la nuit de la verité: possibilidades de um cinema pan - SIALA

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la nuit de la verité: possibilidades de um cinema pan - SIALA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
LA NUIT DE LA VERITÉ: POSSIBILIDADES DE UM CINEMA PANAFRICANO EM FANTA RÉGINA NACRO.
Lincoln Nascimento Cunha Júnior1
Marlúcia Mendes da Rocha2
Nesse trabalho nos propomos analisar possíveis características pan-africanas no longametragem da cineasta de Burkina Faso, Fanta Régina Nacro, La Nuit de la Verité (2004). A partir de
algumas discussões sobre os cinemas produzidos no continente africano, buscamos não classificar o
filme de Nacro como pertencente a essa ou aquela corrente teórico-ideológica, mas tentar entender
aspectos do filme que podem ser caracterizados, ou não, dentro da questão pan-africana.
O pan-africanismo foi um movimento criado por intelectuais da diáspora negro-africana no
início do século XX. As ideias pan-africanistas já existiam no século anterior, mas foi em 1900,
época do I Congresso Pan-africano, que o movimento oficializou esse nome. Seus idealizadores
partiram do desejo de recuperar os laços com o continente do qual seus antepassados foram
expatriados, sequestrados e levados a outros continentes na condição de escravizados. Entre suas
ideias, a questão de que todos os negros que estavam espalhados pelos continentes faziam parte do
povo africano. A África era, portanto, a pátria de todos os negros, tanto aqueles que estavam no
continente africano, quanto daqueles da diáspora. “O Pan-africanismo trouxe a percepção de que a
África tornou-se uma comunidade global” 3 (Tradução nossa) 4. Cresce, portanto, a necessidade de
religação com o continente africano, bem como a intenção de retornar, homens e mulheres livres, ao
continente de seus antepassados.
Com o fim da escravidão nas Américas, principalmente do Norte, o sentimento de
repatriação tornava-se cada vez mais latente e intenso, fazendo proliferar vários movimentos negros
que tinham como principal reivindicação o retorno às terras africanas. No Brasil, em Cuba e nos
EUA, milhares de pessoas retornaram à África, segundo Tony Martin, 2005. Além desse ideal, o
pan-africanismo tornou-se uma rede de promoção de solidariedade entre os sujeitos da diáspora e do
continente. Dessa forma, surgiram movimentos pela libertação da África e seus povos. “À medida
1
Mestrando. UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: [email protected].
Doutora em Comunicação e Semiótica. UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail:
[email protected].
3
TONY MARTIN. Pan-Africanism, 1441 to the 21st Century: Building on the Vision of Our Ancestors. 2005.
Disponível em: < http://www.panafricanperspective.com/ au_intellectuals.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.
4
No original: “Pan-Africanism brought the realization that Africa had become a global community”. Trata-se de
um artigo corrido, sem marcação de página.
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em que o século XX vai avançando, o empreendimento Pan-africano tornou-se, cada vez mais, uma
troca de duas vias, de pessoas e de ideias”5 (Tradução nossa)6.
Em 1900, ocorreu a primeira Conferência Pan-africana, em Londres. Algumas
personalidades principais do advento do ideal e de seu fortalecimento no século XX são William
E.B. Du Bois, Marcus Garvey, Aimé Cesaire, Frantz Fanon, entre outros; nas lutas pelas
independências, temos Lèopold Sedar Senghor, do Senegal, Kwame Nkrumah de Gana, que,
segundo Joseph Ki-Zerbo, “teve esta idéia luminosa – Africa must unite”7; e Amílcar Cabral, da
Guiné-Bissau. Dentre os ideais pan-africanistas encontrava-se a união dos povos e territórios nas
lutas pelas independências e na reestruturação do continente. No entanto, as pressões internacionais,
os processos de independências, bem como os golpes de Estado apoiados e planejados, também,
pelos colonizadores, não permitiram que as ideias pan-africanistas fossem postas em prática por
muito tempo e em muitos países.
