À conversa com José Francisco Costa

Transcrição

À conversa com José Francisco Costa
9
NÚMERO/ISSUE:
Inverno/Winter
Winter 2008
À
conversa
com
José Francisco
Costa
ainda/also:
Poesia, ficção, ensaio, crónica e fotografia
Homenagem ao escritor açoriano Dias de Melo (1925-2008)
Trabalhos em Português, Galego, Espanhol, Italiano e Inglês
Works in Portuguese, Galician, Spanish, Italian and English
Editorial
eduardo bettencourt
PINTO
www.seixoreview.com
O
número 9 da
Seixo review
surge após um hiato
de dois anos. Uma
Conselho Editorial
eternidade. Como
Aida Baptista
explicar tão prolonIvo Machado
gada ausência? Bom,
Jorge Arrimar
não é fácil. Havia,
Luísa Ribeiro
primeiro, que pensar
Manuela Marujo
num ensaio sobre o
Onésimo Teotónio Almeida
exercício de futiUrbano Bettencourt
lidades que inunZelimir Brala
dam o quotidiano
da vida moderna.
Depois no agravo
que elas nos deixam, dia após dia. Com tudo isso ficaria
senhor de uma semântica plena de justificações e a veleidade de apresentar as «razões que a razão desconhece».
Essa aproximação, porém, seria como propagandear as
causas e os efeitos de um percurso sinuoso e quase sem
rasto, uma espécie de semiologia social que só os retóricos, tão ávidos de oportunidades destas, aproveitariam
para uma exibição estilística. Resumindo: o Tempo, na
sua amplidão, conduz-nos a inverosímeis labirintos. E
ficamos por aqui.
Gostaria que ficasse vincado, com mais este número,
o carácter internacional da revista. A Seixo review não
conhece fronteiras linguísticas nem culturais. Admira,
acolhe e dignifica poetas, escritores e artistas de todo o
mundo. O seu espírito abrangente está em consonância
com o meio digital em que se apresenta: a Internet. A
sua leitura, porém, não se restringe apenas ao ecrã do
computador. O leitor que tenha ao seu dispor uma impressora pode imprimi-la no conforto da sua casa; ou
levar a ficha, em formato PDF, a qualquer centro que
processe fotocópias e trazer de lá a revista impressa, a
cores, encadernada, e por uma módica quantia.
Estava já avançada a elaboração deste número quando nos chegou a triste notícia do passamento do escriEditor
Eduardo Bettencourt Pinto
tor açoriano Dias de Melo.
Nome muito respeitado no
mundo literário português, e uma referência maior na
Literatura Açoriana, DM deixou-nos uma Obra extensa
e múltipla. Encerramos este número com uma homenagem singela ao Homem e ao Escritor com testemunhos
de alguns dos seus amigos, entre eles escritores, poetas e
jornalistas.
A Galiza também perdeu a voz de um dos seus filhos,
Ramiro Fonte. Poeta e ficcionista, foi também um entusiasmado leitor, crítico e estudioso da literatura da Galiza. À altura da sua morte exercia as funções de director
do Instituto Cervantes de Lisboa. Tivemos ocasião de
assistir a uma homenagem ao escritor no passado mês
de Outubro, em Santiago de Compostela, no âmbito
da II Bienal Literária Internacional, organizada pelo
PEN da Galiza. Além de vários poetas locais terem lido
os seus versos, teve como orador Xosé Luis Méndez
Ferrín, escritor galego de renome. Estiveram presentes,
entre outros, Caroline McCormick e Eric Lax, ambos
representantes do PEN Internacional. A propósito deste
evento gostaria de salientar que nos próximos números
da Seixo review contamos apresentar duas secções especiais: uma dedicada à Galiza e a outra a Cabo Verde.
Já que abordamos encontros literários, gostaria de
realçar outros dois de grande mérito, e que decorreram
igualmente em 2008: a Feira da Edição, em Tenerife,
Canárias, e o Congresso Internacional sobre Narrativa
e Diáspora Portuguesa, que teve lugar na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
Quanto a este número, o entrevistado é José Francisco Costa, poeta e escritor de mérito, açoriano de raiz
e talentoso músico. Faz-se aqui uma troca de galhardetes: no número anterior da revista José Francisco Costa
entrevistou Onésimo Teotónio Almeida; desta vez é o
contrário.
Desde a fotografia, ensaios, recensões, poesia e ficção,
há uma oportunidade de leitura para todos os gostos. Sejam bem-vindos.
Atlantis WordProcessor writer's best companion
http://www.atlantiswordprocessor.com/en/
2
SEIXO REVIEW
ÍNDICE | CONTENTS
Fotografia
Derren Ahern | 12,13
Poesia
Manuel Outeiriño | 4, 5 /Galego
Manolis | 10, 11 /English
Leons Briedis | 20, 21 /English
Jorge Arrimar | 24
José Maria de Aguiar Carreiro | 25
João-Luís de Medeiros | 31
María Jesús Alvarado | 55, 56 /Español
Antonio García Ysábal | 71, 72, 73, 74, 75 /Español
Cristina Gufé | 76 /Espanhol
Crónica
Jorge Arrimar | 22
Entrevista
José Francisco Costa | 37
F icção
Mário Cabral | 39
Urbano Tavares Rodrigues | 14
Cláudia Cardoso | 32
Daniel de Sá |62
Cristina Gufé | 76 /Español
Recensões
Álamo Oliveira | 57
Aida Baptista | 60
Mário Machado Fraião | 66
Victor Rui Dores | 97
Homenagem
Vários| 99
Ensaios
João Rui de Sousa | 26 /Português/Italiano
Vamberto Freitas | 45
Elsa López | 68 /Español
Nuno A. Vieira | 78
Olegário Paz |83
Kanat Kabdrajmanov | 94 / Español
SEIXO REVIEW
3
Nódoas de dor e días derrubados,
indecisos, na dúbida, retortos
residuos de terror nos ollos mozos.
Vai alá tempo, entrou en min a mágoa
que só hei botar do corpo perante o acougo gris
deste mar invernizo que é o cantar de Mendiño
e que é o cantar do rei Afonso
e o señoreo do esquío no bosque inmemorial
e a sombra agarimosa e fundadora
que dixo toda a terra é dos homes.
Río de inverno
manuel OUTEIRIÑO
Estradas, espalladas, as denominacións
do demorado labor cartográfico,
esparexidos tempos
de lembranza ou encontro con veciños e amigos:
procuras nas pegadas e arquivos,
fervor de festa estival e esperanza
do acougo.
Río crecido dos invernos, alento sempre meu,
confianza no pasar e recoñecemento da alegría
de non dar rematado nunca en min e o que quero:
confidenciais palabras da mocidade, xuros
do tesouro máis certo, xogos inaugurados
para nunca dar cabo -de nós
eidos, eiras e brañas, sorpresa do luar:
os dentes das xiadas, a lembranza do lobo:
viño para que esquecer que non se ten
diante de nós o que nos nega o pan.
4
SEIXO REVIEW
Reiniciar
manuel OUTEIRIÑO
Non es quen, porque es can,
de peteirar nas flores
ou de gozar nun prado de verduras.
Ti percutes nun ámbito fantasma,
no espectro eléctrico do corpo de Whitman.
Cantas bichos con cairos,
soltas frases rabudas
e non das azos ás descidas tenras
da sumisión á trascendencia.
Nada vai para lonxe do que dis,
engádeste ó rumor do vento nas xesteiras,
incomprensible como sempre fuches
para os que volven a vista ás alturas.
Hoxe os ceos carregan vértigo e morte:
pensa en Bagdad, Belgrado, Líbano:
fura na terra e fai por remexerte
na lama comunal dos adamitas
(e concédete, mesmo, xiros de madamitas,
papel de cor frenético a xirar
movido pola pólvora) para pór cor local
nun tempo novo, en tregua e non entregue
ó horror das ordenanzas e ós fallos do sistema.
Ano cero, semanas de cera
e despeces: exvotos cerúleos, figuracións, fantasmas
que é mellor liquidar
ollando novamente as flores do ermo.
E o rincho do cabalo de Guernika
que fai estarrece-lo gris antigo
da pintura angulosa, certa, na lembranza do horror.
Manuel Outeiriño naceu en Ourense en 1962. É autor de Depósito de
espantos, Letras vencidas e É. Traduciu ó galego Unha viaxe sentimental
de Laurence Sterne, Os papeis de Aspern de Henry James, Corazón da
escuridade de Jospeh Conrad e A cura en Troia de Seamus Heaney. É
membro do consello de redacción de A trabe de ouro. Revista galega de pensamento crítico, na que recuperou textos galegos
a Xeración Nós e publicou versións de Derek Walcott, Wallace Stevens ou dos cataláns J. V. Foix, Pere Quart, G. Ferrater e
Joan Fuster, entre outros. É profesor de Teorías da Comunicación na facultade de xornalismo de Santiago.
SEIXO REVIEW
5
A mudez do príncipe
mário CABRAL
E
m tempos que já lá vão, houve um príncipe a
quem raptaram a amada, tendo o primogénito
do rei ficado mudo desde então. Era de tal ordem a beleza da princesa que o povo todo deste reinado distante procurava passar diariamente pelo palácio, na ânsia de
contemplá-la; pois ficavam assim as horas do trabalho mais
ligeiras e crescida a esperança.
É claro que os reis, pais do jovem herdeiro, chamaram à
corte os melhores magos, médicos e outros químicos, confiantes na cura. Dos reinos vizinhos chegaram os sábios dos
nomes reverendos; mas nenhum foi capaz de explicar o misterioso fenómeno.
Mais confrangedor ainda era que, após ter perdido o dom
da palavra, por dentro da boca do príncipe se ia levantando
um intrigante mundo em miniatura, que o obrigava a abri-la
cada vez mais, ao mesmo tempo que implicava técnicas requintadíssimas para atender à necessária alimentação do futuro senhor do trono.
O mundo da boca muda do príncipe tinha dia e noite, rios
e mar, casa, estradas, florestas, animais, divertimentos, crianças
e escolas, lavradores nos campos … De dia para dia esta miniatura real tornava-se mais parecida com uma cópia perfeita
do mundo real.
Os cientistas estavam deveras embaraçados com este milagre e foram abandonando subtilmente o palácio, à proporção
exacta das enchentes populares, às quais acontecimentos assim
sobre natura mais encantam do que entristecem; embora assustem, são reconhecidas manifestações do Sagrado. Os monarcas procuraram evitar este circo … mas temeram a rebelião,
6
SEIXO REVIEW
mas acabaram por aproveitar o fascínio da plebe para fins políticos.
Porque acontecia tudo isto?
Este, como todos os mistérios, tem a sua explicação plausível.
Fora o feiticeiro voador quem raptara a princesa da beleza solar. Levou-a pelos ares na
direcção do outro lado do mundo, onde mora a Noite Eterna e, se bem que nos primeiros
dias a princesa se assustasse e muitas lágrimas deixasse cair pelos céus abaixo, tornadas
chuvas benéficas ainda em terras do seu domínio — logo cedo veio a deleitar-se com as
paisagens que das alturas celestes, sob a capa do feiticeiro voador, velozes, via passar como
um novelo que se desenrola à pata matreira de um gatinho.
Tudo o que os olhos da princesa contemplavam se reproduzia na boca do jovem príncipe
infeliz: agora ela estava maravilhada com uma aldeia de lindos tectos inclinados a derramar
escarlate, o pináculo da igreja maravilhosamente pontiagudo — e eis que na boca do filho
do rei via o povo e os últimos cientistas surgirem casinhas minúsculas e uma igreja de presépio em estilo deveras divinal.
— São paisagens angelicais —, dizia um.
— Não. Mais parecem as tentações do Inferno —, dizia outro.
— A mim tudo se assemelha a uma premonição do reino futuro.
— É o surgimento da Linguagem.
Ninguém reparava que, por detrás dos monstruosos beiços, o príncipe não parava de
chorar.
A princesa encantava-se com os atalhos que abriam a escuridão das florestas — florestas
se inclinavam pela garganta do príncipe abaixo; esquecida de sofrer, a princesa não sabia
com quê comparar os oceanos, tamanho o deslumbramento do azul — o azul, o glauco, o
branco da espuma iam e vinham nas enseadas da boca real («Oh! Oh!», exclamava o povo
baixinho); a princesa quase se desequilibrava com a emoção causada pela geometria dos
campos trabalhados pela mão do homem — suas altezas reais agachadas para melhor assistirem à estranheza boquiaberta, boquiabertos ouviam os lavradores nos campos ceifando o
trigo que nascia sobre a língua do seu filho («Vossa Majestade consegue cheirar o perfume
do feno?! É extraordinário! Oh! Oh!»); a princesa cobria-se com a capa do feiticeiro voador
por causa do frio da noite, mas sem deixar as divagações românticas do infinito estrelado
com lua — e no céu da boca do príncipe uma lua pequenita, estrelas infinitas bitriangulares
por aí acima, como se aí começasse o mundo.
Deste modo se passou bastante tempo sem que a princesa supusesse nem ao de leve o
sofrimento do seu antigo amado o que, de resto, era o mesmo sentimento do povo e, finalmente, o dos próprios soberanos. Aos poucos, aceitou-se a mudez do príncipe como um sacrifício e este, também de forma indelével, se transformou sem querer num oráculo visitado
por razões de doença, malquerer, anseio, enfim, peregrinado como desde sempre todos os
lugares sagrados. Ganhou fama de miraculoso e ninguém nunca reparou na amargura dos
seus olhos trancados à devassidão pública. Ao contrário, era comum as mães ambicionarem
destino idêntico para os seus filhos e os seus filhos invejarem o êxito universal da realeza.
Porém, certa noite, a rainha das fadas, que se apiedara aos poucos de tão desmesurada
crueldade, desceu ao quarto do príncipe e falou-lhe nestes termos:
— Jovem príncipe: o mundo em miniatura que se vai levantando no interior da tua boca
e que tamanho júbilo causa ao teu povo, assim como dor proporcional a ti próprio, é a reprodução do mapa que os olhos da princesa, raptada pelo feiticeiro voador que reina para
os lados da Noite Eterna, vai contemplando à medida que desliza por cima das nuvens, sem
pensar em ti. O feitiço do ladrão só passará se a tua amada lamentar o rapto e chamar pelo
teu nome, antes de pisar no terreno do senhor das Trevas. Acto contínuo recuperarás a fala e
voltarás a ser um homem normal, o legítimo herdeiro do trono de teu pai. Se ela aterrar nas
SEIXO REVIEW
7
8
grutas do feiticeiro tentador, aí encontrarás a morte, visto que este se prepara para comê-la
e, ao fazê-lo, morrerás afogado por este presépio que, por enquanto, não te faz moléstia. Não
posso fazer nada por ti, visto que o meu poder é inferior à magia do Inimigo maior. Adeus,
amigo príncipe. Tens no céu quem te compreenda o dilema.
E assim se despediu a pequenina fada da luz branca, voando pela noite fora.
O príncipe conseguiu pensar pela primeira vez depois de tanto tempo de sofrimento
afectivo. Abriu os olhos e cogitou o resto da noite; e desta forma permaneceu durante toda
a semana, a ponto de nem se incomodar com os visitantes que se ajoelhavam a rezar aos
pés do seu trono, bem como com os criados que o alimentavam através de mangueiras e
outros artifícios técnicos buriladíssimos. A fada despertara nele uma ideia que não sabia se
de vingança se de amor, e dirigido qual o sentimento a quem.
Consistia a cogitação do príncipe no seguinte: se o seu corpo era capaz de tão excepcional prodígio, não seria o seu espírito bem concentrado motor de portento maior? Se assim
o pensou melhor o fez e, precisamente uma semana depois da visita da rainha das fadas,
fechou-se no seu quarto e, diante do espelho, olhou pela primeira vez aquilo que os olhos
aventureiros da princesa contemplavam alhures.
A lua cheia incidia no grande e sumptuoso espelho veneziano, parte do luxuoso enxoval
trazido pela rainha da sua terra de origem. O príncipe não conseguiu evitar o espanto causado pela beleza sublime do mundo criado dentro da sua própria boca. Nesta altura, perdoou
ao seu povo e aos seus próprios progenitores a negligência registada em face da dor radical
em que vivera mergulhado nos últimos tempos. Como era divino, transcendente, intransponível todo aquele cenário!
Assim fascinado, foi mais fácil executar o seu plano: concentrou-se profundamente, a
ponto de se imaginar com os olhos da princesa raptada. Ao fim de algumas horas de imobilismo total, mesmo no minuto em que o reflexo da lua toda lhe iluminava toda a cavidade
bocal, o jovem príncipe foi capaz da proeza de, olhando para a reprodução do mundo que a
sua amada sobrevoava neste preciso momento, saltar para fora de si mesmo, indo parar ao
lado da princesa, sobre a capa do feiticeiro rei do Mal.
Imediatamente a princesa o notou, acordando do fascínio em que fora colocada pelo
seu raptor. Sem ser capaz de conter o grito, que ao mesmo tempo era de surpresa, vergonha,
mágoa e alegria, a donzela assim também desencadeou a ira diabólica do feiticeiro que, verdade seja dita, já notara por si próprio o peso de mais um corpo sobre as suas costas. Célere
se virou para começar luta feroz com o corajoso rapaz.
Por esta altura sobrevoavam todo o reino da Noite Eterna. Supondo-se irremediavelmente perdido, o filho do rei teve o momento de lucidez suficiente para retirar do bolso um
pequeno espelho que trouxera do palácio e, dando a mão à princesa, procurou regredir para
a sua terra natal através de efeitos reflexos.
Todavia, o feiticeiro, enfurecido, levantou o pé esquerdo e, com ele, inclinou o espelho de
modo a que a lua se reflectiu no rosto da raptada. O que aconteceu a seguir foi a vingança
absoluta daquele que não pode perder: sem ter notado nenhuma mudança nas clepsidras,
desde que se pusera em frente do espelho do seu quarto, com a lua cheia a encher-lhe a boca
do universo em miniatura, o príncipe viu-se na mesma posição — contendo agora dentro
da sua boca a divinal princesa, liberta do feiticeiro mas condenada a viver para sempre naquela encenação miniatural.
A partir da manhã seguinte, a notícia espalhou-se como um relâmpago: a princesa da beleza solar reaparecera no mundo bocal do príncipe. O povo chegou à conclusão que já antes
a fada apresentara ao príncipe que, desde este dia, aceitou a sua mudez como definitiva. O
seu prestígio aumentou mil vezes e de toda a parte chegavam enfermos e desafortunados
de toda a sorte, à procura do hálito milagroso da boca muda do jovem monarca, que agora
SEIXO REVIEW
possuía uma vozita, a da minúscula infeliz vestal que, sobre a língua do amado, cantava os
infortúnios e as grandezas da humanidade.
Com este destino envelheceram ambos, tão próximos e tão distantes um do outro, sem
que pudessem ter filhos e, deste modo, manter o reinado. Esta foi a razão que os conselheiros apontaram para a necessária substituição do herdeiro, o que foi feito, em nome do Reino
e da Tradição, bem como da sensatez.
Mandou-se construir em puro jade um panteão no meio da floresta real, para onde foi
transportado o príncipe endeusado, coberto de coroas de flores e outros discursos e medalhas hipócritas. Rodeados pelo mundo natural envelheceram, mantendo a fama até morrer.
Depois da sua morte, a era tomou conta do lugar e, com o tempo, a boca petrificada do
príncipe deu origem à mais bela gruta duma ilha misteriosa à qual ouvi desde sempre chamar a Ilha Dos Amores Infortunados. Aí as estalactites e as estalagmites vão eternamente
chorando e reproduzindo a história que acabei de contar.
CASA DAS TRAMÓIAS, 1995
Mário Cabral nasceu na ilha Terceira, em 1963. É
Doutor pela Universidade de Lisboa e franciscano
(OFS). É poeta, escritor e pintor. Está traduzido
para castelhano e Inglês.
SEIXO REVIEW
9
Her eyes reflect on the canary’s song
then travel far like an echo
as he tries to fix the broken leg of the chair.
A tear drops in front of her rusted breath
which in vain ventilates its purpose
as he looks the other way and sighs.
Flattened
MaNOLIS
n
Words leave them alone. Words they exchange
climb upwards once: the empty ciste rn’s
hollow sound they share.
The crisp dream of their youth lies
dormant in the silence of a song
which flattens as the dusk approaches.
Her breast flattens for the mammogram.
Hold your breath: silence: death outside.
The wrong seed lurks inside the apple.
The trip for this spring is put
in remission as the flat surface of
the medical instrument levels her breast.
Wrong formula for the new life form
and he tries desperately to fix
the broken leg of this damned chair.
10
SEIXO REVIEW
The sea algae arming the coral
branch with indifference as the
barnacles cover the black piles
at the wharf and the lonely gull
Arc
MaNOLIS
resting his sunshine on the murmur
of the silent whoosh a blemish on the
slow motion of silence which takes
control of the gap between the come
and go of the tide; another pleat of
your heart is opened and another
kiss from your lips travels towards
my smile when a myriad little fires
melt in the darkness of your image
and the horizon turns to a golden arc.
Manolis was born in Crete in 1947 and
emigrated to Canada in 1973. He is a
graduate of the Panteion Supreme School of
Athens and he attended SFU taking English
literature. He has published several books of
poetry and fiction.
SEIXO REVIEW
11
derren AHERN photography
12
SEIXO REVIEW
derren AHERN photography
Derren Ahern is a photographer based in
Vancouver, B.C., Canada. Originally from
Bristol, UK, he moved to Canada in 2000
where he now lives with his wife and two
daughters.
More of his work can be seen at his personal blog:
http://bunster.awardspace.com/wordpress/
SEIXO REVIEW
13
A MAIS BELA
do BAILE
urbano tavares
RO D RI GU ES

14
E
Estava num grupo de meninas ricas (mais ricas do que ela) e destacava-se sobretudo pela luz dos seus olhos imensos. Ao contrário
da Veva, a sua melhor amiga, que pouco dançou, ela entregava-se
ao ritmo sempre que a vinham buscar. Cumpria os ritos do swing
e do slow como as outras raparigas, mais habituadas àquelas festas,
e sentia a vida expandir-se à sua volta. Os cenários do Hotel Aviz
assombravam-na, a cúpula da grande sala, os lustres, a decoração
arte nova, os dourados, as colunas, os pesados móveis de estilo, os
espelhos e seus reflexos, a baixela de prata, até as bebidas, o cup, o
whisky, as flûtes de champagne, tudo aquilo a estonteava e a transportava a um paraíso solar. Mais do que os movimentos quase acrobáticos a que alguns pares a forçavam. Ao lado dela uma adolescente capitosa, de colo muito nu, saracoteava-se com um véu atado
em torno dos rins. Mas a maioria dos pares dançavam colados, em
abraços muito íntimos, sem palavras. E contudo essa proximidade
escaldante logo cessava com os últimos sons da música. Era apenas
uma excitação colectiva, que não ia geralmente mais longe, aceite,
pautada pelas regras da sociedade repressiva. Ela própria, Falena,
jogava também esse jogo, mas nenhum homem conhecera ainda o
jardim secreto do seu ventre.
Falena era de todas as raparigas do baile a mais deslumbrante. Olhava nos espelhos os seus dezoito anos e sorria, enquanto
aqueles moços de smoking, que eram filhos de grandes lavradores
do Ribatejo, alguns de sangue azul, como então ainda se dizia, a
disputavam com uma curiosidade voraz. Trazia um vestido cor do
sol na praia e um jovem do Estoril, onde ela passava o Verão, havialhe colocado uma rosa entre os seios enquanto dançavam Stormy
Weather. E esses seios túmidos, não muito altos, chamavam o lume
de todas as miradas.
Foi a princesa da festa. Fizeram-se imensos retratos daqueles
SEIXO REVIEW
momentos cintilantes quando o pôr do Sol já entrava pelas janelas cor de vitral. Veva, que
falava agora com o único intelectual que ali andava perdido na sua timidez, estudante de
Letras com a cabeça cheia de livros, quis comprar algumas fotos para recordação.
Falena dançou três vezes com um rapaz mais velho, com grandes entradas e muita segurança no paleio, que – diziam – fazia negócios e viajava com frequência pelo estrangeiro, um
privilégio para quem, como ela, só fora ainda a Sevilha e imaginava Paris o luxo dos luxos.
No fim do baile estava previsto Falena voltar de táxi para o Estoril com a Veva e a tia
da Veva. Mas esse jovem decidido tinha carro e ofereceu-se para ser ele próprio a levá-las.
E nos gestos dele, sobretudo nas suas meias palavras, Falena começou a ouvir o cântico de
outros horizontes, a respirar o sol das quimeras.
De vez em quando ele amparava-a, por causa dos saltos altos, no breve percurso até à
esquina onde deixara o automóvel estacionado, e Falena sentia-se protegida contra os rumores da noite.
Casaram meses depois e o encantamento depressa se dissipou. Em três anos ele fez-lhe
dois filhos e um grande buraco na herança que ela já recebera da mãe. Era de facto sócio
de uma firma agro-pecuária de importações e exportações, mas consumia o seu tempo especialmente no Casino do Estoril. Jogador elegante e obstinado, perdia e ganhava com o
mesmo rosto somas para ela exorbitantes.
Falena tentou travá-lo, mas a frase que mais lhe ouvia ao querer moderá-lo e depois
mesmo noutras circunstâncias era «Não me chateies.»
Tinha julgado ao princípio amá-lo, de tanto desejar o amor, mas logo se apagou o fervor desses sonhos. E um dia, sem dizer água vai, ele disparou de vez para mais largos voos,
Monte Carlo, Las Vegas. E Falena perdeu-lhe o rasto. Não lhe deixou saudades.
Ao escutar as amigas, em bisbilhotices, sentia-se injustamente magoada e em certo sentido quase virgem, com dois filhos a crescerem sem pai, incertos nos estudos e ela impotente
para os orientar. A fortuna materna decrescia aceleradamente e Falena teve que trabalhar.
Menina prendada, à antiga, sabia línguas mas não fizera mais do que o curso secundário.
Com a ajuda de Veva que, deixando cair os pergaminhos, entrara para a redacção do vespertino República, tornou-se por esse tempo jornalista freelancer, mas não conseguiu afirmar-se
na profissão, apenas fazia biscates.
Os filhos continuavam refractários ao estudo, com trambolhões na matemática e no
português, e via-se já que nenhum deles iria para a Universidade. Os imensos olhos quietos
de Falena interrogavam o destino sobre a sua falta de sorte.
Tal como Veva, que já não se assinava Genoveva de Athaíde mas apenas Veva Ferraz e
escrevia artigos muito pessoais e feministas, contra o espírito da sua família, também ela
chegou a publicar entrevistas e reportagens na onda do 25 de Abril, a que aderiu com entusiasmo e que lhe trazia o direito ao divórcio.
O pai, engenheiro numas minas em Angola, mandava-lhe cada vez menos dinheiro. Ia
tentar ficar por lá. Apesar de conservador, amava aquela terra e habituara-se a ela.
Falena viveu então o seu único e esplêndido amor. Catarino era o mais charmoso dos
intelectuais que, após a revolução, o povo descobria na tevê, na imprensa, na rádio, falando
do passado e do futuro, portadores da esperança e da cultura, palavra mágica que dantes
inspirava desconfiança aos ricos e ia, por algum tempo, tornar-se abre-te sésamo de espectáculos, debates e celebrações colectivas.
Catarino era dramaturgo, médico de profissão e também ocasionalmente crítico e colaborador de vários jornais. Cheio de humor e de sorrisos, mas também capaz de ironia e de
combatividade, tinha um timbre de voz que cativava toda a gente e em particular as mulheres. Só um defeito, para o temperamento de Falena: era casado.
Veva acompanhava-os às vezes, com prazer, porque gostava de ver Falena feliz e adorava
SEIXO REVIEW
15
16
as anedotas de Catarino e as suas opiniões sobre arte e cinema ou literatura e também sobre as pessoas, que ele beliscava, sem ferir, nos reparos que lhes fazia. Veva tinha a sua vida
própria; era muito independente e não se apaixonava com facilidade, nem pelo amante que
escolhera e com quem vivia à experiência, harmoniosamente, sem envolvimento radical.
Falena não a compreendia, mas queria-lhe muito bem.
Com Catarino cresciam os incêndios sexuais, o carinho, os jantares em casa dela e algumas cenas de ciúme, discretas. Agora sim, sentia-se Falena plenamente mulher. Até cozinhava para ele, procurava os vinhos, por vezes caros, que ele mais apreciava e, de descoberta
em descoberta, chegou a preparar-lhe surpresas e invenções eróticas. Nunca imaginara poder assim alinhar com ele no excesso, na loucura (controlada) em certas horas, que horas!
Continuava bela, diferente das outras mulheres. Os seus olhos pareciam ter-se rasgado
ainda mais nos choques com a vida, desterrados daquela claridade tranquila da sua adolescência. Quase vinte anos tinham passado, águas dilaceradas, procissões profanas e tanto
desgosto, mas tudo isso se dissipava quando Catarino lhe murmurava ao ouvido sons quase
inaudíveis, sílabas de fogo. Valera a pena viver …
E os passeios que davam pela beira rio, no Fiat dele, ou de madrugada depois do teatro,
quando iam tomar o cacau à Ribeira e voltavam, húmidos de bruma e de ternura, cada um
para sua casa.
Até que começou a falar-se muito deles e a mulher de Catarino soube do caso por umas
amigas prestimosas, que lhe envenenaram a existência. Era rica, não dependia de ninguém
e apontou-lhe a porta da rua. Mas ele reconsiderou, havia os filhos, hábitos, afectos, o costume. Catarino até tinha uma costela patriarcal.
Falena não o ouvia mais chamar-lhe «a minha borboleta nocturna», beijando o sal e o sol
do seu pescoço. O Verão arrefeceu subitamente, veio um tempo de treva, ou de depressão,
que ela mastigava em silêncio, assistindo à migração de todos os sonhos em que se deixara
envolver.
Arrepiada de desgosto, de manhã à noite, pouco dormia, mal se lavava, evitava o labirinto
das ruas, a opulência de luz. Convivia cada vez menos. «És a minha flor sem gente», dizialhe o seu dramaturgo. Agora sim é que ela se isolava quase completamente.
O filho mais velho fora-se embora, para a Alemanha. Partira à conquista da riqueza.
Falena voltou-se então para o benjamim, que ficara sempre agarrado às suas saias, como
sói dizer-se, e se ajustava molemente ao convívio com o amigo da mãe, bebendo do mesmo
vinho, rindo com as suas graças quando a situação convidava ao riso.
Falena afogava-o com toda a sua atenção, concentrava-se toda nele. Era o que lhe restava
e amou-o como a nenhum outro homem. Receberam por essa altura a segunda herança, não
muito avultada, mas que lhes permitia irem vivendo dignamente. O pai de Falena morrera,
vítima de uma emboscada da UNITA, na sua Angola em guerra.
Veva tinha tentado, com apelos à racionalidade, arrancar Falena, no período pior, à noite
de desconchavos em que a via mergulhar. Rejubilou com a convalescença, mas advertiu-a
depois contra o abraço «castrador» (era essa a sua expressão) com que ela estava a prender o
Gilberto. Para mais, ele acabava de perder, numa onda de despedimentos, a sua já precária
situação de jornalista sem proventos que se vissem numa agência noticiosa.
Mas Falena não deu grande importância a esses conselhos carinhosos, que apenas roçavam por ela. Sentia-se tão carente. Um silêncio poroso, por onde se filtravam às vezes novos
prenúncios, envolvia a casa. Ainda moravam na Visconde de Valmor, num belo andar de pé
alto, com tectos artesoados, mas onde o último terramoto deixara brechas nas paredes. E
com a Primavera a nascer, uma luz ácida assobiava pelos intertícios das janelas, subitamente
impregnadas de mistério. Viria um tempo de desgraças?
Os últimos frios perseguiam Falena ao longo do corredor. Ela reagia folheando livros de
SEIXO REVIEW
esperança, plenos de viagens. Mas no rio dos seus sonhos, pois dormia mal e sonhava muito,
encontrava caravanas de mendigos, alcateias de olhares furiosos à beira da noite, acercavase do país da morte, corria, ouvindo gritos, tropeçando. Subiu colinas onde lhe surgiram
quatro forcas e havia ali muitos corpos nus, a gelarem. Continuava a correr por entre um
coro de choupos magrinhos, mais longe descobria outros ninhos de ecos e viu de repente a
mais absurda das luas, quase dourada, a chamá-la do céu, que pouco depois já era um céu
de espuma.
Acordou exausta, com todos os músculos a doerem-lhe, a vida parecia quase refluir dentro dela. Lembrou-se então do seu amante perfeito, para sempre perdido, em cujos braços
tantas vezes vira madrugar a felicidade. E o quarto obscuro explodiu em cor.
Nas suas palavras fora com ele a Florença e a Veneza, mascarara – se de loucura divina
e via-o a ofertar-lhe amores perfeitos e jóias de água em jardins molhados, com música de
Brahms, e depois à roda deles surgiam as virtudes impuras e campos de cardos, coisas estranhas que ela nem queria entender.
Era o passado desfeito. Fechou-o outra vez no mais fundo de si, cerrando os dentes,
fechando as mãos com força, como às vezes fazia quando na rua, no autocarro, a impressionava o cheiro da miséria, contra a qual nada podia.
A partir daí, Falena e o seu filho querido viveram um para o outro. Nem por um segundo
ela se deu conta, pelo menos nessa altura, de que lhe estava devorando a existência.
Gilberto desistiu definitivamente de procurar trabalho. Juntos fizeram viagens à Riviera
francesa e a Paris, a Londres, à Itália das estátuas milenares e dos elegíacos ciprestes, que
por todo o lado estilizam a paisagem, gastando à larga aquela segunda herança, que diminuía e que em breve eles começaram a achar irrisória.
Passavam o Agosto nas praias do Algarve, onde Falena tinha raízes e Gilberto, esgrouviado, desatento à natureza lasciva e à graça natural das raparigas de Armação de Pêra, que
por vezes o miravam e lhe davam conversa, foi-se metendo ainda mais, como numa concha,
naquela devoção pela mãe, abandonada por todos, magnânima com ele.
– O Gilberto está muito acima destas meninas pirosas. Bem gostariam elas de o apanhar.
Gilberto teria medo das mulheres? Tímido, indeciso, com poucos préstimos, sofrendo
pela falta do canudo que a outros, bem ignorantes, abria portas, era de facto incapaz de
arranjar emprego, e no fundo pouco desejava consegui-lo. Os tempos também já não ajudavam. Mergulhava amiúde em silêncios muito fechados, embora com os seus raros amigos,
todos mais velhos, como Veva, por exemplo, fosse capaz de opinar sobre os acontecimentos
internacionais, graças à pequena bagagem que trouxera da sua passagem pela imprensa.
Veva achava-o por vezes comovente na sua debilidade e via – o com pena afundar-se
naquela existência de filho eterno, sem horizonte nem ambições, aio da mãe e seu ai jesus.
Mas livrava – se de aconselhar Falena a dar-lhe mais rédea. Estava quase certa de que ela
não entenderia e parecia-lhe até já tarde para encaminhar o Gilinho noutra direcção.
A crise económica dos anos oitenta, a que se seguiram outras crises, com o neoliberalismo a espalhar-se pelo mundo, começou a arrastá-los, ainda lentamente, para a pobreza. Já
conheciam manhãs escuras de renúncia, quando o dinheiro não chegava para um jantar a
sério, quanto mais para o cinema. E tiveram de cortar nos jornais e nas revistas, nos táxis,
nas sobremesas, outras vezes mesmo na carne e no leite. No vinho não, porque Gilberto
ia-se habituando a embarcar nos vapores de Baco para outros rumos e já dificilmente adormecia sem um uísque, que foi dando lugar à aguardente, mais acessível.
Falena amargava todo este descalabro com os seus grandes olhos devastados pela tristeza,
um vento esfomeado de desgraça soava-lhe aos ouvidos, aproximava-se, enredava-se no
envelhecer da casa, nos móveis que o gato também destruía.
SEIXO REVIEW
17
18
Frente a frente consigo, ainda ladeava a questão do futuro. Como vai ser? Pedia, de quando em vez, dinheiro emprestado a alguns amigos, que logo passavam a evitá-la. O mundo
esquecia-se dela e ela principiava a temer e a detestar o lado de fora do seu viver. Até quase
já não saía, com medo dos assaltos, dos dentes brancos da noite, adivinhava quadrilhas e
bandidos de sentinela à esquina dos quarteirões, coágulos de pavor no meio da treva.
Apareceu-lhe um dia uma conta de telefone exorbitante, que a assustou. Se ela quase não
falava com a Veva e em geral só depois do jantar por ser mais barato!
Foi dar com o filho, que de início não pressentiu a sua entrada no quarto, a masturbar-se
ao telefone, trémulo e desgrenhado. Apurou então que ele ligava sistematicamente, já há
uns tempos, para as linhas eróticas.
Houve entre eles acusações, palavras duras e depois lágrimas, um abraço silencioso, uma
ternura desesperada.
Mas Gilberto passou a sair, embora com pouca frequência, presumia ela que para misteriosos encontros, momentos de pestilência, noites incontinentes.
Chegou a casa, uma madrugada, cambaleando, exausto, a ponto de cair ao tentar abrir a
porta. Vinha cheio de mossas, constelado de nódoas negras, um farrapo sujo e ensanguentado.
Durante alguns dias, de lábios aferrolhados, quase não deixava o quarto, onde a luz
diurna dançava nas frinchas do silêncio. Doía-lhe o corpo até aos ossos, doía-lhe tudo, a
sua humilhada solidão metia dó. Mesmo o consolo de Falena ele rejeitava. Perdera no jogo
da vida.
Então até as últimas flores que durante anos haviam habitado a varanda daquela casa se
tornaram flores vampiros. Falena apostrofava o tirânico destino.
Já sobrevivia vendendo os quadros, os móveis de estilo, as porcelanas, os melhores livros
das estantes. Pássaros negros – pelo menos Falena via-os – poisavam nas árvores esgalhadas
defronte do prédio.
Falena deixava-se arrastar por aquela lenta e viscosa, incessante degradação. Às vezes
revia o seu passado, especialmente quando Veva vinha vê-la, o que já pouco acontecia; mostrava-lhe antigos álbuns de fotografias, rememorava as festas, os romances e os filmes que
tinham fascinado a sua juventude. Lembrava episódios em que participara, nomes que a
custo ia extraindo do olvido. Lambia gostosamente feridas antigas, que não ousava abrir por
completo e se associavam aos fastos de outrora.
– Querida Falena, não te canses – dizia-lhe Veva, quando ela teimava em recordar um
apelido ou o cenário de um instante privilegiado. – O que importa é que tiveste, tivemos,
uma mocidade bonita.
– Mas foi tão rápida. E depois …
Uma noite tempestuosa, já tarde, estava Falena a dormitar, tocou o telefone e a polícia
comunicou-lhe que Gilberto tivera um acidente. Regressava provavelmente de um bar (tinha dito apenas que ia comprar cigarros, por onde teria andado? Teria bebido?); ao descer
uma escadaria de pedra, já perto de casa, caíra, rolara pelos degraus abaixo.
Pouco depois um segundo telefonema, breve, do hospital, dava-o como morto.
