Biografia de uma investigação — a propósito de

Transcrição

Biografia de uma investigação — a propósito de
Bruno Latour
Biografia de uma investigação
— a propósito de um livro
sobre modos de existência
Projeto de um artigo para um dossiê sobre
eme dos Arquivos de filosofia coordenado
por Bruno Karsenti
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
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Copyright © Bruno Latour, 2012
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Tradução: Marcela Vieira
1
Bruno Latour,
Enquête sur les
modes d’existence,
une anthropologie
des Modernes. Paris: La Découverte,
2012.
2
Etienne Souriau,
Les différents modes d’existence. Seguido de “L’Œuvre
a faire” (com uma
introdução intitulada “Le sphinx
de l’œuvre”, de
Isabelle Stengers
e Bruno Latour).
Paris: PUF, 2009
(1a ed., 1943).
Para uma filosofia empírica, e não simplesmente empirista, a pesquisa oferece o único modo de desenterrar seus conceitos e de em seguida
experimentá-los, antes de propor-lhes uma versão que possa ser submetida à crítica de seus pares. Entretanto, ainda que o gênero da pesquisa
se beneficie, na filosofia, de um prestígio notório
e intimidador, é muito raro que um autor queira
organizá-lo com a participação de seus leitores.
Mas é exatamente isso o que pretendo fazer ao
publicar o livro Enquête sur les modes d’existence
– une anthropologie des Modernes,1 baseado em
um site virtual que possibilita aos visitantes – que
nesse meio-tempo tornaram-se copesquisadores –
examinar-lhe os argumentos antes de sugerir outros campos, outras provas, outros relatórios. Por
meio desse dispositivo, proponho aos pesquisadores ajudarem-me a encontrar o fio da experiência, ficando atentos a vários regimes de verdades
que eu chamo de modos de existência, de acordo
com o peculiar livro epônimo de Etienne Souriau,
recentemente reeditado.2 É o desdobramento desses métodos que me permite propor aos Modernos – a abrangência deste termo deve ser, evidentemente, esclarecida – uma descrição mais realista
do que aquela que apresenta o advento da Razão
ocidental, ou aquela autorizada por sua crítica.
Minha hipótese é a de que nas áreas empíricas
que até agora venho rastreando, cada um desses
métodos permite respeitar uma certa tonalidade
da experiência, da condição particular de felicidade e de infelicidade em cada caso, e, sobretudo
– e é aí que as coisas se complicam –, eles permitem respeitar uma ontologia específica. Na realidade, cada método exige que encontremos seres
distintos, aos quais é preciso se dirigir em suas
próprias línguas. A clássica questão da filosofia
“qual é o ser da técnica, da ciência, da religião,
etc?” tornar-se-á, então: “quais são os seres da
técnica, da ciência, da religião, e de que maneira os Modernos tentaram abordá-los?”. Porém,
como justificar a multiplicação desses métodos,
quando a civilização que se pretende estudar pensa a si mesma a partir de duas únicas categorias
apenas, objeto e sujeito (é verdade que com mil
combinações diferentes)?
Quando meus leitores dizem que não entendem por que continuei a trocar de campo, e que
não veem a lógica do conjunto de meus estudos
– o que os leva a procurarem meus livros em diferentes prateleiras nas livrarias (e isso quando eles
os encontram, ou melhor, se é que os procuram!)
–, o comentário me faz rir porque não conheço
nenhum outro autor que tenha seguido de forma
tão obstinada um mesmo projeto de pesquisa, dia
após dia, durante vinte e cinco anos, preenchendo
o mesmo questionário e respondendo às mesmas
perguntas. É aí que pode ser útil esclarecer como
cheguei até essa inusitada forma de antropologia
filosófica: não para contar minha vida – se um
sistema é sólido, não há necessidade de se preocupar com o seu autor –, mas principalmente para
traçar a biografia desse argumento, baseando-o
em sua história. Ninguém se surpreenderia com
o nascimento empírico de uma filosofia empírica. Neste artigo, eu gostaria de entregar-me ao
exercício contraditório de narrar a caótica aparição de um argumento sistemático cuja persistência por quase trinta anos deixa a mim mesmo
admirado.
3
Charles Péguy,
Œuvres en prose
1909-1914. Paris:
Gallimard, La
Pléïade, 1961.
4
Rudolf Bultmann, L’histoire de
la tradition synoptique (traduzida
por André Malet).
Paris: Seuil, 1971.
Se eu voltar ao passado, ao passado consciente – e irei poupar o leitor das tribulações de meu
inconsciente –, deveria começar pela convergência
entre Charles Péguy e Rudolf Bultmann. Nos meses de setembro, apesar das importantes colheitas
para o comércio de vinho, meus pais me levavam
em peregrinação a Orléans, às “jornadas Péguy”.
Se fui tão profundamente influenciado pela leitura de Clio é porque fusionei as lições desse grande
hermeneuta, Clio, a musa, com a exegese bíblica, em que descobri com grande paixão uma meticulosa, devota e fértil erudição.3 Por sorte, eu,
que naquela época era um militante católico, tive
como professor de filosofia, na Universidade de
Dijon, de 1966 a 1973, André Malet, pastor protestante e tradutor de Bultmann.4 Em suas mãos,
que eram tão brilhantes quanto o pergaminho, o
texto bíblico ficou finalmente compreensível, revelando-se como um longo processo de transformações, invenções, glosas, racionalizações diversas, cujo conjunto tramava uma malha de interpretações que, cada uma a seu modo, tratavam
novamente – e esse é o ponto essencial – a questão
da fidelidade ou da traição: invenção falsa ou fiel,
repetição ímpia ou surpreendente redescoberta?
Passávamos muito tempo fora da universidade,
comparando, por exemplo, as variadas narrativas de ressurreição: elas deveriam ser lidas como
narrativas informativas – de fato, o túmulo está
vazio – ou como narrativas de transformação – o
anjo com o dedo em riste ensina, por meio dessa narrativa, como as Escrituras devem ser lidas,
como se o que elas dissessem pudesse ressuscitar
aquele a quem elas eram dirigidas?
Porque escaparam de uma forma inexplicável da transcendência e da imobilidade, porque se
tornaram localizados, históricos, situados, artificiais, sim, inventados e constantemente reinven-
5
Bruno Latour,
“La répétition de
Charles Péguy”,
em Péguy écrivain.