Atualmente, as concepções pan-africanas ainda estão presentes nos ideais de muitos
intelectuais africanos como, por exemplo, Ki-Zerbo, historiador e político nascido em Burkina Faso,
falecido em dezembro de 2006. Sobre o ideal pan-africanista, Ki-Zerbo afirma que:
Há uma questão da unidade e da fragmentação da África. Minha idéia, como você
sabe, é que a África deve constituir-se através da integração, que não existe
verdadeiramente hoje. É pelo seu ‘ser’ que a África poderá realmente vir a tê-la;
mas é preciso um ter autêntico, não um ter de esmola, de mendicidade. Trata-se do
problema da identidade e do papel a desempenhar no mundo. Sem identidade,
somos um objeto da história, um instrumento utilizado pelos outros, um utensílio.8
Benjamin Sam Kilson, atual diretor executivo do Centro Memorial DuBois de Cultura Panafricana, em Accra, capital de Gana, afirma9 que a partir da cooperação pan-africana, o continente
colocará em prática suas possibilidades de resolver seus problemas. Para Kilson, o principal
objetivo do pan-africanismo seria a ideia de que os países precisavam urgentemente entrar num
acordo de cooperação mútua, na qual cada país, com suas riquezas, ajudaria aqueles que não as têm,
fazendo com que, assim, todos pudessem se reerguer dos anos de dominação e exploração, aspectos
do colonialismo europeu. Dessa forma, diminuir-se-iam as desigualdades.
5
MARTIN, op. cit.
No original: “As the nineteenth century wore on the Pan-African enterprise increasingly became a two-way
exchange of persons and ideas”.
7
JOSEPH KI-ZERBO. Para quando a África?: Entrevista com René Holenstein. Tradução Carlos Aboim de
Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2009, p. 17.
8
Ibid., p. 16.
9
Em entrevista concedida ao site < http://www.afreaka.com.br/notas/centro-dubois-promovendo-o-panafricanismo-mundo-contemporaneo/>. Acesso em: 12 ago. 2014.
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Se no campo da política, portanto, o ideal pan-africanista está longe de ser uma realidade,
nas artes esteve sempre presente. Veremos, então, as possibilidades da presença do ideal panafricanista nos cinemas africanos.
Iniciamos a investigação com a entrevista de Cheick Oumar Sissoko10, cineasta do Mali e
um dos mais premiados do continente africano, considerando as características de sua filmografia;
em seguida, abordaremos alguns teóricos que percebem características comuns entre os filmes
produzidos em diversos países do continente; tentaremos compreender o cinema enquanto espaço
de atuação e presença do pan-africanismo; e, por fim, levantaremos algumas questões sobre o filme
La Nuit de la Verité, da burkinabê Fanta R. Nacro.
Ainda que seja complicado falar em um cinema continental ou, ainda, de cinemas nacionais,
como nos adverte Mahomed Bamba (2007), nosso intuito é, baseando-nos em alguns teóricos e
críticos de cinema africanos, entender e encontrar características similares ou comuns entre a
produção cinematográfica, tanto da África negra, quanto do Magreb, por exemplo. No entanto,
tendo consciência do caminho que iremos trilhar, esse trabalho tem a pretensão, apenas, de exprimir
uma ideia germinal daquilo que poderemos desenvolver no decorrer da pesquisa.
Na entrevista de Sissoko, um dos aspectos abordados pelo cineasta é a necessidade do
cinema reafirmar sua importância para a sociedade africana. Para o diretor, o cinema tem um papel
fundamental na conscientização da sociedade no que se refere aos direitos e deveres dos cidadãos,
bem como sua afirmação perante às demais comunidades e a si próprio. Na entrevista supracitada,
Sissoko nos afirma que, “o cinema tem que criar uma mentalidade, tem que permitir o
desenvolvimento da consciência”, pois, “tem essa capacidade pedagógica de abrir os olhos e de
fazer com que as pessoas entendam o papel da África na humanidade” 11. Assim, o cinema africano
como um todo precisaria cada vez mais se autoafirmar, provocando, por conseguinte, a
autoafirmação da sociedade e de seus indivíduos em particular. O diretor, por sua vez, tem o papel
de trabalhar nas telas as questões particulares e sociais, uma vez que, de acordo com Ngugi Wa
Thiong’o, “a experiência interna, não importando quão íntima e pessoal seja, não é independente da
esfera pública, da vida pública e política”12.
10
Entrevista concedida ao site afreaka.com, em janeiro de 2014, Bamako, Mali. Disponível em:
< http://www.afreaka.com.br/ cheick-oumar-sissoko-e-o-cinema-da-verdade/>. Acesso em: 12 jun. 2014.
11
Ibid.