Tiveram de arrombar a porta para entrar no apartamento. Ao ouvir aquela notícia, seca e
irrevogável, Falena tombara desamparada e, quando acordou do desmaio, não podia mexerse, tinha várias fracturas.
Veva, alertada por uma vizinha da sua amiga, que conhecera casualmente tempos atrás,
viu-a muitas horas depois, vestida de revolta e desespero, quase louca, prestes a seguir numa
ambulância daquele para outro hospital. E foi numa enfermaria de doentes graves, de volta
dos cuidados intensivos, que foi encontrá-la, passada uma semana, ainda com o mesmo
olhar, branco de ausência, fitando-a, sem uma palavra.
SEIXO REVIEW
Veva sentou-se ao lado dela. Era a hora das visitas. Havia gente em volta das outras
camas, conversas baixas, o fétido suor que impregna as roupas do trabalho. Cheiro a formol
também. Dez metros quadrados de outro mundo.
– Quero morrer – disse ela.
Lágrimas de fogo corriam-lhe pelas faces emagrecidas.
Veva sentou-se ao lado da cama e esperou. Transcorridos alguns minutos, pegou-lhe na
mão. Qualquer coisa como o esboço ténue de um sorriso de gratidão agitou-lhe os lábios.
Falena deu-lhe duas revistas para ela se entreter a ler, depois, quando pudesse e quisesse.
E lembrou-se de que tinha achado, no fundo de um baú, umas fotografias esquecidas onde
figuravam elas as duas.
Falena olhou-as, primeiramente sem grande interesse. Mas depois ouviu dentro de si, ao
longe, o som encantado de um saxofone e logo após o piano mágico de Glenn Miller.
Dançavam no Hotel Aviz. Summer Time.
Este conto faz parte do livro "A Última Colina",
publicado em 2008 pelas Publicações D. Quixote.

Urbano Tavares Rodrigues nasceu em Lisboa em 1923. Romancista e contista, Catedrático
jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa, é membro da Academia das Ciências (Secção de
Letras). Tem uma vasta obra literária e ensaística traduzida em inúmeros idiomas. Obteve
diversos prémios, entre eles o de Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores,
o Prémio Fernando Namora e o Ricardo Malheiros da Academia das Ciências. Vive em
Lisboa.
SEIXO REVIEW
19
leons BRIEDIS
The Old Centaurus
the rays of sunlight
fall at an angle across his wrinkled cheeks
and rest beyond the horizon
and it is a long time ere his cave
at the foot of Mount Pelius
is no more visited by people,
by heroes, by gods
the last string has been broken
on his lyre whose sound could once heal
the incurable
what is the old bachelor,
the horse,
contemplating about
while the beard
rushes down his chest
like a mountain stream?
is it that he,
as customary,
will be a victim of his own disciple?
and the next moment the sound his horseshoes fades slowly in the night
rousing from mountain gorges
a hollow echo
like oblivion
20
SEIXO REVIEW
The Prodigal Son
leons BRIEDIS
Eventually I have precipitated snow:
It can be guessed
By the swish
Hardly audible
From under the angels’ skis
But resounding hollowly from my soul.
How could I,
the snow,
Stay idle for so long this winter?
Could I have forgotten myself!
the swish of snow
the skiing angels
and God
up there
aroused from his slumbers
coughs, mad at me,
the snow,
the winter’s (and His own too)
prodigal son.
Leons Briedis was born on December
16, 1949 in Madona District in a family of
country teachers. He is a poet, a novelist,
an essayist, a literary critic, playwriter
and publicist. He has translated prose
and poetry from Latin, Russian, English,
Romanian, French, Portuguese, Italian,
Catalan, Rhaeto-Romanic, Suahili (of
Bantu peoples) and Albanian languages.
He has published several books of poetry,
prose and essays and he is a member of
the Latvian Writer’s Union and the PEN
Club. For the recognition of his literary
activities he has received very prestigious
Awards.
SEIXO REVIEW
21
e África ali tão perto...
T
jorge ARRIMAR
anto tempo lastrando algas nas ondas largas. Tanto tempo vogando no silêncio que as velas escondem das águas, o brilho da espuma a incendiar-se
de ocasos. Tanto tempo a mergulhar no mar das coisas inventadas, num mar
de ostras de névoa e desatinos, conchas de lava e sol-posto. Foi então que vi,
em Setembro, o perfil esbraseado dos montes, e o eco que me chegou sabia
a terra, a cactos e a sal.
Gostei de estar em Sta. Cruz de Tenerife, ilha forrada de aridez e vento, onde os homens inventaram oásis entre o casario e leques de verdura e
folhagem em cada esquina.
As palmas das minhas mãos emprestaram-mas as palmeiras, e foi com
elas que me refresquei do sol das manhãs embaciadas.
São banianas de raízes fortes e folhas largas, como as que sombreiam a
baía de Macau; são dragoeiros velhos como o mundo, de braços estendidos
para o infinito, como os que afugentam a mágoa e aguentam as areias da
ilha de Porto Santo; são fetos arbóreos, polvos de seiva e água, como os que
abrigam o verde das ilhas dos Açores; são acácias rubras, como as que atapetam de fogo os quintalões antigos de Benguela; são jacarandás de tronco
robusto e flores anil, como os que ainda resguardam da nudez as ruas da
minha Chibia natal …
É tudo isso nas ramblas de Santa Cruz e nos jardins da ilha de Tenerife
e África ali tão perto …
O vento a trazer-me inolentes cheiros e imperceptíveis sons. Só o co-
22
SEIXO REVIEW
ração os capta e os retém como uma flor de pétalas incendiadas
e África ali tão perto …
A feira de editores, escritores e livros, onde recolhi, na
concha da emoção, a voz luminosa de El Hadji Amadou
Ndoye, pedra preciosa do mesmo veio alcantilado que
faz brotar a inspiração senegalesa de Leopold Senghor,
poeta universal e humanista; onde soprou a brisa poética
do camaronês Guy Merlin Nana Tadoun, fresca aragem
de “uma terra onde a paz com a eternidade sonha”; onde
a voz do guineense Manecas Costa soltou suas asas de
marfim e ganhou a sonoridade telúrica das tabancas e
dos estreitos húmidos dos Bijagós; onde a morna rompeu a luz do silêncio nos textos cabo-verdianos de Joaquim Arena; onde a palavra de Eduardo B. Pinto se te-
ceu de memórias perfumadas com o aroma dos cafeeiros
em flor da sua terra angolana, poemas modelados ao som
dos quissanjes dum tempo antigo e doce.
Reconheço este mar que vai e vem no embalo das
correntes e das vagas, molhando das mesmas águas as
costas destas ilhas e o litoral da minha saudade
e África ali tão perto …
Sta. Cruz de Tenerife, 30 Set. 08
Jorge Manuel de Abreu Arrimar nasceu em S. Pedro da Chibia, em Angola. Na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda iniciou os seus estudos superiores, tendo concluído, em Portugal,
a Licenciatura em História, a Pós-Graduação em Ciências Documentais e o Doutoramento em
História Moderna.
Autor/Colaborador: Poesia - Ovatyilongo (1975); Poemas (1979, 2a ed. 1993); 20 Poemas de
Savana (1981, 2a ed. 1994); Murilaonde (1990); Fonte do Lilau (1990); Secretos Sinais (1992);
Confluências (1997); Antologia de Poetas de Macau (1999); Ovi-Sungo : Treze poetas de Angola (2007). Ficção - Viagem à Memória das Ilhas (2002); O Planalto dos Pássaros (2002); Os
Infortúnios de Juvêncio (2003, col. Abelha “Contos de Angola e do Mundo”, 8). É colaborador do
Dicionário Temático da Lusofonia (2005) e Seixo Review (revista de artes e letras). Participou no
I Encontro de Escritores Angolanos, Angola (2004). É membro da União dos Escritores Angolanos.
SEIXO REVIEW
23
terra
do fim do mundo
jorge ARRIMAR
caminho pela rota do sol com a madrugada
nas costas e o crepúsculo no olhar.
chego com a boca seca e a água matricial
que me mata a sede é celta, mas
os trilhos que se enredam nos meus pés
são os de santiago, caminhos de pedra e de palavra
descobertos na poeira das velhas rotas
que se perdem no fim da terra
onde a morte dá à costa.
os nossos olhos são luzeiros sobre as rochas, candeeiros
acesos entre a névoa, um farol construído das luzes
que se afogaram entre as vagas
ao assalto final das armadas que por inteiro
se deram ao sôfrego abraço do mar. fatigado
o peregrino deixa-se ir no vento e nas maresias
de cada grito, por serem
restos do mundo os que deram à costa.
na fronteira entre a pedra doce e a água salgada, tu esperas
pelos pássaros negros das manhãs desfeitas
e eu oiço o silêncio que o mar esconde
entre os recifes do fim do mundo.
24
SEIXO REVIEW
para Miguel Torga
“Nada há de permanente debaixo do sol” (Eclesiastes)
Bicho da Terra
josé maria de aguiar CARREIRO
Sei do condão da mente e do condão da carne
sobre a mente. O sexo tangível da idade.
Eu sou a veloz condução dos congéneres bichos
que são da terra, que se agitam nos telhados
e desviam nossos olhares para lá das paredes sujas.
Atrevo e atiro para o chão as trevas e as glórias altas
faço e desfaço altos silos, combatentes reprogramações –
partes de um mesmo todo indefinido e inteligente?
Tudo é aluído na terra e será conforme a dor.
Modulo no vazio. Nem uma lápide, um livro ou uma oração
perdurarão no tempo.
É limitada a rede com que um homem se diz
e, no entanto, deseja
cortada rede com que principia
cortados fios que tece.
Deixarei estas palavras na crueza do corpo
num amplo quarto de um manicómio ou de uma prisão.
José Maria de Aguiar Carreiro nasceu no concelho de Nordeste da ilha
de São Miguel, em 20 de Junho de 1970. Cursou Línguas e Literaturas
Modernas (variante de Estudos Portugueses) na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Professor do Ensino Secundário, vive na cidade
de Ponta Delgada. Publicou Chuva de Época (2005, poesia), que recebeu
o melhor acolhimento da crítica. Participou em algumas antologias literárias, a saber: “Una casa nell’Atlantico”, Editora “Il ramo d’oro”, Trieste
(Itália); revista “Arte&Manhas”, Angra do Heroísmo, Verão 2006; revista “Magma” nº 3, Dezembro 2006, Lajes do Pico, Edições Atlânticas.
Mantém o blogue Folha de Poesia: http://folhadepoesia.com.sapo.pt.
SEIXO REVIEW
25
EM TORNO do CALOR das
COISAS …
joão rui de SOUSA
Esta antologia bilingue da poesia de José António
Gonçalves – empenhadamente organizada e traduzida
por Silvana Urzini e Carlos Martins – é composta por
meia centenas de composições, distribuídas por duas
secções: a dos quarenta e um poemas oriundos de livros que o autor fez sair entre 1988 (20 Textos para
Falar de Mim) e 2004 (As Sombras no Arvoredo); e a
formada por nove poemas inéditos, quase todos com
datas que se reportam ao período compreendido entre 2002 e 2004. Quanto ao primeiro conjunto, pode
verificar-se que os volumes aí mais representados são
Aventura na Casa dos Livros, de 2000, e Esquivas São as Aves, de 2001. Por outro lado,
compulsando as datas dos poemas, quer
dos recolhidos nos livros quer do corpo de
inéditos, pode constatar-se que as escolhas
dos obreiros desta selecta incidiram largamente, em cerca de três quartos, no último quinquénio (2000-2004) da produção
poemática do autor. Feitas estas sumárias
observações, que estão longe de ser insignificantes ou de somenos – até porque nos
possibilitam observar, nos critérios de selecção, uma nítida e legítima preferência
pela fase mais recente do poeta, correspondente, quanto a nós, a um tempo de notório amadurecimento formal e criativo –, afloremos agora, ainda
que de modo sucinto, a matéria poética que a colectânea recolhe, o tecido discursivo que ela transporta.
Poesia menos voltada para a reflexão, para o trato
da realidade em termos conceptuais ou mais abstractizantes – mau grado os casos, entre alguns outros, de
composições como «Rimas», dedicado a Fernando
Pessoa, «A Morte», «A Vida» e «No Abismo», um dos
mais límpidos textos da presente recolha-, esta poesia
move-se, discorre e alarga-se sobretudo na assunção
do visível e do concreto, no emergir dos seres e das
coisas, na repercussão da realidade envolvente e até
no fluir de um imaginário que, além do mais, nos remete para um processo de recomposição, em termos
artísticos, de um universo tendencialmente dispersivo.
Mesmo quando o intento transfigurador parece avan-
26
SEIXO REVIEW
INTORNO al CALORE
delle COSE . . .
joão rui de SOUSA
Questa antologia bilingue della poesia di José António Gonçalves – organizzata e tradotta con impegno
da Silvana Urzini e Carlos Martins – consta di una
cinquantina di composizioni, distribuite in due sezioni:
quella di quarantuno poesie provenienti da libri che
l’autore ha pubblicato tra il 1988 (20 Textos para Falar de Mim) e 2004 (As Sombras no Arvoredo); e quella
formata da nove poesie inedite, quasi tutte con date
che sono nel periodo compreso tra il 2002 e il 2004.
Quanto al primo gruppo, si può notare che i volumi
qui più rappresentati sono Aventura na Casa dos Livros
vros, del 2000 e Esquiva São as Aves, del
2001. D’altro canto, compulsando le
date delle poesie, sia di quelle provenienti dai libri che quelle dell’insieme
di inediti, si può constatare che le scelte
degli artefici di questa selezione hanno
inciso di gran lunga, per circa tre quarti, nell’ultimo quinquennio (2000-2004)
della produzione poetica dell’autore.
Fatte queste osservazioni di massima,
che sono ben lungi dall’essere insignificanti o di minor valore – anche perché
ci consentono di osservare, nei criteri
selettivi, una nitida e legittima preferenza per la fase più recente del poeta, corrispondente, secondo noi, a un tempo di palese maturazione
formale e creativa-, mettiamo in luce adesso, anche
se in modo succinto, la materia poetica che la raccolta raccoglie, il tessuto discorsivo che essa trasporta.
Poesia meno incline alla riflessione, all’aspetto
della realtà in termini concettuali o più astrattizzanti – malgrado i casi, tra gli altri, di composizioni come
«Rime», dedicata a Fernando Pessoa, «La Morte», «La
Vita» e «Nell’Abisso», uno dei testi più limpidi di detta
raccolta-, questa poesia si muove, discorre e si allarga
soprattutto nell’assunzione del visibile e del concreto,
nell’emergere degli esseri e delle cose, nella ripercussione della realtà coinvolgente e finanche nel fluire di un
immaginario che, oltretutto, rimette verso un processo
di ricomposizione, in termini artistici, di un universo
tendenzialmente dispersivo. Anche quando l’intento
çar pelo fragmentário ou por aquelas «margens do
sonho» a que já tivemos ocasião de aludir (no posfácio ao livro Os Pássaros Breves, 1995), é ainda em
torno do mundo concreto que, basicamente, a palavra poética desdobra, exercita e perfaz a sua aventura.
Essa impulsão pela materialidade do real será porventura mais visível nos seguintes poemas: «No calor
das coisas», texto transcrito de Noites de Insónia (1998),
«É no Fim das Tardes», com toda a propriedade alusivo a Cesário Verde; «Cavalos Feridos de Silêncio»,
uma composição que, como tantas outras neste corpo
antológico, deixa à vista uma linguagem a oscilar entre a pura enunciação («sabor a fruta fresca e a madeira antiga») e o lampejo decididamente metafórico
(«tempestades convulsas de erva molhada»); «Pensar
um Nome», onde logo de início o poeta claramente
diz, por certo a referir-se à sua ilha natal, que «para
falar de uma ilha não há/um nome único, é preciso
dizer casas/e telhados, um cemitério ao fundo/onde
algures a água pode chegar (…)»; «O Caso Raro», que
em dado passo deixa o vislumbre de um itinerário familiar «onde passavam os carros/e vinham o leiteiro
o pesquito com o peixe as freguesas/da costura e os
carteiros sem cartas (…)»; ou ainda «Pequenos Nadas», em que a propensão enumerativa segue o rasto de um cenário de acentos igualmente domésticos:
Sobre o linho branco das toalhas
Compõe-se a mesa para as noites dos banquetes
Na ânsia da espera dos ilustres convidados.
Assim convivem os candelabros de prata
Com as porcelanas e os guardanapos bordados
As flores ao centro e os talheres
Olhando solenes para as cadeiras vazias.
Ainda a propósito desses mesmos «pequenos nadas» – expressão que, curiosa e significativamente,
também aparece referida nos poemas «Espanto» e
«Sopram Ventos de Melancolia»-, não deixa de ser
sintomática, por outro lado, a marcante presença, não
raro reiterada, de certas palavras. Para além das que
ficaram bem à vista no fragmento acabado de transcrever, poderíamos ainda recordar, ainda que sem a
pretensão de sermos exaustivos, palavras como casas,
lençol, porta, janela, cama, quarto, jarra, espelho, relógio, cobertor, muro, parede, telhado, mesa, banco, gaveta,
toalha ou tecto. Sem dúvida que esse léxico projecta
um claro sentido sinalizador: o do desfibrar de um
trasfiguratore sembra avanzare dal frammentario o da
quei «margini di sogno» cui abbiamo avuto modo di alludere (nella postfazione al libro Os Pássaros Breves, 1995),
è ancora intorno al mondo concreto che, basicamente, la
parola poetica spiega, esercita e completa la sua avventura.
Questa pulsione verso la materialità del reale sarà forse
più visibile nelle seguenti poesie: «Nel Calore delle Cose»,
testo trascritto da Noites de Insónia (1998); «È sul Far della
Sera», che certamente si ispira a Cesário Verde; «Cavalli
Feriti di Silenzio», una composizione che, come tante altre
in questo insieme antologico, evidenzia un linguaggio che
oscilla tra la pura enunciazione («sapore di frutta fresca e
legno antico») e il bagliore decisamente metaforico («tempeste convulse di erba bagnata»); «Pensare un Nome», dove
sin dall’inizio il poeta dice in modo chiaro, sicuramente riferendosi alla sua isola natale, che «per parlare di un’isola
non esiste/un nome unico, bisogna dire case/e tetti, un cimitero in fondo/dove da qualche parte l’acqua può arrivare
(…)»; «Il Caso Raro», che in un determinato passaggio lascia intravvedere di un itinerario familiare «ove passavano
le auto/e venivano il lattaio il venditore di pesce le clienti/della sartoria e i postini senza lettere (…)»; o ancora
«Piccoli Niente», in cui la propensione enumerativa segue
la scia di uno scenario di accenti ugualmente domestici:
Sul lino bianco delle tovaglie
S’imbandisce la tavola per le serate dei banchetti
Nell’ansia dell’attesa degli illustri invitati.
Così convivono i candelabri d’argento
Con le porcellane ed i tovaglioli ricamati
I fiori al centro e le posate
A guardare solenni le sedie vuote.
Ancora a proposito di questi stessi «piccoli niente» –
espressione che, in modo curioso e significativo, appare
anche riferita nelle poesie «Stupore» e «Soffiano Venti
di Malinconia»-, è sintomatica, d’altra parte, la marcante
presenza, non di rado reiterata, di certe parole. Oltre a
quelle che sono rimaste ben visibili nel frammento appena trascritto, potremmo inoltre ricordare, anche senza
la pretesa di essere esaustivi, parole come casa, lenzuolo,
porta, finestra, letto, stanza, vaso, specchio, orologio, coperta, muro, parete, tetto, tavolo, panchina, cassetto, tovaglia o
soffitto. Indubbiamente questo lessico proietta un chiaro
senso distintivo: quello dell’indebolimento di un quotidiano del quale la poetica di José António Gonçalves
è intimamente attenta. Un paesaggio che ha molto a
che vedere con i giorni ed i passi di questo «calendaSEIXO REVIEW
27
quotidiano de que a poética de José António Gonçalves é medularmente ciosa. Uma paisagem que muito tem a ver com os dias e os passos desse «calendário quotidiano» aludido no já citado «O Caso Raro»
É em torno desse calor das coisas, desse núcleo essencial onde o autor recolhe muito daquela «semente
de sabedoria» aludida em «No Lado Certo de Cada
Rua», que se colocam outras vertentes ou registos desta poesia. Está nesse caso, antes do mais, a temática
do amor, bastante privilegiada nesta recolha. Tal tópico – entendido ora na sua dimensão mais conceptualizante, mais idealizada, ora no seu contorno mais
sensualizado, mais carnalmente entrevisto ou imaginado – está presente quer na parte
inventariada a partir dos livros do
autor quer no conjunto de inéditos. Entroncam-se nessa linhagem
poemas como, por exemplo, «Vem»,
um texto muito próximo da lição
de Álvaro de Campos, «O Silêncio dos Sexos», «Reconheço-te»,
«Amor de Outono», «A Água Azul
dos Teus Olhos», de feliz concisão,
formatado em seis tercetos, «Não
Precisas Dizer Nada», caracterizável pela sua sobriedade e transparência, e as seis composições
que, desde «O Incêndio» até «Colaremos os Lábios», formam a sequência final do corpo de inéditos.
Embora mais rarefeitas em relação ao contexto, outras facetas podem ser arroladas para
uma mais abrangente percepção das direcções desta
poesia. Talvez pelo contraste com o tom mais genérico
dos poemas em torno do amor, começaremos por referir aquele veio em que prevalece o traço de um baixio
psicológico, de um certo cansaço ou de um certo desencanto. Tal linha é visível, por exemplo, em «Sopram
Ventos de Melancolia», já mencionado; em «Mário
de Sá-Carneiro», de homenagem ao autor de Indícios
de Ouro e com óbvia referência ao seu fim trágico, em
«Rente aos Olhos», envolvente elaboração onde, no
quadro de uma atmosfera crescentemente recessiva, se
desagua numa quase apoteose de «dedos cansados», de
«sono infinito», de «canteiros vazios» e de um «poema
branco sem palavras»; ou mesmo no exuberante texto
«As Sombras no Arvoredo» que, passando pela alusão às
«fugas de Bach», às «manchas crepusculares de Turner»
e aos «poemas de Neruda», remata da seguinte maneira:
28
SEIXO REVIEW
rio quotidiano» alluso nel già citato «Il Caso Raro».
È intorno a questo calore delle cose, a questo nucleo
essenziale dove l’autore raccoglie molto di quel “seme di
sapienza» cui si allude in «Nel Lato Giusto di Ogni Via»,
che si collocano altre vertenti o registri di questa poesia. È in questo caso, innanzitutto, la tematica dell’amore,
abbastanza privilegiata in questa raccolta. Tale topico –
inteso ora nella sua dimensione più concettualizzante,
più idealizzata, ora nel suo contorno più sensualizzato,
più carnalmente intravisto o immaginato – è presente
sia nella parte inventariata a partire dai libri dell’autore sia nell’insieme degli inediti. Si incrociano in questa
categoria poesie come, per esempio, «Vieni», un testo
molto vicino alla lezione di Álvaro
de Campos, «Il Silenzio dei Sessi»,
«Ti Riconosco», «Amore d’Autunno»,
«L’Acqua Azzurra dei Tuoi Occhi»,
riuscito per la concisione, strutturato
in sei terzine, «Non Hai Bisogno di
Dir Nulla», caratterizzabile per la sua
sobrietà e trasparenza, e le sei composizioni che, da «L’Incendio» fino a
«Sigilleremo le Labbra», formano la
sequenza finale del nucleo di inediti.
Sebbene più rarefatti in rapporto
al contesto, altri aspetti possono essere elencati per una più ampia percezione del cammino di questa poesia.
Forse per il contrasto con il tono più
generico delle poesie sull’amore, cominceremo a riferire quella vena in cui
prevale l’impronta di una difficoltà psicologica, di una
certa stanchezza o di un certo disincanto. Tale linea è
visibile, per esempio, nel già riferito «Soffiano Venti di
Malinconia», in «Mário de Sá-Carneiro», in omaggio
all’autore di Indícios de Ouro e con l’ovvio riferimento
alla sua tragica fine, in «Rasente gli Occhi», coinvolgente elaborazione in cui, nel quadro di un’atmosfera crescentemente rinunciataria, sfocia in una quasi apoteosi
di «dita stanche», di «sonno infinito», di «aiuole vuote» e
di una «poesia bianca senza parole»; o finanche nell’esuberante testo «Le Ombre nell’Albereto» che, attraverso
le «fughe di Bach», le «macchie crepuscolari di Turner»
e le «poesie di Neruda», riferisce nel seguente modo:
E così non resistemmo e ci addormentammo
Definitivamente, sotto le ombre nell’albereto.
Sempre le stesse ombre e lo stesso albereto
Degli altri giorni – di quei giorni che durano
E aí não resistimos e adormecemos
Definitivamente, sob as sombras do arvoredo.
Sempre as mesmas sombras e o mesmo arvoredo
Dos outros dias – desses dias que duram
Como se nunca acabassem, até que por uma vez
Acabam. Repentinamente. Como a névoa.
Outro segmento que seria impossível omitir é o
que tem a ver com o tópico da levitação, com o pendor – a atravessar transversalmente muitos destes versos – para o ascender acima das trevas, dos abismos e
do peso (ou da demasiada espessura) da experiência
vivencial. É veemente indício desse sentido de superação em relação à densidade excessiva da realidade
a presença, tão obsessiva, de signos como aves ou
pássaros. Visível, desde logo, nos títulos de dois dos
livros publicados pelo autor, Os Pássaros Breves (1995)
e Esquivas São as Aves (2001), um dos volumes aqui
mais representados. E presente de forma mais intensa,
mais decisiva, no curso da sua deambulação poemática. Deve dizer-se, entretanto, que tal apelo de liberdade e de impulso ascensional não se patenteia apenas
no recurso a imagens de animais de voo. É o caso, a
título exemplificativo, do poema «Um Instante Apenas», de que se transcrevem as estrofes primeira e final:
No esvoaçar fugaz da pluma
Balouçando no ar
Mora a leveza
Do instante apenas
(…)
E levito absorto no espaço
Escutando palavras de amor
E livre
Parto para outro universo
Que eu mesmo traço
Antes de darmos por finda uma itinerância e uma
sondagem que não se pretendem exaustivas, citemos
ainda algumas composições que nesta antologia se
nos oferecem como das mais singularizáveis, inclusive,
na maior parte dos casos, pelo seu suporte estilístico.
Limitar-nos-emos a apontar, de entre elas: «Haverá
Poesia?», texto onde de modo interrogativo se põe
o problema de haver ou não haver poesia no além e
no aquém das palavras, por exemplo, na gestualidade
humana, na natureza inerte, nos objectos, nos pequenos seres; «A Musa e o Poema», onde, de forma pronunciadamente dilemática, se procura detectar quer
Come se non finissero mai, finché ad un tratto
Finiscono. D’improvviso. Come la foschia.
Un altro segmento che sarebbe impossibile omettere è
quello che ha a che vedere con il topico della levitazione,
che attraversa trasversalmente molti di questi versi – per
ascendere al di sopra delle tenebre, degli abissi e del peso
(o del troppo spessore) dell’esperienza della vita. È indizio
veemente di questo senso di superamento in rapporto alla
densità eccessiva della realtà la presenza, così ossessiva, di
segni come uccelli o uccellini. Visibile, da subito, nei titoli
di due libri pubblicati dall’autore, Os Pássaros Breves (1995)
e Esquivas São as Aves (2001), uno dei volumi qui più rappresentati. E presente in modo più intenso, più decisivo,
nel corso della sua deambulazione poetica. Bisogna dire,
comunque, che tale appello alla libertà e all’impulso ascensionale non è patente solo nel ricorso a immagini di animali
volatili. È il caso, a titolo esemplificativo, della poesia «Solo
un Istante», di cui si trascrivono la prima e l’ultima strofa:
Nello svolazzare fugace della piuma
Che dondola nell’aria
Risiede la leggerezza
Dell’istante soltanto.
(…)
E levito assorto nello spazio
Ascoltando parole d’amore
E libero
Parto verso un altro universo
Che io stesso disegno.
Prima di concludere un’itineranza e un sondaggio
che non si pretende siano esaustivi, citiamo ancora alcune composizioni che in questa antologia ci si presentano come tra le più singolarizzabili, incluso, nella maggior
parte dei casi, a causa del loro supporto stilistico. Ci limiteremo ad indicare, tra queste: «Ci Sarà Poesia?», testo in
cui in modo interrogativo si pone il problema di esserci
o non esserci poesia al di là o al di qua delle parole, per
esempio, nella gestualità umana, nella natura inerte, negli
oggetti, nei piccoli esseri; «La Musa e la Poesia», dove, in
modo spiccatamente problematico, si cerca di individuare
sia «la ragione dell’arte», la vena matriciale del fenomeno
creativo, sia il segreto di quest’arte che tante volte significa, simultaneamente, la distruzione e la ricostruzione delle
«rovine dei palazzi inventati»; «Tramonto», testo di sicura
struttura in cui la discreta orditura dei riferimenti suggerisce un disegno dell’atmosfera e della condizione insulare;
e «Arabela», poesia in cui l’emozionata, ma sempre conteSEIXO REVIEW
29
a «razão da arte», o veio matricial do fenómeno criativo, quer o segredo dessa arte tantas vezes significar, em
simultâneo, a destruição e a reconstrução das «ruínas
dos palácios inventados»; «Pôr-do-sol», texto de seguro
arcaboiço oficinal em que a discreta urdidura das referências sugere um desenho da ambiência e da condição
insulares; e «Arabela», poema em que a emocionada,
mas sempre contida, manifestação de afecto paternal
vai paredes meias com uma solução formal que, regrada
pelo melhor da prática criativa do autor, nada tem a ver
com distensão desmedida, com extravasamento verbal.
Poeta avesso à estreiteza de certos «códigos (que
amalgamam/os sentimentos dos homens)», como afirma em «A Morte da Lua», poeta sempre «em busca da
alma liberta», como se diz em «É o Mar Quem Vence», poeta não raro envolvido pelos embates da contradição, por ásperos e dicotómicos «labirintos de anjos e demónios negros» (lê-se em «Eis o dia»), poeta
comprometido com um notório sentido de imanência,
de fidelidade a essa terra comum «onde afinal tudo
acontece» (confira-se «A Vida»), poeta, enfim, afincadamente religado às sombras e às claridades da condição humana, José António Gonçalves representa um
daqueles casos em que, na extrema diversidade e no errático de motivos e formulações, como no ascensional
da caminhada, se projecta uma permanente pesquisa da
sua raiz, da sua verdade pessoal, da sua autenticidade.
nuta, manifestazione di affetto paterno va di pari passo
con una soluzione formale che, regolata dal meglio della
pratica creativa dell’autore, non ha niente a che vedere con la distensione smisurata, con l’eccesso verbale.
Poeta contrario alla strettezza di certi «codici (che
amalgamano/i sentimenti degli uomini)», come afferma in «La Morte della Luna», poeta sempre «alla ricerca dell’anima liberata», come si dice in «Chi Vince
è il Mare», poeta non di rado coinvolto dai conflitti
della contraddizione, da aspri e dicotomici «labirinti di
angeli e demoni neri» (si legge in «Ecco il Giorno»),
poeta impegnato con un palese senso di immanenza,
di fedeltà a questa terra comune «dove alla fine tutto
accade» (si confronti «La Vita»), poeta, infine, tenacemente relegato nelle ombre e nelle luci della condizione umana, José António Gonçalves rappresenta uno di
quei casi in cui, nell’estrema diversità e nell’erratico di
motivi e formulazioni, come nell’ascensionale del percorso, si proietta una permanente ricerca della sua radice, della sua autenticità, della sua verità più personale.
Para mais informações sobre José António Gonçalves, por
favor consultar a página do autor em:
http://members.netmadeira.com/jagoncalves/
c
João Rui de Sousa nasceu em Lisboa em 1928. Licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa e, em 1982, ingressou na
Biblioteca Nacional, onde trabalhou como investigador na área de espólios literários. Fez a sua estreia na revista Cassiopeia, de cujo núcleo directivo fez parte.
As duas componentes dessa estreia (poemas e ensaio) coincidem com as mais
constantes expressões da sua intervenção literária: a criação poética e a actividade ensaística, esta predominantemente voltada para o estudo da poesia. Tem
colaboração dispersa por grande número de publicações, nacionais e estrangeiras,
e está representado em numerosas antologias ou volumes colectivos. Enquanto
ensaísta, já dedicou a sua atenção a um considerável número de poetas portugueses contemporâneos. Para além do que reuniu em livro ou deixou escrito sob
forma prefacial, tem colaboração dispersa por vários jornais e revistas. Em Obra
Poética 1960-2000, editado pelas Publicações Dom Quixote, reúne-se o trabalho
de 30 anos dedicados à poesia. Publicou, em 2005, Lavra e Pousio e, já este ano,
Quarteto Para as Próximas Chuvas, Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes.
in http://www.dquixote.pt/
30
SEIXO REVIEW
alfabeto de carícias
joão-luís de MEDEIROS
hoje, quero ficar, assim, convertido
ao desassossego sensual do teu catecismo
hoje, apetece-me escorregar
no delírio ladeirento do pecado popular
e namorar a virtude da erva fresca
que nos convida a celebrar o amor-perfeito
hoje, imagino-me romeiro do alfabeto
de carícias com erros gramaticais:
ilhéu-atlanta de sentinela às ameias
da memória no chão-nosso do desejo
no meu sangue há rotas do mar português...
naveguemos em Inglês, rumo ao orgasmo bilingue
amemo-nos uns aos outros, multi-culturalmente
(… adivinho o teu corpo em qualquer língua)
João-Luís de Medeiros é natural da freguesia micaelense de São Roque,
Açores.
A partir de 1976 foi parlamentar eleito à I Legislatura da A. L. R. (Horta,
Faial), mas ainda como representante açoriano na Assembleia da República
(Lisboa).
Vive agora no sudoeste da Califórnia, EUA.
Completou os estudos superiores na University of Massachusetts/Dartmouth, e ainda na Chapman University, Orange, Califórnia: B. A. Cum laude em
"Humanities & Social Sciences”; Mestrado em Ciências “Human Resources
Management", concentração académica “Comparative Ethnic Relations.”
É co-autor de “Em Louvor do Divino” – 1993; autor de “(Re) verso da Palavra” 2007; tem contos e poemas publicados em vários jornais e revistas da
diáspora.
SEIXO REVIEW
31
Em carne viva
cláudia CARDOSO

S
abes que me parecia ver mar em frente. Mas não era afinal. Sabes que me parecia ver terra
próxima. Mas era o mar que antes não havia. Sabes que me cansa esta vida de aquário. Sem
cheiro. Gente enrolada em branco. Inodora. Débil. Trôpega. Sabes que não dou por isso
quando nasce o sol. Há sempre luz em mim. Há sempre escuridão nos outros. Sabes que
procuro um lugar no mundo. Assim. Procuro com os olhos revirados, as pálpebras em sangue, os lábios em carne viva de tanto trincar, remoer velharias dentro de mim. Repassá-las
pelo presente de aquário.
1
Somos muitos aqui. Demasiados. O que nos vale é este cheiro a desinfectante e as doses
violentas de calmantes que nos passam pelas goelas. Todos mudos como estátuas, seráficos
e ainda bem perto da decência. Ontem, apanhei a Celestina a masturbar-se na sala ante os
olhos de peixe das outras doentes. As mãos desfeitas de demência, o colo nu, os seios inchados e alheios a tudo. As mãos ávidas de si mesma como se durante séculos desconhecesse
onde morava aquele corpo. Se tinha morada sequer. E aquela cabeça de louca em convulsões como a chamam as batas azuis. As auxiliares de acção médica. Meia dúzia de mulheres
secas a quem a designação dá estatuto de gente. Loucas contidas elas também.
Não há homens neste aquário. Não há gente. Só há mortas à espera da morte. Chegaste
devagar com o teu passo de atleta envelhecido. Olhaste-nos nos olhos. Seguraste no queixo
pesado da Conceição para que ela te enfrentasse. Logo ela… ela que desistiu do mundo
e da gente e dos olhos e das mãos e pensa que somos todos ladrões de sentimentos. E ela,
surpreendentemente, deixou-te segurar o queixo muito tempo e roçou-o contra os teus
dedos e pousou os olhos enublados de peixe nos teus olhos de corça. E deixou-se ficar leve
por uns segundos neste gesto sem tempo. Soube logo que não eras como as outras. As que
nos puxam para o consultório, as que nos obrigam a bordar a ponto cruz e as que penduram
nas paredes os trabalhos da nossa demência, os monólogos prolongados da nossa solidão
e dizem aos outros que somos prendadas, que nos ocupamos, que estamos à beira da cura.
Mentira. Mentira. Absoluta mentira. Não há cura possível.
32
Não haveria se não tivesses chegado. Com os teus olhos azuis de corça. Com a tua voz
surpreeendentemente doce que nos soube perguntar o nome muito antes da medicação, e
que nos devolveu um brilho tosco aos olhos definitivamente embaciados.
Brilho. Tosco. Embaciados. Como a alma aliás. Trouxeste-te e foi quanto baste. Sem ainda
o saber, pressentimo-lo. E eras também o único com cheiro. Com um cheiro quente da terra,
da vida, da rua, a sangue, a sexo. Que adivinhávamos partilhado com outras mulheres ou
SEIXO REVIEW
homens ou ambos em quartos desalinhados de solteiro. Que inalávamos da tua roupa e do
azul dos teus olhos. E com que nos inebriávamos até à exaustão. Com que nos consolávamos amiúde. Tinhas o cheiro que nos faltava. E por isso nos roçávamos nele sem piedade,
nos cantos de cada corredor, nas dobras da cama, nos vãos de cada escada. Os dias foram
ganhando dimensão, calibre, potência. Havia subitamente vida dentro do aquário. Havia
gente ali, havia cheiro, e no cheiro o norte, e no cheiro a vida súbita e o desmazelo e o desequilíbrio que nós como desequilibradas nunca havíamos antes sentido no aquário.
2
Naquela tarde o vento roía as árvores em frente ao aquário e sabes que me parecia mesmo
ver mar, um anel de verde terra pespegado numa tranche de mar. Do nosso. E nós pairando
sobre o aquário dentro de outro aquário ainda. A ilha afinal sabes? Somos prisioneiros incógnitos é o que te digo! Presas desorientadas nas celas impenetráveis dos nossos corpos.
E foi então que ouvimos a Serafina a matraquear a sua neurose obsessiva compulsiva contra
o tecto do quarto. …446, 447, 448, 449… num gesto de folclore alcançando o ar aos círculos,
presa dentro de si mesma como a um trapo. Os olhos contumazes, os lábios aos solavancos.
Despida contava as manchas de bolor, arrumava-as em gavetas imaginárias em lotes de dez
como fazem os caixas dos bancos. Repetia a operação até chegar a um número par. Mas
não se contentava. Dez vezes. Vinte vezes. Trinta vezes. Trinta vezes dez vezes depois. E
mais uma para satisfazer os santos. E outra pela segurança. E outra pelo absurdo que todos
parecem querer ver nisto, mas que para ela é tão só essencialidade. E uma pelos demónios
que a habitam. E quando queria que fosse a última nunca chegava a ser. Queria mas não
conseguia. Queria. Queria. Queria. Queria?