Colloque du
centenaire. Paris:
Klincksieck, 1977,
pp. 75-100.
tados a cada novo turno, levantando a questão de
suas veracidades, esses textos se tornaram ativos
e acessíveis. A essa opressiva responsabilidade
do leitor, evocada de forma tão maravilhosa em
Clio, Bultmann oferecia uma descrição científica.
Curiosamente, do meu ponto de vista, a desconstrução sistemática, pela exegese, de todas as certezas dogmáticas, longe de enfraquecer o valor de
verdade que as sucessivas glosas não paravam de
retomar, tornaram possível, por fim, que se questionasse a verdade religiosa; mas apenas com a
condição de que se aceitasse a existência de um
percurso de veridicção com suas próprias condições de felicidade, um percurso cujos traços permanecem na exegese e do qual Péguy, com seu estilo repetitivo, havia tentado recuperar a perturbadora tonalidade na virada do século xx.
Em uma tese defendida em 1975 e logo entregue à crítica afiada dos ratos, inferi esse argumento na análise do evangelho de São Marcos
e do “santo” Charles Péguy (acrescentei ainda
outro santo, o poeta Saint John Perse, por razões que, confesso, hoje escapam-me completamente...). Um pouco de Derrida, de Lévi-Strauss
e muito de Deleuze ajudava a conferir a esse argumento um brilho da época que nem Péguy nem
Bultmann poderiam, evidentemente, proporcionar. Em minha análise, se os textos no túmulo
vazio não transmitiam informação, eles faziam
muito mais ao indicar a possibilidade de outros
regimes de vozes verídicas e verificáveis.5 O que
é certo é que eu saía desse período de formação
armado de uma enorme mas muito paradoxal
certeza no fato de que, quanto mais uma malha
de textos fosse interpretada, transformada, artificial, retomada, recosturada, repetida e reformada, e a cada vez de forma diferente, mais chance ela teria em manifestar sua verdade intrínseca,
com a condição – e é isso o que eu ia reservar
para mais tarde – de que se saiba distinguir de
outro modo a verdade, a informação pura e perfeita (que eu ainda não chamava de informação
Duplo Clique, já que naquela época os mouses
dos computadores ainda não faziam coçar nossas
mãos)... Um longo combate contra a erradicação
das mediações ia começar.
Como ainda era possível escapar do serviço
militar cumprindo “sua colaboração”, troquei a
escola Gray, em Haute Saône, pela escola técnica
de Abidjan. Pode-se imaginar a lavagem cerebral
por que passaria um graduado em filosofia, provinciano, católico e burguês, que se vê transportado para o caldeirão da África neocolonial – e,
além disso, acompanhado de mulher e filho? No
Abidijan dos anos 1973-1975, descubro ao mesmo tempo as práticas mais predadoras do capitalismo, os métodos da etnografia e os enigmas da
antropologia. Esta última, particularmente, não
me abandonaria nunca mais: por que se utiliza a
ideia de modernidade, de frente de modernização,
de contraste entre o moderno e o pré-moderno,
antes mesmo de se ter aplicado aos que se dizem
civilizadores os próprios métodos de pesquisa
aplicados aos “outros” – os quais se pretende senão civilizar completamente, pelo menos modernizar em certo grau?
Por sorte, o campo proposto por meus colegas
do orstom (hoje ird, Institut de Recherche pour
le Développement [Instituto de Pesquisa para o
Desenvolvimento]) refere-se justamente às usinas
da Costa do Marfim e à inviável questão da marfinização dos administradores: por que os patrões
expatriados não providenciam administradores
africanos competentes o bastante para substituí-los? Imediatamente, sinto que se para responder
a essa pergunta eu tivesse utilizado o esquema de
6
Gilles Deleuze
e Félix Guattari,
L’Anti-Œdipe:
capitalisme et
schizofrénie. Paris:
Minuit, 1972.
Edição brasileira:
O anti-Édipo:
capitalismo e
esquizofrenia,
tradução de Luiz
B. L. Orlandi. São
Paulo: Editora 34,
2011, 2a edição.
uma disputa entre a modernização e o arcaísmo,
eu nada teria entendido. Mas também percebo a
ausência de um esquema alternativo, pois não se
sabe descrever etnograficamente os significados
dos adjetivos “racional”, “eficaz”, “competente”, “rentável”, todas essas qualidades – segundo
o que me atestam, com a desdenhosa confiança
dos expatriados – que parecem faltar aos administradores marfinianos. Percebo que tais adjetivos de combate e de conquista não resultam de
qualquer descrição independente, são palavras de
ordem ou gritos de guerra. Se se apressa em invocar as dimensões culturais, os limites cognitivos,
as “almas negras” e as “mentalidades africanas”,
é para não se ter o trabalho de refletir sobre uma
definição que seja suficientemente material e concreta. Existe aí uma flagrante assimetria: os brancos antropologizam os negros – sim, e com muita eficiência –, mas eles mesmos não se deixam
antropologizar. Ou então eles o fazem de modo
falsamente distante, “exótico”, prendendo-se aos
aspectos mais arcaicos de suas próprias sociedades – as festas municipais, a crença na astrologia,
as refeições de primeira comunhão –, e não ao
que me salta aos olhos (olhos que, na verdade,
foram educados pela leitura coletiva do Anti-Édipo):6 as técnicas industriais, a economia, o “desenvolvimento”, a razão científica, etc., ou seja,
tudo o que constitui o coro estrutural dos impérios em vias de expansão.
Daí veio a ideia de aplicar os métodos das
ciências sociais – principalmente a etnografia – às
práticas mais modernas. Em 1975, a Califórnia
parecia ser o centro mais avançado da humanidade, chamavam-na até mesmo de “cabeça pesquisadora”. Um amigo cientista de Dijon, Roger
Guillemin (antigamente, menino de coro de um
querido tio padre!), propôs que eu me juntasse
7
Bruno Latour e
Jocelyn de Noblet
(orgs.), Les
“vues” de l’esprit.
Visualiation et
connaissance
scientifique. Paris:
Culture Technique,
1985.
a ele em São Diego, no Instituto Salk, que acabava de ser inaugurado, caso eu conseguisse um
financiamento. Eu precisava apenas de algumas
páginas e poucas linhas para escrever o projeto
de uma antropologia que iria oferecer aos que se
dizem modernos e racionais uma descrição que
fosse, finalmente, etnograficamente estruturada.