12
NGUGI WA THIONG’O. A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema
africano? In: MELEIRO, Alessandra (Org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado. São Paulo: Escrituras,
2007. p. 25-34. (Coleção Cinema no mundo; v. 1), p. 29.
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Indagado sobre como escolheu os temas para seus filmes, Sissoko afirmou que estes
partiram de problemas sociais presentes em seu país, fazendo parte, por um lado, de sua experiência
de vida; e, por outro, da realidade de tantos outros países africanos ajudando, assim, o
posicionamento crítico do povo do Mali acerca das decisões sociais.
Quando questionado a respeito do contexto do cinema africano atual, o diretor afirma a
importância do Cinema da Verdade, que precisa continuar, ganhar mais força, uma vez que os
problemas fundamentais do continente ainda não foram resolvidos, devendo ser encarados pela
sociedade na tentativa de provocar debates, bem como a busca de soluções. Nessa direção, o
Cinema da Verdade, aquele que esteja engajado com as questões sociais e culturais, poderia, quem
sabe, se caracterizar também enquanto cinema pan-africanista.
Os problemas de uma comunidade não estão limitados apenas a ela, mas se estendem sobre
vários estados africanos; então, o cinema militante continua sendo imprescindível no continente. A
ideia do pan-africanismo, ainda de acordo com Sissoko, deveria voltar a ser fortalecido, uma vez
que o cinema tem as armas necessárias para empreender um combate pan-africanista diante dos
aspectos da colonização que continuam presentes. Esse combate também deve se dar diante das
questões políticas, civis e de identidade presentes em todo o território. A afirmação feita por Guy
Hannebelle acerca dos cineastas argelinos, entre as décadas de 1960 e 1970, exemplifica essa
mesma questão entre estes cineastas: “Repetiam que a conquista da independência nacional não
significava chegar ao fim do caminho, que era preciso avançar até a libertação social e
econômica”13.
Para essa libertação, se faz necessária a descolonização da mente, como afirma Thiong’o
(2007). Os cineastas africanos precisariam continuar criando e produzindo a partir de suas
experiências e das vivências dos povos no que diz respeito à cultura e relações políticas, por
exemplo. Essa criação deve ser desenvolvida com os olhares dos sujeitos africanos (claro,
considerando aqui as particularidades de cada um) que, ao mesmo tempo em que olha para si
mesmo, enxerga a realidade do continente e de seus povos. De acordo com nosso entendimento, a
descolonização da mente passa pelo campo do pan-africanismo no sentido de tratar da cultura,
política, economia e outras áreas da vida a partir do olhar afrocentrado 14, libertando-se daquelas
referências ocidentais que acabam subjugando o continente. Após analisar os temas que
13
GUY HENNEBELLE. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Tradução Paulo Vidal e Julieta V. Medeiros.
Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978. (Coleção Cinema; v. 6), p. 150.
14
A esse respeito ver: Elisa Larkin Nascimento (org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica
inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira, vol. 4).
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circunscrevem os cinemas da África negra15, Hannebelle constata que: “os cinemas da África negra
estão próximos da realidade concreta que vive a grande massa de espectadores”16.
Mesmo que seja imprescindível a continuidade do movimento de descolonização, ainda
encontra-se presente um fator que pode ser considerado como inibidor de uma total independência:
a falta de políticas públicas voltadas para o setor cinematográfico. Esse cenário que leva à
dependência de financiamentos cedidos por governos europeus, principalmente o francês, não
permite uma efetiva descolonização dos países africanos. Como afirma Paulo Soares:
Num e noutro caso, das coproduções e do incremento de políticas públicas, há que
se reconhecer que o caráter autônomo dos filmes dependerá da efetiva liberdade,
econômica e política, para que o cineasta possa melhor se lançar à aventura
experimental. A referência aos novos modos de dizer o não-dito, de assumir o lugar
da fala pós-colonial, depende disso. Vencer o dirigismo econômico empresarial ou
político estatal torna-se um grande desafio para o cinema periférico em contexto
global17
Ainda que seja, nesse caso, um cinema produzido por africanos, muitas vezes o cineasta está
sob o julgo do financiador, que sempre espera encontrar nesses filmes os aspectos voltados para
uma prática cultural pré-colonial ou mítica, além de questões que fortaleçam os ideais ocidentais em
relação aos povos da África.