Ouço a voz radiofónica de uma das batas azuis a ordenar que voltem para as celas. Ouçoa debaixo de água. Muito debaixo. Quase tão baixo que diria que não a ouço. Que pena.
Precisava saber o que ela diz. É essencial à minha própria sobrevivência. Que ela diga. Que
a bata azul ordene. Que me discipline, a mim, eu que sou uma crónica e recorrente indisciplinada mental. Mas ela não repete. Caminho pelo corredor. Vejo a Serafina como uma
aranha louca a esbracejar conta o tecto sem nunca o alcançar, com linhas de sangue na cara,
nas mãos, nos seios. Gotas grandes, imensas, redondas. Vejo os seus olhos abertos, desfeitos
em êxtase e queres saber o que penso? Que ela é até muito bonita e que tem um nome que
pergunta pela vida. Melodioso como os últimos acordes de uma sinfonia esquecida. Ou das
que nunca ouvi mas que consigo imaginar. Imaginei quando te passei as mãos lentas pelo
cabelo. Revolto. Revoltado de saúde. De vida. Sem sedativos. Sem anabolizantes. Só com
um resto de seiva do sexo de um desconhecido em cuja barriga soubeste adormecer.
Eram oito da manhã e as batas azuis berravam por nós sem desânimo. Sacudiam-nos nas
camas. Espantavam as réstias de sono doce que nos pendiam das pálpebras. Dos sonhos em
que vivíamos felizes por instantes. E levavam-nos pelos corredores para o duche colectivo. Uma mangueirada de decência nos nossos corpos estremunhados. Verdes. Desumanos
por imposição. Disformes como enormes baleias gigantescas e aberrantes. Aos encontrões
vestiam-nos batas xadrez e atiravam-nos para a lenta trituração da rotina. Dentes. Pente.
Cabelos. Cuecas. Café e papo-seco. Farpas. Duas enormes farpas e um novelo. O desígnio
das mulheres do aquário. E se eu me lembrasse de preferir jogar aos berlindes ou aos matraquilhos? Se a mim o xadrez me tranquilizasse. As batas azuis desconhecem preferências.
Excepto as próprias, que também não têm.
SEIXO REVIEW
33
Tu trouxeste definitivamente à sala de convívio a tua presença apolínea, de galgo real e os
teus dentes brancos prontos a devorar a eternidade. Soube-o logo quando cheguei ao consultório e me pediste que te contasse porque estava ali. Nunca me haviam perguntado tal
coisa e eu própria não o sabia sequer. Sabia que o meu pai me trouxera no Datsun verde e
me acompanhara à entrada. E lembro que me vinha ver todas as tardes embrulhado naquele
Brut 33 adocicado às vezes por um perfume de mulher. E que repetia as visitas com uma
disciplina férrea. E que me agradavam porque ele me penteava, e me ouvia, e me beijava até
se fosse preciso. E me beijava como nunca mais ninguém me beijou.
Até ao dia em que ele não veio. Como não veio no outro. Nem no outro ainda. Até que a
vizinha do lado direito me veio dizer que ele tinha morrido em casa da amante e que a minha mãe nem se tinha dignado ir ao funeral e que era um tremendo escândalo e uma grande
afronta. Embora nunca tenha percebido se o escândalo era o meu pai ter uma amante ou a
minha mãe não ter ido ao funeral do meu pai que tinha uma amante.
Fiquei então só. Como já pressentia que ficaria. Dediquei-me a roer as unhas e a observar
as batas azuis e as outras loucas e fui subitamente compreendendo melhor e melhor a razão
porque me fecharam neste lugar cilíndrico, nesta eterna esfera colada à retina de todas as
mulheres do aquário. Uma linha recta que se autoconsome e nos lembra a fatalidade da
nossa condição.
3
No consultório a que os raios de luz davam um ar sereno pediste-me que me sentasse.
Apetecia-me fazê-lo nos teus joelhos como o fazia em criança nos do meu pai, mas resigneime. Conformei-me com a poltrona ainda húmida da urina da última paciente. O meu nome
é Anabela. Tenho mais de 30 anos. Não me lembro da voz da minha mãe mas sei que no
último dia em que a vi trazia um chapéu azul e um sorriso nos lábios. Não sei o que faço
aqui. Não me lembro de estar noutro lugar, nem de outros cheiros. Nem de outras vozes.
Ouvias-me muito tempo. E com isso ajudavas a que eu me ouvisse também. E eu que queria era que falasses, que derramasses sobre mim a infinita sabedoria das palavras que sabia
desconhecer. Eu que deixava que dissesses o que quisesses. Eu que deixava que pousasses
o olhar nos meus lábios também. Nos meus olhos. Na ponta dos meus joelhos. Nos meus
seios que cresciam perante o teu olhar. No meu colo desprotegido.
A cada sessão fui deixando de me sentar na poltrona húmida. Troquei-a pela cadeira mais
junto à tua secretária de onde te via rabiscar num papel as minhas demências, os meus delírios, os meus devaneios. Os das outras. Os das batas azuis. A minha visão do mundo que
era uma farsa de peixinho vermelho entontecido pelo mesmo percurso secular. Até ao dia
em que me disseste que eu era muito bonita. Que devia soltar o cabelo e ver-me mais ao
espelho. Tinha-te dito que me olhava de tempos a tempos mas era uma redonda mentira.
Afinal não havia quase nada para ver.
34
Redescobri-me no espelho do quarto da Serafina enquanto ela contava os buracos das térmitas na cómoda do fundo. Vi como afinal sempre tinha uns olhos castanhos e profundos.
Vi que a pele ainda estava esticada e fresca, e que os lábios eram vermelhos e os dentes
quase perfeitos. Senti-me de novo orvalhada de mim. Fiquei surpreendida comigo. Fiquei
animada contigo. Tão animada que naquele dia enquanto me medias a tensão te disse como
gostava de ti, com palavras decoradas de uma revista de 77 que a Serafina escondia debaixo
SEIXO REVIEW
do colchão. Nunca respondeste à minha confissão. E eu desisti de ti. E de mim. E de observar as batas azuis. E de olhar para as outras. E de ser peixe. Abandonei-me.
4
Eram onze da noite e rolava-me na cama para adormecer enquanto ouvia a Serafina, que se
tinha mudado para o meu quarto, a contar as estrelas. Não te senti chegar nem me lembro
de quase nada. A não ser das tuas mãos poderosas a palmilharem-me o corpo. A mapearem
as zonas mais ignóbeis, as mais desconhecidas, as mais improváveis. Num canto do quarto,
ante a boca trémula da Serafina que acalmavas com uma voz serena, descobriste todos os
lugares que eu própria desconhecia em mim mesma. E devoraste-me como se fosses um
animal sedento e incompreendido e eu fosse a tua presa indefesa. Desprotegida. Despida.
Abandonada. E mesmo então sozinha. No silêncio do quarto que deixaste atrás de ti quando saíste. No rasto de luz que entrou subitamente na minha vida circular. A Serafina a bater
com força os pés no chão, a tremer e a matraquear… 509, 510, 511, 512…
- Cala-te Serafina, peço-te por tudo, que raio é que contas agora?
–“As estrelas…” - sussurrou ela num fio de voz que não condizia com a força dos pés, enquanto se ia esvaindo e deixando escorregar pela parede para adormecer sentada, com a
testa pregada aos joelhos.
Dei por mim desfeita num sangue lamacento que me cobria as mãos e o ventre. Dei por
mim sem ti. Descobri-me nua, deserta, só como normalmente estou, e soube desde logo
que não poderia esperar nada mais da vida. Desta pelo menos. Talvez por isso não percebi
quando deixei de poder usar as calças xadrez. Não percebi porque me olhavam assustadas
as outras doentes. Nem os risos esganiçados das batas azuis. Nem o raspanete da directora
que me perguntava aos gritos como te escapuliste meu estupor? Eu que nem saberia para
onde fugir se o quisesse fazer. Não percebi ainda quando um volume obsceno que me
enchia o colo não me deixava ver os fios da malha e me obrigava a esticar os braços, que
depois me doíam e faziam retorcer. Não percebi ainda quando me apareceste a pedido da
directora. E quando me levaste aos solavancos para a poltrona húmida. Com a mesma urina.
Da mesma doente. Aquela com olhos esbugalhados de sapo e guelras em vez de nariz e me
perguntei subitamente se a humidade viria do pântano da sua vida. Não percebi a não ser
quando vi nos teus olhos uma frieza nova e inusitada que me enfiava mais e mais na poltrona, fazendo-me entranhar a sua súbita humidade. E à frente da directora me interrogaste
como se não soubesses que eu não falaria, e me disseste que havia coisas naquele lugar como
códigos de conduta e medidas e regulamentos e horários e infracções e punições. Não sei
quantas coisas me disseste, mas sei que cada uma fazia menos sentido que a anterior e do
que a seguinte. E eu ouvia-as com a estranha sensação de não ouvir como acontecia com as
batas azuis, até que percebi que te havias transformado numa delas, numa delas… Numa
delas. De bata. Azul. Com um riso grotesco a bailar-te nas bochechas. E eu sentia outra vez
ao longe as tuas mãos a treparem-me e a cobrirem a cara dura da Serafina. Dura e trémula.
… 512, 513, 514, 515 vezes pensei nisto e senti que a humidade me devorava, me carcomia
como as térmitas à cómoda da Serafina. Cheia de água, peixe estranho, círculo coberto sobre mim. Infinitamente eu. Sem vida. Aqui ao pé das tuas advertências vulgares.
5
Ainda hoje sei que eras tu que me entraste no quarto umas horas depois e que me deixaste lá
o perfume do sexo de outra mulher qualquer a quem terás dito que era bonita e jovem e que
se deveria olhar muitas vezes ao espelho. Mas já não serve de nada saber seja o que for. Nem
SEIXO REVIEW
35
de que cor fica o céu quando chove. Nem de que cor fica o mar quando não. Já não serve de
quase nada. Apaguei a última luz que havia em mim. Mesmo sem perceber porque o fazia.
Como também não percebi quando me pediste para esconder aquela caixa de comprimidos
e tomá-la durante uns dias sempre à mesma hora. E que eu era afinal muito bonita e que
tinhas fingido aquilo tudo para a directora, mas que tudo se havia de compor, de arranjar, de
resolver por bem. De… resolver por bem para quem? Quem é afinal o peixe deste aquário?
Não serás tu também um prisioneiro de causas perdidas?
Não percebi mesmo assim quando me passaste os olhos de galgo outra vez pelo corpo, e
mais outra e outra vez ainda e pousaste nos lábios enchendo-te de mim e eu pude então
imaginar o teu sexo, os teus músculos, a tua saliva sobre mim e os olhos da Serafina naquele
breve instante em que ela nos evitava para depois regressar. Não sei que novas águas procurei em ti. Nem sei porque não as pude encontrar.
Mesmo quando começaram as convulsões, e as dores, e os desmaios que me atolaram definitivamente a uma cama. Mesmo quando de dentro de mim só saíam águas ensanguentadas e vazio. Mesmo quando dei por mim a puder cruzar as farpas sem que me doessem os
braços enquanto via crescer a malha farta no colo. A mesma malha afinal que me poupava
de ser mais louca do que sou e menos curável. Não soube o que fazer do teu rasto em mim,
dos olhos que insistem em fixar-me no escuro e do que parece restar de mim. Talvez por
isso achei melhor apagar a última luz que me mantinha viva.
Sabes, é que não sei se te disse que me parecia ver mar em frente. Mesmo ali. Que me parecia ver um tronco de terra muito próximo. E era tão real que lhe conseguia cheirar a maresia,
e sentir o seu toque fresco e prová-la na língua, nos dentes, no palato. Dentro de mim. Fresca e viva. Para logo este rio de sangue me povoar como a um moribundo. Este rio quente e
inapagável que me cobre as mãos, me queima os olhos, me faz cuspir sobre os braços as suas
gotas grossas, redondas, circulares. Que não me deixam soltar, que me amarram afinal e que
me lembram enfim porque estou aqui. Neste imenso aquário.
Cláudia Cardoso nasceu em Angra do Heroísmo (Açores) em 1973. É licenciada em Línguas e Literaturas
Modernas (variante de Português/Inglês) pela Universidade dos Açores (1996). Concluiu a parte curricular do
Mestrado em Cultura e Literatura Portuguesas com 17
valores. É professora de Língua Portuguesa, leccionando
ensino básico e secundário. Parlamentar à Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores desde 2000.
Integrou o VIII Governo Regional dos Açores de 2002 a
2004 como Secretária Regional Adjunta da Presidência.
Participa com frequência em conferências, colóquios e
seminários sobre diversas temáticas e é colaboradora habitual da imprensa regional. Vive em Portugal.
36
SEIXO REVIEW
entrevista
À conversa
com José Francisco Costa
onésimo TEOTÓNIO ALMEIDA
E
m inglês diz-se disclosure e deve fazer-se logo de entrada. Aqui fica pois: o
meu entrevistado é velho amigo. Conhecemo-nos em criança, nem nos tinham sequer despontado os primeiros pêlos do bigode, já que usávamos
mesmo ainda calça curta quando nos aliciaram a entrar no seminário-colégio de Ponta Delgada, nos Açores. Não me recordo de quando começámos a
ser amigos porque não foi acontecimento de fixar data. O rolar dos dias e a
camaradagem que se foi desenvolvendo entre as dezenas de estudantes que
depois passou ao Seminário de Angra acabou por nos carimbar com o selo de
tantas experiências comuns durante a fogosa, idealista, apaixonante década
de sessenta nesse lento mas firme quebrar a casca do ovo que nos fechava na
ilha deixando-nos abrir para o mundo à nossa volta e para esse maior, além
do mar, que acabou por ter força de atracção mais poderosa. As ondas da vida
foram-nos empurrando em percurso sempre próximo acorrentados por uma
amizade que as tempestades da vida nunca conseguiram rebentar. Agora aos
sessenta anos, ela tem as últimas décadas já a quatro, porque partilhada pelas
nossas caras-metades.
SEIXO REVIEW
37
Trabalhamos em áreas comuns. Temos amigos comuns. E, na graça, até a Maria Alice, da nossa roda
de afectos, já sugeriu que deveríamos arranjar, para os oito ou dez que mais frequentemente nos
encontramos, uma casa de terceira idade só para nós. Enquanto o Zé (o meu entrevistado José Francisco Costa) tivesse forças para agarrar do violão e nós de puxar pelas gargantas, a casa não se deixaria
atolar na tristeza.
Posta esta introdução em jeito de pré-aviso, acrescentem-se dados secos, quer dizer, sem os adjectivos
que eu lhes teria juntado se não fôssemos velhos amigos, visto que se agora o fizesse soaria a compadrio. Por acaso nem somos compadres. Não nos convidámos mutuamente para padrinhos dos nossos
filhos.
José Francisco Costa nasceu nas Capelas, S. Miguel, Açores, em casa sobre o mar, que nunca mais o
largou. Filho de António Medeiros Costa e de Maria do Nascimento Rodrigues. Casou com Lourdes O. Costa, setubalense, enfermeira-professora em Providence. O casal tem três filhos (Tiago, Teresa e André), e quatro netos. Se acrescentar que são lindos deveras, não fujo ao decoro porque não é
ao meu amigo Zé que estou a elogiar.
Doutorou-se em Literatura Portuguesa Contemporânea na Universidade de Massachusetts Amherst
depois de ter feito um Mestrado em Estudos Portugueses e Educação Bilingue, na Universidade da
Brown. Antes, tinha frequentado a Universidade Católica Portuguesa e obtido um bacharelato em
História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
José Francisco Costa tem publicado poemas, contos e ensaios em jornais, revistas nos Estados Unidos e em Portugal, tendo vários dos seus escritos sido recolhidos em antologias. Publicou já dois
livros de contos – Crónica do 25 e Mar e Tudo – e um de poesia, intitulado «E da carne se fez verbo»,
bem como o estudo «A Correspondência de Jorge de Sena – um outro espaço da sua escrita», a sua
tese de doutoramento. Tem,
em separata, um estudo sobre
literatura africana de expressão
portuguesa. E recentemente
traduziu e editou o livro «Saudades», de Frances Dabney. É,
ainda, autor de composições
musicais – letra e música – tendo mesmo uma delas, «O Velho
Pèzinho», sido vencedora num
Festival da Canção Emigrante.
Esta canção, bem como os poemas «Antes da ida – espiritual
Açoriano», «Roda de Leme»,
«Lua das Ilhas», «O Outro
Tom da Sapateia» estão incluídos num LP do Duo Ouro Negro, e em Cds do Grupo Coral
das Lajes do Pico, do Coral de S José, de Ponta Delgada, do Grupo Coral «Herança Portuguesa», de
Carlos Alberto Moniz, e do Grupo de Cantares Belaurora, das Capelas.
Radicado, desde 1978, em Providence, José Francisco Costa tem desenvolvido parte da sua actividade, como professor, em escolas portuguesas e americanas, tendo sido, durante duas décadas, o director pedagógico da Escola Portuguesa de East Providence. É professor de Português e Director do
LusoCentro no Bristol Community College, em Fall River.
Posto este discorrer introdutório, vamos à conversa com o homem, o escritor, o artista e o professor.
38
SEIXO REVIEW
OTA – Foste sempre um criativo mas também um
actor. Interpretaste sempre muito bem os papéis que
outros escreveram mas, a partir de certa altura, passaste a manifestar por escrito a tua faceta criadora
que estava dormente ou preguiçosamente letárgica.
Curiosamente ela começou a aparecer em público na
música. Queres contar como surgiu o “Velho Pezinho”,
que hoje anda disponível em Cds, interpretado por vários grupos, desde o infelizmente desaparecido “Duo
Ouro Negro” até ao “Belaurora” e ao “Grupo Coral das
Lajes do Pico” e que alguém de repente pode ouvir em
fundo ao entrar na Casa de Chá do Porto Formoso ou
interpretado em Lisboa ao vivo, apresentado pelo intérprete como canção popular do folclore do Pico.
diferença, em qualidade, entre uma e outra. Penso que
a música foi só para ajudar. Por isso, a letra, no seu todo,
saiu sempre em primeiro lugar, com excepção (se a memória não me falha) de uma estância do ‘’Velho Pezinho’’.
E não foram estes os primeiros poemas. Os que apareceram em primeiro lugar são de cariz mais intimista. Alguns estão publicados, outros andam por folhas perdidas,
e uns poucos esperam à porta da minha paciência.
A “diáspora” tem quase tudo a ver com muito do que
escrevi até há pouco tempo. A experiência do “andar por
aqui”, somada à proto-emigração de S. Miguel para Santa Maria, daquele para a Terceira, e das ilhas para “Lisboa”, agudizou em mim o sentimento da errância e da
peregrinação. E, já que me consideraste “actor”, reconheço que muitas peças nasceram de situações dramáticas
JFC – Como tudo tem um princípio e um fim, aqui vai. vividas e, ou, reinventadas.
Andava eu ainda verde nas andanças de imigrado, nos
idos de 80 do século passado. Assolara-me, para além OTA – Nas letras dessas canções está estampada a
das normais saudades, uma necessidade enorme de me marca de poeta com um notável domínio do verbo, deaproximar de tudo o que me ajudasse a confirmar as mi- finitivamente estabelecido no livro “E da carne se fez
nhas origens. E isto porque, de mistura com os receios verbo”, mas também nelas se notam marcas que fazem
de quem põe os pés no desconhecido, fui acometido do encaixar a tua poesia numa longa tradição. Queres
medo de que me iria definitivamente perder de dois lu- falar dos teus poetas e poemas preferidos e contar se/
gares e tempos sagrados – Açores e Lisboa (No primeiro, como te moldaram o gosto poético?
nasci. No segundo, cresci o resto que me faltava para ser
adulto.) Foi então que a criatividade de que falas me ser- JFC – Obrigado, mais uma vez, por me empurrares para
viu de tábua de salvação. Deixei que a insularidade, em o panteão … Sou um leitor eclético, o que, somado à
mim subjacente, substituísse o medo de nada ser. Com minha fraca memória, me deixa continuamente no vazio
naturalidade, aceitei a minha identificação com o mar de das influências. E, quanto a ser poeta, prefiro incluir-me
gente insulana que por aqui moureja. Comecei a repre- no número dos loucos. Aceito que o que escrevo e o que
sentar tudo isso nos versos que me foram acontecendo. publiquei têm marcas ténues do meu contacto com alE cantarolava frases soltas, que tinham todo o sentido guns dos «grandes» que tive que ler, de entre os quais,
de espantar males. Uma noite, em Newport, estando eu um ou outro me «caiu no goto». Digo-te, pois, que, se eu
à pesca com o meu irmão, apareceu-me o refrão do «Ve- me pensasse “poeta”, gostaria que a minha escrita aprelho Pezinho». E obriguei o meu querido companheiro sentasse alguns vestígios do sabor do lirismo essencial de
da faina a repetir a melodia até de madrugada. O resto Camões, e um tudo-nada da dramaticidade de Pessoa,
chegaria uns dias mais tarde, com a ajuda da Lourdes e com uma ténue ambiência do existencialismo agónico de
da minha guitarra.
Sena, e marcas da contemporaneidade de Manuel Alegre e Ary dos Santos, e uns rasgos da concisão de EduíOTA – No “Velho Pezinho” como n” O outro tom da no de Jesus, mais alguns traços da suavidade telúrica de
Sapateia” e outras canções tuas, não se sabe o que é Nemésio, e a toada de insularidade amorosa de Roberto
mais bonito: se a letra se a música. O que nasceu pri- de Mesquita, Pedro da Silveira, Emanuel Félix, Armanmeiro? Foram esses os teus primeiros poemas? E a do Côrtes-Rodrigues. E gosto de ter, sempre à mão de
experiência da diáspora teve alguma coisa a ver com o semear, um dos nossos Cancioneiros. E leio, saboreando
seu aparecimento?
o meu próprio sotaque, o António Machado. Mas sei
que destes poetas, porque não os apreendi e interiorizei
JFC – Embora percebendo aonde queres chegar com suficientemente, só me ficou a vontade de os seguir a esta
«o não se sabe o que é mais bonito» (a amizade tapa os enorme distância que vai entre mim e eles. Parafraseanolhos e os ouvidos, e abre a boca ao coração …), sinto a do um dos personagens da Agustina Bessa Luís (penso
SEIXO REVIEW
39
que n’ A Sibila), o que haverá de comum entre mim e eles
é só o sonho.
OTA – Os teus contos do livro “Mar e Tudo” deixam
bem claro que a musicalidade da tua poesia consegue
prolongar-se na prosa, mesmo a narrar experiências
duras da emigração. O aveludado da tua escrita não
se deixa arranhar pela crueza das cenas relatadas, sobressaindo sempre a nota poética, muitas vezes melancólica, a unir coesamente o verbo e o real. Os contos
conseguem conciliar a dureza quase neo-realista da
narrativa com uma prosa poética que quase pode viver
sem esse suporte no mundo autêntico. Como te surgiram essas estórias?
JFC – Quase do mesmo modo como apareceram os poemas. Só que, nos contos, sonhei e acordei mais vezes. Tive
mais tempo para ir ao fundo das gavetas que encontrei
abertas na memória. Conjurei personagens e deixei-os
falar do que sentiam, quase num silêncio envergonhado
de quem nunca poderá dizer seja o que for. Eu penso
os meus personagens como seres definitivamente inacabados mas nunca desfeitos. Considero os meus contos,
(estou a parafrasear Sena) como romances (que nunca
escreverei) em suspensão; são, por assim dizer, o registo
de momentos de contemplação de personagens que me
visitaram. Só que as minhas estórias limitam-se a um
tempo e espaço que eu recrio mas que não posso e não
quero multiplicar. Porque respeito a autenticidade dessas
criaturas, não me atrevo a tocá-las, uma vez que apareceram. E daqui o não expandir-me em revisitações ao que
já escrevi. Cada conto é um flash de uma vivência. Não
imagino praticamente nada. Junto, como posso, linhas
do que me contaram, do que os meus olhos viram ou
o coração percebeu. Há personagens que se dão muito
bem com um tal jogo afectivo. Há outras e outros que
me abandonaram. Viraram-me as costas sem que eu os
pudesse escrever. A culpa é só de quem – eu – não as
soube trazer para a escrita, recriando-as na ficção. Pelo
que concordo com o que afirmas no início da entrevista:
sou um “criativo” aspirante a criador.
OTA – Onde estão as estórias que se lhes deveriam
seguir?
que alguém os aceite para publicação. E, como acontece
a muita gente, lá por casa andam notas soltas, começos e
fins de estórias, versos desencontrados. Papéis.
OTA – Desde os tempos em que traduzias latim e, para
espanto de colegas teus como eu que disso se aproveitavam para não terem trabalho, dizias gostar de o fazer. O facto é claro: a tradução sempre te atraiu. Agora
apareces com a versão portuguesa do livro “Saudades”.
Queres falar desse projecto?
JFC – Traduzir era como resolver um quebra-cabeças. Se
não fosse professor a tempo inteiro, pensaria a sério na
hipótese de ser tradutor. Dito isto, “Saudades” é um projecto que nasce também do facto de eu gostar de traduzir.
Só que quis levar mais a sério a experiência de trasladar
uma língua, que já não me é estranha, para a que veio
comigo a este mundo. O facto de ser uma mulher que
escreveu e narrou as estórias despertou-me ainda mais
interesse para avançar com a versão portuguesa recentemente publicada. Depois, há um factor que deveras
me entusiasmou: a autora, Frances Dabney, acaba por
ser também e/imigrante, mas em processo inverso, e por
razões pouco coincidentes com as que a quase todos nós
dizem respeito. Quando o professor Art Lothrop, meu
colega do departamento de Inglês, me disse que tinha
encontrado no sótão um livro escrito em Inglês mas com
título em Português (ainda me recordo do seu esforço
para pronunciar o nosso tão querido fonema), imploreilhe que mo trouxesse. Ao outro dia, tinha nas mãos um
dos 100 exemplares que existem do livro “Saudades”.
Aproveitei o verão em S. Miguel (Eu precisava de ambiente muito próximo daquele em que a narradora se envolve para contar o que vem no livro.), e iniciei a tradução, que ficou praticamente concluída. Ficou o projecto
na gaveta, à espera … Quando iniciei o LusoCentro, o
meu primeiro projecto foi a produção, em colaboração
com o departamento de teatro, de uma colagem cénica
baseada nas “Saudades” e no “The Sea Within”, da tua
Gávea-Brown (e onde saíra já a minha tradução). Com o
entusiasmo gerado pela experiência do teatro, e graças ao
apoio da Direcção Regional das Comunidades, foi possível a edição bilingue do livro.
OTA – E a tradução do longo poema “The Summer
People” do grande poeta James Merrill?
JGC – Dizes bem: “deveriam seguir” … Não te disse que
houve personagens que me viraram as costas?! No entanto, lá fui escrevendo. Tenho praticamente organizado JFC – Depois de um poema, também longo, de Art
mais um volume de contos, que vou guardando, à espera Coello, de que fiz uma tradução livre, tipo “descolagem”
40
SEIXO REVIEW
do original, e em que me senti relativamente à vontade,
dado o contexto ilhéu e açórico (“Vinho da Fajã” é o
título) da peça, devo dizer-te que não esperava tanta dificuldade na tradução do poema de James Merrill. Para
além de determinado contexto de vivência pessoal que,
de algum modo, me inibiu de trabalhar o poema até aos
limites da minha liberdade de tradutor/criador, houve
outros factores que contribuíram para que a experiência
não se tivesse revestido de todo o seu natural sabor. Em
primeiro lugar, a forma do poema não deixa margens
para qualquer desvio no que respeita a métrica, o ritmo,
e mesmo a própria rima. Depois foram as dificuldades
que se me apresentaram na devida escolha do vocabulário, sobretudo nos casos em que é evidente o risco de
pormos tudo a perder se a única hipótese que resta é, por
exemplo, o emprego de uma palavra que quebra, e até
mesmo dissolve, a fluência que vínhamos seguindo quer
no original quer na tradução. Bem difícil de contornar é
também o facto de o texto ser um poema narrativo que
vem na linha de outros que ele escreveu muito virados
para a intimidade e a experiência pessoal, num contexto
de grande familiaridade com ambientes reais (a sua Water Street, por exemplo) que só o poeta – e um grande
poeta – pode referenciar na escrita. E, para terminar, fui
assoberbado pela quase impossibilidade de imprimir à
tradução a musicalidade de que me ia apercebendo à medida que lia e relia o original. Enfim, foi uma grande experiência. Acabei o poema. Arrumei-o na gaveta. Gostei.
Aprendi. E até já fiz duas incursões a dois poemas sobre
os Açores, um escrito por John Updike, o outro por John
Malcolm Brinnin.
OTA – Escreveste uma tese de doutoramento sobre
a correspondência de Jorge de Sena. Queres contar
o que fizeste com essa correspondência e o que nela
descobriste (se é possível fazê-lo num punhado de parágrafos)?
JFC – Em primeiro lugar, e citando meu avô, quando
tinha que justificar o ter-se entretido em alguma coisa
que pouco ou nada rendera para a economia da casa,
“aquilo não passou dum carpicho”. De facto, caprichei em
não deixar em aberto um ciclo que iniciara, havia tantos
anos, no Seminário, passando pela Clássica de Lisboa,
até à Brown, em Providence. E foi nesta última escola que contactei a sério com o poeta, ensaísta, contista,
romancista e tradutor, cuja correspondência viria a ser,
mais tarde, objecto da tese que defendi na universidade
de Amherst. Passe esta justificação pessoal e historicista,
aqui vai, em três parágrafos, o que fiz com as cartas de
Jorge de Sena.
Até à data em que iniciei o texto final da tese, estava publicada a correspondência que Sena mantivera com Guilherme de Castilho, Mécia de Sena, José Régio, Vergílio
Ferreira, Taborda de Vasconcelos, Eduardo Lourenço,
Edith Sitwell, Dante Moreira Leite e Eduardo Mayone
Dias. Foram estas cartas (e até postais) que me serviram
de fonte primeira da investigação. Isto porque existe ainda um grande volume de correspondência que a esposa,
Dona Mécia de Sena, vai amorosa e pacientemente organizando para futura publicação. Como prova disso, acaba
de sair mais um livro com a correspondência entre Sena
e Sophia de Mello Breyner. Mediante uma análise sistemática das cartas, tentei aproximar os conteúdos desta
área da escrita de Jorge de Sena às ideias-força que norteiam toda a sua escrita, em especial a poesia e, de algum
modo, a ficção. Por outras palavras, eu parti da minha
própria intuição de leitor atento para a certeza (muito
pessoal, diga-se), como aprendiz de crítico em maior
profundidade, de que Jorge de Sena escreveu grande
parte das suas cartas com evidente “preocupação de literariedade”. Propus-me verificar se, na epistolografia, e
pelo menos implicitamente, estão presentes as grandes
coordenadas que críticos como Jorge Fazenda Lourenço,
Francisco Cota Fagundes e Luís Adriano Carlos analisam nos seus estudos sobre Jorge de Sena.
Descobri, então, que os conceitos fundamentais que enformam a escrita poética seniana – como sejam o “testemunho”, a “peregrinação”, o “exílio”, a constante caminhada da humanidade, em processo de “metamorfose”,
para uma “coroa da terra” onde será possível a humana
felicidade – também estão presentes nas cartas. A atmosfera de contextualidade, que se verifica na poética,
expande-se para a epistolografia, pelo que Sena consegue coesão literária em todo o corpus. Em toda a obra
(correspondência incluída) é evidente a preocupação de
Sena em manter a marca da voz de profeta e testemunha, o que, para ele, é apanágio unicamente dos grandes
poetas
Um dos seus “temas poéticos” mais recorrentes é, sem
dúvida, o exílio. Desde que, em 1959, partiu com a família para o Brasil, Sena interioriza a condição de exilado,
que transfere, implícita e explicitamente, para a escrita.
De tal modo me convenci que a epistolografia é parte
integrante dessa importante componente da obra, que
dedico um capítulo exclusivamente ao tema, considerando as cartas como a “notícia de errância” do poeta.
A minha mais saborosa descoberta foi que, ao contrário
SEIXO REVIEW
41
do que à primeira vista possa parecer, dado o tom de
“azedume” que perpassa por alguns escritos (para o que
já José Régio lhe chamava a atenção), Jorge de Sena é, a
todos os níveis, um poeta amoroso. A correspondência aí
está a evidenciar o que, na poesia, se guinda ao que de
melhor Jorge de Sena escreveu. Atraído por esta faceta
do poeta, desenvolvi um capítulo que trata exclusivamente da correspondência entre o poeta e a futura esposa,
Mécia de Sena. Penso que Sena, que, numa carta a Mécia,
A mó do desejo
José Francisco Costa
E do rolar
da pedra da moenda
nasceu-lhe a melopeia:
quem me dera quem me dera quem me dera quem
Alvas as mãos
puseram-se a contar
as vezes que amou:
Plantou-lhe mais um beijo
e foi-se
Dormiu na cama dela
e foi-se
Deixou o cão fugir
e foi-se
E pôs-se em confissão
e foi-se
Jurou qu’ia voltar
e foi-se
Chorou a noite longa
e foi-se
Rezou uma promessa
e foi-se.
E era o sonho para ser
De outra maneira e feitio.
Nem tudo estava perdido.
Mas era um todo imperfeito.
Só lhe aumentava o desejo
Cada vez mais que perfeito:
quem me dera quem me dera quem me dera quem
(Um dia regressou
e foi-se)
42
SEIXO REVIEW
escreve “... Posso estar a fazer uma espécie de literatura
contigo, a da convicção da felicidade.”, viveu, e manteve,
de tal modo essa relação que ela, como afirmo no referido capítulo, terá sido motor e “ambiência de produção de
grande parte da [sua] poesia amorosa e erótica”. Afinal,
e na esteira da nossa melhor tradição artística, Jorge de
Sena é também um grande poeta lírico.
OTA – A tua experiência emigrante ensinou-te alguma verdade que te passaria à margem caso tivesses ficado em Portugal? Imagina que te tinhas deixado ficar
por lá. Que estaria a fazer hoje o J. F. Costa? Serias historiador, pondo em prática o teu treino na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa?
JFC – Se não tivesse emigrado, a verdade é que possivelmente não teria aprendido algumas lições que constam
no meu vital currículo. A experiência acabou por ser uma
vivência. Seria impossível imaginar-me outro que não eu
próprio, agora, e resultado de uma decisão tomada, já lá
vai metade da minha vida. Por lá? Neste momento, o
mais certo é que estaria a terminar a carreira de professor
do ensino secundário. Ou então, andaria a queimar as
pestanas pelos arquivos da Torre do Tombo, dando largas à minha tentação de indagar o pormenor e ao gosto
de traduzir. Com efeito, estava a um passo de enveredar
pela paleografia quando, ao terminar o bacharelato, eu e
a Lourdes decidimos embarcar. A única verdade é que
nunca saberei onde teria sido possível ter aprendido mais
e melhor – se no lado de cá, ou na outra margem, de toda
a decisão honestamente tomada.
OTA – Que ideias mestras têm norteado a tua intervenção no LusoCentro, que criaste no Bristol Community College?
JFC – Uma das ideias fundamentais que estiveram na
base da criação do centro é a de procurar dar maior visibilidade à nossa presença dentro da instituição. Mas,
para que tal aconteça, temos que justificar essa mesma
presença com acções concretas, a primeira das quais foi
o estabelecimento de um certificado para intérpretes, e
em que são obrigatórias, pelo menos duas cadeiras de
Português (Língua e Literatura). Já temos também um
espaço próprio na biblioteca geral destinado à “Biblioteca da Lusofonia”. Importante também é atrair outros colegas e departamentos para a realidade lusófona. Como
exemplo, o departamento de teatro já levou à cena uma
colagem cénica sobre o tema “Saudade” no mundo lu-
sófono. O projecto da tradução e edição “Saudades”, de
Frances Dabney, tem avançado sempre de parceria com
o departamento de Inglês e a Secretaria Regional das
Comunidades dos Açores. A outra preocupação fundamental é tentar uma maior aproximação da escola à comunidade portuguesa e vice-versa. Para tal, organizamos,
ao longo do ano, vários eventos culturais em colaboração
com organizações locais. Além disso, o centro está continuamente disponível para prestar informações, em português, sobre tudo o que diz respeito a programas, cursos,
matrículas e propinas. Enfim, vou fazendo por que se
mantenha (E espero que quem atrás vier faça o mesmo e
melhor.) e perdure um sinal do que somos por aqui.
OTA – Agora que já fizeste tanta coisa e já tens quatro netos, o que te falta fazer? Ou pelo menos, o que
gostarias de fazer em termos de criação literária e/ou
artística?
JFC – Se tivesse tempo e oportunidade, gostaria de iniciar, com uma equipa de gente empenhada, uma série de
unidades didácticas, para ensino à distância, que serviria
o nível de iniciação do português como segunda língua,
e destinada às escolas portuguesas no estrangeiro. Sonho
com a publicação de mais dois ou três pequenos livros,
com coisas que vou escrevendo.
OTA – E o regresso às raízes da terra e mar? Só no Verão? O apelo é forte? Como lidas com ele?
JFC – No Verão vou sempre molhar os pés na água, consolar a alma, benzer-me com o sal, com o verde e o cinzanil da terra. Mas, como estou dividido – e tal facto vai,
a pouco e pouco, perdendo o tom arroxeado de despedida – deixo que o apelo me incomode e venha comigo
até à fronteira para além da qual está a outra metade do
mundo onde vivo o dia-a-dia. Entre um “paraíso perdido” e outro não encontrado, por aqui vou andando, neste
chão onde outras raízes minhas já mergulharam.
Peixe voador
José Francisco Costa
Treme translúcida de freima
a folha de prata
cinza azul emersa líquida
imagem do mar.
Treme nos olhos da tarde
o pó violeta
só colorido lampejo
em memória vaga.
Treme o tremor da gotícula
sem dor expelida
no éter de virgem vinda
em placenta aquosa.
Treme nos lábios do sol
a ternura quente
ao aconchegar-se um deus
alado na espuma.
Tremeluzente é a cor
da hora do sono
em que mar e terra dormem
num lençol de paz.
OTA – Esta pergunta é só para não terminar na 13ª. Se
terminasse, como reagirias? Se não te causaria qualquer mossa, deixa então ficar as treze e aproveita para
responder à pergunta que não me ocorreu perguntarte mas a que tu gostarias de responder.
JFC – Não te levaria nada a mal se tivesses terminado
na 13a. Aproveito para te agradecer não me teres feito
aquela pergunta para a qual eu não tinha resposta.
SEIXO REVIEW
43
This is a beautiful collection of poems by one of the most important Greek poets, Constantine Cavafy, translated from the
original text by Manolis, another very talented Greek-Canadian poet. Translations are most effective when they pay attention to the contextual integration of the author’s culture, its mannerisms, the resonance and reach of the words, making the
flow from one language to the other appear natural, not acquired. When a poet translates another poet’s work, it is like a
musical exchange. This is exactly what Manolis did with Cavafy’s poetry: unwrapping creatively the pulse and the rhythm
of the original text. He doesn’t disturb the breathing and fulgurations of this melodious voice from Alexandria. Actually, he
joins these timeless songs which are Cavafy’s poems, and sings along in a duet that bridges over from Greek into English in
the most harmonious manner.
