Biografia de uma investigação — a propósito de
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Biografia de uma investigação — a propósito de
Bruno Latour Biografia de uma investigação — a propósito de um livro sobre modos de existência Projeto de um artigo para um dossiê sobre eme dos Arquivos de filosofia coordenado por Bruno Karsenti EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br Copyright © Bruno Latour, 2012 A fotocópia de qualquer folha deste livreto é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor. Tradução: Marcela Vieira 1 Bruno Latour, Enquête sur les modes d’existence, une anthropologie des Modernes. Paris: La Découverte, 2012. 2 Etienne Souriau, Les différents modes d’existence. Seguido de “L’Œuvre a faire” (com uma introdução intitulada “Le sphinx de l’œuvre”, de Isabelle Stengers e Bruno Latour). Paris: PUF, 2009 (1a ed., 1943). Para uma filosofia empírica, e não simplesmente empirista, a pesquisa oferece o único modo de desenterrar seus conceitos e de em seguida experimentá-los, antes de propor-lhes uma versão que possa ser submetida à crítica de seus pares. Entretanto, ainda que o gênero da pesquisa se beneficie, na filosofia, de um prestígio notório e intimidador, é muito raro que um autor queira organizá-lo com a participação de seus leitores. Mas é exatamente isso o que pretendo fazer ao publicar o livro Enquête sur les modes d’existence – une anthropologie des Modernes,1 baseado em um site virtual que possibilita aos visitantes – que nesse meio-tempo tornaram-se copesquisadores – examinar-lhe os argumentos antes de sugerir outros campos, outras provas, outros relatórios. Por meio desse dispositivo, proponho aos pesquisadores ajudarem-me a encontrar o fio da experiência, ficando atentos a vários regimes de verdades que eu chamo de modos de existência, de acordo com o peculiar livro epônimo de Etienne Souriau, recentemente reeditado.2 É o desdobramento desses métodos que me permite propor aos Modernos – a abrangência deste termo deve ser, evidentemente, esclarecida – uma descrição mais realista do que aquela que apresenta o advento da Razão ocidental, ou aquela autorizada por sua crítica. Minha hipótese é a de que nas áreas empíricas que até agora venho rastreando, cada um desses métodos permite respeitar uma certa tonalidade da experiência, da condição particular de felicidade e de infelicidade em cada caso, e, sobretudo – e é aí que as coisas se complicam –, eles permitem respeitar uma ontologia específica. Na realidade, cada método exige que encontremos seres distintos, aos quais é preciso se dirigir em suas próprias línguas. A clássica questão da filosofia “qual é o ser da técnica, da ciência, da religião, etc?” tornar-se-á, então: “quais são os seres da técnica, da ciência, da religião, e de que maneira os Modernos tentaram abordá-los?”. Porém, como justificar a multiplicação desses métodos, quando a civilização que se pretende estudar pensa a si mesma a partir de duas únicas categorias apenas, objeto e sujeito (é verdade que com mil combinações diferentes)? Quando meus leitores dizem que não entendem por que continuei a trocar de campo, e que não veem a lógica do conjunto de meus estudos – o que os leva a procurarem meus livros em diferentes prateleiras nas livrarias (e isso quando eles os encontram, ou melhor, se é que os procuram!) –, o comentário me faz rir porque não conheço nenhum outro autor que tenha seguido de forma tão obstinada um mesmo projeto de pesquisa, dia após dia, durante vinte e cinco anos, preenchendo o mesmo questionário e respondendo às mesmas perguntas. É aí que pode ser útil esclarecer como cheguei até essa inusitada forma de antropologia filosófica: não para contar minha vida – se um sistema é sólido, não há necessidade de se preocupar com o seu autor –, mas principalmente para traçar a biografia desse argumento, baseando-o em sua história. Ninguém se surpreenderia com o nascimento empírico de uma filosofia empírica. Neste artigo, eu gostaria de entregar-me ao exercício contraditório de narrar a caótica aparição de um argumento sistemático cuja persistência por quase trinta anos deixa a mim mesmo admirado. 3 Charles Péguy, Œuvres en prose 1909-1914. Paris: Gallimard, La Pléïade, 1961. 4 Rudolf Bultmann, L’histoire de la tradition synoptique (traduzida por André Malet). Paris: Seuil, 1971. Se eu voltar ao passado, ao passado consciente – e irei poupar o leitor das tribulações de meu inconsciente –, deveria começar pela convergência entre Charles Péguy e Rudolf Bultmann. Nos meses de setembro, apesar das importantes colheitas para o comércio de vinho, meus pais me levavam em peregrinação a Orléans, às “jornadas Péguy”. Se fui tão profundamente influenciado pela leitura de Clio é porque fusionei as lições desse grande hermeneuta, Clio, a musa, com a exegese bíblica, em que descobri com grande paixão uma meticulosa, devota e fértil erudição.3 Por sorte, eu, que naquela época era um militante católico, tive como professor de filosofia, na Universidade de Dijon, de 1966 a 1973, André Malet, pastor protestante e tradutor de Bultmann.4 Em suas mãos, que eram tão brilhantes quanto o pergaminho, o texto bíblico ficou finalmente compreensível, revelando-se como um longo processo de transformações, invenções, glosas, racionalizações diversas, cujo conjunto tramava uma malha de interpretações que, cada uma a seu modo, tratavam novamente – e esse é o ponto essencial – a questão da fidelidade ou da traição: invenção falsa ou fiel, repetição ímpia ou surpreendente redescoberta? Passávamos muito tempo fora da universidade, comparando, por exemplo, as variadas narrativas de ressurreição: elas deveriam ser lidas como narrativas informativas – de fato, o túmulo está vazio – ou como narrativas de transformação – o anjo com o dedo em riste ensina, por meio dessa narrativa, como as Escrituras devem ser lidas, como se o que elas dissessem pudesse ressuscitar aquele a quem elas eram dirigidas? Porque escaparam de uma forma inexplicável da transcendência e da imobilidade, porque se tornaram localizados, históricos, situados, artificiais, sim, inventados e constantemente reinven- 