações como úlceras de
pressão e sepse, no entanto, evoluiu favoravelmente.
O tratamento desta patologia permanece incerto, pois
não há estudos suficientes até o presente momento. Existem relatos de uso de esteroides, imunoglobulina intravenosa e hormônio liberador de tireoglobulina, mas sem benefício comprovado (3,8). No caso descrito, a terapêutica
baseou-se essencialmente em polivitamínicos, fisioterapia e
tratamento das complicações infecciosas.
Em resumo, este relato visa apresentar a Mielinólise
Pontina, patologia que ainda não tem um tratamento definitivo, mas que, muitas vezes, pode ser prevenida com
o manejo cauteloso dos distúrbios eletrolíticos, principalmente naqueles indivíduos que têm maior risco.
COMENTÁRIOS FINAIS
A Mielinólise Pontina consiste em uma doença rara,
manifestada por tetraparesia e dificuldade na fala, por veRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014
MIELINÓLISE PONTINA EM PACIENTE ETILISTA Freitas et al.
zes irreversíveis. Hoje, não existe um tratamento definitivo,
apenas medidas de suporte que podem aumentar a sobrevida dos pacientes com essa patologia, que tem evolução
grave e, frequentemente, fatal.
REFERÊNCIAS
1. Adams RA, Victor M, Mancall EL. Central pontine myelinolysis: a
hitherto undescribed disease ocurring in alcoholics and malnourished patients. Arch Neurol Psychiatry 1959;8:154-72
2. Germiniani FMB, Roriz M, Nabhan SK, Teive HAG, Werneck, LC.
Cetral pontine and extra-pontine myelinolysis in an alcoholic patient
without electrolyte disturbances: case report. Arq Neuropsiquiatr
2002;60(4):1030-1033.
3. Brito AB, Vasconcelos MM, Cruz Junior LC, Oliveira ME, Azevedo AR, Rocha LG, et al. Central Pontine and extrapontine myelinolysis: report of a case with a tragic outcome. J Pediatr (Rio J).
2006;82:157-60.
4. Haes TM, Clé DV, Nunes TF, Roriz-Filho JS, Morigutti JC. Álcool e
sistema nervoso central. Medicina (Ribeirão Preto) 2010;43(2):153-63.
5. Snell DM, Bartley C. Osmotic demyelination syndrome following rapid correction of hyponatraemia. Anaesthesia, 2008, 63, pages 92-95.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 268-271, out.-dez. 2014
6. Martin RJ. Central pontine and extrapontine myelinolysis: the osmotic demyelination syndromes. J NeurolNeurosurgPsychiatry.
2004. 75: iii22-iii28.
7. Marreiros H et al. Mielinolise pôntica e extrapontica. Acta MedPort,
2010. 23(4):709-714
8. Jumo ME, Castro MHA, Lage MA, Dupin JH, Paula AJF, Bello GV.
Osmotic demyelination syndrome: report of a case with favorable
outcome. Radiol Bras. 2012 Jan/Fev;45(1):61-62.
9. Thompson, PD; Miller, D; Gledhill, Rf; Rossor, MN. Magnetic resonance imaging in Central pontine myelinolysis. Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry. 1989;52:675-677.
10. Ruzeka, KA; Campeaua, NG; Miller, GM. Early Diagnosis of Central Pontine Myelinolysis with Diffusion-Weighted Imaging. American Journal of Neuroradiology. 2004 25: 210-213.
 Endereço para correspondência
Bianca Astrogildo de Freitas
Av. Buarque de Macedo, 337
96.211-110 – Rio Grande, RS – Brasil
 (53) 9975-8081
 [email protected]
Recebido 11/7/2013 – Aprovado: 7/9/2013
271
RELATO DE CASO
Síndrome de Guillain-Barré: relato de caso da neuropatia
sensitivo-motora axonal aguda em criança
Guillain-barré syndrome: case report of a child with acute axonal sensorimotor neuropathy
Ingrid Berger Severo1, Larissa Maria Zalewski2, Guilherme José Morgan2,
Letícia Schwerz Weinert3, Fernando Antônio de Oliveira Costa4
RESUMO
A forma sensitivo-motora axonal aguda da Síndrome de Guillain-Barré (SBG) é uma apresentação rara, a qual pode apresentar um
comprometimento neurológico mais grave. O diagnóstico desta morbidade é realizado através da avaliação clínica associada à eletroneuromiografia. Neste artigo, reportamos o caso de um paciente de 13 anos, submetido a medidas de suporte isoladamente, com
evolução neurológica favorável. Em crianças e adolescentes, a melhor abordagem terapêutica para esta condição ainda carece de
evidência científica.
UNITERMOS: Síndrome de Guillain-Barré, Parestesia, Polineuropatias.
ABSTRACT
The acute axonal sensorimotor form of Guillain-Barre Syndrome (GBS) is a rare presentation which may have a more severe neurological impairment. The
diagnosis of this condition is made by clinical evaluation associated with electroneuromyography. In this paper we report the case of a 13-year-old patient
who underwent supportive measures alone, with a favorable neurological outcome. In children and adolescents, the best therapeutic approach for this condition
still lacks scientific evidence.
KEYWORDS: Guillain-Barre Syndrome, Paresthesia, Polyneuropathies.
INTRODUÇÃO
A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma doença neurológica aguda, caracterizada por paralisia flácida
e arreflexia, inicialmente em membros inferiores, e por
aumento da proteinorraquia (1,2,3). Contudo, é relevante salientar que a SGB pode cursar com proteinorraquia
normal no início da doença (3). Dois subtipos de SGB são
mais frequentemente encontrados: o desmielinizante (polineuropatia inflamatória aguda desmielinizante [AIDP]),
e o axonal (neuropatia axonal motora aguda [AMAN]
(1,2) e neuropatia axonal sensitivo motora aguda [AM1
2
3
4
SAN]). Em crianças, a AMSAN, forma mais rara de SGB,
pode apresentar um comprometimento mais grave que os
demais subtipos, embora sua gravidade esteja associada à
extensão da lesão axonal (1).
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 13 anos, previamente hígido, iniciou com quadro de parestesia e alodinia em ambos os pés. Os sintomas evoluíram com piora progressiva
e ascensão pelos membros inferiores de forma simétrica.
Procurou o Pronto Socorro do Hospital Universitário com
Pós-graduanda em Medicina na Universidade Católica de Pelotas (UCPel).
Graduando de Medicina na UCPel.
Médica internista e endocrinologista. Professora da Faculdade de Medicina da UCPel, Doutorado em Ciências Médicas-Endocrinologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
PhD. Professor adjunto da Neurologia e Neurocirurgia da UCPel.
272
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014
SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ: RELATO DE CASO DA NEUROPATIA SENSITIVO-MOTORA AXONAL AGUDA EM CRIANÇA Severo et al.
dificuldade na deambulação e dor intensa nos membros
inferiores, agravada pela dígito-pressão e movimentação,
e com resposta parcial ao tratamento com morfina e gabapentina. Na história médica recente, relatava presença
de nódulos em couro cabeludo, na região parietal, com
desaparecimento espontâneo, havia dez dias. Entretanto,
negava alterações gastrointestinais, sintomas de infecção
ou vacinação recentes. No exame físico, evidenciavam-se
arreflexia do aquileu e hiporreflexia patelar, com sinal de
Babinski negativo. Não houve alteração dos sinais vitais,
instabilidade cardiovascular ou respiratória durante a internação hospitalar. Para confirmação da suspeita clínica de
polineuropatia, foram realizados exames complementares
com urgência. A tomografia computadorizada de crânio
(TC) não demonstrou anormalidades nem presença dos
nódulos relatados pelo paciente; a punção lombar (PL)
mostrou proteinorraquia elevada (101,2 mg/dl), glicose
de 59 mg/dL e 35 leucócitos com 78% mononucleares e
22% polimorfonucleares. Solicitada eletroneuromiografia
(ENMG) de membros superiores e inferiores, a qual foi
compatível com neuropatia sensitivo-motora axonal aguda
(AMSAN), não sendo detectadas lesões desmielinizantes.
Foram excluídas alterações da função tireoideana, hiperglicemia, doenças virais como hepatites e HIV e deficiência de vitamina B12, e não se detectou evidência clínica
de doença autoimune nem neoplásica. Assim, frente ao
quadro clínico e a exames complementares, o diagnóstico
definitivo foi de SGB forma sensitivo-motora axonal aguda. Iniciado tratamento de suporte, porém, devido ao fato
de os sintomas estarem presentes por mais de 2 semanas
no momento do diagnóstico e pela melhora clínica iniciada
após 17 dias de evolução, optou-se pela observação clínica,
sem intervenção medicamentosa. O paciente evoluiu com
melhora quase completa da dor e paresia e recebeu alta
hospitalar para acompanhamento neurológico e fisioterápico ambulatorial.
Por se tratar de um menor de idade, foi autorizado pelo
responsável legal, através de consentimento informado, o
relato do caso em forma de artigo.
DISCUSSÃO
A SGB é uma doença neurológica aguda caracterizada por paralisia flácida, arreflexia e aumento da proteinorraquia, que ocorre principalmente após infecções virais
e bacterianas por Campylobacter jejuni (2,3). Os sinais premonitórios mais frequentes são vômitos e diarreia (2). Os
primeiros sintomas costumam ser parestesia, dor e paresia
nos membros inferiores, geralmente bilateral, simétrica e
progressiva. A paresia pode progredir em 12 horas a 28
dias, e, nos casos mais graves, pode acometer a musculatura
respiratória, com necessidade de suporte ventilatório.
Dois subtipos de SGB são mais frequentes: o desmielinizante AIDP, e o axonal AMAN e AMSAN (4), sendo
que este último foi o subtipo diagnosticado neste caso.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014
A distinção entre os subtipos da SGB não é facilmente
realizada pela avaliação clínica, e a ENMG é mandatória.
Desta forma, apesar de o caso relatado apresentar manifestações clínicas clássicas de SGB, a ENMG é o exame indicado para o diagnóstico definitivo e definição do subtipo.
Entretanto, no início da doença, a ENMG pode superestimar a incidência do subtipo desmielinizante (3).
Os subtipos axonais costumam ser menos frequentes.
Em 2007, um estudo avaliou 121 crianças com suspeita
de SGB, confirmando-se 78 casos, porém nenhum era do
subtipo AMSAN (2). Já a AMAN representa 10-20% dos
casos de SGB no mundo ocidental e 60-70% dos casos de
SGB na China (1). A média de idade para AMAN é de 6,3
anos (intervalo de 1 a 16 anos), e a relação sexo masculino
para sexo feminino é de 1,3 (2). O padrão de envolvimento
nervoso das neuropatias axonais é motor e sensitivo (4), e
costumam ser mais graves que a AIDP em crianças (2-4).
Apesar disso, a gravidade depende da extensão da lesão
axonal. Nos casos com exclusivo comprometimento distal,
a recuperação é rápida e completa (2).
Em estudo de condução nervosa, a AIDP apresenta as
características de desmielinização em dois ou mais nervos,
podendo estar associada aos sintomas neurológicos (3-5).
No entanto, nas formas axonais, a redução de potencial de
ação muscular composto e a ausência de resposta da onda
F ou latência prolongada de onda F são proeminentes para
conclusão eletrofisiológica. A ENMG revela fibrilações e
ondas agudas positivas no período inicial da doença em
pacientes com formas axonais, enquanto que os pacientes
com AIDP apresentam potenciais de denervação no final
da segunda semana (4,5).
Já a avaliação autoimune, como autoanticorpos contra
os constituintes da mielina, gangliosídeos e glicolipídeos
das membranas axonais e mielinais, não é disponível em
nosso meio. Além disso, estudo prévio demonstrou sua
presença em apenas uma pequena parcela de crianças com
SGB e ausência de correlação clínica com a gravidade ou o
subtipo da síndrome (6).
Uma vez diagnosticada a SGB, cuidados de suporte
e monitorização neurológica devem ser instituídos. Em
crianças, evidências apontam para possível benefício da
imunoglobulina intravenosa (Ig IV) na recuperação dos pacientes em comparação com cuidados de suporte isoladamente (7). Por outro lado, não está definida qual a melhor
dose de Ig IV em crianças (2,7). Um estudo observacional
demonstrou que crianças com a forma axonal apresentam
recuperação mais lenta do que aquelas com a forma desmielinizante após a terapia com Ig IV (4). A ineficácia da
Ig IV pode ser devido à instituição tardia da terapia em pacientes com a forma axonal da SGB. Assim, frente à baixa
qualidade da evidência sobre benefícios e potenciais riscos
para o uso de Ig em crianças, em especial naquelas com
evolução clínica superior a 2 semanas e forma sensitivo-motora axonal aguda, optou-se pela não utilização desta
terapia. A plasmaférese (PE), outra opção terapêutica, tem
efeitos semelhantes aos da Ig IV, porém a combinação de
273
SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ: RELATO DE CASO DA NEUROPATIA SENSITIVO-MOTORA AXONAL AGUDA EM CRIANÇA Severo et al.
ambas não oferece benefício adicional. Contudo, a utilização da Ig IV vem sendo considerada mais segura em relação a PE, por ser menos invasiva (7).
Estudos adicionais são necessários em crianças com SGB
para determinarmos o real benefício das terapias citadas, já
que muitos pacientes podem ter resolução espontânea.
COMENTÁRIOS FINAIS
A SGB em crianças, em especial o subtipo neuropatia
axonal sensitivo-motora aguda, é uma neuropatia rara, porém com risco de dano neurológico permanente e morte.
Entretanto, a melhor abordagem terapêutica nesses casos
ainda não está completamente definida. O caso aqui relatado reporta um paciente com uma forma axonal e potencialmente grave da síndrome, com evolução benigna e recuperação da sensibilidade e força dos membros inferiores
com medidas de suporte.
REFERÊNCIAS
1. Torricelli RE. Sindrome de guillain barre em pediatria. Medicina (B
Aires). 2009;(1/1):84-91.
274
2. Nachamkin P, Arzarte Barbosa P, Ung H, Lobato C, Gonzalez
Rivera A, Robriguez P. et al. Patterns of Guillain-Barre syndrome in children: results from a Mexican population. Neurology.
2007;69(17):1665-71.
3. Yuki N, Hartung H-P. Guillain-Barré Syndrome. N Engl J Med.
2012;366:2294-304.
4. Tekgul H, Serdaroglu G, Tutuncuoglu S. Outcome of axonal and
demyelinating forms of Guillain-Barré syndrome in children. Pediatr Neurol. 2003;28:295-9.
5. Paradiso G, Tripoli J, Galicchio S, Fejerman N. Epidemiological,
clinical, and electrodiagnostic findings in childhood Guillain-Barré
syndrome: a reappraisal. Ann Neurol. 1999;46(5):701-7.
6. Hughes RAC, van Doorn PA. Corticosteroids for Guillain-Barré
syndrome. Cochrane Database syst. rev. 2012;Issue 8.
7. Hughes RAC, Swan AV, van Doorn PA. Intravenous immunoglobulin for Guillain-Barré syndrome. Cochrane Database syst. rev.
2012;Issue 7.
 Endereço para correspondência
Ingrid Berger Severo
Rua Bento Martins, 487/302
96.010-430 – Pelotas, RS – Brasil
 (53) 8137-5954
 [email protected]
Recebido: 23/7/2013 – Aprovado: 21/10/2013
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 272-274, out.-dez. 2014
RELATO DE CASO
Abordagem multidisciplinar do trauma facial grave
Combined approach of severe facial trauma soft tissue
Evandro José Siqueira1, Gustavo Steffen Alvarez2, Patricia Borchadt Bolson3, Milton Paulo de Oliveira4
RESUMO
As lesões faciais são comuns nos serviços de emergências médicas, representando cerca de 7% a 10% dos atendimentos. As agressões são as principais causas de fraturas faciais, enquanto que a maior proporção de lesões dos tecidos moles é causada por quedas e
acidentes. Embora raramente fatais, o tratamento destas lesões pode ser complexo e determinar impacto significativo sobre a função
e estética facial do paciente traumatizado. Este artigo apresenta um caso de lesão facial grave, enfatizando aspectos importantes no
manejo do traumatismo facial de partes moles e revisa a literatura relacionada ao tema.
UNITERMOS: Trauma Facial, Trauma de Partes Moles, Reconstrução Facial.
ABSTRACT
Facial lesions are common in emergency medical services, representing about 7-10 % of cases. Attacks are the main causes of facial fractures, while a higher
proportion of soft tissue injuries are caused by falls and accidents. Although rarely fatal, treatment of these injuries can be complex and have a significant
impact on facial function and aesthetics of the trauma patient. This article describes a case of severe facial injury, emphasizing important aspects in the
management of facial trauma of soft tissues, and reviews the literature related to the topic.
KEYWORDS: Facial Trauma, Soft Tissue Trauma, Facial Reconstruction.
INTRODUÇÃO
A lesão de partes moles é comumente encontrada no cuidado de pacientes com trauma facial, mais comumente as lacerações e as contusões (1, 2). A complexidade destas lesões
deve-se principalmente pela potencial perda entre as relações
estéticas e funcionais das unidades faciais afetadas, podendo
ocasionar sequelas desagradáveis e, por vezes, estigmatizantes aos pacientes afetados. O principal objetivo no manejo
adequado das lacerações faciais, portanto, é a minimização da
formação de cicatrizes inestéticas e perdas funcionais com as
suas consequências psicológicas a longo prazo (3).
1
2
3
4
Embora representem cerca de 10% de todos os atendimentos em uma unidade de emergência (4), existem poucos estudos que investigam sistematicamente o manejo
dessas lesões (3). Deste modo, não existem algoritmos nem
protocolos de classificação validados que orientem a avaliação e posterior tratamento a serem empregados. Como
resultado, a maioria das decisões críticas é deixada exclusivamente ao critério do cirurgião assistente, baseando-se,
muitas vezes, em dados retrospectivos com potencial limitado, além de experiência pessoal disponível para orientar o
tratamento. Isto pode levar a muitas abordagens diferentes
para o atendimento tanto a curto quanto a longo prazo (1).
Cirurgião Plástico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia
Plástica. Membro do Corpo Clínico do Hospital Medianeira, Pompéia e Saúde, Caxias do Sul – RS. Cirurgião Plástico do Programa Pró-Face do
Hospital Nossa Senhora de Medianeira, Caxias do Sul – RS.
Cirurgião Plástico pela PUCRS, Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Doutorando em Medicina e Ciências da Saúde
da PUCRS. Cirurgião Plástico da Clínica MOB - Porto Alegre.
Dermatologista pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Especialista pela Sociedade Brasileira de Dermatologia. Professora da
Disciplina de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Cirurgião Plástico pela PUCRS, Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital
São Lucas da PUCRS. Doutorando em Medicina e Ciências da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
275
ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al.
Descrevemos neste trabalho o caso de um trauma facial
grave, decorrente de acidente automobilístico, em que os
princípios básicos da reconstrução facial e palpebral foram
utilizados (1, 2), buscando restabelecer as funções faciais a
curto prazo e amenizar possíveis sequelas a longo prazo, assim como relatamos a importância da abordagem imediata
e multidisciplinar do atendimento ao traumatizado de face.