Eduardo Bettencourt Pinto, author of Travelling With Shadows
Just released
Constantine P. Cavafy
Translated from Greek
by Manolis
For more information please visit
www.libroslibertad.ca
Translations, like everything else, wear out over time, as language, and those who read or use it, change. With a poet like
Cavafy, who was so precisely tuned to the idiom of his peers,
it is even more important to update the English versions of
his poems
frequently, so that they have the same immediate resonance
with the times as the originals had with their time. This is, of
course, an impossible task. There is no single word, much less
any phrase, that has exactly the same weight and hierarchy of
primary and secondary meanings in another language. Add
to that the differences in sound patterns and rhythmic signatures or emphases, and it becomes clear that the best one
can do is to approximate, sometimes by straying from the
awkwardness of literal, dictionary definitions, the poetic effects of the original poems. Robert Lowell called his attempts
“Imitations” and I think that the ambition and humility of that
designation makes it a more or less accurate label for what is
presented here, English versions of a celebrated body of work
that could never have been written in English, much less in
Canadian English with our vastly different history and culture,
different even from the English that evolved in Britain over
many centuries. Certainly there are problematics that have
remained unresolved, and occasional passages of unavoidable
clumsiness, but we have tried to approximate both Cavafy’s
intimate, precise sense of
idiomatic speech, and his consummate ear for traditional
forms revitalized by the Demotic Greek of Alexandria. If we
haven’t fully succeeded, our hope is that something of the
poet’s distinctive genius and skill remains, and remains accessible to our readers, if only as a trace element here and
there, or in the cumulative force of the book as a whole.
George Amabile
Cavafy’s soul is barely contained by the dam of reason. It escapes in spurts of ink. Urgency, despair, enormous guilt and anger. A tortured man seeking oblivion from himself. Time and society are his jailors. Secretly written words his only escape.
A rose blooms. Petals upon petals unfold, and one awaits the time when there are no more. But there is no taking your eyes
from the process. It is like peeking through a hole in the wall, watching a man undress his soul.
Luisa Maria Celis, author of Arrows in the Sky
44
SEIXO REVIEW
Da Obra de NANCY T. BADEN:
Literatura, Luso-americanidade e Algo Mais
vamberto
FREITAS
A
A obra de Nancy T. Baden1, tanto no que diz respeito à experiência imigrante açoriana nos EUA
vista através da literatura como no que toca à universalidade da criação artística no mundo de
língua portuguesa, muito especialmente no Brasil, merece, como escrevi num in memoriam2 poucos dias após o seu falecimento, um outro olhar mais pormenorizado, não só pela sua qualidade
pioneira entre nós, como pelos “motivos” muito próprios que a levariam a tal tarefa, a partir do
início dos anos 70, até ao início da década seguinte. A obra “luso-americana” de Baden constitui
um acto de grande rigor teórico e objectividade, e vem demonstrar como a investigação na academia poderá ser também provocada ou estimulada por puros afectos pessoais, pela necessidade
de maior aproximação aos que, no decurso de uma vida, se tornam amigos e colegas com direito
à dignificação da sua identidade num país tão vasto e humanamente complexo como os EUA.
A verdade é que, após a chegada de alguns alunos lusos à sua universidade no sul da Califórnia
no princípio dos anos 70, Baden, que até então se tinha dedicado exclusivamente ao seu campo
eleito de estudos brasileiros desde o início da sua carreira, sentiu a necessidade de melhor conhecer esses mesmos alunos, o seu passado ancestral, a sua comunidade, as suas teias, uma vez mais,
de afectos e “obrigações” culturais e familiares, as limitações dos seus alunos e as suas potencialidades adentro de uma vivência e realidade em comunidades como as nossas na Califórnia da
época. Baden sabia de antemão que as comunidades eram “fechadas”, socialmente conservadoras,
e sobretudo sem qualquer tradição educacional no Ensino Superior daquele país. Foi única nesse
seu generoso modo de ser e estar, mas, como em breve veremos, nada disto nos surpreenderia em
1 Professora de Espanhol e Português no Departamento de Línguas Estrangeiras, na California
State University, Fullerton, de 1969 até ao seu falecimento a 6 de Março de 2004. Para além do seu
trabalho pedagógico, ensaístico e intelectual, exerceu grande influência entre os seus colegas durante toda
a sua carreira universitária. Num in memoriam que escrevi e foi publicado nos Estados Unidos e aqui
nos Açores, eu citava um outro grande amigo e colega de Terry na mesma universidade, o Prof. Doutor
Ronald Harmon, também ele especializado em língua portuguesa e cultura brasileira. “Terry – escreveume Ron Harmon – teve uma tremenda influência positiva sobre todos os seus colegas do Departamento
de Línguas Estrangeiras. Era mentora para todos. Vários colegas me comentaram quanto ela os tinha
ajudado, como a mim, guiando, protegendo, apoiando em todo o momento, sem nunca exibir a mesquinhez e o egoísmo que, infelizmente, são tão comuns em ambientes académicos. Foi realmente uma força
indispensável para o nosso Departamento num período crítico de sua formação”.
2 Publicado com o título “Em Memória de Nancy T. Baden”, em Maré Cheia/Página de Artes
e Letras do Portuguese Tribune, San Jose, Califórnia, 1 de Maio, 2004; Portuguese Times, New Bedford,
Massachusetts, 29 de Abril, 2004; SAAL-Suplemento Açoriano de Artes e Letras, n. 15, revista Saber/Açores,
Ponta Delgada, Maio de 2004.
SEIXO REVIEW
45
retrospectiva.
3
Para ela, o acto pedagógico a nível universitário deveria obrigatoriamente passar por esse conhecimento dos alunos, e no caso dos açorianos, nem os números mais do que reduzidos justificariam
um alheamento, que seria de todo compreensível, por parte dela ou dos seus colegas. Um dos primeiros
livros “açorianos” na América que li chegou-me, naturalmente, pelas suas mãos, Ah! Mònim Dum Corisco! … de Onésimo T. Almeida, levando à minha primeira recensão publicada em Portugal.4 Até então,
eu próprio permanecia totalmente distanciado e desinteressado do meu próprio mundo imigrante circundante e onde residiam todos os meus mais próximos, perseguindo a todo o custo a minha formação
em Estudos Latino-Americanos, sem sequer pensar que o meu futuro viesse a estar de algum modo
ligado à terra natal. Menciono isto só porque ilustra a pessoa, a professora e a ensaísta, que em breve
daria grande contributo aos estudos literários da nossa imigração na América. Nos últimos anos da sua
vida, regressaria com força à literatura brasileira contemporânea.5 Foi nessa fase que ainda trabalhou
extensamente naquele que viria a ser a sua opus magnum, The Muffled Cries: The Writer and Literature
in Authoritarian Brazil, 1964-1985,6 um estudo, como então também escrevi na peça anteriormente
referida, fundamental para o entendimento da “criação literária na ausência de liberdade política”, nomeadamente durante os anos da ditadura que governou o país quase duas décadas, e de que falarei um
pouco mais adiante.
Nancy T. Baden doutorou-se em 1971 na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, com a
dissertação Jorge Amado: Storyteller of Bahia (A Study of Narrative Technique).7 Naturalmente, durante
toda a sua carreira havia de se dedicar com especial acutilância à Literatura Brasileira contemporânea.
Viria a publicar e a apresentar em diversos congressos inúmeros ensaios na mesma área, mas a lusoamericanidade literária, após, repita-se, os primeiros relacionamentos com alguns alunos açorianos e
contactos com outros, chamaria toda a sua atenção, resultando em vários estudos e ensaios que, em conjunto com outros que já se tinham debruçado sobre a mesma temática, lançariam olhares penetrantes e
abrangentes, desbravando competentemente todo um corpus literário-cultural ainda em formação, agora
sintetizado e teorizado como nunca dantes tinha acontecido. Baden, no seu primeiro encontro com essa
incipiente literatura, “suspeitou” que tudo viria a expandir-se e a aprofundar-se, com as novas gerações
de imigrantes e seus descendentes presentes nas universidades, e apoiados a nível de comunidade por
jornais e até mesmo rádios, que se abriam cada vez mais à colaboração desses jovens, com as suas visões
bem mais informadas e quase sempre irreverentes. O seu contributo, quanto a mim, seria de facto decisivo: fazia o nosso ensaísmo sair do tradicional biografismo e historicismo mais ou menos amador para
uma sistematização fundamentada no conhecimento de outras literaturas imigrantes e étnicas, compa3 No in memoriam, escrevi sobre a profunda influência que ela exerceu durante uma vida inteira sobre
mim próprio, e como essa influência, muito cedo na minha carreira de estudante universitário, tinha sido decisiva
no meu próprio empenhamento nos estudos luso-americanos e açorianos.
4 Vamberto Freitas, “Depois da Gargalhada”, recensão a Ah! Mònim Dum Corisco! …, in A Memória da
Água-Viva, n. 3, Março de 1979. Dado que esta obra de Onésimo T. Almeida representava, nessa altura, ela própria, sinais do que estava para vir na nossa vida cultural luso-americana, e que também despertaria em Nancy T.
Baden o interesse teórico de que falo neste trabalho, cito parte do que eu então escrevi sobre o livro: “Ah! Mònim
Dum Corisco! … (Providence, RI, Edições Gávea-Brown, 1978) é um texto todo nosso. Pena é que não seja levado
ao palco noutras comunidades. Resta-nos a sua leitura. E num momento em que a lUSAlândia parece querer
começar o diálogo sobre a sua realidade, aparece-nos este livro no momento certíssimo. É possível até que já seja,
ou um produto desse diálogo ou o seu provocador”. Ao contrário do que eu previa, Ah! Mònim Dum Corisco! …
seria representado em várias comunidades, e até uma cena ou outra aventurada em palcos das ilhas. Reeditado
pelas Edições Salamandra (3ª edição, 1998), de Lisboa, ainda hoje circula, é lido, referenciado e citado por todos
aqueles que se dedicam aos estudos luso-americanos.
5 Sem nunca deixar de se manter informada por diversas vias, leitura e contactos pessoais, sobre o que se
passava literária e culturalmente entre nós
6 Nancy T. Baden, The Muffled Cries: The Writer and Literature in Authoritarian Brazil. 1964-1985, Lanham, Maryland, University Press of America, 1999.
7 Inédito.
46
SEIXO REVIEW
rativismo e teorização, uma vez mais, esclarecendo toda uma área literária até então desconhecida fora de um muito
reduzido círculo de estudiosos, que praticamente se contavam na palma de uma mão, essencialmente em comunicação uns com os outros, universalmente fazendo o que sempre se fez na história literária: o auto-reconhecimento de
uma existência própria, legítima e essencial para eles e para todo o seu povo. Baden ajudava-nos a sair das margens
institucionais, contribuindo para a legitimação da nossa produção literária e cultural, hoje (quase) em voga até mesmo
nas universidades portuguesas do continente.8
Esse olhar sistematizado sobre toda a nossa produção literária nos EUA viria em sucessivos estudos: “Portuguese-American Literature: Does it Exist? The Interface of Theory and Reality in a Developing Literature”;9
“Portuguese-American Literature: An Overview”10; “José Rodrigues Miguéis: The Immigrant Voices in Miguéis’
Fiction”;11 “A Literatura Luso-Americana: Uma Mesa Redonda”, na qual participaram Onésimo T. Almeida, Eduardo Mayone Dias, Urbino de San-Payo e Vamberto Freitas12. Outros trabalhos, como “O Escritor e a Comunidade”
e “A Experiência Imigrante Através da Literatura”, seriam (re) escritos e lidos em vários congressos, alguns deles
de expansão internacional, outros ligados ao movimento cultural das nossas comunidades nos Estados Unidos e no
Canadá. De 1981 a 1984 foi ainda Coordenadora (Book Review Editor) da Gávea-Brown/Revista Bilingue de Letras
e Estudos Luso-Americanos. Sobre o historial e estado do ensino do Português nas universidades norte-americanas,
durante a sua fase de contínuo trabalho entre nós, conceder-me-ia uma longa entrevista, publicada inicialmente no
Diário de Notícias, de Lisboa, do qual eu tinha passado a ser correspondente na Califórnia a partir de Dezembro de
1979. Com o título “O ensino universitário e as comunidades portuguesas nos EUA”, o jornal publicou-a em grande
destaque na secção Debate/Intervenção,13 pois tratava-se de uma análise bastante aprofundada, na qual Baden re8 Refira-se aqui, enfaticamente, os trabalhos de Teresa Alves e de Teresa Cid, da Universidade de Lisboa; de Ana
Paula Coutinho Mendes, da Universidade do Porto; de Filipa Reis, da Universidade Aberta; e de Reinaldo Francisco Silva, da
Universidade de Aveiro.
9 Melus/The Journal of the Society for the Study of Multi-Ethnic Literatures of the United States, Volume 6, Number 2,
Summer 1979. Seria depois publicado em tradução na revista Atlântida (Angra do Heroísmo), Números 2, 3 e 4, 1984, da
qual saiu em separata. Pouco tempo depois da saída deste trabalho de Nancy T. Baden no seu original na revista Melus, Onésimo T. Almeida enviava-me um recorte do suplemento de cultura e literatura contexto (N. 15 de Março de 1980, do jornal
micaelense Açores), no qual J. H. Santos Barros, o seu coordenador, tecia o seguinte comentário: “Com este título – “Portuguese-American Literature: Does It Exist?” – a revista Melus, que se publica nos Estados Unidos, insere no volume 6, n. 2 de 1979,
um desenvolvido estudo de Nancy T. Baden. A autora, depois de equacionar questões básicas que se prendem com as expressões étnicas na literatura, detém-se nos escritores portugueses que, escrevendo na emigração, estão na origem das interrogações que se levantam e a que a ensaísta procura encontrar reposta mediante o aprofundamento duma nova realidade literária
originada nas comunidades emigrantes. Particular destaque para os açorianos Alfred Lewis (florentino), Lawrence Oliver
(picoense) e Onésimo Teotónio Almeida (micaelense). Outro lugar de evidência é para José Rodrigues Miguéis (um dos nossos grandes romancistas contemporâneos). Jorge de Sena e John dos Passos são também referidos, além de estudiosos da vida
sócio-cultural das comunidades como Francis M. Rogers e Vamberto Freitas. O estudo, que ocupa 16 páginas da revista, como
aproximação teórico-crítica é de indubitável valor. Merecia ser rapidamente traduzido e divulgado, até porque, que conheçamos, é o primeiro realizado nesta área, extremamente interessante para a cultura portuguesa e com particulares incidências na
região açoriana”. Cito estas palavras de Santos Barros simplesmente para demonstrar, uma vez mais, como se iniciava naquela
altura troca de informação entre todos, e como todo um grupo de escritores e estudiosos na América, nos Açores e em Lisboa
iniciavam uma vida intelectual em comum, percebendo que já não nos era possível divorciar a experiência imigrante através da
literatura da própria terra de origem.
10 Gávea-Brown: Revista Bilingue de Letras e Estudos Luso-Americanos, Vol. 1, No. 2, July-December, 1980.
11 In José Rodrigues Miguéis: Lisbon in Manahattan, Providence, RI, Gávea-Brown Publications, 1986.
12 Gávea-Brown, Vol. II, No. 1, Jan.-June, 1981.
13 Diário de Notícias, Lisboa, 29 de Outubro de 1980; The Portuguese Tribune, San Jose, Califórnia, 18 de Janeiro de
1981. Escrevi na introdução à entrevista, focando o interesse muito especial de Baden pelas nossas comunidades e a sua presença nalgumas universidades norte-americanas: “A presença da nossa língua e cultura nas universidades deste país está, por
sua vez, dependente de vários factores, incluindo o jogo de forças académicas e políticas que começam a incluir as próprias comunidades lusas, reflectindo assim o grau de influência ou precariedade político-cultural dessas mesmas comunidades perante
a sociedade em que se inserem. Foi sobre este aspecto do tema em discussão que o DN visitou a California State University,
Fullerton, a 30 milhas da cidade de Los Angeles e localizada entre dois grandes centros de portugueses, e ouviu a Doutora
Nancy Baden, Professora de Português no Departamento de Línguas Estrangeiras”. Baden fornecia números referentes ao
estatuto do português em todo o país, falava de diversos projectos nalgumas outras universidades, e destacava ainda o então
SEIXO REVIEW
47
corria aos seus vastos conhecimentos sobre o ensino do Português na América, a todos os níveis, fruto ainda de ela
ter pertencido a várias associações profissionais14 que se mantinham, por obrigação académica, atentas à posição que
as línguas estrangeiras ocupavam nas instituições norte-americanas. Um pouco mais tarde, a mesma entrevista seria
(re) publicada no The Tribune Portuguese, um semanário californiano de língua portuguesa, provocando de imediato
uma carta de “protesto” por parte de Mécia de Sena, a viúva do então recém-falecido escritor em Santa Barbara. Entendia a autora da carta que Baden não tinha dado suficiente importância ao então Centro de Estudos Jorge de Sena,
da Universidade da Califórnia, e na qual Jorge de Sena tinha leccionado durante vários anos. No mínimo, Mécia
de Sena acusava Baden de não ter sido “completa” com a sua informação.15 A entrevista abordava especificamente o
ensino do Português em relação às nossas comunidades geograficamente próximas das universidades, e que se esforçavam por chamar a si imigrantes portugueses e luso-descendentes.
Se incluí nesta listagem a informação bibliográfica completa, é porque quero dar ao leitor menos conhecedor
dos estudos nesta área a ideia precisa de que, em muito pouco tempo, Baden ajudava a divulgar e faria avançar consideravelmente os estudos numa área que até então permanecia no obscurantismo “marginal”, numa invisibilidade
paralela à própria invisibilidade das nossas comunidades. Começa então a publicar os seus trabalhos cedo, em 1979,
e simultaneamente a fazer comunicações tanto em encontros comunitários como em congressos universitários, desde a Brown University até Toronto, na American Association of Teachers of Spanish and Portuguese. A sua visão
própria das coisas partia de alguns trabalhos substanciais já existentes de Leo Pap, Francis M. Rogers, Donald O.
Warrin, Frederick G. Williams e Eduardo Mayone Dias16 (particularmente na recolha de informação pura), mas as
perspectivas ou novas propostas e protocolos de leitura da escrita imigrante lusa e luso-americana levaram-nos a um
novo entendimento do nosso imaginário criativo, no qual alguns de nós participávamos, ora como estudiosos ora
como autores criativos, e, em certos casos, ocupando um espaço nas duas vertentes do movimento literário e cultural
então a delinear-se.
O seu primeiro trabalho nesta área intitula-se, significativamente, “Portuguese-American Literature: An
Overview”, escrito como comunicação apresentada numa série de lições organizadas pelo Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, em 1979. Nessas páginas, Baden dá-nos um resumo tanto das (poucas)
obras existentes, assim como dos (também escassos) estudos sobre as mesmas. Já aí, tenta estabelecer os parâmetros
teóricos que se devia ter em conta, como as diferenças basilares entre uma literatura “imigrante” e “étnica”, começando pela questão da língua, pois Baden incluía necessariamente no mesmo imaginário as primeiras gerações nascidas
em Portugal em períodos históricos muito distintos, assim como as gerações luso-americanas. Para Baden, como
florescente Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros, da Brown University, praticamente o único que à época chamava a si
um bom número de alunos, e tinha a comunidade como realidade merecedora de especial atenção no seu currículo.
14 Pertenceu à American Association of Teachers of Spanish and Portuguese, entre outras associações, e à Pacific Coast
Council on Latin American Studies, à qual presidiu em 1978.
15 A carta de Mécia de Sena foi-me enviada de Londres, e é datada de 8/1/81. Mostrei-a de imediata a Nancy T.
Baden, e ela como que encolheu os ombros, dizendo-me que respondesse como quisesse e entendesse. Nunca respondi, nem
directa nem indirectamente. Ainda hoje me parece uma carta injusta, fazendo “insinuações” de carácter profissional pouco
abonatórias para a minha entrevistada, a qual, à data, Mécia de Sena nem conhecia pessoal ou profissionalmente, e, nesse
sentido, quanto a mim, totalmente incorrectas.
16 De Leo Pap, tinha lido The Portuguese in the United States: A Bibliography, New York, Center for Migration Studies,
1976; de Francis M. Rogers havia lido, e citado em vários contextos, “The Contributions by Americans of Portuguese Descent
in the U.S. Literary Scene”, in Ethnic Literatures Since 1776: The Many Voices Of America – Part II, Proceedings Comparative
Literature Symposium, Texas Tech University, Vol. IX, Lubbock, Texas, Texas Tech Press, 1978, pp. 409-432; de Donald O.
Warrin “A Presença Portuguesa na Literatura da Califórnia”, First Symposium on Portuguese Presence in California, San Leandro, California, UPEC Cultural Center, 1974, pp. 20-22; de Frederick G. Williams “Portuguese Tiles in the Great American
Mosaic: An Overview of Five Hundred Years”, in Jornal Português, 30 de Setembro de 1976; de Eduardo Mayone Dias (entre
muitos outros escritos do mesmo autor), “Urbino de San-Payo: Uma Voz Poética de Hoje”, uma recensão publicada no mesmo número da Gávea-Brown em que ela publica “Portuguese-American Literature: An Overview”, mas que aparentemente
tinha lido ou no original ou noutra publicação. Não tinha ainda sido publicado o essencial livro de Eduardo Mayone Dias, A
Literatura Emigrante Portuguesa na Califórnia, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1983, uma separata da Arquipélago/
Série Ciências Humanas, Número Especial de 1983. É de supor que teria tido conhecimento deste trabalho de E. Mayone Dias,
mas nessa altura já tinha deixado de escrever sobre esta temática.
48
SEIXO REVIEW
para quase todos os da sua geração, literatura e sociedade eram inseparáveis, cada texto devia ser visto não só pela sua
estética, mas muito mais pelo seu conteúdo temático, pelo modo como retratava e reflectia a experiência imigrante
ou luso-americana – histórica e quotidianamente. Levava-nos do século XIX até à nossa própria geração, uns já
de nome feito, outros a darem os primeiros passos na escrita, todos a publicarem nos mais diversos periódicos das
comunidades, e em Portugal continental e insular. Baden tinha em mente reconhecer o que já existia, e, simultaneamente, tentar prever o que possivelmente traria a efervescência literária das novas gerações que haviam chegado à
América nos anos 60 e 70. Entendia ela que nós, no momento histórico americano que vivíamos, no qual os estudos
étnicos começavam finalmente a encontrar um lugar nas universidades e nas próprias comunidades, saíam da sua
letargia secular, algo de novo poderia vir a acontecer.17 Com esse trabalho, valorizava, legitimava, o que já há muito
tinha sido publicado. Citava prosa, poemas e crítica, contextualizava tudo biográfica e historicamente, remetia-nos
para casos semelhantes entre outros grupos nacionais. Tanto destacava os poetas populares e pouco conhecidos,
como os mais sofisticados ficcionistas ou estudiosos universitários. Um novo mundo (re) aparecia-nos, reconhecido
agora por outros “de fora”, incitado por figuras académica e intelectualmente reconhecidas e respeitadas. No fim de
tudo, vinha a advertência, mas, sempre, em sentido, digamos, edificante, deixando a porta aberta para uma evolução
que poderia acontecer nos anos mais próximos. Recorde-se aqui que ainda não tinha aparecido entre nós todo um
distinto rol de escritores luso-americanos a partir dos anos 90, que, em meu entender, modificariam toda esta visão
“cautelar” de Baden, e de outros entre nós. Concluia Baden:
In fact, after looking at Portuguese-American literary production one might well question the validity of
studying this literature in its present state of development. While one cannot doubt the sincerity of expression,
the quantity is small and the quality often questionable. (…) Actually the overall cultural manifestations are
more important than the literary ones at present. Immigrant and ethnic literature are literatures brought about
by a given set of social circumstances and it is to these circumstances that one must look for a partial answer
to the question. The autobiography of Lawrence Oliver reveals the Portuguese cultural ethos and the preoccupations of his peers in the way that the works of José Brites and Onésimo Almeida reveal the concerns of
the later immigrants. This literature is a way of studying – capturing, mirroring, documenting if you will – The
Portuguese experience in the United States. The person who takes pen in hand is often one who can express
what others feel but cannot say; he is one who can distill an experience for those who are unable to do so. This
literature can serve as a form of ‘roots’ as it were for the Luso-Americans who may more readily identify with
the reality of these writers than with the American mainstream or the Portuguese tradition. For those of us
who are not Luso-Americans, it can serve s a means of exploring and appreciating yet another aspect of the
rich cultural heritage that is ours (…).
In conclusion, it can be said that this predominantly immigrant literature may be at a crossroads in that writers
are turning from the immigrant experience and looking at the communities themselves. What are some of the
many possible results? Portuguese-American letters may retain an essentially immigrant focus, may fade from
the scene, or may evolve into an ethnic literature depending upon a whole series of interrelated factors (…)18
No trabalho que se segue, “Portuguese-American Literature: Does It Exist? The Interface of Theory and Reality in a Developing Literature”, Baden faz mais ou menos o mesmo, apresenta nomes agora ao seu alargado grupo de
leitores (totalmente desconhecedores da vida luso-americana) de língua inglesa e especializados noutras literaturas
étnicas, analisa obras, cita novamente prosa e poesia no original, ou que ela traduz pela primeira vez, contextualiza
tudo agora no debate em curso nas universidades norte-americanas acerca da natureza ou, melhor dito, acerca do que
caracteriza a escrita imigrante e étnica. Havia então a ideia de que uma literatura imigrante se demarcava da étnica
17 Baden abria o seu ensaio precisamente com a justificação que algo de novo estava a passar-se entre nós nos anos 70:
“(…) There are several recent factors which indicate that the Portuguese-American production, is possibly in a state of transition and thus it may be fruitful to pause and examine the current state so as to provide background and perspective in the
event of future changes or transformations”.
18 Gávea-Brown, Vol. I, Nº 2, July-Dec., 1980, pp. 29-42.
SEIXO REVIEW
49
quando o escritor ainda não estivesse integrado na vida comunitária, ou ainda não se preocupava com o quotidiano
de uma vida americana visto e experienciado pelo grupo. Mas Baden, também neste sentido, ressalva-se neste seu
estudo de uma separação radical, reconhecendo que uns como outros “atravessam” margens da imaginação e vida
quotidiana. Por exemplo, um escritor luso-americano poderia muito bem tratar a experiência imigrante, mesmo em
inglês, tal como viria a acontecer nas obras de Katherine Vaz e Frank X. Gaspar. Essa separação, no nosso caso, estava
desde já atenuada:
Esta posição, contudo – relembrava Baden – não se aplica ao caso dos escritores portugueses imigrantes mais
recentes que se consideram, insiders, parte de duas culturas, lidando com uma realidade que não é portuguesa
nem americana, tal como transparece no neologismo de Almeida “lUSAlândia”, para, assim, denotar uma nova
realidade que é o produto duma síntese cultural.19
Baden convoca alguns dos teóricos nas mesmas áreas (Raymund Paredes, por exemplo), com especial incidência na
literatura e nos estudos chicanos então também numa fase incipiente se bem que muito mais vasta e avançada do
que a nossa, invocando ainda nomes como Rose Basile Green, Ronald Tanaka e John Reilly, “scholars – afirmava
Baden – que tentaram discernir a natureza da literatura étnica, e só depois deste estudo se deverão relacionar os
trabalhos indicados com os exemplos luso-americanos”.20 Toda a problematização centrava-se aqui numa literatura
como a luso-americana, que ela entendia como estando dividida entre a memorialização saudosista do passado (a
maioria dos escritores imigrantes conhecidos até então), ou ainda assinalando só muito vagamente o sentido de comunidade, de pertença a dois mundos. É naquele trabalho ainda que Baden regressava a escritores de “classificação”
mais problemática, como José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena21 e, até, John dos Passos, sobre quem Francis M.
Rogers tinha escrito com alguma insistência.22 À obra de Miguéis, como já aqui foi referido, Baden lançaria um olhar
alongado a praticamente todos os seus contos que reflectem a experiência imigrante, mas declarando-o, sempre, um
escritor (inteiramente) português residente nos Estados Unidos, um escritor “transplantado”. Mais tarde, eu escreveria um trabalho sobre o mesmo autor, “Miguéis e a Luso-Americanidade Literária”,23 em que aventurava a ideia de
que o autor “exilado” em Nova Iorque, afinal, teria sido um dos nossos primeiros escritores “imigrantes”, antecipando
muitos outros americanos de várias ancestralidades nessa escrita ficcional; tinha construído todo um “retrato” do
imigrante português (e de outros) a braços com a sua dualidade cultural e histórica. Dediquei esse trabalho a Baden
num gesto de reconhecimento de que tinha sido principalmente ela a abrir aquelas possibilidades interpretativas, e
de ter, no seguimento de outros estudiosos também na América, reclamado Miguéis para a nossa tradição literária e
cultural no país de acolhimento.24
Se de John dos Passos não havia muito mais a dizer, de Miguéis, para além do trabalho de outros estudiosos
então já publicados ou em curso, Baden preocupava-se especificamente com a ficção imigrante do autor nesta fase
em que ela olhava para as nossas comunidades e a sua vida cultural e criativa. Miguéis mantinha-se noutro espaço
19 Nancy T. Baden, “Existirá uma Literatura Luso-Americana? O frente a frente entre a teoria e a realidade numa
literatura em desenvolvimento”, Separata da Revista Atlântida, Números 2, 3 e 4, 1984. Por razões óbvias, optei aqui pelas
transcrições em tradução.
20 Idem, p. 22.
21 Baden tinha lido também a obra de Jorge de Sena, e, neste caso, especialmente a poesia que referenciava a experiência “americana” do autor, particularmente Sobre Esta Praia (Trans. By Jonathan Griffin), Santa Barbara, CA, Mudborn Press,
1979. Do mesmo modo, leu a minha entrevista a Frederick G. Williams, “A Face Desconhecida de Jorge de Sena”, publicada
no suplemento “Cultura” do Diário de Notícias (Lisboa), em 26 de Outubro de 1981.
22 Francis M. Rogers, The Portuguese Heritage of John Dos Passos, Boston, Portuguese Continental Union of the United
States of America, 1976.
23 Lido no colóquio sobre José Rodrigues Migués comemorativo do centenário da sua morte, no Padrão dos Descobrimentos, a 8-10 de Outubro de 2001, e depois publicado nas actas José Rodrigues Miguéis: uma vida em papéis repartida, Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa, Departamento de Cultura, 2001; pp. 93-102; e na revista Vértice, Lisboa, Janeiro-Fevereiro,
2002, n. 104, pp. 27-37.
24 “Para Nancy T. Baden, amiga de sempre e primeira mentora nesta minha compreensão da aventura imigrante na
América”.
50
SEIXO REVIEW
(tal como Jorge de Sena), que não o de escritor “imigrante”. No entanto, era precisamente em muitos dos contos
de Miguéis que a sua experiência de português errante estava reflectida, com o autor a transfigurar a vida das mais
variadas figuras ou personagens em meios tão diferentes como Nova Iorque, ou numa comunidade portuguesa.25 A
intenção de Baden era clara: rever tudo o que existisse da experiência imigrante através da literatura, tudo o que a
nossa Tradição pudesse um dia reclamar para si na América, ou até mesmo na terra de origem.
Baden, por outro lado, lia os textos incipientes da nova geração, e previa um salto literário substancial, tanto
em quantidade como em qualidade, e no qual Onésimo T. Almeida, de longe, ocupava um lugar cimeiro, ele próprio
sempre em diálogo com os outros, encorajando e divulgando alguns desses nomes, levando eventualmente à fundação da Gávea-Brown, com as suas páginas de ensaio, documentos e escrita criativa de todos os géneros e formas.26
Começaram, concomitantemente, a aparecer novas páginas ou colunas literárias nalguns dos jornais das nossas
comunidades, em que tudo era levado a outro público, incluindo entrevistas com escritores e poetas empenhados
na vida comunitária ou na sua transposição para a literatura.27 Foi precisamente por essa altura que Baden, como
professora, como ensaísta, viveu dentro do possível aquele outro mundo da língua portuguesa, que ela, desde os anos
do Brasil, nunca mais abandonaria. Aquando das celebrações do Dias das Comunidades Portuguesas em 1979 no sul
da Califórnia (Artesia e Chino), Baden organizaria na sua universidade a já aqui referida mesa redonda sobre todas
as questões que envolviam a escrita da imigração entre nós. O público, quase todo ligado então ao ensino bilingue
nas escolas circundantes, foi convidado a intervir, gerando-se assim um diálogo vivo e aberto. Baden apresentou
uma série de perguntas a que cada um dos intervenientes deveria responder, ou então entrar em diálogo uns com os
outros. Como sempre, literatura e sociedade eram indissociáveis, e Baden pretendia que os escritores clarificassem
o seu relacionamento com as comunidades, que sabíamos serem de baixo nível educacional e vivendo um quotidiano de trabalho e tradição, saudosismo e quase totalmente fora da vida anglo-americana dominante. Baden tentava
levar-nos a reflectir a nossa própria intervenção através da escrita em relação ao que outros já tinham feito ou faziam,
escritores pertencentes essencialmente a outros grupos étnicos nos Estados Unidos. Por quê, para quem escrevíamos,
de onde vinha a nossa motivação para além do chamamento intelectual e criativo de cada um, como entendíamos o
futuro (se houvesse um futuro) da escrita imigrante, e como se enquadravam entre nós as gerações luso-americanas?
Previa uma eventual literatura dos luso-descendentes na América, mas esse seria outro e bem diferente espólio, dado
que a nossa emigração para o Novo Mundo tinha estancado quase por completo. Numa das suas últimas perguntas
da sessão, levou-nos a enfrentar a “dura” realidade, quanto à nossa produção literária naquele país, verificando que era
“reduzida”, quando comparada com a de outros grupos étnicos que tinham chegado aos Estados Unidos também em
condições bastante desfavoráveis (italianos, chineses, japoneses), mas tinham produzido, no entanto, uma literatura
étnica “desenvolvida”.28
Exactamente 20 anos depois, um dos participantes nessa mesa redonda, Onésimo T. Almeida, achou por bem
revisitar toda a questão, chegando a conclusões semelhantes, mas relembrando a todos que, afinal, algo mais se tinha escrito na Diáspora, incluindo em língua inglesa, por alguns luso-descendentes já aqui referidos, e outros mais.
Num dado passo desse seu texto, “Duas décadas de literatura luso-americana: um balanço (1978-1998”, Onésimo
T. Almeida escreve um parágrafo que, creio, Baden apreciaria (não sei se o chegou a ler), dado o seu “compromisso”
com as nossas comunidades, e especialmente pelo seu cosmopolitismo cultural, vindo das suas andanças, desde a
25 Focou principalmente os contos “O Cosme de Riba-Douro, “A Esquina do Vento” “O Anel de Contrabando”, “O
Conto Perfeito”, assim como os contos de Gente de Terceira Classe: Contos e Novelas, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1971, e
Léah e Outras Histórias, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1968. De O Espelho Poliédrico – Crónicas (Lisboa, Editorial Estúdios
Cor, 1972), retirou em especial “Uma Casa Portuguesa”.
26 Onésimo Teotónio Almeida, simultaneamente ficcionista e estudioso da literatura imigrante e luso-americana, viria
anos mais tarde a rever toda a questão num alongado ensaio intitulado “Duas décadas de literatura luso-americana: um balanço (1978-1998)”, Porto, revista Veredas, 1998, pp. 327-347.
27 Eu próprio mantive durante alguns anos uma coluna no semanário californiano de língua portuguesa The Portuguese
Tribune (San José) que incluía crítica literária e cultural, sob a rubrica de Temas e Crítica, nos anos 70 e 80. O Portuguese Times,
de New Bedford, fazia, e ainda hoje faz, o mesmo.
28 “A Literatura Luso-Americana – Uma Mesa Redonda”, Gávea-Brown, Jan.-June, 1981, p. 29.
SEIXO REVIEW
51
adolescência, e da sua formação académica.29
(…) Não havendo muito que nos una, nem sequer a geografia, enlaça-nos esse sentimento – vago na sua expressão mas fundo na origem – de que somos portugueses (expressando-nos em português) e luso-americanos,
expressando-nos em português e inglês ou só em inglês – enfim, um autêntico American quilt. Unimo-nos e
encontramo-nos em eventos sociais e culturais vários, ou apenas no aconchego da casa lendo um livro que
trata a drama de emigrantes no Canadá, escrito por um açoriano que reside em Lisboa; de outro açoriano aos
Açores regressado depois muitos anos de Califórnia, publicando em Lisboa livros sobre a América portuguesa;
ou o de uma californiana que descobre as raízes portuguesas e escreve em inglês sobre a saudade de nunca ter
vivido nos Açores; ou o livro de um autor nascido em Angola que vive em Vancouver e fala dos Açores; ou
ainda o de um americano de Fall River, Massachusetts, que escreve em lindo português sobre o Nordeste de
onde diz ser”.30
*
Sem me poder alongar muito neste espaço, ficaria este trabalho incompleto se não mencionasse, como disse
anteriormente, The Muffled Cries: The Writer and Literature in Authoritarian Brazil 1964-1985, produto de uma longa
e extensa investigação de Baden sobre o estado da literatura e criação artística em geral no Brasil sob a ditadura militar. No prefácio ao livro, Baden explica a origem do seu estudo, o que despertou a sua curiosidade, como observadora
da realidade brasileira mais ou menos à distância, mas creio que sobretudo como estudiosa emotivamente envolvida
com toda a vida cultural do Brasil desde a sua adolescência:
Sometime events are triggers by chance. Certainly this study on the writer and literature in authoritarian
Brazil (1964-1985) came about in such a way. I had been following Brazil’s difficulties from afar. One day
while undertaking research at the Graduate Research Library of the University of California, Los Angeles, in
the mid-seventies, I happened upon an amazing book of short stories titled 64 d. c. (64 A. D.). As I perused
the volume, I began to wonder how short stories so boldly satirical of the military regime could have been
published and sent abroad, given the existing system of censorship. The puzzle slowly began to come together
over a period of several years. As it did, I realized that anyone who reads periodicals in bits and snatches from
abroad rarely has the opportunity to come to a deeper level of understanding of the tensions, conflicts, and
forces that come into play when a regime attempts to silence its writers.31
Tal como no caso dos seus estudos luso-americanos, Baden sabia que não eram as meras leituras ocasionais
ou de um só volume que autorizariam fosse quem fosse a debruçar-se sobre tão complexas realidades. Baden tinha
lido To the Finland Station: A Study in the Writing and Acting of History de Edmund Wilson numa das suas cadeiras
de literatura moderna na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e por certo também teria assimilado algumas
das lições do seu autor.32 Era preciso não só visitar os países em questão, tentar viver parte do seu quotidiano, como
29 Onésimo Almeida inicia o seu ensaio precisamente mencionando “A literatura Luso-Americana: Uma Mesa Redonda” como marco fundamental desse debate que então se iniciara entre nós. Escreve: “Este balanço poderia limitar-se a citar
longas passagens do que ali foi dito, acrescentando apenas os títulos das obras publicadas desde então, pois, feliz ou infelizmente, pouco ou nada se alterou, nestas quase duas décadas, no quadro geral das questões centrais ali tratadas respeitantes à
existência, situação e futuro da literatura luso-americana. Até essa data de 1979, o levantamento crítico das obras nesse domínio (trata-se com efeito de uma listagem quase completa, já que não há números suficientes para se poder falar de cânone)
fora feito por Francis Rogers e pela própria Nancy Baden na revista Melus” (p. 327).