5 Bruno Latour, “La répétition de Charles Péguy”, em Péguy écrivain. Colloque du centenaire. Paris: Klincksieck, 1977, pp. 75-100. tados a cada novo turno, levantando a questão de suas veracidades, esses textos se tornaram ativos e acessíveis. A essa opressiva responsabilidade do leitor, evocada de forma tão maravilhosa em Clio, Bultmann oferecia uma descrição científica. Curiosamente, do meu ponto de vista, a desconstrução sistemática, pela exegese, de todas as certezas dogmáticas, longe de enfraquecer o valor de verdade que as sucessivas glosas não paravam de retomar, tornaram possível, por fim, que se questionasse a verdade religiosa; mas apenas com a condição de que se aceitasse a existência de um percurso de veridicção com suas próprias condições de felicidade, um percurso cujos traços permanecem na exegese e do qual Péguy, com seu estilo repetitivo, havia tentado recuperar a perturbadora tonalidade na virada do século xx. Em uma tese defendida em 1975 e logo entregue à crítica afiada dos ratos, inferi esse argumento na análise do evangelho de São Marcos e do “santo” Charles Péguy (acrescentei ainda outro santo, o poeta Saint John Perse, por razões que, confesso, hoje escapam-me completamente...). Um pouco de Derrida, de Lévi-Strauss e muito de Deleuze ajudava a conferir a esse argumento um brilho da época que nem Péguy nem Bultmann poderiam, evidentemente, proporcionar. Em minha análise, se os textos no túmulo vazio não transmitiam informação, eles faziam muito mais ao indicar a possibilidade de outros regimes de vozes verídicas e verificáveis.5 O que é certo é que eu saía desse período de formação armado de uma enorme mas muito paradoxal certeza no fato de que, quanto mais uma malha de textos fosse interpretada, transformada, artificial, retomada, recosturada, repetida e reformada, e a cada vez de forma diferente, mais chance ela teria em manifestar sua verdade intrínseca, com a condição – e é isso o que eu ia reservar para mais tarde – de que se saiba distinguir de outro modo a verdade, a informação pura e perfeita (que eu ainda não chamava de informação Duplo Clique, já que naquela época os mouses dos computadores ainda não faziam coçar nossas mãos)... Um longo combate contra a erradicação das mediações ia começar. Como ainda era possível escapar do serviço militar cumprindo “sua colaboração”, troquei a escola Gray, em Haute Saône, pela escola técnica de Abidjan. Pode-se imaginar a lavagem cerebral por que passaria um graduado em filosofia, provinciano, católico e burguês, que se vê transportado para o caldeirão da África neocolonial – e, além disso, acompanhado de mulher e filho? No Abidijan dos anos 1973-1975, descubro ao mesmo tempo as práticas mais predadoras do capitalismo, os métodos da etnografia e os enigmas da antropologia. Esta última, particularmente, não me abandonaria nunca mais: por que se utiliza a ideia de modernidade, de frente de modernização, de contraste entre o moderno e o pré-moderno, antes mesmo de se ter aplicado aos que se dizem civilizadores os próprios métodos de pesquisa aplicados aos “outros” – os quais se pretende senão civilizar completamente, pelo menos modernizar em certo grau? Por sorte, o campo proposto por meus colegas do orstom (hoje ird, Institut de Recherche pour le Développement [Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento]) refere-se justamente às usinas da Costa do Marfim e à inviável questão da marfinização dos administradores: por que os patrões expatriados não providenciam administradores africanos competentes o bastante para substituí-los? Imediatamente, sinto que se para responder a essa pergunta eu tivesse utilizado o esquema de 6 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’Anti-Œdipe: capitalisme et schizofrénie. Paris: Minuit, 1972. Edição brasileira: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011, 2a edição. uma disputa entre a modernização e o arcaísmo, eu nada teria entendido. Mas também percebo a ausência de um esquema alternativo, pois não se sabe descrever etnograficamente os significados dos adjetivos “racional”, “eficaz”, “competente”, “rentável”, todas essas qualidades – segundo o que me atestam, com a desdenhosa confiança dos expatriados – que parecem faltar aos administradores marfinianos. Percebo que tais adjetivos de combate e de conquista não resultam de qualquer descrição independente, são palavras de ordem ou gritos de guerra. Se se apressa em invocar as dimensões culturais, os limites cognitivos, as “almas negras” e as “mentalidades africanas”, é para não se ter o trabalho de refletir sobre uma definição que seja suficientemente material e concreta. Existe aí uma flagrante assimetria: os brancos antropologizam os negros – sim, e com muita eficiência –, mas eles mesmos não se deixam antropologizar. Ou então eles o fazem de modo falsamente distante, “exótico”, prendendo-se aos aspectos mais arcaicos de suas próprias sociedades – as festas municipais, a crença na astrologia, as refeições de primeira comunhão –, e não ao que me salta aos olhos (olhos que, na verdade, foram educados pela leitura coletiva do Anti-Édipo):6 as técnicas industriais, a economia, o “desenvolvimento”, a razão científica, etc., ou seja, tudo o que constitui o coro estrutural dos impérios em vias de expansão. Daí veio a ideia de aplicar os métodos das ciências sociais – principalmente a etnografia – às práticas mais modernas. Em 1975, a Califórnia parecia ser o centro mais avançado da humanidade, chamavam-na até mesmo de “cabeça pesquisadora”. Um amigo cientista de Dijon, Roger Guillemin (antigamente, menino de coro de um querido tio padre!), propôs que eu me juntasse 7 Bruno Latour e Jocelyn de Noblet (orgs.), Les “vues” de l’esprit. Visualiation et connaissance scientifique. Paris: Culture Technique, 1985. a ele em São Diego, no Instituto Salk, que acabava de ser inaugurado, caso eu conseguisse um financiamento. Eu precisava apenas de algumas páginas e poucas linhas para escrever o projeto de uma antropologia que iria oferecer aos que se dizem modernos e racionais uma descrição que fosse, finalmente, etnograficamente estruturada. Lembro-me até