RELATO DE CASO
Relatamos o caso de um paciente masculino, 28 anos,
vítima de colisão frontal de veículo automotor, cinemática
grave. O mesmo estava usando apenas cinto de segurança 2 pontos no momento do acidente, sem mecanismo de
“air-bag”, o que o projetou em direção ao para-brisa. Chegou ao Pronto Socorro imobilizado pelo Serviço Móvel de
Urgência (SAMU), em ventilação espontânea, Glasgow 15.
Em exame físico inicial na chegada, o paciente apresentava importante laceração de partes moles em região frontal,
glabelar, palpebral direita e esquerda, inclusive com perda de partes moles em pálpebra superior esquerda (Figura 1). Após avaliação segundo normas do ATLS (Advanced
Trauma Life Suport) e estabilização do paciente, o médico
emergencista solicitou exame tomográfico de face, crânio,
cervical, tórax e abdômen, visto a gravidade da cinemática
do trauma. Foi acionada equipe de neurocirurgia, cirurgia
do trauma, oftalmologia e cirurgia bucomaxilofacial. Após
exames tomográficos, constatou-se fratura não cominutiva da parede anterior seio frontal direito, com discreto
acúmulo de sangue no seio correspondente e presença de
fragmentos de corpo estranho em teto da órbita esquerda,
extraocular (figura 2), sem outras fraturas faciais ou cranianas importantes. Face aos extensos ferimentos de partes
moles faciais, solicitou-se avaliação pelo cirurgião plástico.
Após estabilização e avaliações iniciais, em virtude da
gravidade das lacerações faciais, decidiu-se por levá-lo ao
bloco cirúrgico para anestesia e melhor avaliação e manejo das lesões de partes moles faciais. O procedimento
foi realizado com anestesia local assistida por decisão do
anestesista, com utilização de lidocaína 2% e ropivacaína
Figura 2 – Imagem tomográfica demonstrando presença de objeto
radiopaco no teto orbitário (seta), provavelmente tratando-se de
fragmento do para-brisa, em posição extraocular, evidenciando
violência do impacto. Seio frontal direito com derrame e pequeno
fragmento da parede anterior, sem outras particularidades.
Figura 1 – Paciente Vítima de Colisão Frontal, apresentado importante
lesão de partes moles das estruturas do terço médio-superior da face.
Nota-se grave laceração palpebral esquerda, com desestruturação
de todas as lamelas palpebrais, impondo cuidadosa reconstrução
para manter a integridade da função palpebro-orbitária. Nesta foto,
ferimentos fronto-glabelares e palpebrais direitos já reconstituídos.
276
Figura 3 – Fragmentos de vidro retirados da órbita esquerda durante
cirurgia. O fragmento maior encontrava-se alojado em posição superomedial da órbita esquerda, extraocular, conforme demonstrado em
exame tomográfico pré-operatório.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al.
7,5%. Bloqueio regional dos nervos supra e infraorbitários
foram realizados. Após irrigação copiosa dos ferimentos
com solução salina estéril, iniciou-se com desbridamento
cauteloso, visto as proximidades com estruturas nobres da
face e pálpebra. Os ferimentos eram profundos em região
glabelar e palpebral esquerda, com lesões aos vasos sanguíneos e nervos da face nesta localidade. Em região do teto
orbitário, foi identificado fragmento de vidro, em região
extraocular, sem comunicação intracraniana, conforme visualizado em exame tomográfico prévio, o qual foi retirado
(Figura 3) e a loja irrigada posteriormente. Os ferimentos
em glabela e periorbitários direitos foram reconstituídos
com fio absorvível de poligalactina 4-0 em planos profundos e fio de nylon 5-0 em pele.
Embora os ferimentos palpebrais esquerdos fossem de
maior magnitude, decorrentes do trauma frontal, o globo
ocular estava íntegro, sem déficit visual, ao contrário do
globo ocular direito, que apresentava laceração de córnea e
descolamento retiniano. A pálpebra superior esquerda possuía avulsão do ligamento cantal lateral esquerdo, dicotomização da pálpebra superior esquerda em dois fragmentos,
medial e lateral (Figura 4), com secção completa do bordo
tarsal e total desinserção do aparelho levantador da pálpebra, necessitando reconstrução. Inicialmente, realizou-se o
realinhamento do bordo palpebral seccionado, seguida da
fixação do tendão cantal lateral com fio de nylon 5-0 e ancoramento da rima palpebral esquerda, e refixação do aparelho levantador no bordo palpebral com fio de poligalactina
5-0. Após, seguiu-se a reconstituição das camadas palpebrais, conforme técnica-padrão. Por último, procedeu-se à
síntese da pele com fio delicado de nylon 6-0 (Figura 5).
O paciente apresentou boa evolução pós-operatória, utilizando medicações analgésicas e antibióticos, tendo de ser
submetido à cirurgia oftalmológica devido aos traumas
ocorridos no globo ocular direito pelo impacto, apresentando importante déficit visual à direita. Apesar dos graves
ferimentos, o paciente apresentou boa evolução, estando
em acompanhamento oftalmológico, neurocirúrgico e com
cirurgião plástico, apresentando bom aspecto das cicatrizes
com discreto déficit de elevação palpebral esquerda, devido
ainda ao edema residual importante (Figura 6).
DISCUSSÃO
As lesões traumáticas dos tecidos moles faciais são comumente encontradas em salas de emergência por médicos
emergencistas e cirurgiões plásticos (1). Embora raramente fatais, o tratamento destas lesões pode ser complexo e
ter um impacto significativo na função e estética facial do
indivíduo, uma vez que a face representa um segmento
corporal de grande expressividade no relacionamento interpessoal. Em geral, a etiologia das lesões varia de acordo
com a faixa etária dos pacientes. As quedas, que comumente causam lesões isoladas dos tecidos moles, como laceração e contusões, são mais comuns em crianças e idosos (1,
6, 7). Violência e acidentes automobilísticos são as causas
predominantes de lesões em indivíduos que variam de 15 a
50 anos de idade (4). Em recente estudo realizado na Inglaterra, avaliou-se a prevalência de lesões de partes moles em
traumas craniomaxilofaciais (8). Em 9.721 pacientes avaliados, 13.627 lesões dos tecidos moles foram documentados,
Segmento lateral
Segmento medial
Figura 4 – Imagem ampliada demonstrando magnitude dos ferimentos
palpebrais. Nota-se ruptura do septo orbitário, total desestruturação
das lamelas (anterior e posterior) e dicotomização das mesmas em
dois segmentos medial e lateral, necessitando reconstrução.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
Figura 5 – Imagem pós-operatória imediata demonstrando sutura
dos ferimentos e reconstituição dos segmentos faciais após o trauma.
Foram utilizadas suturas em 2 planos nas regiões fronto-glabelar e
palpebral direita, com vicryl 5,0 em plano subcutâneo e mononylon
5,0 (fronte) e mononylon 6,0 (pálpebras) em pele. Pálpebra superior
esquerda reconstituída através da recomposição anatômica de todas
as suas lamelas, com o alinhamento das mesmas iniciando-se por
suturas com vicryl 5,0 passadas através dos 2/3 anteriores da placa
tarsal, com o objetivo de evitar irritação corneana e reaproximar os
segmentos dicotomizados pelo trauma, seguidas de suturas de
colchoeiro vertical para aproximação precisa do bordo palpebral,
deixado longo de modo a evitar irritação do globo ocular. Após, sutura
de conjuntiva com pontos de vicryl 5,0 (sepultados), com recomposição
da aponeurose elevadora e septo orbital. Por fim, sutura da pele com
mononylon 6,0.
277
ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al.
Figura 6A – Décimo quarto dia de pós-operatório demonstrando
ainda edema residual devido aos extensos ferimentos. Nota-se pronta
recomposição dos elementos fronto-palpebrais.
Figura 6C – 12 meses de pós-operatório: observa-se total reconstituição
das funções palpebrais danificadas no trauma, com abertura e
fechamentos palpebrais normais, inclusive com recomposição do
sulco palpebral superior da pálpebra esquerda, o que denota correta
inserção do músculo levantador da pálpebra no bordo tarsal quando
da cirurgia reconstrutora.
Figura 6B – Décimo quarto dia de pós-operatório. Pálpebra esquerda
recomposta nas suas estruturas anatômicas e reconstruída conforme
técnica-padrão (descrição no texto).
incluindo lacerações, hematomas, contusões e escoriações.
As lacerações foram as lesões mais comuns (38%). Lesões
de partes moles ocorreram entre as idades de 0 e 30 anos
(61,5%), sendo as causas mais comuns para os ferimentos
as atividades rotineiras diárias, levando a 49,4% de todas as
lesões, seguido dos esportes (43,8%) (8).
A avaliação inicial de um paciente vítima de trauma facial requer uma pesquisa em busca de lesões concomitantes
e fatores específicos que coloquem em risco a vida do paciente, orientando um manejo direcionado. Na ausência de
fraturas craniofaciais, estabilização urgente das vias aéreas
raramente é indicada. Em pacientes com lesões isoladas de
278
tecidos moles, a necessidade de traqueostomia está associada com alta taxa de mortalidade (11,5%) e internação
prolongada (9). Lesões concomitantes devem sempre ser
pesquisadas, como injúrias intracranianas, craniofaciais, oftalmológicas e cervicais. O mecanismo de lesão e exame
físico do paciente devem determinar se exame de imagem
adicional é necessário (1).
Os ferimentos isolados de partes moles devem ser suturados assim que possível. Reparação precoce, mesmo
na indefinição das lesões concomitantes significativas,
tem sido associada a melhores resultados estéticos pós-operatórias (1, 2). Atrasos no tratamento podem resultar
em maior edema dos tecidos moles, distorcendo pontos
de referência e tornando o fechamento primário mais difícil, além de aumentar o risco de infecção. Idealmente, o
fechamento deve ocorrer dentro das primeiras oito horas
após a lesão. Inicialmente, todas as lesões dos tecidos moles que podem ser suturadas na sala de emergência devem
ser meticulosamente limpas de detritos, sob anestesia local.
A intervenção cirúrgica é indicada quando da existência
de lesões concomitantes que necessitam cirurgia e quando adequada hemostasia ou visualização ampla da ferida
não pode ser alcançada na sala de emergência. Lacerações
menores podem ser anestesiadas com bloqueios de campo locais, enquanto lesões maiores localizadas ao longo de
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al.
Figura 7 – Zonas periorbitárias. Cada região possui considerações
anatômicas, funcionais e estéticas individuais, devendo ser mantidas
nas reconstruções, sempre que possível.( I: Pálpebra Superior; II:
Pálpebra Inferior; III: Canto Medial; IV: Canto Lateral) – Referência 11.
Figura 8B – Elementos Anatômicos da Pálpebra Superior em Corte
Transversal. Cada elemento deve ser reconstituído individualmente
nas reconstruções palpebrais, visando otimização dos resultados
estéticos e funcionais.
Figura 8A – Elementos Anatômicos da Pálpebra Inferior em Corte
Transversal. Cada elemento deve ser reconstituído individualmente
nas reconstruções palpebrais, visando à otimização dos resultados
estéticos e funcionais.
um território de inervação podem ser tratadas com bloqueios regionais. Pacientes pediátricos podem não tolerar
a infiltração com anestesia local, podendo estar indicada a
sedação consciente para o tratamento adequado (avaliação
/ desbridamento / fechamento) das lesões dos tecidos moles. Se contaminação significativa da ferida estiver presente,
a mesma pode ser limpa com uma escova cirúrgica e anti-séptico. Subsequentemente, irrigação abundante deve ser
realizada em todas feridas contaminadas. Cobertura antibiótica de amplo espectro é necessária em mordidas e em
doentes com risco de má cicatrização devido ao tabagismo,
alcoolismo, diabetes, ou outra formas de comprometimento imunológico. Profilaxia do tétano deve ser administrada
de acordo com a história de imunizações.
Os traumas faciais maiores, muitas vezes, envolvem várias unidades ou subunidades estéticas da face, e a reconsRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
Figura 9 – Técnica de Sutura Palpebral. Deve-se realizar a sutura
e o realinhamento das estruturas palpebrais, por camadas (lamela
posterior, septo orbitário e lamela anterior, nesta ordem), de maneira
a evitar o contato do material de sutura e dos nós diretamente com a
superfície da córnea e do globo ocular. Mesmo os fios mais finos podem
causar grande irritação e abrasão corneana. O alinhamento deverá ser
o mais preciso possível, uma vez que 1 milímetro de desnível no bordo
ciliar e linha cinzenta poderá ser notado pelo observador atento.
trução prevista é planejada para cada unidade danificada,
de modo que as incisões e locais de tecido utilizado para
o avanço estejam dentro ou ao longo da borda da unidade
a ser reconstruída (1, 3, 10). Quanto às lesões palpebrais,
existem vários princípios fundamentais para o manejo adequado. Lesões da pálpebra ou região periorbitária podem
ser classificadas em quatro classes com base na região le279
ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO TRAUMA FACIAL GRAVE Siqueira et al.
sada (pálpebra superior, pálpebra inferior, canto medial e
lateral – Figura 7) e na espessura do dano (total ou parcial)
(11). Para um reparo palpebral adequado, é importante o
conhecimento anatômico detalhado da região. A pálpebra
é uma estrutura bilamelar que compreende uma lamela anterior e outra posterior, separadas pelo septo orbitário. A
lamela anterior consiste em pele e músculo orbicular palpebral. A lamela posterior engloba uma alça tarsoligamentosa
que compreende uma placa tarsal e tendões cantais medial
e lateral, juntamente com a fáscia capsulopalpebral e a conjuntiva. O septo se origina no arco marginal que acompanha o rebordo orbitário e separa as duas lamelas (Figura 8).
Inicialmente, simples lacerações palpebrais devem ser
fechadas em três camadas, nesta ordem: lamela posterior,
septo orbitário e lamela anterior. Além disso, nas lacerações envolvendo o bordo tarsal, a linha cinzenta e a placa
tarsal devem ser cuidadosamente reaproximadas, sendo o
bordo suturado com sutura em colchoeiro vertical para que
as margens fiquem evertidas (Figura 9). Para lacerações na
pálpebra inferior, um alinhamento adequado também minimiza o risco do ectrópio. A inserção do músculo elevador
na placa tarsal deve ser cuidadosamente avaliada nas lacerações da pálpebra superior.
Defeitos em espessura total da pálpebra superior e inferior menores do que 33 e 50%, respectivamente, podem ser
fechados primariamente utilizando-se os princípios básicos
de reconstrução palpebral em camadas, conforme descrito
anteriormente (12). Alguns autores, no entanto, mais conservadores, sugerem o fechamento primário apenas em espessura total inferior a 25% da pálpebra (11). Cantólise e
cantotomia lateral podem ser utilizadas para aliviar tensão
no reparo de defeitos maiores.
Defeitos de espessura parcial de até 50% de comprimento da pálpebra podem, em contrapartida, serem fechados usando retalhos locais de avanço. Defeitos de espessura parcial superiores a 50% do comprimento da pálpebra
superior ou inferior podem requerer um enxerto de pele de
espessura total para alcançar fechamento sem tensão. Defeitos completos da pálpebra superior ou inferior apresentam maior desafio para o cirurgião plástico. Lesões da pálpebra laterais envolvem geralmente o canto lateral e podem
exigir uma cantopexia ou cantoplastia para reparar o canto
lesado. Dependendo do grau de lesão, reparação primária
pode ser possível, mas, frequentemente, lesão extensa necessita reparo alternativo ou reconstrução do ligamento.
COMENTÁRIOS FINAIS
O manejo adequado e delicado dos tecidos já traumatizados, muitas vezes avulsionados pela ocasião do trauma,
assim como a reestruturação anatômica das estruturas afetadas terão relevância, estética e funcional, para a recuperação do paciente traumatizado de face, evitando, por vezes,
múltiplas cirurgias e sequelas de difícil tratamento a longo
prazo. Para isso, torna-se imperativo o diagnóstico correto
280
das alterações apresentadas e decorrentes do traumatismo,
assim como um planejamento adequado das condutas a
serem tomadas, muitas vezes não tão fáceis e até desafiadoras em um ambiente ansiogênico como a emergência
hospitalar. Descrevemos neste caso a importância do cirurgião plástico como um especialista integrante e necessário da equipe de atendimento do trauma grave na sala
de emergência, assim como seu grau de resolutibilidade,
utilizando-se de técnicas básicas e consagradas de reconstrução facial. A gravidade e a complexidade do trauma facial não exigem somente a cooperação interdisciplinar no
cuidado desses pacientes, mas também medidas constantes
do poder público para educação da população quanto a
estratégias preventivas. Esta última continua a ser a forma
mais barata de reduzir direta e indiretamente os custos das
sequelas ocasionadas pelo trauma (13).
AGRADECIMENTO
Ao Dr Fábio Muradás Girardi, cirurgião de cabeça e
pescoço que, com muito talento, criou as ilustrações deste
trabalho.
REFERÊNCIAS
1. Kretlow, J.D., A.J. McKnight, and S.A. Izaddoost, Facial soft tissue
trauma. Semin Plast Surg, 2010. 24(4): p. 348-56.
2. Aveta, A. and P. Casati, Soft tissue injuries of the face: early aesthetic reconstruction in polytrauma patients. Ann Ital Chir, 2008. 79(6):
p. 415-7.
3. Key, S.J., D.W. Thomas, and J.P. Shepherd, The management of soft
tissue facial wounds. Br J Oral Maxillofac Surg, 1995. 33(2): p. 76-85.
4. Ong TK, D.M., Craniofacial trauma presenting at an adult accident
and emergency department with an emphasis on soft tissue injuries.
Injury, 1999. 30: p. 357-363.
5. Hicks, D.L. and D. Watson, Soft tissue reconstruction of the forehead
and temple. Facial Plast Surg Clin North Am, 2005. 13(2): p. 243-51, vi.
6. Hussain, K., et al., A comprehensive analysis of craniofacial trauma.
J Trauma, 1994. 36(1): p. 34-47.
7. Eggensperger Wymann, N.M., et al., Pediatric craniofacial trauma. J
Oral Maxillofac Surg, 2008. 66(1): p. 58-64.
8. Kraft, A., et al., Craniomaxillofacial trauma: synopsis of 14,654 cases
with 35,129 injuries in 15 years. Craniomaxillofac Trauma Reconstr,
2012. 5(1): p. 41-50.
9. Holmgren EP, B.S., Bell RB, Bobek S, Dierks EJ, Utilization of tracheostomy in craniomaxillofacial trauma at a level-1 trauma center.
J Oral Maxillofac Surg, 2007. 65: p. 2005-2010.
10. Fattahi, T.T., An overview of facial aesthetic units. J Oral Maxillofac
Surg, 2003. 61(10): p. 1207-11.
11. Spinelli, H.M. and G.W. Jelks, Periocular reconstruction: a systematic approach. Plast Reconstr Surg, 1993. 91(6): p. 1017-24; discussion 1025-6.
