encontros teológicos 53

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encontros teológicos 53
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
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[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]
CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina –
ITESC, n. 53, Florianópolis, 2009.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
CDU 2 (05)
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
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Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC
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Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC
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Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC
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Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC
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Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Ano Sacerdotal – Junho de 2009 a junho de 2010
Reginaldo de Lima....................................................................................................
São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
José Artulino Besen................................................................................................... Povo Sacerdotal
Ney Brasil Pereira....................................................................................................
A Espiritualidade do Presbítero
Osmar Debatin..........................................................................................................
Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
Pe. Paulo Dal’Bo......................................................................................................
Os ministérios em Santo Agostinho
Dom Manoel João Francisco.................................................................................... Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
José Artulino Besen................................................................................................... O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
Luis Stadelmann, SJ.................................................................................................. O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
Dom Esmeraldo Barreto de Farias........................................................................... Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
Reginaldo Pereira..................................................................................................... O Ano Sacerdotal – Documento
Cardeal Dom Cláudio Hummes................................................................................
Hino do Ano Sacerdotal – Hino e Comentário
7
9
21
37
49
61
73
101
119
135
151
165
Pe. Ney Brasil Pereira.............................................................................................. 167
Recensões...................................................................................................... 173
Crônicas........................................................................................................ 185
Editorial
No dia 19 de junho do ano corrente o papa Bento XVI deu abertura
ao Ano Sacerdotal, comemorando o 150º aniversário da morte de São
João Batista Maria Vianney, mais conhecido como Cura de Ars, onde
foi pároco por mais de 40 anos.
Canonizado em 1925, o Cura de Ars, em 1929, foi também
constituído padroeiro dos párocos, patrocínio que, por determinação
do Santo Padre, a partir do dia 19, se estende a todos os presbíteros.
O Cura de Ars é um daqueles a quem se pode aplicar as palavras de
São Paulo: “Quem se gloria, glorie-se no Senhor, pois para confundir
os sábios ele escolheu os ignorantes e os fracos para reduzir a nada
os fortes” (cf. 1Co 1,28-31). Ordenado depois de grandes dificuldades
nos estudos, foi enviado para um ignoto e pobre lugarejo com apenas
duzentos e trinta habitantes entregues aos vícios, às bebedeiras, ao trabalho aos domingos e às festas. Dez anos depois, através da pregação
e da catequese sustentadas por muita oração e rigorosas penitências, o
humilde pároco trouxe de volta à vivência da fé, não só os fiéis daquela
pequena aldeia, mas milhares e milhares de pessoas de toda França e
até de outros países.
O Papa abriu o Ano Sacerdotal na celebração das Vésperas da
Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Dia de Oração pela Santificação dos padres do mundo inteiro. O encerramento está previsto para
acontecer na mesma solenidade em 2010, com um encontro de padres
de todo o mundo na Praça de São Pedro.
O Ano Sacerdotal é, certamente, uma privilegiada oportunidade
para se refletir sobre a vida e o ministério do presbítero em nossas dioceses.
Ele vai ao encontro de algumas preocupações do episcopado da América
Latina e do Caribe, manifestadas no Documento de Aparecida. Os bispos
apontam alguns desafios na vida e ministério de nossos padres.
O primeiro desafio diz respeito à identidade teológica do ministério presbiteral. O segundo refere-se à inserção do presbítero na cultura
atual. O terceiro está relacionado com aspectos vitais e afetivos. Há
outros de caráter estrutural como, por exemplo, a extensão e situação
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Editorial
de pobreza das paróquias que dificultam o exercício de uma pastoral
adequada (cf. DAp 193-197).
Com certeza o Ano Sacerdotal vai possibilitar aos presbíteros e
para toda a Igreja pistas de solução para esses desafios, pois seu objetivo
é ajudar a perceber cada vez mais a importância do papel e da missão
do padre na Igreja e na sociedade contemporânea, bem como favorecer
a perfeição espiritual da qual depende a eficácia do seu ministério. A
Congregação para o Clero, por sua vez, no comunicado que fez logo
após a convocação do Papa, acrescentou mais um objetivo: “potenciar
a formação permanente dos sacerdotes ligando-a à dos seminaristas”.
A revista Encontros Teológicos busca dar sua humilde contribuição para que nossas comunidades possam bem viver o Ano Sacerdotal.
Contribui, desse modo, para que os leitores aprofundem o tema fidelidade
a Cristo, fidelidade do sacerdote, realizando iniciativas espirituais e pastorais que ajudem a uma melhor compreensão do sacerdócio ministerial
e sua relação com o sacerdócio comum dos fiéis, no âmbito de uma Igreja
toda ela discípula e missionária de Jesus Cristo.
Para isso, Reginaldo de Lima apresenta o Ano Sacerdotal, seus
objetivos e programas; Esmeraldo Barreto de Farias reflete sobre O ministério presbiteral, dom de Deus a serviço da edificação do seu povo,
José Besen apresenta O Cura de Ars, modelo para a vida dos presbíteros
do nosso tempo; Ney Brasil Pereira reflete sobre o conteúdo bíblico do
Povo Sacerdotal; Osmar Debatin trata da Espiritualidade do Presbítero;
Paulo Dal’ Bo aborda o tema da Formação no Seminário; Manoel João
Francisco escreve sobre os ministérios, especialmente o de presbítero e o
de bispo, em Santo Agostinho; José Besen apresenta Perfis de presbíteros missionários em Santa Catarina; Luis Stadelmann discorre sobre O
sacerdócio do reino messiânico, Sl 110; Reginaldo Pereira escreve sobre
Igreja Povo de Deus – O sacerdócio comum dos fiéis. Há, ainda o Hino
do Ano Sacerdotal, texto e comentário Crônicas e Recensões.
O Diretor
8
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Resumo: O Ano Sacerdotal tem como objetivo fortalecer humana, espiritual e
pastoralmente a pessoa do presbítero e o exercício do seu ministério, de modo
que melhor possam servir a Igreja. São João Maria Vianey é um particular
exemplo de “fidelidade a Cristo, fidelidade do sacerdote”, exemplo de identificação com o próprio ministério. Nesse sentido, os presbíteros são convidados a
aprofundarem sua própria identidade, vinculada ao serviço à Igreja, à concepção
ontológica que os relaciona com a eucaristia que celebram, à evangelização
contextualizada do povo de Deus. É fundamental para isso o desenvolvimento
de uma espiritualidade sacerdotal que sustente a caridade pastoral, de modo
que a santificação do presbítero contribua para a santificação das comunidades
que ele acompanha.
Abstract: The year dedicated to the priesthood intends to strengthen spiritually
and foster the Pastoral service of the priest and his ministry so as to improve
the service rendered to the Church. Saint John Mary Vianey is singled out as
an example of “fidelity to Christ” and thus he is outstanding in the practice of the
virtue of fidelity by embracing his ministry. In this sense every priest is invited
to deepen his identity linked to the service of the Church and attached to the
ontological principle related to the Eucharist he celebrates and the evangelization
centered in the People of God. Therefore, fundamental to the priesthood is the
growth in priestly spirituality which sustains the virtue of charity in pastoral service
so that the sanctification of the presbyter will contribute to the sanctification of
the communities of faith entrusted to him.
Ano Sacerdotal
Junho de 2009 a junho de 2010
Reginaldo de Lima*
* O Autor é Sacerdote e Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para os Ministérios
Ordenados e a Vida Consagrada – CNBB.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 09-20.
Ano Sacerdotal
“O Sacerdócio é o amor do coração de Jesus”
(São João Maria Vianney)
O objetivo deste Ano Sacerdotal, como
escreveu o Papa Bento, na carta enviada aos
sacerdotes por ocasião da abertura do Ano Sacerdotal1, consiste em favorecer o fortalecimento de cada presbítero até a perfeição espiritual
da qual depende, sobretudo a eficácia de seu
ministério, ajudar os sacerdotes e, com eles,
todo o Povo de Deus, a redescobrir e revigorar
a consciência do extraordinário e indispensável
dom da Graça que o ministério ordinário representa para quem o recebeu, para toda Igreja e para o mundo, que sem a
presença real de Cristo, estaria perdido.
O Papa quer na figura de São João Maria Vianney oferecer aos
sacerdotes do mundo inteiro o exemplo de “fidelidade a Cristo, fidelidade
do sacerdote”, de modo que cada qual possa encontrar na vida de Vianney elementos que os ajude a viver o próprio ministério. A Providência
divina fez que sua figura se aproximasse da de São Paulo. Enquanto de
fato se está concluindo o Ano Paulino, dedicado ao apóstolo das gentes,
modelo extraordinário de evangelizador que realizou diversas viagens
missionárias para difundir o Evangelho, este novo ano jubilar nos convida
a olhar um pobre agricultor convertido em humilde pároco, que realizou
seu serviço pastoral em um pequeno povoado. Se os dois santos se diferenciam muito pelos trajetos de vida que os caracterizaram – um viajou
de região em região para anunciar o Evangelho, o outro acolheu milhares
e milhares de fiéis permanecendo sempre em sua pequena paróquia –,
há no entanto algo fundamental que os une: sua total identificação com
seu próprio ministério, sua comunhão com Cristo que fazia Paulo dizer:
“Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,
20). Já São João Maria Vianney gostava de repetir: “Se tivéssemos fé,
veríamos Deus escondido no sacerdote como uma luz atrás do cristal,
como o vinho mesclado com a água”.2
10
1
Bento XVI, proclamação do ano sacerdotal por ocasião do 150º aniversário do Dies
Natalis do santo cura d’Ars (16.06.2009).
2
Cf. Bento XVI, Catequese na Audiência Geral de 24 de junho de 2009, Porque um
Ano Sacerdotal: L’Osservatore Romano, edição semanal em português.
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Ao propor São João Maria Vianney como modelo no ministério
sacerdotal, o Santo Padre não tem a intenção de reduzir as experiências
dos ministros sagrados a esse modelo, mas convidá-los a descobrir em
seu tempo e espaço como pode exercer o ministério na fidelidade a Cristo.
Indubitavelmente, mudaram as condições históricas e sociais nas quais
se encontrou o cura d’Ars e é justo se perguntar como os sacerdotes
podem imitá-lo em sua identificação com seu próprio ministério nas
atuais sociedades globalizadas. Num mundo em que a visão comum da
vida compreende cada vez menos o sagrado, em cujo lugar o “funcional”
converte-se na única categoria decisiva, a concepção católica do sacerdócio poderia correr o risco de perder sua consideração natural, inclusive
dentro da consciência eclesial. Não é casual que tanto nos ambientes
teológicos como também na prática pastoral concreta e de formação do
clero, contrastam-se, e inclusive se opõem, duas concepções diferentes
do sacerdócio.
A grande questão que se põe hoje é a identidade e o papel dos
sacerdotes. A sociedade contemporânea tem lançado aos sacerdotes
desafios que exigem deles uma resposta clara e objetiva em questões de
ordem moral e social. Por vezes o sacerdote no desejo de corresponder
aos desafios que se lhe apresenta assume posicionamentos que podem
dificultar o reconhecimento de sua missão. Por um lado existe uma
concepção social-funcional que define a essência do sacerdócio com
o conceito do ‘serviço’: o serviço à comunidade, na realização de um
função... Por outro lado, está a concepção sacramental-ontológica, que
naturalmente não nega o caráter de serviço do sacerdócio, mas que o vê
ligado ao ser do ministro e considera que este ser está determinado por
um dom concedido pelo Senhor através da mediação da Igreja, cujo nome
é sacramento. Também a mutação terminológica da palavra “sacerdócio”
para o sentido de “serviço, ministério, encargo” é sinal desta concepção
diferente. A concepção ontológica-sacramental está ligada ao primado
da Eucaristia, no binômio “sacerdócio-sacrifício”, enquanto que a outra
corresponderia ao primado da palavra e do serviço do anúncio.3
Bem observadas, não se trata de duas concepções contrapostas, e a
tensão que, contudo existe entre elas deve-se resolver a partir de dentro.
Assim, o decreto Presbyterorum ordinis do Concílio Vaticano II afirma:
“Com efeito, o Povo de Deus é convocado e reunido pela virtude da
3
Cf. J. Ratzinger, Ministério e vida do sacerdote, em Elementi di Teologia fondamentale. Saggio su fede e ministero, Brescia 2005, p.165.
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mensagem apostólica, de tal modo que todos quantos pertencem a este
Povo, uma vez santificados no Espírito Santo, se ofereçam como «hóstia
viva, santa e agradável a Deus» (Rom. 12, l). Mas é pelo ministério dos
presbíteros que o sacrifício espiritual dos fiéis se consuma em união com
o sacrifício de Cristo, mediador único, que é oferecido na Eucaristia
de modo incruento e sacramental pelas mãos deles, em nome de toda a
Igreja, até quando mesmo Senhor vier” (n. 2).
Obviamente a missão do sacerdote não é outra senão evangelizar.
Diante desta missão se faz necessário conhecer o que de fato é evangelizar e de que modo o anúncio se faz. O sacerdote não pode considerar
a evangelização como uma simples conservação da pastoral, visto que
o campo de atuação se alarga com as novas realidades e condições assumidas atualmente. Jesus fala do anúncio do Reino de Deus como do
verdadeiro objetivo de sua vinda ao mundo e seu anúncio não é apenas
um “discurso”. Inclui, ao mesmo tempo, seu próprio atuar: os sinais e
os milagres que Ele realiza indicam que o Reino vem ao mundo como
realidade presente, que coincide em último termo com sua própria pessoa. Neste sentido, é obrigatório recordar que, também no primado do
anúncio, palavra e sinal são inseparáveis. A pregação cristã não proclama
“palavras”, mas a Palavra, e o anúncio coincide com a própria pessoa
de Cristo, ontologicamente aberta à relação com o Pai e obediente a sua
vontade. Portanto, um autêntico serviço à Palavra requer por parte do
sacerdote que tenda a uma abnegação profunda de si mesmo, até dizer
com o apóstolo: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim”.
O presbítero não pode considerar-se “amo” da palavra, mas servo. Ele
não é a palavra, mas, como proclamava João Batista é “voz” da Palavra:
“Uma voz clama no deserto: Traçai o caminho do Senhor, aplanai as
suas veredas” (Marcos 1, 3). Agora, ser “voz” da Palavra não constitui
para o sacerdote um mero aspecto funcional. Ao contrário, pressupõe
um substancial “perder-se” em Cristo, participando em seu ministério de
morte e de ressurreição com todo o próprio eu: inteligência, liberdade,
vontade e oferecimento dos próprios corpos, como sacrifício vivo (Cf.
Romanos 12,1-2). Apenas a participação no sacrifício de Cristo, em seu
kenosis, faz autêntico o anúncio! E este é o caminho que deve percorrer
com Cristo para chegar a dizer ao Pai junto com Ele: “não se faça o que
eu quero, senão o que tu queres” (Marcos 14,36). O anúncio, portanto,
12
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comporta sempre também o sacrifício de si, condição para que o anúncio
seja autêntico e eficaz.4
Esta no imaginário dos fiéis leigos que o sacerdote é o Alter
Christus. O sacerdote está profundamente unido ao Verbo do Pai5, que
encarnando-se tomou a forma de servo, fez-se servo (Cf. Filipenses
2,5-11). O sacerdote é servo de Cristo, no sentido de que sua existência,
configurada ontologicamente com Cristo, assume um caráter essencialmente relacional: ele está em Cristo, para Cristo e com Cristo ao serviço
dos homens. Precisamente porque pertence a Cristo, o sacerdote está
radicalmente ao serviço dos homens: é ministro de sua salvação, de sua
felicidade, de sua autêntica libertação, amadurecendo, nesta assunção
progressiva da vontade de Cristo. Esta é a condição imprescindível de
todo anúncio, que leva à participação no oferecimento sacramental da
Eucaristia e a obediência dócil à Igreja. Ser sacerdote encerra em si dupla
compreensão. Para si ele é o servo que na medida em que está unido a
Cristo, mas perfeitamente realiza sua missão. Para o outro, sem diminuir
a sua relação com Cristo, é o outro Cristo, às vezes confundido como
tal, de acordo com o modelo sacral pré-conciliar, em que o sacerdote
era um “quase Deus”, distante e único mediador. Hoje temos a clareza,
que Cristo é o mediador e o sacerdote é o servo que aproxima os fiéis
do Mediador, Jesus Cristo.
Talvez, justamente, por essa visão sacral que ainda persiste em
nossos tempo os fiéis esperam que os sacerdotes sejam, verdadeiramente,
homens de Deus. É certo, que a expectativa a respeito dos sacerdotes
não está equivocada, mas não se pode atriuir somente a ele essa responsabilidade, uma vez que o é de todo batizado. O santo cura d’Ars repetia
frequentemente com lágrimas nos olhos: “Que medo de ser sacerdote!”.
E acrescentava: “Que infeliz é um sacerdote sem vida interior!”. O sacerdote que perde seu encanto pelo senhor deixa de ser sacerdote, não
ontologicamente, não ministerialmente. O encanto é que nos faz agir em
nome de. Quando temos um amigo, nos preocupamos com ele, queremos
4
Cf. Bento XVI, Catequese na Audiência Geral de 24 de junho de 2009, Porque um
Ano Sacerdotal: L’Osservatore Romano, edição semanal em português.
5
Pelo Sacramento da Ordem os Presbíteros se configuram com Cristo Sacerdote, na
qualidade de ministros da Cabeça, para construir e edificar todo o seu Corpo que
é a Igreja, como cooperadores da Ordem Episcopal. De fato, já na consagração do
batismo receberam, como todos os cristãos, o sinal e o dom de tamanha vocação e
graça que, mesmo na fraqueza humana, pudessem e devessem lutar pela perfeição
(Presbyterorum Odinis, n.12).
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Ano Sacerdotal
conhecê-lo sempre mais, entrar em sua vida e deixá-lo entrar em nossa
vida. O sacerdote deve ser o eterno amigo de Cristo, ser fiel a Cristo, assim
como Cristo é fiel. O encanto por ele nos permite viver fielmente.6
A configuração sacramental a Jesus Cristo7 impõe ao sacerdote um
novo motivo para alcançar a santidade, devido ao ministério que lhe foi
confiado, que é santo em si mesmo. Não significa que a santidade, a que
são chamados os sacerdotes, seja subjetivamente maior do que a santidade a que são chamados todos os fiéis cristãos em virtude do batismo.
A santidade é sempre a mesma, embora com diversas expressões, mas
o sacerdote deve tender a ela por um novo motivo8: para corresponder
àquela nova graça que o configurou para representar a pessoa de Cristo,
Cabeça e Pastor, como instrumento vivo na obra da salvação. No exercício
do seu ministério, portanto, aquele que é “sacerdos in aeternum” deve
esforçar-se por seguir em tudo o exemplo do Senhor, unindo-se a Ele “na
descoberta da vontade do Pai e no dom de si mesmos e na doação de si
mesmos ao rebanho”. Sobre esse alicerce de amor à vontade divina e de
14
6
Cf. Bento XVI, Catequese na Audiência Geral de 24 de junho de 2009, Ano
Sacerdotal.
7
Cristo Nosso Senhor, Pontífice escolhido de entre os homens (cfr. Hebr. 5, 1-5), fez
do novo povo um «reino sacerdotal para seu Deus e Pai» (Ap. 1,6; cfr. 5, 9-10). Na
verdade, os batizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas
as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores
daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (cfr. 1 Ped. 2, 4-10). Por isso,
todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cfr. At.,
2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas, agradáveis a Deus
(cfr. Roma 12,1), dêem. testemunho de Cristo em toda a parte e àqueles que lha
pedirem dêem razão da esperança da vida eterna que neles habita (cfr. 1 Ped. 3,15).
O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se
diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao
outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo (16).
Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo
sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo o papel de Cristo e oferece-o a
Deus em nome de todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da
Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real (17), que eles exercem na recepção dos
sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na
abnegação e na caridade operosa (Lumem Gentium, n.10).
8
Os sacerdotes, porém, se vêem obrigados por um título especial a atingir tal perfeição,
pelo fato que eles, consagrados a Deus de modo novo pela recepção da Ordem, se
transformam em instrumentos vivos de Cristo Eterno Sacerdote, a fim de poderem ao
longo dos tempos completar a obra admirável d’Ele, que reintegrou com a eficiência
do alto toda a sociedade dos homens. Como, pois cada sacerdote, a seu modo faz às
vezes da pessoa de próprio Cristo, é também enriquecido por uma graça peculiar, para
que, no serviço aos homens a ele confiados e de todo Povo de Deus (Presbyterorum
Ordinis, n.12).
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caridade pastoral se constrói a unidade de vida, ou seja, a unidade interior
entre vida espiritual e atividade ministerial. O crescimento desta unidade
de vida fundamenta-se na caridade pastoral, nutrida por uma sólida vida
de oração, de tal modo que o presbítero seja inseparavelmente testemunha
de caridade e mestre de vida interior.9 O sacerdócio ministerial, na medida em que configura ao ser e ao operar sacerdotais de Cristo, introduz
uma novidade na vida espiritual de quem recebeu este dom. É uma vida
espiritual conformada através da participação do senhorio de Cristo na
sua Igreja e que matura no serviço ministerial à Igreja: uma santidade
no ministério e pelo ministério. O aprofundamento da “consciência de
ser ministro” é, portanto, de grande importância para a vida espiritual
do sacerdote e para a eficácia do seu próprio ministério.10
A relação ministerial com Jesus Cristo “fundamenta e exige no
sacerdote um ulterior ligame que lhe é proporcionado pela “intenção”,
ou seja, pela vontade consciente e livre de fazer, mediante o gesto ministerial, aquilo que a Igreja entende fazer11. A expressão: “ter a intenção de
fazer o que faz a Igreja” ilumina a vida espiritual do ministro sagrado,
convidando-o a reconhecer a instrumentalidade pessoal ao serviço de
Cristo e da Igreja, e a atuá-la nas ações ministeriais concretas. A “intenção”, neste sentido, contém necessariamente uma relação com o agir
de Cristo Cabeça na e pela Igreja, adequação à sua vontade, fidelidade
às suas disposições, docilidade aos seus gestos: o agir ministerial é
instrumento do operar de Cristo e da Igreja, seu Corpo. Trata-se de uma
vontade pessoal permanente: Uma tal ligação tende, pela sua própria
natureza, a tornar-se o mais ampla e profunda possível, implicando a
mente, os sentimentos, a vida, ou seja, uma série de disposições morais
e espirituais correspondentes aos gestos ministeriais do padre.12
9
Cf. Congregação para o Clero, O presbítero, pastor e guia da comunidade
paroquial, n.10.
10
11
Idem, n. 12.
Como ministros da Palavra de Deus, lêem todos os dias e escutam a palavra de
Deus que aos outros tem de ensinar... Procurando o melhor modo de transmitir aos
demais, o que contemplaram, chegarão a saborear mais a fundo a “insondável riqueza
de Cristo” (Ef 3,8) e a sabedoria multiforme de Deus. Tendo diante dos olhos que é
o Senhor que abre os corações e que sua superioridade não provém deles próprios,
mas de Deus, no mesmo ato de transmitir o verbo se unirão mais intimamente com
Cristo Mestre e serão guiados pelo seu Espírito (Presbyterorum Ordinis, n.13).
12
Ibidem, n.13.
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Ano Sacerdotal
A espiritualidade sacerdotal13 exige que ele respire um clima de
proximidade ao Senhor Jesus, de amizade e de encontro pessoal, de missão
ministerial compartilhada, de amor e serviço à sua Pessoa na pessoa da
Igreja, seu Corpo, sua Esposa. Amar a Igreja e doar-se a ela no serviço
ministerial requer um amor profundo ao Senhor Jesus. “Esta caridade
pastoral proflui, antes de mais nada, do Sacrifício Eucarístico que, por isso,
se apresenta como centro e raiz de toda a vida do Presbítero, de sorte que
a alma sacerdotal se esforçará por interiorizar o que na ara sacrifical se
passa. Não se pode alcançá-lo porém, a não ser que os mesmos sacerdotes
pela oração penetrem sempre mais intimamente no mistério de Cristo”.14
Na penetração de tal ministério vem em nossa ajuda a Virgem Santíssima,
associada ao Redentor, pois “quando celebramos a Santa Missa, no meio
de nós encontra-se a Mãe do Filho de Deus, e introduz-nos no mistério
da sua Oferenda de Redenção. Desta forma, Ela torna-se mediadora das
graças que, para a Igreja e para todos os fiéis brotam desta mesma Oferenda”. Com efeito, “Maria esteve associada, de modo singular, ao sacrifício
sacerdotal de Cristo, compartilhando a Sua vontade de salvar o mundo
mediante a Cruz. Ela foi a primeira e mais perfeita partícipe espiritual da
Sua oblação de Sacerdos et Hostia. Como tal, pode obter e dar, àqueles
que no plano ministerial participam no sacerdócio do seu Filho, a graça
do impulso para responderem cada vez melhor às exigências da oblação
espiritual, que o sacerdócio comporta: de modo particular, a graça da fé,
da esperança e da perseverança nas provas, reconhecidas como estímulos
a uma participação mais generosa na oferta redentora”.15
A Eucaristia deve ocupar para o sacerdote “o lugar verdadeiramente central no seu ministério”, porque ela contém todo o bem espiritual
da Igreja e é fonte e ápice de toda a evangelização. Daí, a relevante importância da preparação à Santa Missa, da sua celebração quotidiana, da
ação de graças e da visita a Jesus Sacramentado ao longo do dia!16 “Se
quiserdes que os fiéis rezem de bom grado e com piedade dizia Pio XII
ao clero de Roma precedei-os na igreja com o exemplo, rezando diante
16
13
Esta fidelidade à oração é, aliás, para o padre um dever de piedade pessoal, da qual
a sabedoria da Igreja salientou muitos pontos importantes, como a oração mental
cotidiana, a visita ao Santíssimo Sacramento o terço e o exame de consciência (João
XXIII, Sacerdotii Nostri Primordia, n.27).
14
Concílio Vaticano II, Decreto Presbiterorum Ordinis, n.14.
15
Cf. Congregação para o Clero, O Presbítero, pastor e guia da comunidade
paroquial, n.13.
16
Idem.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Reginaldo de Lima
deles. Um sacerdote ajoelhado diante do tabernáculo, em atitude digna,
em recolhimento profundo, é um modelo de edificação, uma advertência
e um convite à emulação orante para o povo”.17 “... É bom demorar-se
com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predileto (cf. Jo
13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se atualmente
o cristianismo se deve caracterizar, sobretudo pela arte da oração, como
não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo
espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente
no Santíssimo Sacramento?”18
O aprofundamento espiritual, motivo de reflexão neste ano sacerdotal, implica também o redescobrimento do sacramento da Penitência
em seu significado profundo de encontro com Jesus. Ao proclamar o Ano
Sacerdotal, o Papa, deseja ainda retomar por meio da vida e do ministério do Cura d’Ars o zelo pelo sacramento da reconciliação19, para tal
ao longo deste Ano será oferecido um Diretório para os Confessores e
Diretores Espirituais. “No seu tempo, o Cura d’Ars soube transformar o
coração e a vida de muitas pessoas, porque conseguiu fazer-lhes sentir o
amor misericordioso do Senhor. Também hoje é urgente igual anúncio e
testemunho da verdade do Amor: Deus caritas est (1Jo 4, 8)”.20
Ao receber aos participantes no curso sobre o foro interno promovido pela Penitenciária Apostólica, Bento XVI, assinalou que esta
época, “por desgraça perde cada vez mais o sentido do pecado. Hoje é
necessário fazer experimentar a quem se confessa aquela ternura divina
com pecadores arrependidos que tantos episódios evangélicos mostram
com intensa emoção”. Se referindo à pecadora perdoada que narra o
Evangelho de São Lucas, sublinhou que “é eloqüente a mensagem deste
episódio evangélico: a quem muito ama, Deus perdoa tudo. Quem confia
em si mesmo e nos próprios méritos está como cegado pelo seu próprio
17
João XXIII, Sacerdotii Nostri Primordia, n. 30.
18
João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n.25.
19
Bento XVI ressalta que “os sacerdotes não deveriam resignar-se nunca a ver vazios
seus confessionários nem limitar-se a constatar a indiferença dos fiéis para este sacramento. Na França, em tempos do Santo Padre de Ars, a confissão não era nem mais
fácil nem mais freqüente que em nossos dias, pois o vendaval revolucionário tinha
arrasado desde muito tempo a prática religiosa. Mas ele tentou por todos os meios,
na prédica e com conselhos persuasivos, que seus paroquianos redescobrissem o
significado e a beleza da Penitência sacramental, mostrando-a como uma íntima
exigência da presença eucarística” (Carta por ocasião da Abertura do Ano Sacerdotal,
16.06.2009).
20
Bento XVI, Carta por ocasião da Abertura do Ano Sacerdotal (16.06.2009).
Encontros Teológicos nº 53
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Ano Sacerdotal
ego e seu coração se endurece no pecado. Entretanto, quem reconhece que
é débil e pecador confia em Deus e obtém d’Ele a graça e o perdão”.21
Depois de destacar que hoje existe “uma certa aversão” pelo
sacramento, o Papa assinalou que “quando se insiste somente na acusação dos pecados, que também se deve fazer e terá que ajudar aos fiéis a
compreender a importância, corre-se o perigo de relegar a um segundo
plano o que é fundamental, quer dizer, o encontro pessoal com Deus, Pai
de bondade e de misericórdia”. O Santo Padre afirmou que os pastores e
de modo especial os confessores devem esforçar por “ressaltar o laço estreito existente entre o sacramento da Reconciliação e uma vida orientada
totalmente à conversão”, de modo que “a graça do sacramento sustente
e alimente o compromisso de ser discípulos fiéis do Senhor. Perder este
desejo incessante corre-se o risco de que a celebração do sacramento se
converta em algo formal que não incide na vida cotidiana”.22
Para o papa, João Paulo II, redescobrir esse sacramento exige,
acima de tudo, o anúncio do amor do Pai, como fundamento da vida e da
ação do cristão, no contexto da sociedade atual, onde com freqüência se
ofusca a visão ética da existência humana. Muitos perderam a dimensão
do bem e do mal porque perderam o sentido de Deus, interpretando a
culpa unicamente segundo perspectivas psicológicas ou sociológicas.
Em segundo lugar, a pastoral deve dar um novo impulso a um itinerário
de crescimento na fé, que sublinhe o valor do espírito e da prática penitencial em toda a vida cristã.23
O convite à conversão constitui a conclusão vital do anúncio feito
pelos apóstolos depois de Pentecostes. Nele, o objeto do anúncio fica
totalmente explícito: já não é genericamente o “reino”, mas sim a obra
mesma de Jesus, integrada no plano divino predito pelos profetas. Ao
anúncio do que teve lugar com o Jesus Cristo morto, ressuscitado e vivo
na glória do Pai, segue-lhe o premente convite à “conversão”, a que está
ligada o perdão dos pecados. Tudo isto aparece claramente no discurso
que Pedro pronuncia no pórtico de Salomão: “Deus deu cumprimento
deste modo ao que tinha anunciado por boca de todos os profetas: que seu
18
21
Discurso do papa BENTO XVI aos participantes no curso sobre o foro interno organizado pela penitenciaria apostólica (07.03.2008).
22
Discurso do papa BENTO XVI aos participantes no curso sobre o foro interno organizado pela penitenciaria apostólica.
23
João Paulo II, catequese na audiência geral de 15 de setembro de 1999 sobre o
Sacramento da Reconciliação.
Encontros Teológicos nº 53
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Cristo padeceria. Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam apagados” (At 3,18-19). Este perdão dos pecados, no Antigo Testamento, foi prometido por Deus no contexto da “nova aliança”,
que Ele estabelecerá com seu povo (cf Jr 31,31-34). Deus escreverá a
lei no coração. Nesta perspectiva, a conversão é um requisito da aliança
definitiva com Deus e ao mesmo tempo uma atitude permanente daquele
que, acolhendo as palavras do anúncio evangélico, passa a formar parte
do reino de Deus em seu dinamismo histórico e escatológico.24
O sacramento da Reconciliação transmite e torna visível de maneira misteriosa estes valores fundamentais anunciados pela Palavra de
Deus. Reintegra o homem no contexto salvífico da aliança e os torna a
abrir à vida trinitária, que é diálogo de graça, circulação de amor, dom
e acolhida do Espírito Santo.
Outro grande desafio apontado pelo Santo Padre para este Ano
sacerdotal é a direção espiritual. Em tempos em que tudo é transitório a
experiência cristã carece de fincar raízes o que de fato só é possível por
meio de uma profunda comunhão com Deus na oração e no confronto
com o diretor espiritual. Se por um lado persiste a exigência da direção
espiritual, por outro se constata a escassez de sacerdotes que se sintam
preparados para essa arte do acompanhamento espiritual. Hoje mais que
nunca precisamos “de mestres de espírito sábios e santos: um importante serviço eclesial, para o que é necessária sem dúvida uma vitalidade
interior que deve implorar-se como dom do Espírito Santo mediante a
oração prolongada e intensa e uma preparação específica que se adquiri
com cuidado”.25
Conclusão
Um ano inteiro dedicado aos sacerdotes, à sua santificação, por
meio da oração de todo o povo de Deus, chamado a redescobrir a grandeza do dom recebido pelo Senhor e indispensável para a constituição
da Igreja. A ligação entre Eucaristia e Igreja e entre Eucaristia e Sacerdócio, fundam as ligações entre sacerdócio e Igreja: onde não existem
sacerdotes validamente ordenados, não existe a Igreja, mas simplesmente
comunidades eclesiais, que se alegram na medida em que conservam a
24
Idem.
25
Bento XVI, Discurso na Plenária da Congregação do Clero (16.03.2009).
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Ano Sacerdotal
memória do Senhor e esperam a vinda, mas que, de fato, não têm, nem
poderiam ter a presença sacramental, ou seja, real.
O Santo Padre, em sua caridade de Pastor universal, escreveu
ao clero do mundo inteiro uma belíssima carta, que deve ser objeto de
atenta meditação por parte de todos os sacerdotes. A Carta do Santo
Padre mostra a chave de santidade de Vianney, e de cada sacerdote,
no binômio “identidade-missão”. De fato cada sacerdote é chamado a
progredir na imitação de Cristo que garante a fidelidade e a fecundidade
do testemunho. A imitação de Cristo, que tem sua raiz na configuração
ontológico-sacramental, recebida no sacramento da Ordem, é também
um progressivo percurso da alma e da psique do sacerdote. Então a
identidade sacerdotal não é somente um dato objetivo, a ser reconhecido
sacramentalmente, mas se torna progressivamente, uma evidência, tanto
para o povo santo de Deus, que reconhece com sobrenatural intuição
tais sacerdotes, tanto pelo ministro próprio que afirma, na simplicidade
e fidelidade da própria existência: “Não sou eu quem vivo, mas é Cristo
que vive em mim” (Gal 2,20).
Endereço do Autor:
CNBB
Setor de Embaixadas Sul,
Qd. 801 – Conj. B
70401-900 Brasília, DF
20
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: São João Maria Vianney, o “Cura d´Ars”, destacou-se pelo testemunho
convincente do seu amor a Deus, ao ser humano, à Igreja. Tendo recebido sólida
formação cristã em sua família, soube aprofundar, viver e transmitir os valores
da fé cristã em seu tempo. Seus esforços na busca de santidade foram exemplares e superaram as carências na formação teológica intelectual, dando-lhe
profundas convicções na compreensão do que é ser cristão e ser Igreja. Com
ajuda dos escritos de Santo Afonso de Ligório, superou tendências jansenistas,
desenvolvendo a confiança no amor de Deus, vencendo os problemas de saúde
e tornando-se verdadeiro pastor e guia espiritual dos cristãos de seu tempo, do
presente e do futuro. Por ter desenvolvido de modo exemplar o seu ministério de
presbítero, o Papa Bento XVI o declarou patrono dos presbíteros, e lembrando
os 150 anos de sua morte a Igreja universal celebra agora o Ano Sacerdotal.
Abstract: Saint John Vianney, a parish priest in the town of Ars was renowned
for great skill in helping penitents and counseling people who devoutly accepted
his advice for growth in spiritual life, in the love of God and the Church. After a
solid Christian formation in his family he acquired a solid basis for a vivid sense
and witness to the values of the Christian faith in his time. His efforts in pursuit of
holiness were exemplary and overcame all deficiencies in intellectual formation
instilling in his heart unshakable convictions in his understanding of being a true
Christian and belonging to the Church. Inspired by the books of Saint Alphonsus
Liguori he overcame Jansenistic tendencies and developed a deep-seated trust
in God, facing courageously problems of poor health and becoming a true pastor
and spiritual guide of Christians in his time and age, in the present and the future. Since he turned out to be an exemplary role-model of the priestly ministry
Pope Benedict XVI proclaimed him as patron of the priests, commemorating
the 150th year after his death as the year dedicated to the Priesthood by the
Universal Church.
São João Vianney, o Vigário
do Bom Deus
José Artulino Besen*
*
O autor, membro do Instituto Histórico-Geográfico de Santa Catarina e da Academia
Catarinense de Letras, é professor de História da Igreja no ITESC e Pároco do Santíssimo Sacramento, em Itajaí.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 21-36.
São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
Recordar São João Vianney é recordar a comovente simplicidade
de um padre cujo único e glorioso título é “O Cura de Ars”, o vigário da
pequena aldeia francês Ars-en-Dombes. Servindo-se de um paradoxo
profundamente cristão, em uníssono com uma palavra de São Francisco,
ele dizia aos seus paroquianos: “Nós devemos nutrir um grande amor
por todos os homens, pelos bons e pelos maus. Quem tem o amor não
pode dizer que alguém faça o mal, porque o amor perdoa tudo”. Esse foi
seu segredo e é esse segredo que ele passa a quem é cristão: ser rigoroso
com o pecado, nunca com o pecador.
Uma família fiel à Igreja e ao Papa
João Maria Vianney nasceu em Dardilly, França, em 8 de maio
de 1786, filho do casal Mateus e de Maria Béluse, que deram aos filhos
uma formação cristã sólida e pródiga em obras de caridade.
Em sua infância e juventude, João Vianney viu a Igreja francesa
dividida entre padres e bispos constitucionais e padres e bispos refratários (os que se negaram ao juramento). A origem está na promulgação
da Constituição Civil do Clero, votada pela Assembléia Constituinte
em 1790. Por ela, padres e bispos passaram a estar ligados ao Estado,
dele sendo funcionário e deixando de depender diretamente à Santa Sé.
Decretos seguintes criam uma Igreja nacional, transformam-na em órgão
estatal e suprimem a Igreja propriamente dita. Padres e bispos passam
a ser eleitos democraticamente. As antigas dioceses são suprimidas e
criaram-se novas, equivalendo ao território dos Departamentos. Desse
modo, as 83 novas dioceses são ocupadas por eleição: é a Igreja Constitucional, sem vínculos com Roma. Muitos mártires, cujo sangue fará
renascer das cinzas essa Igreja tão provada no furor revolucionário.
Calcula-se que metade do clero jurou a Constituição.
O povo deparou-se com situação inusitada: em algumas paróquias,
o pároco constitucional era aceito por parte da população. Em outras,
foi rejeitado, e os fiéis ficaram sem atendimento religioso. Foi também
possível, em alguns lugares, a convivência dos dois tipos de padres: o
constitucional e o refratário. Em comunidades mais devotas, no interior,
o padre refratário atendia secretamente o povo que permanecia fiel à
Igreja.
O novo pároco de Dardilly tinha prestado juramento à Constituição Civil do Clero. Para os Vianney, segui-lo era rejeitar a autoridade
22
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
José Artulino Besen
do papa e ingressaram no círculo de um padre “refratário”. Aos 13 anos,
João Maria não pôde fazer a primeira comunhão na igreja, porque estava
fechada ao culto, mas em uma clareira onde o padre se havia escondido.
No dia da Crisma acrescentou o Batista a seu nome: João Batista Maria
Vianney.
Dois aspectos marcaram profundamente a vida de João Maria: a
educação cristã da família e o testemunho corajoso do padre refratário.
Pouco a pouco amadureceu nele a idéia de tornar-se padre. Escolha confirmada aos 20 anos de idade. Mas, não tinha um mínimo de instrução
e por isso não foi aceito no Seminário de Lyon, após um breve experiência. Não passou pelos exames. Mas foi acolhido na casa paroquial
de Écully, cujo pároco, Pe. Balley, pacientemente lhe deu a primeira
instrução. Foi um homem santo que percebeu a interioridade do jovem:
“É um jovem que reza. A graça de Deus fará o resto”. A mesma opinião
teve o Vigário Geral.
Muito se espalha a respeito da “burrice” de João Vianney. Ele
mesmo deu asas a essa idéia. Na verdade, João Vianney não tinha estudado. Como poderia estar preparado para o latim e a gramática? Contudo,
quando as coisas lhe eram explicadas com vagar e paciência, aprendia
bem. A vida posterior revelou-o um homem justo, coerente, sábio, bom
administrador, e santo.
Ordenado presbítero em 13 de agosto de 1815, com 29 anos,
foi nomeado coadjutor do Pe. Balley, com este competindo na vida de
oração, penitência, abnegação e jejum. Foram dois anos preciosos para
complementar sua formação cultural, e com a graça de ser jovem sacerdote junto a um velho e sábio sacerdote, morto em 1817. Nesses anos
não tinha a faculdade de ouvir confissões, pois o julgavam incapaz de
dirigir consciências.
Do rigorismo jansenista ao Deus misericordioso
A vida extremamente rígida do Padre Balley e que passou ao seminarista e padre Vianney, revela traços do Jansenismo, doutrina formulada
no século XVII-XVIII e que teve grande influência na França, em reação
a uma moral laxista, facilitadora do relaxamento cristão. A doutrina
jansenista ensina que o homem está corrompido pela concupiscência
e, por isso, destinado a fazer o mal. Sem a graça divina nada resta ao
homem do que pecar. O livre arbítrio fica sujeito à ação da graça, dada
Encontros Teológicos nº 53
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
por Deus em Cristo, e que faz os homens por ele predestinados serem
justificados pela fé e pelas obras. Diante de Deus o homem nada pode,
por sua indignidade: ele é o juiz absoluto de nosso destino e assim, nossa
atitude diante dele não é o amor, mas o temor. Conseqüência disso é a
vida moral austera e rigorosa e que era alimentada em Vianney pelas
leituras dos livros que herdara do Pe. Balley..
Essa influência nos faz compreender a vida de extrema penitência
do Pe. João Vianney: nosso pecado é tão grande que nenhuma penitência
é suficiente.
Mas, há no Cura d’Ars uma evolução na compreensão moral,
fruto de seu encontro com a moral de Santo Afonso de Ligório e com os
padres redentoristas. Santo Afonso fala do amor “louco” e apaixonado
de Deus por nós, revelado em Jesus. Substitui, portanto a figura carrancuda de Deus por outra infinitamente amorosa. E propõe a moral como
uma instância de misericórdia e salvação; um lugar de aprendizado do
amor; e não um conjunto de mandamentos feitos para proibir, incriminar
e condenar. Mas, Santo Afonso se defrontou também com as fraquezas
humanas, os pecados e fracassos. Junto com o arrependimento e propósito de mudança, ele propôs algo bem ao alcance de todos: a oração
confiante. Dizia, com simplicidade: “Quem reza se salva, quem não reza
se condena”. E completou este quadro de confiança com a recomendação de se buscar na Mãe de Deus e nossa Mãe a acolhida carinhosa e
intercessora. Ficam assim evidentes as características de misericórdia,
bondade e salvação da moral alfonsiana.
Deve ser lembrado que o Pe. Vianney, mesmo no tempo do rigor
da influência jansenista tinha a convicção do amor de Deus pelos pecadores, do valor da oração, especialmente da Eucaristia. Deus, para ele,
é sempre “o Bom Deus”. Tinha claro que os homens não seriam capazes
de grandes penitências, donde julgar que sua missão era fazer penitência
em lugar dos homens.
Pe. João Vianney, cura d’Ars
Em 1818 foi nomeado cura (pároco em 1821) da pequena Ars-enDombes, com pouco mais de 250 moradores. Era, na verdade, capelão
de uma capela de aldeia! Foram necessários 10 anos para que o povo
aprendesse o caminho da igreja paroquial. O trabalho pastoral consistia
em atacar os vícios abominados por todos os pregadores da época como
24
Encontros Teológicos nº 53
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frutos do secularismo: os bailes, os botecos, o trabalho nos dias santos.
Combatia os que dançavam e os que assistiam aos bailes. Na igreja paroquial, no frontispício do altar de São João Batista, escreveu: “vítima
de uma dança” (recordando Herodíades que, após uma dança, pedira a
Herodes a cabeça do Precursor num prato). O fenômeno era grave sobretudo entre os homens em seguida à Revolução francesa.
Inicialmente visitou todos os paroquianos, e depois continuava a
visitá-los, casa a casa, para conduzi-los à prática religiosa, sobretudo à
participação freqüente aos Sacramentos.
Pe. Vianney seguia dois caminhos: o primeiro, condenar sem
piedade os vícios do povoado; o segundo, cultivar sua vinha com carinho, reunindo pequenos grupos para viverem a vida cristã na oração e
na liturgia. Com isso, lançando os fundamentos da vida cristã em suas
ovelhas, conseguiu a conversão de grande parte delas. O fervor dos
pequenos grupos espalhou-se como mancha de óleo.
A Eucaristia, a catequese e a confissão formam o núcleo de todo
seu trabalho e da vida cristã. Gosta de ter a igreja arrumada, paramentos
e toalhas limpos e bem passados. Nada é bastante para agradar a Deus.
Diferente de tantos padres de seu tempo, Pe. Vianney dá uma enorme
importância à instrução dominical, à homilia. Numa linguagem moderna, diríamos que o Cura d’Ars iguala a Liturgia da Palavra à Liturgia
Eucarística: “Nosso Senhor, que é a própria Verdade, não dá menos
importância à sua palavra do que ao seu corpo. Não sei se é mais prejudicial ter distrações durante a Missa do que durante as instruções, eu não
vejo diferença. Durante a Missa, deixamos perder os méritos da Morte
e Paixão de Nosso Senhor, e durante as instruções deixamos perder sua
palavra que é ele mesmo”.
Era muito claro seu objetivo: dedicar a vida inteiramente para
salvar cada homem e cada mulher. Mesmo que suas palavras não fossem
tão profundas e ricas de conteúdo, ele conseguia transmitir a fé com sua
coerência, pois vivia materialmente o que pregava.
O povo aprendeu atraído por aquele padre pobre entre os pobres,
capaz de tirar não só o manto, mas também toda a vestimenta, para dar
aos pobres. Muitas vezes voltou para casa descalço.
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
Pouca saúde, muita disposição
Pe. João foi um homem marcado pelas doenças: agripnia, distúrbios pulmonares, pleuropulmonite na base do pulmão direito, nevralgias
faciais, dor de dente, enterocolite, hérnias, reumatismos, etc. Tudo isso
lhe dava forças para trabalhar, amar e expiar os pecados do mundo.
Recompensava seu corpo com uma refeição diária com batatas cozidas
dias antes, três horas de sono deitado numa cama sem colchão, mortificações corporais. Possuía uma receita para as dificuldades, calúnias,
críticas, dores, humilhações: mergulhava na oração diante do Sacrário
nos momentos de quase desespero em que se sentia condenado ao inferno. Via-se como um pecador sem solução, pois seu ministério era de
responsabilidade além de seus limites: Deus lhe confiava tanta gente, e
o que seria dele se algum fosse condenado ao inferno? Chegou a pedir a
Deus que derramasse uma luz menos forte sobre sua alma, ante o medo
de seus pensamentos de desespero: “Não tenho outro recurso contra essa
tentação de desespero que me jogar aos pés do Tabernáculo como um
cãozinho aos pés do seu dono”.
A consciência do amor de Deus por nós, e por ele, o faz sempre mais
viver na confiança na misericórdia e libertar-se da tentação do desespero
que o acompanhou quase até os últimos anos. Podemos dizer que os anos de
1853 a 1859 foram marcados por maior paz interior, sentindo a felicidade de
amar a Deus. Mesmo assim, na consciência de sua nulidade, de seus lábios
brotavam as mais belas palavras sobre o amor divino: “O amor vale mais
do que o temor. Há os que amam o bom Deus, mas cheios de temor. Não
é assim que se deve proceder. Deus é bom. Ele conhece nossas misérias:
é preciso que nós o amemos, é preciso que nós queiramos fazer tudo para
agradá-lo”. Ou essa bela oração composta pela fundadora da Sociedade
das Filhas de Maria, Adelaide de Circey, que ele copiou: “Meu Deus, se
minha língua não pode dizer a todo o momento que vos amo, quero que
meu coração vô-lo repita tantas vezes quantas respiro. Meu Deus, dai-me
a graça de sofrer amando-vos e de vos amar sofrendo. Eu vos amo, ó meu
divino Salvador, porque fostes crucificado por mim. Dai-me a graça de
morrer amando-vos e sentindo que eu vos amo”.
O Confessionário, sua sala de acolhimento
Seu grande ministério foi o das Confissões, geralmente 16 horas
diárias, interrompidas às 11 horas para uma pequena catequese ao povo.
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José Artulino Besen
Missas às 6h, aos domingos uma às seis e a Missa solene, que ele gostava
de cantar, às 10 horas. Tinha o dom de ler as consciências, curava as
almas, e também os corpos. Era misericordioso nas penitências dadas
aos pecadores: uma breve oração, pois, dizia “Eu imponho apenas uma
pequena penitência àqueles que confessam devidamente seus pecados;
o resto eu faço em lugar deles”. Vivia uma visão bíblica e singela da
misericórdia divina: “Deus é mais rápido em perdoar, do que uma mãe
em arrancar seu filho do fogo”.
Expulsava os demônios, mas suportava o feio diabo que o atormentava de todos os modos durante as poucas horas que dedicava ao
sono. Dava-lhe o nome de Grappin (Gancho, intraduzível). O demônio
tinha prazer em perturbar seu breve repouso. Fazia tanta arruaça que
os vizinhos, sem saber quem era, diziam que “nosso vigário é muito
barulhento!”. Depois compreenderam o que acontecia. Quando o diabo
pôs fogo em seu leito, comentou: “Não podendo queimar o passarinho,
botou fogo na gaiola...”.
O Confessionário foi sua Sala de Acolhida: ali aproximou de Deus
muitas almas que se tinham afastado da vida cristã, possibilitou a outros
dar grandes passos na fé. Foi muito importante seu dom de discernimento
e de penetração dos corações.
Conselheiro e diretor de consciências
Grandes Fundadores1 de novas Ordens religiosas nascentes confrontaram suas intuições com o humilde pastor. Significativa a visita do
Pe. Henri Dominique Lacordaire, restaurador da Ordem dos Dominicanos, em 1845. Era Lacordaire o mais ilustre orador sacro francês. Escuta
com prazer a humilde homilia do Pe. Vianney e depois comenta: “Ele
me fez compreender o Espírito Santo”. Chegou a Ars como peregrino.
No final da visita ele se ajoelhou e pediu que Pe. Vianney o abençoasse.
Em seguida, Pe. Vianney se ajoelha e pede que Pe. Lacordaire o abençoe.
Uma belíssima cena que nos faz recordar, na longínqua Idade Média, o
encontro de São Francisco o pobre com São Domingos o doutor. Com
bom humor depois comentou Pe. Vianney: “Os extremos se tocam: a
extrema ciência com a extrema ignorância”.
1
Cf. JOULIN, MARC, OP: A vida do Cura d’Ars. São Paulo: Edições Loyola, 1989.
Tradução de Luís Darós, p. 140-144.
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
Ajudou o Pe. Collin, fundador da Sociedade de Maria em Lyon. Em
1841 recebeu o Pe. Muard, fundador dos Padres de Santo Edme, em Pontigny.