hoje do ar estupefato do agente consular encarregado de instruir-me sobre meu pedido de bolsa Fulbright, diante da confiança com que eu pretendia tornar a antropologia enfim simétrica! Eu achava completamente normal enraizar a antropologia comparada em uma trajetória que ia de Abidjan a São Diego, passando pelas velhas ruas pavimentadas de Baune, e percorrendo três dos mais diferentes tipos de modernidade. Direção: Estados Unidos; campo: laboratório científico. Em um desses cadernos guardados desde os treze anos, escrevi em algumas linhas o projeto de comparar os modos de verdade, primeiro indício de um livro que só viria a ser publicado quase quarenta anos mais tarde... Pode-se imaginar minha surpresa ao descobrir, no laboratório Guillemin, em 1975, naquele magnífico prédio de Louis Kahn com vista para o Pacífico, que, curiosamente, o trabalho científico assemelha-se à exegese que eu abandonara na Borgonha... Como bom etnógrafo, eu sabia que precisava desconfiar das ideias que flutuavam no ar, mas eu não acreditava que a sequência dos “registros” de toda essa ideografia de instrumentos imprimisse nessas famosas ideias uma força tão fértil.7 E, no entanto, naquela misteriosa fábrica de acontecimentos, tudo se esclareceria subitamente caso eu aceitasse acompanhar passo a passo as transformações dos documentos aos quais os pesquisadores vestidos de branco destinavam um interesse ao mesmo tempo obsessivo e com- 8 François Dagognet, Ecriture et iconographie. Paris: Vrin, 1974. pletamente descontraído. As coisas aconteciam como se houvesse a possibilidade de incorporar as ciências às frágeis e aparentemente impalpáveis tecnologias intelectuais. É verdade que eu recebia ajuda, não só de Derrida, mas também de François Dagognet, de quem o pequeno livro Écriture et iconographie8 oferecia ao cão de caça que eu era a pista que ele farejava com todo seu fôlego. Como foi que essa forma de materialidade pôde desaparecer tão completamente da epistologia, assim como a exegese bíblica da predicação dos dogmas católicos? Como explicar que, mais uma vez, o apelo a uma abusiva transcendência tenha conseguido dissimular a malha de textos, de documentos, cujos reparos constantes só poderiam produzir a verdade que se tentava, inutilmente, consolidar em um fundamento mais sólido? Como a veridicção científica poderia estar tão afastada da informação Duplo Clique, do mesmo modo que esta da verdade religiosa – no caso de nos depararmos com três tipos de veridicção, cada uma totalmente distinta da outra, e legítimas, a seu gênero e a seu modo? Como eu passava doze horas por dia no laboratório, costumava convidar todos os intelectuais de São Diego, para apresentar à sabedoria deles o enigma de uma antropologia científica que eu não sabia como decifrar. Por sorte, enquanto eu me colocava essas perguntas tão difíceis, descobri a semiótica, graças a Paolo Fabbri, e a etnometodologia, graças aos amigos da universidade, e, posteriormente, a Steve Woolgar. Ainda me lembro da minha admiração quando Fabbri, com seu adorável sotaque italiano e sua voz alta e aguda, apropriando-se de um texto que saía da maquinaria do laboratório – um texto cheio de diagramas e de fórmulas químicas sobre a descoberta de um neuropeptídio, que logo se tor- 9 Bruno Latour e Paolo Fabbri, “Pouvoir et devoir dans un article de science exacte”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1977, pp. 81-99. naria o célebre trf9 –, dedicou-se, muito tranquilamente, a analisá-lo ao modo greimasiano, como se se tratasse de um conto de fadas... Nas hábeis mãos de Paolo, a variada atuação dos atores não deveria mais ser confundida com a percepção de base dos actantes. Então eu logo compreendi que os personagens não humanos também tinham aventuras que poderíamos acompanhar se abandonássemos a ilusão de que eles eram ontologicamente diferentes dos seres humanos. O que vale é apenas a agency, suas capacidades de atuação e os diversos papéis que lhes foram atribuídos. Um mundo então se revelava, enquanto eu ainda não tinha terminado a investigação, e prestava-se – admiravelmente, deve-se reconhecer – aos princípios de uma antropologia comparada: os coletivos – eu ainda não utilizava essa definição – diferem-se pela atuação que eles atribuem aos actantes, pelos testes que eles destinam a seus personagens, mas nunca porque uns fossem realistas, racionais, reais, e os outros simbólicos, imaginários ou míticos. O poder da semiótica derivava, justamente, de sua sublime e radical indiferença ao realismo aparente dos sujeitos e dos atores sociais: essa era a condição ideal para seguir a originalidade das ciências que foram aniquiladas pela tarefa de imitar o mundo, corrompidas por serem tantas vezes confundidas com a informação sobre lamentáveis “matters of fact” isolados de qualquer questão. Somente a semiótica dos escritos e das inscrições científicas, livre do realismo comum, poderia implantar esse modo totalmente original de referência. Não é difícil compreender o motivo da minha excitação: eu sabia que esse fenômeno da circulação da verdade científica ao longo das cadeias das inscrições teria dificuldade em encontrar um lugar na filosofia, apesar do imenso prestígio atri- 10 Harold Garfinkel, Studies in Ethnomethodology. New Jersey: Prentice Hall, 1967. buído à Ciência. Na verdade, o caminho das inscrições ignorava ao mesmo tempo o sujeito conhecedor e o objeto conhecido; o modo de existência do conhecimento científico parecia merecer um habitat melhor do que o no man’s land entre as palavras e as coisas. Eu não imaginava que seria necessário mover céu e terra para dar-lhe o lugar que ele merecia, e que quarenta anos depois eu ainda estaria nessa mesma missão, armado de pá e picareta... A paixão pela semiótica – cujas garras, aliás, foram afiadas tanto nos textos bíblicos quanto na literatura de ficção – teria levado-me a uma simples “textualização” da atividade científica, caso eu não tivesse descoberto, paralelamente, nas pesquisas de Garfinkel, uma forma muito distinta de romper com o realismo social tão comum na sociologia.10 O estranho Gênio do jargão da etnometodologia vem da descoberta