12. Kroll, D.M., Management and reconstruction of periocular malignancies. Facial Plast Surg, 2007. 23(3): p. 181-9.
13. Robert Gassner, T.T., Oliver Hächl, Ansgar Rudisch, Hanno Ulmer,
Cranio-maxillofacial trauma: a 10 year review of 9543 cases with 21
067 injuries. 2002. 31: p. 51-56
 Endereço para correspondência
Evandro José Siqueira
Rua Amadeu Rossi, 1042
95.043-040 – Caxias do Sul, RS – Brasil
 (54) 3028-9884
 [email protected]
Recebido: 10/9/2013 – Aprovado: 4/12/2013
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 275-280, out.-dez. 2014
RELATO DE CASO
Embolia da artéria pulmonar após vertebroplastia por punção
Pulmonary artery embolism after percutaneous vertebroplasty
Airton Schneider1, Rogério Abraão2, Marcos Tanhauser3, Albertp Pydd4
RESUMO
Vertebroplastia por punção é um procedimento realizado para dar sustentação óssea na coluna vertebral. Inúmeras complicações podem ocorrer, dentro elas, a embolia pulmonar de cimento. É descrito um caso de embolia da artéria pulmonar secundária à vertebroplastia, por um fragmento volumoso de cimento, tratada por cirurgia. Discutem-se formas de diagnóstico e estratégias de tratamento.
UNITERMOS: Vertebroplastia, Embolia Pulmonar.
ABSTRACT
Puncture vertebroplasty is a procedure for providing bone support in the spine. Various complications may occur, including cement pulmonary embolism. Here
we report a case of pulmonary artery embolism secondary to vertebroplasty, by a massive fragment of cement, treated by surgery. Forms of diagnosis and
treatment strategies are discussed.
KEYWORDS: Vertebroplasty, Pulmonary Embolism.
INTRODUÇÃO
Vertebroplastia percutânea (VP) é uma técnica em desenvolvimento cada vez mais utilizada em fraturas com
compressão (1, 4). Vazamento local de cimento é uma
complicação frequente, mas efeitos sistêmicos, como embolia de fragmento de cimento maior, são raramente descritos (1, 5). Os autores relatam um caso de embolia da
artéria pulmonar que foi tratada de forma cirúrgica com
sucesso. Relatam a técnica de diagnóstico e de tratamento
em detalhes e discutem opções e recomendações a serem
seguidas. Este relato foi aprovado pela Comissão de ética
em seres humanos da instituição.
RELATO DO CASO
Paciente masculino, de 56 anos, portador de mieloma
múltiplo descoberto em janeiro de 2010. Realizou vertebroplastia percutânea (VP) em 15 de março de 2010 por
1
2
3
4
fratura em T12, onde se constatou extravasamento posterior de cimento para o canal medular, sem repercussão
clínica. Consultou em 15 de abril de 2010 trazendo RNM
e cintilografia óssea mostrando fraturas em L1, L2, L3, L4
e L5 causadas pelo tumor. Apresentava dor grau 10/10 em
região dorsal. Foi proposta vertebroplastia percutânea biportal nos cinco níveis. O procedimento foi realizado sob
anestesia geral, com injeção de cimento em estado pastoso
no corpo das vértebras fraturadas, sob orientação de fluoroscopia, injetando-se 1,5ml por pedículo (3ml por vértebra). Ao final do procedimento, ao fazer a revisão com
intensificador de imagens, observou-se presença de massa
com densidade semelhando ao PMMA em região abdominal anterior, sendo que a mesma pulsava ao RX contínuo. Não se observou vazamento de cimento durante o
procedimento. Em novo controle de RX, ainda em bloco
cirúrgico, observou-se migração da massa de PMMA para
região pulmonar direita. O paciente permanecia assintomático no trans e pós-operatório imediato. Foi realizado
Doutor. Chefe do Serviço de Cirurgia Torácica da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).
Cirurgião cardiovascular.
Anestesiologista do Serviço de Cirurgia Torácica da Ulbra.
Ortopedista especialista de Coluna.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014
281
EMBOLIA DA ARTÉRIA PULMONAR APÓS VERTEBROPLASTIA POR PUNÇÃO Schneider et al.
um RX de tórax que evidenciou um fragmento de cimento de quatro centímetros de comprimento no hemitórax
direito. O paciente foi acordado e transferido à unidade
de pós-operatório. Os sinais vitais permaneciam normais.
Foi realizada uma angiotomografia computadorizada de
mediastino que confirmou o fragmento de cimento na artéria pulmonar direita, após a emergência da artéria lobar
superior direita (Figura 1). O paciente foi heparinizado.
O paciente permanecia assintomático. A retirada percutânea do bloco de cimento foi descartada, devido à impossibilidade de trazê-lo a um local de fácil acesso. Foi proposta a retirada por toracotomia direita, por risco de fator
emboligênico e trombose pulmonar subsequente. O procedimento indicado foi toracotomia direita, realizada após
um RX de tórax em decúbito dorsal para confirmar que o
êmbolo não havia mudado de lugar. Durante a toracotomia, que foi realizada em decúbito lateral esquerdo, não se
encontrou o cimento na artéria pulmonar direita. Ainda em
decúbito, a radioscopia identificou o fragmento de cimento
na artéria pulmonar esquerda (Figura 2), mostrando migração do PMMA por mudança de decúbito. A toracotomia foi fechada e o paciente, colocado em decúbito dorsal.
Chamada a equipe de cirurgia cardíaca, foi realizada uma
esternotomia. Com circulação extra-corpórea (CEC) e parada cardiorrespiratória, foi aberto o ramo esquerdo da artéria pulmonar. Como havia muito sangramento de refluxo,
foram realizadas a parada circulatória cerebral a 26 graus
Celsius e a retirada do fragmento de cimento: com uma
pinça de anel (Figura 3). Entre a parada circulatória cerebral e a rafia da artéria, foram decorridos treze minutos.
O paciente apresentou pós-operatório sem intercorrências,
tendo alta no sétimo dia pós-operatório.
DISCUSSÃO E REVISÃO
DA LITERATURA
Figura 1 – Angiotomografia identificando êmbolo na artéria pulmonar
direita.
Escape de cimento pelo sistema venoso é uma complicação frequentemente relatada, usualmente assintomática
(1,5). Há dois mecanismos relacionados com o extravasamento de cimento, primeiro, a insuficiente polimerização
do cimento e sua migração pelo sistema ázigos ou cava
inferior; segundo, a agulha pode estar dentro de um sistema venoso. Alguns autores recomendam esperar até que
o cimento comece a polimerizar, podendo adicionar bário
para identificar o local de injeção (1,2,3,6). A quantidade
de bário existente no composto de PMMA também é fator
relevante para a visualização da entrada de cimento e o não
extravasamento do mesmo. Trabalhos mostram o aumento
do índice de extravasamento de cimento em pacientes com
lesões tumorais, atribuído a uma maior angiogênese e consequente circulação regional (5,7,8).
Embolia de um fragmento de cimento maior é extremamente raro, existindo nos últimos 15 anos apenas 2 relatos
(1,3). Nestes casos, a opção técnica foi transmediastinal
Figura 2 – Radioscopia transoperatória identificando a migração do
cimento para a artéria pulmonar esquerda.
Figura 3 – Fragmento de 4 cm de cimento retirado do tronco da artéria
pulmonar esquerda.
282
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014
EMBOLIA DA ARTÉRIA PULMONAR APÓS VERTEBROPLASTIA POR PUNÇÃO Schneider et al.
com cardioplegia, que incluiu, obrigatoriamente, circulação
extra-corpórea. Mas, nestes 2 casos, havia êmbolos nos 2
lados, sendo que relato de um grande êmbolo não foi encontrado. Nos casos relatados de embolia assintomática de
pequenos fragmentos, além do acompanhamento tomográfico, foi instituída de forma empírica a anticoagulação
(3,5). Nos casos com sintomas relatados, houve a necessidade de retirada do êmbolo através da cirurgia com CEC.
Neste caso, o paciente não apresentou nenhuma alteração
hemodinâmica e foi proposto o acesso sem CEC na artéria pulmonar direita. Nos relatos descritos na literatura,
foi notado que o cimento não adere na parede da artéria,
diferentemente da embolia tradicional, o que pode explicar
sua migração ao lado oposto quando o paciente foi colocado em decúbito lateral no caso relatado. Diante do que foi
encontrado neste caso e na pouca documentação disponível, recomendamos que êmbolos de cimento que produzam sintomas ou possivelmente prejudicais sejam retirados
em decúbito dorsal, pelo real risco de modificação de sua
posição. A utilização de CEC pode ser postergada, com
controle proximal da artéria e das veias, para evitar refluxo,
evitando assim a parada circulatória total. A anticoagulação
ainda carece de dados para que seja recomendada. A retirada percutânea permanece uma opção atraente e segura,
mas há pouca literatura respaldando esta técnica.
A abordagem através da esternotomia com CEC parece ser
mais segura por permitir abordar os 2 lados, se necessário,
mesmo que o êmbolo seja único e periférico.
REFERÊNCIAS
1. Tozzi P, Abdelmoumene Y, Corno A, et al. Management of pulmonary embolism during acrylic vertebroplasty. Ann Thorac Surg
2002;74:1706-08.
2. Alvarez L, Alcaraz M, Perez-Higueras A, Granizo JJ, de Miguel I,
Rossi RE, et al. Percutaneous vertebroplasty : functional improvement in patients with osteoporotic compression fractures. Spine 2006;31 (9):1113-18.
3. François K, Taeymans Y, Poffyn B, Van Nooten G. Successful management of a large pulmonary cement embolus after percutaneous
vertebroplasty: a case report. Spine. 2003;28:(S)424-25.
4. NGG, Cordero JORG, Vieira LAG. Vertebroplastia percutânea:
uma efetiva técnica cirúrgica minimamente invasiva. Rev Bras Ortop. 2008;43(12):15-22.
5. Padovani B, Kasriel O, Brunner P, et al. Pulmonary embolism caused
by acrylic cement: a rare complication of percutaneous vertebroplasty. Am J Neuroradiol. 1999;20:375-77.
6. Jensen ME, Avery JE, Mathis JM, Kallmes DF, Cloft HJ, Dio JE.
Percutaneous polymethylmetacrylate vertebroplasty in the treatment of osteoporotic vertebral body compression fractures: technical aspects. Am J Neuroradiol 1997;18:1897-1904.
7. Bosnjaković P, Ristić S, Mrvić M, Miljković AE, Vukićević T,
Marjanović G, Macukanović-Golubović L.; Management of painful spinal lesions caused by multiple myeloma using percutaneous
acrylic cement injection. Acta Chir Iugosl. 2009;56(4):153-8.
8. Lieberman I, Reinhardt MK.; Vertebroplasty and kyphoplasty for
osteolytic vertebral collapse. Clin Orthop Relat Res. 2003 ;415 :Supl
176-86.
COMENTÁRIOS FINAIS
A embolia pulmonar de cimento utilizado para vertebroplastia é uma complicação comum, mas quando este
êmbolo é volumoso, há poucos casos descritos na literatura. As estratégias cirúrgicas para a remoção são apresentadas neste artigo em que é relatada a experiência de um caso.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 281-283, out.-dez. 2014
 Endereço para correspondência
Airton Schneider
Rua Cel. Bordini, 896/401
90.440-003 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3346-8590
 [email protected]
Recebido: 16/10/2013 – Aprovado: 11/11/2013
283
RELATO DE CASO
Tratamento de tumor carcinoide gástrico solitário
por polipectomia endoscópica
Treatment of solitary gastric carcinoid tumor by endoscopic polypectomy
Uirá Fernandes Teixeira1, Daniel Andreoli Gomes2, Rodolfo dos Santos Monteiro2, Deise Bohn Rhoden3, José Artur Sampaio4
RESUMO
Tumores carcinoides do estômago consistem em neoplasias do sistema neuroendócrino difuso que, embora raras, têm apresentado
uma crescente incidência. Sua origem está nas células enterocromafins da mucosa gástrica. A abordagem clínica ideal ainda está sendo
elucidada, dependendo do tipo, tamanho e número de lesões, bem como da presença de metástases. Este é o relato de caso de um
tumor carcinoide gástrico solitário do tipo I, tratado satisfatoriamente por polipectomia endoscópica.
UNITERMOS: Tumor Carcinoide, Neoplasias Gástricas, Endoscopia.
ABSTRACT
Carcinoid tumors of the stomach consist of neoplasms of the diffuse neuroendocrine system which, although rare, have shown increasing incidence. Their
origin is in the enterochromaffin cells of the gastric mucosa. The optimal clinical approach is still being elucidated, depending on the type, size and number
of lesions and the presence of metastases. This is the case report of a solitary gastric carcinoid tumor type I, treated successfully by endoscopic polypectomy.
KEYWORDS: Carcinoid Tumor, Gastric Neoplasms, Endoscopy.
INTRODUÇÃO
Os tumores carcinoides gástricos, mais modernamente
chamados de tumores neuroendócrinos (TNE) do estômago, são raros, compreendendo menos de 1% das neoplasias gástricas e, até pouco tempo, aproximadamente 2%
dos tumores chamados carcinoides (1). Entretanto, dado
o crescente uso do rastreamento por endoscopia digestiva
alta, associado a biópsias de rotina e maior uso da imuno-histoquímica nas análises anatomopatológicas, estudos
recentes apontam que esse percentual de diagnóstico no
estômago passou a figurar entre 10 e 30% dos achados de
tumores carcinoides gastrintestinais (2).
1
2
3
4
Sua origem está nas células enterocromafins (enterochromaffin-like ou ECL) da mucosa gástrica, sendo seu curso, de
modo geral, indolente, e seu comportamento intermediário
entre o adenoma e o adenocarcinoma gástricos, apresentando
também etiologia e prognósticos notadamente distintos (2,3).
O tratamento dessas lesões é variável, desde ressecções
endoscópicas até cirurgias gástricas, de acordo com a classificação e o tamanho das lesões. Relatamos o caso de uma
paciente com tumor carcinoide gástrico solitário, incidental, tratado de forma minimamente invasiva por polipectomia endoscópica. O presente trabalho foi aprovado pelo
Comitê de Ética da instituição, tendo a paciente assinado
termo de consentimento livre e esclarecido.
Mestrando em Medicina. Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Cirurgia do Aparelho Digestivo e Endoscopia Digestiva pela
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Acadêmico de Medicina da UFCSPA.
Especialista em Patologia. Serviço de Patologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Doutor em Medicina. Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Professor de Cirurgia Geral e do Aparelho Digestivo da UFCSPA.
Endoscopista do Pavilhão Pereira Filho – Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
284
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014
TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 69 anos, sem comorbidades ou antecedentes médicos significativos, apresentando
sintomas dispépticos, realizou endoscopia digestiva alta na
Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, a qual evidenciou a presença de um pólipo semipediculado no fundo
gástrico (Figura 1). Foi submetida então, no mesmo exame, a uma polipectomia endoscópica com alça diatérmica
e biópsia gástrica. O resultado da biópsia revelou gastrite
crônica moderada em atividade, com alterações cito-arquiteturais de padrão regenerativo e pesquisa de Helicobacter
pylori positiva; a lesão polipoide foi classificada como tumor neuroendócrino (carcinoide), bem diferenciado, grau
I segundo a OMS 2010, exibindo menos de 1 mitose por
10 campos de grande aumento, medindo 0,6 cm (Figura
2). Foi solicitado painel de imuno-histoquímica, cujo resultado encontra-se na Tabela 1. Testes de cromogranina
A e gastrina sérica apresentaram valores levemente elevados (10nmol/L e 231pg/mL, respectivamente). A investigação foi complementada com cintilografia com análogos
da somatostatina (octreoscan), que não mostrou captação.
Foi instituído tratamento clínico para H. Pylori e optado
por controle endoscópico após 3 e 6 meses da ressecção,
que foram normais. A paciente seguirá fazendo o acompanhamento por endoscopia.
DISCUSSÃO
Os carcinoides gástricos são subdivididos em três grupos
distintos: I, II e III. Os tipos I e II têm como fator predisponente e condição necessária, mas não suficiente, a hipergastrinemia. Os do tipo III, por sua vez, não se relacionam
com essa condição (1,3). Nos carcinoides do tipo I (CG-1),
a proliferação anormal das ECL, encontradas na mucosa
oxíntica e correspondentes a 35% das células endócrinas
do estômago, dá-se principalmente em função de quadros
de gastrite atrófica crônica e/ou anemia perniciosa. Há,
nos quadros em questão, o comprometimento de células
gástricas parietais, e a subsequente acloridria/hipocloridria
leva a uma produção desenfreada de gastrina pelas células
do antro e, consequentemente, de histamina pelas ECL,
na tentativa compensatória de estimular a produção gástrica. As lesões nas células enterocromafins apresentam-se
como hiperplasia, displasia e, por fim, carcinoide (1,3).
Nos carcinoides do tipo II (CG-2), a hiperplasia das
ECL é decorrente de hipergastrinemia com origem em um
quadro de Síndrome de Zollinger-Ellison (SZE) e Neoplasia Endócrina Múltipla (NEM-1), em que o paciente apresenta pequenos carcinomas pancreáticos ou duodenais produtores do hormônio. Assim, ao contrário do tipo I em que
há acloridria/hipocloridria, os carcinoides do tipo II apresentam hipercloridria gerada por gastrinoma primário (1,3).
Já os carcinoides do tipo III (CG-3) caracterizam-se
por lesões esporádicas da mucosa gástrica, não tendo
relação com hipergastrinemia. Ao contrário dos CG-1 e
CG-2, o CG-3 pode estar associado com síndrome carcinoide atípica, que se apresenta com prurido, broncoespasmo e rubor cutâneo, possivelmente mediados por
histamina liberada pelas ECL. Ainda que a etiologia não
seja totalmente esclarecida, sabe-se que há uma predisposição genética para o desenvolvimento dos três tipos de
carcinoides gástricos (3,4).
A apresentação de carcinoides gástricos do tipo I se
dá, em geral, na forma de múltiplos e pequenos pólipos
(< 1cm), os quais se limitam às camadas mucosa e submucosa. Não há invasão angiolinfática, e o comportamento
tende a ser benigno (1,3). A incidência de metástases tanto
linfonodais quanto hepáticas é menor do que 2,5%, tendo
a menor capacidade metastática entre os três tipos (2,5).
Além disso, os tumores do tipo I tendem a ser bem diferenciados e localizados nas regiões de fundo e corpo gástricos, sendo mais frequentes em mulheres e pacientes com
hipotireoidismo, na faixa etária dos 60 anos. Representam
entre 70 e 85% do total dos tumores carcinoides gástricos (1). No caso da paciente em questão, contrariamente
à maioria dos casos, a apresentação foi na forma de lesão
polipoide única em fundo gástrico.
Tabela 1 – Painel de imuno-histoquímica.
Anticorpo testado
Figura 1 – Tumor carcinoide em fundo gástrico
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014
Resultado
Citoqueratina 8/18
Positivo
Citoqueratina 7
Negativo
Citoqueratina 20
Negativo
CDX2
Negativo
Cromogranina
Positivo
Sinaptofisina
Positivo
LCA
Negativo
MUC5
Negativo
Ki-67
Índice de proliferação celular de 2%
285
TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al.
A
B
C
D
Figura 2 – Histopatologia – A e B : Coloração usual (HE), onde podemos observar agregados microlobulares ou
trabeculares de células pequenas, com núcleos regulares e monomórficos e escasso citoplasma eosinofílico.
C e D (cromogranina e sinaptofisina, respectivamente). Identificamos intensa imunorreatividade para os
marcadores, reforçando o diagnóstico de tumor carcinoide.
