púrpuro prazer - Carlos Dignez Aguilera

Transcrição

púrpuro prazer - Carlos Dignez Aguilera
PÚRPURO
PRAZER
Carlos dignez
Prefácio
Púrpuro Prazer é, antes de tudo, uma declaração de amor à vida.
Versos fortes e ousados dissecam e tratam com profundidade, às vezes até com
certo sarcasmo, temas comuns a todos nós, mas que a grande maioria deixa escapar pelos
vãos dos dedos frágeis do não--pensar.
Salutar encontrarmos hoje, em meio à banalidade reinante do consumismo e da
cultura fácil do entretenimento, homens como o poeta Carlos Dignez Aguilera, que nos
presenteia com este diamante bruto, chamado Púrpuro Prazer: bruto, pela força e pela
franqueza exposta a cada palavra, a cada verso, a cada mergulho passional que o leitor
sentirá dentro do seu próprio peito; diamante, porque esta obra tem traços que devem
desafiar o nosso tempo, na eternidade possível de nossas memórias.
Ao leitor e à sua sensibilidade caberá extrair da força deste diamante a jóia oculta
por cada metáfora, por cada verso desafiador, através, não meramente de uma simples
leitura, mas sim de uma interação, que exigirá de cada um coragem e entrega total d’alma,
para seguir a trilha dos versos do poeta e recolher suas próprias verdades.
Púrpuro Prazer traz cento e vinte páginas de fragmentos de vida que Dignez,
garimpeiro de emoções, recolheu durante anos na batéia da sua poesia, lavou nas águas
quentes da sua ânsia clara por uma compreensão do caminhar humano e, agora, despeja em
todos os olhos, às vezes conclusivamente, nos oferecendo ensinamentos para os nossos
verdadeiros caminhos, às vezes confessando e dividindo com o leitor a impossibilidade da
compreensão plena:
“Meus braços estão vazios/ Aprendi a sonhar tão perfeitamente/ Que se fez
desnecessário o sonho realizado... Ávido na incessante busca/ Avesso e incoerente/
Deliro e me desespero, febril/ Frágil arquiteto do tempo/ Que a vida me toma/ Entre
porres hostis e malditos versos/ Infames escudos imaginários/ Dando guarda à minha
covardia/ Ah, infante retórica/ Mergulhando fundo demais/ Para os meus frágeis
pulmões”.
Carlos Dignez Aguilera nos presenteia nesta obra com poesias absolutamente
profundas, de uma densidade que desliza caprichosa e perigosamente pelos limites da
tragédia. Em “Púrpuro Prazer”, o poema-título, o poeta retrata a assunção de um homem
transtornado com a sua história de vida, com os valores sociais, confessando suas
fragilidades, culminando com a incapacidade para lidar com o seu próprio cotidiano
viciado, a ponto de encontrar prazer na opção absurda do suicídio, tudo traduzido de forma
grave e densa:
“Minha vocação para vilão/ Solta lastro e emerge do mar/ profundo/ Da
inocência mal preservada/ Ensaia passos estranhos, enlouquecidos/ Numa coreografia
vazia e infame/ Na falsidade do meu caminhar sobre as águas”.
No mesmo poema, Dignez desfila maestria de poeta maduro, demonstrando um
domínio invejável da capacidade de expressão, concluindo cada estrofe com versos
insinuantes, verdadeiros achados poéticos:
“Lúcido/ Ignoro pegadas cravadas na consciência
(...) Ávido/ Desperto
para a manhã que não construí(...) Náufrago/ Sobrevivo abraçado aos meus próprios
destroços(...) Lúgubre/ Desvio olhos para uma explosão nuclear qualquer(...) Púrpuro/
O prazer se esvai... impune e suicida”.
Sem dúvida, Dignez viaja por todo o seu universo temático com uma invejável
competência, emprestando ao leitor o seu filosofar, busca e desafio ao conhecimento, em
nome da compreensão de nossas vidas e de seus mistérios.
Mas é o Dignez romântico, apaixonado, desesperado na busca pela mulher amada,
pelas verdades do amor, que nos propicia pérolas de encantamento. No poema “Naufrágio”,
o poeta confessa seu amor e conta o seu sofrimento:
“Enlouquecido esculpi tua imagem no cume de uma montanha/ E celebrei
rituais, os mais cruéis, todos os dias, todas as noites/ Até o limite do meu tempo... que
não passou”.
“Trôpego” mereceria a citação do poema completo, pois Dignez nos brinda com
uma odisséia maravilhosa, retratando a luta em busca da mulher amada. Em “Consciência
Tardia”, o poeta traduz a amargura e a dor de uma separação, de forma cortante, irradiando
emoção passional:
“Alerta, oculta debaixo dos tapetes enlameados/ Espiando pelas frestas da
fragilidade reinante/ Nossa verdade arquiteta verbos delatores/ Entre drinques
quentes e palavras frias/ Que é para não chocar nossa podridão/ Com a chegada tão
tardia do adeus”.
Púrpuro Prazer traz um poeta maduro, que desfila seu talento com a desenvoltura
dos grandes mestres, de uma crítica social a um poema de amor rasgado, de uma canção a
complexas viagens introspectivas, sempre com uma habilidade indizível no uso dos seus
verbos, fortes e incisivos, corajosos e desafiadores. Suas construções e formulações nos
trazem luz e esperança em forma de poesia.
A melhor apresentação de Carlos Dignez Aguilera e de seu Púrpuro Prazer
dispensa todo e qualquer prefácio, podendo ser resumida em poucas palavras: Leiam e
reencontrem a nossa mais verdadeira poesia!
VINTE E CINCO DE MARÇO
Amargos e carrancudos
Pelos cantos da minha covardia
Os fantasmas que não pari
Que brotaram nas frestas abertas
Pelo impacto da tua ausência
De repente ganharam vida
Feito estranhas orquídeas
Avessas, monstruosas
No mórbido cenário
Festim grotesco de revolução interior
Meus pequenos monstros
Saltitam desengonçados
Festa de máscaras escondendo máscaras
Na fundamental profundidade do vazio
Meus duendes temíveis
Já não têm cheiro de culpa
Já não me cobram o escalpo
Brincam à minha volta
E me arranham a pele
Em busca de ver sangrar
Alguma coragem, alguma franqueza
Prisioneiros do meu tempo
Os fantasmas sentem o cheiro do vento
Insinuando sua liberdade
Desfilando pela avenida de um grito
Que rasgue os meus frágeis pulmões
Violente nosso silêncio ingênuo
E ecoe pelos séculos estáticos
Paralisados na tua lembrança
Alguns gritam desafios temerários
E avançam rebeldes pelo frágil universo
Da minha consciência
Outros atiram seus próprios destroços
Contra a escuridão dos meus olhos abertos
Sou o general dos meus próprios sonhos
E meus fantasmas me cobram em desespero
A mais solene declaração de guerra
Que mova meus exércitos cansados
Contra o inimigo forte do medo
Que marche empertigado, soberbo
Contra tudo que me distancia de ti
Impassível no outro extremo
Do insólito campo de batalha
Minha incompreensão, inimiga maior
Da luz que se insinua em nós
Reina intocável sobre mim
Dona da mais célebre paralisia
Senhora absoluta da minha impotência
Faz meus pés plantados, imóveis
Feito o irremediável destino dos arranha-céus
Faz meu corpo inerte, congelado
Pelo frio seco do não-saber
Esgueirando-se pelas sombras
Da minha louca história
Eis que surge a face heróica
Do aventureiro que mora em mim
Que liberta nações e enterra dragões
Mas não cabe na rotina dos menores
Que sobreviveu íntegro, tão esquecido
Pelos escombros de uma vida
Alimentando-se com as migalhas
Dos sonhos que não soube construir
Guerrilheiro romântico
Desafia a sua própria maldição
Com uma arma única que ninguém pode calar
E num lance desesperado
Marcha contra cruéis profecias
Lança a pedra fundamental
De um monumento erigido a ti
Rasgando-se na mais pura emoção
Picha na face gélida da maturidade
O teu nome, num vermelho enlouquecido
Que mais parece uma explosão
Embaixo, num golpe fatal
A expressão:
— Eu te amo
DOZE DE JUNHO
Deixei o amor acorrentado
A ferimentos lancinantes
Cujas cicatrizes
Compõem trágicas caricaturas
Tatuadas no peito da armadura
Protetora das alucinações
Que não deixo fundir
Com a pele do cordeiro
Misturei em corpos de plástico
Medo e céticas expectativas
Implodindo sonhos alheios
Calado, não recolhi os restos
Dos olhos que parti
Porque me equilibrava
Nas rachaduras da rocha que não sou
Inventei sentinelas para cada trilha
Que desse acesso a uma fantasia
Consciente do risco de nobres e ladrões
Serem confundidos nos portões
Da inacessível fortaleza
Solitário senhor de muralhas
Faço amor com mulheres mortas
Anestesiado, troco dias e noites
Pelas orgias frias entre os súditos
Da moeda fraca que represento
À espera da irremediável inquisição
Sigo em cena mais um estúpido ato
Gestual silencioso do meu louco monólogo
Na platéia vazia, uma silhueta de mulher
E o teu perfume brincando no ar
AÇOITE E VINAGRE
Teu sorriso
É uma grade brilhante a me aprisionar
É um túnel errante a me convidar
Para uma amena perdição
São sorrisos todos os dengos do teu corpo
Teu olhar
É um caçador infante a se procurar
É armadilha gigante a me seduzir
Olhos e coração
São olhares todos os dengos do teu corpo
Teus cabelos são uma floresta encantada
No fim da estrada dos meus desejos
Mal contada é essa história de
Promessas e asfalto, de poeta meio alto
Bebendo a tua imagem
À margem de um botequim
No teu tamanho, mulher
Estão a culpa e o álibi
Do crime que o meu coração comete
No teu tamanho, mulher
Estão o açoite e o vinagre
Da tortura que a distância promete
PRISÃO
Ombros contra a parede
Tentando remover
O obstáculo à fuga
Noutro extremo
Tua enorme
Figura pequena
Amena e assustadora
Exibe presas e garras
Desando a gritar
Enquanto quatro paredes
Girando alucinadas
Avançam ferozes
Gritos maiores
Paredes mais próximas
Gritos maiores
Paredes mais próximas
Gritos maiores
Paredes, paredes, paredes
Silêncio!