Anos depois, Pe. Muard retorna e lhe confidencia o desejo de reunir alguns
discípulos sob a regra de São Bento. Pe. Vianney o encoraja e lhe diz que
nada temesse, pois a inspiração era obra de Deus. E Pe. Muard se retira para
Pierre-qui-vire e ali organiza importante abadia beneditina, origem de outros
mosteiros. Em 1857 é a vez do Pe., Júlio Chevalier, fundador dos Missionários do Sagrado Coração de Jesus de Issoudun que se retira reanimado,
tornando sua Congregação importante instituto missionário.
Uma lista dos homens ilustres que necessitam das palavras do
humilde Cura de Ars: o Cardeal de Bonald, arcebispo de Lyon, Dom
Dupanloup, bispo de Orléans, uma das grandes figuras da França, Dom
Allou, bispo de Meaux, que passa oito dias em Ars, escondido, não
querendo perder nenhuma catequese do Pe. Vianney, o Pe. Chevrier,
fundador do Prado em Lyon, beatificado em 1986.
Recebia os padres ou bispos com o maior respeito e lhes dedica
todo o tempo que consegue. Manifestava diante do povo sua fé na grandeza do sacerdócio e sua estima pelos padres: “Depois de Deus, o padre
é tudo. Vocês não podem se lembrar de um só benefício de Deus. Sem
encontrar, ao lado dessa recordação, a imagem do padre”. Jamais recusa
atendê-los em confissão. Dizia ao povo: “Se eu encontrar um anjo e um
padre, primeiro cumprimento o padre, e depois o anjo, pois nenhum anjo
pode celebrar a missa”.
Em seu trabalho de discernimento em 1850 recebeu o vidente de La
Salette, Maximino e depois concluiu: “Ele não viu Nossa Senhora”. Isso lhe
trouxe muito aborrecimento e a repreensão dos bispos da região, que acreditavam piamente nos fatos acontecidos em La Salette. Pe. João Maria rezava para
estar enganado, pois, afirmou, “se os bispos acreditam, por que eu não?”.
Suportou calúnias e difamações de alguns paroquianos e depois,
com as multidões vindo ao seu encontro, dos sacerdotes das paróquias
vizinhas. Era o mais baixo sentimento da inveja clerical. O Cura até
gostava disso, pois achava que o bispo, sabendo quem ele era e dando
ouvido às más línguas, o deixaria ir para um mosteiro.
Os dois padres coadjutores
Em 1843, após grave doença, recebeu um coadjutor na pessoa do
Pe. Antônio Raymond. Ele liberou-o de muitos trabalhos, mas também
28
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José Artulino Besen
trouxe-lhe aborrecimentos. Era de um caráter forte, invasivo e não livre
da inveja. Pe. João tinha pena do povo que não era bem tratado. Mas,
seu relacionamento foi muito bom e Pe. Raymond nutria particular afeto
pelo pároco que sempre o defendia, pois não era muito estimado pelo
povo devido a seus modos grosseiros.
Em 1853 recebe um novo coadjutor: o Pe. José Toccanier. Corpulento, 50 anos de idade, sempre sorridente e jovial, cria rapidamente na
paróquia um clima diferente do criado pelo assustador Pe. Raymond. O
povo logo reconhecem sua caridade para com todos, seu devotamento
ao Pe. Vianney.
Pe. Toccanier organiza o atendimento paroquial e chama missionários – uns 10 – para apoiá-lo no acolhimento aos peregrinos.
Em 1857, com a mudança de bispo, Pe. Vianney julga que é
chegado o momento de se retirar para um mosteiro. Comenta com ar de
satisfação: “Sua Excia, vai chegar; eu lhe pedirei que me permita retirarme para chorar minha pobre vida”. Mas o bispo Langalerie lhe diz que
sua presença em Ars é a vontade de Deus e que, para onde quer que ele
vá, a multidão o seguirá infalivelmente”. Obedece, mas depois, em sua
humildade escreve uma carta ao bispo: “Excelência, estou ficando cada
vez mais velho e doente. Sofro de tonturas no confessionário, que duram dois ou três minutos. Penso que V. Excia. julgará bom que eu passe
algum tempo na casa de meus pais. Em vista de minha enfermidade e
de minha idade, quero dizer adeus a Ars para sempre. Assina: Vianney,
pobre e infeliz padre”.
Em vão. A vontade de Deus era que trabalhasse na salvação dos
peregrinos e penitentes de Ars, a pequena aldeia agora famosa em toda
a França.
Salvar as almas, salvar os corpos
Pe. João Maria ouvia uma média anual de 80 mil confissões. As
multidões que de toda a França e de outras nações européias acorriam a
Ars escandalizavam a intelectualidade francesa, ciosa de seu racionalismo
e de seu desprezo pela Igreja católica. Chegaram a dizer que o humilde
“Pe. João Vianney perturbou o século XIX”.
Era tal a multidão que acorria a Ars que o Governo francês, anticristão, teve de se conformar e construir uma ferrovia ligando Lyon a
Encontros Teológicos nº 53
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
Ars. Como era imensa a fila de penitentes, as agências de viagem de
Lyon, aproveitando o filão que se apresentava para terem lucro, vendiam
a passagem de ida com possibilidade de volta em oito dias, tempo esse
esperado por muitos para serem atendidos.
O bispo nomeou-o “Cônego Honorário”: Vianney vendeu a murça (parte superior do traje dos cônegos e monsenhores) por 50 francos,
para uma obra de caridade. Rejeitou as distinções, pois dizia ser muito
ridículo apresentar-se diante de Deus com essas bugigangas e dele ouvir: “Já foi recompensado!”. Com veemência rejeitou a condecoração
de Cavaleiro da Ordem Imperial da Legião de Honra oferecida pelo
governo francês.
Para atender as jovens carentes instituiu a Casa da Providência e,
em seguida, outra, para os jovens, depois confiadas às Irmãs e Irmãos
Filhos de São José. Em alguns períodos eram 60 as internas e Vianney
realizou verdadeiros milagres de multiplicação dos pães para alimentálas. Tinha consciência da importância da instrução, ele que dela fora privado. Criou instituições para os famintos, pobres e sofredores. Construiu
nova igreja paroquial. Estimulou as missões paroquiais e diocesanas. Ars
tornou-se centro de irradiação missionária.
Achava-se tão indigno de ser vigário que por duas vezes tentou
fugir de Ars (1843 e 1853), pois desejava ingressar num mosteiro: o povo
conseguiu alcançá-lo e trazer de volta...
Sua vida de pároco foi no dia a dia de um ministério perseverante
e na constante fidelidade ao seu “bom Deus”.
As graças místicas e os incômodos do diabo:
era Vianney paranormal?
Profundamente místico, quem o conheceu profundamente atestou
que jamais procurou graças místicas. Não era influenciável, imaginativo
e possuía um juízo muito sólido. Tudo isso apareceu com evidência nos
depoimentos colhidos, para o processo de beatificação e canonização
e se referem a acontecimentos ocorridos sem interrupção entre 1824 e
1855. São testemunhas oculares que falam sob juramento, e coincidindo
entre si.
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Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
José Artulino Besen
Ele lia as almas como se fossem um livro aberto e anunciava
acontecimentos que não poderia conhecer naturalmente2. Conhecia antecipadamente aquilo que perturbava a consciência das pessoas, corrigia
penitentes que “enfeitavam” pecados. Alguns espíritas quiseram nele ver
faculdades mediúnicas, mas isso é totalmente fora de propósito: suas
faculdades extraordinárias são condicionadas pela fé cristã e pela vida
sacramental. Ele não prediz o futuro, mas manifesta o projeto de Deus a
respeito de determinada pessoa. A única finalidade é a busca de Deus.
Ele não busca o maravilhoso, o causar impressão, foge de quem
o procura em busca de fatos miraculosos. Prova de sua humildade e
discernimento foram as duas vezes que quis fugir de Ars e ingressar num
convento. O bom senso sempre o guia.
Não teve uma sólida formação doutrinal, mas para ele a teologia
mística é uma carta viva, pois tudo, o visível e o invisível, estão nas
mãos de Deus. Sua vontade pessoal não conta, mas somente a vontade
de Deus de que a Igreja, para ele, é a única depositária.
Os prodígios que cercam sua pessoa, as curas realizadas, a leitura
das consciências são considerados carismas e sinais de sua santidade.
Ninguém o acusou de charlatanismo.
Estudiosos nele identificam semelhança fenomenológica entre
graças místicas (orientadas para a união com Deus) e faculdades parapsicológicas. Foram enumerados 187 casos e comunicação telepática
(leitura do pensamento) mas que sempre têm um objeto exclusivo: a
conversão dos pecadores e a fé em Cristo. Não era impressionável, como
diante do vidente de La Salette, Maximino, cujas visões eram aprovadas
por diversos bispos e arrastavam multidões: ele não acreditou no vidente.
Estava livre do desejo da fama, comprovando sua humildade e desapego
diante dos “grandes” que o procuravam.
O mesmo se pode dizer das 38 curas milagrosas obtidas pelo
Santo durante sua vida: não são pura eliminação de patologias, mas devem ser entendidas como um sinal espiritual enviado por Deus através
da oração.
Por fim, entre os fatos extraordinários vividos pelo Santo de Ars,
aparece a figura do diabo. Como tantos outros Santos, Pe. Vianney sofreu
2
Para o estudo dos abundantes fenômenos extraodinários de sua vida, seguimos o
recente e precioso: SBALCHIERO, PATRICK: Dizionario dei Miracoli. Bologna: Edizione
Dehoniane Bologna, 2008, Vol 2.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
as visitas noturnas do demônio, que ele apelidou de “Grappin”. Há uma
proximidade quase material entre os dois. Na história não existe registro
igual de invasão diabólica tão longa, tão variada e tão irrefutável: foram
25 anos.
São rumores: o diabo anuncia sua chegada batendo contra a porta.
São rumores em forma de barulho de animais (lobo, urso, cão), rumores de
artesãos (serrote, martelo), rumores humanos (suspiros, choro sufocado,
gemidos, gritos, uivos). Diversas vezes Pe. Vianney o escutou gritando
debaixo da cama: “Vianney! Vianney! Papa batatas... te peguei”.
São deslocamentos de objetos: a pia de água benta arrancada da
parede e quebrada, crucifixos outros objetos de presbitério deslocados.
Alguns estudiosos viram ali a telecinese, o que não condiz com a realidade: acontecem à noite, sem a interferência do Santo e são objetos
sacros, parte de seu mundo espiritual. São fenômenos físicos: incêndio
da cama do Santo, constatado materialmente, línguas de fogo que aparecem na parede, sensação de ser violentado, sensação de frio intenso.
Fenômenos de aporte, como a lama que se deposita sobre um quadro
da Anunciação.
São João Vianney nunca deu importância a esses carismas excepcionais, considerava-se um penitente cuja oração e penitência agradavam unicamente a Deus e não um taumaturgo, um curandeiro. Sua
santidade não tem origem nesses fatos miraculosos, mas na confiança
que depositava em Deus. Sua espiritualidade era a rigorosa imitação de
Jesus de Nazaré. Lembremos o que dizia às pessoas que o procuravam:
“Eis a minha receita: eu lhes dou um a pequena penitência e o resto eu
faço em seu lugar”.
Essa mística da substituição é um dos traços característicos de
sua vida interior.
O encontro com o bom Deus
Calculam-se mais de 100 mil peregrinos em Ars no último ano da
vida do Pe. João Vianney, 1859. Historiadores calculam que um milhão
de pessoas adentraram seu confessionário. Era idoso, nos seus 73 anos.
Idade, penitências, excesso de trabalho, má alimentação o deixaram
muito enfraquecido para atender às multidões. Em 18 de julho de 1859,
prostrado no leito, sentiu chegado o final de sua peregrinação terrestre.
Pediu que trouxessem o vigário de Jassans para ministrar-lhe os últimos
32
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
José Artulino Besen
sacramentos. Mesmo assim, chamou diversos penitentes para que se
ajoelhassem junto ao leito e terminassem a confissão. Espalhando-se a
notícia, acorreram multidões e 20 padres acompanharam o Pe. Beau, seu
confessor, quando esse trouxe os últimos sacramentos. Pe. Vianney teve
força para responder às orações e em seguida chora. “Está cansado?”,
perguntam-lhe. “Oh, não! Choro de pensar quanto Nosso Senhor é bom
de vir nos visitar em nossos últimos momentos”. De seu leito, o Cura
d’Ars abençoa os que passam diante de sua casa, para rezar por ele. Benze
buquês repletos de terços, imagens, medalhas e pequenos crucifixos.
No dia 3 de agosto chegou o bispo de Belley3, apressado, querendo pela última vez contemplar o seu padre. Com muito esforço, Pe.
Vianney beija-lhe carinhosamente o crucifixo. É seu último beijo na
cruz de Nosso Senhor.
Pe. João Batista Maria Vianney faleceu às duas da madrugada do
dia 4 de agosto de 1859. A procissão diante de seu corpo não cessava.
No dia seis, suas exéquias contam com a presença de 300 padres e seis
mil pessoas.
O mestre-escola de Ars talvez tenha dado a melhor descrição da
vida e da pessoa do Santo: “A mais difícil, extraordinária e espantosa
obra feita pelo Cura d’Ars foi sua própria vida”. Sua vida de pároco foi
no dia a dia de um ministério perseverante e na constante fidelidade ao
seu “bom Deus”.
Beatificado em 1905 e canonizado em 1925 foi proclamado “Patrono dos Sacerdotes”.
Ars continua a ser um centro de peregrinações, recebendo c erca de
450 mil pessoas ao ano. O acolhimento pastoral é feito pelas Beneditinas
do Sagrado Coração de Montmartre.
Ano Sacerdotal
Bento XVI anunciou um Ano Sacerdotal lembrando os 150
anos da morte de São João Batista Maria Vianney; um ano de oração
pelos sacerdotes, por sua valorização da parte do povo, para cada sacerdote valorizar seu ministério ordenado. Iniciando em 19 de junho
3
Em 1823 a diocese de Belley foi restabelecida e Ars passou a pertencer-lhe, separandose de Lyon.
Encontros Teológicos nº 53
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São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
de 2009, festa do Sagrado Coração de Jesus, se prolonga até quatro
de agosto de 2010.
Quando do centenário da morte do Cura d’Ars, João XXIII, o
Papa bom, publicou a Carta encíclica Sacerdotii Nostri Primordia, os
primórdios de nosso sacerdócio, reavivando a mensagem de Vianney
para cada sacerdote.
Em breves tópicos, assim João XXIII delineia a mensagem perene
do Santo dos párocos e vigários:
1) sua “voluntária aflição do seu corpo”, que “o levou a abster-se
quase completamente de alimento e de sono, e a fazer as mais
duras formas de penitência, e a renunciar a si mesmo com
grande força de alma”. Vianney empenhou-se nessas mortificações como penitência em favor dos pecadores a quem ele
atendia: “Eu imponho apenas uma pequena penitência àqueles
que confessam devidamente seus pecados; o resto eu faço em
lugar deles”;
2) sua vida de pobreza, “uma vida que era completamente desapegada dos variáveis e perecíveis bens deste mundo.” A encíclica
ressalta que Vianney dizia: “Meu segredo é fácil...dar tudo, sem
reter coisa alguma para mim mesmo. Há muita gente guardando
seu dinheiro escondido enquanto tantos outros estão morrendo
de fome”;
3) sua vida de castidade: Vianney dizia: “Uma alma adornada
com a virtude da castidade não pode deixar de amar os outros,
pois ela descobriu a própria fonte do amor - Deus”;
4) sua vida de obediência: Ele vivia de tal modo que “se queimava
a si mesmo como um pedaço de palha consumido por carvões
em brasa”;
5) sua administração do sacramento da Penitência: Vianney
levava-o tão a sério que dizia: “Tantos crimes contra Deus
são cometidos, que às vezes somos inclinados a pedir a Deus
que acabe com este mundo!... Você deve vir à aldeia de Ars se quer realmente saber como é infinita a multidão dos pecados
que se cometem. Ah, não sabemos o que fazer! Pensamos que
não há nada mais a fazer senão chorar e clamar a Deus”;
6) o valor incalculável da Missa: “É, pois, uma obrigação para o
padre reproduzir na sua alma o que se passa no altar e, visto
34
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
José Artulino Besen
que Jesus se imola, assim também o seu ministro deve imolarse com ele; já que Jesus expia os pecados dos homens, o padre
alcançará a sua própria purificação e a dos outros, seguindo a
via árdua da ascese cristã. Era essa a experiência adquirida pelo
Cura d’Ars, que assim se exprimia: ‘A causa do relaxamento
do padre é não prestar atenção à missa’. E o santo, que tinha o
hábito de oferecer-se em sacrifício pelos pecadores, derramava
abundantes lágrimas ‘ao pensar na infelicidade dos padres que
não correspondem à santidade da sua vocação’”;
7) os inocentes imolados pelos pecadores: “Se não houvesse
almas muito inocentes para agradar a Deus e satisfazer por
nossos ofensas, quantos terríveis castigos deveríamos ter de
sofrer!”;
8) a misericórdia divina: “Deus é mais rápido em perdoar, do que
uma mãe em arrancar seu filho do fogo.” A encíclica também exalta, em Vianney, a vida de oração, a santidade, as habilidades pastorais, o exercício do ofício de ensinar etc.
Olhando o Pontificado de João XXIII (1958-1963) pode-se perceber como os dois santos eram almas gêmeas na bondade, na pobreza
e na simplicidade de vida. Ambos fizeram da imitação de Cristo a razão
de suas vidas. No mais alto de sua fama, de sua importância na vida da
Igreja, nunca deixaram de ser aquilo que era a sua vocação: ser padre,
apenas padre.
Bibliografia
BOUCHARD, FRANÇOISE. Le Saint Curé d’Ars: viscéralement prêtre (préface de Mgr Jean-Pierre Ricard; postface du père Jean-Philippe
Nault). Paris: éditions Salvator, 2005. 318 p., 21 cm.
JOULIN, MARC, OP. A vida do Cura d’Ars. A audácia de amar a Deus!
São Paulo: Edições Loyola, 1989. Tradução de Luiz Darós.
LEONARDI, C.; RICCIARI, A.; ZARRI, G. Il grande libro dei Santi.
Cisinello Balsamo: Edizioni San Paolo, 1998. Vol. 2
MONNIN, ABBÉ ALFRED. Le Curé d’Ars. 1922: Editions Tequi. Do
grupo dos missionários de Ars, Pe Monnin ali chegou com apenas 24
anos. Procurou anotar os fatos da vida de João Vianney e publicou sua
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
35
São João Vianney, o Vigário do Bom Deus
primeira biografia. Um pouco refletindo sua admiração pelo Santo, é
consistente nas informações.
SBALCHIERO, Patrick. Dizionario dei Miracoli. Bologna: Edizione
Dehoniane Bologna, 2008, Vol. 2.
TROCHU, Francis. O Santo Cura d’Ars. Petrópolis: Editora Vozes Ltda.,
1960, 2. ed. Obra clássica, fundamentada nos anais dos processos de
beatificação e canonização, teve a primeira publicação em português
no ano de 1939, em Porto Alegre, com tradução de dois seminaristas
maiores de São Leopoldo. Leitura anual nos seminários, forjou muitas
vocações no espírito de São João Maria Vianney.
Endereço do Autor:
Paróquia do Santíssimo Sacramento,
praça Irineu Bornhausen s/n, Centro,
CEP 88303-026 Itajaí, SC
E-mail: [email protected]
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Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: Após uma introdução, em que situa o tema, no contexto do “Ano
Sacerdotal”, o autor examina a incidência do conceito de “povo sacerdotal”
no Antigo e no Novo Testamento, o que constitui o núcleo do artigo, em duas
partes. Na conclusão, apresenta o sacerdócio ministerial, dos presbíteros, a
serviço do “povo sacerdotal”.
Abstract: The article begins with the presentation of the Year dedicated to the
priesthood, and widens its focus paying tribute to the idea of the “priestly people”
both of the Old and New Testament. With this perspective in mind the nucleus
of the article is set forth in two parts. In the conclusion several issues come to
the fore, such as the ministerial priesthood and the presbyters at the service of
the “priestly people.
Povo Sacerdotal
Ney Brasil Pereira*
*
O autor é Mestre em Ciências Bíblicas e Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 37-47.
Povo Sacerdotal
Introdução
Um amigo, irmão no presbitério, tem qualificado de “obsessão”
minha o meu inconformismo com a restrição do termo “sacerdote”,
nos documentos romanos pós-conciliares progressivamente empregado
somente para os presbíteros, desconhecendo que, antes de “sacerdotes”
pelo sacramento da Ordem1, somos “sacerdotes” pelo sacramento do
Batismo2. Pelo menos, esta é a terminologia do Novo Testamento, em
cujo texto jamais são chamados de “sacerdotes” os apóstolos ou os discípulos dos apóstolos. O próprio Senhor Jesus, a quem a carta aos hebreus,
como é sabido, apresenta como “sacerdote”, aliás, nosso “único Sumo
Sacerdote” (Hb 8,1), na longa argumentação que é central nesse escrito
dêutero-paulino, jamais atribuiu a si mesmo esse título. Aliás, sociologicamente falando, nem poderia fazê-lo, porque ele, segundo Mt 1 e Lc
1, era da descendência de Davi, da tribo de Judá, enquanto os sacerdotes
todos eram da tribo de Levi (cf. também Hb 8,4).
Sei que o tema é candente, e foi longamente debatido no Concílio Vaticano II, em cujos documentos, embora com várias concessões,
prevaleceu o termo de “presbítero”. Tanto assim, que o decreto sobre a
vida e o ministério “sacerdotal” tem como título inequívoco: Presbyterorum Ordinis (a “Ordem dos Presbíteros”), enquanto o decreto sobre a
formação dos presbíteros, Optatam Totius, usa o adjetivo “sacerdotal”
para referir-se a essa mesma formação.
Um sinal expressivo dessa tendência em restringir o termo “sacerdote” para o ministro ordenado está no próprio adjetivo escolhido por
Bento XVI para denominar este “Ano” especial, instituído para celebrar o
38
1
Que significa este substantivo “Ordem”, na expressão “sacramento da Ordem”? No
juramento do Sl 110,4 encontra-se a expressão “segundo a ordem de Melquisedec”
Que “ordem” é essa? No Brasil, temos a “Ordem dos Advogados”, OAB. Nesse caso,
a “classe”, o grupo, dos Advogados. Na sociedade romana havia os vários tipos de
“ordem”: a ordem dos senadores, a ordem dos cavaleiros etc. Assim, na hierarquia,
a “ordem dos bispos”, a “ordem dos presbíteros”, a “ordem dos diáconos”... A “ordenação” episcopal, portanto, que é o primeiro grau do sacramento da Ordem, é a
investidura do eleito na “Ordem dos Bispos”. De modo semelhante, a “ordenação”
presbiteral e a diaconal. Voltando ao Sl 110,4, a “ordem de Melquisedec” é o tipo de
sacerdócio que o autor da carta aos hebreus contrapõe à “ordem” dos sacerdotes
do Templo, sacerdotes “segundo a ordem de Aarão”. Não seria preciso lembrar que
temos, na Igreja, outros tipos de “ordem”, evidentemente com outro sentido: a “ordem”
dos Franciscanos, a “ordem” dos Jesuítas etc.
2
Ver o interessante verbete “Sacerdócio dos fiéis” in VV.AA., “Dicionário Patrístico e de
antiguidades cristãs”, Rio de Janeiro, 2002, Ed. Vozes e Ed. Paulus, trad. do original
italiano de 1983.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Ney Brasil Pereira
sesquicentenário do falecimento, do “dies natalis”, do santo pároco de Ars,
São João Maria Vianney.. Segundo Pe. Antônio Damásio, em breve artigo
no Jornal “Opinião”, o conhecido franciscano Frei Antônio Moser, em
matéria sobre o “Ano Sacerdotal” numa edição anterior do mesmo Jornal,
equivocara-se ao afirmar que “a convocação do Papa chama a atenção para
o sacerdócio batismal”. E explica Pe. Damásio: “Toda a programação que
envolve este ‘Ano’ em toda a Igreja centraliza-se na pessoa do presbítero
e foge a uma compreensão mais ampla do sacerdócio fundamentada pelo
Vaticano II”. As motivações para a celebração deste ‘Ano’ apresentadas
pela Santa Sé e pela CNBB são claras e segmentadas”3.
Continuo a citar Pe. Antônio Damásio: “O sacerdócio dos batizados
chama-se sacerdócio comum não porque seja um ministério de segunda
categoria. O uso pejorativo da palavra “comum” equivale a reles, sentido ainda usado, infelizmente, na prática, quanto aos ‘leigos’ e ‘leigas’,
embora todos4 os documentos da Igreja contradigam essa postura discriminatória. Esse assunto já estava superado! Será preciso lembrar que
o sacerdócio chama-se ‘comum’ porque é de todos? ‘Comum’ é aquilo
‘que pertence a dois ou a mais de dois, à maioria ou a todos os seres ou
coisas’. Viver o sacerdócio ‘comum’ é condição de pertença à Igreja. O
dia do Batismo é o dia mais importante na vida de todo cristão católico,
qualquer posição que ocupe na Igreja, inclusive o Papa.”5
Ainda Pe. Antônio Damásio: “A Lúmen Gentium articulou, de
forma sensata e equilibrada, o sacerdócio comum dos batizados, e o
sacerdócio ministerial. Segundo o Concílio, de fato, há uma diferença
essencial, e não apenas de grau, entre o sacerdócio comum e o ministerial.
Mas cada qual, a seu modo, participa do único sacerdócio de Cristo (cf.
LG 10). Há na assembléia papéis diferentes, entre os quais se destaca o
ministério da presidência, que não faz do padre alguém superior à assembléia, uma vez que nela se encontra inserido numa função de serviço..”
E conclui: “Enquanto povo de Deus sacerdotal, peguemos carona no
‘Ano Sacerdotal’ para reavaliar a qualidade dos ‘sacrifícios espirituais’
que temos oferecido a Deus Pai (cf. 1Pd 2,5) por meio de Cristo, Sumo
Sacerdote. Nessa linha de pensamento, ponderamos: o presente ‘Ano
Sacerdotal’ é, na verdade, a celebração de um ‘Ano Presbiteral’. A questão
das palavras é secundária. A mentalidade que ocultam é decisiva.”6
3
Antônio Damásio REGO FILHO, in “Jornal de Opinião”, BH, 10 a 16-8-2009, p. 11, na
coluna “Formação Litúrgica”, sob o título “O sacerdócio comum dos batizados”.
4
Não me parece, pelo visto, que “todos” os documentos contradigam essa postura.
5
Id., idib.
6
Id., Ibid.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
39
Povo Sacerdotal
Após essa longa Introdução, constituída quase totalmente de uma
citação, devidamente identificada, a qual me pareceu, porém, sintetizar
de modo adequado a temática, pretendo expor meu pensamento simplesmente apontando e comentando o que temos sobre o “Povo Sacerdotal”
no Antigo Testamento, seguindo-se o que nos traz o Novo Testamento,
para então chegarmos a uma conclusão.
1 Povo sacerdotal no Antigo Testamento
1.1 “Reino de sacerdotes, nação santa” (Ex 19,6)
Seguindo a ordem canônica, o primeiro texto que temos sobre o
assunto encontra-se no livro do Êxodo, na cena do anúncio da Aliança que
está para ser celebrada entre Deus e seu povo, no monte Sinai. Por ordem
do Senhor, Moisés propõe: “Assim deverás falar à casa de Jacó e anunciar
aos israelitas: Vistes o que fiz aos egípcios, e como vos levei sobre asas
de águia e vos trouxe a mim. Agora, se realmente ouvirdes minha voz e
guardardes a minha aliança, sereis para mim a porção escolhida entre
todos os povos. Na realidade, é minha toda a terra, mas vós sereis para
mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.” (Ex 19,5-6)7
Tão grande promessa tem como pano de fundo o evento fundador
do Êxodo, que foi apenas o começo de uma obra que deverá chegar à
plenitude, após o dom da Lei e depois também da prova do deserto,
com a entrada na terra prometida. É nesse pano de fundo que o Senhor
promete, condicionadamente, a seu povo, que eles serão “um reino de
sacerdotes”, tradução literal do hebr. mamleket kohanîm, expressão que
os LXX traduziram como basíleion hieráteuma, isto é “sacerdócio real”,
expressão por sua vez retomada no Novo Testamento pela primeira carta
de Pedro (1Pd 2,9)
Mas que quer dizer, afinal, essa expressão: “reino de sacerdotes”?
Simplesmente, um povo governado por sacerdotes, como foi o caso do
pós-exílio, inclusive na época dos hasmoneus, que eram reis e sacerdotes
simultâneamente? Ou algo bem mais grandioso, como o contexto da
promessa deixa entrever? Dado o retorno da expressão em textos posteriores, também no Novo Testamento, deve tratar-se aqui da mediação
sacerdotal de todo esse povo, escolhido em relação aos outros povos,
na linha daquela “bênção” que a descendência de Abraão devia ser para
todos os povos da terra (cf. Gn 12,1-3).
7
40
As citações bíblicas serão, salvo observação em contrário, as da tradução da CNBB,
5. ed., 2007.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Ney Brasil Pereira
1.2 Revolta de Coré: “Todo o povo é santo” (Nm 16,3)
Episódio estranho, mas não menos significativo, como uma antítese, é o da revolta do levita Coré contra Moisés e os sacerdotes aaronitas. Deixando de lado as amplas discussões sobre a origem do relato
e sua complexidade, trata-se, no texto, de um grupo consciente que se
sente excluído, e assim verbaliza seu descontentamento: “Basta! Todos
os membros da comunidade são consagrados, e o Senhor está no meio
deles. Com que direito vos colocais acima da comunidade do Senhor?”
(Nm 16,3) Nessa tradução, o termo “comunidade” corresponde a dois
substantivos diferentes em hebr. ´edâh e qâhâl, que os LXX traduziram
por um só vocábulo: gr. synagôgê, “congregação, assembléia”. Os
“consagrados”, em hebr. qdôshîm, gr. hágioi, equivalem a “santos”,
consagrados, reservados para o serviço divino..
A resposta de Moisés a Coré justifica a proeminência de Aarão:
“Escutai, filhos de Levi! Parece-vos pouco que o Deus de Israel vos
tenha separado da comunidade para vos aproximar de si no serviço
da morada do Senhor e para estardes à disposição da comunidade e
servi-la? Ele te aproximou de si junto com todos os teus irmãos levitas,
e agora ambicionais também o sacerdócio?” (Nm 16,8-10)
Nessa resposta de Moisés, se afirma que é Deus quem escolhe
e consagra. É, aliás, o que lembra a carta aos hebreus: “Ninguém deve
atribuir-se a si mesmo esta honra, senão aquele que foi chamado por
Deus, como Aarão” (Hb 5,5). Os levitas já tinham uma série de privilégios, especialmente o de “aproximar-se do Senhor”, isto é, servindo-o e
servindo ao povo na liturgia sagrada. Ao reclamarem também o sacerdócio aaronita, rebelam-se contra a escolha divina, e querem mais, em vez de
mostrarem gratidão. “Por isso, se farão indignos do dom recebido.”8
1.3 “Sacerdotes do Senhor, ministros do nosso Deus”
(Is 61,6)
No início do capítulo 61 de Isaías encontramos a passagem famosa
que o Senhor Jesus proclamou na sinagoga de Nazaré, segundo Lucas,
ao dar início à sua vida pública: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
pois Ele me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres...” (Lc 4,18.
citando Is 61,1). Jesus termina a citação no início do v. 2, anunciando o
8
Cf. SCHÖKEL, Luís Alonso, “Bíblia do Peregrino”, São Paulo, 2002, Edit. Paulus, p. 257.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
41
Povo Sacerdotal
“ano da graça”, e omitindo o paralelismo antitético do “dia da vingança”,
ou seja, da justiça punitiva de Deus. E afirma solenemente que “hoje”,
isto é, naquele momento, aquela Escritura estava se cumprindo.
Retomando, porém, o texto de Isaías 61, no v. 6 o profeta anuncia:
“Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, ministros do nosso Deus,
desfrutando da riqueza das nações que afluirá a Jerusalém restaurada (Is
61,6). É como se a prerrogativa sacerdotal de receber as oferendas no
Templo fosse agora estendida a todo o “povo sacerdotal”, constituído
de “ministros”, em gr. leitourgoi, “liturgos”, do nosso Deus. A propósito, é interessante o contraste entre essa visão “sacerdotal” e a da que
nos apresenta o primeiro Isaías, quando descreve a vinda dos povos a
Jerusalém, não trazendo presentes, oferendas, mas buscando “a Lei, a
palavra do Senhor” (cf. Is 2,2-4)
1.4 “A todos restituiu o reino e o sacerdócio” (2Mc 2,17)
No final da segunda carta dos judeus de Jerusalém aos de Alexandria,
no começo do segundo livro dos Macabeus, convidando-os a celebrarem,
mesmo na diáspora, a festa da purificação do Templo, lemos o seguinte:
Nós vos escrevemos esta carta na iminência de celebrar a purificação do
Templo. Fareis bem, portanto, em celebrar estes dias. Deus salvou todo
o seu povo e a todos restituiu a herança, o reino, o sacerdócio e a santificação, como o havia prometido na Lei...” (2Mc 2,16-18). Aqui temos,
nesta passagem, os dois vocábulos que encontramos na tradução grega de
Ex 19,6: basíleion e hieráteuma. Só que aqui se trata de dois substantivos,
“o reino” e “o sacerdócio”, enquanto em Ex 19,6 basíleion é adjetivo:
“real”, que qualifica o sacerdócio, com o significado que lá apontamos. No
texto, após a vitória dos Macabeus, se celebra a nova salvação constituída
pela recuperação da “herança”, a terra, do “reino”, a independência, e do
“sacerdócio”, o culto restaurado no Templo.
2 Povo sacerdotal no Novo Testamento
2.1 “Vós sois o povo escolhido, o sacerdócio real”
(1Pd 2,9)
Escrevendo aos cristãos da “dispersão” nas províncias romanas
da Ásia menor (1Pd 1,1), Pedro os exorta: “Aproximai-vos do Senhor,
pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e valiosa aos olhos
de Deus” (2,4). Pois eles, como pedras vivas, formam “um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerem sacrifícios espirituais,
42
Encontros Teológicos nº 53
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Ney Brasil Pereira
agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (2,5). E mais adiante continua:
“Vós sois o povo9 escolhido, o sacerdócio real, a nação santa, o povo que
ele adquiriu, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos
chamou das trevas à sua luz maravilhosa” (2,9). E continua, retomando
o profeta Oséias10: “Vós sois aqueles que antes não eram povo, agora,
porém, são povo de Deus; os que não eram objeto de misericórdia, agora,
porém alcançaram misericórdia.”
É evidente que Pedro aqui retoma, além de Oséias 1,9 também Ex
19,6. Mas cito o comentário de Alonso-Schökel: “As palavras ‘sacerdócio’ e ‘santo’ sugerem a Pedro essa exclamação entusiasta, composta de
citações e títulos que o Antigo Testamento aplica ao povo de Israel. ‘Raça
escolhida... para que proclame o meu louvor” (Is 43,20): era o Israel ideal
que devia voltar á pátria por uma ação nova e original de Deus. É agora o
povo cristão.”11 Novamente impõe-se o sentido grandioso da expressão,
todos os cristãos participando dessa dignidade sacerdotal prometida.
2.2 “Ele fez de nós reino e sacerdotes”
(Ap 1,6; 5,10; 20,6)
O livro do Apocalipse, que é a “revelação de Jesus Cristo”, o
Cordeiro imolado, morto e ressuscitado, já no seu início, à sua maneira,
retoma o tema do “povo sacerdotal”. De fato, na sua primeira doxologia,
dirigida a Cristo, assim se expressa o autor: “Àquele que nos ama, que
por seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e que fez de nós reino e
sacerdotes12 para seu Deus e Pai, a Ele a glória e o poder, pelos séculos
dos séculos. Amém” (Ap 1,5-6).
No capítulo 5º, logo depois de o Cordeiro receber o Livro lacrado, por ser o único capaz de ‘romper-lhe os lacres e abri-lo” (5,5), os
“quatro Viventes” e os “vinte e quatro anciãos” se prostram e proclamam
nova doxologia: “Tu és digno de receber o Livro e de abrir-lhe os selos,
porque foste imolado, e com teu sangue adquiriste para Deus gente de
A tradução da CNBB emprega “gente”, para traduzir o gr. génos, termo diferente de
laós, povo.
10
Oséias 1,6.9 e 2,1.25: cf. PEREIRA, Ney Brasil, “Cheia de graça, a não-Amada?”,
art. in “Encontros Teológicos” n. 49 (2008/1), pp. 149-163.
9
11
SCHÖKEL, Luís Alonso, “Bíblia do Peregrino”, São Paulo, 2002, Edit. Paulus, p. 2907.
12
O texto da CNBB interpreta os dois substantivos à semelhança do original hebr. de
Ex 19,6: “reino de sacerdotes”. Mas o autor do Apocalipse é, também aqui, original.
Encontros Teológicos nº 53
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Povo Sacerdotal
toda tribo, língua, povo e nação. Deles fizeste para o nosso Deus reino
e sacerdotes13. E eles reinarão sobre a terra” (5,9-10)
Finalmente, no capítulo 20, na difícil passagem sobre o “milênio”,
encontramos a quinta bem-aventurança do livro, dirigida aos mártires
“que voltaram a viver” para reinarem com Cristo “durante mil anos”:
“Ditoso e santo é quem participa da primeira ressurreição! A segunda
morte não tem poder sobre eles. Eles serão sacerdotes de Deus e de
Cristo e reinarão com Ele durante mil anos” (20,6) :
Que significa a expressão, duas vezes repetida: “reino e sacerdotes”? Por que não “reino de sacerdotes”, como se exprime Ex 19,6? O
substantivo “reino”, no contexto do Novo Testamento, não pode deixar
de evocar a realidade central na pregação de Jesus, o “reino de Deus”.
Quando o Apocalipse, por duas vezes, atribui a Cristo a autoria de, pelo
seu sangue, nos ter transformado nessa realidade, fazendo de nós seu
“reino”, assegura-nos estarmos já agora nessa condição escatológica. E
isso, não miticamente, mas ao preço da sua morte sacrificial, evocada
pela menção do seu “sangue”.
2.3 “Os sacrifícios que agradam a Deus” (Hb 13,15-16)
A carta aos hebreus, que insiste no sacerdócio único do Cristo, chamado por Deus “sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedec”14, reconhece, evidentemente, a necessidade da mediação
sacerdotal. Vê-a, porém, total e definitivamente realizada por Cristo.
Por isso mesmo, não fala, expressamente, num “povo sacerdotal”. Entretanto, exorta-nos a que, “por meio de Jesus, ofereçamos a Deus um
perene sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram o seu
nome” (Hb 13,15, aludindo a Os 14,3). E continua: “Não vos esqueçais
da prática do bem e da partilha, pois estes são os sacrifícios que agradam
a Deus” (13,16). Novamente, como já o faziam os profetas, insiste-se
na contraposição entre os sacrifícios rituais do Templo e a prática da
solidariedade para com o próximo.
44
13
Observação idêntica.
14
A longa argumentação, apoiada no Sl 110,4, se estende desde o final do capítulo 4º
até o capítulo 10º.
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Ney Brasil Pereira
2.4 “O sacrifício santo da oferenda da vida” (Rm 12,1)
De modo semelhante ao autor da carta aos hebreus, também
Paulo, sem falar no “povo sacerdotal”, entretanto aconselha a agir
sacerdotalmente: “Eu vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus,
a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo , santo e agradável a
Deus: este é o vosso verdadeiro culto” (Rm 12,1) O “sacrifício”, em gr.
thusía, é a imolação sacrificial dos próprios “corpos”, isto é, da própria
vida, como a seguir o Apóstolo vai concretizar. E o “verdadeiro culto”, em gr. logikê latreia, literalmente, “adoração racional”, equivale
ao “culto espiritual” que Jesus revelou à samaritana, à beira do poço
de Jacó: “Vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade. São esses os adoradores que
o Pai procura” (Jô 4,23). Evidentemente, o “culto espiritual” a Deus
tem de ser comprovado pela atenção ao próximo, comprovação exigida em tantas passagens do Novo e do Antigo Testamento. Sirva de
exemplo, no Antigo Testamento, o oráculo de Oséias 6,6, que Jesus
evocou por duas vezes, em discussão com os fariseus: (Mt 9,13 e 12,7):
“É a misericórdia que eu quero, e não os sacrifícios”15. E, no Novo
Testamento, o esclarecimento de Tiago sobre o que seja a verdadeira
“religião”: Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta;
assistir os órfãos e as viúvas em suas necessidades e guardar-se livre
da corrupção do mundo” (Tg 1,27)
Conclusão
Uma vez que o “povo sacerdotal” é um dado recorrente em todo
o cânon da Escritura, como conciliar esse dado com a existência e o
reconhecimento do “sacerdócio ministerial hierárquico”? Retomando
a argumentação de Coré, em Nm 16,3, se “toda a assembléia é santa”,
caberia na assembléia uma hierarquia? Não seriam desnecessários
mediadores quando há um único Mediador?16.
15
Em Mateus, Jesus cita a primeira parte do versículo. O texto integral de Oséias, que
resume a constante crítica profética ao culto, é o seguinte, traduzindo-o com alguma
paráfrase: “É a solidariedade que eu quero, e não animais imolados; o conhecimento
de Deus, que leva à prática da justiça (cf. Jr 22,16), mais do que animais queimados“
(Os 6,6).
16
Cf. 1Tm 2,5: “Há um só mediador entre Deus e a humanidade, o homem Cristo
Jesus”.
Encontros Teológicos nº 53
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45
Povo Sacerdotal
O fato é que qualquer grupo organizado precisa de coordenação.
Foi, aliás, o que reconheceu o próprio Senhor Jesus, ao esclarecer a seus
discípulos, numa das várias disputas de liderança entre eles: “Quem dentre
vós quiser ser o maior, seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o
primeiro entre vós, seja o servo de todos” (Mc 10,43-44). Isto é, Jesus
reconhece que haja “primeiros” entre os seus, desde que “servidores”.
Indicou também “mediadores” para o perdão que, em última análise, é
Ele quem concede: “A quem perdoardes os pecados, serão perdoados;
a quem os retiverdes, serão retidos” (Jo 20,23). Incumbiu a Pedro de
“apascentar as ovelhas do seu rebanho” (Jo 21,15-17), quando é Ele o
único “Pastor verdadeiro”, o único digno desse nome, porque disposto
a “dar a vida por suas ovelhas” (cf. Jo 10,11).
Assim, nos últimos textos do Novo Testamento já encontramos
os conhecidos termos de “presbíteros”, “epíscopos”, “diáconos”, logo
claramente hierarquizados nas cartas de Inácio de Antioquia, de inícios
do século II17. A Clemente Romano, na sua carta aos coríntios, cerca do
ano 95, dez anos antes de Inácio, atribui-se a incipiente sacerdotalização
desses ministérios, retomando a linguagem do Antigo Testamento.18
Antes de terminar, uma citação de Martins Terra: “O sacerdócio
comum dos fiéis não existe sem a mediação sacerdotal de Cristo: vários textos do Novo Testamento o atestam claramente, como o da 1Pd
2,9. Atestam igualmente que a mediação de Cristo se torna presente
na diversidade dos lugares e dos tempos por meio dos “ministros de
Cristo”. A capacidade deles não é de origem humana, mas divina (2Cor
3;5). Deus mesmo os torna “ministros idôneos da nova aliança” (2Cor
3,6). Eles realizam o “ministério da reconciliação” (2Cor 5,18), não
com própria autoridade mas como “embaixadores de Cristo” (2Cor
5,20). São considerados “ministros de Cristo e administradores dos
mistérios de Deus” (1Cor 4,1). Em nome de Cristo “sumo sacerdote
digno de fé” (Hb 3,1-6), transmitem com autoridade a “palavra de
Deus” (Hb 13,7). Em nome de Cristo “sumo sacerdote misericordioso” (Hb 2,17), “velam pelas vidas dos seus e disso devem prestar
contas (Hb 13,17). São, por conseguinte, estreitamente associados
46
17
QUASTEN, Johannes, “Patrología”, vol. I, BAC, Madrid, 1968, pp. 73-80.
18
Id., ibid., pp. 52-63.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Ney Brasil Pereira
ao sacerdócio de Cristo, embora no Novo Testamento não recebam,
explicitamente, o título de sacerdotes”19.
Que neste “Ano Sacerdotal” possa crescer em nós, presbíteros,
a consciência da dignidade do “Povo Sacerdotal” ao qual servimos e
cuja Eucaristia presidimos, com humildade e ao mesmo tempo com a
consciência da grandeza da missão que recebemos. Com a consciência,
também, a exemplo do Santo Cura de Ars, de que o nosso sacerdócio
ministerial é “o amor do Coração de Jesus”. Isto é, o amor daquele que
deu a vida por nós,e que por isso espera que nós, seus ministros, também
demos a vida por nossos irmãos e irmãs (cf. 1Jo 3,16).
Endereço do Autor:
Caixa Postal 5041
CEP 88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
19
MARTINS TERRA, João E., “Bíblia e Sacerdócio”, número especial da “Revista de
Cultura Bíblica”, São Paulo, 1996, Loyola, vol. 20, n. 79/80, p. 74.
Encontros Teológicos nº 53
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47
Resumo: No Ano Sacerdotal, é importante refletir sobre a espiritualidade presbiteral, sua relação com a identidade e o ministério do presbítero, com a Eucarisita, com a Palavra de Deus, com a comunidade eclesial e com o mundo. Isso
implica em cuidado de si e da comunidade, como orienta Paulo em At 20,28. O
presbítero é também ele membro do povo de Deus, e para bem dedicar-se ao
povo precisa cuidar também de si mesmo. Assim, sua espiritualidade se caracteriza pela inserção na comunidade e no mundo e pela relação que supera toda
divisão entre clero e leigo, formando a Igreja comunhão. A Santíssima Trindade é
modelo dessa comunhão, fonte da espiritualidade presbiteral e da vida da Igreja.
Para isso, é fundamental que o presbítero não só esclareça conceitualmente
o específico de sua espiritualidade, mas que encontre momentos de profundo
silêncio para a interiorização dos elementos que a configuram.
Abstract: On the occasion of the Year dedicated to the priesthood it is important
to give attention to the spirituality of the priests, its relationship with the identity
and ministry of the priesthood in connection with the Eucharist, the Word of
God, the ecclesial dimension of the faith community and its concern for the
world at large. This implies personal growth and the task of fulfilling his ministry
in the community, as Saint Paul reminds us (At 20,28). Moreover, the presbyter
is likewise a member of the people of God and thus he has to discharge his
duties. His spirituality concerns both his belonging to the faith community and
his relationship with the peoples of earthly society. His belonging to the Church
reminds him to communicate the life Christ to those who believe: clergy and
laymen. The source and model of this sharing of spiritual life is the Holy Trinity
enriching both the priest and the members of the Church providing divine graces
which are to be internalized by prayer and mutual dialogue.
A Espiritualidade do Presbítero
Osmar Debatin*
*
O autor é Formador do Seminário de Teologia da diocese de Rio do Sul em Florianópolis, SC. Mestrando em Teologia Bíblica pela Escola Superior de Teologia / São
Leopoldo – RS.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 49-60.
A Espiritualidade do Presbítero
“Em Deus, o padre e o povo são verdadeiramente um só ser. O padre é
um só com todos eles, e eles são um só com o padre”1.
A título de Introdução
Quando me convidaram a escrever sobre a espiritualidade “do presbítero” hesitei um pouco, pois nos últimos tempos têm sido publicadas algumas obras sobre o tema, embora, restringindo-o à espiritualidade “do padre
diocesano”2. Como meu propósito é abordar a espiritualidade do presbítero
de uma forma mais ampla, englobando também os religiosos padres3, partirei
de algumas balizas importantes, que constantemente aparecem nas obras
que falam do assunto. Antes de tudo, esclarecendo conceitos: o específico
da espiritualidade presbiteral; a espiritualidade e a identidade presbiteral; e
a espiritualidade presbiteral em relação à Palavra de Deus.
Pretendo com este artigo oferecer uma singela contribuição para o
“Ano Sacerdotal” no tocante à espiritualidade do presbítero, pois “tal ano, que
pretende contribuir para fomentar o empenho de renovação interior de todos
os sacerdotes para um seu testemunho evangélico mais vigoroso e incisivo”4,
passa necessariamente pela compreensão e vivência da espiritualidade presbiteral. E essa vivência da espiritualidade poderá ser ainda uma luz para
todos os fieis que também procuram “aderir a Cristo com os pensamentos,
a vontade, os sentimentos e o estilo de toda a sua existência” 5.
1 A Espiritualidade presbiteral: sua especificidade
Existe uma comovente passagem no capítulo 20 dos Atos dos
Apóstolos na qual é descrita a cena cheia de ternura e afeto em que
50
1
Cf SHANNON, William H. Espiritualidade Sacerdotal: “falando abertamente ao interior”.
IN COZZENS, Donald B. A Espiritualidade do Padre Diocesano. São Paulo, Loyola,
2008, p. 110.
2
Cf.Aqui me refiro às obras de: LORSCHEIDER, Dom Aloísio. Identidade e espiritualidade do Padre Diocesano. Petrópolis, Vozes, 2007; COZZENS, Donald B. A
Espiritualidade do Padre Diocesano. São Paulo, Loyola, 2008.
3
Cf. Esta expressão “religiosos padres”, segundo Lorscheider traduz melhor o grupo
de religiosos, adscritos a um Instituto religioso, que, além de religiosos, tornam-se
também padres. LORSCHEIDER, 2007, p. 17.
4
Cf. Carta do papa Bento XVI por ocasião da abertura do Ano Sacerdotal, 16 de junho de
2009. http://www.cnbb.org.br/ns/modules/mastop_publish/files/files_4a3a9ad85c9ce.
pdf. Acessado em 02/07/2009.
5
Cf. Carta do Papa Bento XVI por ocasião da abertura do Ano Sacerdotal; 16 de junho
de 2009.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Osmar Debatin
Paulo se despede dos presbíteros de Éfeso, que tinham ido a Mileto a
seu chamado. Paulo os exorta com estas palavras: “Tende cuidado convosco e com todo o rebanho do qual o Espírito Santo vos estabeleceu
como guardiães, como pastores da Igreja de Deus que ele adquiriu com
o sangue de seu Filho” (At 20,28)”.
Isto é interessante, porque Paulo anima os presbíteros de Éfeso
não só a guardar seu rebanho, mas também a cuidar deles mesmos. E esta
exortação paulina poderia ainda ser uma maneira de dizer que a vigilância
do rebanho pelos presbíteros é uma responsabilidade que eles precisam
exercer admitindo que eles mesmos fazem parte do rebanho, ou que a
missão do padre é prestar serviço aos fiéis, mas ele é também um dos
fiéis6 (como de fato é), devendo prestar serviço também a si mesmo7.
Essa maneira de dizer que o caminho de busca da santidade é o
mesmo para todos se aplica também à espiritualidade do presbítero, pois
o padre deve cultivar em sua própria vida a mesma espiritualidade que
ele compartilha com as pessoas a quem serve e, um dos eixos de aproximação é a caridade pastoral, já descrita em Pastores Dabo Vobis: “O
principio interior, a força que anima e guia a vida espiritual do padre na
medida em que ele se assemelha a Cristo, cabeça e pastor, é a caridade
pastoral”8. Além disso, os outros fiéis partilharão com ele essa espiritualidade na vida de cada dia e, dessa forma a espiritualidade de cada um
será enriquecida pela espiritualidade dos outros.
Em segundo lugar, nossa espiritualidade cristã, que tem suas raízes
no Evangelho e que emana do batismo9, coloca-nos em contato com o que
é verdadeiramente real: a realidade de Deus, a realidade de nós mesmos
e a realidade de todas as criaturas de Deus. Por isso, falar em espiritualidade presbiteral se torna difícil, pois “descobrir as profundezas de nosso
próprio ser e encontrar a Deus ali não é uma tarefa só de padres (grifo
nosso), é uma tarefa humana”10. No mais, não queremos trabalhar na ótica
do dualismo (padres X leigos), mas abordar a espiritualidade, também
presbiteral, a partir da dimensão interior da profundeza e consciência que
muitas pessoas não conseguem alcançar por se verem bloqueadas pela
6
Cf. Lumem Gentium, 10.