Lembro-me até hoje do ar estupefato do agente
consular encarregado de instruir-me sobre meu
pedido de bolsa Fulbright, diante da confiança
com que eu pretendia tornar a antropologia enfim
simétrica! Eu achava completamente normal enraizar a antropologia comparada em uma trajetória que ia de Abidjan a São Diego, passando pelas
velhas ruas pavimentadas de Baune, e percorrendo três dos mais diferentes tipos de modernidade. Direção: Estados Unidos; campo: laboratório
científico. Em um desses cadernos guardados desde os treze anos, escrevi em algumas linhas o projeto de comparar os modos de verdade, primeiro
indício de um livro que só viria a ser publicado
quase quarenta anos mais tarde...
Pode-se imaginar minha surpresa ao descobrir, no laboratório Guillemin, em 1975, naquele
magnífico prédio de Louis Kahn com vista para
o Pacífico, que, curiosamente, o trabalho científico assemelha-se à exegese que eu abandonara na
Borgonha... Como bom etnógrafo, eu sabia que
precisava desconfiar das ideias que flutuavam no
ar, mas eu não acreditava que a sequência dos “registros” de toda essa ideografia de instrumentos
imprimisse nessas famosas ideias uma força tão
fértil.7 E, no entanto, naquela misteriosa fábrica
de acontecimentos, tudo se esclareceria subitamente caso eu aceitasse acompanhar passo a passo as transformações dos documentos aos quais
os pesquisadores vestidos de branco destinavam
um interesse ao mesmo tempo obsessivo e com-
8
François Dagognet, Ecriture et iconographie. Paris:
Vrin, 1974.
pletamente descontraído. As coisas aconteciam
como se houvesse a possibilidade de incorporar
as ciências às frágeis e aparentemente impalpáveis
tecnologias intelectuais. É verdade que eu recebia
ajuda, não só de Derrida, mas também de François Dagognet, de quem o pequeno livro Écriture
et iconographie8 oferecia ao cão de caça que eu
era a pista que ele farejava com todo seu fôlego.
Como foi que essa forma de materialidade
pôde desaparecer tão completamente da epistologia, assim como a exegese bíblica da predicação dos dogmas católicos? Como explicar que,
mais uma vez, o apelo a uma abusiva transcendência tenha conseguido dissimular a malha de
textos, de documentos, cujos reparos constantes
só poderiam produzir a verdade que se tentava,
inutilmente, consolidar em um fundamento mais
sólido? Como a veridicção científica poderia estar tão afastada da informação Duplo Clique, do
mesmo modo que esta da verdade religiosa – no
caso de nos depararmos com três tipos de veridicção, cada uma totalmente distinta da outra, e
legítimas, a seu gênero e a seu modo?
Como eu passava doze horas por dia no laboratório, costumava convidar todos os intelectuais
de São Diego, para apresentar à sabedoria deles
o enigma de uma antropologia científica que eu
não sabia como decifrar. Por sorte, enquanto eu
me colocava essas perguntas tão difíceis, descobri
a semiótica, graças a Paolo Fabbri, e a etnometodologia, graças aos amigos da universidade, e,
posteriormente, a Steve Woolgar.
Ainda me lembro da minha admiração quando Fabbri, com seu adorável sotaque italiano e
sua voz alta e aguda, apropriando-se de um texto
que saía da maquinaria do laboratório – um texto
cheio de diagramas e de fórmulas químicas sobre a
descoberta de um neuropeptídio, que logo se tor-
9
Bruno Latour
e Paolo Fabbri,
“Pouvoir et devoir
dans un article de
science exacte”,
Actes de la Recherche en Sciences
Sociales, 1977,
pp. 81-99.
naria o célebre trf9 –, dedicou-se, muito tranquilamente, a analisá-lo ao modo greimasiano, como
se se tratasse de um conto de fadas... Nas hábeis
mãos de Paolo, a variada atuação dos atores não
deveria mais ser confundida com a percepção de
base dos actantes. Então eu logo compreendi que
os personagens não humanos também tinham
aventuras que poderíamos acompanhar se abandonássemos a ilusão de que eles eram ontologicamente diferentes dos seres humanos. O que vale
é apenas a agency, suas capacidades de atuação e
os diversos papéis que lhes foram atribuídos.
Um mundo então se revelava, enquanto eu
ainda não tinha terminado a investigação, e prestava-se – admiravelmente, deve-se reconhecer –
aos princípios de uma antropologia comparada:
os coletivos – eu ainda não utilizava essa definição – diferem-se pela atuação que eles atribuem
aos actantes, pelos testes que eles destinam a seus
personagens, mas nunca porque uns fossem realistas, racionais, reais, e os outros simbólicos, imaginários ou míticos. O poder da semiótica derivava, justamente, de sua sublime e radical indiferença ao realismo aparente dos sujeitos e dos atores sociais: essa era a condição ideal para seguir a
originalidade das ciências que foram aniquiladas
pela tarefa de imitar o mundo, corrompidas por
serem tantas vezes confundidas com a informação sobre lamentáveis “matters of fact” isolados
de qualquer questão. Somente a semiótica dos escritos e das inscrições científicas, livre do realismo
comum, poderia implantar esse modo totalmente
original de referência.
Não é difícil compreender o motivo da minha
excitação: eu sabia que esse fenômeno da circulação da verdade científica ao longo das cadeias
das inscrições teria dificuldade em encontrar um
lugar na filosofia, apesar do imenso prestígio atri-
10
Harold Garfinkel, Studies in
Ethnomethodology. New Jersey:
Prentice Hall,
1967.
buído à Ciência. Na verdade, o caminho das inscrições ignorava ao mesmo tempo o sujeito conhecedor e o objeto conhecido; o modo de existência
do conhecimento científico parecia merecer um
habitat melhor do que o no man’s land entre as
palavras e as coisas. Eu não imaginava que seria
necessário mover céu e terra para dar-lhe o lugar
que ele merecia, e que quarenta anos depois eu
ainda estaria nessa mesma missão, armado de pá
e picareta...