Suor escorre pelo corpo
Ergo os olhos e encontro
As paredes
Quietas aos teus pés
Cães fiéis e alertas
Teu corpo instigante
Envolto num vestido branco
Transparente, torturante
Teus olhos inexatos
Insinuando aventuras
Desafiadoras
Eu,
Mero amontoado de emoções
BUSCA
Meus braços estão vazios
Aprendi a sonhar tão perfeitamente
Que se fez desnecessário o sonho realizado
Corpos alucinados em limites
Desandaram a embriagar sarjetas
Enquanto a magia da aura construída
Mergulhou num segredo
Desmanchou-se no prazer
Sem cheiro, sem caprichos pequenos
Sem frescuras
Faço amor com ausência de promessas
Com olhos, Deus e comigo morto
Droga ficou um traço atrás do nada
Retardatária da minha viagem
Cigarros e alguns drinques bastam
Para o meu suicídio minúsculo
Quero um alvo para minha ira
Anterior ao autoflagelo
Construo tanta mulher numa mulher
Que ela queda alquebrada
Impotente ao primeiro coito
Prometedor da loucura
Que divido com o silêncio
Ávido na incessante busca
Avesso e incoerente
Deliro e me desespero, febril
Frágil arquiteto do tempo
Que a vida me toma
Entre porres homéricos e malditos versos
Infames escudos imaginários
Dando guarda à minha covardia
Ah, infante retórica
Mergulhando fundo demais
Para os meus frágeis pulmões
PÚRPURO PRAZER
Minha vocação para vilão
Solta lastro e emerge do mar profundo
Da inocência mal preservada
Ensaia passos estranhos, enlouquecidos
Numa coreografia vazia e culpada
Na falsidade do meu caminhar sobre as águas
Lúcido
Ignoro pegadas cravadas na consciência
Febril, a cidade me abraça
Desajeitada amante de rara vulgaridade
Vomitando velhas feridas e prazeres
No meu corpo recém-renascido
Coberto de lama e cicatrizes
Contorcido pela dor de não se saber
Ávido
Desperto para a manhã que não construí
O sol agride meus olhos cegos
De uma escuridão que vem do peito
Frágeis pernas arrastam a ausência de sonhos
Pelas avenidas frias dos homens
Enquanto a mente insana
Trama o próximo ato
Náufrago
Sobrevivo abraçado aos meus próprios destroços
Olhos fixos nas intenções das mãos
Sufoco o mundo entre dedos débeis
Aflição explode em gestos autofágicos
À margem de mim confusos signos humanos
Se desmancham sem nenhum sentido
Lúgubre
Desvio olhos para uma explosão nuclear qualquer
Os deuses que não me seduziram
Digladiam-se pelos restos da falsa crença
Na platéia santos pequenos brandem solenes
O mais puro e franco desinteresse
Velhas dúvidas rasgam o peito da elegia
Púrpuro
O prazer se esvai... impune e suicida
CARLOS
Imagens se agridem desesperadas
Desorientando qualquer expectativa
Mãos rudes remexem velhos baús
Empoeirados, largados num canto da história
Mal-acontecida, tão pouco construída
Pássaro exaurido, asas frágeis
Tomado em pleno mar aberto
Pelo risco mortal da consciência
Deita olhos em busca de terra firme
Que justifique raízes, que mostre o caule
Que acene os galhos e dê chance aos frutos
Amnésico senhor do meu destino
Criminoso e o mais perfeito crime
Sem rastros, sem pistas, sem risco nenhum
Uns poucos traços insistindo cenas bêbadas
Bailando levianas entre o real e o pesadelo
Coração e suas grandes mãos
Cravando por dentro do peito a ira
Prisioneiro cavando insólitos túneis
Para dentro de uma velha prisão
Signos da dúvida se diluem
No ácido feroz dos segredos, sem respostas
Sorrisos, lágrimas, tiros e corpos nus
Personagens embriagados e caprichosos
Desfilando gestos e textos inexpressivos
No mesmo palco pequeno e pobre
O autor aplaude o que não compreende
No silêncio das luzes frenéticas
E da infinita platéia... vazia.
Aventureiro domador de palavras
Jaz inerte ante o silêncio interior
— Caçador, os impunes brandem a sua fome
Atiro meu próprio fêmur para o alto
Na minha odisséia sem espaço
Entre estrelas manufaturadas
Na fundamental falsidade dos cenários
Ressurjo imponente em forma de computador
— Sopro mortal sobre o barro da história
Despojado de vértebras, sem o risco do pecado
Reluzindo painéis apoteóticos
Cibernético guru dono de todos os mistérios
Mágicos teclados e grandes olhos terminais
Com inscrições confusas e patéticas
— Ah, infame milésima primeira noite
Fazendo mais tangível o gosto pela resposta
Dedos ágeis num balé ávido e trôpego
Cravam dúvidas na instigante promessa
Silêncio! terminais calados e vazios
Minúsculas luzes coloridas
Duendes translúcidos e agudos
Expressam de mim o pouco que sei
Posicionando cursor para as grandes dúvidas
Gotas de suor brotam mansamente
Insinuando pequenos riachos pelo peito
A mente arde no fogo da ânsia
Estáticos, os dedos repousam tranqüilos
Transformados em armas poderosas
À mercê do guerrilheiro pequeno que sou
De pé a platéia brande um silêncio inquisidor
Trêmulo, componho meu nome
Nos terminais frios do saber
Séculos de silêncio e uma fria expressão:
— Não há registro
VIDA VELOZ
Vivendo rápido demais
Reinventando pedras
Saciando a sede voraz
Das bocas da corte
À mercê da minha sorte
Discípulos da minha voz
Audaz inesgotável gás
Não estou morto
Apenas torto ponteiro
Desafiando o relógio dos mortais
Faço amor com multidões
Curro seus ancestrais
Apressei a vida
Ao ritmo alucinado
Do mais célebre desvario
Desfez-se a carne
Ante a cólera
Da sede dos olhos
Sou apenas pele e ossos
Com o mundo dentro de mim
Barganhei corpo
Para desmascarar fantasmas
Estou grávido
Vocês estão dentro de mim
Construtores da morte
Vou parir num puteiro
Nas mãos de um meganha
E de uma prostituta cega
Para limpar seu carma
Em transe
Perco a noção do meu corpo
Ou do risco de não tê-lo
Esbarro nas feridas do país
Seu sangue mancha
As vestes brancas
Da tramada inocência
Cobro as glórias da impunidade
Entre um uísque e uma canção
Que não fala de um irmão morto
Nas trincheiras do ofício
Segue a vida
Sua frenética dança
Confiando segredos
Trágicos e remotos
À guarda do silêncio
Que a incompreensão
Impõe aos meus verbos
— Não posso traduzir o vazio
DESERTOR
Balas zunindo
Rastejo
Desajeitado réptil humano
Bunda e cabeça no mesmo plano
Colados ao chão
Na impossibilidade da fuga
Amedrontado
Verto orações
Traindo minhas dúvidas
Sobrevivo
As balas silenciam
Rotas de fuga
Levam à Disney World
Medalhas frias
Decoram o peito do meu país
Sem que eu conheça
Os heróis que John Waine
Me prometeu
Balas
Projéteis do absurdo
Vomitados por olhos e bocas
Calibre desespero
Erram a carne
Alojam-se na espinha da mente
Trincheiras
Cortes profundos
No solo da consciência
Nelas o infante soldado
Se esvai em pesadelos
Febril, indefeso
Medalhas
Grotescos torrões de açúcar
Carinhos de dono
Pendurados nos peitos
Dos seus pequenos cães
Ah, maldito fardo
Curvando com seu peso secular
O que a história erigiu
Por qual caminho
Terá se perdido a mulher
Dona de minhas lágrimas?
Que maldita diplomacia
Terá me roubado
Minhas próprias guerras?
Que cor terão os monstros
Que os homens forjam
Pelos barrancos da violência
No barro virgem das gerações?
Onde estão os túmulos
Dos meus mortos?
Droga!!!