7
Cf. Nesse sentido do cuidado consigo mesmo, a Revista Paróquias, N° 18 – maio/
junho 2009 tem como capa o título: “Cuidar do cuidador”.
8
Cf. JOÃO PAULO II. Pastores Dabo Vobis. São Paulo, Paulinas, 1992, n° 22.
9
Cf. Lumen Gentium, 11.
10
Cf. COZZENS, 2008, p. 107.
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51
A Espiritualidade do Presbítero
concentração total nas coisas exteriores. Com isso, já estamos também
apresentando a especificidade da espiritualidade presbiteral: um homem,
através da oração, busca alcançar a dimensão interior de seu próprio ser,
encontrando ali Deus e, por meio dessa descoberta, a realização de seu
verdadeiro ser em Deus11. Também, destacamos a missão do padre frente
às ovelhas a ele confiadas: ajudar os fiéis por meio da espiritualidade a
unificarem também suas vidas encontrando sua própria identidade em
Deus e na comunhão com os demais irmãos e irmãs.
Esta característica mais relacional da espiritualidade presbiteral
tem suas raízes no mistério da Trindade, que nos revela a noção relacional
de nosso Deus, algo já descrito em Jo 14, 20 “nesse dia compreendereis
que estou no Pai, vós em mim e eu em vós”, e que tem a Igreja como
sacramento de relacionamentos12. De fato, a relação mútua entre Jesus e
o Pai é a base para a compreensão joanina da habitação divina na comunidade de discípulos: “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis
uns aos outros. Assim como eu vos amei, deveis também amar uns aos
outros” (Jo 13,34; 15,12-17). Ou seja, a unicidade de Deus13, entendida
como a comunhão entre o Pai e Jesus no Espírito Santo, revela a unidade
dinâmica, relacional, de três pessoas que se amam; que vivem de uma
comunhão extática e completa que atrai a nós, simples criaturas, para
essa unidade trinitária. E pela ação peculiar do Espírito Santo os fiéis
são introduzidos na comunhão divina de amor14. Isto, aplicado na compreensão da espiritualidade presbiteral, significa dizer que o presbítero
é um sinal pessoal e público de comunhão, uma vez que ele é agente da
unidade15, da unidade na diversidade, da Igreja local e no mundo.
Ver a espiritualidade presbiteral como uma realidade relacional,
que nasce da visão trinitária do ministério, mostra que a vida do padre
tem a função de ajudar a criar nas pessoas autênticas experiências de
comunidade eclesial de todos os modos16. Por isso, faz parte da vida e
da espiritualidade do presbítero estimular todos os passos dirigidos à
construção da comunidade dentro da Igreja e acima dela. Isso trans11
52
Cf. Thomas Merton, The Asian Jounal, Nova York, New Directions, 1973, p. 308, IN
COZZENS, 2008, p. 111.
12
Cf. Lumem Gentium 1.
13
Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo, Paulinas, 1993, n° 253.
14
Cf. BOFF, Leonardo. A Santíssima Trindade é a Melhor Comunidade. Petrópolis,
Vozes, 1988, p.158.
15
Cf. Presbyterorum Ordinis, 14.
16
Cf. GRUN, Anselm. Ordem, Vida Sacerdotal. São Paulo, Loyola, 2006, p. 48.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Osmar Debatin
parece pelo sentido mais profundo da comunhão do padre mediante a
pregação da palavra17 e na participação na comunhão escatológica divina
na Eucaristia18.
Essa espiritualidade presbiteral, acompanhada de um estilo de
vida nesses moldes, ajuda também a perceber que a vida ministerial do
presbítero é necessariamente colaborativa19. Implica modelar a comunidade de diversas maneiras, particularmente por meio de várias formas de
ministério em equipe20. E uma espiritualidade presbiteral bem integrada,
centralizada na comunhão trinitária, sustentará também uma espiritualidade que é radicalmente crítica de todas as formas de clericalismo e
pensamento piramidal21. Uma das idéias chaves de tal ministério, que
também é sua especificidade, é a idéia de relações mútuas e iguais,
fortalecidas pela visão do amor pericorético22. A essa espiritualidade
corresponde um estilo de vida de caráter colaborativo, capacitante e inclusivo, sugerindo que o critério de relações mútuas e iguais é fundamental
para nossa vida e nosso ministério de presbíteros. É o que se expressa
também na Presbyterorum Ordinis 8: “Os presbíteros, estabelecidos na
Ordem do presbiterato através da Ordenação, estão ligados entre si por
uma íntima fraternidade sacramental; de modo especial, porem, formam
um só Presbitério na diocese para cujo serviço estão escalados sob a
direção do seu Bispo”.
Todavia, quando falamos de uma espiritualidade mais relacional,
englobando a unidade e a diversidade, poderíamos cair numa espécie de
“dispersão espiritual”. Qual seria então o critério de busca de uma interioridade que está no centro de qualquer verdadeira espiritualidade?23. Isto
implica, para o presbítero, encontrar tempo para viver no espírito interior,
visando a unificação de sua própria vida. Com isso, ele encontrará um
novo centro do qual emanarão suas ações. Tendo uma percepção mais
17
Cf. Presbyterorum Ordinis, 4.
18
Cf. Presbyterorum Ordinis, 5.
19
Cf. Pastores Dabo Vobis, n° 17.
20
Cf. Ex 18,13-27.
21
Cf. BOFF, 1988, p. 113.
22
Cf. “Boaventura traduz perichoresis em latim por circumincessio, a partir de circumincedere, que significa ‘mover-se em redor’, indicando uma espécie de dança divina,
um girando em torno do outro. Outros autores empregaram a palavra circuminsessio,
formada a partir do verbo circuminsedere, que significa ‘sentar-se em redor’, sugerindo
a idéia da divina presença recíproca em repouso”. COZZENS, 2008, p.97.
23
Cf. GRUN, Anselm. A Oração Como Encontro. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 13.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
53
A Espiritualidade do Presbítero
clara de sua própria personalidade e das coisas que de fato valem a pena,
o presbítero adquire uma idéia mais exata da vida e das prioridades que
precisa estabelecer para si mesmo. Essa unidade interior irá fortalecê-lo
para executar melhor tudo o que deve fazer.
Mas como o presbítero cultivará essa unidade interior, diante de
um mundo complexo, barulhento e dispersivo? Para isso é necessária
a busca constante de momentos tranqüilos, entendidos como silêncio e
solidão, pois esses momentos são o ingrediente indispensável da própria
espiritualidade e interioridade do presbítero24. O padre necessita de umas
horas assim não para fugir de suas atividades, das palavras ou das pessoas,
mas para alinhar a mente e fazer o coração bater no ritmo certo, de modo
que possa trabalhar com mais criatividade, falar com mais sabedoria,
tratar as pessoas com mais gentileza e compreensão25.
Nesse sentido, outra especificidade da espiritualidade presbiteral
é a capacidade de ajuda a outras pessoas a refazerem essa experiência
profunda. Isso é traduzido por Thomas Merton como o poder criativo
da fecundidade do silêncio:
“O silêncio não só nos dá oportunidade de nos compreendermos melhor,
de adquirirmos uma perspectiva mais verdadeira e mais equilibrada
sobre nossa própria vida e com relação à vida alheia: Ele nos torna
íntegros se o permitimos. O silêncio ajuda a reunir as energias dispersas e dissipadas da existência fragmentada; ajuda-nos também a nos
concentrarmos em uma finalidade que realmente corresponde não só
às necessidades mais profundas do nosso próprio ser, mas também às
intenções de Deus a nosso respeito”26.
Logo, a espiritualidade presbiteral passa por essa busca de santidade interior, que também estava refletida na unidade que existia entre
os discípulos de Jesus. Por isso, Paulo em Efésios recordava: “Só há um
Senhor, uma fé, um batismo; só há um Deus que é Pai de todos e está
acima de todos, age por todos e em todos” (Ef 4,5-6). E poderíamos
acrescentar: “existe uma só espiritualidade”, e essa espiritualidade é a
interioridade, o encontro com o Desconhecido dentro de nós e, ao mesmo
tempo, comunhão com o mesmo Desconhecido nos outros27. Portanto, o
54
24
Cf. Presbyterorum Ordinis, 18.
25
Cf. REVISTA PARÓQUIAS, n° 18, maio/junho 2009, p. 26.
26
Cf. Thomas Merton, Loving and Living, IN COZZENS, 2008, p.114.
27
Cf. Grun, 2001, p. 38.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Osmar Debatin
que diferencia a compreensão e vivência da espiritualidade é a maneira
como se busca alcançar essa interioridade. Nesse caso, o presbítero, vivendo na liberdade que obteve na solidão e na oração, juntamente com o
apoio que é a estreita ligação com o bispo e com o presbitério da diocese,
poderá mostrar aos fieis que as relações de amor mútuo constituem a
mensagem da Igreja e são o verdadeiro ser da Igreja28.
2 A Espiritualidade e a identidade presbiteral
Durante muitos séculos na história de nossa Igreja o presbítero foi
definido com clareza. Seu lugar e papéis eram delineados por muitos documentos eclesiásticos, ressaltando a sua essencial diferência em relação
aos leigos. Basta vermos uma citação do Código de Direito Canônico de
1917: “Os clérigos devem viver interior e exteriormente uma vida mais
santa que as pessoas leigas e devem ser superiores a elas em dar o exemplo
de virtude e boas obras”. Ou seja, a essência da diferença colocava-se
na “superior” santidade de vida. Isso também aparece numa exortação
do Papa Pio X, em 8 de agosto de 1908: “Deve existir diferença entre o
padre e o bom leigo como existe entre o céu e a terra e, por conseguinte,
a vida do padre deve ser livre não só dos defeitos mais graves, mas até
mesmo dos mínimos defeitos”29.
Em conseqüência dessa visão de presbítero, “mais santo” que os
leigos, surgiram várias práticas diárias e freqüentes que pudessem ajudar
o padre a buscar a santidade, como: tempo para a oração mental, visita ao
Santíssimo Sacramento, recitação do ofício divino e do rosário, exame
de consciência etc.
Todavia, com o Concílio Vaticano II (1962-65), e mesmo já antes
dele , principalmente na Constituição Dogmática Lúmen Gentium sobre a
Igreja, estabeleceu-se a estrutura fundamental para compreender-se a busca
da santidade pelo presbítero, ressaltando-se a natureza do presbiterado e
30
28
Cf. Lumem Gentium 8.
29
Cf. Pio X, exortação Haerent animo, de 8 de agosto de 1908. IN COZZENS, 2008,
p. 187.
30
Cf. Aqui nos referimos aos intensos debates que surgiram inicialmente na Europa e
posteriormente nos Estados Unidos sobre a dignidade, ministério e espiritualidade
do padre diocesano. Vejam-se as obras de Joseph C Fenon. A espiritualidade do
padre diocesano. Publicado originalmente na The American Ecclesiastical Rewiew,
116, 1947, p. 126.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
55
A Espiritualidade do Presbítero
a vocação dos presbíteros à santidade31. Nessa Constituição, a vida do
presbítero baseia-se em algumas premissas fundamentais: pela ordenação
sacerdotal, o presbítero é consagrado a Cristo e, juntamente com o bispo,
participa do sacerdócio de Cristo32. Os presbíteros não são apenas “auxiliares” da ordem episcopal, mas “cooperadores”33. O padre é consagrado a
Cristo não meramente em vista da celebração da Eucaristia, mas juntamente
com o bispo, participa da tríplice missão de ensinar, santificar e governar
o povo de Deus34. No horizonte da “vocação universal à santidade”, o
presbítero é chamado à santidade como todos os demais cristãos35.
Além disso, a referida Constituição sobre a Igreja nos apresenta
também a natureza específica da espiritualidade presbiteral conforme
as condições, deveres e circunstâncias de seu ministério. Entretanto,
essa relação entre a vida espiritual do padre e seu ministério, está mais
explícita no Decreto sobre a Vida e Ministério Sacerdotal, promulgado
em dezembro de 1965.
Uma primeira expressão no referido Decreto, que aponta para
uma nova visão da espiritualidade presbiteral, destaca que “é por meio
das ações sagradas de cada dia e de todo o seu ministério, exercido em
comunhão com o bispo e seus irmãos presbíteros, que eles (os padres)
são elevados à perfeição de vida (...). Eles alcançarão essa santidade
própria de seu estado pelo cumprimento sincero e incansável de seus
deveres no Espírito de Cristo”36.
Para equilibrar uma possível tensão que poderia decorrer entre o
ministério pastoral do padre (certo ativismo) e sua vida espiritual (certa
alienação), o mesmo Concílio destaca a busca do alimento espiritual
fornecido pelas duas mesas; a da Sagrada Escritura e a da Eucaristia37.
Além disso, o Concílio estimula os presbíteros a utilizarem quaisquer
subsídios que acharem melhores, especialmente os que foram proveitosos
no passado, a fim de manter a unidade e a harmonia entre o ministério
e a vida interior38.
56
31
Cf. Lumen Gentium 41.
32
Cf. Lumen Gentium 10.
33
Cf. Lumen Gentium 28.
34
Cf. Lumen Gentium 10.
35
Cf. Lumen Gentium 41.
36
Cf. Presbyterorum Ordinis, 12 e 13.
37
Cf. Presbyterorum Ordinis, 18.
38
Cf. Presbyterorum Ordinis, 18.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Osmar Debatin
Assim, buscando a melhor relação entre a identidade presbiteral
e a espiritualidade, a partir do Vaticano II, podemos perceber que caminhamos para uma nova época de mudanças, no sentido da própria
compreensão da identidade do presbítero. De fato,
“muitos desafios para os padres de hoje e do futuro provêm da expansão
e diversidade do ministério. Desde o Vaticano II, a identidade do padre
tornou-se mais ativa que estática, mais diaconal que sacra, mais distinta que rotineira, mais comunitária que solitária e monástica... Hoje,
a identidade sacerdotal provém não só da liderança sacramental, mas
também da liderança comunitária e ministerial”39.
Poderíamos então frisar que, com o Vaticano II, na ótica da espiritualidade do presbítero existe uma reciprocidade e interdependência
entre o ministério presbiteral e sua vida espiritual40, algo que não estava
tão claro antes, como vimos acima. Com isso, a dedicação no exercício
do ministério sacerdotal é igualmente fundamental para a espiritualidade
presbiteral, o que poderíamos expressar assim: agora o padre prega para
orar, ao passo que antes, orava para pregar.
Entretanto, se a decisão de orar é a decisão mais importante que
o padre assume na vida espiritual41, também a decisão de entregar-se ao
ministério atende à espiritualidade do presbítero, porque ambas constituem a estrutura de sua vida na graça42. Logo, a espiritualidade presbiteral
pode ser considerada uma espiritualidade dialética, baseada na vida de
fé e oração, que é ao mesmo tempo moldada pelo exercício do sacerdócio ministerial. É nesse último pólo da dialética que descobrimos as
características que nos permitem falar de uma espiritualidade presbiteral
a partir da própria identidade do presbítero.
3 A Espiritualidade Presbiteral e a Palavra de Deus
A relação entre a Palavra de Deus e a espiritualidade presbiteral
poderia ser traçada apontando, antes de tudo, para o Documento Presbyterorum Ordinis, n° 4: “Os presbíteros, na qualidade de cooperadores
dos bispos, têm como primeira tarefa anunciar o Evangelho de Deus a
39
Cf. COZZENS, 2008, p. 63.
40
Cf. Lumem Gentium, 10.
41
Cf. GRUN, 2006, p. 60.
42
Cf. Pastores Dabo Vobis, 24.
Encontros Teológicos nº 53
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57
A Espiritualidade do Presbítero
todos, para constituírem e aumentarem o Povo de Deus, executando o
mandato do Senhor: ‘Ide ao mundo todo e pregai o Evangelho a toda
criatura’ (Mc 16,15)”. Nessa formulação do Decreto Conciliar está expressa, com insistência, a gravíssima obrigação e responsabilidade do
padre no anúncio do Evangelho, mas esse anúncio ficará comprometido
se a pregação não estiver fundamentada na autêntica santidade de vida
e numa espiritualidade madura.
Concretamente, o Concílio lembra a obrigação de fazer a homilia
também nas celebrações eucarísticas dos dias de semana e não só na
liturgia dominical43. Preparando-se para essa homilia diária, cada dia
ele será moldado e formado pela palavra de Deus que proclama, da qual
“ele não é dono, mas servo”44. Essa prática exige, dia após dia, uma
leitura orante do Lecionário, de alcance inestimável.
Tomada a sério, essa responsabilidade para com a Palavra de Deus,
por parte do presbítero, torna-se um firme fundamento da sua própria
espiritualidade. Por outro lado, se não for levada a sério, tornar-se-á
contraproducente, como afirma Karl Rahner:
“A palavra de Deus na boca de um padre vazio de fé ou de amor é uma
sentença mais terrível do que toda versificação e tagarelice poética na
boca de alguém que se julga poeta sem que o seja de fato. Se já é uma
mentira e uma sentença contra uma pessoa ela falar do que não tem
dentro de si, muito pior é falar de Deus se não tem Deus”45.
Assim, a preparação da homilia torna-se a âncora da espiritualidade
do padre fiel à oração e à reflexão, a ouvir em silêncio a voz de Deus
revelada a ele pela Palavra, refletida nos acontecimentos do dia46. Ou
seja, ao ensinar, ele aprende pelo poder da palavra de Deus, a libertação,
perdão e cura que compartilha com seus ouvintes. Ao orientar, o padre
também é orientado47. Ao lembrar para os outros que Deus compreende e
aceita o pecador, o padre descobre que também é aceito e compreendido,
apesar de suas falhas e limitações humanas.
58
43
Cf. Sacrosanctum Concilium, 52.
44
Cf. Pastores Dabo Vobis, 26.
45
Cf. COZZENS, 2008, p. 72.
46
Cf. LORSCHEIDER, 2007, p. 66.
47
Cf. GRUN, 2006, p. 63.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Osmar Debatin
Poderíamos dizer então que a espiritualidade do presbítero é uma
espiritualidade de proclamação, pois ao longo de anos de fé e formação,
ele tem oportunidade de conhecer pessoalmente o poder da palavra proclamada48. Todavia, o fato de persistir certa dissociação entre a Palavra
proclamada e a Palavra vivida, o último Sínodo dos Bispos sobre a Palavra
de Deus (outubro 2008) manifestou uma grande preocupação com as
homilias proclamadas nas celebrações, que têm sido alvo de descontentamento entre muitos fiéis. Por isso, os Bispos Sinodais apresentaram
algumas sugestões de como deveriam ser realizadas essas homilias.
Tomemos como exemplo a palavra do bispo de Nicolet (Canadá), Dom
Raymond Saint-Gelais: “A homilia deve introduzir a assembléia no
mistério da Palavra que Deus lhe dirige em sua vida concreta. Favorece
deste modo a relação entre Palavra de Deus e a cultura, a fé e a vida.”
Também o cardeal Albert Vanhoye, ex-Secretário da Pontifícia
Comissão Bíblica, em entrevista, afirmou: “As homilias devem ser fruto
da lectio divina; elas devem verdadeiramente dar aos fiéis um contato
concreto com a Palavra de Deus; explicar bem claramente seu alcance
imediato e depois seguir com a aplicação à vida. Devem ter uma força
penetrante na vida”.
Em síntese, a espiritualidade do presbítero e a Palavra de Deus se
encontram numa relação dialética, que tem sua síntese na pregação, em
serviço à Palavra de Deus. Nisso, o estímulo à pregação cuidadosa da
homilia é a principal nota característica da espiritualidade do presbítero,
conforme os ensinamentos do Concílio. A pregação diária da homilia
exige oração e reflexão, estudo e contemplação, e requer que o padre
adquira a imaginação dos romancistas e a sensibilidade do coração dos
poetas. “Pregar bem e com proveito, ser um servo dirigente na comunidade cristã, evangelizar a sociedade para transformá-la, é realmente uma
missão preciosa, tantas vezes heróica, a missão do padre”49.
Conclusão
Os documentos do Concílio Vaticano II, particularmente a Lumen
Gentium, nos dois primeiros capítulos; “O Mistério da Igreja” e “O
Povo de Deus”, e o documento Presbyterorum Ordinis, reelaboraram de
forma significativa a questão da identidade do presbítero. Com todos os
48
Cf. Presbyterorum Ordinis, 4
49
Cf. COZZENS, 2008, p 76.
Encontros Teológicos nº 53
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59
A Espiritualidade do Presbítero
batizados, os presbíteros devem entrar no caminho pascal comum que
conduz à santidade, não se supondo mais que a espiritualidade sacerdotal
seja “superior” à santidade dos leigos. Os presbíteros devem pregar a
Palavra como profetas que ouviram a palavra proclamada por vozes que
não são sua própria voz; por fiéis que vivem no centro e nos contornos
da paróquia.
Os padres continuam sendo dirigentes, porém, mais do que nunca,
líderes servos em busca da santidade junto com seus paroquianos. Por
isso, como presbíteros, devem ministrar em colaboração com outros
ministros, religiosos/as, e leigos/as, com seus dons manifestos e com um
número crescente de colaboradores. Ao mesmo tempo, os presbíteros,
mesmo se jovens, não podem renunciar a ser como os “anciãos” (presbýteroi) da comunidade, representantes do bispo diocesano e líderes
de seus paroquianos. Algumas dessas características foram lembradas
pelo Santo Padre no homilia de abertura do Ano Sacerdotal, ao dizer:
“No mundo atual, não menos que nos tempos difíceis do Cura de Ars,
é preciso que os presbíteros, na sua vida e ação, se distingam por um
vigoroso testemunho evangélico. Paulo VI observou, justamente, que
“o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então, se escuta os mestres, é porque eles são
testemunhas”50.
Em síntese. A essência do sacerdócio ministerial permanece coerente com a tradição da Igreja, mas o novo contexto e a consciência do
sacerdócio batismal comum exige novas formas de vivência, pastoreio,
pregação, coordenação, ensino. Isso, para que o padre seja sempre mais
e melhor arauto do evangelho e perito em humanidade. Nesse sentido,
creio que duas palavras resumam a nova maneira de viver a espiritualidade presbiteral neste contexto de mudanças: OUVIR e AMAR.
Endereço do Autor:
Rua Cônego Bernardo, 132, bairro da Trindade
CEP 88036-570 Florianópolis, SC
Email: [email protected]
50
60
Cf. Carta do papa Bento XVI por ocasião da abertura do Ano Sacerdotal, 16 de junho de
2009. http://www.cnbb.org.br/ns/modules/mastop_publish/files/files_4a3a9ad85c9ce.
pdf. Acessado em 02/07/2009.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: A 47ª Assembléia Geral da CNBB, realizada em maio de 2008, aprovou
as novas Diretrizes da Formação Presbiteral da Igreja no Brasil. O que se busca
é a unidade no processo de formação dos presbíteros em nosso país, desde a
formação inicial até a formação permanente. As Diretrizes da Formação constatam os desafios atuais para a formação presbiteral, de ordem social, econômica,
cultural, religiosa; os desafios internos ao processo formativo, como a exigência
de melhor qualificação dos formadores; analisa o processo de formação à luz do
Concílio Vaticano II e dos documentos da Igreja no Brasil e na América Latina.
Esse documento é uma feliz oportunidade para refletir sobre o ser e o agir do
presbítero no contexto das celebrações do Ano Sacerdotal.
Abstract: The 47th General Assembly of the CNBB, held in May of 2008, gave
its approval of the new Directory for Priestly Formation in the Church in Brazil.
The aim to be achieved is the unity in all stages of formation of priests in our
country in its initial stages up to a permanent formation further on. The Directory
of Formation takes into account the challenges of today for continuous growth
of the priesthood on a social economic, cultural, and religious level, as well as
the quest for course offerings intended to provide good qualifications for those
entrusted with priestly formation. The process of formation is being analyzed in
the light of the Council of Vatican II and the documents of the Church in Brazil
and Latin America. It is to be noted that these documents offer a fruitful opportunity for reflection upon the identity and an energetic life of the priests during
the commemoration of the year dedicated to the priesthood.
Ano Sacerdotal e a Formação
dos Seminaristas
Pe. Paulo Dal’Bo*
* O Autor é Sacerdote, Presidente Nacional da OSIB e reitor do Seminário Maria Mãe
da Igreja, Diocese de Colatina, Espírito Santo.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 61-72.
Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
As novas Diretrizes da Formação Presbiteral da Igreja no Brasil
foram aprovadas por unanimidade e com muito louvor na 47ª Assembléia
Geral dos Bispos da Igreja no Brasil em Itaici – São Paulo, no período
de 22 de abril a 01 de maio de 2009. Falta-nos a aprovação da Santa Sé
para que sejam publicadas e vivenciadas no processo formativo. As novas
Diretrizes levam em conta, especialmente, as mudadas situações da realidade formativa e a riqueza missionária do documento da V Conferência
do Episcopado da América Latina e do Caribe, celebrada em Aparecida
(13 a 31 de maio de 2007). A meta é imprimir unidade ao processo de
formação inicial dos futuros presbíteros, levando em conta a diversidade
cultural e a qualificação de seu processo de formação permanente para que
o sacerdócio seja exercido e vivido por autênticos presbíteros-discípulos,
presbíteros-missionários e presbíteros-servidores da vida, cheios de
misericórdia (DAp 199), “consagrados para pregar o Evangelho, serem
pastores do Povo de Deus, celebrarem os sacramentos” (LG 28).
Elaboradas no contexto do Ano Sacerdotal que celebra 150 anos da
morte do Santo Cura D’Ars, os Bispos desejam que estas Diretrizes expressem o pensamento do papa Bento XVI sobre o seminário: “O seminário é
tempo de caminho, de busca, mas, sobretudo, de descoberta de Cristo. De
fato, na medida em que se faz uma experiência pessoal de Cristo, o jovem
pode compreender verdadeiramente a sua vontade e em consequência a
própria vocação. Quanto mais conheceis Jesus tanto mais o seu mistério
os atrai; quanto mais o encontrais tanto mais estareis impulsionados a
procurá-Lo. É um movimento do espírito que dura toda da vida e que encontra no seminário uma estação repleta de promessas, a sua primavera”.
(Bento XVI, Aos seminaristas em Colônia 19.08.05). As atuais Diretrizes
abordam as Coordenadas da Formação Presbiteral (I parte), a Formação
Inicial (II parte) e a Formação Permanente (III parte).
O Ano Sacerdotal ressoa em nossos corações como grande dádiva de Deus, inspirando-nos movimentos contínuos de uma Igreja mais
acolhedora e amorosa. Para que isso aconteça, não é possível pensar o
ano sacerdotal e a formação dos futuros presbíteros de nossa Igreja de
forma isolada ou desconectada. Como também não é possível falar de
um projeto de formação presbiteral de forma desencarnada. Após muitas
consultas, trocas de experiências, reflexões, entre bispos, formadores,
formandos e demais pessoas que colaboram no processo formativo,
chegou-se a conclusão que as novas Diretrizes deveriam apresentar
propostas claras, integradas, ágeis, flexíveis, com um olhar atento e
62
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Paulo Dal’Bo
inovador, e possíveis caminhos esperançosos à luz da fé, que atendam
aos desafios da realidade atual.
Estamos vivendo um período em mudança de época em diversos
níveis da sociedade. Por isso, para se pensar o processo formativo da Igreja
no Brasil, podemos tomar com ponto de partida os seguintes aspectos: a
natureza do sacerdócio ministerial e a realidade dos presbíteros e dos que
são chamados ao ministério ordenado. Para a sua devida percepção e avaliação critica, a realidade será vista com os olhos da fé, o auxílio do saber
filosófico e das ciências. É preciso conhecer bem a realidade para assumi-la
e transformá-la à luz do Evangelho. “A realidade atual exige de nós maior
atenção aos projetos de formação dos Seminários” (DAp 318).
As novas Diretrizes apresentam várias realidades e temas pertinentes que merecem atenção especial. Podemos elencar algumas
realidades:
Desafios em mudança de época
Na atual realidade, verificam-se situações que afetam e desafiam a
vida e o ministério dos presbíteros. Na abordagem dos desafios podem-se
destacar “a identidade teológica do ministério presbiteral, sua inserção na
cultura atual e as situações que incidem em sua existência” (DAp 192).
O presbítero é atingido pelos desafios da cultura atual porque nela
está inserido. Estamos vivendo uma mudança de época que além de alterar
paradigmas estabelecidos, questiona, prescinde ou nega os valores de
muitas instituições. Esta mudança de época, de um lado, fragmenta a vida
e as instituições educativas; por outro lado, clama por pessoas integradas,
instituições educativas renovadas e capacidade de ler e interpretar os
“sinais dos tempos” (GS 4), no horizonte da fé.
No emaranhado desta mudança de época, destacam-se algumas
transformações entrelaçadas cujas consequências são necessárias mensurar sempre, seja em extensão social, grupal, seja em profundidade no
coração e na mente dos indivíduos. Analisadas por cientistas sociais e
pedagogos, elas carregam dinâmicas inovadoras, embora apresentem
riscos e pontos restritivos, carreguem também dinâmicas inovadoras.
Constatam-se mudanças na maneira de lidar com o tempo. Suas
características estão no gosto pela rapidez, no centrar-se no instante, nos
contatos imediatos e na virtualidade da própria vida. Daí decorre um
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
descaso com a finitude humana, com a consciência histórica, dimensão
fundante de nossa identidade humana e cristã.
São perceptíveis as mudanças no que se refere à comunicação
cujas marcas podem ser o pouco dizer e o muito sentir; o deixar-se tocar
e seduzir na base do estímulo-resposta, sem espaço para a liberdade de
uma escolha responsável. Neste quadro situa-se o estilo de “marketing”
e “visibilidade”, provocando o consumo, a mera aparência, o exibicionismo, a obtenção de aplausos e a religião como espetáculo.
Há mudanças na relação com a economia. Além do consumismo,
suas características são a tirania do conforto, a busca de facilidades, o
esteticismo da vida, a independência no uso do dinheiro, sem preocupação
de prestar contas e sem gratuidade.
Há mudanças no que se refere à autoridade e ao poder. Suas
características são a auto-suficiência, o democratismo e a competição.
Buscam-se posições de prestígio e comando sem referências ao serviço
e ao diálogo. A universalização da tecnologia tende a pulverizar o poder,
como na internet. A ânsia pelo poder instala-se na mente e no coração
das pessoas. A opção é por relações horizontais e abertas sem hierarquia,
fazendo da reciprocidade um desafio.
É importante recordar que o pêndulo da história oscila. Há pessoas
e grupos que não se dão conta de viverem as consequências das mudanças
em andamento. Há pessoas e grupos que reagem às mudanças fechando-se
ao real mediante práticas fundamentalistas, com rigidez, buscando segurança em um estilo de vida próprio do passado. Estas posturas revelam
como as mudanças afetam a todos e de modos antagônicos.
Existe um desafio em relação à identidade teológica do ministério
presbiteral. Dado que “o Concílio Vaticano II estabelece o sacerdócio
ministerial a serviço do sacerdócio comum dos fiéis e cada um, ainda que
de maneira qualitativamente diferente, participa do único sacerdócio de
Cristo” (LG 10, DAp 193), existe a tentação de considerar o “presbítero
somente um mero delegado ou só um representante da comunidade”
(DAp 193). Às vezes não se percebe o sentido de que ele, pela unção do
Espírito e por sua especial união com Cristo, é um dom para a comunidade. “Todo sumo sacerdote é tomado dentre os homens e colocado
para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço
de Deus” (Hb 5,1).
64
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Paulo Dal’Bo
Outro desafio se refere aos aspectos vitais e afetivos, especialmente
para a vivência do celibato e da vida espiritual. Nota-se hoje uma profunda
mudança comportamental no modo como as pessoas se relacionam entre
si; por vezes se reinventam vínculos afetivos episódicos ou virtuais. Isso
interfere profundamente na intimidade de cada pessoa. Está em moda
uma simples aproximação afetiva sem gerar compromisso, correndo-se o
risco de brincar com os sentimentos alheios. Também na área da religiosidade frequentemente se busca uma espiritualidade difusa, que oferece
satisfações emotivas, proximidade e conforto interior. Por outro lado, por
vezes, constata-se a falta de vida espiritual intensa fundada na caridade
pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão
com os irmãos; a falta de cultivo de relações fraternas com o bispo, com
os demais presbíteros da diocese e com os leigos; a falta de mortificação
e entrega apaixonada por sua missão pastoral (DAp 195).
Existem também os desafios que são de caráter estrutural, como
por exemplo, “a existência de paróquias muito grandes que dificultam o
exercício de uma pastoral adequada; paróquias muito pobres que fazem
com que os pastores se dediquem a outras tarefas para poder subsistir;
paróquias situadas em regiões de extrema violência e insegurança e a falta
e má distribuição de presbíteros nas Igrejas do Continente” (DAp 197).
As estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses,
paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja nem sempre estão impregnadas do espírito missionário. A
renovação pastoral e missionária pede que se abandonem as ultrapassadas
estruturas que já não favorecem a transmissão da fé (DAp 365).
Os católicos não-praticantes constituem um grande desafio pastoral que “questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé
e como estamos alimentando a experiência cristã” (DAp 287). Muitos
são os que não participam da Eucaristia, não se inserem na comunidade
eclesial, nem atuam como cristãos na sociedade. Acrescente-se a situação dos que têm deixado a Igreja (DAp 225), em meio ao acentuado
pluralismo religioso.
Surgem “novos rostos de pobres”, expressando o agravamento
das situações de pobreza e sofrimento e o surgimento de novas situações
(DAp 65; 402), envolvendo os aspectos sociais, políticos, econômicos e
culturais. Esses rostos interpelam a vida e o ministério dos presbíteros.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
65
Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
Vasto campo de atuação presbiteral é a realidade urbana (DAp
509-519), com seus múltiplos desafios, dentre os quais, destacam-se os
“novos areópagos e centros de decisão” (DAp 491-500), trazendo consigo
a urgência da evangelização da cultura. A presença dos cristãos nestes
ambientes tem sido pequena. A formação para neles atuar tem sido insuficiente nas comunidades cristãs e nos próprios seminários do Brasil.
A Conferência de Aparecida aponta para desafio de uma verdadeira
conversão pastoral, da necessidade de estar em estado permanente de
missão, de uma pastoral que vá para além de “mera conservação para uma
pastoral decididamente missionária” (DAp 370). Há também o desafio
“de viver na Igreja a paixão que norteia a vida de Jesus Cristo: o Reino
de Deus, fonte de graça, justiça, paz e amor. Por esse Reino, o Senhor
deu a vida” (DGAE 2008-2010, n.46). Tais desafios envolvem a vida
e o ministério do presbítero. Uma verdadeira conversão pastoral deve
estimular e inspirar atitudes e iniciativas formativas de auto-avaliação e
coragem de mudar várias estruturas pastorais em todos os níveis, serviços,
organismos, movimentos e associações.
Na mudança de época que atravessamos as relações entre fé e
comunidade muitas vezes sofrem abalos. Uma nova recepção do Vaticano II se impõe, em que a Igreja Povo de Deus se realize na paróquia
“comunidade de pequenas comunidades” (DAp 307-310). Missão e
comunidade são duas urgências que se completam; não se opõem. A
trans-territorialidade da paróquia urbana exige um novo tipo de padre, que
vá em busca dos afastados, excluídos, sobretudo os pobres e esquecidos,
demonstrando sempre a atitude acolhedora e misericordiosa.
A ecologia nos últimos anos tem merecido atenção especial da
parte da Igreja e de entidades civis. Cresce a agressão ao planeta enquanto natureza. Em contexto mais amplo, a agressão leva ao aquecimento
global, ao esgotamento dos recursos naturais e à exploração predatória
da natureza. “A agressão é conseqüência de um modelo de desenvolvimento econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado
financeiro e prioriza o agronegócio” (DGAE 2008-2010, n.37). “A devastação ambiental da Amazônia e agressões à dignidade, à cultura dos
povos indígenas, por parte de fortes interesses e grupos econômicos se
intensificam” (DGAE 2008-2010, n.36).
Os desafios acima mencionados então contemplados nos números 13
a 30 das novas Diretrizes. Além desses, podemos elencar outros como:
66
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Paulo Dal’Bo
– Rotatividade de formadores. É difícil criar consistência num
trabalho quando não se tem seqüência. Muitos seminários no
Brasil mudam constantemente seus formadores. Há um número
elevadíssimo de presbíteros que estão na função de reitores
por uma necessidade da Diocese e não por vocação. Muitos
assumem o cargo sem nenhuma preparação;
– Situação dos egressos – seminaristas que são encaminhados
para outro projeto de vida, procuram outros seminários e são
acolhidos por bispos e formadores sem consultarem os formadores anteriores;
– Perda da qualidade dos cursos de Filosofia e Teologia. Muitos
Institutos de Filosofia e Teologia encontram dificuldades para
reconhecer seus cursos, por isso, fazem parceria com faculdades a fim de reconhecer seus cursos, e se adéquam as normas
da faculdade e do MEC. Algumas matérias consideradas importantes pela Igreja nos cursos de Filosofia e Teologia, hoje
cedem espaços para matérias relacionadas mais ao campo
pedagógico.
– Crise vocacional. Na década de noventa e início desta década
houve um crescimento significativo de vocações, em todos os
sentidos. A revista Isto É divulgou estes dados recentemente.
Mas pode-se fazer outra leitura. De um lado constata-se ainda
um bom número de seminaristas internos (que são frutos do
período de crescimento), mas por outro lado, nos últimos três
anos, percebe-se uma baixa no número de jovens que procuram fazer o processo de experiência vocacional e entrar para o
seminário. Não podemos afirmar que esta crise esteja afetando
todos os regionais da Igreja no Brasil, mas a partir da convivência e troca de experiências entre formadores nos encontros
promovidos pela Organização dos Seminários e Institutos do
Brasil (OSIB), tanto em nível nacional quanto regional, nos
últimos três anos, tem-se observado uma queda significativa
de seminaristas e vocacionados, principalmente nos seminários
diocesanos e nas congregações religiosas mais tradicionais.
Alguém pode estar se perguntando: somente agora isto está
acontecendo? Na realidade, autos e baixos sempre existiram
no processo formativo. Num período não muito longínquo
passamos por esta experiência.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
Crise após o Concílio Vaticano II
Os dados abaixo apresentam alguns indicativos da crise pós
conciliar:
As conferências de Medellin e Puebla e as pesquisas realizadas após
o Concilio Vaticano II atestam que a crise vocacional, na época, se referia
a uma crise de identidade. O próprio episcopado brasileiro, logo após o
Concilio, é quem melhor faz referência a esta crise de identidade, afirmando
que entre os sacerdotes diocesanos e religiosos, cresceu uma onda generalizada de mal-estar, com sérias repercussões. Foi uma crise muito séria,
quantitativa e qualitativamente, gerando um desconforto e desistência de
um grande número de presbíteros e também de seminaristas. Foi realmente
um período de insegurança e interrogações. Com a publicação das diretrizes
da formação presbiteral da igreja no Brasil, aprovadas em abril de 1994,
a crise muda seu foco. As diretrizes acenam para uma superação da crise
de identidade, mas chamam a atenção para outra crise que atualmente
ameaça o ministério presbiteral no Brasil. Não é a única, mas o número
20 das diretrizes acena, com muita relevância, para a “crise da sobrecarga
de trabalho pastoral, geradora de cansaço, de rotina, de superficialidade
na oração e no estudo, de solidão afetiva e de fragilidade”.
Vivendo num mundo que valoriza a dinâmica do descartável,
do individualismo e da linguagem imediatista pode-se imaginar alguns
outros indicativos:
– O período de formação (duração de todo o processo formativo)
das congregações religiosas e do padre diocesano, não é mais
um atrativo ou incentivo para os jovens que desejam entrar
para a vida consagrada;
– O número crescente de Comunidade de Vida dentro da própria
igreja católica, com programas de estudos de menor duração.
Muitos jovens preferem esse modelo;
– O pluralismo religioso;
– Falta de empenho e melhores projetos de convite e incentivo
aos jovens (por parte da própria igreja); etc.
– Número de filhos reduzidos (famílias menores).
– Perda de status e prestígio do padre, professor e outras áreas
de Ciências Humanas.
– Estimulo exacerbado do hedonismo, narcisismo e consumo
contra uma estrutura de Igreja mais disciplinada.
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Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Paulo Dal’Bo
– Sistema de formação as vezes muito fechado em comparação
as instituições sociais.
– O celibato e o compromisso a longo prazo assustam valores
rápidos, imediatos e provisórios.
– etc
Os vocacionados ao sacerdócio vivem em meio a esta realidade
e dela provêm, sendo por ela influenciados. Os presbíteros vivem o seu
ministério em meio a estas situações, devendo nelas atuar. Por isso, é
importante considerá-las no contexto da formação presbiteral. (nº 31
das novas Diretrizes).
Juventude sofre o maior impacto
As novas Diretrizes (nº 33) afirmam que é no campo da juventude
que as mudanças de épocas se fazem sentir com maior impacto. Assim, os
jovens vocacionados e seminaristas, em geral, apresentam-se carentes de
atenção e com projetos próprios fechados ao projeto formativo da Igreja;
pedem horizontes de sentido de vida que os liberte das fragmentações,
embora resistam ao conhecimento maior de si mesmos; sonham com um
caminho que dê certo. Com a vocação, buscam um dinamismo que lhes
traga contentamento, sentido e realização. A vocação como fenômeno
humano se inscreve, pois, na profundidade da pessoa em sua busca por
mais ser. Com efeito, na dinâmica evangélica, a vocação humana se
caracteriza pelo desejo de realizar a vontade de Deus e deixar-se transformar por ela (Rm 12,2).
O nº 34 menciona que a desigualdade de oportunidades para a
inserção nas transformações culturais em curso no universo da juventude
trará também diferenças entre os jovens vocacionados. O documento
Evangelização da Juventude constata: “A pós-modernidade não substitui
a modernidade. As culturas vivem juntas. Os valores da modernidade
continuam sendo importantes para os jovens: a democracia, o diálogo,
a busca da felicidade humana, a transparência, os direitos individuais, a
liberdade, a justiça, a sexualidade, a igualdade e o respeito à diversidade.
Uma Igreja que não acolhe estes valores encontra grandes dificuldades
para evangelizar os jovens” (n.13). Merecem ser lembrados, em especial: “a subjetividade, as novas expressões de vivência do sagrado e a
centralidade das emoções” (n.15).
Encontros Teológicos nº 53
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Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
Viver melhor: Ano Sacerdotal e formação
dos futuros presbíteros
A partir das realidades apresentadas é possível imaginar que o
processo formativo exigirá dos bispos, formadores, formandos e leigos,
muito trabalho, profissionalismo e vida de oração. Por onde começar?
O que fazer? O ano Sacerdotal pode ser um bom começo. Mas como os
seminários podem viver o Ano Sacerdotal buscando elementos eficazes
que favoreçam um processo formativo mais integrado?
A Organização dos Seminários e Institutos do Brasil (OSIB) oferece
vários cursos e encontros durante o ano, em nível nacional e regional para
formadores, formandos e profissionais que colaboram no processo formativo,
com temas relacionados às situações mais emergentes. Neste Ano Sacerdotal,
por exemplo, a OSIB nacional está refletindo a “FORMAÇÃO PRESBITERAL EM MUDANÇA DE ÉPOCA”, perpassando as cinco dimensões
do processo formativo (dimensões: humano-afetiva, comunitária, espiritual,
pastoral-missionária e intelectual) em dois módulos, o primeiro em julho
(Fortaleza) e o segundo em janeiro de 2010 (São Paulo). Todo este esforço
é válido, mas não é o suficiente. Para se chegar a uma consciência mais
ampla do Ano Sacerdotal é necessário iniciar um trabalho internamente entre
presbíteros e formandos. Não se pode esperar que somente os seminaristas
busquem estabelecer algum tipo de diálogo e relacionamento com o clero
atual. É preciso que os presbíteros também se envolvam no processo. Se
fizéssemos uma pesquisa em nível nacional, chegaríamos a um percentual
elevadíssimo de presbíteros que não freqüentam os seminários e não se
envolvem no processo formativo. Para que o Ano Sacerdotal seja um elo
de comunhão e participação entre presbíteros e seminaristas, a OSIB sugere
alguns elementos simples, mas que poderão produzir bons frutos:
– Encontros de reflexão entre presbíteros e seminaristas (troca
de experiências);
– Retiros espirituais conjuntamente;
– Que os seminaristas preparem com muita criatividade: a) momentos fortes de oração semanalmente relacionados ao ano
sacerdotal; b) Adoração ao Santíssimo, ao menos na primeira
quinta-feira de cada mês; c) Tríduo vocacional, principalmente
no mês agosto, etc;
– Temas específicos para seminaristas, assessorados pelos próprios presbíteros;
– Momentos de lazer;
70
Encontros Teológicos nº 53
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Paulo Dal’Bo
–
–
–
–
Visitas dos presbíteros aos seminários periodicamente;
Visitas dos seminaristas às paróquias;
Eventos diocesanos preparados conjuntamente;
Visita dos formadores e demais presbíteros às famílias dos
seminaristas;
– Que os bispos incentivem e valorizem estas parcerias;
– Além desse trabalho interno, é preciso que todos (bispos,
presbíteros, seminaristas, religiosos, religiosas, leigos e leigas)
se empenhem na formação de base nas famílias e comunidades, criando equipe vocacional paroquial e valorizando todo
o trabalho da Pastoral Vocacional (ou Serviço de Animação
Vocacional);
– Etc...
As novas Diretrizes apresentam uma gama enorme de temas que
nos ajudam a compreender e viver melhor o Ano Sacerdotal e o processo
formativo da Igreja no Brasil. Segue alguns temas de grande relevância
que as Diretrizes apresentam:
– Fundamentos teológicos da formação presbiteral;
– Os sacramentos do Batismo e da Confirmação como fonte do
seguimento de Cristo;
– O sacramento da Ordem como fonte da configuração sacramental a Cristo Cabeça da Igreja, e a identidade do presbítero;
– Identidade, vida e missão do presbítero;
– O presbítero diocesano;
– O processo formativo;
– A importância da Pastoral Vocacional;
– Os responsáveis pela Pastoral Vocacional;
– Seminário menor e institutos afins;
– O Propedêutico;
– Espaços da formação específica;
– Requisitos para o ingresso no seminário ou casa de formação;
– Objetivos e exigências da formação;
– Instituições de nível fundamental e médio;
– Instituições para o estudo de Filosofia e Teologia;
– O ano pastoral. Como será desenvolvido?
– Tempo de iniciação ao ministério eclesial – Rito de Admissão
como candidato às Ordens Sacras;
– Tempo de formação para os ministérios de Leitor e Acólito;
Encontros Teológicos nº 53
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Ano Sacerdotal e a Formação dos Seminaristas
– Tempo de formação e preparação para as ordenações: Diaconal
e Presbiteral;
– Pedagogia e itinerário formativo;
– As dimensões da formação presbiteral: humano-afetiva, comunitária, espiritual, pastoral-missionária e intelectual;
– Perspectivas para a formação permanente dos presbíteros;
– Pastoral presbiteral;
– Formação especializada;
– Etc.
Em nome da OSIB desejo muita luz, saúde, paz, bençãos e graças
a todos os bispos, presbíteros, formadores, formandos e todo povo santo
de Deus.
Vida longa e feliz para todos
... A vida é mais do que paixões, é amor, sonhos e canções...
A vida é mais do que prazer. A vida é encontrar-se, viver e ser feliz.
A vida é alegria, inspiração e brilho. É um misto de trabalho, cansaço e prazer.
A vida consiste em lágrimas, sofrimentos e um grande esforço pra
sobreviver.
A vida é uma luta constante por liberdade, é um encontrar-se com suas
emoções e sensibilidades.
A vida é um inclinar-se sob uma força Maior, e ao mesmo tempo, um
esforço para subir, voar e ser feliz.
A vida é aproveitar as oportunidades, enquanto outros dormem e buscar
a felicidade.
Assim como o dia é um instante da vida, a vida é um instante da eternidade.
A vida é uma única viagem, não sabemos como e onde chegar.
A vida é uma arte onde todos são artistas. Podemos conhecê-la, aprender
a vivê-la e sermos felizes...
Que o Ano Sacerdotal e as novas diretrizes ofereçam espaços
privilegiados do encontro com o Senhor Jesus, para que o ser humano
se encontre na vida, seja feliz e saiba fazer da vida um instrumento
sereno, humilde e forte da presença do Deus da vida que quer vida em
abundância para todas as vidas...
Endereço do Autor:
Av. Coronel Manoel Nenus, 1415
Jardim Tropical
29162-010 Serra, ES
72
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: Para Santo Agostinho, o termo “ministério” em seu sentido religioso
amplo designa “um serviço que se presta a Deus”. Em seu sentido mais estrito
indica um serviço à Igreja. Daqui o conceito de “ministro”, como o que serve a
Deus, a Cristo, à Igreja. Agostinho foi grande incentivador dos ministérios na
Igreja, hierárquicos ou não, mostrando as condições para o seu exercício de
forma eficaz para a evangelização: a oração e a meditação da Palavra, de um
lado; e o testemunho de vida, de outro. Dedicou especial atenção à fundamentar
o ministério do diácono, do presbítero e do bispo, como modos privilegiados
de ser cristão e de contribuir na organização da Igreja, corpo de Cristo e toda
ela ministerial.
Abstract: For Saint Augustine, the word “ministry” in a wider religious sense
has the meaning of “service rendered to God.” But in a stricter sense it means
a service rendered to the Church. Hence, the idea of ”minister” as the one serving God, Christ, and the Church. Augustine was giving great incentive to the
ministries of the Church, both by the hierarchy and laity, giving an overview of
the conditions for the efficacy of the discharge of their mission of spreading the
Gospel : both in prayer and meditation, and in their living witness to the word of
God. He gave special attention to lay the foundation of the ministry of deacons,
priests and bishops as privileged modes of Christian service in an attempt to
organizing the Church as the body of Christ entirely engaged in ministry.
Os ministérios em Santo Agostinho
Dom Manoel João Francisco*
* O Autor é Bispo de Chapecó, SC.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 73-100.
Os ministérios em Santo Agostinho
S. Agostinho nasceu em 354 e morreu em 430. Estamos, portanto,
entre o século IV e V. Escreveu muito, quase sempre para defender a fé católica, principalmente contra os maniqueístas, os donatistas, os pelagianos
e arianos. Por causa de sua firmeza na doutrina e clareza de pensamento,
seus contemporâneos, cristãos e pagãos, o tinham em grande consideração.
A ele escreveu São Jerônimo: Os católicos te veneram e te acatam como
novo construtor da antiga fé e, o que é indício da maior glória, todos os
hereges te maldizem1. Um pagão chamado Longíneo, depois de ter-se
encontrado com S. Agostinho e discutido com ele, definiu-o como o mais
excelente dos Romanos e um homem de bem como jamais existiu2.
Em sua época, a doutrina dos ministérios, não foi contestada, por
isso não precisou ser defendida, nem exposta de forma sistematizada. Seu
pensamento sobre o assunto encontra-se em textos de circunstância, espalhados em toda a sua obra, especialmente em suas cartas e sermões3.
S. Agostinho não dá uma definição exata de ministério. Não se
pergunta sobre o que é, mas como se vive o compromisso próprio de cada
ministério. Sem preocupação essencialista, aplica diversos sentidos ao
termo ministério. Desde o mais genérico até o mais técnico e específico.
Em sentido genérico, embora possa se referir a qualquer tipo de
serviço ou ofício, como por exemplo, o dos médicos ou dos professores4,
o termo ministério significa, de modo especial, o serviço que se presta a
Deus5. Segundo S. Agostinho, ministro fiel é aquele que não espera ouvir
o que deseja, mas antes deseja aquilo que ouve de Deus6.
