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Colecção PÚBLICOS Nº 3
EXPOSIÇÕES
Diferentes
Perspectivas
Coordenação: Fátima Marques Pereira
Edição financiada pela Medida 4.2. Desenvolvimento e Modernização das Estruturas e Serviços
de Apoio ao Emprego e Formação; Tipologia 4.2.2. Desenvolvimento de Estudos e Recursos
Didácticos
ÍNDICE
007
Prefácio
João Teixeira Lopes
Introdução
011
“Singularidade vs Pluralidade vs Igualdade nas Diferentes Perspectivas”
Fátima Marques Pereira
CAPÍTULO I
Diferentes Perspectivas – Circuito Institucional Público Permanente
017
1. As Diferentes Experiências
Margarida Veiga
023
2. Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea - Câmara Municipal de Almada
Ana Isabel Ribeiro
027
3. Museu do Chiado
Pedro Lapa
032
4. Universidade de Aveiro – Fábrica da Ciência Viva de Aveiro
Paulo Renato Trincão
CAPÍTULO II
Diferentes Perspectivas – Circuito Institucional Público Pontual
045
1. Exposições Universais – EXPO 98
João Paulo Velez
053
2. Lisboaphoto2005
Sérgio Mah
CAPÍTULO III
Diferentes Perspectivas – Circuito Institucional Misto
057
1. Arte Lisboa – Feira Internacional de Arte Contemporânea
Ivânia Gallo
CAPÍTULO IV
Diferentes Perspectivas – Circuito Institucional Privado
063
1. Ellipse Foundation – Contemporary Art Collection
João Oliveira Rendeiro
067
2. BES Art – Colecção Banco Espírito Santo
Alexandra Fonseca Pinho
CAPÍTULO V
Diferentes Perspectivas – Circuito Institucional Comercial
075
1. Galeria Cristina Guerra
Cristina Guerra
078
2. Galeria Pedro Oliveira
Pedro Oliveira
CAPÍTULO VI
Diferentes Perspectivas – Protagonistas
083
1. Julião Sarmento
098
2. Manuel Aires Mateus
CAPÍTULO VII
Diferentes Perspectivas – Estudos de Caso
121
1. “Portugal, Arquitectura do Século XX”
Ana Tostões
128
2. Cooperativa Curtas Metragens CRL – Cooperativa de Produção Cultural – CRL
Dario Oliveira, Mário Micaelo, Miguel Dias e José Nuno Rodrigues
132
3. “Curadoria Interdisciplinar”
Paulo Cunha e Silva
146
4. “Expor a Arquitectura: Mediações de uma Profissão em Transformação”
Pedro Gadanho
155
Bibliografia Recomendada
157
Sites
PREFÁCIO
João Teixeira Lopes
007
Públicos são comunidades de estranhos, efémeras e contigentes, que se formam pela
convocatória de um discurso e pela apropriação reflexiva de sentido. Comunidades que, no
entanto, apesar de pouco cristalizadas, assentam na possibilidade de acrescentar mundos aos
mundos da vida.
Públicos são os espaços de livre acesso, nós de articulação das cidades fragmentadas, onde
não existe, de antemão, um percurso predefinido, uma realidade preexistente ou um sentido
único. Lugares onde vemos e somos vistos, estranhos que somos, nós no lugar do Outro, o
estranho do estranho.
Públicos são os conteúdos destes volumes, de distribuição gratuita, onde se abordam temáticas,
associadas ao desenvolvimento imaterial e simbólico e aos chamados sectores criativos das
sociedades modernas: Leitura(s), Serviços Educativos na Cultura, Exposições, Gestão Cultural
do Território e Comunicação de Ciência.
Três pressupostos essenciais presidiram à organização desta colecção: em primeiro lugar, a
qualidade dos textos, solidamente ancorada na experiência e conhecimento dos autores. Em
segundo lugar, a pluralidade de pontos de vista, longe de uma escrita e pensamento únicos,
enquanto estímulo à diversidade de leituras e ao jogo de cruzamentos que o leitor poderá
accionar: complementaridades, conflitos, sínteses, bricolagem de conteúdos… Em terceiro
lugar, finalmente, o equilíbrio entre a actualidade e o rigor dos conteúdos e a clareza na sua
apropriação, capaz de propiciar, assim o pensamos, um alargamento dos públicos potenciais
desta colecção. Ela dirige-se, na verdade, aos especialistas das diferentes áreas, mas, também,
aos chamados «novos intermediários culturais», aqueles e aquelas que lidam com a produção,
difusão e manuseamento da informação e do conhecimento.
O valor simbólico das sociedades actuais está à vista de todos. Importa, por isso, desenvolver
lógicas de cidadania activa, o que requer uma franca, plural e permanente actualização de
repertórios. Ditas de risco, as nossas sociedades são também reflexivas, já que, cada vez mais,
os nossos comportamentos incorporam capital informacional.
Urge, ainda, que sejam sociedades críticas e exigentes, que tenhamos consciência não só dos
limites e constrangimentos (as portas que se fecham), mas também das possibilidades de
mudança (as janelas que se abrem) nos profissionalismos da inovação e da criatividade.
008
João Teixeira Lopes é sociólogo. Professor Associado com Agregação do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto e coordenador do Instituto de Sociologia, unidade de I&D da Fundação de Ciência e Tecnologia.
Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Doutorado em Sociologia da
Cultura e da Educação com a Dissertação – A Cidade e a Cultura - Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,
Edições Afrontamento, 2000).
Membro efectivo do Observatório das Actividades Culturais entre 1996 e 1998 e seu actual colaborador. Foi programador
de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, assessor do Presidente da Câmara de Matosinhos para os assuntos sócioculturais
(2000-01), fez parte de equipas de estudo e avaliador de projectos.
Escreveu, entre 1996 e 2007, dez livros, quatro dos quais em co-autoria, e co-organizou outros dois.
009
010
INTRODUÇÃO
011
“SINGULARIDADE vs PLURALIDADE vs IGUALDADE NAS DIFERENTES
PERSPECTIVAS”
Fátima Marques Pereira - Coordenadora da Publicação
Ao recebermos este convite da Setepés para participar na Colecção “Públicos” a fim de
coordenar o livro referente a “Exposições” foi-nos entregue um texto, onde, por um lado, são
focalizados os objectivos gerais da colecção e, por outro, a razão que levou esta “empresa do
sector criativo exercendo a sua actividade na cultura, na arte e na comunicação da ciência” a
editar uma colecção com temáticas tão específicas como as propostas (Colecção de 5 títulos:
Serviços Educativos; Exposições; Gestão Cultural do Território; Leituras; Comunicação em
Ciência).
No ponto que se refere aos objectivos, a Setepés preocupou-se, fundamentalmente, com duas
questões: uma que assenta numa publicação com um carácter didáctico, a outra que se prende
com a necessidade de divulgação deste tipo de suporte documental, quer para o ensino
profissional e superior, quer para instituições artísticas e culturais (públicas e privadas) que
actuem nas temáticas destas diferentes publicações.
A razão que levou a Setepés a criar este projecto – Colecção “Públicos” – transformou-se nos
objectivos do mesmo. Neste sentido, segundo esta empresa: “No panorama editorial nacional
são escassas as publicações didácticas que sirvam de suporte aos profissionais que trabalham
nestas áreas. Esta realidade não tem permitido um conhecimento alargado quer dos trabalhos
teóricos que têm vindo a ser produzidos quer das boas práticas deste sector em Portugal. A
colecção “Públicos”, de que o número dedicado ao tema “exposições” é um exemplo, é uma
iniciativa da Setepés para, de um modo modesto, contribuir para alterar aquele panorama. A
distribuição destas edições será inteiramente gratuita”.
Deste modo, quando começámos a desenhar a organização desta publicação, pensámos que
a melhor estrutura para operacionalizá-la pelas suas características didácticas, deveria centrar-se em dois pontos referenciais, que, naturalmente, dialogam e se relacionam.
O primeiro ponto assenta numa mostra o mais alargada possível ao nível de diferentes
perspectivas, (ligadas directa ou indirectamente à temática da publicação: “Exposições”), que
abarquem os distintos circuitos, quer institucionais públicos (permanentes e pontuais), quer
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institucionais públicos/privados/mistos/comerciais, quer em estudos de caso, não esquecendo
a perspectiva dos próprios protagonistas que objectivam a “Exposição”. O segundo ponto, e
ainda no sentido de uma apresentação abrangente ao nível de diferentes perspectivas, de modo
a que a mesma não levasse a uma hipotética leitura condicionada ou redutora em termos dos
“objectos” a expor, baseia-se numa abordagem, igualmente, diversificada no que se refere aos
“objectos” que corporizam o tão alargado universo da realidade expositiva.
Tanto um ponto como outro são referenciais e tocam-se nesta temática das “Exposições”, na
medida em que ambos são inseparáveis: se por um lado o “objecto” existe para a realização
da “exposição”, a mesma só pode ser realizada se existe um “espaço” que a vá albergar e
operacionalizar. Trata-se, deste modo, de corpos criados por diferentes olhares e encerrados
num corpo espacial. A aliança incontestável e eterna entre “objecto” e “espaço” estruturam
e sistematizam a desejada “Exposição”.
Foram, então, estes os pontos de referência – “Objectos” e “Espaço” – que nos levaram a
construir a estrutura desta publicação e que conduziram à metodologia utilizada para a
organização da mesma.
Assim a metodologia baseou-se, primeiramente, num estudo de cada instituição (circuitos
institucionais públicos, privados, mistos e comerciais – “espaços”) juntamente com os conteúdos
desenvolvidos ao nível dos “objectos”, à excepção de alguns dos estudos de caso em que o
estudo se concentrou, essencialmente, no trabalho realizado a diferentes níveis e dos
protagonistas em que a análise se dirigiu, primordialmente, ao trabalho pessoal produzido ao
longo das suas carreiras, e à relação estabelecida ao longo das mesmas com as instituições
e com os responsáveis que o promovem/divulgam. Quanto aos estudos de caso, a ideia passou
por uma mostra de experiências profissionais que marcassem alguma diferença no contexto
das “Exposições”, quer ao nível da forma, quer ao nível do conteúdo.
Neste sentido, a metodologia conduziu à realização de um levantamento de questões ou pontos
assinalados de acordo com as diferentes instituições e protagonistas. A colaboração nesta
publicação passou, então, por um pedido aos diferentes autores para escreverem um texto,
tendo como referência os pontos assinalados, ou respondendo directamente aos mesmos
como depoimento. Se alguns responderam directamente como depoimento e outros optaram
por elaborar um texto partindo dos pontos assinalados que lhes foram enviados, a outros foi-
lhes feita uma entrevista directa, e outros, ainda, enviaram textos sobre o trabalho que
desenvolveram e desenvolvem. É de salientar que, para além das instituições apresentadas,
outras foram contactadas, mas não obtivemos delas qualquer resposta.
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Deste modo, a metodologia utilizada serviu como ponte para responder a um dos objectivos
principais desta publicação: dar ao leitor uma visão o mais alargada possível dos diferentes
intervenientes pertencentes à esfera das “Exposições”.
A “fuga” à perspectiva da ideia de realização/efectivação de “Exposições” foi propositada, na
medida em que a sua concretização se reduz a uma, duas, três ou até quatro ou cinco “receitas”.
No fundo, a concepção no sentido da objectivação da “Exposição” passa, naturalmente, por
uma série de pontos que de uma ou de outra forma se vão repetindo, sendo que, obviamente,
podem existir excepções. Assim, todo o processo logístico que rodeia uma “Exposição”
permanente, temporária e itinerante passa por questões práticas de pré-produção, produção
e pós-produção, sendo que, espontaneamente, estas dependem do tipo de projecto de “Exposição”
a desenvolver, não só ao nível do conteúdo que, inegavelmente, leva à forma da “Exposição”,
como ao nível dos espaços. Nunca esquecendo que os objectivos teóricos, que se prendem
com a conceptualização da “Exposição”, portanto referentes ao conteúdo da mesma, vão
responder aos objectivos práticos que levam à formalização de toda a conceptualização e
objectivação teórica. De forma alguma esta “fuga” pretendeu minorar todo o trabalho, e toda
uma vasta equipa que envolve a realização de uma “Exposição”. Apenas pretendemos, com
esta abordagem, apontar questões e focar perspectivas do ponto de vista público menos visíveis,
no sentido em que estão muito mais direccionadas para os próprios circuitos.
A reflexão actual sobre o território da “Exposição” passa, claramente, pela permanente e
constante mutação da sociedade contemporânea. Hoje, os olhares e as leituras dos diferentes
intervenientes no conceito de “exposição” deparam-se com a natural efervescência da
transformação sistemática da sociedade e do fluxo permanente da vida em contínuo crescimento
aos níveis cultural, artístico, social, político, económico e tecnológico. A transmutação, a
transversalidade, a fusão, a independência, a curiosidade ininterrupta pelos diferentes níveis
do conhecimento sustentam e acolhem uma “nova” contextualização do conceito de “Exposição”.
O “Homem”, os “objectos” e os “espaços” constituem uma espécie de triângulo, onde em cada
um dos seus vértices se enclaustra em si mesmo uma função. O “Homem” como ser racional
e emocional que é tem a capacidade de estruturar ideias e pensamentos em qualquer que seja
a área. Desta forma cria, projecta, constrói, produz e executa “objectos” e “espaços”, “objectos”
estes que irão ocupar os “espaços”. “Espaços” e “objectos” geridos, igualmente, pelo “Homem”.
“Espaços” e “objectos” visitados, olhados, sentidos e (re)interpretados, novamente, pelo
“Homem”. Neste sentido, são vários os intervenientes no conceito de “Exposição”, sendo que
o “Homem” encerra em si mesmo a responsabilidade total do conceito de “Exposição”, na
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medida em que o “Homem” produz “objectos” (produtor/artista/autor), constrói “espaços”
(produtor/arquitecto/autor), gere “espaços”, “objectos” e “homens” (gestor/director
/presidente/equipa), concebe percursos em torno de pensamentos, ideias, e leituras dos
“objectos” (curadores/directores), deseja, guarda e mostra os “objectos” (coleccionadores,
instituições), visita, conhece, interpreta e sente “objectos” e “espaços” (espectador/público).
Não tomando esta afirmação como uma verdade única e absoluta, com toda a certeza que o
contexto cultural, político e social em que hoje estamos inseridos, nos leva a uma realidade,
mutuamente, operante e contemplativa. O prazer de construir, gerir, pensar, mostrar, comunicar
e olhar, para sentir, estar, permanecer e viver, tornou-se um dos factores mais electivos para
a construção de mundos pessoais que intrinsecamente se convertem em universos de todos.
De facto, a coligação do contexto social, político e cultural juntamente com a união dos diferentes
intervenientes no conceito de “Exposição” tornaram a percepção da realidade mais fácil de
compreender, mudaram a ordem social, numa ordem mais tocante, mais afectiva, numa ordem
de um quotidiano ligado ao verdadeiro quotidiano de cada um, de cada “espaço”, de cada
“objecto”. Um mundo para se viver e para ser vivido numa perspectiva de uma vida activa e não
passiva.
Terminamos, salientando o prazer de concluir que a sociedade contemporânea permite olhares
e leituras em que a Singularidade vs Pluralidade vs Igualdade é uma constante dentro de
um mesmo vector constituinte da sociedade.
Agradecemos a colaboração a todos os autores que participaram nesta publicação.
Maria de Fátima de Sá Guerra Marques Pereira (Lisboa 1964) é licenciada em História pela Faculdade de Letras/Universidade
de Coimbra e Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras/Universidade do Porto – tese na área da
Fotografia. Docente no Ensino Universitário. Artigos publicados na área da Fotografia. Membro do Júri do Concurso
Nacional de Fotografia “Novo Talento Fotografia FNAC “ (2004 a 2007). Concepção e produção de projectos culturais e
artísticos.
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CAPÍTULO I
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
017
CIRCUITO
INSTITUCIONAL
PÚBLICO
PERMANENTE
1. AS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS
Margarida Veiga – Vice-Presidente do IPPAR; Assessora do Instituto Português dos Museus;
Directora do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém; Subdirectora do Instituto das
Artes e, actualmente, Administradora da Fundação Centro Cultural de Belém.
FMP: Quais as diferenças entre uma gestão cultural e artística administrativa e uma gestão
(cultural e artística) ligada directamente à programação?
MV: A definição de uma estratégia cultural virada para a concepção de programas de qualidade
artística, funcionam como linhas orientadoras, dos conteúdos e são fundamentais para a gestão
cultural e artística da programação. Penso que a gestão cultural e artística estão a montante,
fazem parte das linhas estratégicas dos conteúdos que estão a ser definidos, e que depois vão
conduzir à gestão cultural e artística consentânea com a gestão definida à partida, como um
conceito mais global. São de facto bastante diferentes, ou seja, a gestão cultural e artística
está vocacionada para o trabalho directo com os artistas, com os intervenientes ao nível da
criação e da produção e até à realização final dos projectos. A gestão administrativa está no
acompanhamento, desde a concepção inicial do que é o projecto, seguindo fazendo, por de
perto, as várias fases de execução do mesmo. Portanto, aqui existem dois papéis que são
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distintos, mas que, de alguma maneira, se interligam e se complementam para a feitura de
um projecto ou da gestão cultural.
FMP: Nas suas diferentes experiências profissionais tem conseguido concretizar
conceptualmente o projecto cultural e artístico da instituição e, naturalmente, o seu projecto,
ou seja, porque acredito que tenha sempre um projecto idealizado...
MV: Sim, pois.
FMP: Portanto, gostava de saber se de facto acha que consegue concretizar, sendo que ainda
por cima, normalmente os cargos que lhe têm sido atribuídos nestas áreas são cargos que
dependem do poder central.
MV: Antes do mais gostava de lhe dizer que não aceito cargos ou experiências profissionais,
sem saber à partida aquilo que vou fazer. Só os aceito quando tenho a garantia de que vou
concretizar conceptualmente os projectos culturais e artísticos que quero levar a cabo. Nas
minhas experiências profissionais tenho sempre conseguido concretizar, quer conceptualmente,
quer na prática, os projectos artísticos e culturais nos quais acredito. Deste modo, tenho levado
sempre até à fase final de realização os projectos que me proponho fazer. Concebo-os, encontro
os espaços, selecciono os artistas, portanto, é um processo muito completo e muito complexo
na sua organização. Mas, de facto penso que este tipo de projectos têm que ser feitos assim,
ou seja tem que haver um acompanhamento desde o primeiro “prego a prego” como se costuma
dizer na gíria artística. Tem que ser acompanhado nas suas diferentes vertentes e tem que
ser, desde a parte conceptual até à realização final. Claro que me bato sempre para que a
concretização do conceito seja realizada com o máximo rigor para dar a conhecer aquilo que
são os objectivos fundamentais daquilo que estamos a apresentar.
FMP: A política cultural do CCB vai de encontro à política cultural governamental, ou vice-versa, a política cultural do governo de acordo com a do CCB?
MV: Sim. Ora vamos lá ver, o Centro Cultural de Belém como sabe foi criado para, inicialmente,
ser a Fundação das Descobertas. Não se sabia muito bem qual seria a vocação específica dos
espaços, se iria ter colecções privadas, se iria ter colecções públicas, se iria fazer uma
programação de Arte Antiga ou de Arte Contemporânea. A partir do momento em que vim para
cá, ficou definido, quer pelas características arquitectónicas dos edifícios, quer pela possibilidade
que tínhamos de programar colecções, que faria muito mais sentido elaborarmos uma
programação para a Arte Contemporânea à semelhança do que acontece em todas as capitais
no mundo. Não faz sentido que hoje em dia não exista um Museu de Arte Contemporânea na
cidade de Lisboa como em qualquer cidade cosmopolita. De facto, isto é ter consciência do
tempo em que vivemos. É evidente que a política cultural do CCB vai de encontro à política
governamental ou vice-versa. Ora bem, quem define a política cultural do CCB é o CCB. Se me
diz: “Vai de encontro à política governamental?”. Vai, em princípio.
O CCB é constituído por três módulos: um módulo de exposições, um módulo de espectáculos,
um módulo das reuniões. O CCB vai afirmar-se como um parceiro internacional na produção
moderna e contemporânea em todos os seus espaços. Nas várias áreas definidas no edifício
existem áreas privilegiadas para fazer exposições, para fazer espectáculos, para fazer encontros,
para rentabilizar o espaço das salas através de aluguer, conseguindo obter metade do orçamento
total necessário para funcionamento e programação indo assim de encontro à política cultural
governamental. Mas de facto essa política é definida estrategicamente pelo CCB. Se bem que,
seguimos as linhas mestras da acção governamental na área da cultura: a internacionalização
dos circuitos, a promoção de artistas mais novos, a consolidação de artistas com alguma
carreira, a divulgação de espectáculos de grande dimensão como uma orquestra sinfónica,
mas também pequenos grupos de dança que estão a emergir. Portanto, todo este tipo de
actividades vai de encontro à política estabelecida pelo Governo, elaborada pelo próprio CCB
na sua estratégia de trabalho e de desenvolvimento.
FMP: Então, o CCB acima de tudo acaba por ser um projecto bastante cívico e cultural?
MV: Sim.
FMP: No fundo tem que se virar para todo o tipo de públicos.
MV: É isso mesmo.
FMP: Não pode ser um projecto de elite.
MV: É um projecto abrangente para cativar os vários tipos de público. Encontrando eventos e
iniciativas de grande qualidade sempre com dimensões e características diferentes, defendendo
sempre a qualidade. Por outro lado, é fundamental ter espectáculos para grande público, para
médio público, para pequeno público, e espectáculos para nichos mais pequenos ou nichos
maiores. Debatemo-nos sistematicamente e porque nos parece fundamental com o seguinte:
ter sempre projectos inovadores em preparação. Por exemplo, ainda ontem abrimos a nova
sala de leitura que será o embrião do centro de documentação do CCB. Nesse sentido, essa
sala de leitura vai ter os ciclos de autores escolhidos. Neste momento decorre o ciclo do Paul
Bowles que trará o cinema, a música, uma exposição de fotografia, etc. Portanto, são nichos
que organizamos, projectos no CCB, para trazer públicos diferenciados que gostam da leitura,
da fotografia, de cinema, etc. Depois é à volta do livro e do autor escolhido que se desenvolve
o programa de actividades no qual as pessoas podem participar. Através destes programas
pluridisciplinares suscita-se o interesse por outras actividades. De qualquer modo, tem razão
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quando diz que a política é uma política concertada. Entre nós e o Governo, é uma política
concertada, sem dúvida.
FMP: Quais as dificuldades de gestão administrativa para a realização da proposta cultural
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e artística do CCB, sendo o CCB um espaço especialmente abrangente, tanto ao nível cultural
e artístico como ao nível físico? No fundo, a relação do espaço físico com toda a programação
e toda a gestão cultural e administrativa.
MV: Quais são as dificuldades da gestão administrativa...
FMP: Ou podem nem sequer existir...
MV: Diz as dificuldades e eu vou-lhe dizer quais são as dificuldades, mas que para nós são
ultrapassáveis. Este edifício foi concebido na sua globalidade como um edifício inteligente. O
que significa que é um edifício que tem todas as suas centrais – o ar condicionado, centrais
de aquecimento, computadores –, está tudo centralizado em determinadas áreas do edifício.
Um edifício inteligente – iluminação, etc, por aí fora – que dá a sua energia a todos os três
módulos do edifício. A gestão administrativa organiza-se através de um pequeno staff, uma
estrutura organizada de uma forma muito simplificada, e esses serviços detêm uma direcção
dos edifícios, uma direcção de segurança e uma direcção administrativa e financeira. De facto,
toda essa gestão administrativa funciona para dar cumprimento ao programa cultural e para
que este se realize da melhor maneira. Portanto, conservar o edifício nas suas melhores
características, proceder à sua manutenção regular, atender ao que é preciso melhorar, ao
que é preciso substituir, etc. Mas, em termos das dificuldades elas são ultrapassáveis, os
vários sectores estão bem estruturados para a gestão administrativa, e não me parece que
tenhamos assim grandes complicações a esse nível.
FMP: Então, não existe nenhum impedimento. Por exemplo, o espaço ao nível arquitectónico
não interfere, por exemplo, nas exposições, não há qualquer impedimento ao nível do
conceito da própria exposição?
MV: Não. Quer dizer, quando se está a construir a exposição? As condicionantes de construção
da exposição são muitas vezes o próprio edifício. E todos os edifícios têm constrangimentos.
FMP: Exactamente.
MV: Mas, de facto tentamos ultrapassá-las o melhor possível e não é complicado porque o
edifício é muito aberto, é um edifício muito funcional, flexível e que se pode adaptar com muita
facilidade para qualquer tipo de montagem.
FMP: Um projecto como a exposição da Cândida Höfer envolve um grande investimento. Em
2005, o CCB convida esta fotógrafa para realizar esta exposição com 83 imagens inéditas.
Assim, após a mostra em Portugal que se realizou de 1 de Dezembro a 25 de Fevereiro de
2006/2007, qual vai ser o futuro da exposição?
MV: A exposição vai ser apresentada em Barcelona na Caixa Forum a partir de 20 de Setembro
até 5 de Janeiro. Portanto, houve um acordo, com uma entidade espanhola que aceitou fazer
a exposição da Cândida Höfer em Barcelona. A troco disto, a Caixa Forum convida o Director
de Exposições do CCB para organizar uma exposição a partir do espólio existente na Caixa
Forum para trazer a Portugal.
FMP: No fundo é uma parceria.
MV: É uma parceria entre as duas entidades, em que as duas beneficiam, o CCB apresentará
uma selecção de obras da colecção da Caixa Forum. Não sei se vai ser temática, se vai ser por
autores. Caberá aos comissários das duas instituições definirem o conteúdo.
FMP: Portanto, as obras da Cândida Höfer são do CCB?
MV: Não. As obras são da Cândida Höfer e, neste momento, ela deixou-as entregues ao CCB
para poderem ser apresentadas em Barcelona na exposição, mas as obras são dela. Aliás, foi
ela que pagou todo o trabalho de ampliação, de materiais, de equipamentos. Foi lhe dirigido
um convite, e ela por simpatia e por interesse pelo país realizou este trabalho. Uma grande
parte das fotografias foram vendidas em Portugal, mas o trabalho a ela pertence. Nós facilitámos,
abrimos as portas, contactámos as entidades, facilitámos todos os espaços que queria fotografar,
no fundo, demos-lhe todo o apoio possível para realizar a exposição.
FMP: A produção da exposição esteve a cargo do CCB?
MV: Toda a produção esteve a cargo do CCB.
FMP: Ao longo de uma experiência profissional alargada, quer ao nível cultural, quer ao
nível artístico, enquanto programadora e gestora, qual foi, até hoje, o maior desafio em
termos de carreira profissional que lhe foi proposto?
MV: O maior desafio em termos profissionais que me foi proposto foi o da Direcção do Centro
de Exposições, porque no ano em que iniciei essas funções fui, igualmente, programadora do
Portugal-Frankfurt. Portanto, programei em paralelo a Portugal-Frankfurt, era a comissária
de exposições, e lancei o projecto do Centro de Exposições. Estes foram talvez, os projectos
mais interessantes e o maior desafio. Colocar um Centro de Exposições a funcionar foi um
enormíssimo desafio como calcula, mas também posso afirmar que foi altamente compensador.
Inicialmente, defini uma estratégia de actuação, elaborei um paper com os pontos fundamentais
da programação, expondo os objectivos que exprimam o que querem fazer de futuro, e que
isso depois seja um documento base de trabalho para se poder avançar. Tive a sorte de poder
fazer isso, estabeleci um programa muito claro para o Conselho de Administração do CCB,
que na altura compreendeu os objectivos, tendo sido definido um orçamento para cumprir o
programa. De facto, compreenderam. Inicialmente, discutimos muito, mas depois da aprovação
posso afirmar claramente que não houve interferências. Portanto, eu estive sete anos na
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programação do Centro de Exposições com um budget aprovado anualmente, podendo organizar
projectos de exposições a três anos. Defini várias linhas de actuação, a fotografia, a arquitectura,
o design que depois contou com o depósito de uma colecção, e as grandes exposições, quer
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modernistas, quer exposições de ponta, quer exposições mainstream. Fiz um programa de
exposições tendo sempre como objectivo final a qualidade e a diversidade, trabalhando com
objectivos claros em termos da definição de estratégias. Esse foi o grande desafio! Consegui
que o público que passeava no exterior do edifício passasse a percorrê-lo no interior e que o
mesmo fizesse parte dos hábitos dos frequentadores do CCB.
FMP: Existe algum estudo de públicos do CCB?
MV: Estão a fazer agora um estudo de públicos. Mas temos os números do público das
exposições e dos espectáculos ao longo dos anos.
Maria Margarida Girão de Melo Veiga é licenciada em Arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e em
Gestão das Artes pelo Instituto Nacional de Administração – INA.
Exerceu vários cargos na Administração Pública, nomeadamente como Vice-Presidente do IPPAR, Assessora do Instituto
Português dos Museus, Directora do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, de 1996 a 2005, Subdirectora
do Instituto das Artes e Administradora da Fundação Centro Cultural de Belém, cargo que exerce nesta data.
Docente do curso de Curadoria da faculdade de Belas Artes de Lisboa/Fundação Calouste Gulbenkian da cadeira Espaços
e Contextos.
2. CASA DA CERCA – CENTRO DE ARTE CONTEMPORÂNEA – CÂMARA
MUNICIPAL DE ALMADA
Ana Isabel Ribeiro – Directora
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Missão da Casa da Cerca
Através de práticas culturais contemporâneas, a Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea
tem por objectivo contribuir para a ampla divulgação das Artes Plásticas, privilegiando o
Desenho, realizando regularmente exposições (individuais, colectivas e temáticas), bem como
um conjunto de actividades paralelas daí decorrentes, contribuindo para afirmar o município
de Almada como centro de cultura e sublinhando a sua vocação como centro de eventos e
acontecimentos culturais de crescente importância nacional e internacional. O desenvolvimento
destes propósitos assenta, fundamentalmente, nos seus recursos internos: Centro de Exposições
e Investigação, Serviço Educativo, Centro de Documentação e Informação e O Chão das Artes
– Jardim Botânico.
A Casa da Cerca gere um programa centrado na investigação e nas exposições, essencialmente
em torno do Desenho, evidenciando a autonomia deste enquanto expressão artística, a par da
sua pesquisa como uma disciplina de estudo e projecto, transversal a diversas áreas do saber:
a Pintura, a Escultura, a Arquitectura e o Design. Ou seja, procura-se fazer a sua articulação
clarificando uma metodologia ou finalidade do pensamento plástico. Porém, a sua actividade
não se confina aos limites desta investigação, abrindo-se também a outras áreas plásticas e
produções artísticas, que se revelem pertinentes enquanto complementares ao programa.
Como objectivos centrais, a Casa da Cerca tem também a preocupação de se constituir como
um foco de divulgação e debate artístico e cultural.
Planificação da programação artística e cultural | Protocolos
A Casa da Cerca é um dos equipamentos culturais da Câmara Municipal de Almada. Desde o
início da sua actividade, em Novembro de 1993, com um projecto artístico inicialmente concebido
pelo Prof. Rogério Ribeiro, primeiro director da Casa, tem vindo a afirmar-se com grande
autonomia de programação, sem qualquer constrangimento imposto pela autarquia.
A definição, tanto das exposições como das iniciativas paralelas directamente relacionadas
com estas ou outras que se enquadrem num âmbito cultural mais alargado, mas afim à sua
actividade, como por exemplo as relacionadas com a Arte Pública, é planificada internamente,
ou seja, pela direcção da Casa da Cerca e pelos colaboradores do sector das exposições.
Embora acolhendo propostas externas, de um modo geral, e de acordo com a linha programática
024
em torno do Desenho, a definição da programação é feita de dentro para fora, ou seja, os
convites para a realização de exposições são directamente dirigidos aos artistas ou a instituições.
Apesar de não existirem protocolos formais com outras instituições congéneres, têm vindo a
realizar-se exposições em colaboração com outras entidades, como por exemplo o CAMJAP
da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), a Cooperativa Árvore (Porto), a FLAD (Lisboa), a
Fundação Vilanova Artigas (S. Paulo), o Museu Alvar Aalto (Finlândia), o Instituto Açoriano de
Cultura (Angra do Heroísmo), entre outros. Tem sido também desenvolvido outro tipo de
colaboração a partir do acervo de Desenho ou de exposições de fotografia realizadas na Galeria
Municipal de Arte de Almada (cuja programação é também gerida a partir da Casa da Cerca),
neste caso direccionadas, sobretudo, com outros espaços municipais, como a Galeria do Palácio
(Porto), o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, o Palácio dos Capitães
Generais (Angra do Heroísmo), o Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, o
Palácio da Galeria (Tavira), Escola Superior de Educação de Santarém, Museu do Ingá (Niterói,
Brasil).
Conceito de exposição
A concepção e montagem de uma exposição, a elaboração de um discurso expositivo, é sempre
uma leitura do que se expõe, é um modo de dar a ver, é permitir um caminho de diálogo e de
interacção entre o conteúdo expositivo e o visitante. Qualquer exposição é um modo de mostrar
uma visão sobre um artista ou artistas e/ou uma obra, pressupondo, portanto, uma revisitação
dos trabalhos em proposta. Para tanto, uma exposição deve reflectir os contornos de uma
investigação específica, não se devendo, também, impor ou sobrepor à obra. Por exemplo, no
caso de uma exposição de Desenho, deve ficar claro se o enfoque escolhido como fio condutor
é dado às técnicas, aos suportes, às linguagens, aos períodos de produção artística, a um ou
mais autores, devendo igualmente ser claro o que se quer trazer de novo.
Uma exposição pode, portanto, ser pensada como um parágrafo guia numa notícia, ou seja,
deve considerar o quê/quem vai mostrar, o como (o modo como o vai fazer, aqui considerando
montagem com disposição de informação/documentação, colocação de obras, iluminação,
etc.; catálogo, jornal de exposição e/ou demais materiais de divulgação), o onde (tendo aí em
consideração as especificidades do local), o porquê (justificação teórica das escolhas de artistas
ou obras; esclarecimento do programa), o para quem (ou seja, saber de antemão, com clareza,
o público alvo a que se dirige, adequando assim o discurso expositivo e as propostas pedagógicas
específicas).
O conceito é, por isso, o resultado de um conjunto de premissas não isoláveis, que devem ser
sempre pensadas como um todo para que a exposição resulte.
É claro que em todo este processo é desejável (especialmente em situações de exposições
individuais de artistas vivos ou com os seus herdeiros), a existência de um diálogo claro e
cooperante entre o(s) artista(s) e a Casa da Cerca. É, neste momento, que se revêem os
conceitos e objectivos, se reavaliam os recursos técnicos necessários à montagem (sendo
estes, na sua maioria, assegurados pelas equipas dos Equipamentos Colectivos da Câmara
Municipal de Almada), se reajustam ambições, vontades e possibilidades de execução tendo
em conta quer as condicionantes do(s) espaço(s) expositivo(s), quer as técnicas, quer ainda as
financeiras. Daí resulta que cada exposição produzida e realizada na Casa da Cerca se concretize
numa linguagem específica. Mesmo quando se acolhem exposições originalmente produzidas
por outras instituições, estas são como que “reconstruídas” no espaço.
Do próprio conceito de exposição, de existência efémera, não pode ser dissociada a produção
e planificação dos conteúdos do catálogo, fisicamente perene. Ou seja, tendo isto em consideração,
bem como os seus custos de realização, importa que estas publicações reflictam, por um lado,
os conteúdos expositivos e que, por outro, apresentem e divulguem o trabalho de investigação
realizado (a nível dos artistas e da exploração dos temas, no caso das exposições temáticas).
Ou seja, existe a preocupação de que o “objecto” catálogo acrescente sempre algo ao
conhecimento pré-existente no âmbito do seu conteúdo específico.
Públicos
Dadas as características das propostas expositivas e culturais e o seu enquadramento
institucional, a Casa da Cerca trabalha fundamentalmente com um público heterogéneo (tanto
ao nível etário, como ao nível de escolaridade e interesses específicos que motivam a sua
deslocação). Em função das premissas conceptuais das exposições e da programação antes
enunciadas, a nível de públicos, pretende-se tanto consolidar o público fidelizado como trabalhar
no sentido da captação de novos públicos.
025
Clarificando melhor o universo de destinatários efectivos e potenciais da Casa da Cerca, são
várias as áreas de interesse e motivação já identificadas: o visitante das exposições e,
eventualmente, dos espaços exteriores (regular; ocasional; turista); os visitantes dos espaços
026
exteriores apenas com o intuito de lazer (Parque de Escultura e Jardim Botânico) e,
eventualmente, das exposições; os visitantes apenas com interesse/curiosidade em conhecer
o edifício de valor patrimonial concelhio; os utilizadores do Centro de Documentação e
Informação; os grupos escolares em visitas autónomas (exposições e/ou fruição dos espaços
exteriores) e, ainda, os participantes em visitas orientadas/ateliers (do pré-escolar a grupos
séniores).
Na captação e formação de novos públicos tem-se revelado fundamental o trabalho desenvolvido,
desde 1997, pelo Serviço Educativo cujo trabalho tem incidido sobretudo junto da comunidade
educativa do Concelho. Com base nas exposições patentes, são criadas situações lúdico-pedagógicas que ensinam a ver, a questionar e a fruir a obra de arte, contextualizando-a
artística, plástica e historicamente. Os programas das visitas orientadas e dos ateliers de
expressão plástica são pensados como uma aprendizagem complementar ao ensino formal.
Neste sentido, estes últimos reforçam as ideias transmitidas nas visitas, abrindo um espaço
à criação e à experimentação. Já no âmbito de O Chão das Artes – Jardim Botânico, o Serviço
Educativo da Casa da Cerca tem como principal finalidade dar a conhecer as espécies vegetais
ligadas às Artes aí existentes, através de visitas e visitas-jogo. Nestes casos, os ateliers
recorrem a materiais do próprio Jardim, ilustrando o seu papel nas Artes Plásticas.
A gestão de um espaço vocacionado para a programação cultural, com tudo o que esta implica,
passa por ser também um espaço de realização pessoal, mas, mais do que isso, a realização
de toda uma equipa que a projecta, promove e executa. São muitos os aliciantes no exercício
prático destas funções, pela riqueza e conhecimento acrescentado de que cada uma das
exposições comporta. A abertura ao saber e a partilha desse mesmo saber com quem nos
visita, com quem conversamos nos colóquios em torno das exposições, o regresso à Casa da
Cerca de jovens, por vontade própria, e que aqui chegaram pela primeira vez através da sua
escola, são para nós momentos que sedimentam e dão sentido aos propósitos deste projecto.
Ana Isabel Ribeiro (Lisboa, 1959) é licenciada em História pela Faculdade de Letras/Universidade de Lisboa e Mestre em
História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa. Desde
2001, é directora da Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea (Almada).
3. MUSEU DO CHIADO
Pedro Lapa – Director
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FMP: Qual a Missão do Museu do Chiado?
PL: Constitui missão do Museu Nacional de Arte Contemporânea, na sua qualidade de depositário
da mais completa e representativa colecção estatal de arte portuguesa moderna e
contemporânea:
1 - Estimular o aprofundamento do conhecimento e a fruição da arte moderna e contemporânea
pelos diferentes públicos a que se destina;
2- A constituição de acervos de arte contemporânea no contexto nacional, enquanto legítimo
mandatário de uma política nacional neste domínio;
3 - Garantir a salvaguarda das colecções e promover a investigação científica e a produção de
conhecimento sobre as colecções do museu e sobre os diferentes contextos da produção
artística contemporânea, através dos recursos internos e em parceria com entidades terceiras,
nacionais ou estrangeiras, designadamente através da produção e co-produção de obras de
arte e de publicações de referência;
4 - Desenvolver uma programação temporária qualificada que incentive a permanente
actualização do conhecimento sobre os acervos do museu, que estabeleça o confronto com a
produção artística internacional, que promova o diálogo entre o reconhecido e o experimental,
que estimule o debate sobre a arte contemporânea em contexto nacional e internacional;
5 - Manter critérios de qualidade na divulgação da arte contemporânea, com especial enfoque
para a produção de contexto nacional, e, simultaneamente, promover o fácil acesso, por
diferentes públicos, à informação produzida, diversificando formas e suportes;
6 - Promover a afirmação institucional do Museu no tecido cultural nacional a par da sua
integração nos circuitos internacionais de exposições projectando a sua dimensão universalmente;
7 – Desenvolver programas educativos e científicos qualificados que permitam um leque
diversificado de oferta;
8 – Promover o desenvolvimento de parcerias institucionais e de relações com diversos agentes
sociais, designadamente através da participação de Mecenas e do Grupo de Amigos do Museu;
9 – Organizar, manter em funcionamento e disponibilizar ao público serviços de arquivo e uma
Biblioteca de Arte.
FMP: Qual a organização total da instituição: programação/conceito global; conceito de cada
exposição (relação da colecção com as exposições temporárias/programação); existência de
itinerância e qual a preocupação com os públicos no âmbito da programação do Museu do Chiado?
PL: São muitas perguntas numa só, assim no que respeita à programação esta é realizada
com base nos seguintes critérios: o âmbito cronológico da colecção que vai de 1850 até à
actualidade; a expansão deste período nas mais diversas práticas e contextos artísticos que
028
concorrem com a própria colecção e a complementam ou lhe definem alteridades; a pertinência
de uma possível exposição no historial de exposições de arte contemporânea ou moderna
realizadas em Portugal; as possibilidades oferecidas pela exposição de doação ou aquisição
de obras relevantes e necessárias para a colecção; a pertinência de uma obra moderna ou
contemporânea relativamente a uma leitura actualizada da história de arte que privilegie no
passado a procura de processos de produção artística críticos dos valores estabelecidos dos
modelos de representação e no presente que considere as categorias e conceitos que os
desenvolvimentos tecnológicos trouxeram à imagem a par da sua consciência crítica face ao
envolvimento desta nos processos económicos dominantes; o perfil das exposições e até pelos
processos de produção utilizados, que são realizados pelo próprio museu com recurso às
capacidades da fantástica equipa de investigadores, produtores e assistentes técnicos que o
compõe, é o de investigação e contínua articulação com questões da história de arte e menos
com espectáculo de entretenimento, daí a tipologia das publicações desenvolvidas que
acompanham as exposições, por isso, ao contrário de outras instituições a importação de
exposições ou mesmo a participação em redes internacionais tem pouca relevância.
