Follies ingleses e brasileiros

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Follies ingleses e brasileiros
Follies ingleses e brasileiros
WJ Manso de Almeida
Muitos ingleses afirmam, com certo orgulho, que o seu país exibe o maior
número de follies por metro quadrado – ou por jardas quadradas, conforme
preferem medir. Essa densidade e a própria designação escolhida parecem
conferir indiscutível identidade britânica ao folly.
Trata-se de uma estrutura física (uma torre, uma coluna, uma fachada
inacabada, etc.), geralmente construída em alvenaria, a par de possíveis
complementos feitos de madeira, de ferro e de outros materiais, erigida
apensivamente a um jardim, ou no ambiente de um parque ou, até mesmo
aleatoriamente, num sítio campestre ou, ainda, nas proximidades de algum
aglomerado urbano, entre tantos outros lugares que possam ser julgados
convenientes para hospedá-la.
Usualmente, o propósito da sua construção é indefinido, e essa indefinição de
propósitos seria um dos elementos característicos do verdadeiro folly, na
opinião de alguns puristas ingleses. Ademais, quase sempre essa estrutura
assume uma aparência inusitada ou se encontra em local inesperado. Ou seja,
tratar-se-ia de uma brincadeira, uma fantasia, una stravaganza, une folie e,
como tal, não precisa e nem deve atender quer a ditames tradicionais quer a
objetivos concretos. Não obstante, quase sempre se descobre que esse ou
aquele folly tem, ou parece ter, ou parece ter tido uma destinação específica ou
uma função bem definida. Quem sabe, trata-se de uma simples peça de
decoração do jardim? Talvez venha a ser uma evocação do passado. Ou um
testemunho que se pretende perenizar? Uma atalaia? Um simples mirante? Um
abrigo, um refúgio para o imprevisto? Anúncio das proximidades de um lugar
determinado? Aviso quanto aos limites de dadas terras particulares?
Em alguns casos, a aparência ou forma física da estrutura denunciaria ou
sugeriria o seu propósito. Por exemplo, uma torre de alvenaria construída em
campo aberto. A sua presença traz à lembrança a visão mais ampla das
redondezas, que os seus cimos devem proporcionar. A possibilidade de se
contemplar a paisagem, de se observar, à distância e com antecedência, a
aproximação de forasteiros ou de visitas aguardadas. Notícias dão conta de
que o folly erguido por Lord Berners, em 1935, junto ao povoado de Farington,
nas proximidades de Oxford, constitui-se de uma torre feita de pedra e tijolos,
dotada de uma escada interna para acesso ao topo dos seus 46 metros de
altura. Lá de cima, dizem as notícias, descortina-se vistas fantásticas: para o
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norte, os campos, desde o vale do Tâmisa, e, no sentido sul, os declives
montanhosos dos downs de Berkshire. Todavia, proporcionar essa
possibilidade de apreciação da beleza campestre não teria constado como
objetivo da sua construção. Quando da sua inauguração, Lord Berners teria
dito que tal estrutura não se destinava a qualquer uso. Eis, pois, a sutileza da
significação de um folly: não fora feito com qualquer propósito utilitário, embora
hoje sirva de mirante para se admirar a paisagem ao redor.
Mas, essa questão de um folly ter ou não ter função utilitária, não parece estar
bem assentada. No século XVII, segundo dizem alguns entendidos, os follies
foram usados nas propriedades rurais inglesas para avisar que o viajante
estava passando por terras particulares ou ingressando nos seus domínios.
Anunciavam, muitas vezes, as proximidades de um castelo, de um hall, de uma
country house. Não se confundiam, portanto, com o portal ou gate do castelo.
Em variadas circunstâncias, essas propriedades da nobreza deram origem a
povoados e cidades, que também passaram a adotar follies para anunciar os
seus limites e a sua vizinhança.
No século XIX, os follies tornaram-se muito comuns na Inglaterra, conquanto
grande número dessas construções inglesas data dessa época. No mesmo
período, paisagistas de outros países europeus, incorporando às suas
concepções elementos do então denominado jardim inglês ou natural park,
passaram a adotar o folly como elemento de composição estética ou de
decoração complementar das suas criações. A partir de então, os templetos, as
gloriettes e os pavilhões tornaram-se encontradiços nos parques e jardins
públicos, vindo marcar presença até mesmo no Brasil. Os pequenos templos,
carregados de pseudo-nostalgias da antiguidade greco-romana, guardando a
figura de uma divindade desconhecida e jamais reverenciada, e os pavilhões,
destinados a caçadores imaginários de caças inexistentes, serviam a coisa
alguma, senão à extravagância decorativa. Auguste Glaziou, trazendo as idéias
mais atualizadas da Europa dos oitocentos, dotou o Parque São Clemente, da
cidade fluminense de Nova Friburgo, de algumas dessas peças simpáticas e
intrigantes. E, já na virada para o século XX, o Parque Municipal de Belo
Horizonte, cidade que então se construía para capital das alterosas, incluiu um
bonito templeto circundado pelas águas serenas de um lago de margens
verdejantes.