Em sentido mais técnico e específico, aplica o termo ministério
para designar qualquer serviço prestado na Igreja. Aos que exercem tais
ministérios chama de “ministros de Deus”, “ministros de Cristo”, “ministros da Igreja”, “ministros eclesiásticos”7. Mais especificamente ainda,
74
1
S. JERÔNIMO, Carta 141.
2
Carta 234; cf. também Cartas 233 e 235.
3
Gregory Dix discorda desta opinião. Segundo ele, S. Agostinho expõe seu pensamento
sobre os ministérios de forma sistematizada, principalmente nos textos anti-donatistas.
Cf. G. DIX, “Le ministère dans l´Église ancienne”, Delachaux & Niestlé, S.A., Neuchâtel,
1955, p.25.
4
Comentário aos Salmos 87,10; Confissões 9, 2,2.
5
Comentário aos Salmos 8,1 e 7.
6
Confissões 10, 26,37.
7
Comentário aos Salmos 102,13; Tratados sobre o Evangelho de João 51,12; Cartas
134,4 e 228,12.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Dom Manoel João Francisco
S. Agostinho usa o termo ministro para os que foram estabelecidos nos
vários graus dos ministérios hierárquicos e são autoridades na Igreja8.
Entre esses, distingue os ministérios não ordenados, aos quais chama de
clérigos de ordem inferior, dos ministérios ordenados, a quem atribui
os títulos de bispos, presbíteros e diáconos9. No entanto, sacerdotes, no
sentido próprio da palavra, são somente os bispos e os presbíteros10. De
seus ministros Cristo exige apenas que o amem e demonstrem seu amor,
amando suas ovelhas.
Existem três categorias de cristãos: clérigos (ministros, autoridades) monges (também chamados “servos de Deus”) e leigos. Cada
uma destas categorias possui direitos e deveres diferentes. Em todas
elas encontram-se bons e maus. Fundamenta esta afirmação com a
passagem:”Dois homens estarão no campo, um será tomado e outro deixado, dois estarão no mesmo leito, um será tomado e outro será deixado,
duas mulheres estarão moendo no moinho, uma será tomada e outra será
deixada” (Mt 24,40-41; Lc 17,34). Segundo ele, os que estão no campo
são os que governam a Igreja, os clérigos; os que estão no leito são os
monges que, felizardos, podem usufruir da contemplação; as mulheres no
moinho representam os leigos que permanecem no mundo, no meio da
agitação da vida. De todas as categorias um é tomado, outro é deixado,
significando que um é bom e o outro não11.
Os clérigos deviam ser pessoas bem preparadas. Por isso, fundou,
em sua própria casa uma espécie de seminário para formar seus ministros,
a partir do leitorato até o presbiterato.
Do programa de estudos, além da gramática e da retórica, faziam
parte as seguintes disciplinas: línguas (grego e hebraico, além do latim)
história, geografia, história natural, astronomia, artes mecânicas, dialética,
matemáticas, música e filosofia.
Os cristãos em geral, mas de modo especial, os clérigos deveriam
aproveitar tudo o que os pensadores pagãos, especialmente os platônicos
ensinaram de útil e compatível com a nossa fé12. Se aos fiéis não era
8
Comentário aos Salmos 67,19.34; Sermão 356,3.
9
Carta 43,7-8.
10
11
A cidade de Deus, 20,10
Comentário aos Salmos 99,12-13.
12
A doutrina cristã 2, 40,58.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
75
Os ministérios em Santo Agostinho
conveniente ser inferiores aos pagãos com quem deviam conviver, menos
ainda, era aos clérigos que tinham a missão de orientar os fiéis.
Os judeus, quando saíram do Egito, levaram consigo os objetos
de ouro e prata que conseguiram dos egípcios. Da mesma forma deviam
agir os cristãos em relação às doutrinas pagãs. Elas possuíam, por certo,
ficções mentirosas, mas possuíam igualmente ensinamentos bastante
apropriados ao uso da verdade e preceitos morais muito úteis à pregação
do Evangelho13.
Dentre todas as disciplinas, S. Agostinho punha em destaque a
retórica. Em sua opinião, através da retórica, se podia persuadir para o
bem e servir a verdade14. Para atingir seu objetivo o orador devia fazer-se
escutar com atenção, com prazer e com docilidade15. “È necessário que o
orador eclesiástico, ao persuadir a respeito do dever a ser cumprido, não
somente ensine para instruir e agrade para cativar, mas, ainda, convença
para vencer. Não lhe resta, com efeito, senão um meio para levar o ouvinte a dar seu consentimento: o de convencer pelo poder da eloqüência,
no caso em que a demonstração da verdade unida ao encantamento da
expressão não conseguiu fazê-lo”16.
Embora recomende a eloqüência a seus clérigos, não se esquece de preveni-los quanto à condição fundamental do êxito: a oração e
meditação da Palavra. “Ouve o que estás dizendo, quem quer que sejas,
e se queres ser ouvido, primeiro escuta. E repete o que diz alguém em
outro salmo: ‘Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará
de paz a seu povo’ (Sl 84,9). Quem sou eu que não ouço o que o Senhor
me fala e quero que os outros escutem o que é proferido por meu intermédio? Que eu ouça primeiro, ouça, principalmente ouça o que falar em
mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo. Ouça e castigue o
meu corpo e o reduza à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo
proclamado a mensagem aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado
(1Co 9,27)”17. Embasado nesta convicção os sermões e todas as demais
76
13
G. BARDY, “Saint Augustin. L´homme et l`oeuvre”, Desclée, de Brouwer, Paris, 1948,
pp. 312-313; cf. A doutrina cristã 2,41,60; Carta 101, 2; Confissões 2,16,25-26.
14
Contra o gramático Crescônio 2,3.
15
A doutrina cristã 4,27,56.
16
A doutrina cristã 4,13,29.
17
Comentário aos Salmos 49,23.
Encontros Teológicos nº 53
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Dom Manoel João Francisco
obras de S. Agostinho estão recheadas de citações bíblicas. Os estudiosos
conseguiram detectar mais de 40.000 citações18.
Lembre-se o pregador que pode conseguir muito mais pela “piedade de suas orações do que por seus talentos de orador”. Assim, orando
por si, a fim de pronunciar bem o discurso e por aqueles a quem falará,
para que tirem proveito, o pregador deve ser orante, antes de ser orador19. “Deve rezar a Deus para pôr em sua boca boas palavras. Porque,
se a rainha Ester, no momento em que se dirigia ao rei para pedir-lhe a
salvação temporal de seu povo, rezou a Deus para pôr em seus lábios as
palavras convenientes (Est 4,17s; 14,13) quanto mais devem rezar para
obter graça semelhante os que “no ministério da palavra e na instrução”
(1Tm 5,17) trabalham para a salvação eterna dos homens”. O pregador
que não escuta o Mestre interior não passa de inútil e extrínseco, pois no
interior da alma somos todos ouvintes20. “Teu mestre está no teu interior;
quando ensinas, de certo modo sais ao encontro daqueles que estão do
lado de fora. No interior, de fato, ouvimos a verdade, e falamos àqueles
que estão fora de nosso coração”21. O orador “à medida que se aproxima a
hora em que usará da palavra e, antes de tomá-la, eleve sua alma sedenta
a Deus, para saber derramar para fora o que hauriu, e comunicar o de que
se impregnou... No momento mesmo de falar, que pense nesta palavras do
Senhor, que se aplicam particularmente a coração bem disposto:‘Quando
vos entregarem não fiqueis preocupados em saber como ou o que haveis
de falar, porque não sereis vós que falareis naquela hora, mas o Espírito
de vosso Pai é que falará em vós’ (Mt 10,19-20)”22.
Se o ouvinte não for tocado pela graça, nada acontecerá, pois ninguém consegue encontrar o Senhor se não lhe for concedido pelo Pai23.
“Com efeito, nós falamos exteriormente, e o Senhor edifica interiormente.
Notamos como ouvis, mas o que pensais, conhece-o apenas aquele que
vê vossos pensamentos. Ele edifica, ele admoesta, ele atemoriza, ele
abre o intelecto, ele aplica vosso modo de pensar à fé. Entretanto, nós
18
A.G.HAMMAN, “Saint Augustin et la formation du clergé en Afrique chrétienne”, em
IDEM “Études Patristiques. Méthodologie-liturgie-histoire-théologie, Beauchesne,
Paris, 1991, p. 274.
19
A doutrina cristã 4,31,63.
20
Sermão 179,1; cf. também Tratados sobre o Evangelho de João, 20,3: “Temos dentro
de nós Cristo como Mestre”.
21
Comentário aos Salmos, 139,15.
22
A doutrina cristã 4,16,32.
23
Comentário aos Salmos 87,10.
Encontros Teológicos nº 53
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77
Os ministérios em Santo Agostinho
também, como operários, trabalhamos: mas se o Senhor não edificar a
casa, em vão trabalharam os que a edificaram”24.
Portanto, o pregador, por mais excelente que for, não vai além de
um simples “seminator verborum”25. É Cristo quem fala nele e por ele.
“Somos, pois ministros da palavra, não da nossa palavra, mas sim da
palavra de Deus”26.
Preocupado com a fidelidade de sua pregação rezava: “Tira-me
da boca e do coração toda incerteza e toda mentira. Que tuas Escrituras
sejam castas delícias para mim; que eu não me engane sobre elas, nem a
outros engane com elas. Senhor meu Deus, escuta-me e tem compaixão
de mim, ó luz dos cegos e força dos fracos, e também luz dos que vêem e
força dos fortes, presta atenção à minha alma, ouve-a enquanto clama do
abismo profundo.[...]. Concede-me um pouco deste tempo para as minhas
meditações sobre os mistérios de tua Lei.[...]. Queira a tua misericórdia
que eu encontre graça junto a ti, a fim de que me sejam revelados os
significados ocultos de tuas palavras, quando eu lhes bater à porta”27.
O testemunho de vida do orador é também condição imprescindível
para a eficácia da pregação. A compreensão por parte dos ouvintes, será
tanto melhor quanto mais cristalino for o testemunho de vida do pregador.
“Com efeito, quem fala com sabedoria e eloqüência, mas vive mal, por
certo instrui a muitos, ávidos de aprender, se bem que fique ‘inútil para
sua própria alma’ (Eclo 37,21)... Eis por que eles são úteis a muitos, ainda
que dizendo o que não fazem. Mas seriam úteis a número bem maior de
pessoas, se fizessem o que dizem. São legiões, com efeito, as pessoas
que buscam justificar sua má vida pela conduta de seus superiores e
dos prepostos a instruí-las, dizendo-se interiormente de coração, e por
vezes até exteriormente, se seus sentimentos escapam pela boca: ‘O que
prescreves, por qual motivo não o fazes tu próprio?’ Assim, os fiéis não
escutam com docilidade quem não se escuta a si próprio, e desprezam a
Palavra de Deus que lhes é pregada, ao mesmo tempo que desprezam o
pregador. Finalmente, o Apóstolo, na sua carta a Timóteo, depois de ter
dito ‘que ninguém despreze a tua jovem idade’, acrescenta neste termos
78
24
Comentário aos Salmos 126,2.
25
Sermão 150, 8,9.
26
Sermão 114,1.
27
Confissões, 11,2,3-4.
Encontros Teológicos nº 53
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Dom Manoel João Francisco
o meio de não ser desprezado: ‘Sê para os fiéis um modelo na palavra,
na conduta, na caridade, na fé, na pureza’ (1Tm 4,12)”28.
Aceitava em seu seminário somente pessoas que já tinham certa
maturidade29, capazes de assumir as exigências próprias da função,
principalmente os votos de pobreza e de celibato. Só era ordenado o
candidato que se dispusesse a renunciar todos os seus bens, e estivesse
disposto a viver em pobreza radical30. Os casados, a partir da ordenação,
deviam viver em continência31. Também não eram aceitos os que tinham
se casado duas vezes32, nem os que tivessem cometido algum tipo de
delito, tais como, homicídio, adultério, fornicação, roubo, fraude, sacrilégio ou ações semelhantes33. Quando não estava seguro das intenções
do candidato adiava e, até mesmo, suspendia a ordenação34.
Ainda como presbítero, na qualidade de perito, participou do
Concílio geral da África, realizado em Hipona, no ano 393. Naquela
oportunidade comentou diante dos bispos ali reunidos todos os artigos do
credo35. Não tinha ilusão sobre o nível teológico dos bispos, nem sobre
a urgência de sua formação. Por isso, com certeza, sua mão e opinião
estão na redação do cânon que exige dos clérigos boa formação bíblica
e idade mínima de 25 anos36.
S. Agostinho era bastante reticente quanto à clericalização de
monges. Se algum deles quisesse fazer parte do clero, devia antes dar
provas de que era realmente digno. Seria uma grande injúria aceitar na
ordem dos clérigos os desertores dos mosteiros. Não se deve permitir que
se façam gozações com chistes como estes: “mau monge, bom clérigo”.
Além do mais, é bom que se tenha em conta que nem sempre um bom
monge será um bom clérigo37. Que bom seria se ainda hoje os bispos
28
A doutrina cristã 4,28,59-60; cf. também Sermão 101.
29
Carta 31,7.
30
Sermões 46,7,15 e 101,5,6.
31
Sobre os cônjuges adulterinos 2,20,22.
32
Dos bens do matrimônio 18,21.
33
Tratado sobre o Evangelho de João 41,10.
34
Carta 78,3.
35
Posteriormente publicado com o título “A fé e o Símbolo”.
36
C.J. HÉFÉLÉ, “Histoire des conciles”, Letouzey et Ané Éditeurs, Paris, 1908, t. II, 1.
VIII, p. 86.
37
Carta 60,1.
Encontros Teológicos nº 53
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79
Os ministérios em Santo Agostinho
tivessem os mesmos cuidados em relação à passagem de religiosos para
o clero secular.
Durante a liturgia os ministros deviam ocupar um lugar mais elevado na assembléia, “não para estarem ali cheios de orgulho, mas para
pensarem no encargo de que hão de dar contas”38.
Na Igreja de S. Agostinho existiam os seguintes ministérios: catequistas, porteiros, exorcistas, acólitos, leitores, salmistas, subdiáconos,
diáconos, presbíteros e bispo. A função de coveiro, com muita probabilidade não era considerada um ministério hierárquico39. Havia também
um grupo de leigos, chamados “seniores laici”, “seniores Ecclesiae”
ou simplesmente “seniores”, encarregados da administração dos bens e
da manutenção dos prédios. Constituíam uma espécie de conselho para
assuntos econômicos da diocese40. Além disso, em suas conversas, apresentavam ao Bispo questões teológicas41. Santo Agostinho considerava
também a paternidade como um ministério, comparando-a, inclusive,
com o episcopado42.
O catequista: O ministério de catequista era assumido com muita freqüência pelo diácono, pelo presbítero e até pelo bispo. No início
do seu ministério de presbítero, S. Agostinho por incumbência de seu
Bispo, Valério, assumiu o ministério de catequizar os catecúmenos. Ao
diácono Deogratias de Cartago S. Agostinho dirigiu o seu De Catechizandis rudibus43. Neste livro faz afirmações muito interessantes sobre o
catequista. Suas palavras devem ser tais que aquele que as ouve, ouvindo
creia, crendo espere e, esperando ame.
O catequista não deve rejeitar ninguém. Através de seu ministério,
Deus é capaz de converter, até mesmo, aqueles cuja motivação inicial
era dúbia ou mal intencionada.
“Se, porém, o que se aproxima da fé espera com isso alguma recompensa de alguém a quem não acredita poder agradar de outra forma,
ou tenta escapar de algum prejuízo causado por indivíduos cujo desagrado
80
38
Sermão 191,5.
39
Contra o gramático Crescônio 3,29,33.
40
Contra o gramático Crescônio 3,29,33; 3,56,62.
41
A advinhação diabólica 1,1.
42
Tratados sobre o Evangelho de João 51,13.
43
A tradução brasileira desta obra foi publicada pela Editora Vozes com o título A Instrução dos Catecúmenos.
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ou inimizade receia, não deseja realmente tornar-se cristão, mas simular
o que deseja: a fé não está no corpo que se inclina, mas na alma que crê.
Muitas vezes, entretanto, mostra-se nitidamente a misericórdia de Deus
através do ministério do catequista e o novato, levado pela palavra, passa
a desejar ser de fato, o que decidira simular”44.
Do catequista se espera três atitudes: humildade, alegria e capacidade de se adaptar às circunstâncias e ao auditório. A exemplo de Cristo
que se aniquilou a si mesmo, assumindo a condição de escravo até a
morte de Cruz e se fez fraco com os fracos a fim de ganhar os fracos, o
catequista precisa descer das alturas de seus conhecimentos e vir para a
planície dos que ainda não conhecem, falar com simplicidade e “demorarse na lentidão das sílabas”45. A alegria é outra condição para se realizar
com proveito uma catequese. Nada é mais comunicativo do que o prazer
e a alegria daquele que ensina. “O fio da nossa elocução é tocado pela
nossa alegria e desenrola-se mais fácil e mais inteligível... Aquele que
catequiza, quem quer que seja, o faça com alegria: tanto mais agradável
será a narração, quanto mais puder alegrar-se o catequista”46. Além da
humildade e da alegria, o catequista precisa ter em conta a diversidade
de público. É muito diferente falar para muitos ou poucos, para cultos
ou incultos, ou uns e outros, para pessoas da cidade ou do campo, ou
uns e outros. “Apesar de que a mesma caridade se deve a todos, a todos
não se aplica o mesmo remédio: assim também, a mesma caridade gera
a uns, torna-se fraca em relação a outros, procura edificar a uns, teme
ferir a outros; com uns carinhosa, com outros severa, de nenhum inimiga,
de todos é mãe”47.
O salmista: Como o catequista, o salmista era um ministério sem
titular , geralmente exercido pelo leitor49.
48
O porteiro: O termo porteiro (ostiário) algumas vezes é empregado
por S. Agostinho para indicar o próprio Cristo. No entanto, tudo indica
que era também um ministério exercido na liturgia50.
44
A Instrução dos Catecúmenos, Ed. Vozes, Petrópolis, 1973, pp. 44-45.
45
A Instrução dos Catecúmenos, Op.Cit., p. 55.
46
A Instrução dos Catecúmenos, Op. Cit., p. 37.
47
A Instrução dos Catecúmenos, Op. Cit., p. 67.
48
Contra o gramático Crescônio 4,29,33.
49
Comentário aos salmos 138,1; 146,1; 40,1; 21,29.
50
Sermão 46,31.
Encontros Teológicos nº 53
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81
Os ministérios em Santo Agostinho
O exorcista: Ao comentar a tentação de Eva pela serpente, S.
Agostinho cita o ministério do exorcista51. Numa passagem do “Contra
o gramático Crescônio”, informa que Primiano reivindica a casa de Maximiano para fazer dela a moradia do exorcista da Igreja52. Não se tem
certeza se o exorcista era também presbítero, mas tudo indica que sim.
Foi um presbítero que, através de fervorosas orações e da celebração da
Eucaristia, afugentou os espíritos malignos que atormentavam os servos
e os animais de certo homem chamado Hespério, proprietário de uma
área na localidade de Zubedi, no território de Fussala53. Uma senhorita
de Hipona ungida com óleo misturado com lágrimas do presbítero que
rezava por ela ficou livre do diabo54. Um homem possuído pelo espírito
imundo costumava dizer quando um presbítero, que morava há doze milhas de sua casa, começava a sair para visitá-lo. Dizia onde se encontrava
no trajeto e quando se aproximava e entrava na propriedade e na casa,
até chegar à sua presença. Não aceitava dos seus familiares qualquer
alimento, mas somente do presbítero. Resistia os da própria casa com
violência, mas tranqüilizava-se com a chegada do presbítero55.
O acólito: S. Agostinho não nos dá muitas informações sobre o
ministério de acólito. Em algumas cartas menciona alguns deles (Albino,
Leão) que servem seus bispos, muitas vezes, como estafetas56.
O leitor: Segundo S. Agostinho, o leitor além de ler as escrituras
na liturgia, devia cantar os salmos que o pregador iria comentar57. É o
próprio Deus quem fala pela boca do leitor58. Somos, por isso, convidados
a escutar a leitura com os ouvidos do coração59. A leitura da Bíblia na
liturgia, no entanto, não era exclusividade do leitor. Um diácono podia
fazê-la, ou até mesmo, o próprio bispo60. Os leitores guardavam em suas
casas as Escrituras, ao menos, em tempo de perseguição61.
82
51
Comentário literal ao Gênesis 11,28,35.
52
Contra o gramático Crescônio 4,47,57.
53
A cidade de Deus 22,8,6.
54
A cidade de Deus 22,8,8.
55
Comentário literal ao Gênesis 12,17,35.
56
Cartas 191,1; 192,1; 193,1; 194,1.
57
Comentário aos salmos 32,1,5.
58
Sermão 129,1.
59
Sermão 17,1,1.
60
Sermão 356,1; 163 B,2.
61
Contra o gramático Crescônio 3,29,33; Carta 53,2,4.
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Dom Manoel João Francisco
O leitorato era uma função de muito prestígio. Os leitores, por isso,
deviam ser pessoas razoavelmente preparadas em escolas próprias, onde,
além das ciências profanas se estudavam “as ciências eclesiásticas”. Desta
categoria de clérigos, muitas vezes, se escolhiam os novos bispos, como
foi o caso do leitor Antônio, eleito bispo de Fussala, uma diocese criada
por S. Agostinho, desmembrando-a do território de Hipona62. Majorin,
bispo donatista, também era leitor quando foi indicado para bispo63.
O prestigio da função fazia com que alguns se atribuíssem o título
de leitor, sem de fato sê-lo. “Tu próprio não te adiantes a gerar escândalo
na igreja, lendo ao povo Escrituras que o cânone eclesiástico não admite...
Admira-me muito que possa ser chamado leitor quem leu as Escrituras
uma só vez, e, ainda por cima, as não canônicas. Se, por ter lido uma
vez, já é leitor litúrgico, então também aquela leitura deverá chamar-se
eclesiástica. Mas, se aquela leitura não é eclesiástica, seja quem for que
a tenha lido, mesmo na igreja, não é leitor eclesiástico”64.
Algo mais ou menos parecido com os coroinhas de hoje, os leitores iniciavam seu ministério ainda meninos65. Em assembléias mais
numerosas, seu timbre de voz permitia uma melhor audição da Palavra
de Deus. “Em 484, o clero de Cartago compreendia cerca de quinhentas
pessoas, inter quos quam plurimi erant lectores infantuli”66. Ao chegar
à puberdade deviam se casar ou fazer voto de celibato67.
O subdiácono: Os subdiáconos são citados diversas vezes nas
cartas de S. Agostinho. Patrício, seu sobrinho, filho de uma de suas irmãs,
exerceu este ministério em Hipona. No entanto, não se tem maiores informação a respeito do que faziam estes ministros. A Carta 236 informa
que um subdiácono era guardião de uma pequena igreja em Verdier, a
17 quilômetros de Hipona. Sabe-se também que os subdiáconos foram
62
Carta 209,3.
63
A. G. HAMMAN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1989, p. 19.
Sobre a importância do leitorato como início de carreira, cf. L. DUCHESNE, “Origines
du culte chrétien. Étude sur la liturgie latine avant Charlemagne, E. de Boccard Éditeur,
Paris, 1925, p.366-367.
64
Carta 64,3.
65
Sermão 352,1.
66
L. DUCHESNE, Op. Cit. p. 367, em nota ao pé da página.
67
Concílio de Hipona, cân. 2; cf. A. G. HAMMAN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Op.
Cit., p. 69.
Encontros Teológicos nº 53
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83
Os ministérios em Santo Agostinho
alvos prediletos na perseguição dos donatistas. Um deles foi apedrejado
por aqueles dissidentes até desfalecer, além de ter sua casa destruída68.
O diácono: Tudo indica que o diaconato na Igreja de S. Agostinho
não tinha função social. Era apenas uma etapa entre o leitorato e presbiterato.
Embora existisse na Igreja de Hipona um serviço muito bem organizado em
favor dos pobres, S. Agostinho nunca se refere aos diáconos como administradores ou responsáveis por este serviço, nem mesmo nos sermões em
honra a S. Lourenço69. Quando quis abrir um albergue para os numerosos
transeuntes que passavam por Hipona70 serviu-se dos préstimos do presbítero
Leporius71. A função do diácono para S. Agostinho parece, portanto, se restringir ao âmbito litúrgico-catequético: anunciava a oração comum72, assumia
o ministério da catequese, proclamava o Evangelho na liturgia, recebia as
ofertas que eram levadas ao altar, ajudava na distribuição da comunhão,
apresentando aos fiéis o cálice com vinho e visitava os enfermos73. Como
os subdiáconos, também os diáconos foram alvos da fúria donatista74.
Numa de suas cartas, S. Agostinho se desculpa diante de um colega, o Bispo Novato, por ter retido em sua diocese o diácono Lucilo de
grande utilidade no serviço de evangelização em Hipona porque falava
muito bem o latim75.
O presbítero: A palavra presbítero aparece 267 vezes nas obras
de S. Agostinho76. Com exceção de oito, todas as outras vezes, com o
sentido técnico de membro do colégio presbiteral, participante do sacerdócio ministerial e colaborador imediato do bispo77.
84
68
Carta 105,2,3.
69
Sermões 302 e 303; cf. também A.G. HAMMAN, “De l´Agape à la diaconie en Afrique
chrétienne”, em IDEM, “Études patristiques....Op. Cit., p.146.
70
Hipona era uma cidade portuária. Em meio à multidão que por ela passava, grande
número era de trabalhadores sazonais, viúvas e mendigos profissionais.
71
Sermão 356,10.
72
Carta 55,18,34.
73
A Cidade de Deus, 22,8,3; Sermões 302,1; 356,1; 303,1; 304,1 Cartas 111,8; 149,16;
Comentário aos Salmos 127,7.
74
Contra as cartas de Petiliano 2,83,184.
75
Carta 84,1-2.
76
Nas cartas 154 vezes, cf. M. G, GOMEZ, “Los significados y las funciones de ‘presbiter’
en los escritos de san Agustin”, em Revista Agustiniana 115-116(1997)298 e 303.
77
Cf. JIMÉNEZ-VILLAREJO, “Presbyter”, em “Thesaurus linguae latinae”, X,2, fasc. VIII,
München, 1995, col. 1187, citado por M. G. GOMEZ, “Los significados y las funciones
de ‘presbiter’ en los escritos de san Agustín”, Op. Cit, p. 298.
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Dom Manoel João Francisco
Alguém se tornava presbítero pela eleição e pela ordenação. A
eleição, geralmente, era feita pelo bispo com o assentimento da comunidade78, o mesmo procedimento adotado para a eleição de um novo
bispo79. Os eleitos, de ordinário, pertenciam à comunidade em que iam
exercer seu ministério, mas havia exceções. Às vezes, os presbíteros eram
até estrangeiros como o espanhol Eucário, presbítero em Calama80 (hoje
Guelma). A ordenação se dava pelo rito da imposição das mãos feito
pelo bispo, acompanhada de uma oração consacratória81, cujo efeito era
validar o rito, constituindo o candidato ministro da palavra e dos sacramentos82. Numa discussão com Petiliano, S. Agostinho demonstra que
Timóteo não era leigo. Como prova lembra a recomendação de S. Paulo:
“Não te descuides do carisma que está em ti, que te foi dado mediante
uma profecia acompanhada da imposição das mãos dos presbíteros”(1Co
4,14)83. Não havia nada de mágico. “Com efeito nenhum de seus discípulos deu o Espírito Santo. Oravam, sim para ele descer sobre aqueles a
quem impunham as mãos, mas eles mesmos não o davam. Este costume
a Igreja ainda conserva entre seus ministros”84.
De ordinário, chegava-se ao presbiterado e episcopado passandose pelos ministérios inferiores85. Evitava-se desta forma a ordenação de
pessoas menos qualificadas como aconteceu com o leitor Antonio, indicado para bispo de Fussala. Desta decisão, S. Agostinho arrependeu-se
profundamente. Para reparar sua imprudência, até pensou em retirar-se
do exercício de seu ministério de bispo e entregar-se a lamentos dignos
de seu erro86.
Em caso de delito (heresia, conduta indecorosa...), o presbítero
podia ser deposto de seu ministério, ou seja, perdia o estado clerical87,
depois de ter sido submetido a um processo rigoroso88. Perdia o estado
78
POSSÍDIO, “Vida de Santo Agostinho”, 21,2.
79
Carta 213. Esta carta é a ata de nomeação do sucessor de Agostinho, escrita no dia
26 de setembro de 426.
80
A Cidade de Deus, 22,8,12.
81
Carta 78,3; Contra o gramático Crescônio 2,11,13.
82
Comentário aos Salmos 109,1.
83
Contra as cartas de Petiliano 2,106,243.
84
A Trindade, 15,26,46.
85
Carta 63,4; Sermão 356.
86
Carta 209,10.
87
Cartas 78,4; 77,2; 65,1,2; 35,1.
88
Cartas 65,2 e 251.
Encontros Teológicos nº 53
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85
Os ministérios em Santo Agostinho
clerical, mas não o caráter sacramental89. A ordenação, mesmo quando
dada e recebida ilicitamente, permanece definitivamente naquele que a
recebeu90. O exercício do ministério podia também cessar, por um ato
de renúncia, sem que a ordenação fosse anulada91.
Depois de deposto, o clérigo, presbítero ou bispo, não voltava
nunca mais a exercer o ministério, mesmo tendo feito penitência e tendo
sido reconciliado com a Igreja. Para os clérigos donatistas, porém, se fazia
exceção. Em vista da paz eles eram reintegrados na Igreja sem perder a
honra da clericatura ou do episcopado92. Justificava-se esta exceção com
o exemplo de Davi e de S. Pedro. Nem Davi deixou de ser rei, nem S.
Pedro deixou de ser apóstolo depois de terem feito penitência93.
S. Agostinho foi ordenado presbítero, contra a sua vontade, provavelmente no início de 391. É ele mesmo quem dá esta informação: Fui
agarrado e feito presbítero94. Um dia forçaram-me a ser lugar-tenente
de bordo, a mim que nem sequer sou capaz de empunhar um remo95.
Não foi o único a ser padre à força. Os antigos não tinham uma
concepção de liberdade tão delicada quanto a nossa. O Pe. Long-Hasselmans, depois de citar alguns mais famosos tais como S. Ambrósio,
Pauliniano, irmão de S. Jerônimo, S. Basílio, S. João Crisóstomo, S.
Gregório Nanzianzeno, S. Martinho, S. Paulino e S. Gregório Magno,
diz que o século IV foi um período de ordenações forçadas96.
86
89
O Batismo, 1,1,2.:”Assim como o batizado, ao separar-se da unidade, não perde o
sacramento do batismo, assim também o que foi ordenado, ao separar-se da unidade,
não perde o sacramento de administrar o batismo... Os que já estavam batizados antes
de se separarem não são rebatizados quando regressam; do mesmo modo os que se
convertem, se tinham sido ordenados antes da sua separação, não são ordenados de
novo: ao contrário, se a unidade da Igreja o exige, continuam a administrar o que antes
administravam, ou , se não administram, conservam sempre o sacramento da sua
ordenação; e, por isso, não se lhes impõem as mãos como se fossem leigos...”.
90
Dos bens do matrimônio 24,32.
91
Carta 128. Nesta carta os bispos católicos aceitam renunciar suas sedes para permitir
aos bispos donatistas a volta à unidade.
92
Carta 128.
93
Carta 185,10,45.
94
Sermão 355,2.
95
Carta 21,1.
96
Ver. S.R., 1951, p. 279, citado por J. PINTARD, “Le sacerdoce selon S. Augustin”,
Maison Mame, Paris, 1960, p. 342; cf. também J. GAUDEMET, “L´Église dans l´Empire
romain: IVe–Ve siècles”, Paris, 1958, citado por A. HAMANN, “Santo Agostinho e seu
tempo”, Op. Cit. p. 213.
Encontros Teológicos nº 53
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Apesar de ter sido forçado, S. Agostinho assumiu o ministério de
presbítero e depois de bispo com muito zelo e santidade. Escreve com
freqüência em suas cartas que, por causa dos muitos afazeres, pouco
tempo lhe sobrava para os estudos e para a correspondência com os
amigos97.
Com certeza, sua experiência lhe deu autoridade para discordar
das ordenações forçadas. Certa feita, em um “affaire” longo e confuso,
cheio de acusações e mal-entendidos, com muitas idas e vindas, parece
ter sustado a ordenação forçada de um rico e piedoso senhor de nome
Piniano98.
Logo após sua ordenação presbiteral, S. Agostinho escreveu uma
carta ao seu bispo Valério, solicitando permissão de alguns meses de
estudos, antes de ser indicado para qualquer função na Igreja de Hipona99. Nesta carta, encontra-se de forma mais ou menos sistemática o
pensamento que o neo-presbítero fazia de sua missão e como pretendia
realizá-la.
Declara-se contrário à concepção mundana que já em seu tempo se
fazia do ministério – uma carreira, um meio para satisfazer mesquinhas
ambições. Aliás, desde o tempo dos Apóstolos, o carreirismo sempre foi
uma tentação (cf. Mt 18,1-5; 23,11; Mc 9,33-36; Lc 9,46-48).
Na sua concepção, os ministérios de diáconos, presbíteros e bispo,
para além do perigo e peso que contém, são um dom que faz feliz aquele
que os exerce segundo a vontade de Deus.
“Peço antes de tudo que tua religiosa prudência considere que
nesta vida, máxime nestes tempos, nada de mais fácil e agradável aceitação entre os homens existe do que o ministério de bispo, presbítero
ou diácono, quando se desempenha por mero cumprimento ou adulação.
Porém, nada de mais torpe, triste e abominável diante de Deus do que tal
conduta. Da mesma forma, nesta vida e particularmente nestes tempos
difíceis não há nada mais pesado, laborioso e perigoso do que a função
de bispo, presbítero ou diácono. Mas também não há nada de mais santo
97
Cartas 110,5; 101,3; 139,3; 98,8.
98
Cartas 126; 125; 124; cf. também F. VAN DER MEER, “ San Agustin, pastor de almas,
vida y obra de un padre de la Iglesia”, E. Herder, Barcelona, 1965, pp. 200-205.
99
Trata-se da Carta 21.
Encontros Teológicos nº 53
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87
Os ministérios em Santo Agostinho
diante de Deus, quando trabalhamos do modo como o nosso Imperador
manda...”100.
De fato, o presbiterado é algo de muito santo, mas é também
algo de grande responsabilidade. Por isso mesmo, causa certo medo e
preocupação.
“...já antes considerava este ministério como muito perigoso. Tal
foi o motivo daquelas lágrimas que alguns irmãos me viram derramar na
cidade, no tempo da minha ordenação... Mas agora experimentei outras
dificuldades maiores e mais profundas. Não que tenha descoberto novas
correntes ou tempestades ignoradas, nunca ouvidas, lidas ou pensadas
por mim, mas sim porque desconhecia minhas forças e sagacidade para
evitá-las e afrontá-las”101.
Diante desta consciência, S. Agostinho não vê outra saída a não ser
a da oração e do estudo da Sagrada Escritura, ou melhor, da meditação
da Palavra de Deus, acompanhada da oração fervorosa.
“Agora sei, com certeza, que devo estudar todos os remédios contidos nas suas Escrituras e dedicar-me à oração e à leitura. Devo adquirir
para tão perigoso posto, a necessária saúde da minha alma”102.
Uma das funções que o bispo lhe atribuiu foi a de pregar aos fiéis.
Até então esta função era exclusiva dos bispos103.
S. Agostinho sabe muito bem que uma coisa é o conhecimento
de Deus exigido de um fiel e outra é o conhecimento de quem deve
ensinar.
“Atrevo-me a confessar que conheço e com plena fé retenho o que
diz respeito à minha própria salvação. Mas como hei de administrá-la aos
demais sem buscar minha própria utilidade, e sim a salvação dos outros?
Talvez haja certos conselhos nos Sagrados Livros (e não resta dúvida que
os há), cujo conhecimento e compreensão ajudam ao homem de Deus
tratar com mais ordem os assuntos eclesiásticos, ou pelo menos a viver
88
100
Carta 21,1.
101
Carta 21,2.
102
Carta 21,3.
103
Seguindo seu próprio exemplo, S. Agostinho introduziu o costume de os presbíteros
também pregarem e não apenas o bispo. Neste sentido faz inclusive uma exortação
aos fiéis: “Exortamos a vossa caridade a ouvir com diligência e atentamente, e não
de maneira despreocupada, a palavra de Deus que vos é explicada pelos presbíteros”
(Sermão 20,4).
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Dom Manoel João Francisco
com sã consciência entre os ímpios, ou a morrer para não perder aquela
vida a que suspiram os corações cristãos humildes e mansos”104.
Os estudos e a oração devem ser levados muito a sério. Só depois de
se ter dedicado um bom tempo a eles é que se pode ir ao trabalho pastoral.
A falta de tempo não pode ser desculpa para a pouca formação.
“Acaso terei de responder ao divino juiz: não pude formar-me
convenientemente, pois impediram-me os negócios eclesiásticos? Ele
me replicará: Servo mau! Supõe que aparecesse alguém pretendendo
uma granja da Igreja, na qual tanto esforço se faz para recolher frutos. Tu
desprezarias o campo que reguei com meu sangue, para intervir, se apenas
isso fosse possível, junto aos juízes da terra, e todos estariam de acordo
contigo, e muitos até te mandariam e exigiriam que fizesses justiça. E tu
o farias. Inclusive atravessarias os mares se a sentença te fosse contrária.
Ficarias assim ausente por um ano ou mais, sem que ninguém reclamasse.
E tudo isso para não deixar cair nas mãos de outros um terreno necessário
não à alma, mas ao corpo dos pobres. No entanto, a fome deles poderia
ter sido saciada pelas plantas vivas da Igreja com maior facilidade e
complacência minha, se estivessem melhor cultivadas. Por que pois
alegas que te faltou tempo para aprender minha agricultura?”105.
O bispo: S. Agostinho foi ordenado bispo em 395 com 41 anos de
idade. Conforme ele mesmo confessa, sentiu muito medo do ofício de
bispo e desde o início de seu ministério procurou evitar qualquer tipo
de cooptação ou privilégios.
“A partir do momento em que foi colocado sobre meus ombros
este cargo de tanta responsabilidade, atormenta-me a preocupação da
dignidade que o acompanha. De fato, o que há de mais temível neste
ministério é o perigo de nos satisfazer mais o seu aspecto honorífico do
que sua utilidade para a vossa salvação”106.
Os bispos daquela época ocupavam uma posição social equivalente
ou superior a de governador de província no império. Os governadores
eram nomeados por um breve espaço de tempo, enquanto que o bispo
era ordenado para o resto da vida. O episcopado, por isso, era muito cobiçado. Significava muitas vantagens em termos de dinheiro e de poder.
Desta forma, com freqüência, se encontravam no episcopado pessoas
104
Carta 21,4.
105
Carta 21,5.
106
Sermão 340.1.
Encontros Teológicos nº 53
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89
Os ministérios em Santo Agostinho
nada recomendáveis, afeitas à prática da usura107 e que, em troca de
benefícios, facilmente se deixavam cooptar pelos grandes senhores de
terra108, tornando-se eles mesmos pequenos tiranos de aldeia109.
Numa reunião acontecida em Cirta, no ano 305 para uma eleição
episcopal, de uma dezena de bispos que ali se encontravam, quatro tinham
entregado as Escrituras durante a perseguição de Deocleciano. Purpúrio,
bispo de Limata, era acusado de ter matado dois sobrinhos. Até mesmo
o bispo de Cartago encontrava-se sob suspeitas. Num trecho da ata desta
reunião encontra-se o seguinte diálogo: “Segundo a Purpúrio: Diz-se
que tu mataste dois filhos de tua irmã em Mileva. Purpúrio a Segundo:
Pensas que tu me assustas, como os outros? E tu, o que fizeste? Tu,
que o curador e o conselho intimaram a entregar as Escrituras? Como
conseguiste sair dessa senão entregando-as ou mandando entregar tudo?
Não foi sem razão que te deixaram ir! Quanto a mim, sim, eu matei e
matarei todos aqueles que são contra mim. Por isso aceita um conselho:
não me provoques nem me faças dizer mais do que isso. Tu sabes que
eu não poupo ninguém”110.
Foi sem dúvida, sob a influência de S. Agostinho que o Concílio
de Cartago em 397 declarou “criminoso todo aquele que ingressando
pobre nas ordens, tenha se transformado em proprietário fundiário”.
Preservar da tentação dos bens e das honras foi certamente a intenção
de S. Agostinho, ao implantar a vida comunitária do clero em Hipona111.
Mesmo assim, sabe-se pelos sermões do Santo que alguns clérigos custavam muito a se despojar dos próprios bens.
“Todos, ou quase todos, sabem que nesta casa, chamada casa do
bispo, vivemos de tal modo que, na medida de nossas forças, imitamos
aqueles santos dos quais diz o livro dos Atos dos Apóstolos: Ninguém
chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. [...].
É assim que vivemos. A ninguém é permitido, na comunidade, ter alguma
coisa própria. Mas talvez alguns tenham. Ninguém está autorizado; se
alguns o têm, fazem o que não lhes é permitido. Penso bem dos meus
107
Comentário aos salmos 128,6; Sermão 137,12; Tratado sobre o Evangelho de
João 46,8.
108
Sermão 137,14; Carta 85.
109
P. BROWN, “Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início
do cristianismo”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990, p.349.
110
111
90
A. G. HAMMAN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Op. Cit. p. 211.
A.G.HAMMAN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Op. Cit. p. 212.
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irmãos, e, por pensar sempre bem, abstive-me de investigar sobre isso,
uma vez que, proceder assim me parecia desconfiar deles. Sabia e sei
que todos os que vivem comigo conhecem o nosso propósito e a nossa
norma de vida...
Como sabeis um presbítero da nossa sociedade, da qual dá testemunho a leitura escutada, ao aproximar-se da morte, fez testamento
porque tinha razão para fazer. Com efeito, estava na posse de algo a que
chamava seu, apesar de viver nessa sociedade onde a ninguém é lícito
chamar seu seja o que for, pois todas as coisas devem ser comum...”112.
A falta de formação era outro problema do clero no tempo de S.
Agostinho, principalmente do clero rural113. Freqüentemente aqueles
homens tinham sido apenas “apaziguados pela piedade”114. Na Conferência de Cartago em 411 se fizeram presentes vários desses bispos rurais
que, além de não entenderem quase nada de latim, assinaram as atas
com uma cruz, mostrando que não sabiam escrever o próprio nome115.
A falta de instrução aparecia também nas celebrações. As leituras eram
tão mal feitas a ponto de fazer rir alguns catecúmenos medianamente
instruídos116. Quando se punham a improvisar as orações, cometiam os
erros mais rudimentares. S. Agostinho precisou acalmar alguns fiéis que
estavam duvidando da validade do seu batismo117.
Outro problema freqüente do meio do clero, inclusive entre os
bispos, era o alcoolismo118, o entusiasmo pelos espetáculos e a intemperança119. Um subdiácono de nome Rusticiano, por causa de seus perversos
e réprobos costumes, acabou se endividando de forma muito séria. Para
livrar-se de seus credores se fez donatista, mas acabou linchado pela
multidão que o surpreendeu numa tentativa de roubo120. Um presbítero
112
Sermões 355,2 e 356,2.
113
POSSÍDIO, “Vida de S. Agostinho”, 27,10.
114
A doutrina cristã, 2,9,14.
115
A. G. HAMMAN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Op. Cit. p. 213; IDEM, “Saint Augustin
et la formation du clergé...”, Op. Cit., p. 270.
116
A Instrução dos Catecúmenos, Op. Cit., p. 51; A nota 55, ao pé da página, esclarece
melhor o texto. Cf. também A.G. HAMMAN, “Saint Augustin et la formation du clergé…”,
Op. Cit. p. 275.
117
O Batismo, 6,47.
118
Carta 93,49.
119
Regras da Igreja de Cartago, c. 61; cf. também A.G. HAMMAN, “Santo Agostinho e
seu tempo”, Op. Cit. p. 128.
120
Carta 108,19.
Encontros Teológicos nº 53
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91
Os ministérios em Santo Agostinho
chamado Abundâncio, além de não jejuar conforme o prescrito, passou a
noite de natal com uma mulher da vida121. Um diácono chamado Primo,
porque foi proibido de freqüentar um mosteiro feminino, aliciou duas
monjas, passou para dissidência donatista e terminou entre os circunceliões122 onde, com as duas ex-monjas entregou-se à orgia e ao amor
livre123.
No entanto, nem tudo era negativo, embora não fosse fácil, a
vida comunitária implantada em Hipona tornou-se “um seminário, na
verdadeira acepção da palavra: uma sementeira da qual os protegidos
de Agostinho foram “transplantados” como bispos para as principais
cidades da Numídia. Este súbito afluxo de novos homens deve ter afetado drasticamente o equilíbrio de forças na província”124, permitindo a
S. Agostinho testemunhar que conheceu inúmeros “bispos, presbíteros,
diáconos e ministros dos mistérios divinos que foram homens excelentíssimos e santíssimos”125.
Alguns de seus sermões tratam explicitamente sobre o ministério
do Bispo. Entre eles encontram-se os de aniversário de sua ordenação
episcopal126 e aquele pronunciado, provavelmente no ano 412, por ocasião
da ordenação do bispo Antônio da recém formada diocese de Fussala,
desmembrada da de Hipona.
O bispo é, antes de tudo sucessor dos apóstolos127, com a mesma
missão e as mesmas tarefas, principalmente a de servir na humildade,
ou seja, o bispo deve ser, na verdadeira acepção da frase, um “servus
servorum Dei”128.
121
Carta 65.
122
Braço armado dos donatistas cujo grito de guerra era: “Louvado seja Deus”. Armados
com fundas, machados, pedras e lanças, andavam por toda parte “sedentos de sangue
inocente” (Com. aos Salmos 54,26).
123
Carta 35,2.
124
P. BROWN, “Santo Agostinho, uma biografia”, Ed. Record, Rio de Janeiro/S. Paulo,
2005, p. 176-177.
125
Os Costumes da Igreja Católica 1,32,69.
126
92
Sermão 339 (= FRANGIPANE 2) “O dia de hoje, irmãos, convida-me a refletir mais
detidamente na responsabilidade que levo sobre mim. Embora deva pensar nesse
peso dia e noite..., o dia de meu aniversário torna-o mais presente aos meus sentidos,
de modo que não posso deixar de pensar nele...”.
127
Comentário ao Salmo 44,32.
128
Carta 217.
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“Aquele que preside ao povo deve ter presente, antes de mais, que
é servo de muitos. E isso não há de tomá-lo como uma desonra. Não
há de tomá-lo como uma desonra, repito, o ser servo de muitos, porque
nem sequer o Senhor dos senhores se recusou de nos servir. Por causa da
fraqueza da carne tinha se infiltrado entre os discípulos de Nosso Senhor
Jesus Cristo, nossos apóstolos, um certo desejo de grandeza, e a fumaça
da vaidade tinha começado a chegar em seus olhos. De fato, segundo o
Evangelho, surgiu entre eles uma disputa sobre quem seria o maior (Lc
22,24). Porém, o Senhor, médico que se achava presente, cortou aquele
tumor. Quando viu o mal que tinha dado origem àquela discussão, pondo
diante deles alguns meninos, disse aos apóstolos: quem não se fizer como
um desses meninos não entrará no reino dos céus (Mt 18,3). Na pessoa
de um menino recomendou-lhes a humildade. Não quis, porém, que os
seus tivessem mente de menino, dizendo o apóstolo noutro lugar: Não
façais como meninos no modo de pensar. E acrescentou: No entanto,
sede crianças na malícia, para serdes perfeitos no juízo (1Co 14,20). A
soberba é a grande malícia, a primeira de todas, o princípio e a origem,
a causa de todos os pecados...
Razão pela qual Paulo, ao mencionar na leitura que escutamos as
diversas virtudes que um bispo deve possuir, acrescentou também isto:
Não seja um neófito, a fim de que, enquanto novo na fé, não se ensoberbeça e incorra na condenação que cabe ao diabo (1Tm 3,6).
... Dirigindo-se o Senhor aos apóstolos e confirmando-os na humildade, além de propor-lhes o exemplo do menino, disse-lhes: aquele
que quiser ser o maior, seja o vosso servidor (Mt 20,26). Vede como
não fiz nenhuma afronta a meu irmão, vosso futuro bispo, ao querer e ao
convidá-lo a ser vosso servo. Se fiz este convite a ele, antes o fiz a mim
mesmo. Não sou um qualquer que fala sobre o que deve ser o bispo, mas
falo sendo eu mesmo bispo. O que a ele aconselho, causa-me temor a
mim também e faço presente a minha alma o que disse o santo Apóstolo:
Quanto a mim, é assim que corro, não ao incerto; é assim que pratico o
pugilato, mas não como quem fere o ar. Trato duramente o meu corpo e
reduzo-o à servidão a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a
mensagem aos outros, venha eu mesmo ser reprovado (1Co 9,26-27).
Portanto, para vos dizer tudo em poucas palavras, somos vossos
servos; servos vossos, mas ao mesmo tempo, servos como vós; somos
servos vossos, porém, temos todos o mesmo Senhor; somos servos
vossos, mas em Jesus, como disse o Apóstolo: Quanto a nós mesmos,
Encontros Teológicos nº 53
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Os ministérios em Santo Agostinho
apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus (2Co 4,5).
Somos servos vossos por ele, que nos fez também livres; disse aos
que crêem nele: Se, pois, o Filho vos libertar, sereis realmente livres
(Jo 8,36)....
Assim deve ser o bom bispo. Se não for assim, não é bispo. De
que adianta um desgraçado chamar-se Felix (Feliz)? Se acolhes em tua
casa um mendigo cheio de misérias, chamado Felix, e dizes a ele: Felix
vem pra cá, Felix vai pra lá, Felix levanta-te, Felix senta-te, ele, apesar
da múltipla repetição de seu nome, Felix, continuará sendo um infeliz.
Semelhante a esse homem é aquele a quem chamam bispo, mas não o é.
A honra do nome, nada mais lhe traz a não ser fazer maior o seu crime.
Que é um bispo que tem esse nome, mas não o é? É o que se preocupa
mais com sua honra do que com a saúde do rebanho de Deus, quem neste
ministério tão sublime busca mais seus próprios interesses do que os de
Jesus Cristo. Este recebe o nome de bispo, mas não o é. Ser chamado bispo
e não ser bispo é usar um nome falso. Para ser o que lhe chamam, não
me ouça a mim, mas ouça comigo; escutemos juntos; aprendamos juntos
como condiscípulos, na mesma escola do único mestre, que é Cristo, cuja
cátedra está no Céu, cátedra que antes foi uma cruz na terra...
Quando o Apóstolo descreve como o bispo deve ser, começa por
afirmar: Quem deseja o episcopado deseja uma coisa boa. Que significa
isto?... Não se trata de ter a ambição de chegar ao episcopado. Procurai
entender o que ele diz, que eu procurarei explicar o que penso... Desejar
o episcopado não é desejar ser bispo. Desejar é uma coisa boa. Contudo,
desejar ser bispo e não realizar obras boas, mas sua própria obra, não é
desejar o episcopado. Isto é o que dizíamos há pouco: buscar o nome,
mas não a realidade. Quero ser bispo. Se eu fosse bispo! Oxalá fosses
bispo! Buscas o nome ou a realidade? Se buscas a realidade, desejas
uma coisa boa... Que devo então dizer? Que há bispos maus? De modo
nenhum; não há. Atrevo-me a dizer, sem hesitar, que não há bispos maus,
porque se são maus, não são bispos. Mas tu fazes-me voltar de novo ao
nome, e dizes: É bispo, pois senta-se na cátedra. Também os espantalhos
guardam as vinhas”129.
