As origens do bordado de Tibaldinho

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As origens do bordado de Tibaldinho
As origens do bordado de Tibaldinho
por Madalena Braz Teixeira
in “Bordado de Tibaldinho” – Catálogo da Exposição no Museu Nacional do Traje
Edição da Câmara Municipal de Mangualde, Instituto Português de Museus e Museu Nacional do Traje, 1998
Integrada no grande grupo das artes decorativas, a arte têxtil segmenta-se em diversas
facetas que, no nosso país, revela características próprias, marcadas por grande originalidade. As Colchas de Castelo Branco e os
Tapetes de Arraiolos são exemplos bem reveladores de um cunho específico no âmbito da manufactura portuguesa, reconhecida
internacionalmente pela sua qualidade técnica. Constituem hoje, juntamente com o Bordado da Madeira, a excelência da
produção ornamental no diversificado panorama da arte têxtil nacional. Deverão todavia referir-se neste contexto os Bordados de
Viana, Guimarães, Niza e Açores. O Bordado Tibaldinho, representa mais uma criação em que se podem detectar elementos identificadores que singularizam esta tipologia entre os demais bordados portugueses. Esta expressão artística organiza o seu léxico
através da cor, o branco, que é comum, tanto ao suporte como ao material utilizado, o fio de linho ou de algodão.
A preferência secular por esta cor caracteriza bem, do ponto de vista estético, a origem desta arte têxtil. Com efeito, a arte
neoclássica, internacionalizada na Europa, a partir da primeira metade do século XVIII, decorre da descoberta das ruínas de
Herculano cujas primeiras escavações ocorrem em 1711. São todavia os achados de Pompeia, provenientes da 1a Campanha
Arqueológica de 1748, que vêm a provocar um profundo impacto entre os eruditos e os artistas do tempo, gerando a
transformação do cânone barroco.
Em Portugal, são detectáveis na pintura joanina alguns temas clássicos, aparecendo nos fundos dessas mesmas pinturas
elementos arquitectónicos em alegoria ao reconhecimento do mundo romano, surgindo durante o período denominado
neoclássico arqueológico; 1760-1774. A decoração do Palácio e Convento de Mafra, sagrado em 1716, vai propiciar logo de
seguida, os primeiros sinais desse revivalismo nas paisagens e na figuração que servem de fundo à representação de cenas bíblicas
e de temas relacionados com a vida dos Santos, presentes na referida pintura. Todavia D. João V (1689-1750) manterá, ao nível do
seu quotidiano, todo o esplendor de uma corte essencialmente barroca, desde a indumentária à baixela, do mobiliário à
porcelana, dos tapetes aos panos de armar.
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or outro lado, a reconstrução de Lisboa na sequência do Terramoto de 1755 vem ditar a simplificação da arquitectura em moldes
próximos do neoclassicismo pela urgência de planificar e edificar. Instala-se a monumentalidade e a simplicidade através de
um desenho urbanístico em que a racionalidade, a clareza e uma certa serenidade na volumetria dos novos prédios urbanos
aproximam a cidade da nova vaga estilística. Deste modo, ocorre no nosso país alguma apetência para a renovação da
gramática decorativa que convive com a ornamentação rocócó do Palácio de Queluz, imaginada por Robillon, entre 1755 e
1786.
O picadeiro de Belém constitui o exemplo mais representativo da segunda fase do neoclassicismo, contemporâneo de Luis XVI
(1774-1792). A decoração fresquista da grande nave define-se em grandes geometrias onde aparecem os mesmo elementos
decorativos do período anterior, acrescidos de laçarias e de grinaldas que vêm a definir uma das características deste estilo
também conhecido no nosso país por D. Maria (1734-1816). Os elementos vegetalistas diminuem substancialmente de
dimensão. Em substituições dos festões, aparecem pequenos raminhos, rosetas, réplicas de cerâmica grega, coroas de flores e
diversas alfaias relacionadas com a arte dos jardins. As encomendas régias de traje continuam a fazer-se em França, sendo
essencialmente provenientes de Lyon, pelo que a mudança da silhueta feminina que Marie Antoinette introduz em Versailles
vem a ser reproduzida na corte de Lisboa, através dos novos padrões da indumentária e na gradual preferência pelas riscas e
pelo uso do branco. No domínio dos bordados, estes tendem a diminuir de volumetria e os matizes apresentam-se em tons
claros, perdendo a estridência polícroma do bordado rocaille.