Já os carcinoides do tipo II, por sua vez, também tendem a se apresentar como formações polipoides multifocais e, em sua maioria, pequenas (< 1-2 cm), limitados à
mucosa e submucosa do fundo gástrico, entretanto, com
curso mais agressivo e uma probabilidade de metástases
um pouco mais elevada: 30% linfonodais e 10% hepáticas.
A incidência não tem distinção apreciável entre os sexos, e
representam de 5 a 10% dos casos. (1,2,3)
Os carcinoides do tipo III, os quais correspondem de
15 a 25% dos casos, caracterizam-se, geralmente, como
formações únicas, maiores (> 1-2 cm), com ulceração e
penetração além da submucosa, atingindo vasos e, por
consequência, com um curso mais agressivo, havendo
probabilidade de aproximadamente 70% para metástases
linfonodais e para outros tecidos. São mais frequentes em
pacientes do sexo masculino, e mais comumente na faixa etária dos 50 aos 55 anos, como nos casos do tipo II
(1,2,3,5).
Em linhas gerais, no que tange ao diagnóstico, a sintomatologia é variada de acordo com o perfil de produção
endócrina e com a localização do tumor, de modo que o
diagnóstico baseado no quadro clínico torna-se difícil (4).
Os tumores carcinoides gástricos, dessa forma, acabam
sendo visualizados diretamente no exame endoscópico.
286
A confirmação do diagnóstico pode se dar pela análise
histológica das lesões encontradas, pelo painel de imuno-histoquímica e também pela avaliação dos níveis séricos do
hormônio peptídeo gastrina e da cromogranina A – grupo
proteico presente em tecidos neuroendócrinos e de utilidade como marcador tumoral –, entre outros marcadores.
Exames de imagem, tais como radiografia abdominal
e exames de contraste, ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada (TC), ultrassonografia endoscópica e endorretal, e ressonância nuclear magnética (RNM),
também podem ser empregados no diagnóstico, sendo,
em geral, limitados para avaliar pequenos tumores (CG-1 e
CG-2), mas podendo ser úteis nos pacientes com doenças
notadamente mais invasivas (CG-3) e, portanto, na localização e estadiamento de tumores carcinoides, mas, em
geral, com efetividade inferior a 50% (1,4). Além disso, há
exames mais específicos, os quais se baseiam em cintilografia com a utilização de isótopos derivados de somatostatina, que têm grande utilidade na análise de disseminação
metastática, como o octreoscan, com uma efetividade de
80%, haja vista que 85% dos carcinoides gástricos expressam receptores de somatostatina (1,3,4).
Em se tratando de neoplasias malignas, o tratamento
cirúrgico dos tumores carcinoides é, na maioria das vezes,
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014
TRATAMENTO DE TUMOR CARCINOIDE GÁSTRICO SOLITÁRIO POR POLIPECTOMIA ENDOSCÓPICA Teixeira et al.
essencial, observando-se, é claro, o tipo e o tamanho das
lesões, de modo a se traçar a estratégia mais adequada (3,4).
Para carcinoides do tipo I, que apresentem de 3 a 5 pólipos,
com o maior não ultrapassando a marca de 1 cm, recomenda-se ressecção e acompanhamento por endoscopia digestiva alta anual (1). Já para tumores ainda pouco agressivos
dos tipos I e II, com menos de 2 cm e um total de até 6
pólipos, é recomendada a ressecção endoscópica, com posterior acompanhamento endoscópico semestral (2,4). No
caso de pacientes com tumores dos tipos I e II maiores
do que 2 cm ou com mais do que 6 formações polipoides,
ou, ainda, com invasão da camada muscular própria, recomenda-se uma abordagem mais agressiva, com ressecção
cirúrgica local e linfadenectomia regional e antrectomia (no
tipo I) para reduzir a fonte de produção gástrica e reduzir
as chances de recidiva (1, 2, 4). Para os pacientes com tumores superiores a 1 cm e sem a ocorrência de hipergastrinemia – tipo III –, recomenda-se gastrectomia total e linfadenectomia regional, com posterior acompanhamento por
exames de imagem e de dosagem sérica de cromogranina
A semestralmente nos dois primeiros anos e anualmente,
por mais três anos (1,4). Observa-se ainda que, em pacientes com tumor carcinoide gástrico do tipo II – associado
à Síndrome de Zollinger-Ellison e NEM-1 –, o tratamento
com derivados de somatostatina pode apresentar bons resultados na redução tumoral, da mesma forma que a antrectomia nos casos do tipo I (2).
Kim et al (7) compararam a ressecção de carcinoides
gástricos tipo I por mucosectomia endoscópica (ME) convencional com aqueles submetidos à dissecção endoscópica da submucosa (DES), muito utilizada no Oriente para
o tratamento do câncer gástrico precoce (8). A conclusão
foi que a DES resultou em ressecção histológica completa em 94,9% dos pacientes, comparativamente aos 83,3%
alcançados com a ME, obtendo-se ainda menor comprometimento de margem vertical com a primeira técnica (7).
Para casos recidivantes em tipos I e II, recomendam-se
a gastrectomia total ou subtotal e a linfadenectomia regional. E em caso de doença metastática e metástases no território hepático, deve-se analisar a possibilidade de ressecção
cirúrgica no fígado, ou, então, do uso de outras técnicas,
como a quimioembolização ou a ablação por radiofrequência. Metástases pulmonares também são passíveis de ressecção cirúrgica, enquanto uma disseminação óssea pode
ser abordada com radioterapia (1,4).
Grozinsky-Glasberg et al (9), em estudo sobre carcinoides gástricos tipo I avaliaram os fatores relacionados a me-
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 284-287, out.-dez. 2014
tástases neste perfil de pacientes. Parece que a disseminação à distância dessas lesões está relacionada a um tamanho
maior que 1 cm, ao índice de proliferação Ki-67 elevado e
a níveis aumentados de gástrica sérica, características também ressaltadas em outros trabalhos (10).
COMENTÁRIOS FINAIS
Os tumores carcinoides gástricos, apesar de serem neoplasias raras, vêm apresentando incidência crescente, provavelmente em decorrência do aumento no diagnóstico
em virtude da disseminação da endoscopia digestiva alta.
O tratamento endoscópico é, muitas vezes, factível e realizado com sucesso, sendo o seu prognóstico melhor do que
outras neoplasias gástricas, mesmo no caso de metástases.
REFERÊNCIAS
1. Dal Pizzol AC, Linhares E, Gonçalves R, Ramos C. Tumores Neuroendócrinos do Estômago: Série de Casos. Rev Bras de Cancerologia 2010; 56(4):453-461.
2. Kulke MH, Anthony LB, Bushnell DL, et al. NANETS: Treatment
Guidelines Well-Differentiated Neuroendocrine Tumors of the Stomach and Pancreas. Pancreas 2010;39: 735 -752.
3. Massironi S, Sciola V, Spampatti MP et al. Gastric carcinoids: Between underestimation and overtreatment. World J Gastroenterol 2009;
15(18): 2177-2183.
4. Fernandes LC, Pucca L, Matos D. Diagnóstico e Tratamento de Tumores Carcinoides do Trato Digestivo. Rev Assoc Med Bras 2002;
48(1): 87-92.
5. Kadikoylu G, Yavasoglu I, Yukselen V, et al. Treatment of solitary gastric carcinoid tumor by endoscopic polypectomy in a patient
with pernicious anemia. World J Gastroenterol 2006; 12(26): 42674269.
6. Valarini R, Hoeldtke E, Tefilli NL. Tumor Carcinoide do Estômago
Tipo I. Rev. Col. Bras. Cir., 2005; 32(1):50-51.
7. Kim HH, Kim GH, Kim JH, Choi MG, Song GA, Kim SE. The
Efficacy of Endoscopic Submucosal Dissection of Type I Gastric
Carcinoid Tumors Compared with Conventional Endoscopic Mucosal Resection. Gastroenterol Res Pract 2014; 2:1-7.
8. Gotoda T, Yamamoto H, Soetikno RM. Endoscopic submucosal
dissection of early gastric cancer. J Gastroenterol 2006;10(1):92942.
9. Grozinsky-Glasberg S, Thomas D, Strosberg JR et al. Metastatic
type 1 gastric carcinoid: a real threat or just a myth? World J Gastroenterol 2013;19(46):8687-95.
10. Bordi C. Neuroendocrine Pathology of the Stomach: The Parma
Contribution. Endocr Pathol 2014; Epub 04-30-2014.
 Endereço para correspondência
Uirá Fernandes Teixeira
Rua Prof. Cristiano Fischer, 818
91.410-000 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3226-4859
 [email protected]
Recebido: 9/3/2014 – Aprovado: 23/5/2014
287
RELATO DE CASO
Doença de Erdheim-Chester
Erdheim-Chester Disease
Marina Plain Olmi1, Diniz Brum Lamaison1, Otávio Rigoni Rossa1, Cristiane Bernardelli1,
Cassian Rodrigues Belettini2, Laura Maria Fogliatto3
RESUMO
A Doença de Erdheim-Chester é uma histiocitose não Langerhans rara e de incidência ainda desconhecida. Caracteriza-se por lesões
osteoescleróticas de ossos longos podendo, também, infiltrar tecidos extraesqueléticos como coração, pulmões, olhos e retroperitônio. É relatado o caso de uma paciente portadora de Doença de Erdheim-Chester tratada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
UNITERMOS: Erdheim-Chester, Histiocitose, Osteoesclerose.
ABSTRACT
Erdheim-Chester disease is a rare form of non-Langerhans histiocytosis whose incidence remains unknown. Characterized by osteosclerotic lesions in long
bones, it can also penetrate such extraskeletal tissues as heart, lungs, eyes and retroperitoneum. Here we report the case of a female patient with ErdheimChester disease treated at the Hospital de Clínicas of Porto Alegre.
KEYWORDS: Erdheim-Chester, Histiocytosis, Osteosclerosis.
INTRODUÇÃO
RELATO DE CASO
A Doença de Erdheim-Chester (DEC) é uma patologia rara caracterizada por uma histiocitose não Langerhans,
com acometimento multissistêmico. Sua apresentação histológica consiste em lesões histiocíticas infiltrativas difusas,
comumente ósseas, de aspecto xantomatoso (1).
Devido às manifestações sistêmicas, podendo acometer coração, ossos, fígado, retroperitôneo, rins e aorta, o
diagnóstico é difícil, devendo ser inferido em pacientes
com lesões osteoscleróticas bilaterais em ossos longos ao
RX (1).
Este trabalho objetiva apresentar um caso de DEC, evidenciando alguns dos possíveis sítios de acometimento e
complicações desta enfermidade, cuja etiopatogenia ainda
é pobremente compreendida.
N.L.Z, sexo feminino, 50 anos, procurou serviço médico em sua cidade de origem em 2002, apresentando dor em
perna direita. Foi solicitada uma radiografia que evidenciou
lesões osteoscleróticas simétricas predominantes nas diáfises tibiais. O hemograma revelou anemia, plaquetopenia e
leucocitose. Posteriormente, manifestou proptose em olho
direito e diminuição da acuidade visual. Foi encaminhada,
então, para biópsias em tíbia direita e ocular. Na biópsia
óssea, havia fibrose, reação pseudoxantomatosa e inflamação crônica e no olho direito, xantogranuloma retrobulbar.
O estudo imuno-histoquímico foi positivo para os marcadores CD68 e S100 e negativo para CD1a, achados compatíveis com o diagnóstico de Erdheim-Chester. A tomografia
de órbitas mostrou lesões tumescentes na gordura retro-
1
2
3
Estudante de Medicina.
Residente de Medicina Interna no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Mestre. Médica Hematologista no HCPA e na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professora da Universidade Federal de Ciências da
Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
288
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014
DOENÇA DE ERDHEIM-CHESTER Olmi et al.
-orbitária intraconal bilateralmente. Diante destes achados,
iniciou-se terapia com corticosteroides e Interferon alfa,
obtendo-se resposta satisfatória ao tratamento.
Em 2008, foi admitida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre com quadro de insuficiência cardíaca descompensada, derrame pleural volumoso à esquerda e derrame
pericárdico. Foi drenado 1 L na toracocentese, e o exame
do derrame pleural demonstrou tratar-se de um transudato.
Devido aos sinais de tamponamento cardíaco, foi realizada
pericardiocentese com drenagem de 800 mL. Na tomografia de abdome, evidenciavam-se lesões fibróticas retroperitoneais com acometimento de seios e vasos renais, que
acarretaram insuficiência renal crônica não dialítica, com
novo episódio de agudização em 2010.
No final de 2013, novamente hospitalizou por descompensação da insuficiência cardíaca, com dispneia aos mínimos esforços, dispneia paroxística noturna, astenia, dor em
hemitórax anterior esquerdo e edema em membros inferiores. O ecocardiograma demonstrou fração de ejeção do
ventrículo esquerdo de 25%, disfunções sistólica e diastólica graves e derrame pericárdico moderado sem sinais de
tamponamento. Iniciou o manejo da descompensação e,
após 10 dias, foi solicitado novo ecocardiograma que apontou melhora na fração de ejeção para 50%.
A paciente segue em acompanhamento ambulatorial
com a Hematologia.
DISCUSSÃO
A DEC cursa com envolvimento sistêmico, podendo
acometer ossos longos, seio maxilar, grandes vasos, retroperitôneo, pulmões, coração, pele, sistema nervoso central,
hipófise e órbitas oculares (1). Devido ao envolvimento de
diversos órgãos, o diagnóstico clínico é complicado, sendo
necessária a biópsia do tecido afetado. Os achados clássicos na análise imuno-histoquímica desta doença são a expressão de CD68 e ausência de S100, CD1a e grânulos de
Birbeck (2). Há, no entanto, sinais radiológicos que podem
ser considerados patognomônicos da doença: esclerose
cortical bilateral envolvendo as regiões diametafisárias de
ossos longos no raio x, associado a um aumento na captação de Tecnécio 99 na cintilografia e infiltração simétrica
e bilateral de ambos os espaços perirrenais e pararrenais
posteriores (3, 4).
A incidência da doença é praticamente igual entre homens e mulheres, sendo levemente maior em homens, e
geralmente se manifesta entre a 5ª e 7ª décadas de vida (4).
Em uma revisão de 59 casos, a idade média no momento
do diagnóstico foi de 53 anos e a mortalidade, de 57% (5).
Foram relatados apenas 8 casos em crianças (4).
A etiologia ainda não foi totalmente elucidada, mas
acredita-se que não haja componente genético, nem associação com agente infeccioso (4). Nessa perspectiva, ainda
persistem dúvidas se a DEC se caracteriza por ser um processo neoplásico monoclonal ou policlonal reativo.
Dentre as manifestações clínicas iniciais, os sintomas
inespecíficos predominam, como fraqueza, perda ponderal, febre e sudorese noturna. Levando em consideração o
acometimento sistêmico, acredita-se que 96% dos pacientes apresentem lesões ósseas e, dentre esses, 50% referem
como sintoma a dor, sendo mais comum nas proximidades
dos joelhos e tornozelos. Os ossos mais afetados são o fêmur, a tíbia e a fíbula. Ademais, uma característica importante é que a patologia tende a poupar o esqueleto axial e
as regiões epifisárias (4).
No momento do diagnóstico, 50% dos pacientes apresentam comprometimento extraósseo. O acometimento
cardíaco, quando presente, revela pior resposta ao trata-
Figura 1 e 2 – Infiltração de tecidos moles periaórticos, retroperitoneais e mesentéricos com densidade de tecidos moles com extensa obliteração
de planos adiposos. Dilatação de cavidades coletoras dos rins. Há calcificações renais bilaterais. Baço com dimensões normais, apresentando
pequena calcificação.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014
289
DOENÇA DE ERDHEIM-CHESTER Olmi et al.
mento e prognóstico. O infiltrado pericárdico é o achado
mais comum; além disso, o envolvimento do átrio direito
com infiltração pseudotumoral e do sulco auriculoventricular também são encontrados com relativa frequência.
A infiltração vascular, como a fibrose periaórtica, principalmente na camada adventícia, pode atingir o tronco braquiocefálico, tronco pulmonar, tronco celíaco, mesentérica
superior, dentre outros. O acometimento venoso é muito
menos frequente (4).
Outrossim, 68% dos pacientes apresentam envolvimento do espaço retroperitoneal (6). A infiltração massiva
perirrenal pode comprimir os rins evoluindo para falência
renal progressiva (7). As artérias renais também estão sujeitas a infiltração e estenose, acarretando na diminuição da
perfusão sanguínea e hipertensão renovascular por meio da
via renina-angiotensina.
Cerca de 43% dos pacientes apresentam acometimento pulmonar, sendo uma das causas de doença intersticial.
A presença de CD68 (+) e CD1a (-) no lavado broncoalveolar confirma o diagnóstico, e as provas pulmonares geralmente apontam para um distúrbio restritivo (8). Dentre as
manifestações raras, as cutâneas são as mais comuns, com
xantomas e xantelasmas periorbitais (9).
No que diz respeito ao tratamento, ainda não há consenso entre os médicos; entretanto, Braiteh et al. usaram
Interferon alfa em 3 pacientes, havendo regressão de lesões
ósseas, dor, diabetes insipidus. Haroche et al., em um estudo com 53 pacientes, verificaram que o uso de Interferon
alfa ou Interferon peguilado era preditor independente de
maior sobrevivência. Sabe-se, contudo, que Interferon peguilado é melhor tolerado pelos pacientes.
A paciente em questão procurou serviço médico por
dores em membro inferior direito e teve seu diagnóstico
definitivo a partir da biópsia. A doença continua em evolução, haja vista que o derrame pericárdico de moderado volume permanece, mesmo com o uso de corticoterapia. Em
novo ultrassom de vias urinárias, evidenciou-se progressão
da fibrose retroperitoneal bilateral, contraindicando o uso
de Inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina, medicamento que a levou à insuficiência renal aguda durante
sua internação no fim de 2013.
COMENTÁRIOS FINAIS
Considerando a gravidade da DEC e os períodos de
exacerbação, a sobrevida desta paciente é de mais de 11
290
anos. É importante enfatizar que a mesma encontra-se
em tratamento ambulatorial, mantendo suas atividades
diárias com poucas restrições. Para tanto, é necessário
que esses pacientes possam ter acesso ao tratamento da
doença de base, bem como à assistência médica global,
envolvendo várias especialidades no manejo das complicações multissistêmicas.
REFERÊNCIAS
1. Braiteh F, Boxrud C, Esmaeli B, et al. Successful treatment of Erdheim-Chester disease, a non-Langerhans-cell histiocytosis, with
interferon-alpha. Blood 2005; 106:2992-4)
2. Botelho, Ana et al. Histiocitose Rara com Envolvimento Cardíaco
Exuberante - Doença de Erdheim-Chester. Rev Port Cardiol 2008;
27 (5): 727-740.
3. Dion E, Graef C, Haroche J, Renard-Penna R, Cluzel P, Wechsler B,
Piette JC, Grenier PA: Imaging of thoracoabdominal involvement
in Erdheim-Chester disease.AJR Am J Roentgenol 2004,183:12531260.