30 Onésimo Teotónio Almeida, “Duas décadas de literatura luso-americana: um balanço (1978-1998)”, in Veredas 1,
Porto, 1998, pp. 327-347.
31 Nancy T. Baden, The Muffled Cries: The Writer and Literature in Authoritarian Brazil, 1964-1985, Lanham, Maryland,
University Press of America, 1999, p. ix.
32 Edmund Wilson, To the Finland Station: A Study in the Writing and Acting of History, New York, Anchor Books edition, 1953. (Esta obra de Wilson tinha sido originalmente publicado em 1940 pela Doubleday & Company, Inc.). Baden ofereceu-me essa sua edição do livro há muitos anos porque sabia que eu desde muito cedo lia e estudava toda a obra de Edmund
52
SEIXO REVIEW
devorar “tudo” o que uma biblioteca contivesse nas suas estantes respeitantes ao tema em foco. Fê-lo
com os seus trabalhos luso-americanos, lendo os mais variados textos de página a página, o que iria
eventualmente comentar ou analisar, e o que apenas lhe dava outro contexto ou marginália, debruçouse afincadamente sobre o resto que também havia na crítica e no ensaísmo. O projecto brasileiro a que
se lançara seria então imensamente mais vasto, mas, com toda a certeza, mais compensador a todos os
níveis, era como que a sua síntese intelectual e, uma vez mais, emotiva perante o seu Brasil. No caso dos
luso-americanos, Baden disse o que tinha a dizer, e depois retirou-se, não querendo usufruir da participação em congressos que continuavam nos Estados Unidos, Canadá e Portugal, e para os quais ela
teria sido sempre convidada. Contida nas emoções, era do mesmo modo reservada e meticulosa nos seus
trabalhos científicos e ensaísticos. The Muffled Cries é uma síntese completa de nomes, situações, publicações, leis restritivas, perseguições e, por fim, a libertação da criatividade no seu país de “adopção”. The
Muffled Cries ultrapassa o caso especificamente brasileiro, tornando-se num estudo de referência para o
mundo de língua portuguesa, pois nenhum daqueles países e territórios estavam livres de repressões aí
descritas e documentadas.
Aliás, Baden começa logo por traçar a história da censura em Portugal desde os séculos da Inquisição, a “herança” lusa no Brasil vista como a génese da situação particular brasileira. “We Were Born
Censored: The Dubious Legacy” é o título do primeiro capítulo, no qual Baden entrevista e dá a palavra
às mais variadas figuras envolvidas directamente na vida artística e intelectual do Brasil naquela época.
Baden prossegue com entradas profundas no que ela chama aqui a “teia” autoritária e os que nela foram
apanhados, terminando com um capítulo intitulado “Abertura and Beyond: Writing to Remember and
to Forget, 1979-1985”. Durante todo este percurso, Baden entrevista um grande número de escritores,33
vê e revê as suas obras, contextualiza tudo na realidade latino-americana mais vasta, documenta-se
numa bibliografia extensa que inclui livros, periódicos de várias línguas e países (nem lhe escapariam
os artigos do JL de Lisboa, posteriores à situação), filmes e música. Trata-se de um tour de force sobre a
língua portuguesa aprisionada, uma vez mais, na sua história já muito antiga, mas fornecendo sempre
o principal sentido de comunidade entre todos os que não se reconheciam sob a tutela de governantes
ditatoriais tão enraizados no mundo lusíada até há bem poucos anos.
Much of the literature produced by the regime’s opponents conveyed a strong tonality that is
combative. One has to search long and hard in literature to find the vision of an exotic Brazil as
promoted the official Brazilian tourism. The underside that is revealed in this literature is that of
a people being destroyed or rendered helpless by the forces of an unyielding socio-political situation. Illustrations and analyses of Brazil’s multiple problems are readily found; proposed solutions
are not. Writing in 1979, critic Davi Arrigucci considered the recent novel inferior in quality to
those produced by Brazilian writers in the thirties and forties. For Flora Sussekind, the realism of
the seventies was so intense and the presentation so matter-of-fact that the literature sometimes
tipped the balance required in the age-old axiom to teach and to delight.34
The Muffled Cries permanece como uma obra referencial pela sua prosa discreta, pela sua dialéctica
crítica e a de outras vozes criativas, em diálogo ou confronto, pelo seu vasto e ecléctico acervo bibliográfico.
Baden nasceu em Los Angeles, e faleceu, a pouca distância, em Fullerton, uma cidade universitária
Wilson. Curiosamente, nos passos aqui transcritos, vejo preocupações wilsonianas muito nítidas, particularmente
a interligação constante de literatura e sociedade. É claro que Baden poderia nunca mais ter lido Wilson, mas
disse-me que To The Finland Station lhe foi muito esclarecedor na altura, no que tocava à interacção entre ideias
políticas, ideologia e literatura.
33 Entre muitos outros, James Amado, Jorge Amado, Carlos Heitor Coney, Edilberto Coutinho, Rubem
Fonseca, Heloísa Buarque de Hollanda e Lygia Fagundes Telles.
34 The Muffled Cries, pp. 187.
SEIXO REVIEW
53
de Orange County, onde ela residiu durante muitos anos. Ninguém associaria de imediato estas geografias do Pacífico ao mundo de língua portuguesa, apesar de próximo delas existirem comunidades imigrantes, maioritariamente dos Açores. Mas são os indivíduos que carregam dentro de si os
mais longínquos e dispersos universos históricos, culturais e espirituais. Foi
nesse “anonimato” entre milhões de outros seres humanos e complexo mosaico étnico que Nancy T. Baden viveu, ensinou e escreveu durante a maior
parte da sua vida. Que os nossos mundos, na sua pequenez de “guetos”
comunitários ou na sua vastidão transcontinental e arquipelágica contam
com estudiosos e intervenientes tão capazes, serenos e empenhados durante uma vida inteira, partilhando connosco todo o seu saber e sensibilidade
transcultural e transnacional, quererá também dizer que, afinal, a globalização em curso tem de enfrentar todos aqueles cujas lealdades múltiplas e
afinidades sem fronteiras nunca deixarão perecer a riqueza de cada povo,
nunca deixarão de amar as suas particulares geografias sentimentais.
De uma pequena literatura, como a luso-americana, à vastidão criativa do Brasil, Nancy T. Baden deu muito – e deu o seu melhor.
Vamberto Freitas nasceu na Terceira em 1951. Publicou inúmeros estudos críticos
e ensaios, entre os quais O Imaginário dos Escritores Açorianos, Mar Cavado: Da
Literatura Açoriana e de Outras Narrativas, A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da
Fuga (1999) e Jornalismo e Cidadania: Dos Açores à Califórnia (2002); algumas traduções, sendo a mais recente O homem que era feito de rede (2002); e ainda artigos
de opinião em jornais e revistas. Trabalha neste momento em traduções da poesia
do luso-americano Frank X. Gaspar, e coordenou o Suplemento Atlântico de Artes e
Letras (SAAL) da revista Saber/Açores até recentemente. Colabora com regularidade na Revista de Estudos Luso-Americanos, Gávea-Brown (Brown University, Providence, Rhode Island), na Vértice (Lisboa) e na NEO (Ponta Delgada) pertencendo
actualmente ao seu Conselho Editorial. Tem pronto para publicação Imaginários
Luso-Americanos: Do Outro lado do Espelho. É Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores desde 1991, onde também tem leccionado literatura e cultura
norte-americanas.
54
SEIXO REVIEW
Domingo por la tarde
maría jesús ALVARADO
Paladeamos la tarde
de otro domingo en casa.
Tumbados, indolentes,
sobre el colchón de las horas muertas,
apuramos el último libro
y escribimos versos
como quien cuelga cuadros
en las paredes limpias.
Suena Creedence... otra vez...
Cada uno en su reino,
compartimos las risas, los besos y el silencio,
seguros, los cuatro,
de encontrarnos al estirar la vista.
Ellas se van pareciendo tanto a nosotros...
Ajenos al mundo, disfrutamos el tiempo,
ingenuamente protegidos
del dolor que acecha al otro lado de la puerta.
SEIXO REVIEW
55
Desolación
maría jesús ALVARADO
Nada queda de mí,
salvo un reflejo equívoco
y el eco apagado
de mis sueños rotos.
Nada soy, nada,
desde las horas negras
de desolación
que oscurecieron mi mediodía.
No es real mi voz, no te confundas.
Soy un cadáver que sonríe
a cualquiera que le dé los buenos días;
muerta anónima, sin nadie que amortaje
mi cuerpo y me dé sepultura,
sin oración alguna ni palabras amables
que acaricien mi recuerdo;
triste y absurda,
como una lágrima sin ojo que la llore.
56
María Jesús Alvarado (Las Palmas de Gran Canaria, 1960).
De padres canarios, pasó su infancia y adolescencia en el antiguo Sáhara Español.
Aunque ha ejercido durante más de veinte años la docencia y la
práctica de la psicología clínica, siempre ha estado interesada por
la literatura y el arte, colaborando desde muy joven con revistas y
proyectos literarios.
Como escritora, ha publicado Suerte Mulana (2002) y Extraña estancia (2006), además de participar en diversas publicaciones
y proyectos artísticos colectivos.
Es miembro del grupo Escritores por el Sáhara y participa activamente en actividades orientadas a la lucha por los derechos y el
reconocimiento de ese pueblo y su cultura.
Actualmente vive en Canarias y desde 2001 es directora de
edición de la Editorial Puentepalo, en la cual dirige, además, la
colección Palastro de poesía. (www.puentepalo.com).
Guionista y directora de documentales y cortometrajes, dirige
también la compañía de teatro “La Fanfarlo”, y es secretaria de la
Asociación Canaria de Escritores (ACAE).
SEIXO REVIEW
O PESO daPOESIA
INEFÁVEL
álamo OLIVEIRA
Q
ualquer antologia tem sempre um objectivo primeiro para
justificar a sua existência. Esta não tem. Ou melhor: esta
tem vários objectivos, que se resumem a proporcionar
uma outra aproximação à poesia de Ivo Machado, seguindo um critério que assenta em predilecções pessoais
(as do organizador), despreocupado de atendimentos aos
princípios técnico-literários. Mesmo assim, a escolha não
se isentou de dificuldades. Seleccionar alguns poemas em
detrimento de outros, retirando-os de um conjunto de títulos que prima por apresentar uma sequência poética que
não se deixa fragmentar, é, desde
logo, trair a unidade que o poeta
Cuidas os frutos, os teus frutos,
conquistou. Em cada título, é notócomo cuido a ordem,
rio o desenvolvimento continuado
O peso dum verso.
de um tema que se vai manifestando através do labor poético de Ivo
Ivo Machado
Machado.
In Os Limos do Verbo
Assim e desde logo, esta antologia
acaba por se tornar redutora no que
concerne a uma avaliação global
desta poesia, embora ela permita o
gosto de se deixar degustar e digerir – tão grande é o seu
poder de surpreender e seduzir.
À medida que vão surgindo os títulos de poesia de Ivo
Machado, começa-se a detectar uma evolução que denuncia
o acumular de saberes, responsável por uma escrita fluente
e proporcionadora de um ritmo de leitura encantatório. Na
verdade, a sua oficina poética foi-se recheando dos instrumentos manipuladores da Palavra e dos apetrechos encadeadores da metáfora, todos responsáveis pela construção de
cada poema.
É com Alguns Anos de Pastor (1981) que Ivo Machado
SEIXO REVIEW
57
se revela como poeta. A sua condição de ilhéu (n. 1958,
na Freguesia dos Biscoitos – Terceira – Açores) logo
deixa apreender as subtilezas de uma escrita aparentemente simples, espontânea, porventura, inocente, bebida
num espaço genesíaco, decorrente do fogo e da água. A
ilha transparece não só como cenário primordial, mas
também como lugar onde floresceram os seus primeiros
afectos. O redil destes poemas está como que cercado
por muros de lava, onde se acolhem amores mal desvendados, acobertados por um céu de estrelas e perfumados
por flores. O mar é, então, uma espécie de desejo contido,
amplo como a solidão, ou do tamanho da tragédia como
a provocada pelo sismo de 1 de Janeiro/80. E o mar é
também o lugar profundo e sigiloso onde o poeta espalha a sua nostalgia pelo bem perdido, pelo afecto que não
chega ao seu destino. Talvez, por isso, recorra à música de
Liszt, de Schumann e de outros para acalentar paixões
impossíveis a par de citações motejantes de poemas de
Eugénio de Andrade, António Botto, Florbela Espanca.
Catorze anos depois, Ivo Machado faz publicar Três
Variações de um Sonho (1995): colectânea onde se expandem os sentidos e os sentimentos, para que o amor se
cumpra e avente novos desejos. O corpo é, então, designado pelos nomes de cada uma das suas partes, poro a
poro, cílio a cílio, sob o tacto manso dos dedos. E cada
momento – diga-se: cada verso de cada poema – é vivido
à espera de apelos interiores, que acontecem durante o
alvorecer dos sentidos.
O hiato de tempo, verificado entre o primeiro livro e
este, revela também uma maior fluência e um melhor
domínio do ofício de poeta. A sua maturidade deixa de
surpreender e, sobretudo, deixa explícito essa espécie de
identidade que informa o leitor da autoria do poema. As
influências oficinais detectadas em Alguns Anos de Pastor
são agora como que absorvidas e remodeladas de acordo
com o seu estilo e gosto estético.
Em 2001, Ivo Machado quebra mais um silêncio editorial longo. Publica Adágios de Benquerença, um conjunto de poemas que deixa, ao leitor, a mensagem de que a
poesia não pode ser complexa. É o momento de depurar
para apurar a capacidade significante de cada palavra. O
exercício do seu poder de síntese traduz-se em poemas
epigramáticos como: um verso corre a cidade/pois do
grito a mocidade/faz poemas/quase.
Cada poema surge com a ideia compactada, tornando-a simples, directa, indesviável e, paradoxalmente, relevando a metáfora. É também um livro onde o poeta
está omnipresente, como oficiante obrigado a cumprir a
missão da poesia. O poeta é entendido como responsável
58
SEIXO REVIEW
por todos os nomes e seus atributos, como neste poema:
próximo de uma roseira que o céu protege/respira a cidade/ainda sem nome.//faz-lhe falta o poeta.
Em 1998, (ano do Centenário de Garcia Lorca), Ivo
Machado fez publicar Cinco Cantos com Lorca e outros
Poemas. A admiração por Lorca é responsável por uma
aproximação da poesia espanhola e da sul-americana.
Encontros, congressos, conferências têm-lhe proporcionado contactos ainda mais directos com autores ibéricos
e a oportunidade de ver a sua poesia passar para a Língua
de Lorca. Uma editora espanhola (a Literastur) publicou,
em edição bilingue, Cinco Cantos com Lorca y otros Poemas/Cinco Cantos com Lorca e outros Poemas (2002). Aos
temas predominantes da sua poesia, junta, agora, a sua
homenagem a Lorca, recorrendo a valores que questiona,
mas que, no fundo, correspondem à angústia pela ausência de ideologias. Como se navegasse por mares e rios,
avistando terras com homens, animais, pedras e árvores,
vai encontrando o quanto a poesia sabe que a liberdade é
eterna e que a eternidade é livre. O destino das palavras
é responder às angústias dos poetas.
Até a este título, nunca os poemas lhe foram tão longos.
Logo no livro seguinte, Ivo Machado volta aos poemas
curtos, epigramáticos, desta feita acostados a outros de
maior fôlego e sujeitos a um dos títulos mais enigmáticos do conjunto: Os Limos do Verbo (2005).
Ivo Machado utiliza, agora, um discurso mais directo,
como se rezasse ou fizesse confidências aos amigos mais
íntimos, tantos são os nomes que vão epigrafando os poemas. E, neste livro, os lugares também são referência a
deter, pois, a eles, o poeta chegou através do mar – mar
plurissignificante: caminho do Mundo; lugar onde o
horizonte se mitifica e desmitifica; cofre líquido guardando o verbo das transparências; aconchego placentário
da poesia. Os «limos» são pertença ambígua do «verbo».
Podem ser parasitas ou, se calhar, meros adornos. Mas
o «verbo» não teme ser enunciado em qualquer Língua
onde se declinem o pão e a água – alimentos substantivos do amor.
E eis que a escrita de Ivo Machado se revolta, assumindo uma torrencialidade verbal que toca o prosaico,
sem nunca perder de vista o que a poesia é. No título do
seu novo livro, volta a surgir a palavra «verbo» – Verbo
Possível (2006).
Agora, o poema surge como fragmento diarístico, coloquiando outra vez com os amigos, quer de forma directa quer enviando mensagens dos lugares por onde anda
como se fossem bilhetes. E avisa: Já não rimamos paixão
com razão.
Foi com a poesia publicada nos títulos atrás enunciados que se organizou a presente antologia. Mas nem só
a poesia tem preenchido os motivos de escrita de Ivo
Machado. Para além das comunicações apresentadas em
congressos, encontros, seminários da área da Literatura
(algumas posteriormente incluídas em publicações da especialidade), registem-se, também pelo seu valor literário,
o texto para teatro O Homem que nunca Existiu (1997) e
a novela Nunca outros Olhos seus Olhos Viram (1998). Está
representado em várias antologias de poesia de âmbito
regional, nacional e internacional. Por sua vez, Fernando
Lopes-Graça musicou, para canto lírico, sete poemas escolhidos em Alguns Anos de Pastor, a que deu o título de
«Sete breves canções do mar dos Açores».
Apesar das circunstâncias (profissionais e outras) terem feito com que Ivo Machado tenha ido residir para
fora dos Açores, ele continua a ofertar uma poesia que
evoca as formas simples que a ternura usa para se manifestar, lembrando a inquietude saudável das águas do mar,
por onde navega o navio esplendoroso das suas utopias.
Há uma presença cenográfica insular em cada um dos
seus poemas, mesmo naqueles que se situam nos espaços
geográficos de outros encontros, de outras encruzilhadas,
de outros sentimentos e de outras emoções. A ilha nunca
fica ao fundo. Está sempre presente como ventre profícuo e em primeira dimensão. Depois, é também notório
o afã de Ivo Machado na construção do poema, aproveitando o silêncio da solidão, a transparência das horas e a
força transfiguradora da estética para trabalhar a Palavra,
modelar a metáfora e recriar a atmosfera que empresta à
vida a beleza indizível da Poesia.
Álamo Oliveira (José Henrique do) nasceu na freguesia do
Raminho – ilha Terceira, Açores –, em 1945.
Depois dos estudos no Seminário de Angra, foi funcionário
em diversos departamentos governamentais ligados à Cultura. Aposentou-se em 2001.
Como escritor tem 33 livros publicados com poesia, romance,
conto, teatro e ensaio. Está representado em mais de uma dezena de antologias de poesia e ficção narrativa, em Portugal
e no estrangeiro. Tem poesia e prosa traduzidas para inglês,
francês, italiano, espanhol, croata, esloveno e japonês.
O seu romance Já não gosto de chocolates foi traduzido e
publicado nos Estados Unidos da América e no Japão.
Até hoje, memórias de cão (3ª edição) recebeu o prémio
«Maré Viva», da Câmara Municipal do Seixal, em 1985; Solidão da Casa do Regalo (teatro) recebeu o prémio «Almeida
Garrett», em 1999.
Em Abril de 2002, a Portuguese Studies Program, da Universidade da Califórnia em Berkeley, convidou-o, na qualidade de «escritor do semestre», para leccionar a sua própria
obra aos estudantes de Língua Portuguesa – sendo o primeiro português a receber tal distinção.
SEIXO REVIEW
59
Chiquito da Camuxiba
de Chó do Guri
aida BAPTISTA
C
omemora-se hoje o Dia de Portugal, de Camões e
das Comunidades Portuguesas. Ou porque a data da
nossa existência se perde na lonjura do tempo, ou porque,
como país, temos as fronteiras mais antigas da Europa,
não tivemos necessidade de recorrer a uma batalha ou a
uma outra contenda de natureza bélica ou política para
festejarmos o Dia de Portugal. Ao contrário, celebramonos como povo repartido pelo mundo, corporizado na
figura de um dos maiores poetas da nossa língua – Luís
Vaz de Camões. A escolha de um poeta é o sinal maior
da valorização que se pretende dar à língua portuguesa,
património que nos une a todos, independentemente da
nacionalidade inscrita nos nossos Bilhetes de Identidade.
Como escreveu Odete Semedo, poetisa da Guiné:
“Deixarei um recado/Num pergaminho/Nesta língua
lusa/
Que mal entendo/E ao longo dos séculos/No caminho da vida/
Os netos e herdeiros/Saberão quem fomos”
É precisamente por celebrarmos uma língua com a
plasticidade, originalidade e musicalidade que cada país
lhe confere, que, a convite do Consulado-Geral de Portugal e do Centro de Língua Portuguesa, temos a presença que muito nos honra da escritora angolana Maria
de Fátima. Sob o pseudónimo Chó do Guri, irá apresentar a sua última obra literária, “Chiquito da Camuxiba”, romance a que foi atribuído o Prémio de Literatura
Africana promovido pelo Instituto Marquês de Valle
Flôr. Não se trata da sua primeira publicação. Maria de
Fátima fez já duas incursões pelo mundo da poesia: em
1996, “Vivências – poemas” e, em 200, “Morfeu – poemas”. Pelo meio, uma edição de contos em 1998, “Bairro Operário – a minha história”. Tem também poemas
publicados em duas antologias editadas pela União dos
60
SEIXO REVIEW
Escritores Angolanos: Antologia da Poesia Feminina
Angolana e Antologia da Poesia Moderna Angolana.
Além de membro da União dos Escritores Angolanos, é
também Secretária Nacional para a Educação Moral e
Cívica e Assuntos Culturais da Liga 4 de Abril.
Apresentada a autora, falemos agora da obra que hoje
se pretende divulgar. Chiquito da Camuxiba, como o
próprio título sugere, é o diminutivo de Francisco associado a um topónimo que, no caso específico, se situa
na cidade de Luanda. Porém, este Chiquito não é apenas aquele a quem a narradora dá forma neste romance,
mas simboliza todos os outros chiquitos com quem nos
cruzamos diariamente, dentro das cinturas urbanas ou
nos bairros periféricos das cidades, aqui designado por
Camuxiba. Por isso, quando Chiquito nos é apresentado – pese embora a carga ficcional que todo o escritor
empresta à sua trama – imediatamente lhe damos um
rosto, habituados que estamos a vê-los lutar pela sobrevivência diária como engraxadores, guardadores e lavadores de carros, angariadores de clientes para os candongueiros, vendedores ambulantes, kinguilas, ardinas ou
exímios peritos no jogo do toca e foge de cada vez que se
dedicam ao roubo por esticão. Façam o que fizerem, uma
outra tarefa dominam na perfeição – a da mendicidade,
treinada desde a mais tenra idade na arte da simulação
para mais facilmente atrair a comiseração alheia.
Produto de uma sociedade que os condenou à exclusão social, fazem da rua a sua casa e regem-se por códigos
que só eles conhecem e que aprendem a respeitar para
poderem ser aceites no grupo. Órfãos da guerra, amputados de afectos e praticantes como ninguém de uma liberdade sem limites, apenas aceitam o céu como tecto e
rejeitam amarras que os prendam a uma casa ou a uma
família. Aprendem a defender-se por instinto, perscrutando a natureza humana como se conhecessem todos
os manuais da psicologia do comportamento. Ágeis na
fuga, hábeis na insinuação, cultivam a argúcia, o humor e
o sarcasmo com mestria, porque sabem ser essa a melhor
arma da sedução.
Num acto de coragem, que muitas vezes chega a denunciar registos autobiográficos, a autora manipula todos estes atributos e serve-se das vozes destes chiquitos
para fazer críticas e denunciar situações que, de forma
subtil ou descarada, minam quase todas as estruturas da
sociedade. Neste sentido, a obra vale também como fonte de estudo sociológico de um país em que o dinheiro
tudo compra.
encontrá-lo passou a ser uma obsessão. Dias a fio, percorreu as ruas e os bairros da cidade na esperança de o
ver. Algumas vezes, teve a sensação de o reconhecer no
corpo ou na voz de outros chiquitos, para depois concluir
que afinal não era ele.
“Eram tantos. Faziam um cordel, enfeitando a cidade
de panos podres de miséria, lutando para sobreviver. Mas
qual deles seria o meu chiquito?” (pág. 68).
O seu chiquito, de facto, há muito deixara de existir.
Vítima das circunstâncias, conhecera por dentro o mun“Trazia os olhos avermelhados, a carapinha encrespa- do da marginalidade, da revolta, do crime e da prisão.
da e enrodilhada de muitos dias sem pentear. Na raiz do Quando, finalmente, se reencontram são dois estranhos.
cabelo predominava a cor preta. A extremidade mostrava A narradora percebe, então, que andara dez anos a perum castanho pardo que lhe fixara a poeira. (…) Era todo seguir uma ilusão. A imagem de inocência que guardara,
ele um pouco do que ainda resta no fundo de mim e que fora morrendo em cada lágrima vertida nas buscas perdirebusco nas noites de insónia, por todos estes meninos das. No final, ficou apenas a indiferença, talhada na visão
desamparados” (pág. 5).
diária da miséria que cava um fosso de insensibilidade
entre nós e todos os chiquitos que nos rodeiam. Afinal,
É assim que o romance começa: com a descrição da que diferença faz um chiquito a mais ou a menos, num
personagem que prende o leitor da primeira à última país onde todos os dias nascem chiquitos já adultos porpágina. Apesar do incómodo da abordagem insistente que lhes é negado o direito de serem meninos?
por parte do Chiquito da Camuxiba, foi esta imagem de
Apesar de uma segunda edição carecer de uma redor e de sofrimento num corpo inocente de criança que visão mais cuidada, recomenda-se vivamente a leitura
marcou a narradora logo no primeiro contacto. Assim atenta de “Chiquito da Camuxiba” porque, como diz a
que pôde, retirou-o do anonimato em que vivia, levou-o autora, “um país só cresce com livros” (pág. 213). E estes
para sua casa e, pelos caminhos sinuosos da corrupção e serão tão mais importantes, quanto mais originais e inoda gasosa, conseguiu forjar-lhe uma identidade, porque vadoras forem as matizes do discurso linguístico que, so“Chiquito sem casa, sem escola, é uma mera massa bioló- bretudo ao nível da oralidade, em muito se diferenciam
gica escoltada por uma incógnita” (pág. 132).
do padrão europeu e ganham estatuto de norma futura.
Depois de um convívio de quase dois anos, viu-se
Benguela, 10 de Junho de 2006
confrontada com o seu desaparecimento repentino. Re-
Aposentada do Ministério da Educação desde Setembro de 2006,
foi professora durante toda a sua carreira profissional, ao longo da
qual leccionou diferentes níveis de ensino. Nos últimos anos, requisitada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi Leitora de
Língua e Cultura Portuguesas no Estrangeiro ao serviço do Instituto Camões. Em 1989, cumpriu uma primeira missão de 8 anos na
Universidade de Helsínquia, seguida de uma segunda de 5 anos na
Universidade de Toronto.
Desta segunda experiência, nasceu a colaboração regular no jornal
comunitário «O Milénio». De entre as várias crónicas publicadas, foram seleccionadas 50 que, em 2004, deram origem à edição do seu
primeiro livro intitulado «Passaporte Inconformado».
Nos últimos 2 anos, esteve em Benguela, onde, além de leccionar
no Pólo Universitário da Universidade Agostinho Neto, dirigiu o
Centro de Língua Portuguesa de Benguela do Instituto Camões.
«O Chão da Renúncia» é o seu mais recente livro.
SEIXO REVIEW
61
Malino
daniel de SÁ
Homenagem a Miguel Torga
M
alino era um gato de alto lá com ele.
Um senhor gato. O preferido das gatas da vizinhança, que o aceitavam
sem mais aquelas. Não ia em grandes
conversas. Tiro e queda. Lá por causa disso não incomodava os ouvidos sensíveis dos senhores homens e
das senhoras mulheres que tentavam dormir à hora do
namoro. Para alguém mais desinsofrido era só o tempo
de se levantar à procura de improvisada arma de arremesso e, em chegando à janela, já tudo era silêncio.
Nem havia olhos capazes de descobrir o par de amorosos, que se esgueiravam num ápice para onde ninguém
os visse.
Que dissessem dele que era um valdevinos, aceitava. Mas um valdevinos decente, acrescentassem ao dito
por respeito à sua pessoa. Filhos e netos eram tantos
que nem fazia ideia de a quantos montavam. E não jurava que de algum não fosse pai e avô ao mesmo tempo,
que isso de deslindar de geração em geração quem era
do seu sangue não era coisa que se lhe pedisse com
segurança. Que Deus lhe perdoasse qualquer abuso,
mas não tinha modo de fugir à sina. Era fado de gato,
paciência. Piores eram as pessoas gente, que juravam
para a vida inteira e, às vezes, era bem de uns dias ou
meses e mal do resto da vida. Por isso se queixava o
senhor Francisco que, tendo-lhe dado Deus três filhos
e duas filhas, já levava na conta oito noras e genros. E
gabavam-se muitos de façanhas de enganos. Mas não
queriam que ninguém tocasse no que era seu. Porradaria de criar bicho e sangueira de fazer morcelas, se tal
acontecesse. Mortes de gente, até. Outro modo de ser
era o do João Cana, esse fala-barato, que se confessara
62
SEIXO REVIEW
de aventuras de alcova e o padre absolvera do pecado
da mentira apenas! Um farsante. Aquilo era lá homem
de pecados maiores do que o desejo, coitado? Pagava
um quartilho de vinho para calar a boca de quem dizia
tê-lo visto com esta ou com aquela. Não estivera nada.
Mas os rapazes conheciam-lhe o fraco, era um tal inventar que o apanhavam em delitos tão secretos que
nem aconteciam. E ele, de elogiado, fingia-se temeroso
de que lhe divulgassem segredos de encontros tão escondidos que nem o próprio Deus testemunhava. Vingava-se na sueca. No jogo das cartas, para que não haja
equívocos. Tinha a sorte dos tolos, diziam-lhe. Que lhe
importava isso, se ganhava mais do que perdia? Um dia,
puxou o cinco de copas, e fez a mão, porque os outros
três baixaram o jogo. A seguir, puxou o ás, e levou a
seta e o rei. Chamassem-lhe tolo, que os enganara e
assim ganhou a partida e o dezasseis de vinho.
Chegava ao fim da Primavera numa desgraça, uma
vergonha. Coisas da vida. Recuperava depressa, que a
ratoagem não foi feita para mais do que isso, e as guelras do peixe e outras delícias eram à farta. E ainda lhe
restava barriga para roubar algum chicharro – carapau,
no dizer fino de Lisboa – ou um pinto descuidado pela
mãe e pelas donas, tentações escusadas, é verdade, mas
o fruto proibido é o mais apetecido.
Nesse tempo, andava livre pela casa, só lhe trancavam as portas dos quartos de dormir. Também não havia muito como evitar que entrasse quando lhe apetecesse, ainda que o não quisessem, o que não era o caso,
por via da bicharada que roía tudo. Melhor vida do que
aquela nem a dos seus antepassados do Egipto. Então a
dona velha regalava-se:
“Quatro, Ludrinhas, que o Malino apanhou hoje. des. O costume. Inauguração das máquinas novas da
Aquilo é que é um gato!”
fábrica. E parabéns para este e para aquele. E para os
E era. Preto, que ia esquecendo dizer. Gato preto trabalhadores, que tinham o trabalho facilitado. Era o
sempre foi bom caçador.
tinhas! Logo três dias depois foi metade para a rua. SaCasa farta, a dos seus. Lavradores desde o tempo das cho outra vez. Mas onde? Agora era só erva a perder de
vacas magras, nascera já na abundância dos subsídios vista. Nem uma espiga de trigo ou maçaroca de milho.
por tudo e por nada. Era o bezerro de mama, era a vaca Milheirais havia, mas bastos. Para as senhoras da ilha,
de leite, era a vaca defunta, era isto e era aquilo. Gran- as vacas. Ouvira falar, nanja que fosse nado nesse temdes algibeiras tinha esse senhor Governo, de onde saía po, que um gato tem sete vidas mas acabam-se todas
tanto. Fora criado com sopas de soro e leite. Podia ter num instante.
dado em gato fino, de escolher comida, mas não quis
Tornara-se um gato triste. Talvez fosse da idade.
negar a condição. Não há sopa que se compare à carne Mas julgava que não. Era só da tristeza. Novo rico quer
tenra de um murganho. Nem ao gosto de apanhá-lo. casa nova, e os donos deitaram a velha quase toda abaiIsso é que não.
xo. Paredes de blocos, portas de acácia, persianas de aluAs coisas pioraram foi com a riqueza dos donos, mínio. Nem uma greta que deixasse entrar o ar, quanto
quando as carteiras abarrotavam até lhes rasgarem as mais um buraco por onde ele se esgueirasse. Telha veralgibeiras, que já deviam estar parecidas às do senhor melha do Continente. Desmancharam a casa de milho
Governo.
e o muro de pedra, para o fazer de blocos. Cimentaram
Os vizinhos do lado é que eram uma miséria. Um o quintal quase todo, deixando apenas dois palmos de
homem só para dar de comer a cinco bocas, todas fême- terra para os girassóis da festa, três pés de couves e
as. Trabalhava no que aparecia, foi tenteando a vida até uns espigos de salsa. Vassoura pelo ar, se o apanhavam
lhe entrar aquele mal nas costas. Às vezes nem podia lá a fazer decentemente as suas necessidades. A dona
mexer-se. Dias e dias na cama, e a fome a apertar em velha até chorou quando esborralharam o forno. Ainda
casa. Foi aos doutores todos deste mundo e do outro, gostava de cozer o seu pão de trigo e de milho, ou a sua
contando-se entre os do outro os curadores de ervas e massa sovada. E a filha: “Compra-se, que é a mesma
de mezinhas. Não melhorou. E o senhor Francisco, ao coisa.”
serviço de quem apanhou aquele jeito a revirar uma
Atoleimada! Sabia lá o que dizia! Então por que
pedra do seu tamanho nos alicerces da casa nova, não razão até ele, que era gato, bicho irracional, nunca
lhe dava um escudo
comera ratos mornem uma palavra de
tos à pancada ou na
alento. Não pusera o
ratoeira? Como se
pessoal no seguro, e
o sabor das coisas
desculpava-se que ele
estivesse só na boca
já fora para lá aleijado:
e não, também, no
queria era arranjar retrabalho que se tem
forma à sua custa.
por elas. Atoleimada,
“Safa, malandro! “
pronto, pensara esQue sim senhor,
tava pensado.
estava certo. Era a voz
Quis um dia pôr
dos que só conhecem
os olhos na casa nova,
uma qualidade de genpor dentro. Pareciate a quem dar razão:
lhe igual a todas as
aos mais fortes.
casas novas, mas
A desgraça dos vitinha uma pequenizinhos começara num dia de glória e de riqueza. Es- na esperança de que os donos fossem diferentes. Qual
tardalhaço de banda e de foguetes. Bênção do padre e quê! Nem um pingo de imaginação. Azulejos, mosaicos,
caldeirinha de água benta. Metera
alcatifas, flores de plástico.
Século XX com gato Malino
governador civil, presidente da câma“Sape, gato!”
Tomaz Borba Vieira
ra e outra dúzia de cabeças das granAi, agora era sape gato! Com
SEIXO REVIEW
63
que então, tornara-se tudo gente fina naquela casa, que
até tinha tapetes com pelagem de palmo, a fazer mesmo apetecer uma soneca nos serões de Inverno. Ia-se
embora de livre vontade. Metia-lhe nojo, aquela limpeza. E os palermas de pés descalços na sala, como os do
Canadá, a ver televisão com uma enfiada de sapatos à
porta. Era a sua oração. Era a sua mesquita. Passassem
bem.
Guelras de peixe? Nem vê-las. Ia tudo para o lixo,
mais as cascas de batata, as aparas da carne, tudo. Por
causa dos adubos já não havia estrumeira, nada onde
meter o nariz, às vezes mais por desfastio do que por
andar à procura pela precisão da fome. E os ratos? Era
um penadoiro catrafulhar algum. Punham ratol por
toda a parte, que iam comprar meio dado à junta de
freguesia.
Pensava nisto enquanto ia acordando. Felizes tempos em que os automóveis da freguesia se contavam
pelas unhas de uma mão. O do senhor padre, o do senhor professor, o do senhor doutor, o do senhor José
da farmácia e o carro de praça. Havia o camião do senhor Francisco e a camioneta da carreira, mas esses
não cabiam em ruas estreitas como a sua. Não era do
seu tempo, contara-lhe a mãe, que ouvira dizer. Ainda
crescera sem muito com que se preocupar. Atravessava
a rua sem ter de olhar nem escutar. Mais tarde é que
foram elas. Aquilo era um reboliço desde o nascer do
Sol, ou antes, nos dias curtos, que Deus nos livre. Depois do barulho dos tractores, com as bilhas do leite vazias a matraquearem, vinha um chinfrim de buzinadelas de gente doida, chamando a freguesia. Acordavam
quantos estivessem no sono da manhã, que é o melhor.
Eram os carros ou os triciclos: do peixe, do queijo de cabra, do pão da Vila, do pão da Ribeira Grande, da fruta,
da carne, das fazendas. O diabo a quatro, a desinquietar
a alma mais paciente. E ainda a caterva da canalhada de
bicicleta, e os rapazes de mota a fazer o pino. Mais perigosos que os trens de quatro rodas. Aquilo ainda havia
de dar desgraça, fosse o diabo surdo. Mas não foi.
Malino acabara de dormir aquela soneca no calorzinho das pedras da calçada. Saíra-lhe a sorte grande,
pois ninguém o incomodara: nem bicho cão nem bicho
gente. Já não resistia à dormideira em qualquer sítio,
às vezes para esquecer a fome. As forças haviam minguado em proporção inversa à idade. Noutros tempos,
estaria por essa altura a sonhar de dia com aventuras
nocturnas. Mas agora? Qual quê! Tivera um devaneio
desses, dois dias antes, e ainda lhe doía o corpo todo de
uma sova que levara. Do Tarouco, um trinca-espinhas
64
SEIXO REVIEW
farrusco, um badameco, que só de lhe ver os bigodes
teria fugido a sete pés, se não fosse aquela velhice que
o escanzelara e amodorrava. Até lhe ia tirando um olho
com as unhas, o excomungado. E as gatas já não eram
tantas como antigamente, ninguém as queria, para não
encherem os quintais de filharada. Gatos, lá escapava
algum. Por isso eram como sete cães a um osso.
Tanto se fartara de namoros que lhe faltava a paixão para andar por telhados e muros velhos à procura
de namorada. Verdade, verdadinha que não tinha era
forças para isso e para o resto, mas desculpava-se assim,
tentando acreditar no que dizia a si mesmo. Gastara
quantas das suas sete vidas? Cinco? Seis? Poderia viver mais um ano? Dois? Desconfiava. Longe fosse o
mau agoiro, mas aquela pieira e aquele desmazelo não
anunciavam coisa boa.