Exaltada a imaginação artística pelo fascínio exercido pelo estátuas romanas não admira que a Revolução Francesa de 1789 se
tenha apoderado do emergente neoclassicismo como expressão preferencial do novo figurino da moda. Os valores da Igualdade,
da Fraternidade e da Liberdade conviviam melhor com a simplificação da indumentária e dos elementos decorativos.
Paralelamente, a Revolução Industrial coincide no tempo, com o advento do neoclassicismo em Inglaterra, exaltado através dos
brancos presentes nos trajes e nos respectivos acessórios, sendo nesta época que surge o famoso bordado inglês utilizando
recortes e pontos abertos, numa expressão de simplicidade, clareza formal e serenidade comuns ao gosto clássico. No nosso
país, as manufacturas constituem-se ainda com carácter pré-fabril, mesmo na Real Fábrica das Sedas, tanto a do período joanino
como a do período pombalino. Deste modo, a dominância da produção artesanal, a nível nacional, incidia sobre a lã e o linho,
materiais dominantes do traje e do bragal mais comum, realidade que perdurou até meados do século XIX. Quanto ao algodão,
este provinha da índia sendo usado na corte como o descreve Madame Junot, referindo-se à então Princesa do Brasil, D. Carlota
Joaquina "Elle portait une robe de mousseline de Linde brodée en coton et en or, comme nous en avons raporté dês pièces en
grand nombre pour faire dês rideaux... ses cheveux demi-frisés tournés à Ia grecque et ornés d'une profusion dês plus
admirables choses en perles et en pièces précieuses que j'eusse vues à cette époque on j'etais encore jeune et dont notre
révolution nous avait prive de toutes lês parures de ce genre".
Esta descrição ridiculariza D. Carlota Joaquina mas atende também ao facto da realeza portuguesa apreciar e usar tecidos
indianos no quotidiano como em recepções, o que não acontecia em França e em Inglaterra. Razões climáticas contribuíram, é
certo, para a preferência pelos algodões. No entanto, é de destacar que as toiles de jouy e os chinz ingleses, largamente
difundidos durante estes finais do século XVIII, não tiveram expressão áulica no nosso país no tocante à decoração interior dos
palácios onde a seda continuava a manter a primazia. As indiennes serão substituídas pelas chitas que, por baratas e
excedentárias, ganharam a dominância na indumentária popular da segunda metade do século XIX.
No contemporâneo estilo pompeiano predominam os brancos e o célebre rosa enquadrado essencialmente em mandorlas mas
também em losangos e rectângulos, coincidindo com o Directório e correspondendo ao chamado neoclássico revolucionário;
1795-1799. Surgem paralelamente, motivos e formas da Grécia Antiga e de Roma tanto na indumentária como na arquitectura
de interiores. Os tecidos transparentes ganham o favor das elegantes e as formas dos vestidos são decalcadas das figuras
escultóricas da Antiguidade, tal como os penteados e as próprias jóias. Surge a voga dos bordados brancos tanto na roupa
interior como nas toucas e nas écharpes que envolvem os vestidos, bem como nos diversos lenços que, tanto homens como
mulheres, usam no seu quotidiano.
Os símbolos da Revolução Francesa como os barretes frígios, as faixas tricolores e os arcos e flechas acompanhados de bandeiras e
outras armas compõem um conjunto algo militar como convinha ao Consulado de Napoleão; 1799-1804. Durante este período,
acrescentam-se elementos exóticos motivados pela marcha de Kléber sobre o Egipto. A chegada do grande obelisco a Paris vai
propiciar o aparecimento de inúmeras ornamentações inspiradas naquela civilização oriental. A representação de esfinges,
masculinas e femininas, acompanhadas de hieróglifos, palmeiras, palmetas e de toda uma nova figuração animalística vêm
enriquecer o vocabulário neoclássico que até aqui se contivera na zoologia europeia. De resto, esta vertente egípcia adquire
alguma relevância na área do mobiliário e da decoração fresquista e menos no tocante ao têxtil.