O asfalto podre dessa estrada
Já não suporta
A brutal coerência
Da minha loucura
PRÓDIGO
Negligente
O mais esquecido
Volto apóstolo do poço
Volto o mais que posso
Ferido e muito traído
Por um triz não desabei
Num amontoado de destroços
Ruído de pura carne, não osso
Não ouço o canto que cantei
Sequer sei se o esqueci
Eco não houve
Eu mesmo não repeti
MEUS HERÓIS
Nem todos
Os meus heróis
Morreram
De overdose
Alguns
Morrem de Aids
Outros
Estão no poder
Que também não tem cura
INVENTORES DA RAZÃO
Cada rima louca e embriagada
Que disparo no peito da sensatez
Abre ferimentos, deixa cicatrizes
Nos corpos dos astutos pensadores
Esses putos inventores da razão
Não tentem manter fragmentos
Da minha loucura flutuando no formol
Das dúvidas pequenas, em frascos grotescos
Pelas prateleiras do estranho laboratório
Da sua incompreensão de mundo
Respostas, muitas vezes, desprezam
A necessidade tola e frágil da inquisição
A verdade não precisa ser de verdade
Construo civilizações no capricho de um verbo
Provoco guerras fratricidas
Lacerando nações e povos famintos
Embriagados pelo pecado que invento
No átimo estranho de uma vírgula
Na profundidade de uma paixão de carne
No mundo inteiro resumido numa palavra
Moldo amores na pedra bruta dos corações
Garimpo a felicidade num olhar perdido
Amo as prostitutas e as mulheres impolutas
Faces astutas da verdade dissoluta
De um mesmo delicioso mistério
Rastreando as trilhas da minha loucura
Discípulos babacas da quadratura das teorias
Recolhem cacos do meu desvario, rotulam
E brincam de saber o que não sabem
Empertigados na verdade que não constroem
Sorriem, dentes luminosos, corações vazios
Não vasculhem tanto o meu vômito
Não houve muito o que mastigar
RUA QUATRO
Paralelepípedos
Cravados na terra
Feito olhos pequenos
Nas pernas grossas
Da vizinha feia
Portão de madeira
Trópico do limite
Reinventando horizonte
Do tamanho da sede
Infante alegria
Me roubando do mundo
Quintal dos vizinhos
Goiabeiras e mandruvás
O bom Rogaciano zelando
Pela arte de mergulhar
Nas profundezas da molecagem
Colhedeiras e tratores
Dissecados pelas mãos rudes
Dos donos do sonho
Terra cúmplice
Fartura todo ano
Mágico ritual
Cheiro de terra e sal
Construindo memórias
Restos de peças velhas
Graxa e ferrugem
Meninos dedos
Parindo brinquedos
Um dia eu soube
Reconstruir a vida
Cheiro de café forte
Estrela Luzia... um norte
Família, pão quente e farra
Melancia num canto de mato
Colecionar vagalumes
Perder sapato e
Pisar solenemente descalço
No limiar da nova idade
Berço de aventuras
Senhores
Eu mentia
Quando brandia
Minha irremediável tristeza
HÁLITO
mensagem cifrada I
Hálito
De tão perto
De tão dentro
Cheiro são
Sensual sensação
No som
Da palavra certa
Aberta a fresta
A intenção
Dos olhos
Ignora o
Contato frio
Da parede ferida
Do outro lado
Tênue
A luz derrama
Adrenalina
Nas velhas artérias
Do faraó mumificado
Dentro de mim
Franksteiniana criatura
Reensaia vida
Cético
Continuo pelas pedras
Sem rastros
Em silêncio
SUTIL
mensagem cifrada II
Paredes elásticas
Suportam agonias
Vôos calados
Migrar de um sonho
Abelha Rainha
Singra o sol
Das águas turvas
Impune
Desliza soberana
Por entre
O emaranhado
Dos devaneios
Alheios, alheios
Uma taça
Brinca
Na boca do poeta
Embriaga e
Inquieta
Arranca do homem
Mudas confissões
Roubaria um beijo
Desejo
De abelha minha
Não fosse a morte
Bailando sutil
Entre uma flor
E uma profecia
OUTROS CORPOS
mensagem cifrada III
Invento caminhos
Em busca
De coisa nenhuma
Tropeço no vazio
Traço curso
No desafio
Dos recifes
Acabo à deriva
Em terra
Cuido dos ferimentos
Cicatrizes à parte
Misturo cigarros
Cristais e solidão
Ao gosto forte
Sem sorte
Da crença insana
Parca divindade
Débil devoção
Trocando altares
Por sujos lençóis
Sugo outros corpos
Nos bastidores
Dos milagres
ESTÁTICO
mensagem cifrada IV
Pássaro aflito
Alça vôo
Desesperado
Num ângulo frio
Para o alto
Pássaro quieto
Larga corpo
No pico do vôo
E desaba
No silêncio da queda
Na ameaça do chão
Como acrobata
De velhos filmes
De aviação
Gira corpo
Gira mundo
E retoma o aflito vôo
Estático
Confiando no tempo
O chão não desespera
ECO
mensagem cifrada V
Caprichos da terra
Frutos versos
Avessos ao gesso frio
Imposto pelo quebrar
Do último osso
Ausência de verbos
Eco solene
Do impacto da dúvida
No peito franco da elegia
Mágica fotografia
Dor, cicatrizes e
Um espinho único
Na crença do pregador
O GUARDIÃO
mensagem cifrada VI
Rotos
Ratos de esgoto
Disputam restos mortais
Rasgando em vida
A carne da ausência
Dos eleitos
Vêm à porta dos
Meus segredos
— Silêncio
Feroz guardião
Dos fantasmas
Habitantes da minha
Consciência
Viro as costas
Na sórdida cripta
Dos pequenos malditos
Vorazes presas
Rasgam a inocência
Eu... zelo pela tua ausência
CALADO
mensagem cifrada VII
Adormecido
Guerreiro do silêncio
Sorri
A carne da
Mulher amada
Mistura-se à sua
Num balé desvairado
Arrancando frutos ocultos
No violento pudor
Da realidade
Adormecido
Guerreiro do silêncio delira
Palavras saltam do sonho
Profecias travessas
Inventando o futuro
Desperto
Guerreiro do silêncio sangra
Calado!
FORÇA
mensagem cifrada VIII
Madrugada, negra noite negra
Derramando-se janela adentro
Estranhas mãos
Empunham cigarros
Gesto tolo
Driblar do vazio
Estranhos lábios
Tragam nuvens
Feito um deus confuso
Bebendo tempestades
Estranhos olhos se perdem
Em viagens inquietas
Em buscas insanas
Nada estranho
O velho coração
Pulsa forte no
Capricho da noite
O MONSTRO
mensagem cifrada IX
Liberdade
Vôo cego em busca de ser
Ave que sou
Voando só
Prisioneiro do horizonte
Presa fácil
Do ego traiçoeiro
Serpente
Metade gente
Silêncio partilhado
Com o vazio
Peco pela ausência
Que caça
E transpassa
A lucidez
Pesco ogivas nucleares
Nas gargantas, nos luares
Nas crateras das mulheres
Me embriago de mundo
E no fundo o monstro sou eu
BAILARINA
O primeiro ato
No capricho das mãos macias
Das pernas translúcidas
Castidade morta e ousadias
Em passos atrevidos e sensuais
Construía castelos de areia
Na praia vazia do seu ego
Dedilhou corpos e promessas
Tramou sonhos e trapaças
Num desfile viciado
Na passarela pobre e grotesca
De uma história de mentiras
Trocou crenças
Por descaminhos vulgares
Segredou o próprio tempo
Brincou virgindade
Com o mundo entre as pernas
Em aventuras silenciosas
Madrugadas misteriosas
Bebeu homens e mulheres
Em palcos sórdidos, viciados e trágicos
Colinas covardes, táxis vulgares
Cantos de família, pecados de sangue
Dissimulados em orações
Lágrimas e pedidos de perdões
A um Deus traído
BAILARINA
O segundo ato
Desceu a ladeira escorregadia
Da burguesia mal-ajambrada
Desfilando charme manufaturado
Destilando o veneno medíocre
Dos seus valores distorcidos
Corpo esguio na vitrine dos tesões
Rebolado de menina fácil
Arquitetou cada rima
Requebrou cada esquina
E bebeu o sangue morno
Das sacanagens grosseiras
Das taras ridículas, ocultas
Nas traições, nos porões
Das verdades mal-urdidas
Drogou-se de adrenalina barata
Emprestou seu corpo a fantasias
Enquanto brincava de senhora
Dona de todos os ritmos
Verdades e sacramentos
Distorcidos na mentira maior
De não se saber
Resolveu ir à luta
Brincou de prostituta
Bebeu o leite dos seus senhores
E morreu toda manhã
No vazio dos seus preconceitos
BAILARINA
O terceiro ato
Ergueu as mãos
E deu glória a Deus
Entoou seus cânticos
Vazios de qualquer sentimento
Falsidade em forma de oração
Lágrimas inundaram a catedral
Dos seus descaminhos
Da consciência corrompida
Ao seu lado a carne viva
Do ferimento construído
Ergueu as mãos
E deu glória a Deus
Amarrou um porre voraz
Nos mais repugnantes desejos
Celebrou os ardis requentados
Nos segredos das madrugadas
Entre um ideal e o nada
Leviana, riu e chorou
A tragédia que construía
Sem drinques, sem culpa, a seco
Rasgou a vida entre a covardia
E uma fugaz sabedoria que lhe dizia
Vez por outra que o
Espelho da alma jamais se trairia
BAILARINA
O quarto ato
Por entre tanta farsa e
Deslizes inevitáveis
Caprichosas armadilhas do tempo
Alguém chegou próximo demais
Da podridão reinante
Máscaras se dissolveram
A princesa virou abóbora
O príncipe nem virou sapo
A fantasia virou um saco
BAILARINA
Não exatamente um fim
No teatro silencioso da sua psicose
Suas pernas brancas e insípidas
Tentaram um gestual quase ingênuo
Pelo espaço do palco imaginário
Giros e acrobacias
Suor brotando pela pele macia
A mente insana na trama da liturgia
De todas as sujas verdades... caladas
A platéia vazia
O prazer no colo de amores grotescos
Garis, que recolhiam todo esse lixo
Escondidos na coxia
TRÔPEGO
Trôpego, esbanjando fraquezas
O homem cambaleou rumo
Às suas próprias cicatrizes
Deixou pelos cantos
Os fardos pesados e encardidos
De sua história mal construída
Desnudou-se de alguns trapos ásperos
Que já se faziam confundir
Com sua pele grosseira
E caminhou nu em meio à multidão
Num balé às avessas
Atravessou a avenida dos homens
