Ato analítico e ato de criação-portugais

Transcrição

Ato analítico e ato de criação-portugais
Ato Analítico e Ato de Criação
Da “falta-a-gozar” ao “mais-gozar”*
Vou avançar com vocês por uma via arriscada porque é pavimentada de armadilhas.
Trata-se de atravessar o limiar onde o ser não está mais, e o analista não ignora que no acesso
a esse ponto tudo incita a recuar.
Mas, se ele consente ao campo que se abre além, então o fato de falar pode fazê-lo aceder a
um discurso, o discurso analítico, do mais alto valor, uma vez que ele consiste num saber
novo, aquele do gozo.
Eu disse se ele consente para marcar que ele não se aprende, mas que é para ser apreendido,
em duas palavras.
É chamado por Freud de das Ding, a Coisa, a ser lida “a a-coisa” com Lacan onde se escreve o
valor do objeto que não tem ser, dito pequeno (a).
Freud nos leva até lá com arte no nível dos processos primários do sonho quando lhes decifra
a mensagem cifrada que não é de sentido, mas de gozo-sentido ligado à estrutura da
linguagem, ou seja, à dimensão significante que está lá desde sempre, quer se saiba quer
não.
O ato analítico e o ato de criação têm em comum pôr em relevo este lugar, o lugar do Outro
do qual somos radicalmente separados. É a outra face do sexo, aquela do não senso da
relação sexual.
Somos extraviados no plano do gozo.
Então, damos conta disso excluindo-o. Ele não convém, ele é aquilo que não se deve.
Ele prefere se calar.
É exatamente por isso que ele é o que se deve.
É a resposta do psicanalista ao mal-estar na civilização que aflora em toda parte. É aí que a
psicanálise encontra sua dignidade.
Aproximemo-nos. Munido dessa experiência significante do gozo onde soa o cristal da língua,
eu funcionava como psicanalista.
Eu estava, sem dúvida, um pouco adormecido na posse do saber bem conhecido, por isso
deverá haver um grito que me desperte. Da voz dilacerante de Don Juan soou, um dia, o
intangível real nodulado ao simbólico.
O impossível se deu no fato de que ele cessava de não se escrever. Um pesadelo, um
verdadeiro, me arrancava daquilo que eu já sabia.
Começo absoluto, uma vez que fora de toda evolução. Segredo da
castração ligada à linguagem que criaria tão somente um produto, uma voz, por meio de um
produtor que não se furtaria ao apelo do real trazido por uma voz.
É uma perspectiva singular porque, habitualmente, a voz da ópera apareceria no curso de
formação do ser falante mais jovem e sem experiência prévia do discurso analítico.
Muitas questões decorrem daí. Poderemos falar delas num outro dia com a audição dessa voz
num concerto, se vocês desejarem.
Hoje, vou centrar meu questionamento em torno daquilo que nos reúne, a produção de um
ato analítico de onde poderá resultar como efeito, num só-depois, um ato de criação que, no
meu périplo, foi aquele de uma voz de tenor dramático que eu não sabia que conhecia, voz
que só apareceu na cena da ópera no século XIX com Verdi.
Insistamos. Ela me tomou, a estrutura, quando o grito de Don Juan, ao escutar o final do Don
Giovanni de Mozart, “fez o abismo onde o silêncio se lança” (Lacan, 17 de março de 1965).
É claro que eu conhecia essa música, como todo mundo. Mas, nesse dia, por sorte, a voz que
cantava rompeu, encontrou1, a bem conhecida maldição do “dissoluto punito”.
Uma mensagem inesperada, essa do não senso do desaparecimento do ser, me arrancou do
discurso bem conhecido. A hora do desejo soava. Será que ela iria me transportar ?
Depois de alguns “retornos” no piano de meus anos de juventude, um outro modo de gozar
produzido por uma força desconhecida me encontrou.
Não era mais a voz natural do barítono comum que convinha, era uma outra, aquela que
deveria, exata.
Exata, na sua tessitura, sua cor, seu timbre, sua claridade. Exata pela produção de uma
profusão de harmônicas : brilho nos agudos, poder no registro médio, amplitude nos graves.
Simplesmente um produto limpo no produtor.
Havia um preço a pagar. Era preciso que falhasse o que eu já sabia para que sua presença
fosse presente.
Pois que ela não estava sempre à disposição para o encontro. Pouco faltou para que não
conseguisse. Primeiramente, era necessário dar seu sangue para que ela pudesse atingi-la e,
sobretudo, para dela gozar.
Eu descobria o particular do corpo falante, que não é o observável das funções do corpo, cujo
saber médico no qual eu estava mergulhado durante os anos de formação universitária
reivindicava exclusivamente.
Esse novo saber valia muito porque fazia passar da “falta-a-gozar”, comum, ao “mais-gozar”,
precário.
Será que eu chegaria lá na minha análise? Minha trajetória me faz responder negativamente,
evidentemente. Mas deixo a questão aberta na medida em que falo apenas de um caso, o
meu.
O que posso avançar hoje é o que minha análise já me advertira sobre o perfume de
escândalo do lugar da Coisa e que essa voz de tenor dramático que irrompia se escrevia na
mesma veia, aquela que deve decorrente exatamente do fato de que não se deve.
Freud nunca disse isso, eu me dizia.
De repente, surgiu o não senso da mensagem da pulsão de morte de Freud, “suspeita” para
Lacan, no dia 4 de maio de 1960 no seu seminário “a ética da psicanálise”.
Jean Charmoille faz aqui um jogo de palavras ― que se perde em português ― com a homofonia em francês
entre o substantivo trou [furo, buraco] com os verbos trouer [furar, romper] e trouver [encontrar, achar]. N.T.
1
Ela não é a figura destruidora, mesmo que Freud parta daí, mas “sublimação criacionista”,
definível a partir da cadeia significante, “vontade de começar de novo”.
Ela é pulsão e não instinto que compele à morte. Ela liga o corpo falante à linguagem. É daí
que ela é operatória, desse lugar do gozo Outro.
Tudo que existe pode ser discutido a partir da função do significante pelo seu gênio.
É arriscada a pulsão de morte, talvez vocês me contestem.
Não mais que o furo onde cai Don Juan que se torna, por causa de sua ação, uma encenação
para riscar o acesso ao modo do gozo. Ela marca com sua chancela o “ex-nihilo”, o a partir de
nada de toda a criação.
Sai de cena a exigência de se submeter ao interdito e à culpa desenvolvidos no libreto escrito
por Da Ponte. Vaidade do pecado proclamada pelo cristianismo. Fantasias do sofrimento
eterno no inferno.
A voz que canta na ópera não representa nada, não significa nada, ela faz ouvir um começo
se, ao modo de Antígona ao passar na porta do túmulo onde acreditou enterrá-lo, o ser
falante se deixa levar pelo canto da significância.
Precisemos. Ela é um significante que traça sua via, a do significante. Como Antígona, ela é
“µετά”, com, mas, ao mesmo tempo, depois. Ela deixa em seu lugar não só a justiça
distributiva do bem e dos bens mas também a fascinação da beleza, causas do mal-estar na
civilização.
Mas e então, o que faz com que, há alguns anos, o mal-estar foi deslocado também na ópera?
Seria por que o não senso da mensagem da voz humana foi recoberto pela técnica?
Não será a mesma questão que encontra o psicanalista ?
Paris, 2 de maio de 2012
Jean Charmoille
* Congresso de Convergencia. Porto Alegre. Junho 2012
Traducao : Leila longo

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