4. Mazor RD, Manevich-Mazor M, Shoenfeld Y. Erdheim-Chester Disease: a comprehensive review of the literature.Orphanet J Rare Dis
20138:137)
5. Veyssier-Belot C, Cacoub P, Caparros-Lefebvre D, et al. Erdheim-Chester disease: clinical and radiologic characteristics of 59 cases.
Medicine (Baltimore) 1996;75:157-169
6. Arnaud L, Hervier B, Neel A, Hamidou MA, Kahn JE, Wechsler B,
Perez-Pastor G, Blomberg B, Fuzibet JG, Dubourguet F. et al. CNS
involvement and treatment with interferon-alpha are independent
prognostic factors in Erdheim-Chester disease: a multicenter survival analysis of 53 patients. Blood. 2011;8:2778-2782
7. Sanchez JE, Mora C, Macia M, Navarro JF. Erdheim-Chester disease as cause of end-stage renal failure: a case report and review of
the literature. Int Urol Nephrol. 2010;8:1107-1112
8. Arnaud L, Pierre I, Beigelman-Aubry C, Capron F, Brun AL, Rigolet A, Girerd X, Weber N, Piette JC, Grenier PA. et al. Pulmonary involvement in Erdheim-Chester disease: a single-center study of thirty-four patients and a review of the literature. Arthritis
Rheum.2010;8:3504-3512
9. Volpicelli ER, Doyle L, Annes JP, Murray MF, Jacobsen E, Murphy
GF, Saavedra AP. Erdheim-Chester disease presenting with cutaneous involvement: a case report and literature review. J Cutan Pathol. 2011;8:280-285.
 Endereço para correspondência
Marina Plain Olmi
Rua Júlio de Castilhos, 22
95.970-000 – Muçum, RS – Brasil
 (51) 9724-9403
 [email protected]
Recebido: 5/4/2014 – Aprovado: 1/5/2014
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 288-290, out.-dez. 2014
ARTIGO DE REVISÃO
Trauma complexo da mão parte II: lesão óssea,
amputação e reimplante, perda de substância dos dedos,
lesão da polpa digital e lesão ungueal
Complex trauma of the hand, part II: bone injury, amputation and replantation,
loss of finger substance, digital pulp injury and nail injury
Jefferson Braga Silva1, Renato Franz Matta Ramos2, Alan Rodriguez Muñíz2, Márcio Pereira Lima Ferdinando3
RESUMO
O trauma da mão representa uma das lesões que com maior frequência pode deixar sequelas funcionais importantes. A idade mais
afetada é a economicamente ativa. Valorizamos o conhecimento adequado do primeiro atendimento e do manejo das lesões mais
frequentes na mão traumatizada. Nesta segunda parte, serão abordados os fundamentos e conceitos considerados como essenciais na
lesão óssea, amputações e reimplantes, perda de substância na mão, lesão da polpa digital e do complexo ungueal. Procuramos orientar
a conduta dos médicos nas diversas situações clínico-cirúrgicas para diminuir o grau de complicações e sequelas.
UNITERMOS: Trauma, Lesões, Traumatismo Da Mão, Amputação, Reimplante.
ABSTRACT
Hand trauma is one of the injuries that can most often leave important functional sequelae. The most affected age group is economically active people. We
appreciate proper knowledge of the initial treatment and management of the most common injuries in the traumatized hand. In this second part we address
the fundamentals and concepts considered essential in bone injury, amputation and replantation, loss of substance in the hand, and injuries of digital pulp
and ungual complex. We aim to guide the conduct of physicians in different clinical and surgical situations to reduce the degree of complications and sequelae.
KEYWORDS: Injuries, Trauma Of The Hand, Amputation, Replantation.
INTRODUÇÃO
O trauma complexo é uma condição clínica em que
existe lesão de várias estruturas associadas. No primeiro
atendimento, são necessárias medidas sobre as condições
que implicam risco de vida.
O diagnóstico certeiro das lesões ósseas, das perdas de
substância e do comprometimento da polpa digital e do
1
2
3
complexo ungueal condicionará a terapêutica, interferindo não apenas sob o desenvolvimento natural da doença,
como também nas intercorrências e sequelas decorrentes
ao traumatismo da mão.
O principal objetivo desta segunda parte do artigo é
de ele servir como guia para médicos das especialidades
da saúde envolvidas com o trauma. São discutidos temas
sobre lesão óssea, amputação e reimplante, perda de subs-
PhD. Professor Livre-docente em Cirurgia da Mão na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor do Departamento de Cirurgia
e diretor da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Chefe do Serviço de Cirurgia da Mão e
Microcirurgia Reconstrutiva do Hospital São Lucas da PUCRS.
Pós-Graduação em Cirurgia Geral. Residente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas da PUCRS.
Pós-Graduação em Cirurgia Geral. Residente de Serviço de Cirurgia da Mão e Microcirurgia do Hospital São Lucas da PUCRS.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
291
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
tância na mão e dedos, lesão da polpa digital e do complexo
ungueal, para orientar a conduta do médico nas diversas
situações clínico-cirúrgicas.
REVISÃO DA LITERATURA
Lesão óssea
Fratura dos metacarpianos
Estas são lesões que, quando mal conduzidas, podem
levar a deformidades, dor crônica e limitação funcional do
segmento comprometido. A maioria das fraturas dos metacarpianos (MTC) é tratada conservadoramente. No exame
físico, procura-se descartar a presença de desvios na rotação ou angulação da estrutura óssea, observando a projeção e o posicionamento das unhas, junto com a avaliação
da flexão ativa dos dedos, acompanhando o diagnóstico
com estudos de imagem.
O tratamento imediato dependerá de fatores como local da fratura, formato, grau de angulação, ou se a lesão é
limpa ou contaminada (fratura exposta, lesão de mais de
6 horas). A correção da deformidade e a estabilização da
fratura são, sem dúvida, o foco do atendimento inicial, em
que se procura diminuir a dor, melhorar o edema, e evitar o
desenvolvimento de uma lesão secundária (1). Caso houver
outra lesão associada (lesão vascular, infecção, etc.), o tratamento da fratura passaria para um segundo plano.
Dessa forma, o atendimento ideal começa com limpeza
da ferida, redução da fratura se possível, tração, fixação externa, imobilização com órtese ou tala de gesso (dependendo do caso), cobertura com antibiótico de largo espectro e
uma adequada analgesia. Serão necessários exames radiográficos com 3 projeções (AP, perfil e oblíqua), para avaliar
a rotação e o grau de angulação da fratura, sustentado pela
avaliação clínica da extremidade com o intuito de definir a
gravidade da lesão.
Em quanto ao tratamento não cirúrgico dos metacarpianos, para aquelas lesões sem alteração na estabilidade articular, sem rotação ou deformidade importante,
preconiza-se a imobilização da articulação metacarpofangiana (MTF) e do dedo correspondente por um período
de 3 semanas, devendo-se orientar o paciente a manter o
membro elevado (uso de tipoia) e mobilizar os dedos não
comprometidos (2).
Para alguns autores, fraturas no nível do segundo MTC,
com angulação maior de 10 graus, representam uma condição de caráter cirúrgico. Para o terceiro MTC, angulação
menor ou igual a 10 seria permissível, com relação ao quarto e quinto metacarpianos, devido que estes apresentam
um grau maior de mobilidade, pode-se aceitar deformidades com um grau de angulação menor de 20 graus e 30
graus, respectivamente (3, 4). A fratura do primeiro metacarpiano considera-se incapacitante quando apresenta um
nível de angulação maior de 30 graus (5).
292
Fratura das falanges
Sem o tratamento adequado, a fratura da falange pode
evoluir em limitação significativa na função da mão. Na
maioria dos casos, este tipo de lesão não requererá abordagem cirúrgica.
O bloqueio digital antes da redução da fratura é uma
ferramenta muito útil para o manejo da dor (Lidocaína sem
vasoconstritor e Ropivacaína), consequentemente atenuando a ansiedade e o desconforto no paciente.
Una fratura na diáfise das falanges proximais e médias deve ser imobilizada com tala de Zimmer, com a
articulação parcialmente fletida, por um período de 3 a
4 semanas. Quanto a uma fratura condilea das articulações interfalangianas (IF), sempre que possível, devem
ser reduzidas, caso contrário, o desenvolvimento de rigidez articular, alteração na configuração dos dedos e
limitação funcional poderiam ser evidentes. Se necessário, a redução aberta da fratura poderia estar indicada
(alinhar a fratura com parafuso, fixador externo ou fio
de kirschner).
A falange distal é o segmento digital mais atingido, e
geralmente cursa com lesão concomitante do leito ungueal.
As fraturas da falange distal consolidam, de modo geral,
sem necessidade de intervenção. Nestes casos, a imobilização seria utilizada com a finalidade de diminuir a dor e o
desconforto (6).
Luxação da articulação IF/MTC
Dependendo da presença ou não de fratura associada, a
luxação articular pode-se classificar em simples (sem fratura) ou complexa, quando a luxação é não reduzível e apresenta uma fratura concomitante.
A técnica utilizada para a redução da luxação digital
inicia-se com um adequado bloqueio anestésico da articulação, seguido de flexão da articulação comprometida,
para depois continuar com uma leve pressão na face dorsal da falange distal. Depois, segurando o dedo se traciona
a falange distal em sentido volar, procurando conseguir o
reposicionamento da articulação IF ou MTF. A seguir, o
dedo comprometido é imobilizado por um período de 2
a 3 semanas para prevenir a hiperextensão da articulação
(7). Os pacientes com luxação complexa necessitarão de
exploração cirúrgica da lesão, precisando da atenção e dos
cuidados de um especialista.
Amputação e reimplante dos dedos
É importante enfatizar a prevalência da funcionalidade
desta estrutura e deixar de lado a estética. Embora a estética esteja dentro dos objetivos de tratamento, devemos ter
preferência por uma mão funcional e útil (função de pinça).
A princípio, dependendo do nível da amputação, a ferida
incisa pode ser indicação de reimplante. O que seria pouco
provável se for por esmagamento (8).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Amputação dos dedos
Exame e avaliação inicial da lesão
Formato da lesão
- Limpeza exaustiva
- Curativo estéril
- Elevação do membro
- *Antibiótico
- Reposição de volume
Amputação Parcial
Pesquisar
- Sensibilidade
- Lesão tendinosa
- Vascularização do coto
distal da amputação
*Solicitar Rx (2 incidências)
Amputação total
Segmento amputado
- Proteção com gaze
- Colocar em sacola plástica
- Colocar dentro de recipiente
com gelo
Avaliar a dor
- Anestesia adequada
- Bloqueio de plexo braquial
- *Avaliação secundária
- Qualificar viabilidade dos tecidos
*Iniciar profilaxia antibiótica de largo espectro, para maior segurança.
* Solicitar raio x da extremidade para avaliar lesão óssea e/ou nível da amputação.
*Avaliação 2ª: revisar viabilidade dos tecidos, preservar todo tecido possível. Devido que poderão ser utilizados para rotações de retalho e cobertura do segmento amputado, caso a possibilidade
de reimplantação for remota.
Figura 1 – Algoritmo de Conduta na amputação na mão.
Devemos indagar pelo ambiente em que ocorreu a lesão
e sobre o tempo decorrido entre a lesão e o atendimento
primário (ferimento limpo ou contaminado) (9) (Figura 1).
Como medida inicial diante deste tipo de eventos,
recomenda-se envolver a ferida (coto proximal da extremidade amputada) com um pano limpo ou compressa
estéril, seguido de compressão local com atadura de crepe. Com relação ao segmento amputado, deve ser lavado
exaustivamente com soro fisiológico 0,9%, envolto por
compressa limpa e colocado em um recipiente com gelo,
pois, normotérmico, a lesão tecidual ocorre em um perío-
do de 3 a 6 horas e, com o resfriamento (4oC), pode chegar de 12 a 24 horas (10, 11). No entanto, a lesão tecidual
pode ser mais precoce, o que irá depender da quantidade
de tecido muscular comprometido. O tempo entre o trauma e a revascularização não deveria ultrapassar as 6 horas
(Figuras 2, 3).
Recomenda-se realizar a avaliação primária do paciente
ainda com o mesmo não anestesiado, para conferir se há
permeabilidade capilar, examinar tendões e pesquisar sensibilidade. Solicitar pelo menos 2 incidências de raio x ortogonais (90º entre si), para avaliar lesão óssea e confirmar o nível
Figura 2 – Peça amputada adequadamente conservada.
Figura 3 – Peça amputada pronta para o reimplante.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
293
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Quadro 2 – Indicações absolutas de reimplante.
Quadro 1 – Procedimento cirúrgico nos reimplantes.
Limpeza cirúrgica
Amputação do polegar
Desbridamento
*Amputação de múltiplos dedos
Encurtamento esquelético
Amputação no nível do punho
Osteossíntese
Amputação no nível da palma da mão
Anastomoses vasculares
Segmento amputado na criança
Tenorrafias
*Nas amputações de múltiplos dedos, prefere-se realizar o reimplante de forma sequencial, de
radial para ulnar. Sempre iniciando pelo polegar.
*Amputações de múltiplos dedos por esmagamento ou avulsão, deve-se reimplantar pelo menos
um dos dedos, de preferência o indicador, com o objetivo de restituir a pinça com o polegar.
Neurorrafias
Reparação do revestimento cutâneo
Quadro 3 – Zonas de amputação e níveis de reimplante.
Zonas do 2o ao 5o dedo
1 Distal sem comprometimento ósseo
Zonas do polegar
1 Amputação distal sem comprometimento ósseo
2 Comprometimento ósseo e do leito ungueal 2 Comprometimento ósseo e do leito ungueal
3 Proximal ao leito ungueal, sem
compromisso articular
3 Proximal ao leito ungueal, sem comprometimento articular
4 Articulação IFD
4 Lesão no nível da articulação interfalangiana
5 Proximal à articulação IFD
5 Interfalangiana até articulação MF
Proximal à articulação
6
metacarpofalangiana
Sem comprometimento da
musculatura tenar
Com comprometimento da
musculatura tenar
*Classificação dos reimplantes
Zona I
Entre a polpa digital e a
base da unha
Zona
II
Entre a articulação IFP
e a base da unha
Zona
III
Compreende a região
entre a articulação
metacarpofalangiana
e a IFD
*Articulação Interfalangiana Proximal (IFP), articulação interfalangiana distal (IFD), articulação metacarpofalangiana (MF).
*Classificação dos reimplantes: os reimplantes de dedos são classificados em três tipos, segundo a localização da amputação.
de amputação. Já anestesiado, deve-se realizar uma nova avaliação, para ver a viabilidade dos tecidos (obs.: nunca ressecar
tecido que não pareça vascularizado devido à isquemia reativa), reavaliar 24-48h depois, pois estes podem ser necessários para serem usados como cobertura. (Quadro 1).
Funcionalmente importante, a falange distal, sempre
que possível, deve ser reimplantada (12) (Quadro 2). Porém, a anastomose dos vasos pode ser extremamente difícil e, em alguns casos, impossível (13). Os reimplantes
apresentam melhores prognósticos nas amputações mais
proximais, regulares e com lesão tecidual menos extensa
(Quadro 3). O resultado funcional é mais favorável, sendo possível o reimplante de todos os dedos (14) (Figuras
4, 5, 6, 7).
Nas amputações que envolvem polegar e indicador, a
prioridade é o reimplante do polegar. Quando o polegar
não pode ser reimplantado devido à extensa lesão do segmento amputado, pode-se realizar o reimplante heterotópico, utilizando o indicador amputado para reconstruir o
polegar (Figuras 8, 9, 10, 11).
Figura 4 – Amputação traumática do polegar.
Figura 5 – Peça amputada adequadamente conservada.
294
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Figura 6 – Resultado funcional após o reimplante microcirúrgico.
Figura 7 – Resultado estético após o reimplante microcirúrgico.
Figura 8 – Lesão complexa da mão com amputação traumática do
polegar e do dedo indicador.
Figura 9 – Peças amputadas. Maior lesão e esmagamento do polegar.
Figura 10 – Reimplante heterotópico do indicador para reconstruir o
polegar.
Figura 11 – Resultado funcional do reimplante heterotópico do
indicador para reconstruir o polegar.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
295
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Quanto à reparação vascular, as anastomoses são do
tipo termino-terminal sempre que possível. Em casos de
perdas mais extensas, é aconselhável a interposição de enxertos vasculares. Para enxertos de maior calibre, dá-se preferência aos enxertos de veias localizadas na face anterior
do punho. Quando não há variação de calibre, pode-se usar
uma artéria digital retirada de um dedo não comprometido.
No caso do polegar, a transferência da artéria digital ulnar
do dedo indicador ou médio pode-se usar como uma boa
alternativa cirúrgica.
As neurorrafias e as tenorrafias devem ser realizadas
sempre que possível em primeiro tempo. Uma vez que
as estruturas neurovasculares do segmento amputado
são identificadas, é importante avaliar a necessidade de
encurtamento ósseo. O encurtamento ósseo (5-10 mm)
será essencial para tirar a tensão, e assim permitir o reparo das estruturas comprometidas, evitando o uso de
enxerto (15).
Por último, em referência aos cuidados pós-operatórios,
deve-se prevenir as baixas temperaturas e iniciar tratamento anticoagulante (AAS e heparina) para evitar espasmos
arteriais ou trombose vascular (complicações imediatas),
além de manter o membro reimplantado em posição elevada para diminuir o edema.
Perdas de Substância dos Dedos
Nos casos em que há perda de substância, ou lesão importante de partes moles com injúria e presença de áreas
com tecido desvitalizado, o desbridamento sempre deverá
ser corajoso e agressivo, seguindo os sinais de coloração e
sangramento, priorizando nas lesões vasculares, nervosas,
ósseas e tendíneas (Figura 12).
Tipos de Cobertura Cutânea:
1. Enxertos de pele: de espessura variada (parcial ou total),
necessitam de um leito receptor adequado (vascularizado e com contaminação limitada). Integrará sobre tecido
celular subcutâneo, periósteo, peritendão, músculo; mas
não sobre tendão, cartilagem ou osso desperiostizado.
A retração secundária e o aspecto estético são outros inconvenientes da técnica.
2. Retalhos Homodigitais
2.1. Retalho de Hueston: permite a cobertura de perdas
de substância (PDS) transversais e oblíquas. Preferido em lesões dorsais articulares. É um retalho
em “L”, com incisão longitudinal na borda lateral
do dígito, seguida por incisão transversa ao nível da
Perdas de substância na mão
Lesão traumática da mão
Lesão superficial da mão
Lesão profunda da mão sem compromisso
ósseo, tendíneo ou vascular
Lesão complexa da mão com compromisso
ósseo, tendíneo ou vascular
Controle da hemorragia
Estabilização das fraturas
Lavagem, curativo e cobertura
com gaze baselinada estéril
Lavagem, desbridamento se necessário,
antibiótico de amplo espectro e cobertura
com gaze baselinada estéril
Avaliar necessidade de
cobertura cutânea
Enxerto de pele parcial
ou completa
Lavagem, desbridamento, antibióticos de
amplo espectro, cobertura com gaze
baselinada estéril, curativo compressivo
Definir o melhor tipo
de cobertura cutânea
Cicatrização dirigida por
segunda intenção
Retalho
PDS na palma ou
dorso da mão
PDS digital
Retalhos antebraquiais (arteria ulnar, radial
ou interóssea anterior ou posterior)
Retalho Hueston doral ou palmar
Retalho desepidermizado dorsal
Retalho em ilha neurovascular direito
Retalho de troca pulpar
Figura 12 – Algoritmo em perdas de substância na mão e nos dedos.