Entre gritos, maldições e bençãos
E deixou para trás uma cidade maldita
Construída sobre os restos mortais
Da sua própria insensatez
Escalou a montanha moldada
Na argila dos seus sonhos
E vomitou pedaço a pedaço
Cada fruto proibido
Devorado ao longo do caminho
Purificou-se numa nascente mágica
E ergueu uma catedral de cristais
Erigiu um altar de ouro puro
E celebrou a missa dos tempos
Na solidão de sua crença
Sentou-se numa rocha gigantesca
À margem da estrada de uma promessa
E verteu uma única lágrima
Que escorreu pela encosta da montanha
E transformou-se num oceano
Construiu uma estranha embarcação
Recolheu os restos de suas fantasias
E voltou para o seu caminho
Trôpego, esbanjando fraquezas
Em busca da mulher amada
NÁUFRAGO
A brisa leve me traiu
Transformou-se em tempestade
Um deus de fúria soprou
Seus horrores sobre meu barco
No mar bravio agarrei-me ao nada
Que restou da minha frágil emoção
Náufrago dos meus próprios delírios
Embriagados da tua aura estranha
Traduzida na pior das distâncias
— O silêncio imposto
Entreguei-me aos caprichos da maré
Subornei cada ameaça de resgate
E morri mil vezes sob o sol do medo
Arrastei-me pela areia áspera
De uma ilha perdida no fundo de mim
Na solidão implacável do vazio
Construí um altar de pedra bruta
E derramei todo o meu sangue
Numa tola oferenda à tua ausência
Enlouquecido esculpi tua imagem
No cume de uma montanha
E celebrei rituais, os mais cruéis
Todos os dias, todas as noites
Até o limite do meu tempo
... que não passou
VITÓRIA
Perdi a noção da realidade
Virtual senhor das minhas fantasias
Desafiei reis e deuses pequenos
Numa batalha suicida
Ridículos reis
Enviaram exércitos de mortos-vivos
Em busca de minha cabeça enlouquecida
Deuses minúsculos
Lançaram maldições e tempestades
Para calar o meu coração de poeta
Décadas de luta sangrenta
No meio de um deserto inventado
A cada passo, a cada tropeço
Restaram corpos espalhados pelas dunas
E uma trilha de sangue
Pelo chão do meu tempo
Misturando-se às minhas lágrimas
Até o meu corpo, vivo, ereto
Desafiando maldições, bebendo tempestades
No horizonte surgiram bandeiras brancas
Feito velas de covardia
Içadas num barco de temor
Clamando pela paz que desconheço
Ridículos reis e minúsculos deuses
Proclamando minha vitória
Caminhei solene até meus inimigos
Bebi séculos de prazer
No barro impune de uma urna de vinho
Enxuguei o suor nas bandeiras maltrapilhas
Da paz que jamais conquistei
Recitei um poema de amor
E morri abraçado à tua lembrança
MINHA IRA
Séculos enlouqueciam o silêncio
Cristais mágicos refletiam a
Espetacular promessa de fuga
A estranha fortaleza guardava
Segredos trágicos nas suas muralhas infinitas
Feito mistérios de fins de mundos
O coração aprisionado num imenso vazio
Flutuava entre o nada e o nada
Enquanto o tempo mascava a vida
Exércitos insólitos marchavam contra as muralhas
A cada amanhecer, num ritual de morte
Deixando corpos estendidos aos pés dos portões
O tempo, infame carcereiro, arquitetava
Requintes da mais cruel tortura
Entre risos tresloucados e maldições banais
Manso, o prisioneiro caminhava sobre espinhos
Construindo uma história de não se contar
Sorrindo pelos cantos da cela fria
As paredes registravam fiéis
O contar de luas e sóis em riscos vulgares
Inexato diário de bordo
Vida vivida no limite dos limites
Construída por caminhos tão sem segredos
Que nem era necessário caminhar
Um dia brilhou um sol de mil sóis
Uma luz invadiu a cela feito milagre
Cegando olhos, medo e coração
A luz devorou cada muralha da fortaleza
E explodiu as trancas das celas rústicas
Libertando prisão e prisioneiros
O homem caminhou tranqüilo
Por entre os escombros e pôs seus olhos
No mundo que os séculos esconderam
No alto da colina um cheiro de promessa
A brisa suave acariciando a história
E a tua silhueta deliciosa de mulher
AMOR SEGREDADO
Eu a amei
Não apenas o seu sorriso
Translúcido marfim
Incrustado na face de bronze
Espuma branca das ondas
Rebentando numa praia sensual
Na eterna noite do meu tempo
Eu a amei
Não apenas o seu corpo ardente
Delicioso vulcão
Queimando meus delírios de carne
Moreno fruto desmanchando-se
Na minha boca, nas minhas mãos
Na imaginação do mais santo pecado
Eu a amei
Não apenas os seus olhos infinitos
Túneis inexatos
Por onde viajei minhas aflições
Sólidas estrelas morenas
Rebrilhando os segredos e mistérios
Do desafio luminoso de sua promessa
Eu a amei
Não apenas a sua voz sedutora
Caprichoso canto embriagado
Seduzindo pássaros e horizontes
No inebriante som
De toda a poesia, fazendo o mundo
Prostrar-se em solene silêncio
Eu a amei
A cada traço, a cada som
A cada gota de suor
Inventada num suspiro de tesão
A todo cheiro sensual
Seduzindo meu espírito
Em rituais deliciosamente profanos
Eu a amei
Amei a mulher
Que se escondeu nos escombros
Dos seus próprios desastres
Que não quis se conhecer
E se perdeu por labirintos
Segredada em meu peito
CÉLIA
Ela era o mais puro milagre
Capricho endoidecido
De um deus embriagado
Que num átimo de lucidez
Resumiu o mundo numa mulher
Fios dourados de sol
Deram forma aos seus cabelos
Translúcida seda em réstias
Tão finas como raios de luz
O céu das mais célebres calmarias
Foram condensados em dois prismas
E incrustados nos seus olhos
Refletindo a vida inteira
A voz, numa receita mágica
Misturou o canto apaixonado
De um raro rouxinol
E o jardim de todas as brisas
Seus lábios vermelhos e generosos
Faziam reviver a história torturante
De um fruto desafiador e proibido
Promessa inevitável de pecado
Os seios de menina-moça
Eram deliciosas colinas rosadas
No horizonte do busto de mulher
As curvas dos quadris eram rios
Caudalosos e caprichosos
Que contornavam um relevo solene
E desaguavam num mar de encantamento
O calor de seu corpo sedutor
Era feito um vulcão domado
Sentenciado a aquecer desejos
Os mais tolos, os mais loucos
Seu sorriso iluminava dias e noites
E construía um tempo insólito
Misturando luas e sóis
No universo de sua face
Nela moravam todos os amores
A solidez de um coração cristão
A embriaguez de uma ilusão menor
De um sentimento carnal, fatal
Homem e poeta infantes
Trocaram tolos e insensíveis
Sua gigantesca promessa de vida
E morreram um pouco ali
Homem e poeta errantes
Seguiram embriagados tempo afora
Mascando uma compreensível dor
INTEIRA METADE
Metade de você
Deslizava mansamente pelas paredes
Tragando mundos, amarrando os olhos todos
Na sua silhueta torturante de mulher
Pelos balcões, pelas janelas
Pelos sujos lençóis dos amores comprados
Pelas cartas marcadas no jogo da vida
Por cada tortuosa estrada de fuga
Tudo ficou pequeno
Metade de você
Deslizava mansamente pelas paredes
Pelos porres malditos dos perdidos
Pelo prazer inventado numa ilusão
Pelos golpes de mestres dos fracassados
Por cada um de todos os descaminhos
Tudo ficou pequeno
Metade de você
Deslizava mansamente pelas paredes
Pelas palavras maltratadas por promessas
Pelos amores construídos na areia
Pelos segredos vulgares dos impolutos
Por cada traço de todas as mentiras
Tudo ficou pequeno
Metade de você
Deslizava mansamente pelas paredes
E as próprias paredes ficaram pequenas
Enquanto no meu peito de homem
Pulsava desesperado um coração de menino
Metade de você
Deslizava mansamente pelas paredes
E todo o mundo tornou-se cúmplice da sua cena
Enquanto a mente insana do poeta
Construía o mais célebre de todos os pecados
MEU TESOURO
Entre ilusões manufaturadas
Meu coração arrisca um sorriso
Que a emoção traduz num verso
Pelas catedrais incrustadas no medo
Arquiteto uma oração
Revelação da minha verdade
Por Deus, te quero feliz
Se nos teus dias
A cada despertar
Não couber uma lembrança minha
Não importa
Se no teu riso iluminado
Não houver fragmentos meus
Não importa
Se nos teus sonhos mais ousados
Não houver uma promessa minha
Não importa
Se nas tuas conquistas
Não houver sequer a minha sombra
Não importa
Se nos teus beijos molhados
Não houver o meu sabor
Não importa
Se nos teus gozos e urros de tesão
Não houver uma só gota do meu suor
Não importa
Importa que vibre um sorriso teu
Capaz de iluminar dias e noites
Em meio às mais cruéis tempestades
Farol trágico brincando destinos
Ainda que eu sofra
Minha dor é o meu tesouro
Semente amarga do fruto que não dividimos
FALTOU MORRER POR ELA
Pari o meu espírito
Sem estrelas, sem anunciação
Dei à luz a mim mesmo
Nasci nessa mulher
Reinventei o mundo
Cada palavra mal traçada
Na página em branco da vida
Converti em poemas para ela
No seu colo bebi todas as promessas
Chorei, verti infantilidade
Meninice brotada em solo franco
Na esperança da sua fertilidade
Nas suas mãos plenas e poderosas
Encontrei segurança e equilíbrio
Para o atrevimento dos primeiros passos
Que caminhei sempre rumo a ela
Deixei desabrochar molecagens
Moldei minha puberdade ávida
Escondi do mundo pecados infantes
Cresci nessa mulher
Descobri seu corpo
Seus seios macios, montanhas fortes