A paixão pela semiótica – cujas garras, aliás,
foram afiadas tanto nos textos bíblicos quanto na
literatura de ficção – teria levado-me a uma simples “textualização” da atividade científica, caso eu não tivesse descoberto, paralelamente, nas
pesquisas de Garfinkel, uma forma muito distinta de romper com o realismo social tão comum
na sociologia.10 O estranho Gênio do jargão da
etnometodologia vem da descoberta de que todo
curso de ação, incluindo o mais comum, é constantemente interrompido por um minúsculo hiatus que requer, de tempos em tempos, a retomada
inventiva do ator munido de seus próprios micrométodos. O desajeitado laboratorista que eu era
multiplicava sem querer as experiências de “breaching” que revelavam, por contraste, a competência que meus colegas de laboratório adquiriram
com muita dificuldade. Eu me sentia desencorajado pelo estilo de Garfinkel, mas compreendia
que sua proposta era fazer para todos os relatórios (os accounts) o que eu já havia identificado
na exegese religiosa e o que eu estava descobrindo
na bancada do laboratório na exegese de textos
científicos: nenhuma continuidade de um curso
de ação pode acontecer sem uma repetição inventiva que fornecesse ao ator social as capacidades
reflexivas, as fontes de inovação, e até mesmo as
sociologias e ontologias cujo desdobramento ul-
11
Bruno Latour
e Steve Woolgar,
Laboratory Life.
The Construction os Scientific
Facts. Princeton:
Princeton UniversityPress, 1986 (1a
edição, 1979).
12
Bruno Latour,
Rassembling
the Social. An
Introduction to
Actor-Network
Theory. Oxford:
Oxford University
Press, 2005.
trapassavam em muito as capacidades do etnólogo. O pesquisado sempre sabe mais do que o
pesquisador.
É por isso, aliás, que a filosofia de minha
juventude me parecia tão indispensável: só ela foi
selvagem o suficiente para conseguir acompanhar,
sem grande espanto, as elucubrações dos agentes.
Era através da metafísica que se pretendia tornar-se um bom etnógrafo. A ideia de que o ator não
fosse mais considerado um “idiota cultural” (“a
cultural dope”) ressoava maravilhosamente com
o actante explorado pela semiótica. Felizmente,
protegido pela minha ignorância brutal da sociologia, eu não poderia saber que Garfinkel seria
tão radicalmente inassimilável pelas ciências sociais, assim como Greimas pela epistemologia.
Nada então me impedia de utilizar os termos “social” e até “construção social” para descrever as
aventuras dos seres não humanos que passavam
a povoar os coletivos.11 Eu não poderia saber que
seria preciso um quarto de século para livrar-me
do mal-entendido criado pelo uso da palavra “social” e de todas as complicações dele decorrentes,
para meu grande susto.12 Embora desde minha
feliz infância em Beaune eu não houvesse tirado
sequer um pé do mais sólido realismo, e apesar
de eu ter sido um dos primeiros a finalmente descrever com precisão a materialidade das ciências,
vi-me de repente acusado de um crime aparentemente abominável e que eu teria cometido por
pura inadvertência: o questionamento da objetividade científica pelo “relativismo”.
Em 1977, de volta à França à procura de colegas, fui parar na dgrst, na Rue de Varenne, com
o resumo de um contrato para estudar a evolução
da química biomolecular em que o autor, um certo Michel Callon da Escola das Minas, explicava friamente que não iria submeter minha análise
13
Gilbert Simondon, Du Mode
d’existence des
objets techniques.
Paris: Aubier,
1958.
à supervisão preliminar dos químicos, já que ele
pretendia explorar uma abordagem que fosse independente da autoridade científica. Ah! Eu tinha
que conhecer o mais rápido possível aquele colega audacioso, intencionado em falar da ciência
com uma tal liberdade! Esse encontro vai oferecer-me uma sorte extraordinária, permitindo-me
trabalhar durante um quarto de século na calma
do csi, o Centro de Sociologia e de Inovação.
Graças a Michel Callon, eu seria apresentado
aos estudos de campos industriais. Ora, os dispositivos técnicos que tivemos de traçar pelo viés das
inovações (a inovação estava em voga naquela época, e havia muito dinheiro destinado a estudar suas
origens), apresentava-nos uma forma de realismo
que as noções de eficiência ou de rentabilidade não
poderiam esgotar. No decurso de nossas pesquisas,
reconstruímos o modo como os engenheiros deveriam ter desenhado todo um mundo para conseguir sustentar suas inovações mais arriscadas por
um pouco mais de tempo. Aí, novamente, eu me
deparava com um curso de ação que nenhuma
continuidade, nenhuma grande necessidade, nenhuma causalidade um pouco sólida poderiam explicar. Mas o hiatus peculiar às novas técnicas –
por definição, é sempre uma questão de romper
com as práticas já existentes através da inovação
– foi surpreendente na medida em que, no final,
quando tudo estava no lugar e o dispositivo estava
finalmente funcionando, houve um desvio por intermédio de um objeto com um status de fato muito estranho, o objeto técnico cujo “modo de existência” – e era a primeira vez que eu ouvia aquela
expressão – fora proposto por Gilbert Simondon.13
Assim como as ciências compreendidas em
sua prática não podiam ser mantidas no estreito âmbito da epistemologia, as técnicas, sobretudo as mais modernas, não podiam ser manti-
14
Bruno Latour,
“Mixing Humans
with Non-Humans, Sociology of
a Door-Opener”,
Social Problems,
nº 35, 1988, pp.
298-310.
15
Michel Callon,
“Pour une sociologie des controverses techniques”,
Fundamenta Scientiae, nº 2, 1981,
pp. 381-99.
16
Michel Callon,
“Élements pour
une sociologie de
la traduction. La
domestication des
coquilles Saint-Jacques et des marins
pêcheurs en baie
de Saint-Brieuc”,
L’année sociologique, nº 36, 1986,
pp. 169-208.
das na simples ideia de uma ação eficaz sobre a
matéria: elas tinham a ver com a magia, com a
religião, com a filosofia; elas tinham seu próprio
mundo; eram cheias de métodos, artimanhas, cálculos, metafísica, e até mesmo moral; e, desconstruindo as fronteiras com os temas humanos, representavam um imenso desafio para a descrição
etnográfica ou sociológica.14 Mas, além disso, de
uma forma ainda mais radical, elas povoaram o
coletivo com atores não humanos que, por um
tipo de delegação, eram relevantes aos atores humanos pela quantidade vertiginosa de habilidades
imprevistas. Na minha opinião e na de Callon, a
armadura técnica era o que havia de mais “social” em uma sociedade, uma vez que se voltasse
à etimologia do adjetivo e se permitisse seguir todas as associações necessárias à extensão de uma
rede. Principalmente se a ela forem acrescentadas
as técnicas intelectuais que se aprendeu a seguir
a partir das pesquisas de laboratórios, e que acabaram misturando-se em toda parte com as organizações técnicas.15 Às máquinas, devia-se acrescentar os escritórios; às engrenagens, as técnicas
contáveis; à resistência dos materiais, as agências
de padronização.