296
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
prega de flexão, permitindo a rotação e cobertura
da lesão. A zona doadora, em forma de triângulo,
pode ser coberta por enxerto de pele ou cicatrização dirigida. Podem ser feitos dois retalhos (proximal e distal) quando a perda é grande.
2.2. Retalho desepidermizado dorsal: este retalho recebe vascularização dos ramos dorsais da artéria colateral dorsal. Útil em PDS palmar para cobertura
de tendões. A incisão da pele é realizada proximal
à perda de substância, como do tipo “folha de livro” em H; segue-se a desepidermização da pele
com individualização do tecido celular subcutâneo
(16, 17). A secção proximal desse tecido dar-se-á
o quanto for necessário para adequar-se à PDS,
acrescido de 1 cm. Essa adição, a partir da interlinha articular, deve-se ao fato de que a vascularização provém de ramos dorsais das artérias colaterais
palmares, tanto em nível da articulação MF quanto
à IFP. Giro de 180º, com posterior enxertia de pele
parcial sobre o retalho (18, 19).
2.3. Retalho em ilha neurovascular direto unipediculado: demarca-se uma ilha de pele volar proximal e
contígua à PDS. Identificação e dissecção do pedículo por incisão de Brunner até a prega proximal
da articulação MF. A área doadora é coberta por
enxerto de pele parcial ou total. O procedimento
finaliza com imobilização em posição intrinsic plus
(MF 45º-70º, IFP e IFD em extensão). Como complicações, pode-se apresentar necrose do retalho
por excesso de tração/rotação ou sensibilidade cruzada (ao palpar o retalho, o paciente apresenta sensibilidade à área doadora) (Figuras 13, 14, 15, 16).
2.4. Retalho de troca pulpar: consiste na substituição da
polpa digital para a face funcionalmente mais im-
Figura 13 – Lesão da face ulnar da polpa digital D5.
Figura 14 – Retalho em ilha descolado e posicionado.
Figura 15 – Resultado pós-operatório imediato.
Figura 16 – Resultado pós-operatório de 3 meses.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
297
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
19, 20), retalho de ramos da artéria radial (Galbiatti) ou
dos ramos perfurantes da artéria radial, retalho da artéria interóssea posterior (Masquelet, Zancolli), interóssea
anterior (Hu) (21).
portante, por meio de um retalho homodigital em
ilha com pedículo neurovascular, baseado na artéria
digital palmar. Este retalho é liberado totalmente
em sua circunferência cutânea, com exceção do seu
pedículo neurovascular, o que lhe permite maior
mobilidade. Quando a perda da polpa digital ocorre
no 2o, 3o, 4o ou 5o dedos, a face do dedo usada para
a obtenção da ilha de pele (nova polpa digital) é a
ulnar (20). No polegar é usada a face radial. Isso se
justifica pela maior importância da face radial do 2o
ao 5o dígitos que fazem contato com a face ulnar do
polegar quando a pinça é realizada.
3. Retalhos Regionais e a Distância: retalhos antebraquiais
para perdas extensas da face palmar de vários dedos.
A sindactilização é uma opção interessante. Retalho da
artéria ulnar (Guinberteau-Lovie), de um dos seus ramos (Beker), da artéria radial (chinés) (Figuras 17, 18,
A porção mais distal da última falange corresponde à
polpa digital e ao complexo ungueal. É uma área de grande
aglomeração de corpúsculos sensitivos. Para definir e indicar a área acometida, a falange distal é dividida em zonas,
segundo a classificação de Braga Silva: Zona 1 (sem exposição óssea, PDS pequena); Zona 2 (PDS maior, ¾ do leito
ungueal, fratura da tuberosidade da falange); Zona 3 (PDS
de todo o leito ungueal e fratura do terço distal da falange),
Zona 4 (perda de quase toda a flange distal). O manejo nas
lesões da ponta digital detalha-se a seguir (Figura 21).
Figura 17 – Lesão traumática complexa da mão. Amputação dos
dedos D3-D5. Perda dos metacarpianos D2-D5.
Figura 18 – Enxerto ósseo da crista ilíaca para substituição do
segundo metacarpiano.
Figura 19 – Resultado pós-operatório imediato da reconstrução e
cobertura com retalho chinês.
Figura 20 – Resultado funcional após 6 meses.
298
Lesões da Polpa Digital
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Lesão digital distal
Sem lesão ungueal
Lesão ungueal
Com perda da unha
Sem perda da unha
Com lesão óssea
Lesão do leito ungueal?
Hematoma subungueal?
Estabilização
da fratura
Sim
Lavagem,
desbridamento se
necessário, sutura
do leito ungueal,
cobertura com
lâmina de silicone
estéril, *enxerto de
leito ungueal
Não
Lavagem,
cobertura com
lâmina de silicone
estéril
Sim
<50%
Drenagem com
agulha, drenagem
com lâmina de
bisturí n° 11, curativo
compressivo
>50%
Sem lesão óssea
Fechamento
primário
Não
Reconstrução
Lavagem,
desbridamento se
necessário, sutura
da unha ao leito
para cobertura
Retalho de Atasoy,
retalho de Kutler,
retalho em ilha
neurovascular direito,
retalho Moberg
(polegar)
Descolamento e
exploração do leito
ungueal
Figura 21 – Algoritmo de manejo nas lesões digitais distais.
1. Reconstruções:
1.1. Retalho Atasoy: indicado para as lesões distais
transversais e oblíquas. O avançamento médio é
de 0,5 cm. O retalho apresenta forma triangular
palmar sobre a falange distal, com o vértice à altura da prega de flexão da articulação IFD. A dissecção é realizada por descolamento e avançamento.
1.2. Retalho Kutler: consiste em dois retalhos triangulares laterais e simétricos, suturados na linha média,
para amputações transversais. A incisão dos retalhos não deve estender-se além da prega de flexão
distal da articulação IFD. A sutura é realizada na
linha média. O defeito na área doadora é fechado
bilateralmente em forma de “Y”.
1.3. Retalho de Moberg: utilizado preferencialmente no
polegar. Delimita-se contiguamente a perda de substância, realizam-se duas incisões médio-laterais, mas
se mantém o pedículo cutâneo até a base da eminência tenariana. A região ocasionada pelo avanço do
retalho normalmente se cobre com enxerto de pele
total retirado da borda ulnar da mão. A sua maior
vantagem é a preservação da sensibilidade, e a sua
maior desvantagem é o avanço limitado, em torno
de 20 mm.
1.4. Retalho em ilha neurovascular direto (ver ponto
2.3).
Lesões do Complexo Ungueal
Entre as lesões mais frequentes do complexo ungueal,
descrevem-se o hematoma subungueal, as lacerações, os esRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
magamentos e a avulsão do leito ungueal. Os hematomas
ocorrem devido a trauma microvascular no leito da unha.
A perfuração da unha com agulha ou lâmina de bisturi nº
11 para drenagem do hematoma subungueal (menos do que
50% da superfície da unha) parece ser o método mais simples
de tratar um trauma sem fraturas. O alívio da dor é imediato.
Para os casos com hematoma subungueal maior que 50% da
superfície ungueal, será necessário realizar descolamento da
unha para permitir o reparo microcirúrgico do leito ungueal.
Cobertura antibiótica e analgésicos são necessários.
Para avulsão ou esmagamento severo de leitos ungueais
e pontas de dedo, é necessário substituir a perda de substância com enxertos de leitos (leito ungueal do hallux) e
retalhos regionais. Enxertos de leito de unha podem ser
feitos frequentemente no contexto agudo e atrasado. É
importante levar em conta a possibilidade de cicatriz ou
possível deformidade da unha no local doador.
Nos casos de traumatismo com perda da unha, tenta-se,
dentro do possível, dar cobertura ao leito com a própria
unha do paciente. Se isso não for possível, pode-se utilizar
uma cobertura de silicone (por exemplo, bolsa do soro fisiológico estéril) (Figuras 22, 23, 24, 25, 26).
DISCUSSÃO
O trauma da mão acarreta consigo uma caracterização
socioeconômica importante com um saldo negativo. Porem, é relevante identificar as alterações envolvidas neste
fenômeno, pois tem importância vital para perpetuar a
função da extremidade afetada. Acreditamos importante o
299
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
Figura 22 – Lesão da polpa digital e do complexo ungueal.
Figura 23 – Exposição óssea e lesão da matriz ungueal.
Figura 24 – Fixação com agulha nº 21. Reconstrução do leito ungueal
e pele.
Figura 25 – Cobertura do leito ungueal com a própria unha do paciente.
conhecimento dos conceitos básicos no atendimento primário nas lesões com perda de substância da mão, assim
como as diferentes opções cirúrgicas de reconstrução, para
serem utilizadas, quando necessário.
Portanto, a abordagem multidisciplinar fornecerá maior
integridade na atenção do paciente e, certamente, favorecerá na obtenção de melhores resultados tanto funcionais
como estéticos.
COMENTÁRIOS FINAIS
Figura 26 – Resultado estético após 24 meses da cirurgia.
300
O conhecimento da anatomia do membro superior é
importante para um atendimento e encaminhamento precoce e adequado pelos profissionais envolvidos com o
trauma. Valorizamos o atendimento primário adequado
para diminuir as consequências desfavoráveis e sequelas
funcionais deste tipo de lesões.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
TRAUMA COMPLEXO DA MÃO PARTE II... Silva et al.
REFERÊNCIAS
1. Weinstein LP, Hanel DP. Metacarpal fractures. Journal of Hand Surgery. 2002 Nov;2(4):168-180.
2. Jones NF, Jupiter JB, Lalonde DH. Common fractures and dislocations of the hand. Plastic and Reconstructive Surgery. 2012
Nov;130(5):722e-736e.
3. Koukkanen HO, Mulari-Keränen SK. Treatment of subcapital fractures of the fifth metacarpal bone: a prospective randomised comparison between functional treatment and reposition and splinting.
Scandinavian Journal of Plastic and Reconstructive Surgery and
Hand Surgery. 1999 Sep;33(3):315-7.
4. McKerrell J, Bowen V, Johnston G, Zondervan J. Boxer’s fractures:
conservative or operative management?. Journal of Trauma and
Acute Care Surgery. 1987 May;27(5):486-490.
5. Peimer CA, Smith RJ, Leffert RD. Distraction-fixation in the primary treatment of metacarpal boné loss. Journal of Hand Surgery
(American Volume). 1981 Mar;6(2):111-24.
6. Scott W. Wolfe. Green’s Operative Hand Surgery. 6th ed. Vol I,
Chapter 8. Elsevier. Philadelphia, 2010. pp 239-290.
7. Kiefhaber TR, Stern PJ. Fracture dislocations of the proximal interphalangeal joint. Journal of Hand Surgery. 1998 May; 23(3):368380.
8. O’Brien BM. Replantation Surgery. Clinics in Plastic Surgery. 1974
Jul;1(3):405-426.
9. U.S. Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control andPrevention.Tetanus.http://www.cdc.gov/vaccines/pubs/pinkbook/downloads/tetanus.pdf.Accessed October
22, 2007.
10. Hanel DP, Chin SH. Wrist level and proximal-upper extremity replantation. Hend Clinics. 2007 Feb;23(1):13-21.
11. Maricevich M, Carlsen B, Mardini S, Moran S. Upper extremity and
digital replantation. Hand (NY). 2011 Dec;6(4):356-363.
12. Braga Silva J, Jaeger M. Repositioning and flap placement in fingertip injuries. Annals of Plastic Surgery. 2001; 47(1):60-63.
13. Chang YC. Fingertip replantation and revascularization: Literature
review and a case report of fingertip amputation of the fifth finger
of a one year old child. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica. 2011;
26(4):714-717.
14. Pederson WC. Replantation. Plastic and Reconstructive Surgery.
2001 Mar;107(3):823-841.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 291-301, out.-dez. 2014
15. Urbaniak JR, Hayes MG, Bright DS. Management of bone in digital
replantation: free vascularized and composite bone grafts. Clinical
Orthopaedics and Related Research. 1978 Jun;(133):184-194.
16. Braga-Silva J, Albertoni W, Faloppa F. Estudo anatômico da vascularização cutânea do dorso dos dedos e sua aplicação no retalho
desepidermizado homodigital. Revista Brasileira de Ortopedia. 2003
Jun;38(6):337-346.
17. Braga Silva J. Anatomic basis of dorsal finger skin cover. Techniques
in Hand and Upper Extremity Surgery. 2005 Sep; 9(3):134-141.
18. Estrella EP, Padua RA. The “local dorsal adipofacial flap” for
volar digital defects: a case report. Journal of Hand Surgery.
2011;16(3):379-381,
19. Braga-Silva J, Kuyven CR, Albertoni W, Faloppa F. The adipofascial
turn-over flap for coverage of the dorsum of the finger: a modified
surgical technique. Journal of Hand Surgery (American Volume).
2004 Nov;29(6):1038-1043.
20. Braga-Silva J, Gehlen D, Bervian F, da Cunha GL, Padoin AV. Randomized prospective study comparing reverse and direct flow island
flaps in digital pulp reconstruction of the fingers. Plastic and Reconstructive Surgery. 2009 Dec;124(6):2012-8.
21. Chao JD, Huang JM, Wiedrich TA. Local Hand Flaps. Journal of
Hand Surgery. 2001Feb;1(1):25-44.
22. Lee SM, Rahman MF, Thirkannad S. Combination V-Y advancement flap and composite graft for reconstruction of na amputated
fingertip. Journal of Hand Surgery. 2012;17(1):145-149.
23. Jackson EA. The V-Y plasty in the treatment of fingertip amputations. American Family Physician Journal. 2001 Aug 1;64(3):445-458.
24. Germann G, Biedermann N, Levin SL. Intrinsic flaps in the hand.
Clinics in Plastic Surgery. 2011 Oct;38(4):729-738.
25. Braga-Silva J. Padoin AV. Distraction osteogenesis and free nail graft
after distal phalanx amputation. Journal of Hand Surgery (American Volume). 2012 Dec;37(12):2541-2546.
 Endereço para correspondência
Renato Franz Matta Ramos
Av. Ipiranga, 630/605
90.160-090 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3320-3000
 [email protected]
Recebido: 19/12/2013 – Aprovado: 13/1/2014
301
ARTIGO ESPECIAL
Reflexões sobre a saúde pública e o ensino médico
Reflections on public health and medical education
Cyro Castro Júnior1
RESUMO
O Brasil vive um período de intensos debates sobre a saúde pública, a sua qualidade e a sua abrangência a todos os brasileiros, além do
questionamento referente à formação médica nas instituições de ensino quanto ao aprendizado técnico e à formação humanística, o
que determinou medidas por parte do governo no sentido de oferecer atendimento médico a periferias das grandes cidades e lugares
longínquos, além de mudanças na área pedagógica, na grade curricular e na política de autorização para o funcionamento das faculdades de Medicina. O presente artigo traz uma breve revisão sobre o assunto, com as experiências existentes tanto no campo assistencial
quanto no educacional no nosso país e no mundo, sem a pretensão de esgotar o assunto, porém auxiliando na reflexão sobre quais
medidas poderiam representar impacto real sobre a qualidade da assistência de saúde à nossa população.
UNITERMOS: Saúde Pública, Educação Médica, Métodos, Currículo.
ABSTRACT
Brazil is experiencing a period of intense debates on public health, its quality and its scope to all Brazilians, as well as the questioning of medical training in educational institutions as for technical learning and humanistic training. This has determined governmental measures to provide medical care to the
outskirts of large cities and remote locations, as well as changes in the pedagogical area, in the curriculum and in the authorization policy for the operation
of medical schools. This article provides a brief review of the subject, with existing experiences both in the healthcare field and in education in our country
and the world, with no claim to exhaust the subject, but helping to consider what measures could have a real impact on the quality of the healthcare delivered
to our population.
KEYWORDS: Public Health, Medical Education, Methods, Curriculum.
O País vive um período de intensos debates sobre a
saúde pública, a sua qualidade e a sua abrangência a todos os brasileiros, determinando medidas por parte do
governo, ditas emergenciais, no sentido de oferecer atendimento médico a periferias das grandes cidades e lugares longínquos que o poder público, historicamente, tem
dificuldade para alcançar por motivos diversos ao longo
dos anos, sejam eles econômicos, culturais, políticos, etc.
Porém, permanece a dúvida se essas medidas representarão impacto real sobre a qualidade da assistência de saúde
a essas populações.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) (1), em 1948,
definiu saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”,
entendendo-se, então, a saúde como um valor da comu1
nidade e não apenas do indivíduo. Portanto, a discussão
principal gira em torno do que significa oferecer melhores
cuidados de saúde a uma população, uma vez que sabemos
que a saúde é conquistada através de um extenso leque de
necessidades básicas a serem atingidas, tais como água tratada, saneamento básico, noções de higiene pessoal e alimentação, orientação e combate ao uso ou abuso de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, práticas saudáveis diárias, como
atividade física, ensino, educação, cultura, boas condições
de moradia e convívio social, segurança, entre outras.
A Constituição Federal (1988) (2), no artigo 196, refere-se à saúde como “direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
Médico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização em Cirurgia Geral e Cirurgia Vascular. Mestre em Medicina
Cirúrgica pela UFRGS.
302
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014
REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior
sua promoção, proteção e recuperação”. Os cuidados aos
agravos à saúde têm importância fundamental nesse contexto, pois estes necessitam de uma estrutura completa de
atendimento à população no âmbito da prevenção e do tratamento. Para a prevenção e o acompanhamento à saúde
dos indivíduos, se faz necessária uma estrutura multiprofissional, com suporte de instalações físicas adequadas, acesso
a profissionais médicos, odontólogos, enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas, nutricionistas, entre
outros, acesso a exames laboratoriais, vacinas, medicação,
demandando uma organização sistêmica, regionalizada e
hierarquizada (3).
Na sociedade brasileira, observamos carências importantes em grandes extensões do nosso território, seja na
estrutura física ou na distribuição de profissionais, para a
garantia desse direito constitucional. A Constituição Federal de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) como
uma nova formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de saúde. O SUS deve
ter a mesma doutrina e os mesmos princípios organizativos
em todo o território nacional, sob a responsabilidade das
três esferas autônomas de governo federal, estadual e municipal. Assim, o SUS não é um serviço ou uma instituição,
mas um sistema que significa um conjunto de unidades, de
serviços e ações que interagem para um fim comum. Esses
elementos integrantes do sistema referem-se, ao mesmo
tempo, às atividades de promoção, proteção e recuperação
da saúde (2, 4).
Baseado nos preceitos constitucionais, a construção do
SUS se norteia pelos princípios doutrinários da “universalidade, equidade e integralidade”. Nesta visão, “o homem é
um ser integral, bio-psico-social, e deverá ser atendido com
esta visão por um sistema de saúde também integral, voltado a promover, proteger e recuperar a sua saúde” (3, 4).