de que todo curso de ação, incluindo o mais comum, é constantemente interrompido por um minúsculo hiatus que requer, de tempos em tempos, a retomada inventiva do ator munido de seus próprios micrométodos. O desajeitado laboratorista que eu era multiplicava sem querer as experiências de “breaching” que revelavam, por contraste, a competência que meus colegas de laboratório adquiriram com muita dificuldade. Eu me sentia desencorajado pelo estilo de Garfinkel, mas compreendia que sua proposta era fazer para todos os relatórios (os accounts) o que eu já havia identificado na exegese religiosa e o que eu estava descobrindo na bancada do laboratório na exegese de textos científicos: nenhuma continuidade de um curso de ação pode acontecer sem uma repetição inventiva que fornecesse ao ator social as capacidades reflexivas, as fontes de inovação, e até mesmo as sociologias e ontologias cujo desdobramento ul- 11 Bruno Latour e Steve Woolgar, Laboratory Life. The Construction os Scientific Facts. Princeton: Princeton UniversityPress, 1986 (1a edição, 1979). 12 Bruno Latour, Rassembling the Social. An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005. trapassavam em muito as capacidades do etnólogo. O pesquisado sempre sabe mais do que o pesquisador. É por isso, aliás, que a filosofia de minha juventude me parecia tão indispensável: só ela foi selvagem o suficiente para conseguir acompanhar, sem grande espanto, as elucubrações dos agentes. Era através da metafísica que se pretendia tornar-se um bom etnógrafo. A ideia de que o ator não fosse mais considerado um “idiota cultural” (“a cultural dope”) ressoava maravilhosamente com o actante explorado pela semiótica. Felizmente, protegido pela minha ignorância brutal da sociologia, eu não poderia saber que Garfinkel seria tão radicalmente inassimilável pelas ciências sociais, assim como Greimas pela epistemologia. Nada então me impedia de utilizar os termos “social” e até “construção social” para descrever as aventuras dos seres não humanos que passavam a povoar os coletivos.11 Eu não poderia saber que seria preciso um quarto de século para livrar-me do mal-entendido criado pelo uso da palavra “social” e de todas as complicações dele decorrentes, para meu grande susto.12 Embora desde minha feliz infância em Beaune eu não houvesse tirado sequer um pé do mais sólido realismo, e apesar de eu ter sido um dos primeiros a finalmente descrever com precisão a materialidade das ciências, vi-me de repente acusado de um crime aparentemente abominável e que eu teria cometido por pura inadvertência: o questionamento da objetividade científica pelo “relativismo”. Em 1977, de volta à França à procura de colegas, fui parar na dgrst, na Rue de Varenne, com o resumo de um contrato para estudar a evolução da química biomolecular em que o autor, um certo Michel Callon da Escola das Minas, explicava friamente que não iria submeter minha análise 13 Gilbert Simondon, Du Mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1958. à supervisão preliminar dos químicos, já que ele pretendia explorar uma abordagem que fosse independente da autoridade científica. Ah! Eu tinha que conhecer o mais rápido possível aquele colega audacioso, intencionado em falar da ciência com uma tal liberdade! Esse encontro vai oferecer-me uma sorte extraordinária, permitindo-me trabalhar durante um quarto de século na calma do csi, o Centro de Sociologia e de Inovação. Graças a Michel Callon, eu seria apresentado aos estudos de campos industriais. Ora, os dispositivos técnicos que tivemos de traçar pelo viés das inovações (a inovação estava em voga naquela época, e havia muito dinheiro destinado a estudar suas origens), apresentava-nos uma forma de realismo que as noções de eficiência ou de rentabilidade não poderiam esgotar. No decurso de nossas pesquisas, reconstruímos o modo como os engenheiros deveriam ter desenhado todo um mundo para conseguir sustentar suas inovações mais arriscadas por um pouco mais de tempo. Aí, novamente, eu me deparava com um curso de ação que nenhuma continuidade, nenhuma grande necessidade, nenhuma causalidade um pouco sólida poderiam explicar. Mas o hiatus peculiar às novas técnicas – por definição, é sempre uma questão de romper com as práticas já existentes através da inovação – foi surpreendente na medida em que, no final, quando tudo estava no lugar e o dispositivo estava finalmente funcionando, houve um desvio por intermédio de um objeto com um status de fato muito estranho, o objeto técnico cujo “modo de existência” – e era a primeira vez que eu ouvia aquela expressão – fora proposto por Gilbert Simondon.13 Assim como as ciências compreendidas em sua prática não podiam ser mantidas no estreito âmbito da epistemologia, as técnicas, sobretudo as mais modernas, não podiam ser manti- 14 Bruno Latour, “Mixing Humans with Non-Humans, Sociology of a Door-Opener”, Social Problems, nº 35, 1988, pp. 298-310. 15 Michel Callon, “Pour une sociologie des controverses techniques”, Fundamenta Scientiae, nº 2, 1981, pp. 381-99. 16 Michel Callon, “Élements pour une sociologie de la traduction. La domestication des coquilles Saint-Jacques et des marins pêcheurs en baie de Saint-Brieuc”, L’année sociologique, nº 36, 1986, pp. 169-208. das na simples ideia de uma ação eficaz sobre a matéria: elas tinham a ver com a magia, com a religião, com a filosofia; elas tinham seu próprio mundo; eram cheias de métodos, artimanhas, cálculos, metafísica, e até mesmo moral; e, desconstruindo as fronteiras com os temas humanos, representavam um imenso desafio para a descrição etnográfica ou sociológica.14 Mas, além disso, de uma forma ainda mais radical, elas povoaram o coletivo com atores não humanos que, por um tipo de delegação, eram relevantes aos atores humanos pela quantidade vertiginosa de habilidades imprevistas. Na minha opinião e na de Callon, a armadura técnica era o que havia de mais “social” em uma sociedade, uma vez que se voltasse à etimologia do adjetivo e se permitisse seguir todas as associações necessárias à extensão de uma rede. Principalmente se a ela forem acrescentadas as técnicas intelectuais que se aprendeu