Levantou-se tonto de sono, começou a atravessar a
rua como se pesasse tanto como um bezerro desmamado. E era só pele e osso. Os seus cinco sentidos estavam
avariados, gastos. Foi quando veio aquele maldito carro,
silencioso como um ladrão, como se as rodas tivessem
almofadas iguais às das suas patas, como se o motor
não fizesse mais barulho do que um coração de gato.
Nem apitou, o demónio. Acaso não merecia ele uma
travagem, uma apitadela ao menos? Ou foi a saia curta da Rita que distraiu o condutor? Fosse o que fosse,
qualquer coisa lhe bateu na cabeça quando a máquina
infernal lhe passou por cima. Sorte não ficar debaixo
de uma roda. Devia estar igual a morto, depois do desastre. Desmaiou, sem saber por quanto tempo. Tanto
podia ter sido um minuto como um dia e uma noite.
Quando acordou, o chão não era duro nem quente.
Ouviu vozes das donas. Estava nos dois palmos de terra
do quintal. Salvo! Reconheceu também a voz do David
Lopes. Ah! Canalha, fora ele com certeza que quase o
mandara desta para melhor. Havia de pagá-las, qualquer dia, que aquilo era um doido a guiar o carro, como
se todo o Mundo fosse seu.
“Se eu tivesse um sacho, enterrava-o num instante.”
Então julgava que o tinha matado! E não mostrava
um sinal de pena! Alma de cão. Ia ter uma surpresa
das grandes, quando o visse vivo e pronto para outra.
Pronto para outra era um modo de dizer, agora é que
tinha mesmo a certeza de não lhe restar mais do que
uma vida. E estava presa por um fio. Aquele fio de sangue que lhe corria da cabeça.
“Não te preocupes, David. Isto até foi um favor dares
cabo do bicho, que já ninguém podia sofrer.”
Ah! Desgraçada! Safada! A dona nova, que se baba-
va para lhe pegar ao colo, enquanto foi pequenino, que
passava minutos enormes, mas saborosos, a coçar-lhe o
lombo e o pescoço quando já era grande, e ele a esticarse, regalado, ao contacto das mãos dela? Assim lhe pagava tudo: o trabalho, o carinho e a fidelidade?
“Deixa, que eu atiro-o da rocha abaixo, e o mar háde levá-lo quando a maré encher.”
Depois de ouvir isto à beira da morte, se um gato
não merece o Céu! …
Tanto tempo se passara desde a última vez que ela
pegara nele ao colo. Tinha saudades de sentir as suas
mãos no pêlo. Viesse buscá-lo.
Não devia estar bom da cabeça. A poder fugir num
instante, e disposto a ficar ali, à espera da morte, só
para se sentir tocado uma última vez por aquelas mãos
de que tinha saudades. Mas gato também tem direito
a morrer recebendo algum carinho, nem que seja só
imaginado. Assim como assim, a vida não lhe importava para nada já. Não tinha graça nenhuma, era uma
morte lenta.
Pareceu-lhe que a dona nova pegava nele com o
cuidado de antes. Talvez fosse apenas para não sujar
as mãos de sangue. Foi o seu último salto. O maior de
todos. A queda sobre as pedras fez o resto. Não sentiu
o que faltava ser feito.
Sá, Daniel Augusto Raposo de
N. Maia, S. Miguel, a 2.3.1944.
Obras principais: Romance: Ilha Grande Fechada,
1992; As Duas Cruzes do Império, 1999; A Terra
Permitida, 2003. Novela: Génese, 1982; O Espólio,
1987; Um Deus à Beira da Loucura, 1990; E Deus
Teve Medo de Ser Homem, 1997; O Pastor das Casas
Mortas, 2007 (traduzido para Inglês). Crónicas e
contos: Sobre a Verdade das Coisas, 1985; A Longa
Espera, 1987; Crónica do Despovoamento das Ilhas
[e outras cartas de El-Rei], 1995; Teatro: Bartolomeu,
1988. Ensaio: A Criação do Tempo, do Bem e do
Mal, 1993. Outros: Açores (colecção Monumental e
Turística), edição bilingue (Português e Inglês), 2003,
Everest; Santa Maria, a Ilha-Mãe, edição bilingue
(Português e Inglês) Ver Açor, 2007.
SEIXO REVIEW
65
mário machado FRAIÃO
T
Tomando como pretexto para a sua
pesquisa a invocação de um antepassado que se notabilizara como capitão
de navios de longo curso, Yolanda
Corsepius, filha de uma faialense e de
um alemão de uma das companhias
dos cabos submarinos, consegue recriar
o quotidiano da cidade da Horta na
segunda metade do século XIX: o movimento portuário, os Dabney, as baleeiras americanas, as primeiras filarmónicas, a imprensa, os lendários serões
dançantes, mas também as tempestades,
a fome.
Jacintho Manoel da Silveira «fôra
capitão de quatro navios à vela entre
1857 e 1880: um patacho, um lugre, uma
barca e até uma chalupa». Acrescenta a
autora que ao longo da sua vida, JMS,
o bisavô protagonista do livro, tinha
comandado, seguramente, mais de
meia centena de viagens, a maioria das
quais no arquipélago dos Açores, outras com destino à América, para onde
transportava óleo de baleia e caixas
com laranjas, mas ainda para a Inglaterra e para Lisboa. No retorno trazia
madeiras dos Estados Unidos, pedra e
cal de Lisboa, carvão de Inglaterra.
Mas ao mesmo tempo, Nas Rotas de
um Bisavô, ilustrado com interessantes
fotografias e algumas gravuras, é a recordação dos anos difíceis, da luta pela
sobrevivência da população pobre – a
imensa maioria – história de crianças
66
SEIXO REVIEW
levadas pelos baleeiros, a mando dos
seus comandantes, para trabalharem
nas embarcações, dos temporais que
fustigavam a orla marítima da cidade
antes da construção do molhe da doca,
dos ciclones e da escassez do milho.
Mas a cidade iria recuperar dessas
calamidades naturais devido à importância do seu porto e ao dinamismo
da família Dabney, que havia montado
uma empresa fornecedora de apetrechos para a navegação, incluindo
oficinas de reparação que se tornariam
prestigiadas pela destreza dos seus
carpinteiros e calafates, sendo a mesma
família quem orientava a exportação do
óleo de baleia, e, enquanto foi possível,
o comércio da laranja e do vinho.
Para a elaboração deste interessante
volume a sua autora consultou inúmeros documentos dos mais diversos
arquivos e recorreu a conceituados investigadores da história do Município,
como, por exemplo, Marcelino Lima
ou Júlio da Rosa. Escreve Yolanda
Corsepius: «Era grande o vaivém de
navios no porto da Horta em 1857. Nesse
ano tinham entrado duzentos e sessenta e
seis, sendo cento e quinze baleeiras americanas! Tinha começado uma nova fase na
baleação que incluía fazê-lo a partir da
própria Horta. (…) Aumentava assim a
safra dos barris de óleo». Acrescenta que
mais tarde, em 1876, os Dabney iriam
apoiar a indústria baleeira nas Ribeiras
de um capitão
As viagens
do Pico.
Assim, após as décadas de ruína e fome, consequência das pragas que dizimaram, primeiro os laranjais,
depois a vinha, e ainda devido aos ciclones que destruíram campos de milho e trigo, a pequena localidade
reanimava-se. As páginas deste livro fornecem-nos
alguns exemplos dessa vitalidade, no domínio da cultura. Em 16 de Setembro de 1856 seria inaugurado o
Teatro União Faialense, empreendimento de João de
Bettencourt Correia e Ávila. No ano seguinte surgiu o
primeiro jornal da ilha, O Incentivo, fundado por uma
notável personalidade local, João José da Graça, e no
mesmo ano de 1857, o semanário O Fayalense, dirigido
por Miguel Street de Arriaga, o qual teria vida bem
mais longa e poderia contar com a colaboração de alguns dos escritores desse tempo, que então se revelavam,
como Florêncio Terra ou Rodrigo Guerra. Ainda nesta
década prodigiosa, em 21 de Fevereiro de 1858 aparece
a Filarmónica Artista Faialense, para a qual havia de
contribuir o engenho do maestro Francisco Simaria.
E enquanto aqueles que enriqueciam com o comércio marítimo e o rendimento das suas propriedades
ocupavam as horas do ócio nos bailes onde músicos
interpretavam Schubert ou Chopin, ou se declamava
poesia depois do chá, um número considerável de pequenos agricultores e rendeiros das freguesias do campo
das ilhas do Faial e Pico, calcula-se que alguns milhares,
revoltados com a nova contribuição predial, afluíram
com turbulência à cidade da Horta em Julho de 1862
e ocuparam alguns serviços da administração. Yolanda
Corsepius esclarece que apenas a serenidade e sabedoria
do saudoso governador civil Santa Rita resolveu a situação, a qual só esteve definitivamente apaziguada com a
chegada de um batalhão de soldados vindos de Lisboa.
Mas na pacata cidade tivera inicio, finalmente, em
1876, a construção do molhe da doca. Continuava a
exportação da laranja, mas diminuíram as quantidades,
e consequentemente era menor o rendimento dessa
actividade, até então bastante lucrativa. Entretanto, progressivamente, a navegação à vela seria substituída pelo
vapor. E uma outra família com interesse nos negócios
da navegação e no fornecimento de carvão começa a
competir na pequena localidade, os Bensaúde.
Em 1893, os Dabney, que durante mais de oitenta
anos trouxeram um contributo inigualável para o desenvolvimento da cidade, abandonam a ilha do Faial. John
B. Dabney chegara em 1808, quando assume o cargo
de cônsul geral dos Estados Unidos para todo o arquipélago. Mas no final da centúria que alterara a vida da
pequena localidade, «JMS fizera durante a sua vida, pelo
menos setenta e uma viagens, entrando em cinco portos portugueses, inclusive Açores, treze na Europa, três nos Estados
Unidos e um no Brasil», sublinha a nossa autora, não deixando de nos informar que o mesmo Jacintho Manoel
da Silveira assumiu o cargo de Vive-Cônsul dos Estados Unidos, por algum tempo, tendo em conta o seu
prestígio, as suas qualidades e a simpatia de que gozava.
Estava a findar o século de Novecentos e em breve teria
início um novo ciclo da história do burgo, a época dos
cabos submarinos.
Mário Machado Fraião
nasceu na cidade da Horta,
ilha do Faial, em 1952. Reside
no território continental faz
muitos anos. A distância do
arquipélago e as vicissitudes
da sua vida não limitaram o
afecto que transporta pela terra natal, aonde regressa, por
vezes, durante o Verão.
Nos últimos anos tem escrito crónicas e recensões de livros destinados aos jornais dos Açores, dirigidos principalmente ao suplemento de artes e letras do Diário Insular.
Quanto à poesia, prefere mencionar os livros Enquanto
o Mar se Renova, Poemas do Mar Atlântico e Os Barcos
Levam Nomes de Mulheres. Encontra-se representado em
várias antologias de poesia açoriana, designadamente em
Nove Rumores do Mar, organizada por Eduardo Bettencourt
Pinto, publicada pelo Instituto Camões, e On a Leaf of Blue,
dirigida por Diniz Borges, edição bilingue da Universidade
da Califórnia.
Mestre em História Regional e Local pela Universidade
de Lisboa, exerce a sua actividade profissional numa escola
do Ensino Secundário.
SEIXO REVIEW
67
ANTONIO GARCÍA YSABAL
NOS TRAE NOTICIAS DE ÁFRICA
elsa LÓPEZ
E
n mis viajes por África me acostumbré a recopilar en la memoria todos los paisajes y rostros posibles. Aquellos años marcaron parte de lo que ahora creo ser. Hay imágenes borrosas
y otras muy nítidas, pero entre todas ellas hay algunas que vuelven
insistentemente: los paseos por los poblados del interior del bosque
de los fang, los juegos en la playa con los niños pamues; el calabar que
me dormía canturreando sin parar aquellas salmodias interminables
mientras se balanceaba de un lado a otro; los niños sentados en el suelo
alrededor de un adulto escuchando historias que yo no entendía pero
que también iban dirigidas a mí y yo hacía mías. Y años más tarde, ya
una adolescente, recuerdo a Pablo canturreando cancioncillas, refranes,
y monótonas enumeraciones de palabras para hacerme rabiar y que
acababan por entontecerme y dejarme dormida en los rincones más
frescos de la casa. Aquellas letanías, como un canto, aún resuenan en
mis oídos. Hoy, después de tantos años, el texto de Antonio García
Ysabal, me devuelve el color a esas fotos y, además, me trae un regalo
inapreciable: el poder comprender ese mundo; darle forma; aprender
a escucharlo de nuevo. África, ese gran continente que ha pasado a
formar parte de nuestras fantasías infantiles, ese mundo remoto donde
transcurren mitos, aventuras y estrategias de color en cinemascope; ese
mundo con el que nos llenaron la cabeza de tambores y selvas pobladas
de animales feroces que despertaban nuestros sueños de aventuras y
delirios escolares, adquiere nuevos registros gracias a la voz de García
Ysabal. África, a pesar de los años y de una pretendida madurez física
y cultural, sigue siendo un mundo que nos atrae y atemoriza al mismo
tiempo, pero quizás por ello muy pocos son los que tienen el coraje
intelectual de enfrentarse a él para conocerlo y entenderlo mejor. Antonio García Ysabal lo hizo.
La vocación africana de Antonio García Ysábal se inicia en 1951
nada más fijar su residencia en Canarias donde se interesa por las únicas
dos endechas en dialectos beréberes que se han conservado de la época
prehispánica: la de Gran Canaria y la del Hierro, que él estudia, traduce
y vincula a otras del continente africano, especialmente con las akan de
Ghana. Esta vocación por la literatura africana lo lleva, en 1964, a emigrar a África donde viaja por todo el cono sur hasta la isla de Madagascar.
En esos años compagina su trabajo profesional con la recopilación de
poemas orales africanos. En 1977 publica Ensayo para un Corpus de la
poesía anónima de África, un Corpus lírico y épico en el que reúne aproximadamente trescientos poemas rescatados de la tradición oral de todo el
continente e islas de África como selección de los más de mil doscientos
poemas y variantes que había recopilado en sus continuos viajes al continente desde 1964 a 1997. En Animales y dioses en la memoria de África
editado por Ediciones La Palma el año 2002, García Ysabal vuelve a ofrecernos una parte importante de lo recogido en ese largo peregrinar por
68
SEIXO REVIEW
la literatura oral de África. Este libro rescata poemas de
la tradición oral africana y nos los da a conocer por primera vez en castellano, Llantos de la penumbra, los llama
él; poemas ingenuos pero llenos de grandiosidad que nos
entrega en un orden poético, no cartográfico, como a él
mismo le gustaba señalar. ¿Cuál era su método? El único
posible entonces: el seguido por él y aceptado por la investigación literaria; el que la variedad de lenguas y dialectos
africanos avalan y él llevó hasta sus últimas consecuencias:
peregrinar, recoger los poemas, buscar traductores y difundir los poemas por donde pudiera. En su opinión, llegaría un día en que un equipo de especialistas en lenguas
africanas podría realizar esa tarea de “primera mano” pues
la riqueza oral del continente no podía seguir esperando
indefinidamente. “Hoy por hoy, supone una utopía” declaraba con motivo de
la publicación de sus
Animales y dioses en la
memoria de África.
Pero no le bastaba con habernos entregado sus hallazgos,
sus corpus de poesía
anónima de África, que no africana,
como a él le gustaba
señalar. Antonio estaba escribiendo su
propia poesía. Relacionada con África,
evidentemente. Relacionada con lo que
veía, amaba, sufría
y condenaba de ese
país. En Peregrino en
África, el último trabajo de García Ysabal
publicado por CajaCanarias en La Caja
Literaria, nos deja su
camino, sus inquietos pasos dentro del
continente que tanto
amó, su continuo peregrinar de un rincón a otro del país,
su mirada atenta hacia los demás peregrinos, su incertidumbre y sus miedos. Sus Noticias de África del Sur, hoy,
ya sin él entre nosotros, adquieren la fuerza y la energía,
la melancolía y el desgarro de un hombre que nos enseñó a querer los animales, los dioses y la cultura de un
gran continente. Y nos deja una serie de poemas: Blues
del Nilo, “como raíces – que el peregrino – halló en los
cantos de su camino”; y Las Endechas de África, desde
África del Norte hasta el África Ecuatorial y Austral pasando por el Kilimanjaro para acabar con dos muestras
endéchicas de un antiguo testamento ágrafo africano.
Y, para terminar, una Biblioteca Africana supervisada y
puesta al día por el autor donde se pueden encontrar las
mejores referencias bibliográficas al respecto. Debemos
dar las gracias a Antonio García Ysabal, una vez más,
por esta muestra de su trabajo como investigador y como
poeta y por habernos devuelto el sentido real de lo que
una vez entendimos por peregrino: un ave de paso, un ser
raro pocas veces visto adornado de singular hermosura
perfección o excelencia. Y, ya en un sentido figurado, el
que está en esta vida mortal y pasa a la eterna.
SEIXO REVIEW
69
Antonio García Ysábal (Barcelona, 1939), poeta y africanista.
Reside en Madrid entre 1944 y 1951, aquí inicia estudios de bachillerato y da comienzo a sus libros: “Revelación de Orfeo” (poesía y
prosa) y “Diario de Arbois” (autobiográfico). En 1951 fija su residencia en Las Palmas de Gran Canaria, donde cursa las carreras de
Radiotelegrafista e Ingeniero Técnico y se forma como escritor. En
1962 regresa a Madrid por motivos laborales y académicos y termina su poemario “Desnuda Palabra” con el que obtiene el Primer
premio Santo Tomás de Aquino de la Universidad de La Laguna.
En 1964 se traslada a África del Sur donde trabaja como Radiotelegrafista y profesor de Lengua y Literatura Española en la Universidad del Cabo e inicia estudios de licenciatura en Lenguas Africanas.
Durante esta etapa se gestan diversos libros de investigación, ensayo
y traducciones sobre la poesía oral de los pueblos de África entre
los que se encuentran: Poesía Negroafricana Tradicional, Cuadernos
Hispanoamericanos, Madrid, 1971 (1ª ed.) y Fablas (2ª ed.), Madrid,
1983; Antiguo Egipto: Diálogo de los amantes, Fablas, Madrid, 1986;
Tradiciones Orales, Melanoafricanas, Ed. Alegranza, Las Palmas,
1990; Cancionero General Africano, Ed, Alegranza, Las Palmas, 1991
y (2ªed.), CCPC y Ayuntamiento de Las Palmas de CG., 1994; Salmos de la penumbra, Ventania, Las Palmas, 1994; Ensayo para un Corpus de la poesía anónima de África, R. S. E. A. P.,
Tenerife, 1987; Animales y Dioses en la memoria de África, Ed. La Palma, Madrid, 2002. En 1965 regresa a Las Palmas,
desde entonces viaja y reside entre Las Palmas y Madrid (así como temporalmente en otros países de Europa, África
y América) donde trabaja y escribe la mayoría de su obra literaria publicada.
Es autor de varios libros técnicos, así como de colaboraciones científicas y también sobre ajedrez y filatelia clásica
española en revistas especializadas y prensa; ha fundado y dirigido diversas revistas y colecciones de poesía y ensayo:
“Alegranza”, “Ventania” o “La Isla Universal”. En 1962 funda el premio Alonso Quesada de poesía y ensayo. Ha sido
colaborador de prensa desde 1957, destacando sus secciones “La isla Insular” y “La mirada escrita”.
Es miembro electo y numerario del Museo Canario y el Instituto de Estudios Canarios de la Universidad de la Laguna. Figura incluido en diversas antologías poéticas locales y ultramarinas.
Poesía: Desnuda Palabra, Primer premio Santo Tomás de Aquino, Universidad de La Laguna, 1962; La Soledad y el amor, Col. Tagoro,
1966; Corazón en la orilla, Premio Ansite, Ed. Del Cabildo Insular de G. Canaria, 1968 y Alegranza, 1987; Relatos, Col. Tagoro, 1970;
Diálogo con la claridad, Col Fablas, 1980 y 1986; Versiones, Alegranza, 1988; Dodecaedro, Ed. Alegranza, 1990; Teoremas de la página, Ed. Alegranza, 1988; Laberinto Insular: Obra poética [1955-1991], Cultura viva de Canarias, Ed. Edirca, 1993; Sarah, Premio al mejor libro
del año de la Comunidad Autónoma de Canarias, Ed. Edirca, 1995; Kriptos, Ed. Huerga y Fierro, 1995 y Revelación de Orfeo (narrativa
y prosa), Col. La Isla Universal, Ed. Alegranza, 2002.; Escrito en el Viera, Col Ultramarino, Las Palmas 2006; Peregrino en África, Ed. La
Caja Literaria, 2008.
Narrativa: Antología de Cuentos, Col Savia, Barcelona, 1959; Diario de Arbois, III: De un dispar percibir, Col. La Isla Universal, Ed. Alegranza, 2002. Teatro: Estrenando la felicidad, Premio de teatro Radio Las Palmas, 1960, Edición Radiofónica de Gonzalo Monasterio
y Pedro Lezcano, 1961 (en prensa). Ensayo, crítica y traducción: Altas ventanas, Col. Ultramarino, 1986, (primera traducción al
castellano de High Windows de Philip Larking; Una defensa de la poesía, Ensayo, Ed. Del Cabildo de G. Canaria, 1990; Tres llamas de la zarza
ardiente, ensayo y edición crítica de la obra poética de Sebastián Manuel de la Nuez, Alegranza, 1990; La Nueva Poesía Canaria, ensayo
y antología, Ed. Verbum, Madrid, 2001; Matemorfosis, ensayo y edición crítica de la obra de José Rafael Franco, Col. San Borondon –
Isla de Sombras, Ed. El Museo Canario, 2003.
70
SEIXO REVIEW
NATIVES BUIDING A TRANSMMISSION LINE
Desde mi ventana los veo, inclinados bajo el sol
[inexorable,
luchando con sus fatigados cuerpos por levantar la pesada [es­tructura metálica.
Parecen un rebaño ejemplar de corderos,
pero al mirar a lo lejos y respirar profundamente,
hay un brillo en sus ojos de hombría acosada.
El sudor de estos hombres no mana de su cansancio físico.
Mana de sus almas abatidas en el transcurso de los años,
no de los vividos, sino de los vacíos que les sobran
para morir y que con sus mujeres comparten;
por todos esos largos y humillantes años
que sin remedio legarán a los hijos que hagan en ellas.
Uno de esos hombres se detiene un instante
y mira a la ventana desde la que me asomo:
siento sus ojos como un latigazo
sobre la blanca piel de mi rostro.
Si estos hombres negros me odian ‑pienso, mientras
[les observo desde mi ventana‑,
con un odio denso, capaz de hacerles correr en masa
[hacia mí y ajusticiarme,
todavía existe una tenue esperanza para sus vidas.
Oakdale, Jueves 4 de noviembre de 1965
VIEW FROM THE BLUE TRAIN
OF A PREGNANT WOMAN WALKING THROUGH THE DESERT
Yo no sé que has venido a buscar en estos páramos,
bajo este fuego, entre estos cactus secos,
camino de la ciudad,
imprevista belleza,
pobre mujer indígena.
Te miro sorprendido desde la ventanilla
del Tren Azul Whites Only
con destino a la urbe de los corruptos limos
y te veo crecer, multiplicarte en prodigiosas voces
ajenas a la sierpe de acero que avanza
[vertigi­nosamente.
SEIXO REVIEW
71
Y de pronto imagino sentarme junto a ti,
pidiéndote permiso para ocupar tu tren,
agradecido huésped de tu buena esperanza.
¿Qué buscas, cómo
has llegado hasta aquí, cómo
decirte que te detengas,
en qué lengua extraña, cadenciosa, amas
al hombre que fecundó en tu cuerpo
ese diamante de ébano,
la semilla que danza jubilosa al ritmo
de tus pasos, celebrando su primera heredad,
mientras gira en tu núcleo hacia su alumbramiento?
¿O acaso te reprocha con sus pies luminosos y [oscuros,
con el hondo quejido de un tambor en la noche,
negándose a un destino que conoce y conjura
al sentir la avidez de la luz que le ciega
la vida, el fuego, el grito, el tren que se aproxima?
¿Ningún esfuerzo por nacer hacemos?
Si a nuestra concepción nada aportamos
y todo al albedrío de los que aman queda,
¿cómo encontrar después nuestro camino?
Mujer, ya casi no te veo, en un milagro
te has adueñado de la lejanía,
que ya te absorbe con una innominable lentitud:
¿será acaso la muerte?
Detente,
detente en ese páramo.
No des un paso más hacia la oscura ciénaga,
morada de unas sierpes a ti desconocidas,
urdiendo tu inmanencia para que allí tu vida
sea aún más distante que tu muerte.
No des una paso más.
Qué pequeña te veo,
invisible belleza,
lejano punto inmóvil,
calcinado guijarro.
Cape Town-Johannesburg, 27 de noviembre de 1964
72
SEIXO REVIEW
BANTU PROSTITUTE
Por los rincones,
acechando;
tras las esquinas
de las calles,
en la opaca penumbra
de los muelles,
acechando.
En un hondo y oscuro pozo caes,
ingrávida desciendes
por el odio
desde tus tristes horas
de amor vendido.
Nada te pertenece.
Sólo seres inicuos,
ajenos a tu oculta desnudez,
pasan sobre tu cuerpo
esbelto, vigoroso,
que la podredumbre corroe
interiormente,
lentamente,
hora tras hora;
lentas,
inacabables,
con el hambre de tus hijos
mordiéndote los pechos
por los muelles,
con tu enorme desnudez
escondida,
acechando, acechante.
Durban-Manzini, 15 de abril de 1964, jueves.
SEIXO REVIEW
73
LA CANCIÓN DE MUGALA
Nosotros, los poetas, nacimos bajo el signo
de una estrella maléfica; ¡cuando el chacal aúlla!
Y se nos asignó una misión ingrata.
Tan sólo los ungidos de excrementos
de serpiente pitón
fueron afortunadamente concebidos.
Y ellos son los ricos.
A mí Dios me creó enfermo.
Yo tenía un deseo.
Y no sé..., pues de haber salido
del útero materno, todo habría acabado
dentro, sin mi Revelación.
Mas los dones se asignan, y a mí me fue asignado
así: cuando estaba hondamente dormido,
me despertó una voz y grité: “¿quién me llama?”
Me contestó: “¡Estás dormido, Mugala!
¡Despierta! ¡Ven ahora mismo aquí
y mira como se oye la Tierra!
[Basumbwa, Transvaal, Sudáfrica]
NOCTURNOS
1
Limito con la noche
al norte del silencio,
al sur de la penuria,
al este del olvido,
al oeste del hambre.
Limito con la muerte
en esta noche cóncava.
2
Si avanzo: la noche.
Si regreso: la noche.
74
SEIXO REVIEW
Si espero: la noche.
3
Dejadme morir tranquilo.
Acaso es un consuelo
sabiéndome ya un río
derrumbado en el mar,
que he de volverme polvo
con los siglos
y he de habitar la tierra
y las raíces.
Dejadme dormir tranquilo.
Enterradme bien hondo,
cavad hondo y profundo,
y prensadme de tierra los costados,
la frente, la cabeza.
Dejadme morir tranquilo.
4
Bajo la tierra
todo parece humano.
Al fin la vida
nos dona su verdad.
SEIXO REVIEW
75
UNA CIUDAD Y LA LLUVIA
cristina GUFÉ
-¿Te gusta la lluvia?
-Ahora, sí.
A
ún no has despertado y es mejor. Nadie llega al mundo para ser feliz; se
nace para existirse. Un tentáculo dorado pulsa aquí, allá, a la búsqueda
de algo anterior que ya no vive. Si giras palpas la sábana; hace veintitrés años también era así, notabas el cuerpo tibio del amanecer a sus espaldas.
Les crepúsculos de los insectos arrecian un muro invisible porque si nada hay,
hay algo más sólo si estás solo. Cúanto te habría gustado tenerle, compartir
jornadas de amaneceres limpios de playas, pero es mejor de este modo, nadie
reconoce el cristal si es inmediato, el cerebro precisa un transcurso mínimo
de tiempo que le permita recordar. Cuando sucedían los milagros no los reconocías; cuando alguien te entregaba tu cuerpo luminoso antes de consentir
que la cotidianeidad, más plana, le restase el brillo al cuerpo, no eras capaz de
descubrirlo pero eras muy linda antes de envejecer, incluso podrías llegar a ser
una anciana elegante o respetable. Cuando todos descansen tú podrás también
descansar. Hay un tiempo en la noche que el mundo deja de sentir porque está
dormido. Las ciudades con las catedrales se convierten en mundos de papel
porque las cosas sólo suceden si allí se congrega la gente. En la madrugada las
calles acompasan un ritmo sagrado o soñoliento. Te arrancaron las hojas. Si eras
una flor pura y translúcida, las hojas dolieron cuando el aire las arrancó de su
tallo limpio y transparente; ese tronco de flor era un capullo descalzándose porque en las ciudades modernas las flores duermen en hoteles. Espejos cóncavos
sorprenden al cuerpo adormilado; a punto estamos de que suceda un milagro y
las campanas de la catedral resuenan como si no ocurriera nada, pero canta la
lluvia en un campo de hierba que no existe. Te sentías desprendida de tu poder.
Alguien llegó y se atrevió a quitarte el abrigo, ahora estás desnuda en la ciudad
del frio, en la ciudad donde el aire se enreda con la lluvia o la olvida. El aire olvida el ritmo de caer del agua amando la constancia de su despertar en un campo de arbustos muy mojados, donde la humedad de los hongos del paraíso distinto comen los frutos de otro extraño manantial desconocido. Todos temen tus
palabras. Los niños se asustan si les hablas; los hombres aborrecen los excesos
y las comparsas antiguas caminan detrás de la idea de la resurrección. Caracoles
sanguinarios que crecen en la esquina, detrás de la puerta, escondidos en su
armario, querrían formar parte del paisaje pero los seres diminutos no comparten fiestas literarias, y sí las mujeres rotas, descuartizadas y limpias verían su
vida detenerse pero nadie permite la muerte aún, cuando es necesario limpiar
el peregrinaje de las dudas ante el camino o la inmensidad de andar. Cuando
vislumbren las exageraciones, esos modos tuyos de sentir, sólo van a estar pensando en huir para desaparecerse; los dioses son capaces de crear condiciones
de padecimientos inmensos, grandes como las tierras de desiertos; a los gatos
tampoco les gusta quedarse ahí pero lo evitan, son capaces de no doblegarse
76
SEIXO REVIEW
YO SOY ÁFRICA
La Tierra es un cristal anaranjado.
El espacio arrecia firme e inocente.
Gacelas negras parten de allí,
para viajar muy lejos.
Los ojos de un gato solitario
se enseñorean descalzos.
Una palmera erguida golpea en una
bóveda.
África es un nombre introducido en
las ascuas
rojas de la resurrección.
Campanas de la ciudad de piedra,
entre una fiera herida,
querrían respirar pero no pueden.
El bronce no es la vida,
ni la vida recordar.
La vida es existir para encontrase.
El mundo se disfraza de monje
enlutado,
y el amor pasea
en el vuelo invisible, indiferente,
de un ave que madruga
al ritmo del amanecer.
Cristina Gufé
2008.
ante la vida sentimental, existen en la ciudad para que
les miren, como si fueran tigres diminutos, extasiados
en su ensimismamiento, aislados del ruido, acongojados y bien dispuestos a morir entre lo inevitable, y no
hacen lo que harían seres parecedios a lo que eres tú,
una mujer clandestina, en los albores de sí misma, sin
que le dejen ser, palpando, entre la humillación, su permanencia minúscula. Compran zapatos para acompañar
a una amiga mientras beben té o se miran una mano.
Las que son como tú padecen el ritmo cortado; por eso
envejecen las mujeres, porque el amor les entrega el
tiempo vacío y les invita a esperar otra ración de vino
cuando el transcurso de los días indique la destrucción
que llega después de muchos años.
2008
Cristina Gufé (25-junio 1956, La Coruña, Galicia, España.)
Licenciada en Psicología. Trabaja como pofesora de Filosofía en el Instituto de Bachillerato Salvador de Madariaga, en La Coruña.
Ha escrito poesía, novela, relato y ensayo.
Finalista, en el actual año 2008 del Premio de poesía
“Hermanos Argensola” de Barbastro, Huesca, España;
con el poemario “La disolución y la noche”.
El próximo año se publicará la novela que lleva por título
“QK: 99 Cartas a Kafka”, en una traducción al portugués,
por Pangeia Editores, Lisboa Portugal.
Vive en La Coruña.
SEIXO REVIEW
77
A Temática
nas Diacrónicas
de Onésimo
nuno a. VIEIRA
M
Muitos artistas, nas mais variadas formas
de arte, manifestam a sua verve num reduzido número de obras, outros, porém,
continuam produzindo, sem a quantidade afectar a qualidade. O sopro criativo é
brisa que corre permanentemente sobre
as teclas do computador de Onésimo Teotónio Almeida. A ele se aplica também a
citação, que ele próprio faz,
referente a Harold Bloom –
“do latino Varrão diziam ter
lido tanto que não se sabe
como lhe sobrou oportunidade para escrever, e escrito
tanto que não se sabe como
teve tempo de ler”.
Ultimamente, li dois livros de “diacrónicas” do Professor Onésimo de Almeida.
As reflexões deste artigo serão baseadas na publicação de 2006 – “Livro-me do Desassossego”. Um leitor que pela
primeira vez leia as “diacrónicas” deste autor, poderá sentir-se deslocado, sem saber
se deve aderir ao ligeiro (humorístico) ou
ao sério (intelectual). Esta dualidade de
leitura, que caracteriza as “diacrónicas” do
autor, vem explicada na contracapa do seu
livro: “A diacrónica prefere o à-vontade de
andar descalça, calção e tronco nu, para
78
SEIXO REVIEW
melhor sentir a doce sensação da liberdade. Por isso, as ideias vão diluídas em muito refresco (dizer “sumo” seria presunçoso),
para que possam ao menos ajudar a sacudir a mornaça, a morneza, o tédio. Assim
elas conseguissem. Nos sisudos tempos
que correm o humor torna-se mais difícil
de fazer e digerir. Mas um sorriso ainda
relaxa os músculos da face e sempre contribui par diminuir o stress.”
Em nota introdutória ao seu livro,
Onésimo esclarece que “as preocupações
máximas são as mesmas. Se o ensaio se
dirige mais ao intelecto, a ficção inclinase para a sensibilidade”. A razão e a emoção caminham juntas nos seus escritos. O
equilíbrio entre essas duas variantes é uma
preocupação na mente do escritor. No capítulo “Livros em Serendipity”, o autor escreve: “E fiquei sem saber se os brasileiros
é que desengravataram o português (pego
nesta de emprestado ao Vinicius) ou se o
português é naturalmente desengravatado
e só em Portugal o sobrecarregamos com
roupões de Inverno.” No final da crónica
“O Oceano da Mancha”, o autor regista:
“esta crónica, que eu pensei que iria sair
bem mais leve, vestiu-se de uma roupagem pesadona e cinzenta.”
Como não poderia deixar de ser, um
leitor que siga o percurso da obra “Livro-me do Desassossego”, de Onésimo de Almeida, colhe muita informação
acerca do seu autor. Trata-se de um professor da Brown. A posição desta universidade, no meio académico
estado-unidense, poderá ser talvez avaliada pelo ditado
nascido da rivalidade entre dois expoentes máximos: “If
you can’t go to Brown, you go to Harvard”. Tanto na
Brown como na Harvard apenas se matricula o melhor
dos melhores. O Professor Onésimo tem consciência
desta superioridade – “Gabo com frequência os alunos
que a sorte me deu na Brown. Falo com frequência deles
a amigos portugueses e às vezes não me acreditam. Felizmente vários colegas por cá têm passado a leccionar e
comprovam a minha experiência”.
Nas suas “diacrónicas”, Onésimo revela-se como um
autor competentemente informado. Vemo-lo na cátedra,
na televisão, nas conferências, e congressos mundiais.
Lemo-lo nos jornais, revistas, e livros. Sabemo-lo ser
convidado para discursar, escrever, entrevistar, opinar, e
encabeçar mesas redondas a propósito do literário, filosófico, e social. Divisamo-lo na vanguarda de todos os
movimentos intelectuais. Percorre o mundo. Só neste
livro, vejo-o em vários estados da América, em Portugal,
Brasil, Alemanha, França, Noruega, Islândia, e em Moçambique. Por qualquer lado, vemo-lo nas livrarias. Nas
livrarias dos aeroportos acaba de abarrotar a sua pasta
com livros de publicação mais recente. Nos aeroportos,
aviões, férias, e em frente da lareira, num dia em que um
nevão cancela as aulas, vemo-lo a devorar a leitura de
mais um livro.
Pensei que talvez houvesse um leitor curioso que gostasse de saber qual poderia ser o conteúdo das Diacrónicas de um Lente da Brown, filósofo e escritor, tão douto,
lido, relacionado, e viajado. Assim, apresento a seguir o
tópico de todas as crónicas contidas no livro “Livro-me
do Desassossego”. Devo admitir que nem sempre a descrição dos tópicos capta, por completo, a essência da crónica. Vejamos a seguir a lista desses temas:
-a apatia do americano pelo futebol, mesmo no dia em que
a sua equipa joga com Portugal para o campeonato do mundo.
-disputa linguística, em tribunal, sobre a diferença entre
ser-se “filho de puta” ou “filho da puta”.
-entusiasmos nacionalistas e a “propriedade relacional da
identidade”.
-legalidade e ética do “copy & paste”, em trabalhos académicos de estudantes, nas universidades americanas.
-Jornalismo e Ficção debatidos, em mesa redonda, com es-
critores vindos do jornalismo, tais como Baptista-Bastos, Joaquim Letria, Artur Portela, Leonardo Ralha, e Paulo Nogueira. Pergunta central: “Em que medida é que o Jornalismo
é um treino para a ficção?”
-crítica à letra do Hino dos Açores. Aviso de Alçada Baptista acerca do perigo que há em “tocar-se nos hinos nacionais”.
John M. Guillot, num projecto-engenhoca, pretende compor o
“Hino do Mundo”.
-participação clandestina, de Onésimo, para o Açoriano
Oriental e para a União e a proibição de o fazer pela redacção
daquele e pelo Bispo de Angra “pela complicação que então
resultava de se dizer o que quer que fosse de menos quadrado
ou bolorento”.
-encontro com alunos, fora da critica analítica de textos
de Nietzsche, Marx, Max Weber, Worf, Rorty e outros, para
uma “conversa fiada pelos labirintos da vida de cada um”.
Entra-se num mosaico de raças, nacionalidades, e religiões.
-uma experiência pessoal única: por uma semana, o Onésimo e a mulher deslocam-se para casa de uns vizinhos amigos, que vão de férias, para tomar conta de um labrador retriever.
-irregularidades no fisco, segundo as quais “os fat cats
nunca deixaram de arranjar processos legais de nunca desembolsar … a arraia-miúda, essa avinha-se como podia, mas
sempre pagantibus …”.
-carta dirigida ao director da revista Time acerca da discrepância entre a fotografia e a legenda que a acompanha. A
fotografia mostra” um arpoador, na Indonésia, todo lançado
em arco, arpão em punho de encontro a uma baleia”. Onésimo descobre que a baleia já está morta e o salto do arpoador é
só para a fotografia.