Confirmando este seu pensamento, na obra A Cidade de Deus, S.
Agostinho diz que o episcopado é nome designativo de trabalho, não
129
94
Sermão 340 A,1-6 (= GUELF. 32).
Encontros Teológicos nº 53
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de dignidade... Não é verdadeiro bispo quem prefere mais presidir do
que servir130.
Serviço e humildade são, portanto, as primeiras atitudes de quem
pretender exercer o ministério de bispo. Como conseqüência, surge a
convicção de que o bispo é um ser humano como os outros, cheio de
limitações, necessitado como os demais da misericórdia de Deus e da
compreensão dos fiéis. Expondo o quinto pedido do Pai-nosso, S. Agostinho se inclui como o primeiro pecador.
“Mas talvez me perguntes agora: “Vós também?” “Nós também”.
“Vós, bispos santos, também sois pecadores”? “Nós também somos
pecadores”. “Mas isso é verdade? Não faleis assim meu senhor, não vos
façais esta injúria”. “Não me faço nenhuma injúria, digo a verdade. Nós
somos pecadores”: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos
a nós mesmos”131.
“Quem de nós não peca? A começar pelos sacerdotes. Foi dito aos
sacerdotes: em primeiro lugar ofereçais sacrifícios pelos vossos pecados,
depois pelos pecados do povo”132.
No entanto, servir na caridade e com humildade não quer dizer que
o bispo renunciou a obediência que lhe é devida, ou que tenha esquecido
de sua autoridade. “A nós pertence o cuidado e a vós a obediência, a nós
a vigilância pastoral, a vós a humildade da grei”133. Não se pode buscar
o amor e a complacência dos súditos à custa da ordem e da disciplina.
Um exercício muito concreto e bastante freqüente desta “caridadeautoridade” era a função de juiz. S. Agostinho exerceu esta função com
muito ardor e zelo. A ela dedicava grande parte do seu tempo. Segundo
o testemunho de Possídio, muitas vezes passava o dia todo nesta função.
“Aproveitava a ocasião para ensinar ambas as partes a verdade da lei divina e lhas inculcava. Ensinava-lhes com admoestações como alcançarem
a vida eterna, nada pedindo daqueles aos quais dava o seu tempo senão a
obediência e a dedicação cristã, devidas a Deus e aos homens. Aos que
pecavam, argüia-os diante de todos, para que os demais tivessem temor
(cf. 1Tm 5,20). Fazia-o qual sentinela da casa de Israel, constituída pelo
Senhor (cf. Ez 33,7), pregando a palavra oportuna e inoportunamente,
130
A Cidade de Deus, 19,19.
131
132
Sermão 56,11.
Sermão 135,6.
133
Sermões 146,1; 13,8.
Encontros Teológicos nº 53
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95
Os ministérios em Santo Agostinho
argüindo, exortando, censurando com toda longanimidade e doutrina
(cf. 2Tm 4,2), cuidando especialmente de instruir aqueles que fossem
capazes também de ensinar aos outros”134.
Igualmente a consciência de pecado não pode ser desculpa para a
falta de santidade do ministro. Aliás, santidade não é ausência de pecado, mas acolhida amorosa da misericórdia divina e esforço sincero para
corresponder a esta misericórdia. Por isso o tema da santidade é muito
freqüente em S. Agostinho.
Ainda como conseqüência de um serviço exercido na humildade
o bispo deve ser pobre. Diante de Deus reconhecer sua miséria e seu
nada, diante dos irmãos ser muito misericordioso e nunca pensar em
retribuição ou lucro.
No sermão 46, lembrando que S. Paulo trabalhava com suas próprias mãos para se sustentar, conclui:
“Aqueles que não podem fazer o que S. Paulo fez, recebam o leite
das ovelhas e sustentem suas necessidades, mas não esqueçam nunca a
enfermidade das ovelhas. Não busquem isto para si mesmos como uma
comodidade... Aceitem do povo o necessário para o seu sustento e aceitem
do Senhor o prêmio de seu ministério”135.
Esta atitude de pobreza pregada por S. Agostinho é de grande
importância teológica e espiritual. O bispo deve ser consciente que de
próprio nada possui e que toda a sua riqueza deve ser: servir e entregarse aos irmãos.
Ele mesmo é exemplo de simplicidade e de pobreza. Quando lhe
ofereciam roupas um pouco mais luxuosas eles as rejeitava dizendo que
não eram convenientes à sua função, nem ao seu corpo envelhecido,
muito menos aos seus cabelos brancos136. Por delicadeza, para consolar
a aflição de Sápida, aceitou usar uma túnica mais luxuosa, feita por ela
ao irmão que era diácono, mas que morrera antes de usá-la137.
134
POSSÍDIO, “Vida de Santo Agostinho”, 19,4-5.
135
Sermão 46,5.
136
137
96
Sermão 356, 12.13.15.
Carta 263.
Encontros Teológicos nº 53
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A. Hamann observa que esta forma de pensar e agir talvez tenha
sido por reação aos costumes de seu tempo, principalmente nas grandes
cidades, em que bispos e clérigos gostavam de usar vestes luxuosas138.
Ser pobre supõe valorizar e acolher os pobres. S. Agostinho jamais se descuidou deste compromisso. Aos seus fiéis com freqüência
pregava advertindo: “Sabei que quem dá pessoalmente alguma coisa aos
pobres realiza uma dupla obra de misericórdia. Não se deve pensar só na
bondade daquele que dá, mas também na humildade daquele que serve.
[...]. É coisa importante, irmãos, que deis com as vossas próprias mãos,
pois isto agrada muito a Deus...”139. No aniversário de sua ordenação
episcopal, além de organizar uma grande distribuição de roupas, oferecia
também um banquete aos pobres140. Conforme informação de Possídio,
“se acabavam os recursos da igreja, avisava o povo cristão que nada havia
para dar aos pobres. Chegava mesmo a mandar quebrar e fundir vasos
sagrados, para distribuir aos prisioneiros, indigentes e necessitados”141.
Para defender seus fiéis, especialmente os mais pobres, era capaz de
esperar uma manhã inteira na ante-sala de um governador142. Dizia de si
mesmo: “Faço-me mendigo por causa dos mendigos”143.
O ministério, entendido como serviço, tem sua expressão máxima
no exercício de duas funções: a da palavra e a dos sacramentos.
Na carta 21, ainda como neo-presbítero S. Agostinho se compreendia como “um homem que administrava ao povo o sacramento e
a palavra de Deus”. Possídio, seu primeiro biógrafo, o define, em seu
leito de morte como um bispo “dispensador da palavra e do sacramento” e que “até a sua última doença, na igreja pregava a palavra de Deus
ininterruptamente, com zelo e fortaleza, tendo conservado mente lúcida
e julgamento correto”144.
Segundo P. Couturier, a expressão “dispensador da palavra e do
sacramento” ocorre 27 vezes nas obras de S. Agostinho145.
138
A. HAMANN, “Santo Agostinho e seu tempo”, Op. Cit. p. 208.
139
Sermão 259,5.
140
Sermão 339,3.
141
POSSÍDIO, “Vida de Santo Agostinho”, 24,14-15; Sermão 161,13.
142
Sermão 302,17.
143
Sermão 66,5.
144
POSSÍDIO “Vida de Santo Agostinho”, 27,7; 31,4.
145
Citado por J. PINTARD, “Le sacerdoce selon S. Augustin”, Op. Cit. P. 373.
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97
Os ministérios em Santo Agostinho
É dever do bispo pregar a palavra, mesmo se não for escutado.
Do exercício deste ministério depende também a sua própria salvação.
“Quem não preferiria o silêncio, se não tivesse de responder por todos
vós? Porém, aceitamos este encargo e não podemos nem devemos tirá-lo
de nossos ombros”146. “Falando-lhes salvo minha alma. Se me calo, não
só me encontro em um grande perigo, mas também em uma irreparável perdição. (...). Se, por acaso, vocês não me ouvirem e eu continuar
falando, salvarei minha alma....”147. Um bispo que senta na cátedra e
não cumpre o seu ofício de pregar a Palavra é como um espantalho que
guarda a vinha148.
O “dispensator verbi” é também “dispensator sacramenti” porque
palavra e sacramentos são termos correlativos, mutuamente relacionados. Nos sacramentos a palavra atinge o máximo de sua eficácia e na
palavra os elementos (água, pão, óleo...) se fazem sacramentos. “Que é
o batismo de Cristo? É a ablução da água com a palavra. Se não se usa
água, não há batismo, se não se pronuncia a palavra, não há sacramento”.
“Suprime a palavra, e a água é simplesmente água. Mas, se juntamos a
palavra ao elemento, há sacramento, que é também ele como que uma
palavra visível”149.
Enquanto “dispensator sacramenti”, S. Agostinho combate a prática de retardar o batismo das crianças para o período de adolescência
ou juventude. Segundo ele, em situação de alta mortalidade infantil
como era o mundo de então, os pais que assim agiam, comportavam-se
como cegos, expondo seus filhos à condenação eterna. “Não ousemos
prometer às crianças, fora do batismo de Cristo, uma salvação eterna que
a Sagrada Escritura não promete... Eu vim ao mundo para ser luz, a fim
de que todo o que crê em Mim não fique nas trevas (Jo 12,46). A nossa
mãe Igreja não duvida de que esta iluminação se realiza nas crianças
pelo sacramento do batismo”150.
Convicto da necessidade do batismo para a salvação, Santo Agostinho insiste na sua recepção em perigo de morte, mesmo que a pessoa
esteja inconsciente e receba à revelia o sacramento. Neste sentido relata
sua própria experiência acontecida nos tempos de juventude. “Na época
146
Sermão 82,15.
147
Sermão 17, 2.
148
Sermão 340 A, 6.
149
Tratado sobre o Evangelho de João 15,4; 80,3.
150
98
O perdão dos pecadores e o batismo das crianças, 1,33.38.
Encontros Teológicos nº 53
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Dom Manoel João Francisco
em que eu começava a ensinar na cidade em que nasci, travei relações com
um amigo que, tendo os mesmos interesses de estudo, veio a ser muito
querido... Atacado pela febre, permaneceu por muito tempo inconsciente,
banhado em suores mortais; como não havia esperança de salvá-lo, foi
batizado à revelia, sem que eu me importasse com isso, persuadido como
estava de que seu espírito reteria o que de mim recebera, de preferência
ao que lhe fora feito sobre o corpo inconsciente. Sucedeu, porém, exatamente o contrário. Recobrou ânimo e, fora de perigo, logo que pudemos
conversar (o que aconteceu imediatamente, mal pôde falar, pois não me
afastava de seu lado, de tal maneira estávamos ligados um ao outro), tentei
pôr em ridículo diante dele o batismo que recebera sem a colaboração do
pensamento e dos sentidos. Ele já fora informado de tê-lo recebido. Eu
estava certo de que ele se riria disso comigo. Mas, pelo contrário, olhoume aborrecido como a um inimigo, e, com extraordinária e veemente
franqueza, avisou-me de que não falasse desse modo se quisesse ser
seu amigo. Estupefato e perturbado, preferi não manifestar no momento
minha reação, até que se restabelecesse e recobrasse as forças, para depois tratar do assunto a meu modo. Ele, porém, foi arrancado da minha
loucura para ser conservado junto a ti, para minha consolação: poucos
dias mais tarde, estando eu ausente, a febre voltou, e ele morreu”151. Sua
convicção sobre esta questão era tão forte que não vacilava em batizar
até mesmo os adúlteros mais descarados e recalcitrantes152.
No exercício da função de “dispensator sacramenti”, S. Agostinho
cuidava para que a participação dos fiéis fosse ativa, frutuosa, consciente, plena, interna e externa, como diríamos nós hoje (cf. SC 11). Neste
sentido, não se cansa de falar sobre os diversos ritos e gestos litúrgicos,
explicando-lhes o sentido e apontando para os sentimentos e atitudes
com que deviam ser realizados. Por exemplo: sobre o Amém que se diz
em diversos momentos da celebração, comenta que é como subscrever
um documento, ou seja, conferir validade ao que acaba de ser feito ou
proposto pelo presidente da celebração153. Só se assina um documento
depois de conhecer seu conteúdo. Da mesma forma só se diz Amém
quando se conhece o seu sentido e significado. Sobre o convite – Corações ao alto – da introdução do prefácio escreve: “Toda a vida dos
verdadeiros cristãos consiste em levantar o coração; ter durante toda a
151
Confissões, 4,4,7-8.
152
A fé e as obras, 6,8-9.
153
Sermões 27 e 272.
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Os ministérios em Santo Agostinho
vida o coração no alto é a preocupação dos que são cristãos não só de
nome, mas também na realidade e na verdade. Que quer dizer Coração
ao alto? É pôr a esperança em Deus, não em ti, porque tu estás abaixo,
mas Deus está acima. Se pões a esperança em ti mesmo, o teu coração
está em baixo, não está no alto. Por isso, quando ouvis o sacerdote dizer:
Coração ao alto, respondeis: o nosso coração está levantado para o Senhor. Esforçai-vos por responder com verdade, porque a vossa resposta
ficará nas atas de Deus. Sejam as coisas como as dizeis; o que a língua
diz não o negue a vida”154.
Um documento da Santa Sé, em sua introdução afirma que o clima
cultural de hoje se assemelha muito à época patrística. Como naquela
época, “também hoje um mundo chega ao ocaso e outro está nascendo.
Como outrora, também hoje a Igreja está realizando um delicado discernimento dos valores espirituais e culturais, num processo de assimilação
e de purificação, que lhe permite manter a sua identidade e oferecer, no
complexo panorama cultural de hoje, as riquezas que a expressividade
humana da fé pode e deve dar ao nosso mundo”155. O documento faz esta
introdução para justificar a importância e a necessidade do estudo dos
Santos Padres na formação dos seminaristas, nossos futuros padres. Meu
desejo é que este artigo tenha contribuído, se bem que modestamente,
no esforço de se fazer o “delicado discernimento de valores espirituais
e culturais” apontado pelo documento.
Endereço do Autor:
Av. Getúlio Vargas, 171-S Centro
Cx postal 726 (CEP 89801-970)
89801-001 Chapecó, SC
E-mail: [email protected]
100
154
Sermão229 (= Denis 6), 3.
155
CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Instrução sobre o estudo dos
padres da Igreja na formação sacerdotal, Roma, 1989, p.3-4.
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Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: A formação de comunidades católicas em Santa Catarina muito deve
ao zelo de presbíteros dedicados ao acompanhamento pastoral das famílias
de colonos fundadoras dos primeiros povoados do estado. São exemplos
notórios os padres Guilherme Roer e Augusto Schwirling, entre tantos outros.
Missionários infatigáveis no exercício do ministério, inabaláveis em suas convicções religiosas bem como em seus valores humanos, gastaram suas vidas
no exercício da diaconia para as comunidades nascentes. Em muitas questões
pastorais adiantaram-se no tempo, como a introdução do culto dominical dirigido
por leigos e o interesse pelas questões sociais e econômicas dos fiéis. Viveram
na prática algumas das intuições da teologia latino-americana da atualidade.
São, assim, memórias dignas de serem recordados e em muito são exemplos
a serem seguidos pelos presbíteros do nosso tempo.
Abstract: The erection of Catholic communities in Santa Catarina was due to
the zeal of priests dedicated to the Pastoral attendance of the families of the
primitive settlers who were the pioneers of the first settlements in the State.
These priests are notorious since the beginning and their names are constant
reminders of outstanding leadership among others such as Guilherme Roer and
Augusto Schwirling. They were indefatigable missionaries engaged in ministry,
unshakeable in their religious convictions and human values, labored and spent
their lives in the service of diakonia for the benefit of the early communities. In
the Pastoral activities they were ahead of their time such as the introduction
of the religious service on Sundays celebrated by laymen and the interest in
social and economic areas in the life of the parishioners. Their life was imbued
in practice by the intuitions of the theology of Latin America of today. They are
indeed worthy to be remembered and serve as examples to be followed by the
presbyters of our time.
Perfis de Presbíteros missionários
em Santa Catarina
José Artulino Besen*
*
O autor, membro do Instituto Histórico-Geográfico de Santa Catarina e da Academia
Catarinense de Letras, é professor de História da Igreja no ITESC e Pároco do Santíssimo Sacramento, em Itajaí.
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Ano 24 / número 2 / 2009, p. 101-117.
Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
1 Padre Guilherme Roer
Apóstolo e fundador de comunidades
Guilherme Roer nasceu em Warendorf, Alemanha, em 1821, numa
família de relojoeiros e joalheiros. Mais tarde seus pais mudaram-se para
Münster. Foi ordenado presbítero em Hildesheim, em 1857. Querendo
consagrar-se aos compatriotas emigrados, chegou ao Brasil em 1860,
sendo encaminhado pelo bispo do Rio de Janeiro ao Pe. Carlos Boegershausen, recém chegado em Joinville.
Em 1860 dirige-se a Vargem Grande, e fixa residência em Teresópolis, donde será Cura de seis de março de 1862 até 1889. Mesmo
com todo o trabalho nessa grande e difícil região, em 1870 foi vigário
encarregado de São Pedro Apóstolo em Gaspar, ofereceu atendimento
pastoral aos colonos alemães de Blumenau de 1869 a 1872 e, de 1872 a
1883, foi vigário encarregado de São Pedro de Alcântara.
A serviço dos imigrantes alemães de Teresópolis
Nos anos 1860-1863 chegaram a Santa Catarina famílias de agricultores vestfalianos e foram assentados em Teresópolis e na sua extensa
região serrana. Posteriormente 12 famílias mudaram-se para Blumenau,
no vale fértil do Testo, onde construíram a capela de São Ludgero e ali
foi visitá-los o Pe. Roer.
A região de Teresópolis e de Vargem Grande, como a de São Pedro
de Alcântara, não era de terra fértil. A chegada do Pe. Roer animou esses
colonos espiritual e economicamente. Pe. Roer era um homem prático:
plantou uma horta para servir de modelo aos colonos e, no andar térreo
da casa paroquial, instalou uma oficina, onde exercitava as habilidades
adquiridas na casa paterna: fazia os relógios novamente funcionarem,
no torno mecânico fabricava castiçais de madeira, cruzes, molduras para
quadros e sacras do altar.
Era um padre profundamente piedoso: persuadia os colonos no
cultivo da verdade, concórdia e amizade sincera, virtudes típicas das
boas famílias católicas. Introduziu o Culto dominical dirigido por leigos, criando a tradição dos Capelães que dirigiam o Culto, celebravam
sepultamentos, organizavam o coral. Para garantia do bom atendimento,
nomeava os melhores homens para a Diretoria das igrejas. Procurou
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Encontros Teológicos nº 53
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José Artulino Besen
logo organizar escolas paroquiais cujos professores eram colonos mais
instruídos.
Algumas visitas aos enfermos demandavam dias a cavalo: nunca
se omitia. Algumas vezes por anos visitava os colonos alemães de São
Pedro e Biguaçu, numa viagem de 8 a 10 horas a cavalo. Fadiga não era
argumento para omissão.
Colonizador de horizontes largos
Em 1870, Pe Guilherme Roer foi chamado a um doente no quase
despovoado Braço do Norte, da paróquia de Tubarão, com dois dias de
viagem pela mata, através de veredas. No regresso percebeu como aquela
terra era fértil. No primeiro encontro com os colonos em Teresópolis,
falou-lhes com entusiasmo das terras que vira. Formou uma comissão
de ordem prática, para preparar uma possível migração dessa comunidade para o Braço do Norte. Sob a direção de Bernardo Schlikmann, um
pequeno grupo dirigiu-se àquela terra, retornando cheio de entusiasmo,
quase reproduzindo a bíblica inspeção dos hebreus às portas da Terra
Prometida. Houve muitas adesões.
Pe. Roer, prático e organizado, visitou o Pe. Boegershausen em
Joinville, de quem recebeu o consentimento para a nova migração e uma
carta de recomendação dirigida às autoridades da Província. Em seguida
foi a Desterro (Florianópolis) e obteve êxito junto aos Ministérios. Com
essas recomendações embarcou para o Rio de Janeiro, obtendo audiência com o Imperador Pedro II, bom conhecedor do alemão e amigo dos
colonos alemães. Resultado: o Governo imperial doava 300 jeiras de
terra (83.160 m2) para cada família que se dirigisse ao vale do Braço do
Norte, com facilidades de pagamento.
A colonização do Braço do Norte efetuou-se nos anos 1873-1875.
O Governo provincial fez o traçado das estradas principais, a construção
de pontes, a preparação dos centros urbanos para igrejas, escolas e medições de lotes. Os colonos, por sua vez, deveriam procurar nos mapas
dos agrimensores sua futura propriedade.
No terreno de Bernardo Schlickmann, sob uma frondosa figueira,
foi erguido um altar, ornamentado por Ana Füchter (mãe do Pe. Nicolau
Gesing, primeiro padre de Braço do Norte). Pe. Roer, em meio ao júbilo
de todos, celebrou a primeira Missa. Pediu que preservassem a fé, os
costumes e a língua alemã. E que participassem do Culto dominical.
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Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
Duas vezes por ano, Pe. Roer passava algumas semanas com seus
vestfalianos em Braço do Norte, garantindo que a fé conservasse a união
dessas famílias lançadas num ambiente promissor, e ainda difícil, um
ambiente também ocupado por índios, que enfrentaram os invasores:
eram pobres diante de pobres.
O zelo pastoral, o cansaço e a doença
Um colono observou que Pe. Roer passava a maior parte do ano
encima de uma sela de montaria. Viagens difíceis, com doenças e acidentes, para celebrar Missas, confessar doentes, catequizar. Dores reumáticas
e gota minavam o já enfraquecido corpo do velho cura. Apesar disso,
queria sempre levar os Sacramentos aos doentes, mas já necessitava de
dois homens cavalgando em apoio para evitar quedas.
Na última viagem a Braço do Norte, em 1887, a doença o prostrou.
Rezava a Missa uma ou outra vez e à noite sempre fazia uma oração
comum, com breve mensagem. O corpo não acompanhava o zelo do
sacerdote.
Reunindo as últimas forças, ainda enfrentou três dias para a viagem
de retorno a Teresópolis. Então persuadiu o amigo Bernardo Steen a escrever ao bispo de Münster, expondo a situação dos colonos católicos e
pedindo um sucessor para Pe. Roer. Ao saberem da carta, os colonos de
Teresópolis também escrevem uma carta ao Vigário Geral de Münster,
assinada por M. Schmitz, em 14 de julho de 1889. Afirmam que Braço do
Norte não tem condições de sustentar um padre, que pertence a Tubarão
e que Teresópolis, sim, necessitava de um padre.
A carta, publicada no Jornal da diocese de Münster, teve resultado
imediato: candidatou-se o jovem padre Francisco Xavier Topp, que
viajou para o Brasil em 1889. Foi o grande presente de Deus para a Igreja
catarinense que, por mais de 30 anos, nele encontrará um animador e
organizador apostólico.
Pe. Topp não teve a graça de encontrar-se com seu antecessor.
Nesse mesmo ano, 1889, Pe. Guilherme Roer foi internado no Hospital
São Francisco de Porto Alegre, recebendo as melhores atenções.
Foi ali que esse ardoroso apóstolo entregou a alma a Deus em oito
de outubro de 1891, aos 70 anos de idade, sendo sepultado no Cemitério
São José.
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José Artulino Besen
Os colonos de Teresópolis não o esqueceram. No Cemitério local
foi-lhe erguido um monumento, onde se lê, em alemão:
“Em memória do 1º Vigário de Teresópolis,
Pe. Guilherme Roer.
Nascido em Warendorf, Vestfália, em 1821.
Morreu no Hospital São Francisco de Porto Alegre,
Aos 8 de outubro de 1891.
Sacrificou-se pela Salvação das Almas de seus Paroquianos.”
Obs.: Leia-se um ótimo texto em: Schätte, Estanislau, OFM.
Padre Guilherme Roer – 1860/1889. Revista Blumenau em Cadernos,
Tomo XLVIII, N.05-06 – maio/junho de 2007. Tradução de Pe. Dorvalino Koch, SCJ.
ANEXOS: Documentação da época
1. Carta enviada pelos colonos alemães de Braço do Norte (São
Ludgero) ao Bispo de Münster (Alemanha) – 01 de junho de 1887.
Tradução: Ir. Cléa Fuck. (Diocese de Tubarão – Arquivo da Paróquia
São Ludgero).
O primeiro documento tem um significado especial, pois traz os
nomes de todos os fundadores alemães de São Ludgero com as paróquias
alemãs de sua proveniência.
Rev.mo Sr. Bispo!
Os abaixo-assinados, moradores e fundadores de uma nova colônia
alemã na floresta virgem do Brasil, se unem para dar conhecimento a
V. Rev.ma da grande penúria que nós sofremos no tocante à nossa cura
de almas, na esperança de que V. Rev.ma seja inclinado a socorrer-nos
misericordiosamente em nosso abandono.
São agora passados mais ou menos 14 anos desde que deixamos
nossa pátria, a saber, a querida terra de Münster, para encontrar aqui no
Brasil uma nova pátria e tivemos logo a grande sorte de aqui pertencer
a uma paróquia alemã entregue ao Rev.mo Pe. Guilherme Roer, natural
de Münster, e morávamos, na maioria, próximos dele, apenas umas duas
a três horas distantes.
Mas, para nossa tristeza, convencemo-nos ao longo de dez anos
de que nos tínhamos estabelecido numa terra muito infértil e assim nos
vimos forçados a ir em busca de melhores terras e a começar tudo de
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Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
novo. Graças à boa mediação de nosso Rev.mo Senhor Padre junto ao
Governo, foi nos permitido comprar as terras onde agora moramos, a
um preço bem acessível, terra muito boa, localizada junto ao Rio Braço
do Norte, distrito de Laguna, Província de Santa Catarina. Já há quatro
anos moramos agora nestas terras e as cultivamos, muito satisfeitos
com a fertilidade, podendo assim, com a bênção de Deus, encarar com
tranqüilidade o futuro, em relação às preocupações temporais com a
alimentação.
Tanto mais triste é, contudo, a nossa sorte quando pensamos em
nosso bem espiritual (nossa cura de almas), porque nos mudamos da
paróquia de nosso bom padre para uma paróquia brasileira, que também
tem um padre, mas que não entende nada de alemão e nós falamos muito
mal a língua daqui. Nos últimos quatro anos tivemos ainda a grande
graça de ver o Rev.mo Pe. Roer em nosso meio uma vez por ano, mas
isso não nos pode dar esperança para o futuro, considerando as grandes
dificuldades que ele tem em sua própria paróquia, cuja extensão é de
vários dias de viagem e além disso a sua idade avançada, como também
a distância daqui até sua sede, chamada Teresópolis, de ao menos quatro
dias de viagem a cavalo.
Moramos aqui em número de 60 a 70 famílias católicas alemãs,
próximas umas da outras e mais um número considerável de famílias
brasileiras que são muito ligadas a nós. Nós todos juntos, em nossa
extrema preocupação, recorremos então agora aos pastores da nossa
antiga pátria e pedimos, com o maior respeito, que V. Rev.ma se digne
acolher-nos favoravelmente e consolar e alegrar-nos com o envio de um
bom sacerdote.
Embora não tendo condições de fazer grandes promessas, já dispomos de um belo chão situado aqui no meio de nós e nos comprometemos
a construir uma residência decente, como também boa horta, pasto, etc.,
para uso de um padre. Mas prometemos sobretudo acolher esse nosso
padre com a maior alegria e manifestar-lhe a nossa gratidão através de
fiel devotamento e obediência.
Profundamente entristecidos pelas grandes tribulações dos bispos e sacerdotes no Reino alemão, não deixaremos de pedir a Deus em
nosso culto comunitário que se digne conceder a paz à sua Igreja, e nos
firmamos,
De V. Rev.ma, obedientes e respeitosos, com os seguintes nomes:
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Comunidade paroquial de Asbek:
Bern. Steen, Bern. Fedder, Herm. Niehues, Ant. Niehues, Henr.
Röttgers, Jos. Nürenberg, Henr. Kühlkamp, Henr. Eising, Henr.
Wessling, J.Gerh. Brüning, Joh. Brüning
Comunidade de Borghorst:
Henr. Kauling, Ant. Schreiber, Aug. Hülse, Victor Hülse
Comunidade de Coesfeld:
Jos. Bering, Hem. Hobold, Hern. Eying, Franz Eying, Herm.
Eying
Comunidade de Darfeld:
Th. Everhardt
Com. de Eggerode:
Ant. Oenning, Henr. Oenning, Wilh. Oenning
Com. de Epe:
Ber. Schmitz, Joh. Blömer
Com. de Heeck:
Aug. Stange
Com. de Legden:
Bern. Voss, Herm. Voss, Ant. Efting, Bern. Efting, Joh. Borgert
Com. de Leer:
Henr. Schmöller
Com. de Metelen:
Ant. Kestering, Herm. Kestering, Christoph Schmöller
Com. de Schöppingen:
Bern. Schlickmann, H. Henr. Schlickmann, J. Bern. Schlickmann, Henr. Schlickmann, Jodokus Sõte, Ant. Söte, Ant.
Diemon, Herm. Stening, Henr. Füchter, Herm. Füchter, Ant.
Heidemann
Com. de Stadlohn:
Henr. Buss.
Com. de Velen:
Henr. Böing
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Com. de Wällen:
Bern. Locks, Herm. Gesing, Wilh. Wernke, Th. Wernke
Com. de Wessum:
Joh. Schwemlein
Com. de Köln:
Rubert Daufenbach
De Solingen:
Joh. Esser, Daniel Esser, Reinhardt Esser, Aug. Faust, Erndt
Faust, Wilh. Seuber
De Trier:
Peter Heinzen, Math. Heinzen, Jos. Heinzen, Joh. Meierer,
Franz Loch, Math. Loch, Manuel Loch, Joh. Loch
Braço do Norte, 01 de junho de 1877.
2. Carta de M. Schmitz ao sr. Theising em Münster
É digna de lástima a comunicação que o senhor me enviou: os
fabriqueiros de uma igreja fazerem tal pedido e quererem um padre,
para cujo sustento não existe nenhuma perspectiva. Um padre também
precisa o necessário para poder viver.
É verdade que no Braço do Norte há duas capelas, mas não é
paróquia, pertence a Tubarão. De acordo com os requisitos que aqui se
exigem, tão cedo aquela localidade não será paróquia.
O sr. Pastor Roer visitou aquelas capelas diversas vezes, demorando-se mesmo semanas inteiras por lá; mas só com licença do respectivo
vigário de Tubarão ele pode exercer o ministério sacerdotal: batizar e
fazer casamentos, remetendo-lhe também os emolumentos auferidos. Para
ele sobrava apenas a comida e a bebida, particular em que os colonos
mostraram muita generosidade. O sr. Roer também não tinha necessidade de dinheiro, pois é dono de uma bela fortuna. Mas, que poderia
fazer lá um padre novo? Seria mais conveniente e muito para desejar
que o sr. Bispo de Münster se interessasse pela vinda de um padre para
aqui. Aqui existe a paróquia; conta com 30 famílias vindas de Trier e
Münster, e tem além da matriz, aqui na localidade, 9 capelas. Mas esta
paróquia está órfã.
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O sr. Roer ainda mora aqui, mas devido à enfermidade e achaques
da velhice não pode mais exercer a cura de almas. Já vai para um ano
que nem ao menos pode rezar missa. Ele também requereu ao Bispo a
dispensa e foi atendido. Também ele deseja muito que venha um padre
para ocupar o seu lugar. Mas conseguir um padre alemão será coisa muito
difícil e assim a paróquia pode ficar por muito tempo sem cura de almas.
Algumas vezes esteve aqui um missionário italiano, que conhece muito
bem a língua alemã, e fez os trabalhos necessários. Que este no futuro
venha de tempo em tempo é incerto.
Atenciosamente o saúda o seu muito afeiçoado
M. Schmitz
Teresópolis, 14 de julho de 1889.
3. Carta do Pe. Roer ao Dr. Giese, Vigário Capitular de Münster
Os católicos alemães da Província de Santa Catarina pertencem
à Província Eclesiástica do Rio de Janeiro, onde é Bispo Dom Pedro de
Lacerda, cujo bispado se chama São Sebastião.
Para fazer a viagem, o mais prático é tomar em Hamburgo um
vapor alemão-sul-americano com escala no Rio de Janeiro, para aí imediatamente apresentar-se ao Exmo. Sr. Bispo, ou ao seu Vigário Geral.
Felizmente encontra-se um padre alemão, Regens Hehn, no Seminário
São José, que sempre se dispõe a fazer os contatos entre os padres alemães
e o Exmo. Sr. Bispo. Já faz alguns anos, eu expus ao Exmo. Sr. Bispo a
necessidade de enviar um sacerdote alemão para Braço do Norte e arredores, mas não recebi resposta, certamente por escassez der sacerdotes
alemães, e apesar de eu mesmo, por causa da idade e da enfermidade,
me ter oferecido para esse lugar.
Quem pode testemunhar em favor do feliz progresso da população
do Braço do Norte é o Príncipe Conde d’Eu, esposo da Princesa Isabel,
que veio visitar os alemães e lá me encontrou doente. Até agora o Exmo.
Sr. Bispo ainda não conseguiu encontrar uma solução definitiva para os
católicos de lá.
Seria muito conveniente se o novo sacerdote trouxesse um cálice
simples e um pequeno vaso com três divisões para os santos óleos. Alguns paramentos poderiam ser doados por benfeitores, assim como me
foram presenteados alguns por uma instituição piedosa, cuja direção era
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Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
presidida por uma senhora de Hartmann; um cálice me foi presenteado
pelo falecido Bispo João Jorge Müller. Uma pequena pedra de ara para a
viagem seria de muita utilidade. Um dicionário de português de Bösche
em dois volumes, ou então o de F. Moelheim, 2ª edição, com gramática
de Bösche, seria suficiente.
Eu mesmo, alquebrado de corpo e alma, vou retirar-me a um
hospital da Província do Rio Grande do Sul das Irmãs de São Francisco
em Porto Alegre.
P.S. Um pequeno missal em 12 de Dessain, Mecheln; o de Pustet
é muito pesado.
Oremus pro invicem e pela feliz viagem do novo sacerdote, cujo
sustento pode muito bem tomar sobre si a rica comunidade alemã.
P. Guilherme Roer
Teresópolis, 8 de outubro de 1889
Ao Revmo. Vigário Capitular do bispado
de Münster, Dr. Giese.
4. Carta do Dr. Giese, Vigário capitular de Münster, ao Pe. Francisco Topp
A seu pedido, e em consideração especial da aflitiva situação dos
católicos da Westfália e da Renânia aí residentes, como também da vocação para as missões estrangeiras que acredita ter, queremos autorizá-lo
a assumir o posto de missionário em Braço do Norte, na Província de S.
Catarina , no Brasil, concedendo-lhe para esse fim uma licença por tempo
indeterminado do grêmio diocesano.Ao mesmo tempo, concede-se-lhe
explicitamente o direito de poder retornar à diocese de Münster.
Por meio deste queremos desincumbi-lo, a partir de 10 de dezembro do presente ano, da função de capelão que atualmente exerce na
paróquia de Lüdinghausen. No Brasil ficará sob a jurisdição do revmo.
Senhor Bispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (Sancti Sebastiani Fluminis Januarii) Dom Pedro Maria de Lacerda, a quem deverá apresentar
as Litterae commendatiae anexas.
Expressando-lhe o nosso especial reconhecimento e nossa gratidão
pela dedicação com que até agora se empenhou em sua diocese na terra
natal, bem como pelo zelo presbiteral que demonstrou no exercício da
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cura de almas, despedimo-lo com os melhores votos para a sua nova
tarefa e lhe almejamos a especial bênção de Deus.
Münster, 29 de novembro de 1889
O vigário capitular (do Cabido)
Ass..Dr.Giese
Ao Senhor
Revdo.Capelão Topp
em Lüdinghausen
2 Padre Augusto Schwirling
Missionário do Alto Capivari
Padre Augusto Schwirling inclui-se na cepa dos missionários incansáveis, corajosos, de resistência física, espiritual e moral a toda prova.
Dele pode-se dizer que viveu no mato, nas clareiras onde se fundavam
comunidades de imigrantes alemães e seus descendentes, em Santa
Catarina. Parou apenas quando não podia mais continuar suas andanças
missionárias e pastorais.
Nascido em Lichtenau, Westfália, em 25 de fevereiro de 1872,
diocese de Paderborn, foi ordenado presbítero em 22 de março de 1895.
Na Alemanha foi capelão em Guterslach, Halle e Langendreer. Chegou
ao Brasil em 1907, impulsionado pelo mesmo ardor missionário do Pe.
Carlos Boegershausen (1833-1906), o primeiro pároco de Joinville, de
quem foi vigário paroquial, mas destinado a percorrer as regiões distantes
onde se fixavam os colonos alemães.
Sua vinda para o campo missionário foi irreversível e já em 22 de
julho de 1910 recebeu a incardinação na diocese de Florianópolis. Fato
original: em cinco de maio de 1930 o Vigário Geral de Paderborn pede
notícias do Pe. Augusto, que deixando a diocese em 1907, não se sabia
se tivera incardinação ou não. Mais tarde Pe. Schwirling comenta que,
sendo missionário, muitas coisas não seriam necessárias. Para que tudo
ficasse em ordem, com data retroativa em 21 de janeiro de 1930 fez o
juramento de pertencer perpetuamente à Arquidiocese de Florianópolis.
Enfim,: em 29 de agosto de 1930, Paderborn envia a excardinação e, em
25 de setembro de 1930, Dom Joaquim o incardina na Arquidiocese de
Florianópolis.
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Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
Generoso ímpeto missionário
Um ano após a chegada em Joinville, já estava na região do
Capivari, um imenso sertão verde. Em 1º de agosto de 1909 celebrou
a primeira Missa em Anitápolis e deu início à construção da capela. O
Chefe interino do Núcleo Lauro Müller (Anitápolis) pede ao bispo que
o nomeie professor de religião com a subvenção mensal de 200$000. A
Comissão manda construir casa para escola e reserva lotes para o professor e sacerdote. Em 30 de dezembro do mesmo ano foi nomeado Cura
de Teresópolis, colônia fundada em 1860 e atendida pelos franciscanos
até 1899.
Homem tomado pelo zelo do Bom Pastor, amplia seu campo de
ação para além dos limites do Curato que, diga-se a verdade, eram muito
indefinidos. Em 23 de dezembro de 1910 as capelas de Löffelscheidt e
Vargem Grande passam a Teresópolis. Cavalo, charrete, pernas, eram
seu dia-a-dia. Tudo o que se referia aos colonos lhe interessava. Em 18
de dezembro de 1916, cita os Núcleos coloniais assistidos por ele. Eram
três: Anitápolis (federal), Rio Abaixo do Itajaí (Companhia Colonizadora
catarinense) e Rio Novo (Rio Alferes – Alto Porto de Boa Vista). Pe.
Augusto escreve que esse último Núcleo foi “improvisado por intrusos
nacionais”, isto é, por brasileiros. Em 1917 recebe um breve socorro do
Pe. Carlos Füchtjohann, que logo se retirou, não resistindo à carga de
trabalho.
Em relatório de 1918 cita mais detalhadamente as igrejas e capelas
a que atendia: Matriz do Curato de Teresópolis; Capela de Santa Teresa
do Itajaí do Sul, Capela de Bom Jesus do Barracão; Capela de Santa
Brígida do Rio Novo; Capela de São Paulo do Braço do Norte – Pinheiro;
Capela de Nossa Senhora da Assunção de Löffelscheidt; Capela de Nossa
Senhora da Conceição de Rancho Queimado; Capela de São Bonifácio
de Taquaras; Capela de Santa Isabel do Rio dos Bugres. Além desses
espaços construídos, Pe. Schwirling celebrava em 30 Casas particulares,
num território onde hoje se situam os municípios de Rancho Queimado,
Anitápolis, São Bonifácio, Ituporanga, Vidal Ramos, Rio Fortuna, São
Martinho e Armazém.
De dezembro de 1911 a junho de 1912 Pe. Schwirling esteve na
Alemanha para recuperar a saúde e as forças, e também para angariar
recursos para as escolas paroquiais, ponto de honra em cada comunidade:
não se entendia colônia alemã sem escola paroquial.
112
Encontros Teológicos nº 53
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José Artulino Besen
Fundador de comunidades
A exemplo do Pe. Guilherme Roer (1821-1891), que tinha encaminhado colonos para o Vale do Braço do Norte, Pe. Schwirling refaz o projeto, mas partindo do rio Maracujá que nasce em Anitápolis e deságua no
Alto Vale do Rio Itajaí-mirim, percorrendo as regiões vizinhas em busca
de terras melhores para os colonos alemães. Deve-se ao Pe. Schwirling o
início do povoamento das regiões que hoje constituem Ituporanga, Vidal
Ramos e Presidente Nereu, nas cabeceiras do Itajaí Mirim, no período
de 1912 a 1928. Deu início à organização eclesiástica da imensa região,
contando com o auxílio missionário ocasional do Padre Bernardo Bläsing
e dos franciscanos Frei Húmilis e Frei Meinrado.
Esse pioneirismo esbarrou num obstáculo: a presença ancestral
dos índios botocudos, ameaçados pela penetração tanto dos colonos que
vinham do Alto Vale como dos que subiam pelo Itajaí-mirim, procedentes
de Brusque.
Assistimos, desse modo, às terríveis expedições de bugreiros,
grupos de colonos pagos para literalmente caçar e matar índios, uma
página triste da história catarinense. Pe. Schwirling, em seu zelo pelo
bem-estar e segurança dos colonos, participou infelizmente de algumas
dessas expedições. Numa delas, afugentado pelos índios, caiu numa
ribanceira, por pouco não morrendo. Sobrou-lhe uma cicatriz na testa.
Eram pobres contra pobres, todos buscando a sobrevivência.
Preocupado com o desenvolvimento da comunidade de Teresópolis, com recursos que trouxera da Alemanha e a colaboração dos colonos,
em 1920 fundou nela a primeira indústria: a Sociedade Cooperativa de
Theresópolis – Refinação de Banha, Salsicharia, Fabricação de presuntos, compra e venda de todos os produtos coloniaes. A experiência
não teve longa duração, pela dificuldade na colocação dos produtos, mas
retrata o interesse do padre pelos seus colonos.
A messe é grande, poucos os operários
Em 1919, devido ao muito trabalho, pede o deslocamento do Pe.
Ernesto Schulz de Orléans para auxiliar de Teresópolis, pois o sentia-se
impotente diante da vastidão do campo apostólico. Não sendo atendido,
em 1922, com dor no coração, pede a Dom Joaquim um outro posto, em
Encontros Teológicos nº 53
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113
Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
qualquer local da diocese. É-lhe oferecida a Coadjutoria de Imaruí, Laguna, Quadro do Norte, sabendo-se que ele não aceitaria essa mudança.
A solução veio no mesmo ano: os franciscanos de Santo Amaro da
Imperatriz assumem Teresópolis e Pe. Augusto fixa residência no Alto
Capivari, São Bonifácio. Por 23 anos (1922-1945) será o zeloso pastor de
São Bonifácio. Muitas vezes deve ter lembrado São Bonifácio, o grande
apóstolo da Alemanha no século VIII.
Em 1920 pede a Dom Joaquim o envio das Irmãs que tinha conseguido na Alemanha para residirem no Curato. Dom Joaquim responde,
a seu modo, que as Irmãs já tinham sido fixadas em Vargem do Cedro,
criado Curato em 1921. Creio que as próprias Irmãs tenham estranhado
a solidão e as dificuldades de viver em Teresópolis. Era lugar para missionário corajoso.
Em 1921 os Padres dehonianos assumem o Curato de São Sebastião de Vargem do Cedro e Pe. Schwirling, para atendimento de algumas
comunidades, de 1926 a 1932 será vigário encarregado do mesmo curato,
com residência em São Bonifácio. Por sua vez, o dehoniano Pe. Gabriel
Lux, grande benfeitor de Azambuja no início do século, assume como
vigário. A situação geográfica complicada possibilitava esses arranjos
de vigário e vigário encarregado simultâneos. Em 1926 são reanexadas a
Rodeio e Blumenau as capelas de Barracão (Ituporanga), desmembradas
do Capivari.
Em 1935, Dom Joaquim fica sabendo que o Pe. Schwirling continua atendendo Anitápolis e até encaminhando a construção de casa
paroquial e construindo igreja de tijolos em São Francisco de Sales de
Maracujá (que pertencia a Rio Fortuna). Dom Joaquim pede que apresente provisão que o autorize a isso e lhe oferece Teresópolis, “vaga”,
com os Freis sobrecarregados.
Preocupado e obediente, embaralhado mesmo sobre qual seja o
território de sua jurisdição, em dois de agosto de 1935 Pe. Schwirling
pede esclarecimentos sobre os limites da sua paróquia. Seu raio de ação
era tão vasto e cansativo que ele não sabia que Anitápolis e Rio Fortuna
não eram mais de seu paroquiato. Com zelo de pastor, pensava que,
tendo faculdades de vigário, poderia se embrenhar pelo imenso sertão
de morros, vales e colinas. Por 10 anos atendera Anitápolis e depois da
Guerra de 1914-18 a trocara com Taquaras (Barracão), Santa Teresa e
Rio Abaixo porque “quis tocar a nossa boa mocidade para lá e não para
114
Encontros Teológicos nº 53
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José Artulino Besen
Anitápolis, com muitos imigrantes não bons. Também as terras eram
muito melhores em todas as condições no Rio Abaixo. Esse troco foi
intermediado por meu coadjutor d’aquele tempo, Pe. Bernardo Bläsing,
em Rio Fortuna”.
Narra igualmente que entregou as capelas de São Martinho do
Capivari e São José de Rio São João para Rio Fortuna, pois eram capelas muito distantes de Teresópolis: 14 horas a cavalo. Assim também
entregou Rio Abaixo (Ituporanga) aos franciscanos e aceitou novamente
Anitápolis.
Na mesma carta, a respeito das construções, escreve a Dom Joaquim: quanto ao fato que a Cúria pede as plantas das Capelas: ”Nestes
lugares retirados fora do comércio, pobrezinhos, não há profissionais
(pedreiros, marceneiros, carpinteiros – nem sapateiros nem alfaiates,
etc.) e se tiver não sabem fazer uma planta, e se tiver planta , não sabem
executar”.
Então aceita a provisão para Teresópolis, pedindo comunicação
sobre quais capelas paroquiar e onde residir. De Teresópolis a Capivari
são 6 horas de viagem e para a capela de Santa Maria, mais 4 horas. E
com freqüência deve ir a Vargem do Cedro celebrar para as Irmãs que
não devem ficar duas semanas sem Missa: isso quando Pe. Gabriel Lux
SCJ está visitando capelas.
Resumindo: Pe. Augusto passa a atender Teresópolis e Capivari
(São Bonifácio).
Cansado e com problemas de saúde, em 30 de março de 1937
pede e recebe licença para passar três meses na Alemanha a fim de
encaminhar um herdeiro para os bens paternos, pois ele é o filho mais
velho e dois irmãos tinham morrido na Guerra. Como desejasse visitar
mais uma vez toda Anitápolis e celebrar Pentecostes e Corpus Christi
em São Bonifácio, embarcou só em 15 de junho em São Francisco do
Sul, no vapor General Artigas.
De Lichtenau, em 22 de agosto de 1937, escreve que “arranjou com
as Irmãs Dominicanas duas Irmãs professas e uma enfermeira; arrumou
dois padres e estudantes de teologia no último ano, até terminarem os
estudos no Brasil e aqui serem ordenados.
Em dois de setembro de 1937 o Secretário do Arcebispado responde: “O Sr. Arcebispo autoriza-o a trazer dois Padres (não mais que
dois), sem compromisso de colocação e sujeitos, em tudo, ao regime desta
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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Perfis de Presbíteros missionários em Santa Catarina
Arquidiocese. Seminaristas, não aceita, a menos que se comprometam a
fazer o curso completo de Teologia, ou em Roma, ou em São Leopoldo”.
Nada feito, portanto. Dom Joaquim não via com bons sentimentos povoar
a Arquidiocese com clero alemão.
As Irmãs Dominicanas de Speyer vieram, mas Dom Joaquim as
encaminhou para Araranguá, depois de breve passagem por Teresópolis
e Capivari. Mais um vez, Pe. Augusto se vê sem a presença oportuna
das religiosas. Mas não reclama. Tinha forte o sentido da obediência às
autoridades.
Dos muitos trabalhos, pouca saúde
O velho guerreiro vê a fraqueza tomar conta do corpo. Em 31 de
dezembro de 1939 escreve a Dom Joaquim que está para fazer 68 anos e
que, ao arrancar um pé de mata-pasto teve um choque tão forte ao redor
do coração que em 14 dias não podia mais trabalhar. Pede para ser aposentado em São Bonifácio e que Teresópolis e Anitápolis (50 km distante)
sejam atendidas pelos Franciscanos. Em 5 de janeiro, o Secretário (Pe.
Roberto Wirobek) escreve que “S. Excia. já tem um ‘padre prontinho’
que será coadjutor com residência em São Bonifácio para atender Teresópolis e Anitápolis”. E conclui, no típico estilo de Dom Joaquim: “Mas
deixe-se de mata pasto; não vá o pasto virar em mata-pastor”.
Em 22 de junho de 1941 escreve à Cúria estar atacado de dor
na anca esquerda, sendo assim custoso andar a cavalo, para não dizer
impossível.
Em 18 de junho de 1943 dirige-se mais uma vez à Cúria, no fim
de suas resistências físicas: “Não posso caminhar! Doe sempre mais a
perna, no lugar abaixo do joelho, onde apanhei um coice do animal. Só
deitado com a perna posso agüentar. Não se vê nada por fora, não parece
encarnado, não inchado: decerto é uma Quetsihung no osso”.
Pe. Walmor de Castro era o “padre prontinho”. Por ser “brasileiro”
e disso se orgulhando, já tivera problemas com os padres Miguel Giacca e
Luiz Gilli, italianos. Em 10 de maio de 1944, Pe. Schwirling escreve que
Pe. Walmor se fora embora para Laguna, pois não aceitava confissões em
alemão. Espera agora o Pe. Ludgero Locks: “Sinto-me também velho e
doente do coração irregular (legero-devagar – forte – fraco – fechando).
Não posso mais andar montado nem de aranha”.
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José Artulino Besen
Os últimos anos
Dom Joaquim tinha claro que Pe. Augusto deveria ser recolhido
para um merecido repouso. Veio a calhar a Chácara do Hospital de
Azambuja, em Santa Teresinha, Brusque, onde as Irmãs da Divina Providência tinham residência, e lhe oferece o posto de Capelão. Em sete de
dezembro de 1944, Pe. Augusto escreve à superiora Irmã Servanda que
aceita em tudo as condições para a Chácara de Azambuja e está contente.
Em 15 de janeiro Dom Joaquim lhe escreve e pergunta se é possível criar
a Paróquia de São Bonifácio sem Anitápolis, e quais seriam os limites
definitivos. Era o último consolo para o Padre que percorrera aquelas
regiões por 46 anos. E era a despedida.
Em 23 de fevereiro de 1945 fixa residência em Azambuja, Brusque como Capelão das Irmãs na Chácara Santa Teresinha. Anos depois
deixou a Capelania e fixou residência no Seminário, pois perdera quase
completamente a memória. Tinha apenas lampejos de recordações.
Deus o chamou em 16 de janeiro de 1961 e foi sepultado no Cemitério de Azambuja. Cristo Sumo Sacerdote o coroou com 54 anos de
apostolado no Brasil, 89 anos de vida e 66 de sacerdócio.
O povo de São Bonifácio não o esqueceu. Por iniciativa da comunidade e do Pe. Sebastião van Lieshout SSCC, em dois de novembro de
1970 seus restos mortais foram transportados para São Bonifácio.