E, no entanto, aos olhos de nossos colegas das
ciências legitimamente chamadas “sociais”, o social não parecia capaz de absorver essas múltiplas
e lábeis conexões que tínhamos designado “tradução” por um empréstimo deliberado de Michel
Serres.16 Seguíamos o curso de Serres todos os sábados, no esfumaçado anfiteatro – praticamente
um “estábulo” – da Sorbonne (ainda se fumava
dentro das salas naquela época!), sempre aproveitando a audácia com a qual Serres desenvolvia essa “antropologia das ciências” fundada naquele
tão fértil princípio da exegese, segundo o qual a
metalinguagem de um texto – poema, fábula, livro
de memórias, ou tratado científico, não importava – só poderia ser encontrada no próprio texto,
bastava procurá-la. Bela lição metodológica para
seguir os “próprios atores”, uma abordagem compatível tanto com a semiótica quanto com a etnometodologia. Descrever, descrever e ainda descrever. A explicação e o contexto eram muito menos
importantes do que reunir em uma limitada rede
de interpretações um texto de Tito-Lívio, um argumento de René Girard ou um teorema topológico.
Isso será explicado mais tarde, se houver tempo.
17
Shirley Strum,
“Agonistic Dominance among
Baboons: an
Alternative View”,
International Journal of Primatology, nº 3, 1982, pp.
175-202.
A descoberta dos desvios e das delegações técnicas acrescentava a minha lista um novo modo
cuja ontologia era muito mal explicada pela noção de “materialidade”. Eu começava a me perguntar se não seria o caso de trocar definitivamente de filosofia, quando tive a sorte – sempre ela –
de receber um telefonema de um antropólogo californiano convidando-me a participar do primeiro
congresso que reunia os especialistas em macacos
Papio anubis, que passavam a ser estudados sistematicamente. Ela precisava de um observador das
controvérsias entre os cientistas. Trinta e cinco
anos depois, o choque do meu encontro com Shirley Strum, juntamente com a primatologia, com a
etnologia, com a savana do Quênia e, sobretudo,
com os macacos, não se desfez. Em primeiro lugar, eu estava descobrindo que uma intensa vida
social – aquela das trupes dos babuínos que Shirley já acompanhava havia sete anos e que ainda
em 2012 continuava a acompanhar! – era perfeitamente compatível com um uso extremamente limitado de instrumentos técnicos.17
Se os babuínos manifestavam uma complexidade social tão extraordinária, totalmente digna
de Garfinkel, eles só faziam uso de suas patas. Era
isso que confirmava – a Callon e a mim – nossas
18
Shirley Strum
e Bruno Latour,
“The Meanings
of Social: from
Baboons to Humans”, Information sur les Sciences Sociales/Social
Science Information, nº 26, 1987,
pp. 783-802.
19
Michel Callon
e Bruno Latour,
“Unscrewing the
Big Leviathan:
How Do Actors
Macrostructure
Reality”, Advances
in Social Theory
and Methodology:
Toward an Integration of Micro
and Macro Sociologies, K. Knorr
& A. Cicourel
(orgs.). Londres:
Routledge, 1981,
pp. 277-303.
intuições sobre a fabricação técnica da sociedade:
o que caracteriza os seres humanos não é a emergência do social, mas o desvio, a tradução, a inflexão de todos os cursos de ação em dispositivos técnicos cada vez mais complicados (mas não necessariamente mais complexos).18 Alguns anos depois
de meu retorno desse trabalho de campo queniano, em 1979, escrevemos o texto que fundou a teoria do ator-rede, Unscrewing the great Leviathan,
propondo uma teoria social bastante aberta para
absorver as associações entre seres humanos e não
humanos,19 sobretudo fazendo da mudança de escala a consequência de um emprego das técnicas
materiais bem como organizacionais. A performatividade do social pelas ciências, incluindo a ciência econômica, financeira, administrativa, abria-se,
assim, de forma mais ampla à pesquisa empírica.
Ao passar do social às associações, o analista
aproveitava-se, enfim, de uma liberdade de manobra tão grande quanto a de seus informantes,
em vez de se fechar no estreito quadro da “dimensão social” de fenômenos científicos, técnicos,
cujo conteúdo deveria escapar-lhe completamente. O que se pretendia observar eram as redes
socio-técnicas em vias de expansão. Pusemo-nos
a espalhar isso a torto e a direito; devíamos ter ficado insuportáveis naquela ocasião; mas, enfim,
éramos jovens, apaixonados, e, além disso, tínhamos razão! A história ia nos provar isso, quero
dizer, a história que a ecologia iria nos forçar, todos, seres humanos e não humanos, a considerar.
Assim, pelo menos não seríamos pegos de surpresa; com as armas em punho, aguardamos esse novo mundo, ou melhor, nós o aguardávamos como
servos do Evangelho, com a lâmpada já acesa...
E, no entanto, por mais importante que ela
fosse, não era essa invenção da “sociologia da
tradução” que apreendi em minha longa convi-
vência com Strum e, logo depois, com seu marido,
David Western. Não, era a convivência com um
modo, completamente maravilhoso para mim, de
organismos vivos largados a suas próprias sortes.
É claro que eu conhecia os laboratórios, e eu começava a medir o que as experiências tinham de
artificial – no bom sentido do termo –; eu sabia
muito bem que a paisagem do campo nada tinha
de natural (sobretudo as videiras perfeitamente
enfileiradas de minha Côte d’Or natal); mas como eu iria qualificar o espaço criado pelas trupes de babuínos que estavam sendo seguidos por
seus pesquisadores – seguidos, e não precedidos,
por eles, isso já diz tudo –; como não se desconcertar com essas trupes de macacos cujo caminho
era atravessado por gazelas saltitantes, manadas
de zebras e búfalos, e, de vez em quando, pelo
deslizar silencioso de um paquiderme? Não, não,
aquilo não era a natureza, a selvageria, a célebre
“wildlife”; na verdade, sim, era tudo aquilo, como também eram muitas outras coisas; era o movimento dos fenômenos entregues a suas próprias
sortes, mas sem a presença intimidadora dos seres humanos, que foram deixados fora da cena.