A historiografia aponta que o jardim é uma concepção originária da Pérsia
antiga. Caracterizara-se, então, pela presença de estruturas artificialmente
construídas (muros, plataformas, lagos, abrigos), vindo a influenciar a criação
paisagística noutros países da alta antiguidade. Os Jardins Suspensos da
Babilônia seriam de concepção persa, segundo opiniões, assim como, nos
tempos mais recentes, os jardins de acesso ao Taj Mahal, na Índia. A
construção, como essência ou como complemento desses recantos artificiais,
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vem de longe, portanto. E a sua presença nos parques e jardins, sob a forma
de follies, teria raízes muito velhas, como se vê. Todavia, parece ser difícil
negar o reconhecimento de que os ingleses admiram e prezam o folly, de um
modo muito particular. Prezam, especialmente, a própria idéia do que
consideram ser um folly, além de se orgulharem do fato de disporem de mais
follies por metro quadrado que outros povos – tal como aponta a respeitável
The Folly Fellowship, cujo site merece uma visita (www.follies.org.uk/).
Não têm o monopólio dessa figura arquitetônica, porém. E não parecem ter
sido os propagadores da idéia de se utilizá-la numa composição paisagística.
Até mesmo porque, para os puristas ingleses, o folly existe por si só. A sua
existência não requer complementos e tampouco se destina a servir de
complemento. Em terras brasileiras, talvez os franceses tenham sido os
responsáveis pela sua introdução, particularmente quando se trata de parques
públicos e de jardins dos tempos do Império. Mas, essa influência estrangeira
não se aplicaria, quando se trata de ambientes rurais e aglomerados urbanos
do interior do país. Em tal caso, deve-se aventar a hipótese da ocorrência de
uma criação autóctone, senão derivada de conhecimento atávico.
A par dos templetos e dos pavilhões, os quais teriam vindo com os primeiros
paisagistas franceses ou aqui adotados por influência francesa, há exemplos
de mirantes, arcos, portais, figuras zoomórficas e relíquias de construções que
lembram a idéia fundamental de um folly. Evidentemente, aqui se trata de um
contexto cultural muito próprio, diverso por excelência; mas, também a idéia
francesa de um folly é uma interpretação dos gauleses modernos e de
expressão muito mais recatada que aquela das criações britânicas. No Brasil, a
construção dos follies não parece evoluir de uma concepção abstrata
organizada e adotada pela sua comunidade. Ergue-se uma extravagância, um
embelezamento, uma brincadeira, uma decoração, um enfeite que, à vista de
valores culturais exógenos, poderia ser considerada um folly. Mas, aqui, não se
reconhece essa abstração como parte do imaginário brasileiro. Ou seja, tem-se
um fato concreto, enquanto ainda está por ser formulada, a sua correspondente
teórica.
Assim, neste contexto expositivo e de propostas, tomou-se de empréstimo aos
ingleses a palavra folly e a sua respectiva interpretação cultural, para se
identificar e designar manifestações culturais semelhantes encontradas no
Brasil. Possivelmente, um estudo mais cuidadoso dessas manifestações
brasileiras viesse aclarar as características que lhes são comuns e lhes dar
uma interpretação definitiva, firmada nos valores culturais nacionais. Contudo,
inserindo-se o país no âmbito mais geral da cultura do Ocidente, não parece
despropositado o uso da interpretação inglesa de um folly, para o exame
daquelas manifestações culturais brasileiras que assumem aspecto
semelhante. Particularmente, naqueles casos em que sobressai a
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extravagância, ou o contraste com o esperado, ou com o que é comumente
aceito, enfim, quando é patente a não obediência à estética da proporção.
Argumenta-se, desse modo, quanto à existência de certa tautologia entre folly,
extravagância, fantasia, enfeite ou brincadeira, na designação de dadas
manifestações culturais que se apresentam sob a forma de estruturas físicas
construídas.
Algumas observações ilustram essa hipótese da ocorrência de follies
brasileiros. No ambiente rural brasileiro, a porteira da fazenda parece ser uma
instituição nacional. Anuncia a entrada principal da sede da propriedade e
estabelece um limite ao livre trânsito e o controle do acesso. Mas, em certos
casos, esse estabelecimento de limite e controle acha-se dissociado do
anúncio do início de um território de domínio privado. A porteira figura agora
como se fosse um marco de distinção, um portal-monumento, muitas vezes
guarnecido de decorações e elementos de uma heráldica gentia, enquanto o
limite do trânsito e controle do acesso é exercido por um portão ou cancela
auxiliar, lateral ou distanciado. Não parecem ser corriqueiros tais casos.