As itinerâncias fazem-se em função das possibilidades e interesses que outras instituições
possam ter nas exposições que o museu apresenta. Não existe, contudo, um modelo de gestão
autónomo com flexibilidade e regras minimamente actualizadas que permita promover e
articular junto de outros museus internacionais algumas exposições produzidas pelo museu
ou que eventualmente se possam realizar em co-produção. A total incapacidade e
desconhecimento elementar desta necessidade por parte de sucessivos executivos tem
inviabilizado uma efectiva participação internacional do museu nacional de arte contemporânea
num contexto mais alargado.
Os públicos são um dos principais objectivos das exposições, pelo que existe um cuidado muito
especial relativamente à informação que é distribuída e apresentada conjuntamente com as
exposições. O Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea foi o primeiro museu
em Portugal a apresentar pequenos textos analíticos junto das obras de forma a possibilitar
que o visitante encontre uma contextualização para o que vê e a partir daí construa uma leitura.
FMP: Como promove a internacionalização da colecção do Museu do Chiado, como adquire
obras para a mesma?
PL: Não existe um orçamento para aquisições do museu, já que este não é uma entidade com
autonomia financeira. As aquisições são propostas ao IMC que dentro do seu orçamento
diminuto decide da pertinência de cada proposta ou conjunto de propostas que lhe são
apresentadas pelos 29 museus que tutela, sendo estes dos mais diversificados âmbitos
disciplinares, que vão da arqueologia até à etnologia passando pelas artes decorativas e por
um vasto conjunto de museus cuja colecção não é sequer formada por uma disciplina específica
que justifique a pertença do museu a um instituto nacional.
As fontes de angariação de meios têm sido prioritariamente os próprios artistas que se revêem
no projecto levado a cabo pelo museu e têm doado inúmeras obras, depois privados que têm
oferecido obras de inestimável qualidade e completaram importantíssimos núcleos da colecção
– como aconteceu com as doações de Maria e João Rendeiro ou de José-Augusto França – e
também através dos amigos do museu. Por vezes, na realização de exposições existe a
possibilidade de produzir trabalhos novos em que o museu aposta e integra na colecção
FMP: Na aquisição de obras para a colecção do Museu do Chiado existe algum critério
específico em relação à Arte Contemporânea Portuguesa?
PL: Sendo o museu um museu nacional dedicado a esta matéria e um dos mais antigos museus
de arte contemporânea do mundo, os critérios são abrangentes, necessariamente, mas fundados
na qualidade e pertinência das obras. Assim, o currículo destas é fundamental para a sua
integração. Houve situações em que peças foram apresentadas pela primeira vez no museu
e só depois de terem sido legitimadas por outras instâncias significativas é que vieram a ser
integradas. Isto é sobretudo válido para artistas muito jovens, já que desde que exista um corpo
de obra constituído o museu pode apostar numa produção nova.
Existe, contudo, uma margem de subjectividade que não é iludida. Importa aprofundar o que
se considera mais significativo, só assim pode existir especificidade numa colecção. As melhores
colecções são geralmente o produto da acumulação destas situações geradas ao longo dos
anos por diferentes directores. A ênfase nas escolhas é decorrente também de critérios já
enunciados na segunda questão.
FMP: A política cultural do Museu do Chiado vai de encontro à política cultural governamental
ou vice-versa: política cultural do governo está de acordo com a do Museu do Chiado?
PL: Enquanto museu nacional de arte contemporânea é um instrumento público de realização
de uma política cultural, no entanto, um museu tem uma especificidade disciplinar e técnica
que estão para além ou, se se quiser, aquém das políticas culturais dos sucessivos governos.
É de resto desejável e sinal de maioridade democrática que não exista qualquer tipo de
ingerência política nas escolhas e projectos que relevam de critérios disciplinares e não de
interesses circunstanciais de um executivo em particular. E de facto, de um modo geral, não
tenho registado situações dessa natureza. Por outro lado, o orçamento ou mesmo o modelo
de gestão é definido pela tutela ou seja o Ministério da Cultura, uma vez que o museu não é
029
autónomo ao contrário do que acontece em qualquer país minimamente desenvolvido, este
aspecto condiciona o funcionamento do museu.
FMP: Quais as dificuldades da realização da proposta cultural e artística do Museu do Chiado,
030
por um lado, ao nível de instituições e empresas (apoio/patrocínios), por outro, ao nível
estatal?
PL: O maior problema é a falta de autonomia administrativa e financeira a par de orçamentos
incongruentes e estritamente anuais, que não permitem programar com a necessária
antecedência as exposições temporárias, nem realizar um trabalho de articulação com outras
instituições internacionais. Ter conhecimento no curso do próprio ano do orçamento que está
destinado ao museu não permite construir parcerias institucionais para a realização de
exposições em conjunto. Qualquer museu internacional de nível qualificado exige pedidos de
empréstimo com um ano e meio ou dois de antecedência! Depois, a ausência de autonomia
não possibilita articular e estabelecer compromissos com outros parceiros, uma vez que toda
a tramitação burocrática e gestão financeira não depende do museu, mas de um instituto que
gere 29 museus, mais não sei quantos palácios, departamentos de restauro e de arquivo
fotográfico, que têm âmbitos disciplinares, modelos de funcionamento e linguagens totalmente
díspares, apenas unificadas por uma perspectiva burocrática e um desconhecimento das
especificidades envolvidas. Outro problema que afecta profundamente o museu é a indefinição
e desinteresse dos sucessivos governos pela sua necessária ampliação. Em 1998, o primeiro-ministro de então foi ao museu anunciar o seu alargamento, o executivo do PSD definiu este
aspecto como uma prioridade da política cultural, até hoje nada foi feito. O espaço expositivo
é de 700 m2 para uma colecção que representa mais de um século e meio de arte portuguesa
e que para além disso tem um programa de exposições temporárias e outras actividades
reconhecidas. Este facto tem vindo a retrair muitos mecenas de doar obras a um museu que
não tem espaço para as exibir.
Tudo isto contribui para que não possa existir uma continuidade de uma programação mais
ambiciosa que o museu tem demonstrado ter capacidade para realizar com meios mínimos
quando comparado com outros nacionais ou internacionais. Tal facto dificulta, por vezes, a
angariação de mecenato.
FMP: Como consegue concretizar conceptualmente o projecto cultural e artístico do Museu
do Chiado e conciliá-lo com o seu percurso pessoal enquanto curador?
PL: Não vejo sequer divisão entre uma coisa e outra. Entendo o lugar de director como o de
um curador mais experiente, não como um gestor. De resto, essa tem sido uma das maiores
vantagens da Tate Gallery sobre o Centre Georges Pompidou ou o MoMA. O meu trabalho de
curador iniciou-se em 1990 e, desde aí, trabalhei e escrevi sobre arte oitocentista, moderna
e contemporânea. Em pouco ou nada o condicionamento que a programação do museu
necessariamente implica para um curador que se queira especializar numa área determinada
se revelou para mim incompatível, tenho tentado tirar partido de situações que a programação
do museu requer para desenvolver o meu trabalho. Provavelmente, se tal não acontecesse
não teria desenvolvido uma área tão vasta de trabalho, pelo que em certa medida tem sido
bom. O meu entendimento do trabalho de um curador é substancialmente diferente de algumas
tipologias que têm vindo a proliferar na última década. Para mim, um curador é alguém que
tem questões teóricas a experimentar na proximidade da prática artística ou da organização
das relações entre o existente e que desenvolve uma reflexão sobre esses resultados. É,
portanto, um historiador de arte a trabalhar em campo e não o exercício de um amontoamento
que redunda num catálogo de novidades próximo dos prospectos tão característicos dos
procedimentos de mercado.
Assim sendo, posso apenas lamentar a ausência de tempo para desenvolver a actividade
ensaística devido à gestão do museu.
FMP: Ao longo do seu vasto curriculum, qual foi o desafio profissional que mais o estimulou
ao nível da realização de exposições, quer no aspecto conceptual, quer no âmbito da sua
execução total.
PL: É sempre melindroso seleccionar, mas esse é também o trabalho de um director de museu
ou de um curador, assim: a exposição de James Coleman no Museu do Chiado – MNAC; a
exposição More Works About Buildings and Food na Fundição de Oeiras; a retrospectiva de
Joaquim Rodrigo no Museu do Chiado – MNAC; a constituição da colecção da Ellipse Foundation;
a exposição Stargate de Alexandre Estrela no Museu do Chiado – MNAC; Cinco Pintores da
Modernidade Portuguesa na Caixa Catalunha em Barcelona e no Museu de Arte Moderna de
S. Paulo; houve também a exposição do Richter, do Sarmento, do Stan Douglas e lá mais para
trás a organização do Life/Live no CCB e o projecto do próprio Museu do Chiado – MNAC.
Pedro Lapa nasceu em 1960, Lisboa. É director do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa,
e curador da Ellipse Foundation. Tem comissariado inúmeras exposições no domínio da arte moderna e contemporânea
das quais se poderiam destacar Man Ray – Retrospectiva, Frankfurt, Lisboa (2000), More Works About Buildings and Food,
Oeiras (2000), Cinco Pintores da Modernidade Portuguesa 1911- 1965, Barcelona, S. Paulo (2004), James Coleman, Lisboa
(2004) ou Alexandre Estrela, Lisboa (2006). Em 2001 foi o comissário português, nomeado pelo Ministério da Cultura, para
a 49ª Bienal de Veneza, onde produziu e apresentou um novo trabalho de João Penalva.
Tem publicado várias monografias e ensaios dos quais se podem destacar entre muitos outros o o primeiro catálogo raisonné
realizado em Portugal Joaquim Rodrigo, Museu do Chiado, Lisboa (1999); “O ecrã estranho” in Der Sandmann de Stan
Douglas, Museu do Chiado (2000); Repetition against the Law, Milano, Electa, (2001); Cartografía de algunos conflitos y
propuestas, Vigo, MARCO, (2003); Cinco Pintores da Modernidade Portuguesa 1911-1965 (Amadeo Souza-Cardoso, Almada
Negreiros, Vieira da Silva, Joaquim Rodrigo, Paula Rego), Fundació Caixa Catalunya, Barcelona, Museu de Arte Moderna
de S. Paulo (2004); Mediaespectrologias, Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa (2005).
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4. UNIVERSIDADE DE AVEIRO - FÁBRICA DA CIÊNCIA VIVA DE AVEIRO
Paulo Renato Trincão - Director
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Uma ideia não se mostra numa vitrina
1. O objecto e o património
E tudo começa no objecto, sujeito omnipresente, que de tão íntima convivência permanece,
contudo, muitas vezes desconhecido. A palavra objecto é de origem latina (objectu, lançado
adiante) (1).
Do ponto de vista da Filosofia, o objecto é definido como “aquilo cuja existência é considerada
como independente do conhecimento que dele tem o sujeito pensante” (1). De um ponto de
vista diametralmente oposto poderemos perguntar: “Será que a Lua existe se não olharmos
para ela ?” (2)
Ao discutir a existência de objectos e os seus comportamentos à escala atómica, Niels Bohr
questiona a objectividade da sua observação. Carlos Fiolhais, procurando clarificar as dificuldades
que para o senso comum a mecânica quântica apresenta, questiona: “Haverá uma realidade
objectiva independentemente dos observadores que nós somos e dos nossos aparelhos?“ (2)
Felizmente que as nossas interrogações não nos transportam para a escala atómica, deixando-nos ficar confortáveis a chamar simplesmente ao objecto, “coisa material, corpo”. (1)
Embora menos objectivo, é particularmente interessante para quem trabalha com objectos,
considerá-los como sendo “tudo o que afecta os nossos sentidos” (1).
Foi jogando com estes conceitos, quase sempre de uma forma intuitiva, que o Homem, entenda-se Homo sapiens sapiens, foi olhando, questionando, recolhendo, guardando e preservando
objectos. É difícil garantir as motivações que levaram o Homem a iniciar a recolha de objectos,
sendo a mais óbvia a necessidade utilitária. Precisavam deles para fazer, ou melhorar, o que
as suas mãos não faziam com a eficácia que eles gostariam.
É muito provável que os primeiros objectos que fabricaram tenham sido ferramentas de
madeira, mas devido à sua pouca resistência tenham apodrecido e não exista por isso registo
fóssil. Algumas podem ter sido somente paus afiados, lanças, etc. Hoje existem fortes indícios
de que alguns australopitecos (Australopithecus garhi) poderão ter feito objectos de pedra1.
Os seres humanos têm orgulho na habilidade das suas mãos. Dedicam uma parte do seu tempo
a cuidar delas. Dotadas de uma pele fina e delicada, a polpa dos dedos das mãos está dotadas
de inúmeras terminações nervosas extremamente sensíveis (de outra forma não sentiria as
teclas que neste momento utilizo). Talvez seja por isso que intervêm tantas vezes nas relações
com os outros. Só que estas mãos criadoras de objectos são comuns noutros primatas. Quando
um chimpanzé saúda outro, coloca os lábios nas mãos do companheiro para que este o sinta.
Por isto, não surpreende que eles também as utilizem para criar objectos, como fazem, entre
outros, os Bonobos, os chimpanzés pigmeus (Pan paniscus) (3).
A atitude de criar, seleccionar, guardar e expor objectos não é exclusiva dos primatas. Existem
várias espécies de pássaros que constroem meticulosamente jardins cheios de objectos
(sementes, palhas, paus, musgo, objectos antropomórficos) devidamente organizados em
círculos e corredores para incentivar a vista das fêmeas. Existe mesmo uma espécie que
constrói a sua casinha colorida com frutos e conchinhas. Outras espécies de pássaros, como
a Amblyornis inornata, cercam as suas casas de um jardinzinho artificial, feito com musgo disposto
em tabuleiros e decorado com flores constantemente renovadas, bem como frutos de matizes
fortes, seixos e conchas brilhantes. São as aves jardineiras da Nova Guiné. (4).
Saímos pela porta menos esperada (a dos pássaros) em busca da outra razão central que
sempre levou o Homem a seleccionar objectos: o seu poder de atracção. A utilização de objectos,
amuletos, (trabalhados ou não), durante a vida e pos morten acompanham quase de uma forma
paralela a evolução humana. A transformação simbólica de alguns deles em símbolos de poder
ou de perpetuação da memória dos seus possuidores está na origem daquilo a que nós hoje
chamamos “património”.
Património é uma palavra igualmente de origem latina (patrimoniu). Significa “herança paterna,
bens de família” (1) e não tem de ser necessariamente um bem material.
A ideia que o Homem consolidou que determinados bens (assumidos o direito à propriedade
conceito que, como é sabido tem variado muito no tempo de existência dos hominídeos) devem
ser transmitidos aos seus descendentes ou a quem ele, ou a sociedade onde se insere,
determinar, está na base da transmissão intergeracional de objectos.
O conceito de património é hoje utilizado muito para além do âmbito familiar, invadindo a esfera
do colectivo. A palavra património começou a ser igualmente utilizada para referenciar um
033
vasto leque de valores materiais e imateriais que as sociedades entendem como relevantes
para a sua identificação como grupo sendo, por isso mesmo, frequente a responsabilidade da
sua preservação, entregue ao Estado.
034
O património pode dividir-se e classificar-se de muitas maneira (quanto à materialidade,
natureza, mobilidade, origem temporal, etc.), mas para concretizar o objectivo que persigo,
centremo-nos nos objectos patrimoniais.
Chegamos, então, à situação em que determinados objectos pela sua história podem, por uma
classificação pessoal ou colectiva, adquirir um valor distintivo em relação a objectos similares.
A importância que aqueles que assim os classificam lhes dão, leva, mais cedo ou mais tarde,
ao ponto em que a sua apresentação para além da esfera do privado é inevitável.
Está então aberto o caminho da exposição.
2. Guardar, coleccionar e expor
“Preservar, conservar, reservar, colocar no local devido, arrumar, estar de guarda a, vigiar
para defender ou proteger” (1) são alguns dos significados da palavra “guardar”. Convém
contudo, procurar distinguir “guardar” de “coleccionar”. De uma forma simples, podemos dizer
que guardar corresponde a uma forma de arrumar mais ou menos cuidadosa. Em princípio,
essa acção não é sustentada numa ideia ou razão objectiva que vise outros fins para além do
acto em si. O acto de guardar não implica uma organização sistemática nem integrada do
objecto guardado, nem uma estratégia ou um fim que preside à acção. Por outro lado, colecção
deriva de Collectione, “um termo proveniente do latim, pressupõe uma reunião ou ajuntamento
de objectos naturais ou artificias, mantidos temporariamente ou definitivamente fora do circuito
das actividades económicas, sujeitas a uma protecção especial num local fechado e preparado
para esse fim, e expostas ao olhar do público” (5). Dentro de uma lógica menos museológica,
coleccionar é simplesmente “a reunião de objectos da mesma natureza” (1) sendo habitual a
colagem ao objecto coleccionado de um rótulo de “raro” e eventualmente “precioso”.
A preocupação em guardar condignamente os objectos existiu desde muito cedo como se pode
constatar na descrição sobre a forma de arrumar uma colecção de moedas do Real Erário
(1777): “Para a guarda das sobreditas moedas e medalhas se deverão formar armários, com
gavetas de altura de uma ollegada cada uma, forradas de veludo, com as suas próprias
concavidades aonde se accomodem à proporção da maior, ou menor circunferencia de cada
uma dellas; tendo no lugar superior das ditas concavidades manuscripta a inscrição da moeda
ou medalha, que nela se accomodar, – E rendo cada gaveta dois botões pelos quaes se faça
sahir facilmente, ao fim de se ver de um golpe de vista o numero, e qualidade das pessoas que
nella se accomodarem, advertindo-se que o dito Armmario de gavetas há de ter por fora uma
tabôa de guarda, que as feiche com segurança, não excedendo, nem a cinco palmos de altura,
nem a oito de largura, para que se possa chegar com a vista a todas, e a cada uma das ditas
gavetas, de que houver de ser formado.” A. C. Alexandre de Aragão 1880. (6)
“Thesaurós” é legado grego como forma organizada de colecções sagradas, constituídas pela
aglomeração de ex-votos e oferendas, seguindo-se-lhes os tesauros romanos como depósitos
de oferendas votivas aos deuses. Tesouro era ainda a palavra usada para designar um conjunto
de peças de metal precioso, sendo igualmente a palavra mágica para a busca sonhadora,
aventureira e fetichista de preciosidades. (6)
Por serem relativamente frequentes este tipo de achados, passaram a ser objectos de legislação
própria. A primeira norma jurídica portuguesa sobre o património arqueológico é decretada neste
período, a 22 de Abril de 1345 nas chamadas Ordenações Afonsinas (nº30), onde se regulamenta
o modo como se fazem a aglomeração dos bens reais, distinguindo-se que, no caso dos achados,
metade do tesouro encontrado revertia para o Rei e outra metade para o achador (6).
O coleccionador encara quase sempre a sua colecção como o seu pequeno tesouro. Define um
conjunto de critérios, de rigor variável, para formar e preservar a sua colecção.
É possível coleccionar tudo. Muitas vezes a criação de um embrião de uma colecção não é um
acto completamente consciente. Os objectos vão sendo recolhidos e guardados somente pelas
emoções que transmitem (beleza, medo, prazer…) ou por o seu exotismo, originalidade, critérios
que em todos os casos são de carácter pessoal. O fascínio de guardar o diferente acompanha
como vimos homens e animais. Embora muitas colecções nunca visassem vir a ser expostas
publicamente, a sua dimensão, originalidade ou qualquer outro factor imprevisto (por exemplo,
alteração de proprietário) pode levar à sua exposição pública.
No domínio da museologia sacra nacional, a organização expositiva da Capela de Relíquias do
Mosteiro de Sta. Cruz de Coimbra encontra-se ainda intacta. Erigida junto ao Claustro em finais
do séc. XVIII, é constituída por inúmeras relíquias, numa encenação “rocaille” de pendor
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classizante. Todas as peças encontram-se legendadas, encaixadas entre vidros formando
singulares vitrinas.
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Esta sala resistiu a todas as vicissitudes do tempo, mantendo-se incólume até aos dias de hoje.
Revela, as mais avançadas técnicas dessa época (em Portugal) de apresentação de objectos
numa atitude verdadeiramente museológica. Embora de uma forma não expositiva, no âmbito
da igreja muitos tesouros persistem até aos dias de hoje como forma organizada de colecções
sagradas. (6)
A exposição privada ou pública de objectos de todos os tipos , de valor variável e de naturezas
distintas, têm sido feitas de uma forma continuada em instalações próprias ou ocasionais. O
museu é por excelência o local onde se expõem de uma forma sistemática objectos normalmente
reconhecidos como património de um grupo social. Etimologicamente, museu é um termo
proveniente do grego mouseion adaptado também na época romana museum – significando o
templo dedicado às musas que, na antiguidade clássica e segundo a mitologia grega, eram
nove divindades filhas do supremo Deus Zeus, guardiãs das letras, das ciências e das artes
liberais. Mouseion, a casa das musas, era pois um lugar de contemplação por excelência (5).
A ideia de museu como um local passivo, sacro, apelando a uma atitude de contemplação por
parte do visitante extasiado pela beleza ou valor simbólico do objecto, contemplado ainda hoje,
povoa o imaginário de muita gente ao ouvirem pronunciar a palavra museu. Há muito tempo
que os museus de arte são muito mais do que isso.
Os museus de ciência obedeceram desde o seu início a critérios distintos. O valor dos objectos
expostos, para além da sua beleza e/ou raridade, advinha-lhes muitas vezes da sua utilidade,
da inovação e/ou modernidade que patenteavam.
As novidades da ciência durante o séc. XIX começaram por ser apresentadas como uma atracção
da corte ou das classes burguesas. Eram frequentemente utilizadas para animar sessões
circenses onde as novas descobertas apresentadas de uma forma encenada, maravilhavam
os que as presenciavam. Os museus de seres vivos eram colecções taxionómicas utilizadas
para a realização da sistemática comparativa das diversas plantas e animais. Objectos destes
dois tipos eram reunidos nos gabinetes de curiosidades, onde se podia encontrar tudo o que
era estranho ou desconhecido.
Quando as primeiras exposições universais foram organizadas, a apresentação do “progresso”
através das mais recentes descobertas da ciência e tecnologia criaram involuntariamente a
museologia de ciência e da técnica. Os objectos expostos não visavam maravilhar pela sua
beleza, mas impressionar como espelho de desenvolvimento do país que as produziu.
A “Great Exhibition” (Exposição Universal de Londres), de 1851, incluiu uma exposição sobre
as aplicações industriais das artes e das ciências. Foi a partir desta exposição que, 6 anos mais
tarde, se constituiu uma exposição permanente a partir de uma colecção, para ilustrar aplicações
industriais, à qual, em 1864, se adicionou uma secção naval constituída por modelos de navios
e instrumentos de navegação. Dez anos mais tarde, o museu cresceu com uma colecção de
equipamento científico e em 1883 foi anexado o espólio do antigo museu das patentes.
As diversas exposições universais correspondiam sempre a avultados investimentos (o que
acontece ainda na actualidade!) com a construção de grandes edifícios especificamente para
esse fim. As exposições criadas eram de tal forma emblemáticas que mantê-las, pelo menos
em parte, era quase inevitável. Surgiram, assim, os grandes museus desta área: Museu da
Ciência de Londres e o Deutsche Museum em Munique (1908).
Anterior, só o Conservatório das Artes e dos Ofícios, de Paris (1799), que na verdade começou
por ser a escola onde, os operários, mesmo antes de saberem ler escrever, aprendiam a
trabalhar com as máquinas. O objectivo da legislação em causa era criar uma instituição
destinada a proporcionar instrução profissional para as actividades mecânicas, numa época
em que eram totalmente inexistentes as escolas técnicas.
O museu não constituía uma instituição cultural complemento da escola; era a própria escola!
A lógica de dar continuidade às exposições universais foi igualmente seguida nos Estados
Unidos. Em Chicago surge, em 1933, o Museum of Science and Industry dando continuidade
à exposição universal desse ano.
Quatro anos mais tarde (1937) foi a vez de Paris organizar a Exposição Universal subordinada
ao tema “ Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna”. A partir dela nascem seis museus:
Museu do Homem, Museu de Arte Moderna, Museu dos Monumentos Franceses, Museu de
Artes e Tradições Populares, Museu da Marinha e Palácio das Descobertas (5).
Jean Perrin (prémio Nobel da física em 1926) foi encarregue da conceptualização sob a forma
de um manifesto do novo museu, o Palácio das Descobertas.
“Il ne s’agissait pas (…) de faire un musée de la science, (…) il ne s’agissait pas de présenter
037
objectes et souvenirs de l’histoire de la science, il ne s’agissait de montrer la science en train
de ce faire, d’ouvrir au public des laboratoires en activité, de faire participer le public aux
démonstrations, à la naissance de la découverte: c’était vraiment, dans l’histoire des musées,
038
une révolution” (7) (5).
Pela primeira vez o exposto não era património, não eram colecções, não eram conjuntos de
objectos. Não se pretendia tão pouco, criar um ambiente contemplativo e referencial. O que
se fazia era recriar as condições de experimentação que levavam o visitante a poder participar,
nem que fosse simbolicamente, na realização da actividade que visava explicar um fenómeno
ou um conceito. O visitante era convidado a participar na descoberta. Por outro lado, existia
uma consciência activa da absoluta necessidade de combater a ideia de uma instituição passiva
e cristalizada: “…loin d’être une sorte de Musées bientôt stérilisé dans l’immobilité, il garde
un contact vivant avec la Science qui continue à se créer, ceci grâce à l’effort soutenu de
chercheurs et savants qui feront de cet effort leur activité principale» (7) (5).
O Palácio da Descoberta é o verdadeiro percursor da museologia sem objecto a que muitos
chamam museologia interactiva.
O Exploratorium de S. Francisco, Estados Unidos da América, de Frank Oppenheimer só abre
em 1969 e não apresentam valores conceptuais estruturais verdadeiramente novos em relação
ao exemplo francês. Apresenta contudo, propostas com muito maior grau de liberdade (o apelo
a mexer é muito mais forte) e realiza sistemáticos cruzamentos entre a arte e a ciência. A
produção de livros de instruções para as montagens das experiências apresentadas (cookbooks)
levou a uma internacionalização do Exploratorium fazendo com que seja habitualmente
reconhecido como o primeiro museu interactivo.
3. Os “Museus” sem objecto. Expor uma ideia.
A criação dos centros de ciência expandiu-se exponencialmente pelo Estados Unidos e Europa
tendo, quase sempre como modelo organizativo e de conteúdos (os fenómenos físicos) o modelo
do Exploratorium. F. Hernández considera este centro “… um laboratório que impulsionou a
fermentação de outros centros no mundo com carácter interdisciplinar e interactivo que
proporciona uma aprendizagem lúdica”. (8)
Até hoje, ainda é frequente chamar museus aos centros de ciência ,o que revela uma contradição
curiosa. Os centros de ciência definiram-se nos aspectos funcionais, por antagonismo ao
conceito de museu que apelidavam de estático e antiquado e, por isso mesmo, desinteressante.
Contrapunham o facto de nas suas instituições “ser proibido não mexer” (hands on). Como o
público não sabia de todo o que era um centro de ciência e, apesar das críticas, tinha em
relação aos museus algum respeito e reconhecimento como “casas do saber”, era cómodo
dizer que os seus centros também eram museus. Mesmo depois da alteração da definição de
museu realizada na 20ª Assembleia Geral de Barcelona 2001 em que o conceito de colecção
foi ampliada para “testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente” e pela inclusão
na definição do “serviço à sociedade”, os centros de ciência continuam a não obedecer aos
parâmetros necessários para serem considerados museus.
A distinção é simples de fazer: uma instituição que não recolha, guarde, inventarie, estude,
preserve e exponha objectos, não é um museu. Os centros de ciência não o fazem, não sendo
por isso museus.
A ideia, o fenómeno, a experiência, ocupa, nos centros de ciência, o papel que o objecto ocupa
nos museus. Nos centros de ciência, os objectos que participam na exposição são descartáveis
e só servem para criar condições para a demonstração. O seu valor estético e funcional é posto
ao serviço da demonstração ou do(s) conceitos que quer apresentar.
Numa visão mais clássica, os centros de ciência devem ser instalados em salas amplas, ou
mesmo em hangares, desprovidas de interesse arquitectónico ou qualquer outro tipo de pontos
que levem à desconcentração (na interacção com o fenómeno ou com a experiência), dos
visitantes/participantes. A existência de locais de contemplação (bancos ou sofás), onde o
visitante possa descansar, são substituídos por pontos de interacção com computadores (muitas
vezes o único local onde o visitante se pode sentar). Na verdade, nos centros de ciência os
pontos de relaxe e descanso são em qualquer lugar porque o ambiente informal que se vive
convida os visitantes a sentarem-se no chão.
Este aspecto espartano do invólucro dos centros é cada vez mais cortado com a inclusão de
objectos sobredimensionados como mesas e cadeiras construídas nas dimensões com que
uma criança percepciona o mundo dos adultos2 ou tratamento de paredes e luz das salas
expositivas3.
No extremo oposto (o edifício é o elemento estruturante central) surge, em 7 de Abril de 1995,
o Domus na Corunha, o primeiro centro de ciência interactivo dedicado ao ser humano. Para
além de o tema central não ser a física ou os fenómenos físicos, o edifício foi construído e
039
pensado para ser um centro de ciência. A outra grande mudança é que o imóvel foi realizado
por um arquitecto japonês mundialmente consagrado, Arata Isozaki, e é, por si só, qualquer
que fosse o seu conteúdo, uma obra de referência e um pólo de atracção de público e dos
040
média ao nível mundial. A metodologia usada no Museu Guggenheim de Bilbau (1997) de Frank
O. Gehry, em que a principal atracção é o edifício, e não o que ele contém foi, na Corunha,
antecipada com o mérito acrescido de que a espectacularidade da construção não ter abalado
os conteúdos.
3.1 O módulo: unidade expositiva.
A organização dos centros de ciência assenta numa entidade organizacional normalmente
chamada módulo. O módulo é a unidade expositiva dos centros de ciência.
Os módulos, de uma forma única ou plural, evidenciam, através de interacções simples ou
complexas, um ou vários fenómenos, permitindo o acesso a um pacote de conhecimento,
transportando-nos para um universo de interrogações ou simplesmente procuram surpreender-nos com o resultado da nossa interacção.
Os módulos podem não ter qualquer fio condutor entre si evidente, tratando de assuntos
variados dentro do universo da ciência e tecnologia. O visitante vai percorrendo os diversos
módulos de uma exposição saltando de uns para os outros em função da sua atractividade,
da compreensão do resultado da sua interacção ou da percepção do assunto que possam
tratar.
Este tipo de exposições interactivas estão organizadas no espaço de uma forma aleatória não
tendo por isso nem princípio nem fim, nem logicamente qualquer tipo de percurso expositivo
pré-definido. As ideias que os módulos nos propõem não estão hierarquizadas na sua importância
nem no grau de dificuldade de apreensão do seu conteúdo.
Por vezes existem sinais exteriores que nos podem levar a percepcionar o grau de dificuldade
ou o carácter lúdico do módulo. Os materiais utilizados na sua construção (plástico e fibra de
vidro são mais utilizados em módulos infantis4), enquanto madeira, aço ou vidro são os materiais
mais usados em módulos mais adultos5) as cores utilizadas (cores primárias para módulos
infantis e cores secundárias para adultos) e até as dimensões (o sobredimensionamento é
muitas vezes indicador de um módulo mais infantil). Como é evidente estas observações não
pretendem ser regra, procurou-se simplesmente analisar uma tendência.
É muito vulgar que, num primeiro contacto com um módulo, o visitante não apreenda nada
sobre o que ele pretende exemplificar, de uma forma semelhante ao que acontece com a
primeira observação de uma obra de arte contemporânea.
041
A obrigatoriedade de interactuar, embora seja libertadora, porque dessacraliza o objecto, é
simultaneamente castradora, porque nos obriga a participar. É um pouco como ir assistir a
uma peça de teatro e, de repente, os actores obrigarem-nos a participar no enredo, fazendo-nos perguntas ou dançando à nossa volta. Nesse momento, a vontade de ir ao cinema, onde
ninguém se mete connosco, cresce instantaneamente. No universo das exposições, sonhamos,
nesse momento de angústia, com a observação tranquila de uma peça dentro de uma vitrina,
seguros de que ela não quer conversar connosco…
As propostas para interactuar com os módulos são múltiplas: abrir uma pequena porta, carregar
num botão, dar voltas a uma manivela, accionar uma alavanca, pisar um botão, soprar, tocar
o ecrã, juntar peças, etc., etc…
Muitas vezes, o fracasso da nossa primeira observação resulta do facto de não termos percebido
o que nos era pedido ou do resultado da nossa acção não ter sido claramente observado ou
entendido. Nesses momentos, sucede normalmente uma de duas coisas; ou tentamos outra vez,
ou procuramos, mais ou menos desesperadamente, a tábua de salvação que sustentou a maioria
dos nossos processos de aprendizagem: a informação transmitida de uma forma escrita.
Numa fase de pré-pânico (…), as crianças (e alguns adultos) tentam interactuar simultaneamente
com tudo o que parece passível de provocar algum acontecimento. Quando não visualizam uma
resposta satisfatória, passam muitas vezes a uma fase destrutiva do equipamento, seguindose o abandono em direcção a outro módulo. Essa é a razão (associada à enorme afluência de
visitantes que a maioria dos centros tem) por que os módulos devem ser muito robustos.
Com frequência após a leitura (ou observação de um esquema), o resultado da nossa segunda
tentativa de interactuação com o módulo é coroado de êxito. Nesse momento o módulo começa
a ter sentido e muitas vezes passa mesmo a ser realmente interessante.
É frequente que num mesmo módulo as interacções sejam variadas (como várias possibilidades
de dirigir um feixe luminoso com a utilização de lentes3), o que permite a dedicação de um
intervalo de tempo considerável (obviamente proporcional ao interesse que a pessoa tenha
sobre o assunto).
A grande maioria dos módulos dos centros de ciência são de acção individual, havendo, contudo,
alguns que só funcionam com pelo menos duas pessoas (misturas de rostos, comunicações,
etc.3). Podem ter vários formatos permitindo actuação com frentes de 90º (dispostos em canto)
042
em 180º (dispostos em plano) ou 360º (permitindo uma circulação total).
Depois de entender as lógicas de interactuação e formatar a sua forma de abordagem da
realidade para este formato expositivo, é vulgar o visitante regressar aos módulos anteriormente
visitados e estes lhe pareçam agora de compreensão lógica e intuitiva. O facto de não haver
(habitualmente) circuito expositivo, nem conhecimento encadeado, permite esta circulação
pendular entre os módulos sem avolumar o sentido de frustração pela dificuldade de compreensão
das propostas apresentadas.
Muitas exposições interactivas têm grandes balizas conceptuais e até de temas. O Exploratorium
na altura em que abriu ao público possuía 600 módulos organizados em grandes temas:
Percepção sensorial, Ciências da Vida, Fenómenos Físicos, entre outros. Estes módulos serviam
para apresentar assuntos como a visão ou a luz ou a audição, a electricidade ou as ondas.
Actualmente (em 2007), existem na Europa alguns centros de ciência (para além de empresas)
produtores de exposições interactivas itinerantes temáticas. La Villete (Paris, França), Science
Museum (Londres, Inglaterra), Heureka, (Helsínquia, Finlândia), o Tecnopolis (Mecland, Bélgica)
são alguns exemplos. “Uma questão de sexos” é um exemplo de exposição interactiva temática
que pode ser vista actualmente no Pavilhão do Conhecimento, Lisboa, Portugal.
4. Conclusões
Pensar e organizar uma exposição desta natureza passa por procurar definir quais os temas
que se querem tratar, e dentro de eles quais são as ideias-chave, nunca esquecendo que elas
deverão ser transmitidas com envolvência e participação do visitante. Por outro lado, as formas
encontradas têm de ser directas e simples (o que não quer dizer pouco inteligentes) de forma
a não humilharem o visitante quando este se confronta com a sua (relativa) ignorância em
relação a um tema específico. A procura de equilíbrio entre solicitações simples (como carregar
num botão) e complexas (como alinhar lentes) deve ser sempre tida em conta.
O carácter temporal destas “exposições de ideias” é um dado a considerar à partida porque
a natureza dos materiais é efémera, o design utilizado desactualiza-se muito rapidamente e
a necessidade de permanente actualização e inovação nos conteúdos é induzida pelo ritmo do
evolução da ciência e da técnica. Nos anos 80, as pessoas iam aos centros de ciência para
poderem interactuar com os computadores, nos anos 90 para ter acesso à Internet (ambas as
tecnologias estão actualmente disponíveis em casa). Hoje, as novidades estão nos sistemas
que reagem ao som ou à sombra.
043
A procura das últimas novidades tecnológicas, a apresentação pública do seu potencial e sua
introdução na sociedade deverá, sempre que possível, estar no centro de uma exposição de
ciência e de técnica.
Notas
(1) Consulta, em Abril/2007, Infopédia. Porto Editora (http://www.infopedia.pt).
(2) Fiolhais, C. (2007). “Nova Física divertida”, Gradiva, Lisboa.
(3) Consulta em Abril/2007, Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Bonob)
(4) Consulta, em Abril/2007 (http://autoresespiritasclassicos.com/Gabriel%20Delanne/Livro%20A%20Evolucao%20Animica/A%
20Evolucao%20Animica.doc)
(5) Duarte, A. (2005). “O Museu Nacional da Ciência e da Técnica no contexto da evolução da museologia das ciências.
Da ideia do Museu à sua oficialização (1971-1976)”. Tese de mestrado. Coimbra
(6) Braz Teixeira, M. ”Los princípios de la investigación de la actividad museológica en Portugal.Museos y museologia en
Portugal. Una ruta ibérica pra el futuro”. Separata X
(7) Jean Pierre Mouray. (1994)“Le Palais de la Découverte”, Découverte Galimard, Paris.
(8) Hernández Hernández, F.(2003) « El museo como espacio de comunicacíon ». Trea, Gijón
1
“Hominídeos e hominídeas, a família presumida”. Exposição temporária, Domus, Corunha.
2
Cadeiras e mesa gigantes. Átrio de entrada. Pavilhão do Conhecimento, Lisboa.
3
Exposição «Mãos na massa». Fábrica Centro Ciência Viva de Aveiro.
4
Exposição « Vê faz e aprende ! ». Pavilhão do Conhecimento, Lisboa.
5
Exposição «Exploratorium ». Pavilhão do Conhecimento, Lisboa.
Paulo Renato Pereira Trincão – 1982 – Licenciatura; Geologia, Universidade de Coimbra. 1990– D o u t o r a m e n t o ;
Universidade Nova de Lisboa em Geologia, na especialidade de Estratigrafia e Paleobiologia. 1990 – Prof. Auxiliar,
Universidade de Aveiro. 1999 – Director do Instituto de História da Ciência e da Técnica/Museu Nacional da Ciência e da
Técnica (5 de Novembro 1999 a Novembro 2002). 2003 – Consultor para a programação da área da Ciência e Tecnologia
de Coimbra, Capital Nacional da Cultura 2003. 2004 – Director da Fábrica, Centro Ciência Viva de Aveiro (2004).
CAPÍTULO II
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
045
CIRCUITO
INSTITUCIONAL
PÚBLICO PONTUAL
1. EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS – EXPO 98
João Paulo Velez - Director de Comunicação e Porta-Voz do Conselho de Administração da
Parque EXPO.
FMP: Qual a motivação que o levou a aceitar um desafio de tamanha envergadura como
Director de Comunicação numa Exposição Internacional – EXPO 98, sendo que foi a última
grande Exposição Mundial do século XX?
JPV: A possibilidade de participar num projecto único, absolutamente invulgar e que tinha tudo
a ver como a minha anterior experiência profissional jornalística, levou-me a aceitar um desafio
para o qual, por isso mesmo, nunca me podia sentir plenamente preparado. Nada é igual a
uma Expo, não há nenhuma Expo idêntica às precedentes. Mas a verdade é que a excepcional
qualidade das pessoas que dirigiram o projecto desde o início, que o idealizaram e o conceberam,
fez-me vencer naturais reticências perante o desconhecido que se apresentava.
A verdade é que, ao longo de 18 anos de actividade jornalística, me ocupara muito de temas
ligados ao urbanismo e ao território, à arquitectura e à cidade. Escrevera sobre diversos
projectos e intenções, muitos dos quais, por força da nossa sempre complexa relação com a
realidade e com a eficácia, não chegaram a ver a luz do dia. Também por isso a Exposição
046
Mundial de Lisboa me interpelou: tinha de estar pronta na data certa e está-lo-ia por certo,
já que estava fora de questão a honra colectiva do país ser jogada na valeta da história por
qualquer falha ou por qualquer guerra de campanário. Essa carga adicional de adrenalina
igualmente me estimulou: a de participar como que numa gigantesca aposta de ter pronta a
tempo e com a melhor qualidade possível obra que pudesse ser retrato de um Portugal
moderno, aberto ao Mundo, velha nação europeia a caminho de uma nova etapa do seu
desenvolvimento, após décadas de isolamento e ostracismo internacional. Interessava-me a
abordagem pretendida para a Expo – a de ser uma comemoração dos 500 anos da viagem de
Vasco da Gama que recusasse uma visão passadista da nossa História, antes se colocando na
mesma posição aberta ao risco e ao futuro que caracterizara os navegadores que se pretendia
evocar.
Finalmente, e não menos importante, senti-me atraído pela localização escolhida para a Expo
e pela enorme dimensão urbana do projecto. Boa parte da minha vida de jovem se passara não
muito longe da Doca dos Olivais, o epicentro da operação. Em pequeno, os meus pais levavam-me, por vezes, até ali para ver os velhos clippers abatidos às rotas dos hidroaviões para a
América, uma vez passados os tempos difíceis e misteriosos da Guerra. E não se iria agora
fazer apenas uma grande festa! Ter a possibilidade de participar numa profunda transformação
urbana devolvendo à cidade cinco quilómetros de uma margem esquecida, abandonada e
degradada era um privilégio que não poderia perder. A verdade é que o privilégio acabou por
ser muito maior do que alguma vez pudera supor.
FMP: Como foi pensada em termos conceptuais a EXPO 98, sabendo que a sua temática
centrava-se: “Os Oceanos um Património para o Futuro”?