Tomando a França como exemplo, Roy Armes (2014) nos apresenta as condições dos
financiamentos franceses no cinema africano: “muitos filmes africanos atuais resultam, de fato, da
política cultural francesa”, que, “Apesar da boa intenção, isso resultou na produção de filmes de
gueto”18. A política cinematográfica francesa, em parte em resposta ao cinema de Hollywood,
acabou por incentivar a produção de filmes com pouca expressão dentro do continente africano,
uma vez que não representavam a realidade dos povos envolvidos, mas sim aspectos esperados pelo
público europeu. Segundo Raphaël Millet (apud Armes, 2014, p. 31), “não é a política de apoio
francesa que ajuda a cinematografia do sul, mas é esta que ajuda a política cultural francesa”. Daí o
15
HANNEBELLE, op. cit., p. 156, afirma que as temáticas e estilo que são encontrados nos filmes da África
negra são, geralmente os seguinte: “1) A luta contra o apartheide sul-africano e contra o ultra-colonialismo português
(...). 2) A antiga resistência à agressão colonial (...). 3) As doenças infantis da independência (...). 4) O futuro
decepcionante (...). 5) O novo tráfico negro (...). 6) A subordinação da mulher (...)”. Análise também desenvolvida por
Ferid Boughedir, 2007.
16
Ibid., p. 156.
17
PAULO M. F. SOARES. Um cinema à margem. In: Estudos de Sociologia: revista do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPE, Pernambuco, v. 15, n. 2, p. 207-227, 2009, p. 214.
18
ROY ARMES. O cinema africano: uma tentativa de definição. In: FERREIRA, C. Overhoff (Org.). África: um
continente no cinema. São Paulo: Fap-Unifesp, 2014, p. 29.
5
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cinema africano continuar desenvolvendo também um cinema representante das realidades africanas
e não da realidade forjada e esperada pelos ocidentais19.
Thiong’o (2007), indo além do cinema militante ou pedagógico, afirma que ele (o cinema)
deve ser feito de forma a dar prazer àquele que assiste ao filme, uma vez que é o cinema uma arte e,
como toda arte, tem um papel fundamental na sociedade na qual está inserida. A arte deve
representar o artista, sua cultura e seu povo; o cinema deve mostrar as belezas e os problemas sem
cair no estereótipo construído pelo ocidente. Estereótipo esse, por exemplo, de que a África é uma
terra de pessoas atrasadas e que se resume à sua ligação com a natureza e seus fenômenos, ou a
práticas religiosas e mágicas que influenciam na economia, educação e no modo de vida em geral,
ou ainda a safaris, doenças e fome.
Esse estereótipo foi exposto de forma absurdamente clara e direta pelo ex-presidente da
França, Nicola Sarcozy em 2007, na capital do Senegal, Dakar. Na Universidade Cheikh Anta Diop,
Sarkozy afirmou que:
O drama da África é que o homem africano não entrou o suficiente na história. O
camponês africano que depois de milênios, vive ao sabor das estações, em que o
ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço
do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas
palavras. Nesse imaginário, em que tudo sempre recomeça, não há lugar nem para
a aventura humana, nem para a ideia de progresso. Nesse universo em que a
natureza tudo comanda, o homem escapa à angústia da história que pinça o homem
moderno20.
Uma das questões curiosas desse discurso regado por inconsistências históricas é,
justamente, ter sido pronunciado na universidade que leva o nome do filósofo, cientista e historiador
que está entre os mais importantes do continente. Acreditamos que, seguindo a ideia de Thiong’o
(2007), o cinema tem as possibilidades de tornar visíveis esses aspectos tão característicos da
persistente colonização da mente que atua de forma rasteira, mas que, no entanto, tem
consequências sérias para o continente africano; pois, “A arte cinematográfica tem o dever de
desmascarar a descolonização parcial da maioria dos estados na África”21.
Entre as consequências da descolonização parcial, podemos citar a invisibilidade histórica,
a imposição do pensamento ocidental, a inferiorização dos povos e, ainda, a dissimulação das
19
Por outro lado, devemos considerar a seguinte questão: por qual motivo ainda classificamos o cinema do
continente africano como Cinema Africano? Não deveríamos, por outro lado, classificar de acordo com sua temática?
No entanto, não temos condições de desenvolver essa discussão no trabalho presente.