E, no entanto, esses pesquisadores capazes de seguir – e não dominar – seu objeto de estudo produziam ciência, e muito boa ciência (que eu assimilava o mais rápido possível, dando aulas sobre
a evolução das técnicas e da ecologia, na ucsd,
ao lado de Shirley, quase todos os anos de 1979
a 1992). As diferentes práticas de primatologia,
dos macacos presos em cadeiras de tortura nos
laboratórios até os babuínos seguidos dia após
dia por doutorandos entusiasmados, passando
pelos chimpanzés presos nos zoológicos, foi uma
linda lição de filosofia: encontravam-se aí todas
as possíveis posturas do observador e do objeto
observado, e compreendeu-se então a paixão que
20
Donna Haraway,
Primate Visions.
Gender, Race and
Nature in the
World of Modern
Science Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1989.
21
Bruno Latour,
Les microbes,
guerre et paix,
seguido de Irréductions. Paris:
A.-M. Métailié,
1984 (reeditado
em formato de
bolso pela editora
La Découverte, em
2002).
tanto inspirou Donna Haraway (que conheci em
1981).20 Acompanhando a pé os babuínos, Shirley, no meio deles e tão invisível quanto a Atena
grega no centro dos combates, explicava-me, em
voz baixa, enquanto tomava notas, a impressionante complexidade dessas sociedades. Passei a
imaginar outras relações entre o percurso do conhecimento e o do mundo conhecido. Mas para
chegar até aí eu precisava de uma oportunidade
para conhecer a “outra metafísica”, aquela de James e de Whitehead.
Naquele momento, eu não tinha outras palavras para descrever a impressão causada por minha colaboração com Shirley e com os etnólogos,
a não ser irredução. Foi essa expressão que deu
origem ao tema de um pequeno “tratado científico-político” publicado em 1984,21 uma curiosa
filosofia sem leitores, uma mistura um pouco estranha de teoria de redes, de nietzscheísmo então
vigente, e de luta contra a epistemologia, tudo isso sob o fundo do fim da Guerra Fria. Com uma
única intuição – a distinção entre as relações de
força e as relações de razão faz com que tanto
a força quanto a razão sejam incompreensíveis –
misturada a uma completa e totalmente despercebida contradição: a intenção de conferir a todas
as associações a mesma metalinguagem, em termos de tradução, redes e enteléquias. Se eu sempre senti simpatia por esse livro juvenil e mordaz
é porque agora sei que se trata de um modo particular de existência – e não de uma filosofia irreducionista, como eu acreditava naquela época –,
esse modo que permite a implementação das redes de associação heterogêneas e imprevistas, sem
se deixar intimidar por outros domínios distintos. No final, fiz bem em demonstrar sua eficácia
em um estudo histórico-semiótico sobre as descobertas de nosso compatriota Louis Pasteur. Como
22
Bruno Latour, Aramis,
ou l’amour des
techniques. Paris:
La Découverte,
1992.
modo, a análise das redes é indispensável para a
investigação (eu demonstraria isso a partir do caso delicioso de um metrô automatizado),22 mas,
como todos os modos, ela tende à hegemonia e à
não compreensão dos outros. Até hoje, se me perguntassem “qual é sua filosofia?” eu só saberia
responder dizendo: “leia Irréductions”. (Não se
preocupem: nunca alguém me dirigiu tal pergunta, uma vez que o tumulto das discussões sobre
o relativismo e a guerra das ciências transformaram-me, nesse meio-tempo, em um simples sociólogo defensor de uma “construção social” segundo a qual “tudo está valendo”, tanto a ciência
objetiva quanto a magia, a superstição e os discos
voadores...).
Para melhor entender como as coisas acabaram se ligando, dois outros encontros precisam
ser considerados – um pensamento parece ser o
resultado de encontros decisivos cujos efeitos se
buscam na mais total solidão (sem a solidão, nada
acontece; sem os encontros, tampouco). Logo depois de minha volta a Paris, Paolo Fabbri apresentou-me a Françoise Bastide, fisiologista e semioticista sem igual, com quem tive a sorte de trabalhar
até sua morte prematura, em 1988. Françoise,
com toda a seriedade de uma celibatária e protestante, aplicava nos textos o mesmo e absoluto respeito que mostrara em relação aos rins, quando,
indo contra a maré, estudou seu sutil funcionamento, em um laboratório do Collège de France.
Especialista em textos científicos, ela sabia muito bem (porque os tinha escrito) que a semiótica,
apesar de pretender jamais se afastar dos textos,
na verdade nunca deixou de confiar naquilo que
acontecia fora deles, na prática. O enigma era descobrir como abordar aquela prática sem cair nos
clichês sobre os indivíduos falantes compreendidos em um contexto social e material. Era preciso
23
Bruno Latour e
Françoise Bastide,
“Essai de science
fabrication”,
Études françaises,
nº 19, 1983,
pp. 111-33.
24
Bruno Latour,
“A Relativist Account of Einstein’s
Relativity”, Social
Studies of Science,
nº 18, 1988,
pp. 3-44.
estender as intuições da semiótica para além de
seu quadro original – os textos bíblicos e as ficções
literárias –, sem abrir mão de sua independência
em relação ao realismo comum. Greimas, cuja
brilhante cabeça desaparecia por trás da fumaça
emanada de seu seminário, encorajava-nos nesse
projeto, sorrindo (o cigarro provavelmente deve
tê-lo matado, assim como o fez com Françoise).
É aí que aperfeiçoamos uma pequena máquina fundada na teoria da enunciação. Os textos de
ficção não precisam se preocupar com isso: uma
vez que a enunciação foi produzida nos quadros
de referência de um texto – porque sempre se trata de um texto –, os percursos narrativos são fáceis de ser seguidos. Ora, esse pode não ser o caso de pelo menos dois regimes de enunciação: os
instrumentos científicos e os dispositivos técnicos.
Para eles, certamente, a embreagem enunciativa,
e especialmente a reembreagem, devem ser seguidas com cuidado. Os personagens não figurativos
de um texto científico podem muito bem viajar
como os seres ficcionais, mas eles precisam voltar para trazer algo que se encontra nas mãos do
enigmático enunciador, aquele cuja presença não
tem importância em um texto de ficção, já que
ninguém pergunta a Flaubert se ele tem a certidão de nascimento de Bovary.23 Einstein e seus pequenos personagens relativistas nos serviram como teste que nos permitiu identificar a estranheza
dessa ficção no caminho da verificação gradual.24
Mas é com o objeto técnico que tivemos mais dificuldade, porque ele explode o quadro textual.