JPV: Queríamos comemorar os 500 anos da viagem de Vasco da Gama evidenciando tudo o
que de revolucionário ela tinha tido. Estava assim fora de questão Portugal convocar o Mundo
para Lisboa tendo como foco uma mera celebração histórica dos heróis de Quinhentos. A
aproximação temática teria de ser igualmente virada ao futuro. Pensou-se, assim, no Mar
como convergência de uma reflexão à escala planetária sobre a importância dos Oceanos para
o futuro da Humanidade. Essa foi a chave da Expo para o enorme êxito que despertou nos
quatro continentes. Foi igualmente muito original a ligação – pela primeira vez na história
destes eventos – do tema da Expo ao sistema das Nações Unidas. Foi um trabalho diplomático
tão discreto como produtivo aquele que haveria de culminar na aprovação, por unanimidade,
na Assembleia Geral da ONU, de 1998 como Ano Internacional dos Oceanos.
A partir daí, estava criado o enquadramento político necessário para garantir a adesão dos
diferentes países e organizações. Conceptualmente, o mar haveria de estar presente na Expo
de todas as maneiras possíveis: na estrutura do recinto, todo ele pensado em função da sua
relação com a água; nos pavilhões temáticos (Oceanário, Utopia, Conhecimento dos Mares,
Futuro), na exibição náutica, na programação cultural nacional e estrangeira; e na própria
participação dos 160 países e organizações, aos quais se exigiu a abordagem (obviamente
multifacetada) do tema Oceanos.
FMP: Como foi criada a equipa (organização e produção) da EXPO 98, e qual o seu organigrama
funcional, considerando que este era, de facto, um projecto pontual?
JPV: O processo da Expo ’98 foi, como se imagina, muito complexo. Desde logo, porque envolvia
dois programas simultâneos e sobrepostos: fazer uma excelente Exposição Mundial em cerca
de 100 hectares e conseguir devolver à cidade, urbanisticamente recuperada, uma zona mais
ampla de quase 340 hectares. Havia claramente duas etapas – até 1998 e, depois, um segundo
período que se estimava prolongar-se até 2009.
Para concretizar estes dois grandes desafios, foram tomadas algumas decisões de base: criar
uma sociedade anónima, a Parque Expo 98 SA, com a participação do Estado e dos dois
Municípios envolvidos (Lisboa e Loures); dotá-la de poderes administrativos especiais que
permitissem executar o projecto no prazo previsto; e mobilizar para a sociedade terrenos
públicos que se encontravam completamente abandonados ou muito subaproveitados. Tudo
isto se passou no início de 1993, meio ano após a votação em Paris que dera a vitória a Lisboa
sobre Toronto para a organização da Expo ’98.
Foi então constituída uma estrutura de missão que tinha quatro pilares principais: Área Expo
(Concepção e Marketing da Exposição), Área Parque (Urbanismo e Acessibilidades), Área
Construção (Obras de Desmantelamento e Construção) e Área Financeira (quase todo o
financiamento do empreendimento foi feito com – excessivo – recurso ao crédito bancário,
dado não se pretender inicialmente reclamar do Estado um envolvimento razoável no capital
social da empresa). Mais tarde, a estrutura veio a sofrer uma alteração, já prevista desde o
princípio, com a criação, pouco antes de 1998, de uma Área de Operações, responsável pela
gestão dos processos no período de funcionamento da Exposição.
A equipa criada revelou grande qualidade técnica e operacional, desde as áreas de programação
cultural aos engenheiros do ambiente, dos arquitectos urbanistas ao marketing e comunicação,
dos paisagistas à logística do empreendimento. Foram pessoas provenientes dos mais diversos
sectores e com as mais variadas experiências nacionais e internacionais – funcionários públicos
e de empresas privadas, experimentados engenheiros e jovens arquitectos, num conjunto que
foi possível organizar pela vontade de responder o melhor possível a um desafio ímpar. Recorreu-
047
-se bastante ao outsourcing, sobretudo para tarefas e projectos específicos. A equipa própria
começou por cerca de 100 pessoas até se fixar em cerca de 800 elementos. No período da
Exposição, foi feito um recrutamento especial para os quatro meses e meio do funcionamento
048
do recinto que atingiu cerca de cinco mil pessoas preparadas para acolher diariamente dezenas
de milhares de visitantes.
FMP: Como foi estruturado o plano de comunicação social da EXPO 98?
JPV: O plano de comunicação foi concebido para garantir a maior adesão e envolvimento da
população portuguesa – principal destinatária do projecto –, mas também dos principais
mercados externos nos quais se apostou em termos de visitantes e que coincidiam com os
maiores países de origem do turismo português (Europa).
A primeira preocupação era dar a conhecer a dimensão do projecto e a sua importância para
a imagem de Portugal enquanto país, poupando a Expo a querelas inúteis e sem sentido. Isso
foi feito com um vasto programa de visitas ao estaleiro envolvendo, num primeiro momento,
não só os meios nacionais e os correspondentes estrangeiros em Portugal, mas também a
comunicação social regional, através de um vasto conjunto de deslocações de todos os distritos
e também das regiões autónomas.
Foi assim possível conseguir mostrar, de forma totalmente aberta e directa, o desafio nacional
perante o qual estávamos colocados e que não nos permitia falhar. Isso permitiu-nos criar, sem
prejuízo da capacidade de crítica dos media que continuou a existir, como que uma cumplicidade
com a comunidade jornalística em relação à tarefa gigantesca que tínhamos pela frente.
Desenvolvemos, igualmente, um importante trabalho de sensibilização da imprensa especializada
(turismo, ambiente, arquitectura, construção) e começámos, a partir de finais de 1995, nalguns
casos em parceria com o ICEP, um programa de convites a jornalistas estrangeiros sobretudo
dos principais mercados-alvo. Nestes países (Espanha, França, Alemanha, Suíça, Reino Unido,
Bélgica, Holanda, Suíça e Itália mas também Brasil, Estados Unidos, Canadá, África do Sul e
Japão) desenvolvemos um plano de apresentações do projecto que visava simultaneamente
garantir a presença oficial desses países e ao mesmo tempo despertar as opiniões públicas
para a visita a Portugal, apostando, igualmente, nas comunidades espalhadas por esses
mesmos países. Neste capítulo foi particularmente interessante o trabalho feito com os
futebolistas portugueses que já então jogavam no estrangeiro e que se converteram em
verdadeiros “embaixadores” da Expo, numa acção que atingiu especial relevância em Espanha.
Todas estas acções permitiram o contacto com o projecto, antes da Expo’98, de cerca de 4.000
jornalistas nacionais e estrangeiros, alguns dos quais – há que reconhecê-lo – não deixavam
de mostrar alguma incredulidade perante a nossa capacidade em concluirmos o projecto na
data prevista.
Mas fizemos mais. Em pleno estaleiro, montámos um Centro de Informação, no qual exibíamos
as maquetas da Exposição e fornecíamos todo o tipo de informação, impressa e audiovisual,
sobre o projecto. Dali partiam as inúmeras visitas guiadas que conduzimos com escolas, grupos
técnicos, especialistas ou convidados a observar aquele que era, à época, o maior estaleiro da
Europa. Promovemos um vasto conjunto de edições sobre o tema da Expo, sobre os seus planos
urbanos e ambientais, sendo certo que uma das maiores armas do projecto foi o proporcionar
uma vasta operação de requalificação do território.
O site e um jornal mensal contribuíram igualmente, nesta fase prévia, para dar a conhecer o
mais relevante do empreendimento. Como Porta-Voz da empresa ao longo do processo, era
convidado a assistir às reuniões do Conselho de Administração, podendo tomar conhecimento
directo de tudo o que era mais importante.
Na fase Expo, a nossa atenção foi especialmente virada para acolher os profissionais de
comunicação de todo o Mundo – e foram 11.000 ao longo dos 132 dias do evento – e proporcionar-lhes as melhores condições de acesso à informação. No Centro Imprensa funcionou a Redacção
Central que, tal como uma agência de notícias, alimentava permanentemente em quatro línguas
a sala de imprensa, mas também o jornal diário editado em parceria com o “Diário de Notícias”.
A Tele Expo, para além de apoiar as televisões de todo o mundo que se nos dirigiam, emitiu,
em articulação com a RTP, várias horas de programação diária no segundo canal. E a Rádio
Expo permitiu dar condições especiais de trabalho aos dois grandes “partners” nesta área –
Rádio Renascença e RDP. Foram feitas diversas emissões especiais por televisões e rádios
estrangeiras, naquela que fora até à época a maior operação de relações públicas do nosso
país no estrangeiro e … também em Portugal, já que não menos importante foi elevar a auto-estima dos nossos compatriotas, mostrando que, à semelhança de outros, também éramos
capazes de sonhar e concretizar com altos índices de criatividade e qualidade.
FMP: Como foi conjugado em termos de gestão e de organização um “projecto global” como
o da EXPO 98, onde de facto se incluíram dois projectos (“Refere-se a ideia de “projecto
global” porque nele se incluem dois projectos, estreitamente harmonizados entre si: a
realização da Exposição Mundial de Lisboa e a regeneração urbana de uma área de 340
hectares”), sabendo, desde já, que é o “projecto de regeneração urbana” que leva à criação
da “estrutura organizativa e económico-financeira capaz de acolher e englobar todas as
valências implicadas na realização da Exposição”?
JPV: Houve, por vezes, que fazer quase dois projectos para cada edifício – fases expo e pós-expo; houve que estudar muito o tipo de utilizações posteriores e que encontrar parceiros
para esses novos usos. Mas diria que, globalmente, não foi difícil assegurar essa coordenação,
pois sentimos, desde o início, que, para além da festa em 1998, o êxito principal da operação
049
residiria exactamente neste ponto – evitar que a Expo fosse algo de efémero e garantir o
equilíbrio e qualidade urbana futura de uma área maior do que muitas cidades portuguesas.
O principal instrumento para atingir este fim foi ter uma mesma equipa e empresa, integradas,
050
a concretizar uma fase pensando ao mesmo tempo na seguinte.
FMP: Quais foram os maiores desafios na concretização de um projecto de abrangência
mundial como o da EXPO 98, que abarcou um conjunto diversificado de intervenientes
(nacionais e estrangeiros)?
JPV: O maior desafio foi acreditarmos em nós próprios, no país e nos portugueses. Houve
naturalmente fases muito delicadas, desde o início das negociações com os anteriores ocupantes
do espaço objecto de intervenção até à melhor escolha dos projectos, passando depois pela
mudança de Governo e do próprio Comissário. A capacidade de coordenação de todos os
projectos e actividades exigiu o melhor de cada um. Mas, em minha opinião, nada se aproximou
do problema de revelarmos ou não capacidade psicológica para ultrapassar a descrença
habitual em nós próprios e acreditar, baseados no time schedule que tínhamos definido, em que
seríamos bem sucedidos.
FMP: Como foi definido o que seriam espaços arquitectónicos/expositivos efémeros, com
os espaços arquitectónicos/expositivos permanentes, e se na altura da organização da EXPO
98 a refuncionalização dos edifícios já tinha sido pensada?
JPV: O plano urbanístico dos 340 hectares colocou o recinto da Expo como seu coração. Neste
centro foram criadas as âncoras urbanísticas de toda a zona. O Oceanário, ex-libris da Exposição,
o maior aquário da Europa, foi naturalmente pensado para poder constituir-se em atracção
duradoura da cidade; o Pavilhão da Utopia nasceu já com o conceito de pavilhão multiusos de
que a capital precisava e cuja construção tinha sido inicialmente apontada para outro local em
Lisboa; a área internacional norte – foi preciso criar uma outra efémera, a sul, dada a participação
recorde de países – foi desenhada já tendo em conta todas as especificações dadas pela FIL
para vir a tornar-se depois na nova Feira; e a própria entrada principal do recinto, a porta à
qual se acedia através da Estação do Oriente, foi projectada nos seus toscos para vir a ser um
centro comercial (Vasco da Gama). Podemos dizer que, com estes elementos fundamentais
ficou definida a estrutura urbana base da nova zona. Se a eles juntarmos a Marina, o Pavilhão
do Conhecimento, o Teatro Camões pode dizer-se que o conjunto das construções definitivas
foi muito extenso, reduzindo a indefinição a muito poucos edifícios, caso do Pavilhão do Futuro
(hoje o Casino Lisboa) e do Pavilhão de Portugal (o qual, após várias hipóteses de uso, carece
ainda de um verdadeiro entendimento entre o Governo e a Câmara Municipal de Lisboa para
dar a este ícone arquitectónico de Siza Vieira uma utilização compatível com as suas
características de espaço de vocação museológica-expositiva).
Lisboa é um exemplo à escala mundial de uma Expo pensada para o futuro. Se comparada
com Sevilha, essa marca ressalta muito fortemente e não constitui assim total surpresa que
a grande metrópole de Xangai acabe de convidar a Parque Expo a pensar o futuro do recinto
da sua exposição universal de 2010. É uma grande prova de reconhecimento desta imagem de
marca da Expo, hoje envolvida em projectos urbanos em Portugal (Polis) e noutras cidades
como Argel ou Recife.
FMP: A EXPO 98 atingiu os objectivos culturais, urbanísticos e ambientais pré-estabelecidos?
JPV: Sem exagero, penso que os superou. Poucos pensariam que a qualidade arquitectónica
e dos espaços públicos do recinto fosse tão alta. Seria difícil imaginar que, ao longo de 132
dias, fosse possível montar uma programação cultural tão forte compreendendo nove mil
eventos, a maior parte deles promovidos pela Parque Expo – de que a Peregrinação ao fim da
tarde e o Aquamatrix ao princípio da madrugada foram expoentes máximos – e outros trazidos
pelos países participantes, nalguns concertos memoráveis. Do ponto de vista urbanístico,
conseguiu-se definir um modelo muito equilibrado em que habitação, serviços, comércio, lazer
e espaços verdes se combinam numa proporção correcta. Do ponto de vista ambiental, foi a
maior operação de regeneração do território feita até hoje em Portugal – descontaminando
solos, limpando o Trancão, criando infra-estruturas modernas (recolha pneumática de lixos,
sistema central de frio e calor, galerias técnicas para diversos tipos de condutas) ou ainda
fazendo nascer um Parque de 80 hectares e outros jardins e espaços verdes. O balanço é
francamente positivo.
FMP: A afluência de públicos correspondeu às previsões estabelecidas pela organização da
EXPO 98?
JPV: Correspondeu globalmente, embora as parcelas que contribuíram para o resultado total
não tenham sido exactamente as previstas. Ou seja: de um total superior a 10 milhões de
visitas, os portugueses contribuíram com metade, o que foi excepcional. Mais de metade da
população portuguesa visitou aquele recinto, o que é extraordinário. Em termos de estrangeiros,
Espanha – talvez por já ter vivido experiência comparável em Sevilha ou pensar que não
encontraria alojamento após uma viagem de carro até Lisboa – não correspondeu com os
números que havíamos pensado, acabando por ser compensada por outros mercados europeus
que estiveram melhor do que as previsões. A afluência foi em crescendo até final, tendo sido
fortíssima nos meses de Agosto e Setembro e culminando no dia de fecho com mais de 400
mil pessoas dentro de um recinto desenhado para suportar não mais de 200 mil. Foi um
encerramento memorável, rodeado de grande emoção e com uma total identificação dos
presentes com aquele espaço.
051
FMP: Hoje, passados 9 anos, o que sente quando olha para o Parque das Nações, considerando
que o “motor” para o seu desenvolvimento (parte oriental de Lisboa) foi a EXPO 98?
JPV: Sinto, claramente; um grande orgulho e que foi uma aposta realmente ganha. É hoje,
052
sem dúvida, a nova centralidade da Área Metropolitana de Lisboa. A zona tem vida urbana
intensa, muita gente a residir, muita gente a trabalhar, equipamentos de lazer que atraem
milhares e milhares de pessoas, pessoas que fazem jogging à beira-rio, espaços públicos que
mantêm forte atractividade. Apesar de ter ainda duas-três questões por resolver (renascimento
da Marina, completamento da área norte junto ao Trancão), o projecto fez-se em menos tempo
do que tantas vezes tive oportunidade de anunciar: os terrenos estão vendidos e a construção
concluída mais cedo do que 2009. Isso só aconteceu porque o mercado respondeu positivamente
a uma oferta única, de qualidade, com uma densidade de ocupação que, no conjunto dos cinco
quilómetros, é muito aceitável. Tudo isto num projecto onde o Estado investiu menos de 600
milhões de euros e onde foi buscar em taxas e impostos oito vezes mais!
João Paulo Velez
Natural de Lisboa, 50 anos.
Director de Comunicação da Parque Expo 98, Porta-Voz do seu Conselho de Administração desde 1993 até 2004. Foi
igualmente Administrador da Atlântico – Pavilhão Multiusos de Lisboa.
Antes disso foi jornalista durante 18 anos.
Presentemente, é Consultor de Comunicação.
2. LISBOAPHOTO2005
Sérgio Mah – Comissário
053
FMP: Qual a motivação que o levou a comissariar a Lisboaphoto2005?
SM: Entendo o trabalho do comissário numa dupla perspectiva: como alguém que procura
propor uma análise, uma elaboração significante, sobre um determinado campo, prático,
formal, discursivo e conceptual; num outro plano, é um promotor no sentido em que intervém
como mediador, ou até mesmo facilitador, da relação entre os artistas e o público em geral.
Nesta lógica, um evento como a LisboaPhoto é sempre uma oportunidade única e extraordinária.
É um projecto que teve lugar no grande centro urbano e cultural do país e que, também por
isso, assumiu desde logo objectivos bastante ambiciosos. Por outro lado, foi especialmente
motivante poder trabalhar e criar sinergias com a quase totalidade das instituições culturais
de referência da cidade de Lisboa.
FMP: Qual a missão de um projecto como a Lisboaphoto?
SM: A LisboaPhoto surge da expectativa em concretizar um evento de grande visibilidade sobre
o campo da fotografia nas suas mais diversas dimensões. De forma mais específica, a
LisboaPhoto seguia as seguintes prioridades: propor uma perspectiva alargada do fenómeno
da fotografia, sublinhando as suas incidências singulares bem como suas relações com outros
dispositivos e processos de exercer a cultura das imagens; a ênfase nas tendências
contemporâneas da imagem em articulação com a relevância de certos legados históricos; a
compatibilização entre vários níveis culturais e artísticos no sentido de suscitar e projectar
junto do público um confronto produtivo (e formativo) com a complexidade dos procedimentos
autorais e funcionais suscitados pela fotografia; promover a acção e vocação dos equipamentos
culturais afectos à Câmara Municipal de Lisboa; a necessidade e proficuidade do estabelecimento
de parcerias activas com as principais instituições de arte e cultura da cidade de Lisboa; e, por
fim, promover a produção fotográfica nacional, incluindo a sua contextualização no panorama
da fotografia internacional.
FMP: Como foi definido o tema – “A imagem cesura” – da Lisboaphoto2005 e como é que o
mesmo se desenvolveu ao nível da programação, mais concretamente no que se refere à
escolha dos fotógrafos e artistas?
SM: Num momento histórico em que constato uma certa tendência para a (excessiva) valorização
dos dispositivos híbridos e objectos multidisciplinares, e ao mesmo tempo em que se alude
com frequência a uma suposta nova era “pós-fotográfica”, pareceu-me que seria importante
(e provocante) trabalhar sobre a ideia e competências do «fotográfico». Daí que tenha preparado
um programa que, ao mesmo tempo, procurou concentrar e alargar as diversas noções e
possibilidades em torno da fotografia enquanto campo material, técnico, estético e discursivo.
Na selecção dos artistas e obras procurei valorizar o seguinte: trabalhos que revelam uma
054
acuidade excepcional pelas múltiplas faculdades da fotografia, como se a sua distintividade
fosse o primeiro valor de afirmação estética e epistemológica. Nos seus pontos de convergência
e dissonância, a selecção dos artistas e das obras articulou-se a partir da delimitação de um
conjunto de tópicos significantes: o apelo à imagem realista, quer num âmbito documental,
ficcional ou performativo; a questão do enquadramento na fotografia e suas potencialidades
estéticas e técnicas na reconfiguração do espaço real; a imagem fotográfica e a experiência
de suspensão e fixação do movimento e do tempo; a especificidade do funcionamento do
dispositivo fotográfico e a sua relação com a fenomenologia da luz.
FMP: Como se desenvolveu na Lisboaphoto 2005 todo o processo que envolveu o convite aos
artistas e aos fotógrafos (diferentes fases do convite)?
SM: Eu era o responsável pelos primeiros contactos. Normalmente, enviava uma carta ou um
e-mail a apresentar o convite ao artista, referindo a natureza do projecto e as características
da exposição. A partir daqui iniciava-se um período de discussão sobre a escolha e número
de obras, sobre as necessidades e custos de produção, entre outros assuntos, até se chegar
a uma base de entendimento de natureza conceptual, logística e financeira. A partir daqui o
processo passava para a direcção de produção que prosseguia com todos os inerentes à
contratualização, transporte e seguros.
FMP: No que concerne aos espaços físicos para a realização das diferentes exposições, como
se rege um projecto com características efémeras como a Lisboaphoto2005?
SM: Existem muitas maneiras de abordar esta questão. Por razões logísticas e financeiras, a
definição do programa e das obras a expor teve em atenção a disposição e condições de cada
espaço. Quero com isto dizer que procurámos, sempre que possível, adaptar as obras ao
espaço, evitando intervenções arquitectónicas que normalmente tem um peso muito elevado
no orçamento de um evento com esta dimensão.
FMP: Sendo a Lisboaphoto2005 um projecto ligado à Câmara Municipal de Lisboa como foi conjugada
a relação do poder autárquico, com a sua ideia de Exposição, e com as diferentes instituições
públicas e privadas (patrocínios, parcerias) que, de alguma forma, participaram no evento?
SM: Nunca se pensou nesses termos. Em relação à Câmara Municipal de Lisboa, nunca houve
qualquer tipo de constrangimento ou interferência “superior” relativamente às nossas opções
programáticas. O mesmo se passou com as instituições parceiras. Acredito que todos
reconheciam e confiavam no sentido de responsabilidade, na seriedade e competência da
equipa de concepção e produção da LisboaPhoto.
FMP: Existiu algum estudo de públicos da Lisboaphoto2005?
SM: Não houve propriamente um estudo. Fez-se uma contagem de visitantes. A última versão
de que tive conhecimento apontava para um total a rondar as 80 mil pessoas.
FMP: Considera que a Lisboaphoto2005 consegui atingir uma notoriedade internacional?
SM: Depende do que se entender por notoriedade internacional. Mas é certo que é conhecido
por muitos protagonistas do meio internacional da fotografia. As duas primeiras edições da
LisboaPhoto envolveram muitos artistas, escritores e instituições estrangeiras, portanto, é
natural que tenha havido alguma “reverberação” no exterior. Além disso, os catálogos da
LisboaPhoto tiveram distribuição internacional.
FMP: Qual o elemento de diferenciação entre a Lisboaphoto e projectos congéneres nacionais
e internacionais?
SM: Em relação à generalidade dos festivais de fotografia diria que a LisboaPhoto procurou
ter uma abordagem mais abrangente da prática fotográfica e da ideia de fotográfico, e que
procurou uma maior vinculação às questões da arte contemporânea. Mas sou obviamente
suspeito.
FMP: Considera que o modelo encontrado pela Lisboaphoto consegue assegurar continuidade
deste evento artístico e cultural?
SM: Em termos conceptuais, indiscutivelmente. Em termos organizativos, não. Respondo-lhe
em Março de 2007 e já é oficial o cancelamento, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, da
edição de 2007, que deveria ter lugar em Maio-Junho. Estes eventos culturais estarão sempre
no limiar da descontinuidade enquanto imperar uma política cultural excessivamente dependente
dos “humores” e “conveniências” dos seus responsáveis políticos.
Sérgio Mah é licenciado em Sociologia e Mestre em Ciências da Comunicação. Actualmente, é Professor de História da
Fotografia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e no AR.CO – Centro de Arte e
Comunicação Visual. Em paralelo, tem publicado vários ensaios sobre história e teoria da fotografia. Foi o comissário
das duas primeiras edições da Bienal LisboaPhoto (2003 e 2005).
055
CAPÍTULO III
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
057
CIRCUITO
INSTITUCIONAL
MISTO
1. ARTE LISBOA – FEIRA INTERNACIONAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA
Ivânia Gallo – Directora
ARTE LISBOA – Feira de Arte Contemporânea
Lisboa, Novembro 2006
A ARTE LISBOA é um evento da vida cultural e social do país que tem por missão reunir as
condições adequadas para a realização de uma feira de qualidade dedicada à arte moderna e
contemporânea.
Até à edição de 1999, a Feira de Arte Contemporânea surgiu integrada na FIIC – Feira
Internacional das Indústrias da Cultura, um evento bienal da responsabilidade da AIP_FIL.
Neste ano e em parceria com a APGA – Associação Portuguesa de Galerias de Arte, a AIP_FIL
organiza a FAC – Feira de Arte Contemporânea como certame autónomo e anual.
Em 2000 mantém-se a organização bipartida com a APGA. São convidadas 6 galerias brasileiras,
convite este justificado pelas Comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, bem
como pela enorme vitalidade revelada pelo trabalho dos seus artistas, cuja presença em
058
circuitos internacionais se tornara cada vez mais forte nos últimos anos. Apresentaram-se
igualmente 7 galerias espanholas e 34 portuguesas, a Fundação EDP.Arte e o MEIAC – Museo
Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo.
Em 2001, a AIP_FIL assume por completo a organização e a direcção da FAC, passando a
denominar-se de ARTE LISBOA – Feira de Arte Contemporânea. Esta primeira edição, da
inteira responsabilidade da AIP_FIL, teve a presença de um total de 53 galerias, sendo 27 de
Portugal, 24 de Espanha, 1 da República Checa e 1 da Alemanha. O MEIAC manteve a sua
presença. A feira recebeu 10.723 visitantes nacionais e estrangeiros.
Em 2002, com a presença de 47 galerias oriundas de Portugal (28), de Espanha (16), da Bélgica
(2) e de França (1), a feira foi visitada por 14.000 pessoas, nos cinco dias de realização.
Em 2003 mantém-se a presença forte de galerias portuguesas (29) e espanholas (13) e de 1
galeria italiana e 1 alemã. Os visitantes foram 13.000 neste ano.
A edição de 2004, assinala a criação de um espaço que integrou 4 galerias do Brasil e 2 de
Moçambique, com curadoria de António Pinto Ribeiro, bem como a presença de 32 galerias
portuguesas, 12 espanholas e 1 italiana. Foi criado um programa de actividades paralelas, que
incluiu: o Ciclo de Conversas – com a organização de mesas-redondas dedicadas aos temas
Artistas de África e do Brasil: condições de produção; Crítica de Arte e Mercado e Colecções
e Coleccionadores: impulsões, compulsões, investimento; o Ciclo de Cinema de Artistas e
também a iniciativa “A Feira na Cidade” em colaboração com o CAM – Centro de Arte Moderna
da Fundação Calouste Gulbenkian e o Museu do Chiado, que tiveram larga participação do público.
A 5ª edição, em 2005, marca a renovação e a ampliação da estrutura organizativa da ARTE
LISBOA. São objectivos da organização, elevar os critérios de qualidade da feira, fomentar as
aquisições, multiplicar as actividades culturais coincidentes e alargar a comunicação a novos
colectivos potencialmente interessados pela arte contemporânea por forma a que o certame
se transforme num dos acontecimentos mais importantes da arte contemporânea nacional e
ibérica.
Sendo a única feira de arte contemporânea portuguesa, inicia um novo ciclo e oferece algumas
novidades muito relevantes. Pela primeira vez, a edição da ARTE LISBOA contará com o Alto
Patrocínio do Presidente da República que preside uma Comissão de Honra que integra
entidades de prestígio, ligadas às actividades culturais e económicas do país; com uma Comissão
Consultiva, integrando vários intervenientes e representantes de entidades públicas e privadas,
que assume a definição e apoio à implementação das linhas gerais de actuação da feira, e com
uma Comissão de Selecção constituída por galeristas nacionais e estrangeiros, que irá ter na
organização da feira um papel determinante na análise da qualidade dos expositores.
No panorama do amplo conjunto de actividades paralelas organizado para esta edição da Feira
de Arte Contemporânea destaca-se o Ciclo de Debates com mesas-redondas organizadas,
respectivamente, pela ADIAC – Associação para a Difusão Internacional da Arte Contemporânea
sobre o tema “O olhar do coleccionador”, pela APGA – Associação Portuguesa de Galerias de
Arte sobre o tema “Importância Económica do sector da Arte Contemporânea em Portugal”
e promovida pelo IA – Instituto das Artes, sobre o tema “Direitos Privados e Interesses Públicos:
a obra de arte contemporânea entre o artista e o coleccionador”.
Foi igualmente apresentado o projecto “Divergentes”, por Roberto Gomez de la Iglesia.
Um novo espaço dirigido aos mais jovens foi integrado nesta edição da feira. Trata-se de uma
iniciativa intitulada ARTE KIDS que oferece um conjunto de acções lúdico-pedagógicas, cujo
objectivo é promover uma participação activa, dinâmica e criativa do público infantil. O programa
compõe-se de visitas-jogos que se efectuam com base num percurso feito ao longo do espaço
de exposição e da realização de ateliers de expressão plástica, tornando mais rica e mais
plural a oferta cultural da ARTE LISBOA 2005.
Participam nesta edição 58 galerias, sendo 41 portuguesas, 13 espanholas, 2 alemãs, 1 brasileira
e 1 russa.
A inauguração da feira foi presidida pela Ministra da Cultura com a presença dos membros
da Comissão de Honra, Consultiva e de Selecção, convidados VIP – programa de coleccionadores,
jornalistas nacionais e estrangeiros e convidados VIP do BPI – Banco Português do Investimento
e dos expositores. Realizou-se um “happening” à entrada do certame, da autoria de Miguel
Palma, intitulado “O Muro”, seguido do lançamento do livro, no auditório do evento, do artista
plástico Jorge Martins, com texto de José Gil e edição do BPI – Banco Português do Investimento,
patrocinador principal do evento.
As iniciativas apresentadas nesta edição incluíram ainda a criação do Clube Coleccionadores
ARTE LISBOA que expressa o compromisso da organização em promover o coleccionismo,
incentivando o mecenato e a aquisição de obras de arte expostas na feira e afirmar o importante
papel que as empresas e entidades têm na aquisição de obras de arte para as suas colecções
059
privadas. Neste primeiro ano aderiram ao Clube as Fundações PLMJ e Horácio Roque, a Liberty
Seguros e a AIP – Associação Industrial Portuguesa / CCI.
Esta edição recebeu a visita de 14.642 pessoas.
060
Em 2006, a ARTE LISBOA regista o maior número de visitantes de sempre, 19.283 pessoas.
Também o número total de galerias expositoras subiu para 64, sendo 47 portuguesas,
sublinhando-se a participação de quase todas as presentes na edição anterior, num sinal claro
de confiança na iniciativa e a estreia de 7 novas galerias. Espanha marcou presença com 11
galerias, o Brasil com 2, a Alemanha com 1 e, pela primeira vez, Cuba, a Hungria e o México
apresentaram-se na feira, cada um destes países com uma galeria, o que traduz uma
diversificação dos participantes internacionais. O espaço disponibilizado para a realização do
certame acompanhou o sucesso que o evento tem obtido junto do público, comunicação social,
galeristas e críticos, atingindo a maior metragem de sempre concedida para o evento. Além
disso, a feira contemplou um variado leque de actividades paralelas e complementares que,
diversificando os interesses, comportavam uma maior logística.
A oferta de actividades paralelas – que se iniciou em 2005, com a criação de um Ciclo de
Debates, o ARTE KIDS e o Clube de Coleccionadores – repetiu-se em 2006. Esta estratégia de
diversificação visa potenciar a dimensão cultural e também económica da ARTE LISBOA,
fidelizando os públicos, os galeristas e investidores no evento. O público aderiu significativamente
a estas acções complementares à dinâmica expositiva, tendo, no caso do ciclo de debates, o
recinto destinado a esse projecto lotado constantemente.
Nesta edição, o Ciclo de Debates, em parceria com a ARTECAPITAL.NET, lançou para a mesa
um total de 7 temas de reflexão, transversais ao estado da arte que contou com a participação
de personalidades do panorama artístico – artistas, críticos, curadores e directores de museus:
“Portugal, Espanha e Brasil: 3 países para um projecto” coordenado por Paulo Reis e David
Barro da Revista Dardo que convidaram Albano Afonso, Álvaro Negro (Espanha) e Pedro Calapez;
“EKPHRASIS: entre o verbo e a figuração plástica, reconstrução dos sentidos” coordenado
por Dália Dias e tendo como convidados André Ruivo Matias, Maria Manuel Rocha Baptista,
João Jacinto e Fernando Luís Sampaio; “A arte de coleccionar Arte” coordenada por Filipa
Oliveira e como convidados Pedro Lapa, Anísio Franco e Gill Hedley (Inglaterra); “Fotografia:
políticas e práticas”, com coordenação de José Maçãs de Carvalho e convidados Delfim Sardo,
Horacio Fernández (Espanha), Rui Prata, Pedro Letria, Alexandre Pomar e João Mário Grilo;
“Artista emergentes e curadores”, com coordenação de João Silvério e convidados Maria do
Mar Fazenda, Ricardo Nicolau, João Leonardo e Pedro Barateiro; “Arte digital e Media Art”,
com coordenação de Maria da Luz Nolasco que convidou Mário Vairinhos, Ana Figueira, Pedro
Cabral Santo, João Raposo e Fernando José Pereira e “Como trabalhar a dicotomia periferia-
centro” coordenado por Isabel Carlos que convidou Jürgen Bock e Deepak Ananth (França).
Para além das iniciativas dirigidas ao público em geral, a ARTE LISBOA voltou a apostar no
Clube de Coleccionadores direccionado para instituições, empresas ou privados interessados
na aquisição de obras de arte. Na sexta edição, o Clube atraiu 2 novos membros: a CML –
Câmara Municipal de Lisboa e a ANA Aeroportos. Para além destas instituições, um conjunto
de compradores de obras expostas na ARTE LISBOA aderiu ao Clube de Coleccionadores tendo
preferido manter o anonimato.
A AIP/FIL, em parceria com a ATL – Associação Turismo de Lisboa, com as galerias participantes
e outras entidades, organizou ainda um Programa Especial para Coleccionadores e Agentes
da Imprensa Nacional e Internacional, no qual deu a conhecer os acervos de importantes
colecções de arte de instituições privadas e públicas, fundações, centros culturais. O programa
incluiu ainda visitas a diversas galerias e exposições patentes em espaços culturais de arte
de referência no panorama nacional, assim como diversas acções de iniciativa dos galeristas
que decorreram depois do horário da feira. Os convidados puderam conhecer, por exemplo,
a Colecção de Arte do Grupo Banco Espírito Santo (BES), o Art Centre da Fundação Ellipse, em
Cascais, inaugurado neste ano, bem como a Culturgest e o Centro de Arte Moderna José de
Azeredo Perdigão.
Entre os patrocinadores que apostaram na Feira de Arte Contemporânea, destaca-se o BPI
– Banco Português do Investimento, enquanto principal patrocinador, permitindo financiar, em
particular, as iniciativas complementares da ARTE LISBOA e a alargar os públicos da feira. A
organização da feira firmou igualmente parcerias com empresas, com destaque para o acordo
celebrado com a TAP e também com a Nissan. No caso da TAP, foi oferecido um desconto aos
participantes na Feira de Arte Contemporânea que adquirissem o bilhete através do site da
TAP Portugal. Por sua vez, a multinacional Nissan decidiu participar no certame onde apresentou
pela primeira vez ao público português um novo modelo automóvel, o Qashqai. Aliança que
permitiu à ARTE LISBOA chegar a públicos que poderiam estar alheados desta feira.
Sublinhe-se ainda o Alto Patrocínio do Presidente da República, à edição de 2006, o que
consolidou a rede de apoios ao certame, os quais certificam a qualidade e o valor cultural da
feira na promoção da arte contemporânea portuguesa e o trabalho desenvolvido pela Comissão
Consultiva responsável pela selecção das galerias, nacionais e estrangeiras, convidadas a
participar, tendo assente as suas escolhas no critério de qualidade tanto das propostas como
dos programas de actividade apresentados pelos candidatos, critério este que tem permitido
a manutenção do alto nível de qualidade das obras dos artistas expostas no certame.
Ivânia Gallo é gestora de Feiras da FIL em dedicação exclusiva e com vários anos de envolvimento nas Feiras de Arte.
061
CAPÍTULO IV
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
063
CIRCUITO
INSTITUCIONAL
PRIVADO
1. ELLIPSE FOUNDATION – CONTEMPORARY ART COLLECTION
João Oliveira Rendeiro – Presidente
FMP: Qual o conceito global da Ellipse Foundation?
JOR: O conceito global da Ellipse Foundation assenta na constituição de uma colecção de arte
contemporânea de topo e de referência a nível mundial, e que sirva também como um catalisador
de inter-relações no mundo da arte contemporânea – com outras fundações similares, com
residências de artistas e a educação dos jovens pela arte, entre outras iniciativas, tais como
conferências, mostras temáticas, colaborações com as escolas, etc.
FMP: Qual a orientação actual da colecção e quais os critérios para a aquisição das obras?
JOR: O núcleo central da colecção incide na produção artística da viragem do século XX para
o XXI, expressa em diversos meios, desde o desenho, pintura, escultura, passando pela fotografia,
filme, vídeo e instalação.
Tendo em conta os critérios normalmente utilizados no mercado de arte internacional, a colecção
não se rege por critérios estritamente economicistas, até porque às vezes os nomes que
apresentam subidas mais significativas também podem, ao fim de um certo período, apresentar
064
elevada desvalorização. Atravessamos uma época de grande circulação de informação com a
consequente complexificação do entendimento do fenómeno artístico, por isso, os critérios de
avaliação do mercado são extremamente fluidos e o melhor será analisar e entender a consistência
e profundidade das propostas artísticas. A colecção é pensada e construída a partir de diversas
perspectivas inerentes aos discursos da história da arte contemporânea, das várias práticas e
posições museográficas de relevância internacional e do valor que representam para um todo
que é a colecção. Estes factores são a maior garantia de qualidade de uma colecção.
FMP: A Ellipse Foundation para além de se centrar numa colecção de Arte Contemporânea,
o que já por si demonstra o carácter de divulgação artística, tem igualmente uma forte
vertente educativa que sublinha no projecto um sentido cívico e cultural abrangente, dando
como exemplo e tal como é afirmado no site da Ellipse Foundation: “Foi constituída
formalmente em 2004 com o objectivo de apoiar artistas contemporâneos através de diversas
iniciativas, que incluem não só aquisições e encomendas, como também programas de
residência de artistas, bolsas de estudo e projectos educativos”. Neste sentido, como é
elaborada e conjugada toda esta variedade de actividades, por um lado com a colecção, por
outro com a programação, ao nível das exposições, sabendo desde já a evidente relação que
existe nestas actividades para “apoiar os artistas”?
JOR: A Fundação Ellipse, embora privada, tem efectivamente uma forte componente de serviço
público, que desenvolve através de um conjunto de actividades totalmente gratuitas, tais como
as visitas guiadas à exposição decorrente, para escolas, universidades, professores e grupos
culturais, com destaque para o programa “Kids Around Ellipse”, dirigido ao público infantil,
através do qual as crianças são convidadas a conhecer os artistas da colecção, a compreender
as obras e a experimentarem técnicas e temáticas plásticas na prática. Estes ateliers são um
contributo activo para a prática da educação visual e o enriquecimento da linguagem e o
imaginário das crianças. Está prevista também a publicação de uma revista semestral para
estudantes, relacionada com a exposição decorrente, e que irá de uma forma acessível e
didáctica abordar diversos temas ligados à Colecção Ellipse, às suas iniciativas e ao mundo
da arte contemporânea.
A Ellipse tem participado também na produção de novas obras dos artistas, como aconteceu
com o Isaac Julien, com o James Coleman e ocorre com o Stan Douglas. E finalmente, irá
dinamizar um programa de residências de artistas, sobretudo internacionais que virão a
Portugal trabalhar com artistas Portugueses.
FMP: Quais os objectivos ao nível de públicos para a Ellipse Foundation?
JOR: Não existe propriamente um objectivo definido a nível de públicos. A colecção Ellipse está
disponível ao público interessado. Seria obviamente gratificante atingir um espectro muito
abrangente a nível de visitantes, não só nacionais como internacionais. No entanto, esta não
é uma preocupação fundamental.
FMP: Como é promovida a internacionalização da colecção da Ellipse Foundation?
JOR: No ano do lançamento da Ellipse, em 2006, foram organizadas algumas apresentações
internacionais, como em Madrid, Nova Iorque e Basileia. Na abertura oficial em Outubro,
tivemos mais de 500 convidados internacionais, entre os quais diversas personalidades do
mundo artístico, tais como artistas, galeristas, curadores e directores de museus.
A Ellipse Foundation tem vindo a alcançar um nível de notoriedade e prestígio significativos,
sendo bastante reconhecida nos círculos da vida cultural e artística internacional.
FMP: A Ellipse Foundation tem parcerias com outras instituições congéneres nacionais ou
internacionais?
JOR: Estamos, neste momento, a dinamizar um fórum de fundações e instituições culturais
similares, tais como a fundação Sandretto Re Rebaudengo, a François Pinault, a Anton Herbert
Collection e o DIA Center, que nos permitirá partilhar experiências, intercâmbio de obras e
exposições. A nível nacional temos uma parceria com o Centro Cultural de Cascais, onde já
expusemos na abertura oficial da Ellipse, e com o CAV em Coimbra que nos desafiou este ano
para a organização de uma exposição de obras da Colecção, sobretudo de carácter fílmico,
fotográfico e videográfico.
FMP: Quais as dificuldades sentidas na realização deste projecto Ellipse Foundation –
Contemporary Art Collection?
JOR: Sendo uma iniciativa totalmente privada, a realização deste projecto decorreu com a
agilidade e rapidez próprias desse sector, não apresentando qualquer tipo de dificuldade ou
obstáculo. Houve no início algum desacordo com a Fundação de Serralves em relação ao
depósito da Colecção por razões financeiras. Contrariando o projecto inicial da fundação, que
não incluía um espaço próprio, chegámos à conclusão que teria mais sentido investir num
espaço cem por cento privado. E por esse motivo, adquiriu-se o armazém em Alcoitão para a
posterior adaptação ao Art Centre.