20
Discurso disponível em <<www.youtube.com>>, sob o título « Discurso de Dakar (2007) », com legenda em
português. Acesso em: 01 jun. 2014.
21
THIONG’O, op. cit., p. 31.
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causas dos problemas continentais. No decorrer de seu discurso, o ex-presidente francês afirma que
a colonização não é responsável pelo genocídio existente naquele continente, muito menos pelos
ditadores, pela corrupção, pela prevaricação, pelos desperdícios e pela poluição. De certo que não
podemos isentar os sujeitos e grupos africanos que perpetuam e sustentam tais ações, no entanto,
também não podemos excluir o colonizador de ter provocado a disseminação das práticas acima
descritas.
Em todo seu discurso para os jovens estudantes daquela universidade, Sarcozy aborda as
tradições, a arte, a culinária, o pensamento mítico, a tradição oral como únicas heranças do povo
africano; deixando de lado o conhecimento científico, botânico, medicinal, astronômico, filosófico e
arquitetônico, por exemplo. E vai mais além ao afirmar que aqueles jovens têm dentro de si duas
identidades, uma africana e outra europeia, sendo a europeia responsável pelo apelo da liberdade, da
emancipação, da justiça e da igualdade. Os três pilares da Revolução Francesa não poderiam existir,
então, fora do “Velho Mundo” sem que seus agentes os levassem às terras bárbaras, salvando-as do
animalesco, da falta de organização e do limbo do atraso ideológico.
Outro exemplo da colonização da mente é abordado por Ki-Zerbo, ao falar sobre a educação
escolar que recebera na infância: “Ainda pequenos, tínhamos de utilizar um livro de História
francês que começa assim: ‘Nossos antepassados, os gauleses...’ Assim, no início da formação,
houve deformação”22.
De acordo com Mahomed Bamba (2008),
O engajamento político e panafricanista do cineasta africano não se traduz apenas
por uma volta incessante e esquizofrênico para o passado, mas o situa também no
presente. Nos filmes africanos os temas fortes de atualidade são abordados sem
complacência. O espaço fílmico funciona de maneira genérica e simbólica. A
representação de um fato e de uma realidade sócio-política em um determinado
país não vale apenas por este país, ela concerne simbolicamente a todos os países
africanos23.
Os cinemas que apresentam características pan-africanas oferecem as possibilidades de uma
arte que traz à tona os problemas do continente, mobilizando a população em busca de soluções;
mas também oferece um sentimento de pertencimento, de reconhecimento e autoafirmação dos
povos e de suas identidades. As temáticas que são desenvolvidas por muitos cineastas africanos
22
KI-ZERBO, op. cit., p. 14.
MAHOMED BAMBA. Os cinemas africanos: entre construção identitária nacional e sonho panafricanista.
2008, p. 6. Disponível em: <malembemalembe.ceart.udesc.br/textos/bamba. doc>.
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sempre envolvem questões voltadas às identidades nacionais e à realidade política e cultural.
Vejamos alguns exemplos: os governos ditatoriais e corruptos, como em Guimba: um tirano, uma
época (1995), de Sissoko; a situação degradante que muitas mulheres estão expostas, como em
Moolaadé (2004), de Ousmane Sembène; a oposição tradição e modernidade, como em Touki Bouki
(1973), de Djibril Diop Mambéty, ou em Keita! O legado do griot (1996), de Dany Kouyaté.
Encontramos filmes, no entanto, que saem dessas temáticas, como Dakan (1997), de
Mohamed Camara, que conta a história de dois jovens homossexuais e os conflitos que vivem por
conta do amor que sentem um pelo outro. Acredito que essa última questão, de longe, limita-se ao
continente negro, mas está presente no dia a dia de tantos jovens que sofrem o conflito de não se
adequarem à sociedade heteronormativa na qual estamos imersos.