Endereço do Autor:
Paróquia do Santíssimo Sacramento,
praça Irineu Bornhausen s/n, Centro,
CEP 88303-026 Itajaí, SC
E-mail: [email protected]
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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ITESC – INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
Em funcionamento desde o ano de 1973, o Instituto Teológico de Santa
Catarina (ITESC) tem por finalidade a formação teológico-pastoral de futuros
presbíteros, bem como a colaboração na formação teológica e pastoral de
religiosos(as) e leigos(as), comprometidos com o povo de Deus, para uma
Igreja toda ministerial.
Além do CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA, o ITESC
oferece ainda os seguintes cursos:
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Resumo: A promessa de Deus de tornar-se presente a nós implicava, no AT, a
retificação da Aliança sagrada na liturgia, assegurando sua intervenção na História
da Salvação em favor do seu povo. Para ser real e eficaz, era preciso, porém, que
a ação divina fosse confirmada na comunidade de fé por seus representantes, que
irradiassem sua eficácia para todo o Povo Eleito, através de sua atuação civil e
religiosa não só por ocasião de sua instituição solene, mas durante todo o tempo
enquanto estiverem exercendo o cargo. Era da competência do rei canalizar as
bênçãos divinas para as repartições administrativas bem como para os setores
da política, da economia e da segurança interna e externa da nação. Sem a ajuda
divina não haveria garantia para sobrevivência do povo de Israel em meio à política
expansionista dos impérios do antigo Oriente Médio. Por outro lado, não bastava
a independência territorial do reino de Israel, para a continuidade na história, pois
era necessário, sobretudo familiarizar-se com o conteúdo da revelação divina
transmitida ao povo de Israel e celebrar a liturgia para cultivar a vivência da fé
mediante uma religião “viva”, cuja fonte de irradiação era o sacrifício de ratificação
da Aliança sagrada, oferecido pelo sacerdócio instituído por Deus.
Abstract: The assurance of God’s presence needs to be confirmed in the liturgy
with the rites required both for the enthronement of the king and the appointment
of the chief priest in the formal conferring of office. One of the prerequisites was
the rite of the institution of the sacred Covenant performed at the occasion so
that the divine benefits would extend not only to the subjects involved but also to
the Chosen People. It was a common belief that the king should canalize God’s
blessing to the areas outside the religious sphere: the administration of the affairs
of the state and its defense against aggressions from within and outside. In fact
it was a truism at that time that no small nation would otherwise have a chance
to survive and would be able to guarantee its independence in the face of the
political expansion of the great empires of the ancient Middle East: Assyrian,
Babylonian, Egyptian, and Persian. Moreover, in addition to preserving political
independence, it was essential that any nation should preserve its identity and
national unity when its heritage from the past was irreplaceable and should be
cherished and handed down to future generations. It was a sacred duty entrusted
to all citizens to embrace the sacred Covenant established between God and
made effective in the celebration of the liturgy presided by the chief priest.
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
Luis Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 119-133.
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
Introdução
O Salmo 110 (109) presta homenagem ao rei messiânico na solene
liturgia celebrada no Templo de Jerusalém. No dia de sua entronização
como também na festa anual em comemoração da faustosa data entoavase este Salmo em honra do rei da dinastia davídica, porque constituía
uma das mediações divinas para o povo de Israel canalizando as bênçãos
de Deus para as repartições administrativas do governo e os setores da
segurança nacional. Durante o período pré-exílico da história de Israel
havia quatro sinais lembrando os israelitas de que estavam vivendo sob
a “Eleição” divina, dois do âmbito religioso: o Templo e o sacerdócio;
dois de cunho político: o rei davídico e Jerusalém1.
O sacerdócio era de importância fundamental para o povo israelita, porque lhe dava a certeza de que os cidadãos estavam praticando
uma religião “viva” pelo fato de celebrarem validamente sacrifícios na
liturgia, e não improvisavam meramente ritos cultuais como era praxe
nas celebrações entre os povos pagãos. O cerne dessa religião “viva” era
a presença de Deus no sacrifício da instituição da Aliança sagrada e na
liturgia de comemoração em datas solenes da História da Salvação.
Havia representantes das quatro instituições de mediação salvífica
que marcavam presença no santuário, por ocasião da celebração festiva da
entronização do novo rei da realeza davídica: o rei e sua corte, os habitantes
de Jerusalém, os sacerdotes e autoridades do Templo. No ato de nomeação
do sacerdote da corte comparecia o eleito, emprestando um caráter festivo
à cerimônia religiosa. Na liturgia solene celebrada no Templo se invocava
a presença de Deus para ratificar com a Aliança sagrada a entronização do
rei e também a nomeação do sacerdote da corte, investindo com poder o
rei e o sacerdote e assegurando-lhes a bênção divina para o bem do Povo
Eleito, que entoava este Salmo dedicado à realeza davídica.
Salmo 110 (109)
Salmo de Davi.
Oráculo do Senhor ao meu Senhor:
1
1
120
O Reino do Norte de Israel se diferenciava do Reino do Sul porque não era uma monarquia constitucional, pois os governantes se impunham pela força das armas com o
apoio do exército e dos partidos políticos dominantes. Por outro lado, o Reino do Sul
se fundamentava no princípio dinástico, implantado pela Casa de Davi; cf. Roland de
Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, [Trd. D.Oliveira], São Paulo, Ed.
Vida Nova, 2008, (original francês), II. Parte, cap. 4: “Os Reinos de Israel e Judá”.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Luis Stadelmann, SJ
“Senta-te à minha direita,
até que eu ponha teus inimigos como
escabelo de teus pés!”
De Sião o Senhor estende o cetro do teu poder:
“Domina no meio de teus inimigos!
2
Teu povo será generoso
no dia de tua campanha.
Nos montes santos,
mais numerosas do que o seio da aurora tem gotas de orvalho,
tu terás tuas tropas de jovens”.
3
O Senhor jurou
e não se arrepende:
“Tu és sacerdote para sempre,
na função de Melquisedec.”
4
O Senhor está à tua direita,
esmagará os reis no dia de sua ira.
5
fará justiça às nações,
e amontoará cadáveres;
esmagando cabeças pela imensidão da terra.
6
Aquele que bebe da torrente no caminho
poderá, então, levantar a cabeça.
7
Notas
Devido a peculiaridades sintáticas e estilísticas da língua hebraica, como também por causa da opção por variantes baseadas em alguns
manuscritos, impõe-se um estudo acurado ao tradutor para acertar com
as sutilezas gramaticais do hebraico. Ao comparar o texto nas Bíblias em
vernáculo e as versões antigas em grego, latim e siríaco, aparecem variantes e diversas tentativas de render as frases em hebraico com emendas
e interpretações atualizantes. É preciso, portanto, recorrer a gramáticas
especializadas em hebraico para desvendar o significado de expressões
idiomáticas e torneios da frase para descobrir o sentido original transmitido por meio dos recursos estilísticos da linguagem poética2.
2 P. Joüon – T. Muraoka, A Grammar of Biblical Hebrew, vol. I, Part 1: Orthography and
Phonetics, Part 2: Morphology; vol. II, Part 3: Syntax (Subsidia Biblica: 14/I-II), Rome:
P.I.B., 1991, (abrev. JM). W. Gesenius — E. Kautzsch, Gesenius’ Hebrew Grammar,
(Trd. da 28a ed. alemã 1909, por A.E. Cowley), Oxford: Clarendon Press, 2. ed. reimpressão 1960, (abrev. GK).
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121
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
3
“nos montes”, (hebr.: beharerê), baseado em mss. hebr. em lugar de
“esplendor”, (hebr.: behadrê), no TM; “mais numerosas”: o grau
comparativo de superioridade é expresso pela preposição hebr. min
prefixada, (hebr.: merehem [min-rehem]), veja-se JM § 141g; “seio
da aurora” (hebr.: rehem misahar), é personificação poética da
madrugada; “gotas de orvalho” ou “orvalho”, (hebr.: tal).
4
“na função”, (hebr.: ‛al-dibratî ), é uma expressão técnica da linguagem administrativa de Canaã, usada também no aramaico bíblico3.
Quanto à flexão, a expressão hebr. (‛al-dibratî ), é uma forma alternativa de ‛al-dibrat, já que o yôd é mero hireq compaginis (GK §
90k-l) que se usa para indicar o “estado construto”. O sufixo –î do
subst. dibratî não é sufixo pronominal “meu”, mas mero “estado
construto” em conexão com o substantivo (hebr.: malki-sedeq). O
nome hebr. Melquisedec é composto de dois substantivos que se
empregam como atributos de Deus: “justiça”, (em hebr.: sedeq) e
“[meu] rei” (malki). É de notar-se que o termo hebr. (sedeq) nunca é
usado para pessoas, já que existe o adjetivo “justo”, (saddîq). O pronome pessoal (“meu”) anexado ao subst. é comum nos onomásticos
de cunho religioso com referência à divindade que exerce a proteção
ao “afilhado”. Destarte, “meu rei é (Sedeq)” é a expressão, usada
no onomástico, para consignar a proteção divina para o afilhado em
analogia com o patrocínio do Deus tutelar El Elyon (Deus Altíssimo) sobre Jerusalém (Gn 14,18). A designação de Deus como “rei”
(Melek) encontra-se frequentemente na literatura semítica, porque
é atributo de soberania do Deus Altíssimo ou de supremacia de um
deus supremo sobre o panteão das divindades.
7
“aquele” é sujeito da frase, diferente do sujeito “ele” do verso precedente.
Estrutura Literária
1* I. Cabeçalho
1 II. Oráculo sobre o rei
2-3 III. Profecia alvissareira
2
A. Reino poderoso
3
B. Campanha vitoriosa
4 IV. Oráculo sobre o chefe dos sacerdotes
5-7 V. Profecia de intervenção divina
3
122
J. Botterweck ─ H. Ringgren, Grande Lessico dell’Antico Testamento, vol. II,
(Trd. A Catastini, R. Contini, P.G. Borbone), Brescia: Paideia, 2002, (Original alemão
1973), sub voce dibrâ.
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Luis Stadelmann, SJ
5-6
7
A. Justiça de Deus
B. Libertação dos oprimidos
Contexto
Este salmo da realeza data do período pré-exílico.
Oração
Oração de louvor para despertar nosso amor para com Deus, que realiza a salvação no mundo através da mediação das instituições civil e religiosa
(v. 1-4) e impõe o castigo nos casos de justiça espezinhada (v. 5-7).
Entronização do rei
No cabeçalho do Salmo 110 consta a rubrica de identificação do
titular da classificação. Trata-se de uma coletânea de Salmos que trazem
uma referência ao nome de Davi. Foi acrescentado posteriormente a
este Salmo para fins de canonicidade. Tinha também uma finalidade
prática, para garantir sua inclusão no rol dos Salmos que tinham a
chancela oficial de poemas religiosos que eram admitidos na recitação
de textos durante a celebração litúrgica do Templo. Destarte, Davi não é
o compositor desse Salmo, cujo gênero literário é típico dos Salmos da
realeza davídica. Trata-se, portanto, de um ”Salmo” e não de um “Hino”
porque o estilo poético mescla idéias nobres e sublimes com expressões
que suscitam reações violentas e vingativas, típico da linguagem usada
em outros Salmos.
O oráculo sobre o rei tem por objetivo legitimá-lo no poder, como
representante de Deus junto ao Povo Eleito. “Oráculo do Senhor ao meu
Senhor”: O preâmbulo do Salmo consiste na comunicação divina de
uma mensagem ao salmista a respeito do “Senhor”, o Messias-Rei da
dinastia davídica, instituída no Reino do Sul. Quanto ao “Senhor” em
diálogo com o salmista, trata-se do sucessor ao trono na ocasião de ser
coroado como rei. Diferente da realeza do Reino do Norte de Israel, que
não seguia a linha dinástica, e cujo novo rei não recebia ali legitimação
divina através de um oráculo na cerimônia de entronização. É que a
realeza do Reino do Norte não era uma monarquia constitucional, mas
uma autocracia na qual o governo estava nas mãos de um monarca, cuja
liderança se impunha pela lei do mais forte entre os líderes militares. Daí
que essa monarquia não tinha legitimação de Deus e por isso não exercia
a mediação da salvação divina em favor dos súditos.
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123
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
“Senta-te à minha direita!” (hebr.: sheb lîmînî) é fórmula de entronização do rei davídico, no cerimonial da monarquia de Jerusalém, e
ao mesmo tempo dá prioridade à lei da sucessão eletiva ao trono, postergando a lei da primogenitura. Em outras palavras, o novo rei tinha o
aval da “Eleição” divina e não era instituído no trono meramente por
sua primazia na Casa de Davi.
A importância da realeza davídica em Israel deriva de sua função
como “sinal da Eleição divina” do Povo de Deus, sob o governo de um
rei como lugar-tenente de Javé. Destarte, os israelitas tinham no rei davídico a comprovação de que de fato estavam vivendo sob o desígnio da
“Eleição” divina. Jerusalém era o centro religioso e político da nação:
o Templo e o palácio real – situado à sua direita (ao sul), na mesma
cidade – eram instituições de mediação da salvação entre Deus e seu
povo. “Senta-te à minha direita!”, expressa a fórmula da entronização
sob os auspícios de Deus, que o profeta cita no Templo por ocasião da
cerimônia solene em honra do novo rei. A cláusula sobre a intervenção
divina contra a hostilidade dos inimigos refere-se à transmissão do poder
com o apoio de Deus para a defesa da nação: “Até que eu (Deus) ponha
teus inimigos por escabelo de teus pés!”. A conjunção temporal: “até
que” (hebr.: ‘ad-’asher) tem sentido temporal asseverativo e não terminativo, pois a sujeição continuará mesmo depois de tê-los submetido.
A explicação sobre a referência à situação bélica do novo rei davídico
é de cunho histórico e conjuntural daquele tempo, quando a monarquia
davídica estava à mercê da política expansionista dos antigos impérios
do Próximo Oriente. Por ocasião da entronização do novo rei, pairava no
ar uma dúvida se a monarquia em Jerusalém teria continuidade histórica
ou se poderia sustentar-se apenas interinamente. Essa dúvida não desapareceria por si, mas precisava ser transformada em certeza através da
garantia de proteção divina, que será confirmada por um oráculo divino.
Evidentemente, não se assegurava ao rei inviolabilidade das fronteiras do
país contra invasões de exércitos inimigos, mas se transmitia a promessa
da intervenção divina quando a sobrevivência de Israel como Povo Eleito
estava em perigo. Pois o que se visava com o oráculo divino era confirmar
o fato de que estavam em jogo não só o poder do rei como também o poder
de Deus. É que os povos pagãos que punham em perigo a existência de
Israel eram, pela agressão ao Povo Eleito na Terra Prometida, inimigos
de Deus e dos fiéis. Pois o destino de Deus estava vinculado ao destino
do Povo Eleito, sendo governado pelo rei davídico.
124
Encontros Teológicos nº 53
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Luis Stadelmann, SJ
A promessa da intervenção de Deus na história implica a derrota do
inimigo que haveria de servir como “escabelo dos teus pés”, simbolizando
a submissão do inimigo subjugado que substituía a banqueta para apoio
aos pés do rei sentado no trono. Em lugar de um estrado servia o dorso
de um homem que era reduzido à condição de escravo: não bastando a
derrota na batalha, era ainda vítima de injúria na corte.
Profecia alvissareira
A profecia alvissareira (v.2-3) sobre o reino poderoso, é que garante
aos súditos um espaço de autonomia, ao abrigo da agressão externa e
da divisão interna. Competia ao rei assumir também a defesa dos seus
súditos, que se encontravam nos territórios fora da terra pátria. Em situações de conflito, provocadas por antagonismos de interesses e de grupos,
que ameaçavam a segurança das condições da vida social, dificultando
o desenvolvimento integral do povo, a solução virá da colaboração dos
membros da comunidade, cujos recursos humanos estarão à disposição
da defesa do bem comum. A tarefa do novo rei consistia em dominar
“entre teus inimigos”, ressaltando assim o confronto com os inimigos e
não o domínio sobre eles. O que implicava nisso era seguir uma política
de defesa do país e não de conquista de novos territórios. A estratégia
dessa defesa envolvia não apenas a área da capital, mas o país inteiro, de
sorte que as tropas não seriam apenas guardas armados, para a proteção
do palácio real, mas receberiam o treinamento para enfrentar e prevenir
o levantamento de uma revolta popular, ou o acirramento de antagonismos em áreas de conflito como também a agressão externa. O motivo
de “teu povo ser generoso” (hebr.: ‘ammeka nedabot) no alistamento
militar é que se tratava do apoio geral às medidas de defesa da nação
visando à proteção do Povo Eleito e não só da coroa. Por isso, quanto
maior o apreço de todos pelo objetivo em jogo, tanto mais abrangente
seria o engajamento geral dos cidadãos em defendê-lo naquela época e
transmitir como legado hereditário para a posteridade.
A capital do país é Jerusalém, chamada na Bíblia de “Cidade Santa”
(hebr.: ‛îr haqqodesh) e, por extensão, os “montes santos” (hebr.: harerêqodesh) porque sobressaem na região montanhosa ao redor da capital.
Essa configuração topográfica engloba colinas, destacando-se por encostas onduladas, e montes que contrastam com barrancos escarpados. Tanto
das colinas como dos montes virão os efetivos a serem recrutados para o
exército em defesa da pátria e de domínio sobre territórios anexados. O
jovem rei, recém-empossado, terá, portanto, a seu dispor, um exército de
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
125
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
tropas, recrutadas entre os habitantes autóctones do país, sem depender
de um exército de mercenários que só poderiam ser contratados por pagamento de soldo. E já que o jovem rei provavelmente não dispunha de
recursos para custear uma política expansionista, a profecia alvissareira
não passaria de uma utopia, a não ser que houvesse garantia de intervenção divina para concretizar os objetivos do oráculo. É preciso tomar em
conta o fato de que a política expansionista do Messias-Rei não visava
estender a hegemonia da monarquia davídica sobre outros povos, mas
tinha por objetivo prestar um serviço assistencial aos cidadãos israelitas
residentes em outros países, em analogia com a assistência da embaixada
e do consulado, nos tempos de hoje, que representam os interesses dos
cidadãos do país de origem, morando no estrangeiro. Eis que os habitantes do Povo Eleito não se restringiam a um território limitado, mas
integravam também os cidadãos do Reino de Deus. E nesse sentido o
Salmo recebe o qualificativo de “Salmo messiânico”.
A imagem do número dos efetivos do exército do Messias-Rei
comparados com a abundância de “gotas de orvalho”, caindo sobre as
colinas da redondeza de Jerusalém, lembra a afluência de peregrinos ao
Templo de Jerusalém em dias de festa. Ora, a precipitação de orvalho é
muito abundante na região de Judá durante os meses de verão, começando
na primavera, “a época do ano em que os reis costumam sair a guerrear”
(1Cr 20,1). Por outro lado, as festas religiosas de Israel eram celebradas
com a afluência de peregrinos na primavera e no verão: Páscoa, Pães Ázimos, Pentecostes e a festa das Tendas. Era preciso, portanto contar com a
convergência de israelitas vindos de longe e de perto para serem incorporados no exército do rei. Aliás, a população nativa era escassa porque os
recursos para sustentá-la eram parcos, pois a agropecuária e o pastoreio dos
rebanhos de ovelhas não eram economicamente rentáveis para sustentar as
famílias que se localizavam na região montanhosa. Por isso, a referência à
multidão de habitantes incluía tanto os habitantes autóctones como também
os peregrinos vindos de longe e até de outros países, que acampavam ali
em tendas durante os dias de sua estadia na Cidade Santa.
Os “montes santos” não tinham caráter sagrado, quer pela proximidade da Cidade Santa, quer pelas procissões seguindo caminhos
íngremes em dias festivos, mas devido à presença dos peregrinos e da
população local que participavam da liturgia do Templo e partilhavam
dos dons sagrados do altar. Os peregrinos tornaram-se portadores de dons
sagrados irradiando as bênçãos divinas sobre os habitantes do país.
126
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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A cidade de Jerusalém era de origem cananéia e aparece como
Urusalim nas Cartas de Amarna, da literatura egípcia antiga (séc. XVI
a.C), como Urusalimmu, nos textos assírios, e como Shalém, nos textos
ugaríticos dos cananeus. A transição da cultura cananéia para a israelita
aconteceu no séc. X a.C., no início da monarquia davídica, quando o rei
Davi fez da cidade de Jerusalém o centro político do seu reino e o centro
religioso de Israel. O nome de “Sião” encontra-se na Bíblia (2Sm 5,7),
como nome da fortaleza situada no monte Ofel, ao sudeste do Templo. O
mesmo nome é dado também, alhures, à colina ao norte, onde se situa o
Templo e, por extensão, a toda a Cidade Santa. Existiam, portanto, duas
instituições no “Monte Sião”: o Templo, no lado norte, e o palácio real, no
lado sul, ambos guarnecidos por muralhas. Desde então se usavam como
sinônimos as expressões “fortaleza de Sião” e “cidade de Davi” (1Cr 11,5)
para indicar a cidade de Jerusalém. Com a designação da capital do país
com o nome de Sião se visava ressaltar a importância de Jerusalém como
centro político e religioso de Israel. Não é de admirar-se, pois, que o manancial de irradiação dos dons salvíficos do Deus de Israel se localizava no
Monte Sião, pois ali o Messias-Rei dispunha dos recursos para a mediação
em defesa dos interesses dos israelitas residindo em outros países.
Esses recursos provinham de Israel, sendo alguns do âmbito religioso, como p. ex. os emissários, em missão diplomática, que professavam a
fé de Israel, e os israelitas que punham em prática os costumes religiosos
do Povo Eleito. Um desses costumes era a peregrinação anual dos fiéis ao
Templo de Jerusalém. Quando os numerosos peregrinos acampavam nas
colinas da redondeza de Jerusalém e entre eles se proclamava a convocação para o alistamento de voluntários para o exército do rei de Israel, sua
adesão significava como que uma contrapartida dos fiéis pelo privilégio
de possuir o direito de cidadania israelita. Enquanto os jovens se alistavam no exército, seus familiares providenciavam pelo fornecimento dos
mantimentos para sustentá-los durante a campanha militar.
Nomeação do sacerdote da corte
O oráculo sobre o sacerdote da corte (v.4), enunciado pelo profeta por ocasião da posse do “arcipreste”, confirma a origem divina da
instituição do sacerdócio ministerial. Por causa de sua função cultual na
celebração litúrgica dos fiéis reunidos na presença de Deus, o sacerdócio
constituía um dos sinais da “Eleição” divina do povo de Israel (junto com
outros três: Templo, Jerusalém, Realeza davídica). A função cultual de
Melquisedec é considerada aqui como prefiguração do sacerdócio instituEncontros Teológicos nº 53
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O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
cional em Jerusalém que remontava às práticas cultuais da religiosidade
do Patriarca Abraão, o pai dos fiéis do Povo de Deus (Gn 14,18-20).
O contexto da história dos Patriarcas era importante em Israel devido
à influência da religiosidade popular na religião mosaica, sob o crivo
seletivo de elementos provindos dos povos antigos. Pois na religião de
Israel não havia uma assimilação direta de ritos cultuais de origem pagã
dos povos da Canaã sem passar antes pelo crivo das tradições religiosas
dos Patriarcas que exerciam uma interação criativa, visando à depuração
de elementos espúrios das religiões naturais.
A sugestão de substituir “na função” (hebr.: ‛al-dibratî) por
“segundo o rito”4 é pouco viável, porque o sacerdócio hereditário de
Aarão diferencia-se do sacerdócio eletivo de Melquisedec não por
meio de ritos, mas pela natureza de sua instituição. Pois o mesmo rito
de ordenação vigorava para o sacerdócio hereditário de Aarão (Lv 8) e
o sacerdócio eletivo de Sadoc (1Rs 2,35), já que o rito de unção valia
para os dois (Lv 4,5). Além disso, existe uma diferença marcante entre
o rito sacerdotal de Melquisedec, realizado ao ar livre na presença de
Abraão, e posteriormente o rito sacerdotal de Aarão oficiando no Templo de Jerusalém. É que Melquisedec não ofereceu um sacrifício, mas
apresentou meramente a oferenda de pão e vinho, que não constituíam
matéria para o sacrifício. Daí que o benefício concedido a Abraão era
meramente uma bênção divina e não um dom salvífico, anexo à Aliança
sagrada (Gn 14,18-20).
A cláusula de instituição para ser “sacerdote para sempre” é do tipo
protocolar no caso de cargos vitalícios, especificando-se não só seu status
vitalício como sacerdote, mas também sua função vitalícia no sacerdócio.
No âmbito institucional entra também o carisma (no NT) como dádiva
de Deus para fins de mediação dos dons salvíficos a serem ministrados
aos fiéis. Com isso se visava diferenciar a ação cultual realizada pelo
sacerdote e o gesto ritualista dos oficiantes em cultos pagãos, já que aí os
ritos geralmente têm sua origem em mitos, ao passo que os atos cultuais
se fundamentam nas tradições religiosas dos povos.
Na Carta aos Hebreus encontra-se o texto sobre o sacerdócio
primordial com base no “sacerdócio eterno” (Hb 7,24), que caracteriza
o múnus sacerdotal conferido por Deus a Jesus Cristo, ab aeterno (desde sempre), e que está inserido no rol das várias funções do Mediador
4
128
Veja-se a proposta de substituir a expressão “segundo a ordem” por “segundo o rito”:
L. Alonso Schökel – C. Carniti, Salmos II, Estella: Verbo Divino, 1993, p. 1365.
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divino5. A interpretação messiânica de Cristo como sumo sacerdote,
cujo respaldo bíblico encontra-se neste versículo: “Tu és sacerdote para
sempre, segundo a ordem (i.e. na função) de Melquisedec” (Sl 110,4).
Também para a versão do texto grego da Septuaginta deve aplicar-se a
tradução “em função” em vez de “segundo a ordem”, porque se cita o
texto grego traduzido do hebraico (Hb 5,6; 7,11.17,21)6. O objetivo do
autor da Carta aos Hebreus é fundamentar o tipo de sacerdócio eletivo
e não hereditário. Destarte, Melquisedec representa o sacerdócio eletivo
que existia em Jerusalém antes da instituição do sacerdócio hereditário
de Israel, cujo fundador é Aarão, confirmado no cargo por Moisés.
O segundo texto, citado nessa Carta, refere-se ao caráter eletivo do
sumo-sacerdócio: “Todo sumo sacerdote é escolhido entre os homens
e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas de Deus”
(Hb 5,1). Ora, a função de Cristo como “sumo sacerdote” visa realçar,
primeiro, o grau de hierarquia superior ao dos sacerdotes levíticos do
AT como também, segundo, seu poder de sagração dos candidatos ao
ministério sacerdotal em analogia com o rito do AT (Ex 29; cf. 1Cor
11,24s). Entretanto, a temática em pauta, no Salmo 110, é a origem de
duas instituições de mediação salvífica em Israel por iniciativa de Deus:
a Realeza davídica (Messias-Rei) e o Sacerdócio. É de notar-se, porém,
que o v.1 desse Salmo menciona meramente a instituição do Messias-Rei,
ao passo que o status de sacerdócio eletivo, simbolizado por Melquisedec, não tinha caráter messiânico por ser meramente funcional como
“arcipreste” da corte em Jerusalém, na época da monarquia.
Melquisedec é identificado como “rei de Salém”, etimologicamente lembrando os termos “rei da justiça” e “rei da paz” (Hb 7,2). Quanto
ao status de Melquisedec como rei de Salém, não se encontram dados
históricos mencionados em inscrições ou textos extra-bílicos, e tampouco
constam referências aos reis cananeus na Bíblia, a não ser que estejam relacionados com a História da Salvação. Bem outra é a mediação salvífica
5
Veja-se o estudo sobre a superioridade do sacerdócio de Melquisedec em comparação
com o sacerdócio levítico: Gard Granerød, “Melchizedek in Hebrews 7”, em Bíblica,
Vol. 90, Fasc. 2, 2009, p. 188-202.
6
As numerosas citações dos textos bíblicos do AT inseridas nos textos do NT obedecem
a um propósito intencional, que é contrastar a exegese bíblica dos autores sacros
do NT com a exegese rabínica dos judeus que não costumavam citar textos bíblicos
como comprovante, mas ao invés citam rabinos que tratam do respectivo assunto; cf.
Israel Shahak, História Judaica e Religião Judaica: O Peso de 3000 anos, Hugin,
Lisboa 1997.
Encontros Teológicos nº 53
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129
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
do sacerdócio, cujos antecedentes históricos não são nem Melquisedec
nem o rei Davi, que nunca exerceu a função sacerdotal.
Lembremos que no AT existiam seis tipos de Messias. É preciso,
portanto especificar qual das seis figuras messiânicas entra em questão: 1º
Messias-Rei, 2º Messias-Sacerdote7, 3º Messias-Profeta, 4º Messias Nacional, 5º Messias-Mártir, o “Servo de Javé”, 6º Messias Transcendente.
Justiça de Deus
A profecia cominatória (v.5-6) anuncia a intervenção divina, através
do julgamento dos infratores das leis e das normas da Aliança como também dos que recorrem à violência e à supressão dos direitos e liberdades
fundamentais, inseparáveis da dignidade humana dos membros do Povo
de Deus. Para entender a gravidade do descalabro moral, basta olhar para
o “rosto irado” de Deus, como imagem visual de censura à impiedade.
A conversão moral terá, por reflexo, um “semblante amigo” (Sl 34,16),
voltando-se Deus para reconciliar consigo o pecador arrependido. São recursos sugestivos que os Salmos usam para situar a punição da impiedade
no contexto da ira divina, mas colocam o infrator na presença de Deus,
porque assim permanece oferecida a salvação ao pecador arrependido.
Lembremos também que a amizade de Deus para com os fiéis não se reduz
a mero sentimento, mas consiste na irradiação da benevolência de Deus,
cujo reflexo se manifesta como “luz da Sua face” (Sl 4,7).
7
130
O messianismo sacerdotal aparece depois do exílio babilônico (de 587-538 a.C.),
quando a classe sacerdotal assumiu virtualmente a direção do povo judeu. Não é
muito preciso, mas podemos encontrar vestígios dele em Zacarias e nos documentos
de Qumrân. Na profecia de Zacarias é que se anuncia a coroação do sumo sacerdote Josué (Zc 6,11-15), que exercerá seu ministério em colaboração com o futuro
rei, cada qual na área de sua competência, visando à restauração do Povo Eleito
na Terra Prometida. No Novo Testamento, com a perspectiva messiânica, o âmbito
da história salvífica particular do Antigo Testamento, restrito à Terra Prometida, abriu
seus horizontes ao âmbito universal. Quanto aos documentos de Qumrân, que se
referem ao “messias, surgido de Aarão e Israel” (CD 12,23; 14,19; 19,9-11; 20,1), não
há outros textos sobre a expectativa messiânica, no sentido de mediação salvífica.
Sobre as escassas referências ao Messias nos pergaminhos de Qumrân, ver R.A.
Horsley, “Grupos judeus palestinos e seus Messias na tardia época do segundo
Templo”, em CONCILIUM, No 245 (1993/1) 24-41. O manuscrito citado é o “Documento
de Damasco” (abrev. CD); outra referência consta na “Regra da Comunidade” (1QS
9,10-11). É importante notar que não se encontra a dimensão salvífica nos textos
sobre a expectativa messiânica. Essa lacuna pode ser atribuída à ausência da função
redentora da comunidade de fé para com a humanidade, porque se considerava como
comunidade fechada, elitista e exclusivista (típica dos sectários de Qumrân), sem a
missão de transmitir a revelação de Deus aos povos gentios.
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A ação punitiva de Deus contra os inimigos é descrita aqui com
cenas guerreiras. O objetivo é enfatizar a doutrina do Povo de Deus sobre
a História da Salvação que se sobrepõe à história política e econômica dos
povos. Os inimigos do plano salvífico de Deus a respeito da humanidade
põem a perder os modos como esse plano se realiza através do Povo Eleito, cuja função é de servir como a mão direita de Deus na história. Quem
executa essa punição não é o Rei, nem o Povo Eleito, mas unicamente o
Deus Altíssimo sem colaboração dos exércitos humanos.
O Senhor está à tua direita,
esmagará os reis no dia de sua ira.
5
fará justiça às nações,
e amontoará cadáveres;
esmagando cabeças pela imensidão da terra.
6
A punição infligida às nações é da iniciativa e competência de Deus
somente, sem interferência nem participação alguma do rei messiânico.
Essa intervenção punitiva acontecerá no “dia de sua ira” (hebr.: yôm-’appô),
uma expressão idiomática da manifestação da justiça retributiva de Deus
na história. Para os povos pagãos não havia referência a eventos de intervenção retributiva dos deuses na história, porque aí se falava apenas de
calamidades causadas pelo destino cego (em grego: μοιρα, moira) ou por
forças telúricas e cósmicas em conflito com a ordem dos ciclos da natureza.
Por outro lado, a referência no Salmo à intervenção de Deus, derrubando
reis e causando calamidades que dizimavam a população em várias regiões,
é mero antropomorfismo projetando para Deus o que os pagãos atribuíam
a fenômenos naturais. Na linguagem dos profetas encontra-se também a
expressão idiomática do “dia da ira do Senhor”, como prenúncio de um
ajuste de contas do passado e início de uma nova era na História da Salvação, com vislumbres da Era Escatológica, sem ser necessariamente a
inauguração da etapa definitiva do Reino de Deus.
É importante constatar também a abordagem das crises dentro e
fora do país tal como aparece nos Salmos, em contraste com os relatos
históricos sobre o desenrolar dos acontecimentos traumáticos entre as
nações, registrados na literatura ocidental. Pois aí se atribuem as crises
dentro e fora do país às conjunturas políticas e econômicas, ao passo
que os Salmos deslocam os termos do problema para a pessoa. A razão
disso está na busca da causalidade dos problemas, atribuídos pelos salmistas a iniciativas dos homens e não às forças nefastas, cuja ilustração
se encontra nos mitos e nas superstições. É que a crise é uma situação
Encontros Teológicos nº 53
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131
O Sacerdócio do Reino Messiânico (Sl 110)
humana e não a realidade externa: para sair dela de forma positiva, cabe
ao homem avaliar o compromisso pessoal com a sua missão na vida e
acolher os desafios no contexto da comunidade de fé.
Libertação dos oprimidos
O objetivo da intervenção salvífica de Deus (v. 7) é o início de
condições propícias à vida de convivência pacífica entre os habitantes
do país e a ausência da anarquia e da injustiça social.
Aquele que bebe da torrente no caminho
poderá, então, levantar a cabeça.
7
Trata-se da condição social dos oprimidos pela sociedade, que
passam à clandestinidade para escapar à impiedosa repressão de que são
vítimas indefesas. Esses poderão finalmente levantar a cabeça quando o
Reino de Deus lhes abrir as portas à vida de liberdade e de paz no mundo.
Destarte, a instituição da realeza davídica no âmbito do povo de Israel
como também as democracias modernas têm por finalidade servir para
o bem comum do povo e defesa dos direitos humanos.
Esperança messiânica
O tema teológico da esperança messiânica está ligado à instituição
da dinastia davídica. Enquanto a Casa de Davi estava no poder (1010 –
587 a.C.), durante quatro séculos antes do Exílio babilônico, somente
em situações de crise se manifestava a esperança na vinda de um rei que,
dentro e fora do país, exercesse a função salvífica em favor dos súditos,
quando oprimidos por dominadores estrangeiros. Após a supressão da
monarquia por agressão externa, restavam alguns descendentes da Casa
de Davi, lembrando às novas gerações as glórias do reino salomônico.
Na liturgia, através da leitura de textos da Bíblia, evocavam-se os eventos da história salvífica e da dinastia davídica, portadora da esperança
messiânica. Ali se vislumbrava a atuação do rei na perspectiva de um
horizonte mais amplo, até alcançar os confins da terra, ultrapassando as
fronteiras do território de Judá, e estendendo-se até as comunidades de
fiéis localizadas nos países fora da Palestina. A função soteriológica do
Messias beneficiará os súditos do seu reino, como também as minorias
132
Encontros Teológicos nº 53
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Luis Stadelmann, SJ
israelitas, que, constituídas em comunidades de fé, se encontravam espalhadas entre as nações do mundo inteiro8.
Conclusão
O legado da fé de Israel é transmitido a todas as gerações do Povo
Eleito do AT como também ao Povo de Deus do NT. Ambos se beneficiam da religiosidade vivida em termos de cultura e de espiritualidade.
O Salmo 110 em forma orante presta homenagem a duas instituições
beneméritas do AT: a realeza davídica, e o ofício sacerdotal. O papel do
sacerdócio é o de mediatizar os dons salvíficos pela liturgia celebrada na
comunidade de fé. Mediante o sacerdócio é que a religião bíblica do AT
e NT se torna uma religião “viva” porque o sacerdote é quem oferece o
sacrifício de ratificação da Aliança sagrada e desta forma se confirma a
relação de amizade entre Deus e seu povo.
Endereço do Autor:
Colégio Catarinense
Rua Esteves Junior, 711
Cx postal 135
CEP 88015-130 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
8
Nos Evangelhos Sinóticos há referências à crença, em voga entre os judeus de
então, de que os benefícios da salvação, trazidos pelo Messias, seriam reservados
aos israelitas, pois o título “Filho de Davi” tem sua origem na tradição judaica (cf. Mc
7,24-30 / Mt 15,21-28).
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133
Curso de Pós-graduação em Juventude,
Religião e Cidadania
O ITESC, em parceria com a Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE), de Belo
Horizonte – MG, com a Coordenação de Pastoral do Regional Sul 4 da CNBB, e a com
a Coordenação Regional das Pastorais da Juventude, promove este segundo curso de
pós-graduação em Juventude, Religião e Cidadania, que pretende capacitar pessoas
para trabalhar com adolescentes e jovens numa perspectiva multidisciplinar, tendo como
enfoque a Juventude numa perspectiva teológico-pastoral, psico-pedagógica, culturalreligiosa e da Ética e Cidadania.
Critérios de admissão
Os candidatos e candidatas devem ter formação de nível superior (terceiro grau), reconhecido pelo MEC; conclusão da graduação até a data da inscrição; disponibilidade de
tempo integral para frequentar as etapas do Curso; compromisso de pesquisar sobre os
temas orientados pelos professores e elaborar a monografia de conclusão do Curso.
Inscrições
São limitadas a 50 participantes. Será respeitada a ordem de chegada das fichas de
candidatura. O ITESC não oferecerá o curso caso não se confirmem 75% das vagas
oferecidas.
As inscrições devem ser feitas até 30 de novembro de 2009. O resultado da seleção sairá
no dia 15 de dezembro de 2009. As matrículas serão feitas em janeiro de 2010.
Etapas
Primeira: 18 a 31 de janeiro de 2010
Segunda: 12 a 24 de julho de 2010
Terceira: 17 a 31 de janeiro de 2011.
Seminário de socialização e entrega das monografias: 22 e 23 de julho de 2011.
Investimento
O valor da inscrição é de R$ 150,00.
Investimento no curso: 15 parcelas de R$ 100,00.
Entrega da monografia: R$ 150,00.
Local do Curso
Dependências do ITESC, na Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524, Bairro Pantanal, Florianópolis, SC.
Maiores informações
Para inscrições: Secretaria do ITESC (com Ana), fone: (48) 3234-0400).
E-mail: [email protected]
Sobre hospedagem no ITESC: na Administração (com Donizeti).
E-mail: [email protected]
Resumo: Neste Ano Sacerdotal, a Igreja é convidada a refletir sobre o ministério
do presbítero como dom de Deus a serviço da edificação do povo. O presbítero é chamado para a vivência da missão, assumida corajosamente em meio
aos desafios da sociedade atual. Nessa realidade, ele pergunta: como seguir
a Cristo? Como professar a fé em Jesus Cristo como o sentido para a vida do
mundo? Como testemunhar o Evangelho? Como formar comunidade? A resposta
se encontra vivendo como presbítero-missionário, no caminho da comunhão,
da doação e da esperança cristã.
Abstract: The Church is invited during this year, dedicated to the priesthood,
to reflect upon the ministry of the priests who are to be considered as a gift of
God for the service to the people by building up the faith community. The priest
has a spiritual call to courageously embrace and enliven the spiritual mission in
the midst of the challenges of today’s society. To fulfill his duty he asks how to
follow Christ; how to profess the faith in Jesus Christ who bestows full meaning
to the life of the world; how to bear witness to the Gospel; how to establish the
community of faith. The answer lies in the ministerial discipleship to live as priest
and missionary, in the proper fulfillment y of the imitation of the Lord in genuine
communion, self surrender, and Christian hope.
O Ministério presbiteral: dom de Deus
a serviço da edificação do seu Povo
Dom Esmeraldo Barreto de Farias*
* O Autor é Bispo de Santarém – PA e faz parte da Comissão Episcopal Pastoral para
os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 135-150.
O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
Introdução
O papa Bento XVI, no ensejo da celebração dos 150 anos do
falecimento de S. João Maria Vianey, desejou oferecer a toda a Igreja, e
de modo especial aos presbíteros, a oportunidade para um maior aprofundamento sobre o significado do ministério presbiteral no conjunto da
missão da Igreja. Após ter proclamado o ano sacerdotal na reunião da
plenária da Congregação para o Clero em março de 2009, solenemente,
fez sua abertura no dia de 19 de junho, festa do Sagrado Coração de Jesus
e dia de oração pela santificação dos presbíteros.
Referindo-se ao tema escolhido pela Plenária da Congregação
para o Clero – “A identidade missionária do presbítero na Igreja, como
dimensão intrínseca do exercício dos tria munera” – o papa afirmou: “A
dimensão missionária do presbítero nasce da sua configuração sacramental com Cristo Cabeça: ela traz consigo, como conseqüência, uma
adesão cordial e total àquela que a tradição eclesial reconheceu como
a apostolica vivendi forma. Ela consiste na participação numa “vida
nova”, espiritualmente entendida, naquele “novo estilo de vida” que
foi inaugurado pelo Senhor Jesus e foi feito próprio pelos Apóstolos.
Pela imposição das mãos do Bispo e a oração consecratória da Igreja,
os candidatos tornam-se homens novos, tornam-se “presbíteros”. Nesta
luz, aparece claramente como os tria munera são primeiro um dom e só
consequentemente um ofício, primeiro uma participação numa vida, e
por isso uma potestas” (Discurso do papa na plenária da Congregação
para o clero em março de 2009).
Ministro chamado para a vivência da Missão
Durante muito tempo, missão ficou entendida como tarefa específica para algumas pessoas e grupos: religiosos(as) e padres que vinham
para o Brasil ou iam daqui para outros países. A palavra missionário(a)
correspondia àquelas pessoas, em geral religiosos mais idosos, que, em
um determinado lugar e durante um determinado número de dias, iam
“pregar a missão”. Desse modo, identificava-se a missão com algumas
atividades, especialmente religiosas e ligadas aos sacramentos.
Mas, temos exemplos de missionários que vivenciaram a missão
de outro modo. Entre eles, merece destaque o Pe. José Antonio Pereira
Ibiapina. Natural do Ceará, iniciou em 1829 o curso de Direito em Recife, e exerceu o cargo de Juiz em Quixeramobim (CE). Um ano depois
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renunciou ao verificar que não podia exercer com liberdade o seu trabalho. Eleito deputado nacional foi representar o Ceará no Rio de Janeiro.
Completado o mandato de quatro anos não quis reeleger-se em virtude
da corrupção que imperava no governo imperial e nas assembléias. Voltou para o Recife onde atendia os pobres, como advogado e viveu uma
vida de “monge leigo”. Foi ordenado padre no ano de 1853. Dois anos
depois, diante da epidemia de cólera que dizimava muitas pessoas, Pe.
Ibiapina deixou as funções de professor no Seminário e Vigário Geral e
foi viver no sertão acompanhando e acolhendo as vítimas da cólera, da
seca, da doença.
Como lembra Pe. José Comblin, o Pe. Ibiapina, “em contato com
a imensa miséria e os sofrimentos do povo sertanejo, descobriu a sua
vocação. Deus o chamava ali mesmo. Ele era inteligente, ativo, voluntário, tinha dons de liderança. Quis colocar tudo isso a serviço desse
povo sertanejo. Sentiu que era necessário viver no meio deles, em contato permanente com essa vida viva e sofrida. Quem mora longe pode
imaginar, mas não sente nada. Ele se tornou um missionário, criando um
novo modelo de missão. Esta conversão de Ibiapina é muito importante, porque, de alguma maneira, todos os padres um dia são colocados
num dilema: ou a dedicação ao povo pobre, ou uma tranqüila carreira
eclesiástica. Este é um desafio que todos vão encontrar na vida. Ibiapina
decidiu, escolheu. Aceitou ser comovido pelas necessidades do seu povo.
(...) Foram 20 anos de extrema fecundidade. Ibiapina era incansável.
Percorreu milhares de quilômetros a pé, montado num jumento ou num
burro. Visitou Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí.
Ele fundou 22 casas de Caridade. Vítima de um derrame, permaneceu
paralítico até o dia em que partiu para o casa do Pai” (Carta os seminaristas da diocese de Paulo Afonso – BA, julho de 2006).
Em meio à realidade desafiante
As mudanças ocorridas na sociedade nas últimas décadas foram
dando sinais à Igreja de que ela não era mais o centro da sociedade agora
marcada pelo pluralismo, relativismo, subjetivismo, pela mentalidade do
consumismo, do descartável, do prazeiroso, do provisório...
Em meio à desafiante realidade urbana em sua estrutura de grandes e profundos contrastes onde uma pequena minoria goza de todos os
benefícios e uma maioria sobrevive sem as mínimas condições dignas
de vida, destacamos alguns desafios: pessoas que freqüentam ambientes
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
diferentes, pois os lugares de residência não mais coincidem com os de
trabalho, de lazer e participação eclesial; desconhecimento das pessoas
que moram no mesmo bairro; a propaganda massiva através da mídia
induzindo ao consumo sem limites; a apresentação de luzes, cores e sons
variados como atração e distração que enchem os olhos e os desejos; a
apresentação do subjetivismo que atinge toda a cultura, mas, particularmente milhares de jovens, seduzidos pelo lema “a vida é minha, faço
dela o que mais me convém”; a determinação de que o principal é viver
“o hoje”, relativizando as tradições em suas várias formas e níveis; o
crescimento da violência em formas variadas atingindo os vários níveis
sociais; o pluralismo cultural e religioso onde a presença da comunidade
católica vai se tornando uma entre outras sem a referência de destaque
que tinha em décadas passadas; o crescimento rápido e desordenado dos
bairros nas periferias sem a mínima infra-estrutura e da falta da presença
missionária da comunidade católica; o fortalecimento do agro-negócio
e o enfraquecimento do programa de reforma agrária que incentivam o
êxodo rural; o acentuado índice de exclusão social. Diante desse quadro
sempre em mudança, nos perguntamos:
a) Como ser seguidor de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, que
está nos propondo e indicando a necessidade de atenção às
pessoas em sua história, cultura e condições de vida, a partir
da sua dignidade, como cidadãs e filhas amadas de Deus?
b) Como ser missionário, testemunha do Evangelho, manifestando o amor de Deus em nós, por nós e pelos outros, através de
gestos de serviço que expressem solidariedade, fraternidade,
reconciliação, diálogo...?
c) Como apresentar a experiência do encontro com Jesus Cristo como
caminho que nos faz encontrar a fonte diante da sede de Deus que
tantas pessoas manifestam de modo claro ou sub-entendido?
d) Como contribuir para a formação de comunidades nos vários
espaços, a fim de que as pessoas possam partilhar sua vida com
as alegrias e dificuldades, tristezas, angústias e esperanças; assim
como a sua experiência de fé; iluminando-as com a Palavra de
Deus que dá solidez à fé e à convicção de que são chamadas
para seguir e testemunhar Jesus Cristo nos ambientes por elas
freqüentados?
e) Como anunciar a pessoa e a missão de Jesus Cristo contribuindo
para o encontro com Ele a fim de que o Reino que Ele veio
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anunciar seja acolhido nessa cultura plural onde muitas vezes
cada um quer deixar-se guiar por “sua verdade”?
f) Como fortalecer em cada cristão a convicção de que “conhecer
Jesus Cristo pela fé é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e
transmitir este tesouro aos demais é uma tarefa que o Senhor,
ao nos chamar e nos eleger, nos confiou? (DAp 18).
Essa transformação tem repercutido de modo positivo na vida da
Igreja e, sendo esses questionamentos dirigidos a cada cristão, eles falam,
de modo mais forte e incisivo, aos ministros ordenados, especialmente aos
presbíteros, em sua condição de pastores servos missionários. São um convite para que se tenha sempre o pé, a inteligência e o coração voltados para
a realidade na qual se vive que não se restringe aos traços apresentados;
bem como para aquele que é o “Verbo que se fez carne”, o “Pão da Vida”,
o “enviado do Pai’, o missionário da inclusão, o pastor da reconciliação!
É Ele quem concede aos cristãos, e aos presbíteros em seu específico, a
graça para segui-lo a fim de que sejam seus missionários: “Ide pelo mundo
inteiro e anuncia a Boa-Nova a toda criatura!” (Mc 16,15).
Iluminada pelo Espírito Santo, a Igreja vai descobrindo que não
é mais suficiente “tocar o sino”, esperar que o povo venha aos lugares
das celebrações. A Igreja redescobre a sua natureza missionária e passa
a assumir a missão no sentido de ir ao encontro das pessoas para, considerando sua história e a situação em que vivem, anunciar-lhes Jesus
Cristo, oferecendo-lhe oportunidades e meios para o encontro pessoal
com Ele. É um passo qualitativamente diferente, pois a Igreja que forma
discípulos de Jesus Cristo assume também que ela mesma precisa ser
discípula.
Nesse processo de renovação, o Concílio Vaticano II foi decisivo,
pois deixou claro que “a Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na
“missão” do Filho e do Espírito Santo (...) e a obra de evangelização é
dever fundamental do povo de Deus” (AG 2. 35).
Mas, este caminho não está pronto. Na realidade de hoje, se faz
cada vez mais urgente ir ao encontro das pessoas para dar-lhes atenção
entrando em sua casa, sendo próximo delas, acompanhando-as em seus
momentos de sofrimento, de alegria e de procura, propondo-lhes o
Evangelho de Jesus, formando pequenos grupos para celebrar a graça
do encontro. Precisamos não só compreender essa característica nova
da realidade, mas também coloca-la em prática colaborando para que as
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
pessoas façam a experiência do encontro com Jesus Cristo pela meditação
de sua Palavra, pela celebração do seu Mistério Pascal, pela participação na comunidade, pela oração pessoal e comunitária, pela descoberta
de sua presença entre os pobres, pelos serviços de solidariedade, pelos
gestos de partilha...
A transformação que vem acontecendo também contribui para que
se compreenda que a missão não pode estar mais restrita a um grupo de
pessoas especializadas, mas diz respeito a toda pessoa batizada pois todo
discípulo de Jesus Cristo é chamado a ser missionário, não a partir de si,
mas daquele que concede a graça para viver em sua comunhão: “aquele
que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim,
nada podeis fazer” (Jo 15,5). Assim, saindo de si, o discípulo missionário
vai se convencendo de que é chamado a vivenciar a comunhão com Jesus
Cristo e com seu Corpo que é a Igreja, pois é a partir da vida e missão de
Jesus que se aprende a ser missionário, a viver a missão. Essa comunhão
lhe reveste da força necessária para tomar consciência de que a missão é
para todos os dias da vida e para ser assumida por todos os cristãos, em
todos os ambientes. Para o presbítero, a experiência da comunhão com
Jesus Cristo e a Igreja firma em seu coração a convicção de que Deus
lhe concedeu, pelo sacramento da ordem e para a missão do pastoreio,
a graça da família presbiteral.