a seguir a partir das pesquisas de laboratórios, e que acabaram misturando-se em toda parte com as organizações técnicas.15 Às máquinas, devia-se acrescentar os escritórios; às engrenagens, as técnicas contáveis; à resistência dos materiais, as agências de padronização. E, no entanto, aos olhos de nossos colegas das ciências legitimamente chamadas “sociais”, o social não parecia capaz de absorver essas múltiplas e lábeis conexões que tínhamos designado “tradução” por um empréstimo deliberado de Michel Serres.16 Seguíamos o curso de Serres todos os sábados, no esfumaçado anfiteatro – praticamente um “estábulo” – da Sorbonne (ainda se fumava dentro das salas naquela época!), sempre aproveitando a audácia com a qual Serres desenvolvia essa “antropologia das ciências” fundada naquele tão fértil princípio da exegese, segundo o qual a metalinguagem de um texto – poema, fábula, livro de memórias, ou tratado científico, não importava – só poderia ser encontrada no próprio texto, bastava procurá-la. Bela lição metodológica para seguir os “próprios atores”, uma abordagem compatível tanto com a semiótica quanto com a etnometodologia. Descrever, descrever e ainda descrever. A explicação e o contexto eram muito menos importantes do que reunir em uma limitada rede de interpretações um texto de Tito-Lívio, um argumento de René Girard ou um teorema topológico. Isso será explicado mais tarde, se houver tempo. 17 Shirley Strum, “Agonistic Dominance among Baboons: an Alternative View”, International Journal of Primatology, nº 3, 1982, pp. 175-202. A descoberta dos desvios e das delegações técnicas acrescentava a minha lista um novo modo cuja ontologia era muito mal explicada pela noção de “materialidade”. Eu começava a me perguntar se não seria o caso de trocar definitivamente de filosofia, quando tive a sorte – sempre ela – de receber um telefonema de um antropólogo californiano convidando-me a participar do primeiro congresso que reunia os especialistas em macacos Papio anubis, que passavam a ser estudados sistematicamente. Ela precisava de um observador das controvérsias entre os cientistas. Trinta e cinco anos depois, o choque do meu encontro com Shirley Strum, juntamente com a primatologia, com a etnologia, com a savana do Quênia e, sobretudo, com os macacos, não se desfez. Em primeiro lugar, eu estava descobrindo que uma intensa vida social – aquela das trupes dos babuínos que Shirley já acompanhava havia sete anos e que ainda em 2012 continuava a acompanhar! – era perfeitamente compatível com um uso extremamente limitado de instrumentos técnicos.17 Se os babuínos manifestavam uma complexidade social tão extraordinária, totalmente digna de Garfinkel, eles só faziam uso de suas patas. Era isso que confirmava – a Callon e a mim – nossas 18 Shirley Strum e Bruno Latour, “The Meanings of Social: from Baboons to Humans”, Information sur les Sciences Sociales/Social Science Information, nº 26, 1987, pp. 783-802. 19 Michel Callon e Bruno Latour, “Unscrewing the Big Leviathan: How Do Actors Macrostructure Reality”, Advances in Social Theory and Methodology: Toward an Integration of Micro and Macro Sociologies, K. Knorr & A. Cicourel (orgs.). Londres: Routledge, 1981, pp. 277-303. intuições sobre a fabricação técnica da sociedade: o que caracteriza os seres humanos não é a emergência do social, mas o desvio, a tradução, a inflexão de todos os cursos de ação em dispositivos técnicos cada vez mais complicados (mas não necessariamente mais complexos).18 Alguns anos depois de meu retorno desse trabalho de campo queniano, em 1979, escrevemos o texto que fundou a teoria do ator-rede, Unscrewing the great Leviathan, propondo uma teoria social bastante aberta para absorver as associações entre seres humanos e não humanos,19 sobretudo fazendo da mudança de escala a consequência de um emprego das técnicas materiais bem como organizacionais. A performatividade do social pelas ciências, incluindo a ciência econômica, financeira, administrativa, abria-se, assim, de forma mais ampla à pesquisa empírica. Ao passar do social às associações, o analista aproveitava-se, enfim, de uma liberdade de manobra tão grande quanto a de seus informantes, em vez de se fechar no estreito quadro da “dimensão social” de fenômenos científicos, técnicos, cujo conteúdo deveria escapar-lhe completamente. O que se pretendia observar eram as redes socio-técnicas em vias de expansão. Pusemo-nos a espalhar isso a torto e a direito; devíamos ter ficado insuportáveis naquela ocasião; mas, enfim, éramos jovens, apaixonados, e, além disso, tínhamos razão! A história ia nos provar isso, quero dizer, a história que a ecologia iria nos forçar, todos, seres humanos e não humanos, a considerar. Assim, pelo menos não seríamos pegos de surpresa; com as armas em punho, aguardamos esse novo mundo, ou melhor, nós o aguardávamos como servos do Evangelho, com a lâmpada já acesa... E, no entanto, por mais importante que ela fosse, não era essa invenção da “sociologia da tradução” que apreendi em minha longa convi- vência com Strum e, logo depois, com seu marido, David Western. Não, era a convivência com um modo, completamente maravilhoso para mim, de organismos vivos largados a suas próprias sortes. É claro que eu conhecia os laboratórios, e eu começava a medir o que as experiências tinham de artificial – no bom sentido do termo –; eu sabia muito bem que a paisagem do campo nada tinha de natural (sobretudo as videiras perfeitamente enfileiradas de minha Côte d’Or natal); mas como eu iria qualificar o espaço criado pelas trupes de babuínos que estavam sendo seguidos por seus pesquisadores – seguidos, e não precedidos, por eles, isso já diz tudo –; como não se desconcertar com essas trupes de macacos cujo caminho era atravessado por gazelas saltitantes, manadas de zebras e búfalos, e, de vez em quando, pelo deslizar silencioso de um paquiderme? Não, não, aquilo não era a natureza, a selvageria, a célebre “wildlife”; na verdade, sim, era tudo aquilo, como também eram muitas outras coisas; era o movimento dos fenômenos entregues a suas próprias sortes, mas sem a presença intimidadora dos seres humanos, que foram deixados fora da cena. E, no entanto, esses pesquisadores capazes de seguir – e não dominar – seu objeto de estudo produziam ciência, e muito boa ciência (que eu assimilava o mais rápido possível, dando aulas sobre a evolução das técnicas e da ecologia, na ucsd, ao lado de Shirley, quase todos os anos de 1979 a 1992). As diferentes práticas de primatologia, dos macacos presos em cadeiras de tortura nos laboratórios até os babuínos seguidos dia após dia por doutorandos entusiasmados, passando pelos chimpanzés presos nos zoológicos, foi uma linda lição de filosofia: encontravam-se aí todas as possíveis posturas do observador e do objeto observado, e compreendeu-se então a paixão que 20 Donna Haraway, Primate Visions. Gender, Race and Nature in the World of Modern Science Londres: Routledge and Kegan Paul, 1989. 