Com base no descrito, o que se vê na prática é que os
cuidados da saúde da população brasileira carecem da presença do Estado como garantidor da previsão constitucional em várias partes do território há longa data. Segundo
o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS)
(5), o gasto com saúde no Brasil representa 8,4% do PIB,
sendo que o setor público arca com 41,6%, ficando os
restantes 58,4% a cargo do setor privado, embora mais de
90% da população seja usuária do SUS, 28,6% utilizam exclusivamente o SUS e apenas 8,7% da população não o utilizam. Como garantir os princípios do SUS de universalidade, equidade e integralidade em um território tão extenso e
tão diverso do ponto de vista econômico, social e cultural?
A primeira tentativa de interiorização da saúde ocorreu com o Projeto Rondon, criado em 1967, e, durante as
décadas de 1970 e 1980, permaneceu em franca atividade, tornando-se conhecido em todo o Brasil, envolvendo
mais de 350 mil estudantes universitários e professores em
atividades assistenciais. No final dos anos 1980, o Projeto
deixou de receber prioridade no Governo Federal, sendo
extinto em 1989. Em 2005, com nova roupagem, o Projeto Rondon voltou à pauta dos programas governamentais,
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014
sendo atribuída a sua coordenação ao Ministério da Defesa.
Desde então, o Rondon já levou mais de 12 mil rondonistas a cerca de 800 municípios. O Rondon é um projeto de
integração social que envolve a participação voluntária de
estudantes universitários na busca de soluções que contribuam para o desenvolvimento sustentável de comunidades
carentes e ampliem o bem-estar da população. O Projeto Rondon tem por objetivos: contribuir para a formação
do universitário como cidadão; integrar o universitário ao
processo de desenvolvimento nacional, por meio de ações
participativas sobre a realidade do País; consolidar no universitário brasileiro o sentido de responsabilidade social,
coletiva, em prol da cidadania, do desenvolvimento e da
defesa dos interesses nacionais e estimular no universitário
a produção de projetos coletivos locais, em parceria com as
comunidades assistidas (6).
Outra iniciativa, iniciada em 1994, a Saúde da Família é
entendida como uma estratégia de reorientação do modelo
assistencial, mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Essas equipes são
responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde,
prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos
mais frequentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. A Saúde da Família busca maior racionalidade na utilização dos demais níveis assistenciais e tem produzido resultados positivos nos principais indicadores de saúde das
populações assistidas pelas equipes de saúde da família (7).
Tendo em vista a necessidade não apenas de levar médicos por períodos para intervenções de atendimento no
Interior, mas, sim, manter a presença desses profissionais
nestas localidades, existe em tramitação no Senado Federal
a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 34/2011, que
cria a Carreira de Médico do Estado no âmbito do SUS,
como uma forma de fixar médicos em municípios distantes, através de concurso público e com plano de carreira
atrativo, porém sem suficiente apoio político para a sua
aprovação (8).
A Medida Provisória nº 621, de 08 de julho de 2013,
e a Lei nº 12871, de 12 de outubro de 2013, instituem o
Programa Mais Médicos, que “prevê investimento em infraestrutura dos hospitais e unidades de saúde, além de levar mais médicos para regiões onde não existem profissionais”. De imediato, o programa fez a contratação de mais
de 14 mil médicos para a atuação em periferias e municípios longínquos, remunerados por bolsa federal e com um
período de atuação definido de três anos. Com a pequena
adesão dos médicos brasileiros e dos demais estrangeiros,
a grande maioria dos profissionais foi trazida de Cuba, por
meio de convênio que suscitou grandes discussões sobre
a legalidade e também sobre o impacto que um programa
com prazo estabelecido possa trazer de benefício à população assistida. Em parceria com o Ministério da Educação,
o programa prevê ainda a abertura de 11,5 mil vagas nos
cursos de Medicina no País até 2017 e 12 mil vagas para
303
REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior
formação de especialistas até 2020, com uma mudança
na formação dos estudantes de Medicina na tentativa de
“aproximar ainda mais os novos médicos à realidade de
saúde do país” (9).
Este debate levantou questões sobre a formação dos
médicos brasileiros, polarizando quanto ao aprendizado
técnico e à formação humanística nas faculdades de Medicina do País, generalizando e rotulando a formação médica no Brasil. Podemos observar que essa discussão não
é nova, e várias experiências concretas existem no mundo
e no Brasil com o uso de metodologias de ensino que propiciam o desenvolvimento do conhecimento médico vinculado ao atendimento humanizado à população, através
de metodologias ativas de ensino, contrastando com o uso
de metodologias tradicionais que compartimentalizam o
conhecimento em campos altamente especializados (10).
As metodologias de ensino-aprendizagem ativas foram,
primeiro, instituídas na Escola de Medicina da Universidade de McMaster, no Canadá, a partir de 1966, criando
a aprendizagem baseada em problemas (ABP) em estudos
preliminares sobre mudança curricular e oficializando essa
mudança em 1969. Desde então, a ABP foi adotada pelas
Universidades de Maastrch, na Holanda; Harvard e Havaí,
nos Estados Unidos, Sherbrook, no Canadá, entre um total
de 60 outras escolas e Universidades distribuídas também
pela Ásia, África e América Latina. No Brasil, essa modalidade de estrutura curricular foi implantada na Faculdade
de Medicina de Marília (FAMEMA), em 1997; no Curso
de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
em 1998; na Faculdade de Medicina da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO), do Rio de Janeiro, em
2005 (após a Sociedade Brasileira de Medicina de Família
e Comunidade – SBMFC – realizar a primeira exposição
em Medicina de Família e Comunidade na UNIFESO, com
experiências do Sul e Sudeste do Brasil e destacando o potencial das metodologias ativas no cuidado e na promoção
da saúde integral), no curso de Medicina do Centro Universitário do Pará (CESUPA), em 2006 (3, 10, 11, 12, 13).
A Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), o Programa de Incentivo para Mudanças no
Currículo na Educação Médica (PROMED, 2002) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional
em Saúde (Pró-Saúde, 2005) surgem estimulando a educação superior ao conhecimento dos problemas do mundo
atual e a prestação de serviço em reciprocidade com a população. As Diretrizes Curriculares Nacionais (2011) para
a maioria dos cursos da área da saúde reafirmam a importância do atendimento às demandas sociais, com destaque
para o SUS (3, 10, 12, 14).
As alternativas pedagógicas conhecidas como metodologias ativas de ensino têm buscado auxiliar nessa mudança desejada na área de formação desses profissionais, pois
elas se caracterizam por colocar o estudante no centro do
processo de ensino-aprendizagem, tornando-o construtor
do seu próprio conhecimento por meio de um currículo
que agrega as diferentes disciplinas, permitindo que ele de304
senvolva um olhar amplo acerca do ser humano, nas suas
relações com a sociedade e com o ambiente. Essas metodologias ativas baseiam-se na autonomia, pressupondo um
discente capaz de autogerenciar o seu processo de formação para um profissional ativo e apto a aprender a aprender, baseando-se nos pilares da educação ao longo da vida:
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver
e aprender a ser, como citado no relatório da Unesco (3,
10, 15).
As metodologias ativas têm permitido a articulação
entre a Universidade, o serviço e a comunidade. Esse
sistema pedagógico visa ao aumento da capacidade do
discente em participar como agente de transformação social, mobilizando o potencial social, político e ético do
estudante. O ensino pela problematização e a organização
curricular em torno da ABP apresentam como principais
aspectos a aprendizagem significativa, a indissociabilidade entre teoria e prática, o respeito à autonomia do estudante, o trabalho em pequeno grupo, a avaliação formativa e a educação permanente que extingue a noção de
terminalidade da formação (10).
Manfroi, Machado, et al. (2002) (16) relatam um programa de ensino em cardiologia na Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na
década de 1990. Enfatizando mudanças na prática pedagógica com atividades dinâmicas de ensino, concluíram que
o programa provou ser eficiente tanto para o aprendizado
quanto para a performance dos estudantes.
Em estudo qualitativo sobre o internato médico na
Universidade de Santa Catarina, Chaves e Grosseman
(2007) (14) relatam que o modelo “tem por objetivo incluir
a participação do estudante junto a uma nova realidade de
trabalho, tentando contemplar o modelo de saúde preconizado para o País, com integralidade na atenção e promoção à saúde, num sistema hierarquizado de referência,
contra-referência e trabalho em equipe” e que, “apesar de
avançarem, as iniciativas também encontram dificuldades:
o despreparo dos profissionais do serviço para receber os
estudantes, a resistência para estabelecer convênios com
esses serviços e a falta de estrutura física que permitisse o
aprendizado”. Citam ainda as dificuldades para a contratação de profissionais, ausência de financiamento específico,
ausência de carreira para os profissionais que orientam os
estudantes na rede, disfunção do sistema e problemas na
integração. Concluem que “a luta pela transformação do
ensino médico deve caminhar em conjunto com a luta por
um ensino de qualidade para o País e em conjunto com a
luta pela concretização de um sistema de saúde de qualidade que supra as necessidades de saúde de toda a população
brasileira, pois a mudança curricular não pode ser isolada
do contexto socioeconômico no qual estamos inseridos ou
dos problemas da educação e da saúde em nosso país”.
Em artigo científico publicado pelo Núcleo de Avaliação Institucional da FAMEMA, em avaliação qualitativa
com egressos, Hafner et al. (2010) (17) concluíram que o
curso “se aproxima da formação do médico generalista,
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014
REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE PÚBLICA E O ENSINO MÉDICO Castro Júnior
humanista, crítico e reflexivo, que pode intervir tanto nos
diferentes níveis de atenção de saúde quanto no enfoque
individual e coletivo”, no entanto “há limites para a efetivação de uma clínica ampliada nos diversos cenários da saúde”. Os egressos apontam que o curso proporcionou “uma
teoria direcionada ao doente” e uma “formação humanitária”, mas fazem referência a limites para se estabelecer
uma boa relação médico-paciente, pois “o meio (sistema
de saúde) obriga a distorcer essa relação”, diante da precarização de alguns serviços públicos de saúde, frente a demandas reprimidas, comprometendo a qualidade do atendimento. Concluem ainda que é preciso investir também
na educação em saúde dos usuários ou pacientes, porque,
culturalmente, esses já esperam médicos que os atendam
rapidamente, peçam exames e os mediquem, esperando
passivamente serem curados em vez de se curarem.
Quanto à visão de estudantes de Medicina da UNIFESO sobre a ABP, Costa et al. (2011) (11) relatam que “a
maioria dos alunos teve uma impressão positiva do novo
currículo, enfatizando a necessidade de melhorar o método
de ensino”.
Caldas et al. (2013) (13), relatando a experiência no ensino da reumatologia na CESUPA, utilizando metodologias
ativas de aprendizagem, citam que “a literatura destaca a
necessidade de diversas oportunidades de observação direta, com a utilização de treinamento em laboratório de
habilidades, ambiente real e de outras formas de avaliação,
pois cada uma tem a sua finalidade”, e que não existe uma
única resposta correta, mas diversas abordagens têm sido
tentadas para melhorar o rendimento dos graduandos de
Medicina, especialmente a utilização de metodologias ativas de aprendizado e a APB.
COMENTÁRIOS FINAIS
Com base nessa breve revisão sobre as problemáticas
da saúde pública e o enfoque sobre o ensino médico, vemos que esses são temas que, de longa data, estão presentes em discussões pelo mundo. As alternativas existem para
serem estudadas e compartilhadas, com experiência de implantação em vários países e também em várias localidades
do Brasil, enfatizando a melhoria do conjunto das necessidades que o setor da saúde apresenta para o bom exercício
laboral dos profissionais da saúde em todas as esferas, no
sentido de melhorar a qualidade do atendimento da saúde da população. Acredito que estaremos mais perto de
melhorar essa situação se encararmos a saúde pública não
como um programa de governo, fragmentada, mas, sim,
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 302-305, out.-dez. 2014
como uma política de Estado, com atenção permanente e
mudanças sólidas, conjuntas e duradouras.
REFERÊNCIAS
1. World Health Organization. Disponível em <http://www.who.int/
kobe_centre/about/faq/en/> Acesso em 01 jul 2014.
2. Brasil, Senado Federal. Constituição. Brasília, 1988.
3. Gomes AP, Arcuri MB, Cristel EC, Ribeiro RM, Souza LMBM,
Siqueira-Batista R. Avaliação no Ensino Médico: o papel do portfólio nos currículos baseados em metodologias ativas. Rev Bras Educ
Med. jul/set 2010; 34(3): 390-6.
4. Ministério da Saúde, Secretaria Nacional de Assistência à Saúde.
ABC do SUS: Doutrinas e Princípios. Brasília, 1990.
5. Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS). O Financiamento da Saúde. Brasília, 2, 2011.
6. Projeto Rondon. Disponível em: <http://www.projetorondon.
pagina-oficial.com> Acesso em 01 jul 2014.
7. Saúde da Família. Disponível em: <http://www.dab.saude.gov.br>
Acesso em 01 jul 2014.
8. Brasil, Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição 34/2011.
Dispõe sobre a criação da carreira de médico de Estado. Disponível
em <http://www.senado.gov.br> Acesso em 01 jul 2014.
9. Mais Médicos. Disponível em <http://www.maismedicos.saude.
gov.br> Acesso em 01 jul 2014.
10. Sandra Minardi Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça
JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias Ativas de ensino-aprendizagem na Formação Profissional em
Saúde: debates atuais. Ciênc e Saúde Coletiva. Dez 2008; 13(2): 2133-44.
11. Costa JRB, Romano VF, Costa RR, Gomes AP, Siqueira-Batista R.
Active Teaching-Learning Methodologies: medical students’ views
of problem-based learning. Rev Bras Educ Med. Jan/mar 2011;
35(1): 13-9.
12. Cezar PHN, Guimarães FT, Gomes AP, Rôças G, Siqueira-Batista
R. Transição Paradigmática na Educação Médica: um olhar construtivista dirigido à aprendizagem baseada em problemas. Rev Bras
Educ Med. Abr/jun 2010; 34(2): 298-303.
13. Caldas CAM, Paz OAG, Negrão JNC, Caldato MCF. A Reumatologia em um Curso de Medicina com Aprendizagem Baseada em
Problemas. Rev Bras Educ Med. Out/dez 2013; 37(4): 584-90.
14. Chaves ITS, Grosseman S. O Internato Médico e suas Perspectivas.
Rev Bras Educ Med. Dez 2007; 31(3): 212-22.
15. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO). Educação: um Tesouro a Descobrir. Relatório
para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o
Século XXI. Brasília, jul 2010.
16. Manfroi WC, Machado CLB, Dorneles MA, Ribeiro EC, Bordin R.
The Need for Pedagogical Qualifications for Teaching Cardiology
to Undergraduate Students. Arq Bras Cardiol. 2002; 78(3): 276-80.
17. Hafner MLMB, Moraes MAA, Marvulo MML, Braccialli LAD, Carvalho MHR, Gomes R. A Formação Médica e a Clínica Ampliada:
resultados de uma experiência brasileira. Ciênc Saúde Coletiva. Jun
2010; 15(1): 1715-24.
 Endereço para correspondência
Cyro Castro Júnior
Rua Irmão Agnelo Chaves, 130
92.020-080 – Canoas, RS – Brasil
 (51) 3452-9221
 [email protected]
Recebido: 17/9/2014 – Aprovado: 8/10/2014
305
SEÇÃO BIOÉTICA
Violação de fronteiras: envolvimento sexual médico-paciente
Boundary Violations: Sexual Misconduct in the Practice of Medicine
Gabriel José Chittó Gauer1, Alfredo Cataldo Neto2, Patrícia Inglez de Souza Machado3, Fernando Inglez de Souza Machado4
RESUMO
O objetivo do presente artigo é abordar a questão do envolvimento sexual entre médico e paciente. São analisados brevemente os
aspectos psicológicos, as consequências e medidas preventivas e de reabilitação no que se refere ao abuso da relação médico-paciente
para seu favorecimento sexual.
UNITERMOS: Relação Médico e Paciente, Bioética, Ética Médica.
ABSTRACT
The aim of this article is to address the issue of sexual relationship between doctor and patient. This article reviews briefly psychological aspects and consequences as well as preventive and rehab measures regarding sexual abuse in the doctor-patient relationship.
KEYWORDS: Physician-Patient Relationship, Bioethics, Medical Ethics.
INTRODUÇÃO
Apesar de ser um tema que remonta ao início do exercício da Medicina, as questões concernentes às relações sexuais entre médicos e pacientes permanecem sendo tema de
estudo na área da ética e da bioética. As primeiras proscrições no contato sexual com os pacientes datam do juramento Hipocrático: “... na casa onde eu for, entrarei apenas para
o bem do doente, abstendo-me de qualquer mal voluntário,
de toda sedução, e, sobretudo, dos prazeres do amor com
mulheres e homens, sejam livres ou escravos...” (1,2,3,4).
Nas normativas ético-profissionais brasileiras, percebe-se tal preocupação desde o Código da Moral Médica de
1929, que prescrevia: o médico não deverá examinar a mulher casada sem a presença de seu marido ou de uma pessoa
da família devidamente autorizada. As normativas posteriores seguiram estabelecendo a necessidade de o exame de uma
mulher ser realizado na presença de terceiro, bem como do
1
2
4
5
respeito ao pudor do paciente. O Código de Ética Médica de
1988, vigente por mais de 20 anos, conquanto não abordasse
a questão de forma pontual, ao tratar sobre a relação com
pacientes e familiares, posicionava-se sobre o tema vedando
ao médico aproveitar-se de situações decorrentes da relação
médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou política. Tal assertiva foi mantida integralmente
no atual Código de Ética Médica (6,7,8).
Nos Estados Unidos, em 1989, a Associação Médica
Americana divulgou uma normativa ética um pouco mais
específica proibindo o contato sexual entre médico, de
qualquer especialidade, e paciente. Esta normativa foi ampliada em 1991, englobando a proibição, por um período
indefinido, de ligações sexuais entre médicos e pacientes
“se o médico usa ou explora a confiança, conhecimento,
emoções, ou influência derivada do relacionamento profissional prévio” (9).
O tema, além de ser motivo de reflexões na área da
ética e da bioética, também tem tido uma influência na
Médico Psiquiatra. Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Membro do Comitê
Gestor do Instituto de Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Médico Psiquiatra. Professor da Faculdade de Medicina e Coordenador do Grupo de Pesquisa, Envelhecimento e Saúde Mental (GPESM) do
Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS.
Aluna do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, da Faculdade de Direito da PUCRS.
Estudante de Direito.
306
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014
VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al.
prática médica. Em especial nos Estados Unidos, houve
crescimento do número de processos movidos por pacientes nestas situações. O mesmo ocorre no Brasil e em
várias partes do mundo. O exercício da Medicina passou
a ser feito de forma mais defensiva e foram criados mecanismos para auxiliar os próprios profissionais envolvidos
em tais situações (10).
A proposta deste estudo consiste em analisar brevemente os aspectos psicológicos, as consequências e as
medidas preventivas e de reabilitação no que se refere ao
abuso da relação médico-paciente para seu favorecimento
sexual. Buscaremos, com isso, compreender o que faz alguns médicos exporem-se ao risco de perder tudo o que
conquistaram em sua vida profissional e pessoal e a irem
contra o princípio mais arraigado na prática da medicina: o
respeito aos pacientes.