No caminho da Comunhão
A vivência da comunhão com Jesus Cristo abre o coração do discípulo para sua participação na vida da comunidade. Aí, ele faz a experiência da Igreja como Povo de Deus e Corpo de Cristo e, a partir da vida
e missão de Jesus, aprende a sair de si para ser missionário, fortalecendo
a rede de comunidades em toda a Igreja Particular. O seguidor de Jesus
Cristo ainda toma consciência de que a missão é para todos os dias da
vida e para ser assumida por todos os cristãos em todos os ambientes.
O discípulo missionário, como cristão leigo(a) e como ministro
ordenado, encontra a fonte de sua vida e missão em Jesus Cristo que é o
missionário do Pai. Ele vai de cidade em cidade, de lugar em lugar para
anunciar a boa Nova do Reino de Deus e proclama: “O Espírito do Senhor
está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres”
(Lc 4,18). Em sua vida e missão, encontra-se a perfeita sintonia entre
a mensagem e o mensageiro, entre o dizer, o fazer e o ser. Vivenciando
e anunciando a Boa Nova do Reino de Deus, ele, ao mesmo tempo, dá
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sinais da presença do Reino e vai convocando e formando pessoas para
que possam acolher a missão, o mandato que ele deixa: “Ele os enviou
para anunciar o Reino de Deus e curar os enfermos” (Lc 9,2).
Como nos lembra o documento de Aparecida, “ao chamar os seus
para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o
Evangelho do Reino a todas as nações (cf. Mt 28,19; Lc 24, 46-48). Por
isso, todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão,
ao mesmo que o vincula a Ele como amigo e irmão. Dessa maneira, como
Ele é testemunha do mistério do Pai, assim os discípulos são testemunhas
da morte e ressurreição do Senhor até que ele retorne. Cumprir a missão
não é tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã, porque
é extensão testemunhal da vocação mesma” (Dap 144).
A missão vem de Jesus Cristo, no seu Espírito. Essa missão é
dada à Igreja. “Foi-me dada a autoridade no céu e na terra. Ide, pois,
fazer discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho
ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos”
(Mt 28.18-20).
E Marcos destaca: “Jesus subiu à montanha e chamou os que ele
quis; e foram até ele. Ele constituiu então doze, para que ficassem com ele
e para que os enviasse a anunciar a Boa Nova, com o poder de expulsar
os demônios” (Mc 3,13-15). Esta experiência é tão marcante que torna
“a missão inseparável do discipulado. Este não deve ser entendido como
etapa posterior à formação, ainda que esta seja realizada de diversas maneiras de acordo com a própria vocação e com o momento da maturidade
humana e cristã em que se encontre a pessoa” (DAp 278e). O discípulo
missionário é sempre enviado em nome de Cristo e da Igreja: “Como o
Pai me enviou também eu vos envio” (Jo 20,21).
Estes e outros textos indicam que a missão é dada ao colégio
apostólico e, desse modo, à Igreja da qual Cristo é a cabeça. Quando
Jesus vem ao encontro dos discípulos andando sobre o mar, eles gritam
de medo e Pedro lhe diz: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro,
caminhando sobre a água”. Sentindo medo e começando a afundar, ele
grita: “Senhor, salva-me!” Naquele momento, Jesus estende a mão, segura Pedro, adverte-o e entra com ele no barco (cf. Mt 14,22-33). Esses
gestos mostram a Pedro e aos demais que a presença de Jesus lhes dá
segurança, mas também os ilumina e questiona para compreenderem
que não podem percorrer o caminho da missão cada um por seu lado.
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
Eles vão aprendendo que, em meio aos grandes desafios, é fundamental
confiar naquele que foi fiel à missão vivendo na comunhão com o Pai,
sendo-lhe obediente. Então, a missão não pode ser vivenciada por conta
própria. Ela decorre do chamado que passa pela experiência do encontro
pessoal com Jesus Cristo ressuscitado, levando a pessoa a ser testemunha
dele na comunidade e na sociedade, sob a guia do Espírito Santo que está
gerando sempre a comunidade, o novo povo de Deus.
“Como toda a vida espiritual autenticamente cristã, também a vida
do sacerdote possui uma essencial e irrenunciável dimensão eclesial”
(PDV 31). “O ministério ordenado, em virtude de usa própria natureza,
pode ser exercido somente na medida em que o presbítero estiver unido
a Cristo mediante a inserção sacramental na ordem presbiteral e, por conseguinte, enquanto se encontrar em comunhão hierárquica com o próprio
bispo. O ministério ordenado tem uma radical “forma comunitária” e pode
apenas ser assumido como “obra coletiva” (PDV 17). Então, o presbítero,
ao receber o sacramento da ordem, participa da mesma missão da Igreja
e, mais concretamente, na Igreja Particular. É ao Presbitério que é dada
a missão e somente na comunhão do Presbitério é que o presbítero pode
exercer a missão” (cf. DGAE 1999-2002 nºs 227-228).
O presbítero, então, descobre e assume o valor espiritual de sua
integração e dedicação à Igreja em que ele é incardinado, pois “a “incardinação” não se esgota num vínculo puramente jurídico (...) É necessário
que o sacerdote tenha a consciência de que o seu “estar numa Igreja
particular” constitui por natureza um elemento qualificante para viver
uma espiritualidade cristã” (PDV 31).
Para a vivência dessa espiritualidade, o presbítero pedirá sempre a
graça da comunhão com Cristo e com a Igreja e se empenhará para, nesse
dinamismo, acolher a missão que Deus lhe concede. Para todos, mas de
modo ainda mais forte para o presbítero diocesano, a presença do bispo
tem um profundo significado, pois é através dele que recebe a missão!
Então, este aspecto marca muito sua espiritualidade que, enraizada no
Evangelho, o orienta para acolher na fé os desígnios de Deus através do
Bispo, dele com seu Conselho; descobrir a necessidade de conhecer bem
o povo que lhe é confiado e que faz parte da Igreja particular e pedir a
graça de amar sempre todo esse povo e de colocar-se como servo disponível para o trabalho de evangelização. Desse modo, a missão se torna
caminho de felicidade, pois se trata da edificação do Corpo de Cristo,
povo de Deus da nova aliança.
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O sentido de pertença à Igreja particular dá ao presbítero diocesano
a singular marca do cuidado com o todo do rebanho, como já lembrava
o apóstolo Paulo aos presbíteros de Éfeso: “Cuidai de vós mesmos e
de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos estabeleceu como
guardiães, como pastores da Igreja de Deus que ele adquiriu com o seu
sangue” (At 20,28). Nesse sentido, a exortação apostólica afirma em relação aos presbíteros: “a pertença à Igreja particular e a sua dedicação até
ao dom da própria vida pela edificação da Igreja “na pessoa” de Cristo,
Cabeça e Pastor, ao serviço de toda a comunidade cristã, em cordial e
filial referência ao bispo, deve sair reforçada na assunção de qualquer
carisma que venha a fazer parte da existência sacerdotal ou se coloque
a seu lado” (PDV 31).
Cuidar de todo o povo que Deus coloca sob os cuidados pastorais
do presbítero ou de uma equipe de presbíteros significa não se contentar
com a presença daqueles que já participam, que quase sempre são minoria,
mas estar aberto e disponível para sair ao encontro dos outros que nunca
procuram a comunidade eclesial ou somente em ocasiões especiais.
Como expressão desse amor à Igreja particular, o presbítero se
coloca em atitude de abertura e disponibilidade para assumir os encargos que a diocese lhe confiar, onde as necessidades da evangelização
reclamarem sua presença. Desse modo, “a vida espiritual dos padres deve
ser profundamente assinalada pelo anseio e pelo dinamismo missionário. Compete-lhes, no exercício do ministério e no testemunho de vida,
plasmar a comunidade a eles confiada como comunidade autenticamente
missionária. Como escrevi na Encíclica Redemptoris Missio, ‘todos os
sacerdotes devem ter um coração e uma mentalidade missionária, devem
estar abertos às necessidades da Igreja e do mundo, atentos aos mais
afastados e, sobretudo, aos grupos não cristãos do próprio ambiente, Na
oração e, em particular, no sacrifício eucarístico, sintam a solicitude de
toda a Igreja por toda a humanidade’. E acrescenta o papa: ‘Se este espírito missionário animar generosamente a vida dos sacerdotes, aparecerá
facilitada a resposta àquela exigência cada vez mais grave na Igreja, que
nasce da desigual distribuição do clero’. Neste sentido, já o Concílio foi
suficientemente preciso e incisivo: ‘Tenham presente os presbíteros que
devem tomar a peito a solicitude por todas as Igrejas. Para tal, os presbíteros daquelas dioceses que possuem maior abundância de vocações
mostrem-se de boa vontade preparados para, com o prévio consentimento
ou vontade do Ordinário, exercer o seu ministério nas regiões, missões
ou obras que sofram escassez de clero’” (PDV 32).
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
O mesmo Espírito Santo que trabalha o coração do presbítero para
viver a missionariedade na Igreja particular ou em outros lugares por ela
enviado, o impulsiona e ilumina para descobrir as sementes do Verbo já
presentes no mundo, mesmo estando ocultas. Esse trabalho pede um novo
modo de compreender e viver o ministério, pois não se trata somente
de realizar tarefas, mas de descobrir e acolher a presença de Deus em
todas ações e atividades ligadas ao ministério. “Os presbíteros atingem
a santidade pelo próprio exercício do seu ministério, realizado sincera e
infatigavelmente no espírito de Cristo” (PO 13).
Cada presbítero é chamado a fazer a experiência da riqueza dos
sinais da presença de Deus nos acontecimentos da vida das pessoas, das
comunidades, da Igreja em seu conjunto e da sociedade. Essa experiência
pessoal precisa, necessariamente, ser partilhada e enriquecida com os
demais presbíteros, pois, estando unidos pela fraternidade sacramental,
formam um só presbitério com o Bispo. Iluminada pela Palavra de
Deus, celebrada e oferecida no sacramento da Eucaristia, essa experiência pessoal e comunitária, assumida de modo continuado, muito
contribuirá para que o ministério, recebido como um dom de Deus, seja
sempre serviço ao povo de Deus, reconciliado por Jesus Cristo. Como
nem sempre é possível o encontro de todo o presbitério, não podemos
deixar de fazer a partilha em pequenos grupos. Deixando-se guiar pelo
Espírito de Deus, vai recebendo e cultivando a graça para se tornar cada
vez mais semelhante ao Mestre: semelhante em seu amor que conduz
ao despojamento, à missionariedade, à entrega da vida, à obediência à
vontade de Deus. Desse modo, o presbítero estará mais integrado na
missão evangelizadora da Igreja particular, mais disponível e também
mais responsável por ela.
Essa integração precisa se expressar também através da pastoral
orgânica e de conjunto que são desafios e, ao mesmo tempo, exigências
da ação evangelizadora nos tempos atuais. Movido pela caridade pastoral
que “flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a
raiz de toda a vida do presbítero” (PO 14), o presbítero encontra sentido
em empenhar-se no trabalho pela pastoral orgânica e de conjunto a fim
de que, o que foi assumido pela Igreja particular em seu plano de ação
evangelizadora e demais orientações, possa ser concretizado. Ele está
consciente de que necessita trabalhar pela unidade, na comunhão.
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Acolhendo o ministério como um dom de Deus
em meio aos desafios
Nesse caminho, o presbítero encontra desafios de toda ordem. Num
mundo do individualismo, com a grande tentação para o isolamento, o
sentido comunitário do ministério ordenado, muitas vezes, fica diluído.
Se nas Igrejas particulares onde a extensão geográfica é imensa, como
na Amazônia, vencer o isolamento é desafiante; por outras razões, esse
desafio está também presente na realidade das grandes cidades e em
outras realidades do nosso Brasil.
Numa cultura que incentiva o subjetivismo e a “exigência de
direitos”, não é tranqüilo para o presbítero o exercício do ministério
como expressão da gratuidade que nasce do amor daquele que, livremente, entregou sua vida, derramou o seu sangue para a reconciliação
do mundo com Deus. Há sempre o risco de pensar o ministério a partir
do próprio eu do ministro, como um direito a que ele faz jus em razão
de sua capacidade ou de outros merecimentos e, por isso, precisa propor
reivindicações para “exercer bem”, “com dignidade” a “missão”.
Numa sociedade que sempre destaca e enaltece a busca de status,
do “nome”, de privilégios e conforto, o presbítero trava um forte combate consigo mesmo e com pessoas e grupos da comunidade eclesial
para abraçar o despojamento, dando testemunho de viver contente com
o necessário a partir do seguimento a Jesus Cristo que sendo rico se fez
pobre para nos enriquecer com sua pobreza (cf. 2Cor 8,9).
Diante de uma estrutura social que favorece a concentração de
riquezas em mãos de poucos, colocando o desejo de consumo em primeiro lugar, deixando uma grande maioria sem o necessário para viver
dignamente, excluindo os pobres; o presbítero é chamado a ser sinal
de solidariedade anunciando pela palavra e pelo testemunho de vida
o desígnio de Deus que deseja a transformação de tais estruturas para
que estejam a serviço da vida, da dignidade das pessoas, da justiça, da
partilha. Em toda a evangelização, não pode faltar a atenção aos “novos
pobres”: moradores de rua, drogados, migrantes, vítimas da exploração
sexual... Essa situação se agrava porque, hoje, “os excluídos não são
somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis”” (DAp 65).
O que é afirmado na conferência de Aparecida precisa ser assumido por
cada Igreja particular e, aí, pelos presbíteros: “Hoje queremos ratificar
e potencializar a opção preferencial pelos pobres feita na Conferência
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
anteriores. Que seja preferencial implica que deva atravessar todas as
nossas estruturas e prioridades pastorais. A Igreja latino-americana é
chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça entre nossos
povos” (DAp 396).
A luz que nasce da contemplação da presença de Cristo nos pobres
ilumina de tal modo a vida do presbítero que já não pode ignorar que o
compromisso com esses filhos e filhas amados de Deus, irmãos e irmãs
nossos, é inerente à missão que lhe foi concedida e pela qual está, indelevelmente, marcado . “Por meio dessa opção, testemunha-se o estilo do
amor de Deus, a sua providência, a sua misericórdia, e de algum modo
continua-se a semear na história aqueles germens do Reino de Deus que
foram visíveis na vida terrena de Jesus, ao acolher a quantos recorriam a
ele para todas as necessidades espirituais e materiais” (NMI 49).
Considerando a propaganda incisiva de que o valor maior está no
“viver o hoje”, no “ser feliz agora” sem se importar com as conseqüências;
na busca individual da religião que satisfaça suas necessidades e ainda
mais da religião como espetáculo; como não é fácil para o presbítero
firmar-se na convicção de que o dom do ministério ordenado é para toda
a vida! Na vivência comunitária, tendo como raiz a escuta da Palavra de
Deus e a eucaristia, o presbítero encontrará as luzes que tornarão ainda
mais forte a convicção de que o chamado e a missão vem de Deus e nele
encontram sua força.
Tomando consciência de que é constituído como sinal de comunhão e não de competição e de imposição e tendo presente o pluralismo
em que vivemos, o presbítero dá maior importância ainda à escuta e
ao diálogo a exemplo de Jesus quando se encontrava com os pobres e
sofredores.
Há ainda outros desafios, tais como: paróquias muito grandes, com
milhares de pessoas; paróquias extensas; situações de extrema pobreza;
as milhares de pessoas batizadas que, quando muito, freqüentam ocasionalmente uma comunidade. Nesses, e em outros casos, como fica a
atenção à pessoa? Como colocar em prática a dimensão missionária para
que a comunidade possa organizar as visitas regulares a essas pessoas,
às famílias e aos grupos?
Nas últimas décadas, cresce a sensibilidade em relação à ecologia
e ao meio ambiente e vários grupos se organizam em sua defesa. A Igreja
oficialmente tem se manifestado contra o modelo econômico que privilegia
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o desmedido afã pela riqueza acima da vida das pessoas e dos povos e do
respeito racional pela natureza, devastando as florestas e a biodiversidade
mediante uma atitude predatória e egoísta (cf. DAp 473).
Como resposta a esses e outros desafios e às muitas solicitações de
pessoas, grupos, pastorais, movimentos e comunidades, nem sempre os
presbíteros conseguem estabelecer um equilíbrio entre o ser missionário e
o agir missionário. Tragados pelo ativismo que os leva a se distanciarem
do grande objetivo para o qual foram constituídos ministros ordenados,
muitos não se dão conta de que estão assumindo o ministério como
cumprimento de tarefas numa sobrecarga que não lhes deixa tempo para
a contemplação em vista do dinamismo da própria missão.
Mas, a vida do discípulo missionário não pode estar limitada a
algumas tarefas. Deixando-se guiar pelo Espírito de Deus, vai recebendo
e cultivando a graça para voltar à fonte e, assim, se tornar cada vez mais
semelhante ao Mestre: em seu amor que conduz ao despojamento, à
obediência, à entrega da vida, à missionariedade: à vontade de Deus.
O ministério é um dom e a missão também o é, pois nasce do amor
de Jesus Cristo por aqueles que são chamados e enviados: “Como o Pai
me enviou também eu vos envio” (Jo 20,22). Como dom, a missão só
pode ser assumida na comunhão com aquele que nos envia, pois o próprio
Jesus alerta: “sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5).
Dirigindo-se aos presbíteros do Brasil, os bispos afirmam: “O presbítero, antes de tudo pessoa humana, pelo batismo, filho de Deus, é chamado a
viver em santidade, no amor incondicional a Jesus Cristo. A pergunta direta
e, ao mesmo tempo, carinhosa de Nosso Senhor a seu discípulo indica que
amar a ele é condição primeira para ser pastor de seu rebanho, a começar
por Pedro. Por isso, como pastores, amem o Cristo e o povo que lhes foi
confiado, e vocês darão profunda alegria por aquilo que são e significam
em nossas Igrejas Particulares” (Carta aos Presbíteros, nº 4).
Toda a vida de Jesus Cristo é manifestação do amor de Deus pelas
pessoas, pelo mundo. Ele é o bom Pastor que vem para reunir os filhos
de Deus dispersos; assume a paixão, entrega sua vida e, assim, sela com
seu sangue a nova aliança.
O ministério ordenado, em sua missão específica, só pode ser acolhido
na estreita relação com o mistério da encarnação e da páscoa de Jesus Cristo.
Ele assumiu nossa natureza humana, fez-se servo obediente até a morte de
cruz. No amor que gera obediência, está a fecundidade da missão.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
147
O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
A missão que Cristo confia aos seus ministros é para a edificação
da Igreja, Povo de Deus- Corpo de Cristo. A missão é um dom, pois é
Deus quem toma a iniciativa do chamado e do envio, é dele que vem
a nossa capacidade (cf. 2Cor 3,5-6). Somente o coração tocado pelo
Espírito, modelado por ele, é possível estar aberto à missão como graça
de Deus, porque configurado a Jesus Cristo! Desse modo, a vida do
ministro ordenado com todas as suas dimensões passa a estar marcada
pela gratuidade, pois se trata de oferecer, como Cristo, a vida e, assim,
viver o ministério da aliança nova, não da letra, mas do Espírito que
dá a vida (cf. 2Cor 3,6). O Espírito Santo vai trabalhando o coração
das pessoas e nele inscrevendo o desígnio de Deus. Do mesmo modo,
trabalha o coração do ministro ordenado para que, acolhendo a missão
como dom, possa estar atento ao que o mesmo Espírito lhe diz e diz à
Igreja através das pessoas, das famílias, dos grupos, das comunidades e
dos acontecimentos na vida da sociedade. No exercício dessa escuta, o
presbítero encontra caminho para a obediência.
Mas, como isso pode acontecer? Pelo exercício da contemplação
da ação do Espírito de Deus, meditando a Palavra de Deus, no diálogo
com o Verbo Encarnado. Então, não basta ir a um determinado lugar para
uma celebração, um encontro, uma reunião, uma visita, para resolver um
problema, para fazer a pregação, para “dar o recado”, por melhor estruturado e eficiente que possa parecer. É necessário estar atento ao que se
vê e ao que se ouve, ao que está acontecendo e se perguntar: o que me
diz o Espírito de Deus? O que ele quer dizer à comunidade, à pastoral, à
área pastoral, à Paróquia, à diocese, à sociedade? Além de guardar tudo
isso no coração, o ministro da aliança nova confronta esses e outros questionamentos com a Palavra de Deus, na oração, para que possa escutar
melhor o desígnio de Deus, elevar a ele sua prece e discernir as luzes a
serem propostas como desígnio de Deus. A oração, então, vai se tornando
caminho que contribui para que haja uma profunda ligação entre o que
se é e o que se pratica e meio importante para o conhecimento de Jesus
Cristo. É realmente uma experiência da presença de Deus!
Mesmo enfrentando as muitas dificuldades inerentes ao exercício
do ministério, o presbítero faz a experiência da missão como fonte que
revigora o seu dia a dia, como caminho de santidade. O Concílio Vaticano
II dá fundamento a essa perspectiva quando afirma: “Exercendo assim
o ministério do Espírito e da justiça – contanto que se deixem instruir
pelo Espírito de Cristo que os vivifica e guia – firmam-se na vida espiritual. Pois, pelos atos litúrgicos de cada dia, como também por todo o
148
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Dom Esmeraldo Barreto de Farias
seu ministério que exercem em comunhão com o Bispo e os Presbíteros,
orientam-se eles para a perfeição da vida” (PO 12).
Sendo assim, a missão não pode ser recebida como uma carga que
causa desgaste, como algo imposto de que o ministro luta para se livrar.
Sendo acolhida como um peso, a missão é vista como pura exigência,
com algo que vem de fora e passa a ser assumido como obrigação que
não atinge o ser do ministro, mas somente o seu agir. A motivação é,
então, fundamental e vai se tornar fonte que conduz as pessoas a Jesus
Cristo. Nesse processo, o ministro não pode estar voltado para si mesmo,
mas para aquele que o escolheu e o enviou, pois o centro é ele, o único
mediador, e não o ministro. Essa motivação vai alimentar no ministro
a disponibilidade para a missão e a sua acolhida como entrega de vida.
Então, a missão não pode se restringir ao cumprimento de algumas funções, nem tão pouco ser compreendida como um direito a adquirir ou
reivindicar em vista de projetos pessoais. É caminho que só é possível
ser percorrido na graça do Espírito Santo, protagonista da missão.
O ministro da nova aliança recebe o ministério como um dom não
só para presidir celebrações litúrgicas e algumas reuniões. Ele recebe
o sacramento da ordem para que, em nome de Cristo e da Igreja, possa
exercer o múnus profético, pastoral e sacerdotal a partir da identidade
missionária do presbítero na Igreja e no mundo.
Na certeza de que: “Há esperança no caminho!”
Este ano dedicado aos presbíteros convoca a Igreja em geral e cada
Igreja particular com seu presbitério a aprofundar o ministério ordenado
com uma graça para a edificação da Igreja e a considerar a vida de tantos
presbíteros que, a partir da comunhão com Jesus Cristo, o bom pastor
missionário servo e com a Igreja e conscientes da grandeza do ministério
que receberam como um dom de Deus, se fizeram pequenos e, portanto,
missionários. Retomando o que foi proposto pela CNBB, creio que cada
diocese precisa levar adiante o trabalho de reavivar a memória dos presbíteros que, no decorrer da história, se tornaram um sinal de entrega da vida
por amor a Jesus Cristo, ao seu Evangelho, ao povo de Deus. São muitos
em todo o Brasil e encontraremos sempre, em cada diocese, aqueles através
de quem o Espírito Santo continua também nos falando hoje.
Certamente, o testemunho desses e de muitos outros irmãos reavivará em nossa vida e na missão a proposta de que “o Reino diz respeito
a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
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O Ministério presbiteral: dom de Deus a serviço da edificação do seu Povo
significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente
na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar
para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em resumo, o Reino
de Deus é a manifestação e a atuação de seu desígnio de salvação, em
toda a sua plenitude” (RM 15).
Desejamos ainda que este ano especial nos faça sempre mais abertos
ao caminho que a conferência de Aparecida nos chama a percorrer: “O Povo
de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que tenham uma
profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor,
dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da
Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários: movidos pela caridade
pastoral, que os leve a cuidar do rebanho a eles confiados e a procurar os mais
distanciados, sempre em profunda comunhão com seu Bispo, os presbíteros,
diáconos, religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros-servidores da vida:
que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na
defesa dos direitos dos mais fracos e promotores da cultura da solidariedade.
Também de presbíteros cheios de misericórdia, disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação” (DAp 199).
Agradecendo a Deus por todos os presbíteros em nosso Brasil dedicados à missão de edificação do povo de Deus nas diversas realidades do nosso
país, desejamos que guardem sempre no coração o lema do mês vocacional
proposto pela CNBB: “Há esperança no caminho!” Como os discípulos de
Emaús, partilharão a experiência do encontro com Jesus Cristo missionário
e se fortalecerão na convicção de que a missão é um dom de Deus para a
edificação do seu povo e que somente na comunhão do Presbitério e como
Presbitério vai se realizando. Desse modo, estarão sempre disponíveis para
irem a todos os lugares onde o Senhor mesmo deseja ir (cf. Lc 10,1) e contarão
tudo o que Deus tem feito e fará por meio deles (cf. At 14,27).
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Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Resumo: O Vaticano II situou os ministérios como serviço à Igreja e ao mundo, retornando à linguagem do Novo Testamento e aos santos Padres, que os
apresentavam como serviço ou diaconia. Dentro dessa perspectiva, abre-se a
salutar necessidade de compreendermos a missão e a importância dos leigos no
exercício de seu ministério dentro da Igreja. Neste ano, quando o Papa Bento XVI
anunciou um Ano Sacerdotal, faz-se necessário compreendermos a verdadeira
índole do Sacerdócio dentro da Igreja, sem esquecermos o Sacerdócio comum
de todos os fiéis, que é se constitui como a base do sacerdócio ministerial.
Abstract: The Council of Vatican II presented the ministries in terms of multiple
services rendered to the Church and to the world. In this approach it reproduces
the language of the New Testament and the usage in vogue among the Father
of the Church dealing with a service or diakonia. In this perspective we are
asked to understand the mission and importance of the laity in the fulfillment of
their ministry in the Church. This year is dedicated to the canonical mission and
we should delve into the real meaning of the priesthood in the Church without
neglecting the lay apostolate as a priesthood sharing in the sacramental role of
the clergy thus constituting the ministry of a priestly service.
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio
comum dos fiéis na vida da Igreja
Reginaldo Pereira*
* O autor, bacharel em Teologia pelo ITESC (2008), é presbítero da diocese de
Lages, SC.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 151-164.
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
No dia 19 de junho do corrente ano, o papa Bento XVI anunciou
o ‘Ano Sacerdotal’ para toda a Igreja. A razão deste anúncio nasce do
fato de passar este ano o 150º aniversário da morte do Santo Cura de
Ars, João Maria Vianney, patrono de todos os padres. O Papa enunciou
algumas ideias básicas para a vivência espiritual dos sacerdotes, mas
gostaria de destacar a seguinte frase: “Deus é a única riqueza que, de
modo definitivo, os homens desejam encontrar num sacerdote”.
O cardeal Hummes, Prefeito da Congregação do Clero, declara
ser este ano “ocasião para um período de intenso aprofundamento da
identidade sacerdotal, da teologia do sacerdócio católico e do sentido
extraordinário da vocação e da missão dos sacerdotes na Igreja e na
sociedade”. Neste contexto, não poderíamos deixar de lembrar de todo
o Povo de Deus, que se constitui como “Povo Sacerdotal” a partir do
batismo e da missão do próprio Jesus Cristo.
Partimos do pressuposto de que todos participam da missão profética da Igreja. Presente na missão de Jesus e dado à Igreja como principio
de comunhão, o Espírito Santo distribui seus dons e carismas para o bem
de todo o corpo eclesial. Compete à Igreja não sufocar a ação do Espírito,
mas sim experimentar tudo e guardar no coração aquilo que é bom1.
Como discípulos de Jesus Cristo nos sentimos interpelados a discernir os “sinais dos tempos” à luz do Espírito Santo, para nos colocar
a serviço do Reino, anunciando Jesus, que veio “para que todos tenham
vida e vida em abundância” (Jo 10,10)2. Por isso, Deus não criou o ser
humano para viver sozinho, mas para formar uma família, uma comumunidade, o seu povo escolhido. Dessa forma, Deus congregou a todos
que crêem em Cristo e fundou sua Igreja para que esta seja sinal, ícone
da Trindade Santa, comunidade de amor, serviço e missão. Não poderíamos falar de uma Igreja Povo de Deus, como requer o Vaticano II, sem
a compreensão de que ela realiza a missão de Jesus através do exercício
pleno do sacerdócio comum de todos os batizados.
A constituição dogmática Lumen Gentium, dedicada à Igreja, reserva ao sacerdócio comum dos fieis uma grande parte de suas reflexões.
Certamente essas reflexões contribuem para um maior estreitamento dos
laços que unem o ministério ordenado e não-ordenado na Igreja, além de
contribuir para uma urgente tomada de consciência do papel fundamental
152
1
Cf. Puebla, n° 377.
2
Cf. DAp, n° 33.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Reginaldo Pereira
do leigo. Negligenciar o sacerdócio recebido no batismo, principalmente
neste ano sacerdotal, é negar que em cada membro do povo de Deus,
em cada Cristão, Cristo quer prosseguir sua missão. Em suma, é negar
o batismo como fonte de todas as vocações.
1 O Sacerdócio comum no mistério da Igreja
A Constituição Dogmática Lumen Gentium nos diz que a Igreja é
uma realidade mistérica, uma comunidade datada de um “caráter sagrado
e orgânico”, unida intimamente e permanentemente a Cristo pelo Espírito
Santo3. Por isso, a Igreja é o sacramento de Cristo, sinal e instrumento
da unidade de todos os seres humanos.
No entanto, a Igreja não é somente uma sociedade de pessoas que se
esforçam para viver segundo a vontade de Cristo. Dizer somente isso pode
parecer uma visão muito reducionista de seu significado. A Igreja é também
chamada de Igreja de Cristo, o bem mais precioso “que ele adquiriu com
seu sangue” (At 20,28). Nela Cristo está presente e operante: “Ele mesmo
mune perenemente com os dons dos ministérios o Seu corpo que é a Igreja,
através dos quais, pela força derivada d´Ele, nos prestamos mutuamente
os serviços para a salvação, de tal forma que, vivendo a verdade na Caridade, em tudo cresçamos n´Ele que é a nossa cabeça (Ef 4,11-16)4. Como
podemos constatar, a Igreja é o povo de Deus, povo que, na união intima
com Cristo, se torna instrumento de salvação do mundo e é enviado, na
força do Espírito Santo, para ser sal da terra e luz do mundo5.
Jesus Cristo, sacerdote, rei e profeta da nova aliança, continua a
viver em sua Igreja e na liberdade conta com a colaboração de seu povo.
Por isso, faz com que este povo participe de seu sacerdócio, de sua missão
profética, de sua função régia: “Vós sois uma raça eleita, um sacerdócio
real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que
proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para sua
luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o Povo
de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes
misericórdia”6. Todo aquele ou aquela que se torna membro desse povo
de Deus através de seu batismo, recebe esta consagração sacerdotal.
3
Cf. LG, n°1.
4
Cf. LG, n° 17.
5
Cf. Mt 5,13-16.
6
Cf. 1Pd 2,9-10.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
153
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
No seu número 28, a Constituição Lumen Gentium chama este
sacerdócio de “sacerdócio comum” porque entende que não é privativo para um ou outro, mas é o sacerdócio primordial do qual todos são
revestidos. Poderíamos dizer que é o “sacerdócio primeiro, de base”,
aquele que fundamenta qualquer participação no sacerdócio de Cristo.
Todos os outros ministérios são desenvolvimentos dessa “incorporação
fundamental”. Tendo consciência desse pressuposto, a Lumen Gentium,
antes de falar de hierarquia e dos ministérios específicos, reflete sobre
o Povo de Deus e do seu sacerdócio universal. As funções hierárquicas
são formas especiais, especificas e particulares de participação no sacerdócio comum.
2 Sacerdócio comum e Sacerdócio ministerial
O Concílio Vaticano II argumenta que entre o sacerdócio comum
dos fieis e o sacerdócio ministerial existe uma distinção não somente em
grau, mas também em essência7. A distinção é muito mais profunda do
que o grau existente entre o diaconado, o presbiterado e o episcopado.
Mesmo tendo a consciência de que ambos participam do único sacerdócio
de Cristo e que se ordenam um ao outro, a Constituição Lumen Gentium
entende que o sacerdócio ministerial é revestido especificamente de um
poder sagrado (sacra potestas). Esse poder sagrado confere ao ministro
ordenado a tarefa de formar e dirigir o povo sacerdotal, estabelecido que
foi para realizar o sacrifício eucarístico, em nome da pessoa de Cristo,
e para oferecê-lo em nome de todo o povo de Deus. Nesse sentido, o
sacerdócio ordenado habilita o cristão a agir como mediador, como representante tanto de Cristo como de todo o povo de Deus. O sacerdócio
ministerial rege o sacerdócio comum dos fieis mediante uma autoridade
que se torna (ou deveria se tornar) essencialmente um serviço, uma entrega total, para a vivência e o testemunho de Jesus Cristo que veio para
servir e não para ser servido8.
O sacerdócio ministerial tem a sua raiz na sucessão apostólica
e, dotado de um poder sagrado, tem a faculdade e a responsabilidade
de agir na pessoa de Cristo Cabeça e Pastor. Esse sacerdócio torna os
ministros sagrados servidores de Cristo e da Igreja, mediante a procla-
154
7
Cf. LG n° 28.
8
Cf. Mc 10,45.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Reginaldo Pereira
mação autorizada da Palavra de Deus, a celebração dos sacramentos e
o governo pastoral dos fiéis.
Colocar os fundamentos do ministério ordenado na sucessão
apostólica, já que esse ministério continua a missão que os Apóstolos
receberam de Cristo, é ponto essencial da doutrina eclesiológica católica.
Portanto, o ministério ordenado é constituído sobre o fundamento dos
Apóstolos para a edificação da Igreja: ele existe totalmente em função
do serviço da mesma Igreja. Intrinsecamente ligado à natureza sacramental do ministério eclesial está o seu caráter de serviço. Com efeito,
inteiramente dependentes de Cristo, que confere missão e autoridade, os
ministros são verdadeiramente “servos de Cristo” (Rm 1, 1), à imagem
de Cristo que assumiu livremente por nós “a condição de servo” (Fl 2,
7). E porque a palavra e a graça de que são ministros não são deles, mas
de Cristo que lhas confiou em favor dos outros, eles se farão livremente
servos de todos. Por isso, o padre está ao serviço dos servos de Deus.
O ministério ordenado fundamenta-se em Cristo e na Igreja e foi
instituído para o bem de todos para que, servindo a todos, seja instrumento
de Salvação da Humanidade9. Toda autoridade que não se espelha em
Jesus Cristo perde seu sentido de ministério e deixa de estar em comunhão com sua Igreja, tornando-se paradoxalmente opressão e sinal do
Anti-Reino. Vivendo o poder-serviço, o sacerdócio ministerial é presença
sacramental de Cristo na Igreja e no mundo10. Sendo assim, a Igreja se
constitui como uma comunhão, construída e articulada pelos dons do
Espírito Santo, exercidos na missão a serviço da dignidade humana. No
entanto, independente de ser ordenado ou não, todo cristão é chamado
a viver e agir na pessoa de Cristo, como Igreja viva, como Palavra viva,
como Boa Nova do Reino de Deus.
3 O Sacerdócio comum dos fiéis
A categoria “Povo de Deus” foi a chave eclesiológica do Vaticano
II. A opção do Concílio foi a de tratar sobre o “Povo de Deus” antes de
tratar sobre a hierarquia. A compreensão foi a de que, pela graça batismal,
somos inseridos no Mistério Pascal de Cristo, tornando-nos todos filhos
do mesmo Pai, inseridos igualmente no seio do Povo de Deus no qual
partilhamos a mesma dignidade.
Cf. LG, n° 18.
10
CIC, n° 1548.
9
Encontros Teológicos nº 53
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155
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
A Igreja conta com uma grande diversidade de ministérios para
levar adiante sua índole missionária. Sendo assim, reconhece a importância fundamental dos ministérios não ordenados no cumprimento
dessa missão. O Documento de Puebla afirma que todos os leigos devem
sentir-se chamados a colaborar com seus pastores no serviço à Igreja,
exercendo seus ministérios diversos para o crescimento da vida eclesial11.
Participando, pelo batismo, do múnus profético, sacerdotal e real de
Cristo, realizam na Igreja e no mundo, naquilo que lhes é especifico, a
missão de todo o povo cristão12.
A partir desses pressupostos, podemos afirmar que os leigos
e leigas, no exercício de seu sacerdócio comum, não só pertencem à
comunidade eclesial, mas “ipso facto” são comunidade eclesial. Seu
ministério goza de certa estabilidade e reconhecimento público, conferido por aqueles que exercem a missão de reger a comunidade de fé. A
dignidade do laicato, sem sombra de dúvidas, reside precisamente na
eclesialidade que formam a partir do batismo e do serviço à comunidade.
Participando do múnus de Cristo e colocando seus dons á disposição da
comunidade, o laicato se transforma em sinal vivo da presença e da ação
de Jesus Cristo na história humana.
Os leigos participam do múnus sacerdotal, pelo qual Jesus se oferece
a si mesmo sobre a cruz e continuamente se oferece na celebração da
Eucaristia para a glória do Pai e pela salvação da humanidade. Participa
do múnus profético de Cristo, que, pelo testemunho da vida e pela força
da Palavra, proclamou o Reino do Pai, habilita e empenha os leigos
a aceitar, na fé, o Evangelho e a anunciá-lo com a Palavra e com as
obras, sem medo de denunciar, corajosamente, o mal. Ao pertencerem
a Cristo Senhor, rei do universo, os leigos participam do múnus real e
por ele são chamados para o serviço do Reino de Deus e para a sua
difusão na história13.
Reconhecendo seu valor fundamental, não podemos esquecer que
o sacerdócio ministerial não é um dom para quem o recebe, mas uma
graça que deve fluir para os outros. Por isso, o Papa lembra as palavras
sempre atuais do Concílio Vaticano II, indicando a unidade vital de todo
o povo cristão: “Os presbíteros trabalhem na obra comum com os leigos
11
156
Cf. Puebla, n° 804 / CIC, n° 871.
12
Cf. LG, n° 31.
13
Christifideles Laici, n° 14 apud GOEDERT, Valter. Ordem e Ministério, São Paulo;
Paulinas, 2006, p.31.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Reginaldo Pereira
e vivam no meio deles segundo o exemplo do Mestre, que veio para o
meio dos homens não para ser servido, mas para servir e dar a vida pela
redenção de muitos”.
Sendo assim, o ano sacerdotal não será nunca para elevar os
padres a um pedestal a que não têm direito, pois são apenas servidores
de Cristo e de todos os fiéis, mas sim para se colocarem mais e mais na
atitude humilde e exemplar da última ceia, quando Jesus, ajoelhado aos
pés dos seus discípulos, lhes lavou os pés e lhes recomendou: “Também
vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que,
assim como Eu fiz, vós façais também” (cf. Jo 13,14-15).
Da mesma forma devemos reconhecer que os dons e carismas dos
leigos e leigas são uma riqueza a se promover na Igreja, pois se Deus os
distribui conforme quer, não será lícito privar a comunidade dos crentes,
desses benefícios divinos.
O Ano Sacerdotal é uma riqueza para toda a Igreja, porquanto,
como todos somos um só Corpo, quando um membro é purificado,
purifica-se toda a comunidade (cf. 1Cor 12,26).
Por tudo isso, o Ano Sacerdotal deve empenhar padres, religiosos,
leigos e leigas a viverem plenamente o sacerdócio comum, sem excluir
nenhum membro do Povo de Deus. Por isso não podemos esquecer
que o princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande
privilégio que temos como filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote,
cada cristão tem livre e direto acesso à presença de Deus, tendo como
único mediador o Senhor Jesus Cristo.
Somos sacerdotes uns dos outros, por isso devemos orar, interceder
e ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento e das primeiras
comunidades, todo cristão é um ministro (diákonos) de Deus, o que
ressalta as idéias de serviço e solidariedade.
Num certo sentido, todos os crentes são “leigos”, palavra que vem
do termo grego laós, o povo de Deus. Todavia, a Escritura claramente
fala de diferentes dons e ministérios. No entanto, alguns cristãos são
especificamente chamados para o ministério ordenado com seu caráter
específico.
O sacerdócio universal dos crentes pode tornar-se mera teoria em
muitas igrejas cristãs, se continuarmos exercendo nosso ministério com
excesso de autoridade (cf. 1Pd 5,1-3), insistindo na distância que nos
separa da comunidade, relutando em descer do pedestal em que nos enEncontros Teológicos nº 53
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157
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
contramos, concentrando todas as atividades de liderança e não sabendo
delegar responsabilidades. Tornando as nossas igrejas excessivamente
dependentes de nossa orientação e liderança, não dando oportunidades
para que as pessoas exerçam os dons e aptidões que o Senhor lhes tem
concedido, retornamos ao sacerdotalismo medieval causador de conflitos
e divisões em nossa Igreja.
4 Aparecida: o Sacerdócio comum vivido
no discipulado – missionário
No momento em que a Igreja da América Latina se prepara para
uma grande Missão Continental, todos os olhares se voltam para os leigos.
Eles são os grandes protagonistas desta missão, que deverá acontecer em
todas as nossas dioceses. Precisamos valorizar mais ainda o sacerdócio
comum de nossos leigos e leigas, confiando a eles a grande tarefa da
missão continental
O Documento de Aparecida é uma grata novidade para a Igreja
da América Latina e do Caribe. Nascido do desejo de uma renovação
capilar da Igreja, este documento constitui-se como sendo uma luz que
se propõe a nortear os caminhos da América Latina rumo a uma evangelização ampla e eficaz. Pondo-se a serviço do ser humano, cada cristão
e cada cristã são convocados para viver o seu sacerdócio comum como
discípulos missionários de Jesus Cristo.
O lugar próprio da atuação do leigo é o mundo, isto é, o mundo
vasto e complexo da política, da realidade social e da economia, como
também da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional e outras
realidades abertas à evangelização, como o amor, a família, a educação
das crianças e adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento14.
Nesta hora em que a Igreja deste Continente se entrega plenamente à sua
vocação missionária, lembro aos leigos que são também Igreja, assembléia convocada por Cristo para levar seu testemunho ao mundo inteiro.
Todos os homens e mulheres batizados devem tomar consciência de que
foram configurados com Cristo Sacerdote, Profeta e Pastor, através do
sacerdócio comum do Povo de Deus. Devem sentir-se co-responsáveis
na construção da sociedade segundo os critérios do Evangelho, com
entusiasmo e audácia, em comunhão com seus Pastores15.
158
14
DAp, nº 210
15
DAp, Bento XVI, Discurso Inaugural da Conferência, São Paulo: Paulus/Paulinas/
CNBB, 2007, p.282.
Encontros Teológicos nº 53
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Reginaldo Pereira
Como sujeito da vida eclesial, o discípulo missionário encontra na
Trindade-Amor a inspiração e a sustentação de toda a sua espiritualidade
para que a partir desse modo de “ser” consiga superar o egoísmo e encontrar-se plenamente no serviço para com as outras pessoas16. No entanto, a
opção pelo discipulado-missão requer de cada batizado uma adesão total
à causa do Reino, e por isso é essencial que cada discípulo missionário
esteja consciente de que o seguimento de Jesus implica em assumir integralmente alguns aspectos intrínsecos à práxis cristã. São eles:
– O encontro pessoal com Jesus Cristo, que desperte o fascínio
pela sua pessoa;
– Uma experiência de fé profunda, capaz de dar um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva;
– Seguir o caminho da conversão pessoal como início de uma
mudança radical e integral de vida;
– Viver a experiência da acolhida fraterna, da valorização do
ser humano, da inclusão em todos os âmbitos da vida comunitária, da comunhão, da entrega e do compromisso na e pela
Igreja; Viver a missão como discípulo que ama seu Senhor e
compartilha a alegria de ser enviado a tornar realidade o amor
e o serviço na pessoa dos mais necessitados17.
Constata-se assim que, viver o discipulado-missão a partir de
Aparecida requer uma caminhada constante em direção à pessoa de
Jesus Cristo a partir da plena vivência do sacerdócio comum. Isso não
acontece como por um “passe de mágica”, mas é um processo onde
o discípulo missionário precisa seguir um caminho de formação que
engloba a integralidade de sua pessoa, ou seja, suas dimensões humana,
comunitária, espiritual, intelectual, pastoral e missionária18.
A partir dessas considerações, o ponto de chegada do documento
e, por conseqüência, o ponto de chegada da missão do verdadeiro discípulo missionário de Jesus Cristo só poderia ser entendido nos seguintes
termos: ao discípulo mssionário cabe a missão de ser um promotor da
vida humana, que leve a todos e cada um a uma autêntica libertação
integral, fazendo com que todos se tornem sujeitos de seu desenvolvi16
DAp, nº 240.
17
DAp, nº 243 -245; 278, 154-163.
18
DAp, nº 280.
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Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
mento e criando espaços de relações sociais baseadas na compaixão e
no amor gratuito19.
Em Aparecida, a Igreja é convocada a viver a missionariedade
em seu sentido mais amplo, despertando em seu interior cada vez mais
discípulos missionários a serviço do Reino da vida. Nesse sentido, o
documento de Aparecida proclama em toda a América Latina a necessidade, a exigência de uma Igreja em estado permanente de missão.
O documento afirma que, nesse processo, os leigos são chamados a
participar ativamente da missão pastoral da Igreja, através do testemunho de vida, da animação litúrgica, na evangelização e outras formas
de apostolado.Cabe à Igreja abrir esses espaços de participação e
confiar-lhes ministérios e responsabilidades de modo que possam exercer plenamente sua vida cristã, em outras palavras, reconhecer que os
leigos devem ser levados em consideração com espírito de comunhão e
participação20. Aparecida reafirma o que já dizia o Papa João Paulo II,
quando afirmava que a evangelização do continente não pode realizar-se
sem a colaboração dos leigos. Eles devem ser parte ativa e criativa na
elaboração e execução dos projetos pastorais a favor da comunidade,
exigindo para isso que os Pastores adquiram uma mentalidade aberta
para acolher o “fazer” e o “ser” do leigo na Igreja. Pelo seu batismo, o
leigo é verdadeiramente um discípulo missionário, e igualmente “um
sacerdote” a serviço da Vida”21.
Para que a Igreja possa cumprir os desafios no mundo de hoje
e possa ser espaço de comunhão a todos os cristãos, Aparecida coloca
quatro exigências a serem tidas como fundamentais para o êxito de
sua missão.
Em primeiro lugar, Aparecida propõe que a missionariedade
impregne a Igreja inteira, ou seja, todas as estruturas eclesiais, todos os
planos de pastoral e toda a instituição, saindo das estruturas há muito
tempo ultrapassadas22. Para isso, é preciso que cada discípulo missionário, chamado ao seguimento de Jesus, exerça sua missão configurada ao
Cristo Mestre, animado pelo Espírito Santo e, no anúncio do Evangelho
da Vida, disponha-se a pôr em prática a dinâmica do Bom Samaritano.
Nessa dinâmica, cada discípulo missionário, a exemplo de Jesus, torna-se
160
19
DAp, nº 399, 359, 135, 360.
20
DAp, nº 211, 213
21
DAp, nº 211
22
DAp, nº 365.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Reginaldo Pereira
próximo daqueles que sofrem, partilha a experiência do encontro com
Cristo, através do testemunho e do anúncio de pessoa a pessoa, de comunidade em comunidade, e da Igreja aos confins do mundo23. Por isso,
a missão não é um compromisso de alguns, mas de toda a comunidade
cristã, que deve dar aos outros a partir de sua própria pobreza.
Em segundo lugar, Aparecida afirma a necessidade de cada comunidade eclesial tornar-se um centro irradiador de vida. Somente a partir
do momento em que as comunidades eclesiais se tornarem centros de
irradiação da vida em Cristo, será possível acontecer um novo Pentecostes
na Igreja, possibilitando que cada pessoa e todas as pessoas alcancem a
vida em plenitude, onde cada um seja respeitado em sua dignidade24.
Esse novo Pentecostes também se configura como tempo de sair
da acomodação, do cansaço e da desilusão que assalta a Igreja no mundo
de hoje. Para isso, é necessário que se assuma um trabalho conjunto com
outros organismos e instituições, a fim de organizar estruturas mais justas
no âmbito nacional e internacional, consolidando uma ordem sócioeconômica e política, inclusiva para todos. Aqui se faz fundamental a
participação dos leigos, reconhecidos como homens da Igreja no coração
do mundo e homens do mundo no coração da Igreja25.
Em terceiro lugar, Aparecida afirma que a missão na e da Igreja
passa necessariamente pelo desinstalar-se do comodismo, da tibieza e da
acomodação26. As preocupações com o pouco crescimento de vocações
sacerdotais e religiosas em relação ao crescimento da população na América Latina; o número de fiéis que abandonaram a Igreja e até a religião
e a falta de testemunho daqueles que continuam na Igreja, exigem uma
pastoral que seja presença ativa, transformadora e eficaz.
Por último, Aparecida tem a nítida convicção de que uma Igreja
verdadeiramente missionária deve passar de uma “pastoral da conservação” para uma pastoral missionária. Nesse sentido, toda a vida pastoral
das dioceses e comunidades, a partir do próprio planejamento, deve
responder com propriedade às exigências do mundo contemporâneo,
através de objetivos e métodos concretos e eficazes.
23
DAp, nº 145.
24
DAp, nº 380-390.
25
Puebla. Nº 786
26
DAp, nº 362.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
161
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
Enquanto a pastoral da conservação ainda enfatiza o ritualismo, a
espiritualidade individualista, o relativismo ético e religioso, o desinteresse pela Doutrina Social da Igreja e uma evangelização sem alegria, a
pastoral missionária encontra nos leigos a oportunidade para se formar
uma Igreja que “pensa junto”, ou seja, decide, planeja, discerne e executa
em comunhão. Fica claro no Documento que as dificuldades pastorais,
sejam a nível econômico ou humano, são expressões de uma pastoral
individualista e descompromissada com a comunhão eclesial27. Nesse
sentido, Aparecida vê como fundamental a comunhão entre os ministros
ordenados da Igreja e os leigos. Os presbítero devem ser essencialmente
homens da misericórdia, imagens do Bom Pastor, próximos de seu povo
e servidores de todos. Sua fonte de espiritualidade deve ser a “caridade
pastoral” tornando-se “presbíteros-servidores” da vida, que estejam
atentos à necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos
direitos dos mais fracos e promotores da cultura da solidariedade28.
Para o bom êxito desses projetos na América Latina, Aparecida
propõe a toda a Igreja algumas ações e opções que envolvam uma mudança substancial em todo o modo de ser Igreja. Podemos sinteticamente
explicitar esses caminhos apontados como sendo os seguintes:
– Assumir uma atitude de permanente conversão pastoral: reconhecendo e assumindo os novos rostos da pobreza na América
Latina, evangelizando através de uma pastoral estruturada,
orgânica e integral, principalmente priorizando uma nova forma
de atuar na Pastoral Urbana.
– Trabalhar para uma renovação eclesial: continuando a caminhada do Vaticano II, renovar a paróquia, e criar comunidades
eclesiais de base – CEBs. Também, neste ponto, valorizar o
protagonismo das mulheres na vida eclesial e na família, e ter
consciência de que uma renovação eclesial só é possível através
de uma pastoral pensada conjuntamente.
Mas, o Documento de Aparecida adverte: “Para cumprir sua missão
com responsabilidade pessoal, os leigos necessitam de sólida formação
doutrinal, pastoral, espiritual e adequado acompanhamento para darem
162
27
DAp, nº 100.
28
DAp, nº 198,199
Encontros Teológicos nº 53
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Reginaldo Pereira
testemunho de Cristo e dos valores do Reino, no âmbito da vida social,
econômica, política e cultural”29.