Protegendo o ninho que sonhei
Construí fantasias no corpo dela
Conquistei suas fronteiras... algumas
Violentei seus pudores e receios
Entre suas pernas mágicas me perdi
Tornei-me homem nessa mulher
Decifrei segredos do tempo
Da vida e do vento
Em cada um dos nossos momentos
Amadureci nos braços dela
Meus poderes de herói pequeno
Meus anseios de infante guerreiro
Meu tesão e minha história
Eu resumi nessa mulher
Faltou apenas morrer por ela
E ela sequer chegou a existir
FANTASIA TRAÍDA
Mascando corpos e cabeças
Implodindo consciências, desorientando mundos
Seguia o bravo guerreiro, ferido e maltrapilho
Cambaleando suas certezas rumo a uma crença
Pés cortados por séculos de caminhar
Entre rimas heróicas e prazeres banais
Corpo curvado sob o peso brutal das cicatrizes
Tão vivas, tão abertas pela dor incessante
Do fogo implacável do não-saber
Seguia o bravo guerreiro sua sina estranha
À beira do lago profundo da calmaria que não há
Ergueu os olhos até o limite do seu próprio tempo
Contemplou a silhueta sensual que as nuvens
Formavam no horizonte marcado da sua história
Caiu a noite, feito um manto a segredar a vida
Uma estrela, gueixa de luz, invadiu os olhos
O coração voraz desmanchou-se num sonho menino
Cicatrizes cederam ao brilho mágico da promessa
E os versos fluíram feito cascata inventando um rio
Que cortou o chão árido de uma história dura e
Desaguou tranqüilo no mar de uma promessa
Catedrais suntuosas acenaram respostas
As dúvidas já não desafiavam todas as crenças
Dobrou o corpo, de joelhos diante da miragem
Violentando o deus do seu coração guerreiro
Em troca de preces débeis e promessas fáceis
Despertou morto no ventre de uma farsa
Refém da sua própria ilusão tão mal construída
Empunhou uma espada, vomitou um grito de guerra
E destroçou no peito o altar pagão do tolo equívoco
Diluída no ácido da sua verdade vulgar
A luz imaginária da estrela morta escorreu
Para o esgoto fétido da sua pobre escuridão
Renascido, corpo marcado por tantas aventuras
O infante guerreiro ressurgiu do homem domado
Desnudou o traje frágil do tolo equívoco
Empunhou velhos sonhos e retomou a busca
Insistindo novas sementes, acreditando frutos
Deixando pelo caminho apenas cacos de fantasia traída
NADA
Estranhos cortejos
Cortesãs e fantasias
Beijos molhados, lambuzados
Pela orgia valente dos impolutos
Todas as raças vertidas
Em taças desgastadas
Pecados escancarados
Por olhares furtivos
Divindades pagãs buscando
A oferenda tola da paixão
Musas polacas, ninfetas babacas
Louras e mulatas tecendo
A trama tola de feitiços vãos
Rastros de sereias
Pela areia quente da minha praia
Mas não tinham o canto dela
Não tinham a aura dela
Por isso parti
Senhoras dissolutas
Virgens, deusas e prostitutas
Realeza de espíritos e corpos
Retorcidos de tesão
Por detrás das cortinas
Gastas da pureza
As mais tesas intenções
Amores revelados
Em versos e orações
Gatas, beatas e malucas
Nos descaminhos, na estrada
Perdida da minha perdição
Mascando meus olhos
Numa teia de sedução
Mas não tinham os olhos dela
Não tinham as promessas dela
Por isso eu parti
Belas senhoras
Donas de todas as horas
Cicatrizes esquecidas
Barganhadas com a vida
No corpo dela
Nos olhos dela
Na aura dela
Um sonho infante
Que se tornou nada
CONSCIÊNCIA TARDIA
Dedos ágeis e trôpegos
Deixam gotas de lágrimas e sangue
Pela argila insólita do próprio tempo
Moldando esculturas vazias
Que não preenchem os espaços frios
Dos recantos da cruel solidão
Moldo a vida no barro estéril
Da história que não construo
Entre porres suicidas e ridículos
Cambaleando dor e incompreensão
Pelos sonhos e a farsa ardente
De verbos domados no capricho menor
De amantes mórbidas e vorazes
Em cada passo da estrada que não piso
Em cada ruído das camas amargas
Onde faço fundir desespero e corpos mortos
Na promessa tola de coisa nenhuma
Entre um cigarro maltratado e o nada
Vomito juras de amor e prazer
Barganhando mentiras reluzentes
Enquanto o pensamento vai distante
Cobrar da vida um amor de verdade
Com todas as verdades do amor
Tão esquecidas pelas vielas escuras
Pelas esquinas sujas do jogo dos mortais
Na carne frágil de um corpo nu
No brilho de um par de olhos fechados
Na trilha débil da moral transfigurada
Na crença mal posta na pessoa que não há
Enrolo os trapos das dúvidas pequenas
E sigo desempenhando a personagem banal
Pelo palco viciado da trama mal construída
Lá fora de nós, negros capuzes, tochas incendiadas
A santa inquisição da minha consciência
Troca a sentença de morte por tolerância
Tornando-se cúmplice da heresia vivenciada
Em forma de oração, no altar-mor
Da catedral da falsidade mal resolvida
Homem e mulher, mascamos desenganos
Forjamos um ideal de amor e violentamos
Nossos sonhos, agora mentiras desmacaradas
Alerta, oculta debaixo dos tapetes enlameados
Espiando pelas frestas da fragilidade reinante
Nossa verdade arquiteta verbos delatores
Entre drinques quentes e palavras frias
Que é para não chocar nossa podridão
Com a chegada tão tardia do adeus
INQUISIÇÃO
Recobrei os sentidos
A luz agrediu meus olhos
Cegos da escuridão
Imposta pela pena macabra
Dos anos aprisionado, trancado
Nas masmorras frias de um amor
Uma crença, um erro tolo
Um tempo perdido
Reergui meu corpo fragilizado
Dolorido de uma tortura interior
De joelhos, na areia áspera da realidade
Bebi cada gota da imagem prometedora
Da praia que me sorria uma esperança
Na orla tropical do meu naufrágio
Às minhas costas o mar
Senhor absoluto dos meus destroços
Ereto, voltei para a água, caminhei até
Sentir as ondas lambendo minhas pernas
Olhos postos no horizonte
Fitando as entranhas do monstro do passado
Feito inquisidor e suas próprias heresias
Desafiei cicatrizes, reabri os ferimentos
Fétido, o sangue dos equívocos
Jorrou desafiador feito revelação
E nos reflexos da poça que se formou
Estranho espelho de aflições
Desfilaram cenas esquecidas
Da tragédia mal-acontecida
Urros de tesão, amor de corpo
A nudez triste da escuridão
Paixão em forma de suor
E um silêncio maior
Calado por pura inexpressão
Tanto gozo, tanto prazer de carne
E um nada absoluto no coração
Cravei meu olhar no mar azul
Ao longe imperava um céu tranqüilo
Feito a consciência dos impunes
Verbos silenciosos e poderosos
Riscaram meu peito de incompreensão
Tanta luta, tanta paixão acreditada
E a herança vazia... cenas frágeis
Sustentadas pela nudez de um corpo morto
Olhos apertados, rebusco o quarto escuro
E empoeirado das lembranças
Caço luzes, carinhos, momentos, vida...
Busco um traço que justifique dor
Feito fantasmas assombrando alguma culpa
Por todos os quadrantes da escuridão
Bailam somente lembranças de um corpo nu,
Ardente, vulgar e... vazio
Abro os olhos e o mundo está lá fora
Faço uma oração embriagada
Revelo ao deus da consciência
Os pecados da crença desajustada
Do amor inventado, mal plantado
No solo estéril e desértico de uma mulher
Que se perdeu sem se saber
Volto os olhos para os ferimentos
E os encontro fechados, feito magia
Sem deixar sequer cicatrizes
Caminho pela praia sem cambalear
O corpo já não dói, pareço flutuar
O instinto guia meus passos rumo a uma nascente
Sacio na poesia a sede de séculos áridos
Um manancial de energia brota da terra
Jorra, feito em verdade, na forma de uma manhã
Mergulho nas águas translúcidas e geladas
Que acariciam meu corpo e lavam
Todos os fragmentos, restolhos do nada
Nu, revigorado, faço amor com minha consciência
Redescubro o homem forte esquecido em mim
E reabro os velhos caminhos do guerreiro
Nas trilhas férteis de uma mulher absoluta
O AMOR QUE AMO
Eu amo!
No meu amor resumo o mundo inteiro
Cada gesto, cada pensamento meu
Traduz-se na pessoa amada
Amo um amor de corpo
Que explode em desejo
No sangue invadido pela
Mais pura adrenalina
Amo um amor de espírito
Que cala suas dores
Recolhe seus momentos
Cultiva e zela pelo solo
Fértil da vida
No colo de um olhar
Amo um amor atormentado
Que quebra conceitos e
Colide mortalmente com a razão
Com a ética que a vida me impôs
Com cada tabu que alimento no caminhar
Sobre as águas turvas do meu dia-a-dia
Amo um amor sereno
Que se alimenta de si
Na solidez da palavra calada
Na angústia de saber que não
Existe verbo capaz de
Traduzir minha verdade de amor
Amo um amor em Deus
Traduzindo paz, vertendo
Orações na celebração maior do Criador
No vinho, no pão, no altar divino
Em que transformo a mulher amada
Amo um amor de dúvidas
Que cobra sustentação, chão
Para as raízes desse mágico sentimento
Estourando limites, invadindo fronteiras
Destruindo toda noção de mim mesmo
Amo um amor de certezas
Que de certo, mesmo, no final
Fica apenas o amor que amo
Mas que basta, que alucina
E traduz o mundo
Amo um amor ecológico
Que preserva meu planeta
Que salva o universo inteiro
Que recolhe seres e matas
Que captura rios e mares
E os traduz, e os liberta
Num verso de amor
Amo um amor de pai