CONCEITOS ÉTICOS A PROPÓSITO DA
CONDUTA SEXUAL NA RELAÇÃO
MÉDICO-PACIENTE
A relação profissional de saúde-paciente se constitui
em uma “aliança terapêutica” necessária para promover a
recuperação da saúde. Os laços de confiança e credibilidade que se estabelecem durante a interação entre quem
cuida e o doente são fundamentais para o sucesso do tratamento (11).
O relacionamento médico-paciente começa quando
uma pessoa “contrata” os serviços de um médico, ainda que
não esteja pagando por eles, e termina quando os serviços
não são mais necessários, ou não são desejados, ou quando
o relacionamento profissional tiver sido formalmente encerrado pelo paciente ou pelo médico. Este relacionamento varia em intensidade e duração, podendo ser desde breve
e superficial até longo e intenso (12,13).
O contato sexual médico-paciente inclui qualquer toque nas diversas partes do corpo “com a intenção de provocar ou de satisfazer o desejo sexual do paciente, do médico, ou de
ambos”. O contato sexual médico-paciente é eticamente
incorreto, independentemente de quem toma a iniciativa
de sexualizar a relação terapêutica que deveria existir entre ambos. Este caráter de transgressão existe porque o
contato sexual entre médico e paciente não é consensual:
o paciente não é capaz de dar um consentimento moralmente válido a seu médico, no sentido de permitir um
relacionamento sexual com o mesmo, porque os elementos fundamentais para que isso ocorra – intencionalidade,
entendimento substancial, livre escolha e autorização autônoma – estão ausentes. No sentido de evitar o contato
sexual médico-paciente, a Associação Médica Canadense
refere que é responsabilidade do médico estabelecer e
manter os limites de comportamento aceitáveis para si
próprio e para seus pacientes (12).
Para que o consentimento seja considerado moralmente válido, deve haver uma autorização autônoma e intencioRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014
nal, baseada em um entendimento substancial das informações relevantes, dentro de um contexto livre de influências
controladoras, tais como a coerção, o constrangimento e a
fraude, conforme é descrito a seguir:
I) Intencionalidade: O paciente, ao começar o tratamento,
encontra-se em posição vulnerável e com a capacidade de
decisão prejudicada, tornando-se inapto para decidir ter ou
não relações sexuais com o médico. Isso o impossibilita
de fazer uma escolha intencional quanto a iniciar um relacionamento sexual com o terapeuta. Este estado de vulnerabilidade pode fazer parte da desordem primária que o
levou a buscar tratamento, ou pode ser consequência da
transferência, que resultou na idealização e na erotização
do terapeuta (12,13).
II) Entendimento Substancial: Os pacientes não percebem
que a relação sexualizada compromete a distância médico-paciente, necessária para que o terapeuta seja capaz de
prover cuidados efetivos durante o tratamento (12,13).
III) Livre Escolha: Na relação médico-paciente, o paciente está vulnerável emocionalmente, dependente, e vê no
médico a pessoa que detém os conhecimentos necessários
para suprir suas necessidades e fraquezas. Este conhecimento pode ser usado pelo médico para manipular ou pressionar o paciente através da falsa promessa de que a relação
terapêutica não será afetada com o início do contato sexual
terapeuta-paciente, ou para ameaçá-lo com a retirada dos
cuidados profissionais caso não “concorde” com o contato
sexual, ou para, enganosamente, dizer que a relação sexual
é terapêutica. De qualquer modo, a ameaça (implícita ou
explícita) remove a possibilidade de livre escolha. Além disso, médico e paciente não estão no mesmo nível quanto ao
poder que detêm, e isso favorece a coerção (12,13).
Há também o fato, já citado, de que os abusadores são,
na sua maioria, homens e as abusadas são, na sua maioria,
mulheres. Este predomínio encontra respaldo no contexto
social e cultural, que tolera, e, muitas vezes, promove a discriminação e a violência contra a mulher.
IV) Autorização Autônoma: A autorização autônoma exige do paciente mais que simplesmente “expressar concordância, consentimento, entrega, ou cumprir com um acordo ou proposta
do médico”. Segundo esta abordagem, um paciente pode
se submeter ou se entregar ao contato sexual com o seu
médico, sem, contudo, consentir com tal atitude. Para que
haja consentimento moralmente válido, deve existir uma
autorização autônoma, que é um ato de vontade (em oposição a um ato de submissão). Entretanto, por sua natureza
intrínseca, o relacionamento médico-paciente impossibilita
a consecução da vontade do paciente (12,13).
COMPREENDENDO A RELAÇÃO
Os fenômenos psicopatológicos foram descritos como
uma síndrome denominada “Síndrome Sexual Terapeuta-Paciente”. Na relação terapêutica, pode-se estabelecer um intenso vínculo, primitivo, profundo, semelhante ao da crian307
VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al.
ça à figura parental. Os médicos, neste caso, são percebidos
como objetos onipotentes e imbuídos com as capacidades
mágicas dos pais, idealizados e temidos. O terapeuta que
reforçar esta transferência e explorar sexualmente a relação terapêutica, que, neste momento, seria antiterapêutica,
pode fazer com que o paciente se sinta em uma verdadeira
armadilha. Por um lado, o paciente deseja unir-se, além de
cuidar e até proteger o médico, mas, à semelhança de uma
criança abusada sexualmente por um progenitor, teme isso
e deseja escapar a todo custo. Por outro lado, o paciente
sente-se culpado pelo envolvimento sexual, pois acredita
ser ele quem detém o controle do tratamento. Ainda que
um paciente sinta uma forte atração pelo médico e, por
exemplo, se vista de uma maneira sedutora, a responsabilidade pelo abuso não é dele (14).
Outra possível iatrogenia é o estabelecimento de uma
grande confusão sexual, como, por exemplo, nos casos em
que o paciente pode buscar tratamento por baixa autoestima, ou falta de satisfação nas relações interpessoais (14).
Existem, ainda, possibilidades de racionalização, ou
seja, o médico usa esse mecanismo tentando não levar em
consideração a natureza profissional da relação, com suas
responsabilidades inerentes. Terapeuta e paciente podem
achar que sentem algo “tão especial” um pelo outro que
transcende os códigos de ética, e a paixão valeria o julgamento dos riscos da relação (3).
Estudos de caso e levantamentos detalhados retratam
que o perfil mais comum do médico é o do sexo masculino,
de meia idade, que tem dificuldade nas relações íntimas em
sua própria vida e que se “apaixona” por uma paciente em
média 16,5 anos mais jovem (15). Estima-se que metade
dos casos registrados de contato sexual terapeuta-paciente
envolve tal “paixão”. A paixão do médico pela paciente tem
as seguintes características: dependência emocional, pensamento intrusivo e sensações físicas.
O profissional que “se apaixona”, frequentemente, sente que não recebeu o amor que merecia quando criança.
Com pretexto de “alimentar” a paciente com o amor que ela
não teve, espera gratificar os próprios anseios. Muitos desses terapeutas têm um transtorno narcisista e estão em busca de objetos que os espelhem e integrem o seu self. Eles se
apaixonam por sua própria imagem projetada, sendo, deste
modo, a relação uma representação parcial do seu self(3).
Os médicos que abusam sexualmente de suas pacientes
foram classificados em quatro categorias: 1) psicóticos, que
representam um subgrupo pequeno e que traz prejuízos
menores, necessitando psicofármacos e aconselhamento;
2) antissociais com atitudes predatórias, que têm uma carreira como abusadores e que sofreram eles próprios abuso
sexual durante a infância, estes podem ver seus pacientes
como objetos, como “um pedaço de carne”, com o qual
irão se satisfazer, sem nenhum envolvimento emocional;
3) apaixonados, que têm um transtorno narcisista; 4) masoquistas, que reconhecem a natureza eticamente incorreta
de seus atos, chegando, por vezes, a se autodenunciarem na
procura de ajuda (3).
308
Os pacientes abusados podem apresentar características masoquistas e autodestrutivas, uma vez que o fato
irá destruir a relação terapêutica. Ou podem se tratar de
pacientes com transtornos mentais, como nos casos de
pacientes bipolares em fase maníaca, na qual existem um
aumento importante da libido e diminuição da capacidade
do paciente em testar a realidade.
CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS
A literatura relativa ao tema aponta a existência de diversas consequências drásticas decorrentes da relação sexual entre médicos e pacientes. Dentre elas, temos desde
algumas menos danosas, como a vergonha, a culpa e o
isolamento, até as mais graves, como a ansiedade, a depressão, a necessidade de hospitalização e o suicídio do
paciente (3,13).
O envolvimento sexual pode afetar ou obscurecer o
julgamento médico, colocando em perigo, deste modo, o
diagnóstico ou o tratamento do paciente. Médicos envolvidos sexualmente com seus pacientes podem, por exemplo, desencorajá-los a procurar os cuidados médicos de
outros especialistas, por medo de que seu relacionamento inapropriado seja revelado. A erosão da confiança na
profissão médica, causada pela exploração dos pacientes
por parte de médicos, pode levar até mesmo pessoas não
envolvidas diretamente em tais episódios a adiarem os
cuidados médicos (3, 13).
Entre os pacientes particularmente suscetíveis ao dano
causado pelo contato sexual com seus médicos, um estudo ressalta a vulnerabilidade especial de: (a) pacientes com
menos de 19 anos; (b) pacientes que estejam sofrendo
transtornos capazes de prejudicar a capacidade de julgamento; (c) pacientes que estão em psicoterapia com seus
médicos (3, 13).
ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS
E PREVENTIVAS
A profissão médica tem um importante papel de liderança a desempenhar, no sentido de facilitar o desenvolvimento de estratégias para educar pacientes e médicos no
que diz respeito ao relacionamento apropriado entre estas
duas partes e para prevenir o abuso sexual de pacientes por
parte de médicos (3).
Quando apropriado, as atividades durante a graduação,
a pós-graduação e a educação médica continuada deveriam
incluir objetivos educacionais em áreas ligadas ao relacionamento médico-paciente e especificamente em relação ao
problema do abuso sexual de pacientes por médicos.
Exemplos de áreas vinculadas ao relacionamento médico-paciente incluem: ética; habilidades de comunicação
(exemplo: como explicar e conduzir exames físicos normais e como discutir sexualidade); sensibilidade em relação
às necessidades únicas do paciente (exemplo: relacionadas
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014
VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al.
à idade, ao gênero e à cultura); comportamentos de transferência e de contratransferência.
Exemplos de áreas especificamente ligadas ao abuso de
pacientes por médicos incluem: conhecimento e entendimento dos limites apropriados de comportamento dentro
da relação médico-paciente; reconhecimento, tratamento e
comunicação do abuso sexual de pacientes por médicos;
identificação de procedimentos que têm alto risco para
abuso sexual ou desavença; modos de prevenir o abuso
sexual de pacientes, incluindo boa comunicação, consentimento do paciente e a presença de uma terceira pessoa
durante um exame.
No sentido da prevenção do abuso sexual de pacientes por médicos, os mesmos deveriam ser encorajados a
se apresentar espontaneamente se estiverem preocupados
com seu comportamento real ou potencial. Linhas telefônicas confidenciais de ajuda a médicos e acesso à assistência profissional podem encorajar intervenções precoces,
tentando prevenir o abuso de pacientes e ajudar com a reabilitação, quando possível. Um ambiente regulador que não
garanta a confidencialidade dos médicos, assim como a dos
pacientes, é incompatível com essa abordagem preventiva.
A reconstrução de uma base para a ética médica e para
a moralidade baseia-se na concepção filosófica da relação
médico-paciente. Argumenta-se que a redefinição de uma
Filosofia da Medicina é crucial para o desenvolvimento de
uma moralidade médica coesiva. Sugerem-se algumas estratégias para a implementação da educação médica no que
diz respeito à relação médico-paciente, como, por exemplo:
elaboração de um novo currículo que inclua áreas como a
Bioética, as Ciências Sociais e a Filosofia; promoção do desenvolvimento da habilidade do médico em considerar o
aspecto social, psicológico, espiritual e biológico dos seus
pacientes; conscientização do médico no sentido de que
ele deve ser sensível e receptivo na interação com seus pacientes, objetivando, principalmente, um desenvolvimento
pessoal de valores humanísticos e uma aproximação integrada entre o raciocínio clínico e o cuidado médico (3, 15).
AVALIAÇÃO E REABILITAÇÃO
DE MÉDICOS
A maioria dos médicos envolvidos neste tipo de situação chega à apreciação de conselhos de ética disciplinares ou organizações profissionais quando uma queixa é
apresentada pelo paciente ou por outra parte interessada.
Os relatos feitos a estes grupos motivam uma investigação das alegações que determina se o médico deve receber uma punição, advertência ou suspensão de atividade.
Também é útil que o médico seja avaliado em relação à
possibilidade de reabilitação. As avaliações são bem melhor conduzidas por partes desinteressadas que estejam
fora da cidade em que o médico atua. Avaliadores locais,
muitas vezes, não têm a objetividade necessária para uma
avaliação válida (10).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014
Importante ressaltar que os limites entre o que pode
ser considerado como “normal” ou não são pouco claros,
como as cores de um arco-íris. Desta forma, cada caso deve
ser avaliado individualmente, considerando, por exemplo,
entre outras situações: a existência de um conhecimento
prévio entre médico e paciente ou uma localidade onde
apenas um médico atua em determinada especialidade. Há
que se atentar para o fato de que a idealização é, até mesmo,
necessária no início das relações de casal, porém temos de
ter muito cuidado em relação ao que a Bioética denomina
“slippery slope argument”. Em especial quando, ao fazermos
uma análise de caso, não temos certeza das consequências
de abrirmos exceção no que é considerado eticamente incorreto, todo o cuidado é pouco.
Se o médico negar a violação de fronteiras, há pouco
valor em realizar avaliação. Médicos que estão negando sua
responsabilidade apresentam-se como não tendo motivos
para estarem sendo avaliados (10).
Se o médico está genuinamente arrependido e profundamente comprometido a evitar futuras transgressões, esta
atitude é um bom sinal prognóstico. Da mesma forma,
médicos que são capazes de assumir total responsabilidade
pelo que aconteceu e empatizam com a experiência do paciente de ter sido prejudicado também são bons candidatos
à reabilitação. Os tipos predatórios, que são transgressores
repetidos, não deveriam receber permissão para retornar à
prática da profissão (10).
A reabilitação é indicada quando o profissional está
profundamente motivado a mudar e a evitar futuros problemas. Nos Estados Unidos, é estabelecido um plano de
reabilitação com psicoterapia pessoal, a escolha de um coordenador de reabilitação, supervisão do trabalho e limitações da prática (10).
COMENTÁRIOS FINAIS
Ainda que este tema já fosse abordado desde os primórdios da história médica, tem recebido maior atenção por
médicos e outros profissionais da área da saúde. Ocorre
que, na medida em que a relação médico-paciente torna-se
mais horizontal e menos idealizada, as atitudes do médico
também passam a ser passíveis de questionamento. Contribuindo para este fenômeno está o do desenvolvimento, nos anos recentes, da Bioética, sendo um dos seus objetivos o estudo da conduta humana, à luz dos valores e
princípios morais, na área da saúde. Fica evidente que cada
vez mais devemos pensar não apenas no conhecimento
técnico-científico dos médicos, como também nos seus aspectos afetivos e humanos, bem como em uma capacidade
de estabelecer uma adequada relação médico-paciente. Tal
relação não será satisfatória e estará sendo violada sempre
que o médico se utilizar de seus pacientes para alcançar a
satisfação das suas necessidades pessoais, em detrimento
do bem-estar daqueles. Baseado no exposto, podemos dizer que o relacionamento médico-paciente deve ser repen309
VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS: ENVOLVIMENTO SEXUAL MÉDICO-PACIENTE Gauer et al.
sado, não com o objetivo de descobrir algo novo, mas, sim,
de redescobrir algo que tem sido perdido (3,4).
Encerrando, gostaríamos de citar Gabbard, um profundo estudioso deste assunto de violações de fronteiras
profissionais na relação médico-paciente: “Um salva-vidas
não pode salvar uma vítima de afogamento se ele próprio
estiver se afogando” (10).
REFERÊNCIAS
1. Kastner S, Linden M. Relations between patients in psychiatric
and psychotherapeutic inpatient care: A literature review and conclusions for clinical practice and research. Int J Psychiatry Clin
Pract. 2014; 18(4):222-22.
2. Lions P. Medicine: an illustrated history. New York : Abradele-Abrams, 1994.
3. Cataldo A; Gauer GJC. O terapeuta seduzido e o sedutor. Revista
Brasileira de Sexualidade Humana. 2005; 16(2): 251-264.
4. CLOTET, J. Por que bioética. Bioética. 1993; 1(1): p.15-16.
5. Argimon IIL; Cataldo A; Gauer GJC. Reflexões A Propósito Das
Relações Sexuais Entre Terapeuta e Paciente. In: Argimon IIL;
Gauer GJC; Oliveira MS (org.). Bioética e Psicologia. Porto Alegre:
Edipucrs, 2009; p.89-102.
6. http://portal.cfm.org.br/images/stories/documentos/EticaMedica/codigomoralmedica1929.pdf. Acessado em 24/11/2014.
7. http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1988/
1246_1988.htm. Acessado em 24/11/2014.
8. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=
category&id=9&Itemid=122. Acessado em 24/11/2014.
9. Appelbaum PS; Jorgenson LM; Sutherland PK. Sexual relationships
between phisicians and pacients. Archives of Internal Medicine.
1994; 154(22):.2561-2565.
310
10. Gabbard G. Violações das fronteiras profissionais. In: Eizirik CL;
Aguiar RW; Schestatsky; SS (org). Psicoterapia de orientação analítica – fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed, 2014;
p. 324-339.
11. Kipper DJ; Clotet J; Loch JA. O Impacto da Bioética na Prática
Clínica. In: Sociedade Brasileira de Clínica Médica - Programa de
Atualização em Clínica Médica – Modelos de Relação Profissionais
de Saúde / Pacientes-usuários. Porto Alegre: Artmed /Panamericana, 2004.
12. Canadian Medical Association. Policy Summary: The patient-physician relationship and the sexual abuse of patients. Can Med Assoc J.
1994; 150(11): p.1884A-1884C.
13. Gauer GJC; Cataldo A; Veit, ALH; Weber CJL; De Latorre, G;
Lavigne SC. Relação Médico-Paciente: Uma contribuição para o
entendimento bioético das relações sexuais médico-paciente. In:
Gauer GJC (org). Agressividade – uma leitura biopsicossocial. Curitiba: Juruá, 2001; P. 39-58.
14. Feldam-Summers S.; Jones G. Psychological impacts of sexual contact between therapists or other health care practitioners and their
clients. J Consult Clin Psychology. 1984; 52(6): p.1054-1061.
15. Lazarus JA. Ethical issues in doctor – patient sexual relationships.
Psychiatric Clinics of North America. 1995; 18(1): p.55-70.
16. Garfinkel PE; Bagby RM; Dorlan B. Boundary violations and personality traits among psychiatrists. The Canadian Journal of Psychiatry. 1997; 42: p.758-763.
 Endereço para correspondência
Instituto Bioética
Av. Ipiranga, 6681/prédio 50/703
90.619-900 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3320-3679
 [email protected]
Recebido: 2/12/2014 – Aprovado: 10/12/2014
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 58 (4): 306-310, out.-dez. 2014

Documentos relacionados