No domínio dos bordados há a destacar que, tanto no traje como nos respectivos acessórios, se regressa à pompa áulica utilizandose na indumentária de corte bordados a prata, a ouro branco e amarelo, bem como a fio de aço, vidrilhos e missangas. O uso dos
metalizados convive com o branco que é usado, preferencialmente em situações de recato familiar relativos à interiodade do
lar. Deverá todavia referir-se que nesta época o traje infantil ganha expressão própria através da utilização do branco,
frequentemente ornamento com bordados da mesma cor. O período Imperial; 1804-1814, assume toda a gramática anterior,
exacerbando em pompa os elementos decorativos de proveniência greco-romana acrescidos das simbólicas abelhas de Josefine
e do famoso e bem divulgado monograma de Napoleão. Ao nível da indumentária estandardiza-se a estrutura clássica num
espírito revivalista, através de uma silhueta evocadora de panateneias e vestais. Linhas direitas, cintura alta, alvos e
transparentes tecidos, semeados por singelos bordados ou circunscritos em pequenas barras. Assim se apresentam com linhas rectas e
numa sinfonia de brancos que valorizam o ser sobre o parecer. O homem viriliza-se, adaptando calça comprida e suprimindo
cabeleiras, rendas e bordados do seu guarda-roupa, perdendo pela alteração dos hábitos cortesãos o estatuto de frivolidade
que até aí o definia. A mulher assume os tempos novos numa liberdade que é nova também e arvora o próprio corpo,
descomprimindo-se e rejeitando as barbas de baleia do Ancien Regime. Do ponto de vista estilístico, a forma do vestuário é jónica,
pois a manga curta e em balão assemelha-se à ondulação do recorte estriado do clássico capitel grego.
É de salientar que, temporariamente, a França deixa de exportar o luxo e a moda vem também de Londres que expande as
novidades. Vestir à inglesa, sobretudo para os homens, passa a ser o paradigma dos europeus. Aqui, a calça comprida não
tem significado revolucionário e continuará a usar-se o calção, tal como no nosso país. Surge, criado por Lord Brummel, o
célebre frac preto que se mantém até hoje com algumas variantes de pormenores. Todavia, o colete mantém-se bordado,
frequentemente nas cores branca e creme. De Beau Brummel descenderá uma longa e perdurável tradição de dandies. O
período Império é sobretudo ditador, na criação de novos uniformes militares e de condecorações de guerra, pois o herói é
simultaneamente um militante político e um agente de transformação social. A pompa da indumentária nos marechais
corresponde e traduz do ponto de vista estético, a dignificação do grande vencedor. Romano era o traje desenhado por
David para Napoleão. A forma, a decoração e as próprias insígnias traduzem bem a nova era, baseada no espírito dos
Césares.
A progressiva desaparição dos elementos geométricos ocorre durante a Restauração; 1814--1818, que corresponde ao último
período do neoclassicismo francês, desenhando-se uma apetência para novos revivalismos tendo como fonte de inspiração a
Idade Média. É durante este período que a corte portuguesa se desloca para o Brasil (1807-1819) pelo que poucas são as
influências francesas desta temática no traje e na arte têxtil durante este período. A baixela da Vitória, executada por
Domingos Sequeira entre 1813-16 por encomenda de D. João VI e, em agradecimento ao Duque de Wellington pelo
seu decisivo apoio durante as invasões francesas (1808-14), demonstra quanto o neoclassicismo era apreciado. Esta baixela
em prata dourada, ainda hoje na posse daquela família inglesa, é seguramente o mais importante exemplo da arte decorativa
portuguesa realizada com este vocabulário estético. Mesmo posteriormente à morte de D. João VI, ocorrida em 1826,
mantém-se o gosto neo--clássico.
As grandes festas realizadas no Brasil para o casamento de D. Pedro IV com D. Leopoldina de Áustria, em 1818, e em segundas
núpcias com D. Amélia de Beauharnais (sobrinha de Josefine), em 1829, foram acontecimentos que se realizaram no estrito gosto
clássico, o mesmo sucedendo na cerimónia da Coroação de D. Pedro como Imperador do Brasil, em 1822, decalcada da
sagração de Napoleão que acontecera em Paris vinte anos antes.