-a quadra do Natal na América com de tudo um pouco:
concerto do Natal, na Brown, com canções da época, em Latim. “Os cartões obrigatórios com votos de um ano melhor
para todos”, por um lado e “… a crescente desigualdade socioeconómica entre as classes”, por outro lado.
-a compra de uma genealogia aristocrática para qualquer
pessoa.
-o Outono, na Nova Inglaterra, “sobre lençóis de folhas” e
as eleições americanas num sistema bipartidário.
-a contagem dos votos nas eleições presidenciais entre George W. Bush e Al Gore.
-as Cartas ao Director de ontem, hoje são “pequenas peças
de escrita” chamadas E-mails.
– As Torres Gémeas – “o arranha-céus da cultura ocidental revelado frágil e potencialmente reduzível a pó.”
-o Sr. George W. Bush “virou militante” com “o fatídico 11
de Setembro”.
-comentário à observação de um jovem mestrando porSEIXO REVIEW
79
tuguês: “Em Portugal pareceu-me que a guerra abala muito
mais as pessoas que aqui.”
-a volatilidade de opinião sobre a campanha eleitoral entre George W. Bush e Kerry.
-Ronnie, condenado a morte prematura por haver nascido
com a síndroma de Down, celebrava com alegria o ter mais
um dia de vida.
-reciclagens de sabedoria, nos pontos de encontro dos nossos
emigrantes, com grupos provenientes de cada ilha, de cada
freguesia, e vila. O resignado fatalismo ilhéu do Mestre Guilherme Pires “podia ter sido pior” choca com a filosofia “de um
moço já educado em college americano”:” O óptimo é inimigo
do bom, The sky is the limit. Quem olha para o chão nunca
vê as estrelas.”
-o privilégio de leccionar na Brown é exemplificado com o
caso do Sean, um aluno de Clássicas, a tirar uma cadeira com
o Onésimo. Este aluno, em nota de rodapé, tropeça com “uma
referência ao poema épico de um tal Luíz de Camoens” e não
só se entusiasma com leitura completa dos Lusíadas em inglês,
como ainda saboreia a leitura de muitas estrofes em Latim.
-Eduardo Lourenço, num número do JL dedicado ao escritor, é definido, desta vez, tão-somente, pelas suas expressões
e reacções em três episódios da sua vida.
-as múltiplas consultas, que lhe são feitas (ao Onésimo)
acerca da produção literária de vários autores, vão das mais
rudimentares até às mais meritórias.
-jantarada humorística no “Ondas de Bruma” no Pico da
Urze, nos arredores de Angra, em que, por exemplo, Stuart
Blazer se refere à sua desagradável experiência de uma colonoscopia como “mau tempo no anal”.
-o Yi Liu, um estudante chinês, que aprendeu a falar um
português correcto com uma leitora em Pequim, dá provas
da sua extraordinária inteligência e é admitido na Brown,
no Programa de Português. Num email corrige o professor,
dizendo: “Você só está velho quando trata Salazar por “o” Salazar”.
-letras brasileiras começam a entrar no espaço português,
como agora “O Pintor de Retratos”, de Luiz António Assis
Brasil.
-padre americano prepara lista de pecados, em quadradinhos, para facilitar a confissão a garotos que a fazem pela
primeira vez.
-a sua terra Natal – a ilha de São Miguel – cerca o autor
em Paris quando numa estação da televisão vê “um golo de
Pauleta contra o Olympique de Lyon, campeão de França, e
na RTP-i vê a festa do Senhor Santo Cristo. No avião que
sobrevoa os seus Açores, de regresso aos Estados Unidos, põese a ler a biografia de um outro micaelense em Paris – Ernesto Canto da Maya.
80
SEIXO REVIEW
-portugueses na América mudavam de nome. Interessantíssimo é o caso ocorrido em Provincetown, Cape Cod, Massachusetts. Joe King aparece como a versão americana de “Joaquim”, e não, com seria de se supor, de “José dos Reis”. Curioso ainda é o caso de D. William Levada, actual responsável
pela Congregação para a Doutrina da Fé. “Levada” seria a
transcrição fonética da pronúncia americana de “liveira” com
a elisão do “O” – Oliveira.
-a perda de um ficheiro, que continha notas para futuras
diacrónicas, é bem aceite quando comparada com o infortúnio de um amigo que lhe conta tanto como cinco desgraças
pessoais.
-lista de tópicos contidos no ficheiro perdido: 1) estudos
do sobrinho Alexandre em Portugal, 2) leitura do livro “Os
Anjos” de Teolinda Gersão, 3) conversa entre a professora
Inocência Mata e o escritor Mia Couto num colóquio da Gulbenkian, 4) colóquio na Madeira por ocasião da Feira do Livro, 5) embaraço com o disparo do alarme ao sair da livraria
da Brown, 6) colóquio na Póvoa de Varzim “onde se badalou
muito de livros e do persistente hábito da pouca leitura em
Portugal”, 7) numa exposição do Seixas Peixoto na Madeira, Onésimo é apresentado como “dos Estados Unidos” e não
como “dos Açores”.
-inspecções de segurança: no aeroporto de Lisboa, inspector informa o Onésimo que o chá açoriano do Porto Formoso e Gorreana continua a manter a mulher “gorda como o
caraças”. – A mulher de Pedro Paulo fica esclarecida da sua
infundada suspeita a propósito de um bilhete encontrado na
carteira do marido, quando na livraria a informaram que
no dia seguinte receberiam o livro “Inês Pedrosa, Fazes-me
Falta”.
-o Disneyworld, na Florida e a Disneylândia, na Califórnia eram “o mito da América infantil e da maturidade
europeia” antes da Disneylândia em Paris.
-critica pessoal às Correntes d’Escritas do ano 2005
-mães de Bragança “fartas dos desmandos dos maridos de
cabeça desnorteada com as habilidades das brasileiras …”
-Luis de Camões, Eça de Queirós, e Fernando Pessoa incluídos nos 100 génios de Harold Bloom.
-serenditipacão entre livros e autores brasileiros.
-exílio no “pequeno Paraíso do Maine” para um mês de
leitura e escrita.
-“O Corvino Carlos G. Nascimento. Co-arquitecto das
Letras Chilenas.”
-a peça Copenhagen – “duas horas e meia ao vivo de História da Física, História das Ideias, História Política do Século XX, Ética, História Contemporânea ponto.”
-“A Paixão apaixonada de Mel Gibson” – o filme “The
Passion of the Christ”.
-debate, em mesa redonda, na Póvoa, subordinado à pergunta: “É literatura tudo o que não é evidente?”
-as luxações e o papel dos endireitas.
-Nova Iorque, Montreal, e as cataratas do Niágara na
pena de vários escritores.
-Las Vegas – “um dilúvio de prata a jorrar, a cair, a tilintar, a retinir, a abarrotar a concha da máquina e a saltar
para o chão …”
-choice e decision-making theory num “mundo das avalanches diárias de informação.”
-“as diferenças entre a filosofia inglesa e a ‘continental’,
como no mundo anglo-americano é conhecida a filosofia do
eixo França-Alemanha pós-Descartes e Kant.”
-o desinteresse dos portugueses por certos livros de natureza
filosófica como por exemplo O Atiçador de Wittgenstein: A
História de Uma Discussão de Dez minutos entre Dois
Grandes Filósofos.
-resposta à pergunta de Natália Correia nos anos 70:
“Qual é a corrente filosófica dominante agora na América?”.
Natália aproveita-se do “Against Method: anything goes”
de Paul Feyerabend, “para uma diatribe contra a ditadura
intelectual da esquerda” do Portugal de então.
-lista de acusações pessoais.
-anarquia na Internet.
-considerações sobre o vício solitário (autoerotismo, ipsação,
masturbação), a propósito da recensão de Stephen Greenblatt
ao livro “Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation,” de Thomas Laqueur.
-diferentes interpretações para a expressão: “Do it! Just do
it!”
-espartilhamento global: todo o mundo anda numa correria. Ninguém tem mais tempo para ninguém.
A maneira simples, como apresento os tópicos das diversas crónicas, esconde o que poderá possivelmente ser
o mais característico destas crónicas – a profundidade
de pensamento, a informação que ultrapassa o trivial, o
relacionar e comparar, o analisar, criticar, e inferir. Onésimo em todas as suas crónicas exibe-se como “a man
in a mission”. Tem muito para dizer, mas opta por não
dizer tudo. Todas as suas crónicas estão polvilhadas com
o condimento indispensável do humor – É que “a diacrónica prefere o à-vontade de andar descalça, calção e
tronco nu …”. Ainda, no seu livro, se pode ler, em epígrafe, uma citação de Stephen Hawking: “Life would be
tragic if it weren’t funny”.
“Dog days” é uma das crónicas do autor onde ele fala
da sua experiência de tomar conta, por alguns dias, do
cão de uns amigos. Não obstante ser esta uma crónica de
leitura leve e humorística, o leitor fica fornecido com um
manancial de informação, investigação, e leitura daquilo
que se refere a cães. Vejam lá a lista:
“O labrador retriever”, de Diane McCarty. “The New
Dog Handbook”. Uma citação de Walt Whitman que dizia poder viver só com animais. “The Feelings of What Happens”, de António Damásio. Outra citação do jornalista
Bob Kerr a propósito da presença do cão em fotos de
campanha eleitoral. Aldous Huxley é também citado.
Toma-se conhecimento de que uma universidade dos
EUA oferece um curso sobre o cão na literatura americana. Finalmente, ainda vem mencionado um ensaio
“Strickeen” de John Muir.
Penso que ninguém poderá deixar de concluir que
Onésimo se preparou devidamente para a sua tarefa
de tomar conta de um cão por dez dias. Acabou por se
afeiçoar ao cão, de nome “Dominoe”. Agora, pensa que
os cães pensam. Já Pablo de Neruda escrevera no poema
“Um perro ha muerto”: Y yo, materialista que no cree/
en el celeste cielo prometido/para ningún humano,/para
este perro o para todo perro/creo en el cielo, sí, creo en
un cielo …
Nestas crónicas, Onésimo – mestre vernáculo da palavra escrita – recorre a estrangeirismos e demais expressões em outras línguas. Estas surgem como uma explosão
natural do ambiente que as originou. Nesta era de globalização será imperativo fazer-se repetidas vezes como
os romanos fazem quando em Roma. Por outro lado, o
Onésimo não se pode furtar à sua formação linguística.
Quando ainda menino, na pré-adolescência, era acordado, às cinco e meia da manhã, pelas palmas do padreprefeito que exclamava “Benedicamus dominum”. Terminava o dia com a “Salve, Regina, mater misericordiae,
vita, dulcedo, et spes nostra salve”. Não conheceu outro
baile de passagem de ano, senão o “Te Deum Laudamus”.
Muitos dos seus compêndios de estudo, desde tenra idade, eram escritos em Latim, espanhol, francês, e italiano.
Estudou várias línguas. A sua preparação linguística não
o poderia abandonar. Diz o provérbio francês: Apprendre une langue, c’est vivre nouveau.”
Outrora, antes de iniciar as aventuras na região de
La Mancha, el hermoso hidalgo, caballero andante, escolheu para sua dama Dulcinea del Toboso, nombre a su
parecer, musical, raro y significativo. Onésimo, também,
faz-se acompanhar, em muitas das suas caminhadas e
desafios, por dama de nome bastante sonoro – Leonor.
Esta acompanha-o como confidente, conselheira, e amiga inseparável. É assim que dedica o livro de que falamos: “ ÁLeonor, minha primeira, atentíssima e implaSEIXO REVIEW
81
cável leitora”.
“Livro-me do Desassossego”, da autoria do Onésimo Teotónio Almeida, é um livro com muitas
vertentes – literária, filosófica, teológica, social,
analítica, humorística, humana, e ainda ocorrências diárias. Fornece o leitor com várias leituras
simultâneas – todas elas verdadeiras.
Nuno A. Vieira nasceu na ilha das Flores, Açores.
Completou nove anos de Seminário, em Angra do
Heroísmo.
Foi alferes miliciano e esteve na Guiné por 21 meses. Foi para os Estados Unidos quando tinha 26
anos. Fez uma licenciatura em Humanities and Social Science, U Mass, Darthmouth. Tirou um mestrado em Bilingual Studies with concentration in
ESL, Boston State College, Boston. Em estudos de
pós-graduado, diplomou-se em várias disciplinas.
Foi professor liceal, Stoughton, MA por 36 anos.
Leccionou Português, Espanhol, e Latim. Por 3 anos,
leccionou Português no Boston State College. Já
há 11 anos que dá aulas no Massasoit Community College, Brockton, Mass., sendo, presentemente
professor de línguas.
82
SEIXO REVIEW
Transformações
do Discurso Poético
de RONALD de CARVALHO
olegário PAZ

R
Ronald de Carvalho foi o poeta brasileiro que representou o seu país na revista do primeiro movimento modernista
português, Orpheu (1915), que se pretendia transcontinental. Dar conta dos seus poemas e das transformações que
foi operando ao longo do tempo na sua arte poética é o que se pretende com este breve estudo.
Referências Bio-Bibliográficas
Ronald de Carvalho natural do Rio de Janeiro, nasce em 1893 e é educado num ambiente de efervescência sóciocultural: o pai, de tendências monárquicas, morre fuzilado em nome duma República em busca de estabilidade; Cruz
e Sousa dá os primeiros passos na renovação literária brasileira com a publicação de Broquéis. A sua aprendizagem
do mundo e das coisas fê-la num colégio, sob a protecção do avô. Preparou-se, assim, o clássico que, mais ou menos
transformado, nunca deixará de ser.
Completado o Curso de Ciências Sociais e Jurídicas (1907-1912), parte para a Europa (Paris) levando consigo
poemas que trocará, em breve, por aqueles que vão constituir Luz Gloriosa, após um contacto mais directo com Verlaine, Rimbaud e outros. Engrossa desta forma a dita “franja da cultura europeia” – brasileiro de espírito europeu.
No início de 1914 passa por Lisboa onde contacta com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Vem dessa
época a correspondência com o corifeu do Modernismo português. Peregrino Júnior1 terá publicado uma carta de
Fernando Pessoa contendo um breve juízo crítico sobre Luz Gloriosa.
Regressado ao Brasil, Ronald de Carvalho vai trabalhar como praticante de secretaria no Ministério dos Assun1
Académico, Médico, Escritor (1898-1983) foi quem antologiou e prefaciou o volume dedicado a Ronald de Carvalho com o nº
45 de Colecção “Nossos Clássicos”, AGIR, Rio de Janeiro, 1960.
SEIXO REVIEW
83
tos Estrangeiros. Daí talvez a oportunidade de contactos com Luís de Montalvor2, então adido da Embaixada de
Bernardino Machado3. Da relação dos dois com a elite literária do Rio, nasce o nome da Revista Orpheu de cujo
primeiro número Ronald de Carvalho é co-director e em que publica alguns poemas4.
Em 1919, vem a lume Poemas e Sonetos, obra que ganha o Prémio da Academia Brasileira de Letras. Nesse mesmo ano, dá à estampa a Pequena História da Literatura Brasileira, marco deveras importante por assinalar a faceta do
prosador que veio a merecer, em 1931, o título de Príncipe dos Escritores Brasileiros.
Bem conceituado no mundo das letras, a presença de Ronald de Carvalho na célebre Semana de Arte Moderna
(São Paulo, 1922) reflecte a viragem de que falaremos e que é comum a grande parte dos seus correligionários. Por
essa altura, publica Epigramas Irónicos e Sentimentais e, após várias viagens pela América, volta à Europa como Director da Secção de Negócios Políticos e Diplomáticos.
Em 1926, de regresso ao Seu Continente, continua a viajar (Perú, Cuba, Estados Unidos …) e publica Toda a
América e Jogos Pueris, últimas criações poéticas publicadas.
Voltará à Europa (França, Holanda) como diplomata, nos anos 30 a 33, e em 1934 é nomeado Ministro, Secretário do Chefe do Governo e da Casa Civil do Presidente da República, cargo que exercia quando, em Janeiro de 1935,
morreu num desastre de automóvel.
Abordagem da Poesia de Ronald Carvalho
Os recursos para o estudo da Literatura Brasileira, em Portugal, não são muitos. Para a abordagem da obra de
Ronald de Carvalho são pouquíssimos.
No domínio poético encontrámos Luz Gloriosa, do espólio de A. Osório legado ao Instituto Brasileiro da Universidade de Lisboa, com dedicatória de Luís de Montalvor em nome do poeta; os “Poemas de Orpheu”, nas reedições da
Revista levadas a efeito pela Editora Ática; e a já referida Antologia Ronald de Carvalho – Poesia e Prosa, arquivada
no referido Instituto.
Das obras em prosa podem consultar-se a Pequena História da Literatura Brasileira e os Cadernos de Imagens da
Europa, que lemos.
Tal condicionalismo impôs, de certa maneira, a orientação seguida na investigação das transformações do discurso poético de Ronald De Carvalho, uma vez que ficámos cingidos a uma selecção alheia. Considera-se, no entanto,
suficientemente representativo o corpus eleito, a avaliar pelos poemas que transcreve do último livro que foi possível
ter em mãos.
Fase Simbolista/Parnasiana
Poeta de formação clássica, nascido para as Letras numa época em que o Simbolismo e o Parnasianismo dominavam a arte de poetar no Brasil, de estranhar seria que Ronald de Carvalho não assumisse tais critérios estéticos.
Deu-lhes, contudo, uma perspectiva que, particularmente em Luz Gloriosa, se transforma numa comovida exaltação
da Vida.
Luz Gloriosa (1913)5
2 3 4 Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos (1891-1947).
Primeiro Embaixador de Portugal no Brasil (1913). Presidente da República (1915-1918).
Parece não estarem ainda esclarecidas as razões que levaram Ronald de Carvalho a não participar no número dois da Revista. O que se sabe é que
abandonou, tal como Luís de Montalvor, a direcção de Orpheu e foi substituído, na colaboração, por Eduardo Guimarães. É possível que o “escândalo” de
Orpheu o tenha desinteressado, se bem que os seus poemas fossem pouco atacados na “apreciação arrepiada do consenso geral”, no dizer de M. Aliete Galhoz
(“Introdução” à 3ª reedição de Orpheu 1, Ática, Lx., s/d). De qualquer forma, quando Fernando Pessoa e Almada Negreiros publicam trabalhos inéditos dos
colaboradores de Orpheu em SW nº 3 (1935) por ocasião do 20º aniversário daquela Revista, é explicada a ausência dos brasileiros “por motivos de estreiteza
de tempo e largueza da distância” (Idem). Não deixa, contudo, de ser interessante relacionar a mistificação de Pessoa ao exilar o seu heterónimo monárquico,
Ricardo Reis, exactamente para o Brasil, quando se sabe que as relações de Fernando Pessoa com o outro lado do Atlântico passavam por Ronaldo de Carvalho
que “canta o Rei”.
5 84
Este livro, Luz Gloriosa, foi publicado em Paris e tem o formato de 26x18. Contém 68 folhas não paginadas, em papel creme. Começa, signifi-
SEIXO REVIEW
Luz Gloriosa constitui o primeiro momento, o ponto de partida. De imediato nos apercebemos de um plano de
expressão fundamentalmente clássico: sonetos – de esquema rimático parnasiano (ABAB, ABAB, CDC, EDE), de
métrica alexandrina, com empolamentos prosódicos
«– Caem rosas … depois … outras rosas vêm vindo …
Outras rosas cairão … outras virão … e eu preso,
A ver os que lá vão pelo caminho infindo …»6
Os poemas de estrutura livre têm mancha regular e o verso de rima interpolada com ritmo da arte maior. O predomínio da parataxe denuncia, contudo horizontes mais abertos.
É no plano do conteúdo, reforçado por um jogo retórico característico, que Ronald de Carvalho evidencia a sua
filiação no Simbolismo. De facto, ganham valor de símbolo – pela clara autonomia do significante linguístico – os
nomes mais diversos e que surgem, normalmente, maiusculados. De grande riqueza plurissignificativa, não facilitam
a interpretação. Convidam-nos a seguir o conselho que o próprio poeta dá na sua Pequena História da Literatura
Brasileira: «A poesia simbolista não deve ser analisada, porquanto não se encontrará nela uma representação das
coisas, porém, unicamente, o reflexo deixado por estas em nossa imaginação criadora». Mas pode descortinar-se um
mínimo de significado nesta subtileza um tanto ou quanto misteriosa
«[…] Glória ao Sol que renova a alegria da Vida
Na imortalidade de todos os sentidos …
Sol de ouros pelo Ocaso e no Levante …
Sol pagão … Velho artista
das paisagens de azul …
da agoarela esbatida
de penumbras submersas, entre ramos perdidos,
a sonhar … a sonhar, na fronte farfalhante
um SONHO SIMBOLISTA … […]»7.
Auto-analisando-se, o sujeito lírico exalta a alegria de viver, de sentir-se vivo
«Êsse que sabe rir, vai à festa da Vida …»8
aqui corroborada pelos símbolos retóricos predominantemente sensoriais de luz, sol, ouro.
Exaltando a Vida, não deixa de apontar-lhe as amarguras
«[…] sinais de dor entre sinais de glória …»9
simbolizados no Templo devasso, no sangue, no Sol-Posto, bem como no anseio de libertação procurada na distância – na Altura, no céu, no caminho infindo
cativamente, com a frase “Vive só para glória de ti mesmo” seguida de um poema grifado “Canta a glória da Vida”. A sua estrutura obedece aos seguintes
subtítulos:
. “Vida Heróica” (com sete poemas numerados de I a VII, de estrutura idêntica – 2x (3 alexandrinos+1 redondilha maior) com título comum de Alegoria);
. “Os sonetos da vida” (três sonetos seguidos de “Sinfonia do Poente – oito estrofes);
. “Os sonetos preciosos” (três sonetos seguidos de “Ritmos Rústicos” – treze estrofes);
. “Os sonetos do sangue” (“Exul” mais dois sonetos);
. “Ouro … Sol … Sombra … Neve …” (“Primavera”, “Verão”, “Outono”, “Inverno”, de nove, onze, sete e sete estrofes, respectivamente, seguidos de “Pagão” – uma estrofe);
. “Missal” (um poema de onze estrofes idênticas e de estrutura irregular);
. “Os Sonetos Íntimos” (três sem título um dos quais já referido. Seguidos de “Sonata sem Ritmo e Versos sem Rumo – irregulares);
. “Lendas do Outono” (com “Legenda” (soneto), “Lenda Triste (sete estrofes irregulares), “Água Marinha” (nove estrofes), “Lenda Íntima” e “A Vida” (quase
soneto de três quadras e dístico à maneira de Shakespeare);
. “Canções do Sol-Posto” (cinco poemas numerados de I a V, alguns em redondilha);
. “Os Sonetos Eternos” (sem títulos – um alexandrino e dois decassilábicos);
. “Legenda” (Soneto grifado, alexandrino, a encerrar a obra).
Poemas antologiados: “Alegoria II”, “Alegoria III”, “Exul”, “Soneto Íntimo”.
Ocorrências significativas: símbolo Sol:+/– 60 vezes; símbolo Vida:+/-50 vezes.
6 7 8 9 “Exul”.
“Alegoria – I”.
“Exul”.
“Alegoria – III”.
SEIXO REVIEW
85
«– De cada aresta o sangue escorre,
o sangue que há-de ser luz numa alma nova …»10.
Outros elementos do domínio retórico reforçam o tom misterioso desta construção simbólica. Veja-se, por exemplo, o jogo metafórico de incidência musical
«Todo o ambiente é uma fuga uníssona e bizarra,
na estranha orquestração de chilros e trinados …»11
ou na antítese (clássica) de
«a eterna maldição de ser gelo e ser chama …»12.
Notório é também o desenraizamento – natural à perspectiva intimista deste movimento poético, não deixa de
ser significativa a inexistência de qualquer referente nitidamente brasileiro.
Poemas de Orpheu (1915)13
A colaboração de Ronald de Carvalho em Orpheu-1 não parece revelar transformações significativas no seu discurso. De salientar apenas a intensificação da angústia e do desejo de evasão.
No plano da expressão, mantêm-se os versos alexandrino e decassilábico e introduz-se uma variante: dois sonetos
octossilábicos, um dos quais, “Torre Ignota”, sem qualquer pontuação. O esquema rimático dos sonetos é o mesmo
e o das quadras, “Elogio dos Repuxos” e “Reflexos”, cruzado. A organização continua de preferência coordenativa e
observa-se uma prosódia mais comedida que dá, talvez, outra fluência ao discurso.
A temática perdeu o tom exaltativo mas mantém o intimismo. Numa expressão intensa do drama interior
«A vida é uma princeza dolorosa
[…]
A Vida e a Dor começam a batalha …»14,
o sujeito lírico anuncia, através dos mesmos símbolos, a quase vitória da angústia
«Antes a alma que tenho perdida
[…]
veio chorar dentro em meu ser
a amarga maldição de ser eterna
e a dor de renascer quando eu morrer …»15.
O tema da morte aparece, assim, aflorado. Mas, mesmo quando declara
«Alguém morreu dentro de mim …»16,
parece querer simbolizar aquela ânsia de distanciamento já detectada em Luz Gloriosa
«Fujo de mim […]
No alvor das minhas mãos chora a distância
prôas rachadas, longes de ouro, ideais …»17;
«Volúpia de fugir – ser longe e ser distância»18.
A selecção lexical, aliás, insiste em semas que evidenciam este sentido de viagem: “naus”, “velas altas”, “cais”, “partir”. Por outro lado, mantém-se a presença do jogo sensorial:
10 11 12 13 Id.
“Alegoria – II”.
“Sonetos Íntimos”.
Poemas: “A Alma que Passa: I – Sentido”, “II – Legenda”, III – Génese”; “Lâmpada Nocturna”; “Torre Ignota”; “O Elogio dos Repuxos”; “Reflexos (Poema da alma enferma)”.
14 15 16 17 18 86
“Legenda”.
“Génese”.
“Lâmpada Nocturna”.
“Sentido”.
“Elogio dos Repuxos”
SEIXO REVIEW
são os perfumes
«[…] Um perfume antigo
foge ondulante […]»19,
são as cores e pedrarias em relação sinestésica com a música
«[…] Castelo de rubis e opalas»20;
«como um sorriso a pedraria
que o som dos bronzes acalanta»21).
E é o Sonho, a Memória, a Saudade, qual pano de fundo de toda a introspecção
«Sonho meu corpo como de um ausente»22;
«Num vôo branco de memória»23
duma alma doente que não desiste
«alma enclausurada […].
Minha alma vai amanhecer»24,
«acordo num jardim convalescente»25.
Também aqui, nenhum referente a dizer-nos que Ronald de Carvalho não é europeu.
Poemas e Sonetos (1919)26
Entre 1915 e 1919, Ronald de Carvalho voltou a sua atenção para a catalogação e crítica das experiências poéticas
alheias. Mas, Poemas e Sonetos não é um livro menor. Reflecte um grande domínio das técnicas de construção clássica,
acentuando tendências parnasianas antes observadas.
Saliente-se, no plano da expressão, o artifício formal patente em dois sonetos que consiste em findar cada estrofe
com um pé quebrado – em “Romance”, onde predomina o verso heróico, quadras e tercetos param no primeiro acento, e em “Destino”, eneassilábico (novidade?) finda as estrofes na quarta sílaba métrica fechando um ritmo sempre
quaternário. O esquema rimático dos tercetos passa agora, maioritariamente, para CCD e EED, com a curiosidade
CCD e EDE em “Transfiguração”, onde parece evidente a intenção de reforçar a ideia que esteve na origem do título
e que corresponde ao desenvolvimento – visão do corpo, di-lo a adversativa final
«Lembra(s) a chuva de ouro de um repuxo».
A metáfora dos repuxos vem dos tempos de Orpheu e, ao ler, nomeadamente “Avatar”, verifica-se que Ronald de
Carvalho retomou materiais então publicados e os transformou. Compare-se este com “Génese”: os versos 1 e 11 e
os de todo o último terceto são iguais.
Outro sintoma de transformação do discurso poético: mitiga-se o hermetismo da mística simbolista, usando, embora talvez mais rarefeita, a linguagem sensorial do “louro”, dos “metais”, do “poente”, dos “cristais”, dos “perfumes”,
a favor de novos valores. O “eu” poético parece voltar os olhos para o exterior e descobrir
o “tu”
«Teu vulto leve, ao fundo do passado»27;
a Natureza
«[…] A floresta espessa, e a pedraria
19 20 21 22 23 24 25 26 “Sentido”.
“Legenda”.
“Torre Ignota”.
“Sentido”.
“Torre Ignota”.
“Reflexos”.
“Sentido”.
O corpus: “Vida”; “Noturnos – V”; “Elegias – I”; Romance”; “A um Adolescente – I”; “Destino”; “Sonetos – V e VI”; “Pastoral”; “Transfiguração”; “Avatar”; “A Resposta do Homem”.
27 “Elegias”.
SEIXO REVIEW
87
Límpida, a água das fontes, transparente»28;
o Amor
«Ode puserdes vosso Amor»29;
«Quem teve à mão o fruto cobiçado
[…]
É quem, dolente, e em reverência agora,
Todo se curva, pálido, Senhora»30.
Mas continuam notórios os recursos da expressão clássica de gosto parnasiano, como a inversão e a antítese
«Andam, assim, prazer e dor,
no mundo vão, tão de mistura»31.
Avoluma-se, assim, a visão escura que já foi “luz gloriosa” – melancolia, desilusão, mágoa; desespero, ódio, sombra;
sonho, saudade, distância – misturados aqui e ali com ténues notas de esperança. A alma assemelha-se a um “espaço
solitário” onde (“influências de António Nobre”, diz Peregrino Júnior)
«[…] Os violoncelos entre os choupos
cessaram de chorar […]»32
e
«[…] Choram novamente,
[…]
Enquanto as folhas tombam no ar dormente,
E o céu se estrela se ouro e plumas de água»33.
Vislumbra-se, em Poemas e Sonetos, uma presença vaga do espaço brasileiro na «rude terra virgem» (“A um Adolescente”); nos «morros» (“Pastoral”); na «floresta espessa» (“Resposta a um Homem”), mas vai ser preciso aguardar
mais três anos para que a viragem se opere. Será a segunda fase – a Modernista – de Ronald de Carvalho que se inicia
timidamente em Episódios Irónicos e Sentimentais e se desenvolve em Toda a América.
A Fase Modernista
Epigramas Irónicos e Sentimentais (1922)34
Epigramas Irónicos e Sentimentais constituem o ponto de viragem, o primeiro passo decisivo em direcção ao Modernismo.
Os títulos dos poemas já são significativos e a mancha irregular denuncia outra intenção. Quase totalmente
abandonada a métrica tradicional, Ronald de Carvalho socorre-se agora do verso branco numa busca explícita de
novos ritmos
“Cria o teu ritmo livremente,
como a natureza cria as árvores e as ervas rasteiras”35.
Mas são ainda ervas rasteiras os versos que cria. Estão ainda longe os voos a que se aventurará em Toda a América.
A sua experiência clássica não é fácil de transformar e o poeta tem consciência disso quando em meta-poema como
“Interior” se enreda no ritmo alexandrino de rima emparelhada
28 29 30 31 32 33 34 “Resposta ao Homem”.
“Sonetos – V”
“Sonetos – VI”.
“Sonetos – V”.
“Nocturnos – V”.
Idem.
Poemas antologiados: “Inscrição”; “Écloga Tropical”; “Interior”; “Este Perfume”; “Bucólica”; “Música de Câmara”; “Noite de Junho”; “Epigrama”; “Doçura da Chuva”; “Teoria”; “Cheiro de Terra”; “Monotonia da Tarde”.
35 88
“Teoria”.
SEIXO REVIEW
“no aquário transparente, cheio de água limosa,
nadam peixes vermelhos, dourados e cor de rosa;”
e cria um sujeito da enunciação que pede, sequioso, o copo de água que o alivie na luta com que busca a nova
paisagem
“Poeta dos trópicos,
dá-me no teu copo de vidro colorido em gole d’água.
(Como é linda a paisagem no cristal de um copo d’água.)”
Há uma certa gaguez nesta nova maneira de poeta evidenciada no uso repetido do mesmo vocábulo, iteração
que nem sempre parece alcançar o objectivo previsto de intensificação da vivência lírica. Mais parece um recurso
clássico
“Há grandes rosas lívidas na sombra,
Lívidas como as tuas mãos na sombra”36,
mas o discurso organiza-se já bastante liberto, discursividade prenunciadora de Toda a América. É curioso notar
que é quando o sujeito lírico se debruça sobre a criação poética que surge acentuada a hipotaxe
«Doçura melancólica da chuva,
quando ficam rasos de água os olhos dos homens líricos
quando as penas marcham ao compasso grande dos alexandrinos,
e jorram dos corações sonetos sentimentais.»37.
Esta dificuldade em desembaraçar-se da estética parnasiana evidencia-se também ao nível do léxico. De facto,
ganhando embora outro valor semântico, o vocábulo mais escolhido é o do domínio sensorial utilizado desde o
primeiro momento: “a chuva de ouro”, “o áureo rumor”, “o crepúsculo”, “poeira de Sol”, “dourados do poente”; “o
perfume”. Mas a temática é de facto outra. É no plano do conteúdo que a transformação se operou
«Nasci junto ao mar, Estrangeiro!
[…]
Põe na estela de um poeta amável e melancólico
a coroa de louros que trazes na mão.
Guarda a tua oferenda!
A vida me sorriu …»38.
O poeta vai inscrever-se na lista dos que decidiram deixar a Europa para os europeus
«não tocas mais os minuetos de Mozart …»39,
para poderem, livres, cantar
«as mulheres, as ondas e as árvores do meu país natal»40.
País dele, claro. A vida que lhe sorriu perdeu o - V- maiúsculo de Luz Gloriosa. Poderá retomá-lo quando, em
Toda a América, simbolizar todo o povo do continente americano. Por ora reflecte o sorriso de abertura ao mundo da
sua infância brasileira
«Êste perfume de lírios e framboesas é toda a infância!
(murmuram os riachos em que entrávamos os pés descalços,
as mãos ávidas em busca das lagostas côr de limo»41.
É o primeiro êxtase de quem acorda para a realidade natal e quer cantá-la com
«Versos que cheiram a terra molhada»42,
quiçá sem o conseguir nestes Epigramas Irónicos e Sentimentais. Fica-lhe, de qualquer modo, um novo brilho no
36 37 38 39 40 41 42 “Noites de Junho”.
“Doçura da Chuva”
“Inscrição”.
“Este Perfume”.
“Inscrição”.
“Este Perfume”.
“Cheiro da Terra”.
SEIXO REVIEW
89
olhar
«Gemem os bambuais, soa a buzina dos tropeiros,
Espalha-se no ar o cheiro das tangerinas e dos cambucás;
passam caçadores com enfiadas de passarinhos …
Como brilham teus olhos de cobiça,
teus olhos como brilham novamente»43.
Toda a América (1926)
O ano de 1926 representa o ponto de chegada, conhecido, nas transformações do discurso poético de Ronald de
Carvalho. É neste ano que publica os seus dois últimos livros de poemas, Toda a América e Jogos Pueris.
Ao ler o corpus de que dispomos, fica-nos a ideia de que o poeta seleccionou, da sua própria criação poética posterior à Semana de Arte Moderna (1922), os poemas mais decididamente modernistas – os que versam as potencialidade do Continente Americano – e encabeçou-os de Toda a América, reservando o nome comum de Jogos Pueris
para os restantes.
Em Toda a América os próprios títulos são significativos44.
O verso é, agora, amplo, desempoeirado, de largo folgo, parecendo por vezes ultrapassar a barreira da prosa ao
confundir-se com a estrofe. Há neles um sopro novo, um ritmo interior diferente, a recordar Álvaro de Campos ou
Alberto Caeiro ou, antes, Walt Witman
«Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo,
gritando, vociferando!»45.
Aqui, contudo, a linguagem não se altera. Mantendo-se dentro da norma, busca os seus efeitos quer na aliteração,
quer na construção assindética
«Eu ouço o chiar das caatingas – trilos, pios, pipios,
trinos, assobios, zumbidos, bicos que picam
bordões que soam retesos, tímpanos que vibram
límpidos, papos que estufam, asas que zinem,
zinem, rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas
longas, langues – caatingas debaixo do céu!»46;
quer na anáfora
«Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar
a conversa dos fazendeiros nos cafezais,
a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
a conversa dos operários nos fornos de aço,
a conversa dos garimpeiros peneirando as bateias,
a conversa dos coronéis nas varandas das roças …»47;
quer na organização caótica
«Oh! Turbilhão de energias e
Grandezas latentes,
choques,
saltos,
43 44 “Este Perfume”.
Foi este o corpus trabalhado: “Europeu”; “Brasil”; “Mercado de Trinidad”; “Broadway”; “Puente del Inca”; “Uma noite em Los Andes”; “Entre
Buenos Aires e Mendoza”.
45 46 47 90
“Brasil”.
Idem.
Id.
SEIXO REVIEW
clamores,
vibrações,
claridades,
tumultos dos teu despertar»48;
quer na rima interna
«Chato, pardo-cinzento, o chão
flutua lento, mole»49.
O léxico é bem outro a dizer da virgindade selvagem da terra
«Das mãos que perseguem a onça, a raposa, o búfalo e a baleia,
das que laçam o touro no pampa e na coxia,
das que flecham o tapir e o sucuri,
das que varam saltos e corredeiras,
das que secam mangues e igapós,
das que misturam os oceanos,
[…]»50,
e do anseio profundo de a ver transformada pela intervenção da máquina:
«Eu vi as estradas do pampa, cheias de automóveis e locomotivas, de
máquinas compressoras, tubos, turbinas, chaminés
e caldeiras!»51.
O vocabulário sensitivo de que sempre se socorreu é agora de conotação mais singela
«Nesta hora de sol puro
palmas paradas
pedras polidas
claridades
faíscas
cintilações
eu ouço o canto enorme do Brasil!»52;
«De repente,
um cheiro de bogari, um cheiro de varanda carioca
balançou no ar …»53.
Não se encontra, entretanto, neste poemas de Ronald de Carvalho, qualquer aventura linguística no interior da
palavra ou da norma que aproxime o poeta dos seus pares modernistas. A força deste canto, de sabor épico, encontrase mais no conteúdo do que no plano formal.
Na contestação dos valores passadistas dos europeus
«Europeu! Filho da obediência, da economia e do bom senso,
tu não sabes o que é se Americano!»54,
nessa alegria nunca abandonada de cantar a vida por dentro e por fora
«Alegria de inventar, de descobrir, de correr!
Alegria de criar o caminho com a planta do pé!»55.
Na previsão do futuro grandioso do pampa transformado pela agricultura e pela indústria
48 49 50 51 52 53 54 55 “Entre Buenos Aires e Mendoza”.
“Broadway”.
“Puente del Inca”.
“Entre Buenos Aires e Mendoza”.
“Europeu”.
“Uma Noite en Los Andes”
“Europeu”.
Idem.