Mas, no entanto, não é a materialidade que apresenta o problema; aí, também, trata-se do papel
particular do enunciador capaz de se ausentar,
porque o objeto permanece sem ele.
Na verdade, percebemos isso muito rápido,
a própria possibilidade dessa famosa embreagem
25
Françoise Bastide, Una notte con
Saturno. Scritti semiotici sul discorso
scientifico. Roma:
Meltemi, 2001.
26
Bruno Latour,
Science in Action.
How to Follow
Scientists and
Engineers through
Society. Cambridge: Harvard
University Press,
1987.
de planos enunciativos teve origem na técnica.
A ausência de um narrador de carne e osso em
uma narrativa ficcional não é uma propriedade
semiótica da ficção mas do livro como objeto técnico; sem o livro, o narrador seria um contador
tão pouco ausente daquilo que enuncia quanto
o manipulador de marionetes em um espetáculo
de bunraku. Na verdade, Françoise e eu acreditávamos que seria possível comparar os regimes de
enunciação – é o termo que eu costumava usar naquela época –, passando de um regime a outro por
meio da atenção dedicada aos respectivos papéis
do enunciador, do receptor e do enunciado. Em
1986, escrevi um primeiro texto ami, para Anjo,
Máquina, Instrumento, tentando ordenar lado a
lado três desses regimes de enunciação, utilizando
um vocabulário comum para estabelecer a comparação. (Levei vinte e seis anos para passar de ami
a eme e a aime.) Infelizmente, o curso foi interrompido em 1988, com a morte de Françoise – já
que ela era a única pessoa que dominava a técnica
semiótica para desenvolver esse modelo.25
Se os leitores pensam que o livro sobre os modos de existência foi publicado na sequência dos
trabalhos de sociologia da ciência e da técnica, como se depois dos trabalhos empíricos, com uma
idade já mais avançada, eu tivesse voltado para a
filosofia, eles estão muito enganados. O livro que
nesse meio-tempo escrevi, Science in Action,26 foi
publicado em 1987, no momento em que eu escrevia a investigação sobre os diferentes regimes
de veridicção iniciada em 1986. Seguindo a circulação responsável pela produção de fatos e pela
construção de máquinas, Science in Action pode
ser lido como uma aplicação da teoria de redes, o
que ele certamente não deixa de ser, mas também
como um estudo de três regimes de verdade: a referência científica, os arranjos técnicos, ambos
opondo-se a esse Gênio do Mal da informação
Duplo Clique. De fato, ocorreram dois acontecimentos distintos: por um lado, meu encontro com
Isabelle Stengers, e, por outro, o imprevisto sucesso da teoria conhecida como ator-rede (em inglês
ant). Esse sucesso e as disputas que se seguiram
atrasaram a publicação do outro projeto que até
então eu não parava de perseguir.
Devo a Stengers, que conheci em 1978, as constantes interrupções que ela provocou em todas as
explicações sociais – mesmo as que foram aperfeiçoadas pelo ator-rede – que eu e Callon continuávamos desenvolvendo. A todos meus progressos
sócio-semióticos ela se opunha com um impetuoso
“eu entendo, mas, de qualquer modo”, e, com um
movimento brusco e circular da mão direta – movimento que só ela sabia fazer –, exigia que algo
fosse trazido à superfície na análise, algo que fosse
o mundo, mas apreendido de outra forma. Nem
os micróbios de Pasteur, a acoplagem impalpável
de Aramis, o metrô automático, as famosas vieiras
de Michel Callon, nenhum desses, apesar de muito bem apresentados, atuantes e ágeis, precisos e
trôpegos, ofereciam aos olhos de Stengers uma garantia satisfatória de que havíamos nos desprendido do texto, do social, do simbólico. Para alcançar
esse objetivo, seria necessário apreender o mundo
sem arrastar para dentro dele o tema humano e
sua obsessão pelo conhecimento compreendido
como a relação entre as palavras e as coisas.
Estou quase certo de que foi em 1987, enquanto conversávamos à borda da piscina de Treilles,
que ela compartilhou comigo uma surpreendente
citação de Whitehead, que nessa época ainda era
menos conhecido do que Gabriel Tarde, sobre o
risco assumido pelas pedras – sim, pelas pedras
– para assegurar suas próprias existências; devia
se tratar da famosa passagem da agulha de Cleó-
27
Alfred North
Whitehead, Concept of Nature,
Cambridge, Cambridge Univertity
Press, 1920.
28
Publicado em
Bruno Latour,
1998. Petite
philosophie de
l’énonciation.
Eloqui de senso.
Dialoghi semiotici
per Paolo Fabbri.
Orizzonti, compiti
e dialoghi della
semiotica. Saggi
per Paolo Fabbri,
P. Basso e L. Corrain (orgs.). Milão:
Costa & Nolan,
1988, pp. 71-94.
patra em Charing Cross, em Concept of Nature.27 Naquele mês de agosto, estendido sob o sol
em uma ilha ao longo de Göteborg, na Suécia, eu
não conseguia parar de passar o dedo na superfície vermelha e rugosa daquelas pedras, para verificar se Whitehead tinha mesmo razão... E então
tudo se esclareceu: o que eu tinha descoberto no
Quênia, e o que eu havia deduzido de forma obscura sobre o princípio de irredução: existe um modo de existência completamente autônomo, muito mal compreendido pela noção de natureza, e
de mundo material, de exterioridade, de objeto. E
esse modo divide com todos os outros o seguinte
traço essencial: o risco assumido para continuar a
existir. Assim, o hiato que eu detectara muito cedo na exegese, que eu tinha encontrado no estudo
das inscrições científicas, no percurso desarticulado dos cursos de ação, no surpreendente desvio
das técnicas, também aparecia ali, ali, a princípio,
na aparente continuidade do estar-ali. Uma epifania que se ligava a todas as outras, e em particular
àquela que eu tinha desenvolvido em Irréductions,
a irrupção de coisas “irreduzíveis e em descanso”.
Não havia nada de inevitável, de definitivo, de irremediável nas tribulações do sujeito e do objeto.
Era possível pensar de forma diferente.