Os limites territoriais dos estados africanos, como sabemos, foram impostos pelo
colonizador, muitas vezes dividindo o mesmo povo em territórios diferentes, ou reunindo povos
rivais em um mesmo Estado. Essas fronteiras, no que diz respeito ao cinema, não servem como
limitações; as histórias narradas são plurinacionais, pan-africanas. Pois, assim como, por um lado,
afirma Bamba (2007) que o cinema africano apresenta uma diversidade tanto nas temáticas quanto
nos territórios em que são filmados; Armes (2007), por seu turno, concorda com a ideia de que
cineastas de países como Burkina Fasso, Senegal, Argélia, entre outros, se aproximam entre si no
que diz respeito também às temáticas e a forma como são trabalhadas. Esses cineastas, segundo
Hennebelle, “não se contentam, porém, em refletir passivamente uma situação. Sentimos na maioria
dos autores, ao contrário, a vontade de atuar sobre a realidade, com a intenção de modificá-la”.24
Permitam-me ilustrar esse cenário com o filme Finzan (1989), de Cheick Oumar Sissoko.
Nele, deparamo-nos com um problema que diz respeito a vários países africanos, a excisão, a
mutilação genital sofrida pelas mulheres e, em um contexto mais amplo, também a violência moral
e intelectual que muitas delas sofrem; problema que não é, obviamente, restrito à África. Sobre essa
questão, a UNESCO, UNICEF, OMS e outas entidades lançaram uma declaração conjunta,
intitulada Eliminação da Mutilação Genital Feminina (2009)25, na qual informam que a prática da
excisão ainda é realizada em alguns países da Ásia, oriente médio, Américas e, predominantemente,
em várias regiões da África. Finzan, segundo informação do cineasta, presente na entrevista citada
no início desse trabalho, teve a intenção não apenas de mostrar o problema, mas de fazer germinar
nas consciências dos sujeitos a possibilidade de lidar com o assunto e resolvê-lo.
24
25
Hennebelle, op. cit., p. 157
In: http://www.who.int/eportuguese/publications/mutilacao.pdf
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Consideremos, agora, outro tema que, também, faz parte da realidade de tantos países da
maioria dos continentes: a guerra. O que podemos falar a respeito da experiência da guerra?
Provavelmente, um tema além do pan-africanismo e que atinge ou atingiu, em algum momento, a
maioria dos povos do mundo. É sobre essa experiência que a cineasta de Burkina Faso, Fanta
Régina Nacro desenvolve seu longa-metragem, La Nuit de la Verité, lançado em 2004. Após
passarem 10 anos em uma guerra sangrenta, os Nayaks, etnia do presidente, e os Bonandes, etnia
comandada pelo Coronel Theo reúnem-se com a proposta de selarem um acordo de paz. No entanto,
durante uma noite festiva na comunidade dos Bonandes, a experiência e os tormentos da guerra
assolarão os indivíduos de ambas as etnias. Como lidar com o trauma da perda cruel e desumana
provocada pela guerra?
La Nuit de La Verité se passa em um país fictício, pois não é indicado no filme um território
oficial. Esse aspecto torna a história sem fronteiras, sem limitações, sem nacionalidade. Em
entrevista concedida a Piter Scarlet26, Fanta Nacro fala de sua inspiração, sua intenção, bem como
sua experiência com o filme. Abordaremos aqui apenas alguns pontos da entrevista que se referem à
ideia de criar a história e sua expectativa com a película. Vale ressaltar que não é nossa intenção
fazer uma análise do filme no que diz respeito aos cenários, interpretações ou técnicas de filmagem;
mas, como um exercício inicial, tentar perceber o contexto geral e enredo de forma que nos
possibilite encontrar, se possível, características pan-africanas.
De acordo com a cineasta, após tomar conhecimento do fato de que mulheres na Iugoslávia,
durante a guerra, eram estupradas e tinham suas vaginas queimadas com ácido, voltou a refletir
sobre as barbaridades cometidas pelo ser humano. Ela não se conteve em conhecer aquele fato, mas
a angústia a fez procurar respostas sobre as causas que impulsionam as pessoas a se odiarem do dia
para a noite. Após assistir ao documentário sobre a Iugoslávia, vários episódios de guerra também
aconteceram na África, como o genocídio de Ruanda, por exemplo; daí sentiu a necessidade de falar
sobre a guerra, ou melhor, sobre a experiência da guerra ou, como diz a própria cineasta na
entrevista citada acima:
Muito rapidamente eu percebi que eu não poderia fazer um filme sobre a guerra,
mas sim sobre a fragilidade da paz, porque no momento em que eu estava
refletindo, havia também os tribunais de reconciliação em curso na África do Sul,
com pessoas a dizer para as mães de luto como eles mataram os seus filhos, mas
26
Entrevista concedida no período da exibição de La Nuit de la Verité nos Estados Unidos da América,
disponibilizada em 19 de maio de 2008, no site < https://www.youtube.com/watch?v=tHyrZjM0vSQ>. Acesso em: 11
ago. 2014.