FMP: Sendo a Ellipse Foundation – Contemporary Art Collection tal como afirma: “É, sem
dúvida, um sonho meu tornado realidade” e tendo ela a situação actual, igualmente, como
afirma: “TOWARDS THE END OF THE BEGINNING – O título desta peça de Lawrence Weiner
(2002) descreve perfeitamente a situação actual da Ellipse Foundation – Contemporary Art
Collection”, como olha para o futuro deste tão recente “sonho tornado realidade”?
065
JOR: Olho com optimismo que é a minha atitude natural perante a vida. Pensando igualmente
noutro princípio fundamental da minha conduta que é a da renovação permanente e, por isso,
achar tão fundamental a noção “towards the end of the beginning”.
066
João Manuel Oliveira Rendeiro nasceu em Lisboa em 22 de Maio de 1952, casado, licenciou-se em Economia em 1976
pelo Instituto Superior de Economia e Gestão e Doutorou-se (Ph.D) em Business Economics em 1984 pela Universidade
de Sussex, Inglaterra. Realizou vários cursos de pós-graduação em Gestão Global, Marketing Estratégico e Finanças,
entre outros, nas Universidades de Stanford, INSEAD, London Business School, AESE e IESE.
É Presidente do Conselho de Administração da Privado Holding, S.G.P.S., S.A. e do Banco Privado Português, S.A., bem
como de um conjunto de entidades subsidiárias. Administrador de vários Fundos, como o Iberian Opportunities Fund
(Luxemburgo) e GED Iberian Fund (Espanha), Ceará Investment Fund, Ctema Property Fund e Kinetics, S.G.P.S., S.A..
Integra o Comité de Investimentos do Fundo Stratus VC (Brasil), é membro do Conselho Consultivo do Fundo Fondinvest
V (França) e Administrador da OHL Brasil, empresa cotada na Bolsa de São Paulo, Brasil.
É Presidente da Fundação Luso-Brasileira, da Ellipse Foundation – Contemporary Art Collection e da Associação EIS –
Empresários pela Inclusão Social. É Vice-Presidente da CIEP – Confederação Internacional dos Empresários Portugueses.
É membro do Conselho Consultivo do ISEG – Instituto Superior de Economia e de Gestão. É Fundador de Mérito da
Fundação de Serralves e Curador do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Foi recentemente condecorado com
a Medalha de Honra do Município de Cascais. Participa na Clinton Global Initiative. A revista Norte-Americana “Art Review”
considerou-o uma das 100 personalidades mais influentes no Mundo da Arte em 2006.
2. BES ART – COLECÇÃO BANCO ESPÍRITO SANTO
Alexandra Fonseca Pinho – Responsável pela Colecção
067
FMP: Qual o conceito global da BES Art – Colecção Banco Espírito Santo?
AP: A colecção BES Art começou em 2004 e a ideia principal foi criar uma colecção de nível
internacional em que se viessem a inserir os artistas portugueses que considerássemos que
deviam lá estar de forma a ajudar à sua divulgação a nível internacional e mundial, porque de
facto é completamente diferente alguém querer ir ver uma colecção portuguesa ou ver uma
colecção de arte internacional em que estão alguns portugueses e a ideia é essa. Continua,
no entanto, a ser maioritariamente uma colecção de artistas internacionais. Na colecção há
também uma parte de jovens artistas ou de artistas que considero emergentes, e já menos
emergentes que são, digamos, uma aposta no futuro, e que no futuro se verá se virão a fazer
parte do espólio principal ou não. Neste momento, fazem parte da colecção não quer dizer que
sejam para continuar, tudo depende do percurso que esses artistas venham a fazer.
FMP: Quantas peças existem na colecção?
AP: Quinhentas obras, o que equivale a muito mais em termos de fotografias porque existem
obras que são constituídas por várias imagens. Há uma obra do Andres Serrano com 52
imagens, uma da Helena Almeida com 12.
FMP: É público e reconhecido o apoio incondicional do BES à História da Arte Contemporânea
através de uma das grandes linguagens da modernidade artística – a fotografia. Este apoio
traduz claramente o BES como um patrono nas artes, motor constante na sedimentação dos
valores artísticos da contemporaneidade através, por exemplo, do BES Photo, do BES
Revelação e do Prémio Fotojornalismo Visão, para além do Concurso de Fotografia – Cais,
o que diferencia a Fotografia para o BES como um projecto de responsabilidade social com
um sentido cívico e cultural abrangente. Neste sentido, como é elaborada e conjugada esta
variedade de actividades, por um lado com a colecção, por outro com a programação a nível
das exposições?
AP: Voltando um pouco atrás, também para reenquadrar isto é importante um aspecto que
não focámos, que foi o facto desta colecção ter sido feita no século XXI, portanto uma colecção
sobretudo baseada em obras do século XXI, em obras, perfeitamente, contemporâneas. Existem
excepções, obviamente, há artistas como a Cindy Sherman ou a Helena Almeida que nós
sentimos necessidade de ir atrás, ou do Robert Frank que para, obviamente, mostrar o trabalho
actual era preciso mostrar um pouco o historial. Mas, na maioria dos casos, aquilo que estamos
a tentar mostrar é o que os artistas estão a fazer neste momento. É, actualmente, e não tentar
preencher o gap do facto de em Portugal não ter havido coleccionismo de fotografia nem muito
coleccionismo de arte contemporânea. Vamos assumir esse gap e vamos continuar para a
frente senão nunca teremos uma colecção de arte contemporânea. Enfim, isto foi assumido.
068
Prende-se também um pouco com a questão daquilo que estamos a querer fazer em termos
de mecenato. Portanto, a ideia é que a colecção seja completamente separada das restantes
actividades, ou seja, a colecção é uma coisa as outras actividades são completamente diferentes.
O prémio BES Photo, BES Revelação foram criados, com a minha colaboração pela equipa que
estava na altura também a tratar da imagem da colecção. Neste momento, os prémios são
geridos pelo departamento de comunicação. Aquilo que se pretende é dar continuidade a esses
prémios por forma, exactamente, a que pelo facto de eles continuarem, se perpetuarem, porque
é aquilo que o Banco Espírito Santo tem vindo a fazer em tudo o que projecta. Investe para
ficar e aquilo que está a fazer é exactamente dar uma ideia que não tem sido uma constante
nos prémios em Portugal, de que estes prémios são para continuar, e isso é o que considero
que vai dar força e impacto, e vai ajudar ao desenvolvimento deste campo artístico na medida
em que há prémios estabelecidos, há metas a alcançar e tudo isso ajuda a estratificar o mercado
e a divulgar os artistas.
FMP: Portanto, os prémios têm a mesma idade, se assim se pode dizer, da colecção ou
surgem em paralelo independentemente de serem actividades completamente diferentes?
AP: Surgem em paralelo. São actividades diferentes, foram ideias que foram surgindo e que
se foram desenvolvendo naturalmente, e o mais rapidamente possível para serem um facto.
Como costumo dizer: “As coisas no papel são muito engraçadas, mas feitas são melhores”,
por muitos defeitos que tenham, feitas, normalmente, podem ser corrigidas e se não forem
feitas, e se as pensamos muito em vez de as fazer, normalmente, ficam só no papel.
FMP: Como é desenvolvida a programação ao nível das exposições, quer da colecção, quer
dos prémios de fotografia, sabendo desde logo a parceria existente entre a BES Photo e o
CCB e a parceria com Serralves do BES Revelação?
AP: Estas relações como todas as actividades relacionadas com patrocínios estão a cargo do
departamento de comunicação do Banco. Portanto, existem essas parcerias, todos os anos as
exposições relativas a estes prémios são feitas nessas instituições. Normalmente, são parcerias
plurianuais e a ideia é centrar nessas instituições cada uma das duas grandes actividades em
termos de prémios. Simultaneamente, há outras exposições que são, normalmente, patrocinadas
nessas mesmas instituições. Em Serralves é ao abrigo do próprio acordo que, anualmente, há
uma outra exposição que também é patrocinada no campo da fotografia, sempre no campo da
fotografia. Em relação ao CCB, é mais numa base casuística quando há exposições de fotografia
contemporânea nacionais ou internacionais que pensamos ou que o banco – sector da
comunicação –, considera que têm interesse em termos de visibilidade e em termos de público.
Portanto, sempre uma questão de que aquilo que nós queremos é ajudar a trazer ao público
português, dar a conhecer ao público português.
FMP: Ao nível da investigação na área da fotografia não existe qualquer tipo de apoio?
AP: Não há nem acordo em termos de investigação nem encomenda de obra. Há vários campos
em que o banco não entra e seria impossível actuar em todos. Tentámo-nos especializar nos
campos que achámos que não havia mesmo ninguém a fazer. Havia uns que nós achávamos
que não estava a ser mesmo feito e que achámos necessidade e ao mesmo tempo de interesse
para o banco fazer. Mas, tudo o que seja livros, a investigação está fora do âmbito dos apoios
do Banco porque seria dispersar os esforços, e o próprio banco especializou-se numas áreas
que considerou que tinham mais a ver com a sua actividade.
FMP: A identidade nacional é uma presença nos prémios atribuídos pelo BES. Esta presença
nacional basta-se a si como reforço de uma valorização e de uma divulgação artística
contemporânea acentuando naturalmente a produção artística contemporânea portuguesa
ou, existem ainda outros factores relevantes nesta estratégia de afirmação ao nível da arte
contemporânea. Conseguimos perceber, através de toda a divulgação, que há de facto uma
preocupação com a entidade nacional, agora aquilo que pergunto é: Existe preocupação
para além desta identidade? Ao nível da colecção já percebemos que sim.
AP: Ao nível da colecção, sim. Se reparar bem no tipo de apoios que o BES tem dado em termos
de exposições, vai reparar que também para a Magnum é algo que é sobre Portugal, embora
seja de artistas internacionais, mas é um olhar ao longo de 50 anos sobre Portugal. A Cândida
Höfer, mais uma vez, é um olhar de uma artista estrangeira sobre Portugal. Desta forma, o
banco quer contribuir para a auto-estima nacional, para aumentar um aspecto que parece que
na cultura portuguesa em todas as sondagens é muito fraco, que é o da auto-estima nacional
em termos de população. Isso é uma das questões que o banco tenta fazer através dos apoios
que dá a exposições porque se reparar são exposições nacionais ou exposições de artistas
internacionais com uma vertente sobre o país.
FMP: Portanto, todas as exposições acabam por se centrar directamente nesta questão da
identidade?
AP: Volto a repetir que este assunto está a cargo do departamento de comunicação que é quem
gere a estratégia de comunicação do banco, mas sim, tirando o caso de Serralves que é um
caso em que como é um acordo mais global. Agora nas outras que são caso a caso tem sido
uma constante, esse tem sido, de facto, o mote do apoio.
FMP: Existe alguma preocupação relativamente à internacionalização dos prémios atribuídos
pelo BES?
069
AP: Existe e o departamento de comunicação está a considerar a itinerância do prémio a nível
internacional. Aliás, se reparar os catálogos já são bilingues – português e inglês – o que
permite, obviamente, uma divulgação internacional. Por outro lado, a partir de este ano vamos
070
passar a fazer uma separata em espanhol sempre que se justificar para o caso de se levar o
prémio a Espanha.
FMP: Então, é possível afirmar que existem parcerias com instituições congéneres?
AP: Não vai ser bem assim, vai ser mais com eventos. Uma das ideias não tem a ver com uma
parceria com uma instituição, tem a ver mais com uma determinada altura em que consideramos
que seria o melhor momento para levar a Espanha essas iniciativas. Noutras cidades, vai
depender muito, é muito casuístico. Há cidades em que será com certeza uma parceria com
alguma instituição que vai ter que ser negociado.
FMP: Quais as dificuldades sentidas na realização do projecto BES Art – Colecção Banco
Espírito Santo?
AP: Nenhumas.
FMP: Mas não teve nenhuma dificuldade?
AP: Não. Só tive a dificuldade de ter de separar a colecção do resto porque, obviamente, é
muito particular e tem uma especificidade que obrigou a um tratamento especial.
FMP: Este projecto da fotografia no BES, especialmente ao nível da colecção, é uma proposta
idealizada pela Alexandra?
AP: Não.
FMP: Independentemente do apoio já existente às artes...
AP: Não, repare, vamos lá ver, há pessoas fundamentais nisto. O Dr. Paulo Padrão convidou-me para começar a auxiliar o banco na parte da escolha das iniciativas a apoiar, o que fazer
nesta área do mecenato cultural porque era uma área nova para o BES como tal, porque o
banco, normalmente, já tinha o apoio constante à Fundação. Tudo isso absorvia a parte do
mecenato. Até uma certa altura foi unicamente a Fundação, mecenato cultural. Obviamente,
existiam casos pontuais que o banco apoiava, uma iniciativa ou outra, mas não havia esta
continuidade e, sobretudo, a aposta num só tipo de projectos. Este foi um novo projecto em
termos de comunicação e foi criado pelo Dr. Paulo Padrão. Mas houve sobretudo o grande
interesse e apoio do Dr. Ricardo Salgado que quis, no fundo, voltar dos tempos actuais a fazer
aquilo que já o avô tinha feito em relação à Fundação, que é o apoio às artes de uma forma
contínua e continuada, profissional, se quiser, não casuística. Nesse sentido, o coleccionismo
também, porque a Fundação resulta do coleccionismo, no fundo voltar a dar um aspecto de
coleccionismo que desde o tempo em que a Fundação foi feita não voltou a desenvolver essa
vertente.
FMP: Mas de facto, conceptualmente, a ideia de colecção tal como ela é pensada a partir do
século XXI...
AP: O conceito de “como ela vai ser?” é meu, obviamente entendido pela Comissão Executiva
que o aprovou. A ideia da colecção é do Dr. Ricardo Salgado.
FMP: O BES tem algum espaço expositivo?
AP: Tem um pequeno espaço expositivo aqui na sede e vai ter outro espaço expositivo. Vai ser
um espaço de interacção entre o público do banco e o público de exposições.
FMP: Mas, no entanto, aqui onde está sediada a colecção existe um espaço…
AP: Expositivo. Esse espaço expositivo, neste momento, apenas funciona por marcação, ou
seja, quem estiver interessado em visitar, é ligar para a BES Art e nós marcamos e vêm visitar,
dadas as questões de segurança, sobretudo, porque estamos numa zona de alta segurança
do banco. Futuramente, vamos decidir se vamos fazer aqui uma abertura, por exemplo, às
segundas-feiras que é o dia em que os museus estão fechados. A ideia da segunda-feira é
exactamente para colmatar um dia em que há menos actividade cultural em Lisboa.
FMP: O BES tem parceria, neste caso concreto, com o CCB. Por exemplo, a exposição da
Cândida Höfer.
AP: Sim.
FMP: Como é acompanhado e desenvolvido todo o trabalho em relação à exposição da
Cândida Höfer, sendo que é o BES que apoia financeiramente a exposição.
AP: Foi uma conjugação de esforços. Eu conheci a Cândida em Serralves, enfim, eu sabia que
ela ia a Serralves a um determinado jantar de uma determinada exposição, e fui a Serralves
de propósito para a poder convidar, ou seja, no fundo para a poder instigar a vir a fazer um
projecto em Portugal. Obviamente que a minha “cenoura” era a Biblioteca de Coimbra porque
quem faz livros sobre bibliotecas não pode deixar de ter a Biblioteca Joanina de Coimbra. Por
essa razão, eu sabia que tinha um repto importante para a convencer a vir a fazer o projecto
a Portugal. Quando falei nisso, ela mostrou-se, obviamente, interessada em vir, e prontifiquei-me a ajudá-la a arranjar as autorizações para ela poder fotografar e, simultaneamente,
pesquisar outros sítios interessantes para ela poder vir a fotografar. Para a convencer a fazer
um projecto maior, falei com o CCB no sentido de virmos a fazer uma exposição com o que
ela viesse a fotografar, na altura sem sabermos se ia ser muito, pouco ou assim-assim. Depois
veio-se a conjugar com o CCB. No fundo, ela acaba por vir cinco vezes, e eu entretanto com
o Ministério da Cultura, com várias pessoas do património, com artistas, acabámos por fazer
uma listagem exaustiva do país daquilo que achávamos que seria interessante fotografar e,
posteriormente, o CCB pediu as autorizações todas e começou-se o processo. Mas ela veio
sempre. Repare, toda aquela exposição é feita com obras da Cândida Höfer.
071
FMP: Portanto, acabou por ser a Alexandra a convidá-la num projecto para Portugal e depois
surge essa hipótese do projecto ser realizado no CCB e, no fundo, é a Alexandra que
acompanha todo o processo em termos conceptuais da exposição, acompanha a artista…
072
AP: Inicialmente sim, mas depois em termos de acompanhamento e curadoria acabou por ser
o CCB a fazer. Agora, o que acontece é que tive sempre em contacto com a artista e foi em
conjunto que decidimos os sítios, embora não tivesse ido com ela a todos os locais.
FMP: Acompanhou sempre a parte de produção do trabalho da fotógrafa?
AP: A parte da produção sim, mas não todas as deslocações. Por exemplo, ao Norte não fui.
Fiz o que pude.
FMP: E ao nível do patrocínio…
AP: O livro foi editado por uma editora internacional e divulgado a nível internacional. Considero
que é completamente diferente dum catálogo de exposição que é ali vendido na exposição e
acabou. Isto é um livro que vai existir, que existe.
FMP: A Alexandra acompanha todas as exposições que são patrocinadas?
AP: Não. Eu não estou directamente ligada ao patrocínio das exposições. A decisão de patrocinar
uma exposição não pertence aqui, mas ao departamento de comunicação, muito embora
quando se trata de fotografia me possam pedir uma opinião sobre o interesse ou importância
da mesma.
Alexandra Fonseca Pinho é responsável pela “BES Art – Colecção Banco Espírito Santo”. Deutsche Schule Lissabon.
Licenciada em Gestão pela U.C.L. – Université Catholique de Louvaine (Bélgica). Frequentou cursos de História e Crítica
de Arte/fotografia nomeadamente em NYU – New York University e Columbia University (EUA). Foi co-comissária da
exposição (CCB – Lisboa e Manej – Moscovo) e do respectivo livro da Steidt Publisher “Espelho Meu – Portugal visto por
Fotógrafos da Magnum”; E foi responsável pela criação do “BES Photo”.
073
CAPÍTULO V
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
075
CIRCUITO
INSTITUCIONAL
COMERCIAL
1. GALERIA CRISTINA GUERRA
Ana Cristina Guerra – Directora
FMP: Como e porque surge a Galeria Cristina Guerra?
CG: Depois de ter trabalhado com várias galerias e ter feito vários projectos alternativos, resolvi fundar
a galeria em Março de 2001. Para tal, convidei vários artistas com quem já tinha trabalhado (João
Louro, João Paulo Feliciano, Miguel Palma e Pires Vieira), com os quais partilhava ideias comuns.
Juntaram-se entretanto ao projecto Rui Toscano, Noé Sendas, Michael Biberstein, Fernando
Calhau, Luís Paulo Costa, Filipa César e José Loureiro, seguindo-se Julião Sarmento – momento
de grande importância para a galeria em virtude de ser realmente o artista português de maior
reconhecimento internacional. Posteriormente, convidei artistas de cujo trabalho sempre gostei
como Matt Mullican (que tinha visto em Serralves por ocasião da exposição de João Louro e
João Tabarra) e Lawrence Weiner.
FMP: Qual o conceito global da galeria, nomeadamente, ao nível da escolha dos artistas?
CG: A ideia fundamental era a divulgação dos artistas portugueses e, consequentemente, a da
galeria, no contexto internacional.
076
FMP: A Galeria Cristina Guerra na programação, para além de apresentar exposições dos
seus artistas, convida, igualmente, curadores, neste sentido quais são os objectivos
programáticos da Galeria, abordando os critérios de selecção dos curadores?
CG: A galeria tem neste momento a decorrer um projecto que consiste na realização de um
ciclo de quatro exposições comissariadas por quatro curadores convidados durante quatro
anos. Este projecto teve início em 2004 com Around the Corner, exposição comissariada por
Carolina Grau (curadora da Black Box da ARCO’07); em 2005 Romance (a novel), comissariada
por Adriano Pedrosa (um dos curadores da Bienal de São Paulo deste ano); Hysteria Siberiana
foi a terceira exposição (a decorrer na galeria), comissariada por Marc-Olivier Wahler (director
do Palais de Tokyo); em 2007, Jens Hoffman (ex-director do ICA e actual director do Wattis
Institute for Contemporary Art, São Francisco) é o último comissário convidado e que encerrará
o ciclo.
A escolha destes curadores tem claramente a ver com o seu trabalho, que tenho acompanhado
e que considero ser de qualidade.
FMP: Como promove a internacionalização dos artistas?
CG: A internacionalização dos artistas é feita de diversas formas, desde a participação em
feiras internacionais, da edição de catálogos e da própria divulgação feita pela galeria para a
sua lista de contactos nacionais e internacionais. Tenho apostado cada vez mais na presença
da galeria nas Feiras Internacionais, é um esforço grande, mas quase sempre compensador.
Este ano, a galeria vai estar presente em cinco feiras internacionais (mais duas que em 2006).
Duas das Feiras em que a galeria vai participar terão a sua primeira edição em 2007, como
DC – Dusseldorf Contemporary, na Alemanha e ViennaFair, na Áustria.
FMP: Nota-se que existe uma preocupação ao nível editorial na Galeria Cristina Guerra, qual
tem sido a política editorial?
CG: Essa preocupação editorial é fulcral para o projecto de internacionalização. A edição de
catálogos dá a conhecer o trabalho do artista e, consequentemente, o da galeria, disso é
exemplo catálogos como o da exposição de John Baldessari Noses & Ears, Etc. que será
lançado este ano na Feira de Basel.
FMP: Tornou-se comum a presença da Galeria Cristina Guerra em Feiras de Arte
Contemporânea Internacionais. Deste modo, devido a esta constante apresentação
Internacional, como sente a posição da Arte Contemporânea Portuguesa no mercado da arte
contemporânea internacional?
CG: A presença portuguesa é forte na ARCO. É preciso torná-la mais forte noutras feiras, que
tenham outro público-alvo.
FMP: Quais as dificuldades para a realização do projecto por si idealizado, quer aos níveis
artístico e cultural, quer ao nível de mercado? Para além desta questão a Galeria Cristina
Guerra é uma empresa, no entanto, é público a visibilidade nacional e internacional que a
Galeria dá ao nível da divulgação e expansão da Arte Contemporânea Portuguesa. Neste
sentido, existe algum apoio estatal para a realização de um projecto, que para além de ter
uma constituição empresarial, tem uma acentuada vertente cultural/artística com uma
alargada abrangência territorial que, naturalmente, difunde o nome de Portugal?
CG: As dificuldades da galeria dependem apenas da minha capacidade de concretização e de
gestão. A nível cultural, o Estado não tem qualquer noção, (nem boa nem má), do conceito de
galeria... - Hoje, o Estado em Portugal é um vazio, ausente de qualquer política cultural, e
como toda a figura ausente, é munido de uma enorme incapacidade para apoiar cultural ou
economicamente.
Uma galeria tem por base uma trilogia: artista, galerista e coleccionador. Este é o seu motor.
FMP: Ao longo desta meia dúzia de anos de existência da Galeria Cristina Guerra, qual o
balanço que faz do projecto por si idealizado e como vê o futuro deste?
CG: O mercado da arte em Portugal é muito pequeno, e logo, difícil. Se há crise ela reflecte-se de imediato em todos os sectores, e o da arte não é excepção.
Relativamente ao futuro, a galeria terá sempre um projecto focado na ideia inicial: desenvolver
uma estratégia tanto mais eficaz quanto possível na divulgação dos artistas com quem trabalha,
contribuindo para a internacionalização da arte portuguesa.
Ana Cristina Guerra (Lisboa, 1954).
Esteve sempre ligada ao universo das artes plásticas.
Depois de ter trabalhado com várias galerias e em vários projectos alternativos, funda em Março de 2001 a Galeria Cristina
Guerra da qual é directora.
077
2. GALERIA PEDRO OLIVEIRA
Pedro Oliveira – Director
078
FMP: Como e porque surge a Galeria Pedro Oliveira?
PO: A galeria Pedro Oliveira surge em Janeiro de 1990 como corolário de um projecto galerístico
familiar anterior, iniciado nos anos 80. Essa primeira galeria denominava-se “Roma e Pavia”
e havia sido fundada em 1980 pelo meu irmão mais velho, Fernando Marques de Oliveira. Em
1985 adquiro a quota do meu irmão e assumo a direcção desse espaço galerístico. Tratava-se então de um pequeno espaço situado na zona do Palácio de Cristal, na cidade do Porto.
Nesse período de cinco anos até 1990 iniciei um programa de exposições baseado em artistas
locais emergentes como Gerardo Burmester, António Olaio ou Pedro Tudela.
A partir de 1990, senti que necessitava de algo que me projectasse para circuitos de maior
visibilidade nacional e internacional. Nesse sentido, procurei um espaço na mesma cidade com
outra dimensão e em simultâneo alterei a antiga denominação para a actual, Galeria Pedro
Oliveira, de modo a ajustar o novo projecto a um cunho denominativo mais personalizado.
Surgia assim a actual galeria Pedro Oliveira situada num novo e amplo espaço na zona da
Alfândega da marginal do Porto.
FMP: Qual o conceito global da galeria, nomeadamente, ao nível da escolha dos artistas?
PO: O sinal de alteração de conceito nacional para nacional/internacional foi dado logo na
exposição de abertura deste novo espaço em 1990, com uma mostra colectiva de 4 artistas,
sendo dois portugueses, Gerardo Burmester, Cabrita Reis, um alemão, Stephan Hubert, e uma
americana, Nancy Dwyer.
Este é um conceito evolutivo e dinâmico, uma vez que cruzando artistas de várias gerações,
procura criar situações de visibilidade nacional e internacional aos artistas portugueses mais
jovens, ajudar à consolidação de carreiras dos mais velhos, bem como trazer a Portugal e ao
Porto sempre que possível artistas relevantes da cena internacional.
É evidente que a escolha dos artistas cabe-me a mim como director da galeria e será sempre
feita de acordo com os meus gostos e critérios pessoais.
FMP: Quais são os objectivos programáticos da Galeria Pedro Oliveira, abordando os critérios?
PO: O programa da galeria consiste na consubstanciação dos projectos apresentados pelos
artistas ao director, que depois de devidamente discutidos por ambas as partes, serão expostos
ao longo da temporada. Por vezes, surgem projectos especiais comissariados por convite, que
não obstante o interesse didáctico que possam apresentar, não serão todavia suficientemente
numerosos ou relevantes para dar a “marca” à galeria. Essa é sim essencialmente vincada
pelo trabalho fortemente personalizado dos seus 22 artistas.
A estes pressupostos juntam-se os objectivos da maior visibilidade e internacionalização
possíveis.
FMP: Como promove a internacionalização dos artistas?
PO: A maneira mais tradicional e efectiva de internacionalizar os meus artistas é dar-lhes
visibilidade em fóruns internacionais como são as feiras de arte. Procuro ainda estabelecer
redes de contacto com outras galerias internacionais para expor os meus artistas tentando
sempre a melhor adequação possível na relação artista/galeria.
A colocação de obras dos artistas em colecções de relevância internacional é também uma
prioridade.
FMP: Existe uma preocupação ao nível editorial na Galeria Pedro Oliveira, se existe, qual
tem sido a política editorial?
PO: Durante os primeiros anos de galeria tentei sempre fazer um catálogo por exposição,
projecto editorial que tive que abandonar nos últimos anos devido ao aumento de custos de
elaboração dos mesmos e à crise geral que se tem vindo a reflectir, essencialmente, nas
economias de meios de microempresas como são as galerias.
Há, no entanto, um grande cuidado em potenciar toda a divulgação possível em convites, press
releases, newsletters, anúncios em revistas da especialidade e nas novas tecnologias como páginas
web e internet.
FMP: Tornou-se comum a sua presença em Feiras de Arte Contemporânea Internacionais,
nomeadamente no mercado de feiras espanholas. Deste modo, devido à sua constante
apresentação internacional, como sente a posição da Arte Contemporânea Portuguesa no
mercado da Arte Contemporânea Internacional?
PO: Julgo que todo o esforço é pouco quando se trata de internacionalizar a arte portuguesa.
O ideal seria chegarmos em tempo útil a todos os cantos do mundo artístico.
Atendendo, porém, à nossa situação bastante periférica, defendo o princípio que devemos ser
realistas e tentar chegar lá de forma estruturada, ainda que leve algum tempo mais. Para isso
há que eleger prioridades. Durante alguns destes últimos anos, a minha prioridade foi estruturar-me bem no mercado espanhol. Afinal, é o país que está aqui ao lado a oferecer-nos todo o
seu potencial económico e genuíno interesse pela Arte Portuguesa. Quem conhecer bem
Espanha reparará que se trata de um mercado já bastante desenvolvido e acima de tudo,
contrariamente, a Portugal, inteligentemente descentralizado. Não se pense que Espanha é
só Madrid e Barcelona. Alguns dos meus melhores clientes espanhóis estão em cidades para
além das já citadas, como Múrcia, Valência, Sevilha, Bilbau, S. Sebastian, Vigo, etc.
As sinergias são também um elemento importante a ter em conta nas minhas relações com
Espanha. Não é por acaso que começam a aparecer convites, juntamente com espanhóis, para
079
eventos internacionais para lá da Península Ibérica. Inclusivamente, há alguns anos, fiz por
duas vezes a feira de Art Basel cuja entrada me foi facilitada por recomendação de galerias
espanholas.
080
Quanto à posição da Arte Contemporânea Portuguesa no contexto internacional, diria que não
é por falta de qualidade que não é tão visível.
Lá fora, de quem a conhece vêm os maiores elogios. O único problema é, realmente, a nossa
periferia em relação aos centros europeus e americanos e também grandes falhas ao nível
da política cultural do Estado que ainda não entendeu que a cultura é um meio e não um fim
que se esgota em si mesmo. A crítica em geral terá porventura também as suas responsabilidades
uma vez que se desloca pouco, não só dentro do país (falta de curiosidade) como fora (falta
de ambição).
FMP: Quais as dificuldades para a realização do projecto por si idealizado, quer aos níveis
artístico e cultural, quer ao nível de mercado?
PO: Parte dessa resposta está nas questões anteriores. Gostaria ainda de assinalar que o
muito ou pouco que uma galeria consegue fazer, tem bastante a ver com as opções e estratégias
tomadas pelo seu director, seja a nível de gestão económica interna, expansão de mercados
ou escolha de artistas. É aqui que se vê a raça do galerista. Quanto ao resto tratam-se de
factores aleatórios que embora importantes, quer ao nível global das responsabilidades de
todos os restantes agentes implicados, quer ao nível de circunstâncias fortuitas ou cíclicas,
não determinam o êxito ou o fracasso de uma galeria.
FMP: Desde logo a Galeria Pedro Oliveira é uma empresa, no entanto, é público a visibilidade
nacional e internacional que a Galeria dá ao nível da divulgação e expansão da Arte
Contemporânea Portuguesa. Neste sentido, existe algum apoio estatal para a realização de
um projecto, que para além de ter uma constituição empresarial, tem uma acentuada vertente
cultural/artística com uma alargada abrangência territorial que, naturalmente, difunde o
nome de Portugal?
PO: Para além do que anteriormente expus, só acrescentaria mais isto: neste país e neste
momento as galerias, para as Entidades Estatais, não são mais do que meras pequenas
empresas que como tantas outras contribuem para o pib português. Não há qualquer vontade
de entendimento do valor acrescentado que “estas pequenas empresas” poderão trazer para
imagem exterior do país.
FMP: Ao longo destes quase trinta anos de existência da Galeria Pedro Oliveira, sabendo
desde já que mudou a sua denominação de Galeria Roma e Pavia para Galeria Pedro
Oliveira nos anos 90, qual o balanço que faz do projecto por si idealizado e como vê o futuro
deste?
PO: A galeria Pedro Oliveira teve momentos muito altos e outros menos altos ao longo da sua
existência. Expôs (e ainda expõe) grandes nomes da Arte Portuguesa como Julião Sarmento,
Michael Biberstein, Fernando Calhau, Cabrita Reis, Augusto Alves da Silva ou Jorge Molder,
grandes nomes da Arte Internacional como Denis Oppenheim, John Baldessari, Donald Baechler,
Muntadas, Adriana Varejão, e até um prémio Turner (no próprio ano – 1994) como Antony
Gormley, artistas de média carreira como João Penalva, Júlia Ventura, Manuel Rosa, Gerardo
Burmester, Pedro Proença, Tony Tasset, Rita Mcbride, Ernesto Neto, Marc Luyten, Ignasi Aballí,
Bleda y Rosa, e lançou inúmeros jovens talentos, Rita Magalhães, Joana Pimentel, Adelina
Lopes, Cecília Costa, Carlos Correia, Marco Pires, Luís Espinheira, Rita Sobral Campos e Teresa
Henriques.
Atravessou várias crises económicas nacionais, internacionais e vicissitudes internas menos
agradáveis. Muitos exaltaram a galeria nos seus momentos altos, outros prontificaram-se a
passar-lhe a certidão de óbito nas más alturas.
O somatório de todos estes momentos fez-me ganhar experiência. Tive algumas vezes que
aguentar, outras que renovar. Cristalizar é que nunca.
Como disse no princípio, o processo é dinâmico e evolutivo. O futuro é já amanhã. Eu e os meus
artistas tencionamos continuar a evoluir e a dinamizar nos amanhãs que se seguirão.
ANTÓNIO PEDRO MARQUES DE OLIVEIRA nasceu em 18/04/1950 na cidade do Porto. Galerista desde 1985. 1996 a 1999
- Director da Associação Portuguesa de Galerias de Arte. 1998 a 2006 - Membro do Comité Internacional da Feira Arco
de Madrid. Membro actual da Comissão Consultiva da Feira de Arte – Arte Lisboa.
081
CAPÍTULO VI
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
083
PROTAGONISTAS
1. JULIÃO SARMENTO
Artista
FMP: Qual o conceito de exposição na actualidade, nomeadamente, ao nível da arte
contemporânea onde o Julião Sarmento opera?
JS: Existem dois tipos de exposições: as exposições individuais em que um artista tem um
espaço determinado, faz obras nesse espaço e as pessoas vão ver. Depois existem as exposições
colectivas em que há um comissário que escolhe artistas ou escolhe obras, coloca as obras
nesse espaço e vai ver. Não percebo o que chama a um conceito de exposição…
FMP: Percebo o que está a dizer. Mas a questão que coloco é muito mais ao nível da evolução
da arte. A Arte Contemporânea sofre uma evolução e uma mutação que é constante,
naturalmente isso faz com que o próprio conceito de “mostra” seja também um pouco
diferente. Por exemplo, os espaços, a história dos museus, ou seja, os próprios espaços
tiveram que sofrer uma mutação de acordo um pouco...
JS: Refere-se aos media?
FMP: Exactamente.
JS: E às necessidades que são impostas pelos media, por exemplo, tipo mostra de filmes, pois
084
os espaços têm de ser fechados e sem luz e coisas desse género, ou se fazem instalações que
tenham água, ou que necessitem de chão convém que tenham espaços, um chão de betão ou
coisas desse género. Em que tipo de exposições é que opero? Em todas na realidade. Não sou
muito limitado, quer dizer, não me limito a fazer só exposições de quadros na parede. Faço
outras coisas. Portanto, eu diria para responder correctamente, considero que “The sky is the
limit”. Por exemplo, agora vou ter uma exposição na Galeria Pedro Oliveira no Porto ainda não
sei, exactamente, como a vou conceber, mas na sala grande vou fazer uma instalação que nada
tem a ver com quadros na parede. Portanto, no fundo, normalmente adapto-me aos espaços
que tenho, trabalho para espaços.
FMP: No fundo era isso que eu queria...
JS: Então partimos deste princípio. A mim interessa-me trabalhar para espaços. O meu trabalho
tem uma relação muito directa com a arquitectura e interessa-me muito ser determinado
pelos espaços. Para mim não é um problema, não é um ponto negativo do meu trabalho, mas
é inclusivamente um ponto positivo. Gosto de ter esse tipo de limites: “Tens este espaço,
trabalha para esse espaço”. No fundo é isso. O meu trabalho em casos específicos, nos casos
em que se define por uma intervenção num determinado sítio, é determinado pelo espaço que
ele contém. Visito sempre esse espaço, normalmente até faço maquetes do espaço e trabalho
para o espaço, seja ele qual for. Não me limito pelo espaço. Não digo assim: “Este espaço tem
as paredes azuis e não faço”. Não, quer dizer, ok, tem as paredes azuis então o meu trabalho
vai ser mudado em função, vai adaptar-se em função do espaço ter paredes azuis. Utilizo todas
as limitações, gosto de utilizar todas as limitações que o espaço me impõe. No fundo é isto.
FMP: No seu trabalho, a participação em exposições é uma constante, quer ao nível nacional,
quer ao nível internacional. Quando é convidado para participar nas mesmas, quais os
aspectos que o preocupam mais?
JS: Os contextos, fundamentalmente. Os contextos a todos os níveis porque na minha opinião
aquilo que me interessa são os contextos, ou seja, quero que o meu trabalho seja
convenientemente contextualizado. Quero com isso dizer que o contexto em que é mostrado
seja um contexto que me agrade, por outras palavras, gosto que o meu trabalho seja misturado
com outros trabalhos, mas com outros trabalhos que me interessem, não gosto que seja
misturado com outros trabalhos que não me interessam. Portanto, fundamentalmente, é o
contexto.
FMP: Então, significa que à partida coloca sempre uma série de questões quando é convidado?
JS: Com certeza. A questão fundamental é mesmo o contexto. É essencial para mim saber
quem convida e o contexto em que sou convidado.
FMP: E por exemplo, se existe uma exposição que é comissariada por um comissário…
JS: Sim.
FMP: E no meio desse comissariado existem alguns artistas que de facto não se identificam
com...
JS: Comigo?
FMP: Exactamente.
JS: Mas isso acontece sempre. Quando se tem uma exposição com 50 artistas há,
necessariamente, 5 ou 6 que não se identificam contigo ou com o teu trabalho.
FMP: Mas isso faz parte do contexto...
JS: Mas digamos que no cômputo geral o contexto seja um contexto que me interessa.
FMP: Pois.
JS: Agora imagine que, fundamentalmente, a arte tem muitos circuitos que são paralelos, o
meu circuito não será o mesmo circuito do artista “B” e o circuito do artista “B” não será o
mesmo circuito do artista “C”. Quero com isto dizer, que o meu contexto, o contexto em que
me movo não é o mesmo contexto do artista “B”, e também não é o mesmo contexto do artista
“F”. Ora bem, com isto quero dizer o seguinte: normalmente não há misturas de contextos,
não há mistura de circuitos. Os circuitos – estou a referir-me na generalidade – são normalmente
bastante estanques, ou seja, existem sim vários elementos dentro do mesmo circuito. No
fundo, o meu circuito tem “X” artistas, dos “X” artistas existem “N” que não me interessam
nada. Não gosto, obviamente, de todos os artistas do mundo. Mas desses “N” artistas, são do
circuito ao qual pertenço. É muito raro, praticamente, impossível haver contaminações de
circuitos. Quero eu dizer, sem qualquer desprimor, mas é importante que eu dê neste momento
um exemplo: no contexto de artistas em que me movo nas exposições, em que participo ou
para as quais sou convidado, normalmente, não entra um artista que, por exemplo, faz parte
do circuito de artistas que expõe no Casino do Estoril, hipoteticamente. Porque realmente não
há esse tipo de contaminação como, nesse grupo de artistas que expõem no Casino do Estoril,
hipoteticamente, também não existem artistas deste meu circuito que estejam lá. Mas,
eventualmente, posso ser convidado para fazer uma exposição no Casino do Estoril, que não
faço porque não tem a ver com o meu contexto, não tem a ver com o meu circuito. É neste
aspecto que me refiro a esse tipo de contaminações. Agora, artistas que são os que me
interessam, e outros que não me interessam haverá sempre e vice-versa.
FMP: Uma imposição directa existe?
JS: O que é que quer afirmar com uma imposição directa? Da parte de quem?
085
FMP: Do artista, do próprio artista...
JS: Se quando sou convidado faço imposições directas?
FMP: Sim.
086
JS: Depende das circunstâncias. Essa questão é muito variável e depende das circunstâncias.
Por exemplo, se me dizem assim: “Preciso que me faças um trabalho para esta sala em Atenas.
Há uma sala ‘X’ em Atenas no palácio ‘não sei quê’ e “tens que fazer um trabalho para aqui”.
Aí sim, tenho uma imposição directa, têm que me levar a Atenas para eu ver a sala. Neste tipo
de coisas que são logísticas.
FMP: Mais ao nível da pré-produção e da produção.
JS: Com certeza, mais nada do que isso.
FMP: Por exemplo, a questão do catálogo preocupa-o?
JS: Sim, mas o catálogo gosto sempre que possível, e infelizmente isso nem sempre é possível
e quando não é possível de uma maneira geral sai asneira, gosto de controlar os catálogos.
Gosto de controlar porque apesar de tudo é o meu trabalho que está no catálogo. Pelo menos
na parte que me diz respeito, é o meu trabalho que lá está. Portanto, o catálogo é uma espécie
de parte do meu cartão de visita e o meu cartão de visita tem que ser determinado por mim,
tão simples quanto isso.
FMP: Quando é convidado directamente para participar numa exposição, como se desenvolve
todo o processo de convite, as diferentes fases do convite?
JS: Os convites são como qualquer convite. Convidam-me, dizem-me: “Vou fazer esta exposição
assim, gostava que entrasse nesta exposição, quer participar?”. E, ou digo que sim ou que não.
Se disser que não fica logo “o mal cortado pela raiz”, se disser que sim, normalmente, o
desenvolvimento de todo o processo hoje em dia é feito por e-mail porque é o sistema mais
utilizado, e geralmente são enviadas plantas ou fotografias do local, a exposição é contextualizada,
porque é que esta exposição é feita, como é que esta exposição é feita, quais são os artistas
que participam, etc...