Fundamental também para a fixação da arte neoclássica foi a Missão Artística proveniente da França que, a convite do Conde
da Barca então ministro do Reino no Brasil, se deslocou ao Rio para aí leccionar e lançar as bases estilísticas deste género
artístico. Esta missão reunia um número apreciável de artistas, intelectuais e mestres franceses que vieram dar corpo à primeira
Academia de Belas Artes portuguesa, fundada em 1816, do outro lado do Atlântico. A influência desta missão foi
determinante para a organização e estrutura das grandes festas, atrás descritas, tal como a preferência das próprias rainhas que
trouxeram da Europa e dos seus países de origem a moda imperial dominante, do mobiliário à arte têxtil. O regresso da
família real das terras brasileiras (1819) e da aristocracia que acompanhara o rei a essas paragens longínquas, vem a realizarse durante a década de 20. Ocasião propícia à beneficiação dos solares deixados vazios através dos proventos da renda brasileira
que continuava a chegar. O caso, bem conhecido, da Casa da ínsua vem trazer fulgor a Penalva do Castelo, o que ocorre também em
Mangualde e noutras mansões ao redor que são rejuvenescidas, modernizadas e, por vezes, recobertas de azulejos no exterior, à
moda brasileira, nomeadamente nas residências burguesas dos seus endinheirados proprietários.
Não admira portanto que a decoração interior da própria habitação tenha ocorrido também através da renovação do bragal e das
roupas de casa. Tornava-se urgente refazer o enxoval e constituir um novo património têxtil. As condições histórico-culturais
são explícitas pelo que o aparecimento e/ou o desenvolvimento de uma manufactura de bordados está justificada à partida
pela encomenda que seguramente as famílias recém-chegadas do Brasil fizeram, imitadas por outros parentes e amigos que não
tinham deixado os seus lares. O gosto romântico vai desenvolver-se durante o reinado de D. Maria II (1819-1853) tanto no
domínio do traje como do têxtil, em geral, sendo de destacar que a rainha ainda se veste de branco como manda o figurino
neo-clássico e assim é representada nos primeiros quadros que a retraíam. A única guerra civil da nossa história, ocorrida entre
1828 e 1834, terá como consequência a demora na introdução de novas transformações socio-culturais e a dificuldade em criar
rupturas no domínio estilístico pelo que o novo léxico ornamental romântico tarda em chegar e a ser divulgado ao nível do
quotidiano na Beira Interior como é o caso de Alcafache.
Deste modo, parece justificada a preferência pelo branco e as razões para que o Bordado de Tibaldinho se tenha mantido fiel à
dominância da alvura. Em primeiro lugar porque esta é, sem dúvida, a cor neoclássica, retirada dos mármores da arquitectura e
da estatuária greco-latina divulgada desde logo pela França nos finais da sua monarquia, pelos tempos revolucionários e pelo
casal Bonaparte. Branca é também a preferência inglesa Regent tanto no vestir como na decoração de interiores que também usa
tons pálidos, nomeadamente o amarelo que são essencialmente escolhidos no novo país das Américas, os Estados Unidos,
independentes desde 1776. Em segundo lugar, a roupa de casa é tradicionalmente branca ou crua e o Tibaldinho não foge a esta
regra. O branco veicula a higiene, a limpeza, a dignidade e a serenidade, valores essenciais ao acto de dormir e à apresentação
da mesa nos seus múltiplos derivados. Em terceiro lugar, o romantismo e a moralizante mentalidade burguesa elegem o branco
como imaculado símbolo da pureza, da virtude e da honestidade, razões suficientes para a manutenção desta cor no enxoval
das donzelas quer nas suas complexas e múltiplas roupas interiores quer na execução do seu bragal.
Em quarto lugar deverá referir-se o conservadorismo da zona beira e o isolacionismo desta área interior que lhe molda o carácter
no sentido do apego às formas culturais próprias. Manter uma tradição é manter-se vivo e fiel ao modo de ser que o passado
transmite, pelo que o branco no Bordado de Tibaldinho veicula a força da herança secular, a vontade e o desejo das bordadeiras
e das senhoras que o encomendavam.
No tocante ao material utilizado deverá salientar-se que o linho provém da manufactura local, sendo também secular a sua
produção. Apesar do algodão indiano ter sido usado desde o final do século XVIII mesmo na corte como foi referido
anteriormente, o produto nacional começa a ser generalizado a partir de 1870 com a industrialização que ocorre no período
regenerador de Fontes Pereira de Melo.