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com um tal sentimento de desapego que eu tentei me colocar no lugar dessas mães
que estavam ouvindo aquilo. (Tradução nossa)
La Nuit de la Verité nos coloca de frente ao desejo mais perseguido pela humanidade, a paz;
porém, nos faz perceber quão frágil ela é. A personagem Edna, da etnia Nayak, interpretada pela
atriz Naky Sy Savane, sofre muito por ter perdido seu filho na guerra, assassinado pelos bonadês e,
obviamente, não se sente à vontade em festejar a paz com esse grupo. Verdades vêm à tona durante
o banquete e, junto a elas, o desejo de vingança, movido pela lembrança do filho alegre e pela
imagem da criança assassinada. A dor dessa mãe ilustra a dor dos povos que sofrem com a guerra.
Ela precisa permanecer forte, equilibrada, negando sua dor e seu desejo de vingança.
Até que ponto nós somos capazes de perdoar uma atrocidade como aquela que fora cometida
contra o filho de Edna? Como assegurar um acordo de paz, se as feridas ainda estão abertas? O que
fazer para sanar as diferenças e dar início a esse estado tão esperado por toda a humanidade? Essas
questões são jogadas ao expectador e ruminadas pelas personagens do filme que, além de ser
impulsionado pela memória da guerra, contém um aspecto fundamental da vida da cineasta.
Fanta Nacro, em sua entrevista, afirma que perdera seu tio, assassinado de maneira brutal.
Esse é único fato verdadeiro que faz parte do filme. Seu tio morreu em um acampamento militar da
mesma forma como morre o coronel Theo. Assim, é a experiência particular que se cruza às
experiências e situações dos povos, aproximando, então, de forma absurdamente verdadeira da
sociedade em geral. La Nuit de la Verité possibilita que todos aqueles que passaram pela
experiência da guerra ou que, ao menos, sejam humanos o suficiente para se compadecerem com tal
situação, sintam-se parte daquela história. Pois,
As experiências pessoais devem também ser vistas no contexto histórico em que se
desenvolvem. Escravidão, colonialismo, neocolonialismo, racismo e ditaduras são
partes inseparáveis da realidade africana e não podemos nunca ser seduzidos pelos
nossos financiadores a agirmos como se única realidade na África fosse a de nossos
anciãos sentados sob um baobá exsudando sabedoria, ou de elementos
sobrenaturais da vida africana.27
E, mais uma vez, vem à tona o papel do cinema e a possibilidade de considerar La Nuit de la
Verité um filme com elementos pan-africanos. No entanto, pode-se considerar também como um
trabalho que ultrapassa as fronteiras africanas; representando e, de certa maneira, denunciando as
angústias que se relacionam a todos os povos que experienciaram a guerra. Mais ainda, La Nuit de
27
THIONG’O, op. cit., p. 29.
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SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
la Verité é uma película dirigida por um olhar feminino, que narra a angústia de uma mãe que
perdera seu pequeno filho para uma guerra, que como toda guerra, desumana. Esse último aspecto
nos abre para novas investigações na continuação desse trabalho, como por exemplo, a
representação do feminino no FESPACO (Festival Pan-africano de Cinema e Televisão de
Ougadougou), cujo principal prêmio homenageia a princesa Yennenga28, demonstrando a
importância das mulheres na sociedade de Burkina Faso. Fanta Régina Nacro, é uma dessas
mulheres burkinabê que, neste filme, vêm representando a ótica do feminino no cinema do
continente africano, sobretudo no tocante ao sofrimento humano causado pelas desigualdades e
desumanidades provocadas, contraditoriamente, pela própria humanidade.
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Ancestors. 2005. Disponível em: < http://www.panafricanperspective.com/ au_intellectuals.html>.
Acesso em: 12 ago. 2014.
28
Yenenga, filha do rei de Na Nedega (por volta do século XI), foi uma grande guerreira muito importante na história
de Burkina Faso. Ver. História geral da África, IV: África do século XII ao XVI / editado por Djibril Tamsir Niane. –
2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010, cap. 9.
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cinema africano? Termo In: MELEIRO, A. (Org.). Cinema no mundo: indústria, política e
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