21 Bruno Latour, Les microbes, guerre et paix, seguido de Irréductions. Paris: A.-M. Métailié, 1984 (reeditado em formato de bolso pela editora La Découverte, em 2002). tanto inspirou Donna Haraway (que conheci em 1981).20 Acompanhando a pé os babuínos, Shirley, no meio deles e tão invisível quanto a Atena grega no centro dos combates, explicava-me, em voz baixa, enquanto tomava notas, a impressionante complexidade dessas sociedades. Passei a imaginar outras relações entre o percurso do conhecimento e o do mundo conhecido. Mas para chegar até aí eu precisava de uma oportunidade para conhecer a “outra metafísica”, aquela de James e de Whitehead. Naquele momento, eu não tinha outras palavras para descrever a impressão causada por minha colaboração com Shirley e com os etnólogos, a não ser irredução. Foi essa expressão que deu origem ao tema de um pequeno “tratado científico-político” publicado em 1984,21 uma curiosa filosofia sem leitores, uma mistura um pouco estranha de teoria de redes, de nietzscheísmo então vigente, e de luta contra a epistemologia, tudo isso sob o fundo do fim da Guerra Fria. Com uma única intuição – a distinção entre as relações de força e as relações de razão faz com que tanto a força quanto a razão sejam incompreensíveis – misturada a uma completa e totalmente despercebida contradição: a intenção de conferir a todas as associações a mesma metalinguagem, em termos de tradução, redes e enteléquias. Se eu sempre senti simpatia por esse livro juvenil e mordaz é porque agora sei que se trata de um modo particular de existência – e não de uma filosofia irreducionista, como eu acreditava naquela época –, esse modo que permite a implementação das redes de associação heterogêneas e imprevistas, sem se deixar intimidar por outros domínios distintos. No final, fiz bem em demonstrar sua eficácia em um estudo histórico-semiótico sobre as descobertas de nosso compatriota Louis Pasteur. Como 22 Bruno Latour, Aramis, ou l’amour des techniques. Paris: La Découverte, 1992. modo, a análise das redes é indispensável para a investigação (eu demonstraria isso a partir do caso delicioso de um metrô automatizado),22 mas, como todos os modos, ela tende à hegemonia e à não compreensão dos outros. Até hoje, se me perguntassem “qual é sua filosofia?” eu só saberia responder dizendo: “leia Irréductions”. (Não se preocupem: nunca alguém me dirigiu tal pergunta, uma vez que o tumulto das discussões sobre o relativismo e a guerra das ciências transformaram-me, nesse meio-tempo, em um simples sociólogo defensor de uma “construção social” segundo a qual “tudo está valendo”, tanto a ciência objetiva quanto a magia, a superstição e os discos voadores...). Para melhor entender como as coisas acabaram se ligando, dois outros encontros precisam ser considerados – um pensamento parece ser o resultado de encontros decisivos cujos efeitos se buscam na mais total solidão (sem a solidão, nada acontece; sem os encontros, tampouco). Logo depois de minha volta a Paris, Paolo Fabbri apresentou-me a Françoise Bastide, fisiologista e semioticista sem igual, com quem tive a sorte de trabalhar até sua morte prematura, em 1988. Françoise, com toda a seriedade de uma celibatária e protestante, aplicava nos textos o mesmo e absoluto respeito que mostrara em relação aos rins, quando, indo contra a maré, estudou seu sutil funcionamento, em um laboratório do Collège de France. Especialista em textos científicos, ela sabia muito bem (porque os tinha escrito) que a semiótica, apesar de pretender jamais se afastar dos textos, na verdade nunca deixou de confiar naquilo que acontecia fora deles, na prática. O enigma era descobrir como abordar aquela prática sem cair nos clichês sobre os indivíduos falantes compreendidos em um contexto social e material. Era preciso 23 Bruno Latour e Françoise Bastide, “Essai de science fabrication”, Études françaises, nº 19, 1983, pp. 111-33. 24 Bruno Latour, “A Relativist Account of Einstein’s Relativity”, Social Studies of Science, nº 18, 1988, pp. 3-44. estender as intuições da semiótica para além de seu quadro original – os textos bíblicos e as ficções literárias –, sem abrir mão de sua independência em relação ao realismo comum. Greimas, cuja brilhante cabeça desaparecia por trás da fumaça emanada de seu seminário, encorajava-nos nesse projeto, sorrindo (o cigarro provavelmente deve tê-lo matado, assim como o fez com Françoise). É aí que aperfeiçoamos uma pequena máquina fundada na teoria da enunciação. Os textos de ficção não precisam se preocupar com isso: uma vez que a enunciação foi produzida nos quadros de referência de um texto – porque sempre se trata de um texto –, os percursos narrativos são fáceis de ser seguidos. Ora, esse pode não ser o caso de pelo menos dois regimes de enunciação: os instrumentos científicos e os dispositivos técnicos. Para eles, certamente, a embreagem enunciativa, e especialmente a reembreagem, devem ser seguidas com cuidado. Os personagens não figurativos de um texto científico podem muito bem viajar como os seres ficcionais, mas eles precisam voltar para trazer algo que se encontra nas mãos do enigmático enunciador, aquele cuja presença não tem importância em um texto de ficção, já que ninguém pergunta a Flaubert se ele tem a certidão de nascimento de Bovary.23 Einstein e seus pequenos personagens relativistas nos serviram como teste que nos permitiu identificar a estranheza dessa ficção no caminho da verificação gradual.24 Mas é com o objeto técnico que tivemos mais dificuldade, porque ele explode o quadro textual. Mas, no entanto, não é a materialidade que apresenta o problema; aí, também, trata-se do papel particular do enunciador capaz de se ausentar, porque o objeto permanece sem ele. Na verdade, percebemos isso muito rápido, a própria possibilidade dessa famosa embreagem 25 Françoise Bastide, Una notte con Saturno. Scritti semiotici sul discorso scientifico. Roma: Meltemi, 2001. 