FMP: Esta pergunta tem também uma razão de ser que é o seguinte: os artistas têm uma
relação com as galerias...
JS: Têm, alguns artistas têm.
FMP: Sim, mas o Julião tem...
JS: Eu tenho, com certeza que sim.
FMP: Tem uma relação com as galerias?
JS: Tenho.
FMP: Quando o convite é feito directamente ao artista, como é que o artista depois conjuga
isso com a galeria? Fala com os galeristas, não fala?
JS: Depende.
FMP: Ou tem sempre autonomia?
JS: Depende. Os artistas têm sempre...
FMP: Autonomia?
JS: Sou um grande defensor da autonomia artística. Os artistas têm sempre absoluta autonomia.
Depois existem dois tipos de exposições e, neste aspecto, a questão não me parece clara. Está
a falar de quê? De exposições colectivas? De exposições individuais? Há muita espécie de
exposições. Amanhã, o João Pinharanda pode telefonar-me e dizer assim: “Estou a organizar
uma exposição de 40 artistas no Museu da Electricidade, gostava que entrasses”, isto é uma
questão. Mas, amanhã também uma galeria de Atenas pode telefonar-me e dizer o seguinte:
“Sou de uma galeria da Atenas ‘Cloronides não sei quê’ e gostava de trabalhar contigo”, esta
é outra questão. Não tem uma coisa a ver com a outra. Ora bem, as exposições individuais de
galerias que fazem o approach dos artistas é completamente diferente. Primeiro, o artista tem
que ver se está ou não interessado na galeria, esta é logo a primeira questão, porque as galerias
são entidades autónomas. Em segundo lugar, se não tiver interessado na galeria o mal é logo
“cortado pela raiz”; se estiver interessado na galeria tem que se perceber: “ok, esta galeria é
óptima, porreira. Está em Londres. Mas, já tenho uma galeria em Londres, para que me serve
outra galeria em Londres?”. Aliás, há conflito de interesses. Tenho uma galeria em Londres
que é a Lisson, não vou fazer outra exposição com outra galeria em Londres. Em Lisboa tenho
uma galeria a Cristina Guerra, não vou fazer uma exposição com outra galeria em Lisboa.
Portanto, parto sempre do princípio que posso estar aberto a esse tipo de convites, desde que
eles correspondam a galerias onde não estou representado. Imagine uma galeria de Dublin,
não tenho nada a ver com a Irlanda, logo até podia ser interessante fazer uma exposição em
Dublin. Isso é uma questão, falaria com a pessoa a ver se me interessava ou se não. Se, de
facto, fosse uma galeria de tal forma poderosa que me interessava, ponto final, tratava
directamente com essa galeria. Se fosse uma galeria que tivesse um poder relativo, que na
escala de valores fosse mediana, e se estivesse interessado em fazer a exposição dizia: “ok,
estou interessado em fazer a exposição, Dublin ok, vamos falar com a Lisson e fazíamos a
exposição através da Lisson em Londres”. Portanto, é tudo muito nebuloso e muito relativo.
Depende de caso a caso. Se vamos falar de exposições colectivas, por exemplo, o João
Pinharanda dizia-me que tinha uma exposição tal. Das duas uma: ou ele queria uma peça ou
várias peças que já existissem, ou eu tinha que fazer peças novas para a exposição. Se tivesse
que fazer as peças novas não há nada que enganar, ia ter com a Cristina e dizia: vou fazer
estas peças para a exposição do Pinharanda e as peças iam para a exposição do Pinharanda
consignadas à Cristina Guerra. O Pinharanda diz: “Não, não, o que eu quero é aquela peça,
087
aquele quadro azul, amarelo…”. Das duas uma, ou o quadro era de um coleccionador privado,
e eu já não tinha a ver com isso, portanto, o Pinharanda pedia o quadro ao coleccionador
privado, e neste caso eu apenas ofereci-a o meu nome para fazer parte da exposição, embora,
088
a única coisa que me aconteceria era ele ter que pedir um quadro a um coleccionador privado.
Ou então, ele dizia: “Quero aquele quadro que está não sei...”, mas aquele quadro está no Sean
Kelly em Nova Iorque. Ok, o quadro era pedido ao Sean Kelly e a Cristina Guerra já não tinha
nada a ver com isso. O quadro aparecia “Cortesia Galeria Sean kelly – Nova Iorque” porque era
esse quadro que o João Pinharanda queria. Portanto, cada caso é um caso específico. Quer
dizer não há regras, só que essas regras determinam a maneira como cada um desses casos
se desenvolve e as regras são, nomeadamente, estas que acabei de enumerar em traços largos.
FMP: Mas um artista como o Julião, porque de facto todos sabemos que é um dos maiores
artistas portugueses, tem uma autonomia parece-me muito maior do que um artista que
esteja a começar. Já tem um percurso, já é um artista internacional, não há dúvida que todos
o conhecem. Portanto, isso dá-lhe quase que “azo” a ter essa tal autonomia, no fundo, o
Julião diz-me “Eu actuo consoante o convite, eu tenho uma autonomia total”…
JS: Mas qualquer artista tem. Isto que acabei de dizer, estas várias situações que acabei de
descrever, serão as situações que qualquer artista tendo 18 anos e sendo... A questão é que
qualquer artista que tenha 18 anos não tem nenhuma carreira e não vai receber um convite
vindo de Nova Iorque para fazer uma exposição, é tão simples como isso. Mas, digamos em
linhas gerais acontecerá a qualquer artista, com ou sem autonomia. Quer dizer, eu tenho a
autonomia, mas não a exerço. Naquilo tudo o que disse não estou a exercer autonomia nenhuma,
estou a seguir as regras do jogo. Se eu exercesse essa autonomia, que não exerço, volto a
sublinhar, porque não me interessa sequer exercer esse tipo de autonomia, eu dizia: “ok. João
Pinharanda vou fazer 2 quadros em casa porque me apetece e não vou consigná-los a ninguém”.
‘Cortesia Julião Sarmento’ e passava por cima da Cristina Guerra, isto era de facto exercer a
minha autonomia, coisa que eu não faço. Em todo o cenário que acabei de descrever não há
nenhum exercício de autonomia.
FMP: Há...
JS: Qual é?
FMP: Pode haver, só no sentido por exemplo, conceptual. Há um convite...
JS: Sim.
FMP: Se é uma coisa que para o Julião não faz sentido nenhum diz logo acabou...
JS: Sim...
FMP: Pois, é só nesse aspecto...
JS: Mas isso em nenhum estádio do artista nem muito novinho, nem já mais velho, sendo
conhecido ou não, isso o artista é senhor de dizer e é autónomo para dizer se quer entrar numa
exposição ou não. Não existe nenhuma galeria que o vá obrigar a entrar. Portanto, que exercício
é esse de autonomia? Não é nenhum. Quer dizer, é igual a todos. Exerço a minha autonomia
como exerce qualquer artista, qualquer um.
FMP: Em que países é que o Julião tem galerias?
JS: Tenho em Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Brasil e nos Estados Unidos.
FMP: Existe alguma relação directa entre essas galerias todas?
JS: Odeiam-se todas! A relação directa é essa, mas isso é o normal.
FMP: Odeiam-se?
JS: Claro. As galerias têm todas ciúmes umas das outras. Todas se odeiam. Todas dizem mal
umas das outras. Não dizem mal...:” Ah e tal.”. Não, eu percebo qual é a pergunta, há uma
colaboração efectiva...
FMP: Exactamente...
JS: Entre a Lisson, o Sean Kelly, a Cristina Guerra, o Kluser não. Só há quando eu obrigo a que
exista. Vou dar um exemplo que já aconteceu, quando fiz a exposição do Museu do Chiado fiz
um anúncio grande de página inteira a cores na Arte Forum e obriguei as minhas galerias –
obriguei, enfim, é maneira de dizer – todas a pagarem. O anúncio custava «X», dividiu-se por
8 e cada uma pagou 1/8 e depois apareceu os nomes delas no anúncio. Só a esse nível é que
há colaborações, de uma maneira geral.
FMP: Existe alguma incompatibilidade em termos práticos por exemplo ao nível das feiras.
As galerias estão presentes…
JS: Nunca estão na mesma feira.
FMP: Nunca existe nenhuma coincidência?
JS: É muito difícil. Nunca aconteceu até hoje estarem as 8 galerias presentes na mesma feira.
FMP: Sim, mas por exemplo, 3 ou 4 podem estar presentes na mesma...
JS: Ficam com ciúmes... Mas em última análise a questão é assim, se eu fosse um fotógrafo
isso poderia acontecer. Imagine, tenho um fotógrafo, e tenho a mesma fotografia em 4 stands
diferentes.
FMP: Isso era complicado...
JS: Agora, eu faço pinturas, todas diferentes. Portanto, o que pode chegar ao stand do Sean
Kelly em Nova Iorque, e podem achar a pintura horrível ou não gostarem muito, e chegarem
ao da Cristina Guerra e gostarem mais da pintura. Portanto, como é tudo diferente é um
problema que não se me coloca.
FMP: E ao nível dos museus, o Julião já está nos maiores museus de Arte Contemporânea...
JS: Estou em muitos.
089
FMP: Até hoje, qual foi a exposição em que esteve presente que mais o marcou e porquê?
JS: Há uma que me marcou. No entanto, não foi a melhor exposição em que eu estive, não foi
aquela em que eu tinha melhor trabalho, mas é de facto, circunstancialmente, pela sua importância,
090
e que me marcou que foi a Documenta 7 de Kassel em 1982. Digamos que foi a primeira vez que
eu fui, para já foi a primeira vez que houve um português na Documenta, logo por aí. Fui convidado,
fui o primeiro português “ever” a ser convidado para uma Documenta. Depois senti-me honrado
até porque era a Documenta 7 que hoje em dia é uma coisa histórica. A Documenta 7 foi das
topo de gama e eu ter lá estado foi super importante para mim, claro que sim.
FMP: Acompanha de uma forma sistemática (ainda de acordo com a conversa que há pouco
tivemos) a montagem das exposições onde participa?
JS: Tento. Tento acompanhar, mas nem sempre é possível, obviamente. Se amanhã houver
uma exposição colectiva em Kioto, “chances are” não me vão convidar para ir a Kioto para
estar lá. Mas sempre que é possível, com certeza que sim. Seguramente nas exposições
individuais, com certeza que sim.
FMP: O trabalho de um artista como o do Julião Sarmento pressupõe uma exposição pública
permanente, desde logo, porque é considerado um dos maiores artistas de Arte
Contemporânea Portuguesa. Como sente e gere essa exposição pública?
JS: Não penso nisso. Sem qualquer espécie de falsas modéstias. Para já, não gosto dessa
exposição pública. Gosto muito do meu trabalho. Portugal confunde, muito, duas coisas, não
só Portugal. Portugal e o estrangeiro, confunde duas questões: o artista e a obra. Gosto muito
que a minha obra seja conhecida, seja pública e tenha visibilidade, é fundamental e extremamente
importante, isso é uma questão. Agora eu, Julião Sarmento, a pessoa que está aqui a falar,
de ser público não gosto nada. Nem um bocadinho. Não é por acaso que é difícil dar entrevistas,
quase nunca as dou. Não apareço em revistas, nada. Fujo disso “como o diabo da cruz”. Já
para aí duas vezes que essas revistas tipo Caras quiseram ir a exposições minhas e não os
deixo pura e simplesmente entrar. Portanto, não gosto dessa exposição pública, não me
interessa nada, a mim enquanto pessoa.
FMP: Sim. Mas depois há uma parte que não tem a ver com esse tipo de exposição pública,
mas por exemplo, eu sei que o Julião dá aulas…
JS: Não.
FMP: Vai lá fora dar aulas...
JS: De vez em quando.
FMP: Mas vai de vez em quando...
JS: De vez em quando convidam-me para seminários e para coisas assim. Ainda agora estive
em Madrid na Universidade Complutense.
FMP: Exactamente, lembro-me disso. Parece-me com o distanciamento suficiente que tenho,
que é o reconhecimento claro da obra mas também do Homem. Porque, se é convidado para
dar um seminário numa faculdade pública ou privada, isso significa que há reconhecimento
do Homem e que interessa, porque nós não conseguimos separar o Homem da obra, não é?
JS: Claro, claro.
FMP: Nem a obra do Homem. Por isso, aí há de facto também exposição pública num sentido
completamente diferente. Por exemplo, escolas de artes convidar o artista, como é que o
Julião, por exemplo, sente isso?
JS: Ah não, isso gosto muito. Infelizmente, a maior parte das vezes não tenho tempo. Já tenho,
inclusivamente, recusado participações porque pura e simplesmente, se eu passasse a vida
a aceitar todas as coisas não fazia mais nada. A verdade é essa. Portanto, sempre que posso
e que tenho disponibilidade para isso é uma coisa que me dá imenso prazer e que tenho imenso
prazer em fazer. Gosto muito de contactar com alunos, gosto muito de contactar com jovens
artistas e sinto-me muito honrado por isso. A esse nível não tenho problema nenhum.
FMP: E o Julião gosta de falar sobre a sua obra?
JS: Não. Detesto! Não falo da minha obra.
FMP: Mas, tenho um documentário em que o Julião fala da sua obra.
JS: Isso é quando sou obrigado.
FMP: Mas fala…
JS: Sim, mas não gosto. Todos nós fazemos coisas que não gostamos. Mas não gosto de falar
sobre o meu trabalho. Não gosto pura e simplesmente. O trabalho está ali, “what you see it’s
what you get”. Não gosto de falar, acho que todo o discurso que se estabelece sobre uma obra
é uma espécie de..., não é uma “mais-valia”, é mais um bocado de lixo que se junta à obra que
não é necessário. Mas, às vezes por razões obtusas sou obrigado a falar da obra, e então falo.
Mas se me perguntam: “Gosta?” - Não. Estabelecer discurso sobre o meu trabalho não, não
gosto.
FMP: Mas acaba por estabelecer...
JS: Muitas vezes sim, claro.
FMP: Nesta tal relação com os alunos esse discurso...
JS: Não. Sou sempre muito hábil e quando faço esses seminários falo sobre o trabalho deles,
e nunca falo do meu. Ou seja, o meu trabalho sou eu. Não vou falar do meu trabalho, a menos
que eles me peçam especificamente, como agora em Madrid, mas falo sempre do trabalho
das pessoas com quem estou.
FMP: Como olha em termos conceptuais para a figura do curador de exposições de Arte
Contemporânea?
091
JS: É um mal necessário. Aliás, acho que não é um mal. Faz parte do status quo com que fazem
tudo. No fundo, há aqui uma espécie de triangulação. Existe o artista que é o produtor. Há 4
personagens para mim que são, absolutamente, fundamentais: o artista que é a entidade
092
produtora; o galerista que é a entidade vendedora; o coleccionador que é entidade consumidora;
e o curador que é a entidade divulgadora. Portanto, faz parte desses 4 vértices do quadrado,
ao fim ao cabo, e é tão importante como os outros 3. É óbvio que o mais importante de todos,
e não estou a “puxar a brasa à minha sardinha”, mas as coisas são tão óbvias, o mais importante
de todos é o artista porque sem o artista não há arte e sem artista não há nenhum,
digamos....Vamos lá ver: o artista pode existir sem galerista, sem curador, sem coleccionador,
agora, nenhum deles pode existir sem o artista. Portanto, digamos que o artista é uma espécie
do centro à volta do qual seria..., eu estava a ser simpático. O que eu deveria dizer é que há
um triângulo onde está o coleccionador, o galerista e o curador, e as bissectrizes dos ângulos
deste triângulo vão-se encontrar num ponto que é o artista. O curador é absolutamente
fundamental, com certeza que sim. Tenho um enorme respeito pelos bons curadores, com
certeza que sim. Gosto muito de trabalhar com curadores bons porque os artistas
necessariamente pelo trabalho que fazem, e pela contínua repetição de olhar para a sua obra
e para o seu umbigo, acabam por ter uma leitura um pouco viciada e repetitiva da própria obra.
É muito interessante ter um olhar novo sobre a obra. Tenho observado isso como tenho
trabalhado com muitos curadores, é engraçado ver que vem agora um, e que por umas
circunstâncias determinadas escolhe 10 obras, e depois vem outro que escolhe 10 obras
completamente diferentes. Essa capacidade de olhar para o trabalho de uma maneira diferente,
a mim dá-me imenso “gozo”, e é muito criativa e não só, é muito estimulante para mim.
Portanto, vivam os curadores!
FMP: E bastante importante até na transmissão da obra para o público.
JS: Com certeza que sim.
FMP: Essas diferentes leituras promovem...
JS: Os curadores fazem aquilo que não quero fazer, falam sobre o meu trabalho.
FMP: Quais as dificuldades que tem ou que sente com instituições, quer sejam públicas,
privadas ou comerciais, ao nível de divulgação da sua obra?
JS: Não existem dificuldades, há casos pontuais em que pode haver dificuldades. Mas a pergunta
é tão genérica que não há dificuldades genéricas para nada. Quer dizer, posso um dia trabalhar
com um museu que funcione mal por uma razão qualquer, e aí com dificuldades “X”, e depois,
no dia a seguir, posso trabalhar com um museu que seja óptimo e não tenha dificuldades
nenhumas. Posso trabalhar com uma galeria que tenha falta de pessoal. Portanto, acho que
a pergunta não tem resposta porque cada caso é um caso.
FMP: Mas de uma forma geral, já que a pergunta é generalista, com as instituições quer
públicas, quer privadas, quer comerciais, o Julião sente que elas fazem uma boa divulgação
da obra?
JS: De uma forma geral, acho que fazem, com certeza que sim. A galeria Cristina Guerra faz
uma óptima divulgação, mas se calhar há outras instituições que não fazem, há outras galerias
que não fazem, portanto, é tudo muito relativo.
FMP: Considera que a política cultural existente vai de encontro às necessidades e exigências
culturais e artísticas de um país como Portugal que, como todos sabemos, esteve durante
largos anos longe dos grandes centros culturais e artísticos internacionais?
JS: Acho que não existe política cultural, ponto final. A minha resposta é essa. Neste momento,
dia 24 de Abril de 2007, com a Ministra da Cultura que nós temos, com a Isabel Pires de Lima,
não existe política cultural, ponto final. Essa é a minha resposta.
FMP: Existiu durante estes 30 e tal anos uma preocupação com a cultura e a arte em Portugal?
JS: Em certas alturas, com certeza que sim. É evidente que sim.
FMP: Portanto, houve uma evolução?
JS: É um pouco sinusoidal, existem altos e baixos. Há alturas em que existe essa política
cultural, essa vontade. Estou-me a lembrar recentemente com o Manuel Maria Carrilho, houve
uma política cultural fortíssima, bem feita, inteligente, um Ministro da Cultura invejável. Basta
comparar com o que existe agora, não é?
FMP: Que não existe…
JS: Que não existe. Portanto, não estou a dizer que nunca tenha existido, claro que existiu.
Nestes 30 anos houve alturas em que sim, neste momento é que não.
FMP: Em Portugal quem considera que tem tido um papel primordial na internacionalização
da Arte Contemporânea Portuguesa?
JS: Os artistas.
FMP: Só?
JS: Só, não, fundamentalmente os artistas. Depois algumas instituições e algumas entidades que
vão fazendo o possível para que isso aconteça. Mas fundamentalmente os artistas. Logo a seguir
aos artistas, lembro-me historicamente, provavelmente o IA. Quando o Fernando Calhau, quero
sublinhar a existência do Fernando Calhau, o IA com o Fernando Calhau que se chamava IAC na
altura, que foi a primeira entidade pública a ter importância nessa divulgação. Muito vagamente a
Gulbenkian, mas depois temos Serralves, temos a Gulbenkian, depois temos as galerias privadas
como a Cristina Guerra, como a Filomena Soares, mas fundamentalmente os artistas.
FMP: E mais uma vez aqui voltamos à questão anterior, ao nível público não sente que haja
uma preocupação com a internacionalização?
093
JS: Já houve.
FMP: Sim, mas agora?
JS: Neste momento, zero. Se não há política cultural como é que pode haver...
094
FMP: Portanto, não pode haver esta internacionalização…
JS: E quando há, é completamente desastrosa, desadequada e asneirenta.
FMP: O Julião Sarmento começou o seu percurso profissional numa época onde a
divulgação/apoio da Arte Contemporânea e mercado da arte em Portugal eram praticamente
inexistentes. Como foi construindo o seu percurso num panorama quase de vazio e de
isolamento durante várias décadas, quer ao nível conceptual, quer ao nível da divulgação,
e qual o balanço que faz de um trabalho que hoje é incontornável e uma referência na e da
Arte Contemporânea Portuguesa? Portanto, o Julião começou um percurso ao contrário do
que se passa hoje com os jovens artistas…
JS: Sim.
FMP: Sózinho em Portugal.
JS: Sou uma espécie de Joaquim Agostinho da Pintura.
FMP: No fundo era essa questão que gostava que o Julião acabasse por falar. Num país que
era totalmente fechado, em que era completamente inexistente o mercado da arte, como
é que o Julião conseguiu fazer esse percurso e foi-se colocando à frente...
JS: Acho que não há segredos para isso. Quer dizer, de uma maneira muito simples, como é
que fiz isso? Exactamente não sendo fechado. E sendo exactamente o contrário daquilo que
o país era, não sendo fechado, não querendo, não tendo como limites as fronteiras do meu
próprio país, portanto, sendo desmesuradamente ambicioso a nível planetário mesmo, diríamos,
porque de facto era. Era, mas eu não tinha esse sentido da ambição tonta, pateta. Considerava
que fazia parte de um grupo, que era o grupo dos artistas visuais, os artistas plásticos, ok? E
nunca acreditei, e isso para mim justiça seja feita, a nível de todos os campos não acredito,
de facto, em fronteiras. Quando me dizem assim: “Os escritores portugueses...”, claro que a
literatura portuguesa tem características próprias, a literatura inglesa tem características
próprias, mas um escritor é um escritor, seja ele francês, inglês, do Afeganistão, donde quer
que ele seja. Portanto, um artista é um artista. Se é artista português ou canadiano não tem
nada que ver. Digamos: qual é a minha arena de batalha, chamemos-lhe assim? É o mundo,
não é Portugal. Sempre pensei, e honestamente sempre pensei nesses termos, assim com
sempre actuei nesses termos. Portanto, Portugal era um país fechado e abri-o. As pessoas
só pensavam neste país, comecei a ir lá para fora. Viajava, via as coisas, interessava-me,
entrava em contacto, via um artista americano, imagine: “Este artista é porreiro, gosto à brava
do que ele está a fazer!”, entrava em contacto com ele. Assim, nas calmas e curiosamente
eles respondiam-me, coisa que, normalmente, os portugueses não faziam porque eram muito
fechados. Sempre abri as portas a tudo aquilo que me interessava e paulatinamente fui criando
uma rede de contactos internacionais e enfim, tornei-me um artista. Se quer que lhe diga, não
é um segredo. Agora, fiz aquilo e aquilo não! As coisas foram nascendo naturalmente, também
por eu ser assim naturalmente. Eu não me fabriquei. Sou assim naturalmente, sou um tipo
aberto. Não é uma estratégia, agora vou ser aberto para não sei o quê...não, não! Sou assim
naturalmente.
FMP: Mas existem questões muito pragmáticas.
JS: Sim. Por exemplo?
FMP: Como por exemplo, a produção de uma obra. A produção é cara. Nós sabemos que a
produção da obra tem custos…
JS: Sim. Mas eu na altura fazia produções baratas. Há pouco afirmei que me limito sempre,
gosto que o meu trabalho seja limitado pelos contextos. Ora bem, isto não é uma questão
de agora, é uma questão daquela altura. Sempre limitei o meu trabalho à minha capacidade
económica. No início dos anos 80, só para dar um exemplo, trabalhava com papel de embrulho.
Hoje em dia, já se escreveram teorias absurdas, interessantes das razões que me levaram
a trabalhar com papel de embrulho, por causa da textura, por causa da cor, não. Foi tão
simples como isto: uma resma de papel de embrulho custava-me naquela altura 300 escudos,
e uma folha de papel fabriano custava para aí 400, ou seja, tinha 50 folhas de papel de
embrulho mais baratas que uma folha de papel. Não tinha dinheiro, logo, optava pelo papel
que ficava mais barato. Afinal as coisas são tão simples, tão prosaicas como tudo isto. As
produções que eu tinha eram: “next to zero”, trabalhava barato. Portanto, não me venham
falar em produções.
FMP: Sim, mas depois há as questões das viagens...
JS: Sim.
FMP: Tudo isso era sustentado pelo próprio Julião?
JS: Tudo…e a galeria.
FMP: No fundo era essa a questão, porque não existia o mercado da arte em Portugal...
JS: Não eu não tinha galeria, pagava tudo. Tudo. Mas o trabalho era barato, eu era casado
com uma assistente de bordo da TAP, portanto tinha viagens relativamente baratas, quer
dizer, não eram de borla como uma quantidade de gente afirma, mas eram muito baratas.
Tentava viajar para as exposições que fazia, mas naquela altura isto não era como hoje em
dia em que as coisas vêm cá. Naquela altura agarrava nos desenhos metia num rolo e
mandava por correio. Era assim que se faziam as coisas, não tem nada que ver com o que
se passa hoje em dia, com os esquemas de hoje em dia.
095
FMP: Por isso é que lhe coloco esta questão.
JS: Era tudo feito assim.
FMP: De facto, quando é a primeira vez que o Julião tem alguém que o representa?
096
JS: A primeira vez que tive alguém que me representasse foi a galeria Módulo, foi o Mário
Teixeira da Silva, em 1977 no Porto.
FMP: E lá fora?
JS: Em 1978, a galeria Friedrich na Suíça que me representa. Fiz exposições antes no estrangeiro,
mas não galerias pelas quais eu era representado.
FMP: E esta questão que coloco do mercado da arte, de facto, ele era completamente
inexistente e isso o artista sente, não é? Os de hoje não sentem, provavelmente, o que o
Julião...
JS: Não, com certeza que não. Os contextos são completamente diferentes. Hoje em dia um
artista, desconfio que não faz uma exposição desde que não tenha metade da exposição vendida,
estou a brincar, mas é um pouco isto. Naquela altura, não. Não tem nada que ver, os contextos
são completamente diferentes. Lembro-me que a primeira exposição que fiz na galeria Módulo,
justamente, a primeira exposição individual, catálogo é mentira. Depois se tivesse uma linha
no “Diário de Notícias” a dizer que tinha inaugurado uma exposição já ficava todo contente.
Vender também era um mito, não se vendia coisíssima nenhuma.
FMP: E a relação com os coleccionadores...
JS: Mas quais coleccionadores?
FMP: Pois, não existiam... Então, a partir de que altura o Julião considera que começou a
existir em Portugal…
JS: Em Portugal?
FMP: Sim.
JS: Acho que isto não fui eu, foi em geral que começou a haver interesse pela arte contemporânea,
as pessoas começaram a comprar, começou a haver coleccionadores, foi aí a partir, eu diria
de 83, 84, 85, foi a altura em que começaram a existir coleccionadores em Portugal. Não é
bem coleccionadores, é pessoas a comprar. Queriam colocar uma coisa em cima do móvel,
em vez de comprarem um poster compravam um quadro ou um desenho. Eu diria 84, 85 por
volta dessa época. Digamos, fui na leva como todos os outros. Não fui o primeiro artista
português a ser comprado pelos coleccionadores, fomos todos. Todos os que estavam vivos
e activos nessa época.
FMP: E qual o balanço que faz deste percurso, e de facto já tem uma série de anos?
JS: Do meu percurso?
FMP: Sim, sim.
JS: Bom, considero que tive muita sorte. Não, tive muitas coisas. Tive know-how, acho que me
soube mexer. Se calhar hoje em dia saber-me-ia mexer muito melhor ainda, porque já sei
mais. Fiz muitas asneiras que, provavelmente, hoje em dia já não teria feito, mas isso é o que
toda a gente diz. Não me saí mal, podia ter-me saído pior. O balanço geral, no fundo, resume-se a: saí-me bem, mas podia ter-me saído melhor. Podia ter mais sucesso do que tive, mas
também podia ter tido muito menos sucesso do que tive. Portanto, digamos, acho bem. Quer
dizer, nunca me preocupei em olhar para isso, não sou nada saudosista, não olho para trás,
olho sempre para a frente.
FMP: A questão que coloco, entre aspas, quase que é uma questão um pouco histórica,
porque no fundo é um artista como existem outros em Portugal, mas é um artista que hoje
em dia é uma referência incontornável, e é um artista que faz o percurso inicialmente por
ele próprio. Com ninguém, nenhuma galeria que ande ali a puxar...
JS: Não, porque não havia. Por várias razões: porque não havia e porque sou muito independente.
Sou muito “senhor do meu nariz”. Inclusivamente, hoje que tenho galerias que me representam
continuo completamente autónomo, quando tenho que fazer qualquer coisa não vou pedir à
Cristina Guerra que mo faça, nem vou pedir à Lisson que me faça, nem vou pedir à Sean Kelly
que me faça. Trato da minha própria vida, de uma maneira geral. Mas porquê? Uma resposta
objectiva: porque fui criado assim, aprendi assim, porque me está na massa do sangue. É
evidente que o jovem artista de hoje em dia fica à espera.
FMP: Exactamente. Não há uma independência...
JS: Sou activo, eu não sou passivo. Nunca me passaria pela cabeça dizer assim: “Cristina,
interessa-me isso trata disso”. Não, eu trato, sou eu que trato. Mas porquê? Porque estou
habituado a ser eu a tratar, no fundo é isso.
FMP: Pelo próprio percurso...
JS: Exactamente. Se não tivesse tido esse percurso, se não tivesse feito assim se calhar dizia
assim: “Cristina trata-me tu disto”.
Julião Sarmento nasceu em Lisboa (1948), estudou pintura e arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa. Começou
a mostrar o seu trabalho em filme, vídeo, som, pintura, escultura, instalações e multimédia nos anos setenta, também
desenvolveu vários projectos site-specific significativos.
Exibiu o seu trabalho extensivamente em exposições individuais e colectivas. Julião Sarmento representou Portugal na
Venice Biennial em 1997. O seu trabalho está representado em diversos museus e em colecções privadas.
Julião Sarmento vive e trabalha no Estoril em Portugal.
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2. MANUEL AIRES MATEUS
Arquitecto
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FMP: Qual o conceito de exposição para um arquitecto, sendo que o seu caso é particular,
uma vez que abarca três vertentes: a de projectista, a de professor e a de participante?
MAM: Bom, são vertentes diferentes. E mesmo no que diz respeito à participação em exposições
de arquitectura, podem existir situações muito díspares. Uma é a condição de participantes
passivos, que nos acontece frequentemente: aí, limitamo-nos a enviar uma obra, ou
representações de uma obra, que podem ser maquetas, desenhos ou fotografias, e não temos
nenhuma interferência com a montagem da exposição. Nesses casos, o nosso trabalho centra-se num problema de comunicação, pois é muito importante que seja claro o conceito do
projecto. Portanto, essas representações não são simples traduções ou reduções da realidade;
procuram também explicitar uma ideia. Esta difere de projecto para projecto, mas pode também
variar consoante a situação: por vezes, tratando-se de exposições temáticas, pode interessar-nos enfatizar uma determinada ideia, em detrimento de outra. E de facto, quando participamos
em exposições mais genéricas, tentamos perceber qual é a ideia subjacente à exposição, e
adaptamo-nos, representamos em função dela, ou seja, utilizamos a arquitectura como um
veículo de comunicação. Esse será o tipo de participação em que temos uma atitude mais
passiva, embora não destituída de intencionalidade.
Quando a nossa intervenção na exposição é mais abrangente, normalmente tentamos criar
uma relação envolvente com quem a vê. Isto quer dizer o quê? Quer dizer que expor arquitectura
também significa, de alguma maneira, fazer viver arquitectura. Neste sentido, para nós é
importante estabelecer relações entre os objectos que são expostos e, igualmente, entre estes
e o espaço que os alberga. Nas exposições individuais que desenhámos, a do CCB e esta agora
na Suíça, temos tentado introduzir escalas no próprio desenho da exposição, que aproximam
o visitante de algumas das experiências espaciais que mais nos estimulam. Do ponto de vista
da vivência e da utilização do espaço, existe uma relação muito directa entre o universo da
exposição e o da arquitectura e nós procuramos evidenciar e explorar essa proximidade. Penso
que essas exposições são talvez as mais interessantes para expor a arquitectura. Por exemplo,
na Suíça, seleccionámos dois lugares distintos e, partindo das condições existentes e do
material disponível, atingiram-se resultados muito diferentes. Penso que qualquer uma delas
foi interessante para as pessoas que a viram, mas também muito importante para nós, porque
nos permitiram ter um olhar crítico sobre aquilo que fazemos. Neste sentido, a grande “mais-valia” de expor (ou publicar, que também é uma forma de expor) o nosso trabalho, para além,
obviamente, da sua divulgação junto do público, é a oportunidade de nós próprios reflectirmos
sobre ele. Uma das formas mais interessantes de clarificar, de sistematizar e repensar o nosso
conhecimento é a necessidade de o comunicar; estas exposições têm sempre, senão outros,
pelo menos esse valor. E quando temos uma intervenção na organização da exposição esta
questão torna-se muito mais clara, é muito mais profundo esse trabalho.
Na minha experiência como professor, parto de um princípio de respeito sobre qualquer criador;
isto significa que encaro cada aluno como um criador. Dou aulas práticas de Projecto; aliás
sempre dei aulas de Projecto, com excepção do primeiro ano, em que leccionava de uma forma
mais clássica, com uma vertente mais teórica. Naturalmente, nas aulas de Projecto, aquilo
que me interessa mais é poder operar a partir de quadros de referência que não são os meus.
Incentivo os alunos a operar nos seus quadros de referência, ou seja, a trabalhar partindo das
suas memórias, da sua experiência e conhecimento, de toda a sua capacidade; a mim interessa-me participar nesses processos a partir de dentro, e com isso ganho sempre formas diferentes
de olhar para as coisas. Hoje em dia acho, cada vez mais, que dou aulas por uma razão egoísta:
porque quero aprender, quero aprender com os alunos.
FMP: Em que área? Qual é o ano?
MAM: Na Suíça estou com o 3º, 4º e 6º anos: são os últimos, porque não existe 5º. Em Portugal,
hoje em dia, dou menos aulas, mas lecciono, igualmente, nos últimos anos. Há muito tempo
que dou aulas, sempre nos últimos anos de formatura. Mas essa nem será a questão essencial:
o estímulo está na quantidade e na diversidade, de abordagens dos alunos, que nos abrem um
campo de experiências muito vasto e enriquecedor. Por outro lado, penso que há em cada um
deles um potencial enorme, muito maior do que aquele que por vezes crêem. Isto é uma
descoberta importante, não só em relação aos alunos, mas também aos jovens arquitectos
que vêm para o escritório: porque, sendo-lhes dada a oportunidade, têm uma capacidade
extraordinária de trabalho, de formular ideias e de sobre elas operar. Portanto, na verdade,
esse trabalho com as pessoas é aquilo que me alicia. Acho que a arquitectura se ensina cada
vez menos a partir de um referencial garantido e cada vez mais se ensina através da possibilidade
de emersão de experiências que podem ser enriquecedoras. A arquitectura é uma disciplina
em crise, com uma necessidade de procura muito grande e constante. Mas, nesse sentido,
penso que a crise é positiva ou pelo menos, que abre as possibilidades que mais me interessam.
FMP: A escola é um espaço de experimentação?
MAM: Sim, sim. Exactamente. E no entanto eu não vejo, ou não estabeleço, uma grande
diferença entre a forma como opero na escola ou no escritório.
FMP: Mas sente que no escritório tem de ser muito mais objectivo?
MAM: Não. Eu sinto é que no escritório, dada a responsabilidade que existe sobre os trabalhos,
o caminho, ou o tal quadro de referências sobre o qual se opera, é o meu, ou volta no fim a
099
ser o meu, mesmo quando são trabalhos desenvolvidos com alguma independência por algum
colaborador. No fundo, o trabalho é adaptado ao meu quadro de referências e as decisões,
pragmaticamente, são minhas. Na escola, o interesse é que a discussão se faça num quadro
100
de referências que não é meu, mas isso, digamos, é a parte menor de uma possibilidade de
trabalho. Penso que, de facto, a parte verdadeiramente interessante é esta procura, esta
procura de ideias.
FMP: E de reflexão?
MAM: Sim, mas que se possa veicular a partir das experiências. Agora, é evidente que, num
trabalho profissional, existe uma responsabilidade perante terceiros, que nunca pode ser
descurada. Mas o modo de operar e o grau de exigência que ponho no trabalho com os alunos
são semelhantes aos que adoptamos no escritório. Mantemos discussões contínuas durante
os trabalhos, procuramos esclarecer as ideias, procuramos isolá-las, representar as ideias
e os objectivos de cada projecto, e depois persegui-los, ou seja, persegui-los nas várias formas
de representação. É evidente que este processo tem uma dupla face: as ideias não são
apriorísticas, as ideias descobrem-se no processo, o que significa que vamos descobrindo,
isolando, secando e hierarquizando essas ideias, e que é esse o nosso trabalho. Mesmo a partir
do momento em que os objectivos ou a ideia estão perfeitamente firmados, o seu desenvolvimento
é ainda um processo de confirmação, de validação ou não, desses pressupostos. Na escola,
o processo é o mesmo; a diferença é que o quadro de reflexão, o critério de selecção ou rejeição
das opções não é meu, na verdade é do aluno. Mas é só essa a diferença, porque o processo
é o mesmo: baseia-se em encontrar a ideia, explicitá-la e comunicá-la.
Agora, como projectista, não sei se pretende que fale de uma forma abrangente ou como
projectista de espaços expositivos, culturais?...
FMP: De uma forma abrangente, mais à frente iremos focar os espaços culturais.
MAM: Como projectista, e na linha do que estava a dizer anteriormente, aquilo que me interessa
é fundamentalmente o mundo das ideias. Penso que a arquitectura, como disciplina, se tem
escondido excessivamente por trás da necessidade de resolução pragmática de problemas:
as limitações que este desígnio impõe são facilmente aceites como naturais, como
constrangimentos inevitáveis, e isso é para mim uma das maiores falhas da arquitectura. Neste
sentido, todas as limitações devem ser tomadas como oportunidades e o que nós gostamos
de fazer aqui é, precisamente, perceber quais são as possibilidades de cada momento, de cada
projecto, e aproveitar os condicionalismos inerentes a cada situação para potenciar uma
reflexão substantiva sobre a arquitectura. Deste modo, acho que devemos aspirar àquele grau
de indiscutibilidade com que trabalha um artista. Temos esta sensação que uma obra do Serra
é aquilo ou não é nada, e “aquilo” não quer dizer “aquilo ou qualquer coisa parecida com
aquilo”, quer dizer, é aquilo ou não é nada – é um total vazio. Muitas vezes consolamo-nos com
a ideia de que pelo menos resolvemos o problema, pelo menos solucionamos a questão, pelo
menos respeitamos o não sei quê, mas isso não tem qualquer pertinência. Portanto, esse
aspecto corriqueiro da prestação de um serviço é aquele que não me interessa nada. O que
interessa é precisamente essa procura da indiscutibilidade, da validade da ideia ou dos princípios.
Daí nós mantermos um sistema próprio de representação contínua dos projectos, que os
acompanha desde as primeiras fases até à fase de execução ou de obra, até eles serem
verdadeira e completamente compreendidos. No fundo, é um processo de teste e aferição de
ideias, que fazemos para chegar ao projecto, e que muitas vezes estendemos para além dele,
como acção crítica sobre o próprio projecto. De facto, muitos deles, talvez aqueles projectos
que mais nos interessam, continuamos a representá-los posteriormente, de formas diferentes,
para compreendermos campos não explorados do próprio projecto e que poderiam ter sido
mais esclarecidos. Neste sentido, é um processo inserido completamente no mundo das ideias,
e é introduzido no mundo das ideias em qualquer fase. Realmente, a nossa acção não se divide
entre a investigação e a produção, ela é sempre global: para nós todas as fases são uma
mesma fase, ao nível das possibilidades em aberto. Portanto, quer estejamos a discutir as
primeiras ideias ou a concluir o projecto de execução, a nossa ideia é andar, é tentar secar,
dissecar cada uma destas situações, para explorar oportunidades de vivências. Interessa-me
muito esta ideia de que a arquitectura opera sempre, de alguma maneira, com uma realidade
muito abrangente que é a vida, e portanto, com muitas vertentes. A arquitectura não opera só
com a imagem: opera com a imagem, que é a sua face mais evidente, aquela que é mais
divulgada; mas opera também com o som, opera também com a pressão, opera também com
o cheiro, opera com muito mais valores.
FMP: Eu percebo claramente o que afirma, mas também é evidente que existe um carácter
social e humano muito grande na Arquitectura.
MAM: Mas eu não estou a falar no carácter social, estou a falar na vida, genericamente.
Considero que o carácter social é sempre uma questão equívoca na Arquitectura. A ideia da
intervenção social da Arquitectura.
FMP: Mas, eu não estou a abordar a questão da intervenção social, refiro-me exactamente
ao nível mais sensitivo do homem: dos cheiros, do som, da vida.
MAM: Sim. A vida é uma coisa abrangente.
FMP: Exactamente.
MAM: A mim interessa-me muito isso. Nós muito facilmente dissecamos o nosso trabalho em
fases muito diferentes; agora, retrospectivamente, temos isso muito claro. Tivemos uma fase
em que operávamos, tentando encontrar coisas que de alguma maneira tivessem um lado
101
visual muito forte. Isto foi uma fase muito importante para nós. Terá acabado de uma forma
mais evidente quando fizemos a residência dos estudantes em Coimbra, que consideramos
um edifício muito visual: um edifício muito visual e que tem problemas de resistência ao tempo.
102
Não ao tempo físico, embora seja evidente que todas as coisas físicas têm problemas de
resistência física ao tempo. Tem um problema de resistência ao tempo mesmo do ponto de
vista da ideia de projecto. O distanciamento que hoje temos é que nos permite fazer essa crítica.
FMP: Mas porquê? Porque é muito datado?
MAM: Não. Porque é muito obviamente imagético.
FMP: Mas a cultura visual é hoje uma constante?