Contudo, não são raros no interior do Brasil. Um exemplo é dado pela porteira
de uma moderna propriedade agrícola situada nas proximidades de Brasília, no
Distrito Federal. O portal antigo foi preservado. A sua face frontal exibe dois
pilares laterais de porte médio, a cada um dos quais se adoça um muro em
curva prolongada de altura decrescente, cujo arco retrocede ligeira e
paulatinamente, terminando num pilar de altura secundária. Tingida de rosa
forte, a estrutura mostra uma pinha estilizada no cimo de cada pilar. A
proporcionalidade e a simplicidade conferem certa presença à construção e
revelam o seu caráter de figura monumental. As funções comuns e utilitárias do
controle do acesso são realizadas com as modernas e automatizadas cancelas
laterais. Eis, pois, uma rediviva figura de um folly inglês do século XVII, na sua
versão tropical.
Outro exemplo é dado pelo extravagante portal de uma fazenda no território de
Verdelândia, no norte de Minas. As colunas laterais da porteira são constituídas
de dois antigos troncos de árvore, mostrando-se extraordinariamente altas e
sustentando uma pesada travessa de madeira no ápice. De um e do outro lado
dessa estrutura, segue um alambrado de pequena extensão, que vem enfatizar
a desproporção da estrutura central, sem jamais significar efetivo impedimento
à movimentação de entradas e saídas. Tudo isso isolado num amplíssimo
campo de pastagem, de um chapadão alto e arenoso. Na sua rusticidade, um
verdadeiro arco triunfal! Eis a fantasia. Eis a característica ausência de função
utilitária de um folly!
Conforme lembrado, inspirando-se nos follies das propriedades rurais antigas,
também recebeu tratamento especial o portal ou a via de acesso ao povoado
inglês. Aqui, cabe alertar quanto à diferença entre os follies e as portas
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fortificadas que ainda eram comuns na Europa daquela época. O folly apenas
anuncia, proclama; não defende nem impede. No Brasil, assim como em tantos
outros países, uma placa ou um marco na rodovia indica ao transeunte a sua
aproximação de um povoado ou de uma cidade. Na maioria das vezes, tais
indicações são de caráter muito simplificado ou seguem dada padronização
estatal. Noutras, distingue-se certo cuidado, certa decoração propositada, certa
ênfase na proclamação do anúncio. Uma brincadeira, pois que revela uma
elaboração dispensável, não essencial, embora possa vir a ser simpática, ou
destinar-se a acrescer os atrativos turísticos do lugar. Um exemplo encontra-se
no trevo de acesso à cidade de Perdizes: duas enormes estruturas de cerâmica
policromada, figurando um típico casal de perdigões do noroeste de Minas,
anunciam ao visitante a sua chegada àquele centro urbano.
Na histórica e pequena cidade goiana de Cocalzinho, a fachada de uma antiga
igreja tem sido resguardada. Ao que parece, por simples acaso. O pano branco
da fachada desse resto de construção, embora muito manchado, com o seu
largo portal no centro e o campanário vazio no vértice do frontão, não deixa de
ser evocativo do passado. De um passado qualquer, desconhecido do
forasteiro. Tivesse ocorrido àquela comunidade a ideia, clara, de preservar
aquela relíquia de cunho religioso, dando-lhe melhor aparência e cuidados, terse-ia, aí, um novo correspondente dos follies ingleses- tal como aquele que se
encontra num parque dos arredores de York.
A cúpula do hall de entrada da mansão de Dunmore Park, na Escócia, é
considerada o mais antigo folly hoje existente nas ilhas britânicas. Distingue-se
pelo fato de se apresentar na figura de um enorme abacaxi – e, por esse
motivo, a construção é conhecida pelo epíteto de The Dunmore Pineapple.
Essa excentricidade encontra a sua correspondente brasileira na fantasiosa
fachada de uma residência de Carinhanha, no sul da Bahia. Aqui, o seu
proprietário decorou a platibanda do edifício com a efígie de um elegante
bigodudo de gravata borboleta, acariciada por dois pássaros marinhos e dois
peixes estranhíssimos.
Muitos outros exemplos de follies, ou dessas extravagâncias, são encontrados
no território brasileiro, os quais, na sua originalidade e na sua inspiração
autóctone, constituiriam uma expressão ainda pouco estudada das criações
espontâneas da nossa gente.
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Ilustrações
a) A criação autóctone no ambiente rural:
Redondezas de Brasília, DF.
Verdelândia, Minas.
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b) Os pavilhões de Glaziou em Nova Friburgo:
c) Evocação do passado:
York, Inglaterra
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d) O zoomorfísmo para anunciar propriedades e cidades:
Jaraguá, Goiás.
Perdizes, Minas.
e) Extravagância na decoração da platibanda:
Carinhanha, Bahia.
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