26 Bruno Latour, Science in Action. How to Follow Scientists and Engineers through Society. Cambridge: Harvard University Press, 1987. de planos enunciativos teve origem na técnica. A ausência de um narrador de carne e osso em uma narrativa ficcional não é uma propriedade semiótica da ficção mas do livro como objeto técnico; sem o livro, o narrador seria um contador tão pouco ausente daquilo que enuncia quanto o manipulador de marionetes em um espetáculo de bunraku. Na verdade, Françoise e eu acreditávamos que seria possível comparar os regimes de enunciação – é o termo que eu costumava usar naquela época –, passando de um regime a outro por meio da atenção dedicada aos respectivos papéis do enunciador, do receptor e do enunciado. Em 1986, escrevi um primeiro texto ami, para Anjo, Máquina, Instrumento, tentando ordenar lado a lado três desses regimes de enunciação, utilizando um vocabulário comum para estabelecer a comparação. (Levei vinte e seis anos para passar de ami a eme e a aime.) Infelizmente, o curso foi interrompido em 1988, com a morte de Françoise – já que ela era a única pessoa que dominava a técnica semiótica para desenvolver esse modelo.25 Se os leitores pensam que o livro sobre os modos de existência foi publicado na sequência dos trabalhos de sociologia da ciência e da técnica, como se depois dos trabalhos empíricos, com uma idade já mais avançada, eu tivesse voltado para a filosofia, eles estão muito enganados. O livro que nesse meio-tempo escrevi, Science in Action,26 foi publicado em 1987, no momento em que eu escrevia a investigação sobre os diferentes regimes de veridicção iniciada em 1986. Seguindo a circulação responsável pela produção de fatos e pela construção de máquinas, Science in Action pode ser lido como uma aplicação da teoria de redes, o que ele certamente não deixa de ser, mas também como um estudo de três regimes de verdade: a referência científica, os arranjos técnicos, ambos opondo-se a esse Gênio do Mal da informação Duplo Clique. De fato, ocorreram dois acontecimentos distintos: por um lado, meu encontro com Isabelle Stengers, e, por outro, o imprevisto sucesso da teoria conhecida como ator-rede (em inglês ant). Esse sucesso e as disputas que se seguiram atrasaram a publicação do outro projeto que até então eu não parava de perseguir. Devo a Stengers, que conheci em 1978, as constantes interrupções que ela provocou em todas as explicações sociais – mesmo as que foram aperfeiçoadas pelo ator-rede – que eu e Callon continuávamos desenvolvendo. A todos meus progressos sócio-semióticos ela se opunha com um impetuoso “eu entendo, mas, de qualquer modo”, e, com um movimento brusco e circular da mão direta – movimento que só ela sabia fazer –, exigia que algo fosse trazido à superfície na análise, algo que fosse o mundo, mas apreendido de outra forma. Nem os micróbios de Pasteur, a acoplagem impalpável de Aramis, o metrô automático, as famosas vieiras de Michel Callon, nenhum desses, apesar de muito bem apresentados, atuantes e ágeis, precisos e trôpegos, ofereciam aos olhos de Stengers uma garantia satisfatória de que havíamos nos desprendido do texto, do social, do simbólico. Para alcançar esse objetivo, seria necessário apreender o mundo sem arrastar para dentro dele o tema humano e sua obsessão pelo conhecimento compreendido como a relação entre as palavras e as coisas. Estou quase certo de que foi em 1987, enquanto conversávamos à borda da piscina de Treilles, que ela compartilhou comigo uma surpreendente citação de Whitehead, que nessa época ainda era menos conhecido do que Gabriel Tarde, sobre o risco assumido pelas pedras – sim, pelas pedras – para assegurar suas próprias existências; devia se tratar da famosa passagem da agulha de Cleó- 27 Alfred North Whitehead, Concept of Nature, Cambridge, Cambridge Univertity Press, 1920. 28 Publicado em Bruno Latour, 1998. Petite philosophie de l’énonciation. Eloqui de senso. Dialoghi semiotici per Paolo Fabbri. Orizzonti, compiti e dialoghi della semiotica. Saggi per Paolo Fabbri, P. Basso e L. Corrain (orgs.). Milão: Costa & Nolan, 1988, pp. 71-94. patra em Charing Cross, em Concept of Nature.27 Naquele mês de agosto, estendido sob o sol em uma ilha ao longo de Göteborg, na Suécia, eu não conseguia parar de passar o dedo na superfície vermelha e rugosa daquelas pedras, para verificar se Whitehead tinha mesmo razão... E então tudo se esclareceu: o que eu tinha descoberto no Quênia, e o que eu havia deduzido de forma obscura sobre o princípio de irredução: existe um modo de existência completamente autônomo, muito mal compreendido pela noção de natureza, e de mundo material, de exterioridade, de objeto. E esse modo divide com todos os outros o seguinte traço essencial: o risco assumido para continuar a existir. Assim, o hiato que eu detectara muito cedo na exegese, que eu tinha encontrado no estudo das inscrições científicas, no percurso desarticulado dos cursos de ação, no surpreendente desvio das técnicas, também aparecia ali, ali, a princípio, na aparente continuidade do estar-ali. Uma epifania que se ligava a todas as outras, e em particular àquela que eu tinha desenvolvido em Irréductions, a irrupção de coisas “irreduzíveis e em descanso”. Não havia nada de inevitável, de definitivo, de irremediável nas tribulações do sujeito e do objeto. Era possível pensar de forma diferente. A partir de então, tudo se encaixou muito rapidamente. Em junho de 1988, quando desci no avião que me levou a Melbourne para passar dois preciosos meses de total solidão – a santa solidão –, em meio ao torpor causado pelo jetlag, consegui mapear com um só gesto o quadro que iria investigar mais sistematicamente.28 Tinha então 41 anos, três livros publicados, tudo poderia começar. Faltava ainda algum regime ou método, mas o essencial havia sido feito, sobretudo o princípio de comparação a partir de uma metalinguagem que tem como único objetivo proteger o pluralis- mo ontológico contra seu aniquilamento pelo esquema sujeito/objeto. Sobretudo o pequeno quadro – semiótico, teórico, filosófico, como se preferir chamá-lo – já não era contrário à implantação de campos de pesquisa. Sem me contradizer, eu poderia ser ao mesmo tempo filósofo, antropólogo e sociólogo: tudo leva à pesquisa, tudo surge dela. Assim começou a aventura que os leitores desse livro são convidados a prolongar hoje, participando dessa pesquisa. 