MAM: De acordo. Mas, hoje, isso ali parece excessivamente exacerbado; ao contrário de outros
trabalhos, cujos valores de uso são diferentes, são mais profundos. São valores que, não
negando a importância daquele, se assumem como mais determinantes. Hoje preocupa-nos
muito essa capacidade dos edifícios resistirem no tempo, volto a afirmar, como ideias. Portanto,
não é tanto uma questão de durabilidade no sentido estrito, mas mais da intemporalidade do
conceito. Hoje, praticamente, cada um destes trabalhos que temos feito é passível de uma
descrição em duas ou três palavras, dois ou três princípios geradores que são responsáveis
por uma espacialidade, pela funcionalidade, pela vivência ou pela imagem, de uma forma
global. Portanto, os trabalhos anteriores assentavam sobre cada uma destas tónicas. Agora,
esta procura é mais geral, e esse tem sido o grande esforço que nós estamos a fazer como
arquitectos, como projectistas: aproximar todas estas vertentes no sentido da possibilidade
de uma experimentação global, que é talvez a questão que mais me interessa. O que me
interessa é o impacto da experimentação sobre as pessoas, e é evidente que um edifício como
a Residência tem um certo tipo de experimentação, mas não é comparável à revelação que
experimentámos na Casa de Azeitão ou na Casa de Alenquer. São casas em que, verdadeiramente,
um modo de vida transforma completamente a imagem do edifício, a imagem fica completamente
subalternizada, perante a questão da forma de uso do edifício. Neste sentido, esta será a fase
que mais nos interessa neste momento. Por outro lado, cada vez mais nos interessa o lado da
experimentação sobre esses aspectos, construindo possibilidades de relação entre qualquer
utilizador e os projectos que desenhamos.
Para além disto, simplesmente constatámos que detestamos repetir coisas. Não sei porquê,
mas saem sempre pouco frescas, saem sempre relativamente pesadonas e, portanto, precisamos
muito dessa procura de objectivos novos em cada projecto. Aliás, no meu caso, entro sempre
em pânico cada vez que acabo uma casa, com a qual fico satisfeito. Penso sempre: “Agora é
que esta porcaria se esgotou mesmo!”. Algum dia isso há-de ser verdade. Acabei agora uma
casa no Algarve e dou por mim de repente esgotado, a pensar: “Já devia estar agora a entregar
a outra”. Fiz uma para a irmã, mas devia estar a entregar a do irmão; ainda por cima o irmão
é que é meu amigo e não a irmã. Já estou nisto há quase 6 meses, com várias casas desenhadas,
e não chego lá. Não chego, porque tenho a sensação que estou esgotado. Enfim, estou à espera,
estou com esperança de conseguir dar a volta. Mas agarro-me sempre a este método de
procurar uma ideia e recuso-me a partir dos projectos anteriores para fazer um novo. Para
algumas pessoas, a arquitectura vai-se fazendo por afinação de um princípio, que é sempre
o mesmo e que transita de projecto para projecto. Isso não me interessa nada, e os projectos
que mais me interessam são aqueles em que consigo ir a uma qualquer origem e montar tudo
do início. Nesse sentido, por exemplo, é muito mais fácil quando opero com programas ou
contextos completamente novos. Ainda agora acabámos de entregar um projecto para o Dubai,
que é uma torre com 300 metros de altura. Nunca se nos tinha colocado o problema de fazer
uma torre, nem um edifício em altura, quanto mais um edifício de 300 metros! Isso foi o bastante
para nos obrigar de repente pensar tudo do princípio e, então sim, o processo tornou-se muito
mais simples.
FMP: Deixe-me só colocar-lhe uma questão: Mas a consistência da sua linguagem
arquitectónica é dada pela experimentação e por essa sistemática preocupação que agora
tem ao nível – eu percebo o que há pouco queria afirmar – mais humano, mais humano do
que social, porque, realmente, no social podemos entrar em campos...
MAM: Sim, entramos em campos complicados.
FMP: Portanto, a linguagem arquitectónica...
MAM: É dada por esse tipo de experimentação, que considero ser uma experimentação física.
Acredito que o nosso comportamento é, também, determinado pelo contexto físico, e o que me
interessa é interferir nesse comportamento com o desenho da espacialidade, mas a espacialidade
entendida de uma forma completa não de uma forma visual. Isso interessa-me, e é talvez por
isso que estou sempre a fugir a normativas, estou sempre com problemas, como estar fora
das regras... Porque considero que nós temos um tamanho, e a grande norma é essa: o homem
tem um tamanho.
FMP: Tem um tamanho, mas tem uma grande capacidade de adaptação...
MAM: De adaptação, sim. Esse tamanho não será um valor fixo, antropometricamente
determinado, mas antes uma espécie de intervalo, com o qual é possível operar. Portanto, o
homem não tem sempre o mesmo tamanho: ou tem um tamanho manuseável, comprimível
e extensível, com o qual é possível interferir. É essa interferência que me interessa, é exactamente
isso que me preocupa na arquitectura. Essa será a grande constante do nosso trabalho. Depois
é evidente que existem outras coisas que são constantes, há coisas que vão sendo constantes
no nosso percurso. São constantes porque ainda nos interessam, ainda estão presentes, e só
103
nos vamos libertando delas quando julgamos que estão estudadas ou esgotadas. Mas, de
facto, cada vez mais me interessa essa ideia do retorno, retorno a um zero, que faço tanto
quanto possível, tanto quanto consigo. Tenho consciência que não consigo retornar do zero
104
cada vez que opero num projecto, mas tanto quanto possível gosto desta ideia de retomar
esse zero.
FMP: Portanto, a consistência da linguagem é dada pela experimentação, no entanto, com
certeza que todas as referências se mantêm quando desenha.
MAM: Há uma coisa que se mantém: é que nós não mudamos. Ou seja, não deixamos de ser
nós para passarmos a ser outros.
FMP: Não muda mas evolui.
MAM: Exactamente. Claro que evolui, cresce e isso é muito importante. Mas as referências
para mim... Tenho muita dificuldade em falar em referências em arquitectura, porque em
arquitectura tudo é referência. O que é que não é referência para a arquitectura? Ou, pensando
pela positiva, o que é referência em arquitectura? Referência em arquitectura é, antes de mais,
toda a arquitectura da história. Sim, podemos usá-la com a maior liberdade, saltando tempos,
buscando, saqueando, mas é toda a história da arquitectura. É toda a contemporaneidade
também construída. É toda a história da tecnologia.
FMP: E é toda a sua história.
MAM: E é toda a sua história, mas depois uma pessoa diz assim: E a Escultura? Sim. E a
Pintura? Sim. E a Land Art? Sim. E o Cinema? Sim. E o Teatro? Sim. E a Literatura? Sim. E
afinal perguntamos: o que é que não é referência para a arquitectura? Não sei. A referência
é tudo. Portanto, para mim a ideia da referência é uma ideia de vida e, de facto, tenho muita
dificuldade nessa ideia da referência porque ela é muito abrangente, é muito longa. Por exemplo:
interessam-me imenso alguns arquitectos da história, normalmente mortos há muitos anos,
séculos, e a alguns retomo constantemente, como é o caso do Borromini. Vou, e passo muitas
horas; sempre que posso, vou visitar o San Carlino Alle Quatro Fontane, que é para mim uma
obra fundamental, sempre que vou a Roma vou visitá-lo. Enfim, é uma obra que me interessa
muito. É muito romano também, mas é uma coisa determinante. Agora, é determinante porque
tenho uma facilidade muito grande em compreender as ideias que ali estão, que me interessam
imenso. E que são para mim as grandes questões.
FMP: Mas essas ideias vão actuar directamente sobre a sua arquitectura?
MAM: Sobre a arquitectura, claro. Obviamente. No caso do Borromini sou capaz de dizer
exactamente como é que ele opera, como no campo da liberdade entre interior e exterior, como
na ideia da densidade limite, como no próprio uso das escalas. São questões que me ocupam,
e que vejo naquela obra. Agora, há muitas outras que eu não sou capaz explicitar ainda, mas
que não deixam de ser influências muito fortes. Por exemplo, todo o mundo da arquitectura
que é feita à compressão, portanto, todo o mundo da Arquitectura feita em pedra e que resiste
no tempo. Por isso, tenho um fascínio muito grande pelas ruínas, por esta ideia da eternidade:
“o que é o mundo?” A compressão. Havia uma frase muito interessante de alguém (já não me
lembro quem) que dizia, a este propósito, que “a arquitectura morreu a partir do momento em
que nós deixamos de construir em pedra”. Exactamente por este sentido de naturalidade que
de certa forma a arquitectura perdeu, porque a compressão é uma força que todos nós
compreendemos sensitivamente, ao passo que a tracção é contra-natura. Existe um sentido
muito interessante nisto, interessa-me bastante esse assunto do que é tido como natural na
arquitectura, e que pode englobar este aspecto da compressão, mas também outros.
Hoje, por exemplo, preocupa-me imenso uma questão que é operar, simultaneamente, com
a realidade e com o preconceito. Portanto, não uso o termo com sentido pejorativo, mas no
sentido de ser aquilo que nós conhecemos, ou esperamos reconhecer. Gosto imenso de pensar
que todos nós temos uma posição em relação às várias coisas, por exemplo: temos uma posição
em relação ao problema do arquétipo; temos uma posição em relação ao problema do tempo;
temos uma posição, mais ou menos clara, sobre uma série de coisas, embora diferente de uns
para os outros, relativamente consensual. De facto, gosto imenso de operar com a realidade
e, simultaneamente, com essa espécie de preconceito. Gosto de pensar na forma como as
coisas são olhadas à luz de um conhecimento, à luz de uma ideia prévia e de que forma é que
nós introduzimos a realidade em simultâneo, portanto, de que maneira conseguimos combinar
estas duas acções. Essas agora são talvez as duas maiores preocupações que eu tenho neste
momento com o projecto.
FMP: O seu trabalho é exposto frequentemente em exposições de arquitectura, quer nacionais,
quer internacionais, quando é convidado para participar nas mesmas enquanto arquitecto
que participa quais as exigências, ou quais as questões que o preocupam mais?
MAM: Exigências, normalmente, não tenho. De forma geral, adapto-me às questões que forem
colocadas. Não tenho qualquer tipo de carteira de exigências para expor o meu trabalho, ou
seja, normalmente exponho com uma certa ligeireza, de uma forma ou de outra, não exijo.
Não há nenhumas condições que me atormentem, que me levassem a não expor. Normalmente,
o que me preocupa mais é a condição genérica da exposição. É a compreensão dos objectivos
de uma exposição.
FMP: Exactamente. É por isso que eu lhe coloco esta questão da figura do Comissário.
MAM: Pois, isso é um problema das exposições de arquitectura. Normalmente, as exposições
de arquitectura não têm propriamente uma ideia, são uma sopa “à moda”, e essa pode ser
uma questão complicada. De uma forma geral, como são montadas as exposições de
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arquitectura? Ou são montadas com objectivos claros – tipo “Promoção de Espanha em Nova
Iorque”, é um problema de promoção do país, mas que é muito direccionado –, ou então são
uma espécie de “sopa” de identidades diversas, normalmente, sem uma ideia clara do objectivo.
106
Objectivo quer didáctico, quer experimental.
FMP: E até mesmo conceptual.
MAM: Exactamente, porque no fundo seriam esses os grandes temas. Agora, quando sou eu
o responsável pela exposição, como fui no CCB... Apesar do Diogo Seixas Lopes, fomos nós
os responsáveis pela exposição, traçámos...
FMP: Mas não funcionou como Comissário?
MAM: Ele funcionou como Comissário. Mas, nós funcionámos igualmente como comissários,
porque fizemos isso em conjunto com o Diogo. Portanto, definimos muito bem quais eram os
objectivos da exposição, e lá iremos adiante. O que mais me preocupa nas exposições é essa
falta de objectividade ou de sentido operativo da exposição. A divulgação da arquitectura é um
trabalho muito complexo e feito numa gama internacional. Portanto, estamos preocupados
com a divulgação da arquitectura, com a forma como essa divulgação pode operar sobre os
mercados internacionais. Essa divulgação, normalmente, em Portugal, é feita com ideias muito
frágeis, ou muito difusas, e portanto muito complicadas de apreender. Ou, pior que isso, são
baseadas numa espécie de selecção de grupo, selecção de amigos do clube, que, enquanto
exposições ou eventos de divulgação de outro tipo, não têm nenhuma repercussão. Porque
esses clubes não são reconhecidos fora daqui, do ponto de vista operativo são uma oportunidade
perdida. As grandes exposições internacionais de arquitectura portuguesa têm sido, regra
geral, oportunidades perdidas. Estas nossas participações nas bienais de Veneza, são todas
oportunidades perdidas, sem qualquer tipo de consequência. Essa questão preocupa-me porque
já não estamos num tempo em que a individualidade tenha qualquer capacidade de manobra,
estamos num tempo em que a necessidade desse trabalho é mútua. Isto significa que qualquer
criador necessita de divulgação, necessita dos críticos, necessita de uma série de trabalhos
que são colaterais.
FMP: Então, considera que a divulgação feita neste momento em Portugal da Arquitectura
não tem repercussões?
MAM: Nenhumas.
FMP: Nenhumas, quer ao nível nacional, quer ao nível internacional?
MAM: Nem existe uma política para a divulgação. Repare, dou-lhe um exemplo muito simples.
Fizemos uma exposição no CCB que custou uma fortuna; tivemos sponsors, mas custou também
uma fortuna ao Estado. Essa exposição está neste momento sediada na Suíça e é usada
internacionalmente, a partir da Suíça. Será assim sempre. Portanto, a divulgação que nós
fizemos do nosso trabalho – eu falo do meu caso porque é o que eu conheço, provavelmente
haverá muitos mais exemplos destes – é feita a partir da Suíça. A montagem e desmontagem,
o tratamento, a promoção, o itinerário da exposição é decidido a partir da Suíça. Neste momento,
negoceio com a galeria da faculdade, mas depois será com o museu, que tomará conta da
exposição quando abrir. Portanto, a promoção é feita a partir da Suíça porque não há nenhum
agente em Portugal.
FMP: Qual é o museu na Suíça?
MAM: É o Museu de Arquitectura em Mendrizio. Não sei como se vai chamar, foi fundado pelo
Mário Bota e será o museu que receberá de todo o arquivo moderno, vão fazer agora um livro
e tratar da divulgação da exposição. Esse é um papel que, por exemplo em Espanha, é assumido
pelo Ministério das Obras Públicas em várias áreas. Madrid é activíssimo, tem uma capacidade
de divulgação, e de inserção dos seus arquitectos no mundo, que nós não temos. Não temos
sequer política, não é que a nossa política esteja errada. Temos um vazio total, que é
operativamente desastroso. Depois, mesmo os agentes culturais mais abrangentes, não estão
nada vocacionados, quer para a arquitectura, quer para um verdadeiro trabalho de divulgação
ou de investigação da arquitectura em Portugal. Portanto, isso acaba sempre por ser feito de
uma forma casuística pelas pessoas que gostam, ou que querem, ou que se interessam, mas
não há uma rede operativa que depois dê continuidade a este trabalho e dele tire qualquer
dividendo. Realmente é muito complicado. E é pena, porque de facto atingimos na arquitectura
um patamar muito elevado. Um pouco porque o viemos construindo historicamente, um pouco
porque tivemos esse expoente máximo que foi o Siza, mas de alguma maneira acabou por
criar-se em Portugal um nicho muito significativo de produção arquitectónica. E há ainda uma
questão que é agradável de constatar, é que isso não corresponde a um momento fugaz: a
arquitectura em Portugal está em crescimento. O que notamos é que, em Portugal, os jovens
arquitectos são tendencialmente melhores que os mais velhos, quando jovens. Vejamos que,
apesar de todas as dificuldades de um ensino cheio de problemas, apesar das dificuldades e
das limitações que temos no país, até da própria falta de equipamentos culturais, que é um
campo onde a arquitectura teria uma capacidade de experimentação muito lata, apesar de
todas essas contrariedades, temos uma arquitectura que cresce bem, que cresce de uma
forma muito saudável. Agora, cresce, mas é desconhecida. Cresce, mas não se dá a ver. Cresce,
mas não se revela. Realmente cresce, mas operativamente não se transmite, e esse papel, de
facto, é determinante de se fazer porque na realidade a arquitectura Portuguesa é uma
arquitectura que interessa. É uma arquitectura que objectivamente é muito boa. Pessoalmente,
penso que a divulgação das novas gerações ou das novíssimas gerações é um trabalho que
temos que fazer. Mas temos que o fazer, amarrando-o às nossas possibilidades, ou seja, temos
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que compreender a história recente para depois fazer aparecer a nova arquitectura, a reboque
dos melhores exemplos.
FMP: Parece-me como mera observadora, que há uma geração que é prejudicada ao nível
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da divulgação muito mais do que a geração nova, que é por exemplo a sua geração. De facto,
quando vamos ver uma exposição de arquitectura, quando ouvimos falar os críticos de
arquitectura, os nomes são quase sempre os mesmos, realmente faz lembrar um pouco tal
como o Manuel afirma: “selecção de amigos do clube”.
MAM: Sim.
FMP: Existe de facto uma preocupação ao nível da divulgação com os arquitectos emergentes,
com aqueles mais jovens. Existem uns nomes que já fixamos.
MAM: Sim. Acho que a geração que anda à volta dos quarenta, que é a minha, talvez seja pouco
divulgada, sim. Mas acho que ela é tão pouco divulgada como as outras. Há um problema aqui
que é o problema da compreensão da qualidade objectiva. Em Portugal não somos capazes
de separar o “trigo do joio”. Estamos, estivemos e estaremos, a alimentar equívocos. Andamos
sempre à procura do herói da semana, de um tipo qualquer, de quem nunca se tinha ouvido
falar, mas que afinal... A arquitectura tem valores muito objectivos, as coisas são o que são,
e não vale a pena andar a inventar muito. No fundo, é preciso perceber que, para divulgar,
mesmo a minha geração, é preciso ligá-la historicamente a valores que todos nós reconhecemos,
e que todos nós conseguimos estruturar. De facto, o problema é que temos muita dificuldade
em ser objectivos na arquitectura. Temos muita dificuldade em dizer “sim”; “isso sim”; “isso
não”. Temos muita dificuldade em dizer “Não”, “Isso não interessa”, “Isso não é bom”.
FMP: Mas porquê? Pelo corporativismo existente entre os intervenientes?
MAM: Em parte, sim. Em grande parte será consequência de uma espécie de corporativismo:
há um problema enraizado em nós, que é o da dificuldade em assumir os valores. Como
travamos uma grande batalha por este princípio de que a arquitectura tem que ser feita por
arquitectos, esquecemo-nos de defender um outro mais simples: que a arquitectura tem que
ser arquitectura! Portanto, andamos sempre à volta desta ideia demasiado corporativa da
classe, que é uma luta difícil para nós. Por isto, a divulgação acaba sempre por ser “coxa”. Por
exemplo, o mundo suíço é muito pragmático, eles agarram, recuperam sempre aquilo que
sabem que garantidamente abre determinadas portas e depois vão introduzindo o resto, de
forma que aquele lastro ganhe dimensão. Nós não temos isso. Achamos sempre que vamos
reinventar a pólvora, que vamos descobrir uns tipos que são engraçadíssimos, e isso significa
que adoptamos todo um tipo de valores que, do ponto de vista operativo, são muito equívocos.
Perdemos muito tempo e muitas oportunidades que se nos poderiam deparar.
FMP: Considera que a arquitectura tem de ser sempre divulgada por arquitectos?
MAM: Não. Considero mesmo que a arquitectura não tem nada que ser divulgada por arquitectos.
Se há uma coisa que também sabemos é que o grande impacto que a arquitectura tem, o
grande impacto da divulgação da arquitectura, não é no meio dos arquitectos. Nem é quando
é feita por arquitectos. Aquelas coisas mais corriqueiras, às vezes desprezadas, como fazer
a arquitectura aparecer de forma colateral, em anúncios, ou em revistas generalistas, quer
sejam as mais fashion ou as mais típicas de senhora, têm um impacto muito maior do que a
divulgação nas revistas estritas da profissão. Penso que a arquitectura deve ser divulgada
como qualquer outra coisa. A arquitectura é um tempo de pensamento e deve ser divulgada
como ideia, como uma coisa abrangente. Compreendemos isso porque há uma grande liberdade.
Vejo frequentemente os jornais generalistas espanhóis falarem de arquitectura e e fazerem-no muito bem, por exemplo o “El País” ou o “Babilónia”, que é fantástico, é talvez dos melhores
exemplos. Mas percebemos que ali há uma ideia de divulgação da arquitectura para um público
muito lato. A divulgação da arquitectura feita em Portugal é sempre muito factual, quando é
produzida em meios não arquitectónicos. Mas mesmo quando é feita nos meios arquitectónicos,
é meramente factual. Existe muito pouca crítica de arquitectura em Portugal. Primeiro, porque
há pouca gente a fazê-la, e depois porque não é verdadeiramente tomada como reflexão crítica,
é sobretudo entendida e apresentada de uma forma descritiva, de estrito senso, e muito redutor.
São o tipo de coisas que temos de aprender, de crescer; mas para isso há primeiro que ter
muito más revistas, para depois vir a ter muito boas; há que ter muito má crítica para vir a ter
muito boa. Temos que aprender, mas temos que o fazer rapidamente: porque uma vez que
desapareçam a visibilidade ou o impacto do Siza, isso vai ser muito mais complicado. Percebemos
que no mundo, em todo o caso, somos os arquitectos do país do Siza. Isso abriu-nos imensas
portas; mas, para as manter abertas, vamos ter que meter umas cunhas nessas portas, vamos
ter que fornecer matéria para que essas portas não se fechem. Isto é de facto um trabalho que
temos todo pela frente, que não está sequer começado. Mas isso prende-se com tudo. Como
a tal falta de política – para não dizer que existe uma falta de política cultural em Portugal lato-senso, que seria talvez uma coisa que se também poderia afirmar, mas isso não me interessa
– diria que, neste sentido estrito da arquitectura, não se afirma.
Por exemplo, tenho imensa pena que não se tenha conseguido realizar um projecto em que
trabalhámos, que era o de uma galeria de arquitectura associada à Câmara de Lisboa. Porque
considero que uma Câmara como a de Lisboa deveria ter um papel muito interveniente. Só a
título de exemplo rápido, o “Prémio Valmor” deveria tornar-se qualquer coisa mais operativa,
nomeadamente, dar origem a um centro de estudos. Quando estudámos aquela possibilidade,
parecia muito interessante que, numa cidade com o património extraordinário de Lisboa, se
tivesse implementado uma galeria que promoveria um trabalho de importação e exportação
109
de arquitectura. São coisas extremamente interessantes de se fazer, e nada melhor que uma
cidade como esta para se afirmar como um depósito e uma base para essa divulgação. Não
avançou essa galeria, e foi uma pena porque ela poderia ter tido um papel muito interessante
110
ao nível de diferentes discussões.
FMP: No seu curriculum existe uma variedade de projectos arquitectónicos ao nível da área
cultural que pressupõem uma relação directa com espaços expositivos. Neste sentido,
quando idealiza um projecto, por exemplo, para um espaço museológico, para além do
programa quais as questões que o preocupam em termos de concepção do espaço, sendo
que o espaço em primeiro lugar vai albergar objectos, obras, história, memórias, vidas,
peças que cada vez mais acompanham a contemporaneidade ao nível das tecnologias. No
fundo, espaços que não se podem desgarrar de uma contextualização abrangente onde a
mutação da contemporaneidade é uma constante.
MAM: Sim. Devo dizer que julgo que temos evoluído, nesse aspecto. Nós também aprendemos
muito com os erros. Digo erros, no sentido em que há coisas que fizemos e que só mais tarde
percebemos que podiam ser melhoradas. Tivemos duas grandes experiências sobre espaços
expositivos que considero interessantes. Uma foi o tal museu de arquitectura, a tal galeria de
arquitectura, que não se construiu e cuja ideia nos interessava muito nesse aspecto. A proposta
passava pela recuperação de dois pavilhões junto do Poço do Bispo. Íamos recuperar os
pavilhões, mas o trabalho que nos interessava era a criação de uma espécie de layers envolventes,
horizontais e verticais, no interior dos quais, e por meio dos quais, se construía um espaço que
nos aparecia completamente abstracto e, no caso, sem escala: era um espaço que não tinha
nenhuma porta, nenhuma escada (os acessos eram feitos por rampas), nenhum elemento que
constituísse referência de escala apreensível. De certa forma, era um espaço a-dimensional.
A zona de exposição era definida exclusivamente pela tensão entre um piso inferior, que estava
em cave, e um piso superior, que estava suspenso: o espaço era desenhado pela presença
destes pisos, que comprimiam e modelavam o vazio. Isto era uma reflexão que nos interessava,
porque conduzia a esta espécie de neutralidade do espaço expositivo: o espaço era totalmente
aberto a qualquer organização, a qualquer exposição, e também a qualquer escala de
representação ou de apropriação, visto que ele próprio era dela destituído. Foram respostas
que encontrámos, porque nos deparámos com o problema de criar um espaço específico para
expor arquitectura. Mas são conceitos extrapoláveis, simplesmente aquele foi o momento
determinante, que gerou a ideia, e foi talvez o projecto em que melhor a compreendemos e
lhe demos tradução mais evidente.
Depois, mais recentemente trabalhámos num outro projecto com um espaço expositivo
relativamente grande, que é o projecto da nova Biblioteca e Arquivo de Lisboa. É um projecto
gigantesco que alberga uma grande biblioteca, a biblioteca central, que dirige todas as bibliotecas
de Lisboa (salvo erro, são 17). O edifício aloja ainda todo o serviço de arquivos da Câmara
Municipal de Lisboa, quer o histórico, quer os correntes. E, naturalmente, tem uma área de
auditórios e uma área expositiva. Esta área expositiva é relativamente grande. Foi exactamente
essa ideia de uma certa possibilidade de neutralidade, (que não quer dizer que as coisas sejam
neutras), que procurámos retomar e desenvolver. Portanto, temos uns espaços que de alguma
maneira estão entre-cortados por elementos muito determinantes e muito fortes, mas os
espaços expositivos são, em si mesmo, muito expectantes e assumem este carácter muito
neutral, no sentido da expectância. Esta é uma questão que hoje aprendemos: esta necessidade
de expectância, de ordem no sentido da clara compreensão de um espaço, mas ao mesmo
tempo da sua neutralidade, pela sua facilidade de compreensão, é muito importante para uma
estrutura que cada vez menos se apresenta definida, porque cada vez menos expõe colecções
permanentes, mas antes expõe as colecções mais inimagináveis. Cada vez existem formas de
expressão mais diferentes e cada vez mais essas formas de expressão atingem pontos mais
díspares. Portanto, esse grau de neutralidade torna-se necessário, torna-se quase imprescindível.
Também compreendemos que esta preocupação se liga à nossa própria ideia de arquitectura,
uma certa ideia de abertura de possibilidades, mais do que da sua determinação; ou pelo
menos um equilíbrio que conjugue as duas, o recurso à definição de espaços muito carregados
do ponto de vista da sua formulação, contra espaços muito abertos. Esta questão interessa-nos profundamente. Estes foram talvez os dois trabalhos em que nós, mais claramente,
operámos com estas ideias.
Mas, por exemplo, agora estamos a retomar o projecto de Sines, porque este projecto tinha
apenas uma nave de exposições, uma zona muito pequenina. Aliás, Sines não é uma porta de
ingresso no novo mundo, portanto o projecto pretendia ser, do ponto de vista das valências
expositivas, uma primeira aproximação a um projecto mais vasto, de uma rede de espaços
expositivos. A ideia agora é criar, numa das zonas dos pátios de trás, uma zona de artistas; e
posteriormente vir a criar um pólo expositivo de arte, perto do mar. Isso já está determinado
na repercussão do outro edifício, um projecto que a Câmara tem a mais longo prazo. Mas Sines
no fundo era um projecto muito neutro, tem um espaço que carece da resolução de uns
problemas acústicos, mas tem um espaço expositivo perfeitamente convencional, alto, de
alguma maneira também neutral. Depois, até um pouco pela sua programação do Centro,
começaram a utilizar-se para esse fim outros espaços, que não eram espaços expositivos, e
nesses temos agora que voltar a trabalhar para poderem cumprir essa função. São espaços
muito condicionados. Compreendemos que espaços muito condicionados podem ser espaços
muito interessantes, desde que se parta do próprio espaço, ou seja, que os artistas sejam
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convidados para operar ali ou que a selecção seja feita em atenção às características do espaço.
Os espaços muito determinados têm esse problema, são muito limitadores das experiências
que se podem lá fazer e, em Sines, abriram demasiado o leque, e houve algumas que resultaram
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menos felizes. Portanto, temos agora que voltar a estes espaços para os trabalhar e tornar
mais versáteis.
No fundo, ao longo deste caminho, mas principalmente naqueles dois projectos, compreendemos
bem esta vantagem de deixar alguma coisa em suspenso. Há uma liberdade em suspenso que
é necessário deixar nestes projectos. Os projectos têm que ser, de alguma maneira, muito
facilmente apropriáveis. São espaços que vivem de intervenções feitas posteriormente, que
não são nossas, e é para essas que temos que reservar uma grande predominância. Na
Biblioteca de Lisboa isso já é perfeitamente pacífico, na galeria de arquitectura também era,
embora aí o âmbito das eventuais exposições fosse mais reduzido. Esta questão, que esperamos
começar a trabalhar, é hoje perfeitamente clara como um dos vectores principais, como um
dos valores que nos interessa salvaguardar. Aprendemos isso, agora na verdade estamos
ansiosos pela próxima oportunidade.
FMP: Então, é um desprendimento ou uma liberdade e compreensão em relação ao que vai
ser exposto naquele(s) espaço(s).
MAM: Bom, sim. É uma maior compreensão, um maior sentido de abertura que se torna
necessário. Essa é uma questão simples de percebermos, quando vamos ver estas novas
grandes áreas expositivas, compreendemos que existe uma neutralidade positiva. Por exemplo,
se formos ao museu do Frank Gehry em Bilbau, uma coisa que é interessante verificar é que
os espaços com pouca neutralidade são feitos em função de peças permanentes; os espaços
para as exposições temporárias são muito mais neutrais. Isso está perfeitamente correcto.
Esta ideia prende-se ainda com outro aspecto, que é a introdução de toda uma carga tecnológica,
hoje considerada indispensável nestes espaços. Mas sobretudo, parece-me agora óbvio que
a neutralidade é um valor fundamental, porque pode facilitar o trabalho, conquistar margens
de manobra, para o trabalho dos artistas. Acho todavia que não será o único caminho, penso
que pode ser complementado com espaços muito caracterizados, que obriguem a um
determinado tipo de trabalho. Mas isso não permite expor lato-senso, digamos, permite expor
no sentido formativo. No sentido em que, ou são peças encomendadas para ali ou são casos
muito especiais para quem trabalha nesses espaços muito caracterizados. A ideia da neutralidade
é que acaba por ser dominante.
FMP: Essa é uma questão essencial ao nível de espaços museológicos, muitos arquitectos
não pensam dessa forma.
MAM: Bom, embora isto seja completamente evidente, também chegámos aqui passando por
outros lados. Penso que, se hoje projectasse um museu, faria uma sucessão de cubos de
espaço, cubos de espaço tão neutros quanto possível. Nesse aspecto, acho que a recuperação
da Tate, aqueles espaços laterais onde são feitas as exposições, é exemplar.
FMP: Sem dúvida.
MAM: Exactamente. E porquê? Porque os espaços são de uma neutralidade asfixiante, são de
uma modéstia excepcional. Depois a Tate também tem espaços que requerem intervenções
específicas, e essas são feitas de forma decidida, sem compromissos. Eles não têm a veleidade
de expor ali obras convencionais, obras encerradas nos seus próprios códigos. Ali expõem
peças feitas por encomenda, que estabelecem um diálogo com o contexto envolvente: o sol,
os escorregas, todas essas peças que eles já montaram foram produzidas especificamente
para ali, e isso também está certo, mas é uma postura que já não requer a neutralidade do
espaço expositivo, muito pelo contrário. Penso que esta questão é clara de uma forma genérica.
Para nós isto foi uma aprendizagem, também não era evidente para nós, mas hoje sim, é
completamente evidente.
FMP: O trabalho de um arquitecto pressupõe uma exposição pública permanente, desde
logo, porque o produto final do seu trabalho – o edifício – torna-se sempre público. Mais
uma vez, o seu caso ao nível de exposição pública é particular, os prémios, tal como a
participação em exposições é uma constante no seu trabalho. Como sente e gere a exposição
pública?
MAM: Bom, considero que a arquitectura é um trabalho cada vez mais público. Isso constitui
em si mesmo uma grande vantagem, porque ela própria se divulga, faz-se presente e conquista
novos mercados, alargando de uma maneira natural e progressiva o seu público. Esta questão
é muito interessante, no sentido em que é a qualidade da arquitectura que gera oportunidade
de trabalho para os arquitectos, não é o 73/73 ou lá as leis que se façam. Tal como os médicos
não necessitam de proclamar a validade do seu ofício, basta-lhes o reconhecimento do próprio
trabalho. Penso que é um mau sintoma, esta permanente obsessão de reclamar a exclusividade
do exercício da profissão. A visibilidade do trabalho deveria ser suficiente para gerar a procura
do mercado. Realmente, esse é um lado muito positivo na divulgação da arquitectura.
No entanto, o excesso da divulgação da arquitectura é também por vezes complicado. Sem
dúvida que a arquitectura, ou melhor, os arquitectos se tornaram hoje muito mediatizados.
Penso que esta mediatização é uma questão que deve inspirar muito cuidado, porque a
arquitectura é um trabalho de fundo, complicado e arriscado, que corre às vezes bem e às
vezes mal; portanto, esta excessiva exposição pode ter um lado perverso. Mas de facto ela hoje
existe, realmente é uma constante. Neste sentido, considero que deve ser encarada com uma
grande modéstia, e essa é mesmo a palavra correcta, porque todos sabemos que a exposição
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é sempre produto de determinados factores, uns reais, outros nem tanto. Sabemos, também,
que essa exposição é inseparável de uma maior responsabilização, e esse também pode ser,
por vezes, um factor inibidor, porque cada vez mais se sente como uma forma de pressão:
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“Agora ter que, agora ter que, agora ter que...”. Mas é preciso relativizar e ter presente que
não precisamos surpreender o mundo a cada dois meses, a cada nova publicação ou a cada
obra. Temos que fazer um trabalho com uma certa distância destes fenómenos mundanos,
portanto, temos que saber de alguma maneira resguardar o trabalho que é muito longo, porque
a arquitectura é um trabalho muito longo. Todos sabemos, claramente, que um edifício leva
anos a fazer e, portanto, não se compadece com voragem da mediatização, que necessita de
carvão a toda a hora. Ou seja, precisamos de ter este cuidado no sentido compreender que nós
estamos num trabalho que é realizado à la longue, um trabalho para a vida, um trabalho
demorado. Mas que tem esse lado positivo que é o a divulgação, que gera, quer se queira, quer
não, um aspecto da crítica que é importante. Agora, como é que eu lido com a exposição que
o nosso trabalho tem? Eu julgo que nem chego a lidar com a exposição que tenho, ou talvez
não tenha nenhuma, o meu trabalho é que a tem e isso é uma coisa muito diferente.
FMP: Sim, mas ela reverte sempre para si.
MAM: Está bem. Mas tenho que sentir sempre uma certa liberdade em relação a isso. Quer
dizer, não tomo consciência disso, não me interessa. Fundamentalmente, a relação que tenho
com essa exposição é sempre pela via de uma maior responsabilização. Portanto, hoje sentimos
isso, sentimos essa...
FMP: Carga...
MAM: Essa carga da responsabilidade. E sentimo-la porque a pressão é muito grande. De facto,
é muito grande, esta coisa de resultados constantemente a publicar, ter pessoas constantemente
a trabalhar no escritório, só para publicações ou conferências. Mas também tem um lado positivo,
porque nos obriga a realizar uma espécie de testes aos projectos. Isso é uma coisa muito engraçada,
preparar
o
material
para
divulgação:
ele
é
preparado
e
serve-
-me como uma espécie de garantia do que estamos a fazer. Portanto, analisamos o projecto,
montamos uma estratégia de apresentação (embora por vezes esta arranque em simultâneo com
o projecto, como parte do processo de concepção) e isso obriga-nos, verdadeiramente, a uma
compreensão do projecto, que muitas vezes é bastante operativa para nós. Mas é uma coisa interna.
FMP: Nunca a pensar num objectivo de que ele tem de ser permanentemente...
MAM: Não, não. Isto pode parecer um pouco insólito, mas apesar de tudo, hoje em dia,
recusamos mais do que aceitamos convites para comunicações, exposições ou conferências.
Parece um pouco absurdo de dizer, mas realmente dizemos não: porque não conseguimos ou
porque não vemos interesse. E no entanto, as ocasiões em que fomos forçados a publicar ou
a divulgar, acabaram por ser das mais produtivas. Quando fizemos o número da Protótipo,
tínhamos pouquíssimo trabalho; no entanto, fomos obrigados a arrumar ali cinco projectos e
a representá-los de uma forma nova. Portanto essa publicação equivaleu a um esforço grande,
obrigou a tomar um tempo de reflexão sobre o trabalho, que de algum modo marca ciclos de
actividade. Tivemos esse grande momento que fechou uma época, perfeitamente clara, do
nosso trabalho; e que abriu outra, que foi esta agora exposta no CCB. Agora, sobre isto iremos
novamente continuar a trabalhar, e esse é o lado interessante, esse lado de uma crescente
tomada de consciência e de responsabilização. Claro que sentimos a carga do que se espera.
Mas por outro lado, registamos essa possibilidade de nos podermos colocar numa posição
autocrítica, quase exterior. Operativamente leva-nos para outras questões e isso, às vezes, é
interessante. Isso de alguma forma é semelhante às conferências. Eu falo mal todas as línguas,
quer dizer, português falo, não particularmente bem, mas falo. Mas as outras línguas falo mal.
FMP: E na Suíça?
MAM: Falo italiano, mas mal. Aprendi italiano por mim próprio, aprendi espanhol na rua,
aprendi inglês aos pontapés, aprendi francês quando era muito miúdo, portanto, falo mal tudo.
Gosto imenso de fazer conferências em línguas que falo mal. É muito produtivo, porque me
obriga a fazer um esforço de concentração exactamente naquilo que quero dizer. Muitas vezes
acontece-me encaixar, nessas conferências, os projectos que estão em curso nesse momento,
ou um projecto que está meio encalhado. Obrigo-me a explicá-lo e faço um esforço vertiginoso
para explicar uma coisa que nem sei bem como é que vou concluir. É também para isto que
estes desafios servem: para nos obrigar a resolvê-los. Nesse sentido, esses reptos são
interessantes, são operativos. Estes desafios não sei se têm um grande interesse, têm de facto
este interesse operativo, que para mim é bastante.
FMP: Até hoje qual foi a exposição que mais “gozo” lhe deu em estar presente?
MAM: A exposição que mais “gozo” nos deu, de longe, foi a exposição do CCB. A exposição do
CCB foi uma experiência determinante. Primeiro porque envolveu dois anos de trabalho directo
para a montar. Depois porque implicou um esforço gigantesco, que praticamente parou o
atelier durante um ano para executar a exposição. E por último, porque tivemos meios para
o fazer, foi uma condição única.
FMP: O convite partiu do Delfim Sardo?
MAM: O convite partiu do Delfim Sardo no CCB e, na altura, até foi muito interessante porque
a primeira questão que nós discutimos foi: “onde é que fazemos a exposição?”. Para Comissário,
a escolha do Diogo Seixas Lopes foi consensual, porque nos interessava esta discussão entre
o Delfim, o Diogo e nós. Depois a questão foi o sítio da exposição. Eles propuseram aquela
zona que tinham para expor arquitectura, no piso de cima. Dissemos que ali nunca faríamos
115
a exposição. Não por nenhuma espécie de preconceito, mas precisamente porque era um
espaço muito carregado pela própria arquitectura, que nunca nos permitiria fazer a exposição
que tínhamos em mente. E também porque nos interessava expor junto com os outros artistas,
116
não nos interessava expor separados. Queríamos aquele espaço central e pedimos uma área
gigantesca, com 500m2. Acabaram por dar-nos essas condições e isso permitiu-nos,
verdadeiramente, pensar na maneira como queríamos comunicar cada projecto. A partir daí,
o que é que queríamos comunicar no desenho? O que é que poderia significar o trabalho da
fotografia? Na altura eram feitas pelo Daniel, aliás as nossas fotografias foram sempre feitas
pelo Daniel Malhão, que tem também um contributo importante aqui no nosso trabalho. Quando
começou a fotografar arquitectura, começou a fotografar arquitectura para nós e mantemos
uma relação muito estreita com o Daniel. Mantemos e manteremos, porque ele é para nós
muito caro e muito importante para o nosso trabalho. Mas interessava-nos pensar de que
maneira poderíamos operar sobre cada desenho ou sobre cada modelo, para explicitar essa
interacção entre o que é o projecto e como é que ele se representa, mas também o problema
de validação autónoma de cada peça, independentemente do próprio sentido da arquitectura.
Para nós, aquela exposição é feita de peças que representam arquitectura, mas que também
são em si próprias, e cada uma por si, uma peça. O que nos interessa como coisa.
FMP: Como uma individualidade?
MAM: Exactamente. Isto era feito para cada desenho, um esforço de procura de forma;
queríamos representar, e para que essa representação nos interessasse sob o ponto de vista
do seu valor, mas também do ponto de vista da tradução de uma experimentação que temos
em relação ao nosso trabalho. Esta questão colocou-se também nos modelos e na fotografia.
Portanto, nesse sentido foi-nos muito grata. Para além de tudo isto, ainda tivemos condições
maravilhosas e conseguimos construir algumas das espacialidades que queríamos ter como
experiência. É muito engraçado porque agora estou a começar um projecto de uma creche,
e ele nasce da experiência que obtivemos com a exposição. Portanto, aquilo tinha mesmo um
sentido de experimentação espacial. De facto, essa foi a exposição mais interessante onde
estivemos presentes, de longe.
FMP: O desenho da exposição foi feito…
MAM: Por nós, porque ela fazia parte dessa experimentação. Aliás, ela parte daquele sentido
labiríntico que era representado e que se decantava um pouco do desenho de uma das casas.
