Menos uma conta com o passado
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Menos uma conta com o passado
anorama P Porto Alegre, quarta-feira, 20 de outubro de 2010 - Nº 82 LITERATURA Porto Alegre, 1962. A bela Margit Kliemann, de rosto admirado por homens e mulheres, é brutalmente assassinada na casa em que vive com o marido. O Rio Grande do Sul entra em estado de choque, e a polícia se divide: um grupo aponta o deputado Euclydes Kliemann, esposo de Margit, como o autor do crime, outro acredita na hipótese de latrocínio. O drama torna-se ainda maior quando, um ano depois, ele é morto por um adversário político e sua execução é transmitida ao vivo nas frequências da Rádio Santa Cruz. O disparo da bala que tirou a vida de Kliemann ecoou por décadas na memória do jornalista e escritor Celito De Grandi, que apresenta agora, quase cinco décadas depois dos acontecimentos, o primeiro livro que retrata o caso. O caso Kliemann - a história de uma tragédia, apesar de contemplar todos os componentes para um bom romance dramático, é uma grande reportagem que requisitou cerca de quatro anos de pesquisa por parte do autor. Neste período, ele debruçou-se sobre documentos, realizou entrevistas e até conseguiu depoimentos inéditos das filhas do casal. “Minha grande preocupação foi a exatidão. Tentei buscar a versão mais próxima da verdade e creio que consegui”, conta ele. O lançamento ocorre hoje, às 19h, no Vestíbulo Nobre da Assembleia Legislativa. Entretanto, não é somente a trama da obra que é digna de literatura: segundo o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o prefácio, “o autor usa de um dos artifícios de exímios escritores de narrativas, na medida em que confia ao leitor a verdadeira descoberta dessa trama que até hoje nos assusta”. A estrutura ainda tem idas e vindas no tempo e mudanças de cenários e de protagonistas, de modo que exista um clima de novidade nos capítulos, mesmo que tantos anos tenham se passado. Assim, O caso Kliemann – a história de uma tragédia, além de reconstituir os episódios a partir de novas revelações, permite que “um novo público possa vir a se interessar pelo caso e até pela sociedade e a imprensa da época”, torce De Grandi. O futuro é incerto, mas este passado agora está documentado. Celito De Grandi estudou a fundo o Caso Kliemann Reportagem de mestre Jaime Cimenti Caso Kliemann - A história de uma tragédia (Edunisc e Literalis, 256 páginas), do jornalista Celito De Grandi, autor de Loureiro da Silva, o Charrua (Prêmio Açorianos de 2003), de Diário de Notícias, o romance de um jornal e Cyro Martins, 100 anos - o homem e seus paradoxos, este último em parceria com Núbia Silveira é, acima tudo, uma reportagem de mestre sobre os dois crimes que abalaram o Rio Grande na década de 1960. O assassinato da linda, atlética, rica e famosa Margit Kliemann,, em sua residência,, na aristocrática rua Barão de Santo Ângelo, e o posterior assassinato de seu esposo, o promissor deputado estadual Euclydes Kliemann em Santa Cruz do Sul, marcaram a história, a imprensa e o imaginário dos gaúchos. Celito é do tempo em que jornalistas não eram notícia e integra aquela fina linhagem de profissionais que nunca abusou das ficções às vezes exageradas e duvidosas do novo jornalismo e que jamais precisou apelar para as manhas do tal jornalismo investigativo que tantas vezes investiga um lado só e não apresenta provas. Com seu livro, separando habilmente o joio do trigo, Celito nos oferece uma lição de jornalismo clássico, honesto e competente. De quebra, a leitura é gostosa e o livro é um verdadeiro vira-página. Na época - assim como ainda hoje - certos jornais abusavam de sensacionalismo, mentiras, “versões”, “personagens” e outros truques para atender a interesses vários, especialmente os de vender jornais e agradar ou desagradar poderosos. Se a gente apertasse alguns daqueles periódicos, manchava as mãos com sangue ainda quente. Celito De Grandi revive a tragédia de uma família e pode-se dizer que, depois de quase 50 anos, EDUNISC/DIVULGAÇÃO/JC Ricardo Gruner, especial JC ITAMAR AGUIAR/DIVULGAÇÃO/JC Menos uma conta com o passado coloca os personagens a circular pelo Moinhos de Vento, pela Assembleia Legislativa e por Santa Cruz. Bom biógrafo é assim: dá nova vida a fatos, pessoas e personagens que se foram e não se foram e as coloca novamente a andar por aí, entre nós. Não vou contar aqui quem matou a loira Margit Kliemann. Você lerá a obra com muito prazer e, de repente, poderá ou não descobrir. Mais importante do que a autoria do crime, o leitor vai ver, é o trabalho de pesquisa, a seleção criteriosa do material, a linguagem com poucos adjetivos, a impecável estrutura do texto, a contextualização, as pausas, as fotos em preto e branco e o ritmo ágil das boas histórias policiais que pegam o leitor pelo colarinho. Ah, além da reportagem de mestre, os leitores são brindados com textos de Sérgio da Costa Franco, Luiz Antônio de Assis Brasil e Antônio Hohlfeldt, mais bibliografia e lista de locais de pesquisa. Nem preciso encarnar a vidente Madame Ninon, que aparece nas páginas da narrativa, para prever o sucesso do livro antes, durante e depois da Feira do Livro.