SEIXO REVIEW
91
«[…] filas negras de caminhões rolando pelos trigais»56,
nas comunicações
«[…] As árvores do pampa, magras e compridas
jogando, umas com as outras, fios e fios telegráficos»57,
nos seus homens
«Os homens verticais sobrem horizontes,
Em todos os horizontes varados pelo sol»58,
nos seus poetas
«Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos e latinos»59.
O plano do conteúdo pode, pois, resumir-se em poucas palavras: as realidades e potencialidades da Natureza e do
Homem americano, que o poeta canta em tom incisivo e épico. A mensagem de Toda a América é, portanto, a mensagem da Alegria e da Esperança. É evidente a grande transformação do discurso poético de Ronald de Carvalho.
Jogos Pueris (1926)60
Este último livro de poemas de Ronald de Carvalho não vem acrescentar nada no que respeita a transformações
do seu discurso. Apenas confirma uma nota que, explícita ou implicitamente, se tem deixado apontada: Ronald de
Carvalho, mesmo na sua fase modernista, continua a ser poeta de pendor clássico.
Poemas curtos, de mancha irregular, mantêm a pureza de linguagem habitual, patenteando o gosto sensorial do
brilho, da cor, do som, do perfume
«Pulam raias negras no ouro da areia molhada,
o aço das tainhas faísca em mãos de ébano e bronze.
Músculos, barbatanas, vozes e estrondos, tudo se mistura,
tudo se mistura no chiar da espuma que ferve nas pedras»61.
Referenciando sempre a terra mãe e o espanto de a ter redescoberto
«Oh! Tardes longas, de cheiros e cores,
saíras, laranjas, romãs e jasmins …
o vento que rola pesado e tão môrno,
que a gente de novo tem fogo na face
e luzes virginais nos olhos espantados …»62,
o ritmo, como se pode ver, retoma a cadência tradicional. A verdade é que o «circo mudou» e o poeta fixou o
Canto:
«O Canto que me ensinaste foi virgem e livre:
Tôdas as águas balancearam nêle,
Todos os bentos murmuraram nêle,
Todos os perfumes se impregnaram nêle»63.
Breves Conclusões
56 57 58 59 “Entre Buenos Aires e Mendoza”.
Idem
Id.
Id.
60 O corpus: “O Mercado de Prata, de Ouro e esmeralda”; “Meio Dia”; “Jogos do Tempo”; “Épura”; “Inscrição para o Corpo de uma Mulher Virgem”; “O Canto que me Ensinaste”.
61 62 63 92
“O Mercado de prata, de Ouro e Esmeralda”.
“Jogos do Tempo”.
“O Canto que me Ensinaste”.
SEIXO REVIEW
A obre poética de Ronald de Carvalho não é muito extensa, nem no tempo, nem no volume. Foram 17 anos de
criação lírica – se dermos um de preparação de Luz Gloriosa. São cinco livros publicados, sendo de admitir que, para
além da colaboração em ORPHEU tenha alguns poemas dispersos por outras revistas. É quanto basta, contudo, para
revelar um poeta e Ronald de Carvalho é um poeta importante na Literatura de Língua Portuguesa.
Qual tenha sido o sentido da sua poesia, outros mais abalizados o disseram já, e a tempo. Mas, a caminho de um
século de distância e quando parece ter sido esquecido, a sua leitura é uma descoberta agradável.
Como se acaba de constatar, o discurso poético de Ronald de Carvalho desenvolve-se em termos dialécticos entre
o irreal e o real, o absoluto e o relativo, o interior e o exterior; entre o EU e o TU, o passado e o futuro, a Europa e a
América, num como que jogo entre a tese classicista e a sua antítese modernista, em que o ponto de partida terá sido
quase tese e o ponto de chegada quase antítese. Uma formação clássica contaminada pelos tempos modernos, uma
realização moderna abafada pelo peso da História. O que parece é que ninguém poderá negar o sopro vivificador da
alegria que emerge desta alma magoada e se propaga numa esperança decidida no futuro. Um amigo das primeiras
horas, Alceu Amoroso Lima, afirmou em 1955 que «Ele é […] dos que não vão para o fundo do mar. À medida que
os tempos forem passando, sua figura avultará de mais em mais no horizonte»64.
64 Julgamento crítico”, Antologia, cit., pág. 113.
Olegário de Sousa Paz nasceu na Beira, Ilha de São Jorge, Açores,
em 1941. Licenciado em História e em Estudos Portugueses, Mestre em Literatura Oral e Tradicional, é Professor do Ensino Secundário, aposentado. Como co-autor, publicou manuais escolares e
o Dicionário Breve de Termos Literários bem como o Dicionário
Breve de Os Lusíadas; colabora no Grande Dicionário de Termos
Literários (direcção de Carlos Ceia); é autor de ensaios como “Subsídios para a História do Serviço Doméstico em Portugal”, “Loas a
Nossa Senhora do Cabo”, “Uma releitura de Don Quijote”, entre
outros. Vive na Amadora, Portugal.
SEIXO REVIEW
93
Multicultura en Kazajstán:
La búsqueda de la armonía entre la “sangre
vieja” y el nuevo espíritu
kanat
KABDRAJMANOV
E
En mi país domina el idioma de la nacionalidad minoritaria, el idioma de los rusos.
Este acontecimiento, el cambio de lengua
dominante, sucedió a mediados del siglo
XX, cuando comenzó la industrialización de
Kazajstán y ocurrieron importantes cambios
demográficos. Estos ocurrieron, al parecer,
en perjuicio – un perjuicio extremamente
peligroso – de los intereses del pueblo aborigen, los kazajos. Mi vida no es más que
la vida de la primera generación de kazajos
para los cuales el idioma ruso se convirtió
en el idioma de la vida.
A lo largo de una serie de décadas sufrí la división entre la “vieja” sangre étnica
y la nueva, lo que parecía cosmopolita, pero
que me provocó como un estado de ánimo
extremadamente dramático y condenado a
una infinita infelicidad, difícil prueba a la
que me vi sometido a la edad de 20 años,
cuando me convertí en escritor, o sea, la persona, que verbaliza sus sentimientos e ideas.
El drama está en que, como ahora entiendo, durante el cambio del idioma natal
en el individuo ocurre un estallido cultural.
Las palabras del nuevo idioma no se pueden
corresponder con la vieja imagen del mundo.
Las ideas insertadas en la vida del individuo
con palabras del nuevo idioma no encuentran semejanzas con las viejas, heredadas
de los padres tradicionalistas, las imágenes
étnicas del mundo. Las imágenes tradicionales del mundo y sus nuevos adquiridos
nombres, palabras, entran en conflicto, lo
cual se sufre como un estado de caos inter-
94
SEIXO REVIEW
no y desorientación total.
El problema está en que el contenido de
las mismas palabras que existen en diferentes idiomas, no es el mismo. Las palabras
de las culturas étnicas no son menos étnicas
que sus tradiciones y leyendas.
En la segunda mitad del siglo XX, en similar estado dramático vivieron casi todos
los kazajos, principalmente los que vivían
en las ciudades. Perdiendo la comunidad
cultural y étnica en el transcurso de estas
dramáticas décadas, nos convertimos por
un tiempo en algo extremamente atomizado, en individuos y pueblos incompletos,
destrozados. Teníamos que morir espiritualmente o curarnos. Eso fue un estado de
crisis espiritual, que aterrorizaba a cada kazajo. Al cambio de idioma nos obligaron las
circunstancias: el nuevo medio idiomático
y el sistema de educación nos exigían estudiar en idioma ruso todas las “formas civilizadas”. Así transcurrieron las décadas, que
poco a poco crearon su medio estable. En
la segunda mitad del siglo XX muchos pensaron que en esas circunstancias los kazajos
estaban condenados a la extinción étnica,
pero transcurrieron los años y la extinción,
o la incultura, el primitivismo del pueblo no
ocurrió, como no ocurre ahora, cuando la
situación dominante del idioma ruso entre
los kazajos continúa manteniéndose y, además, sin ninguna intervención estatal. Ahora nosotros decidimos en qué idioma estudian los niños, qué libros comprar. Se puede
decir que en una gran parte del pueblo tuvo
lugar un simples cambio idiomático, pero este fenómeno
es algo más que eso. Nos curamos del estado de desmoronamiento espiritual, pero aún no hemos determinado
en qué nuevo estado nos recuperaremos.
La particularidad de nuestra relación con el idioma
ruso está en que, nosotros los kazajos, no podemos rusificarnos, como rusificaron los pueblos cercanos racialmente a los rusos – a nosotros nos separa de los rusos
la diferencia racial. Nosotros nunca podremos ser rusos,
pero ya nos estamos convirtiendo en nosotros mismos.
Nuestro idioma ruso no es el mismo ruso que hablan
los rusos en Rusia. La diferencia está en que nuestras
palabras en ruso no existen, no pueden vivir imágenes
de la cultura étnica rusa. La palabra en el idioma de cualquier etnia encierra en sí la idea y la imagen. Aunque la
idea de la palabra pueda ser universal, la imagen guardada en la palabra se mantiene étnica.
Se puede decir así: nosotros nos expresamos con ideas,
que suenan en idioma ruso, pero en esto no usamos imágenes en idioma ruso.
La idea es siempre abstracta, la imagen siempre es
concreta. Por consiguiente, la idea es metafísica y la imagen naturaleza.
Nuestro idioma ruso es un idioma metafísico. Es un
idioma en el cual no hay imágenes étnicas de tradiciones, de leyendas, de historia. Es un idioma libre de instalaciones culturales que predeterminan la conducta del
individuo. Este idioma nos libera, de imágenes que día
a día se vuelven más arcaicas. Nuestra consciencia, que
opera con las palabras, liberado de acervo histórico, se
va haciendo una consciencia sin acervo espiritual. Este
es un estado bastante peligroso, porque los individuos
frecuentemente caen desorientados sin el apoyo de una
tradición étnica u otras directrices. Eso mismo pasa habitualmente con los inmigrantes que se trasladan a países culturalmente lejanos.
Pero nosotros nos conservamos gracias a nuestra pertinencia racial, la cual es imposible de ignorar. Nuestra
particularidad conserva nuestra sangre “vieja”.
La raza y la sangre son nuestro acervo necesario, pero
no las imágenes. No conocemos las imágenes de nuestra
cultura étnica, no vivimos con imágenes histórico-culturales, sino con ideas y razones.
Está claro que no todo es tan simple. Existen no pocos
tasajos para los cuales las imágenes de la cultura étnica
natal son cercanas y comprensibles, pero en general – en
el desarrollo de la consciencia liberada del dictado de las
envejecidas imágenes – somos un nuevo fenómeno cultural, de carácter multicultural (esto no sólo es un estado
social, sino también espiritual individual. La multicultura que existe en Inglaterra me es cercana y comprensible,
pero no puedo auténticamente juzgar cómo se desarrolló.
Sin embargo, entiendo claramente que la multicultura es
imposible hasta que la cultura étnica no alcance un determinado estado, en el cual sea capaz de no negar otras
culturas étnicas. La multicultura es imposible en una
cultura étnica que se encuentre en estado de crecimiento
intensivo o florecimiento.
La multicultura es posible sólo en el caso del debilitamiento del dictado de la cultura étnica. Son antítesis
– la cultura dictadora y la multicultura. Ellas no son tan
antiestéticas como la cultura étnica y el cosmopolitismo,
sobre lo cual aquí hay poco lugar para desarrollar la idea,
pero ellas también son contradictorias.
Ocurre que la cultura étnica se dirige preferentemente por imágenes, y la multicultura se dirige principalmente por razones.
La cultura étnica se presenta mas natural y la multicultura mas racional. Las imágenes se forman por las
creencias étnicas y sugestiones: y las ideas reflejan las
esencias de las cosas y los fenómenos. Las imágenes son
las formas etno-culturales, con las cuales los espíritus
de nuestros antepasados coinciden con exactitud y cuya
coincidencia espíritu-forma respetaba con naturalidad
existencial: pero ahora este tipo de entendimiento se
vuelve más arcaico.
A la multicultura llegamos, no dialécticamente, no
por la vía de un progreso espiritual ininterrumpido, sino
a través del derrocamiento histórico, al que siguió la victoria por nadie vista.
Nuestra multicultura supone sinceridad y tolerancia,
la paz entre nacionalidades. La que existe en Kazajstán
se estableció, no tanto por el asenso de los grupos étnicos
que se impusieran, sino por el carácter multicultural de
los kazajos.
La multicultura, que surgió entre nosotros en la segunda mitad del siglo XX con la tolerancia de los vencidos, se convirtió con el cambio generacional en un fenómeno libre de componente humillante.
Convirtiéndonos en nosotros mismos o, expresándolo de otra forma, creando una nueva identidad espiritual,
nos convertimos en “referente de calidad” para otros pueblos al conservar la línea genética de nuestros padres. Nos
queda mucho por saber y hacer. Sin embargo, se presenta
el problema de que nunca podremos, ni tampoco queremos, transmitir nuestra “sangre vieja”. Nos proponemos
atar lazos con nuestra “sangre vieja” y, pudiera ser, que
SEIXO REVIEW
95
por este medio podamos recuperar parcial o completamente el idioma kazajo, pero podemos predecir que no
habrá regreso o retroceso a la consciencia mitológica.
Nuestra multicultura moderna dirigida desde afuera,
la aceptamos como proyecto planetario, pero no es generosa con la cultura de nuestra sangre. Estamos viviendo
un momento transitorio, en el que nuestra cultura todavía no es consciente de la necesidad de conservar el
enlace que transmite la relación hijo-padre con el pasa-
do nacional. Estas insuficiencias son el producto de que
nuestra multicultura surgió, no por la vía del inevitable
progreso, sino por la del trauma y la cura, que afectó a
nivel nacional. Y esto quiero decir que la solución de los
problemas existentes deberá realizarse también a nivel
nacional, lo que determinará éxito de toda la cuestión.
Kanat Kabdrajmanov was born in 1953 in Kazakhstan. A postgraduate from Almaty Medical Institute and Moscow Literary Institute, he published 7 books of prose and essays.
About his culture views, he says:
“My main literary interest is the mystery of cultural identity (and
my own) born in societies destroyed by intervention of outside
civilizations; or of those who live in cultures outdated by internal cultural stagnation. I consider culture a visible phenomenon
of human order. Those who betray their own culture by joining
another culture never succeed in terms of internal order and happiness. One can change behaviour and habits but cannot forget his
own ancestry. Beauty and order of any culture requires a complete
dedication of its citizens; this is not achievable by outside influence.
Therefore, I am very sceptical about the idea of changing cultural
citizenship”.
96
SEIXO REVIEW
I
niciei a leitura deste último livro de
Cristóvão de Aguiar temendo estar
perante mais do mesmo em relação à sua
produção no campo da diarística: Relação
de Bordo (1964-1988), Campo das Letras,
1999; Relação de Bordo II (1989-1992),
Campo das Letras, 2000; e Nova Relação
de Bordo, Publicações Dom Quixote, 2004.
Agora que fecho o livro, tenho esta certeza:
plexidades e deslumbramentos, angústias e
estados de alma. E, lançando olhares a alguns dos principais factos e acontecimentos ocorridos no referido ano, o narrador –
fino observador da vida que se lhe oferece
em palco – questiona e reflecte esse tempo,
lança doses de humor e (amarga) ironia ao
quotidiano, viaja em peregrinação interior,
sendo simultaneamente protagonista, par-
A Tabuada do Tempo
de Cristóvão de Aguiar
victor rui DORES
depois de ter escrito muito bem, Cristóvão
de Aguiar voltou a escrever melhor.
A Tabuada do Tempo, com o subtítulo de
“a lenta narrativa dos dias” (15 Euros, Almedina, [email protected], Coimbra,
2007) e que foi merecedor, no ano transacto, do Prémio Literário Miguel Torga, passará a constituir referência importante na
já vasta produção literária deste autor que
continua a “escreviver”.
Cristóvão de Aguiar, 42 anos de vida
literária, é escritor de compulsivas memórias. É conhecido o seu intenso e obstinado
trabalho oficinal: memórias e experiências
acumuladas e vertidas, com paixão e arte,
na escrita. Trabalhador operoso e incansável das letras portuguesas, ele é autor do
apuro formal, da exigência estética, da preocupação estilística e da descoberta lexical
e sintáctica.
Com uma capa de concepção gráfica
particularmente feliz, A Tabuada do Tempo,
diário factual, passa em revista o ano de
1996 (numa viagem que começa em Janeiro
e termina em Dezembro) e constitui mais
um acto de auto-revelação de um escritor
autêntico que se quer renovar e que procura
dizer as coisas de uma maneira sua.
Cristóvão de Aguiar não se confessa –
revela-se e, por essa via, revela-se-nos através das suas interrogações e incertezas, per-
ticipante, observador e mediador. E nunca
descura a sua relação com a escrita:
“Acordei de imaginação entupida”. (pág.
19)
Por exemplo: Cristóvão de Aguiar dános pistas muito interessantes sobre a escrita da Relação de Bordo e a (re) escrita de
Raiz Comovida, sua opus magnum. E lamenta a incerteza da publicação, denuncia
os silêncios dos editores, ou os atrasos de
resposta das editoras …. E fala-nos abertamente dos autores e das escritas que mais o
influenciaram.
Escrevendo para iludir o tempo, e procurando na escrita “uma perfeição que nunca se deixa apanhar”, Cristóvão de Aguiar
mantém-se fiel e coerente no mais profundo de si próprio. Voz inquieta e inquietante,
continua ele a fazer da escrita uma catarse
e um ajuste de contas com o passado e as
novas mitologias do presente. E a partilhar
connosco as preocupações mais íntimas
do ser humano, de tudo fazendo assunto
literário: a sua relação com os familiares
(emotivas e emocionantes são as memórias
do Pai e da Mãe) e amigos (Carlos André,
Viriato Madeira, Mário Mesquita, José Augusto, Oliva, Victor Torres, etc.); a evocação
da Ilha (a mítica e a real) e de Ela (a amada, referente constante na sua diarística); o
seu modo de (d) escrever as suas viagens
SEIXO REVIEW
97
de comboio, as actividades lectivas, as memórias magoadas da guerra, as maleitas que o apoquentam, a viagem
à América, ou a sua relação com os cães Isquininho, Alex,
Regina, Adónis, Monalisa, Tina, Eurice, Pitão …
Efectivamente nunca o autor perde de vista a qualidade do seu discurso literário, quer fale de Virginia Woolf, Ernest Hemingway, May Sarton, ou de futebol …
Cristóvão de Aguiar escreve com amor e humor. E
são muitos os olhares que lança à literatura, aos seus
escritores e cultores: Almeida Garrett, Camilo CasteloBranco, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa,
Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, José Régio, Vitorino
Nemésio, Vergílio Ferreira, Miguel Torga, Paulo Quintela, José Rodrigues Miguéis, José Cardoso Pires, António Vilhena, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira,
António José Saraiva, Almeida Pavão, Manuel Alegre,
Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, João de Melo, António Lobo Antunes, Vasco Pereira da Costa, Carlos Reis,
entre outros.
E está aqui a grande linha de força de A Tabuada do
Tempo: a dimensão literária e humana. Basta ler o espantoso testemunho que nos é dado de Isabel, seropositiva,
para percebermos isso mesmo.
Há “flashbacks” de episódios (digo, cenas) inesquecíveis e que nos remetem para a infância e adolescência do
autor: a representação da comédia Inês de Castro (sendo
que o narrador, enquanto menino, se apaixona pela actriz
que desempenha o papel de Inês); as memórias do Liceu
e as peripécias de dona Cesaltina; a educação sexual do
narrador com uma “catequista e mestra da luxúria”; as
incontornáveis e fascinantes personagens de dona Prudência e do Ti Zé Peidão … Mas atenção: não há aqui
a gratuita aposta na descrição da peripécia – o que há é
o aprofundamento do psicológico e do humano, que são
no fundo os grandes valores da literatura.
Este é, por conseguinte, um livro sobre a usura e o
devir do tempo. Um livro sedutor, evocativo, íntimo, intimista e musical (atravessado por música clássica) que
constrói vidas inteiras.
Leiam, por favor, Cristóvão de Aguiar, porque ele
ajuda a engrandecer a língua portuguesa.
P. S. – Agora que temos um novo director a liderar os destinos da RTP/AÇORES, não seria de apostar numa nova série
televisiva que incluísse a adaptação de obra (s) de Cristóvão
de Aguiar? Recordo que o realizador José Medeiros colheu, na
Raiz Comovida, abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas “Xailes Negros” e “O Barco e o Sonho”,
com os resultados de excelência que se conhecem.
Aqui fica (mais uma vez) o repto.
Victor Rui Dores nasceu em 1958 na vila de Santa Cruz
da ilha Graciosa, Açores.
Obteve, em 1982, a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Ingleses e Alemães), pela Faculdade
de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, sendo professor do quadro de nomeação definitiva da Escola Secundária
Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, ilha do Faial.
É, desde 1998, o representante da Região Autónoma dos
Açores no Conselho Nacional de Educação. É também, desde aquele ano, Presidente da Assembleia Geral da “Azórica”,
Associação de Defesa do Ambiente.
Autor de vários livros de poesia e ficção, está representado em várias antologias em Portugal, Canadá e Estados
Unidos.
98
SEIXO REVIEW
A voz
dos
amigos
José Francisco Costa e Dias de Melo numa rua de Ponta Delgada, S. Miguel, Açores.
Dias de Melo
1925-2008
SEIXO REVIEW
99
Adeus,
Senhor Professor Dias de Melo
josé gabriel
Á V I L A
V
isitei-o, pela última vez, há cerca de duas semanas. Quando me abriu a porta, após ter tocado à campainha por três vezes, encontrei-o
já bastante fragilizado. Dias antes, o João Luís Medeiros tinha-me enviado um e-mail, avisando-me
do seu debilitado estado de saúde.
Já não era o mesmo o Senhor Professor (era assim que o tratava) que encontrara em Julho na sua
casa da Calheta de Nesquim, no Alto da Rocha do
Canto da Baía. Dias de Melo recebeu-me então,
com uma evidente debilidade, mas feliz por estar ali,
onde fazia questão de terminar muitos dos os seus
livros. Já cortaram as faias, agora já vejo a baía toda,
um pouco do porto e o Terreiro da Calheta.
Passados poucos dias soube que partira muito
doente para o Hospital de Ponta
Delgada, para nunca mais voltar
à sua Cabana do Pai Tomás.
O nosso último encontro
foi, como era habitual, no seu
pequeno escritório que repartia
com o quarto de cama, coberta
de livros e de jornais. Nas paredes, as suas fotos do Pico, – Dias
de Melo era um amante da fotografia e fazia-se acompanhar,
habitualmente, pela sua máquina – denotando o seu apego às Pedras Negras.
Sentámo-nos, eu na cadeira de visitas, ele na cadeira da pequena secretária de madeira. Sobre ela o
computador portátil, fechado, que tantas arrelias lhe
dera quando perdia textos que levara horas e horas
a trabalhar.
(Ó José Gabriel, podes vir aqui ver o que se passa
com o meu computador? Levantei-me muito cedo
e estive a trabalhar até agora, estou muito cansado e
agora não encontro o texto. Quando é que vens? …
Obrigado, pá e até logo. E lá ia eu, ciente dos meus
poucos conhecimentos de informática, recuperar o
100
SEIXO REVIEW
que um pequeno clique tinha guardado, sabia-se lá
onde. Resolvido o problema – ele tomava nota dos
procedimentos que deviam ser feitos em situações
semelhantes – vinha mais uma conversa em que ele
contava mais um episódio do livro que tinha entre
mãos, numa linguagem tão correcta e tão viva que
não resistia a ficar mais um pouco. Despedia-me
dele sempre com o Adeus Senhor Professor! E ele:
até logo, e obrigado!)
Na última visita, perguntei-lhe se tinha algum
livro entre mãos, se continuava a escrever, mas DM
fez que não ouvira. Percebi que a pergunta atingira a sua evidente incapacidade de continuar a ser o
operário da escrita, cuja arte recriou tantas histórias
pessoais e colectivas, nomeadamente dos baleeiros
da sua terra. Noutra ocasião dissera-me: Gostava de ter ido para
a Marinha Mercante porque lá
tinha muito tempo para escrever.
Falei-lhe
do
Manuel
d´Angélica, com 82 anos, seu
antigo feitor, que diariamente vai
ao Curral da Pedra na sua burrinha. Mandei-o embora, mas
expliquei-lhe porquê e ficámos
amigos. Contei-lhe que o António José Faidoca, antigo baleeiro,
me dissera na festa da Piedade que nada sabia do
seu estado de saúde. O António José é um bom rapaz. Recordei-lhe que a Festa da Sra das Mercês, era
no final do mês e que num dos seus livros contara
uma viagem tormentosa, debaixo de mar e de ventos fortes, à Manhenha, mas nem um comentário.
Falei-lhe do João Luis de Medeiros: Esteve cá três
vezes, e do Rui Guilherme de Morais: Está em casa
doente. Tenho que ir visitá-lo.
À nossa volta, estantes de livros e mais livros, alguns gravadores e mini-cassetes, onde guardou estórias, num discurso narrativo tão vivo e tão perfeito
que bastava copiá-las para o PC. Decorando prateleiras, estão cachimbos. Foram quase todos oferecidos. Alguns nem cheguei a usar. Levaram alguns
para a exposição, mas ela é que tratou disso. Junto
à porta do escritório, uma estantezinha de madeira,
que ele mandara fazer a um carpinteiro, com CD, s
de música clássica, que ele ouvia alto em bom som.
Em frente, a impressora que tantas cópias tirou,
aguardava um clique para dar à estampa mais uma
página da sua criação literária …
A nossa conversa foi-se enchendo de silêncios …
Há uns meses, ter-me-ia dito: Já te vais embora?
Fica pr´aí mais um bocado!
Despedi-me do escritor/baleeiro. Desculpa, mas
não posso ir lá abaixo! Adeus! Fechei a porta, comovido, consciente de que aquela fora a minha última
visita....
A
o longo de mais de 20 anos, convivi muito
de perto com Dias de Melo. A sua amizade proporcionou-me um amplo conhecimento da
sua personalidade e da sua história pessoal, como
se fossemos da mesma idade. Revelou-me as reais pessoas e circunstâncias que recriou em muitas das suas obras, relatou-me casos de injustiças,
confidenciou-me vivências de jovem e os ambientes
estudantís, da sua muito querida cidade da Horta,
falou-me das suas amizades, ambientes sociais e das
suas actividades culturais e jornalísticas em Ponta
Delgada. Fernando Namora e Fernando Assis Pacheco, foram escritores de relacionamento estreito.
Influências literárias teve-as de Ferreira de Castro,
de J. Steinbeck, Tolstoy … Lia muito e não raro o
ouvi considerar uma ou outra obra como muito boa,
independentemente do seu autor.
Seu pai – emigrante e sindicalista em San Francisco, ao tempo de Trotsky – marcou, decisivamente,
as suas convicções sociais e políticas e a sua militância comunista; a tia Maria Hermínia, – sempre
ela, em todas as conversas – a abertura aos escritores
proscritos.
Irmão, por tradição familiar, do Império da Trindade, a Dias de Melo, nunca ouvi qualquer referência ofensiva à religião ou às igrejas. Falou-me, com
carinho do seu padrinho padre, homem simples
e bom, amigo dos pobres, que nunca mais visitou,
desde que fora para a Graciosa.
Dias de Melo foi um denunciador da injustiça
estabelecida, um escritor evangélico como lhe disse
um dia o Pe Manuel António Pimentel, amigo de
verdade.
Figura de referência obrigatória, em todas as conversas sobre baleias, foi Mestre José Faidoca, símbolo
maior do baleeiro, grande homem do mar, como ele
não havia outro no sul do nosso Pico. Outros mestres conhecia de grande saber nas Lajes, Ribeiras e
Calheta, mas Mestre José Faidoca todos superava.
E contava-me histórias da “Vida vivida em terra de
baleeiros” a comprovar a sua predilecção por ele.
O ciclo da baleação terminou no início da década de oitenta. A extensa obra de DM permitiu, porém, projectar a saga baleeira para além desse tempo,
pois o escritor/baleeiro transformou em epopeia a
penosa, arriscada e, por vezes, trágica actividade marítima, dos marinheiros do sul do Pico.
Nem todos os seus livros versam a temática
baleeira, mas todos eles abordam questões sociais
e culturais, reveladoras da identidade de um povo.
Importa que investigadores e estudiosos saibam
aproveitar o legado que nos deixou.
Com a morte deste grande escritor açoriano
e português, paladino da justiça e da verdade, “A
montanha cobriu-se de negro”.
Adeus, Senhor Professor!
Leiria, 25 de Setembro de 2008
(*) jornalista C.P.536
http://escritemdia.blogspot.com
SEIXO REVIEW
101
Urbano Tavares Rodrigues
Dias de Melo
Onésimo Teotónio Almeida
Professor primário, baleeiro, homem de esquerda solidário e generoso,
que chegou a ser perseguido pelo seu amor à liberdade, Dias de Melo pertence à grande literatura portuguesa com a sua magnífica trilogia do mar
que, sendo profundamente açoriana, se inscreve numa épica nacional.
Mar Rubro espelha admiravelmente as vivências – lutas e amarguras, dores, exaltações desses baleeiros que Dias de Melo acompanhou tantas vezes,
com eles partilhando o sofrimento e a glória da pescaria.
Conheci-o não na sua ilha do Pico, que ele magnificou e de que foi cidadão honorário, mas em Ponta Delgada por ocasião de um congresso de escritores. E guardo desse encontro, a que outros posteriormente se seguiram,
a lembrança calorosa da sua energia, coragem e bondade.
Aqui lhe deixo o derradeiro abraço, carregado de afecto.
Dez linhas sobre o Dias de Melo são muito mais difíceis de escrever do
que dez páginas. Só dá para dizer o óbvio: ninguém culto, minimamente interessado nos Açores, consegue hoje olhar da mesma maneira para as águas
que circundam o Pico. Há livros dele abertos sobre as ondas, entre cachalotes e traineiras salpicando o mar como carneirinhos. Muitas das páginas, de
heróicas, tornam o mar rubro. Outras, fazem as pedras mais negras. E quando o mar pela proa parece afundar um barco, ele acaba sempre reemergindo
com uma bravura que o Dias de Melo toda a vida jurou não ser inventada,
mas genuína e singular. Hoje não estamos mais em épocas de epopeia, é certo, mas os Açores, que se iniciaram na história milhares de anos mais tarde
que os gregos, também têm o direito de ter a sua. Como o seu a seu dono
ainda vale, o agradecimento vai todo inteirinho para o Dias de Melo. Agora
que a montanha se cobriu de negro com o seu desaparecimento do meio de
nós, ele ficará sempre na memória das gentes.
As coisas que ele contava! …
“A cidade Cinzenta” era triste. Triste por dentro e por fora. Tristes almas,
tristes vidas. Sombras, algumas de passagem, que se percebia humanas
quando falavam. Para vender umas batatas, por exemplo. Semeou, adubou,
sachou, abarbou, sulfatou, recolheu. Temeu o vento de sudoeste e a alforra
do norte.
Quem lha compra só pode dar 25$00 por arroba. E o homem cinzento
de tristeza vende a sua fome ao que por dentro é negro. Chega de imediato
outro que também compra. Para a manutenção militar. O comprador de antes é o vendedor de agora. Não o faz por menos de 50$00 a arroba. Negócio
à vista do homem cinzento de tristeza e de Dias de Melo. Quatro meses de
suor e receios, quatro minutos de conversa.
Dias de Melo não inventou esta história. Mas, se ele não a tivesse contado, não teria acontecido.
Calou-se a Voz dos Baleeiros do Pico
Conheci Dias de Melo, já lá vão muitos anos, aí por 1980, quando fomos
ambos professores na Escola Preparatória da Lagoa, na ilha de S. Miguel.
Dias Melo estaria, já nessa época, a preparar a publicação de Vida vivida em
terra de baleeiros (1983), um dos mais notáveis testemunhos da actividade
baleeira picoense, muito particularmente da que se reporta ao concelho das
Lajes. Nele, o autor articula a evocação com a pesquisa documental e faz jus
em apresentar elementos relevantes para o historial da baleação no Pico, no
Daniel de Sá
Jorge Arrimar
102
SEIXO REVIEW
período que vai da fundação da primeira armação baleeira, em 1876, até à
fase de reconhecido declínio e desaparecimento da caça à baleia, em 1983.
Dias de Melo nasceu na Calheta do Nesquim, ilha do Pico, a 08 de Abril
de 1925. Mais tarde teve que se deslocar para a ilha vizinha do Faial para
prosseguir os seus estudos, tendo feito na Horta o curso do Magistério Primário. De ilha em ilha, rumaria depois para a maior delas, S. Miguel, onde
exerceu a docência, casou e constituiu família. Em meados dos anos cinquenta inicia uma longa caminhada no campo literário, cuja estreia acontece em 1954, com o livro de poesia Toadas do Mar e da Terra. Daí para diante
contribui com um importante legado para a literatura açoriana, brindando
os seus leitores com uma massa de informações preciosas sobre os Açores e
suas gentes. Fácil é perceber ao longo da sua obra, composta por uma trintena de títulos, que Dias de Melo tinha uma predilecção por temas relativos
à emigração e a baleação, particularmente da sua ilha natal. Nos seus textos
perpassam personagens socialmente desfavorecidas, quase sempre vítimas
da prepotência dos homens poderosos ou da fúria da natureza.
A última vez que estive com Dias de Melo foi no dia 29 de Julho de 2002,
no seu ninho de açor, no alcantilado Pico, com a Calheta do Nesquim a
seus pés e os olhos fundos perdidos no mar. E marcou-me indelevelmente
o silêncio transparente do Alto da Rocha do Canto da Baía, onde ele se recolhia para viver escrevendo. Era um silêncio apenas cortado pelo grito das
cagarras que, de quando em quando, vinham ver se o escritor estava bem
na solidão do seu lugar. Recebeu-me com um sorriso levemente esboçado
sob o eterno cachimbo e quando saiu para me mostrar o horizonte que lhe
acendia o olhar, defendeu-se do sol forte com um típico chapéu de palha. A
sua Calheta do Nesquim mantinha-se lá em baixo, juntinha ao mar, enquanto ele continuava a perscrutar as ondas que se perdiam no infinito, talvez à
espera que o vigia chamasse os homens para o derradeiro encontro com as
baleias.
Não voltei a ver Dias de Melo, mas sempre que um amigo ia à ilha do
Pico, eu pedia-lhe que fosse até ao Alto da Rocha dar-lhe um abraço … até
ao dia 24 de Setembro deste ano, dia em que me chegou a notícia de que se
tinha calado para sempre a última voz dos baleeiros do Pico. Mas tenho a
certeza que a Dias de Melo, no recolhimento do seu lugar, lhe continuarão a
chegar as vozes dos velhos lobos-do-mar.
DIAS de MELO (breve evocação)
Álamo Oliveira
Em breve evocação, pode dizer-se que Dias de Melo foi professor de
escrita e escreveu bastante e bem. E, apesar dos géneros que utilizou (poesia,
conto, romance, novela e crónica), foi, na prática, escritor de um só tema:
a baleação praticada pelos homens da sua ilha do Pico. Com uma paciência
apaixonada, revelou e relevou a heroicidade da vida de dezenas de pessoas
a quem a miséria obrigou a enfrentar situações de perigo, a par de outras
impostas de forma injusta por quem mais lucrava com o resultado da caça à
baleia. Em quase todos os seus livros, deixou o registo dessa história que foi
construída com tanto de heróico como de patético, com tanto de denúncia
como de solidariedade.
A par da escrita, a que emprestou ficção a tanta realidade, Dias de Melo
teve a generosidade de proceder ao levantamento da população baleeira
da ilha do Pico, fazendo os necessários trabalhos de campo, seriando e
organizando uma espécie de dicionário temático da baleação.
Vasta é a obra de Dias de Melo. É preciso divulgá-la sem reticências. Não
podemos ignorá-la, sob o perigo de, culturalmente, ficarmos mais pobres
e imerecedores da herança literária que Dias de Melo, generosamente, nos
legou.
SEIXO REVIEW
103
Olegário Paz
Dias de Melo
José Francisco Costa
Dias de Melo
Urbano Bettencourt
104
SEIXO REVIEW
Guardo do professor Dias de Melo, amigo de longa data, a imagem dum
trabalhador incansável, duma vontade de ferro e duma decidida atenção aos
mais pobres. Deixou-nos obras apaixonantes pela relação que estabelece entre a cultura erudita e a cultura popular. Se, por um lado, no tocante à Literatura, segue os cânones clássicos da narrativa e faz apelo aos seus admirados
Camilos e Torgas, Hugos e Dumas, por outro, traz para as histórias que (re)
cria quase exclusivamente gente do povo, mormente picoense, com seus
hábitos e costumes, seus trabalhos e divertimentos, suas alegrias e tristezas,
sua linguagem e vocabulário – especialmente na figura das gentes baleeiras.
Os seus trinta e tal livros bem mereciam ser recuperados e agrupados naquilo a que se costuma chamar Obra Completa.
O meio século de escrita de Dias de Melo é um tempo demasiado longo
para se dissipar, na morte, como o fumo do seu cachimbo, que o acompanhou quase até ao fim do último parágrafo. De entre as dezenas de obras
que escreveu, a sua trilogia, Mar Rubro, Pedras Negras e Mar pela Proa é um
marco na obra de ficção em que predominam uma atenção constante a situações de injustiça social, e a temas como a miséria, a solidão, o abandono, a
emigração. Dias de Melo soube também descrever e retratar, em narrativa
palpitante de realidade, o heroísmo resistente dos simples e menos afortunados e o seu amor e apego ao cerrado líquido e à nesga de terra que formam a ilha. A especificidade da sua escrita tem a ver sobretudo com o alto
grau de significância que ele imprimiu à presença quase constante do mar.
Se o epíteto de “A Voz do Chão” cabe a um, ou mais, escritores da literatura
portuguesa, com toda a justiça poderemos dizer que Dias de Melo é a nossa
Voz do Mar em terra açoriana.
Descobri Dias de Melo aos 16 anos e através de Pedras Negras. E esta
narrativa acabaria por tornar-se o epicentro da leitura que acabei por vir
fazendo da obra posterior do escritor picoense. Poder-se-á dizer que não
há descoberta como a primeira, e haverá nisso alguma razão, mas não toda;
a verdade é que a própria obra se impunha pela sua escrita de aproximação
a um mundo (re)conhecível e pelo gesto (detectável) de solidariedade do
narrador para com as suas personagens mais desfavorecidas, vítimas dos
homens e do destino. Por isto, Pedras Negras pode tomar-se como a parte
de toda uma obra, mais ainda pelo modo como condensa a história insular
nas andanças de Francisco Marroco pelo mundo, em busca de melhores
condições de vida, é certo, mas num processo que é igualmente de autodescoberta, aprendizagem e conhecimento do outro.
Essa fidelidade do autor ao universo humano e social dos Açores, aliada à
despreocupação de quem não escrevia para Lisboa ler, ajudará a explicar o
reconhecimento de Dias de Melo por parte das gerações que se lhe seguem,
pense-se, por exemplo, naquilo que já nos anos 70 escrevia Santos Barros ou
mesmo num texto que, pelo mesmo tempo, o jovem Tibério Silva publicou
num dos números da revista A Memória da Água-Viva, numa altura em que
as (des)atenções literárias no arquipélago se voltavam para outras bandas.