A técnica do Bordado é singela utilizando cheios e abertos o que confere alguma transparência às peças, expressão cara à
gramática neoclássica que é padronizada também no chamado bordado inglês e, cerca de 1850 no bordado da Madeira. Enquanto
que ambos os bordados evoluem no sentido de uma sobrecarga ornamental, o Bordado de Tibaldinho irá manter-se fiel à
singeleza e à clareza que o caracteriza. A variedade de pontos utilizada é diminuta restringindo-se a um glossário próprio capaz de
produzir uma assaz variedade de composições que se desenvolvem num limitado quadro de apetências processuais.
Finalmente deverá discorrer-se sobre o diversificado leque dos motivos decorativos do Bordado de Tibaldinho, havendo a
distinguir uma acentuada eleição dos elementos em arco, tanto ao nível miniatural dos recortes (a cheio) como ao nível das
cercaduras (em abertos) de cada tema, quer eles formem círculos, espirais, simples arcos, arcos duplos ou serpenteados. Estas
formas geométricas ou geometrizantes incluem-se no vocabulário neoclássico tal como os laços, as estrelas, as rosetas e as
rosáceas quer sejam abertos, em crivo ou dispostos de forma radiante. Os motivos vegetalistas, florais, frutíferos e zoológicos
surgem planificados e esquematizados, executados sempre em transparência e na alternância entre cheio e aberto, de
modo a definir com precisão e organizadamente os distintos motivos incluídos em cada peça. As palmetas lineares, as
margaridas, os fins de pérolas e as correntes de ondas correspondem também ao citado vocabulário neoclássico o que perfila a
intemporalidade do gosto no Bordado de Tibaldinho. As coroas, os corações e a sobrecarga ornamental existente nalgumas das
espécies vêm caracterizar a introdução do gosto romântico que atende aos sinais evocativos e ao valor do ornamento como
factor constituinte dos objectos relativos a este período histórico. No domínio da estrutura das composições, esta tem uma
base simples baseada em rectângulos e círculos, onde se inscrevem em paralelas ou em segmentos de círculo os motivos que normalmente aparecem alternadamente. A repetição também ocorre, tendo sempre um eixo em cruz que orienta o motivo para a
direita e para a esquerda, para cima e para baixo. Os ornamentos soltos raramente aparecem isolados e disseminados,
contendo-se sempre agrupadamente, quer no motivo central, quer nas variantes binárias ou quaternárias do mesmo quer ainda
em barras singelas ou paralelas.
De uma forma geral, a aparência do Bordado de Tibaldinho revela alguma ingenuidade, podendo classificar-se como um bordado
discreto, mas não pobre, em que dominam as gramáticas neoclássica e romântica, com especial incidência sobre a primeira. A
expressão desta arte têxtil revela uma forte predominância dos eixos simétricos suavizados pelos ornamentos que, de alguma
forma, velam uma codificação estrutural sem grande precisão, o que lhes confere um valor muito pessoal de iniciativa
artesanal.
A simplicidade constitui quiçá a grande qualidade deste bordado que sobreviveu quase incólume até aos dias de hoje. Convém
ainda referir que o notável sentido do ritmo confere às peças de Tibaldinho um apreciável movimento encadeado que lhes dá
uma elegância e riqueza próprias coadjuvada pela estilização das composições que decoram o espaço têxtil. O realismo do
desenho corresponde a uma interpretação local em que se desprende um acentuado bucolismo e uma vertente lírica patente nas
esquematizadas grinaldas de laçarias designadas no princípio do século XIX como laços do amor.
A interpretação executada pelas bordadeiras de Alcafache faz um rappel destas origens artísticas recriando, reformulando e até reapelidando os motivos eruditos atraz mencionados, o que não deixa de ser assinalável. Deste modo, ao assimilarem a proveniência
original, vêm demonstrando uma interessante capacidade de iniciativa e um gosto em difundir os padrões e os temas preferidos
pelas suas antepassadas numa cadeia cultural que privilegia o percurso sobre a temporalidade e a permanência sobre a mudança.
Restará salientar que o gregarismo que une esta produção singular, geração após geração, faz manter incólume o objectivo de continuar
a ter significado bordar similarmente, juntando os talentos comuns de cada uma e de todas as bordadeiras para expressarem a sua
própria e específica identidade cultural.
Madalena Braz Teixeira
Directora do Museu Nacional do Traje
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