Que protege a cria
Que molda um tempo ideal
Sangrando calado
Dores que rouba para si
Em troca do riso da mulher amada
Amo um amor de filho, numa lágrima franca
No aconchego do calor da maternidade projetada
Enquanto o mundo espera que retome as forças
E volte para a luta
Amo um amor maior que eu
Que me faz mero hospedeiro
Estranha criatura que reconstrói
Minha visão de mundo
Posturas e anseios
Que faz rever a vida inteira
Através da lente generosa do amor
Que desafia chão e intenção
Ignora dor ou prazer
Faz corpo e espírito reconhecerem
Apenas a intenção do amor
Amo um amor que me faz mais que homem
Faz da minha amada muito mais que mulher
Um amor que reconstrói o mundo
Do tamanho que nos couber
Amo um amor pleno
Do silêncio ao coito
Do vazio à plenitude de amar
Amo o amor que amo
MULHER ABSOLUTA
Invadiste o espaço e o tempo trágico
Foste brisa desafiando tempestade
Acariciando cada dúvida com certezas caladas
O riso explodiu em tua face de mulher
Gêiser de carinho molhando e aquecendo
O frágil e ressequido chão das minhas crenças
Partiste deixando tua imagem flutuando
Pairando sobre todas as tormentas
Assombrando os recantos enlameados
De bobagens que um dia ousei chamar amor
Teu sorriso agudo, ardido, penetrante
Ficou congelado no tempo
Desafiando todos os verbos do meu silêncio
Ninfetas e deusas menores se diluíram
No suco fervente da tua verdade de amor
Gueixas quedaram ante a tua força de mulher
Instalada em silêncio no âmago do meu espírito
Nos bastidores das tolas tragédias
De tantos beijos vulgares e prazeres baratos
Tua sombra elegante deslizou mansamente
Misturando promessas e profecias
Em versos atrevidos e silenciosos
Soltei as amarras do meu barco libertário
Rompi as correntes enferrujadas e viciadas
De todas as âncoras, das mais frágeis tolices
Icei as velas e abracei o vento da paixão
Rumo ao teu porto de sólida calmaria
Homem renascido, corsário das cicatrizes vazias
Reinvento a toda manhã o meu próprio destino
Navegando tranqüilo nas águas transparentes
Do oceano definitivo da tua dignidade de mulher
Teu sorriso é o norte da minha bússola
Teu olhar é o meu horizonte infindável
Teus beijos, a embriaguez do meu tempo
Teu corpo, o mais instigante desafio
Tua história é a promessa da minha história
És a poesia renascida em versos doces ou trágicos
És a verdade resgatada do guerreiro combalido
És a plataforma sólida do homem reconstruído
És a maior de todas as minhas verdades
Tu és a minha mulher absoluta
CELEBRAÇÃO
Fascinado, permaneço estático
Imobilizado pela sensação de êxtase
Que me envolve e alucina
Depois, feito menino e a
Emoção do primeiro coito
Desafio o tremor febril
E ouso tocar seu corpo
Caminho pelos seus segredos
Conquistador de mundos
Finco a bandeira de um beijo
De um infinito desejo
No topo da montanha
Desafiadora do teu seio de mulher
O suor, cúmplice passional
Do estonteante balé proibido
Compõe o gestual alucinante
Do nosso teatro sensual
Escorregamos os corpos
Para dentro do peito
Medos e taras fundem-se no
Calor febril da fome de amor
Enquanto o mundo espera
Porque só impera a nossa cena
Minha alma fervilha de emoção
Enquanto uma multidão de
Grotescos fantasmas
Desprende-se das neuroses
Das mais profundas cicatrizes
Reconstruindo o hímen da
Minha história violentada
Por tantos equívocos
Dentro de você
Escondem-se todas as respostas
Todas as preces e mãos postas
Perdões e pecados de amor
Deito meu espírito
No seu colo de mãe, amante e mulher
E disparo uma lágrima franca
No peito de todos os temores
Avenidas infindáveis abrem-se
No horizonte marcado dos meus
Olhos de poeta disperso
Enquanto os pés cortados
Mancham estranhos caminhos
Com pegadas delatoras que confessam
Os mais ousados crimes de amor
Seu corpo é um altar
Erigido à mais legítima divindade
Nele sacrifico meus cordeiros
E celebro a intocável e irremediável
Crença no sacramento da vida
Que ressurge, que rebrota
Na terra ressequida do meu tempo
Na magia da semente que colho
Do fruto da sua anunciação em mim
TROCA DE CALOR
Razão, olhos e braços
Sustentando
Odisséia natural
Olho por olho
Dente por dente
Sina enrodilhada
Cobra na caçada
Mascando sonhos
Arquitetando vida
Vida, braba vida
Rústico ofício
Brilhar entre ríspidas
Tramas ocultas
Olho por olho
Dente por dente
Célebres artesãos
Tecendo o jogo
Numa roleta de sorte
Capricho do cassino
Brutal do destino
Vida, braba vida
Ritual obscuro
Sorrindo
Enigmas lancinantes
Instigando tolas ousadias
Olho por olho
Dente por dente
Suor vira ouro
Alquimia dos bravos
Magia dos escravos
Do sonho flamejante
Vida, braba vida
Revela onipotência guerreira
Estrela revolucionária
Invertendo origem
Olho por olho
Dente por dente
Colheita de garimpo
Aroma de terno limpo
Arena outra
Reluzindo luta
Vida, braba vida
Justiça ungida
Absoluto ritmo
Eterno zênite
Olho por olho
Dente por dente
Mares raptando continentes
Areia brincando
No dorso das ondas
Astros protegem
Os parceiros do seu brilho
Vida, braba vida
Rosa oriental
Sol atento
Nascente intuição
Olho por olho
Dente por dente
Todo norte
É parte da intenção
Estrela forte
Faz a sorte
Da navegação
Vida, braba vida
Rota obstinada
Signo
Astro único
Reacendendo anunciação
Ouro por ouro
Gente por gente
AMEAÇA
Não cobre de mim
Promessas feitas
Durante um porre feroz
Pode ser que eu prometa
Pôr cercas no planeta e
Me tornar astronauta
Pode ser que eu prometa
Invadir fronteiras
E vomitar fantasias
Pode ser que eu prometa
Violentar toda carne e libertar
Urros e sussuros inconfessáveis
Pode ser que eu prometa
Lapidar a lua e incrustar num anel de lata
Para ornar o dedo de uma prostituta
Pode ser que eu prometa
Conjugar os mais célebres verbos de amor
Nas esquinas, em qualquer canto vulgar
Pode ser que eu prometa...
Pior, pode ser que eu cumpra
FUGA CONSCIENTE
Ávida de luz
A consciência me cobra
Recobra os sentidos
E emerge do dúbio mar
Da covardia instalada
Questiona todos os sonhos
Descortina a realidade grosseira
Colide com fugas
Impostas pela dignidade traída
Do guerreiro vencido
Pela futilidade das guerras inúteis
Rasga olhos e coração
Com as garras violentas da verdade
Guardada na calmaria das catedrais
Por detrás da essência dos altares
E entrega-me a escuridão
Que batizarei mundo
LIMITE
Pés descalços
Postos no mundo
Rasgo peito, rasgo chão
E arquiteto parreiras
Pés descalços
Pisando solenes
Recolho o vinho
Do sangrar das uvas
Pés descalços
Desafio caminhos
E o sangue puro
Das uvas, pés e peito
Envelhecerá por si
... se tiver que ser
LOUCURA
Escala meu peito
Desafia minha história
Insiste suas garras
Na carne podre dos receios
Masca todo gomo de consciência
E vomita fétida realidade
Nos meus olhos cegos
Mergulha no meu sangue
Desbrava cada artéria
Do meu corpo frágil e inerte
Sinto sua presença circulando
Feito um pivete bêbado
Pelas entranhas da noite
Ávido torturador
Buscando o cerne do medo
Da sua vítima pequena
Alimenta-se voraz
No prato farto das minhas tolices
Da meninice maquiada
Pelos séculos trágicos
Da minha ínfima existência
Destrói meus sonhos
E se eterniza no meu destino
Feito todas as pragas de todos os Egitos
Ferida aberta na alma
Avança firme a cada dia
A cada noite vazia e infinda
Está nas paredes rústicas
Que sufocam meus olhos
Nas cenas que a saudade insiste
No nada em que me transformei
Cresce com os segredos
Que seus mistérios escondem
Com tudo o que não sei da vida
Revelando traições e dores
Alucina num coquetel de maldade
Faz de mim caçador tolo
Artífice de todos os terrores
Perdido, desesperado
Pelas imagens cruéis que ela
Arranca da ausência, do vazio
De uma sinfonia de silêncio
Deleita-se desvairada
Com o sangrar imposto
Pela frieza plantada em mim
Em ásperas inquisições
Em gélida condenação
Ela me abraça
E me arrasta morto por aí
DESESPERO
Morto
Viagem negra
Negra paisagem
Inerte e branda
Entorpecida, esquecida no luto
Nada mudou
Séculos são átimos confusos
Na sua fugacidade
Na escuridão de
Todos os olhos abertos
Nada mudou
No peito frio de cada lápide
Inscrições grotescas
Cedem ao tempo
Verdade metálica... insubornável
Nada mudou
Segue o mundo enfim
Esquecido de mim
PROCURA
Onde estão aqueles olhos
Que segredavam o mundo inteiro
Num sorriso aberto, tão certo?
Onde estão os dengos da menina
Que se insinuavam sedutores
Tão impunes quanto fatais?
Onde estão os rastros das promessas
Mal construídas pela embriaguez
De um infante apaixonado?
Onde estão os sóis castanhos
Que nasciam a todo instante
No horizonte do planeta da sua face?
Onde estão os segredos transparentes
Que transbordavam feito confissões
Inundando olhos e corações?
Onde estão aquelas luas tristes
Que morriam todas as noites
Invejando a sua luz de mulher?
Onde está a tormenta feroz
Que invadia a casa dos temores
Transformando homens em meninos?
Onde está o caminho do mundo
Que arrastava nobres e ladrões
De joelhos aos seus portões?
Onde está você?