A partir de então, tudo se encaixou muito rapidamente. Em junho de 1988, quando desci no
avião que me levou a Melbourne para passar dois
preciosos meses de total solidão – a santa solidão
–, em meio ao torpor causado pelo jetlag, consegui mapear com um só gesto o quadro que iria investigar mais sistematicamente.28 Tinha então 41
anos, três livros publicados, tudo poderia começar. Faltava ainda algum regime ou método, mas
o essencial havia sido feito, sobretudo o princípio
de comparação a partir de uma metalinguagem
que tem como único objetivo proteger o pluralis-
mo ontológico contra seu aniquilamento pelo esquema sujeito/objeto. Sobretudo o pequeno quadro – semiótico, teórico, filosófico, como se preferir chamá-lo – já não era contrário à implantação
de campos de pesquisa. Sem me contradizer, eu
poderia ser ao mesmo tempo filósofo, antropólogo e sociólogo: tudo leva à pesquisa, tudo surge
dela. Assim começou a aventura que os leitores
desse livro são convidados a prolongar hoje, participando dessa pesquisa.
29
Steven Shapin
e Simon Schaffer,
Leviathan and
the Air-Pump,
Hobbes, Boyle and
the Experimental
Life. Princeton:
Princeton University Press, 1985.
Antes de concluir, talvez seja útil lembrar a influência desses estudos sobre o esquema natureza/
cultura, já que ainda estamos falando de antropologia filosófica. Em nenhum momento esqueci o
choque da África, do neocolonialismo, do avanço da frente de modernização. Como fazer uma
antropologia que seja simétrica de verdade? Enquanto permaneci em Melbourne, preparei uma
longa revisão do livro fundamental de Shapin e
Schaffer sobre Hobbes e Boyle, Leviathan and
the Air-Pump, que acabava de ser lançado.29 Graças ao trabalho sobre os regimes de enunciação,
um resultado bastante significativo de antropologia simétrica foi encontrado: ao fornecer uma
descrição enfim realista das ciências, ao mostrar
seus equipamentos, trazendo os canais de referência para o primeiro plano, foi possível destacar a
representação na natureza tanto do trabalho das
ciências quanto do movimento dos seres abandonados a suas próprias sortes, movimento este que
Whitehead conseguiu finalmente me ensinar a respeitar. Torna-se então possível uma antropologia
dos Modernos, e ela vai transformar o esquema
natureza/cultura até então utilizado pelos antropólogos como recurso indispensável, em um tópico que, ao contrário, deve ser explorado (mais
uma vez, “the resource becomes the topic”).
30
Bruno Latour,
Nous n’avons
jamais été
modernes. Essai
d’anthropologie
symétrique. Paris:
La Découverte,
1991. Edição
brasileira: Jamais
fomos modernos.
Ensaio de antropologia simétrica,
tradução de Carlos
Irineu da Costa.
São Paulo: Editora
34, 2011 (1a edição, 1994).
O resultado não era insignificante, pois ele
tornou possível detectar o imenso abismo entre
a representação modernista da história – aquela
de uma frente de modernização – e a história real
– aquela de um entrelaçamento entre seres humanos e não humanos cada vez mais íntimo e sempre em maior escala. Mas, acima de tudo, abre-se, com outros coletivos – termo que substitui,
daí em diante, aquele termo muito antropocêntrico de “sociedade” – uma comparação menos distorcida pela ideia de uma frente de modernização
capaz de modernizar a longo prazo todo o planeta. Não são os “outros” realmente modernos?
Pois bem: nunca fomos modernos, e eles nunca
serão. Outra história totalmente diferente espera
por nós. Anunciada em 1991, a história do parlamento das coisas, vinte anos depois, só tem se
tornado mais atual.30 Modernizar ou ecologizar,
era preciso escolher.
Do meu ponto de vista, o principal interesse em Nous n’avons jamais été modernes [Jamais
fomos modernos], versão negativa de um argumento para o qual apresento hoje a versão positiva, é que ele iniciou uma colaboração muito mais
estreita com os antropólogos, os verdadeiros, sobre o pluralismo ontológico dos coletivos. Não se
trata, com Philippe Descola, com Eduardo Viveiros de Castro, Marylin Strathern, de comparar as
culturas com o plano de fundo da natureza, mas
de contrastar cada vez mais energicamente as ontologias das quais apenas uma, a nossa, utiliza o
esquema do mononaturalismo e do multiculturalismo. De serva da filosofia, a antropologia passa
a ser, se não sua amante, pelo menos sua colega:
ao passar a ser local ou regional, a ontologia tornou-se proporcionalmente mais profunda. É que,
ao que parece, a ciência do ser tem mais de um
truque na manga e o fim das restrições impostas
31
Philippe Descola, Par delà nature
et culture. Paris:
Gallimard, 2005.
pela noção de “representação simbólica de um
mundo material” abre um programa de pesquisa
mais fértil.
Entre a ciência do ser enquanto ser – a venerável disciplina de ontologia –, e a ciência do ser
enquanto outro – a antropologia –, novos laços
podem ser tecidos. Assim como as pessoas que
Descola considera naturalistas, os brancos, usuários frenéticos do esquema natureza/cultura, colocam em prática algo muito diferente, o que complica ainda mais, a meu ver, a descrição deles.31 O tema não é insignificante, porque a invasão cada vez
mais urgente das questões ecológicas obriga a se
prestar mais atenção nas relações da cosmologia
com a ciência. O termo cosmologia, no singular,
uma propriedade das ciências exatas, e o termo
cosmologias, no plural, utilizadas de forma um
pouco casual pelos antropólogos para descrever as
diversas visões do mundo, agora estão convergindo para um gabinete que se tornou o novo mundo
político, aquele da cosmopolítica contemporânea.
No final, o mistério sobre o que foram os Modernos continua intacto. O que aconteceu com
eles? Se não foi a natureza que eles descobriram
através das névoas de suas culturas, se não foi a
razão que finalmente projetou a luz nessa escuridão de representações, o que aconteceu de fato?
O que eles descobriram? De quê eles são herdeiros? Para responder a essas perguntas da antropologia filosófica, da ontologia regional, é preciso um método que forneça uma descrição satisfatória das situações que devem ser descritas.
Quantos sensores são necessários para fazer justiça aos valores disponibilizados pelos Modernos?
É à identificação desses sensores que eu tenho me
dedicado, na esperança que esse breve retorno à
origem da minha investigação estimule alguns leitores a ajudar-me a realizá-la.