Daquela casa dos corredores percorríeis, das paredes-corredor. Ela decantava-se um pouco
daí. Foi uma experiência de uma casa que não se construiu, infelizmente, por problemas na
família, e acabámos por fazer alguma experiência ali que no fundo nos deu algumas pistas
para o projecto que vamos começar agora aqui no escritório.
FMP: Como olha em termos conceptuais para a figura do comissário de exposições de
arquitectura?
MAM: Considero que o comissário das exposições de arquitectura tem um papel determinante,
aliás como em qualquer exposição. Porque uma exposição de arquitectura é em si mesma um
momento, portanto, tem que ter um objectivo, uma ideia. É isto que espero de um comissário
da exposição de arquitectura. Foi assim que o Diogo Seixas Lopes esteve. O Diogo ajudou-nos
a discernir qual era a ideia que verdadeiramente tínhamos para aquela exposição, no fundo
encontrá-la. Encontrá-la na exposição, a ideia da exposição. Penso que esse é o trabalho do
comissário de uma exposição de arquitectura. Também acredito em exposições de arquitectura
sem comissário; é o caso, por exemplo, daquelas exposições que são feitas na Basílica Palladiana
em Vicenza, em que cada arquitecto é em sim próprio o comissário. Também acho que isso é
uma possibilidade. Mas de facto achei muito mais interessante trabalhar com o Diogo e ter
um comissário, alguém com quem pudesse discutir as ideias. Penso que o problema do
comissário de uma exposição é o problema de qualquer criador. É a sua própria qualidade
intrínseca, ele tem é que ser bom e tem que rigorosamente perceber o que está a fazer.
Perceber quais são os objectivos da exposição, no fundo quais são os objectivos a que ele se
propõe com a exposição. O problema é um produto de pensamento como outra coisa qualquer.
Mas considero muito importante haver comissários nas exposições de arquitectura, como em
qualquer outra exposição. Acho que é muito importante haver uma figura que de alguma
maneira unifica e objectiva o que se pretende da exposição.
FMP: Mas de qualquer forma o Diogo era o comissário em parceria com o Manuel ou ele
define claramente os objectivos da exposição e expõe aos arquitectos e depois...
MAM: Um pouco de tudo. Nós com o Diogo o que é que fizemos? Não somos figuras muito
neutrais e estávamos a construir esta exposição há muito tempo. Mentalmente, estávamos a
construí-la há muito tempo. Aliás, porque tínhamos já colocado essa hipótese, se ela não fosse
realizada cá, arrancávamos com a exposição para fora. O Diogo veio introduzir uma série de
ideias muito claras sobre a exposição, até sobre os limites da exposição. Para nós era mais
difícil aquela ideia de como se limita a exposição, aonde é que se limita a exposição. O Diogo
ajudou-nos nesta questão, portanto, teve um trabalho muito importante e acompanhou-nos
sempre nesta ideia: obrigar a um diálogo. Obrigou-nos sempre a explicar cada coisa. Neste
sentido, ele teve um trabalho fundamental. É evidente que ele estava a fazer um trabalho de
curadoria só para nós. E claro que houve uma satisfação muito grande, portanto, isto acabou
por ser uma curadoria muito responsável, mas muito dialogada connosco e acho que a exposição
não teria sido a mesma sem o Diogo. O seu trabalho foi também determinante na concepção
do catálogo: a forma como ele dialogou, negociou o catálogo em termos intelectuais foi muito
117
semelhante. Também é muito interessante porque o designer do catálogo a dada altura obrigounos a alguns saltos no escuro, que era algo que eu não queria aceitar. Não queria perder o
controle de nenhum aspecto do processo. Mas ele obrigou-nos a isso, e muito bem, porque
118
acabou por nos surpreender bastante com a sua concepção do catálogo. Ele teve também ali
um papel interessante, muito discutido com o Diogo também. Portanto, até neste ponto o Diogo
teve um papel primordial.
FMP: Ao longo de uma experiência profissional alargada ao nível de projectos de espaços
culturais, qual foi até hoje o maior desafio que lhe foi proposto nesta área?
MAM: Acho que foi a Galeria de Arquitectura de Lisboa. De um ponto de vista estritamente
espacial, considero que foi o nosso melhor projecto. Foi o projecto mais importante, até porque
o próprio tema de expor a arquitectura encerrava já um conteúdo complicado. O que é que
significa expor arquitectura quando estamos dentro de um museu que é sempre uma peça
notável de arquitectura e no meio de uma cidade que é, ela própria, a grande exposição de
arquitectura? Colocámos um pouco esta questão, de que maneira se pode ter... Ou antes, tinha
muito esta ideia, e para nós era muito importante, porque queríamos chegar quase a um espaço
puro. A ideia que tínhamos daquele espaço era que ele devia ser um espaço a-gravítivo e adimensional, uma coisa que fosse quase a ausência de qualquer referência. No fundo, o que
fizemos foi um espaço que perdeu completamente a escala, essa ideia das várias peles que
acabam por perder, e aquele espaço que era só comprimido pelas existências em torno. O piso
superior desenhava a forma como a luz entrava, o piso inferior comprimia-o, as paredes tinham
vários sistemas para interiorizar muito o espaço, para o distanciar da própria realidade.
MANUEL AIRES MATEUS, (Lisboa 1963). Arquitecto (F.A./U.T.L. 1986). Colabora com o arquitecto Gonçalo Byrne desde
1983. Colabora com Francisco Aires Mateus desde 1988.
Conferências e Seminários em: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Eslovénia, Espanha,
EUA, Inglaterra, Itália, Irlanda, Japão, México, Noruega, Suécia, Portugal e Suíça. Professor em: Graduate School of
Design, Harvard University, EUA; Fakulteta za Arhitekturo, Universa v Ljubljani, Ljubljana, Eslovénia; Accademia di
Architectura, Mendrízio, Suíça, desde 2001; Universidade Autónoma, Lisboa; Universidade Lusíada, Lisboa; F.A./U.T.L.,
Lisboa.
Principais Prémios Internacionais: Centro de Artes de Sines – PREMIOS ENOR2006 – Vigo, Espanha 2006; Centro de Artes
de Sines – CONTRACTWORLD2007 – Hamburgo, Alemanha 2006; Casa em Azeitão, RS04 – Residência Singular 2004 –
1º PRÉMIO – Madrid, Espanha, 2004. PRINCIPAIS PRÉMIOS NACIONAIS: Exposição CCB e Biblioteca e Centro de Artes
de Sines – A.I.C.A.– Associação Internacional de Críticos de Arte – Portugal, 2006; Cantina da Universidade de Aveiro,
Prémio de Arquitectura e Urbanismo de Aveiro – 1º PRÉMIO – Aveiro, Portugal, 2005; Reitoria da Universidade Nova de
Lisboa, PRÉMIO VALMOR 2002 – 1º PRÉMIO – Lisboa, Portugal, 2002.
119
CAPÍTULO VII
DIFERENTES
PERSPECTIVAS
121
ESTUDOS
DE CASO
1. “PORTUGAL: ARQUITECTURA DO SÉCULO XX”
Ana Tostões – Comissária da Exposição.
Portugal: Arquitectura do século XX
1. Situação
A exposição e catálogo “Portugal: Arquitectura do século XX”, que será apresentada em Portugal
no Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém entre 25 de Junho e 25 de Agosto deste
ano, integra-se no programa que o Deutsche Architektur Museum sob a direcção de Wilfried
Wang tem vindo a promover, reflectindo, por altura do grande acontecimento cultural que
representa a Feira do Livro de Frankfurt, a arquitectura de cada um dos países-tema,
enriquecendo assim a leitura da cultura de cada país. Depois da Áustria que abriu o ciclo, foi
a vez da Irlanda e em 1997 de Portugal. Seguem-se a Suécia, Suíça e Grécia. Finalmente, a
Alemanha fechará este conjunto de registos da produção arquitectónica europeia do século
que articula visivelmente a relação entre centros, de produção da cultura dominante, e periferias,
que recebem os modelos culturais de referência, como sinal de uma atenta programação
museológica que confirma a vitalidade do Museu Alemão de Arquitectura e o qualificado esforço
do seu director e colaboradores na divulgação da arquitectura de raíz europeia e da sua história.
122
Depois de uma longa travessia do deserto, a arquitectura portuguesa tem sido objecto de
alguma atenção e divulgação internacional nos últimos anos. Claro que são diversas as razões
que terão suscitado este recente interesse internacional como nunca antes aconteceu. Sucedem-se números monográficos das mais prestigiadas revistas, exposições, prémios internacionais,
concursos, com destaque para a dimensão das “peregrinações” às obras de Álvaro Siza, o
incontornável arquitecto português cuja obra é mais atentamente seguida pelos circuitos
internacionais e que inteligentemente, isto é, sem perder a sua genuinidade, permitiu a
consumação de uma singular internacionalização, arrastando consigo o nome de Portugal e
suscitando o interesse por outros autores contemporâneos.
Naturalmente que as mudanças políticas ocorridas com a passagem da ditadura à democracia
terão que ver com esta situação, mas isso deve-se certamente ao facto de que a arquitectura
produzida recentemente tem sido acolhida internacionalmente como uma contribuição autêntica
e com personalidade própria. Na verdade, a mudança pode não ter ocorrido tanto na arquitectura
portuguesa, mas mais no modelo cultural de referência. Com efeito, parece claro hoje o facto
de que os centros de produção da cultura dominante terem começado a acolher com interesse
produtos arquitectónicos menos habituais ao olhar e à informação destes circuitos. A tudo isto
haverá certamente a acrescentar outros factores como a mobilidade das pessoas e, sobretudo,
a intensificação das redes de informação que integram o conceito de globalização e que de
algum modo tendem a atenuar a distância e mesmo os valores entre centro e periferia.
Pelo que foi dito, a proposta de apresentar internacionalmente a produção arquitectónica do
século em Portugal constituíu um estimulante desafio. Em primeiro lugar porque foi a
possibilidade de registar, com algum fôlego, um percurso de longa duração quando apenas
se divulgava e conhecia o ponto de chegada. Em segundo lugar porque revelou incontornavelmente
a confirmação da qualidade dessa produção. Trabalho necessário em situação de final de
século, permite fixar a nossa contemporaneidade homenageando um passado próximo, dos
pioneiros da modernidade e de um caminho feito de avanços e recuos, de experiências e
conquistas, de rasgos, mas sobretudo de maior acento na continuidade.
A localização periférica de Portugal, pequeno país do extremo ocidental e meridional da Europa,
tem contribuído para moldar o percurso da arquitectura portuguesa e criar uma situação de
final de século com algum impacto no quadro da produção internacional. Situação periférica,
desfasamento temporal e atraso tecnológico têm sido referidos como factores determinantes
na definição da especificidade da arquitectura portuguesa baseada na vontade de criar
metodologias seguras, situação patente nos autores mais significativos das últimas décadas.
Por isso, podemos dizer que esta produção à margem, mas não por isso menos qualificada,
se afirma através de um percurso com alguma solidez e continuidade, mais permeável a
influências externas do que ele próprio influenciador. Essa consistência advirá muito certamente
do facto de se tratar de uma arquitectura sustentada com “coisas reais”, construída a partir
da resposta às múltiplas implicações de programas, orçamentos e sítios, e às vontades de
criadores e encomendadores, que se constitui como uma verdadeira tradição de pragmatismo,
por vezes, mais determinante do que a própria tradição cultural. Por outras palavras, pode
afirmar-se que o grosso da produção qualificada tem revelado uma exigência de realismo
construtivo, de sentido prático na resolução de programas ou na viabilidade concreta dos
projectos singular e genuína no quadro europeu.
2. Métodos e objectivos
Esta mostra permitiu reunir um acervo de mais de uma centena de obras decorrentes de um
programa estruturado em rede cruzada cronológica e programática que constituem uma
síntese actualizada da arquitectura portuguesa. Apontando para uma visão panorâmica recusa-se a pretensão de recompor um panorama ideologicamente unitário. Trata-se de reavaliar a
arquitectura de autor no quadro de uma amostragem ecléctica, reflexo do pluralismo que
caracteriza a produção ao longo de um século. Defende-se uma abordagem com a
responsabilidade de autor à luz da historiografia da arte, em particular da história da arquitectura
contemporânea. Entendemos que, deste modo, se poderá caracterizar com clareza a produção
arquitectónica segundo perspectivas metodológica e cientificamente globalizantes. Não se
procura produzir um catálogo ou compêndio de obras, pelo contrário, pretende-se caracterizar
uma produção enquadrando num todo as situações marcantes, aquelas que de um modo
incontornável marcam a forma do tempo. O tema é a arquitectura portuguesa do século XX e
não só a arquitectura dita “moderna” produzida em Portugal. O universo é o da arquitectura
estendida à cidade e não reduzida ao objecto. Traçar o percurso da arquitectura portuguesa
do século XX, valorizando a sua originalidade e especificidade, é o objectivo.
A base metodológica assenta numa periodização definidora do contexto em que as obras foram
produzidas, analisada à luz das tipologias ou temas programáticos dominantes, permitindo
definir de um modo estruturado e afastado da aleatoriedade de uma escolha casual os conteúdos
da exposição. As obras que integram cada tempo reflectem a leitura do século enquanto tempo
de longa duração e confirmam a opção autoral de valorizar as obras independentemente dos
autores. Na verdade tratou-se da fixação de obras e não de autores em que o fio serve para
registar as construções que constroem a história. Do mesmo modo, no catálogo, incorporando
monografias, ensaios temáticos e cronológicos dos especialistas nas diversas matérias que
se constituem como importante suporte teórico da mostra, procurou-se esboçar um balanço
crítico da produção arquitectónica do século XX em Portugal e uma primeira obra de referência
na fixação de uma síntese heterodoxa da nossa contemporaneidade.
123
3. Estrutura e conteúdos
Assumidos como se disse na condição de risco autoral, consideraram-se sete períodos bem
como também sete os temas programáticos dominantes no quadro da história da arquitectura
124
em Portugal no século XX.
Os contornos do primeiro tempo desenham-se entre 1900 e 1921, destacando-se a questão
da casa portuguesa e dos novos programas. A arquitectura do princípio do século definiu-se
entre um funcionalismo e um gosto instituído que se adequava imageticamente ao programa.
Dois vectores, patentes nas duas obras que se apresentam do Concurso para o Pavilhão de
Portugal na Exposição Universal de Paris (1900), assinalavam os limites desta prática. Por um
lado, nacionalismo, portuguesismo e revivalismo constituíam temas de debate na cultura
portuguesa, destacando-se o magistério de Raul Lino e a questão da identidade nacional como
tema recorrente. Por outro lado, a afirmação de um certo cosmopolitismo conformava a
influência das Beaux-Arts divulgada pelos bolseiros parisienses (Ventura Terra e Marques da
Silva) no quadro de uma modernidade entendida através dos novos programas de equipamentos
com preocupações funcionalistas.
O efémero Modernismo, que introduz a modernidade do século XX, analisado ao longo dos
anos 20 e 30, desenha o segundo tempo (1922 - 1938 ) em que o gosto Art Deco evolui para um
modernismo experimental, mas também monumental condensado na década de “Ouro” das
Obras Públicas. É o tempo da afirmação do Estado Novo através da arquitectura e da “Política
de Espírito”. A procura historicista e regionalista suspende-se a ela se sobrepondo a crescente
utilização de modelos internacionais (alemães, italianos e menos holandeses) conformados
a partir da crescente divulgação da “arquitectura do movimento moderno”. Às influências
internacionais mais imediatas e algo epidérmicas entendidas como mais um “estilo”, tende a
contrapor-se uma procura de monumentalidade e dos valores de dignidade que integram o
sentido de obra pública, paradigmaticamente condensado nas obras oficiais de Pardal Monteiro.
No quadro da produção corrente destaca-se a renovação linguística operada na imagem dos
prédios de rendimento a partir de qualificadas intervenções de Cassiano Branco criando um
código formal facilmente apreensível e repetível.
Segue-se o período de afirmação da Arquitectura do Estado Novo enquanto arquitectura de
regime (1938 a 1948) apostada na busca de raízes pela via monumental ou regionalista:
monumentalidade simbólica e desejada atemporal nos conjuntos urbanos de representação
da “capital do Império”; regionalismo ruralista na pequena escala (Bairros Económicos e
vivendas unifamiliares da alta burguesia). Neste contexto, a referência a uma certa história
colectiva é explorada através da exaltação dos valores da nacionalidade e consubstanciada no
empenhamento da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais fixando e construindo
os manifestos de uma memória. A Exposição do Mundo Português é entendida como referência
cultural, A Praça do Areeiro como modelo e a Alta de Coimbra como paradigma urbano de
poder. Uma terceira via vai procurar desenvolver, com sinal de modernidade uma outra
aproximação à tradição e à questão da identidade cultural (Távora publica “O Problema da
Casa Portuguesa”,1947 e Keil “A arquitectura e a Vida”,1942). Em tempo sobreposto desenha-se a contaminação moderna portuense com Losa, Artur Andrade, Viana de Lima.
A situação de pós-guerra conformou a ruptura moderna e o questionamento do Estilo
Internacional desenvolvidos ao longo do período seguinte (1948-1961). É o tempo da contestação
ao regime no contexto do Congresso heróico dos arquitectos que passam a reivindicar a adopção
dos princípios da Arquitectura do Movimento Moderno e a resposta funcionalista a novos
programas. A nova revista Arquitectura e as organizações de arquitectos (ODAM, ICAT e MRAR)
revelam uma nova classe consciente da sua missão social. A procura de referências locais,
de contextualização e a revelação da Arquitectura Popular com a tarefa do “Inquérito” (19551961) darão lugar a explorações organicistas e regionalistas críticas, no quadro de uma produção
em situação periférica e com sinal de resistência.
No quinto período (1961-1974) desenvolve-se a pluralidade dos anos 60. O início da década é
marcado pelo eclodir da guerra de África que rompe com a paz instituída e constitui gérmen
de contestação crescente ao regime. No mesmo ano, a publicação da Arquitectura Popular
em Portugal fixa a memória de um território e de um construir. É a gestação de um tempo
definido entre ruptura e nostalgia. O território tende a transformar-se com grandes
empreendimentos turísticos, a cidade a internacionalizar-se com grandes edifícios de serviços
e a escala de intervenção a alterar-se. O “moderno” pela via imagética do Estilo Internacional
tende a banalizar-se ao sabor de uma crescente especulação capitalista surgindo “arquitecturas”
de ruptura com a cidade. Afirmam-se o organicismo a par com a crescente diversidade, a
cultura “Pop”, a valorização vernacular e a arquitectura do detalhe. É a época da
“profissionalização”, da formação de grandes empresas de projectos e gestão de obra. Clivagem
em 1968 anuncia os anos 70: Portas publica “A Cidade como Arquitectura”, Siza projecta em
Caxinas e a Avenida da Ponte. No virar da década esboça-se uma aproximação racionalista
que denuncia a iminência do fim da situação moderna ao mesmo tempo que são trazidos a
debate novos temas: o retorno à cidade, a abordagem culturalista da questão patrimonial e a
emergência da investigação disciplinar.
Os anos da Revolução (1974-1976) constituem o sexto tempo cujas experiências levaram a
arquitectura portuguesa além-fronteiras e onde, pela primeira vez, a sua contribuição é
entendida como original. O poder popular sob a forma de Comissões de Moradores passa a
ser o principal encomendador. Com as operações SAAL, as populações viram a possibilidade
real de darem resposta aos seus problemas de carência de habitação, os arquitectos a
possibilidade de projectarem e construírem em dimensões pouco usuais e de intervirem
125
efectivamente na transformação da cidade e uma parte do poder político-militar a possibilidade
real de caminhar para o que então se designava por democracia popular e participativa.
126
Com o fim do período revolucionário define-se uma época (1976 ao fim de século) em que o
fenómeno da abertura da arquitectura portuguesa acompanha o número crescente de arquitectos
e uma certa dispersão geográfica. A modernidade tende a afirmar-se como valor operativo a
par da contestação do racionalismo e da arquitectura moderna em situação pós-moderna. É
o tempo da internacionalização e da consagração de Álvaro Siza bem como da afirmação da
Escola do Porto. O surto de construção conduzindo muitas vezes à destruição do território, a
expansão das vilas e cidades do interior são factores de transformação que implicaram a
formação de uma consciência que tende, cada vez mais, a valorizar a paisagem e os recursos
naturais bem como a necessidade da gestão do território e do património. A adesão de Portugal
à CEE desencadeou alguns esforços de desenvolvimento de tal modo que a reabilitação, os
grandes equipamentos, com destaque para as universidades e politécnicos, as operações
imobiliárias e a arquitectura de prestígio tendem a definir-se como temas dominantes.
A sequência cronológica acima descrita cruza-se horizontalmente com os sete temas
programáticos igualmente problematizados no catálogo. A habitação, sem esquecer a unifamiliar
quando ela apresenta progressos e experiências retomadas, mas privilegiando naturalmente
a plurifamiliar e a sua extensão enquanto desenho de cidade foram temas eleitos. Entendidos
como sinais dos tempos, os equipamentos públicos, as grandes obras ou edifícios notáveis,
as construções mais significativas para a comunidade são, por isso mesmo, a tipologia
privilegiada nesta escolha e que de algum modo esclarece a evolução da arquitectura ao longo
do século. A representação nacional, condensada nos pavilhões de exposições, funciona como
um barómetro enquanto posição extremada de uma imagem pública, elegendo-se por época
o caso mais significativo, aquele que teve a importância de determinar consequências no
percurso da arquitectura. Também a fixação de um certo inconsciente colectivo representado
pela arquitectura religiosa pareceu significativo para enriquecer esta panorâmica. Finalmente,
num país com uma significativa memória do passado, monumental, mas também vernacular,
as intervenções no património não podiam deixar de integrar a rede estruturante da mostra
já que a reutilização de construções tem sido uma constante da arquitectura portuguesa e
uma confirmação da sua vitalidade.
4. Conceito expositivo
Organizada em moldes inovadores que confirmam a sua vocação ou tese historiográfica, esta
exposição apresenta exclusivamente documentos originais, desenhos de esquiço, telas finais,
esbocetos, croquis de concepção, revelando o processo de criação e aproximando o visitante
e o leitor do mundo da arquitectura. Este princípio condicionou de algum modo a selecção
quando não foi possível localizar e reunir os desenhos originais ou quando não foram esclarecidas
as autorias. Por outro lado, este tipo de trabalho baseado no estudo das fontes revelou-se de
grande utilidade, permitindo confirmar datas de projectos e autorias de obras, informações
que cremos importantes para o desenvolvimento de estudos futuros no quadro da historiografia
da arquitectura contemporânea portuguesa.
A par do registo das obras do século pode ler-se uma outra história, a da sua representação,
a do desenho. Pela primeira vez, um material disperso em arquivos de diversos autores e
instituições, é reunido, exposto e fixado em catálogo, constituindo um importante conjunto de
documentos originais, representando as mais significativas obras da produção arquitectónica
portuguesa do século XX. A escolha dos registos foi deliberadamente diversificada, quer no
que respeita à escala da representação como ao conteúdo dos documentos, apresentandose perspectivas, plantas, cortes, desenhos de pormenor e mesmo esquiços de concepção.
Também no que respeita à recolha iconográfica se privilegiou documentos de época, recolhendose imagens nos diversos arquivos fotográficos disponíveis, pelo que as obras são acompanhados
de fotografias de época, maquetas e algumas peças de mobiliário de modo a contextualizar
globalmente as peças apresentadas. Resultado de um aturado trabalho de investigação que
visou fixar a possível situação da produção arquitectónica deste século, o projecto de divulgação
materializado na exposição e catálogo “Portugal: Arquitectura do Século XX” constitui base de
uma pesquisa séria e contribuição para a construção da historiografia da arquitectura portuguesa
contemporânea.
Finalmente resta-nos referir que este trabalho não teria sido possível sem o apoio e a cooperação
dedicada de autores, arquivos e emprestadores que possibilitaram a reunião de um conjunto
de desenhos raras vezes divulgado. Com efeito, uma exposição desta dimensão dependeu
fortemente da generosidade dos investigadores, amigos e colaboradores activos no catálogo,
a quem agradecemos o apoio científico dispensado na estruturação dos conteúdos, bem como
o suporte moral tantas vezes demonstrado.
Ana Tostões (Lisboa 1959) é arquitecta pela ESBAL e mestre em História da Arte pela UNL com a dissertação “Os Verdes
Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50”. É professora e investigadora no IST, onde se doutorou com uma tese
sobre "Cultura e tecnologia na arquitectura moderna portuguesa". É autora de trabalhos publicados na área da História,
teoria e crítica da Arquitectura e da Cidade Contemporâneas. Participou em diversos júris, comités científicos e realizou
conferências em Portugal, Espanha, Alemanha, Bélgica, Suécia, Suíça, Finlândia, Estados Unidos, México, Brasil e
Moçambique. Comissariou as exposições: Portugal, Arquitectura do Século XX (DAM, Frankfurt: 1997; AM-MF, Madrid;
CCB, Lisboa: 1998); Keil do Amaral, o Arquitecto e o Humanista (Lisboa: 1998); Arquitectura e Cidadania: atelier Nuno
Teotónio Pereira (CCB 2004); Sede e Museu Gulbenkian. A arquitectura dos anos 60 (FCG, 2006). Coordenou cientificamente
o Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal (OA). É vice-Presidente da AICA Portuguesa e foi membro do Conselho
Consultivo do IPPAR.
127
2. COOPERATIVA CURTAS METRAGENS CRL – COOPERATIVA DE PRODUÇÃO
CULTURAL – CRL
Dario Oliveira, José Nuno Rodrigues, Mário Micaelo e Miguel Dias – Directores Artísticos
128
FMP: Qual o conceito global da Cooperativa Curtas Metragens – Cooperativa de Produção
Cultural – CRL?
CCM: A cooperativa tem como objecto principal a organização, promoção e produção de eventos
culturais na área de cinema, audiovisuais e fotografia; edição de publicações na área do cinema
e audiovisual; distribuição cinematográfica e audiovisual.
Subsidiariamente, pode a cooperativa desenvolver actividades, que sendo próprias de outros
ramos do sector cooperativo, contribuam para a satisfação das necessidades culturais, sociais
ou económicas dos seus membros.
FMP: A Cooperativa Curtas Metragens centra-se, essencialmente, na divulgação e promoção
da imagem em movimento enquanto obra artística, por um lado através do cinema, por outro
através de produtos onde se encaixe o meio audiovisual, sendo que se nota pelas diferentes
actividades promovidas uma preocupação sistemática com a mutação contemporânea a
diferentes níveis. Se por um lado, o carácter experimental tem um peso substancial nas
diferentes actividades da Cooperativa, por outro, é notório o cuidado existente ao nível da
imagem como prolongamento de um produto artístico em sistemática transformação com
uma presença transversal cada vez maior no campo da arte contemporânea, não esquecendo,
no entanto, a importância da história, através da memória audiovisual. Tudo isto, já por si
demonstra o carácter de divulgação artística das Curtas-Metragens. É, igualmente, visível
uma forte vertente educativa que sublinha no projecto um sentido cívico e cultural abrangente,
dando como exemplo e tal como é afirmado no site da Agência da Curta Metragem: “[…] a
Agência desenvolve um trabalho de promoção e divulgação da curta metragem portuguesa
em todo o mundo”, sendo que, ainda, decorre neste momento (Março de 2007) no Solar –
Galeria de Arte Cinemática o ANIMAR 2: “A segunda exposição do Solar dedicada ao cinema
de animação é uma continuidade da Animar apresentada em Janeiro de 2006. Trata-se de
uma exposição direccionada para um público mais jovem, mais concretamente aos alunos
do ensino pré-escolar, básico e secundário da região”. Neste sentido, como é elaborada e
conjugada toda esta variedade de actividades, por um lado com as Curtas Vila do Conde –
Festival internacional de Cinema e com Agência da Curta Metragem, por outro com a
programação ao nível das exposições do Solar – Galeria de Arte Cinemática?
CCM: Tratam-se de iniciativas com carácter diferenciado: por um lado o festival, que está
centrado num período de tempo bem definido, efémero com periodicidade anual, ponto alto
da nossa actividade, que concentra uma variedade de programas e conceitos de apresentação
que vão desde as projecções de cinema às performances audiovisuais, exposições, masterclasses
e inclui uma montra de novíssimos filmes portugueses de vários autores, uma competição
que serve como plataforma de lançamento junto dos profissionais estrangeiros presentes
e junto do público nacional. Por outro, a competição internacional, que apresenta em primeira
mão autores e obras por vezes inéditos no país e que algumas vezes acabam por ser os
autores que são objecto de uma descoberta mais alargada a outros media com exposições
no Solar, lugar de exposição de excelência para instalações vídeo e outras formas de criação,
que apresenta durante todo o ano estes autores que já estiveram com filmes no Festival e
outros, fruto de diferentes aproximações a outras áreas como a música, as artes plásticas,
fotografia, design, etc., o que tem garantido uma programação de fronteira tão necessária
para o público entender o período de miscigenação que o audiovisual artístico está a viver
no momento actual.
A Agência assenta basicamente numa ideia igualmente utilizada noutros países de promover
e apresentar filmes de autores portugueses noutros países, quer seja em festivais de vídeo
e cinema, quer junto de museus, mostras ou junto de canais de televisão interessados,
criando laços com instituições um pouco por todo o mundo que podem assim acompanhar
as novas produções nacionais de uma forma mais sistematizada e regular.
FMP: Não sendo o Solar – Galeria de Arte Cinemática – uma galeria convencional no sentido
empresarial, o que significa que a procura de artistas para expor é um facto, dado que a
galeria não é a representante dos artistas expostos, como funciona esta procura e quais são
os seus objectivos programáticos?
CCM: Temos uma postura perante os artistas diferenciada do convencional, apostando em
novos projectos que se adequam ao espaço e ao próprio conceito de galeria de arte cinemática,
que explora de algum modo as relações com as imagens em movimento. Como já referimos
atrás, estabelecem-se relações continuadas com os autores internacionais que já marcaram
presença no festival, visto que são autores que nos interessam e que sobre os quais existe um
acompanhamento do trabalho; a nível nacional, vamos tentando convidar artistas de diferentes
territórios: fotografia, artes digitais, vídeo, numa estratégia de aproximação de linguagens e
de um meio não muito explorado até à data.
FMP: O Solar – Galeria de Arte Cinemática na programação para além de apresentar
exposições comissariadas pelos próprios Directores Artísticos da Cooperativa Curtas
Metragens convida curadores? Se convida, quais os critérios de selecção dos curadores?
129
CCM: Depois de 2 anos de experiência, e quando já se vislumbra algum reconhecimento
nacional, com uma estrutura artística e técnica que foi evoluindo, iremos a partir deste momento
passar a convidar, pontualmente, curadores exteriores à Cooperativa. Estes convites acontecerão
130
sempre que a direcção artística acredite que esse convite possa ser uma “mais-valia” para o
desenvolvimento de projectos já imaginados anteriormente.
FMP: Existe uma preocupação ao nível editorial da Cooperativa Curtas Metragens? Se existe,
qual tem sido a política editorial?
CCM: Para além dos catálogos do Festival, o resumo e compilação de toda a programação de
cada edição do Festival, editamos, pontualmente, livros sobre autores em destaque (casos de
Daniele Cipri e Franco Maresco e Luc Moullet, ambos com a colaboração da Cinemateca
Portuguesa); editámos também um livro comemorativo dos 10 anos do Festival; mas em todos
os eventos existe um programa com textos críticos e sempre que possível com a reflexão do
autor da exposição.
FMP: Existe algum estudo de públicos das diferentes actividades da Cooperativa Curtas
Metragens, especialmente no que se refere ao Curtas Vila do Conde – Festival internacional
de Cinema?
CCM: Temos realizado, frequentemente, inquéritos para avaliar o tipo de público consumidor
do Festival. Dos resultados apurados, podemos concluir que se trata de um público jovem (a
maior faixa etária situa-se entre os 22 e os 35 anos), com habilitações superiores ou em
formação, e de origem nacional, apesar de uma maior predominância regional (Porto e Vale
do Ave), à parte dos convidados e público de outros países. Uma vez que o festival oferece uma
programação variada (cinema, exposições, música, acções de formação, etc.), o público também
parece ter uma apetência variada para cada parte do programa, existindo uma parte que prefere
as competições, outras que preferem os eventos musicais e públicos realmente específicos,
consoante a oferta da programação.
FMP: Quais as dificuldades da realização da proposta cultural e artística da Cooperativa
Curtas Metragens, por um lado ao nível de instituições e empresas (apoio/patrocínios), por
outro ao nível institucional?
CCM: Se a nível institucional (concursos e subsídios públicos) a montagem financeira consegue
alcançar minimamente os seus objectivos, muito pelo reconhecimento por parte das instituições,
público e crítica das acções desenvolvidas, a nível privado as coisas são mais difíceis de atingir,
nunca chegando a uma fórmula perfeita, no balanço entre as necessidades e o sponsoring que
seria ideal para uma programação e produção mais sustentada.
FMP: A cooperativa situa-se numa cidade: Vila do Conde, fora dos chamados “grandes
Centros Urbanos”. Esta situação geográfica reflecte-se ou não nas diferentes actividades
desenvolvidas?
CCM: Considerando que estamos na área metropolitana do Porto com boas acessibilidades,
próximos do Porto e tendo em conta a experiência de alguns anos de actividade, o público
interessado visita as nossas actividades com regularidade.
FMP: Ao longo destes 15 anos de existência da Cooperativa, uma vez que o Festival
Internacional de Cinema – Curtas Vila do Conde vai para a 15ª edição, qual o balanço que
fazem do projecto idealizado e como vêem o futuro deste, no sentido em que a evolução de
diferentes actividades foi um ponto fulcral da Cooperativa das Curta Metragens (Em 1999
surge a Agência da Curta Metragem e no ano de 2002 a Solar – Galeria de Arte Cinemática)?
CCM: O nosso trabalho tem-se pautado pelo risco ao nível da programação e por nunca ficar
agarrado às fórmulas encontradas. Ao longo do tempo fomos sabendo encontrar soluções
adaptadas à realidade cultural e sócioeconómica no sentido de promover em Vila do Conde
projectos que ultrapassassem as fronteiras regionais e nacionais em termos da qualidade das
propostas e da internacionalização dos eventos promovidos.
É com certeza com este espírito que continuaremos a trabalhar e a desenvolver mais propostas
à volta das áreas que mais nos apaixonam, o cinema e as artes visuais.
Dario Oliveira, José Nuno Rodrigues, Mário Micaelo e Miguel Dias
Todos licenciados em Belas Artes.
Fundaram o Cine Clube de Vila do Conde; o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema; a Agência da Curta
Metragem e o SOLAR – Galeria de Arte Cinemática.
São convidados para organizar e programar vários Festivais congéneres (Instituições, Festivais de Cinema e Vídeo e
Galerias).
Dirigem as diferentes actividades a partir da Cooperativa Curtas Metragens CRL em Vila do Conde.
131
3. “CURADORIA INTERDISCIPLINAR”
Paulo Cunha e Silva – curador
132
As Cores do Corpo
O Corpo no Museu
1989
Levar o corpo ao museu não é, certamente, atitude inovadora e radical. O corpo é o primeiro
e o último objecto plástico funcionando, quer como suporte semântico, isto é, significante (dos
rituais primitivos à mais contemporânea “body-art”), quer como significado (e é o caso de toda
a tradição figurativa que vai dos ícones bizantinos ao hiper-realismo). O corpo que hoje
celebramos é, contudo, algo diferente dessoutro corpo-plástico: é simultaneamente, mais
verdadeiro e científico, por um lado, e mais íntimo e oculto, por outro lado, mais verdadeiro e
científico porque é colhido fixado e corado (através de processos objectivos e descritos nos
manuais da especialidade) e depois fotografado; mais íntimo e oculto porque se trata daquilo
que se esconde atrás da epiderme, desse grande reduto do nosso ser matérico que não ousamos
partilhar com mais ninguém (a não ser o cirurgião em caso de ameaça destruidora endógena).
Comemorar o centenário do nascimento de Abel Salazar com uma exposição de obras que não
lhe pertencem exclusivamente, mas que pertencem a todos nós, poderia ter uma dimensão
quase provocatória. Mas se atentarmos ao facto de que nele a arte e a ciência, a pintura e a
histologia conviviam com a intimidade do que nasce da mesma fonte, o que seria provocação
transforma-se em homenagem e em celebração do polimorfismo do espírito criador.
Vamos, assim percorrer Abel Salazar através da exaltação plástica do seu objecto científico –
os tecidos orgânicos.
Conjunto de células que se diferenciam num determinado sentido apresentando semelhanças
morfológicas e funcionais chamam-se tecidos. Estes, por sua vez, formam órgãos que se
organizam em sistemas. Daqui ao homem pensante e actuante é mais um salto. A ideia de
tecido é o paradigma do socialismo biológico, pois pressupõe uma origem (embriologia) celular
comum, o sacrifício do projecto individual em nome do objectivo comunitário (de contrário seria
o cancro) e a uniformização morfológica. É este último aspecto da comunidade celular aquele
que nos irá prender, uma vez que esta exposição será composta por um conjunto de fotografias
de lâminas elucidativas de uma viagem eclética através do corpo.
Uma lâmina é um rectângulo de vidro com um corte de tecido em cima. Para se preservar a
transparência do meio o corte deverá ter uma espessura mínima, pois a nitidez e a clareza da
observação dependem da facilidade com que um foco luminoso atravessa a montagem (lâmina
mais tecido). O tecido, a não ser que a preparação seja extemporânea, terá de ser fixado. A
fixação ocorre logo após a colheita e tem como objectivo a durabilidade da preparação impedindo
os processos naturais de desmoronamento da arquitectura celular que se começam a manifestar
logo após a morte do tecido – é uma espécie de embalsamamento microscópico. E, finalmente,
a colaboração que é responsável pelo aparecimento destas paisagens tão policromas. O
propósito (científico) de coloração é tornar visível o que o não era, é fazer a distinção dos
diferentes componentes tecidulares a partir de uma afinidade também diferente para o corante.
O que era, inicialmente, um magma amorfo e monocrómico transforma-se e é, agora, uma
superfície de formas bizarras e cores gritantes, que entronca na tradição do mais possante
expressionismo abstracto, da mais sensível abstracção lírica.
Depois de consumado este ritual de morte e eternização, introduz-se a lâmina num sistema
óptico que, ampliando, satisfaz o nosso profundo voyerismo. Através da ocular do microscópio
é o buraco da fechadura que o olhar perpassa, ancorando em portos de intimidade e desejo.
Com a cremalheira, este micro-corpo-ampliado desliza suave sob a nossa atenção
(inquisitorialmente científica ou febrilmente lúdica). Imediatamente por baixo do prato, um foco
ou um sistema de espelhos emitem ou orientam a luz que vai atravessar a matéria frágil da
preparação. No fim, a retina é estimulada e o córtex cerebral compõe a sua última imagem.
Corpo Fast Forward
3 Corpos Dentro de 1 Livro
Porto 2001
O corpo interior. O corpo interior é o nosso estranho mais familiar. Há, no interior do corpo,
ossos, músculos, articulações, órgãos, glândulas, vasos, tecidos nervosos, tecidos conjuntivos,
formas e funções.
O corpo exterior. O corpo exterior é a pele da personalidade (e a personalidade da pele). No
corpo exterior só vemos pele, pelos, unhas (o exoesqueleto) e aquelas estruturas que teimam
em aparecer à superfície, que teimam em ser vistas, como os olhos. Estranhos olhos, estranhas
janelas, que comunicam nos dois sentidos, para fora e para dentro, para dentro e para fora.
Quando as pálpebras se afastam, amanhece. E, no fundo do olho, o nervo óptico diz que o
cérebro é já ali.
O corpo do meio. Há um terceiro corpo, na mecânica dos corpos, de que ninguém fala. É o
corpo intersticial. O corpo da comunicação, da velocidade, do terceiro espaço. É um “entre
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lugar”, um “entre membranas”. É por aqui que a célula sabe que qualquer coisa se transformou.
É aqui que nasce a ecologia celular.
134
O corpo interior moderno deixou de poder ser entendido como um território impenetrável e
auto-suficiente. O corpo-hoje é o lugar da experimentação mais radical. A sua natureza biológica
transforma-se num suporte comunicacional: a carne que era carnal, digitaliza-se. A carne
digital é a matéria dos tecnocorpos (os quiasmos dos corpostecno). O neurónio confunde-se
com o eléctrodo.
A pele é de plástico. A pele é artificial. Sempre foi profunda. Lembramos Warhol. Há na pele
uma persistência notável. A pele respira, transforma-se. Mudamos de pele todas as semanas.
A pele é resistente e sensível, sentimos pela pele, sentimos na pele o facto de termos pele.
Dói. A pele é natural.
A epiderme é um verniz inteligente. A hipoderme é gorda (adiposa), acolchoada. Tens a pele
macia.
O terceiro espaço. É o mais inteligente dos espaços biológicos. É estranho, abstracto e concreto.
É espaço da negociação celular, do contrato biológico. Da biossemiótica. É um espaço que fica
na dobra dos outros espaços. Um fractal rasgado na continuidade segura das lições de Lineu.
Este livro é um corpo. É igual. É um pluricorpo. Tem corpos que pensam e que fazem. É o livro
dos corpos do novo Portugal (não o Livro dos Mortos do Antigo Egipto). Corpos-vivos. Corposcorpos. CorpoLivre. CorpoLivro.
O CORPO É UM LIVRO… FAST… FORWARD.
“A Fábrica do Corpo Humano”
Porto 2001
“A Fábrica do Corpo Humano” é um projecto que pretende reflectir sobre a natureza do
movimento humano, através do recurso a autores (especialistas) com determinados skills
(aptidões motoras) – atletas de alta competição.
Nesta perspectiva, incorpora desportistas conhecidos do grande público por forma a que os
personagens em palco sejam identificados como autores e não como actores.
A verdade do movimento, por oposição à sua teatralização, foi convocada.
O princípio fundador do espectáculo é, portanto, a verdade motora, ou seja, um princípio de
natureza científica para o qual remete a obra que inspira o título: “A Fábrica do Corpo Humano”
do anatomista André Vesálio (1514-1564), uma obra central na construção do pensamento
morfológico ocidental.
A circunstância de este espectáculo acontecer no palco do Teatro Municipal em ano de Capital
Europeia da Cultura é só por si um facto com intencionalidade programática. Uma cidade,
além da sua iconografia arquitectónica, representa-se também através da sua iconografia
humana. A cidade reconhece-se nos seus ícones, e os ícones desportivos do Porto são
particularmente emblemáticos (Rosa Mota ou Fernando Gomes, por ex.).