VIVER
Maldito mistério que envolve meus passos
Trôpegos, embebedados da tua aura
Que me arranca olhos e coração
Num ritual pagão, corpo e espírito
Oferendas minúsculas e trágicas
Ardendo na cripta do teu prazer
Das tuas loucuras e aventuras
Arranho as paredes do mundo
Desnudo dúvidas e temores cruéis
Indefeso na força do amor esquecido
Do tempo, da história que não há
Rendo o dorso à chibata que corta
E marca a pele por dentro
Avessas cicatrizes, fiéis documentos
Da insanidade mal instalada
Escondido num canto, o tempo ri
Das beatas que atiram sua castidade
No peito do pecado que não cometi
Em cada esquina ergue-se uma lâmina
Desesperada pela ausência da noite
Enquanto brilha o sol que invento
E planto dentro do teu ser
Sem eira
Nem beira
Arrasto-me morto
Reaprendendo a viver
SONETO À PALAVRA
Palavras
Armas ferozes
De efeitos atrozes
Virgens sensíveis
De amores intangíveis
Palavras
Fragmentos de argila
Nas mãos do artesão
Apenas inexatidão
No fundo da reflexão
Áridas de sentido
Ao sol da inexpressão
Clamam por um pastor
Ávido e sofrido
Capturo-as na aflição
De um verso de amor
AMEAÇA DE VIDA
A voz repulsiva ressoou pelos quatro cantos
Vazios do quarto da minha história
Fez estremecer as paredes e despertar
As aranhas mortas nas entranhas do nada
O velho lustre da consciência, farol de tantos
Equívocos, balançou por séculos gelados
Mas meu coração cristão, guardado na
Fortaleza da crença no amor, não se abalou
Recebi palavras de morte em
Troca de uma proposta de vida
Reabri todos os sombrios porões
Em busca dos mais célebres pecados
A estranha e solitária expedição
Avançou para dentro da minha vida
Em busca de um crime qualquer
Que justificasse a sentença cruel
Reencontrei todos os meus pecados
Guardados na poeira do esquecimento
Atados aos cúmplices da própria culpa
Soterrados pela minha fé em Deus
Surpresos com a minha visita
Redesfilaram seus verbos venenosos
Tentando revitalizar dores vencidas
Personagens repugnantes de uma história
Mal construída vieram à minha presença
Revi cada carrasco, cada maldito construtor
Das tramas de tantas intrigas
Pelas margens dessa estranha estrada
Algumas vítimas da minha incoerência
Lançavam-me olhares silenciosos
De alguma incompreensão, de algum perdão
As garras da culpa exalada pelas
Palavras de morte ainda não se saciaram
E empurraram a insólita e solitária
Caravana para mais fundo nos meus porões
Caminhei tranqüilo até os cantos mais
Escuros e empoeirados de mim mesmo
E reabri cada funesto baú, alguns com
Segredos guardados da própria consciência
Cresci muito na busca
Descobri que algumas velhas cicatrizes
Podem ser maiores do que os ferimentos
Que as construíram na carne da mente
Cultivadas por uma quase eterna insanidade
Provocada pela chantagem barata
De uma culpa que na verdade não há
Senão a culpa de ser humano... crescendo
Fechei cada um dos baús, dessa vez
Sem sequer me preocupar em trancá-los à chave
Caminhei de volta para fora dos porões
Da escuridão inviolável e da poeira fétida
Que o tempo cuidou de impor a cada
Ameaça de culpa dos desvairados ferimentos
Ousei voltar um último olhar ao estranho
Caminho e sequer percebi pegadas
De volta à luz do meu próprio tempo
Revi cada verbo da sentença de morte
O som covarde que ressoava pelos recantos
Mais profundos da minha indignação
Agora traduzia apenas o silêncio e o vazio
Temperos tolos de incompreenção e rancor
Que só medram em corações bestiais
Sem surgir um sinal que acenasse luz
Ou mesmo a execução prometida
Os insanos verbos de morte emudeceram
COISAS
Coisa-à-toa
Molecagem ordinária, saltando leviana
Pelo ritmo sacana de um samba maroto
Jeito escroto, fazendo da mentira uma arma
Apontada no peito da própria lucidez
Gozando quantidade pela cidade
Surgindo dos becos, com alguns trecos
Camisas jeans e outros badulaques
Enfeites de mesa, velhos e surrados achaques
Disfarçando a culpa com um talão de cheques
Afogando as mágoas num jogo qualquer
Alambiques, corpo de homem, corpo de mulher
Embalando a trilha sonora das madrugadas
Coisa-ruim
Pescoços cortados, pessoas usadas por aí
Abraços apaixonados no caminho fácil
E viciado de maldades sem sentido
Morder a jugular da própria história vulgar
Por não saber construir algo melhor
Que não seja arranhar com veneno mortal
O corpo sólido de qualquer chance de amor
Coisa-feita
Na encruzilhada da vida, bruxaria barata
Encomendada pelo destino caprichoso
Roupagem de graça divina
Para limpar o carma de um anjo tolo
Verbos cristãos, preces e orações
Escondendo vampirismo e estacas nos corações
A dor escorrendo pelo canto da boca
Enquanto olhares desafiam os próprios limites
Coisa-feia
No álcool de todos pecados, corpo inchado
Dissimulado nos babados mal tecidos
Perdoado pela pose high-society
Enquanto dentro da falsa fortaleza
Pulsa um coração vulgar
Coisa-linda
A cidade sobrevivendo impune
Ao fétido odor dos seus esgotos
CANÇÕES
Aqui poemas que nasceram com outra
sina, que ganharam ritmo nos teclados,
nos violões, no talento
mágico de alguns parceiros especiais.
OPÇÃO CLAUSURA
Música: Cláudia Carvalho
Só
No vazio crítico
De órbitas elípticas
Em torno do silêncio
Só
Na transparência pura
Da opção clausura
No corpo de uma ave
Sou
Olhar e horizonte
Corrente prisioneira
Dos elos que sou
Vôo
É uma espécie de sonho
Que às vezes estranho
Nas nuvens onde vou
Vou
O mais longe que puder
Viajar nesta mulher
Meu medo de ficar só
Só
No vazio crítico
De órbitas elípticas
Em torno do silêncio
PARTO
Música: Cláudia Carvalho
Céu
Vôo da imaginação
Gerando mistérios
Descobrir-te nu e sedento
Num tranqüilo atrevimento
Te dar meu corpo
Entregar-me à sorte da morte
Por prazer, sem dor, sem te doer
Chão
Na palma da mão
Frutos etéreos
Recolher-te ventre adentro
Expulsar-te a todo momento
Parir quando quiser
Tua deusa torta
Mãe, amante e mulher
Eu
Mulher e coração
Amores e ovários
Meio morta no teu mundo
Suicídio tão fecundo
Para renascer
Reacender o sol da raça
Missão sem fim
Dentro de mim
MONTARIA
Tributo ao Palhaço
Música: R.J. e Paulistano
Ê boiadeiro, ê montador
Fica firme na sela
No chão tu és perdedor
Montou tem que ficar
Em cima do corcoveio
Se o chucro pular no lugar
Ou galopar lá pro meio
Ê boiadeiro, ê pegador
Vê se fica por perto
Pro caso de vir o pior
O chucro que é traiçoeiro
Corre pra cima da cerca
Mas o peão verdadeiro
Nem aí ele se aperta
Ê boiadeiro, ê laçador
Pode jogar tua corda
Que o moço saiu vencedor
Cortou desde o começo
Até se classificar
Peão quando é do avesso
Não dá pra derrubar
Vejam o palhaço
Que brincalhão
Fazendo graça na arena
Protegendo seu irmão
Palhaço, que brincalhão
Palhaço protege o peão
Palhaço, que brincalhão
Palhaço protege o peão
SAUDADE DE BARRETOS
Música: R.J. e Paulistano
Atrás da porta
Um par de espora pendurado
Transformado em enfeite de salão
Inundando os meus olhos de passado
Relembrando o meu velho alazão
Êêê... lembrança que vai
Maltratando o meu pobre coração
Êêê... saudade que dói
De Barretos e da Festa do Peão
Da Alvorada virando a madrugada
Dos amores varando os quatro dias
Da festança marcando a temporada
E da paixão que sempre florescia
Êêê... lembrança que vai...
Das viagens conduzindo as boiadas
Da pousada com estrelas no sertão
Da festança no recinto, a mulherada
Aplaudindo minha fibra de peão
Êêê... lembrança que vai...
Da coragem nas rosetas das esporas
Do perigo no lombo de um burrão
Do turista festeiro a toda hora
Repetindo comigo esta canção
Êêê... lembrança que vai...
PAIXÃO
Música: Chico de Abreu
Moço,
Diga lá qual o segredo
Que me faz tanto medo
Tanto medo assim
Cara,
Não há nenhum mistério
Nenhum sentido etéreo
Só desejo ardendo em mim
Moço,
Tens um ar de açoite
De magia da noite
A me embriagar
Cara,
A noite não é um espelho
Eu apenas me assemelho
Um pouco ao seu luar
Moço,
Amanhã com outro homem
Se eu lembrar o teu nome
Eu vou ter que chorar
Cara,
Paixão é pra sofrer
Senão pode esquecer
Não vale a pena apaixonar
Diga,
Porque eu me entregaria
A tanta fantasia
Que crias aqui
Cara, porque me esquecerias
Por essas galerias
Sem sequer morrer por mim
ADEUS
Música: Carlos Dignez
Se aprochegue, meu dengo
Eu vou me despedir
E o amor na despedida
É feito bala perdida
Procurando a quem ferir
Não se avexe, meu dengo
Eu devo regressar
Trazendo na bagagem
Boa e velha malandragem
Só pra lhe ensinar
E nas terras, meu dengo
Que eu for para visitar
Levarei a sua imagem
Feito estranha visagem
A me abençoar
E se de quebra, meu dengo
Eu me apaixonar
Faz que não faz mal
Eu lhe mando um postal
Só pra remediar
PALHAÇO
Música: Chico de Abreu
Era sol e solidão
Um anzol e aflição
Era um fio d’água boa
Um rio e uma canoa
A pesca e o pescador
Uma cachaça de sabor
Era um fio de esperança
Num pio de ave mansa
A caça e o caçador
Era o frio de uma trégua
Era o chão de muitas léguas
Era o apito de um trem
Na saudade de alguém
Era sol queimando céu
O amor fazendo o cio
Era laço e laçador
Um palhaço e um amor
Eu palhaço e o teu amor
Eu palhaço e o teu amor
CARA, TE AMO
Música: Edgard Passos
Vem, vem me encontrar
E já vem nua para mim
Vem, quero o teu corpo
Transpirando e assim, assim
Quebrar tuas defesas
Entrar em teus segredos
Violar tua beleza
E saciar os teus desejos
Quero desandar
A ficar nua para ti
Eu quero me entregar
Até te confundir
Romper as paliçadas
Do medo e preconceito
Louca e desvairada
Me dar de qualquer jeito
Te provar e comer
Doce de mel prazer
Te sugar e beber
Cara, te enlouquecer
Assim quando quiseres
Libertar os teus anseios
Botões ou um fecho eclair
Vão-se abrir sem receios
Romper tua fantasia
Te lambuzar de orgia
Plantar-me no teu ventre
Te invadindo indolente
Vem, traz os teus dentes
Pra bem dentro dos meus seios
Quero ser demente
Mundana, sem asseio
Pecar a noite inteira
Rolar na tua esteira
Meu corpo tão sedento
Te tragando violento
Te provar e comer...
Vem, é dia posto
Vem tirar a fantasia
Vem gemer a todo gosto
Gostoso de agonia
Pecar, rolar
Provar, prazer
Sugar, gemer
Gritar, morrer
Te provar e comer...
Cara, te amo.
BOCAS
Música: Chico de Abreu
Uma boca salta pro canto
Dá passagem pro andor e pro santo
Que catam milagres madrugada adentro
Nos sujos bilhares da boca do lixo
Que catam milagres madrugada adentro
Nos sujos bilhares da boca do lixo
Ah, quantos sonhos traídos passaram aqui
Vida boêmia que torna a se repetir
Ah, quantos sonhos traídos passaram aqui
Vida boêmia que torna a se repetir
Essa boca que saltou pro canto
Na passagem do andor e do santo
Já fez seus milagres madrugada afora
Nos antigos bares, nos becos da Aurora
Já fez seus milagres madrugada a fora
Nos antigos bares, nos becos da Aurora
Ah, quantos sonhos traídos passaram aqui...
Uma velha boca num canto
Conta histórias de andores e santos
Que nos braços fortes dos becos
Tornam-se nobres velhas bocas
Que nos braços fortes dos becos
Tornam-se nobres velhas bocas
Ah, quantos sonhos traídos passaram aqui...