29 Steven Shapin e Simon Schaffer, Leviathan and the Air-Pump, Hobbes, Boyle and the Experimental Life. Princeton: Princeton University Press, 1985. Antes de concluir, talvez seja útil lembrar a influência desses estudos sobre o esquema natureza/ cultura, já que ainda estamos falando de antropologia filosófica. Em nenhum momento esqueci o choque da África, do neocolonialismo, do avanço da frente de modernização. Como fazer uma antropologia que seja simétrica de verdade? Enquanto permaneci em Melbourne, preparei uma longa revisão do livro fundamental de Shapin e Schaffer sobre Hobbes e Boyle, Leviathan and the Air-Pump, que acabava de ser lançado.29 Graças ao trabalho sobre os regimes de enunciação, um resultado bastante significativo de antropologia simétrica foi encontrado: ao fornecer uma descrição enfim realista das ciências, ao mostrar seus equipamentos, trazendo os canais de referência para o primeiro plano, foi possível destacar a representação na natureza tanto do trabalho das ciências quanto do movimento dos seres abandonados a suas próprias sortes, movimento este que Whitehead conseguiu finalmente me ensinar a respeitar. Torna-se então possível uma antropologia dos Modernos, e ela vai transformar o esquema natureza/cultura até então utilizado pelos antropólogos como recurso indispensável, em um tópico que, ao contrário, deve ser explorado (mais uma vez, “the resource becomes the topic”). 30 Bruno Latour, Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Découverte, 1991. Edição brasileira: Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica, tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2011 (1a edição, 1994). O resultado não era insignificante, pois ele tornou possível detectar o imenso abismo entre a representação modernista da história – aquela de uma frente de modernização – e a história real – aquela de um entrelaçamento entre seres humanos e não humanos cada vez mais íntimo e sempre em maior escala. Mas, acima de tudo, abre-se, com outros coletivos – termo que substitui, daí em diante, aquele termo muito antropocêntrico de “sociedade” – uma comparação menos distorcida pela ideia de uma frente de modernização capaz de modernizar a longo prazo todo o planeta. Não são os “outros” realmente modernos? Pois bem: nunca fomos modernos, e eles nunca serão. Outra história totalmente diferente espera por nós. Anunciada em 1991, a história do parlamento das coisas, vinte anos depois, só tem se tornado mais atual.30 Modernizar ou ecologizar, era preciso escolher. Do meu ponto de vista, o principal interesse em Nous n’avons jamais été modernes [Jamais fomos modernos], versão negativa de um argumento para o qual apresento hoje a versão positiva, é que ele iniciou uma colaboração muito mais estreita com os antropólogos, os verdadeiros, sobre o pluralismo ontológico dos coletivos. Não se trata, com Philippe Descola, com Eduardo Viveiros de Castro, Marylin Strathern, de comparar as culturas com o plano de fundo da natureza, mas de contrastar cada vez mais energicamente as ontologias das quais apenas uma, a nossa, utiliza o esquema do mononaturalismo e do multiculturalismo. De serva da filosofia, a antropologia passa a ser, se não sua amante, pelo menos sua colega: ao passar a ser local ou regional, a ontologia tornou-se proporcionalmente mais profunda. É que, ao que parece, a ciência do ser tem mais de um truque na manga e o fim das restrições impostas 31 Philippe Descola, Par delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005. pela noção de “representação simbólica de um mundo material” abre um programa de pesquisa mais fértil. Entre a ciência do ser enquanto ser – a venerável disciplina de ontologia –, e a ciência do ser enquanto outro – a antropologia –, novos laços podem ser tecidos. Assim como as pessoas que Descola considera naturalistas, os brancos, usuários frenéticos do esquema natureza/cultura, colocam em prática algo muito diferente, o que complica ainda mais, a meu ver, a descrição deles.31 O tema não é insignificante, porque a invasão cada vez mais urgente das questões ecológicas obriga a se prestar mais atenção nas relações da cosmologia com a ciência. O termo cosmologia, no singular, uma propriedade das ciências exatas, e o termo cosmologias, no plural, utilizadas de forma um pouco casual pelos antropólogos para descrever as diversas visões do mundo, agora estão convergindo para um gabinete que se tornou o novo mundo político, aquele da cosmopolítica contemporânea. No final, o mistério sobre o que foram os Modernos continua intacto. O que aconteceu com eles? Se não foi a natureza que eles descobriram através das névoas de suas culturas, se não foi a razão que finalmente projetou a luz nessa escuridão de representações, o que aconteceu de fato? O que eles descobriram? De quê eles são herdeiros? Para responder a essas perguntas da antropologia filosófica, da ontologia regional, é preciso um método que forneça uma descrição satisfatória das situações que devem ser descritas. Quantos sensores são necessários para fazer justiça aos valores disponibilizados pelos Modernos? É à identificação desses sensores que eu tenho me dedicado, na esperança que esse breve retorno à origem da minha investigação estimule alguns leitores a ajudar-me a realizá-la.