Dessa forma, Aparecida convoca todos os cristãos e cristãs a serem
construtores e construtoras de seu Reino, enchendo todos os ambientes
com o ardor missionário que nasce do encontro com Jesus na concretude
da história humana. Sendo assim, afirma:
Somos testemunhas e missionários: nas grandes cidades e nos campos,
nas montanhas e florestas de nossa América, em todos os ambientes da
convivência social, nos mais diversos “areópagos” da vida pública das
nações, nas situações extremas da existência, assumindo ad gentes nossa
solicitude pela missão universal da Igreja30.
Seguindo a dinâmica das outras conferências episcopais, Medellin
(1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), a conferência de Aparecida suscita no coração da Igreja latino-americana um novo “alvorecer”
pastoral e missionário.
Os cristãos que assumem a proposta do Cristo, conscientes de
sua missão, sentem-se no dever de ir para além das barreiras que se
encontram no mundo, onde a Igreja ser faz presente com a missão de
evangelizar. Aqui está a importância do leigo (cristão). Ele, que é Igreja
“sal da terra e luz do mundo”, é sinal e presença de Deus no mundo que
ignora Deus.
O Decreto Ad Gentes nos diz que a Igreja não se acha deveras consolidada, não vive plenamente, não é um perfeito sinal de Cristo entre os
homens, se ai não existe um laicato de verdadeira expressão que trabalhe
com a hierarquia. Porque o Evangelho não pode ser fixado na índole, na
vida e o trabalho dum povo, sem a ativa presença dos leigos31.
Diante dessa afirmação do Concílio, podemos dizer que a Igreja só
tem razão de ser, se estiver inserida no mundo, e se faz presença no mundo
pelos leigos, “Povo de Deus”. Os leigos se tornam assim, no mundo, os
primeiros responsáveis pela evangelização, através de seu sacerdócio
comum, sendo profetas e reis em Jesus Cristo. Nessa missão, evidentemente, estarão sujeitos a enfrentar desafios, por causa das diversidades
de culturas, costumes, crenças etc., que exigirão maiores desempenhos
29
DAp, nº 212
30
DAp, nº 548.
31
AG, nº 936
Encontros Teológicos nº 53
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163
Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio comum dos fiéis na vida da Igreja
em todo o trabalho da evangelização, para assim responderem s ânsias
dos homens e mulheres do mundo `de hoje.
Que este Ano Sacerdotal seja um grande impulso na missão da
Igreja, levando-nos a um maior reconhecimento e compreensão de nossa
verdadeira missão como “Povo de Deus”, constituídos Sacerdotes uns
dos outros através do sacramento do batismo e da participação ativa na
missão de Jesus Cristo.
Endereço do Autor:
Paróquia N. Sra. do Patrocínio
Rua Álvaro Pucci, 197, Centro
88580-000 Campo Belo do Sul, SC
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164
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Publicamos a carta que o prefeito da Congregação para o Clero, cardeal Claudio
Hummes, escreveu com motivo do Ano Sacerdotal, convocado por Bento XVI
a partir de 19 de junho, por ocasião do 150º aniversário da morte de São João
Maria Vianney, o Santo Cura D’Ars.
O Ano Sacerdotal
Caros Sacerdotes,
O Ano Sacerdotal, anunciado por nosso amado Papa Bento XVI,
para celebrar o 150º aniversário da morte de S. João Maria Vianney, o
Santo Cura D’Ars, está às portas. O Santo Padre o abrirá a 19 de junho
p.f., festa do Sagrado Coração de Jesus e Dia Mundial de oração pela
santificação dos sacerdotes. O anúncio deste ano especial teve uma repercussão mundial positiva, especialmente entre os próprios sacerdotes.
Todos queremos empenhar-nos com determinação, profundidade e fervor,
a fim de que seja um ano amplamente celebrado em todo o mundo, nas
dioceses, nas paróquias, em cada comunidade local, com envolvimento
caloroso do nosso povo católico, que sem dúvida ama seus padres e os
quer ver felizes, santos e alegres no trabalho apostólico quotidiano.
Deverá ser um ano positivo e propositivo, em que a Igreja quer
dizer antes de tudo aos sacerdotes, mas também a todos os cristãos, à
sociedade mundial, através dos meios de comunicação global, que ela se
orgulha de seus sacerdotes, os ama, os venera, os admira e reconhece com
gratidão seu trabalho pastoral e seu testemunho de vida. Realmente, os
sacerdotes são importantes não só pelo que fazem, mas também pelo que
são. Ao mesmo tempo, é verdade que alguns deles apareceram envolvidos em problemas graves e situações delituosas. Obviamente, é preciso
continuar a investigá-los, julgá-los devidamente e puni-los. Estes casos,
contudo, dizem respeito somente a uma porcentagem muito pequena do
clero. Na sua imensa maioria, os sacerdotes são pessoas muito dignas,
dedicadas ao ministério, homens de oração e de caridade pastoral, que
investem toda sua vida na realização de sua vocação e missão, muitas
vezes com grandes sacrifícios pessoais, mas sempre com amor autêntico
a Jesus Cristo, à Igreja e ao povo, solidários com os pobres e os sofridos.
Por isso, a Igreja está orgulhosa de seus sacerdotes em todo o mundo.
Este ano seja também ocasião para um período de intenso aprofundamento da identidade sacerdotal, da teologia do sacerdócio católico e do
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 165-166.
Documento – O Ano Sacerdotal
sentido extraordinário da vocação e da missão dos sacerdotes na Igreja e
na sociedade. Isso exigirá congressos de estudo, jornadas de reflexão, exercícios espirituais específicos, conferências e semanas teológicas em nossa
faculdades eclesiásticas, pesquisas científicas e respectivas publicações.
O Santo Padre, em seu discurso de anúncio, durante a Assembléia
Plenária da Congregação para o Clero, a 16 de março p.p., disse que
com este ano especial pretende-se “favorecer esta tensão dos sacerdotes
para a perfeição espiritual da qual sobretudo depende a eficácia do seu
ministério”. Por esta razão, deve ser, de modo muito especial, um ano
de oração dos sacerdotes, com eles e por eles, um ano de renovação da
espiritualidade do presbitério e de cada presbítero. A adoração eucarística
pela santificação dos sacerdotes e a maternidade espiritual de monjas,
de religiosas consagradas e de leigas referente a sacerdotes , como já
proposto, tempos atrás, pela Congregação para o Clero, poderiam ser
desenvolvidas com frutos reais de santificação.
Seja um ano em que se examinem de novo as condições concretas e a sustentação material em que vivem nossos sacerdotes, às vezes
submetidos a situações de dura pobreza.
Seja, ao mesmo tempo, um ano de celebrações religiosas e públicas,
que levem o povo, as comunidades católicas locais, a rezar, a meditar, a
festejar e a prestar uma justa homenagem a seus sacerdotes. A festa na
comunidade eclesial constitui uma expressão muito cordial, que exprime e
nutre a alegria cristã, uma alegria que brota da certeza de que Deus nos ama
e festeja conosco. Será uma oportunidade para desenvolver a comunhão e
a amizade dos sacerdotes com a comunidade que lhes foi confiada.
Muitos outros aspectos e iniciativas poderiam ser nomeados para
enriquecer o Ano Sacerdotal. Aqui deverá entrar a justa creatividade das
Igrejas locais. Por esta razão, convem que cada Conferência Episcopal,
cada diocese, cada paróquia e comunidade local estabeleçam, quanto
antes, um verdadeiro e próprio programa para este ano especial. Obviamente, será muito importante começar o ano com um evento significativo.
No próprio dia da abertura do Ano Sacerdotal em Roma com o Santo
Padre, 19 de junho, as Igrejas locais são convidadas a participar, de algum
modo, quiçá com um ato litúrgico específico e festivo. Os que puderem
vir a Roma para a abertura, venham para manifestar assim a própria
participação nesta feliz iniciativa do Papa. Deus, sem dúvida, abençoará
este empenho com grande amor. E a Santíssima Virgem Maria, Rainha
do Clero, intercederá por todos vós, caros sacerdotes!
Cardeal Dom Cláudio Hummes
Arcebispo Emérito de São Paulo
Prefeito da Congregação para o Clero
166
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Hino do Ano Sacerdotal
Hino e Comentário
Pe. Ney Brasil Pereira*
*
O autor é Mestre em Ciências Bíblicas e Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009, p. 167-171.
Hino do Ano Sacerdotal
1 Hino
168
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
Ney Brasil Pereira
Refrão:Ano sacerdotal, ano presbiteral, ano vocacional: a Igreja vem
convocar!
Ano sacerdotal, ano presbiteral, ano vocacional: Senhor, eisnos, vem chamar!
1. Escuta a nossa prece, / a prece que ensinaste:
Envia, Senhor da messe, / operários, Senhor! (Mt 9,38)
2. Contigo somos a Igreja, / teu Corpo, és a Cabeça, (cf. Cl 1,18)
Teus membros, a Ti unidos, / um rebanho e um Pastor! (cf. Jo 10,16)
3. Nós somos teu povo santo, / um povo sacerdotal, (cf. 1Pd 2,9)
Tu és nosso Sacerdote (cf. Hb 5,10), / deste a vida por nós! (cf. 1Jo 3,16)
4. Na Igreja são necessários / ministros, teus servidores:
O padre, o bispo, seja / o primeiro a servir! (cf. Mt 23,11 e Mc 10,43)
5. De Cristo a fidelidade (cf. 2 Tm 2,13) / seja a dos seus sacerdotes:
Fiéis administradores / dos mistérios de Deus! (cf. 1Cor 4,1-2)
6. Pastores eu vos darei / segundo o meu Coração (Jr 3,15):
São João Vianney inspire, / seu exemplo e missão!
2 Comentário
O papa Bento XVI nos convocou para um novo ano comemorativo.
Estávamos terminando o “ano Paulino”, em homenagem aos 2000 anos
do nascimento do grande Apóstolo Paulo, e já fomos convocados para o
“ano sacerdotal”, com início em 19 de junho, em homenagem aos 150
anos, sesquicentenário, do falecimento do Santo Cura de Ars, São João
Batista Maria Vianney. Quem era ele? Um simples padre de paróquia
rural pequena, perto de Lyon, no centro da França, que nos últimos anos
de vida atraiu multidões ao seu confessionário, e faleceu a 4 de agosto
de 1859. Em 1925 foi canonizado por Pio XI, que o declarou “padroeiro dos párocos” de todo o mundo. A evidente intenção do Bento XVI,
agora, é chamar a atenção para a necessidade de se aumentar o número
e a qualidade dos vocacionados ao sacerdócio ministerial, diante da falta
que eles fazem em tantas dioceses do mundo.
Se o “ano sacerdotal” visa antes de tudo os padres, por que o Papa
não anunciou mais claramente um “ano presbiteral”, ou então, de modo
Encontros Teológicos nº 53
Ano 24 / número 2 / 2009
169
Hino do Ano Sacerdotal
mais abrangente, um “ano vocacional”? É uma pergunta que tem razão
de ser, e cuja resposta vale a pena explicitar.
Para sintetizar as idéias contidas no “ano sacerdotal”, compus esse
Hino, acima, cujo refrão e estrofes nos ajudam a entendê-las melhor. Antes de tudo, o refrão: Ano sacerdotal, ano presbiteral, ano vocacional, a
Igreja vem convocar: Senhor, eis-nos, vem chamar! Dos três adjetivos,
“vocacional” refere-se à “vocação”, o chamado de Deus a cada cristão,
antes de tudo à vida, à fé, e à missão. “Presbiteral” refere-se ao “presbítero”, palavra com que o Novo Testamento designa os padres, colaboradores dos bispos. Enfim, “Sacerdotal” refere-se ao “sacerdote”, que
é antes de tudo o Senhor Jesus, segundo a carta aos hebreus (Hb 5,10),
e que são todos os batizados, batizadas, os quais constituem, segundo
a primeira carta de Pedro e o Apocalipse, o “povo sacerdotal” (cf 1Pd
2,9 e Ap 1,6; 5,10; 20, 6), a cujo serviço/ministério estão os padres, que
exercem, portanto o “sacerdócio ministerial”.
A primeira estrofe do Hino recorda o pedido que o próprio Cristo
Senhor nos ensinou a fazer: “A colheita (messe) é grande e os operários
são poucos. Pedi, pois, ao Dono da colheita, que envie operários...” (Mt
9,37-38 e Lc 10,2). A segunda estrofe nos diz o que é a Igreja: Corpo
do Cristo (Cl 1,18) e nós, seus membros e seu rebanho, unidos ao único
Pastor (Jo 10,16).
Na terceira estrofe nos conscientizamos de que somos teu povo
santo, povo sacerdotal (1Pd 2,9) e Jesus é o nosso Sacerdote por excelência (Hb 5,10), que por nós deu a vida (1Jo 3,16). Na quarta estrofe reconhecemos que são necessários “ministros”, “servidores”, à semelhança
do Senhor, que nos ensinou: O primeiro entre vós seja aquele que serve
(Mc 10,43). Assim, “o padre, o bispo, seja o primeiro a servir”.
A quinta estrofe relembra o tema do “Ano Sacerdotal”: Fidelidade
de Cristo (cf 2Tm 2,13), fidelidade do sacerdote”. Esse tema é sintetizado por Paulo na descrição que ele faz dos apóstolos: deles, e de seus
colaboradores, se espera que sejam fiéis administradores dos mistérios
de Deus (1Cor 4,1-2). E a última estrofe nos garante, segundo Jeremias,
que o próprio Senhor nos dará pastores segundo o seu Coração (Jr 3,15),
promessa lindamente expressa numa palavra do Santo Cura de Ars sobre
o padre: “O sacerdócio – entenda-se: o sacerdócio ministerial – é o amor
do Coração de Jesus”. Possa o exemplo, a vida, o ministério presbiteral
desse Santo, São João Maria Vianney, inspirar-nos e impulsionar-nos
para a missão!
170
Encontros Teológicos nº 53
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Ney Brasil Pereira
Concluindo. Que os cristãos leigos e leigas, “sacerdotes de Deus”
pelo seu batismo (ver, além das citações acima, Hb 13,15-16 e também
Rm 12,1: cada cristão é aí exortado a oferecer em sacrifício vivo os
próprios corpos, a própria vida!), sintam-se expressamente incluídos
na celebração deste “Ano Sacerdotal”. Pois é do “povo sacerdotal” que
provirão os padres, presbíteros, sacerdotes ministeriais, isto é, os primeiros servidores desse mesmo povo, ministros qualificados da presença
eucarística e sacramental do Senhor.
Endereço do Autor:
Caixa postal 5041
CEP 88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
Encontros Teológicos nº 53
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171
Recensões
SOUZA, Rogério Luiz de; OTTO, Claricia (Orgs.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008. 376 p.
Martin Norberto Dreher*
Por longo tempo banidos da Academia Brasileira, em decorrência
do Positivismo e de um Marxismo mal digerido que nos dominavam,
os estudos relativos à religião de maneira geral e ao cristianismo em
particular encontraram lugar definitivo nos estudos universitários brasileiros, não só da parte de antropólogos e sociólogos, mas também de
historiadores. Exemplo disso é o volume preparado por Rogério Luiz de
Souza e Claricia Otto e que conta com contribuições de Riolando Azzi,
Ivan Aparecido Manoel, Élio Cantalício Serpa, Paulo Pinheiro Machado,
Sara Nunes, Michelle Maria Stakonski, Alceu Kaspary, Altamiro Antônio
Kretzer, Camilo Buss Araújo, José Adilçon Campigoto, Caroline Jaques
Cubas, Clarice Bianchezzi, Rangel de Oliveira Medeiros.
O resultado é plural, tanto no tocante às temáticas apresentadas
quanto no que diz respeito às abordagens, mas também quanto à pluralidade que na atualidade está por detrás do conceito “catolicismo”. Assim,
o título da coletânea de trabalhos faz jus ao conteúdo, mas também ao
próprio catolicismo com o qual nos deparamos em Santa Catarina. Por
outro lado, a coletânea é exemplar e sua montagem é mérito a ser creditado aos organizadores. Não só conseguiram organizar coletânea que nos
leva dos primórdios do catolicismo em Santa Catarina até os dias atuais,
mas permitem também ao leitor uma visão geral do catolicismo, no qual
a Igreja Católica Apostólica Romana de Santa Catarina está inserida.
Além disso, por trás da coletânea há reflexão didático-pedagógica. Mesmo que ela não tenha sido expressa pelos organizadores, há
preocupação em fornecer com o volume a possibilidade de introdução
geral ao estudo do catolicismo. Por isso, consigo divisar professores
universitários valendo-se desta obra para, com seu auxílio, realizar
seminários introdutórios ao estudo do catolicismo e aos pressupostos
teórico-metodológicos. O volume também será indispensável para aque*
O recensor é Professor Titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS).
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Recensões
les professores de História da Igreja, atuantes em Faculdades de Teologia
ou em Seminários Teológicos, que querem levar seus estudantes a uma
compreensão mais acurada das razões de o catolicismo brasileiro ter as
características que tem.
É óbvio que uma resenha jamais pode apresentar o todo de uma
obra. Por isso, as pinceladas que seguem querem ser um aperitivo que
convida à consulta e à leitura atenta do que resultou do esforço de Souza e Otto e dos autores por eles convidados para a aventura que foi a
montagem do livro.
A contribuição de Riolando Azzi tem caráter introdutório. Verifica
os esforços do catolicismo na transição entre Império e República para
superar o catolicismo popular e moldar os crentes católicos no contexto
das decisões do Concílio de Trento. São os primórdios da romanização.
Depois, Azzi acentua a fundação de novas dioceses, consequência natural
do projeto de romanização, no qual se passa do popular-devocional para
o hierárquico-sacramental. Os esforços feitos no tocante à romanização
são exemplificados nos aspectos da educação masculina e feminina, na
vida familiar e na formação religiosa. Braço essencial à romanização, a
formação das dioceses recebe destaque na segunda parte do estudo. Por
intermédio delas, vai se expressar o zelo pela doutrina, pela disciplina e a
presença da Cúria romana, em constante luta com o catolicismo popular.
Nessas tarefas, contudo, os bispos mostram-se mais como representantes de “uma aristocracia decadente” em meio a uma sociedade em que
valores democráticos buscavam romper com o protocolar, o que explica
muitas contradições.
As contribuições que seguem podem ser consideradas observações
mais detalhadas do texto introdutório de Azzi, mas também discussões,
concordâncias e discordâncias de seus pressupostos, e é bom que assim
seja. A Academia vive do debate e só ele proporciona novos avanços.
Ivan Aparecido Manoel vai destacar justamente a criação de paróquias e dioceses. Elas são fundamentais para a superação do populardevocional e para a instalação do institucional-sacramental. Contudo,
em virtude da amplitude dos conteúdos de seu texto e das temáticas tangenciadas, abre flancos para inúmeras discussões e para que se pergunte
pelas razões de privilegiar alguns aspectos enquanto deixa outros de lado.
Sua tese é a de que o catolicismo acompanha a história do Brasil desde
os primórdios, o que é inquestionável, mas deixa de verificar que o que
considera “sincretismo” é aspecto fundamental para a compreensão do
174
Encontros Teológicos nº 53
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Recensões
catolicismo no Brasil desde o seu princípio. Os fundamentos cristãosnovos de nosso catolicismo não podem ser esquecidos. Por isso, a leitura
corretamente feita de que a educação foi fundamental para a implantação
das dioceses e para a romanização não se coaduna com a leitura de que a
romanização tenha sido reconquista do que antes havia. Diga-se, porém,
que é leitura que enriquece a discussão.
Com os textos de Azzi e de Manoel, os editores prepararam
importante arena para discussão. Com o primeiro dos três textos de Rogério Luiz de Souza, o livro vai do geral para o particular, o que é sua
intenção. Souza tem o grande mérito de, desde a primeira linha, levar o
leitor a entender o projeto da instalação da diocese de Florianópolis num
contexto de luta por poder, mas de um poder entendido como projeto
civilizador. Assim, acompanhando Azzi, vê o surgimento e o desenvolvimento da diocese num contexto de luta por superação do catolicismo
popular, entendendo-se os fundadores da diocese e seus colaboradores
no contexto de um projeto civilizador e moderno, mesmo que o antimodernismo propalado pelo Syllabus sempre esteja presente. Fartamente
documentada, sua exposição é exemplar e evidencia as contradições ou
coerências: a mesma Igreja que civiliza silencia diante do genocídio indígena e caboclo, neste último caso diga-se: Contestado; ou nacionaliza,
assumindo o discurso da ditadura varguista.
Élio Cantalício Serpa exemplifica a romanização do catolicismo
em Santa Catarina na implantação de “nova sensibilidade religiosa, burocratizada de alto a baixo”. Instruções emanadas de Roma criaram Igreja
hierárquica até as últimas consequências, excluindo dela o popular.
Clarícia Otto traz-nos, em texto primoroso, contribuição significativa para a história da educação no Brasil ao apresentar-nos a participação
de franciscanos na educação formal em Santa Catarina. Essa contribuição
é significativa, pois dá destaque justamente ao franciscanismo. Normalmente são os jesuítas que aparecem na história da educação. Em Santa
Catarina esse papel é desempenhado pelos franciscanos. São eles que
aí vão atuar com o professor paroquial, criar seminário para a formação
de professores, associação de professores, produzir material didático,
enfrentar a nacionalização do ensino, promover a romanização, discutir
com o fascismo italiano.
Se até esta última contribuição sobressaem romanização e educação como temáticas de estudo, a partir da contribuição de Paulo Pinheiro
Machado, mesmo permanecendo o pano de fundo da romanização, outros
Encontros Teológicos nº 53
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Recensões
aspectos começam a aflorar para nos mostrar faces do catolicismo catarinense. Pinheiro Machado mostra como freis franciscanos empenhados
na romanização, atuando na região do Contestado, enfrentam-se com
a religião cabocla, legítima expressão do catolicismo popular e com a
política dos coronéis da região. O autor nos dá importante contribuição
ao acentuar a importância de uma leitura diferenciada dos discursos e
dos posicionamentos dos frades.
Como importante complemento às leituras de Pinheiro Machado,
Sara Nunes preocupa-se com as sensibilidades religiosas, apoiando-se
no “caso Canozzi”, ocorrido na serra catarinense, em 1902. A partir do
assassinato do caixeiro-viajante Ernesto Canozzi e de seu empregado,
mortos na estrada que ligava Lages a Porto Alegre, posteriormente cultuados pela população serrana como milagreiros, a autora descortina todo
o universo religioso da região, destacando a religião leiga que, no início
do século XX, entra em choque com a religião romanizada, embate do
qual ainda participam maçonaria e espiritismo.
A temática do popular e de seu choque com o romanizado continua
a estar presente na exposição de Michele Maria Stakonski, exemplificada
na Irmandade do Rosário, em Florianópolis. Aqui ficam evidenciadas as
tensões que marcaram a transição do catolicismo tradicional e popular
para o catolicismo romanizado, submetendo, afinal, as irmandades,
símbolo do catolicismo tradicional, ao poder clerical.
A Era Vargas vai ser tangenciada com a segunda contribuição
de Rogério Luiz de Souza ao evidenciar que, na pessoa do arcebispo
Dom Joaquim Domingues de Oliveira, o Estado varguista teve importante aliado. Ao aliar-se a Vargas, o arcebispo não só consolidou suas
posições hierárquicas, mas também deu espaço para a concretização da
intolerância, do enquadramento, do controle e perseguição da ditadura
dos anos trinta e quarenta do século XX, apoiando plenamente a opressão
aos grupos étnicos presentes em Santa Catarina. Já a terceira contribuição do mesmo autor dá atenção aos anos posteriores à Segunda Guerra
Mundial, quando a Igreja Católica do estado catarinense, no concerto do
catolicismo brasileiro, vai dar especial atenção ao mundo rural, buscando
imprimir ética social capaz de interferir na relação capital/trabalho, cidade/campo. O estudo aponta também para as contradições desses esforços
que preparam o posterior advento da Teologia da Libertação.
Alceu Kaspary verifica o golpe de 1964 e o envolvimento da
arquidiocese de Florianópolis, dando destaque a seu discurso contra o
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governo João Goulart, a sua efetiva participação na concretização do
golpe e a seu discurso legitimador pós-golpe.
A efervescência dos anos pós-1964 está presente nas contribuições
que seguem. Altamiro Antônio Kretzer confronta-nos com a formação
para o sacerdócio em Santa Catarina, exemplificando-a nas marcas
deixadas pela formação proporcionada no Seminário do Azambuja,
em Brusque, em diferentes gerações de seminaristas, dando-lhes voz.
Camilo Buss Araújo verifica o engajamento social católico no período
sob a perspectiva das relações de Igreja e trabalhadores em Florianópolis, cuidando de oferecer ao leitor panorama das alterações que vai
sofrendo essa atuação social. No desdobramento das novas posturas que
a efervescência vai exigindo, José Adilçon Campigoto apresenta-nos a
atuação da Comissão Pastoral da Terra, e Caroline Jaques Cubas verifica
as transformações pelas quais passou e passa a vida religiosa feminina,
especialmente em solo catarinense, no exemplo das experiências de
formação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Clarice Bianchezzi
ilustra, ao nos apresentar a Comunidade de Religiosas da Fraternidade
Esperança, os conflitos surgidos no interior de muitas congregações
religiosas quando, sob a influência do Vaticano II e das resoluções da
Conferência Episcopal de Medellín (1968), grupos de religiosas começam
a fundar comunidades inseridas nos meios populares.
O volume conclui com contribuição de Rangel de Oliveira Medeiros que prepara, em nossa leitura, com sua introdução aos novos campos
de disputa que se manifestam para a Igreja Católica na busca por fatias
do mercado religioso da pós-modernidade, novas pesquisas. Partindo
da trajetória de suas avós, Medeiros introduz ao estudo da Renovação
Carismática Católica e ao Movimento Pentecostal. Pena é que ainda não
intente, para usar a terminologia de Paul Freston, uma leitura da terceira
onda pentecostal e sua influência no catolicismo catarinense, mas isso é
história dos tempos presentes.
Resumindo: Souza e Otto prepararam belo volume que merece
ser lido, estudado, debatido e... continuado.
Endereço do Recensor:
Escola Superior de Teologia (EST)
Rua Amadeo Rossi 467
93030-220 São Leopoldo, RS
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Recensões
BOFF, Leonardo. Virtudes para outro mundo possível: Comer
e Beber Juntos e Viver em Paz. Vol. III: Petropólis, RJ: Vozes,
2006.
Éderson Iarochevski*
A obra a ser apresentada faz parte da série, constituída por 3 volumes, sobre As virtudes para um outro mundo possível. Vamos direcionar
nossa atenção e esforço em apresentar, de forma breve, o conteúdo
essencial do Volume III: Virtudes para outro mundo possível: Comer e
Beber Juntos e Viver em Paz.
Para que a humanidade se mantenha, através de seu esforço e
corroboração mutua, unida e em paz, se faz necessário virtudes mínimas
que lhes são indispensáveis e, dentre todas as possíveis, destacam-se com
maior relevância a Hospitalidade, a convivência e, por fim, a comensalidade, sendo esta última, a capacidade de sentar-se a mesma mesa e, em
profunda união, comer e beber juntos e viver em paz.
O comer e o beber juntos – a comensalidade – destaca o autor, são
atividades primordiais da humanidade. E não pára apenas no alimento
enquanto nutrição do organismo, mas estes estão carregados de significações. É pelos ritos que a comensalidade proporciona que revelamos
nossa humanidade e o grau de civilização que conseguimos alcançar.
O autor divide sua obra em dois capítulos, sendo que no primeiro sua reflexão é feita a partir da realidade da comensalidade, isto é, a
capacidade da humanidade de poder superar seus problemas éticos e
políticos e, assim, de forma solidária e responsável todos poderão viver
dignamente e experienciar de forma concreta o reino de Deus. No segundo
capítulo, a reflexão se dá em visualizar uma cultura de paz num mundo
de conflito. Há um destaque nos tipos de violência que nos cercam. L.
Boff finaliza, de forma bem clara, apresentando caminhos que conduzam
alcançar uma verdadeira cultura da paz. No capítulo I, L. Boff, sugere a comensalidade como um grande
sonho já apresentado pelos grandes mestres espirituais da humanidade.
E este sonho é uma antecipação da realidade que um dia pode nascer,
isto é, sentar-se à mesa, comer e beber juntos e viver em paz. O autor
*
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O recensor é estudante de Teologia do ITESC, Diocese de Caçador.
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faz constantes referências a importância da mesa como referência fundamental da humanidade. “... à mesa se fazem e se refazem continuamente
as relações familiares” (p. 9). É à mesa que todos nos sentimos, de certa
forma, membros da família humana. No entanto, o autor lembra que a
mesa é humana, e sendo humana ela comporta todas as contradições que
a humanidade comporta. Nos dias atuais as mesas foram substituídas por
outras mesas (dessacralizadas), isto é, mesa de negócios, estas “novas mesas” não deixam de ter seu valor, pois também promovem encontros mas,
se faz urgente “resgatar o sentido humano da mesa como familiaridade e
convivialidade. Há necessidade de reservar tempo para o sentido plena
da comensalidade e da conversação livre e desinteressada”. (p. 11)
L. Boff afirma que a comensalidade é tão central que está ligada
à próprio essência do ser humano enquanto humano (p. 15). Com isso
se quer ressaltar que a comensalidade supõe a solidariedade e a cooperação de uns para com os outros e, foi isto que permitiu o primeiro salto
da animalidade em direção à humanidade. Eis um passo decisivo no
desenvolvimento da espécie humana.
Apesar de a comensalidade proporcionar um espaço de refeição
e comunhão, e ela mesma ser intrínseca ao ser humano, a distribuição
dos alimentos foi quase sempre desigual. Com isso o flagelo da fome
assola a humanidade nos tempos atuais e este acontecimento não é apenas técnico, pois há produção de alimentos, no entanto é uma perversa
falta de sensibilidade ética dos seres humanos para com seus co-iguais
(p. 26). Ao aprofundar a questão da fome, se percebe que ela resulta de
uma filosofia subjacente a todo processo produtivo humano. O alimento
se transformou em ocasião de lucro e o processo agroalimentar num
negocio rentoso. Produz-se mais visando o lucro do que criar meios de
vida acessíveis ao maior número possível de pessoas (p. 29).
Para superação há saídas possíveis e uma delas é a agricultura
orgânica (p. 32). Esta possibilidade é caracterizada pela não utilização
de ingredientes químicos e que privilegia os defensivos orgânicos devolvendo, assim, à produção de alimentos seu rosto humano e superando a
perspectiva da linha industrial que visa apenas o lucro. O autor também
faz breve reflexão referente aos Transgênicos que se não for devidamente
chamado atenção por parte da ciência haverá grandes riscos de contaminação e total prejuízo à saúde humana (p. 37)
Além do problema da fome e da segurança alimentar, é apresentada
de forma clara pelo autor, a questão da água. Ninguém pode viver sem
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água. O futuro da vida dependerá da forma como tratamos a água (p.
42). Segundos as pesquisas apresentadas na obra (cf.p. 42) não há problema de escassez de água, mas de má gestão para atender as demandas
humanas e dos demais seres vivos. Há necessidade de superar a visão
mercantilista sobre a água e, também, deve-se reagir a sua privatização,
pois ela é um bem comum universal, patrimônio da biosfera e vital para
todas as formas de vida (p. 47).
No que se refere ao consumo há necessidade de que seja solidário
e responsável. É preciso que o consumo seja humano e com isso, se
quer dizer, que seja adequado à natureza do humano. Precisa consumir para viver, porém não apenas o alimento material, mas também,
aquilo que lhe confere vida ao Espírito. O consumo, também, precisa
ser justo e equitativo. Direito fundamental de cada pessoa humana (p.
55). O consumo deve ser solidário. Superar o individualismo e abraçar
a sobriedade por amor e compaixão para com aqueles que não podem
consumir o necessário.
E finalizando o primeiro capítulo Leonardo Boff, apresenta a
comensalidade de Jesus e no Reino de Deus. A prática utópica da comensalidade de Jesus torna-se exemplo para nós (p. 61). Ele sentava à
mesa com todos. Não excluía ninguém e, de forma radical, dizia que
o principal lugar é dos últimos. Ao falar do Reino, Jesus o apresenta
como um banquete para o qual todos, indistintamente, eram convidados. A comensalidade era totalmente aberta e todos eram incentivados
a participarem. Comida abundante, igualdade, dignidade constituíam a
essência do banquete idealizado por Cristo (p. 62). No capítulo II, que tem por tema central cultura da paz num mundo
em conflito, o autor, inicialmente, faz uma breve citação da carta da terra,
onde assim se reza: “a paz é a plenitude que resulta das relações corretas
consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a
terra e com o grande Todo do qual somos parte” (p. 73). Apresenta-se a
paz não como algo que nasce por si mesmo, mas que resulta de valores,
comportamentos e relações que devem existir previamente. Há necessidade urgente de fazer uma opção radical pela paz. Há necessidade urgente
de se distanciar das relações que castigam, oprimem e maltratam outros
seres humanos. A paz deve ser o bem mais desejado.
O autor coloca um diálogo interessante entre Einstein e Freud que
aconteceu, através de carta, no ano de 1932. Einstein questiona-o: há
um modo de libertar os seres humanos da fatalidade da guerra? Existe
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a possibilidade de dirigir a evolução psíquica a ponto de tornar os seres
humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição?. Então, Freud assim responde: “não existe a esperança de poder suprimir de
modo direto a agressividade do ser humano. Contudo, podem-se percorrer
vias indiretas, reforçando o Eros, princípio da vida, contra o Tânatos,
princípio da morte. Tudo o que faz surgir laços emotivos entre os seres
humanos age contra a guerra. Tudo o que civiliza o ser humano trabalha
contra a guerra” (p. 75-76). Portanto, a paz é realidade a ser buscada e
que jamais se pode desistir de querer viver em paz permanente.
Há necessidade de superação dos empecilhos que dificultam a
paz. Às vezes, na busca pela paz, se peca pelo excesso de otimismo, ora
pelo excesso de pessimismo. L. Boff conceitua duas realidades que não
atendem à complexidade da realidade na qual se deve construir a paz; o
pacifismo sem limites e o conflitualismo radical.
A partir do pacifismo sem limites surge uma atitude radicalmente
pacifista. Há grupos e pessoas que preferem deixar-se matar a agredir e
mesmo defender-se. Segundo Boff, este comportamento é pouco realista,
pois sozinho não consegue triunfar a paz. Também, há o pacifismo ativo
que possui mais realismo. É chamado de não-violência ativa. Não usa
armas e nem recursos de guerra para chegar a paz. E existe o pacifismo
revolucionário, aceita as bases do pacifismo. Busca atacar as conexões
ocultas que promovem todo tipo de violência (p. 82).
A conflitualidade extremada vê a realidade como uma arena onde
se travam conflitos. A convivência humana é sempre possível, porem não
esta imune a ameaças e rupturas. As realidades do colonialismo europeu
na África, na America Latina e na Ásia; a segunda guerra mundial; os
atentados terroristas do dia 11 de setembro onde se promoveu o medo,
a insegurança e, também, a partir deste acontecimento toda violência
praticada é justificada pela busca da paz.
Há necessidade de um realismo responsável. A realidade é ambígua. Há conflitos, porém perpassa os dinamismos de ordem, de harmonização e de paz. A arte não consiste em dar primazia ora ao pacifismo
ilimitado, ora à conflitualidade extremada (p. 87). Consiste em manter a
tensão buscando aquela convergência de energias que permita a história
criar ordens, instituições minimamente justas e includentes, ordenações
sociais sem demasiada destrutividade. Sabendo que a conflitualidade
sempre acompanha tudo como uma sombra.
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A paz passa por caminhos impossíveis. Um deles é a violência
dentro de cada pessoa. Toda violência que carrego e despejo no mundo
é uma forma de contribuir para realidades violentas em extremo. Outro
caminho violento e a realidade do patriarcalismo. O homem que usa sua
força para ganhar a realidade e ter o poder em suas mãos. E com isso
nasce todo tipo de violência (exploração sexual, violência contra mulher
e outros). L. Boff apresenta outras formas de violência que coexistem
com a humanidade: a violência cultural: a vontade de poder-dominação;
a violência da economia capitalista de mercado; a violência originária
do cosmos (p. 98-106).
No que se refere ao caminho para uma paz possível o autor destaca algumas vias que podem garantir um acesso com maior segurança
à busca permanente da paz. A primeira via é de acolher com seriedade,
a polaridade sapiens / demens, amor / ódio, sim-bólico / dia-bólico. E a
outra é de reforçar o pólo luminoso de tais contradições, que elas possam
manter-se sob controle, limitar e integrar o pólo tenebroso, e daí fazer
surgir a paz tão ansiada (p. 110).
L. Boff afirma, que a estratégia eficaz para construir a paz é o
caminho preparado pelo “primeiro depois do Único” e talvez “ o último cristão”, Francisco de Assis (+1228). Na oração de São Francisco
pela Paz, oração não feita por Francisco, mas sim por um anônimo da
Normandia durante a primeira Guerra Mundial (1914-1918), serviu e é,
ainda hoje, inspiração de paz e benquerença entre os seres humanos e os
povos. O interessante da oração é que ela não perde de vista as contraditoriedades do mundo, mas se propõe a superá-los. O pólo negativo não
é negado nem recalcado. É assumido, mas submetido à lógica do pólo
positivo. Outra estratégia evidenciada pelo autor é a ética do cuidado
e da justiça universal. Aqui se afirma que todos necessitamos de ser
cuidados, acolhidos, valorizados e amados e desejamos cuidar, acolher,
valorizar e amar (p. 115). O homem além de ser portador da capacidade
intelectual, é portador da capacidade de sentir, de afetar e ser afetado.
Vem ainda dotado de razão emocional e espiritual. Ele é, portanto,
um ser para com os outros e para os outros no mundo. O cuidado é o
condicionador antecipado de todas as ações para que sejam benéficas e
orientadas na construção da convivência pacífica entre os humanos e os
povos. O autor destaca, nas obras de Emannuel Kant, um projeto éticopolítico que o mesmo sugere. Kant propõe a “republica mundial”, ou o
“estado dos povos” fundada na “cidadania mundial” e que esta tem por
primeira característica a “hospitalidade geral” (p. 120).
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O autor finaliza falando sobre a paz de Deus. Na perspectiva da
espiritualidade, que é a dimensão humana que responde pelas grandes e
derradeiras questões que sempre nos acompanham, o homem pode sentir,
muito mais que saber, os sonhos que seu coração suscita. Espiritualidade
não é apenas saber, mas principalmente poder sentir tais dimensões do
humano radical (p. 125). O efeito é uma profunda e suave paz. Paz que,
como Jesus dizia, “o mundo não pode dar” (Jo 14,27). É a paz de Deus.
Ao finalizar este trabalho é possível ter bem claro a realidade
contraditória em que a humanidade vive. Sendo que muitos padecem e
outros, pelo caminho injusto da exploração, ganham mais força. Porém,
nesta mesma humanidade, através da luminosidade daqueles que praticam o bem e a justiça, é possível sonhar com um outro mundo possível
de se viver. Comer e beber e viver juntos não é apenas utopia, mas uma
realidade a ser buscada de forma permanente. Quantos já provaram ser
possível sentar-se à mesa com o diferente e conviver de forma pacifica
respeitando o que o outro apresenta, e com todo respeito, disponibilizar
ao outro o que se tem de melhor para que, no diálogo, a vida prevaleça.
Que o desejo permanente pela paz nos faça caminhar pelas vias do bem
e da justiça e que não desanimemos diante dos contrários do cotidiano
mas sim, saibamos equilibrar as tensões para viver dignamente como
humanos a realidade a qual pertencemos e que, ela mesma, tanto precisa
da bondade e generosidade de nossas ações e capacidade que temos de
promover o bem.
Endereço do Recensor:
Seminário Teológico da Diocese de Caçador
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
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Crônicas
Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Especialização
em Espaço Celebrativo-Litúrgico e Arte Sacra
De 20 de julho a 1º de agosto de 2009, o ITESC, em comunhão com a
Comissão Arquidiocesana de Liturgia (Comissão de Arte Sacra) de Florianópolis, realizou a primeira etapa do Curso de Pós-Graduação Lato
Sensu – Especialização em Espaço Celebrativo-Litúrgico e Arte Sacra.
Participaram cerca de trinta alunos, vindos das mais variadas regiões
do Brasil. A diversidade cultural e formativa, proporcionou ao curso
desenvolver o seu caráter interdisciplinar. Arquitetos, engenheiros,
artistas sacros, artistas plásticos, especialistas em artes visuais, seminaristas e padres, viveram duas semanas de estudo intenso e de grande
convivência.
Nesta primeira etapa, numa perspectiva mistagógica, foram abordados
os seguintes temas: Introdução Geral à Liturgia e à Arte Sacra, Espiritualidade Litúrgica, Dinâmica Litúrgico-Celebrativa dos Sacramentos, A
Linguagem do Sagrado, Mistagogia do Edifício Eclesial e Noções gerais
de Metodologia Científica e da Pesquisa. Contamos a competente colaboração dos seguintes professores: Dom Manoel João Francisco, Bispo
Diocesano de Chapecó; Pe. Domingos Volnei Nandi; Dom Ruberval M.
da Silva, OSB; e Klaus da Silva Raupp.
O curso terá sua continuidade em mais duas etapas: de 1º a 13 de fevereiro
de 2010 e de 19 a 31 de julho de 2010. Serão estudas nestas duas etapas
as seguintes disciplinas: História da Arte; História da Evolução do Espaço Celebrativo Cristão; Normativa Litúrgico-Canônica sobre o Espaço
Celebrativo; Elementos teológicos e pastorais a partir dos documentos
da Igreja referentes à Arte Sacra e Espaço Litúrgico; Bens Culturais
da Igreja, Patrimônio e Preservação; Arquitetura do Espaço Sagrado;
Iconografia, Simbologia Cristã e Objetos Litúrgicos; Rito de Dedicação
de Igreja e Altar; Estética; Conforto Ambiental: Iluminação; Conforto
Ambiental: Térmica; e Conforto Ambiental: Acústica e Sonorização.
Farão parte do corpo docente, os seguintes professores: Eliane Veras
da V. Pacheco; Regina Céli de A. Machado; Pe. Tarcísio Pedro Vieira;
Pe. Egídio Balbinot; Ivo Porto de Menezes; Ir. Laíde Sonda; Frei José
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Crônicas
Ariovaldo da Silva; Adilson A. Kolowski; Eliva de Menezes Milani; e
Carlos Roberto Pedruzzi.
Há mais de 45 anos a Igreja vivenciava um dos momentos mais significativos dos últimos tempos: o Concílio Vaticano II, acontecimento
memorável, que grandes transformações trouxe para a vida e a missão da
Igreja. Indubitavelmente, a “reforma litúrgica”, através da Constituição
Conciliar Sacrosanctum Concilium, representa uma das maiores riquezas
deste Concílio. Neste contexto, foi sendo aprofundado também o valor do
Espaço Celebrativo-Litúrgico para o aprofundamento da fé, o encontro
da comunidade orante e a celebração do Mistério Pascal de Cristo.
Somente com o conhecimento e a partilha de saberes, na compreensão
dos princípios teológico-litúrgicos e técnicos, será possível tornar o
espaço celebrativo não só um lugar bonito e digno, mas também liturgicamente correto e apropriado, que favoreça o encontro entre as pessoas
e com Deus, sinal sensível do mistério que aí se celebra. Destacam-se,
assim, para além dos princípios técnicos, os princípios da eclesiologia,
da teologia litúrgica e da arte sacra, como expressão concreta de uma
mística própria do lugar sagrado, do lugar do culto cristão.
O espaço celebrativo, por si, torna-se espaço sagrado. Deve, por isso,
expressar a fé e a cultura: tornar presente o mistério da salvação no contexto concreto, situando-o no aqui e no agora. O espaço celebrativo deve
conduzir à experiência do Mistério de Deus, em comunidade. O espaço
celebrativo deverá, então, revelar Deus! Assim, o espaço celebrativo
deverá ser belo e acolhedor, funcional e místico, lugar de encontro e
partilha, lugar de comunhão e santificação, lugar de graças e bênçãos,
lugar de festa e alegria, de misericórdia e reconciliação, lugar de salvação e da epifania de Deus. O espaço celebrativo, desta forma, deve
expressar seu caráter sacramental, como sinal visível da misericórdia
salvífica de Deus.
Curso de Especialização em Estudos Bíblicos
Inscrições abertas
Em julho de 2009 realizou-se a última etapa da 1ª edição do Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu – Especialização em Estudos Bíblicos,
sob a coordenação do Departamento de Bíblia do ITESC. A maioria
dos participantes está elaborando a monografia de conclusão do Curso
que deverá ser entregue até novembro próximo. A avaliação geral das
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Crônicas
quatro etapas revelou que os objetivos propostos foram basicamente alcançados, enfatizando a capacitação na metodologia de Leitura Popular
da Bíblia.
Os acadêmicos expressaram seu entusiasmo pelos benefícios que o
uso da Bíblia proporciona junto ao trabalho pastoral, escolas bíblicas,
movimentos e organizações populares. Unanimemente solicitam que o
ITESC continue oferecendo este Curso a fim de que outras lideranças
comunitárias e pessoas interessadas tenham a oportunidade de uma
formação bíblica sistemática e abrangente.
Diante deste apelo e do interesse manifestado especialmente por pessoas
que participam de escolas bíblicas, o Departamento de Bíblia sente-se
convocado a proporcionar a 2ª edição deste Curso, iniciando já em janeiro de 2010. As inscrições já estão abertas, diretamente na secretaria
do ITESC ou pelo e-mail: [email protected]. As informações do
Curso encontram-se no site: www.itesc.org.br
O convite estende-se, de modo especial, às lideranças leigas, religiosos(as),
padres e pastores(as), diáconos e professores universitários e de educação
religiosa.
Tríduo Teológico: Diretrizes para a formação dos
presbíteros na Igreja do Brasil”
Com o tema: “Diretrizes para a formação dos presbíteros na Igreja do
Brasil”, aconteceu nos dias 02, 03 e 04 de setembro, no Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, o “Tríduo Teológico”. O documento que
fora elaborado pelos bispos e teólogos espera a aprovação do Vaticano
para posterior publicação. Assessorou o encontro Pe. José Rafael Solano
Duran, que é reitor do Seminário Paulo VI, na Arquidiocese de Londrina
– PR, e professor de Moral e Bioética na PUC – PR.
Foram abordados diversos temas pertinentes à formação dos futuros e
dos já existentes presbíteros, tendo sempre em vista a urgência do tema
que gera preocupações e exige atitude no meio eclesial. Num primeiro
momento, Pe J. Rafael S. Duran fez uma panorâmica geral do documento,
apontando as linhas mestras contidas no mesmo. Mostrou o nexo existente
entre estas diretrizes e decretos anteriores tais como “Optatam Totius”
e “Presbyterorum Ordinis”. Os participantes elogiaram o documento
enfatizando que “este é mais um belo documento da Igreja”. Muitos
se perguntavam “quem elaborou tal documento?” Certamente, pessoas
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Crônicas
que estão diretamente ligadas à caminhada formativa nos seminários e
institutos e possuem condições de fazer um real diagnóstico dos desafios,
limites e aspirações dos jovens que querem contribuir na construção do
Reino de Deus.
Outros temas foram abordados durante o Tríduo: o “Ano Vocacional de
2003”, a estrutura dos seminários, o Ano Sacerdotal, o celibato. Algumas
interrogações permaneceram. Dentre elas, o porquê da superficialidade
do tema “celibato” nas “Diretrizes para a formação dos presbíteros na
Igreja do Brasil”. O debate sobre o celibato – que fora feito em grupos –
evidenciou os muitos questionamentos que permeiam esse tema. Muitas
perguntas e dúvidas, poucas respostas. A impressão que ficou é que, mais
uma vez, fugiu-se das garras do “Leviatã presbiteral”.
A participação dos acadêmicos, formadores e alguns professores foi significativa e merece destaque. Muitas intervenções com questionamentos,
dúvidas e pontos de vista diversos surgiram durante todo o encontro. A
angústia dos “formandos”, frente à explanação feita pelo assessor, esboçou bem a atual conjuntura formativa. Os “formados” mostravam-se
mais tranqüilos. Um sentimento parecia comum aos formandos: “diante
da iminente crise na formação presbiteral algo precisa ser feito, muita
coisa precisa mudar!”
Departamento de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso
(DEIR)
O DEIR concluiu, no mês de julho do presente ano, a terceira etapa de
aulas da terceira turma de pós-graduação em diálogo ecumênico e interreligioso, com 24 alunos. Os alunos estão agora no período de redação
da monografia conclusiva do Curso, que deverá ser entregue até o mês
de dezembro do presente ano.
Com essa turma, são 90 os alunos que fizeram essa pós-graduação no
ITESC, com especialização no diálogo ecumênico e inter-religioso.
Trata-se de um serviço impar que o ITESC presta para todos os cristãos
no Brasil, contribuindo para que haja sempre mais pessoas preparadas
para uma efetiva e eficaz atuação no movimento ecumênico nacional,
colaborando para que as diferentes igrejas existentes no Brasil possam
viver num verdadeiro espírito de diálogo, cooperação e comunhão.
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Cursos de Pós-Graduação
oferecidos pelo ITESC
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIÁLOGO
ECUMÊNICO E INTER-RELIGIOSO
(ESPECIALIZAÇÃO)
Em nossos tempos, intensificam-se as interpelações do
pluralismo eclesial e religioso para a consciência da fé cristã e
da Igreja, exigindo de cada cristão um espírito de diálogo com as
diferentes tradições eclesiais e religiosas. Os caminhos percorridos pelo diálogo ecumênico e inter-religioso manifestam esse
espírito, buscando a convivência e a cooperação entre igrejas
e religiões. Isso exige um “refazer a teologia na perspectiva do
diálogo”, para que ela melhor oriente os que percorrem os caminhos que conduzem a convergências e, inclusive, possíveis
consensos entre as diferentes concepções de Deus, da Revelação, da Igreja, do ser humano, da obra da criação, da sociedade,
etc., apresentadas pelas igrejas e religiões.
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO
MATRIMONIAL CANÔNICO
(ESPECIALIZAÇÃO)
O Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Matrimonial Canônico (Especialização) nasceu do desejo de o
ITESC oferecer aos graduados em Teologia, Ciências da Religião
ou Direito Civil (ou em alguma área das Ciências Humanas), uma
formação interdisciplinar especializada sobre o Matrimônio e a
Família, proporcionando as condições necessárias para uma
atuação concreta na atividade Pastoral da Igreja, seja capacitando lideranças para atuarem nos diversos âmbitos da Pastoral
Familiar, seja oferecendo a qualificação básica para a atuação
em nossas Câmaras ou Tribunais Eclesiásticos.
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
EM ESTUDOS BÍBLICOS
(ESPECIALIZAÇÃO)
Cada vez mais a Bíblia está nas mãos do povo e desperta o interesse da sociedade em geral. Basta ver as inumeráveis publicações com
temas bíblicos na literatura mundial. Estejam as pessoas engajadas em
serviços eclesiais, em organizações e movimentos populares, em instituições de ensino ou mesmo inseridas em outros espaços, manifestam
grande sede de aprofundar o conhecimento da Bíblia, não simplesmente
porque querem aprender a interpretá-la, mas porque percebem que os
textos nela contidos se transformam em fonte e sustentação da mística
e da espiritualidade no cotidiano da vida. O ITESC, ao promover este
curso, deseja acolher as expectativas destas pessoas, proporcionando
o conhecimento da Bíblia como fruto da caminhada histórica do Povo de
Deus e aprofundando a metodologia de Leitura Popular da Bíblia. Assim,
estamos atendendo à solicitação de lideranças leigas, universitários(as),
religiosos(as), padres e pastores(as) da região da grande Florianópolis
e do Regional Sul IV/SC da CNBB.
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)

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