SIMPLESMENTE CORAÇÃO
Música: Cláudio Matos
Meu coração
É uma ave migradora, uma moça sonhadora
Que faz pouco da solidão
Meu coração
É uma velha senhora, que assim sem demora
Explora a ilusão
Meu coração
É um artista sofredor
Interpretando a dor
Do seu próprio coração
Meu coração
É pimenta ardida
Que age desmedida
Nos pratos da razão
Meu coração
É uma flor tão aberta
Que às vezes desconcerta
O brilho do verão
Meu coração
É uma espada encantada
História mal contada
É simplesmente coração
TEMPO INTERIOR
Música: Irineu
A chuva rompe
A sua própria ausênsia
Devagarinho
No seio da plantação
Um vento forte
Assobia no quintal
Uma canção sertaneja natural
A saudade
Vem de encontro à janela
Violentar
A minha solidão
Casa de fazenda, fazenda já não é
As coisas mudam
O tempo tudo mudou
Fogão a lenha
Virou mesa ou ornamento
Forno de barro desfeito ao relento
Um lampião esquecido num canto
As coisas mudam
O tempo tudo mudou
O que fará
O tempo ao teu corpo vibrante?
Fará apenas velhice
Ou uma eterna meiguice?
O que fará o tempo às tuas dores?
Fará só esquecimento
Ou um eterno tormento?
Eu bem sei
O que fará o tempo
Fará lua e sol
Noites e dias
Indiferente à tua dor
E no final
Com toda sinceridade
O que valerá de verdade
Será teu tempo interior
FALE DE MIM
Música: Irineu
Você fala de mim
Por todos os lugares
Nas esquinas, nos bares
Fala de mim
Sai pelas ruas
Dizendo aos amigos
Que sofreu comigo
Mas fala de mim
Você fala de mim
Que já não faço falta
Que você não foi feita
Pra sofrer por tão pouco
Fala de mim
Diz que eu estou louco
E na sua procura
Fui mera aventura
Mas fala de mim
Fale de mim
Até ficar rouca
E lavar toda a roupa
Da sua loucura
Culpe a mim
Por tudo o que quiser
Seus fracassos de mulher
Que sequer soube amar
Fale de mim
Até ter-me esquecido
Ou não ter mais sentido
Falar de mim
AMANHÃ DE MANHÃ
Não me peça que eu zele
Pela sua ausência
Quando a essência
É mero vazio
Não me peça que eu vele
Pelos seus mortos
Quando esses corpos
Nem estão frios
Não me cobre respostas
Enquanto vira as costas
Para os seus desafios
Cuide de si, cuide dos seus
Amor, adeus
Amanhã de manhã
As mesmas janelas vão-se abrir
Para a luz do sol
A vida continua
Não há motivos para ser só
Então eu lhe direi
Amor, vou partir
Pois confio na vida
E ela, eu sei,
Não irá me trair
DISTÂNCIA
Música: Carlos Dignez Aguilera
O ronco dos motores
Barulhos da cidade
Gente que vai e que vem
Mesmo na multidão
Estou tão sozinho
Distante do meu bem
Na televisão
Imagens desfilam
E os meus olhos não vêem
Pois meu pensamento
Está numa pessoa
Que esta cidade não tem
Preparo uma bebida
Para tentar vencer
A cruel solidão
Mesmo assim sua ausência
Fere fundo no peito
Machuca meu coração
Meu Deus
Há um misto de dor e prazer
No sentimento que me faz sofrer
Na distância essa grande dor
Porque
Essa dor me faz entender
Que estou vivo e para viver
Preciso muito deste amor
CONFESSO
Música: Cláudia Carvalho
Confesso
Todos os crimes que não cometi
Ter-te traído sem te trair
Assino em branco qualquer confissão
Lamento
Que todas as dores tivessem que doer
Que todos os sonhos tivessem que ruir
Tornando escombros o que fora amor
Não peço
Que releves a minha ilusão
Nestes meus vôos impunes de chão
Tem coisas que não dá pra dividir
E hoje
Inteiro e solto por outro caminho
Sem jogos de culpa, tampouco sozinho
Troco tua estrela por uma constelação
MULHER
Música: Edson Tadeu
Mulher
Vejo em teus olhos morenos
Feiticeiros e tão serenos
Sedução
Nosso caso
Casamento dos nossos vinhos
Viverá mais que os velhos caminhos
Do mundo
No fundo
Se diz, o amor sempre acaba
A razão na ilusão desaba
Por assim
Mas nós dois
Não seremos meros escombros
Levaremos o sonho nos ombros
Até o fim
Quiném átomos
Num átimo hipnótico
Explodirá o nosso amor exótico
Sem ferir
Radiação
Vai durar três milhões de anos
Quase tanto quanto os meus planos
De te fazer feliz
JOGO FATAL
Eu descobri você
Meio de graça, meio sem querer
Você de papel, recém-caída do céu
Na esquina da palma da mão
Eu tropecei num blues
Ao sul do som deste seu sabor
Verso cru versus meu planeta azul
Inventando o meu próprio equador
E decidi jogar
Apostar mil graus de calor
Ferver o mel, num jogo mortal
Na roleta russa do amor
Ah... agora viajo no céu
No véu de um pecado maior
Fantasia brincando cruel
No brilho do olhar sensual
Ah... agora eu era o céu
O seu maluco inventor
Astronauta, poeta, pinéu,
Criador de um jogo fatal
Eu inventei você
Meio na raça, por puro prazer
Você mulher, mesmo sem saber
Pop star de um verbo indolor
Eu mergulhei num blues
Atei meus sons ao seu corpo nu
Troquei os traços dessa fantasia
Masquei o aço da sua aura macia
E decidi jogar
Marcar as cartas, fingir e blefar
Burlar o mundo e se preciso for
Me perder para ser seu vencedor
AMEIXA
Blues, o olho cego de um mundo azul
Sentiu um toque que jamais sentiu
Explosão de amor no coração vazio
Blues, o surdo som que ninguém ousou
Vibrou tão forte que o planeta abriu
Perdeu o tom deste velho blues
Gueixa, deixa eu te amar, me deixa
Deixa eu cantar essa minha queixa
Verbo feroz, meu coração não racha
Não acho sequer que o mundo te mereça
Ouça, vou-te trazer uma estrela persa
Um sol hindu e flores virgens de ameixa
Um velho blues e o puro mel de minha raça
Te amar de um jeito que nunca me esqueça
Teu, meu coração e essa estranha opção
Pulsar tranqüilo na palma da tua mão
Um prisioneiro e o amor pela prisão
Teu, meu mundo inteiro resumido em ti
Extrair o som, o dom de parir
O sol de uma canção só pra te ver sorrir
Gueixa, deixa eu te amar, me deixa...
Não, não sei outro caminho que não o teu
Já esqueci até quem não me esqueceu
No teu amor, minha história se perdeu
Não, não posso viver longe de nós dois
As coisas da vida eu deixo pra depois
O mundo inteiro está dentro de nós
Gueixa, deixa eu te amar, me deixa...
DOLORIDO CASTIGO
Música: Carlos Dignez Aguilera
Velhos baús, gotas de luz, ocultas nos cantos do silêncio
Cicatrizes, matizes de ferimentos nem tão infelizes
Fiz um bom prato, um retrato com recortes de confissões
Pendurei no meu quarto, no surrado cabide das ilusões
Nos cantos do palco, a dançarina vertia pura magia
Eu era a sua platéia... e exagerava demais quando aplaudia
Adivinhava seus passos, cada compasso me embriagava
Insinuava desastres pelos becos velhos da minha covardia
Ela fingia que se sabia feia, e me envolvia
Nas tramas mortais de uma deliciosa teia
Manhas de aranhas, manhãs estranhas
Ela, às vezes, até fazia de conta que eu existia
Brinca, meu tempo, brinca comigo
Palhaços, piruetas, mocinhos e bandidos
Algodão doce, armadilhas, puro perigo
Me arrasta pela sarjeta do meu caminho antigo
Mas se eu sonhar e puder te fazer um pedido,
Faz dessa mulher o meu mais dolorido castigo
Cantei para ela uma canção que nem sei se eu sabia
Embrulhei o meu tempo, um pacote que sempre perdia
Nas rodas da vida, me fiz criança, brinquei de esperança
No colo da promessa que ela nem sequer me prometia
Eu quis contar do meu amor, mas um temor me implodia
Acariciei calado cada lágrima seca que sua boca vertia
Num verbo mascado, na silhueta de um segredo remoto
Desesperei noite e dia, em cada adeus, quando ela partia
REBENTO DA TERRA
Música: Cláudio Matos
Rio, rio
Que brotou nessa nascente
Deixando nos olhos da gente
Uma cor de esperança e paz
Rio, rio
A tudo farias verde
Agora me faz triste ver-te
Um animal ferido e nada mais
Restará teu leito seco e vazio
Um troféu débil e vadio
Aos deuses sagrados pela ambição
Restará gritar em minha poesia
Que hão de te ressuscitar um dia
Com lágrimas sangradas pela razão
NOSSOS RITMOS
Música: Carlos Dignez Aguilera
Eu sou um bolero... você, um jazz
Jamais tropeçaremos em compassos
Nos passos da nossa viagem
Pelos bailes da vida
Dois para lá, dois para cá
Deslizo na quadratura romântica
Da minha canção de amor
Ao sabor de uma Cuba Libre
Enquanto você inventa sons
E faz contorcer o seu mundo
No compasso delirante
De um sax embriagado
Saboreando puro êxtase
Agora você é um blues... eu, um rock
A melancolia envolve seu salão
Enquanto uma voz metálica, intimista
Desliza por notas e dores inconfessáveis
Tocando fundo feridas segredadas
E reabrindo cicatrizes de paixões
Impune, rasgo meus compassos
Desafio verbos e profecias
Sugo a jugular da minha própria alma
Numa rebeldia povoada de temores
Que escondem e delatam meus crimes
De repente você é um rap
Libertária senhora de todos os caminhos
Rainha dos becos mais ocultos
Nas profundezas da cidade do ego
Transbordando ritmo e sensualidade
Vomitando verdades no peito do mundo
Eu sou um samba-canção
Entre um drinque culpado e o sentido
Nenhum de se morrer por amor
Construo tragédias num canto de botequim
Cambaleando minha história
Entre um verbo mascado e um espelho
Que insiste em me dar as costas
Você é uma ária, transbordando poesia
Pelas manhãs de um tempo esquecido
Que ressuscita culpas e inventa perdões
Enquanto o mundo segue impune
Eu sou apenas um réquiem
Um hino de adeus aos sonhos
Que não soube construir

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