A situação de reconhecimento imediato que pretendíamos – “aquela é a Rosa Mota!” – articular-se-á com a perplexidade associada à sua descontextualização –“mas está a correr a maratona
no palco do Rivoli!”.
A reflexão sobre a natureza do teatro, a sua capacidade de transformação da vida em múltiplas
vidas (as sete vidas do actor) seria reforçada por este movimento de sentido inverso que agora
pretendemos praticar: não fazer do palco a vida, mas fazer da vida o palco.
Nesta perspectiva, Rosa Mota funciona como o ready-made absoluto. Ela, mais do que um
objecto, é um ícone (um metaobjecto). Rosa Mota, em princípio, quer dizer maratona. E o grande
desafio que este projecto levanta é o de tentar avaliar a capacidade de dissolução e centrifugação
do palco – “será que Rosa Mota passará a ser actriz/performer? – por um lado e, por outro
lado, avaliar a natureza performativa do desporto? será que ele é uma “arte do corpo”? ou
ainda uma “arte do palco”?
Anatomias Contemporâneas
apontamentos sobre o projecto
(texto de Paulo Cunha e Silva e Paulo Mendes)
1997
A motivação inicial para esta exposição partiu da convicção de que a arte portuguesa dos anos
90 tinha produzido uma grande quantidade de corpos, embora, paradoxalmente, a percepção
dominante dos observadores privilegiados fosse a de que havia um deficit de corpo na arte
portuguesa – e por extensão um deficit de corpo português.
Daí que, sem todavia pretender ser uma antologia exaustiva, ela surja inevitavelmente como
uma primeira e subjectiva recolha de trabalhos sobre a temática do corpo produzidos nesta
135
década. Entende-se por década, não o lugar de uma geração (no caso dos anos 90), mas o
lugar de encontro de gerações, onde se cruzam formações e percursos variados, diversos
meios de expressão – desde pintura, escultura, desenho, até à fotografia, ao vídeo e a instalação.
136
Coexistem, igualmente, peças que reflectem um maior rigor conceptual e formal, peças mais
elípticas, ao lado de representações mais transparentes.
A biaxialidade da exposição, concretizada através de dois eixos conceptuais – “o corpo sem
órgãos” de inspiração artaudiana e o corpo com órgãos, por natural antonímia – que se vão
desdobrando sucessivamente em territórios de confronto (ausência com presença, desejo com
prazer, encontro com contaminação/doença, etc.) permite a criação de uma tensão que, em
nosso entender, estimula o percurso e propõe uma leitura.
Uma leitura simultaneamente fragmentária, substantivada na autonomia das diferentes “casas”
do corpo, e articulada, através do trajecto proposto e das conexões inevitáveis que daí decorrem.
Outra polaridade que se quis explorar foi a do “fora” e do “dentro”, seguramente uma questão
incontornável quando se fala do corpo.
Optou-se por colocar a maior parte das obras dentro de casulos, dentro de células (de celas)
cuja dimensão contrasta brutalmente com a do macroterritório (o hangar k7 – um supercorpo)
em que se instalam. De fora ficaram apenas duas obras que, pelo tamanho, dificultavam outra
alternativa, acabando por contribuir para desenvolver esta oposição. A exposição surgirá,
porventura, num ou noutro momento, mais como uma imposição, dados os conflitos de escala
que este modelo arquitectónico precipita. O corpo do visitante é, desta forma, chamado a
confrontar-se com a sua anatomia, a rever a sua relação com o lugar.
Também através da morfologia do próprio catálogo pretendeu-se continuar a explorar a relação
entre vários corpos. E entre corpos e objectos, tentando produzir uma entidade ergonomicamente
viável: um catálogo sobre o corpo para transportar junto ao corpo. Por uma lado autónomo,
por outro lado que reenviasse imediatamente para a edição de um segundo volume que acolherá
as intervenções do colóquio que acompanha a exposição. Este objecto (que se deseja de desejo)
nasceu a partir da estimulação de uma forte intervenção autoral dos gráficos. As imagens
recolhidas, apropriadas e manipuladas, que surgem lado a lado com fotos das obras, são
comentários visuais acrescentados, não se pretendendo que se sobreponham à obra apresentada
mas sim que forneçam, por acentuação ou oposição, mais pistas para a interpretação da
mesma.
Por último, será curioso revelar uma bipolaridade mais íntima. A bipolaridade curatorial. De
um lado, um “comissário-filósofo” (Paulo Cunha e Silva), do outro, um “comissário-artista”
(Paulo Mendes). Um mais preocupado com as ideias, com os conceitos, o outro mais preocupado
com as obras. Um do lado do estado do corpo, o outro do lado do estado da arte. E aquilo que
poderia ser uma tensão aniquiladora transformou-se numa estimulante parceria.
Propomos pensar o estado do corpo através do estado da arte.
A Experiência do Lugar
A Cidade da Experiência
Porto 2001
A Experiência do Lugar coloca a questão da cidade, enquanto espaço de circulação, no centro
de discussão. Primeiro, porque, ironia do destino, acontece num momento em que ela é objecto
de uma profunda e radical cirurgia que tem como condição imediata uma limitação de mobilidade.
Depois, porque essa condição introduz um tempo suplementar na deslocação. Ela é agora
vivida como experiência quase iniciática. Atravessar a cidade é, neste momento, um exercício
que nos confronta como a noção de obstáculo. É um exercício que introduz a questão do tempo
no seio de todas as teorias do lugar.
Uma exposição que se desenvolve a partir desta ideia de disseminação, num campo com esta
composição e estes constrangimentos, transforma-se ela própria numa instalação, numa
instalação de instalações. E, ao associar o tempo à natureza da ocupação do espaço (é preciso
tempo para se circular entre os espaços), passa também a ser uma performance.
Se a olhássemos de um plano muito afastado do território de intervenção, esta exposição
surgiria como um conjunto de 10 pontos numa cartografia urbana (o Porto). 10 pontos arrumados
em três núcleos. Se nos aproximássemos um pouco mais, verificaríamos que a esses 10 pontos
corresponderiam outros tantos edifícios associados à Universidade do Porto e relacionados
com a prática científica nas suas múltiplas manifestações – desde as de natureza tipicamente
laboratorial (IBMC, Faculdade de Farmácia), até às que passam pela colecção (Museu de
História da Medicina da Faculdade de Medicina), pela organização do saber (Biblioteca da
Faculdade de Letras), pela demonstração (Jardim Botânico ou Planetário), pela aprendizagem
e pelo exame (átrio da FCDEF e sala de exames da Faculdade de Ciências), ou pela utilização
do saber (Faculdade de Engenharia e Instituto de Medicina Legal). Continuando o zoom
entraríamos agora no interior dos edifícios, onde encontraríamos laboratórios, salas de aula,
bibliotecas. Na escala destes lugares descobriríamos um conjunto de intervenções que
procurariam dialogar, experimentar não só a morfologia daqueles espaços, mas sobretudo a
sua função. Este diálogo entre estas duas pós-naturezas é a matéria desta exposição. As duas
pós-naturezas são a arte e a ciência.
137
Depois de identificarmos os 10 lugares que poderiam dar conta da pluralidade de registos que
a experiência científica comporta, tentámos encontrar 10 artistas cuja prática se pudesse
aproximar do conjunto de problemas que a natureza específica daqueles lugares convocava.
138
Nalguns casos a escolha foi óbvia, noutros nem por isso. Nalguns casos, os lugares
apresentavam-se tão cénicos que nos parecia que uma intervenção seria uma solução natural
e outros tão inóspitos que imaginávamos com dificuldade a possibilidade de qualquer intervenção
eficaz. Os factos demonstraram o contrário: os lugares mais fáceis tornaram-se os mais difíceis
e vice-versa (o lugar é sempre uma experiência, surpreendente!).
Se a ciência propõe uma explicação do mundo (contingente e “falsificável”, como diz Popper na
sua “Lógica da Descoberta Científica”), a arte propõe uma interpelação. Arte e Ciência, se bem
que sendo duas formas de lidar com a realidade (querendo esta dizer tudo aquilo que pode caber
dentro da percepção e da construção do sentido), são processos com metodologias muito diversas.
A prova científica exige que se chegue aos mesmos resultados quando se parte da mesma
situação e se usam os mesmos processos na demonstração de um qualquer fenómeno (chamase a essa exigência reprodutibilidade); o saber artístico é por definição (pelo menos romântica)
irreprodutível. A aura do objecto artístico estaria na sua originalidade e, apesar do século ser do
“ready made” e do “múltiplo”, temos que admitir que mesmo aí ele funciona como um curtocircuito da realidade, como uma suspensão da evidência na procuro do sentido.
“A Experiência do Lugar. Arte & Ciência” propõe, na sua concepção, uma releitura desta
problemática. As intervenções artísticas funcionam ora como detonadores daquele espaço, ora
como infra-leituras. Um dos títulos iniciais da exposição era “Lugares da Ciência. Olhares da
Arte”, título abandonado por atribuir ao território científico uma passividade (a do lugar olhado)
que não era exactamente o que se pretendia do projecto. De facto, desejávamos uma interactividade
que pudesse ultrapassar uma apreciação naturalista dos diferentes espaços. Não pretendíamos
instalações site specific, na lógica de uma interpretação meramente morfológica, pretendíamos
uma articulação funcional lugar-instalação. Estes espaços não são espaços de contemplação
são, sim, espaços de acção. A função polissémica da obra de arte empresta a esses territórios
unissémicos (a ciência produz um sentido acerca de um fenómeno) múltiplas leituras.
Esta exposição funciona como uma composição fragmentária que oscila entre a tonalidade de
uma afirmação precisa, de um registo vocal claro e decidido, e a atonalidade de um percurso
que caminha em direcções várias numa deriva sem fim.
Por isso, o exercício que propomos não é tanto a análise crítica ou circunstancial das obras,
mas antes uma avaliação da harmonia ou da dissonância que essas obras convocam perante
a natureza do lugar.
São fragmentos de um discurso plástico-científico, organizados no prazer (na emoção) da
cidade-texto.
As duas peças de Rui Chafes localizadas no Jardim Botânico, uma no interior da estufa, pairando
sobre o lago, outra no exterior, implantada, decisivamente, remetem para uma natureza
ambígua e paradoxal: uma natureza interior, superprotegida, evanescente e outra natureza
exterior, fortalecida, robusta. A peça exterior projecta a sua sombra no interior da estufa. É
um diálogo subtil, ténue: “Uma Secreta Soberania”. Esse diálogo interior/exterior continua a
falar de uma espécie de força-frágil que alimenta os trabalhos deste autor.
Já um pouco mais à frente na cartografia da exposição, no IBMC, Gerardo Burmester propõe
“Igual com Igual”. A instalação desenvolve uma lógica de contaminação. A natureza do artista
é contaminada com a natureza do lugar: materiais científicos que pertencem à desordem de
um laboratório organizam-se, agora, com resíduos de outras exposições. Frascos de moscas,
cultivadas com objectivos científicos, são envolvidos por cilindros de felpo. Textos de Goethe
misturam-se com textos técnico-laboratoriais. Como se o Fausto revelasse a sua origem.
No Planetário, Pedro Cabrita Reis constrói um poço: a intenção já não é olhar as estrelas, nem
explorar os planetas, mas provocar uma fractura. Rasgar a superfície, rasgar o chão. Despoletar
uma flexão do pescoço sobre o fundo, contrariando a anatomia desse lugar em que o movimento
é a extensão. Olhar para baixo.
No labirinto da biblioteca da Faculdade de Letras, Julião Sarmento instala “Charm”. Anaisabel
lê um texto intensamente erótico, enquanto o percurso foi armadilhado por um dispositivo
interactivo que não só convoca o utilizador, como o aprisiona num processo que insiste em não
terminar. À vítima são dados alguns graus de liberdade que a fazem aproximar-se, afastar-se, ou permanecer, em função da sua recepção do texto. A obra provoca uma estranha
coreografia no espectador. O ritmo da leitura acompanha o ritmo físico da história e obriga o
corpo do espectador a um confronto inesperado.
Helena Almeida toma o título da exposição e numa sala de exames da Faculdade de Ciências
faz a sua “Experiência do Lugar”. Enterra as extremidades do seu corpo num pigmento colocado
sobre o chão axadrezado da sala, fazendo-se reaparecer nas paredes do mesmo espaço numa
perturbante encenação da sua relação com o lugar. Provoca variações de luz na nossa percepção
da realidade. A sala, onde agora estamos, foi a sala onde ela esteve para podermos estar com ela.
Com as “4 fotografias e uma instalação” de Augusto Alves da Silva, no Instituo de Medicina
Legal, passa-se exactamente o contrário. Alguém que estivesse à espera de uma qualquer
celebração da morte, a partir da sua iconografia mais tanatológica, sairá, seguramente,
139
desapontado. Estas paisagens etéreas, idílicas, imateriais, colocadas nos corredores do edifício
provocam, uma distonia absoluta relativamente à natureza daquele lugar. Aqui, a experiência
é dissociativa. Uma espécie de teatro do absurdo.
140
Na “Pharmacia”, que Pedro Tudela propõe para a Faculdade de Farmácia, é levada ao extremo
a relação com o lugar. Não porque a instalação o mimetize, mas porque o faz explodir em
direcções multissensoriais. Com efeito, o multimédia transforma-se em multissensorial. A
farmácia é uma hiper-realidade. Ela vê-se, ela cheira-se, ela ouve-se e, sobretudo, ela
transforma-se, através dos processos descritos pela física e pela química que constituem
matéria de investigação naquele lugar. Dos frascos das montras saem sons que recriam a
Natureza (como a Ciência gosta de fazer).
No outro pólo da Universidade (pólo 3) continua essa exploração tonal. No Museu de História
da Medicina da Faculdade de Medicina, Cristina Mateus transforma a dor do tempo numa
ansiedade presente. Cria caixas de luz a partir de pequenas palavras presentes em instrumentos
médicos que remetem para uma lógica de intervenção e manipulação do corpo. Amplia imagens
de corpos com múltiplas patologias cutâneas como se as imagens da pele fossem a pele das
imagens. Há um ruído brutal neste espaço. Um ruído feito do seu silêncio absoluto. Este museu
grita, com a amplificação que o projecto potencia, o sofrimento de todos os corpos.
O conceito de escala é um instrumento operativo na explicação do trabalho de Miguel Palma
na nova Faculdade de Engenharia. A partir do lugar de observação sobranceiro vemos um Seat
600 fazer um percurso de 80 metros num circuito fechado sobre uma pista, que remete para
o universo de todas as infâncias, como se fossem “2,5 Km a 100 à Hora”.
E, por fim, tendo escolhido o andamento (e o percurso proposto pelo mapa), acabamos com
“Ouro sobre Azul”. Joana Vasconcelos cria uma estrutura cilíndrica, revestida por taças
associadas a competições, para a faculdade de Ciências de Desporto. Se no exterior temos a
expressão do prémio, a compensação, a glorificação, no interior temos os sons dos treinos, a
música brutal dos ensinamentos, os gritos incitadores. E entre os sons dos treinos e a glória
das taças, as toalhas (azuis) do suor. É esse o preço do ouro.
Estas 10 intervenções artísticas, ao inscreverem-se em 10 territórios de relação científica,
proporcionam uma luminosidade suplementar sobre a natureza desses lugares. A Experiência
do Lugar revela uma cidade da experiência.
Ma Pa Da Ci En Ci A
Porto 2001
A excelência dos centros de produção científica existentes no Porto contrasta com a sua
pequena visibilidade junto da comunidade não-científica e mesmo no seio das “outras”
comunidades científicas. Pensamos que 2001 deveria ser a oportunidade para alterar este
estado de coisas.
Neste sentido, e em articulação com as instituições, abrimos os lugares da ciência, através
da criação de um mapa, no qual assinalámos um conjunto de percursos em torno dos núcleos
de investigação da cidade. Este mapa vivo, objecto só por si excitante, possibilita a criação de
vários trajectos em torno das grandes questões do mundo contemporâneo e da forma como
a Ciência as interpela. Sobre o mapa da cidade real desenha-se, desta forma, o mapa do
conhecimento.
ELOGIO DA LOUCURA
HIPERQUADRO*
Uma Superfície Com Profundidade
Porto 2001
A circunstância de Roterdão ser, conjuntamente com o Porto, Capital Europeia da Cultura em
2001, e a vontade de desenvolvermos uma programação estereofónica que pudesse tirar partido
da ressonância de elementos simbólicos da outra cidade, levou-nos a uma aproximação não
convencional da obra mais famosa de Erasmo, o “Elogio da Loucura”, com toda a problemática
de um novo humanismo que atravessa o livro.
Uma programação cultural com a ambição de 2001 deveria ser também a oportunidade para
propor um novo humanismo na relação com a cidade, um humanismo que pudesse ser
simbolicamente radical.
Na topografia das cidades há espaços fáceis e espaços difíceis, espaços que esperam todos
os espectáculos e espaços que não esperam qualquer espectáculo. Espaços onde a programação
acontece e espaços onde a programação não acontece porque, simplesmente, não são
programáveis. O Hospital do Conde Ferreira pertence a esta segunda categoria. É o hospital
psiquiátrico que, no imaginário da cidade corresponde a todos os estereótipos associados à
loucura, como se ela fosse um território que importasse confinar (e proscrever).
O Conde Ferreira é um quadro, um registo de convenções que encerra outras convenções,
como o quadro clínico ao definir, ao cartografar, patologias. A própria arquitectura do hospital
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remete para esta ideia de quadro, de território definido, emoldurado. Este quadro, conservado
fora do tempo, pedia um hiperquadro, um sistema que lhe fornecesse interactividade, flexibilidade,
como na relação que o texto estabelece com o hipertexto. Era como se procurássemos uma
142
profundidade para essa superfície. E ao pensarmos na cirurgia que poderia conferir a este
sistema essa natureza suplementar, ganhou evidência a oportunidade de um conjunto de
intervenções artísticas que percorressem o espectro de mobilidade que vai da pintura, ao auto-retrato, à performance, passando pela fotografia, pela instalação, pelo vídeo, pelo teatro, pela
dança, e… a jardinagem. Isto é, uma sequência que reflectisse formalmente a questão da
deslocação, no imaginário foucaultiano do hospital psiquiátrico e da prisão do século XIX, a
questão do controle, da “vigilância e da punição”. Este conjunto de sete intervenções (algumas
delas disseminadas por vários espaços e com configurações múltiplas) procuram insuflar a
realidade melancólica deste espaço com um suplemento de ânimo, de vitalidade, nem que seja
pelo curto período desta ocupação. Mais do que uma plástica, ou uma prótese, elas surgem,
sobretudo, como uma intervenção efémera que, incluindo temporariamente este lugar excluído,
valoriza a política dos espaços, entendidos nas suas múltiplas e complexas relações com o
poder, em detrimento de uma ideia de festa que estaria sobretudo associada aos espaços da
política.
Ao instalar-se a arquitectura do hospital, esta sequência performativa define uma complexidade
relacional que se clarifica na intervenção no panóptico. O panóptico é uma estrutura de
observação, também estudada por Foucault, que permite uma visão global (tudo ver, tudo
viajar, para punir). No Hospital do Conde de Ferreira existe um edifício poliédrico, com sete
celas, que funciona como um simulacro do panóptico, e para o qual pedimos uma intervenção
a cada um dos artistas participantes. De certa forma, ele passa a funcionar como o lugar onde
é possível ver, não tudo, mas todos. Como um sistema de distribuição e de organização das
múltiplas intervenções.
O panóptico aparece como uma antologia, ou melhor, um fractal, do conjunto de intervenções
neste espaço. E, também, como um fractal da programação desta área da Porto 2001, que tem
por objectivo encontrar uma figuração, uma configuração, para o próprio Pensamento, o que,
de resto, mais não é do que perseguir a ideia de hiperquadro. Ou seja, uma superfície, um
córtex, capaz de imaginar o mundo, de o dotar de toda a profundidade.
ARTE EM CAMPO
2005
O futebol é um dos temas mais paradoxais do mundo contemporâneo. Ele convoca o belo e o
horrível simultaneamente. É uma fábrica de ilusões e uma empresa de depressões. Ninguém
lhe fica indiferente.
A paixão pelo futebol é uma doença bipolar. É maníaco-depressiva. Maníaca ao domingo,
depressiva à segunda, quando o clube perdeu. O futebol celebra a vida, mas fá-lo a partir da
organização da guerra. Ele desenvolve o sistema da guerra, dois lados em contacto feroz,
transforma-a num jogo que encerra os rituais da própria guerra e, muitas vezes, termina numa
verdadeira guerra. Numa guerra de palavras ou mesmo física.
O futebol é também um espectáculo, o mais importante espectáculo dos nossos dias.
Absolutamente local, com todas as rivalidades de bairro, e absolutamente global. É um fenómeno
planetário. Os seus protagonistas são mais famosos do que as pop stars. São as verdadeiras
pop stars. Além disso, o futebol infiltra-se por todo o lado. Pela nossa carne, pela carne dos
adeptos e pela raiva dos hooligans. Pelo coração das nações.
A selecção nacional é o mais importante conglomerado simbólico de um país. É uma bandeira
com pessoas. Adulada quando ganha, desprezada quando perde.
O país foi futebolizado até ao tutano. A realização do EURO 2004 em Portugal transformou-o
num imenso campo de futebol. Por isso, concebemos o programa Arte em Campo. É claro que
as nossas artes já estavam em campo, já jogavam múltiplos jogos, mas com este projecto
aproximam-se desse outro campo que é o futebol.
A Arte em Campo nasceu de uma convocatória a artistas, comissários, programadores e
instituições para reflectirem e produzirem obra(s) em torno do futebol. A nossa convicção de
que o futebol era uma matéria-prima fortíssima e riquíssima foi confirmada nas mais de cem
interessantes propostas que recebemos e, particularmente, nas cerca de vinte que decidimos
apoiar, por se integrarem mais eficazmente no desenho que pretendíamos.
Arte em Campo é um projecto que cumpre a estratégia de descentralização e de experimentação
do Instituto na perspectiva daquilo a que chamamos “Portugal Experimental”.
Portugal, país com (para não dizer do) futebol, no mais importante evento aqui realizado nesse
domínio, pediu à arte que o discutisse. Ligar a arte (contemporânea) e o futebol é estabelecer
um elo entre dois mundos que habitualmente não se encontram.
143
A arte, num exercício por vezes demasiado sobranceiro, olha o futebol e os seus protagonistas
com distância e preconceito. O futebol pura e simplesmente não olha para a arte porque só
tem olhos para si. Esta ligação é uma oportunidade para verificar como o mais importante
144
fenómeno de massas da actualidade é olhado pelo mais subtil sistema de questionamento da
realidade. Será que funciona? É isso que este programa nos ajudará a discutir.
DEPÓSITO
ANOTAÇÕES SOBRE DENSIDADE E CONHECIMENTO
2007
Ao pensarmos num depósito vem-nos à cabeça uma grande quantidade de peças arrumadas
de uma forma compacta, densa, num local escuro. Se se trata de um depósito de um museu,
essa densidade adquire contornos especiais. Passa a ser uma densidade valiosa, uma densidade
com o valor do conhecimento. Quando pomos os pés numa exposição de um museu, imaginamos
que por baixo da ordem estabelecida do que se mostra se esconde a desordem organizada do
que se conserva e guarda. Por isso, os depósitos são lugares, muitas vezes, mais fascinantes
do que as próprias salas de exposição. Eles são densos e misteriosos. A quantidade de peças
compactadas impõe uma deriva do olhar. Impõe uma construção particular do conhecimento.
A construção da “minha” visita.
Esta exposição é a instalação de um depósito de vários depósitos. E não rejeitando o seu
estatuto de exposição, pretende, sobretudo, ser vista como um depósito. Ela é, assim, o registo
desta vontade ambígua da peça em ser mostrada, única e original, e por isso convocar todos
os discursos do mundo à sua volta, mas também a expressão do seu direito ao recolhimento
e à sombra. Do direito a uma certa normalidade, mesmo no sentido estatístico. Desta forma
muitas peças são mostradas em articulação com a colecção em que se integram. Privilegiamos
a ideia de série e parentesco, em vez da ideia de peça única, pois parece-nos mais produtiva
quando pretendemos fazer uma reflexão sobre o presente dos depósitos e o futuro desse
museu de museus que são as colecções da Universidade do Porto.
O projecto abre com um conjunto de peças mais volumosas colocadas num estado à entrada
das instalações da Reitoria da Universidade do Porto. Estamos, neste momento, perante aquilo
que poderíamos chamar a “selva do conhecimento”. Este conjunto aparentemente heterodoxo
e desconcertante (qual a relação entre um cristal de quartzo e uma prova de esforço? Ou entre
um esqueleto humano e a maqueta da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
de Siza Vieira? Ou ainda entre uma tela de Ângelo de Sousa e um braço robótico?) cria um
campo de possibilidades a partir do qual se podem começar a estabelecer as subtis relações
e nexos (senão de causalidade pelo menos de casualidade) que configuram o conhecimento.
E o que parecia aleatório, se olhado com mais atenção, começa a revelar um tecido de sentidos.
Mas a selva pede lei. É isso que tentamos fazer no “átrio de química”, onde se apresenta o
principal núcleo expositivo. Aqui uma parede com sete metros e meio de altura e doze metros
e meio de largura acolhe os objectos provenientes dos depósitos-museus da Universidade do
Porto. São centenas de peças colocadas de acordo com aquilo que se pode considerar uma
ordem de complexidade. Primeiro, uma ordem de complexidade natura, começando com
minerais e rochas e terminando com o encéfalo humano. À qual se segue uma ordem de
complexidade cultural, começando com a pedra lascada e terminando na obra de arte,
representada por esculturas desse personagem de múltiplos cruzamentos e pontes que foi
Abel Salazar, também professor da Universidade do Porto. Um módulo com as últimas cinco
teses de doutoramento de todas as Faculdades, isto é, com o mais recente, conhecimento aqui
produzido em todas as áreas, encerra simbolicamente esta estante do saber.
Mas mais do que tentar organizar o mundo e pretender ter todo o conhecimento numa parede,
como se fosse um planisfério do saber, com esta disposição pretendemos criar um sistema
complexo de associações possíveis a partir de um conjunto de lentes (binóculos) postas à
disposição dos visitantes. Construímos a parede, demos-lhe uma ordem e um sentido, uma
opção curatorial, mas em última instância é o visitante que fará o seu percurso através das
relações que possa ir estabelecendo entre (e com) as peças.
Um conjunto de artistas foi convidado a trabalhar o tema do depósito, da colecção e do
conhecimento científico, e desenvolveu trabalhos que coexistem com as peças dos museus
numa relação que se pretende de interpelação. Esses trabalhos encontram-se numa superfície
horizontal que estabelece com a parede uma lógica ortogonal. Como se quiséssemos dizer
que o conhecimento científico precisa da arte para se reconfigurar, porque a arte é, quando
confrontada com a ciência, umas das experiências do mundo mais densas e gratificantes.
Paulo Cunha e Silva (1962). Licenciado em medicina, mestre e doutor pela Universidade do Porto. Professor de Pensamento
Contemporâneo na FADE/UP. Ensaísta, comissário, programador, curador, crítico, colunista, comentador televisivo.
Responsável, no âmbito do Porto 2001, das áreas do Pensamento, Ciência, Literatura e Livros, Projectos Interdisciplinares
e Articulação com Roterdão. Director do Instituto das Artes/MC 2003-2005.
145
4. EXPOR A ARQUITECTURA:
MEDIAÇÕES DE UMA PROFISSÃO EM TRANSFORMAÇÃO
Pedro Gadanho – Curador
146
Até hoje, o modelo prevalecente da profissão da arquitectura e o seu correspondente modelo
expositivo – as mostras de arquitectos consagrados – cumpriram o seu papel no que diz respeito
ao sistema de consumo de bens culturais predominante.
Só que as regras do consumo estão, elas próprias, constantemente em movimento e não nos
podemos manter fiéis a um modelo de oferta durante demasiado tempo.
Talvez hoje em dia, os arquitectos tenham de ser capazes de oferecer outras competências,
outras funções, outras contribuições sociais.
Talvez hoje em dia seja insatisfatório olhar para os arquitectos simplesmente como arquitectos.
É dentro deste contexto que eu situo e ponho em causa o papel actual da curadoria de
arquitectura. Apesar de ainda poderem ser sucessos de bilheteira, é preciso perguntarmo-nos
se as exposições de arquitectos consagrados são, nos tempos que correm, a melhor contribuição
para o crescimento do estatuto cultural da arquitectura.
E, apesar de a definição de tendências ainda ser importante para o conhecimento que a própria
disciplina tem da sua história, é preciso perguntarmo-nos se o gesto mais crítico com vista
ao reposicionamento da arquitectura perante os seus públicos, agora globais, ainda será este.
Sendo uma das mediações que, cada vez mais, influenciam a recepção cultural da arquitectura,
a curadoria de arquitectura precisa, por conseguinte, de ser clarificada no que diz respeito a
alguns dos seus valores e ambições.
Sendo uma das mediações que procuram criar uma interface eficaz entre a arquitectura e um
público mais alargado, a curadoria de arquitectura também precisa, no fim da era da imprensa,
de voltar a ser vista como o aspecto da cultura arquitectónica que mais pode aspirar a recuperar
a ideia de crítica operativa, de Manfredo Tafuri.
De facto, como sabemos, a crítica, na sua forma escrita tradicional, parece estar num momento
de crise. Num mundo dominado pela imagem, o discurso crítico revela-se incapaz de enlevar
as mentes. Deste modo, a crítica segue a prática de um modo obediente.
147
Neste cenário, talvez as ferramentas críticas devam, então, voltar a ser tratadas como o único
meio que se localiza na encruzilhada entre o poder da cultura visual contemporânea, o poder
do valor de exposição, e a possibilidade de 30 linhas de transmitir uma mensagem poderosa
e eficaz a um público mais vasto.
Mas esta abordagem tem, claro está, os seus próprios paradoxos.
Como Hal Foster nos lembra no seu “Design and Crime”, foi Walter Benjamin quem notou que
o chamado valor de exibição pode ser identificado com o valor de troca que permeia a esfera
da arte e, por conseguinte, transforma, quer os seus sentidos, quer os seus contextos.
Aplicado à arquitectura, isto pode ser traduzido para a noção de que o valor de exibição/troca
se tornou, na realidade, uma poderosa mediação simbólica que afecta e distorce valores
profissionais anteriores.
Considerando a visibilidade de arquitectos e edifícios, a capacidade de expor é tudo e o valor
de exibição é, efectivamente, aquilo de que os meios de comunicação social estão à procura.
Claro que as exposições sobre arquitectura se ocupam deste valor de exposição e ajudam a
construí-lo. E, como tal, é obviamente difícil para quem as organiza recorrer ao valor de troca
sem, pura e simplesmente, lhe sucumbir.
Como Beatriz Colomina já tinha sugerido no final da década de 1980, quando a arquitectura é
reproduzida pelos mecanismos que regem o mundo do valor de exposição, quem está envolvido
na actividade de difusão deve abordar criticamente a forma como o significado cultural da
arquitectura está a ser alterado pela própria reprodução.
Neste contexto, a figura do curador surge como alguém que é capaz de articular o valor de
exposição, não apenas em si mesmo – isto é, produzindo a sedução e o magnetismo da exibição
correcta –, mas também como um instrumento crítico que ajuda a reorganizar e a reestruturar
os sentidos e a percepção geral da arquitectura e da sua prática.
Deste modo, a curadoria de arquitectura também nos encaminha para uma apropriação do valor
de exibição, que, em última análise, favorece o reaparecimento da arquitectura na esfera pública.
148
Como diria Arjun Appadurai, as escolhas e as apropriações na arena cultural também são codependentes da forma como as produções culturais se apresentam e representam a si próprias.
Se a arquitectura quer fazer parte destas escolhas mais abrangentes, também ela terá de usar
o seu valor de exposição para se representar a si mesma como algo que está pronto a ser
partilhado por um público mais alargado.
Como tal, fazer curadoria de arquitectura tem passado, no meu caso, por compreender e
interpretar criticamente a cultura arquitectónica e, simultaneamente, por maximizar a sua
audiência fora da esfera da arquitectura.
Neste sentido, fazer uma exposição é um processo de aprendizagem, uma investigação crítica
cujos resultados são, como que por coincidência, imediatamente expostos perante os olhos
do público.
Como um processo de investigação deste género implica uma postura crítica – uma selecção,
um ordenamento, uma reflexão –, é criado um momento no qual a revelação da cultura
arquitectónica a um público mais alargado coincide com a sua crítica pública.
Comissariar arquitectura torna-se, por conseguinte, essencialmente uma mediação crítica,
e, como tal – e mesmo quando se dirige a um público desconhecedor –, a sua actividade deve
revelar as tensões que existem debaixo da superfície da prática arquitectónica.
Eu diria que, a partir de um determinado estádio, imaginar uma exposição somente como uma
promoção de uma determinada prática cultural, de um determinado autor ou de uma determinada
tendência passa a ser uma espécie de insulto a um público culturalmente exigente.
Neste sentido, talvez a exposição Post.Rotterdam ainda tenha cavalgado a onda da proeminência
da arquitectura holandesa do final da década de 1990.
Mas essa mostra procurava também investigar qual a natureza de tanta excitação. Na verdade,
os críticos que escreveram para o catálogo não foram convidados para sancionar o seu conteúdo,
mas sim para o questionar.
Da mesma forma, a retrospectiva de Pancho Guedes no Museu de Arquitectura Suíço que se
aproxima não tem como objectivo simplesmente celebrar a redescoberta pós-colonial de um
fio perdido da cultura modernista. Esta mostra também se propõe avaliar como é que a
individualidade genuína é tantas vezes subsumida e enterrada pela disciplina, em particular
se não se enquadra nas versões oficiais dos sumos sacerdotes da arquitectura.
Quaisquer que sejam as mensagens que pretendam transmitir, qualquer que seja o grau de
pensamento crítico que possam incluir, estas exposições também representam, contudo, um
exercício, prático e permanente, de como comunicar arquitectura a um público mais vasto.
Preocupam-se com a maneira de criar mecanismos de exposição inteligíveis que possam, em
simultâneo, seduzir o não-especialista e veicular uma mensagem crítica.
São exposições que, embora sugiram o poder da cultura visual, jogam igualmente com o tipo
de discurso multifacetado que, a dada altura, foi proposto por Umberto Eco. Neste sentido, o
visual esconde os conteúdos por baixo de uma sedução vistosa, mas também implica camadas
de significado mais profundas. E estas são, em última análise, destinadas a ser interpretadas
pelos visitantes mais atentos ou conhecedores.
A eficiência crítica da curadoria de arquitectura dependerá, por conseguinte, da sua capacidade
de usar o supramencionado valor de exposição para tornar o exercício da crítica em algo de
sedutor.
Contudo, estas exposições recorrem ainda aos formatos que tradicionalmente associamos à
prática curatorial.
E isto é algo que nos devia levar a perguntar porque é que a actividade de comissariar
arquitectura se tem de restringir a um veículo e forma esperado, a exposição.
Como se prova pelas dificuldades da representação em segunda mão, e contrariamente ao
que, no campo da arte, parece ser o receptáculo ideal, uma exposição não é, provavelmente,
o instrumento mais apropriado para se pensar em arquitectura de um ponto de vista curatorial.
A curadoria de arquitectura não terá, de facto, tanto que ver com os aspectos práticos da
organização de uma exposição. Essa actividade deveria, antes, estar relacionada com a produção
e exposição de investigação teórica e pensamento prospectivo sobre cultura arquitectónica.
149
Neste sentido, a curadoria de arquitectura pode provavelmente desempenhar melhor a sua
função quando o resultado final é a própria arquitectura. Como ficou provado por alguns
projectos históricos – como a Weissenhofsiedlung, em Estugarda –, a curadoria de arquitectura
150
torna-se mais desafiadora e duradoura quando consegue produzir os seus próprios resultados
dentro do meio original da arquitectura.
S.A.L. / Silos Automóveis de Lisboa, a exposição de parques de estacionamento automóvel de
Lisboa, produzida entre 2003 e 2004, só foi tão bem sucedida porquanto ficou próxima de, na
realidade, criar um itinerário de jovens arquitectos dentro da capital portuguesa.
Inicialmente planeados como uma alternativa crítica e radical aos parques de estacionamento
que estavam a surgir no centro histórico de Lisboa, os projectos expostos foram, de forma
surpreendente, apropriados pelo poder político. E mesmo que nenhum desses parques de
estacionamento venha alguma vez a ver a luz do dia, o processo de curadoria teve, pelo menos,
a qualidade de produzir uma crítica efectiva da forma como a cultura arquitectónica estava
ausente de um desígnio urbano então em curso.
Afinal, a curadoria de arquitectura deve lidar com a integração crítica da arquitectura na
realidade. Ou, por outro lado, pode lidar com a integração crítica de outras realidades na área
e na prática da arquitectura.
Assim, o iminente LoopExperience, um projecto de curadoria para um edifício privado no Porto,
não se dispõe somente a reinterpretar como é que as intervenções de arte e design podem
alterar a experiência da arquitectura.
Embora isto possa ser visto como mero “valor acrescentado”, o processo curatorial também
está orientado para fazer uma reflexão crítica sobre os efeitos da noção de “economia da
experiência” na natureza de produzir arquitectura como um bem de consumo.
A diferença que talvez se queira sublinhar aqui, entre crítica tradicional e uma perspectiva
contemporânea da curadoria de arquitectura, é que, no fim de contas, os processos
críticos de curadoria podem ser bastante mais operativos – e mais eficazes dentro da
realidade –, uma vez que se situam, também, no âmago dos processos de consumo de
bens culturais.
Dado que a curadoria necessita, na realidade, de chegar a um público, a sua eficácia crítica
dependerá muitas vezes da utilização das ferramentas da cultura visual para criar o espectáculo
e o valor de exposição por meio dos quais a crítica poderá emergir e, de forma mais ou menos
subtil, deixar uma impressão junto do público.
Assim, a exposição Space Invaders, feita para o British Council em 2001, foi concebida como
uma intervenção que usava a linguagem do pop para chegar aos seus públicos espalhados
pelo mundo.
Não só o seu nome se referia, supostamente, ao popular jogo de vídeo, como o seu próprio
design foi inspirado pelo mais pop dos colectivos arquitectónicos, os Archigram e as suas
“Walking Cities”.
Não só o seu uso do videodocumentário raiava a linguagem visual dos telediscos, como também
os materiais que propunha como vindos dos arquitectos ultrapassavam claramente o universo
de referência arquitectónica.
Finalmente, se a arquitectura quiser competir por atenção com outras formas de produção
cultural – ou se, afinal, quiser ser consumida dentro do sistema mais alargado do valor de
exposição –, então talvez a abordagem curatorial mais indicada a esta circunstância seja a
assunção de uma natureza mais transdisciplinar.
Como afirmei recentemente perante um comité encarregado de conceber um novo centro
arquitectónico para Lisboa, mesmo que haja um público específico para a arquitectura, a
cultura arquitectónica não parece ser capaz, por si só, de sustentar um grande espaço expositivo,
um programa completo de curadoria e ainda uma vasta audiência, a não ser que seja colocada
dentro da área mais alargada da cultura urbana.
Por outras palavras, a arquitectura, por si só, pode encher estádios com estudantes de
arquitectura, mas, dentro da esfera mais alargada do consumo de bens culturais, só muito
poucos – e só os mais excepcionais – dos seus conteúdos se equipararão ao apelo de uma
grande exposição internacional de arte.
Posto isto, é melhor que as estratégias para comissariar arquitectura incluam ou mantenham as
supracitadas relações da arquitectura com a realidade vivida; por outro lado, deviam situar a
151
arquitectura numa rede mais alargada de abordagens transdisciplinares a um determinado tema.
Se possível, incluirão ambas.
152
Essa foi claramente a ambição de Metaflux, Duas Gerações na Arquitectura Portuguesa Recente.
A exposição concentrou-se nas recentes metamorfoses na natureza da prática arquitectónica.
Por muito instável que o tema fosse, a inclusão de contributos alternativos por parte dos
artistas ajudou a promover a discussão em torno do quão críticas estas práticas realmente
foram relativamente aos contextos urbanos em que intervieram.
Isto significa que se, num primeiro olhar, a mostra podia ser vista como um aval dos mais
jovens arquitectos portugueses, na verdade ela não só punha em contraste várias posições e
a diversidade das suas abordagens, mas também sugeria que a arquitectura – pelo menos
aquela arquitectura – ainda era demasiado introvertida e, na maior parte dos casos, não
conseguia ainda acompanhar a perspicácia crítica do olhar artístico e a energia das culturas
criativas que a rodeiam.
Pedro Gadanho divide a sua actividade entre arquitectura, crítica, curadoria e a docência universitária. Projectos, exposições
e escrita contribuem, em igual medida, para a reflexão crítica sobre as inte-relações entre a prática da arquitectura e a
cultura contemporânea. Foi comissário de ‘Metaflux,’ representação portuguesa na Bienal de Veneza de Arquitectura
de 2004, e de mostras internacionais como ‘Influx,’ ‘Space Invaders’ e ‘Post.Rotterdam’.
153
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FICHA TÉCNICA
Editor
SETEPÉS
Título
Exposições
Coordenação Editorial
J. Henrique Praça
Susana Marques
Coordenação Científica
João Teixeira Lopes
Coordenação da publicação
Fátima Marques Pereira
Autores
Alexandra Fonseca Pinho
Ana Tostões
Cristina Guerra
Dario Oliveira
Ana Isabel Ribeiro
Ivânia Gallo
João Oliveira Rendeiro
João Paulo Velez
José Nunes Rodrigues
Julião Sarmento
Manuel Aires Mateus
Margarida Veiga
Mário Micaelo
Miguel Dias
Paulo Cunha e Silva
Paulo Trincão
Pedro Gadanho
Pedro Lapa
Pedro Oliveira
Sérgio Mah
Revisão de textos
Ana Telma Botas
Assistente Editorial
Márcia Pinto
Design
Carlos Mendonça
Pré-Impressão, Impressão e Acabamentos
Empresa Diário do Porto, Lda.
1ª Edição, 2007. Porto
SETEPÉS
ISBN: 978-972-99312-7-7
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